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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Marcos Jerônimo Dias Júnior

ONTOLOGIA, IDEOLOGIA, CURRÍCULO E VIOLÊNCIA SUBLIMINAR:


RELAÇÕES E CONTRADIÇÕES NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

GOIÂNIA
2016
MARCOS JERÔNIMO DIAS JÚNIOR

ONTOLOGIA, IDEOLOGIA, CURRÍCULO E VIOLÊNCIA SUBLIMINAR:


RELAÇÕES E CONTRADIÇÕES NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Goiás como requisito final
para obtenção do título de Mestre em Educação.

Linha de pesquisa: Formação, Profissionalização


Docente e trabalho educativo.

Orientadora: Prof. Draª Sandra Valéria Limonta


Rosa.

GOIÂNIA
2016
Ficha catalográfica elaborada automaticamente
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a), sob orientação do Sibi/UFG.

Dias Júnior, Marcos Jerônimo


Ontologia, ideologia, currículo e violência subliminar: relações e
contradições na educação física escolar [manuscrito] / Marcos
Jerônimo Dias Júnior. - 2016.
240 f.

Orientador: Profa. Dra. Sandra Valéria Limonta Rosa.


Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Goiás, Faculdade
de Educação (FE) , Programa de Pós-Graduação em Educação,
Goiânia, 2016.
Bibliografia. Anexos.

1. Ontologia. 2. Educação. 3. Ideologia. 4. Currículo. 5. Educação


física escolar. I. Rosa, Sandra Valéria Limonta, orient. II. Título.
Dedico este trabalho aos professores e professoras que, cientes
da necessidade histórica de emancipação humana e da
sociedade, resistem a precarização e intensificação do trabalho
docente e à formação aligeirada para si e seus alunos e buscam
uma formação crítica que lhes permita interrogar, compreender
e desvelar as contradições que resultam da sociedade que
vivemos atualmente. Mesmo diante das mazelas buscam na luta
contra-hegemônica, através da práxis, uma sociedade para
além do capital. Dentre estes destaco as professoras Draª
Sandra Valéria Limonta Rosa, Draª Angela Cristina Belém
Mascarenhas, Draª Ivone Garcia Barbosa e professores Dr.
Régis Henrique dos Reis Silva, Dr. Edson Marcelo Húngaro e
Dr. Nivaldo David. Pessoas com quem tive a honra, satisfação,
o prazer e a alegria de conviver, aprender e compartilhar as
mesmas concepções de mundo.

Aos meus pais, Ilma e Marcos, pelo constante e incansável


incentivo à minha trajetória acadêmica e permitindo-me, mesmo
diante das dificuldades e as condições adversas que passa a
classe trabalhadora, continuar meus estudos e construir novas
perspectivas.

A minha companheira especial e sempre presente Andressa, que


me faz compreender e viver a cada dia vários significados
verdadeiramente humanos como o companheirismo, o amor, o
afeto e a partilha.
AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal de Goiás que, pública, gratuita e contraditória, ainda oferece a


oportunidade a trabalhadores e trabalhadoras que, de outro modo, não poderiam
ingressar no ensino superior privado. À essa instituição devo parte da minha vida
acadêmica e meu crescimento intelectual, cultural e político.

A minha orientadora de admirável rigor intelectual agradeço muito pela compreensão de


meus limites e ousadias que gentilmente aceitou o meu pedido como orientando e, a
partir daí começou a me auxiliar com sua imensa sabedoria, de forma imprescindível
para a elaboração deste trabalho e também para o meu crescimento pessoal e intelectual.
Pela imensa disponibilidade, afeto e por me incentivar a me arriscar sempre na teoria
Marxiana, acreditando nas minhas potencialidades. Uma verdadeira professora que
merece as mais lindas palavras. Ressalto o meu muito obrigado por tudo!

Ao professor Nivaldo David que como orientador de Graduação e camarada me


apresentou através do ensino novos horizontes e posicionamentos políticos.

A professora Angela Cristina Belém Mascarenhas o meu afetuoso abraço e a minha


sincera admiração, considero uma das professoras mais brilhantes que tive o privilégio
de conhecer e aprender com suas ideias e concepções.

Ao Núcleo de Estudos Marxista desta Faculdade, a todos os membros e amigos (as) pela
contribuição inquestionável à minha formação acadêmica pelas enriquecedoras
discussões teóricas tão necessárias para a elaboração deste estudo.

Aos membros do antigo núcleo de estudos e pesquisas NUPESE em nome das


professoras Lilian, Simei e em especial a Silvia Zanolla que me propiciou a integração
ao Programa de Pós-graduação e gentilmente proporcionou-me a oportunidade de
alcançar novos horizontes.

Aos professores (as) Ivone Garcia, Nancy, Régis e Ged que propiciaram momentos
únicos em suas disciplinas e contribuíram muito no meu processo de formação e
desenvolvimento. Em especial pelos ensinamentos que instigaram e fomentaram minhas
reflexões, utopias e pensamentos contestador e crítico a respeito da Educação escolar
articulado a totalidade social.

Aos meus queridos amigos (as) Glauber, Paulo, Sherry, Renata e Jane que me
incentivaram e sempre estiveram por perto dispostos a me ajudar, ouvindo minhas
angústias e dividindo momentos alegres, permanecendo sempre presentes na partilha de
minhas dificuldades. A todos os meus colegas da 27º turma de Mestrado do Programa
de Pós-Graduação da Faculdade de Educação que, durante o mestrado, dividiram
comigo as dificuldades e os prazeres da vida acadêmica, em especial as amigas do
NEPIEC e aos meus companheiros Rômulo e Wanderson.

A minha honra e afeto aos professores Régis e Marcelo Húngaro e a professora Ivone
que tanto admiro e tão gentilmente aceitaram o meu convite de contribuir em minha
formação ao participarem de minha banca de qualificação e defesa. À Capes, pela bolsa
de estudo concedida durante parte da construção deste trabalho.
RESUMO

DIAS JÚNIOR, Marcos Jerônimo. Ontologia, ideologia, currículo e violência


subliminar: relações e contradições na educação física escolar. 240f. Dissertação
(Programa de Pós-Graduação em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade
Federal de Goiás, Goiânia, 2016.

As lutas de classe e a contradição entre capital e trabalho no atual momento histórico


vão constituindo as relações entre trabalho, educação e educação escolar, repercutindo
no campo do currículo e ensino constituindo mecanismos ideológicos e elementos de
violência subliminar. Neste contexto, esta pesquisa buscou compreender como se
constituem as relações e contradições entre ontologia, ideologia, currículo e violência
subliminar na Educação Física fundamentadas no referencial teórico-metodológico do
materialismo histórico dialético, propondo um processo investigativo que tem como
objeto nuclear o currículo e seu papel na formação humana. Para tanto, partimos das
seguintes questões: quais elementos ontológicos e mecanismos ideológicos e de
violência subliminar estão presentes no campo do currículo, em sua constituição e
efetivação e como essas relações se manifestam na Educação Física escolar? Trata-se de
uma pesquisa que buscou apreender a totalidade e a concreticidade do objeto a partir da
análise bibliográfica-documental – projetos, programas e orientações curriculares da
Secretaria de Educação do Estado de Goiás – articulado a uma investigação empírica,
onde em síntese analisamos a constituição e a concretização de um currículo fetiche.
Compreendemos na contraposição ao currículo fetiche, a importância de professores e
professoras lutarem pela construção de um projeto unitário de formação humana e
educação escolar, na direção da perspectiva ontológica de educação.

Palavras-chave: Ontologia, educação, ideologia, currículo e Educação física escolar.


ABSTRACT

DIAS JÚNIOR, Marcos Jerônimo. Ontology, ideology, curriculum and subliminal violence:
relations and contradictions in physical education. 240f. Dissertation (Program of Post Graduate
Studies in Education) – Education Faculty, Federal University of Goiás, Goiânia, 2016.

The class struggle and the contradiction between capital and labor in the current historical
moment will constitute the relationship between work, education and school education,
reverberating in the field of curriculum and teaching constituting ideological mechanisms and
subliminal violence elements. In this context, this study aimed to understand the relationships
and contradictions forms between ontology, ideology, curriculum and subliminal violence in
Physical Education. Based on dialectical historical materialism, we propose an investigative
process that has as its core the curriculum and its role in human development. We start from the
following questions: what ontological, ideological and subliminal violence elements are present
in the curriculum field and how these relations are manifested in Physical Education? This is a
survey that sought to grasp the totality and concreteness of the object from the bibliographic and
documentary analysis of the projects, programs and curriculum guidelines of the State of Goiás
Education Department, articulated to an empirical research, which in summary we analyze the
establishment and implementation of a fetish curriculum. We understand the need of opposition
to the fetish curriculum, the importance of teachers and teachers strive to build a unified plan of
human formation and education toward the ontological perspective of education.

Palavras-chave: Ontology, education, ideology, curriculum, Physical Education.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................... 11

CAPÍTULO I

ONTOLOGIA, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA ........................................................ 19

1.1. Ontologia, trabalho e o processo de humanização................................................19


1.2. Fundamentos da ontologia do ser social e educação. ......................................... 32

1.2.1. Reflexões sobre a educação escolar com base na perspectiva ontológica de


educação. ............................................................................................................. 38

1.3. Ideologia: relações e contradições no processo de formação humana. ............... 51

1.3.1. A estrutura e o desenvolvimento dos elementos e mecanismos ideológicos do


capital .................................................................................................................. 61

1.3.2. Princípios e características estruturais da ideologia do sistema do capital e o


processo de alienação ........................................................................................... 72

CAPÍTULO II

CURRÍCULO ESCOLAR, ENSINO E VIOLÊNCIA SUBLIMINAR................... 83

2.1. Cultura, ciência e currículo à luz da ontologia do ser social............................... 84

2.2. A articulação entre currículo, ensino e trabalho docente: repercussões na


formação humana .................................................................................................... 97

2.3. A dinâmica das concepções curriculares hegemônicas e a constituição de um


currículo fetiche .................................................................................................... 114

2.3.1. Os pressupostos ideológicos do Currículo fetiche ..................................... 136

2.3.2 Currículo fetiche: implicações e contradições ideológicas do relativismo


cultural intersubjetivo e da propriedade intelectual.......................................................145

2.4. A materialização da violência subliminar no currículo fetiche.........................153

CAPÍTULO III

O CURRÍCULO FETICHE NA ESPECIFICIDADE DO ENSINO DA


EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR ......................................................................... 165
3.1- O objeto nuclear de conhecimento e os saberes escolares do currículo de
educação física na concepção ontológica de educação ........................................... 166

3.2- As proposições do currículo fetiche na especificidade da educação física escolar


.............................................................................................................................. 177

3.2.1- A caracterização dos pressupostos do currículo fetiche no ensino da


educação física................................................................................................... 186

3.3- O movimento renovador da dinâmica curricular da educação física: da aparência


à essência .............................................................................................................. 195

3.3.1- Os desafios do atual tempo histórico do currículo e ensino de educação física


.......................................................................................................................... 202

3.4 - Os elementos e mecanismos ideológicos e de violência subliminar no currículo e


ensino de educação física: em busca de novas possibilidades e condições .............. 214

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 221

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 231

ANEXOS ................................................................................................................. 237


11

INTRODUÇÃO

A atual organização e dinâmica da sociedade na qual vivemos, caracterizada


como essencialmente produtora de mercadorias e estruturada pelo modo de produção
capitalista, é uma forma de produção social da vida humana que define uma época da
história composta pelo desenvolvimento das forças produtivas materiais e das relações
de produção econômica. O modo de produção engendra e dissemina pressupostos
ideológicos direcionados às relações sociais, políticas e culturais (MARX, 2008). Este
determinado período do desenvolvimento societal, constitui e é constituído por
componentes e mecanismos ideológicos de base liberal, levando a implicações
profundas e contraditórias na formação e no desenvolvimento do gênero e da
individualidade humana. Os princípios e características da sociedade capitalista,
originados da base material da produção, vão constituindo as atividades
socioeconômicas e as relações e contradições entre trabalho, educação, cultura e
educação escolar.
Tal configuração societal, pautada na produção da mais-valia, na divisão e
reestruturação hierárquica do trabalho, no fetichismo da mercadoria, na propriedade
privada e na hipervalorização do valor de troca e do dinheiro, no sentido da reprodução
do capital, repercute nas apropriações e objetivações da riqueza material e intelectual,
criada pelos seres humanos, no trabalho educativo escolar e, consequentemente, no
currículo e no ensino.
Consideramos o currículo e o ensino como produções sociais particulares,
construídas historicamente, que passaram a efetivar-se socialmente por meio de
variados desafios e possibilidades articuladas a essa totalidade social. A partir desta
compreensão, esta pesquisa possui o currículo como objeto nuclear e está também
marcada pelas condições sócio-históricas atuais. O processo de investigação aqui
apresentado desenvolve-se a partir da e na necessidade política e pedagógica de
problematizarmos a contribuição da educação escolar no processo geral de formação e
de desenvolvimento humano e, especificamente, o papel do currículo e do ensino da
educação física nesse processo.
Nesta pesquisa, os pressupostos reais, advindos dos dados da realidade concreta,
levaram-nos a compreender que, nas relações e contradições entre ontologia, educação,
ideologia e violência subliminar, a organização curricular da educação física estrutura-
12

