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POLíTICA: CIDADÃO SUJEITO? SUJEITO CIDADÃO?

Cidadão-Sujeito? Sujeito-Cidadão? Tensão entre os dois

Célio Garcia

As noções “sujeito”, “cidadão” e “comunidade” organizam habitualmente um espaço político que


vamos chamar anexado. Vai-se tentar analisar o laço social sem necessariamente passá-lo pelo
espaço anexado.

O sujeito não é o cidadão. Um e outro representam duas posturas, emergência ou constituição


de um sentido. O cidadão é, de início, um, qualquer um; o sujeito é singularidade que se afirma
por ocasião de um acontecimento a que ele passa a dever fidelidade.

O em-comum da cidade teria que ser um espaço onde os cidadãos se cruzam, sem outro critério
de unificação a não ser a exterioridade de suas relações. De certa maneira, a cidadania seria
mundial. Se a referência for a Revolução Francesa do fim do século XVIII, o cidadão tem
dimensão internacional, cosmopolita.

O sujeito político ou a política segundo o sujeito consiste na apropriação da exterioridade


constitutiva da cidade. O cidadão se faz sujeito no momento exato em que há
representação/apresentação de um acontecimento. A soberania do sujeito surge, e não se
contenta em residir no contrato ou no aspecto jurídico-formal.

Por sua vez, o sujeito se faz cidadão quando o espaço cívico desdobra e expande as
particularidades subjetivas. A idéia de “república” representa esse ponto de reciprocidade.
Soberania e comunidade são os dois termos que tradicionalmente enfeixam as questões que
aqui se tenta pontuar. Fraternidade igualmente seria um termo que pretende resolver as mesmas
questões.

Seria possível contentar-se com o cidadão, abandonando-se a questão do sujeito, desistindo-se


de fazer do cidadão um sujeito?

Um programa de defesa do cidadão-consumidor-usuário-de-serviços parece estar sendo bem


aceito pela democracia de mercado, pelo capitalismo de investimento em massa, do controle de
qualidade, que adotasse a “qualidade total” propugnada em nossos dias e já com numerosos
adeptos.

O prosseguimento dessa análise leva à constatação de que há tensão entre cidadão e sujeito.
No fundo, seria essa tensão que daria um novo laço, a ser avaliado longe da dependência do
espaço anexado a que já se aludiu. “Laço social” proveniente da própria tensão, “laço social” de
caráter político, já que marcado pela soberania do sujeito.

Como abordar a tensão?

Qual a fronteira entre o humano e o desumano?

Ao mesmo tempo que se sabe que a angústia vem a ser uma tortura para o homem, ao se
refletir sobre o estatuto teórico e o valor atribuído na prática ao conceito de angústia, pode-se
pensar que ela é uma função do humano; sem ela o humano em questão não faria a experiência
do real em toda a sua dimensão, nem tampouco sua travessia. Se, de um lado, é difícil definir o
que é propriamente humano, pois a humanidade se inventa a cada travessia do real acima
nomeado, por outro lado, o desumano é imediatamente reconhecido.

Conclusão: os princípios éticos inspiradores de movimentos de “defesa do cidadão”, certamente


movimentos responsáveis, seriam necessariamente negativos, pois seu fundamento é capaz de
discernir o que é desumano, mas incapaz de definir o que seja o humano. Se assim é, o mal
acaba sendo a grande preocupação da Ética; o imperativo ético se exerceria cada vez que o mal
despontasse no horizonte da experiência humana.

Pergunta: bastaria identificar o homem de maneira essencialmente negativa e contabilizar os


males que lhe são infligidos?

Um problema se evidencia: se o desumano é o argumento de peso inspirador da Ética, se o


humano é a negação do desumano, a loucura (e outros aspectos da experiência humana)
estaria restrita a um campo onde o humano se recusa a reconhecer-se.

Em outras palavras, para se formular uma nova questão que faça progredir essa reflexão, que
relação vamos admitir entre o humano e a experiência do desumano? Que limite fixar no
tratamento dessa não-humanidade?

Pode-se propor um outro esquema em que se trabalham questões éticas a partir de uma
definição positiva do homem e que inclua o não-humano. Para tanto, tem-se que romper com a
concepção cada vez mais aceita na atualidade e que consiste em ver, na maioria das vezes, o
homem como uma vítima; os direitos desse homem-vítima serão, conseqüentemente, os direitos
de uma vítima, e o tratamento a ele reservado será aquele reservado a uma vítima. O estado de
vítima, de desamparado, de infeliz, de humilhado, reduz o homem a sua condição animal.
Certamente que a humanidade é uma espécie animal, mortal e cruel. Mas nem a mortalidade
nem a crueldade definem a singularidade humana. Lembremos Hannah Arendt enviada a Jerus-
além para assistir ao julgamento do carrasco nazista Eichman:

“- O mal é banal”, disse Arendt após longas jornadas passadas no tribunal.

