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Sobre o uso de temática vampiresca em brindes de alimentos

Shirlei Massapust

Numa noite de outubro de 2021 tive um sonho. Uma voz mandou-me obter
brindes de alimentos ultraprocessados com temática vampiresca. Questionei por que
alguém gastaria tempo e dinheiro numa tarefa tão sem importância? Acordei de
madrugada e fiz uma busca superficial na internet. Além de não haver nada de novo nas
lojas de doces e hipermercados, as antigas coleções de figurinhas anunciadas em
plataformas de comércio eletrônico pareciam superfaturadas. Abandonei a missão e
desliguei o computador. Quando estava prestes a voltar para meu quarto o tampo da
mesa da sala caiu. Uma revoada de morcegos entrou pela janela e zanzou pela casa.
Pensei então: “Isso não pode estar acontecendo”. Acordei de novo. Ainda era sonho.
Pela manhã decidi pesquisar atendendo ao chamado da voz onírica. Comecei
lendo o livro Ora, Bolas! de Gonçalo Júnior, onde consta que figurinhas de cigarros,
chocolates, biscoitos e chicletes foram distribuídas em época anterior ao lançamento do
primeiro álbum de cromos vendido em jornaleiro. No Brasil, em 1961 e 1972, os
governos dos presidentes Jânio Quadros e Emílio Garrastazu Médici legislaram no
sentido de proibir a venda de álbuns de figurinhas premiadas em jornaleiros, determinar
a impressão de cromos em quantidades iguais e obrigar editoras a vender pelos correios
determinada quantidade para que todos pudessem completar suas coleções.1 Estes
dispositivos estão em vigência até hoje, porém, como disciplinaram a venda e não o
brinde, o jornaleiro e não o baleiro, o mercado de parafernália vintage passou a atribuir
valores flutuantes mais elevados às coleções completas de brindes de alimentos.
Por exemplo, um conjunto de 30 cartas de Mythomania (ano 2008) mais 42 de
Dracomania (ano 2008) da Elma Chips® havia sido recentemente arrematado por R$
1000,00. Ofertas de trinta cartas da coleção Vampiros (ano 2009), também da Elma
Chips®, variavam de R$ 350,00 a R$ 450,00 conforme o melhor estado de conservação.
A propósito, entre todas as coleções de figurinhas com temática vampírica já publicadas
no Brasil, é justamente a Vampiros da Elma Chips® que apresenta o maior número de
colecionadores registrados no fórum do nicho, o Troca Figurinhas. Quando o consultei
em 08/11/2021 duzentas e vinte e oito pessoas haviam concluído quinhentas e nove
trocas de cartas que originalmente acompanhavam os biscoitos Fandangos e Cheetos.
Admirei-me pelo fato de as fontes oficiais negarem a existência de álbuns para
cartas Mythomania, Dracomania e Vampiros, pois eu mesma já os havia visto na posse

1 JUNIOR, Gonçalo. Ora, Bolas! A inusitada história do chiclete no Brasil! São Paulo, Alameda, 2012, p 116.

1
de colecionadores. Então vim a saber que os álbuns são produzidos no Brasil, de fãs
para fãs, pela OoZaros <https://oozarusboxgames.wordpress.com/albuns/>. Enfim, até
hoje há marmanjos felizes procurando, trocando, comprando e vendendo estes e outros
pedacinhos superestimados de infância. Segundo os membros do Troca Figurinhas, na
coleção Vampiros as mais fáceis de encontrar desde a época do lançamento são 5, 7,
11, 15, 16, 17, 20, 21, 22 e 23. As mais difíceis são 1, 6, 8, 19, 25, 26, 27, 28, 29 e 30.

Sobre o valor afetivo das coleções de figurinhas e brindes de alimentos

“No meio do caminho tinha uma pedra”, já dizia Drummond de Andrade. Na trilha
do colecionismo tem políticos com mentes belas, duras e ocas feito drusas de ametista.
Em pleno período de pandemia de Covid 19, a relatora deputada Benedita da Silva (PT),
entre outros, engajaram-se na tarefa de desarquivar o Projeto de Lei 4815/2009, de
autoria do deputado Dr. Nechar (PV/SP), que, se aprovado, tipificaria como crime o
comércio de alimentos em venda casada com produtos mascarados como brindes.2
Os apoiadores da causa aparentam pensar em todas as crianças como pragas
domésticas indomáveis, que supostamente querem tudo que veem pela frente.

