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Ensino Superior Bureau Juridico

Teoria e técnica na entrevista


e nos grupos

Nesta obra! Bleger aborda! do ponto


de vista teórico e técnico! dois temas
fundamentais da psicologia.
José Bleger
Sobre o primeiro! a entrevista
psicológica! é feita uma apresentação
TEMAS DE
de indicações práticas para sua PSICOLOGIA
realização! um ensaio de
categorização e um estudo dos
aspectos psicológicos da entrevista.
Sobre os grupos! o segundotema! o
autor estuda os grupos operativos no
ensino! O problema do grupo nas Tradução RITA MARIA M. DE MORAES
Revisão LUÍS LORENZO RIVERA
instituições e como instituição e!
finalmente! a administração das
técnicas nos planos de prevenção ou!
em outros termos! a estratégia com
grupos.

CAPA
Projeto gráfico Alexandre Marlins Fontes
Kalia Harumi Terasaka
Martins Fontes
São Paulo 2003
Ilustração Rex Design
Ensino Superior 8ureau J~kl;cô°

Título original: TEMAS DE PSICOLOGÍA (ENTREVISTAS Y GRUPOS)


Copyright by © Ediciones Nueva Visión SAlC, Buenos Aires, 1979
Copyright © 1980, Livraria Marfins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1" edição
abril de 1980
7ª tiragem
abril de 1995
2ª edição
maio de 1998
3ªtiragem
outubro de 2003

Revisão da tradução
A entrevista psicológica
Luis Loremo Rivera Seu emprego no diagnóstico e na investigação
Revisão gráfica
Rosângela Ramos da Silva Ensaio de categorização da entrevista 49
Produção gráfica
Geraldo Alves Grupos operativos no ensino 59
PaginaçãolFotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial O grupo como instituição e o grupo
Capa
Alexandre Martins Fontes nas instituições 101
Katia Harumi Terasaka
Administração das técnicas e dos
Dados Internacionais de Catalogação na Pnblieação (CIP) conhecimentos de grupo 123
(Câmara Brasileira do Livro, 8P, Brasil)

Bleger, José
Temas de psicologia: entrevista e grupos I José Bleger ; tradução
Rita Maria M. de Maraes ; revisão Luis Lorenzo Rivera. - 2i! ed. -
São Paulo: Martins Fontes, 1998. - (Psícologia e pedagogia)

Índices para catálogo sistemático:


1. Psicologia 150

Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria Marfins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho. 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (lI) 3241.3677 Fax (lI) 3105.6867
e-mail: info@martinsfontes.com.br hltp://www.martinsfontes.com.br
A entrevista psicológica
Seu emprego no diagnóstico e na investigação

Publicado pelo Departamento de Psicologia da


Faculdade de Filosofia e Letras. Universidade
de Buenos Aires, 1964.

A entrevista é um instrumento fundamental do mé-


todo clínico e é, portanto, uma técnica de investigação
científica em psicologia. Como técnica tem seus pró-
prios procedimentos ou regras empíricas com os quais
não só se amplia e se verifica como também, ao mesmo
tempo, se aplica o conhecimento científico. Como ve-
remos, essa dupla face da técnica tem especial gravita-
ção no caso da entrevista porque, entre outras razões,
identifica ou faz coexistir no psicólogo as funções de
investigador e de profissional, já que a técnica é o pon-
to de interação entre a ciência e as necessidades práti-
cas; é assim que a entrevista alcança a aplicação de co-
nhecimentos científicos e, ao mesmo tempo, obtém ou
possibilita levar a vida diária do ser humano ao nível do
conhecimento e da elaboração científica. E tudo isso
em um processo ininterrupto de interação.
A entrevista é um instrumento muito difundido e
devemos delimitar o seu alcance, tanto como o enqua-
2 Temasdepsicologia A entrevistapsicológica 3

dramento da presente exposição. A entrevista pode ter A entrevista pode ser de dois tipos fundamentais:
em seus múltiplos usos uma grande variedade de obje- aberta e fechada. Na segunda as perguntas já estão pre-
tivos, como no caso do jornalista, chefe de empresa, di- vistas, assim como a ordem e a maneira de formulá-Ias,
retor de escola, professor, juiz etc. Aqui nos interessa a e o entrevistador não pode alterar nenhuma destas dis-
entrevista psicológica, entendida como aquela na qual posições. Na entrevista aberta, pelo contrário, o entre-
se buscam objetivos psicológicos (investigação, diagnós- vistador tem ampla liberdade para as perguntas ou para
tico, terapia, etc.). Dessa maneira, nosso objetivo fica suas intervenções, permitindo-se toda a flexibilidade
limitado ao estudo da entrevista psicológica, não so- necessária em cada caso particular. A entrevista fecha-
mente para assinalar algumas das regras práticas que da é, na realidade, um questionário que passa a ter uma
possibilitam seu emprego eficaz e correto, como tam- relação estreita com a entrevista, na medida em que uma
bém para desenvolver em certa medida o estudo psico- manipulação de certos princípios e regras facilita e pos-
sibilita a aplicação do questionário.
lógico da entrevista psicológica. Nesse sentido, boa par-
Contudo, a entrevista aberta não se caracteriza es-
te do que se desenvolverá aqui pode ser utilizado ou
sencialmente pela liberdade de colocar perguntas, por-
aplicado em todo tipo de entrevista, porque em todas
que, como veremos mais adiante, o fundamento da en-
elas intervêm inevitavelmente fatores ou dinamismos
trevista psicológica não consiste em perguntar, nem no
psicológicos. A entrevista psicológica, dessa maneira,
propósito de recolher dados da história do entrevistado.
deriva sua denominação exclusivamente de seus objeti-
Embora os fundamentos sejam apresentados um pouco
vos ou finalidades, tal como já assinalei. mais adiante, devemos desde já sublinhar que a liberda-
Na consideração da entrevista psicológica como téc- de do entrevistador, no caso da entrevista aberta, reside
nica, incluímos dois aspectos: um é o das regras ou in- numa flexibilidade suficiente para permitir, na medida
dicações práticas de sua execução, e o outro é a psico- do possível, que o entrevistado configure o campo da
logia da entrevista psicológica, que fundamenta as pri- entrevista segundo sua estrutura psicológica particular,
meiras. Em outros termos, incluímos a técnica e a teo- ou - dito de outra maneira - que o campo da entrevista
ria da técnica da entrevista psicológica. se configure, o máximo possível, pelas variáveis que
Circunscrita dessa maneira, a entrevista psicológi- dependem da personalidade do entrevistado.
ca é o instrumento fundamental de trabalho não somen- Considerada dessa maneira, a entrevista aberta
te para o psicólogo, como também para outros profis- possibilita uma investigação mais ampla e profunda da
sionais (psiquiatra, assistente social, sociólogo, etc.). personalidade do entrevistado, embora a entrevista fe-
4
---------------- Temas de psicologia

chada permita uma melhor comparação sistemática de


dados, além de outras vantagens próprias de todo méto-
do padronizado.
De outro ponto de vista, considerando o número de Tanto o método clínico como a técnica da entrevis-
participantes, distingue-se a entrevista em individual e ta procedem do campo da medicina, porém a prática mé-
grupal, segundo sejam um ou mais os entrevistadores dica inclui procedimentos semelhantes que sem dúvida
e/ou os entrevistados. A realidade é que, em todos os não devem ser confundidos com a entrevista psicológi-
casos, a entrevista é sempre um fenômeno grupal,já que ca, nem superpostos a ela.
mesmo com a participação de um só entrevistado sua A consulta consiste na solicitação da assistência téc-
relação com o entrevistador deve ser considerada em nica ou profissional, que pode ser prestada ou satisfeita
função da psicologia e da dinâmica de grupo. de formas diversas, uma das quais pode ser a entrevis-
Pode-se diferenciar também as entrevistas segundo ta. Consulta não é sinônimo de entrevista; esta última é
o beneficiário do resultado; assim, podemos distinguir: a) apenas um dos procedimentos de que o técnico ou pro-
a entrevista que se realiza em beneficio do entrevistado - fissional, psicólogo ou médico, dispõe para atender a
que é o caso da consulta psicológica ou psiquiátrica; b) a uma consulta.
entrevista cujo objetivo é a pesquisa, na qual importam Em segundo lugar, a entrevista não é uma anamne-
os resultados científicos; c) a entrevista que se realiza se. Esta implica uma compilação de dados preestabele-
para um terceiro (uma instituição). Cada uma delas im- cidos, de tal amplitude e detalhe, que permita obter uma
síntese tanto da situação presente como da história de
plica variáveis distintas a serem levadas em conta, já que
um indivíduo, de sua doença e de sua saúde. Embora
modificam ou atuam sobre a atitude do entrevistador as-
. ' uma boa anamnese se faça com base na utilização cor-
SIm como do entrevistado, e sobre o campo total da en-
reta dos princípios que regem a entrevista, esta última
trevista. Uma diferença fundamental é que, excetuando
é, sem dúvida, algo muito diferente. Na anamnese a preo-
o primeiro tipo de entrevista, os dois outros requerem
cupação e a finalidade residem na compilação de da-
que o entrevistador desperte interesse e participação,
dos, e o paciente fica reduzido a um mediador entre sua
que "motive" o entrevistado.
enfermidade, sua vida e seus dados por um lado, e o
médico por outro. Se o paciente não fornece informa-
ções, elas devem ser "extraídas" dele. Mas além dos da-
dos que o médico previu como necessários, toda contri-
buição do paciente é considerada como uma perturba-
_6 Temas de psicologia

ção da anamnese, freqüentemente tolerada por corte- gica é então uma relação entre duas ou mais pessoas em
sia, porém considerada como supérflua ou desnecessá- que estas intervêm como tais. Para sublinhar o aspecto
ria. Não são poucas as ocasiões em que a anamnese é fundamental da entrevista poder-se-ia dizer, de outra
feita por razões estatísticas ou para cumprir obrigações maneira, que ela consiste em uma relação humana na
regulamentares de uma instituição; nesses casos fica qual um dos integrantes deve procurar saber o que está
em mãos de pessoal auxiliar. acontecendo e deve atuar segundo esse conhecimento. A
Diferentemente da consulta e da anamnese, a entre- realização dos objetivos possíveis da entrevista (inves-
vista psicológica objetiva o estudo e a utilização do com- tigação, diagnóstico, orientação, etc.) depende desse sa-
portamento total do indivíduo em todo o curso da rela- ber e da atuação de acordo com esse saber.
ção estabelecida com o técnico, durante o tempo em que Dessa teoria da entrevista originam-se algumas orien-
essa relação durar. tações para sua realização. A regra básica já não consiste
Na prática médica é extremamente útil levar em con- em obter dados completos da vida total de uma pessoa,
ta e utilizar os conhecimentos da técnica da entrevista e mas em obter dados completos de seu comportamento
tudo o que se refere à relação interpessoal. Uma parte do total no decorrer da entrevista. Esse comportamento to-
tempo de uma consulta deve ser empregada como entre- tal inclui o que recolheremos aplicando nossa função de
vista e a outra para completar a indagação ou os dados escutar, porém também nossa função de vivenciar e obser-
necessários para a anarnnese, porém não existem razões var, de tal maneira que ficam incluídas as três áreas do
para que ela se transforme em um "interrogatório". comportamento do entrevistado.
A entrevista psicológica é uma relação, com carac- A teoria da entrevista foi enormemente influencia-
terísticas particulares, que se estabelece entre duas ou da por conhecimentos provenientes da psicanálise, da
mais pessoas. O específico ou particular dessa relação Gestalt, da topologia e do behaviorismo. Ainda que não
reside em que um dos integrantes é um técnico da psi- possamos selecionar especificamente a contribuição de
cologia, que deve atuar nesse papel, e o outro - ou os cada um deles, convém assinalar sumariamente que a
outros - necessita de sua intervenção técnica. Porém - psicanálise influenciou com o conhecimento da dimen-
e isso é um ponto fundamental-, o técnico não só utili- são inconsciente do comportamento, da transferência e
za a entrevista para aplicar seus conhecimentos psico- contratransferência, da resistência e repressão, da pro-
lógicos no entrevistado, como também essa aplicação jeção e introjeção, etc. A Gestalt reforçou a compreen-
se produz precisamente através de seu próprio compor- são da entrevista como um todo no qual o entrevistador
tamento no decorrer da entrevista. A entrevista psicoló- é um de seus integrantes, considerando o comportamen-
to deste como um dos elementos da totalidade. A topo-
logia levou a delinear e reconhecer o campo psicológico
e suas leis, assim como o enfoque situaciona1. O beha- O empenho em diferenciar a entrevista da anamne-
viorismo influenciou com a importância da observação se provém do interesse em constituir um campo com ca-
do comportamento. Tudo isso conduziu à possibilidade racterísticas definidas, ideais para a investigação da per-
de realizar a entrevista em condições metodológicas mais sonalidade. Como na anamnese, temos, na entrevista, um
restritas, convertendo-a em instrumento científico no qual campo configurado, e com isso queremos dizer que entre
a "arte da entrevista" foi reduzida em função de uma sis- os participantes se estrutura uma relação da qual depende
tematização das variáveis, e é esta sistematização que tudo que nela acontece. A diferença básica, neste sentido,
possibilita um maior rigor em sua aplicação e em seus entre entrevista e qualquer outro tipo de relação interpes-
resultados. Pode-se ensinar e aprender a realizar entre- soal (como a anamnese) é que a regra fundamental da en-
vistas sem que se tenha de depender de um dom ou virtu- trevista sob este aspecto é procurar fazer com que o cam-
de imponderáve1. O estudo científico da entrevista (a pes- po seja configurado especialmente (e em seu maior grau)
quisa do instrumento) tem reduzido sua proporção de arte pelas variáveis que dependem do entrevistado.
e incrementado sua operacionalidade e utilização como Apesar de todo emergente ser sempre situacional
técnica científica. ou, dito em outras palavras, provir de um campo, dize-
A investigação científica do instrumento tem feito mos que na entrevista tal campo está determinado, pre-
com que a entrevista incorpore algumas das exigências dominantemente, pelas modalidades da personalidade
do método experimental; mas também faz com que a do entrevistado. De outra forma, poder-se-ia dizer que
entrevista psicológica, em geral, constitua um procedi- o entrevistador controla a entrevista, porém quem a
dirige é o entrevistado. A relação entre ambos delimita
mento de observação em condições controladas ou, pe-
e determina o campo da entrevista e tudo o que nela
lo menos, em condições conhecidas. Dessa maneira , a
acontece, porém, o entrevistador deve permitir que o
entrevista pode ser considerada, em certa medida, da
campo da relação interpessoal seja predominantemente
mesma forma que o tubo de ensaio para o químico, se-
estabelecido e configurado pelo entrevistado.
gundo uma comparação feliz de Young.
Todo ser humano tem sua personalidade sistemati-
Dessa teoria da técnica da entrevista (que continua-
zada em uma série de pautas ou em um conjunto ou re-
remos desenvolvendo) dependem as regras práticas ou
pertório de possibilidades, e são estas que esperamos
empíricas; esta é a única forma racional de compreen-
que atuem ou se exteriorizem durante a entrevista. As-
dê-Ias, aprendê-Ias, aplicá-Ias e enriquecê-Ias.
sim, pois, a entrevista funciona como uma situação em dificação deve ser considerada como uma variável su-
que se observa parte da vida do paciente, que se desen- jeita a observação, tanto como o é o entrevistado. Cada
volve em relação a nós e diante de nós. entrevista tem um contexto definido (conjunto de cons-
Nenhuma situação pode conseguir a emergência da tantes e variáveis) em função do qual ocorrem os emer-
totalidade do repertório de condutas de uma pessoa e, gentes, que só têm sentido em função de tal contexto!.
portanto, nenhuma entrevista pode esgotar a personali- O campo da entrevista também não é fixo e sim dinâ-
dade do paciente, mas somente um segmento dela. A en- mico, o que significa que ele está sujeito a uma perma-
trevista não pode substituir nem excluir outros procedi- nente mudança e que a observação se deve estender do
mentos de investigação da personalidade, porém eles campo específico existente em cada momento à continui-
também não podem prescindir da entrevista. De modo es- dade e sentido destas mudanças. Na realidade poder-se-ia
pecífico, a entrevista não pode suprir o conhecimento e a dizer que a observação da continuidade e da contigüidade
investigação de caráter muito mais extenso e profundo das mudanças é o que permite completar a observação e
que se obtém, por exemplo, em um tratamento psicanalíti- inferir a estrutura e o sentido de cada campo; responden-
co, o qual, no decorrer de um tempo prolongado, permite do a esta modalidade do processo real, deve-se dizer que
a emergência e a manifestação dos núcleos e segmentos
o campo da entrevista cobre a sua totalidade, embora "ca-
mais diferentes da personalidade.
da" campo não seja senão um momento desse campo to-
Para obter o campo particular de entrevista que des-
tal e da sua dinâmica (Gestaltung)2.
crevi, devemos contar com um enquadramento rígido, que
Uma sistematização que permite o estudo detalhado
consiste em transformar um conjunto de variáveis em
da entrevista como campo consiste em centrar o estudo
constantes. Dentro deste enquadramento, incluem-se não
sobre: a) o entrevistador, incluindo sua atitude, sua dis-
apenas a atitude técnica e o papel do entrevistador tal
sociação instrumental, contratransferência, identificação
como assinalei, como também os objetivos, o lugar e o
etc.; b) o entrevistado, incluindo-se aqui transferência,
tempo da entrevista. O enquadramento funciona como
estruturas de comportamento, traços de caráter, ansie-
uma espécie de padronização da situação estímulo que
dades, defesas etc.; c) a relação interpessoal, na qual se
oferecemos ao entrevistador; com isso não pretendemos
que esta situação deixe de atuar como estímulo para ele,
mas que deixe de oscilar como variável para o entrevista- 1. Contexto ou enquadramento foram estudados em J. Eleger, "Psi-
coaná1isis dei enquadre psicoanalítico", em Simbiosis e ambigüedad, Pai-
dor. Se o enquadramento se modifica (por exemplo, por- dós, Buenos Aires, 1967.
que a entrevista se realiza em um local diferente), esta mo- 2. Gestaltung: processo de formação de Gestalten.
inclui a interação entre os participantes, o processo de vida atual que manterão, entre si, relação de complemen-
comunicação (projeção, introjeção, identificação etc.), tação ou de contradição.
o problema da ansiedade, etc. Embora não pretenda As lacunas, dissociações e contradições que indi-
aprofundar aqui cada um dos fenômenos assinalados, quei levam alguns pesquisadores a considerar a entre-
porque isso abarcaria, em grande parte, quase toda a vista como instrumento não muito confiável. Sem dúvi-
psicologia e psicopatologia, estes aspectos estão incluí- da, nesses casos, o instrumento não faz mais que refletir
dos nas considerações que se seguem. o que corresponde a características do objeto de estudo.
As dissociações e contradições que observamos corres-
pondem a dissociações e contradições da própria perso-
nalidade e, ao refleti-Ias, a entrevista permite-nos tra-
balhar com elas; se elas serão trabalhadas ou não, irá de-
Uma diferença fundamental entre entrevista e anam- pender da intensidade da angústia que se pode provocar
e da tolerância do entrevistado a essa angústia. Igual-
nese, no que diz respeito à teoria da personalidade e à
mente, os conflitos trazidos pelo entrevistado podem não
teoria da técnica, reside em que, na anamnese, trabalha-
ser os conflitos fundamentais, assim como as motiva-
se com a suposição de que o paciente conhece sua vida
ções que alega são, geralmente, racionalizações.
e está capacitado, portanto, para fornecer dados sobre
A simulação perde o valor que tem na anamnese co-
ela, enquanto a hipótese da entrevista é que cada ser hu-
mo fator de perturbação, já que na entrevista a simula-
mano tem organizada uma história de sua vida e um es-
ção deve ser considerada como uma parte dissociada da
quema de seu presente, e desta história e deste esquema
personalidade que o entrevistado não reconhece total-
temos de deduzir o que ele não sabe. Em segundo lu-
mente como sua. Pode acontecer que o mesmo entre-
gar, aquilo que não nos pode dar como conhecimento
vistador ou diferentes entrevistadores recolham, em mo-
explícito, nos é oferecido ou emerge através do seu com-
mentos diferentes, partes distintas e ainda contraditórias
portamento não-verbal; e este último pode informar so-
da mesma personalidade. Os dados não devem ser ava-
bre sua história ou seu presente em graus muito variá-
liados em função de certo ou errado, mas como graus
veis de coincidência ou contradição com o que expressa
ou fenômenos de dissociação da personalidade. Uma si-
de modo verbal e consciente. Por outro lado , além disso ,
tuação típica, e em certa medida inversa à que comento,
em diferentes entrevistas, o entrevistado pode oferecer-
é a do entrevistado que tem rigidamente organizada sua
nos diferentes histórias ou diferentes esquemas de sua história e seu esquema de vida presente, como meio de
defesa contra a penetração do entrevistador e ao seu pró- do de que o observador registra o que ocorre, os fenô-
prio contato com áreas de conflito de sua situação real menos que são externos e independentes dele, com abs-
e de sua personalidade; esse tipo de entrevistado repete tração ou exclusão total de suas impressões, sensações,
a mesma história estereotipada em diferentes entrevistas, sentimentos e de todo estado subjetivo; um registro de
seja com o mesmo ou com diferentes entrevistadores. tal tipo é o que permite a verificação do observado por
Quando vários integrantes de um grupo ou instituição terceiros que podem reconstruir as condições da obser-
(em família, escola, fábrica, etc.) são entrevistados, essas vação. Não interessa, agora, discutir a validade deste
divergências e contradições são muito mais freqüentes e esquema que já se mostrou estreito e ingênuo também
notórias e constituem dados muito importantes sobre co- para as mesmas ciências naturais. Interessa-me, em com-
mo cada um de seus membros organiza, numa mesma rea- pensação, observar que na entrevista o entrevistador é
lidade, um campo psicológico que lhe é específico. A to- parte do campo, quer dizer, em certa medida condiciona
talidade nos dá um índice fiel do caráter do grupo ou da os fenômenos que ele mesmo vai registrar. Coloca-se,
instituição, de suas tensões ou conflitos, tanto como de então, a questão da validade dos dados assim obtidos.
sua organização particular e dinâmica psicológica. Tal summum de objetividade na investigação não se
De tudo o que foi exposto, deduz-se facilmente que a cumpre em nenhum outro campo científico, e menos ain-
técnica e sua teoria estão estreitamente entrelaçadas com a da em psicologia, na qual o objeto de estudo é o homem.
teoria da personalidade com a qual se trabalha; o grau de Em compensação, a máxima objetividade só pode ser
interação que um entrevistador é capaz de conseguir entre alcançada quando se incorpora o sujeito observador co-
elas dá o modelo de sua operacionalidade como investiga- mo uma das variáveis do campo.
dor. A entrevista não consiste em "aplicar" instruções, mas
Se o observador está condicionando o fenômeno que
em investigar a personalidade do entrevistado, ao mesmo
observa, pode-se objetar que, neste caso, não estamos
tempo que nossas teorias e instrumentos de trabalho.
estudando o fenômeno tal como ele é, mas sim em rela-
ção com a nossa presença, e, assim, já não se faz uma
observação em condições naturais.
A isso se pode responder, de modo global, dizendo
que esse tipo de objeção não é válido, porque se baseia
N as ciências da natureza, segundo o ponto de vista em uma quantidade de pressuposições incorretas. Veja-
tradicional, a observação científica é objetiva, no senti- mos algumas dessas pressuposições.
o que se quer dizer com a expressão "observação em da objeto tem qualidades que dependem de sua natureza
condições naturais"? Certamente, refere-se a uma observa- interna própria e que determinadas relações modificam
ção realizada nas mesmas condições em que se dá real- ou subvertem essa pureza ontológica ou essas qualida-
mente o fenômeno. As considerações ontológicas super- des naturais. O certo é que as qualidades de todo objeto
põem-se às de tipo gnosiológico; nas primeiras admite-se a são sempre relacionais; derivam das condições e rela-
existência de um mundo objetivo, que existe por si, inde- ções nas quais se acha cada objeto em cada momento.
pendentemente de que o conheçamos ou não. Já nas se- Cada situação humana é sempre original e única,
gundas somos nós que conhecemos, e por isso temos de portanto a entrevista também o é, porém isso não rege
nos incluir necessariamente no processo do conhecimento, somente os fenômenos humanos como também os fe-
tal como ocorre na realidade. Esta segunda afirmação não nômenos da natureza: coisa que Heráclito já sabia. Essa
invalida de nenhuma maneira a primeira, porque ambas se originalidade de cada acontecimento não impede o es-
referem a coisas diferentes: uma, à existência dos fenôme- tabelecimento de constantes gerais, quer dizer, das con-
nos, e outra, ao conhecimento que deles se obtém. dições que se repetem com mais freqüência. O indivi-
Mas, além disso, as condições naturais da conduta dual não exclui o geral, nem a possibilidade de introdu-
humana são as condições humanas ... Toda conduta se zir a abstração e categorias de análise.
dá sempre num contexto de vínculos e relações huma- . I~s? se opõ~ a um .narcisismo subjacente ao campo
nas, e a entrevista não é uma distorção das pretendidas c~ent1fIco da pSIcologIa: cada ser humano considera a
condições naturais e sim o contrário: a entrevista é a SI mesmo como um ser distinto e único, resultado de
situação "natural" em que se dá o fenômeno que, preci- uma diferença particular (de Deus, do destino ou da na-
samente, nos interessa estudar: o fenômeno psicológi- tureza). O ser humano descobre paulatinamente, e com
co. Desta maneira o enfoque ontológico e gnosiológico assombro, que tem as mesmas vísceras que seus seme-
coincidem e são a mesma coisa. lhantes, assim como descobre (ou resiste a descobrir)
Poder-se-á insistir, ainda, em que a entrevista não que sua vida pessoal se tece sobre um fundo comum a
tem validade de instrumento científico porque as mani- todos os seres humanos. No caso da entrevista isso não
. '
festações do objeto que estudamos dependem, nesse VIgora apenas para o narcisismo do entrevistado como
caso, da relação que se estabeleça com o entrevistador, também para o do entrevistador, que também deve as-
e portanto todos os fenômenos que aparecem estão con- sumir a sua condição humana e não se sentir acima do
dicionados por essa relação. Esse tipo de objeção deriva entrevistado ou em situação privilegiada diante dele. E
de uma concepção metafisica do mundo: o supor que ca- isso, que é fácil dizer, não é nada fácil realizar.
ção, depois a hipótese e posteriormente a verificação.
O certo, contudo, é que a observação se realiza sempre
Uma certa concepção aristocrática ou monopolista em função de certos pressupostos e que, quando estes
da ciência tem feito supor que a investigação é tarefa de são conscientes e utilizados como tais, a observação se
eleitos que estão acima ou além dos fatos cotidianos e enriquece. Assim, a forma de observar bem é ir formu-
comuns. Assim, a entrevista é, nesta concepção, um lando hipóteses enquanto se observa, e durante a entre-
instrumento ou uma técnica da "prática" com a qual se vista verificar e retificar as hipóteses no momento mesmo
pretende diagnosticar, isto é, aplicar conhecimentos cien- em que ocorrem em função das observações subseqüen-
tíficos que, em si mesmos, são provenientes de outras tes, que por sua vez se enriquecem com as hipóteses
fontes: a investigação científica. prévias. Observar, pensar e imaginar coincidem total-
O certo é que não há possibilidade de uma entrevis- mente e formam parte de um só e único processo dialé-
ta correta e frutífera se não se incluir a investigação. Em tico. Quem não utiliza a sua fantasia poderá ser um bom
outros termos, a entrevista é um campo de trabalho no verificador de dados, porém nunca um investigador.
qual se investiga a conduta e a personalidade de seres Em todas as ações humanas, deve-se pensar sobre o
humanos. Que isto se realize ou não, é coisa que já não que se está fazendo e, quando isso acontece sistematica-
depende do instrumento, do mesmo modo como não in- mente em um campo de trabalho definido, submetendo-
validamos ou duvidamos do método experimental pelo se à verificação o que se pensou, está sendo realizada
fato de que um investigador possa utilizar o laboratório uma investigação. O trabalho profissional do psicólogo,
sem se ater às exigências do método experimental. Uma do psiquiatra e do médico somente adquire sua real en-
utilização correta da entrevista integra na mesma pes- vergadura e transcendência quando nele coincide a inves-
soa e no mesmo ato o profissional e o pesquisador. tigação e a tarefa profissional, porque estas são as uni-
A chave fundamental da entrevista está na investiga- dades de uma práxis que resguarda da desumanização a
ção que se realiza durante o seu transcurso. As obser- tarefa mais humana: compreender e ajudar outros seres
vações são sempre registradas em função de hipóteses humanos. Indagação e atuação, teoria e prática, devem
que o observador vai emitindo. Esclareçamos melhor o ser manejadas como momentos inseparáveis, forman-
que se quer dizer com isso. Afirma-se, geralmente de do parte de um só processo.
maneira muito formal, que a investigação consta de eta- Com freqüência, alega-se falta de tempo para realizar
pas nítidas e sucessivas que se escalonam, uma após a entrevistas exaustivas (ou corretas). Aconselho reali-
outra, na seguinte ordem: primeiro intervém a observa- zar bem pelo menos uma entrevista, periódica e regular-
_2_0 Temas de psicologia