O carrasco é uma abjeção animal, devemos dizer; mas a vítima não vale mais que o carrasco.
Se o carrasco trata a vítima como animal, é porque a vítima chegou ao ponto de se tornar um
animal. Alguns que passaram pela prova dão testemunho do esforço para não se deixarem
assemelhar a um animal; os relatos dos campos de extermínio sob O regime nazista são
contundentes nesse sentido. Assim, naquele que resiste, a resistência não coincide com a
identidade de vítima. Eis o homem, ele se obstina em permanecer o que ele é! Isto é, outra
coisa que não uma vítima, outra coisa que um ser para a morte. Outra coisa que um mortal, um
imortal, portanto!

Há, por conseguinte, uma identidade do homem como imortal a partir do instante em que ele se
afirma contra o querer-ser-um-animal, estado a que as circunstâncias (carência, pobreza total) o
expõem. A subjetivação é imortal, e faz o homem! Fora disso, existe uma espécie biológica sem
singularidade.

É imperativo contar com uma subjetivação sempre possível. A Ética deve avaliar o que pode um
sujeito e o que desse poder ele é capaz de querer. Necessário se faz não ceder, em nome da
impotência da vontade, sobre a possibilidade do possível. O inimigo da Clínica do Social seria a
idéia do pobre homem, de vítima a ser mantida sob proteção do sistema.

Lidar com alguém inapto à subjetivação seria sustentar até o último instante, em condições
desfavoráveis, a possibilidade de que algo aconteça, de que ínfimo movimento faça surgir o
sujeito, raro, pontual, sujeito, enfim, marcado pela imortalidade, capaz de denunciar qualquer
tentativa de referência única a um grande Outro tirânico, e unificador.

“pega leve”

Até há pouco tempo, uma prática política progressista vivenciada por um cidadão não alienado
tinha como principal alvo de suas críticas e ações políticas o Estado, as instituições de um
modo geral. Em toda situação política havia uma dominante, dizia a Filosofia. As lutas políticas
eram orientadas nesse sentido, diziam os partidos de esquerda.
Hoje, o Estado, as instituições, não são o centro das preocupações, não são considerados o
principal obstáculo em se tratando de uma política de emancipação. O antigo bicho-papão (se
se quiser, pode-se chamá-Io de grande Outro, com “O” maiúsculo) não é o que pensávamos.

A prática política do dia-a-dia mostra que a dona-de-casa a caminho do mercado, com suas
“comprinhas” limitadas pelo orçamento diário, e o cidadão que sai para o trabalho temem muita
coisa, mas jamais perdem tempo pensando no tal de grande Outro.

É bem verdade que os economistas parecem acreditar no bicho-papão. Talvez porque tenham
como referência única e constante o macro, os grandes números (como eles costumam dizer),
o FMI e outros monstros.

A dona-de-casa não! Essa compra a varejo, o marido e/ou a mulher vivem de salário mensal,
pagamentos por vezes quinzenal. Esses cidadãos não fazem parte desse macro, pelo menos
no que diz respeito ao seu comportamento político. Aliás, o sujeito político, o cidadão, jamais é
citado ou mencionado nas instruções do Banco Central por ocasião de criação de artifício
cambial ou de outra natureza.

A prática política do dia-a-dia se faz no miúdo, no varejo, como se disse a propósito do


“sacolão”. E o bicho-papão? Será que já não existe? Existe, sim, mas tem outro jeito, não é
como contaram.

“Pega leve” é o que dizem os adolescentes quando querem desmascarar o grande Outro
autoritário, bicho-papão. É o que se deve dizer para d. Maria, dona-de-casa a caminho do
“sacolão” (supermercado dos pobres), é o que se deve dizer para o militante de hoje. É bem
verdade que sempre se estará marcado pelo Estado, pois ele sabe cobrar imposto, e muito,
mesmo dos pobres! Mas a revolta não tem que ser dirigida diretamente contra o doutor de
colarinho branco e gravata. Nem contra quem mora em palácio, ou é diretor disso, daquilo.
Cada um vai encontrar um jeito de encaixar seu “pega leve”; há vários jeitos.

Nem se está condenado ao destino que eles (os economistas do macro) reservaram para nós.
Tem-se que lutar pelo possível. Todo dia tem um possível diferente! Nem o povo vota de um só
jeito; o povo vota de jeitos muito diferentes. Cada jeito bem que poderia ser um partido, uma
maneira de fazer política; mas isso eles não querem. Aí, sim, nesse exato momento, aparece a
cara do bicho-papão, do político paternalista que faz promessas, como se o eleitor fosse uma
eterna vítima. Deputado, padre ou pastor, patrão ou instituição, qualquer um que se apresentar
com essa cara, já se sabe. Mas nem vale a pena falar mais do que é preciso. Meia palavra basta,
desde que seja a certa, na hora aprazada. O resto é “pegar leve”.

Laço social e verdade.

A sustentação do laço social, assim como o estatuto da verdade, também terá que ser encarada
nessa nova perspectiva, pois não será o primado comunicacional do grande Outro bastante para
garantir o coletivo, nem o estatuto da verdade sairá ileso dessa vasta operação com efeitos ao
nível do coletivo.

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