se como uma forma de ser e determinação da existência, denominada de ‟currículo


fetiche”, constituído nas relações e contradições entre a totalidade social e a
particularidade da educação escolar. Para analisarmos tais relações e contradições,
partimos da análise científica e filosófica do processo de formação e desenvolvimento
do gênero e da individualidade humana, no sentido da humanização com base nos
elementos da ontologia do ser social.
Compreendemos a ontologia de base filosófica e científica como uma ‟teoria do
ser”, constituída na realidade concreta para além das concepções metafísicas, a partir da
reflexão das primeiras intervenções e vinculações do homem com a natureza e em suas
relações com outros homens, na integração entre a economia e a dialética. Uma reflexão
histórica da produção e reprodução material e não material da vida social que envolve a
práxis e as apropriações e objetivações humanas. Uma ontologia com base nos
fundamentos do materialismo histórico dialético, que compreende a constituição e o
desenvolvimento dos seres humanos enquanto seres sociais frutos da totalidade social e
das atividades históricas construídas pelos seres humanos na relação dialética entre
subjetividade e objetividade (LUKÁCS, 2013).
A ontologia do ser social é a base teórico-metodológica utilizada nesta pesquisa
para a compreensão de questões epistemológicas e gnosiológicas da realidade concreta,
sendo o concreto considerado como uma síntese de múltiplas determinações complexas
em movimento para além da aparência. Além disso, propicia condições para a apreensão
das contradições, dos desdobramentos e das repercussões na historicidade do processo
da práxis, tendo como eixo central a categoria trabalho e o par dialético
apropriação/objetivação (MARX, 2010).
O interesse no currículo como objeto nuclear de pesquisa iniciou-se em 2006, no
contato com as reorientações curriculares da Rede Estadual de Educação do Estado de
Goiás, o que propiciou vários desafios, problemas, dificuldades diante da necessidade
de organizar o trabalho pedagógico – o ensino – como professor de educação física.
Esse interesse se intensificou na leitura das diretrizes do Pacto pela Educação do Estado
de Goiás, um amplo plano de reforma educacional da rede estadual lançado em 2011.
No pacto, não por acaso, percebi de forma embrionária, que o currículo era concebido
como um dos principais eixos norteadores das ações da escola.
Outro elemento que nos levou à concretização do objeto de investigação, durante
a estruturação do projeto de pesquisa, foi a falta de literatura acadêmica, principalmente
13

na direção teórica-metodológica que defendemos. Sobre essa reflexão, destacamos duas


pesquisas de dissertação, a de Simone Tourino da Silva (2014), para quem ‟[...] a defesa
de uma educação física escolar comprometida e emancipatória deixou de encontrar
sustentação, tendo em vista que, das produções pesquisadas de um total de 529 artigos,
apenas 9 possuem base materialista história com elaborações inspiradas nas obras
marxianas, isto é, elaborações do próprio Marx” (p. 11) e o estudo de Efraim Maciel e
Silva (2013), no qual o autor chega às considerações finais afirmando que, de 2.156
artigos, 20 apresentaram uma relação implícita (0,93% do total) e apenas 4 uma relação
explícita (0,19% do total) com a pedagogia histórico-crítica, uma concepção pedagógica
e política que tem como fundamentos estruturais o materialismo histórico dialético e na
qual nos fundamentamos na análise de dados desta pesquisa.
Por último destacamos a falta de discussões sobre o campo do currículo com
base nos fundamentos teórico-metodológicos da ontologia materialista histórica e a
força hegemônica de determinadas concepções filosóficas, políticas e pedagógicas que
implicam no currículo e no ensino, aparentemente críticas e progressistas, que vêm,
ideologicamente, direcionando as discussões atuais no Brasil, inclusive na educação
física escolar. Dentre as tendências com base em Duarte (2006), destacamos: o
neopositivismo, o neoliberalismo, a corrente pós-moderna, as pedagogias do aprender a
aprender e o multiculturalismo.
A partir destas reflexões iniciais sobre nosso objeto de pesquisa – o currículo –
entendemos que se trata de um instrumento essencial na organização do trabalho
educativo escolar e que é constituído de elementos e mecanismos ideológicos oriundos
da totalidade social (APPLE, 2006). Tais elementos e mecanismos que constituem o
currículo escolar podem-se apresentar, no âmbito escolar e fora dele, como violentos,
embora raramente percebidos como tal, o que implica profundamente na formação e no
desenvolvimento humano. Em outras palavras, nossa pesquisa foi revelando que diante
das condições históricas que constituem a particularidade do currículo e do ensino da
educação física escolar, tais elementos e mecanismos se aprofundam e, por vezes,
impedem o processo de formação e desenvolvimento no sentido da humanização.
O desafio de realizar a pesquisa sobre o currículo escolar e o ensino de educação
física a partir dos fundamentos ontológicos do materialismo histórico dialético foi se
consolidando com a ajuda dos estudos realizados, desde 2012, no Núcleo de Pesquisas e
14

Estudos Sociedade, Subjetividade e Educação (NUPESE)1, principalmente dentro da


linha Marxista, agora Núcleo de Estudos Marxistas, um espaço coletivo, democrático de
discussão, extensão, formação, estudos e pesquisas a respeito de diferentes questões
relacionadas à sociedade e educação.
Entendemos que o produto do trabalho que será apresentado é de grande
importância para a compreensão da função social da educação escolar, do currículo e do
ensino e suas contribuições no processo de formação e de desenvolvimento do ser
humano, na produção de novos caminhos para pensarmos e construirmos uma escola
pública de qualidade, gratuita e laica para todos os seres sociais. Além disso, iremos
procurar trazer a reflexão de uma concepção de educação e escola na direção de uma
nova ordem social para além dos ditames do capital, conscientes do grande e difícil
caminho para a criação das condições materiais e não materiais de tal construção.
Acreditamos que nossa pesquisa também atende a interesses específicos que dizem
respeito às problemáticas no campo do currículo e do ensino da educação física, da
formação inicial e continuada de professores e a construção de possibilidades de
‟contrainternalização” das forças de produção hegemônicas, que compõem atualmente a
sociedade, a cultura, a ciência e o processo educativo escolar.
Esperamos que esta pesquisa, que busca a compreensão do currículo da
educação básica na rede Estadual de Educação de Goiás, na relação dialética entre teoria
e prática, possa contribuir com a compreensão crítica e uma melhor organização do
trabalho pedagógico na área da educação física escolar e que também contribua para
com o processo de construção da democratização de uma educação pública de qualidade
para todos, principalmente para as crianças e jovens da classe trabalhadora.
O problema de pesquisa que nos levou à investigação pode ser sintetizado na
seguinte questão: Quais elementos ontológicos, mecanismos e componentes ideológicos
e de violência subliminar estão presentes no currículo da rede estadual da educação de
Goiás, tanto na constituição quanto na efetivação e como essas relações e contradições
implicam no ensino da educação física escolar?
O objetivo geral da pesquisa é compreender a constituição e as repercussões, no
atual momento histórico, das relações e contradições entre ontologia, ideologia,

1
Esse núcleo de pesquisas e estudos estava vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal
de Goiás, era subdivido em duas linhas de estudos e pesquisa – linha marxismo e linha Frankfurtiana.
Tinha como temática sociedade, subjetividade e educação. Foi extinto em 2014, sendo criados, a partir
dele, dois novos núcleos, sendo um deles o Núcleo de Estudos Marxistas, do qual participamos.
15

educação, currículo e violência subliminar no currículo e no ensino da educação física


escolar. Como objetivos específicos, buscamos identificar e analisar os elementos
ontológicos e de violência subliminar presentes no currículo que implicam na formação
e desenvolvimento humano; estabelecer os pressupostos entre a constituição e o
desenvolvimento dos mecanismos ideológicos e elementos de violência subliminar no
currículo e ensino; discutir a relação entre ontologia, currículo, educação, ideologia e
violência subliminar no ensino da educação física escolar e, por fim, analisar as
contradições entre ontologia, currículo, ideologia e violência subliminar no ensino de
educação física na rede estadual de educação de Goiás.
No processo de realização do trabalho investigativo, fundamentamo-nos em
autores clássicos da teoria Marxiana e Marxista, dentre os quais, destacamos Marx
(2013, 2013a, 2012, 2011, 2011a, 2010, 2010a, 2009, 2008), Marx e Engels (2007,
2010, 2011), Lukács (2010, 2012, 2013), Engels (2009), Gramsci (1991) e Mészáros
(2012, 2011, 2008, 2008a).
Trata-se de um trabalho investigativo desafiador e complexo, porém de grande
importância, pois, diante do atual cenário de crise econômica e política em que vivemos,
a questão da educação escolar e dos desafios do currículo e do ensino nos parecem
bastante merecedoras de atenção por parte da pesquisa científica no campo da
Educação, principalmente por se tratar de um momento histórico importante, com a
implementação do Plano Nacional de Educação e das discussões sobre a Base Nacional
Comum Curricular. Além disso, numa perspectiva mais ampla, perpassamos por um
contexto preocupante de ampliação da apropriação privada das objetivações materiais e
intelectuais, imposições de organismos internacionais neoliberais, transformações
voltadas à precarização do trabalho docente, no mundo do trabalho, com o aumento da
intensificação da alienação, da exploração, da desigualdade social e uma avalanche
ideológica de defesa do privado em detrimento do público, do pragmatismo, do
relativismo e do utilitarismo voltados aos interesses do capital.
Como o projeto desta pesquisa nasceu da necessidade presente na realidade atual
de uma melhor compreensão das relações e contradições entre sociedade, educação
escolar, currículo e ensino a partir das reflexões de uma perspectiva ontológica de
educação, foi necessário buscar elementos da realidade concreta que nos ajudassem a
chegar aos objetivos traçados, portanto, além da pesquisa bibliográfica e da análise
16

documental, realizamos um trabalho empírico para que fosse possível uma compreensão
verdadeiramente concreta do objeto de investigação.
O campo empírico do processo investigativo são cinco escolas da Regional de
Anápolis, que integra a Rede Estadual de Educação do estado de Goiás (composta por
38 regionais de educação). Os documentos utilizados para análise foram a reforma
educacional ‟Pacto da Educação”, sete ‟cadernos de reorientações curricular” e o
chamado “currículo referência” da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte
de Goiás (SEDUCE).
No trabalho empírico, foram escolhidas como campo específico cinco escolas da
regional da subsecretaria de Anápolis. As cinco escolas da regional Anápolis, por sua
vez, foram escolhidas pelas seguintes razões: maior número de alunos, diversidade de
regiões, ofertasse tanto ensino fundamental segunda fase como o ensino médio,
diferentes estruturas físicas, tivesse pelo menos um professor de educação física efetivo.
Todas as escolas utilizadas como campo de pesquisa têm como características gerais
uma média de 800 alunos, funcionam nos três turnos (matutino, vespertino, noturno),
possuem biblioteca ativa e o número de trabalhadores da educação, tanto administrativo
quanto professores (as), são em média 40% de contratos temporários.
A investigação empírica realizou-se por meio de entrevistas semiestruturadas
com dezenove sujeitos, dez professores (as), que trabalham com a disciplina educação
física, e nove coordenadores (as) pedagógicos. Sobre os procedimentos de análise dos
dados das entrevistas, pautamo-nos em cinco eixos categoriais: os dados de
identificação, atuação profissional, formação de professores, trabalho na escola e campo
do currículo. A análise das entrevistas foi realizada com base nos fundamentos teórico-
metodológicos da ontologia materialista histórica.
Sobre os dez professores (as), lotados com a disciplina educação física, na rede
estadual de educação do estado de Goiás, todos são vinculados a subsecretaria regional
de Anápolis, sendo cinco efetivos e cinco contratos temporários. No total, foram seis
professoras e quatro professores, com média de idade de 23 a 40 anos, sendo seis com
graduação em Universidades públicas e quatro em Faculdades particulares, todos do
estado de Goiás. Cinco realizaram a graduação em licenciatura plena, quatro em
bacharelado e licenciatura e uma professora possui o curso de pedagogia, sendo que três
possuem pós-graduação lato sensu — dois na área da saúde (fisiologia do exercício e
17

treinamento esportivo), somente um na especificidade da educação escolar (docência no


ensino superior) — e sete possuem somente graduação.
Sobre os coordenadores (as), foram dois coordenadores e sete coordenadoras,
todos como professores (as) efetivos, sendo duas com graduação em pedagogia e todos
os outros sujeitos em áreas específicas sendo que já ocuparam o cargo de professor
regente. A idade média destes é de 40 a 50 anos. De todos os sujeitos — professores
(as) e coordenadores (as) — as entrevistas foram realizadas durante o período de
trabalho com grande colaboração do grupo gestor.
Tentamos, tanto no processo de investigação, quanto no processo de análise,
pautarmo-nos na ação-reflexão-nova ação e incorporação por superação. A revisão da
literatura é confrontada, dialeticamente, a todos os momentos, com as contradições da
realidade por meio dos dados que foram levantados na análise documental e nas
entrevistas. Nessa direção, os dados coletados junto aos documentos e entrevistas dos
professores nas escolas foram “[...] sempre o ponto de partida para identificação do
conteúdo, seja explícito e/ou latente [oculto ou ideológico]” (FRANCO, 2012, p.17).
Nosso intento, no primeiro capítulo, é evidenciar as bases teórico-metodológicas
que sustentam toda a pesquisa, por isso trazemos aqui os fundamentos da ontologia
constituídos na base materialista histórica e dialética para a compreensão da educação,
educação escolar e ideologia, dialeticamente relacionadas ao processo contraditório de
humanização e desumanização. No primeiro item, desenvolve-se, especificamente, as
bases teórico-epistemológicas que nortearam todo o processo investigativo: ontologia,
trabalho e processo de humanização. Logo em seguida, recorremos à ontologia do ser
social para discutirmos a educação, de maneira geral e, especificamente, a educação
escolar e seus desdobramentos no processo da práxis. Relacionada a este processo,
destacamos a ideologia como uma forma de ser e determinação de existência que
implica, diretamente, na formação do gênero e da individualidade humana bem como no
processo de alienação.
No segundo capítulo, será realizado a discussão sobre mecanismos, elementos
ideológicos e de violência subliminar, presentes no currículo, implicando no ensino e
formação dos alunos, além de enfatizar a constituição e o desenvolvimento da categoria
que denominamos de ‟currículo fetiche”. Além disso, pautando-nos na perspectiva
ontológica de educação, analisamos, dentro da função social do currículo escolar, como
a cultura humana, a ciência e o saber escolar se apresentam como importantes
18

instrumentos da práxis social que nos ajuda a construir novas objetivações para o
desenvolvimento do ser humano, da sociedade e o fortalecimento da nossa luta contra-
hegemônica aos ditames do sistema do capital.
No terceiro e último capítulo, pretendemos trazer a discussão da particularidade
de um componente curricular que, no atual momento histórico, apresenta-se de maneira
mais complexa, diante de outras áreas do conhecimento escolar, a especificidade da
educação física como componente do ‟currículo fetiche”. Com o objetivo de aprofundar
o entendimento da realidade complexa e contraditória orientado pela perspectiva
ontológica de educação.
Nas considerações finais tentaremos realizar uma síntese de todo trabalho, na
busca de contribuir em novas reflexões sobre o currículo escolar destacando a
importância de repensarmos a formação inicial e continuada de professores e apresentar
possibilidades para o aprofundamento e desenvolvimento de futuras pesquisas
enfatizando a temática do ensino.
19