vista, o entrevistador observa como e através do que o


mente: descobrir-se-á, rapidamente, como é útil não ter
entrevistado condiciona, sem o saber, efeitos dos quais
tempo e como é fácil racionalizar e negar as dificuldades.
ele mesmo se queixa ou é vítima. Interessam particular-
mente os momentos de mudança na comunicação e as
situações e temas ante os quais ocorrem, assim como
as inibições, interceptações e bloqueios.
Ruesch estabeleceu uma classificação da persona-
Entrevistador e entrevistado formam um grupo, ou lidade baseada nos sistemas predominantes que cada
seja, um conjunto ou uma totalidade, na qual os integran- indivíduo põe emjogo na comunicação.
tes estão inter-relacionados e em que a conduta de ambos Porém, o tipo de comunicação não é importante ape-
é interdependente. Diferencia-se de outros grupos pelo nas por oferecer dados de observação direta que, inclu-
fato de que um de seus integrantes assume um papel es- sive, podem ser registrados, mas porque é o fenômeno-
pecífico e tende a cumprir determinados objetivos. chave de toda a relação interpessoal, que, por sua vez,
A interdependência e a inter-relação, o condicio- pode ser manipulado pelo entrevistador e, assim, gra-
namento recíproco de suas respectivas condutas, reali- duar ou orientar a entrevista.
zam-se através do processo da comunicação, entenden-
do-se por isso o fato de que a conduta de um (conscien-
te ou não) atua (de forma intencional ou não) como
estímulo para a conduta do outro, que por sua vez rea-
tua como estímulo para as manifestações do primeiro.
Na relação que se estabelece na entrevista, deve-se
Nesse processo, a palavra tem um papel de enorme gra-
contar com dois fenômenos altamente significativos: a
vitação, no entanto também a comunicação pré-verbal
transferência e a contratransferência. A primeira refere-se
intervém ativamente: atitudes, timbre e tonalidade afe-
à atualização, na entrevista, de sentimentos, atitudes e con-
tiva da voz etc.
dutas inconscientes, por parte do entrevistado, que corres-
O tipo de comunicação que se estabelece é alta-
pondem a modelos que este estabeleceu no curso do de-
mente significativo da personalidade do entrevistado,
senvolvimento, especialmente na relação interpessoal com
especialmente do caráter de suas relações interpessoais,
seu meio familiar. Distingue-se a transferência negativa da
ou seja, da modalidade do seu relacionamento com seus
positiva, porém ambas coexistem sempre, embora com
semelhantes. Nesse processo que se produz na entre-
um predomínio relativo, estável ou alternante, de uma so- Na contratransferência incluem-se todos os fenô-
bre a outra. Integram a parte irracional ou inconsciente da menos que aparecem no entrevistador como emergen-
conduta e constituem aspectos não controlados pelo pa- tes do campo psicológico que se configura na entrevis-
ciente. Uma outra noção similar acentua, na transferên- ta: são as respostas do entrevistador às manifestações
cia, as atitudes afetivas que o entrevistado vivencia ou do entrevistado, o efeito que têm sobre eles. Dependem
atualiza em relação ao entrevistador. A observação des- em alto grau da história pessoal do entrevistador, porém,
ses fenômenos coloca-nos em contato com aspectos da se elas aparecem ou se atualizam em um dado momento
conduta e da personalidade do entrevistado que não se da entrevista é porque nesse momento existem fatores
incluem entre os elementos que ele pode referir ou trazer que agem para que isso aconteça. Durante muito tempo
voluntária ou conscientemente, mas que acrescentam uma foram considerados como elementos perturbadores da
dimensão importante ao conhecimento da estrutura de sua entrevista, porém progressivamente reconheceu-se que
personalidade e ao caráter de seus conflitos. são indefectíveis e iniludíveis em seu aparecimento, e o
N a transferência o entrevistado atribui papéis ao en- entrevistador deve também registrá-Ios como emergen-
trevistador e comporta-se em função deles. Em outros tes da situação presente e das reações que o entrevista-
termos, transfere situações e modelos para uma realida- do provoca. Portanto, à observação na entrevista acres-
de presente e desconhecida, e tende a configurá-Ia co- centa-se também a auto-observação.
mo situação já conhecida, repetitiva. A contratransferência não constitui uma percepção,
Com a transferência o entrevistado fornece aspec- em sentido rigoroso ou limitado do termo, mas sim um
tos irracionais ou imaturos de sua personalidade, seu indício de grande significação e valor para orientar o
grau de dependência, sua onipotência e seu pensamen- entrevistador no estudo que realiza. No entanto, não é
to mágico. É neles que o entrevistador poderá descobrir de fácil manejo e requer uma boa preparação, experiên-
aquilo que o entrevistado espera dele, sua fantasia da cia e um alto grau de equilíbrio mental, para que possa
entrevista, sua fantasia de ajuda, ou seja, o que acredita ser utilizada com alguma validade e eficiência.
que é ser ajudado e estar são, incluídas as fantasias pa- Transferência e contratransferência são fenômenos
tológicas de cura, que são, com muita freqüência, aspi- que aparecem em toda relação interpessoal e, por isso
rações neuróticas. Poder-se-á igualmente despistar outro mesmo, também ocorrem na entrevista. A diferença é
fator importante, que é o da resistência à entrevista ou que na entrevista devem ser utilizados como instrumen-
o de ser ajudado ou curado, e a intenção de satisfazer tos técnicos de observação e compreensão. A interação
desejos frustrados de dependência ou de proteção. transferência-contratransferência pode também ser estu-
A entrevista psicológica 25
~

dada como uma atribuição de papéis por parte do entre- defrontarem com uma situação desconhecida ante a qual
vistado e uma percepção deles por parte do entrevista- ainda não estabilizaram linhas reacionais adequadas, e
dor. Se, por exemplo, a atitude do entrevistado irrita e essa situação não organizada implicar certa desorgani-
provoca rejeição no entrevistador, ele deve procurar es- zação da personalidade de cada um dos participantes, tal
tudar e observar sua reação como efeito do comporta-
desorganização é a ansiedade.
mento do entrevistado, para ajudá-Io a corrigir aquela
O entrevistado solicita ajuda técnica ou profissio-
conduta , de cujos resultados ele mesmo pode queixar- . nal quando sente ansiedade ou se vê perturbado por me-
se (por exemplo, de que não tem amigos e de que mn-
canismos defensivos diante dela. Durante a entrevista
guém gosta dele). Se o entrevistador não for capaz de
tanto sua ansiedade como seus mecanismos de defesa
objetivar e estudar sua reação, ou reagir com irritação e
podem aumentar, porque o desconhecido que enfrenta
rejeição (assumindo o papel projetado), indicará que a
não é somente a situação externa nova, mas também o
manipulação que faz da contratransferência está pertur-
perigo daquilo que desconhece em sua própria perso-
bada e que, portanto, está se saindo mal na entrevista.
nalidade. Se esses fatores não se apresentam, faz parte
da função do entrevistador motivar o entrevistado, con-
seguir que apareçam em uma certa medida na entrevis-
ta. Em alguns casos, a ansiedade acha-se delegada ou
projetada em outra pessoa, que é quem solicita a entre-
A ansiedade constitui um indicador do desenvolvi- vista e manifesta interesse em que ela se realize.
mento de uma entrevista e deve ser atentamente acompa- A ansiedade do entrevistador é um dos fatores mais
nhada pelo entrevistador, tanto a que se produz nele co- dificeis de manipular, porque é o motor do interesse na
mo a que aparece no entrevistado. Deve-se estar atento investigação e do interesse em penetrar no desconheci-
não somente ao seu aparecimento como também ao seu do. Toda investigação implica a presença de ansiedade
grau ou intensidade, porque, embora dentro de determi- diante do desconhecido, e o investigador deve ter capa-
nados limites a ansiedade seja um agente motor da re- cidade para tolerá-Ia e poder instrumentalizá-Ia, sem o
lação interpessoal, pode perturbá-Ia totalmente e fugir que se fecha a possibilidade de uma investigação eficaz;
completamente ao controle se ultrapassar certo nível. Por isso ocorre também quando o investigador se vê opri-
isso , o limite de tolerância à ansiedade deve ser perma- mido pela ansiedade ou recorre a mecanismos de defe-
nentemente detectado. Se entrevistado e entrevistador sa ante ela (racionalização, formalismo, etc.).
Diante da ansiedade do entrevistado, não se deve re- que o objeto que deve estudar é outro ser humano , de tal
correr a nenhum procedimento que a dissimule ou repri- maneira que, ao examinar a vida dos demais, se acha di-
ma, como o apoio direto ou o conselho. A ansiedade so- retamente implicada a revisão e o exame de sua própria
mente deve ser trabalhada quando se compreende os fa- vida, de sua personalidade, conflitos e frustrações.
tores pelos quais ela aparece e quando se atua segundo A vida e a vocação de psicólogo, de médico e de psi-
essa compreensão. Se o que predomina são os mecanis- quiatra merecem um estudo detalhado que não empreen-
mos de defesa diante dela, a tarefa do entrevistador é derei agora; quero, porém, lembrar que são os técnicos
"desarmar" em certa medida estas defesas para que apa- encarregados profissionalmente de estar todos os dias
reça certo grau de ansiedade, o que será um indicador da em contato estreito e direto com o submundo da doença,
possibilidade de atualização dos conflitos. Toda essa ma- dos conflitos, da destruição e da morte. Foi necessário
nipulação técnica da ansiedade deve ser feita tendo-se recorrer à simulação e à dissociação para o desenvolvi-
sempre em conta a personalidade do entrevistado e, so- mento e exercício da psicologia e da medicina: ocupar-
bretudo, o beneficio que para ele pode significar a mobi- se de seres humanos como se não o fossem. O treina-
lização da ansiedade, de tal forma que, mesmo diante de mento do médico, inconsciente e defensivamente , tende
situações muito claras, não se deve ser ativo se isso sig- a isto, ao iniciar toda aprendizagem pelo contato com o
nificar oprimir o entrevistado com conflitos que não po- cadáver. Quando queremos nos ocupar da doença em
derá tolerar. Isso corresponde a um aspecto muito dificil: seres humanos considerados como tal, nossas ansieda-
o do denominado timing da entrevista, que é o tempo des aumentam, mas, ao mesmo tempo, precisamos pôr
próprio ou pessoal do entrevistado - que depende do de lado o bloqueio e as defesas. Por tudo isto a psicolo-
grau e tipo de organização de sua personalidade - para gia demorou tanto para se desenvolver e infiltrar-se na
enfrentar seus conflitos e para resolvê-Ios. medicina e na psiquiatria. Isso seria paradoxal se não
considerássemos os processos defensivos; porém, o
médico, cuja profissão é tratar doentes, é quem, propor-
cionalmente, mais escotomiza ou nega suas próprias
doenças ou as de seus familiares. Em psiquiatria, em
medicina psicossomática e em psicologia, tudo isto já
O instrumento de trabalho do entrevistador é ele não é possível; o contato direto com seres humanos , co-
mesmo, sua própria personalidade, que participa inevi- mo tais, coloca o técnico diante da sua própria vida, sua
tavelmente da relação interpessoal, com a agravante de própria saúde ou doença, seus próprios conflitos e frus-
trações. Caso ele não consiga graduar este impacto, sua doentes. Por outro lado, a defesa obsessiva manifesta-se
tarefa torna-se impossível: ou tem muita ansiedade e, em entrevistas estereotipadas nas quais tudo é regrado
então, não pode atuar, ou bloqueia a ansiedade e sua e previsto, na elaboração rotineira de histórias clínicas,
tarefa é estéril. ou seja, o instrumento de trabalho, a entrevista, transfor-
Na sua atuação, o entrevistador deve estar dissocia- ma-se num ritual. Por trás disso está o bloqueio, que faz
do: em parte, atuar com uma identificação projetiva com com que sempre aplique e diga a mesma coisa, sempre ve-
o entrevistado e, em parte, permanecer fora desta iden- ja a mesma coisa, aplique o que sabe e sinta-se seguro.
tificação, observando e controlando o que ocorre, de ma- A pressa em fazer diagnósticos e a compulsão a empre-
neira a graduar o impacto emocional e a desorganização gar drogas são outros dos elementos desta fuga e deste
ansiosa. Nesse sentido, seria necessário desenvolver es- ritual do médico diante do doente. Nisso se desenvolve
tudos tanto sobre a psicologia e a psicopatologia do psi- a alienação do psicólogo e do psiquiatra e a alienação
quiatra e do psicólogo, como sobre o problema de sua do paciente, e toda a estrutura hospitalar e de sanatório
formação profissional e de seu equilíbrio mental. passa a ter o efeito de um fator alienante a mais. Outro
Essa dissociação com que o entrevistador trabalha é, perigo é o da projeção dos próprios conflitos do tera-
por sua vez, funcional ou dinâmica, no sentido de que pro- peuta sobre o entrevistado e uma certa compulsão a cen-
jeção e introjeção devem atuar permanentemente, e deve trar seu interesse, sua investigação ou a encontrar per-
ser suficientemente plástica ou "porosa" para que possa turbações justamente na esfera na qual nega que tenha
permanecer nos limites de uma atitude profissionaL Em perturbações. A rigidez e a projeção levam a encontrar
sua tarefa, o psicólogo pode oscilar facilmente entre a an- somente o que se busca e se necessita, e a condicionar o
siedade e o bloqueio, sem que isto a perturbe, desde que que se encontra tanto como o que não se encontra. Um
possa resolver ambos na medida em que surjam. exemplo muito ilustrativo de tudo isto, mas bastante co-
Na entrevista, a passagem do normal ao patológico mum, é o caso de um jovem médico que iniciava seu
acontece de modo imperceptível. Uma má dissociação, treinamento em psiquiatria e que, presenciando uma en-
com ansiedade intensa e permanente, leva o psicólogo a trevista e o diagnóstico de um caso de fobia, disse que não
desenvolver condutas fóbicas ou obsessivas ante os en- era isso, que o paciente não tinha nem fobia nem doença,
trevistados, evitando as entrevistas ou interpondo instru- porque ele também a tinha.
mentos e testes para evitar o contato pessoal e a ansieda- Se num dado momento a projeção com que o técni-
de conseqüente. A clássica aflição do médico, que tanto co atua é muito intensa, pode aparecer uma reação fó-
se emprega na sátira, é uma permanente fuga fóbica aos bica no próprio campo de trabalho. Pelo contrário, se
for excessivamente, bloqueada, haverá uma alienação e o psiquiatra inseguro ou pouco experiente não sa-
não se entenderá o que ocorre. berá o que fazer com todos estes dados, e para não ficar
Diferentes tipos de pessoas podem provocar reações vexado recorrerá, com freqüência, à receita, interpondo
contratransferenciais típicas no entrevistador, e este de- entre ele e seu paciente os medicamentos; nestas condi-
ve, continuamente, poder observá-Ias e resolvê-Ias para ções a farmacologia torna-se um fator alienante porque
poder utilizá-Ias como informação e instrumento duran- fomenta a magia no paciente e no médico e os dissocia
te a entrevista. novamente de seus respectivos conflitos. Algo muito se-
Pode-se, de outra maneira, descrever esta dissociação melhante é o que o psicólogo faz freqüentemente com os
dizendo que o entrevistador tem de desempenhar os pa- testes. Para combater isto é importante - e mesmo im-
péis que lhe são fomentados pelo entrevistado, mas sem prescindível- que o psiquiatra e psicólogo não trabalhem
assumi-Ios totalmente. Se, por exemplo, sentir rejeição, as- isolados, que formem, pelo menos, grupos de estudo e
sumir o papel seria mostrar e atuar a rejeição, rejeitando de discussão nos quais o trabalho que se realiza seja re-
efetivamente o entrevistado, seja verbalmente ou com a visto; para cair na estereotipia não há clima melhor do
atitude ou de qualquer outra maneira; desempenhar o pa- que o do isolamento profissional, porque o isolamento
pel significa perceber a rejeição, compreendê-Ia, encon- acaba encobrindo as dificuldades com a onipotência.
trar os elementos que a motivam, as motivações do en-
trevistado para que isso aconteça e utilizar toda esta infor-
mação, que agora possui, para esclarecer o problema ou
provocar sua modificação no entrevistado. Quanto mais
psicopata for o entrevistado, maior a possibilidade de que
o entrevistador assuma e represente os papéis. Assumir o Examinar as contingências de uma entrevista signi-
papel implicará a ruptura do enquadramento da entrevis- ficaria simplesmente passar em revista toda a psicolo-
ta. Fastio, cansaço, sono, irritação, bloqueio, compaixão, gia, psiquiatria e psicopatologia, por isso só me referirei
carinho, rejeição, sedução etc. são indícios contratrans- aqui a algumas situações típicas no campo da psicologia
ferenciais que o entrevistador deve perceber como tais clínica e, em especial, àquelas que habitualmente não
à medida que se produzem, e terá de resolvê-Ios anali- são consideradas e, no entanto, são muito importantes.
sando-os consigo mesmo em função da personalidade De modo geral, para que uma pessoa procure uma
do entrevistado, da sua própria, do contexto e do momen- entrevista, é necessário que tenha chegado a uma certa
to em que aparecem na comunicação. preocupação ou insight de que algo não está bem, de que
algo mudou ou se modificou, ou então perceba suas pró- orgânicas das funcionais ou psicogenéticas. Aplicam-se
prias ansiedades ou temores. Esses últimos podem ser a todos os tipos de entrevistados que procuram um es-
tão intensos ou intoleráveis que poderá recorrer, na en- pecialista e tendem mais a uma orientação sobre a per-
trevista, a uma negação e resistência sistemática, de mo- sonalidade do sujeito, pela forma com que procura re-
do que se assegurre logicamente de que não está acon- duzir suas tensões, aliviar ou resolver seus conflitos.
tecendo nada, conseguindo fazer com que o técnico não Podemos reconhecer e distinguir entre o entrevista-
perceba nada anormal nela. Em algum lugar já se defi- do que vem consultar e o que é trazido ou aquele a quem
niu o doente como toda pessoa que solicita uma consul- "mandaram". Nessas atitudes já temos um índice de im-
ta; fazendo-se abstração de que tal definição carece de portância, embora esteja longe de ser sistemático ou pa-
valor real, é sem dúvida certo que o entrevistador deve tognomônico. Aquele que vem tem um certo insight ou
aceitar esse critério, ainda que somente como incentivo percepção da sua doença e corresponde ao paciente neu-
para questionar detalhadamente o que está por trás das re- rótico, enquanto o psicótico é trazido. Aquele que não
pressões e negações ou escotomizações do entrevistado. tem motivos para vir, mas vem porque o mandaram, cor-
Schilder classificou em cinco grupos os indivíduos responde à psicopatia: é o que faz o outro atuar e delega
que procuram o médico, ou porque estão sofrendo ou fa- aos outros suas preocupações e mal-estares.
zendo os outros sofrer; são eles: a) os que acorrem por Temos, entre outros, o caso daquele que vem con-
problemas corporais; b) por problemas mentais; c) por fal- sultar por um familiar. Nesse caso, realizamos a entre-
ta de êxito; d) por dificuldades na vida diária; e) por quei- vista com o que vem, indagando sobre sua personalida-
xas de outras pessoas. de e conduta. Com isso, já passamos do entrevistado ao
Seguindo, por outro lado, a divisão de E. Pichon- grupo familiar. Caso o entrevistado sej a precedido por
Riviere das áreas da conduta, podemos considerar três um informante, deve-se comunicar a este que o que ele
grupos, conforme o predomínio de inibições, sintomas, disser sobre o paciente ser-Ihe-á comunicado, dizendo
queixas ou protestos recaia mais sobre a área da mente, isso antes que ele dê qualquer informação. Isto tenderá
do corpo ou do mundo exterior. O paciente pode apre- a "limpar o campo" e a romper com divisões muito difí-
sentar queixas, lamentações ou acusações; no primeiro ceis de trabalhar posteriormente.
caso predomina a ansiedade depressiva, enquanto no se- Aquele que vem à consulta é sempre um emergente
gundo, a ansiedade paranóide. dos conflitos grupais da família; diferenciamos, além
Esses agrupamentos não tendem a diferenciar os disso, entre o que vem só e o que vem acompanhado,
doentes orgânicos dos doentes mentais, nem as doenças que representam grupos familiares diferentes.
A entrevista psicológica ~~~~~~~~~~~~~- 35