Oferecer brinquedos para estimular o consumo de alimentos com altos


teores de sódio, açúcar e gorduras é extremamente prejudicial à saúde
das crianças. (...) Além disso, o fato de esses brinquedos serem
exclusivos, efêmeros e colecionáveis faz com que a criança seja
incentivada a consumir uma grande quantidade de “promoções” num
curto espaço de tempo. Depois de conseguir o primeiro brinquedo da
série, em geral, a criança quer completar a coleção. E depois a
seguinte. E outra. A criança, assim, torna-se promotora de vendas da
marca. E o apelo para que mãe, pai ou responsável compre os demais
itens pode gerar enorme estresse familiar.3

Na vida real as pessoas comuns tem preferências, mantém o foco em poucos


assuntos e a coerência em seus temas favoritos. O habito nocivo de amontoar grandes
quantidades de objetos aleatórios, sem critério de utilidade ou pertinência temática, não

2 PL 4815/2009 – Inteiro teor. Acessado em 04/12/2021 18h55.


URL: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=426002>.
3 PEÇA AOS DEPUTADOS PARA APROVAREM O PL 4815/2009. #ABUSIVOTUDOISSO (Abaixo assinado). Instituto
Alana. URL: <https://criancaeconsumo.org.br/abusivo-tudo-isso/>. Acessado em 06/12/2021.

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configura a atitude do colecionador de arte, mas sintoma de transtorno de acumulação
compulsiva, tratável por terapia comportamental sob o auxílio de um psicólogo.
Os críticos do colecionismo de brindes exclusivos e “efêmeros” apontam para os
riscos à saúde causados por uma dieta rica em alimentos ultraprocessados, bem como
para o desperdício do dinheiro do arrimo da família em compras por impulso realizadas
pelo filho despótico que não lhe da paz e não para de pirraçar enquanto não obtém seu
objeto de desejo. Em lar de criança bem educada não é assim que as coisas funcionam.
Para ganhar mesada o menor deve mostrar-se bem comportado, tirar boas notas nos
exames escolares e ajudar no trabalho doméstico. Se pirraçar fica de castigo.
Ninguém jamais deu tanto valor às moedas de centavos quanto uma criança bem
educada. O biscoito ou chiclete com brinde de figurinha que ela compra é preciosíssimo,
sob sua perspectiva. Imaginemos, por exemplo, que estamos no ano de 2009, assistindo
aos comerciais televisivos do jogo-coleção Vampiros, lançado naquele período pela
indústria de alimentos Elma Chips®, cujas peças individuais vinham como brinde dos
salgadinhos Cheetos e Fandangos. Certamente havia entre o público infanto-juvenil
muitos interessados em brincar com essas belezas coloridas; sobretudo entre curiosos
proibidos de mexer na coleção de Vampire: The Eternal Struggle de seus pais.4
Pensemos na probabilidade estatística de obter trinta figurinhas diferentes em
trinta sacos fechados, sem repetições, sendo a coleção composta por trinta peças, com
cada saco contendo uma unidade. O cálculo matemático para a solução do problema
seria 1 ÷ (30 x 29 x 28 x 27 x 26 x 25 x 24 x 23 x 22 x 21 x 20 x 19 x 17 x 16 x 15 x 14 x
13 x 12 x 11 x 10 x 9 x 8 x 7 x 6 x 5 x 4 x 3 x 2 x 1). Isto, claro, se todas as trinta peças
houvessem sido editadas ao mesmo tempo em igual tiragem. Contudo, na verdade dez
peças foram produzidas em maior número e outras dez em menor número, distribuídas
em diferentes datas incertas e não sabidas, tornando o nível de dificuldade incalculável.
Há 50.063.860 combinações possíveis com 6 números de 1 a 60; o que significa
que um apostador adulto teria mais chances de ganhar na Mega Sena da Virada do que
os colecionadores mirins tiveram de obter sozinhos todas as cartas da coleção Vampiros
ou Mythomania ou ainda Dracomania da Elma Chips®, consumindo apenas o mínimo
necessário. Entretanto, existe mais de uma centena de coleções completas atualmente.
Pois bem, só isso prova que o meio costumeiro para atingir o fim nunca foi comer
salgadinhos desesperadamente até o estômago explodir. Tamanha dificuldade exigia o
exercício do pensamento estratégico e o desenvolvimento de habilidades sociais.

4 Vampire: The Eternal Struggle é um jogo de cartas colecionáveis projetado em 1994 pelo matemático e designer de
jogos Richard Garfield, inicialmente publicado pela Wizards of the Coast com o nome de Jyhad. Isso vendeu muito no
Brasil e era comum ver pessoas jogando em mesas durante eventos de RPG.