CAPÍTULO I
ONTOLOGIA, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

Neste capítulo, apresentaremos os fundamentos teórico-metodológicos que


nortearam todo o processo de investigação, desde a elaboração do projeto até a escrita
da dissertação. Buscamos, na teoria marxista, principalmente na ontologia do ser social,
com base no materialismo histórico dialético, a compreensão da constituição e do
desenvolvimento da formação do gênero e da individualidade humana no processo de
humanização. Destacamos, nestas análises, o conceito de trabalho e
apropriação/objetivação, apresentadas como eixo para a explicitação de uma concepção
de educação denominada de ‟perspectiva ontológica de educação”, que nos propicia
condições de analisarmos a educação escolar e a ideologia num processo contraditório
entre humanização e desumanização2 na atual organização societal.
No primeiro item, desenvolvemos a discussão do gênero e da individualidade no
processo de humanização com base no conceito de trabalho e apropriação e objetivação
dentro da perspectiva da ontologia materialista histórica. Logo em seguida, recorremos
aos elementos da ontologia do ser social para discutirmos a perspectiva ontológica de
educação na qual nos baseamos para analisar a educação escolar e as repercussões
contraditórias no processo da práxis. Nos últimos itens, destacamos a ideologia como
uma forma de ser e determinação de existência que implica diretamente na formação, no
desenvolvimento humano e no processo de alienação dentro do sistema do capital.

1.1. Ontologia, trabalho e o processo de humanização

Ao olharmos a história da humanidade, percebe-se que os indivíduos e a


sociedade não são objetos essencialmente naturais, mas ‟seres sociais” e ‟humanidade

2
Ao longo deste trabalho, iremos utilizar o termo desumanização com base em Marx e associado à
categoria ‟alienação” (MARX, 2010). O referente autor usa deste termo, ao longo de suas obras,
principalmente quando se refere às implicações da economia política, na qual representamos pela sua obra
final – O capital. Nessas análises sobre a economia política, há uma ‟unidade sistemática de conceitos”
que no contexto fundamentam uma ontologia materialista histórica do ser social capaz de indicar as
categorias mais universais da realidade e do ser humano e dar base para analisar questões epistemológicas
que implicam no processo de humanização e desumanização (COUTINHO, 2010). Portanto, no ‟reflexo
dialético do próprio real”, desumanização é uma categoria fruto das articulações entre as forças
produtivas e as relações de produção revelada no modo de produção capitalista constituída a partir do
distanciamento e digressão da dimensão ontológica do conceito de humanização presente no contexto das
análises de Marx sobre a economia política (LUKÁCS, 2013).
20

socializada” constituídos, dialeticamente, por meio do conjunto de complexos


categoriais3, produto das atividades sociais construídas historicamente, a partir do
metabolismo com a natureza através da mediação do trabalho — conceito considerado a
atividade vital da essência e existência dos seres humanos. A gênese do ser enquanto ser
humano e da sociedade como totalidade social foram instituídas pelos atos de
objetivações e apropriações dos indivíduos ao decorrer da vida produtiva material e não
material4. Processo histórico que estrutura as dinâmicas e relações econômicas e
culturais, implicando influências marcantes no desenvolvimento contínuo da
humanização.
Assim, ‟[...] é por meio da elaboração do mundo objetivo [é que] o homem se
confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Essa produção é a sua
vida genérica operativa” (MARX, 2010, p. 85). O indivíduo não nasce como ser
humano, um ser pronto, determinado, acabado ou moldado de forma absoluta pelas
relações externas a sua subjetividade, mas necessita humanizar-se através da produção
material da vida social. Trata-se de um processo que se efetiva articulado à totalidade
social nas relações dialéticas entre apropriação da riqueza5 histórica do gênero e da
individualidade humana e nas objetivações realizadas na realidade concreta.
O ser humano como ser genérico somente se desenvolve potencialmente dentro
das relações produtivas para além da adaptação singular e passiva nos meios naturais ou
sociais. Nas condições históricas e materiais, possui a necessidade e capacidade de
apropriar, produzir, transformar, criar e modificar qualquer meio natural e atividade
social. Conforme Marx (2010), o gênero é uma construção histórica e social
materializada nas relações concretas através da mediação do trabalho, uma capacidade
potencial de todos os seres enquanto seres sociais de apropriar/objetivar o próprio ser —
a subjetividade — e os objetos que o constituem como produtos da atividade social.

3
Neste trabalho, o termo categoria é compreendido como uma forma de ser e determinação de existência,
produto da realidade concreta, apreendida como uma síntese de múltiplas determinações sociais e
históricas complexas entre a unidade e a diversidade, o singular e o universal, a particularidade e a
totalidade e a subjetividade e objetividade (MARX e ENGELS, 2007).
4
Segundo Saviani (2012a, p. 12), com base em Marx, trabalho não material “[...] trata-se aqui das
propriedades do mundo real (ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte). Produção de ideias,
conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata-se da produção de saber,
seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana.
Obviamente, a educação situa-se nessa categoria do trabalho não material”.
5
Abordamos esse termo na perspectiva marxista, ao contrário da forma burguesa de acúmulo de dinheiro,
mas no sentido ontológico como apropriação das objetivações materiais e espirituais mais desenvolvidas
historicamente que possibilita o desenvolvimento do gênero e da individualidade humana.
21

Trata-se de um processo de desenvolvimento ontológico que faz do objeto, do sujeito e


da vida e das relações do ser social frutos da vontade e consciência humana.
Neste sentido, a humanização é uma construção histórica do que deve vir a ser,
articulada ao desenvolvimento do gênero e da individualidade numa relação dialética
entre a subjetividade e a objetividade, o indivíduo e a sociedade, pois ‟[...] todo
indivíduo vive sua vida como parte da história do gênero humano” (DUARTE, 2013, p.
125). De acordo com as condições materiais históricas, o ser humano é capaz de
produzir, de maneira consciente, a sua essência6 como ser genérico universal e
reproduzir a existência no desenvolvimento da vida social, num processo contínuo de
objetivações e apropriações tendo como momento preponderante as ações produtivas.
E como tudo o que é natural tem de começar, assim também o homem tem
como seu ato de gênese a história, que é, porém, para ele, uma [história]
sabida e, por isso, enquanto ato de gênese com consciência, é ato de gênese
que se suprassuma. A história é a verdadeira história natural do homem
(MARX, 2010, p. 128).

Afirmamos, assim, conforme Lukács (2012, p. 402), que ‟[...] o nascimento do


gênero humano, em sentido social, é produto necessário, involuntário, do
desenvolvimento das forças produtivas”. O sentido natural/social humano é estabelecido
na historicidade da vida social produtiva dentro da relação entre o homem e a natureza,
o indivíduo e a sociedade, a objetividade e a subjetividade, o sujeito e o objeto, o
particular e a totalidade. Em suma, ‟[...] o desenvolvimento das forças produtivas
constitui simultaneamente um desenvolvimento para um patamar superior do homem,
mesmo que isso, com muita frequência, ocorra em formas inumanas” (LUKÁCS, 2012,
p. 561). A formação do gênero e da individualidade no sentido da humanização,
portanto, é uma realização socioeconômica em meio a uma síntese de múltiplas
determinações complexas constituídas historicamente pela própria humanidade.
Em sua análise sobre a complexa questão da humanização, que envolve a relação
entre essência e existência no desenvolvimento do ser enquanto ser social, Lukács
(2012) afirma que ‟[...] a essência mais concreta e complexa possui como ponto de
partida a ontologia, do qual se pode obter através da abstração o conceito do ser, que,
também, é primariamente ontológico” (p. 251). Desse modo, destacamos que o processo

6
Referimo-nos a este termo desde uma perspectiva ontológica, como a caracterização real e concreta
necessária do ser enquanto ser social presente na dimensão do gênero humano para o desenvolvimento da
vida socioeconômica, na qual consideramos o trabalho o elemento preponderante da essência e existência
humana (LUKÁCS, 2013).
22

de humanização somente pode ser realmente compreendido a partir da totalidade social


e da historicidade, mediante a apreensão da gênese, da essência e existência humana, ou
seja, por meio dos fundamentos filosóficos de uma determinada ‟ontologia”.
A ontologia, conforme Lukács (2010; 2012; 2013), é uma área da filosofia que,
em sua etimologia, significa onto — ser e logos — conhecer, ‟conhecer o ser”. Como
conceito filosófico, é uma ‟unidade sistemática de conceitos” e complexo categorial
compreendido como ‟teoria do ser”, que traz consigo uma determinada concepção de
história, realidade, indivíduo, sociedade e de teoria do conhecimento. Nessa perspectiva,
a ontologia materialista-histórica, na qual nos apoiamos, para analisar e fundamentar
dentro das relações materiais socioeconômicas a gênese, o desenvolvimento e os
desdobramentos do processo de humanização, nasce com o início da constituição do
próprio ser enquanto ser social.
Cabe ressaltar, diante da tentativa de melhor compreender o processo de
humanização, que os conhecimentos sobre a ontologia, principalmente nos séculos
XVII e XVIII, estavam enraizados, preponderantemente, na filosofia idealista, mais
especificamente na metafísica7 (MARX E ENGELS, 2007). Outro aspecto importante
sobre a ontologia, como base para a compreensão do processo de humanização, é o
advento das contradições da ciência moderna positivista pois, conforme Lukács (2012),
a divisão do conhecimento em várias ciências, com objeto e metodologia particulares e
ênfase nos ‟[...] resultados da lógica matemática e da matematização generalizada de
todas as ciências” (p. 55), vão paulatinamente colocando em segundo plano e de forma
tangencial a necessidade de compreensão filosófica da essência e existência do ser
enquanto ser social dentro de uma totalidade material e social.
Assim, a ciência moderna com o desenvolvimento das relações produtivas e as
novas descobertas sobre a realidade, principalmente na direção da doutrina positivista e
neopositivista, pautadas no pragmatismo, na fragmentação, na racionalidade técnica, na
lógica formal e mecanização do pensamento, no relativismo, utilitarismo, idealismo
subjetivo, antirrealismo, ecletismo e neutralidade sobre uma concepção de mundo,
estabelece-se em contraposição e exclusão aos fundamentos da ontologia,
principalmente, da ontologia materialista-histórica. Esses fundamentos da ciência
moderna que direcionam a interesses unilaterais se desenvolveram em meio a uma crise
7
Conforme Kopnin (1978) a literatura filosófica não marxista entende por metafísica a parte da filosofia
que se dedica à elaboração de princípios e conceitos gerais aplicáveis ao ser. Uma doutrina do ser que se
baseia na absolutização de aspectos isolados do mundo objetivo.
23

da filosofia sobre a explicação da realidade e do ser humano que se configurou numa


dicotomia: o reducionismo filosófico, por um lado, e a exaltação da ciência por outro.
Para Lukács (2012), ao negarmos os princípios e fundamentos ontológicos e, ao
considerarmos irrelevantes, uma série de categorias fundamentais, caímos no abismo
das visões e concepções cientificistas, ou nas filosofias idealistas. Logo, desconsiderar a
ontologia do ser social se configura como um ‟antiontologismo” que implica e
influência diretamente a compreensão do processo de humanização.
O positivismo e, sobretudo, o neopositivismo ocupam nesse desenvolvimento
da filosofia um lugar especial na medida em que aparecem com a pretensão
de assumir uma posição de perfeita neutralidade em todas as questões
relativas à concepção de mundo, de deixar simplesmente em suspenso todo o
ontológico e de produzir uma filosofia que remove por completo de seu
âmbito o complexo de problemas referente àquilo que é em si, tomando-o
como pseudoproblema, irrespondível por princípio. Com isso, o positivismo e
o neopositivismo apossam-se da herança do idealismo subjetivo (LUKÁCS,
2012, p. 54).