o que vem sozinho é o representante de um grupo Nos grupos que vêm à consulta, o psicólogo não
familiar esquizóide, em que a comunicação entre seus tem por que aceitar o critério da família sobre quem é o
membros é muito precária: vivem dispersos ou separa- doente, mas deve atuar considerando todos os seus mem-
dos, com um grau acentuado de bloqueio afetivo. Com bros como implicados e o grupo como doente. Nesse
freqüência, diante destes, o técnico tende a perguntar- caso, o estudo do interjogo de papéis e da dinâmica do
se com quem pode falar, ou a quem informar. Outro gru- grupo são os elementos que servirão de orientação para
po familiar, de caráter oposto a este, é aquele no qual fazer com que todo o grupo obtenha um insight da si-
comparecem vários membros à consulta, e o técnico tem tuação. O equilíbrio da doença em um grupo familiar é
necessidade de perguntar quem é o entrevistado ou por de grande importância. Por exemplo, em um casal em
quem eles vêm; é o grupo epileptóide, viscoso ou agluti- que um é fóbico e o outro seu acompanhante, quando o
nado, no qual há uma falta ou déficit na personificação primeiro apresenta melhora ou se cura, aparece a fobia
de seus membros, com um alto grau de simbiose ou in- no segundo. O acompanhante do fóbico é então, também,
terdependência. Assim como no caso anterior o doente um fóbico, contudo distribuem os papéis entre o casal.
está isolado e abandonado, neste caso ele está excessiva- Em outras ocasiões, a família só aparece quando o
mente rodeado por um cuidado exagerado ou asfixiante. tratamento de um paciente já está adiantado e ele me-
Esses dois tipos polares podem ser encontrados em lhorou ou está em vias de fazê-Io; a normalização do
suas formas extremas, ou em formas menos caracteri- paciente faz com que a tensão do grupo familiar já não
zadas, ou mistas. Outro tipo é o que vem acompanhado se "descarregue" mais através dele, e aparece então o
por uma pessoa, familiar ou amigo; é o caso do fóbico desequilíbrio ou a doença no grupo familiar.
que necessita do acompanhante. O caso dos casais cujos Tudo isso explica em grande parte um fenômeno com
integrantes se culpam mutuamente de neurose, infide- o qual se deve contar na família de um doente: a culpa,
lidade, etc. é outra situação na qual, como em todas as elemento que deve ser devidamente levado em conta para
anteriores, a entrevista se realiza com todos os que vie- valorizá-Io e trabalhá-Io adequadamente. É muito mais
ram, procedendo-se como com um grupo diagnóstico clara no caso da doença mental em crianças ou em defi-
que - como veremos - é sempre, em parte, terapêutico; cientes intelectuais. Isso se relaciona também com o fenô-
nesse, o técnico atua como observador participante, in- meno que foi chamado "a criança errada", em que os pais
tervindo em momentos de tensão, ou quando a comuni- trazem à consulta o filho mais sadio e, depois de se asse-
cação é interrompida, ou para assinalar entrecruzamen- gurarem de que o técnico não os culpa nem acusa, podem
tos projetivos. falar ou consultar sobre o filho mais doente.
_3_6 Temas de psicologia A entrevista psicológica 37
_

Aqui, e em relação a todos estes fenômenos, a psico- ções comerciais ou de amizade, nem pretender outro be-
logia grupal - seu conhecimento e sua utilização - tem neficio da entrevista que não sejam os seus honorários
uma importância fundamental, não somente para as entre- e o seu interesse científico ou profissional. Tampouco
vistas diagnósticas e terapêuticas, mas também para ava- a entrevista deve ser utilizada como uma gratificação nar-
liar as curas ou decidir sobre a alta de uma intemação, etc. cisista na qual se representa o mágico com uma de-
monstração de onipotência. A curiosidade deve limitar-
se ao necessário para o beneficio do entrevistado. Tudo
o que sinta ou viva como reação contratransferencial de-
ve ser considerado como um dado da entrevista, não se
devendo responder nem atuar diante da rejeição, da ri-
Insisti em que o campo da entrevista deve ser con-
validade ou da inveja do entrevistado. A petulância ou
figurado fundamentalmente pelas variáveis da perso- a atitude arrogante ou agressiva do entrevistado não de-
nalidade do entrevistado. Isso implica que aquilo que o vem ser "domadas" nem subjugadas; não se trata nem
entrevistador oferece deve ser suficientemente ambí- de triunfar nem de impor-se ao entrevistado. O que nos
guo para permitir o maior engajamento da personalidade compete é averiguar a que se devem, como funcionam
do entrevistado. e quais os efeitos que acarretam para o entrevistado.
Embora tudo isso seja certo, existe entretanto uma Esse último tem direito, embora tomemos nota disso, a
área delimitada em que a ambigüidade não deve existir, fazer uso, por exemplo, de sua repressão ou sua descon-
ou, ao contrário, cujos limites devem ser mantidos e, às fiança. Com muitíssima freqüência, o grau de repres-
vezes, defendidos pelo entrevistador; ela abrange todos são do entrevistado depende muito do grau de repressão
os fatores que intervêm no enquadramento da entrevis- do entrevistador em relação a determinados temas (se-
ta: tempo, lugar e papel técnico do profissional. O tem- xualidade, inveja etc.). Quando fazemos uma interven-
po refere-se a um horário e um limite na extensão da en- ção com perguntas, elas devem ser diretas e sem subter-
trevista; o espaço abarca o quadro ou o terreno ambiental fúgios, sem segundas intenções, adequadas à situação e
no qual se realiza a entrevista. O papel técnico implica ao grau de tolerância do ego do entrevistado.
que, em nenhum caso, o entrevistador deve permitir que A abertura da entrevista também não deve ser am-
seja apresentado como um amigo num encontro fortuito. bígua, recorrendo-se a frases gerais ou de duplo sentido.
O entrevistador também não deve entrar com suas rea- A entrevista deve começar por onde começar o entrevis-
ções nem com o relato de sua vida, nem entrar em rei a- tado. Deve-se ter em conta o quanto pode ter sido custo-
38 Temasdepsicologia A entrevistapsicológica 39

so para ele decidir-se a vir à entrevista e o que pode sig- rentes tipos de silêncio (silêncio paranóide, depressivo,
nificar como humilhação e menosprezo. O entrevistado fóbico, confusional etc.) e trabalhar em função deste co-
deve ser recebido cordialmente, porém não efusivamen- nhecimento.
te; quando temos informações sobre o entrevistado for- Se o silêncio total não é o melhor na entrevista (do
necidas por outra pessoa, devemos informá-Io, assim co- ponto de vista do entrevistador), tampouco o é a catarse
mo, conforme já dissemos, antecipar ao informante, no intensa (do ponto de vista do entrevistado). Com freqüên-
começo da entrevista, que esses dados que se referem a cia aquele que fala muito, na realidade, deixa de dizer o
terceiros não serão mantidos em reserva. Isso tenderá a mais importante, porque a linguagem não é somente
manter o enquadramento e a evitar as divisões esquizói- um meio de transmitir informação mas também um po-
des e a atuação psicopática, assim como a eliminar tudo deroso meio para evitá-Ia. Todos esses são, certamente,
o que possa travar a espontaneidade do técnico, que não dados valiosos, que devem ser considerados e valoriza-
deve ter compromissos contraídos que pesem negativa- dos. A "descarga" emocional intensa também não é o
mente sobre a entrevista. A discrição do entrevistador melhor de uma entrevista; com isso geralmente o entre-
para com as informações que o entrevistado fornece está vistado consegue depositar maciçamente sobre o entrevis-
implícita na entrevista, e se for fornecido um relato so- tador e logo se distancia e entra numa relação persecutó-
bre ela a uma instituição, o entrevistado também deve ria como esta: o confessor transforma-se facilmente em
ter conhecimento disso. A reserva e o segredo profis- perseguidor.
sional vigoram também entre os pacientes psicóticos e Como todo o enquadramento, o fim da entrevista de-
no material de entrevistas com adolescentes ou crian- ve ser respeitado. A reação à separação é um dado mui-
ças; nesse último caso, não nos devemos sentir autori- to importante, assim como a avaliação sobre o estado do
zados a relatar aos pais, por exemplo, detalhes da entre- entrevistado ao partir e da nossa contratransferência em
vista com seus filhos. relação a ele.
O silêncio do entrevistado é o fantasma do entre- Entrevistas bem realizadas consomem um tempo
vistador principiante, para quem esse silêncio pode sig- muito grande, do qual, com freqüência, não se dispõe,
nificar um fracasso ou uma demonstração de imperícia. especialmente em instituições (escolas, hospitais, indús-
Com um mínimo de experiência, no entanto, não há en- trias etc.). Nesses casos o mais conveniente é reservar,
trevistas fracassadas; se se observar bem, toda entrevis- do tempo disponível, um período para realizar pelo me-
ta fornece informações importantes sobre a personali- nos uma entrevista diária em condições ótimas. Isso im-
dade do entrevistado. É necessário reconhecer os dife- pedirá as estereotipias no trabalho e as racionalizações
_4_0 Temas de psicologia A entrevista psicológica 4_1

da evitação fóbica. Além disso, é importante reservar-se O primeiro fator terapêutico é sempre a compreensão
o tempo necessário para estudar as entrevistas realiza- do entrevistador, que deve comunicar alguns elementos
das, e melhor ainda se isso for feito em grupos de traba- dessa compreensão que possam ser úteis ao entrevistado.
lho. O psicólogo e o psiquiatra não devem trabalhar iso- Na entrevista diagnóstica, segundo nossa opinião, deve-
lados, porque isto favorece sua alienação no trabalho. se interpretar, sobretudo, cada vez que a comunicação
tenda a interromper-se ou distorcer-se. Outro caso mui-
to freqüente em que temos de intervir é para relacionar
aquilo que o próprio entrevistado esteve comunicando.
Para interpretar, devemos guiar-nos pelo volume de an-
siedade que estamos resolvendo e pelo volume de ansie-
Uma questão freqüente e importante é a de saber se se dade que criamos, tendo-se em conta, também, se serão
deve interpretar nas entrevistas realizadas com fins diag- dadas outras oportunidades para que o entrevistado pos-
nósticos. Nesse sentido existem posições muito variadas. sa resolver ansiedades que vamos mobilizar. Em todos os
Entre elas se encontra, por exemplo, a de Rogers, que não casos, devemos interpretar somente com base nos emer-
somente não interpreta, como tampouco pergunta, estimu- gentes, no que realmente está acontecendo no aqui e ago-
lando o entrevistado a prosseguir por meio de diferentes ra da entrevista.
técnicas, como, por exemplo, repetir de forma interrogati- Uma indicação fundamental para guiar a interpre-
va a última palavra do entrevistado ou estimulá-Io, com um tação é sempre o beneficio do entrevistado e não a "des-
olhar, um gesto ou uma atitude, a prosseguir. carga" de uma ansiedade do entrevistador. Além disso,
A entrevista é sempre uma experiência vital muito sempre que se interpreta, deve-se saber que a interpre-
importante para o entrevistado; significa, com muita fre- tação é uma hipótese que deve ser verificada ou retifi-
qüência, a única possibilidade que tem de falar o mais cada no campo de trabalho pela resposta que mobiliza-
sinceramente possível de si mesmo com alguém que não mos ou condicionamos ao pôr em jogo tal hipótese. Con-
o julgue, mas que o compreenda. Dessa maneira, a en- tudo, convém que o entrevistador principiante se limite
trevista atua sempre como um fator normativo ou de primeiro, e durante algum tempo, a compreender o en-
aprendizagem, embora não se recorra a nenhuma medi- trevistado, até que adquira experiência e conhecimento
da especial para conseguir isso. Em outros termos, a en- suficientes para utilizar a interpretação. O alcance ótimo
trevista diagnóstica é sempre, e ao mesmo tempo, em de uma entrevista é o da entrevista operativa na qual se
parte, terapêutica. procura compreender e esclarecer um problema ou uma
_4_2 Temas de psicologia

situação que o entrevistado traz como sendo o centro quizofrênico (diagnóstico psiquiátrico), em uma pessoa
ou motivo da entrevista. Nesse sentido, freqüentemente com insuficiência cardíaca (diagnóstico médico) e per-
uma entrevista tem êxito quando consegue esclarecer sonalidade obsessiva (diagnóstico psicológico), enten-
qual é o verdadeiro problema que está por trás daquilo dendo-se que esse exemplo só serve como tal para dife-
que é trazido de modo manifesto. renciar os três tipos de informes, que nem sempre ne-
Aconselho a leitura do artigo de Reik, "O abuso da cessariamente ocorrem juntos.
interpretação", e a ter presentes pelo menos duas coisas:
toda interpretação fora de contexto e de timing é uma A ordem em que se redige um informe não tem nada
agressão, e parte da formªção do psicólogo consiste, tam- a ver com a ordem em que foram recolhidos os dados ou
bém, em aprender a calar. E, como "regra de ouro" (se é com a ordem em que foram sendo feitas as deduções.
que elas existem), é tanto mais necessário calar-se quan-
to maior for a compulsão para interpretar. 1) Dados pessoais: nome, idade, sexo, estado civil,
nacionalidade, domicílio, profissão ou oficio.
2) Procedimentos utilizados: entrevistas (número
e freqüência, técnica utilizada, "clima", lugar em
que se realizaram). Testes (especificar os utili-
zados), jogo de desempenho de papéis, registros
O informe psicológico tem como finalidade conden- objetivos (especificar) etc. Questionários (espe-
sar ou resumir conclusões referentes ao objeto de estudo. cificar). Outros procedimentos.
Incluímos aqui somente o informe que se refere ao estu- 3) Motivos do estudo: por quem foi solicitado e
do da personalidade, que pode ser empregado em diferen- objetivos. Atitude do entrevistado e referência
tes campos da atividade psicológica, e em cada um deles a suas motivações conscientes.
se deverá ter em conta e responder especificamente ao 4) Descrição sintética do grupo familiar e de ou-
objetivo com que tal estudo se efetuou. Trata-se, por outro tros que tiveram ou têm importância na vida do
lado, apenas de um guia e não de formulários a preencher. entrevistado. Relações do grupo familiar com a
No campo da medicina, por exemplo, um estudo comunidade: status socioeconômico, outras re-
completo abrange um tríplice diagnóstico ou um trípli- lações. Constituição, dinâmica e papéis, comu-
ce informe: o diagnóstico médico, o psiquiátrico e o psi- nicação e trocas significativas do grupo fami-
cológico. Pode ser o caso, por exemplo, de um surto es- liar. Saúde, acidentes e doenças do grupo e de
seus membros. Mortes, idade e ano em que ti- guagem (léxica e sintáxica etc.), nível de concei-
veram lugar, causas. Atitude da família ante as tuação, emissão de juízos, antecipação e planeja-
mudanças, a doença e o doente. Possibilidade mento de situações, canal preferido na comuni-
de incluir o grupo em alguma das classificações cação, nível ou grau de coordenação, diferenças
reconhecidas. entre comportamento verbal e motor, capacidade
5) Problemática vital: relato sucinto de sua vida e de observação, análise e síntese, grau de atenção
conflitos atuais, de seu desenvolvimento, aquisi- e concentração. Relações entre o desempenho
ções, perdas, mudanças, temores, aspirações, ini- intelectual, social, profissional e emocional e ou-
tros itens significativos em cada caso particular.
bições e do modo como os enfrenta ou suporta.
Considerar as particularidades e alterações do de-
Diferenciar aquilo que é afirmado pelo entrevis-
senvolvimento psicossexual, mudanças na perso-
tado e por outras pessoas de seu meio daquilo
nalidade e na conduta.
que é inferido pelo psicólogo. Diferenciar o que
8) No caso de um informe muito detalhado ou mui-
se afirma daquilo que se postula como provável.
to rigoroso (por exemplo, um informe pericial),
Quando houver algum dado de valor muito espe-
incluir os resultados de cada teste e de cada exa-
cial, especificar a técnica através da qual se infe-
me complementar realizado.
riu ou detectou esse dado. Incluir uma resenha das 9) Conclusão: diagnóstico e caracterização psico-
situações vitais mais significativas (presentes e lógica do indivíduo e do seu grupo. Responder
passadas), especialmente aquelas que assumem especificamente aos objetivos do estudo (por
o caráter de situações conflitivas e/ou repetitivas. exemplo, no caso da seleção de pessoal, orien-
6) Descrição de padrões de conduta, diferencian- tação vocacional, informe escolar etc.).
do os predominantes dos acessórios. Mudanças 10) Incluir uma possibilidade prognóstica do ponto
observadas. de vista psicológico, fundamentando os elemen-
7) Descrição de traços de caráter e de personali- tos sobre os quais se baseia.
dade, incluindo a dinâmica psicológica (ansieda- 11) Orientação possível: indicar se são necessários
de, defesas), citando a organização patográfica novos exames e de que tipo. Indicar a forma pos-
(se houver). Incluir uma avaliação do grau de ma- sível de remediar, aliviar ou orientar o entrevis-
turidade da personalidade. Constituição (citar a tado, de acordo com o motivo do estudo ou se-
tipologia empregada). Características emocio- gundo as necessidades da instituição que soli-
nais e intelectuais, incluindo: manipulação da lin- citou o informe.
A entrevista psicológica ~ ~~ ~~ 4_7

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Associação Psicanalítica Argentina propôs-se, desde sua
fundação, preencher também uma função social, dentro
das seguintes linhas: a) oferecer a possibilidade de um tra-
tamento psicanalítico limitado a um ano de duração a car-
go de Candidatos do Instituto de Psicanálise; b) podiam
ser admitidos como pacientes pessoas sem muitos recur-
sos econômicos e cujo exercício profissional envolvesse o
contato com outras pessoas, de tal maneira que o benefI-
cio de um tratamento psicanalítico limitado a um ano pu-
desse redundar, indiretamente, num beneficio para as pes-
soas que estivessem em contato profissional com elas
(professores, enfermeiros etc.); c) os honorários para es-
ses tratamentos eram baixos e quem os recebia era o Cen-
tro Racker e não o Candidato encarregado do tratamento;
d) o Candidato obtinha uma supervisão semanal gratuita a
título de aprendizagem; e) dadas essas condições funda-
mentais, decidiu-se que não seriam admitidos pacientes
flete o desejo de que possa servir também como guia pa-
que apresentassem, clinicamente, perversões sexuais,
ra a seleção de pacientes para a psicoterapia curta ou
psicose, psicopatias e caracteropatias ou - em geral- per-
analiticamente orientada; sem dúvida um problema de
turbações ou estruturas que não pudessem obter beneficio
grande importância para o qual temos a impressão de que
com um ano de tratamento.
A seleção de pacientes passou por diferentes alter- esse esboço pode ser útil.
nativas, porém, fundamentalmente, foi realizada sem-
pre com base em entrevistas; em alguns casos ou perío- Alguns autores vêem o diagnóstico de modo depre-
dos, acrescentou-se o psicodiagnóstico de Rorschach e ciativo, consideram-no como - para a psicanálise e a
um pequeno questionário prévio. O primeiro diretor do psiquiatria dinâmica - prolongamento de um "hobby
Centro Racker foi o dr. David Liberman, o segundo foi de psiquiatras", como diz 1. M. Thiel. Não tratamos des-
a dra. Marie Langer e o terceiro fui eu. se problema, embora tenhamos consultado a literatura
Ao encarregar-me da Direção do Centro Racker, en- correspondente.
tre outras atividades, propus uma avaliação dos resulta- Outra avaliação da experiência do Centro Racker foi
dos do tratamento psicanalítico efetuado em condições realizada separadamente sob a direção da dra. Lily S.
tão particulares, tanto como o estudo dos critérios implí- Bleger e a colaboração dos drs. Sheila Navarro de Ló-
citos na aceitação ou recusa dos pacientes nas entrevis- pez, Carlos Paz e Vera Campos.
tas, de forma a poder chegar a um esboço de categoriza- Não se deve esquecer, em momento algum, o fato de
ção das entrevistas. que o esboço que apresentamos aqui foi elaborado com
Esse esboço foi elaborado, basicamente, durante os base numa amostra particular, constituída por pacientes
estudos das entrevistas e dos protocolos de entrevistas de com as características assinaladas anteriormente e , entre
anos anteriores e também durante os Ateneus Clínicos se- elas, um ponto fundamental é a exclusão de pacientes com
manais, nos quais se contou com a valiosa colaboração dos psicose clínica, vício em drogas, perversões, psicopatias
drs. Benito López e Carlos Paz. Não se chegou a resultados ou caracteropatias graves, por considerar a priori inade-
totalmente satisfatórios ou completos porque, sem esperar
quado para eles o tratamento psicanalítico limitado a um
a avaliação que estávamos realizando, uma Assembléia da
ano, tal como o Centro o havia organizado. Nosso proble-
Associação Psicanalítica, reunida para deliberar sobre as
ma era escolher pacientes que pudessem beneficiar-se
funções do Centro Racker, resolveu suprimir essa ativida-
com um ano de tratamento psicanalítico, mas, além dis-
de e portanto a experiência ficou truncada.
so, devíamos ter a garantia, até onde isso fosse possível,
A apresentação, agora, deste esboço inconcluso e
de que o tratamento psicanalítico não iria provocar ne-
não submetido a uma prova totalmente satisfatória re-
les distúrbios psicóticos ou psicopáticos, perversões ou Dadas as reformas que foram introduzidas, o estudo es-
tentativas de suicídio, até então encobertos ou desco- tatístico tampouco pôde ser concluído.
nhecidos pelo paciente; procurou-se evitar também os
pacientes que, com um ano de tratamento, começaram a Em síntese, queríamos elaborar um instrumento pa-
ter condições de poder continuar, com êxito ou produti- ra poder chegar a saber o que aconteceu, considerando-se
vamente, seu tratamento psicanalítico. a maneira como se procedeu na seleção dos pacientes e a
Paciente e analista tinham - ao término do ano - a modalidade da realização do tratamento psicanalítico de
liberdade de estabelecer um novo contrato com honorá- tempo limitado. Com isso quero sublinhar que não se tra-
rios iguais ou não, se isso conviesse a ambos; mas tam- ta de apresentar um "quadro diagnóstico" ou um "perfil
bém ignorávamos se isto constituía uma condição dese- de personalidade", mas sim da apresentação de vetores,
parâmetros ou indicadores com os quais se poderia, even-
jável ou não.
tualmente, chegar a um estudo estatístico.
Não vou me ocupar das características, condições ou
Creio que, atualmente, e ainda com a experiência
técnica com as quais se realizavam as entrevistas; direi
frustrada, esse esboço possa servir para a seleção de
somente que elas se efetuavam de acordo com as diretri-
pacientes em terapias de tempo limitado e, quando che-
zes assinaladas no capítulo "Entrevista psicológica".
gar o momento, para avaliação de tais tratamentos.
Era evidente, para nós, que os diagnósticos psiquiá-
Devemos também levar em consideração que o es-
tricos tradicionais não nos ajudariam a resolver nosso
quema que elaboramos nos servia, em parte, para aceitar
problema, ou seja: a) selecionar os pacientes para o tra-
ou recusar pacientes, mas que, além disso, era um instru-
tamento psicanalítico de tempo limitado, e b) avaliar os
mento a posteriori, isto é, um estudo dos fatores pelos
eventuais beneficios obtidos com esses tratamentos ou,
quais, em anos anteriores, haviam sido admitidos ou recu-
em todo caso, saber o que estava acontecendo ou havia sados pacientes, e do grau ou tipo de beneficio obtido.
acontecido quando se fazia o que estávamos fazendo até O esquema elaborado baseia-se no conhecimento
aquele momento. das partes neurótica e psicótica da personalidade, cha-
O estudo final para o qual nos encaminhávamos era madas em seu conjunto, respectivamente, neurotismo e
de caráter estatístico, e o especialista contratado pelo psicotismo, cada um deles dividido, por sua vez, em uma
Centro Racker para esta função necessitava dos dados certa quantidade de indicadoresl.
que tínhamos de fornecer. Este projeto tinha também o
seguinte objetivo: prover os técnicos dos elementos ne- 1. Depois de adotadas as denominações de neurotismo e psicotismo,
cessários para que pudessem trabalhar estatisticamente. observei que havia utilizado uma terminologia empregada por Eysenck;
_5_4 Temas de psicologia