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Como uma criança não poderia obter muitos sacos de salgadinhos, o habito de
colecionar figurinhas estimulava a interatividade e o trabalho em equipe, requerendo o
engajamento de vários colegas na aquisição e troca de números repetidos. O importante
era perguntar e descobrir quem comprava Cheetos e Fandangos regularmente. Existiam
consumidores que descartavam brindes, pois somente se interessavam pela comida.
Ao negociar com eles poder-se-ia comprar os brindes indesejados ou ganhar figurinhas
a troco de nada. Quando uma tarefa começa a ficar demasiadamente difícil sempre tem
gente que desiste e abandona uma coleção incompleta. Conheça essas pessoas! Grude
nos pés delas! Comprando apenas um saco de salgadinhos por semana durante o ano
letivo a criança teria várias oportunidades para adquirir novas figurinhas e compartilhar
guloseimas (porque quando alguém abre um saco de salgadinhos no horário do recreio
escolar tanta gente pede um pouco que quem menos come é o dono do saquinho).
Quando o troca-troca entre colecionadores não facultava a obtenção de números
raros apelava-se para o jogo do bafo onde jogadores depositam uma quantidade de
figurinhas no chão, sorteiam a ordem de ação dos participantes e batem com a mão,
um de cada vez, no monte de figurinhas. Os cromos que virarem do avesso passam a
ser propriedade de quem os virou. O processo continua até que todas as figurinhas
sejam retiradas. Deste modo a boa sorte ajudava a completar sua coleção desfalcando
a do alheio. Por tudo isso, depois de crescido, o colecionador muitas vezes mantém
uma memória afetiva intensa com relação aos brindes de alimentos ultraprocessados.

Sobre chicle e desconstrução de estereótipos monstruosos

O sapotizeiro (Manilkara zapota) é uma árvore originária do Sul do México e da


América Central, produtora de deliciosos frutos comestíveis raramente encontrados nas
feiras e mercado hortifruti por uma boa razão: Sendo a árvore alta e copada, com
produção escassa, para coletá-los nós esperamos que morcegos frugívoros os
derrubem no chão. O sapoti mordiscado não serve para consumo humano, porém os
que caem intactos resistem ao espatifamento pela gravidade e podem ser degustados.
O nome do fruto, sapoti, vem do náuatle – antigo idioma da cultura Asteca – onde
tzapotl designava tanto o fruto quanto a árvore. No Brasil, ameríndios incorporaram a
partícula i do tupi, resultando no vocábulo sapoti. A cultura Maia conhecia esta árvore
por outro nome, chiclé (de chi, boca e clé, movimento), donde deriva o inglês chiclets®
e o português chiclete. Ocorre que pelo menos desde o século II o povo Maia, no México
e Guatemala, já fabricava goma de mascar a partir do cozimento do látex do sapotizeiro.

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O método de extração da seiva contendo 15% de borracha era o mesmo que os
antigos brasileiros utilizavam para obter látex da seringueira (Hevea brasiliensis L.) cujos
usos anteriores à monopolização industrial são desconhecidos. A cultura Asteca e todas
que vieram depois se apropriaram e preservaram o costume de mascar a goma do látex
de sapotizeiro, pois a estimulação da produção de saliva auxiliava na higiene bucal e
reduzia a sensação de secura na boca durante longas caminhadas. Em 1871 o cidadão
estadunidense Thomas Adams Junior (1818-1905) inventou e patenteou uma máquina
para preparar goma de mascar em larga escala. Então inaugurou a primeira fábrica de
chicletes, passando a importar do México quantidades de látex em escala industrial.
Após a morte de Adams, aos 85 anos, seus filhos e netos fizeram da American
Chicle Company uma corporação que se espalharia por vários países ao longo da
primeira metade do século XX. Essa boa gente fez benfeitorias na receita acrescentando
açúcares, óleo hidrogenado, corantes, aromatizantes e embalagens chamativas. Com
o tempo o látex vegetal acabou substituído por resina sintética derivada do petróleo.
Atualmente o grupo Cadbury Adams da Kraft Foods é controlado pela empresa
Mondelēz International. Em 1940 os Adams iniciaram a produção de chicletes no Brasil.
Desde então a fabricação e consumo de goma de mascar açucarada foi totalmente
incorporada aos hábitos e costumes dos brasileiros. Assim como ocorreu ao futebol,
surgido na Inglaterra no século XIX, o Brasil também se apropriou do chiclete e se tornou
uma referência mundial. Outras fábricas surgiram, muitas delas brotando deste chão.
Em 1998 os chicletes brasileiros já eram exportados para 115 países que compravam
algumas toneladas produzidas por ano, representando 12% do consumo mundial.
Na década de 1930 o empreendedor estadunidense Ulysses Severin Harkson
fundou a Kibon na cidade de Xangai, na China, como uma indústria produtora de
sorvetes, chocolates e outros doces. Depois, em 1941, por causa da Segunda Guerra
Mundial, transferiu sua empresa para o Brasil onde ela existe até hoje. Em 1957, a Kibon
foi comprada pela General Foods Corporation. Em 1985 foi comprada pela Philip Morris.
Em 1995 a Kibon comprou a fábrica de chocolate Lacta. Em 1997 a Unilever comprou
a Kibon e a padronizou com sua estrutura global de sorvetes.
Isso explica por que um mesmo picolé icônico pôde ser comercializado por várias
marcas ao longo de seis décadas. Em algum momento à época da vigência do Cruzeiro
no Brasil – que durou de 01/11/1942 a 12/02/1967 – a fábrica de sorvetes Gelato© lançou
o picolé Drácula com camada interna vermelha sabor morango e parte externa preta,
sabor cola. No anúncio um vampiro-mirim segura a guloseima de Cr$ 1,20.