Apresentando um ponto de vista crítico sobre o ‟antiontologismo”, Kopnin


(1978) ressalta que a teoria positivista, alegando pseudoproblemas e neutralidade sobre
as questões ontológicas, rejeita quaisquer fundamentos da ontologia (metafísica),
justificando que se trata de uma doutrina universal determinista geral e egocêntrica do
ser de base idealista e antirrealista e afirma que, quaisquer que sejam as teorias do ser,
estas devem ficar a serviço da religião e da fé de cada indivíduo.
O autor ressalta, ainda, que a teoria positivista, ao negar a ontologia metafísica
recai também em contradições, “[...] ao se colocar contra a metafísica, o positivismo não
consegue superá-la; ao contrário, ele mesmo lhe dá fundamento para existir” (p. 57). No
discurso contraditório do positivismo, ao considerarem-se os conhecimentos da ciência,
com existência em si mesmos, os pensamentos sobre a realidade pautada na lógica
formal, a neutralização da totalidade social e da historicidade e a negação de
determinada visão de mundo, acaba-se por cair novamente na visão idealista que pauta,
primordialmente, a crítica realizada a toda metafísica. ‟Com isso, o positivismo e o
neopositivismo se apossam da herança do idealismo subjetivo” (LUKÁCS, 2012, p. 54).
O positivismo e o neopositivismo compreendem a realidade, a essência e o
desenvolvimento do ser humano fora e independente da totalidade material objetiva.
Partem do pressuposto da naturalização das relações sociais e dos indivíduos e que o
objeto é algo externo à história, imutável e sem relação direta com o sujeito. Segundo
Lukács (2012), para essas percepções teóricas, tanto a realidade quanto a humanização
24

‟[...] são concebidas, em essência, como produtos da subjetividade cognoscente,


enquanto o para-si deve permanecer para todo conhecimento um fantasma inalcançável
ou um além sempre abstrato” (p. 54).
Tais teorias, positivismo e neopositivismo, possuem como base o ceticismo
epistemológico, a gnosiologia e narrativas relativistas que dicotomizam e fragmentam a
ciência da filosofia, o sujeito do objeto e a objetividade da subjetividade. Exaltam na
leitura da realidade e do indivíduo a ‟lógica de matematização”, o ‟intersubjetivismo” e
o ‟pragmatismo”, atividades abstratas e idealistas advindas do cotidiano particular que
negam a materialidade, a historicidade, o universal, a gênese do ser social e as práticas
sociais como inerentes às atividades objetivas realizadas pelos seres humanos.
Logo, queremos enfatizar a necessidade de pautarmos a análise do objeto dessa
pesquisa nos fundamentos da ontologia8, pois os pressupostos científicos e filosóficos
que ressaltamos acima configuram o que aqui estamos entendendo como teorias do
antiontologismo ou de uma falsa ontologia. Essas teorias implicam na compreensão do
processo de humanização e na construção de novas práxis sociais voltadas à formação,
inclusive no enfrentamento das problemáticas e na apreensão e construção de
possibilidades voltadas a uma educação escolar pública de qualidade para todos os seres
humanos.
Afirmamos que tais correntes teóricas impossibilitam a compreensão da
essência, do desenvolvimento e das transformações complexas do ser social, do
movimento dialético das contradições e do conjunto categorial histórico que constitui a
totalidade social real e concreta, fruto das produções humanas. Em síntese, nesta
perspectiva, os conhecimentos sobre a humanização são abordados e analisados como
formas naturais, particulares, a-históricas, absolutas, mecânicas e deterministas,
apagando o princípio fundante do gênero humano, o trabalho.
Desse modo, na imensa maioria das abordagens idealistas e positivistas
dessas questões, a especificidade do ser social desaparece por completo; é
construída, artificialmente, uma esfera desprovida de raízes do dever-ser (do
valor), que, em seguida, é posta em confronto com um, presumido, ser
meramente natural do homem, embora este último, do ponto de vista
ontológico objetivo, seja tão social como a primeira (LUKÁCS, 2013, p.
100).

8
De acordo com Lukács (2013) na compreensão da ontologia somente a gênese pode expor as formas
ontologicamente concretas, as tendências dos movimentos, as estruturas e dinâmica de uma determinada
espécie de ser em seu ser-propriamente-assim concreto e neste sentido avançar até as suas legalidades
específicas e ao seus tipos conceitualmente generalizados e fragmentados em sua essência.
25

Em contraposição a uma compreensão do processo de formação humana


fundamentada nas concepções cientificistas ou idealistas compostas pelas contradições
que destacamos anteriormente, definimos a ontologia do ser social como base de nossa
investigação sobre o processo de humanização. Sobre tal ontologia, Lukács (2012)
afirma que se trata de uma virada ontológica advinda da necessidade de construção de
uma ‟nova ontologia”, erguida sobre fundamentos materialistas, históricos e dialéticos.
Para Kopnin (1978, p. 57), esses fundamentos revelam os conceitos e categorias
mais gerais do movimento do mundo objetivo, no entanto, ‟[...] a dialética materialista
é, justamente, a filosofia que rejeita igualmente a escolástica da metafísica especulativa
e o positivismo”. Eis, pois, uma teoria filosófica e científica do ser que vai além das
ontologias idealistas e das teorias cientificistas que dissociam o particular do universal,
o singular do plural, o produto do processo, o conteúdo da forma, o natural do social, a
objetividade da subjetividade e a economia da dialética.
Seus pressupostos são os homens, não em quaisquer isolamentos ou fixação
fantásticos, mas em seu processo de desenvolvimento real, empiricamente
observável, sob determinadas condições. Tão logo seja apresentado esse
processo ativo de vida, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos,
como para os empiristas ainda abstratos, ou uma ação imaginária de sujeitos
imaginários, como para os idealistas (MARX E ENGELS, 2007, p. 94-95).

A nova ontologia, apoiada nos fundamentos do materialismo histórico dialético,


rompe com a tradição filosófica e científica hegemônica dos séculos XVII, XVIII e XIX
e se institui como uma ontologia histórica e material, a qual considera o indivíduo como
ser social produto das atividades humanas. No nosso entendimento, a referente
ontologia possibilita a compreensão das condições estruturais de questões gnosiológicas
e epistemológicas que se relacionam ao nosso objeto de pesquisa — o currículo
escolar— particularmente a compreensão do currículo e ensino da educação física no
processo de desenvolvimento da formação humana. Além disso, propicia a apreensão de
determinados princípios e relações sócio-históricas e ideopolíticos fundantes da
universalidade genérica, ao mesmo tempo, da particularidade das relações sociais e da
singularidade e individualidade dos seres humanos.
Na perspectiva da nova ontologia, a realidade concreta, na qual se efetiva o
processo de humanização, é concebida, como totalidade e produto histórico da ação
humana, conforme se observa em Marx (2011, p. 62): ‟[...] a história não existiu
sempre, a história como história universal é um resultado”. O contexto histórico da
realidade humana é constituído por contradições que atuam como a base determinante
26

para a conservação ou construção de novas realidades. Segundo Lukács (2012, p. 291),


‟[...] nessa concepção, puramente ontológica, a contraditoriedade se apresenta como
motor permanente da relação dinâmica entre complexos, entre processos que surgem de
tais relações”.
A constituição e dinâmica da realidade, de acordo com as análises de Marx
(2013a), são compostas por três categorias advindas da dialética hegeliana fundamentais
para o entendimento da historicidade, do processo de humanização, da construção da
sociedade e do desenvolvimento do ser enquanto ser social; a negação, a contradição e a
mudança. Sobre essa dinâmica, Lukács (2012, p. 254) afirma:
A dialética da realidade que é conhecida pela razão consiste no seguinte: os
momentos da realidade são simultânea e indissoluvelmente independentes e
vinculados, de tal modo que sua verdade é falsificada tão logo se atribua a
um desses aspectos um significado absoluto, que exclua o seu contrário, mas
também quando as diferenças e as oposições são eliminadas em sua unidade.

Desse modo, compreender a realidade é apreender o movimento das contradições


de forma dialética e as transformações e estrutura do mundo objetivo que implicam o
desenvolvimento histórico e processual do gênero e da individualidade humana no
sentido da humanização. Referindo-se à concepção de realidade da ontologia
materialista e histórica, Lukács (2012) ressalta que, nessa concepção ‟[...] a verdadeira
realidade se apresenta em devir concreto; a gênese é a derivação ontológica de toda
objetividade, que — sem esse pressuposto vivo — permaneceria incompreensível
enquanto fixidez deformada” (p. 199). A gênese e o desenvolvimento da humanização,
portanto, efetivam-se somente pelas apropriações e objetivações numa realidade real,
contraditória e concreta de determinada sociedade composta por um modo de produção.
Com efeito ativamente atuante dentro da sociedade, reproduzindo-se dentro
dela, o homem necessariamente é um ser unitário-complexo que reage ao
concreto com a sua própria concretude, um ser que só em sua imaginação
poderia ter propriedades de átomo, um ser cuja complexidade concreta é
simultaneamente pressuposto e resultado de sua reprodução, de sua interação
concreta com o seu meio ambiente concreto (LUKÁCS, 2013, p. 283).

Isso podemos observar, em outra análise de Lukács (2013, p. 544), quando afirma
que ‟[...] o homem singular enquanto ser genérico só pode objetivar as suas paixões
como membro da sociedade à qual pertence”. Constamos ainda que o ser social é
concebido não em uma sociedade determinada e isolada, mas numa sociedade
construída historicamente pela coletividade. ‟O ser humano na medida em que é ser
humano e não somente um ser vivo puramente biológico, fato que jamais acontece na
27

realidade, não pode ser, em última análise, separado de sua totalidade social concreta”
(LUKÁCS, 2012, p.346). Assim, podemos afirmar que, no processo de humanização, há
uma reciprocidade ontológica e dialética entre indivíduo e sociedade, pois não há
sociedade sem indivíduos e nem indivíduos sem sociedade.
Cabe ressaltar que pensar a formação humana é indispensável à análise da
estrutura e dinâmica do modo de produção da sociedade a partir da totalidade social,
pois depende das condições socioeconômicas e culturais construídas pelos próprios
seres humanos. Nas palavras de Marx (2011a, p. 25), ‟[...] os homens fazem a sua
própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles
quem escolhem as circunstâncias, sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram
transmitidas assim como se encontram”.
Nesse processo, o movimento histórico dos atos produzidos pelos seres humanos,
na prática social, é o critério inicial para o concreto e a verdade. ‟Ora, se examinarmos,
ontologicamente, tais atos, eles serão sempre atos concretos de um homem concreto
dentro de uma parte concreta de uma sociedade concreta” (LUKÁCS, 2013, p. 284).
Enfatizamos que tal constatação materialista é um dos pontos essenciais para a
compreensão do processo de humanização que envolve tanto o viver e o agir em
sociedade como também o pensar e o fazer críticos.
Por essas razões, reafirmamos que os elementos ontológicos da estrutura
constitutiva do ser humano estão diretamente relacionados às influências objetivas
advindas da realidade concreta, por sua vez, tais influências são socialmente
construídas.
Todavia, precisamente por causa dessa concretude, que nasce de uma
indissociável concomitância operativa entre o homem singular e as
circunstâncias sociais em que atua, todo ato singular alternativo contém em si
uma série de determinações sociais gerais que, depois da ação que delas
decorre, tem efeitos ulteriores, independentemente das intenções conscientes,
produzindo alternativas de estrutura análoga e fazendo surgir séries causais
cuja legalidade vai além das intenções contidas nas alternativas. Portanto, as
legalidades objetivas do ser social estão indissoluvelmente ligadas a atos
individuais de caráter alternativo, mas possuem ao mesmo tempo uma
estringência social que é independente de tais atos (LUKÁCS, 2012, p. 345).

Quanto mais desenvolvidas e multiformes as relações econômicas da sociedade,


mais necessárias a existência e a influência do ser humano nesta, já que os indivíduos,
por meio de atos de objetivações é ente objetivo ativo, melhor dizendo, constitui o todo
e, ao mesmo tempo, é constituído pela sociedade, processo no qual cria e desenvolve a
28

realidade concreta e forma-se como sujeito da práxis. Afirmamos nossa compreensão da


práxis como uma categoria ontológica, entendida como ação transformadora consciente
da prática social estabelecida na relação dialética entre teoria e prática.
O engendrar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza
inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico consciente, isto é,
um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou se
relaciona consigo enquanto ser genérico. É verdade que também o animal
produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, castor,
formiga etc. No entanto, produz apenas aquilo de que necessita
imediatamente para si ou sua cria; produz unilateralmente, enquanto o
homem produz universalmente. Precisamente por isso, na elaboração do
mundo objetivo é que o homem se confirma, em primeiro lugar e
efetivamente, como ser genérico (MARX, 2010, p. 85).