Nossos pressupostos teóricos eram que, quanto mais para cada um dos indicadores que utilizamos não se dá
predominasse o neurotismo, melhor seria o prognóstico a mesma proporção nem as mesmas características de
em uma terapia de tempo limitado; e que também, quan- rigidez ou flexibilidade; vimo-nos, assim, forçados a
to maior fosse a flexibilidade, o prognóstico e o benefI- complicar um quadro que inicialmente parecia relativa-
cio de um tratamento nas condições assinaladas seriam mente simples. Os indicadores para neurotismo e psi-
também melhores. O oposto acontece com o psicotismo cotismo são os seguintes:
e a rigidez (ou estereotipia).
Depois de tentar longas listagens, chegamos a estes
dois itens que denominamos neurotismo e psicotismo.
I) Sintomas neuróticos; presença de conflitos neu-
Cada um deles (neurotismo e psicotismo) se situava, por
róticos e ansiedade
sua vez, em uma escala de porcentagens e, além disso,
2) Transferência neurótica
divididos em rigidez ou flexibilidade.
3) Contratransferência neurótica
Desenvolvi em outros escritos o que entendo por
4) Manutenção da clivagem
partes neurótica e psicótica da personalidade; pode-se
5) Defesas: fóbicas, histéricas, obsessivas, paranói-
dizer que tudo o que mostra desenvolvimento do ego, des. Predomínio de projeção-introjeção
discriminação, estabelecimento das posições esquizo- 6) Insight
paranóide e depressiva inclui-se dentro do neurotismo, 7) Independência
e tudo o que demonstre estar em nível de fusão, falta ou 8) Comunicação simbólica
déficit de discriminação (fundamentalmente entre eu e
não-eu) inclui-se dentro do que denomino psicotismo.
Objetos de identificação
Defrontamo-nos logo com o problema de que ne- não destruidos
nhum paciente apresenta absoluta ou totalmente caracte- 9) Identidade, personificação Discriminação
rísticas próprias do neurotismo ou do psicotismo, que,

faço aqui esta referência porque quero esclarecer que não existe nenhuma
1homo- heterossexual
Sonhos

semelhança com o significado dos termos nem com a posição teórica e téc-
nica adotada por esse autor, da qual estou totalmente afastado. Pareceu-me 10) Amplitude do Ego
e ainda me parece absolutamente prejudicial e errôneo modificar uma ter- 11) Ciúmes, rivalidade
minologia pelo fato de que, com antecedência, Eysenck a tivesse usado 12) Sublimação
com objetivo e posições teóricas diferentes das que sustento e desenvolvo.
Ensaio de categorização da entrevista -- 57
_

para flexibilidade de estereotipia e sobre uma coordena-


da estabelece-se uma escala porcentual, anotando-se cada
1) Doença orgânica atual. Tensão
indicador na dupla especificação de intensidade e fle-
2) Transferência psicótica. Narcisismo xibilidade-estereotipia. Em outra tentativa, uma linha ver-
3) Contratransferência de caráter psicótico tical separa neurotismo e psicotismo, outra, horizontal,
4) Clivagem: não conservada ou em perigo de separa flexibilidade de estereotipia e, sobre as coorde-
perder-se nadas verticais, fixa-se a intensidade de zero a cem.
5) Defesas: caracteropáticas, hipocondríacas, me- Já se sabe que uma equação algébrica pode ser re-
lancólicas, maníacas, perversas. Predomínio de presentada por um gráfico e que, da mesma forma, um
identificações proj etivas- introj etivas gráfico pode ser reduzido a uma equação algébrica. Pen-
6) Falta de insight sávamos que poderíamos chegar a um ponto no qual a
7) Dependência avaliação poderia ser representada algebricamente. Nes-
8) Comunicação pré-verbal te ponto as possibilidades ficaram totalmente abertas
9) Identidade: dispersão, ambigüidade, confusão, para serem desenvolvidas.
onirismo. Sonhos Ficou também pendente nosso propósito de confec-
10) Restrição do Ego cionar um "Manual do Tabulador" que teria de surgir de
11) Inveja um consenso da equipe que, em certa medida, já chega-
ra a tê-lo.
Obtidos estes indicadores, trabalhou-se com eles,
tentando-se diferentes representações gráficas e numé-
ricas, não se tendo chegado a nenhuma definitiva. Em
um dos ensaios, limitávamo-nos a fazer uma lista dos in-
dicadores, classificando sua intensidade em uma escala Eysenck, H. J., "C1assification and Prob1ems of Diagnosis", em
de zero a cem e acrescentando, em cada caso, um sinal Handbook of Abnormal Psychology, Pitman, Londres, 1960.
positivo ou negativo para significar seu caráter de fle- Frosck, J., Stone, L. e Zetze1, E., "An Examination of Noso10gy
xibilidade ou estereotipia; esperava-se com isso poder According to Psychoana1ytica1 Approach to the C1assification
proceder ulteriormente a um cruzamento estatístico das ofMenta1 Disorder", J. Ment. Sei., 78, 1932.
variáveis. Esses dados passaram também a ser represen- López, B., Rabih, M., "Entrevista inicial y contraidentificación",
tados em gráficos; em um deles, uma linha horizontal se- Asociac. Psicoanal. Arg., 1966.
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fnt. Congress Psychotherapy, Kerger, Basiléia e Nova York, dor do método, Enrique J. Pichon-Riviere, "é um con-
1965. junto de pessoas com um objetivo comum" que procuram
abordar trabalhando como equipe. A estrutura de equi-
pe só se consegue na medida em que opera; grande par-
te do trabalho do grupo operativo consiste, em resumo,
no treinamento para trabalhar como equipe.
No campo do ensino, o grupo prepara-se para apren-
der e isto só se alcança enquanto se aprende, quer dizer,
enquanto se trabalha.
O grupo operativo tem objetivos, problemas, recur-
sos e conflitos que devem ser estudados e considerados
pelo próprio grupo à medida que vão aparecendo; serão
examinados em relação com a tarefa e em função dos
objetivos propostos.
Através de sua atividade, os seres humanos entram
em determinadas relações entre si e com as coisas, além
da mera vinculação técnica com a tarefa a realizar, e este
_6_0~~~~~~~~~~~~~~~ Temas depsicologia

complexo de elementos subjetivos e de relação consti- está, em lugar relevante, o ensino e a forma com que - em
tui o seu fator humano mais específico. geral- se realiza: desumanizada e desumanizante.
N o ensino, o grupo operativo trabalha sobre um tó- Para a presente exposição, baseei-me na "Experiên-
pico de estudo dado, porém, enquanto o desenvolve, se cia Rosário", na experiência de grupos operativos da Es-
forma nos diferentes aspectos do fator humano. Embo- cola Privada de Psiquiatria (que já completou três anos
ra o grupo esteja concretamente aplicado a uma tarefa, de experiência) e na experiência realizada em diferen-
o fator humano tem importância primordial, já que cons- tes cátedras em várias faculdades 1•
titui o "instrumento de todos os instrumentos". Não exis- Embora sem seguir estritamente esta ordem, vou
te nenhum instrumento que funcione sem o ser humano. procurar desenvolver as seguintes questões: a) como se
Opomo-nos à velha ilusão, tão difundida, de que uma ta- realiza a aprendizagem nos grupos operativos; b) porque
refa é mais bem realizada quando são excluídos os chama- se procede assim; c) a experiência obtida; e d) de modo
dos fatores subjetivos e ela é considerada apenas "obje- geral, o que se pode dizer sobre a aprendizagem em fun-
tivamente"; pelo contrário, afirmamos e garantimos, na ção desta experiência com grupos operativos.
prática, que o mais alto grau de eficiência em uma tare-
fa é obtido quando se incorpora sistematicamente a ela o
ser humano total. Por outro lado, e com isto estamos ape-
nas aceitando os fatos como são, incorporamos o ser hu-
mano na teoria e na condução operativa da tarefa porque Trata-se de grupos de aprendizagem ou grupos de en-
já estava incluído de fato. Porém esta inclusão é agora sino? Na realidade, de ambas as coisas, e este é um ponto
"desalienante", de tal maneira que o todo fique integrado fundamental de nossa colocação. Ensino e aprendizagem
e que a tarefa e as coisas não acabem absorvendo (alie- constituem passos dialéticos inseparáveis, integrantes de
nando) os seres humanos. No mundo humano, alcança-se um processo único em permanente movimento, porém
maior objetividade ao incorporar-se o ser humano (inclu- não só pelo fato de que, quando existe alguém que apren-
sive os fatores subjetivos), quer dizer, tomando as coisas de, tem de haver outro que ensina, como também em vir-
tal como acontecem, para entendê-Ias e poder fazer com tude do princípio segundo o qual não se pode ensinar cor-
que aconteçam da melhor maneira.
De modo algum estas considerações saem do nosso 1. E. Pichon-Riviere e colab., "Técnica de 10s grupos operativos",
tema, porque entre os instrumentos sociais de alienação Acta Neuropsiquiátrica Argentina, 6, p. 32, 1960.
_6_2 Temas de psicologia

retamente enquanto não se aprende e durante a própria dantes, sem dinamizar e relativizar os papéis e sem abrir
tarefa de ensinar. Este processo de interação deve resta- amplamente a possibilidade de um ensino e de uma apren-
belecer-se plenamente no emprego do grupo operativo. dizagem mútua e recíproca. O corpo docente teme a rup-
Na proposição tradicional, existe uma pessoa ou gru- tura do status e o conseqüente caos e, nesse sentido, é
po (um status) que ensina e outro que aprende. Esta dis- necessário analisar as ansiedades de ficar "nu", sem sta-
sociação deve ser suprimida, porém, tal supressão cria tus, diante do estudante, que aparece, então, com toda a
necessariamente ansiedade, devido à mudança e aban- magnitude de um verdadeiro objeto persecutório; deve-
dono de uma conduta estereotipada. De fato, as normas se criar consciência de que a melhor "defesa" é conhe-
são, nos seres humanos, condutas, e toda conduta é sem- cer o que se vai ensinar e ser honesto na valorização do
pre um papel; a manutenção e repetição das mesmas que se sabe e do que se desconhece. Um ponto culmi-
condutas e normas - de modo ritual- acarreta a vanta- nante desse processo é o momento em que aquele que
gem de não se enfrentarem mudanças nem coisas novas ensina pode dizer "não sei" e admitir assim que realmen-
e, assim, evitar-se a ansiedade. Porém, o preço dessa se- te desconhece algum tema ou tópico. Esse momento é de
gurança e tranqüilidade é o bloqueio do ensino e da suma importância, porque implica - entre outras coisas
aprendizagem, e a transformação desses instrumentos no - o abandono da atitude de onipotência, a redução do
oposto daquilo que devem ser: um meio de alienação do narcisismo, a adoção de atitudes adequadas na relação
ser humano. interpessoal, a indagação e a aprendizagem, e a coloca-
Em uma cátedra ou em uma equipe de trabalho, a ção como ser humano diante de outros seres humanos e
simples colocação da necessidade da interação entre en- das coisas tais como elas são.
sino e aprendizagem ameaça romper estereótipos e pro- O nível do "não sei" é atingido quando se toma possí-
voca o aparecimento de ansiedades. O mesmo acontece vel problematizar e quando se possui os instrumentos ne-
quando se abordam mudanças nos cursos magistrais cessários para resolver os problemas suscitados. Não es-
estereotipados e naqueles em que "tudo já está correto" tou defendendo nem fazendo proselitismo da ignorância,
e nos quais sempre se repete o mesmo; esta reação im- mas enfatizando a necessidade de colocar as coisas dentro
plica um bloqueio, uma verdadeira neurose do learning, do limite do humano e assinalando, com isso, a possibili-
que, por sua vez, incide sobre os estudantes como dis- dade de uma maior integração e aperfeiçoamento na tare-
torção da aprendizagem. Não se pode pretender organi- fa. A imagem realizada do professor onipotente e onis-
zar o ensino em grupos operativos sem que o pessoal do- ciente perturba a aprendizagem, em primeiro lugar, do
cente entre no mesmo processo dialético que os estu- próprio professor. O mais importante em todo campo
Grupos operativos no ensino 65
_

do conhecimento não é dispor de informação acabada, gismo, que apareceu primeiro como lapso e que integra
mas possuir instrumentos para resolver os problemas que os dois termos: "Ensinagem".
se apresentam em tal campo; quem se sentir possuidor de O coordenador de um grupo operativo e o diretor
informação acabada tem esgotadas suas possibilidades de um ensino organizado operativamente devem traba-
de aprender e de ensinar de forma realmente proveitosa. lhar ou, melhor dizendo, co-trabalhar ou co-pensar (como
No ensino e na aprendizagem em grupos operativos, diz E. Pichon-Riviere) com os estudantes e com todos
não se trata só de transmitir informação, mas também os auxiliares. Quando essa proposição surgiu em um gru-
de conseguir que seus integrantes incorporem e mani- po operativo de auxiliares de uma cátedra, alguns ale-
pulem os instrumentos de indagação. E isto só é possí- garam que, se se trabalhasse assim, haveria o risco de
vel depois que o corpo docente já o tiver conseguido que os estudantes acreditassem que existem coisas que
para si. Sublinho que o mais importante em um campo não sabemos. E a resposta foi que isso é certo e que os
científico não é o acúmulo de conhecimentos adquiri- estudantes terão razão se pensarem assim, e que nós
dos, mas a sua utilização como instrumento para indagar também temos de admiti-Io como verdade.
e atuar sobre a realidade. Existe grande diferença entre A organização do ensino em grupos operativos exi-
o conhecimento acumulado e o utilizado; o primeiro alie- ge que se desarmem e se rompam uma série de estereóti-
na (inclusive o sábio), o segundo enriquece a tarefa e o pos, que se vêm repetindo e que servem como defesas da
ser humano. Seguindo em parte Montesquieu, pode-se ansiedade, mas que paralisam o processo dialético de
voltar a dizer que encher cabeças não é o mesmo que for- ensino e aprendizagem. Não se deve fomentar nenhuma
mar cabeças. E menos ainda formar tantas, que cada um imagem falsa, nem de professores nem de estudantes, e
tenha a própria. deve-se transmitir a informação no nível em que ela se
Não existe ser humano que não possa ensinar algo, encontre, sem deixar de apresentar os fatos duvidosos,
quando mais não seja pelo simples fato de ter certa ex- contraditórios ou não resolvidos. Grande parte da facili-
periência de vida. Esclareçamos, também, que não se tação ou simplificação efetuadas com finalidades didáti-
trata só de aprender no sentido limitado de recolher in- cas, como ocorre na maior parte dos textos, administram
formação explicitada, mas sim de converter em ensino a informação como alimento pré-digerido e servem para
e aprendizagem toda conduta e experiência, relação ou encher cabeças mas não para formá-Ias. Os sistemas
ocupação. Aprendizagem e ensino estão tão solidaria- educativos e pedagógicos são, por outro lado, institui-
mente relacionados que, com freqüência, nos grupos ope- ções que se modelam na luta de interesses de classes
rativos que se ocupam deste tema, cunhou-se um neolo- sociais, e os métodos antiquados de ensino são instru-
_6_6 Temas de psicologia Grupos operativos no ensino --_________ -- 67

mentos de bloqueio e controle que, nesse sentido, preen- ensinar o já comprovado, o depurado; o trabalho com
chem amplamente seus objetivos políticos, sociais e grupos operativos, pelo contrário, conduziu-nos à con-
ideológicos. vicção de que se deve partir do atual e presente, e que
E como se transmitem aos estudantes os instrumen- toda a história de uma ciência deve ser reelaborada em
tos de problematização e indagação? Só existe uma for- função disso. Não se devem ocultar as lacunas nem as
ma de fazê-Io, é empregá-Ios, transformando os estudan- dúvidas, nem preenchê-Ias com improvisações.
tes de receptores passivos em co-autores dos resultados, A instituição em que se oferece o ensino deve, em
conseguindo que utilizem, que "se encarreguem" de suas sua totalidade, ser organizada como instrumento de ensi-
potencialidades como seres humanos. Em outros termos: no e, por sua vez, ser radical e permanentemente pro-
deve-se energizar ou dinamizar as capacidades dos es- blematizada. Os conflitos de ordem institucional trans-
tudantes, assim como as do corpo docente. cendem, de forma implícita, e aparecem como distor-
ções do próprio ensino. Os conflitos não explicitados
nem resolvidos no nível da organização institucional
canalizam-se nos níveis inferiores, de tal maneira que o
estudante se torna uma espécie de recipiente no qual os
conflitos poderão cair ou causar impacto.
A técnica operativano ensino modifica substancial-
No decorrer do ensino em grupos operativos, deve-
mente a organização e sua administração, tanto como
se estudar e investigar o próprio ensino, bem como pro-
os objetivos que se desejam alcançar. Problematiza, em blematizar os conhecimentos e instrumentos de todo
primeiro lugar, o próprio ensino e promove a explicita- tipo. Nesse e em todo sentido, o clima de liberdade é
ção das dificuldades e conflitos que a perturbam ou dis- imprescindível.
torcem. É um instrumento de trabalho e não constitui No ensino operativo, deve-se procurar caminhar pa-
uma panacéia que resolve todos os problemas, o que, ra o desconhecido, para a indagação daquilo que ainda
aliás, é utópico. Toda a informação científica tem de ser não está suficientemente elucidado. Se existe uma or-
transformada e incorporada como instrumento para ope- dem geral básica, que deve ser levada em conta, é a de
rar e, de nenhuma maneira, deve tender à simples acumu- romper estereótipos em todos os níveis e planos em que
lação de conhecimentos. Isso obriga a sistematizar o con- apareçam. A estereotipia é a traça das cátedras. Em ciên-
teúdo dos programas ou as matérias de uma maneira dis- cia, não só se avança encontrando soluções, mas tam-
tinta da tradicional. Geralmente supõe-se que se deve bém, e fundamentalmente, criando problemas novos, e
_6_8 Temas de psicologia Grupos operativos no ensino ------------
69

é necessário educar-se para perder o medo de provocá- quece com os resultados da sua aplicação. Procuramos
los. Nessa ação, o estudante aprende, com sua partici- fazer com que toda informação sej a incorporada ou as-
pação direta, a problematizar tanto corno a empregar os similada corno instrumento para voltar a aprender e con-
instrumentos para encontrar e estabelecer as possíveis tinuar criando e resolvendo os problemas do campo cien-
vias de solução. tífico ou do terna tratado.