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Em 1999-2000 a Kibon reviveu o picolé Drácula com melhorias5, entre elas uma
borda vermelha na parte inferior e um palito de plástico vermelho translúcido que servia
como bloco de montagem de estruturas quando reunido em grande quantidade. Quem
encontrasse o palito premiado durante a vigência da promoção Drac Mania poderia
trocá-lo nos pontos de venda pela “dentadura do Drácula”. Atualmente este picolé não
é mais fabricado em São Paulo, Brasil, mas foi relançado pela Algida©, na zona do euro,
em setembro de 2018, e no Reino Unido pela Wall’sTM. Lá Drácula custa € 0,60 EUR.

Propagandas dos picolés Drácula


da Gelato© e Drácula da Kibon, ao
lado de um palito não premiado.

Pertence a Kibon o mérito de criar as primeiras gomas de mascar infláveis. As


crianças regozijaram com a possibilidade de assoprar bolas até explodir e melecar o
rosto. Seu chicle, o Ping-Pong, também passou a dar brindes de figurinhas ausentes na
concorrência da Adams. Após realizar a engenharia reversa da guloseima concorrente,
que tornou seu principal produto obsoleto perante o gosto infantil, os funcionários da
filial brasileira da Adams aprimoraram a fórmula e criaram uma máquina capaz de
introduzir núcleo de líquido frutado que tornava a goma ainda mais saborosa. Este novo
chiclete foi chamado de Bubbaloo. Em 1976 comercializou-se a primeira remessa eivada
de vicio redibitório (o líquido escorria e melava o papel). Tendo corrigido o erro na
fabricação e melhorado o design do produto, em 1982 a Adams teve seu melhor

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Conforme indicado na embalagem seus ingredientes eram: Água, açúcar, xarope de glicose, aromatizantes, acidulante
ácido cítrico, corantes naturais carvão vegetal, urucum e carmim de cochinilha, espessantes carboximetilcelulose sódica,
goma guar e carragena.

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momento com o relançamento de Bubbaloo. Então a tecnologia nacional foi levada para
outros países, derrubando todos os outros concorrentes na linha de chiclete de bola.
Eu me lembro de quando isto foi relançado. Certa vez vi um desenho onde um
cãozinho passou diante duma TV onde foi exibido um comercial de ração de carne. O
animal doméstico salivou, pois a comida inacessível parecia deliciosa. Ele foi à cozinha
e mostrou o pote vazio à sua dona. Ela abriu uma lata de ração genérica donde saiu
uma pasta molenguenta. A fome foi substituída por náusea, porém o bicho teve de fingir
comer para agradar sua dona. Depois saiu da cozinha e cuspiu dentro de um sapato.
As crianças da minha geração se sentiam como esse cachorro quando pediam
Bubbaloo e acabavam levando bronca dos pais por escolherem o chiclete mais caro da
barraca do baleiro. A gente chupava qualquer tablete com papel ou ganhava bala soft
para morrer engasgado vendo as meninas chiques fazendo combo de roupa da grife da
Xuxa com batom Boka Loka, estourando as bolas gigantes do gostosíssimo Bubbaloo.
Consolo de pobre é figurinha. Durante a década de 1930 um empreendedor,
Jacob Warren Bowman, foi o primeiro a distribuir tais brindes junto com gomas de
mascar. Viram-se inúmeras crianças, no Japão, colecionando uma série de 240 imagens
sobre a conquista das terras dos nativos americanos no velho oeste estadunidense. Por
estes e outros eventos os adultos perceberam como a política imperialista dos EUA
favorecia um mercantilismo superficial e fútil. Logo depois, em 1936, firmou-se a Aliança
do Eixo na Segunda Guerra Mundial, dando início à sequência de fatos históricos que
culminou no bombardeamento atômico das cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945.
Em 1960 as gomas de mascar se tornaram um ícone pop consumido em larga
escala. Popularizaram-se os brindes de figurinhas colecionáveis, igualmente presentes
em chocolates e outros produtos alimentícios. Vincular marcas à imagem de ídolos dos
esportes, da música, do cinema e dos quadrinhos parecia uma ótima ideia. Em média,
as coleções eram renovadas a cada noventa dias. As figurinhas de chicletes e biscoitos
introduziram muitos menores no mundo do colecionismo, ainda que uma minoria entre
os consumidores se engajasse fortemente no desafio de completar coleções.
Além dos cromos feitos para o colecionismo existem também figurinhas com
efeitos especiais a exemplo das tatuagens temporárias e dos decalques. Você raspava
com a unha ou rabiscava um lado da folha dos decalques sobre uma figura que era
transferida para a cartela ou álbum, podendo ainda ser utilizada em outra superfície
como papel, papelão ou madeira. O ruim era quando o material descolava uma parte e
ficava cortado na hora que passava para o papel... Um sucesso acima da média de
brindes de decalques ocorreu entre 1987 e 1988 com a promoção Ploc Monsters;
realizada pela empresa Q-RefresKo, então proprietária da marca de chicle Ploc.