Como nos diz Marx (2011, p. 43), ‟[...] toda produção é apropriação da natureza
pelo indivíduo no interior de e mediada por uma determinada forma de sociedade”. A
vida econômica produtiva é, portanto, um dos fundamentos ontológicos essenciais para
o processo de humanização, efetivada somente em sociedade. Na mesma perspectiva,
Lukács (2012) afirma ‟[...] a produção, enquanto momento predominante, é aqui
entendida no sentido mais amplo possível, no sentido ontológico, como produção e
reprodução da vida humana” (p. 336).
Essa produção e reprodução da vida social material e não material, que envolve a
subjetividade e a objetividade, atividades nas quais materializam a formação do gênero
e da individualidade humana no processo de humanização se estabelecem e se efetivam
a partir e por meio do elemento ontológico fundante e preponderante dos indivíduos
enquanto seres sociais, o trabalho. Dessa maneira, uma compreensão ontológica do ser
enquanto ser social necessita do desvelamento do sentido ontológico do trabalho.
Conforme Marx (2010, p. 84), ‟[...]a vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a
vida engendradora de vida. No modo da atividade vital, encontra-se o caráter inteiro de
umas espécies, seu caráter genérico; e a atividade consciente livre é o caráter genérico
do homem”. A apropriação e objetivação pela mediação do trabalho são os princípios
ontológicos primordiais de todo o processo de humanização e do desenvolvimento
histórico das relações sociais que constituem a sociedade.
Conforme Marx (2010, p. 85), ‟[...] o objeto do trabalho é, portanto, a objetivação
da vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na consciência,
intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si
mesmo num criado mundo por ele”. Devemos aprofundar a análise ontológica sobre a
29

constituição da formação do gênero e da individualidade no processo de humanização e


os desdobramentos da práxis social por meio do trabalho, como eixo central e atividade
vital dos seres humanos. Engels (2009), referindo-se a este princípio ontológico
fundamental do ser social, afirma:
O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. Assim é, com
efeito, ao lado da natureza, encarregada de fornecer os materiais que ele
converte em riqueza. O trabalho, porém, é muitíssimo mais do que isso. É a
condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até
certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem (p. 4).

Dessa forma, entendemos o trabalho na perspectiva ontológica como a essência e


a existência da vida social, a atividade criadora, construtora, formadora e realizadora,
expressão da práxis humana, elemento que transforma a natureza, produz valor9 aos
objetos, constituindo tanto os produtos materiais e não-materiais e a rede das relações
sociais em determinando tempo e espaço histórico como também os próprios seres
humanos (MARX, 2011).
De acordo com os fundamentos da denominada ‟nova ontologia”, Lukács (2013,
p.83) destaca que ‟[...] o trabalho é um processo entre atividade humana e natureza:
seus atos estão orientados para a transformação de objetos naturais em valores de uso”.
A partir da base socioeconômica, o trabalho engendra a humanização bem como a
estrutura e dinâmica dos desdobramentos da formação do gênero e da individualidade
dos seres humanos — na relação do ser social com o objeto e na constituição da relação
objetividade/subjetividade — de acordo com as necessidades de fruição individual e
coletiva.
A essência do processo de humanização, portanto, é a atividade vital que produz a
vida do homem e o transforma em ser histórico e social. Ainda segundo o autor, “[...] o
trabalho é o modelo de toda práxis social” (p. 47). Nota-se, portanto, que o ser se
humaniza na materialização das relações subjetivas e objetivas por meio do trabalho,
‟[...] agindo sobre a natureza externa e modificando-a, por meio desse movimento, ao
mesmo tempo, sua própria natureza” (MARX, 2013, p. 255). Nesse processo, o ser
humano humaniza a natureza externa a si e a própria subjetividade com a finalidade
consciente de realizar ações produtivas, para reproduzir sua essência genérica e

9
Ressaltamos que nos baseamos na teoria do valor em Marx (2011, 2013). No limite do texto, não iremos
aprofundar tal análise, mas destacamos, neste momento, o ‟valor” como um importante elemento
ontológico.
30

desenvolver a própria existência individual na vida material e cultural produtiva, ao


contrário dos animais.
Resumindo: só o que podem fazer os animais é utilizar a natureza e modificá-
la pelo mero fato de sua presença nela. O homem, ao contrário, modifica a
natureza e a obriga a servir-lhe, domina-a. E aí está, em última análise, a
diferença essencial entre o homem e os demais animais, diferença que, mais
uma vez, resulta do trabalho (ENGELS, 2009, p. 22).

O trabalho é essencial na formação do homem, na manutenção da vida social. ‟A


essência do trabalho humano consiste no fato de que, em primeiro lugar, ele nasce em
meio à luta pela existência e, em segundo lugar, todos os seus estágios são produtos de
sua autoatividade” (LUKÁCS, 2013, p. 43). Fica evidente, portanto, que é, a partir do
trabalho como eixo fundamental do processo de humanização, que o ser social vai se
caracterizando humanamente. O modo que criamos o mundo espiritual e cultural, os
significados e as formas como transmitimos tais significados a nós mesmos.
Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao
homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma
abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém,
o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro
tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do
processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na
representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado
que já existia idealmente (MARX, 2013, p. 256).

Assim, a sociedade é uma ação recíproca de autoprodução dos seres humanos pelo
trabalho. Segundo Duarte (2006), ‟[...] a dialética entre objetivação e apropriação
constitui a própria dinâmica do trabalho e, na perspectiva marxista, o trabalho é a
atividade fundamental com base na qual vai sendo constituída a realidade social” (p.
115). Onde existir relação socioeconômica em qualquer forma e tempo histórico haverá
trabalho, exteriorização, práxis, objetivação, apropriação, internalização e prévia
ideação — características ontológicas essenciais e específicas do gênero humano.
Portanto, o ser social, através do trabalho no interior da vida social produtiva, constrói
sua humanização, a socialidade, a vida real, a racionalidade e também o
desenvolvimento de valores, ética, os significados e símbolos que norteiam esta
sociedade.
Como podemos perceber, avançamos muito na compreensão da formação do
gênero e da individualidade e do processo de humanização quando nos fundamentamos
na concepção ontológica materialista histórica. ‟Essa função de generalização filosófica
não diminui a exatidão científica das análises teórico-econômicas e singulares, apenas
31

as insere nas concatenações que são indispensáveis para compreender adequadamente o


ser social em sua totalidade” (LUKÁCS, 2012, p. 316).
Mesmo o ser social produzindo novas conexões, práxis e fazendo surgir uma nova
realidade e novas contradições no decorrer do processo histórico, os elementos
ontológicos se fazem presentes, pois essência e existência estão intrinsecamente ligadas.
Quaisquer que sejam as produções, no decorrer da história, o conjunto categorial
ontológico se faz presente na vida material da vida produtiva e é a partir dela que se
fazem novas formas de ser e determinações de existência, sempre tendo como princípio
preponderante o trabalho.
O trabalho dá lugar a uma dupla transformação. Por um lado, o próprio ser
humano que trabalha é transformado por seu trabalho; ele atua sobre a
natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza,
desenvolve as potências que nela se encontram latentes e sujeita as forças da
natureza a seu próprio domínio. Por outro lado, os objetos e as forças da
natureza são transformados em meios de trabalho, em objetos de trabalho, em
matérias-primas etc. (LUKÁCS, 2012, p. 286).

Nessa direção, o trabalho é um princípio educativo que contribui na constituição e


no desenvolvimento do ser social (GRAMSCI, 1991). A educação na concepção
ontológica é uma necessidade da e para a socialidade articulada ao processo de trabalho.
Logo, emerge como forma humana de desenvolvimento que pressupõe construções e
autoconstruções para pôr em movimento a produção e a reprodução da realidade
material e espiritual para a humanização de acordo com os condicionantes históricos.
Em primeiro lugar, o trabalho e toda atividade social que, em última análise,
parte dele e volta a desembocar, confronta todo homem com novas tarefas,
cuja execução desperta nele novas capacidades; em segundo lugar, os
produtos do trabalho satisfazem as necessidades humanas de uma maneira
nova, que se afasta cada vez mais da satisfação biológica das necessidades,
mas sem jamais dissociar-se totalmente dela; de fato, o trabalho e os produtos
do trabalho introduzem na vida necessidades sempre novas e até ali
desconhecidas e, com elas, novos modos de satisfazê-las. Em suma: tornando
a reprodução da vida cada vez mais multiforme, cada vez mais complexa,
distanciando-a cada vez mais da reprodução meramente biológica, eles
transformam simultaneamente também os homens que efetuam a práxis,
afastam-nos cada vez mais da reprodução meramente biológica de sua vida
(LUKÁCS, 2013, p. 291).

A educação trata-se de uma prática social cuja finalidade é a formação dos


indivíduos em seres sociais livres10 e universais11. Para Duarte (2012, p. 38), ‟[...] a

10
Seres livres advêm da concepção de liberdade de Marx articulada ao trabalho e como produto da práxis
humana. De acordo com as circunstâncias reais, significa romper com os aprisionamentos históricos e a
possibilidade da apropriação do ser humano das suas propriedades e capacidades do gênero que possa
dominar a natureza e orientar teleologicamente suas atividades na prática social (DUARTE, 2013).
32

educação adquire real significado, como objeto da reflexão ontológica, somente quando
analisada como um dos complexos que compõe o ser da sociedade”. Educação,
portanto, é uma categoria que compõe o ser em seu ‟ser-propriamente-assim concreto”
como fundamento essencial no ‟devir-a-ser” durante a construção da socialidade
humana, das relações materiais e culturais, do desenvolvimento do gênero e da
individualidade humana pelo processo de apropriações e objetivações.

1.2. Fundamentos da ontologia do ser social e educação

Na perspectiva ontológica, o trabalho é o ato educativo original que dá origem à


educação como categoria social a ser desenvolvida pelos seres humanos. Como parte
constitutiva da essência e existência do ser enquanto ser social, propicia o afastamento,
cada vez maior e mais rapidamente, das barreiras naturais e contribui para o
desenvolvimento e enriquecimento do gênero e da individualidade humana.
Reafirmamos, assim, a compreensão ontológica de formação humana e de educação que
norteia esta pesquisa: a compreensão do ser humano como ser social e histórico que, a
partir do trabalho, vai se humanizando como sujeito da práxis dentro da totalidade
histórica constituída por contradições, tendo como eixo o processo de apropriação e
objetivação.
A relação dialética entre trabalho, educação e socialidade, que queremos enfatizar,
é explicitada por Lukács (2013, p. 178), da seguinte forma: ‟[...] de modo imediato,
trata-se de que o ser social, ao reproduzir a si mesmo, torna-se cada vez mais social; ele
constrói o seu próprio ser, de modo cada vez mais forte e mais intenso, a partir de
categorias próprias, categorias sociais”. O ser humano, ao objetivar a realidade externa a
si, humaniza a transformação objetivada e, de maneira simultânea, transforma a própria
subjetividade, um ato educativo que coloca em movimento o processo de humanização.
Segundo Duarte (2012, p. 38), ‟[...] no que diz respeito à educação, em geral, e à
educação escolar, em particular, um dos desafios que estão postos para uma teoria
educacional marxista é o da construção de uma ontologia da educação”. Logo, a
educação é um objeto da ontologia que compõe a constituição do ser humano tanto para

11
A categoria ontológica do ‟ser universal” representa a possibilidade e capacidade material e ideal
produtiva de desenvolvimento das propriedades ontológicas do gênero constituída pelas apropriações e
objetivações socialmente construídas e da intencionalidade da práxis, num processo sócio-histórico que
distancia e recua as barreiras naturais, ampliam a condição humana de existência e cria novas atividades
conscientes (MARTINS, 2012a).
33

o desenvolvimento da individualidade e do gênero quanto para o processo de


socialidade.
Ocorre que não há outra maneira de o indivíduo humano formar-se e
desenvolver-se como ser genérico senão pela dialética entre a apropriação da
atividade humana objetivada no mundo da cultura (aqui entendida como tudo
aquilo que o ser humano produz em termos materiais e não materiais) e a
objetivação da individualidade por meio da atividade vital, isto é, do trabalho
(SAVIANI e DUARTE, 2012, p. 22).

Entendemos a educação como práxis social, ato de humanizar-se, produto e


processo do trabalho e da construção da socialidade que se manifesta na realidade
concreta essencialmente articulada às relações sociais, históricas e culturais. ‟A
educação é um processo puramente social, um formar e ser-formado puramente social”
(LUKÁCS, 2013, p. 294). A concepção ontológica nos permite ir à raiz e à base dos
fundamentos, propriedades, pressupostos, capacidades, problemas e necessidades
educacionais dos seres humanos, para daí compreender e realizar os processos de
formação como constituintes da dinâmica maior de humanização e das singularidades
no desenvolvimento histórico da totalidade social e das particularidades no sentido
ontológico-objetivo, rumo à construção da “generidade autêntica”, conforme apontou
Lukács (2013, p. 353).
A educação, em seu sentido mais amplo, como uma prática de caráter social e
histórico, é a forma e conteúdo universal essencial para o desenvolvimento da vida de
cada indivíduo em sociedade. Na perspectiva ontológica, um dos objetivos universais da
educação é propiciar aos seres humanos a humanização pelos atos de apropriação dos
elementos das objetivações históricas da riqueza material e espiritual da totalidade
social. Nesse sentido, entendemos que a educação não deve se sustentar em concepções
idealistas, mecanicistas, pragmáticas, biologicistas ou relativistas, mas sim, conforme
Manacorda (2010, p. 94), no sentido onilateral, definido como ‟[...] um
desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos, das faculdades e
das forças produtivas das necessidades e da capacidade da sua satisfação”.
Duarte (2012, p. 38) destaca que ‟[...] como o ser da sociedade é histórico, a
essência ontológica da educação só pode ser apreendida numa perspectiva historicista”.
Neste sentido, a educação, como objeto da ontologia, compõe o ser, refina e aprofunda o
caráter social humano, reelabora finalidades da vida produtiva, dissemina os saberes
objetivos, a cultura, e cria novas formas e conteúdo de sociabilidade que se manifestam
tanto na singularidade genérica quanto na individualidade do ser social.
34

[...] a educação do homem é direcionada para formar nele uma prontidão para
decisões alternativas de determinado feitio; ao dizer isso, não temos em
mente a educação no sentido mais estrito, conscientemente ativo, mas como a
totalidade de todas as influências exercidas sobre o novo homem em processo
de formação. […] o maior erro na avaliação de tais processos consiste no
hábito de considerar somente os impactos positivos como resultados da
educação (LUKÁCS, 2013, p. 295).