o termo aprender está bastante contaminado pelo A distorção ideológica do ensino tradicional che-
intelectualismo; assim, concebe-se o processo corno a gou a tal ponto que é necessário, hoje, reincorporar o
operação intelectual de acumular informação. Outra de- ser humano à aprendizagem da qual foi marginalizado
finição, ainda que correta em certo sentido, traduz a em nome de urna pretensa objetividade. Urna verdade
aprendizagem em urna linguagem reducionista e afir- óbvia é que não existe aprendizagem sem a intervenção
ma que é urna modificação do sistema nervoso produ- do ser humano, mas, na prática, ignorou-se isso, corno
zida pela experiência. Preferimos o conceito de que a se o objetivo não fosse realmente conseguir que o ser
aprendizagem é a modificação mais ou menos estável humano assimilasse instrumentos para o seu desenvol-
de linhas de conduta, entendendo-se por conduta todas vimento, mas que se transformasse em um instrumento
as modificações do ser humano, seja qual for a área em desumanizado, alienado; não se tratava somente de do-
que apareçam; nesse sentido, pode haver aprendizagem minar objetos com o conhecimento, mas também de domi-
ainda que não se tenha a sua formulação intelectual. nar e controlar seres humanos com a aprendizagem e o
Pode haver também uma captação intelectual, corno fór- ensmo.
mula, mas ficar tudo reduzido a isso; nesse caso dá-se O ser humano está integralmente incluído em tudo
urna dissociação na aprendizagem, resultado muito co- aquilo em que intervém, de tal maneira que, quando exis-
mum dos procedimentos correntes. te urna tarefa sem resolução, há, ao mesmo tempo, urna
A técnica operativa também implica uma verdadei- tensão ou um conflito psicológico, e quando é encon-
ra concepção da totalidade do processo; essa concepção trada urna solução para um problema ou tarefa, simul-
é instrumentada pela técnica, que por sua vez se enri- taneamente fica superada urna tensão ou um conflito psi-
70 Temas depsicologia Grupos operativos no ensino 71

cológico. O conhecimento adquirido de um objeto é, ao so se baseia, em grande parte, o erro de muitos sistemas
mesmo tempo, unicamente uma conduta do ser huma- de terapia ocupacional que acreditam que o trabalho
no. Quando se trabalha um objeto, não apenas o objeto cura. O trabalho em si é uma abstração que não cura
está sendo modificado, mas também o sujeito, e vice- nem faz adoecer; o que cura, enriquece a personalidade ou
versa, e as duas coisas ocorrem ao mesmo tempo. Não faz adoecer são as condições humanas e inumanas em
se pode operar além das possibilidades reais do objeto, que o trabalho é realizado, o tipo de vínculo ou relação
tampouco além das possibilidades reais e momentâneas interpessoal que se estabelece durante o trabalho.
do sujeito; e as possibilidades psicológicas do sujeito O grupo operativo tende a atingir um vínculo óti-
são tão reais e objetivas como as do objeto. mo que enriqueça a personalidade e a tarefa e retifique
Assim, todo impedimento, déficit ou distorção da padrões estereotipados e distorcidos. A propósito, con-
aprendizagem é, ao mesmo tempo, um impedimento, dé- vém esclarecer que a "simples" estereotipia ou bloqueio
ficit ou distorção da personalidade do sujeito, e - vice- da aprendizagem já é, por si só, e por isso mesmo, uma
versa - todos os transtornos da personalidade (neurose, distorção da conduta (neurótica ou psicótica).
psicose, caracteropatias, perversões) são transtornos da O restabelecimento da espiral e a ruptura de este-
aprendizagem. O tratamento psicanalítico tende a rom- reótipos são as ações conjuntas às quais o coordenador
per estes estereótipos de conduta, a reabrir e possibilitar do grupo operativo deve estar atento: à medida que o
de novo uma aprendizagem e - portanto - uma retifica- consegue, as dissociações vão sendo superadas. Uma
ção daquilo que foi obtido anteriormente. Dessa manei- delas, que já consideramos, é a de sujeito-objeto, como
ra, já não há uma diferença essencial entre aprendizagem par dialético; outra, de suma importância, é a da disso-
e terapia na teoria e na técnica dos grupos operativos; a ciação, tão freqüente entre teoria e prática, entre infor-
diferença está tão-somente na tarefa explícita que o mação e realização ou entre o que se sabe ou diz que se
grupo se propõe realizar. O grupo operativo que chega sabe e o que realmente se faz. Desse modo, as dissocia-
a se constituir em equipe que aprende consegue impli- ções (perturbações neuróticas e/ou aprendizagem) che-
citamente uma certa retificação de vínculos estereoti- gam a uma proporção alarmante que abrange todos os
pados e, portanto, um certo grau de efeito terapêutico. graus, desde a informação enciclopédica acompanhada
Isso não quer dizer, de modo algum, que qualquer de uma prática grosseira, até a falta de informação
tarefa realizada em qualquer condição seja terapêutica, unida a uma grande habilidade e "olho clínico" na práti-
tampouco que basta pôr um doente para trabalhar - indi- ca. Em ambos os casos, está desumanizada a tarefa e o
vidualmente ou em grupo - para conseguir sua cura. Nis- ser humano. A práxis enriquece a tarefa e o ser humano,
73
Grupos operativos no ensino -------------

e é isto que devemos conseguir no grupo, rompendo as


dissociações entre teoria e prática, em cada uma e em to-
das as modalidades em que elas podem ocorrer, inclusi- o pensar é o eixo da aprendizagem, e nos grupos ope-
ve dissociação e contradição (tão freqüente) entre ideolo- rativos, ao estabelecer-se a espiral, faz-se com que o pensa-
gia e ação. Elas não são apenas perturbações da tarefa, mento intervenha ativamente. Há uma aprendizagem, ou
mas são também, ao mesmo tempo, dissociações da per- parte dela, que tem lugar exclusivamente na área corporal
sonalidade, e ao superá-Ias o resultado é duplo. (como, por exemplo, aprender a escrever à máquina ou
Embora se possam utilizar e se utilizem técnicas andar de bicicleta), e nestes casos deve-se completá-Ia le-
operativas em grupos terapêuticos, os grupos de ensino vando ao plano do pensamento o que se fez ou se aprendeu
não são diretamente terapêuticos, mas a tarefa da apren- no nível corporal. Uma alta porcentagem do trabalho, em
dizagem implica terapia; toda aprendizagem bem reali- nossa cultura industrial, realiza-se exclusivamente na área
zada e toda educação são sempre, implicitamente, tera- corporal (tanto o trabalho de um operário como o de um
pêuticas. A necessidade de recorrer a procedimentos te- profissional), o que facilita ou condiciona a dissociação
rapêuticos específicos seria um indicador de que a téc- entre o que se faz e o que se pensa durante a execução da
nica operativa foi mal utilizada, mobilizando e forçando tarefa. Um aprendizado bem-sucedido exige a eliminação
ansiedades além do que indicavam os emergentes do pró- desta dissociação, e o conseqüente enriquecimento da tare-
prio grupo, e além daquilo que é possível fazer - de mo- fa com aquilo que se pensa, e o enriquecimento do que se
do implícito - na tarefa da aprendizágem.
pensa com aquilo que se faz.
Todos os procedimentos pedagógicos tenderam sem-
Se nos perguntassem se pensamos, responderíamos
pre a formar e modificar adequadamente a personali-
afirmativamente e, inclusive, consideraríamos a pergun-
dade do estudante. Agora isso tornou-se possível atra-
ta ofensiva, óbvia ou absurda. Contudo, muito do que
vés das técnicas operativas. A confusão entre terapia e
se chama pensar é somente um círculo vicioso e este-
ensino não pertence a essas últimas, mas sim aos peda-
reotipado. Outras vezes, ou ligado ao anterior, chama-se
gogos, que procuraram o que temiam encontrar e agora
pensar a uma dissociação na tarefa, um pensar que não
temem o que foi encontrado.
antecede nem segue à ação mas que a substitui. Todas
essas formas distorcidas do pensar não são só condutas
psicológicas com motivações individuais, mas são, fun-
damentalmente, padrões culturais e formam parte da
7__
4_____ _ Temas de psicologia

superestrutura da organização socioeconâmica vigente. des e confusões são, por outro lado, iniludíveis no pro-
Parte desse arsenal ideológico está constituído pela ló- cesso do pensar e, portanto, da aprendizagem.
gica formal, que fragmenta, "elementariza" o processo Uma das maiores virtudes do grupo operativo é a
do pensamento. Esse é sempre um processo dialético; a possibilidade que oferece de aprender a agir, pensar e
lógica formal não é um pensamento criador, e sim a fantasiar com liberdade, a reconhecer o nexo estreito e
estereotipia e o controle do pensamento. O espontâneo a sutil passagem que existe entre imaginar, fantasiar,
é o pensamento dialético, que está limitado e reprimido pensar e propor hipóteses científicas. Nesse sentido, é
pelo pensamento formal, porque com ele, na realidade, muito comum o medo de cair na loucura ou no descon-
não se pensa, mas se critica e se controla o pensar dia- trole do pensamento e da fantasia ("a louca da casa").
lético até um limite em que, inclusive, se chega a blo- Todavia sem fantasia e sem imaginação não existe pen-
queá-Io. A ruptura desse bloqueio traz - como se verá samento criador. A realidade ultrapassa a imaginação e
mais adiante - confusão e dispersão, porém é uma pas- a fantasia de todos os homens juntos. Deve-se ajudar o
sagem necessária para o restabelecimento do pensamen- grupo a trabalhar esse medo da loucura e do descontro-
to dialético. Mencionemos, de passagem, que nem todos le, ensiná-Io a aceitar jogar com o pensamento e com a
os que falam de dialética realmente a empregam, e que
tarefa e a obter prazer com eles. A situação mais feliz é
é freqüente a coexistência de um pensamento rigidamen-
aquela em que trabalho e hobby coincidem, no sentido
te formal com uma defesa verbal da dialética.
de que o trabalho seja, ao mesmo tempo, fonte de pra-
Para poder pensar é preciso haver chegado a um ní-
zer. Sem dúvida, e paradoxalmente, medos e sofrimen-
vel no qual seja possível admitir e tolerar um certo vo-
tos são momentos do processo criador que se aceitam
lume de ansiedade, provocada pelo aparecimento da es-
com mais facilidade do que os momentos do prazer de
piral, com a conseqüente abertura de possibilidades e
perda de estereotipias, ou seja, de controles seguros e pensar e trabalhar. Um problema muito freqüente nos
fixos. Em outros termos, pensar equivale a abandonar grupos operativos é o aparecimento de sentimentos de
um marco de segurança e ver-se lançado numa corrente culpa por pensar, como outro bloqueio. E, quando se con-
de possibilidades. No pensamento, o objeto e o sujeito segue que o grupo aceite sem culpa o prazer de pensar
sempre coincidem, e não se pode "remover" o objeto e o prazer do trabalho, pode-se enfrentar problemas li-
sem "remover" e problematizar o sujeito; no medo de gados ao sentimento de culpa por ensinar a pensar e
pensar está incluído o temor de passar ansiedades e con- pelo prazer e gratificação que isso provoca no corpo
fusões e ficar encerrado nelas sem poder sair. Ansieda- docente. Não existe maior gratificação na docência do
que o ensinar a pensar, a atuar segundo o que se pensa e Os integrantes do grupo não só aprendem a pensar,
a pensar segundo o que se faz, enquanto se faz. como também que a abertura da espiral permite que se
Porém o pensar não é inofensivo, e fazer pensar tam- aprenda a observar e escutar, a relacionar as próprias
bém não o é. Basta lembrar o destino de Sócrates e com- opiniões com as alheias, a admitir que outros pensem
pará-Io com o de seus acusadores Meleto, Anito e Li- de modo diferente e a formular hipóteses em uma tare-
con, representantes da tradição e da estereotipia. fa de equipe. Junto com isso, os integrantes do grupo
Bachelard dizia que pensamos sempre contra al- também aprendem a ler e estudar. Comenta-se habitual-
guém; é preciso acrescentar que também pensamos com mente, nos ambientes profissionais, que o estudante ou
alguém e para alguém ou algo. Na realidade, todos esses o profissional interessado na sua tarefa tende apenas a
vínculos coexistem e se alternam como momentos de um se informar, isto é, a digerir uma grande quantidade de
só processo que, sem dúvida, pode ser perturbado e ficar livros e revistas que vê superficialmente porque, para
paralisado em algum desses momentos. É muito freqüen- ele, o importante é captar o novo e fazer aprovisiona-
te o caso de indivíduos que só podem pensar contra outro, mento de bibliografia e informação; o grupo operativo
contra o que pensa o outro; nesse caso comprova-se que, leva a pensar durante a leitura e a considerar isso como
se o sujeito não age assim, entra em confusão. Em com- o mais importante da leitura, de modo que ela seja utili-
pensação, mantém-se livre dela enquanto atribui a outro zada como diálogo produtivo e não estereotipado ou blo-
o papel de sua própria parte contraditória. queante2• Neste sentido, um só artigo consistente pode
No ensino em grupos operativos, deve-se também bastar para a meditação durante semanas.
suprir a necessidade de pensar com rigor terminológico Para que o grupo realize tudo isto, seu coordenador
e técnico, envolvendo, quando necessário, a análise se- deve trabalhar, fundamentalmente, a estereotipia e ana-
mântica, de modo que a comunicação verbal se preste o lisar os esquemas referenciais do grupo, bem como man-
menos possível a ser veículo de mal-entendidos. ter um nível ótimo de ansiedade. Não é preciso fazer nada
O processo de aprendizagem funciona, no grupo, para que se estabeleça o processo dialético do pensar,
como uma verdadeira maiêutica, não no sentido de que porque ele é espontâneo; porém, há muito o que fazer
tudo consiste em tirar de cada um o que já tem dentro para remover as barreiras e bloqueios que impedem seu
de si, mas no de que é o grupo que cria seus objetivos e funcionamento.
faz suas descobertas através da ativação daquilo que exis-
te em cada ser humano de riqueza e experiência, ainda
que pelo simples fato de viver.
grupo operativo amplia as possibilidades racionais e im-
plica um exame da fonte vulgar do conhecimento, e por-
O esquema referencial é o "conjunto de experiên- tanto também a reorganização e o seu aproveitamento
cias, conhecimentos e afetos com os quais o indivíduo racional na tarefa científica, aceitando uma continuidade
pensa e atua". É o resultado dinâmico da cristalização, entre o conhecimento científico e o vulgar.
organizada e estruturada na personalidade, de um gran- Assim como o esquema referencial de caráter dinâ-
de conjunto de experiências que refletem uma certa es- mico e plástico é a condição necessária para a aprendi-
trutura do mundo externo, conjunto segundo o qual o zagem, o estereotipado transforma-se em barreira.
sujeito pensa e atua sobre o mundo. O questionamento do esquema referencial é o método
No grupo operativo, a tática deve ser dirigida à re- para romper estereótipos, porém é só ao ser usado que ele
visão do esquema referencial, que deve ser objeto de pode ser questionado e mudado. A técnica do grupo opera-
questionamento constante. Não havendo um esquema re- tivo deve orientar-se para a participação livre, espontânea,
ferencial adequado, os fenômenos não são percebidos, de seus integrantes, que assim trarão seus esquemas refe-
porém, para que se forme o esquema referencial neces- renciais e os colocarão à prova numa realidade mais ampla,
sário, é imprescindível manter-se em contato e em inter- fora dos limites da estereotipia, do autismo ou do narcisis-
jogo com o objeto de indagação. Quando descobrimos mo, tomando consciência deles, com a conseqüente retifi-
o fenômeno, estamos além disso criando conscientemen- cação. Por outro lado, não se trata de obter uma modifica-
te o esquema referencial para percebê-Io; mas, para con- ção do esquema referencial em um sentido ou modalidade
seguir isso, é preciso uma longa experiência prévia com prefixada, nem de conseguir um esquema referencial já
o objeto, que leve a produzir uma impregnação progres- completo ou estruturado. A aprendizagem consiste, funda-
siva e gradual do sujeito pelo objeto, até o momento em mentalmente, e de modo ótimo, em obter a possibilidade
que ocorre o salto dialético e o esquema referencial se de uma permanente revisão do esquema referencial, em
torna consciente. O esquema referencial consciente não função das experiências de cada situação, tanto dentro do
é a única coisa importante, mas também o são todos os grupo como fora dele. Trata-se, portanto, de aprender a
seus componentes inconscientes ou dissociados que manter um esquema referencial plástico e não estereotipa-
entram emjogo e que, não sendo conhecidos, distorcem do como instrumento que se vai continuamente retifican-
ou bloqueiam a aprendizagem. Em grande parte, o es- do, criando, modificando e aperfeiçoando.
quema referencial é o a priori irracional do conheci- O esquema referencial constitui, em síntese, uma cer-
mento racional e do trabalho científico. Sua revisão no ta integração unitária do mundo e do corpo, e com ele
_8_0 Temas de psicologia

controlam-se tensões e impede-se a irrupção traumáti- sas, etc., bem corno as específicas de alguns campos
ca de situações ou fatos novos. A graduação das ansie- científicos: psiquiatria, psicologia, etc. O problema, muito
dades é um fator importante para a revisão do esquema difundido, de ambigüidade e coexistência não questio-
referencia1. nadas de elementos de ideologias opostas tende a ser
No grupo operativo, constrói-se paulatinamente um resolvido nessa tarefa do grupo operativo. Devemos con-
esquema referencial grupal, que é o que realmente pos- seguir que a ideologia sej a um instrumento para o ser
sibilita a sua atuação corno equipe, com unidade e coe- humano e não que ele se transforme em instrumento da
rência. Isso não quer dizer que todos pensem igual, o que, ideologia. Também não se trata de considerar as ideo-
em última instância, seria o contrário do que desejamos logias corno fenômenos nocivos, mas, isso sim, de que
do grupo operativo. Unidade não significa, em seu sen- o grupo as utilize e, operando com elas, submeta-as à
tido dialético, exclusão de opostos, mas, inversamente, prova e verificação; de que possam ampliar-se e retifi-
a unidade inclui e implica a existência de opostos em car-se, e tenham integração, coerência, força diretriz e
seu seio. Essa é a verdadeira unidade de um grupo ope- convicção. No grupo operativo procuramos fazer com
rativo. O ótimo se dá quando existe urna máxima hete- que cada um utilize seus esquemas referenciais, assim
rogeneidade dos integrantes com máxima homogenei- corno suas ideologias. O resto acontece sozinho.
dade da tarefa.
O esquema referencial é sempre urna parte integran-
te das ideologias, e estas entram, sempre e inevitavel-
mente, no grupo operativo tanto corno em toda tarefa
de ensino e aprendizagem. Deve-se conseguir que cada
membro trabalhe com a sua ideologia, e isto constitui a A tarefa de aprender e o terna correspondente ca-
sua melhor crítica e revisão; não se trata de defendê-Ia nalizam a atenção direta do grupo e de seu coordena-
em urna exposição teórica, mas de usá-Ia. Aparecerão, dor; mas, embora dando atenção à tarefa, o que funda-
então, dificuldades e dissociações, bem corno contradi- mentalmente nos interessa são os seres humanos nela
ções e coexistência de ideologias excludentes ou de seg- implicados, de tal maneira que, sem poder separar tare-
mentos não integrados. A ideologia é integrada e defen- fa e participantes, urna boa tarefa é simultânea à inte-
dida quando se trabalha com ela e não falando sobre ela. gração e à aprendizagem grupa1. A relação entre tarefa
Incluímos nestas considerações as ideologias de todo ou objetivo e os seres humanos implicados verifica-se
tipo: políticas, científicas, sociais, econômicas, religio- através da análise do esquema referencial e da graduação
das ansiedades que isso implica. A informação que deve culado às teorias que afirmam que o aparecimento de
ser assimilada constitui o conteúdo manifesto, enquanto condutas na área da mente depende da possibilidade de
o esquema referencial é o conteúdo latente; precisamos transferir respostas.
trabalhar e dar atenção a ambos, permanentemente. Nos grupos operativos, o processo de aprendizagem
O grupo operativo trabalha a partir de certa infor- só se estabelece e se leva a cabo ao se regular a distan-
mação, porém ela pode aparecer de diferentes maneiras cia com o objeto de conhecimento. Existe uma distância
no grupo; pode ser trazida diretamente em forma inte- ótima, que corresponde a uma ansiedade ótima, acima
lectual e, nesse caso, o grupo reconstrói a totalidade a ou abaixo da qual a aprendizagem fica prejudicada. Um
partir do que foi trazido fragmentado por seus membros, princípio técnico básico, que E. Pichon-Riviere cha-
e as dificuldades são examinadas em função do fracio- mou a "regra de ouro" da técnica dos grupos operativos,
namento e das omissões e distorções. O grupo enrique- é respeitar o emergente do grupo, ou seja, trabalhar com
ce a informação à medida que a reconstrói, e quando a a informação que o grupo atualiza a cada momento e
aprende, ela já é superior à informação originariamente que corresponde ao que momentaneamente pode admi-
fragmentada. Porém, a informação pode ser levada ao tir e elaborar. Respeitando o emergente, mantém-se e
grupo de forma latente ou, então, através de uma atuação. trabalha-se a distância com o objeto de conhecimento
Neste último caso, o grupo, ou alguns de seus integran- que o grupo pode tolerar.
tes, representa a informação; se, por exemplo, o tema é Sem ansiedade não se aprende, e com muita ansie-
o da família do esquizofrênico, o grupo operativo pode dade também não. O nível ótimo é aquele no qual a an-
representar ou atuar com alguma das características so- siedade funciona como um sinal de alarme. Existem duas
bre as quais tenha se informado. Esse é um aspecto mui- condutas grupais extremas e típicas: uma é aquela na
to atraente, que aparece quase sistematicamente nos gru- qual não existe ansiedade e o grupo não trabalha; já "sa-
pos operativos que trabalham no ensino da psiquiatria, bem tudo" e não existem dúvidas, de modo que fica blo-
embora não se observe o mesmo no sentido da psicolo- queado o aparecimento de qualquer novo emergente. No
gia. É possível que uma das causas seja o grau de ansie- primeiro caso, deve-se questionar a ansiedade em fun-
dade despertada pela informação, no sentido de que a ção do tema; não é raro surgir uma situação de desper-
uma ansiedade maior corresponde uma maior identifi- sonalização, no grupo ou em algum de seus membros.
cação, enquanto para uma ansiedade menor a informa- No segundo caso, deve-se questionar o bloqueio, tam-
ção pode ser recebida ou incorporada simbolicamente, bém em função do impacto do tema. Em ambos há um
como conteúdo intelectual. Isso está estritamente vin- obstáculo epistemológico agindo: através de uma rup-
tura muito brusca do esquema referencial num caso, e Em toda aprendizagem aparecem simultaneamente,
da estereotipia no outro. coexistindo ou alternando-se, tanto ansiedades paranói-
O desconhecido é perigoso (persecutório) e pode des como depressivas: as primeiras, pelo perigo que re-
desorganizar as defesas do grupo, que se vê, então, inva- presenta o novo e desconhecido, e as segundas, pela
dido pelo tema. Na outra situação, também freqüente, perda de um esquema referencial e de um certo vínculo
deve-se fazer com que o cotidiano e comum, o já co- que a aprendizagem sempre envolve.
nhecido, torne-se "estranho". Quer dizer, mostrá-Io sob Deve-se graduar a quantidade e o momento da infor-
aspectos diferentes dos estereotipados; dessa maneira, mação para não tornar maciças as ansiedades, caso em
inclusive o cotidiano e o comum convertem-se em obje- que a desorganização pode chegar a uma ansiedade con-
to de indagação e aprendizagem, porque o desconheci- fusional. Em toda aprendizagem existem sempre, no mo-
do está presente, inclusive, nos fenômenos correntes. mento de ruptura de estereótipos, certos momentos de
Deve-se "tornar estranha" a experiência corrente, atitu- confusão, que são etapas normais. Esta confusão, no en-
de que, por outro lado, é o procedimento de indagação, tanto, deve ser dosada de modo a permitir que essas etapas
entre outros, do artista, que nos apresenta o cotidiano sob possam ser discriminadas, trabalhadas e elaboradas.
uma nova faceta ou sob um enfoque, ou perspectiva, real, No grupo operativo, resumindo, podem existir três
mas diferente do que temos habitualmente. reações típicas, segundo o tipo de ansiedade predomi-
Desse modo, na realidade, aprender não é senão nante: a reação paranóide, a depressiva e a confusional,
aprender a indagar. Não há investigação possível sem que aparece quando o objeto de conhecimento ultrapas-
ansiedade no campo de trabalho, provocada pelo des- sa a capacidade de discriminação e de controle do ego,
conhecido que, por ser desconhecido, é perigoso. Para ou, também, quando da irrupção de temas não conheci-
investigar, é preciso manter, em qualquer idade, inclusi- dos, não discriminados: de objetos que confundem.
ve na maturidade, um pouco da desorganização ou da
facilidade para a desorganização que têm a criança e o
adolescente, a capacidade de assombrar-se. Na realida-
de, os problemas do adolescente não se resolvem nunca,
consegue-se apenas bloqueá-Ios. Para investigar, e por-
tanto, para aprender, é necessário reter ou conservar sem- A aprendizagem é um processo constituído por mo-
pre, em certa proporção, essa angústia do adolescente mentos que se sucedem ou alternam, mas que podem
diante do desconhecido. também isolar-se ou estereotipar-se; nesse caso apare-
cem perturbações. Cada um desses momentos da apren- tual, uma estereotipia do esquema referencial, ou de per-
dizagem implica que os integrantes do grupo assumam guntas que tendem a controlar;
determinadas condutas ou papéis. e) Momento confusional: a defesa (qualquer uma das
Esse problema foi especialmente estudado utilizan- anteriores) fracassa e acontece a entrada numa situação
do-se questionários entre os estudantes inscritos em um de confusão entre o eu e o objeto com seus diferentes
curso de Introdução à Psicologia na Faculdade de Filo- aspectos que não podem ser discriminados;
sofia e Letras de Buenos Aires. O questionário propu- f) Momento esquizóide: organização relativamente
nha-se detectar a atitude dos estudantes ante a psicolo- estável da evitação fóbica; há uma estabilização da dis-
gia como objeto de conhecimento. Obtiveram-se, assim, tância em relação ao objeto através do alheamento e vol-
respostas típicas. Todas as atitudes estudadas ou diag- ta para os objetos internos;
nosticadas aparecem normalmente (como momentos) no g) Momento depressivo: os diferentes aspectos do
processo de aprendizagem; cada momento desse pro- objeto de conhecimento foram introjetados e procede-se
(ou tenta-se proceder) à sua elaboração;
cesso implica uma estrutura de conduta, ou um papel,
.h) Momento epileptóide: reação contra o objeto pa-
assumidos pelo grupo ou por alguns de seus membros.
ra destruí-Io.
Podem ser reduzidos a oito, em suas formas típicas:
Se esses diferentes momentos aparecem de forma iso-
a) Momento paranóide: o objeto de conhecimento
lada e estereotipada em um indivíduo ou no grupo, é indí-
é vivenciado como perigoso e é adotada uma atitude de
cio de uma perturbação e bloqueio do processo de aprendi-
desconfiança ou hostilidade ou, então, há uma reação
zagem. Cada integrante do grupo tem mais facilidade para
direta com a ansiedade correspondente;
assumir momentos diferentes desse processo; o que indivi-
b) Momento fóbico: o objeto de conhecimento é evi- dualmente constitui um defeito da aprendizagem converte-
tado, estabelecendo-se uma distância em relação a ele, se numa virtude na tarefa grupal quando cada um intervém
fugindo-se ao contato ou à aproximação; com seu papel. Em outros termos, com os papéis indivi-
c) Momento contrafóbico: precipitação compulsiva duais refaz-se, no grupo, o processo total da aprendiza-
ou agressiva sobre o objeto de conhecimento que é ata- gem, tendo em conta que cada integrante pode assumir
cado ou ridicularizado; funcionalmente papéis diferentes conforme o tema, os mo-
d) Momento obsessivo: tentativa de controle e imo- mentos ou níveis da aprendizagem.
bilização do objeto de conhecimento e um controle da O treinamento do grupo para funcionar como equi-
distância em relação a esse objeto por meio de um ri- pe depende da inserção oportuna de cada papel (de ca-
da momento de aprendizagem) no processo total, de tal nagem. Porém, o processo da comunicação faz com que,
maneira que, como totalidade, se alcance uma aprendi- na tarefa do grupo, cada um incorpore o "outro genera-
zagem de alto nível e de grande resultado. lizado", como G. Mead denominou a introjeção dos pa-
Como exemplo, tomemos o caso do papel esqui- péis dos outros integrantes. Dessa maneira, cada um
zóide: o indivíduo que o assume tem a qualidade de ser vai incorporando momentos dos demais e retifica as-
muito bom observador, mas comunica com dificuldade sim, paulatinamente, sua própria estereotipia: com isso
seus dados e os elabora deficientemente. Considerado
atinge-se não só um alto rendimento grupal, como, tam-
individualmente, tem, por sua estereotipia no papel,
bém, uma integração da informação, da aprendizagem
uma perturbação da aprendizagem, porque só realiza
e do eu de cada membro. Isso é comprovado no fato de
um momento dela. Porém, localizado na tarefa da equi-
que, progressivamente, cada um deles vai alternando seus
pe, por sua inserção no contexto da tarefa, converte-se
papéis, "desempenhando" o papel dos demais, incorpo-
em um momento importante e altamente frutífero da
rando desse modo os diferentes momentos da aprendi-
totalidade do processo. É complementado, por exem-
zagem e conseguindo maior integração do eu. Às vezes,
plo, com o papel (momento) depressivo, que tem a par-
a alternância dos papéis é maciça e produzem-se "vira-
ticularidade de ocupar-se da consecução de objetivos
das totais" que, também, se retificam gradualmente.
concretos e, para isso, pode aplicar-se com mais facili-
dade à elaboração de dados. É complementado, por sua
vez, com o papel (momento) obsessivo, cuja particula-
ridade é a de "especializar-se" ou preocupar-se com os
meios corretos que se devem empregar, embora sua defi-
ciência resida, justamente, em se estereotipar nesse pa- Embora já tenhamos feito uma rápida referência a
pel e perder de vista os objetivos; inserido no contexto esse tópico, sua importância justifica que, agora, nos
total da tarefa grupal, sua deficiência é compensada com ocupemos dele mais detalhadamente. A informação
os papéis dos demais e seu interesse fundamental con- que um grupo recebe é maior do que a que ele mesmo
verte-se, de uma perturbação individual, em uma ope- pode verbalizar, e isto é válido também para seus inte-
ração de alto rendimento para a tarefa grupal. grantes considerados individualmente; em outros ter-
Se a tarefa do grupo operativo se reduzisse a isso, mos, sempre se aprende mais do que se pensa, do que
estaríamos alienando seres humanos e convertendo-os se pode demonstrar verbalmente ou declarar conscien-
em instrumentos, em "parafusos" de uma única engre- temente.
90 -------- ~ Temas de psicologia Grupos operativos no ensino 91