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No primeiro momento, foram feitas 80 figuras com desenhos divertidos
de monstrinhos criados pelo artista gráfico Céu D’Elia. Cada criatura
trazia o nome de uma pessoa – metade do sexo masculino (números
pares) e metade do feminino (números ímpares) – o que permitia
brincadeiras entre amigos. Por causa da explosão nas vendas, 48
novas criaturas foram acrescentadas, num total de 128.
A promoção incluiu até comercial para TV com animações das
figurinhas de Karen (27) e Tiago (52), que contracenavam com um
grupo de crianças. Ploc Monsters atingiu a marca de 74 milhões de
unidades vendidas, quando o Brasil tinha 120 milhões de habitantes.
(...) A popularidade levou a Q-RefresKo a ampliar a série para mais de
um ano e criou novos estímulos para manter as vendas aquecidas,
como a troca de cinco embalagens do chiclete por um álbum em forma
de pôster com espaços para “transfixar” as famosas figuras. O êxito
ultrapassou as fronteiras dos chicletes de bola em 1988, quando Céu
D’Elia ganhou o prêmio Top de Marketing daquele ano. 6

Na coleção Ploc Monsters havia uma djin Patrícia (7), um ciclope Cristiano (10),
uma múmia Nelson (14), um saci Victor (36), um tritão Lucinha (43), uma mula sem
cabeça Karina (45), um vampiro Maurício (92), etc. Porém quase todos os monstros
eram espécies nunca antes vistas em bestiários ou narrativas folclóricas. O mais
interessante é que a Q-RefresKo passou a realizar experimentos sociais para investigar
a causa do insuperável sucesso na venda de Ploc contendo figurinha Ploc Monsters.
A coisa mais incrível que poderia acontecer era você encontrar o seu nome no
monstrinho. Ou achar o nome de um amigo – ou inimigo – e mostrar para ele. Em janeiro
de 2015 a Coca-Cola lançou uma promoção semelhante imprimindo nomes de pessoas
nas latas das versões regular e zero do refrigerante. Todo mundo quiz ter a “sua” lata.
Então será que Ploc Monsters vendeu tanto por causa da abundância de nomes
de pessoas comuns? A Q-RefresKo encomendou uma nova coleção a Céu D’Elia com
os mesmos nomes e mesma numeração, porém no lugar dos monstros a Ploc Zoo
trouxe animais de boa aparência. A vendagem foi inferior. Portanto “eu sou um bicho”
não perecia tão cômico e absurdo quanto “eu sou um monstro”. Eles tentaram de novo
lançando mais monstros, desta vez nomeando-os por expressões grosseiras do dia-a-
dia, tais como Traça de Livros (07), Otário (37), Olho Gordo (38), Encrenca (67),
Linguaruda (113), etc. E a vendagem de Ploc Monsters 2 decepcionou. Determinou-se

6 JUNIOR, Gonçalo. Ora, Bolas! A inusitada história do chiclete no Brasil! São Paulo, Alameda, 2012, p 116.

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que o monstro genérico é apenas um desenho de gosto duvidoso. O choque do monstro
humanizado, desconstruído, e do consumidor feito monstro, era aprazível às crianças.
Mas não era divertido quando o feio monstrinho parecia vítima de bullying. O “eu” e seu
espelho monstruoso eram, portanto, elementos indissociáveis na fórmula do sucesso.
A propósito, no que diz respeito aos colecionadores de figurinhas de bichos,
sempre houveram opções de maior tamanho e melhor qualidade de impressão. As mais
famosas eram a enciclopédia do mundo animal Mil Bichos lançada em cartões pela
Editora Abril, em 1978, contendo mil e oito cartões mais fichas e folhetos comprados
separadamente em bancas de jornaleiro para serem arquivadas em caixas de acrílico
(display). Cada ficha continha uma fotografia e, no verso, tudo sobre o animal. Ali se via
desde pavão, panda, lince, etc., a vermes de intestino, morcegos e sanguessuga. É
sério, se a oportunidade faz o ladrão ela também faz o biólogo. Pense em crianças
felizes por colecionar Trypanosoma cruzi como se fosse card de Pokémon raro!