De fato, a educação, como fundamento da essência e do desenvolvimento da


existência do ser social, é um trabalho de constituição de toda a historicidade construída
até os dias atuais a partir da vida social produtiva de acordo com o espaço e o tempo.
[...] [é] apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência humana
que é a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que um ouvido musical,
um olho para a beleza da forma, em suma as fruições humanas todas se
tornam sentidos capazes, sentidos que se confirmam como forças essenciais
humanas, em parte recém-cultivados, em parte recém-engendrados. Pois não
só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os
sentidos práticos (vontade, amor, etc), numa palavra o sentido humano, a
humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela existência do seu
objeto, pela natureza humanizada (MARX, 2010, p. 110).

Por se materializar numa realidade composta por contradições, podemos


considerar que a educação potencialmente pode se configurar como um conjunto de
circunstâncias, alternativas e possibilidades concretas. ‟Toda sociedade reivindica certa
quantidade de conhecimentos, habilidades, comportamentos de seus membros. O
conteúdo, o método, a duração etc. da educação, no sentido mais estrito, são as
consequências das carências sociais daí surgidas” (LUKÁCS, 2013, p. 177). Com isso,
queremos enfatizar que a educação não é nem produto da natureza e nem determinada
de forma absoluta pela sociedade, mas sim, uma elaboração consciente nas relações
sociais, produto da cultura, dos atos de objetivação historicamente acumulados e
constituídos a cada ato social singular para a coletividade; em síntese, a educação é
produto da práxis humana em meio a uma realidade contraditória.
O caráter alternativo, circunstancial e de possibilidade da educação é enfatizado
por Lukács (2013), quando se refere ao nexo indissolúvel entre o desenvolvimento
econômico e o desenvolvimento humano na perspectiva ontológica.
A práxis econômica é consumada pelo homem, através de atos alternativos,
mas a sua totalidade constitui um complexo dinâmico objetivo, cujas leis,
ultrapassando a vontade de cada homem singular, se lhe opõem como sua
realidade social objetiva, com toda a dureza características da realidade, e,
apesar disso, produzem e reproduzem, na sua objetiva dialética processual,
em nível sempre mais elevado, o homem social; mais precisamente:
produzem e reproduzem tanto as relações que tornam possível o
desenvolvimento superior do homem como, no próprio homem, aquelas
faculdades que transformam em realidade tais possibilidades (p. 115).
35

Pode-se dizer, assim, que a vida em sociedade, necessariamente, implica ao ser


social determinadas circunstâncias e possibilidades de educação. Além disso, o trabalho
e a educação formam um par dialético que constituem a forma da vida social material e
não material, os atos de objetivação do gênero humano, o domínio das leis da natureza,
a riqueza cultural e a produção e reprodução da sociedade.
Para Lukács (2013, p. 78), ‟[...] uma práxis só é possível a partir de um pôr
teleológico de um sujeito, mas que tal pôr implica em si um conhecimento e um pôr dos
processos naturais causais”. A educação como categoria e práxis social, portanto,
envolve necessariamente apropriação, objetivação, autoprodução, modificação, prévia-
ideação, consciência, valores, conhecimentos que se efetivam na prática social pelos
atos do pôr teleológico.
Dentre os fundamentos da ontologia do ser social que sustentam nossa
concepção de educação, destacamos a categoria do pôr teleológico. Lukács (2012)
destaca que ‟[...] uma ontologia do ser social é impossível sem que se estabeleça o
contraste correto entre a causalidade da natureza e a teleologia do trabalho, sem o
esclarecimento de suas inter-relações dialéticas concretas” (p. 225).
Consequentemente, uma vez que partirmos dos fundamentos da ontologia do ser
social tendo o trabalho como eixo central para pensarmos o processo de humanização e
a educação, é necessário o esclarecimento, em síntese, dessas duas categorias. Tanto o
pôr teleológico quanto a causalidade são categorias heterogêneas entre si, porém
dialeticamente inter-relacionadas. Tornam-se homogêneas durante o processo e produto
do trabalho e, consequentemente, no processo de constituição e desenvolvimento do ato
educativo.
O pôr teológico é um princípio ontológico e elemento do trabalho que expressa
as produções e efetivações das finalidades que constituem a educação como práxis
social, pois não existe o caráter de finalidade na natureza, a finalidade existe somente na
ação humana.
O trabalho é, antes de tudo, em termos genéticos, o ponto de partida para
torná-lo-se homem do homem, para a formação das suas faculdades, sendo
que jamais se deve esquecer o domínio sobre si mesmo. Além do mais, o
trabalho se apresenta, por um longo tempo, como o único âmbito desse
desenvolvimento; todas as demais formas de atividade do homem, ligadas
aos diversos valores, só se podem apresentar como autônomas depois que o
trabalho atinge um nível relativamente elevado (LUKÁCS, 2012, p. 348).
36

O pôr teleológico como elemento constitutivo do trabalho é a célula geradora da


vida social, do desenvolvimento e da complexificação da educação como práxis social,
que se manifesta, por sua vez, como parte constitutiva do ser social. ‟O modelo do pôr
teleológico modificador da realidade torna-se, assim, fundamento ontológico de toda
práxis social, isto é, humana” (p. 45). O pôr teleológico, numa síntese, significa o pôr de
um fim, é, portanto, um ato consciente que põe determinados fins a algo na realidade.
Podemos definir esta categoria como ação objetiva com a proposição de produzir e
efetivar finalidades imanentes e conscientes a determinado objeto ou em outros seres
sociais.
Segundo Marx (2013), todo trabalho envolve a ação de colocar finalidade, uma
prévia-ideação, em qualquer tipo de sociedade da história humana, parte de um processo
educacional que se dá previamente na cabeça dos indivíduos com base na vida material,
na qual o produto da realidade concreta é representado na consciência orientada para um
fim.
Além do esforço dos órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a
vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção do trabalhador
durante a realização de sua tarefa, pelo seu próprio conteúdo e pelo modo de
sua execução, atrai o trabalhador. (...) Os momentos simples do processo de
trabalho são, em primeiro lugar, a atividade orientada a um fim (p. 256).

No processo de desenvolvimento histórico do ser social, Lukács (2013) destaca


que existem dois pores teleológicos distintos, que em sua essência são convergentes: o
pôr teleológico singular, que se configura na construção de um fim imediato na relação
direta com um objeto da natureza e o pôr teleológico secundário, relacionado
diretamente ao aspecto social, onde o meio inicial não é mais o natural, mas social. O
pôr teleológico secundário é planejado e organizado previamente pela consciência que,
por sua vez, é influenciada pelas ações no meio social ou pela consciência dos pores
teológicos de outros seres humanos, ou seja, “[...] visa influenciar outras pessoas no
sentido de que elas, por sua vez, efetuem os atos de trabalho desejados por quem os
põem" (LUKÁCS, 2013, p. 358).
Para realizar um pôr teleológico, o ser precisa ter conhecimentos cognitivos
conscientes dos meios para estabelecer e desenvolver a relação e efetivar o pôr. ‟O pôr
do fim nasce de uma necessidade humana-social; mas, para que ela se torne um
autêntico pôr de um fim, é necessário que a investigação dos meios, isto é, o
conhecimento da natureza, tenha chegado a certo estágio adequado” (LUKÁCS, 2013,
37

p. 57). Nesta dependência entre pôr teleológico e causalidade, a educação como práxis
social influencia no agir do ser social, no ato de buscar as alternativas para a construção
de possibilidades, decisões e escolhas na prática social.
No caso dos seres humanos, sua atividade vital, que é o trabalho, distingue-se
daquelas de outras espécies vivas por ser uma atividade consciente que se
objetiva em produtos que passam a ter funções definidas pela prática social.
Por meio do trabalho, o ser humano incorpora, de forma historicamente
universalizadora, a natureza ao campo dos fenômenos sociais. Nesse
processo, as necessidades humanas se ampliam, ultrapassando o nível das
necessidades de sobrevivência e surgindo necessidades propriamente sociais
(SAVIANI e DUARTE, 2012, p. 21).

O processo educacional como uma necessidade social ontológica se efetiva na


realidade concreta, na relação entre o pôr teológico e a causalidade, tendo como
momento preponderante o pôr teleológico secundário. Esse processo, conforme Duarte
(2013) leva historicamente o gênero humano aos saltos ontológicos e propicia, por meio
da atividade educativa, uma ampliação da universalidade do conhecimento da natureza e
da sociedade.
Na concepção que defendemos, a educação envolve pôr teleológico, a
apropriação consciente da cultura humana geral no sentido da aprendizagem consciente
ampla e desenvolvida. Constituída dentro das relações materiais objetivas e da
socialidade, a educação deve ser direcionada ao domínio, organização e apreensão das
particularidades que constituem a totalidade social, voltadas à produção, reprodução,
socialização e transformação da vida econômica, política e cultural. A educação como
práxis social é a promoção do desenvolvimento da capacidade intelectual do ser social
de apropriar-se consciente e criticamente de acontecimentos, situações e necessidades
para a transformação de si e da sociedade. Desenvolvido principalmente na relação com
outros seres humanos mais experientes de acordo com o movimento e nas condições da
realidade concreta.
Logo, trata-se de uma perspectiva ontológica de educação que na visão de
Saviani e Duarte (2012, p. 6), direciona-se ‟[...] a análise dos processos historicamente
concretos de formação dos indivíduos e de como, por meio desses processos, vai se
definindo no interior da vida social um campo específico de atividade humana, a
atividade educativa”. Nesse sentido, defendemos essa perspectiva como uma das
possibilidades de contra-hegemonia, mas para isso é preciso considerar o trabalho como
princípio educativo, pois, se dissociarmos a educação do trabalho, distanciamos o ser
38

social da possibilidade de construção de uma educação cuja finalidade é o processo de


humanização.
A atividade educativa, em seu sentido ontológico, manifesta-se na sociedade de
diversas formas, dialeticamente relacionadas ao modo de produção. Dentre as formas de
educação, destacamos, nesta pesquisa, a educação escolar.

1.2.1. Reflexões sobre a educação escolar com base na perspectiva ontológica de


educação

A perspectiva ontológica de educação, na qual nos apoiamos para investigar e


refletir sobre a educação escolar e os instrumentos que a compõem, nos quais
destacamos o currículo, busca, conforme Duarte (2012, p. 38), ‟[...] compreender a
essência historicamente constituída do processo de formação dos indivíduos humanos
como seres sociais”. Esta perspectiva compreende, em síntese, que as reflexões da
relação dialética entre a essência e existência histórica da formação do ser humano, que
coincide com o processo de apropriação e objetivação, pode trazer melhores condições
para entendermos, na plenitude, a educação escolar para além dos princípios do capital.
Essa concepção mostra que a história não termina por dissolver-se, como
"espírito do espírito", na "autoconsciência", mas que, em cada um dos seus
estágios, encontra-se um resultado material, uma soma de forças de
produção, uma relação historicamente estabelecida com a natureza e que os
indivíduos estabelecem uns com os outros; relação que cada geração recebe
da geração passada, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias
que, embora seja, por um lado, modificada pela nova geração, por outro lado,
prescreve a esta última suas próprias condições de vida e lhe confere um
desenvolvimento determinado, um caráter especial que, portanto, as
circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as
circunstâncias (MARX e ENGELS, 2007, p. 43).