Se a infonnação cria ansiedade excessiva, é muito pelo pensamento, ao qual o sujeito fica aderido perse-
mais provável que surja uma drarnatização ou atuação verantemente sem poder transcender para a ação, en-
da informação, que pode ser assim considerada como quanto no histérico se substitui facilmente o pensamen-
uma primeira introjeção do tema, embora sem a distân- to pela ação (dramatização). No grupo operativo, cada
cia ótima necessária, de tal maneira que se obtém uma um atua em sua medida pessoal com seu próprio "reper-
verdadeira identificação introjetiva, mas no nível cor- tório" de conduta, e em sua forma caraterística; o coor-
poral. Geneticamente, essa é a aprendizagem mais pri- denador não deve esperar nada específico de ninguém;
mitiva, porque tudo começa e tudo termina no corpo e o que cada qual dá é suficiente, e não existe maneira de
com o corpo. No princípio tudo é ação. Nesse nível dá- não dar. Cada uma das modalidades pessoais deve di-
se a regressão quando a informação recebida cria muita namizar-se e localizar-se no processo e no contexto
ansiedade. total. Só a dramatização ou só o pensar tomados isola-
Na atuação não só se dramatiz:a a informação rece- damente são momentos parciais com os quais não fica
bida, como também, e com muita freqüência, a reação à completa a indagação nem enriquecida a aprendizagem,
ansiedade que tal informação provoca: despersonaliza- porém, no interj ogo de papéis, cada um aprende que o
ção, reações fóbicas , paranóides , obsessivas, etc. Esse é que ele faz de uma maneira, outro pode fazer de forma
o material direto e vivenciado do qual nos valemos, na diferente e, em função disso, aprecia o que tem e o que
Escola Privada de Psiquiatria, paríl ensinar psiquiatria e têm os demais. O trabalho em grupo operativo valoriza
medicina psicossomática; nele se integra o aspecto fe- a contribuição de cada um e de todos, contudo é uma
nomenológico, élvivência que provoca, com a compreen- aprendizagem de modéstia e humildade no conheci-
são dinâmica da conduta, em função do vínculo grupal e mento, e das limitações humanas diante do desconhecido
do fator desencéldeante. AproveitartlOSa já tão conhecida e do conhecido.
formulação da Continuidade entre OS fenômenos normais O falar é uma terceira manifestação muito impor-
e os patológicos e integramos no estudante uma experiên- tante no grupo operativo e constitui a comunicação no
cia que dificilm~nte poderá obter de outra maneira. nível mais integrado e de resultados plenos. Sem dúvi-
Entre o pensar e o atuar existem relações muito es- da, a linguagem pode ser um atuar que paralise uma co-
treitas, e a apr~ndizagem deve ser completada com a municação mais efetiva e plena. Entre o diálogo, a elo-
intervenção de ambos; porém, com muita freqüência, qüência e a oratória, existem diferenças fundamentais
se dissociam, eXcluem ou substiwem um ao outro. As- que é necessário distinguir, em função da comunicação
sim, por exemplo, no papel obsessívo substitui-se a ação que se estabelece com eles. O falar pode ser o papel
Grupos operativos no ensino 93

especializado de um membro do grupo, e tanto pode im-


plicar facilitação da comunicação grupal como seu blo-
queio e controle: essa última alternativa se dá, por exem- Cada grupo escreve sua própria história e deve ser
plo, no caso dos que falam e não dizem nada, dos que respeitado em suas características peculiares, sem pre-
só o fazem para "tapar a boca do outro", como um total tender forçar sua operatividade nem seu rendimento; o
desligamento narcisista, ou como uma utilização neu- grupo trabalha no melhor nível que pode, em cada mo-
rótica da informação ou da bibliografia. Em todos esses mento e como totalidade.
casos existem perturbações da comunicação, uma de- O coordenador do grupo trabalha o tema com sua
gradação do nível simbólico da linguagem e uma con- técnica e de acordo com os objetivos que o grupo se pro-
seqüente perturbação da aprendizagem: devem ser cor- põe alcançar, porém sua tarefa deverá centrar-se nos
rigidos na tarefa grupal, tornando-os úteis para o traba- seres humanos que integram o grupo. A forma de tratar
lho de conjunto. o tema é o conteúdo normativo da tarefa. Em outros ter-
Aqui também, como no caso dos momentos da mos, quando se integra uma tarefa, obtém-se, ao mesmo
aprendizagem, pensar, falar e atuar, considerados de for- tempo, uma integração das personalidades dos seres hu-
ma excludente e isolada, são dificuldades da aprendi- manos que nela intervêm, integração que abrange tanto
zagem, porém no grupo operativo elas coexistem, se su- as funções instrumentais (ego) como as normativas (su-
cedem e potencializam. perego). A espiral do processo do conhecimento funcio-
Observa-se com relativa facilidade que existem ex- na não só na tarefa grupal, mas em cada um dos integran-
perts com mais sensibilidade para perceber determina- tes do grupo total, porém considerado isoladamente.
dos aspectos da informação ou para detectar certo tipo O grupo operativo nos ensina que, num grupo, pode
de conduta, conflito ou doença; existem, igualmente, ocorrer não apenas uma degradação das funções psico-
quem conte com tópicos específicos para bloquear ou lógicas superiores e uma reativação de níveis regressi-
apresentar escotomas, ou para distorcer a informação. vos e psicóticos (segundo os estudos que vão desde Le
Apesar de contar já com uma certa experiência, às vezes Bon até Bion), mas também pode-se alcançar o mais
não deixa de ser impressionante a distorção que sofre completo grau de elaboração e funcionamento dos ní-
uma informação e a diferença entre o que se disse ou se veis mais integrados e superiores do ser humano, com
quis dizer e o que o auditório entendeu, levando-se sem- um rendimento que não se pode alcançar no trabalho
pre em conta que esse último não é um conjunto unifor- individual. Todas essas grandes diferenças em sua di-
me, mas uma totalidade heterogênea e multifacetada. nâmica e seus resultados não constituem qualidades es-
Grupos operativos no ensino 9_5

senciais do grupo, mas emergentes de sua organização. to ótimo pelo simples fato de nunca haver silêncio. De-
O grupo pode, assim, tanto adoecer como curar, organi- ve-se evitar confrontos estereotipados, de tal maneira
zar como desorganizar, integrar como desintegrar etc. que as contradições se resolvam num processo dialéti-
Tudo o que se disser do grupo converte-se em uma abs- co de síntese ou de localização de cada termo contradi-
tração ou enteléquia, se não se particularizar e relacio- tório no contexto da espiral do processo dialético.
nar o grupo, o momento e a organização ou estrutura, e Nenhuma opinião ou sugestão deve ser subestima-
não se especificar se esta estrutura (por exemplo, regres- da a priori ou em nome do senso comum; se isso acon-
siva) é estável, permanente ou funcional. tecer, é indispensável que seja assinalado pelo coorde-
A técnica do grupo operativo só pode ser aprendida nador do grupo. Deve-se seguir o sentido do possível,
através da experiência pessoal, da mesma maneira que sem que isso impeça examinar as linhas ou direções mais
a base fundamental de uma preparação psicanalítica só inesperadas, da mesma maneira que se deve atentar pa-
pode ser aprendida passando-se pela análise. ra o ajuste plástico dos fins ou objetivos aos meios dis-
O funcionamento de um grupo operativo oscila en- poníveis no momento. Deve-se ajudar o grupo a sair
tre graus variáveis de coesão e de dispersão, sendo dos estereótipos, do já conhecido; não é dificil o coor-
todos eles necessários, da mesma maneira que as varia- denador do grupo canalizar para si a agressão ou hosti-
ções entre homogeneidade e heterogeneidade. Seu fun- lidade ao procurar romper estes estereótipos. Insisto
cionamento ótimo está nas condições de heterogenei- em que se deve ajudar e não impor, respeitando o tem-
dade de papéis e dispersão integrada, que também não po de que o grupo necessita para o processo de elabora-
se alcança de uma vez por todas como um nível de esta- ção. Aferrar-se ao passado (em qualquer setor) é um
bilização definitivo. A dinâmica grupal passa, necessa- estereótipo neurótico, que tende a evitar as ansiedades
riamente, por períodos de confusão, de intensidade e do presente e do novo. Da mesma maneira, o coordena-
duração diferentes e que são, certamente, por alguns dor deve devolver as perguntas que lhe são feitas e de-
momentos ou períodos, um caos produtivo, que se veri- sarmar as dependências; no caso de um integrante do
fica em todos os grupos. grupo que diz, por exemplo: "Desculpe, eu quis dizer..."
O coordenador do grupo deve procurar facilitar o o coordenador pode, para tentar desfazer a dependên-
diálogo e estabelecer a comunicação, incluindo-se aqui cia, simplesmente responder: "E por que pede descul-
o respeito aos silêncios produtivos, criadores, ou que pa?" O coordenador deve fazer o possível para estabe-
signifiquem um certo insight e elaboração; não se pode lecer o diálogo entre os componentes do grupo e não
afirmar que um grupo operativo tenha um funcionamen- encampar tudo nem centrar tudo em si. Assim, quando
_9~6_________________ Temas de psicologia Grupos operativos no ensino 9_7

o diálogo e a comunicação funcionam bem, o coorde- ciência, irritação, agressão, etc.) será um aspecto norma-
nador não deve intervir. Não se deve ser crítico nem tivo da personalidade do menino, no sentido de que o
coercitivo com nenhum membro do grupo, seja qual levará a aprender normas de relação e de convivência ou,
for o caráter de sua intervenção; é o próprio grupo que em outras palavras, a formar ou integrar seu superego.
deve aprender a trabalhar e retificar as atitudes ou O mesmo acontece nos grupos operativos, nos quais a
intervenções evasivas, paranóides ou "em disco", isto aprendizagem se propõe a ser muito mais que a forma-
é, a intervenção daqueles que sempre repetem a mesma ção de uma equipe para trabalhar com conhecimentos.
coisa ou citam bibliografia, em lugar de participar com Nosso objetivo é o enriquecimento do ser humano
sua própria contribuição, pensando e intervindo ativa- na tarefa; isto - além de outras coisas - diferencia o
mente. É evidente que estão excluídos os conselhos por grupo operativo de outras técnicas, tais como o brain-
parte do coordenador, que também não deve assumir os storming (promoção de idéias, tempestade cerebral),
papéis que são projetados nele, como no caso, por nas quais a atenção é colocada fundamentalmente na
exemplo, dos grupos que perguntam insistentemente e obtenção de novas idéias e não no melhoramento dos
pedem informação, que querem aprender rapidamente seres humanos e da relação interpessoal (técnicas de
e se queixam de estar perdendo tempo. Pode-se resumir Osborn, Gordon, Philips etc.).
as qualidades do coordenador em três palavras: arte,
ciência e paciência.
De modo algum o coordenador deve esquecer que
na técnica operativa interessam-nos os resultados da tare-
fa ou do tema, e que parte de nossa função é preocuparmo-
nos com os seres humanos que intervêm, de tal modo O grupo operativo deve funcionar com um tempo li-
que a forma de realizar a aprendizagem tenha efeito nor- mitado e previsto, e com freqüência regular. Não res-
mativo. Para compreender melhor, pensemos no exem- tam dúvidas de que é melhor fazê-Io em sessões de mais
plo seguinte: suponhamos que uma mãe ensine seu fi- de uma hora de duração, porque geralmente é depois
lho a brincar com massa plástica e lhe mostre como se dos primeiros 50 ou 60 minutos que começa o melhor
faz um boneco. Nesta tarefa, o menino estará aprenden- rendimento. Isso está em total contradição com a nor-
do um hábito instrumental ou, em outros termos, estará ma tradicional das aulas de uma hora, baseadas no fato
formando ou integrando seu ego. Mas existe algo mais: de que a atenção se esgota ao cabo desse tempo; quan-
a forma com que a mãe o ensina (com carinho, impa- do se trabalha de maneira diferente, o grupo, logo após
Grupos operativos no ensino 9_9

esse período, relaxa ou distende e começa a trabalhar ção ideológica, filosófica ou política, mas que a empre-
em nível superior. gue de tal maneira que perturbe seu próprio 'desenvolvi-
E. Pichon-Riviere insistiu reiteradamente no alto mento ou o desenvolvimento de sua ideologia.
rendimento do trabalho acumulativo, ou seja, durante Estudou-se detidamente o fenômeno da contradição
várias horas seguidas e, inclusive, diariamente. A expe- entre a nossa maneira de ensinar e de organizar o ensi-
riência confirma amplamente essa afirmação; é notá- no e o regime de exames. Neles, em razão da grande
vel a falta de cansaço nos grupos que trabalham bem, quantidade de estudantes e do escasso número de pro-
sem tensões, ou resolvendo-as à medida que aparecem. fessores, exige-se somente informação, quando na rea-
lidade, o examinando foi preparado para ter critério e
pensamento psicológico; o estudante fica muito frus-
trado porque, dentro do escasso tempo que cada aluno
dispõe, ele não pode demonstrar o que aprendeu. Com
Dedicaremos algumas palavras ao relato de situações freqüência, os estudantes solicitam que o exame conti-
típicas ou freqüentes, observadas em nossa experiência, nue e que se lhes pergunte mais e sobre outras coisas.
especialmente na cadeira de Introdução à Psicologia. Vêm dispostos - com toda razão - a manter, durante o
Observou-se que alguns estudantes, em seu primeiro exame, um diálogo com o professor e não a que se exija
contato com a psicologia, tratam de decidir rapidamente deles respostas concretas e rápidas.
que posição tomar, e outros, que já têm uma posição to- Outro problema que se comprovou com certa fre-
mada, tendem a defendê-Ia e a fazer proselitismo. A qüência é que os exames parciais coincidem com mo-
compulsão para afiliar-se rapidamente a uma escola, mentos de elaboração ou de confusão na aprendizagem
quando ainda não se conta com os elementos de juízo e, portanto, os estudantes não terminaram de elaborar e
necessários, constitui uma perturbação da aprendizagem integrar o tema quando já se exige que se submetam às
e da formação científica, porque se utiliza a afiliação co- provas.
mo um objeto protetor e, assim, configura-se uma este- Os estudantes afirmam, com freqüência, que a maté-
reotipia. O mesmo acontece com aqueles que se dispõem ria toma-se fácil porque aprenderam a trabalhar e estudar
a ficar sempre contra outros (os "do contra"), fazendo com prazer, e também é freqüente entregarem "traba-
consistir nisso, fundamentalmente, sua "aprendizagem". lhos" nos quais estudaram um tema, emitiram opiniões
Não se trata de impedir que o estudante tenha uma posi- pessoais e solicitam a opinião dos professores.
A tarefa foi, em resumo, muito proveitosa e agra- o grupo como instituição eo
dável. Os problemas que se colocam dependem, bem grupo nas instituições
mais, da relação com a organização institucional do en-
sino, porém - como disse Freud - já que se invocaram Conferência pronunciada na V Jornada Sul-
os fantasmas, não é o caso de sair correndo quando eles Riograndense de Psiquiatria Dinâmica de Porto
aparecem. Alegre, de I? e 2 de maio de 1970, a convite
dos organizadores.

Meu propósito é contribuir com uma certa experiên-


cia, um certo conhecimento e uma boa dose de reflexão
para repensar o conceito generalizado do que é um gru-
po e o que é um grupo numa instituição. Na concepção
generalizada do que é um grupo, incluo aquela defini-
ção que o postula como "um conjunto de indivíduos que
interagem entre si compartilhando certas normas numa
tarefa".
Ocupei-me dessa questão em outras oportunidades,
tomando como ponto de partida o problema da simbio-
se e do sincretismo. Entendo por isso os estratos da per-
sonalidade que permanecem em estado de não discrimi-
nação e que existem em toda constituição, organização
e funcionamento de grupo, baseados numa comunica-
ção pré-verbal, subclínica, difícil de detectar e concei-
tualmente dificil de caracterizar. Em função disso, temos
de formular fenômenos comum tipo de pensamento e
categorização, cuja estrutura está muito distante deles.
o grupo como instituição e o grupo nas instituições 1_03_

Minhas postulações nesse sentido me levam a con- preensão dos dinamismos grupais que chegamos a ter
siderar, em todo grupo, um tipo de relação que é, para- desses estratos mais integrados da personalidade; con-
doxalmente, uma não-relação no sentido de uma não- cordo com essa afirmação, porém, de qualquer modo,
individualização que se impõe como matriz ou como creio necessário o aprofundamento nos conhecimentos
estrutura básica de todo grupo e que persiste, de manei- da parte clivada da personalidade ou do grupo, já que é
ra variável, durante toda a sua vida. Chamarei esta rela- aqui (através de sua mobilização) que deparamos com
ção de sociabilidade sincrética para diferenciá-Ia da so- um trabalho terapêutico mais profundo, embora muito
ciabilidade por interação, com a qual se estruturou nos- mais incômodo e difícil. As crises mais profundas que
so conhecimento atual de psicologia grupal. um grupo atravessa devem-se à ruptura dessa clivagem
A existência ou a identidade de uma pessoa ou de um e ao surgimento, na seqüência, dos níveis sincréticos.
grupo são dadas na ordem do cotidiano e manifestadas
A identidade - paradoxalmente - não é dada só pelo
pela estrutura e integração que alcança o ego individual e
ego, mas também pelo ego sincrético.
grupal em cada caso; considerando como ego grupal o
Quero agora abordar esse problema procurando cap-
grau de organização, amplitude e integração do conjunto
tá-Io e torná-Io mais visível através do exame dos aspectos
daquelas manifestações incluídas no que chamamos ver-
institucionalizados do grupo, ou seja, daqueles padrões,
balização, motricidade, ação, juízo, raciocínio, pensa-
normas e estruturas que se organizaram ou que já vêm or-
mento, etc. Porém, esta individualização, personificação
ganizados de uma maneira dada. Para esse objetivo neces-
ou identidade que um indivíduo ou um grupo têm ou es-
sito descartar, por razões metodológicas e didáticas, os
peram ter baseiam-se necessariamente numa certa imobi-
lização dos estratos sincréticos ou não discriminados da grupos nos quais a clivagemjá vem rompida ou não exis-
personalidade ou do grupo. Descrevi em outros artigos te, tal como ocorre, por exemplo, em certos grupos de psi-
como se instala entre ambos os estratos da personalidade cóticos ou personalidades psicopáticas. Feita esta primei-
(ou da identidade) uma forte clivagem que impede que ra delimitação, quero considerar os aspectos institucionais
entrem em relação um com o outro; pela imobilização do grupo terapêutico que funciona fora das instituições, e,
dos aspectos sincréticos permite-se a organização, a mo- em segundo lugar, os grupos terapêuticos que funcionam
bilização, a dinâmica e o trabalho terapêutico dos aspec- em instituições. Embora essa última divisão seja útil por
tos mais integrados da personalidade e do grupo. razões expositivas e de pesquisa, tenho desde já de obser-
Pode-se alegar que, embora seja realmente assim, var, em outro nível, que, com freqüência, não me ocupa-
isso não tira o valor do trabalho terapêutico e da com- rei só de grupos terapêuticos da experiência psiquiátri-
o grupo como instituição e o grupo nas instituições 1~05~