Cartão VAMPIRO (290) da


coleção Mil Bichos (1978).
Frente e verso.

A Nestlé copiou a ideia ao incluir cartas educativas como brinde do chocolate


Surpresa, porém excluindo quaisquer animais impopulares, como insetos e quirópteros.
As mais belas fotos da natureza que já se viu em brindes de alimentos compuseram as

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coleções Animais de Todo o Mundo (1983), Animais do Pantanal (1984), Maravilhas do
Mar (1985), Animais da Amazônia (1986), A Fantástica Mata Atlântica (1987), Litoral e
Ilhas Oceânicas (1988), Campos e Cerrados (1989), Sertões (1991), Viagem ao Fundo
do Mar (1995) e Shows da Natureza (1998). Desenhos realistas tornaram as coleções
Cães de Raça (1992), Dinossauros (1993) e Viagem Espacial (1997) objetos de desejo
dos amantes das artes. Mas as caricaturas de O Guia dos Curiosos (2001) puseram um
fim nas vendas das barras de chocolate Surpresa. Ninguém gosta de bichos imprecisos.
A próxima empresa a investir em figurinhas de monstros seria a Elma Chips®,
com a coleção ChipSustos lançada em 1992. Eram quarenta e cinco figurinhas adesivas
para colar em três pôsteres chamados Mansão Susto, Selva Susto e Tumba Susto.
Tanto as figurinhas quanto os pôsteres possuíam traços que brilhavam no escuro após
um minuto de exposição a luz. Os cromos de número cinco e oito formavam um casal
de vampiros habitantes da Mansão Susto. O número vinte e dois era um homem
morcego habitante do cemitério Tumba Susto.
A primeira coleção nacional de brindes de guloseimas completamente dedicada
à temática do vampirismo foi a coleção de figurinhas Vampirus, brinde do chicle Bolin-
Bola, fabricado pela indústria brasileira Nechar Alimentos Ltda. A telenovela Vamp foi
produzida e transmitida pela Rede Globo entre 15/07/1991 e 08/02/1992. Durante e
após esse período a Rede Globo exibiu nos intervalos o comercial do chicle Bolin-Bola
na forma de desenho animado onde quatro crianças penetram num castelo sombrio. Lá
eles são primeiro perseguidos por uma revoada de morcegos. Começa a correria.
Uma menina percebe que a solução para não temer vampiros é ser vampira. Ela
saca um pacote de goma Vampirus e se transforma no estourar da primeira bola. Depois
persegue os outros até o menino mais magro desgarrar do grupo e aceitar a oferta de
chicle. Dois vampiros perseguem o par restante e, por fim, três convencem o último
amedrontado a transformar-se. A propaganda termina com as quatro crianças saindo
do castelo, voando com asas de morcego, num céu limpo e bonito em plena luz do dia.

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A coisa real era um pacote contendo cerca de cinco bolotas de chicle nas cores
preto, vermelho e roxo. Ao chupá-las elas coloriam a língua. O gosto não era ruim,
porém não era dos melhores. Ao assoprar as bolas não cresciam muito e o operador de
vincadeira manual responsável pelo corte das figurinhas deveria sofrer mal de Parkinson
pois saiam todas tortas. Mesmo assim eram belas e exibiam sequencias de cenas do
comercial, sem nenhuma relação com a telenovela além da contemporaneidade. Fiz de
tudo para completar a coleção. Comprei caixas lacradas e garimpei chicletes vencidos
a cinco anos encalhados num estoque. Mesmo assim me faltam cromos importantes.
Em 1999 a marca de chicle Buzzy, da Riclan, empresa de capital nacional,
provocou a ira dos moralistas ao licenciar a distribuição de figurinhas com fotos sensuais
da atriz Suzana Alves no papel de Tiazinha – personagem do programa “H” de Luciano
Huck, na TV Bandeirantes – ultrapassando a venda de cem milhões de unidades em
três meses. No ano seguinte criou igual rebuliço e sucesso com figurinhas das
dançarinas do grupo É o Tcham! Todavia, mais tarde, quando licenciou uma coleção de
figurinhas da telenovela O Beijo do Vampiro, a Riclan não escandalizou ninguém.
Imitando a melhor ideia da Nechar à época de Vamp, a Riclan inseriu em seu
chicle uma tinta que deixava a boca pintada de azul, no sabor tutti-frutti; e de verde, no
sabor hortelã. Foi um baita tiro no pé! Notoriamente o preto, o roxo e especialmente o
vermelho da Nechar guardavam relação de pertinência temática com o mitologema do
vampiro; mas o que as cores felizes da Riclan teriam a ver com o assunto? Malfeitos a
parte, pelo menos a Riclan distribuiu gratuitamente o álbum Chicle de Bola Buzzy: O
Beijo do Vampiro (2002), com espaço para colar as noventa figurinhas numeradas que
vinham enroladas na respectiva goma de mascar. Gustavo Bacchi, então gerente de
marketing da Riclan, explicou ao jornalista Gonçalo Junior que a ideia era estimular o
habito do colecionismo em consumidores da faixa dos seis aos doze anos de idade.7
Este brinde saiu antes mesmo do álbum oficial da telenovela O Beijo do Vampiro
(2003), editado pela Panini, vendido em jornaleiros juntamente com os pacotinhos de
seus cento e setenta e quatro cromos. A divergência na data de lançamento se deve ao
fato de que ninguém quereria figurinhas tão miúdas após ver os cromos da Panini.