Essa forma de educação se tornou, na história, a atividade educativa mais


complexa e contraditória das práxis e é constituída dentro da vida social coletiva como
um patrimônio cultural de todos os membros da humanidade produto do trabalho
(SAVIANI, 2012a). De acordo com Marx (2012, p. 23), na concepção ontológica, ‟[...]
o trabalho é a fonte de toda riqueza e toda cultura, e como o trabalho útil só é possível
na sociedade e por meio da sociedade, o fruto do trabalho pertence, inteiramente, com
igual direito, a todos os membros da sociedade”. É neste sentido que consideramos a
educação escolar pública de qualidade como produto do e para o trabalho, um direito de
todos os seres humanos, principalmente, aos filhos (as) da classe trabalhadora que, no
39

contexto do sistema do capital, são desprivilegiados da riqueza humana material e não


material.
Mais uma vez, colocamos em relevo a potencialidade da perspectiva ontológica
de educação com o intuito de melhor compreender, na contradição, a essência e o
desenvolvimento dos princípios, pressupostos, fundamentos, especificidades,
problemáticas, possibilidades e a função social, pedagógica e política da educação
escolar e do currículo. Uma concepção a qual nos possibilita ir para além da aparência,
do particular, da unilateralidade, do espontâneo, do natural, do senso comum e não se
limita ao imediatamente perceptível, ao utilitarismo e ao pragmatismo. Uma leitura
crítica, na qual o real não se dá no imediato ou no idealismo, mas na contradição entre o
concreto, o abstrato e o concreto pensado.
Cabe ressaltarmos que não estamos colocando essa forma de educação, a
escolar, como uma atividade que, por si mesma e em si mesma, pode transformar a
sociedade e efetivar o processo de humanização. A escola, como instituição social
constituída na e para a sociedade, manifesta-se com a capacidade de luta contra-
hegemônica e, dependendo da conjuntura, torna-se não a única, mas uma das formas
históricas decisivas na transformação social, pois, não é determinada de forma linear e
absoluta pelas condições sociais (SAVIANI, 2012a). Assim, nossa reflexão não se trata
de uma exaltação da ontologia do ser social por meio da educação escolar como única
possibilidade de emancipação humana e para a superação do sistema do capital, muito
menos como fonte de todas as soluções para os problemas sociais ou uma mera
percepção reprodutivista da realidade.
A educação escolar é uma forma de educação que coincide e envolve atividade,
objetivação e apropriação, pôr teleológico, liberdade, consciência, valores, conceitos,
saber, atitudes, habilidades, ciência, filosofia, arte, cultura geral, instrução, fruição,
ensino, aprendizagem e trabalho. Segundo Duarte (2013, p. 124), ‟[...] a educação
escolar carrega um posicionamento sobre as relações entre a consciência do indivíduo e
a evolução histórica do gênero humano”. Um produto histórico das ações humanas
pautadas desde a constituição do modo de produção capitalista pelas contradições entre
trabalho/capital, humanização/alienação, teoria/prática, conteúdo/forma e
essência/aparência.
Pensar a educação escolar é ir para além dos limites ideológicos da burguesia,
porém há a necessidade de partirmos das contradições do sistema do capital para
40

compreendermos a dimensão ontológica da educação escolar. Portanto, para afirmarmos


que a educação escolar, atualmente, é a forma preponderante de educação sistematizada
e elaborada, e para apreendermos a especificidade da sua função social na perspectiva
ontológica, emerge a necessidade de compreendermos bem o advento e a articulação
com as relações e demandas do modo de produção capitalista.
De acordo com Duarte (2012, p. 42), ‟[...] a educação escolar, nas sociedades
antiga e feudal, não se constituiu uma atividade da qual dependia a produção e
reprodução material dos seres humanos”. Naqueles tempos e espaços históricos que
podemos denominar de pré-capitalistas, a forma de educação predominante estava
diretamente vinculada às questões imediatas e pragmáticas da vida laboral.
A ciência estava substancialmente separada da produção, ou melhor, cada
ramo da produção, limitado a si mesmo, dispunha da sua pequena ciência
operativa e, além dessas tarefas imediatas, a ciência, em geral, apresentava-se
como busca desinteressada da pura verdade, como compreensão da natureza
enquanto imutável dado de contemplação (MANACORDA, 2010, p. 30).

Logo, na idade antiga ou escravista e na idade média ou feudal, à maioria dos


seres humanos interessava mais o aprendizado das técnicas de trabalho artesanais para a
reprodução da vida e eram vinculadas principalmente as relações de trabalho
particulares. De acordo com Saviani (2012b, p. 81-82), ‟[...] a escola aparecia como
uma modalidade de educação complementar e secundária. Isso porque a modalidade
principal continuava sendo o trabalho, uma vez que a grande massa não se educava
através da escola”.
Diante do breve exposto, observa-se que a educação sob a forma escolar na
contradição se torna a principal forma de educação na sociedade capitalista. Por outro
lado, no entanto, historicamente a educação escolar será negada em sua plenitude, de
forma oculta muitas vezes, mesmo pelos defensores burgueses da escola para todos. Os
interesses burgueses têm a consciência da necessidade de generalizar a escola, mas de
maneira limitada e restrita ao mínimo.
Os trabalhadores têm que ter instrução, mas apenas aquele mínimo necessário
para participarem dessa sociedade, isto é, da sociedade moderna baseada na
indústria e na cidade, a fim de se inserirem no processo de produção,
concorrendo para o seu desenvolvimento. Ora, na sociedade capitalista,
desenvolvimento produtivo significa geração de excedentes, isto é, trabalho
que, por gerar mais-valia, amplia o capital (SAVIANI, 2012a, p. 85).

Ressaltamos que, nas contradições entre capital, trabalho e educação, a educação


escolar emerge como possibilidade real e concreta de contribuição no processo de
41

humanização. Uma construção histórica com o potencial de construir novos processos


de ‟devir-a-ser” dos seres humanos e da sociedade e, ao mesmo tempo, aparece como
uma instituição — a escola — que intensifica e legitima determinações violentas dos
ditames do capital contra a formação humana no sentido da humanização.
É preciso ter clareza de que a educação escolar atual muitas vezes, é organizada
e objetivada de tal forma que, mesmo aparentemente democrática e socializada para
todas as classes, na essência do fenômeno, é utilizada como instrumento ideológico de
dominação para atender aos interesses dos que detém o poder econômico.
Na medida em que estamos ainda numa sociedade de classes com interesses
opostos e que a instrução generalizada da população contraria os interesses
de estratificação de classes, ocorre a tentativa de desvalorizar a escola, cujo
objetivo é reduzir o seu impacto em relação às exigências de transformação
da própria sociedade (SAVIANI, 2012b, p. 84).

A educação escolar, tal como se apresenta hoje na forma mais complexa,


estruturou-se num momento sócio-histórico que podemos situar entre o final do século
XVIII e início do século XIX, quando se consolida o modo de produção capitalista
(MANACORDA, 2010). Um período da economia política, conforme Marx (2013), de
grande desenvolvimento tecnológico e de intensificação de um processo de
‟desumanização”. Esse desenvolvimento gerou a complexificação e reestruturações das
forças produtivas e das relações de produção, o aprofundamento da cisão entre capital e
trabalho e a ampliação das dicotomias entre trabalho intelectual e trabalho manual e,
teoria e prática, as quais irão refletir-se na educação escolar.
As reestruturações produtivas intensificaram uma maior exploração da classe
dos trabalhadores, aumentaram a desigualdade social e até mesmo o embrutecimento do
ser humano diante das duras condições mercantilizadas de vida, de trabalho e educação
da grande maioria das pessoas naquele momento histórico (MANACORDA, 2010).
Contraditoriamente, é na consolidação desse modo de produção que será engendrada a
escola pública, na forma organizacional que conhecemos hoje, instituição forjada pelo
intermédio do estado que tende aos interesses do sistema do capital.
É nesse quadro que a exigência de conhecimento intelectual se torna
necessidade geral. Consequentemente, a partir da época moderna, o
conhecimento sistemático – a expressão letrada, a expressão escrita –
generaliza-se, dadas as condições da vida na cidade. [...] Com o advento
desse tipo de sociedade, vamos constatar que a forma escolar da educação se
generaliza e se torna dominante. Assim, se até o final da Idade Média a forma
escolar era parcial, secundária, não generalizada, quer dizer, era determinada
pela forma não escolar, a partir da época moderna ela generaliza-se e passa a
ser a forma dominante, à luz da qual são aferidas as demais (SAVIANI,
2012b, p. 83).
42

Conforme Marx (2012), a incumbência do estado pela educação escolar


universal, igual, obrigatória e gratuita, esta direcionada a educação das classes baixas,
está ligada às condições econômicas precárias e violentas dos indivíduos12 da classe
trabalhadora e a uma superstição democrática. E, destaca, ‟[...] confere ao Estado o
papel de educador do povo, [...] mas é o Estado que, ao contrário, necessita receber do
povo uma educação muito rigorosa” (p. 46).
Para nós, a educação escolar que é oferecida à maioria dos indivíduos,
principalmente na rede pública, no contraste entre manutenção e mudança, está hoje
mais próxima a um processo de reprodução constituído de imposições e manipulações
pragmáticas relativas de adaptação passiva dos indivíduos ao sistema do capital.
Expressam o poder social da forma burguesa, pautada em concepções que propiciam
‟[...] permanecer aprisionado dentro do círculo vicioso institucionalmente articulado e
protegido dessa lógica autocentrada do capital” (MÉSZÁROS, 2008, p. 48). Um
emaranhado de direcionamentos e mecanismos ideológicos da formação humana,
voltados aos princípios do mercado presentes em perspectivas educacionais pedagógicas
e políticas que se distanciam da perspectiva ontológica de educação (DUARTE, 2010).
Podemos ainda ressaltar, na dimensão dos sentidos da formação para o capital, a
seguinte contradição: por um lado, o individualismo exarcebado, a neutralidade
científica e filosófica e a crença na autossufiência individual e, ao mesmo tempo, a
supervalorização da eficiência e eficácia técnica, resultados pragmáticos, produtivismo,
utilitarismo e a matematização do pensamento.
Assim, se a tarefa ideológica da burguesia revolucionária fora a conquista da
realidade por uma razão explicitada em todas as suas determinações, essa
tarefa – na época da decadência – consiste precisamente em negar ou em
limitar o papel da razão no conhecimento e na práxis dos homens.
(COUTINHO, 2010, p. 23).

A educação escolar pautada nessa contraditória forma societal, conforme Saviani


e Duarte (2012), está mais direcionada para uma formação desprovida da apropriação
dos conhecimentos objetivos elaborados durante os saltos ontológicos do gênero
humano presente na cultura, das condições mais adequadas de atingir os objetivos da

12
Atualmente com as reestrurações produtivas e reformulações do mundo do trabalho, os indivíduos da
classe trabalhadora sofreram variadas denominações ampliando a análise sobre o proletariado que Marx
(2012) enfatiza ao tratar sobre a escola. No limite deste trabalho, não iremos entrar na discussão
específica sobre o mundo do trabalho e as formas da classe trabalhadora.
43

função social da escola, da efetivação da práxis. Além disso, está provida de uma
dicotomização intensa entre ciência e filosofia, indivíduo e sociedade e uma dissociação
entre teoria e prática. Visa, na maioria das circunstâncias históricas, à preparação para a
reprodução de valores, competências e habilidades para o mercado.
Esse cenário propicia à maioria dos indivíduos a alienação, leva ao
conformismo, ao ajuste, à adaptação, à apatia e ao desinteresse sobre as formas de
apropriação de valores objetivos mais desenvolvidos e complexos do gênero humano no
sentido da humanização. E, o distanciamento de objetivações nucleares que possibilita o
desenvolvimento da individualidade dentro de um projeto de pores teleológicos de
emancipação sobre as formas burguesas do ‟ter”, ‟ser” e ‟estar”.
Como ressalta Mészáros (2008), a educação que temos hoje é organizada ‟[...]
da maneira mais tacanha, como a única forma certa e adequada de preservar os padrões
civilizados dos que são designados para educar e governar, contra a anarquia e a
subversão” (p. 49). Para nós, essa tendência civilizatória trata-se de um processo para e
a serviço do capital direcionada a uma formação excludente, mercantilizada, mecânica,
coisificada, alienante e com discursos românticos13 voltada à mera adaptação dos
sujeitos a uma realidade violenta legitimada pelos interesses burgueses.
Essa realidade nos possibilita uma apreensão crítica de elementos e mecanismos
contraditórios para irmos além da aparência e criarmos novas maneiras de objetivações
dentro da escola. Além disso, cria novas necessidades de identificar; compreender e
ampliar os elementos culturais nucleares que precisam ser assimilados; reorganizar os
objetivos e funções escolares; descobrir as formas adequadas de desenvolvimento do
trabalho pedagógico e reformular os princípios políticos de luta contra-hegemônica
(SAVIANI, 2012a).
Necessitamos, então, urgentemente, de uma atividade de
‟contrainternalização”, coerente e sustentada, que não se esgote na negação
— não importando quão necessário isso seja como uma fase nesse
empreendimento — e que defina seus objetivos fundamentais, como a
criação de uma alternativa abrangente concretamente sustentável ao que já
existe (MÉSZÁROS, 2008, p. 56).

Portanto, desde a constituição da escola pública na modernidade, nos moldes que


se aproximam do momento atual, há possibilidades concretas de incremento dos

13
Utilizamos o termo romântico com base em Gramsci (1991), quando traz, na discussão sobre a escola
unitária, as influências da década de 1930 de princípios que prejudicam a luta contra a escola mecânica e
jesuítica. Para nós, está diretamente relacionado aos princípios ideológicos da escola nova que fragmenta
a luta, distorce e inverte a função social da escola.
44

pressupostos da perspectiva ontológica da educação ligados à especificidade da


educação escolar e direcionada a contribuir na árdua e complexa construção coletiva de
caminhos para uma nova ordem social para além do capital. Assim, a escola
contemporânea é uma instituição necessária à reprodução do modo de produção e, ao
mesmo tempo, também da reivindicação como possibilidade concreta de formação e
emancipação para todos os seres humanos, inclusive da classe trabalhadora.
A socialização, pela escola, das atividades humanas, historicamente construídas
e mais desenvolvidas, como patrimônio cultural e riqueza humana, é uma condição
importante para a humanização de cada indivíduo. Trata-se de uma atividade para que o
vir a ser da individualidade para si14 torne-se um potencial real e concreto de
emancipação para todos os seres humanos.
O indivíduo forma-se, apropriando-se dos resultados da história social e
objetivando-se no interior dessa história, ou seja, sua formação realiza-se por
meio da relação entre objetivação e apropriação. Essa relação efetiva-se
sempre no interior de relações concretas com outros indivíduos, que atuam
como mediadores entre ele e o mundo humano, o mundo da atividade
humana objetivada (DUARTE, 2013, p. 46).