ca, mas também de outros tipos de grupo, fazendo par- exame mais detalhado pode levar à conclusão, como
te, todos, do nosso trabalho em dinâmica. penso, de que essa serialidade é, justamente, o fundo de
Um grupo é um conjunto de pessoas que entram em solidariedade, de indiscriminação ou sincretismo que
interação entre si, porém, além disso, o grupo é, funda- constitui o vínculo mais poderoso entre os membros do
mentalmente, uma sociabilidade estabelecida sobre um grupo. Sem ele a interação não seria possível.
fundo de indiferenciação ou de sincretismo, no qual os Nesta descrição, assim como em outras que virão a
indivíduos não têm existência como tais e entre eles atua seguir, quero que se considerem as limitações da lingua-
um transitivismo permanente. O grupo terapêutico ca- gem e da organização do nosso pensamento conceitual
racteriza-se também por essas mesmas qualidades, acres- para captar níveis muito diferentes de sociabilidade; des-
cido o fato de que um dos integrantes do grupo (o tera- sa sociabilidade muito particular, que se caracteriza por
peuta) intervém com um papel especializado e predeter- uma não-relação e por uma indiferenciação, na qual ca-
minado, mas isso (essa última função) se realiza sobre da indivíduo não se diferencia do outro ou não se acha
uma base na qual o terapeuta está envolvido no mesmo discriminado do outro, e na qual não existe discrimina-
fundo de sincretismo que o grupo. ção estabelecida entre eu e não-eu, nem entre corpo e
Aparentemente a lógica do senso comum nos mos- espaço, nem entre eu e o outro.
tra, com evidência, que um conjunto de pessoas pode
ter um encontro marcado em hora e local determinados Uma limitação a que me quero referir, porque pesa-
por um terapeuta e que o grupo começa a funcionar quan- rá muito na possibilidade de podermos nos entender,
do essas pessoas diferentes, até então separadas, estão diz respeito às diferenças entre o ponto de vista natura-
a uma distância suficiente e relativamente isoladas de lista e o ponto de vista fenomenológico. Por ponto de
outros contextos como para poder interatuar. vista naturalista entendemos a descrição de um fenô-
Poderia recordar, a esse respeito, a concepção sar- meno realizada por um observador que o descreve "de
treana que afirma que enquanto não se estabelece a in- fora", quer dizer, como um fenômeno da natureza que
teração não existe o grupo, mas somente uma "seriali- existe independentemente do sujeito observador, e, nes-
dade", no sentido de que cada indivíduo é equivalente a te sentido, a definição do grupo como "conjunto de in-
outro e todos constituem um número de pessoas equi- divíduos que interatuam com papéis, status etc." é uma
paráveis e sem distinção entre si. descrição tipicamente naturalista.
Aparentemente a concepção sartreana nega o que Por descrição ou observação fenomenológica, deve-
estou afirmando como tese nesta exposição, porém um mos entender aquela que se realiza a partir do interior
dos próprios fenômenos, tal como são percebidos, vi- Referir-me-ei brevemente às implicações desse en-
venciados ou organizados pelos que participam do fe- foque. Um pequeno exemplo poderá servir para ilustrar;
nômeno ou de um acontecimento dado. não demonstrará nem abrangerá a totalidade desses pro-
Nesse sentido, com muita freqüência vejo-me obriga- blemas. Trata-se somente de um exemplo:
do, por limitações semânticas e conceituais, a descrever fe- Numa sala encontra-se uma mãe lendo, olhando a
nômenos a partir do ponto de vista fenomenológico com tela da televisão ou costurando; na mesma sala encon-
uma linguagem que corresponde ao ponto de vista natura- tra-se seu filho concentrado e isolado em seu brinquedo.
lista: incorro nisto, por exemplo, quando digo que, para Se nos guiamos pelos níveis de interação, não va-
certo nível, um grupo se caracteriza por uma não-relação mos encontrar comunicação entre essas duas pessoas:
ou por um fenômeno de não discriminação entre os indiví- não se falam, não se olham, cada um atua independen-
duos e entre o ego e os objetos. Esta última definição, que temente, de modo isolado, e podemos dizer que não há
tenta abranger ou tenta ser construída a partir de um ponto interação ou que estão incomunicáveis.
de vista fenomenológico, realiza-se por meio da negação Isto é correto se considerarmos somente os níveis
da descrição do ponto de vista naturalista. A esse respeito de interação. Continuemos com o exemplo: a mãe, num
penso, por exemplo, que muito do que descrevemos como determinado momento, deixa o que estava fazendo e
identificação projetiva e introjetiva corresponde a uma sai da sala; o menino pára imediatamente sua brinca-
descrição naturalista daquilo que, do ponto de vista feno- deira e sai correndo para estar com ela. Agora podemos
menológico, corresponde ao sincretismo. compreender que quando a mãe e seu filho estavam ,
Estaria fora de lugar e levaria muito tempo ocupar- cada um numa tarefa distinta, sem se falar e incomuni-
me das relações entre as observações realizadas a partir cáveis nos níveis de interação, sem dúvida havia entre
de um ponto de vista fenomenológico e aquelas realiza- eles uma ligação profunda, pré-verbal, que nem sequer
das a partir de um ponto de vista naturalista, e além disso, necessita das palavras ou que, pelo contrário, as pala-
essas relações estão ainda num terreno de muita contro- vras perturbam. Em outros termos, enquanto falta a in-
vérsia e não existe acordo sobre elas. Assim, há quem teração, enquanto não se falam nem se olham, está pre-
veja nesses dois pontos de vista posições excludentes, sente a sociabilidade sincrética, na qual cada um dos
enquanto outros vêem posições complementares, e ou- que, de um ponto de vista naturalista, pensamos que se-
tros (entre os quais me incluo) vêem descrições limita- jam pessoas isoladas, acham-se em um estado de fusão
das à espera de um ponto de vista unitário que mantenha ou de indiscriminação. Este grupo pode servir de exem-
e supere ambas (Au.fhebung). plo daquilo que freqüentemente o silêncio significa nos
grupos terapêuticos, e de como o modelo da comunica- para todos os indivíduos. Cada um dos integrantes da
ção verbal tende às vezes a distorcer ou ocultar a com- "fila" conta com essa segurança, de tal forma que nem
preensão desse fenômeno. sequer chega a ter consciência dela, tanto que o próprio
Para evitar equívocos, devo dizer que admito que uma Sartre foi levado a ignorá-Ia. Podemos nos comportar
mãe e um menino que se comportem sempre, única e como indivíduos em interação na medida em que parti-
exclusivamente desta maneira darão lugar a uma séria cipamos de uma convenção de modelos e normas que
perturbação no desenvolvimento da personalidade e da são mudas, mas que estão presentes e graças às quais
relação entre ambos, mas ainda assim acredito que, quan- podemos, então, formar outros modelos de comporta-
do falta o nível de sociabilidade sincrética, também exis- mento. Para que haja interação, deve haver um fundo
te uma perturbação muito séria no grupo e no desenvol- comum de sociabilidade. A interação é a figura de uma
vimento da personalidade de cada um. Vejo a falta de um Gestalt sobre o fundo da sociabilidade sincrética. Pode-
marco para essa sociabilidade sincrética, por exemplo, se dizer que o segundo é o código do primeiro.
nas personalidades psicopáticas, fáticas, ambíguas, as Quando um conjunto de pessoas marcam hora, en-
if de H. Deutsch. quanto pessoas, para um grupo terapêutico e têm seu
Retomando o exemplo, o menino isolado brincan- primeiro encontro no consultório do terapeuta ou num
do pode precisamente estar isolado e conseguir brincar lugar até então desconhecido para todos, todo terapeuta
(com tudo o que brincar significa, do ponto de vista psi- observa, de imediato, fenômenos que catalogamos como
cológico) na medida em que tenha a segurança de man- reações paranóides, e penso que todos concordam em
ter clivada em um depositário fiel a sociabilidade sin- considerar essas reações paranóides como normais, sig-
crética (simbiose). nificando medo de uma experiência nova e medo do des-
Um dos exemplos que Sartre apresenta como típico conhecido. Pode haver alguma diferença na formulação,
da serialidade é o de uma "fila" de pessoas esperando mas podem ser todas reduzidas à experiência que aca-
um ônibus; ele supõe que a característica fundamental bo de enunciar.
da serialidade consiste em que cada um dos integrantes Não ponho em dúvida a existência da reação para-
dessa "fila" é um indivíduo totalmente isolado; esses nóide. O que ponho em dúvida é que, através dessa for-
indivíduos, enquanto números, são intercambiáveis um mulação, possamos entender, realmente, aquilo que ocor-
pelo outro. Para mim, ainda no exemplo de uma "fila" re de mais importante ~esse momento. Quando dizemos,
à espera de um ônibus, está presente a sociabilidade sin- nesse caso, que o grupo reage com medo de uma expe-
crética depositada nos modelos e normas que vigoram riência nova, do indeterminado ou do desconhecido, es-
tamos dizendo uma verdade muito mais ampla do que a ca imersão numa identidade grupal que está mais além
que nós mesmos reconhecemos e que, portanto, o grupo ou mais aquém da identidade convencional que reconhe-
também não pode reconhecer, a não ser apenas os as- cemos como tal, constituída pelos níveis mais integrados
pectos superficiais dessa afirmação. Não é somente o da personalidade. Dito de outra maneira, estamos assina-
novo que produz medo, mas sim o desconhecido que lando o medo, por parte do grupo, de uma regressão a ní-
existe dentro do conhecido (recorde-se que isto é a es- veis de uma sociabilidade sincrética que não está consti-
sência do estranho: Unheimlich). tuída por uma inter-relação ou interação, mas que exige
Quando assinalamos as ansiedades paranóides, o uma dissolução de individualidades e a recuperação dos
medo do desconhecido ou da situação nova, estamos níveis da sociabilidade incontinente, como a chamou
realmente dizendo ou assinalando (embora sem com- Wallon, que não aparecem nesse momento, mas que es-
preender no todo) que o medo se produz diante do des- tiveram presentes já antes de vir ao grupo e desde o pri-
conhecido que cada pessoa traz consigo em forma de meiro momento do encontro no grupo.
não-pessoa e em forma de não-identidade (ou de ego Quero insistir em que estou falando, neste momen-
sincrético). Em outros termos, para sermos mais claros, to, de grupos terapêuticos integrados por pessoas neu-
o que estamos dizendo com a formulação das ansieda- róticas, isto é, pessoas que conservam ou atingiram um
des paranóides é o medo de não poder continuar rea- bom nível de integração da personalidade apesar das di-
gindo com os modelos estabilizados que já assimilaram ficuldades ou da sintomatologia neurótica que apresen-
enquanto pessoas e o medo do encontro com uma so- tam. Esta observação é pertinente e deve ser reiterada
ciabilidade que as destitua enquanto pessoas e as con- neste momento, dado que alguns grupos formados por
verta em um só meio homogêneo, sincrético, no qual pessoas que não alcançaram um certo grau de individua-
cada um não sobressaia enquanto figura (como pessoa) lização ou de identidade individual buscam, de início,
do fundo, mas que submerja nesse mesmo fundo, o que o estabelecimento de uma situação simbiótica de depen-
implica uma dissolução da identidade estruturada pelos dência e de identidade grupal; e esta última é tudo o que
níveis mais integrados do ego, do self ou da personali- podem obter.
dade. O medo é dessa organização e não só da desorga- A identidade grupal tem dois níveis em todos os gru-
nização; visto de fora e do ponto de vista naturalista, pos: um é o da identidade proporcionada por um traba-
poderemos continuar reconhecendo indivíduos ou pes- lho em comum e que chega a estabelecer modelos de
soas, porém, do ponto de vista fenomenológico, signi- interação e modelos de comportamento que são institu-
fica perda de identidade (de uma identidade) e signifi- cionalizados no grupo; essa identidade é dada pela ten-
o grupo como instituição e o grupo nas instituições 1_13_

dência à integração e interação dos indivíduos ou pes- Um dos tipos corresponde aos indivíduos dependen-
soas. Porém, outra identidade que existe em todos os tes ou simbióticos que vão utilizar de imediato o grupo
grupos, e que às vezes é a única (ou a única que se atin- como um grupo de dependência ou de pertencimento e
ge em grupo), é uma identidade muito particular que que tentarão estabilizar sua identidade através da iden-
podemos chamar identidade grupal sincrética. Essa não tidade grupal como identidade mais completa alcança-
é dada com base numa integração, numa interação em da por eles no curso da evolução. Trata-se de indivíduos
modelos de níveis evoluídos, mas com base numa so- para os quais a organização simbiótica persistiu mais
cialização em que esses limites não existem e cada um do que o necessário, ou então nunca foi suficientemen-
daqueles que, do ponto de vista naturalista, vemos co- te normal para poder se dissolver e dar lugar aos fenô-
mo sujeitos ou indivíduos ou pessoas não têm identida- menos de individuação e personificação. Procurarão
de enquanto tal, mas sua identidade reside no seu per- transformar o grupo, de forma manifesta, em uma or-
tencimento ao grupo. ganização estável: a interação será superficial, com uma
Podemos estabelecer aqui uma equiparação, uma tendência a não dar lugar ao processo grupa1.
equivalência, ou uma fórmula, dizendo que quanto maior Um segundo tipo é o daqueles indivíduos, aos quais
for o grau de pertencimento a um grupo, maior será a me referi mais detidamente até agora, que chamamos
identidade grupal sincrética (em oposição à identidade neuróticos ou normais, nos quais reconhecemos a neu-
por integração). E quanto maior for a identidade por inte- rose apenas como uma parte da personalidade, na me-
gração, menor será o pertencimento sincrético ao grupo. dida em que alcançaram uma boa proporção de indivi-
Quero também referir-me sumariamente, citando duação e personificação, isto é, aquilo que comumente
apenas, ao fato de que o pertencimento é, paradoxal- chamamos de aspectos maduros ou realísticos da per-
mente, sempre uma dependência nos níveis da sociabi- sonalidade. Tenderão a mover-se na sociabilidade de in-
lidade sincrética. Existem grupos terapêuticos que bus- teração e podem apresentar-se como grupos muito ati-
cam tais fenômenos e outros que reagem com pânico ou vos, "muito motivados", mas somente em um plano e
desintegração diante deles. garantindo a clivagem. Podem acontecer muitas coisas
para que nada aconteça.
Para dar maior clareza à exposição, quero assinalar Um terceiro tipo corresponde àqueles que nunca ti-
brevemente três tipos de grupos ou três tipos de indiví- veram uma relação simbiótica e que também não irão es-
duos que podem integrar diferentes grupos ou um mes- tabelecê-Ia no grupo, a não ser após um árduo processo
mo grupo. terapêutico: entre esses incluímos as personalidades psi-
114 Temas de psicologia o grupo como instituição e o grupo nas instituições 115

copáticas, perversas, as as if personalities descritas por objetivo o objetivo propriamente terapêutico do grupo.
H. Deutsch e todas as personalidades ambíguas (entre as A organização da interação chega a um ponto em que se
quais incluo o tipo as if). Para eles, o grupo parece de- torna antiterapêutica. Isto ocorre por duas razões funda-
sempenhar um papel muito subsidiário e pouco impor- mentais ou em dois níveis: organizam-se os níveis de
tante. Não é assim. São os que tendem ao grupo de socia- interação de uma maneira fixa e estável, mas por sua
bilidade sincrética, não manifesta (mais pré-verbal). vez a fixação e a estereotipia da organização baseiam-se
Como disse, e salvo indicação em contrário, farei re- também, e fundamentalmente, no estabelecimento do
ferência apenas ao segundo tipo de pessoas ou grupos. controle sobre a clivagem entre ambos os níveis, de tal
maneira que a sociabilidade sincrética seja imobilizada.
Até aqui desenvolvi as características fundamentais Esse fenômeno corresponde ao que considero uma
do grupo para poder entender o seu papel como institui- lei geral das organizações, isto é, em todas elas os objeti-
ção e nas instituições. vos explícitos para os quais foram criadas correm sem-
O conceito de instituição foi utilizado com significa- pre o risco de passar a um segundo plano, passando ao
dos muito diferentes; aqui recorrerei a duas acepções, en- primeiro plano a perpetuação da organização como tal.
tre as muitas possíveis, que desejo esclarecer: utilizarei a E isto ocorre não só para resguardar a estereotipia dos
palavra instituição como o conjunto de normas e padrões níveis de interação, mas principalmente para resguardar
e atividades agrupadas em torno de valores e funções so- e assegurar a clivagem, a depositação e a imobilização da
ciais. Embora instituição também se defina como organi- sociabilidade sincrética (ou parte psicótica do grupo).
zação, no sentido de uma distribuição hierárquica de fun- Já assinalei que um grupo que deixou de ser um pro-
ções que se realizam geralmente dentro de um edificio, cesso para estabilizar-se como organização se transfor-
área ou espaço delimitado. Para esta segunda acepção, mou de grupo terapêutico em grupo antiterapêutico1•
utilizarei exclusivamente a palavra organização. Em outros termos, diria que o grupo se burocratizou, en-
O grupo é sempre uma instituição muito complexa, tendendo por burocracia a organização na qual os meios
ou melhor, é sempre um conjunto de instituições, mas se transformam em fins e se deixa de lado o fato de se
ao mesmo tempo tende a estabilizar-se como uma orga- ter recorrido aos meios para conseguir determinados
nização, com padrões fixos e próprios. A importância objetivos ou fins.
está no fato de que quanto mais o grupo tende a se esta-
bilizar como organização, tanto mais tende ao objetivo 1. Ampliei a compreensão desses fenômenos também à chamada
de existir por si mesmo, margeando ou sujeitando a este Reação terapêutica negativa.
116 Temas depsicologia o grupo como instituição e o grupo nas instituições 117

A tendência à organização e à burocratização (ou sa ser comentada aqui, já que é conhecida de todos e
em outros termos a tendência antiprocesso) não se deve constitui um aspecto sobre o qual se insiste mu~to na
unicamente a uma preservação ou a uma compulsão à atualidade; mas esquecemo-nos de outros tantos aspec-
repetição das interações, mas, como já assinalei, basica- tos que têm o mesmo efeito burocrático iatrogênico e
mente ao fato de se garantir a clivagem e com ela des- igual função latente: a de manter a clivagem controlan-
cobrir ou bloquear os níveis simbióticos ou sincréticos. do a sociabilidade sincrética.
Não é necessário chegar à burocratização extrema; A sociedade tende a instalar uma clivagem entre o
um grupo pode "trabalhar bem" e estar rompendo este- que considera sadio e doente, entre o que considera nor-
reótipos, e isso pode ser real, mas se dá apenas no nível mal e anormal. Assim estabelece uma clivagem muito
de interação. Se isso persiste leva o grupo a mudar per- profunda entre ela (a sociedade "sadia") e todos aque-
manentemente; na realidade, é uma mudança para não les que, como os loucos, os delinqüentes e as prostitu-
mudar: no fundo "não acontece nada" . tas, são desvios, doenças, que - s~põe-se - nada têm a
ver com a estrutura social. A sociedade autodefende-se,
Existe em tudo isso, no entanto, um aspecto de con- não dos loucos, dos delinqüentes e das prostitutas, mas
siderável importância que não quero passar por cima: de sua própria loucura, de sua própria delinqüência e de
poderia começar dizendo que toda organização tende a sua própria prostituição, e dessa maneira aliena, desco-
ter a mesma estrutura que o problema que deve enfren- nhece e trata como se fossem alheias e não lhe corres-
tar e para o qual foi criada. Assim, um hospital acaba pondessem. Isso ocorre através de uma profunda cliva-
tendo, enquanto organização, as mesmas característi- gemo Essa segregação e essa clivagem se transferem lo-
cas que os próprios doentes (isolamento, privação sen- go para os nossos instrumentos e conhecimentos. Assim,
sorial, déficit de comunicação etc.). respeitar a clivagem de um grupo terapêutico e não exa-
Nossas organizações psiquiátricas, nossas terapias, minar os níveis de sociabilidade sincrética significa admi-
nossas teorias e nossas técnicas têm também a mesma tir essa segregação sancionada pela sociedade, assim
estrutura que os fenômenos que enfrentamos. Torna- como admitir os mecanismos pelos quais determinados
ram-se - e são apenas - organizações e cumprem, por- sujeitos se tornam doentes e segregados, e também admi-
tanto, uma função igual de manutenção e controle da cli- tir o critério adaptativo de saúde e doença e sua segre-
vagem: uma tendência à burocratização. gação como "cura".
A função iatrogênica e de garantia das doenças que Não é possível, no tempo de que disponho, deta-
desempenham nossos hospitais psiquiátricos não preci- lhar as vicissitudes de cada um desses fenômenos que
118 Temas depsicologia o grupo como instituição e o grupo nas instituições 119

assinalo dentro da dinâmica grupal, porém não será di- zações. Tudo isto não é correto e é herança das concep-
fícil para o leitor extrair as conseqüências e analisá-Ias ções associacionistas e mecanicistas. O ser humano antes
em seu próprio trabalho com grupos. Pelo que nos diz de ser pessoa é sempre um grupo, mas não no sentido de
respeito mais diretamente, acrescentarei apenas que que pertence a um grupo, e sim no de que sua persona-
um stafftécnico de um hospital ou a sua equipe admi- lidade é o grupo. A esse respeito, remeto os interessa-
nistrativa tendem, também, a estruturar-se como orga- dos ao livro de Whyte, El hombre organización.
nizações, e as resistências à mudança não provêm ne- Assim, compreende-se que a dissolução ou a tentati-
cessariamente sempre ou apenas dos pacientes ou de seus va de mudança de uma organização possa ser diretamen-
familiares, mas muito mais freqüentemente de nós mes- te uma desagregação da personalidade, não por proje-
mos enquanto integramos organizações e as organiza- ção, mas porque diretamente o grupo e a organização
ções são parte de nossa personalidade. O que ocorre é são a personalidade de seus integrantes. Assim se expli-
que nas organizações, além do mais, os conflitos susci- ca a grande freqüência de doenças orgânicas graves nos
tados em níveis superiores se manifestam ou detectam aposentados recentes, e podemos entender melhor como
em níveis inferiores: ocorrerá, então, que os conflitos do o ostracismo na Grécia antiga era mais destrutivo para a
staff técnico não se manifestarão neles mesmos, mas personalidade do que a prisão e o fuzilamento.
nos pacientes ou no pessoal subalterno, assim como as Existe, então, uma espécie de transfusão nos pro-
tensões e conflitos entre os pais, com muita freqüência, blemas que estou estudando, já que insisti anteriormen-
não aparecem no nível deles, mas, como sintomas, em te que todo grupo tende a ser uma organização e agora,
seus filhos. Os exemplos serviriam pará todas as orga- ao ocupar-me de organizações, afirmo que elas consti-
nizações civis, governamentais, militares, religiosas etc. tuem partes da personalidade dos indivíduos e às vezes
toda a personalidade que eles possuem.
No parágrafo anterior, assinalei que as organizações E. Jaques afirmou que as instituições servem como
formam parte de nossa personalidade e quero retomar defesa ante ansiedades psicóticas. Esta afirmação é li-
essa afirmação muito sumariamente porque me parece mitada, e é mais correto dizer que as instituições e or-
de importância vital para o que estou desenvolvendo. ganizações são depositárias da sociabilidade sincrética
Em nossas teorias e categorias conceituais, contra- ou da parte psicótica e que isso explica muito da ten-
pomos indivíduo a grupo e organização a grupo, do mes- dência à burocracia e da resistência à mudança.
mo modo como supomos que os indivíduos existem Quando falamos de organizações e do trabalho de
isolados e se reúnem para formar os grupos e as organi- psiquiatras, psicólogos e psicoterapeutas nas organiza-
120 Temas depsicologia o grupo como instituição e o grupo nas instituições 121