Vampiro: Padrões iconográficos

Embora figurinhas de chiclete e biscoitos tenham por público alvo crianças de


seis a doze anos, muitos dos personagens criados por Céu D’Elia para a coleção Ploc
Monsters caberiam sem ressalvas na estética de produções de horror destinados a

7 JUNIOR, Gonçalo. Ora, Bolas! A inusitada história do chiclete no Brasil! São Paulo, Alameda, 2012, p 30.

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consumidores maiores de dezesseis ou mesmo de dezoito anos. Denise (113), a feia
mulher de biquini com enormes glúteos verruguentos, é o melhor exemplo disso. Porém
o vampiro Maurício (92) foi trabalhado num estilo caricatural precursor das Cal-Arts –
ainda que anatomicamente menos impreciso e preguiçoso. – Algo assim lembra os
filmes clássicos com Bela Lugosi e Christopher Lee, porém jamais teria lugar numa
antologia de quadrinhos da Taika, D-Arte ou Vecchi, aliás, nem da Bloch ou Ebal.
Maurício usa terno azul-marinho, colete azul-piscina, blusa social branca e meias
pretas. Seus sapatos parecem mocassins brancos de bico preto. A capa de gola alta é
preta com forro vermelho. A barra inferior da capa é recortada na forma de patágios ou
farrapos simétricos. Hoje em dia alguns poderiam considerar a combinação de quatro
cores demasiadamente colorida, para um personagem sombrio; entretanto, para a moda
da época, tratava-se de tons pesados, solenes e sóbrios. Maurício é um homem adulto,
magro, pálido como papel sulfite branco. Tem cabeçorra de tamanho desproporcional
ao corpo e boca aberta desproporcional à cabeça para focar nossa atenção nos seus
dentes e garganta vermelha. Seus olhos esbugalhados – compostos por círculos
concêntricos em branco e preto – parecem vetores de hipnose. O vampiro tem unhas
longas e ele estende as mãos para o alto como se pretendesse nos agarrar.

O homem morcego da coleção ChipSustos é um horror impecável. – Pena que


o papel envelheceu mal e meu cromo criou manchas alaranjadas. – Quanto ao casal de
vampiros, ambos são adultos de pele verde com três dedos em cada mão. Ele tem
cabelo azul e ela é ruiva. Ambos usam capa de ópera. A dele tem gola alta, é preta com
forro roxo. A dela é roxa com forro cor de rosa. Ele usa sapatos azuis, calças pretas e
blusa vermelha de mangas longas com rendas brancas nas pontas. Ela usa sapatos
vermelhos, cinto vermelho e vestido azul com gola de renda branca. A desarmonia das
cores se harmoniza nos tons e nada parece alegre em meio a cenários sombrios.
Ele tem olhos grandes, com olheiras arroxeadas, orelhas com cantos pontudos
e dentes visíveis. Enquanto o Maurício da coleção Ploc Monsters era um vampiro com