ções, geralmente se subentende que nos referimos à te- lizar estão determinados não só por um esforço para re-
rapia de grupo em organizações psiquiátricas ou hospita- formar nosso furor curandis, mas também por um diag-
lares. Não nos conscientizamos, no entanto, pelo menos nóstico que permita entender qual é o grau de burocra-
em psicologia e psicoterapia de grupo, das necessidades tização ou o grau em que se produziu uma fissura pela
e problemas que nos coloca a quarta revolução psiquiá- qual a clivagem entre os níveis de integração e os níveis
trica, que pode ser definida como a orientação para a de sociabilidade sincrética já não pode ser mantida,
prevenção primária e uma concentração de esforços na bem como a existência e correlação entre as estruturas
administração de recursos. Embora tenhamos conheci- de grupo primário e as de grupo secundário etc.
mentos e técnicas de grupo bastante desenvolvidos, não Freqüentemente nossos objetivos, ao trabalhar com
é menos certo que carecemos de uma estratégia para a dinâmica de grupo em organizações, referem-se à aná-
utilização dessas técnicas e conhecimentos quando te- lise das implicações psicológicas das tarefas que se rea-
mos de trabalhar em psicologia institucional (em orga- lizam e da forma pela qual os objetivos são ou não cum-
nizações) em instituições que não sejam psiquiátricas pridos, juntando a dimensão humana ou psicológica ao
ou hospitalares. Pode acontecer também que, nestas, a trabalho que realizam e à forma pela qual o realizam.
melhor forma de administrar nossos recursos não seja Não conheço erro mais grosseiro do que transferir,
organizar grupos terapêuticos, mas sim aplicar nossos junto com as técnicas de grupo, o hospital psiquiátrico
esforços e conhecimentos na própria organização. para o hospital geral e ambos para as organizações (in-
Quando trabalhamos em organizações, em psicolo- dústrias, escolas, etc.).
gia institucional, a dinâmica de grupo é uma técnica pa-
ra enfrentar problemas organizacionais. Entretanto, para Em síntese, defini o grupo por dois níveis de socia-
utilizar essa técnica, devemos contar com uma estraté- bilidade: um é a chamada sociabilidade de interação, e
gia geral de nossa intervenção, assim como com um outro é a sociabilidade sincrética. Assinalei que o gru-
"diagnóstico" da situação da organização. po tende a burocratizar-se como organização e a fazer-se
Um dos problemas básicos nas organizaçõesnão é só antiterapêutico não só por uma reiteração de modelos
a dinâmica intragrupal, mas a dinâmica intergrupal, e dos níveis de interação, mas, fundamentalmente, pela
nosso objetivo pode não ser os grupos, mas o organo- necessidade de manutenção da clivagem (ou separação)
grama. entre ambos os níveis.
Numa organização, o recurso às técnicas de grupo Passei, então, a mostrar como as organizações têm
e a escolha do tipo de técnica de grupo que iremos uti- essa mesma função de clivagem e como nossos conhe-
cimentos e técnicas de grupo têm de ser precedidos, se Administração das técnicas e
quisermos trabalhar com dinâmica de grupo em orga- dos conhecimentos de grupo
nizações, por um estudo diagnóstico e por uma estraté-
gia dentro da qual as técnicas grupais constituem ape- Conferência pronunciada na V Jornada Sul-Ri 0-
nas um instrumento. grandense de Psiquiatria Dinâmica, Porto Ale-
Assinalei, embora sem desenvolvê-Ias em profun- gre, 1970.
didade, algumas leis das organizações, assim como al-
gumas das linhas para as quais deve tender nossa fun-
ção no plano da psiquiatria preventiva e de prevenção
primária. Mais do que um desenvolvimento exaustivo,
esta exposição tem a função de provocar, incitar ou es-
timular tanto uma mudança de nossas estereotipias teó- Na história da psiquiatria podemos contar quatro re-
ricas e técnicas, como uma mudança na administração voluções: a primeira é a realizada por Pinel, a segunda,
de nossos recursos. pela introdução de terapias biológicas e farmacológicas
(embora com uma certa defasagem entre umas e outras,
podem ser assimiladas em uma única), a terceira, pela
introdução da psicoterapia e a quarta, pela preocupação
por uma mudança na administração de recursos.
No desenvolvimento da psicoterapia de grupo, con-
tamos, embora reconhecendo nossas limitações, com re-
cursos teóricos e técnicos bastante desenvolvidos, mas
penso que temos ainda de introduzir mais sistematica-
mente essa revolução na administração dos recursos.
Como profissionais ou cientistas, somos geralmen-
te pouco propensos a nos ocupar de aspectos adminis-
trativos. Essa propensão pode ter múltiplas causas; não
quero, porém, referir-me a elas, mas sim ao processo
revolucionário de mudança que, no meu entender, fal-
taria introduzir mais sistemática e radicalmente em tudo
Administração das técnicas e dos conhecimentos de grupo 1_2~5

aquilo que se refere aos conhecimentos e técnicas con- feiçoamento de nossas técnicas, mas também da forma
cernentes à dinâmica de grupo no campo da psiquiatria como os administramos. E nesta simples palavra admi-
dinâmica. nistração reside nada menos que uma revolução psi-
Sem dúvida, por menor que seja nossa tendência a quiátrica que devemos estender (o que, em parte, já foi
ocuparmo-nos do problema da administração, precisamos feito) a nossos recursos em tudo o que se refere à tera-
nos conscientizar de que, de qualquer maneira, temos pia de grupo.
organizada uma administração. Podemos caracterizá-Ia O problema não diz respeito apenas à saúde públi-
como a do profissional que atende grupos terapêuticos ca ou à saúde mental- o que por si só seria suficiente-,
de doentes que vieram consultá-Io em sua prática pri- mas, também, à profundidade e extensão de nossas teo-
vada, no sanatório ou no hospital. Quero dizer que, de rias, bem como ao tipo de problemas que temos de en-
qualquer forma - bem ou mal-, estamos administrando frentar do ponto de vista ci~ntífico; de tal maneira que
nossos recursos, e que, se não nos queremos ocupar da a prática profissional e a investigação não são, de modo
sua administração, saibamos que, de qualquer modo, algum, independentes do fato de já termos administra-
temos uma administração a qual aceitamos, obedece- do esses recursos ou de tê-Ios mal administrados.
mos, dirigimos e impomos ou se impõe a nós, nos diri- Digo freqüentemente que nós conhecemos menos
ge e nos limita. do que deveríamos, que, além disso, sabemos menos do
Creio que muitos problemas, assim como muitas li- que o que é conhecido, e que sabemos e conhecemos
mitações e muitas questões que não podemos resolver, muito mais do que aquilo que aplicamos ou utilizamos.
estão baseados nesse tipo de administração de nossos Pode-se dizer que isso ocorre em todos os campos cien-
recursos. A administração não é independente de nos- tíficos e profissionais, e estou de acordo; isso, porém,
sas teorias, técnicas, problemas, soluções etc. não nos deve impedir de pensar no problema. Poderia
Meu ponto de vista é o de que precisamos adminis- acrescentar, a tudo isso, uma complicação que reside no
trar nossos recursos de modo diferente, incluindo entre fato de que, se administrarmos nossos recursos de mo-
eles os nossos conhecimentos, as nossas teorias e as do diferente, pode acontecer que esses recursos mudem,
nossas técnicas grupais. A palavra administração refe- aumentem ou se tornem mais eficazes. Devemos lem-
re-se a uma utilização e distribuição que gostaríamos brar que a administração dos recursos é parte de uma
que fosse diferente, mais racional e mais eficiente. A práxis, e que geralmente damo-nos por satisfeitos com
eficiência da terapia de grupo não depende exclusiva- uma práxis limitada que vá da teoria à prática, mas que
mente do desenvolvimento dos conhecimentos e do aper- teoria e prática estão em interação entre si (no melhor
dos casos), no entanto sem uma interação com contex- te desenvolvidas, não é menos certo que necessitamos
tos mais amplos; dessa maneira, a práxis não está somen- de estratégias para a utilização dessas técnicas e conhe-
te entre teoria e prática, mas, além disso, estas interagem cimentos.
com a administração dos recursos; ou então poderíamos Essa estratégia (essa mudança na administração) po-
dizer que a administração faz parte de tal prática e que de ser resumida dizendo que temos de introduzir as téc-
toda prática sempre é administrada de alguma forma nicas de grupo e nossos conhecimentos dos dinamis-
definida. Dessa maneira enfatizo que me oponho termi- mos grupais nos programas de prevenção primária; não
nantemente, por considerá-Ia errada, àquela posição que só na terapia e na prevenção de doenças mentais ou per-
supõe que a administração é função de administradores e turbações psicológicas (o que já é muito), mas que tam-
que a nossa função é exclusivamente profissional e cien- bém devemos inclinar-nos a um dos objetivos fundamen-
tífica. A razão fundamental da minha oposição reside em tais da prevenção primária, que é promover a saúde.
que nossa prática profissional e científica realiza-se den- Se admitimos a necessidade dessa colocação, precisa-
tro de um contexto administrativo particular e que, de mos, em segundo lugar, assumir o fato de que uma mudan-
uma forma ou de outra, administramos nossos recursos ça como a exigida por essa perspectiva na administração
(bem ou mal, de maneira estreita ou limitada). dos recursos significa também uma mudança nas linhas
Freqüentemente é real o ditado "em casa de ferreiro, profissionais e nas linhas ou nos contextos da investigação.
espeto de pau". Poderíamos dar muitos exemplos; limite- Temos de sair da chamada atividade intramural, e isto sig-
mo-nos, contudo, a assinalar que, assim como aplicamos nifica que precisamos não apenas alternar nossa atividade
muito pouco e utilizamos deficientemente nossos conhe- nos hospitais psiquiátricos, nos serviços psiquiátricos dos
cimentos psicanalíticos nos procedimentos de ensino da hospitais gerais, mas também alternar todas estas ativida-
psicanálise, isto é, na didática, aplicamos também de ma- des com outra que se desenvolve nos "grupos naturais", no
neira deficiente ou absolutamente não aplicamos nossos seu próprio meio e nas funções e organizações específicas
conhecimentos e nossas técnicas de grupo à administra- que eles possuem. Isso significa que em todos os lugares
ção que fazemos de nossos recursos nessa esfera do co- onde há seres humanos existem grupos e temos de ir até
nhecimento e da prática. E também não utilizamos nos- eles e não esperar que eles venham até nós. Porém ir até
sos conhecimentos dos psicodinamismos grupais para esses "grupos naturais" significa a necessidade de respei-
conseguir mudanças com uma administração diferente. tar o meio, os objetivos, as funções e as organizações espe-
Poderia dizê-Io em outras palavras: que, apesar de cíficas dentro dos quais se desenvolvem os grupos huma-
possuirmos conhecimentos e técnicas de grupo bastan- nos, e entenda-se que não estou falando somente da ativi-
_1_2_8 Temas de psicologia

dade ou do trabalho, mas também do ócio e da recreação e no sentido de que a forma pela qual se realiza a "inser-
de outras inúmeras coisas que não enumero. ção" do profissional pode, em grande parte, marcar ou
À profunda modificação de linhas profissionais jun- delimitar o "destino" do trabalho posterior que realize
ta-se, de imediato, o confronto com o problema de que ou que não possa realizar. Necessitamos elaborar técni-
não vamos curar, e então precisamos tornar claros os cas de inserção grupal para o trabalho grupal, além de
nossos objetivos. estudar e de pôr em prática técnicas de "desinserção" ou
Estes podem resumir-se na fórmula: promoção de desenraizamento de nossos padrões atuais e reconheci-
saúde, entendendo por saúde não só a ausência de doen- dos nos quais nos movemos com facilidade.
ça, mas um aproveitamento mais eficiente de todos os Percebemos assim, muito mais claramente, como o
recursos com que conta cada grupo para mobilizar sua que fazemos e a forma como o fazemos não é só uma ati-
própria atividade na procura de melhores condições de vidade, mas também parte de nossa personalidade, e que
vida, tanto no campo material como no cultural, no so- uma mudança de conhecimentos ou técnicas, bem co-
cial e no psicológico. Quando nos dispomos a adminis- mo uma mudança na administração desses recursos, signi-
trar, do modo indicado, nossos recursos (técnicas e co- fica uma crise na estrutura de nossa própria personalidade.
nhecimentos de grupo), um dos problemas que indu- Até agora nossas técnicas de grupo são, sobretudo,
bitavelmente temos de enfrentar é o fato de que, a se- uma finalidade em si mesmas; porém uma mudança na
guir, deparamos com uma perda da segurança que nos administração pode levar-nos a entender que são técni-
dá a organização e a institucionalização da administração cas que podem ser utilizadas dentro de outros contex-
que agora está em curso, organizada como linhas pro- tos e outras finalidades. Assim, por exemplo, o trabalho
fissionais específicas bem determinadas ou claramente diagnóstico dentro de uma instituição requer conheci-
definidas. Temos aqui um importante problema de psi- mentos e uma estratégia dentro dos quais as técnicas de
cologia de grupo, começando por nós mesmos, para, grupo constituem um dos recursos ou, poder-se-ia di-
além disso, tomar consciência, como novo problema teó- zer, recurso por antonomásia até agora, mas que, de to-
rico, do papel da institucionalização e da organização nas da maneira, se conhecemos só essa técnica, não domi-
atividades que desempenhamos como indivíduos dian- namos a estratégia do trabalho institucional; nossa ati-
te dos grupos enquanto profissionais. A forma como de- vidade na prevenção primária ver-se-á seriamente afe-
vemos ir até esses grupos naturais em seus meios espe- tada e inclusive impossibilitada de se desenvolver.
cíficos é um problema técnico e teórico que devemos Até agora, no campo da psiquiatria dinâmica, no que
também enfrentar como problema de dinâmica de grupo, concerne especificamente aos conhecimentos e técni-
cas de dinâmica de grupo, podemos assemelhar-nos a damento e uma reelaboração de teorias, um aperfeiçoa-
pessoas possuidoras de riquezas, mas que, ao mesmo mento das nossas técnicas, assim como, também, a in-
tempo, não podem aplicá-Ias de maneira frutífera. Não clusão das técnicas de grupo num capítulo mais amplo
se é rico em conhecimentos pelo simples fato de pos- de estratégias. Essas significam, por exemplo, no tra-
suí-los, mas fundamentalmente pela forma de aplicá- balho institucional, que não só devemos conhecer teoria
los. E este é um dos problemas críticos e chave que en- e técnicas de grupo, mas também saber diagnosticar
frentamos na dinâmica de grupo. situações e distinguir o grupo sobre o qual se deve atuar
Todos esses aspectos psicológicos da nossa própria numa organização, assim como selecionar o tipo de téc-
condição de profissionais administrando nossos recur- nica adequada para esse grupo, para as funções que rea-
sos de uma maneira particular ou limitada não são pro- liza e a problemática que enfrenta. Aqui o decisivo pode
blemas acessórios, e se não entendermos isso teremos ser o setor em que trabalha o psiquiatra e não a técnica
dificuldades para compreender quando, por exemplo, no de grupo. Isto pode exigir de nós um esforço comple--
trabalho institucional, podemos trabalhar com os pro- mentar, uma vez que esse tipo de avaliação não é impres-
blemas ou as situações psicológicas que um grupo en- cindível nas condições nas quais trabalhamos atualmen-
frenta para administrar ou administrar seus recursos. Que- te,já que na prática privada ou no hospital cada um pode
ro insistir em que essa mudança que postulo e apóio é aperfeiçoar-se em uma técnica e aplicá-Ia aos pacien-
imprescindível, mas só estaremos em condições de fa- tes, embora no trabalho com a prevenção primária, a es-
zê-Ia eficientemente ao compreender cada vez melhor a colha do grupo em função do diagnóstico da organização
psicologia de grupo envolvida em nossa própria admi- seja um problema fundamental, que nas atuais condições
nistração e o que significa psicologicamente, para um em que exercemos não tem vigência como problema.
grupo profissional, uma mudança na administração dos Poder-se-á alegar que o trabalho na prevenção pri-
seus recursos ou na sua organização. mária exige de nós certos conhecimentos (humanistas,
Estou plenamente convencido de que a cada tipo de sociológicos, econômicos, antropológicos, etc.) e con-
administração corresponde um tipo de problema e um cordo que isso é, de fato, necessário; com isso teríamos
nível de conhecimento, tanto como um desenvolvimen- de dirigir nossos esforços também para uma mudança
to técnico próprio; e que uma mudança na administra- na formação dos técnicos em dinâmica de grupo. Outra
ção não é somente um aspecto formal ou secundário, mas objeção que tenho ouvido com freqüência assinala que
que implica, necessariamente, uma mudança de pers- o trabalho do técnico em dinâmica de grupo vai con-
pectivas, uma ampliação de problemáticas, um aprofun- fundir seus limites com os do psicólogo social, do psi-
cólogo clínico, do antropólogo ou de outros profissio- cológicas estão satisfeitas), nossa participação ou inter-
nais que também utilizam técnicas de grupo. Conside- venção na prevenção primária das organizações não te-
ro isso verdadeiro, mas não me inquieta, e, mais do que ria sentido; porém esta contradição é apenas aparente,
como uma desvantagem, vejo-o como uma vantagem. já que temos necessidades psicológicas que correspon-
Embora com o risco de provocar mais desânimo do dem à dinâmica do grupo primário, mas também temos
que entusiasmo por uma tal mudança na administração, as que correspondem ao grupo secundário.
tenho de me referir a outras implicações que exigem Podemos trabalhar na prevenção primária em fun-
um esforço não menor do que as exigências que expus ção daquilo que, de modo geral, poderíamos chamar a
anteriormente. eficácia e a produtividade. Nesse sentido, a experiên-
Já não será suficiente conhecer, como conhecemos, cia mostra-nos que, quando somos chamados a uma or-
a dinâmica e as técnicas de grupo, mas teremos de apren- ganização porque seus objetivos explícitos não estão sen-
der a psicologia do ócio, a psicologia do trabalho, a psi- do cumpridos na medida desejada ou possível, nossa
cologia da organização etc. tarefa - se aceitamos o motivo da consulta como legíti-
O trabalho com o grupo numa instituição em função mo e não percebemos o seu objetivo latente - geralmen-
da prevenção primária não tende à cura, mas sim às pos- te se reduz a transformar grupos primários em secundá-
sibilidades de desenvolvimento das capacidades e ati- rios, ou seja, a conseguir uma formalização mais rígida
tudes dos seres humanos. Contudo, isto pode chocar-se da organização e dos modelos institucionais dentro de-
ou entrar em conflito com as funções da instituição, e la. Evidentemente, isso pode acontecer, e freqüente-
então depararemos não só com a resistência de um gru- mente acontece; possuímos conhecimentos e técnicas
po, mas com uma resistência da organização. suficientes para atingir, em parte, esses objetivos, co-
Mencionei em outro lugar que, em toda organiza- mo, por exemplo, melhorar o nível dos vendedores de
ção, chega um momento em que a manutenção da orga- uma empresa, fazendo com que vendam mais, ou fazer
nização pode entrar em conflito e ganhar terreno sobre uma seção de fábrica produzir mais ou produzir elemen-
os objetivos para os quais foi criada; quer dizer que os tos de melhor qualidade. Mas, embora isso seja possível,
grupos de seres humanos que integram uma organização precisamos considerar que, tendo aceitado esses objetivos
tendem, em um dado momento, mais do que a cumprir e estas finalidades, não estamos trabalhando em função da
os objetivos da organização, a satisfazer necessidades prevenção primária, mas, ao contrário, como agentes de
psicológicas. Aqui, defrontamo-nos com uma aparente uma organização que utiliza nossos conhecimentos para
contradição, já que, se isto é certo (as necessidades psi- que sejam utilizados os seres humanos que a integram.
Existem formas de trabalhar no campo da prevenção são é, em certa medida, coincidente, mas também diver-
primária sem que isso aconteça, mas trazem, necessa- gente. Coincide no caráter defensivo, dinâmico psicoló-
riamente, complicações que às vezes levam à segrega- gico das instituições e organizações, mas acredito que
ção do terapeuta e ao fracasso de sua intervenção. nestas últimas se acham diretamente imobilizados os es-
Existem casos em que o problema das organizações tratos mais primitivos da personalidade ou a sociabili-
é totalmente oposto, já que às vezes somos consultados dade sincrética grupal.
para intervir em organizações muito formais e rígidas,
de modo que somos solicitados a intervir como agentes Se continuamos examinando o problema das técni-
de mudança para introduzir o grupo primário sufocado. cas de grupo na prevenção primária, podemos citar o ca-
Ainda nesses casos, nossa tarefa não é fácil nem está li- so em que a nossa intervenção recai sobre a organiza-
vre de complicações e problemas de todo tipo. ção como totalidade, sobre o seu organograma, e não só
Devemos entender que, em toda organização, a pró- sobre alguns de seus setores.
pria organização faz parte (é parte) da personalidade dos As dificuldades aqui são maiores e exigem um gran-
seres humanos que a integram e que mobilizar padrões, de ajustamento das formulações teóricas e de nossa estra-
hábitos e normas de conduta significa mobilizar ansie- tégia na utilização das técnicas de grupo. Para dar uma
dades dos indivíduos e dos grupos que a constituem. idéia da amplitude desta problemática, quero recordar
Porém, quero ressaltar um aspecto importante: é nas or- uma formulação que, cada vez mais, me inclino a consi-
ganizações que as estruturas mais primitivas e a socia- derar como uma lei geral: que uma organização tende a
bilidade sincrética (de quejáfalei) estão imobilizadas. ter as mesmas modalidades que o problema que tem de
Se voltarmos agora aos grupos, podemos entender resolver e a estruturar-se dessa forma; assim, vamos en-
o fato de que, quando um grupo terapêutico (ou um tra- contrar um círculo vicioso no qual a organização não só
balho de grupo para prevenção primária) tende a se es- não resolve o problema para o qual foi explicitamente
tabilizar como organização, é porque tende, ao mesmo criada, mas consolida ainda mais a sua existência e, para
tempo, a imobilizar a sociabilidade sincrética e uma par- tanto, serve-lhe de ftedback. Isto pode parecer um para-
te importante da estrutura grupal, ficando assim, esta doxo e, num primeiro momento, absolutamente incorre-
última, imobilizada e clivada. to; sem dúvida minha experiência e a de meus colabora-
E. Jacques, que se ocupou em parte deste proble- dores tendem a garantir essa formulação. Poderia citar o
ma, chegou à conclusão de que as instituições servem exemplo de um asilo de velhos que foi criado para miti-
como defesas das ansiedades psicóticas. Minha conclu- gar as condições dos anciãos e as características psicoló-
Administração das técnicas e dos conhecimentos de grupo 13_7_

gicas já conhecidas (privação sensorial, incomunicabili- ção maníaca da cura, tanto por parte do grupo como por
dade, paralisação pela angústia de morte etc.). E sem dú- parte do terapeuta.
vida a organização tem, em sua totalidade, embora dentro Esse problema atinge o seu ponto culminante quan-
dos mesmos conjuntos ou stafJs do organograma, as mes- do trabalhamos no campo da prevenção primária com
mas características de incomunicabilidade, privação sen- técnicas de grupo dentro de uma organização, uma vez
sorial, bloqueio diante da morte etc. que, inevitavelmente, o trabalho de grupo realizado em
Esse exemplo serve também para ilustrar como a profundidade e em benefício dos seres humanos que in-
instituição ajuda a que "se depositem" nela, justamen- tegram uma organização tende, necessariamente, a ques-
te, tanto o que se quer resolver como os aspectos da so- tionar e a dissolver ou desagregar a organização. No
ciabilidade que caracterizei como sincrética. entanto, não nos devemos alarmar demais, porque, quan-
É óbvio que nestas condições a tática no trabalho do se está para alcançar esse ponto, geralmente somos
de grupo no campo da prevenção primária tem de se di- segregados da organização ou nos segregamos espon-
rigir mais às estruturas da organização, fundamental- taneamente, seja com uma sensação de fracasso ou com
mente aos stafJs administrativos, executivos, terapêuti- racionalizações.
Por outro lado, posso assegurar que os problemas
cos etc.
Todavia, não precisamos afastar-nos muito para en- reais são muito mais complicados e difíceis do que o
que selecionei aqui, já que, por razões didáticas, apre-
contrar um exemplo muito próximo de nós que é o da
sentei uma linha esquemática de desenvolvimento e pro-
luta permanente que se faz necessária num hospital psi-
curei apresentar as situações mais simples, mas omiti
quiátrico para que ele não promova a alienação, a margi-
muitas situações e problemas, justamente em função de
nalização e a segregação dos doentes mentais; caracte-
um objetivo didático.
rísticas que a instituição deveria resolver, mas que, sem
Sei que não ofereço soluções fáceis e às vezes nem
dúvida, consolida.
sequer soluções difíceis, mas elas só podem emergir, no
melhor dos casos, de uma proposição correta dos proble-
A estabilização da organização que os grupos tera-
mas que devemos enfrentar, e com isso entendo, assim
pêuticos alcançam é genuinamente antiterapêutica, ou
mesmo, que estamos envolvidos como agentes de mudan-
então, é o limite da nossa terapia se não enfrentamos
ça, mas também como agentes que asseguram uma orga-
uma desorganização de tais grupos. E a experiência de-
nização que constitui uma resistência à mudança.
monstra que esse é o momento crítico em que o grupo
se dissolve com racionalizações ou com uma concep-

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