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atitude condigna ao mitologema predominante no período, o personagem anônimo no
cromo de número oito da coleção ChipSustos parece um bobalhão. Inclusive ele segura
um canudinho de plástico do tipo que as lanchonetes davam para inserirmos nos copos
de refrescos. (Chupar sangue de canudinho é o cúmulo do ridículo).
A personagem do cromo de número cinco apresenta pose e expressão facial
agressivas, porém foi sensivelmente menos trabalhada, mais pobremente desenhada.
Todos os outros monstros da coleção foram mais seriamente representados do que o
casal de vampiros. O que confere relevância à ChipSusto é a sua mágica, sua ciência
oculta. Os adesivos luminosos apresentam em sua constituição a substância sulfeto de
zinco, que tem a propriedade de emitir um brilho amarelo-esverdeado depois de exposta
à luz. Ao absorver fótons em ambiente claro os elétrons de seus átomos saltam para
níveis de energia mais externos; mas ao absorver elétrons em ambientes escuros são
os fótons que saem causando o efeito de fosforescência.8
Em 1998 a Elma Chips voltou a lançar figurinhas fosforescentes com tema de
monstros na coleção Brilha Susto Família Addams, contendo trinta cromos e sete partes
do corpo. Porém tal coleção não nos interessa tanto pois traz arte estrangeira licenciada.
Quando eu era criança acreditava que Ploc Monsters era uma dessas coleções
importadas por causa do nome, e também ChipSustos pela ausência de menção ao
folclore brasileiro. Se já existisse internet os moleques gringos me esfregariam na cara
a arte realista e impressionante dos cromos adesivos Garbage Pail Kids produzidos pela
empresa Topps desde 1985. Mas se ao invés disso eles vissem Elma Chips Vampiros
esconderiam suas cabeças com sacos de pão. Alguma coisa mudou por aqui e foi para
melhor. A evolução do trabalho artístico nos brindes da Elma Chips é berrante.
O diferencial da coleção Vampirus da Nechar está no protagonismo infantil. A
história é essencialmente sobre dois meninos e duas meninas de tenra idade brincando
de pique pega assombrado. Ninguém é top model. Tem um magricelo, um gordinho,
uma menina sardenta e a outra parece uma versão infantil de Mary Matoso. Isto traduz
essencialmente um clima de carnaval ou dia das bruxas, sendo perfeita para menores.

Sobre a importância da consolidação de padrões iconográficos

Seriam os brindes de alimentos ultraprocessados demasiadamente efêmeros,


supérfluos, desprovidos de valor intrínseco? É difícil estimar onde alguém vê um

8 FILHO, José Tadeu de Oliveira. Como funcionam os adesivos que brilham no escuro? Em: SUPER INTERESSANTE.
Última atualização em 31/10/2016, 18h49. URL: <https://super.abril.com.br/ciencia/como-funcionam-os-adesivos-que-
brilham-no-escuro/>.

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monstro fictício pela primeira vez. Entre os trinta cromos contendo charadas da coleção
“O Que É, O Que É?”, lançada em 1991 pela Elma Chips®, um deles pergunta: “Por que
o vampiro usa suspensórios pretos?” A criança removia a aplicação de cobertura para
raspadinha na parte inferior e lia a resposta óbvia: “Para segurar as calças”.9 Com isso
era mais fácil auferir noções da moda masculina antiga (capa de ópera, suspensórios)
do que deduzir a razão que faz do personagem lúdico um não humano, um morto vivo.
Quem não soubesse previamente o que é um vampiro não passaria a saber por
causa dum único desenho ou fotografia de ator com área variável entre quatro (2 por 2)
e nove (4,5 por 4,5) centímetros. Todavia a presença de rostos conhecidos e imagens
criadas a partir de padrões iconográficos consolidados funciona como uma sequência
de estímulos mnemônicos ou exercícios de fixação de conteúdos aprendidos.

A estreita limitação de conteúdo informativo em brindes de alimentos implica em


sua necessária complementariedade com informações provenientes do contexto cultural
onde a criança está inserida. Ou seja, é verdade que praticamente ninguém obtinha
informações relevantes sobre os conteúdos apresentados em cromos, decalques e
outras miudezas isoladas. Por exemplo, um vampiro bidimensional e estático não nos
diz muita coisa, mas dez deles passam uma mensagem. Um no folclore, outro no gibi,
outro na novela, outro no cinema, outro no livro, outro na figurinha colecionável.
As crianças aprendem e consolidam a informação por meio da repetição. Elas
precisam de diversos exemplos para realmente aprender. Na primeira vez prestarão
atenção às cores e sons, nas próximas talvez foquem sua atenção nas regras dum jogo,
na história dum gibi, na linguagem ou no arco narrativo dum desenho animado.

9 O QUE É, O QUE É? Publicado no blog Coleções Elma Chips, acessado em 10/11/2021. URL: <http://colecoes-elma-
chips.blogspot.com/2013/02/o-que-e-o-que-e.html>.

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Pequenos lembretes aqui e ali facilitam e reforçam a assimilação da informação
que resulta na abstração do mitologema que corporifica o vampiro no mundo das ideias.
A recorrência na visualização de imagens semelhantes situa o cidadão numa zona de
conforto. Isso faz a criança confiar em sua capacidade de prever que algo ao seu redor
permanecerá seguro e contínuo. O mesmo é válido para embalagens decoradas de
xampu, charges de jornal, enfeites e trajes festivos (para carnaval e halloween), jogos
temáticos e tudo aquilo que motiva o menor a contextualizar seu próprio desenho, sua
redação, seu conto, seu artesanato, sua música, enfim, a começar sua produção autoral.

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