O caráter ontológico da essência constitutiva da educação escolar, construído


historicamente em meio ao processo de lutas de classe, divisão do trabalho e
propriedade privada, advém da articulação das transformações das forças produtivas e
das relações econômicas que possibilitaram o intenso desenvolvimento da ciência e da
tecnologia e a complexificação das relações sociais. Segundo Lukács (2012, p. 319),
‟[...] o ser social tem um desenvolvimento no qual as categorias naturais, mesmo sem
jamais desaparecerem, recuam de modo cada vez mais nítido, deixando o lugar de
destaque para categorias que não têm na natureza sequer uma analogia”. Assim, não
podemos negar, mesmo contra a estrutura e a dinâmica do sistema do capital, este modo
de produção possibilitou grande ampliação, desenvolvimento das forças produtivas, dos
instrumentos e produtos sociais e culturais.
Tais transformações propiciaram ao ser social e à sociedade um maior
distanciamento das barreiras naturais, exigindo dos seres humanos o engendramento de
novas formas de trabalho e sociabilidade, que, por sua vez, vão gerando formas
educacionais de agir na realidade concreta. Esse processo dinâmico e dialético deu

14
A individualidade para si coincide com o processo de humanização no sentido ontológico, tem como
fundamento uma vida plena de conteúdo da riqueza cultural produzida pela evolução das objetivações do
gênero humano, uma formação livre e universal (DUARTE, 2013).
45

origem e continua sendo o motor das formas de educação socialmente estabelecidas no


atual momento histórico, sendo a escola o principal espaço institucionalizado de
universalização da cultura e socialização do saber elaborado e sistematizado (SAVIANI,
2012b).
O conjunto dos seres humanos e a escola encontra-se diante de uma totalidade
social cada vez mais complexa que necessita dar respostas à vida produtiva. Nesse
processo, os seres humanos vêm criando e desenvolvendo novas práxis e formas de atos
de objetivação e apropriação mais complexas, dentre as quais se destaca a educação
escolar. Conforme Duarte (2013), o ser humano produz uma realidade objetiva que
passa a ser portadora de características humanas socioculturais, acumulando
historicamente a atividade de gerações de seres humanos. Isso gera a necessidade de
outra forma do processo de apropriação da natureza, mas como apropriação dos
produtos culturais da atividade humana, isto é, apropriações das objetivações do gênero
humano de forma elaborada e sistematizada como riqueza-patrimônio da humanidade
historicamente acumulada.
Lembremo-nos que a educação escolar se constitui a partir de determinadas
condições nas relações entre sociabilidade e cultura humana oriundas dos processos
econômicos de objetivações humanas, construídos por meio de pores teleológicos.
Segundo Lukács (2013, p. 205), ‟[...] um pôr teleológico sempre vai produzindo novos
pores, até que deles surgem totalidades complexas, que propiciam a mediação entre
homem e natureza cada vez mais abrangente, cada vez mais exclusivamente social”.
Desse modo, podemos afirmar que a educação escolar vai se desenvolvendo em uma
totalidade cada vez mais social, abrangente, complexa e contraditória, como uma
necessidade ontológica voltada à formação e ao desenvolvimento dos seres humanos.
É preciso sempre considerar, no entanto, que a educação escolar está construída
nas condições alienantes estruturais do sistema do capital. Em sua forma real e concreta,
revela-se sob a forma da institucionalização. “Em outras palavras, a partir do
capitalismo, torna-se uma necessidade do ser da sociedade a elevação do processo
educativo, do nível de processo educativo em si para o nível de processo educativo
para-si” (DUARTE, 2012, p. 44).
Portanto, a educação escolar, tal como a conhecemos hoje, desenvolve-se numa
forma educacional cuja finalidade é a transmissão para cada indivíduo singular, de
maneira sistematizada e elaborada, das objetivações do gênero humano pelo trabalho
46

educativo. De acordo com Saviani (2012a, p. 13), ‟[...] trabalho educativo é o ato que
produz, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto de homens”. Propicia apropriações
que ampliam as atividades humanas e os conhecimentos sociais e naturais para a
produção e reprodução da vida socioeconômica.
A atividade humana, ao longo da história, vai constituindo as objetivações,
desde os objetos stricto sensu, bem como a linguagem e as relações
cotidianas entre os seres humanos, até as formas mais elevadas de
objetivação humana, como a arte, a ciência e a filosofia. Cada indivíduo tem
de se apropriar ao menos de um mínimo desses resultados da atividade social
para poder viver sua cotidianidade. São as circunstâncias concretas da vida de
cada um que determinarão quais objetivações do gênero humano deverão ser
necessariamente apropriadas pelo indivíduo para que ele assegure sua
sobrevivência (DUARTE, 2013, p. 38).

A educação escolar se manifesta, pois, como uma forma de educação que


propicia potencialmente a socialização e a internalização do que existe de mais
desenvolvido na ciência, na filosofia e nas artes. Além da disseminação do
conhecimento científico mais desenvolvido, deve também proporcionar a apropriação
científica de técnicas produtivas por meio da educação tecnológica. Uma combinação
entre instrução escolar e trabalho produtivo para além da forma burguesa envolvendo de
forma dialética a ciência e filosofia. Concepção que ainda hoje é compreendida como
uma necessidade histórica da classe trabalhadora ainda não efetivada. A educação
escolar está, por isso mesmo, intrinsecamente ligada à estrutura social produtiva e ao
desenvolvimento da cultura, da filosofia, da ciência e das artes.
[...] um mundo de conhecimentos e de disponibilidades para o homem, uma
nova necessidade e especializações e, ao mesmo tempo, uma nova
necessidade de coordenação do saber, de uma nova articulação entre o
conhecer e o fazer, que transforma a vida do homem e exige homens novos.
Mas, se assim mudam a natureza e a finalidade da ciência, não pode deixar de
mudar também a escola, isto é, o processo de formação desses novos homens
(MANACORDA, 2010, p. 31).

O desenvolvimento das forças produtivas, da ciência e da tecnologia amplia a


necessidade de socialização e apropriação, pelos trabalhadores, dos conhecimentos
elaborados e desenvolvidos e da socialização dos conhecimentos historicamente
construídos. Portanto, a educação escolar se manifesta diante da necessidade ontológica
explicitada por Duarte (2013, p. 36), nos seguintes termos: ‟[...] cada geração ter que se
apropriar das objetivações resultantes da atividade das gerações passadas”. Como
47

exposto, o ser humano, para desenvolver-se como gênero, a partir de sua


individualidade, precisa reproduzir a vida social para um ‟novo ser-para-si”.
[...] a nova forma de continuidade no âmbito do ser social não pode surgir
sem consciência; somente quando essa nova forma do ser é elevada à
consciência, ela pode alcançar um novo ser-para-si. [...] Portanto, a
consciência deve se desenvolver continuamente, deve preservar dentro de si o
já alcançado como base para o que virá, como trampolim para o mais
elevado, mas, de modo tal que, ao mesmo tempo, esteja aberta (LUKÁCS,
2013, p. 208).

Esse processo necessariamente implica a apropriação individual de produtos


culturais que poderão se transformar em novas formas críticas e conteúdos da
consciência. Trata-se, conforme Gramsci (1991), de um momento necessário no
processo de humanização que possui como ‟momento preponderante” o trabalho
intelectual com a cultura humana geral, articulado à apropriação da arte, da filosofia,
das ciências da natureza e das ciências sociais a partir da prática social e da totalidade.
Tal realidade, tendo como essência uma ciência, a ciência da história (MARX e
ENGELS, 2007).
Coloca-se, aqui, a necessidade de continuarmos a refletir sobre as finalidades da
educação escolar. Para nós, os pressupostos da pedagogia socialista remetem
diretamente à práxis educativa escolar na perspectiva ontológica de educação.
Penso que a tarefa da construção de uma pedagogia inspirada no marxismo
implica a apreensão da concepção de fundo (de ordem ontológica,
epistemológica e metodológica) que caracteriza o materialismo histórico.
Imbuído dessa concepção, trata-se de penetrar no interior dos processos
pedagógicos, reconstruindo suas características objetivas e formulando as
diretrizes pedagógicas que possibilitarão a reorganização do trabalho
educativo sob os aspectos das finalidades e objetivos da educação, das
instituições formadoras, dos agentes educativos, dos conteúdos curriculares e
dos procedimentos pedagógico-didáticos que movimentarão um novo éthos
educativo voltado à construção de uma nova sociedade, uma nova cultura,
um novo homem (SAVIANI, 2012, p. 81).

Para a construção de uma práxis educativa na perspectiva ontológica, a educação


escolar não pode se limitar a determinadas análises particulares, singulares e
fragmentadas dentro da sociedade capitalista. Segundo Duarte (2013), ‟[...] quanto mais
ações realizadas no interior das escolas se assemelham ao cotidiano da sociedade
capitalista, mais alienante se torna a educação escolar”. Isso significa que, ao nos
restringirmos somente à descrição gnosiológica — epistemológica do desenvolvimento
da institucionalização da educação escolar, recairmos na crítica pela crítica e no
48

determinismo social, estaremos contribuindo para que a escola sirva somente à


manutenção do sistema do capital, distanciando-se de sua função ontológica.
No processo histórico, o papel político e a especificidade da educação escolar se
efetivam, como analisamos em meio a uma crise permanente, que se funda na
contradição entre capital/trabalho e humanização/alienação, que afeta sua estrutura,
organização, objetivos e realização.
A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir a linha: escola
única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre,
equanimente, o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente
(tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de
trabalho intelectual (GRAMSCI, 1991, p. 118).

A concepção de escola unitária de Gramsci é constituída na perspectiva


ontológica. A educação escolar é considerada um espaço da coletividade onde se dá a
formação intelectual, filosófica, física, científica, artística, orientada por uma cultura
geral que se articula à totalidade complexa e contraditória do mundo social e natural.
‟Assim, a transformação da igualdade formal em igualdade real está associada à
transformação dos conteúdos formais, fixos e abstratos, em conteúdos reais, dinâmicos
e concretos” (SAVIANI, 2012a, p. 64).
Para Gramsci (1991), a luta contrária ao sistema do capital se estabelece como
uma concepção contra-hegemônica, ‟[...] significa o início de novas relações entre
trabalho intelectual e trabalho industrial, não apenas na escola, mas em toda a vida
social” (p. 125). A escola como instituição social na qual se realiza a educação escolar
torna-se, assim, historicamente e na contradição, um espaço científico, filosófico,
político e pedagógico privilegiado para a formação humana no sentido da humanização.
Nesse processo, que para Saviani (2012a) é a elevação da educação para-si,
destaca-se a importância política e social da educação que reside na função de
socialização do conhecimento historicamente construído. Envolve o desenvolvimento
da consciência individual e das objetivações do gênero humano. Tal função da educação
escolar cria possibilidades de pensar a realidade concreta, levantar as contradições,
compreendê-las em sua origem e múltiplas determinações, desvelar as concepções
científicas, filosóficas e ideopolíticas, levando-se em consideração as condições
materiais e históricas.
Trata-se da elevação intelectual, física e moral das massas, no sentido da
humanização, cuja função social primordial é a de socialização, sistematização e
49

apropriação dos conhecimentos elaborados e complexos historicamente construídos


pelos seres humanos como patrimônio cultural.
Isso significa que a escola não pode deixar de se configurar a não ser como o
processo educativo em que coincidem a ciência e o trabalho; uma ciência não
meramente especulativa, mas operativa, porque, sendo operativa, reflete a
essência do homem, sua capacidade de domínio sobre a natureza; um
trabalho não destinado a adquirir habilidades parciais do tipo artesanal,
porém o mais articulado possível, pelo menos em perspectiva, à tecnologia da
fábrica, a mais moderna forma de produção (MANACORDA, 2010, p. 80).

Essa concepção de escola, com potencial de realização de uma educação escolar


numa perspectiva ontológica, remete-nos, necessariamente, ao direcionamento de uma
perspectiva educacional de qualidade, laica, gratuita e de gestão pública comprometida
com os interesses da classe trabalhadora, ou seja, dos interesses humanos. Segundo
Saviani (2012), “[...] uma escola unitária guiada pelo mesmo princípio, o da radical
historicidade do homem e organizada em torno do mesmo conteúdo, a própria história
dos homens, identificando como o caminho comum para formar indivíduos plenamente
desenvolvidos” (p. 52). Um espaço institucionalizado social e historicamente
desenvolvido para a disseminação do saber produzido e sistematizado pela humanidade.
Uma educação escolar, na perspectiva de produzir atos que induzem um grupo
de pessoas a realizar determinadas finalidades, com o objetivo final de contribuir na
produção e reprodução da vida social coletiva no sentido da humanização. Pores
teleológicos que desenvolvam nos alunos a necessidade de novos conhecimentos sobre
a natureza e da realidade social que estes ainda não sabem ou que não compreendem,
com o objetivo, fundamentado na perspectiva ontológica, de colaborar no salto
ontológico do gênero e no desenvolvimento da individualidade humana.
O salto significa precisamente que o homem trabalhador e falante, sem deixar
de ser um organismo biologicamente determinado, passa a desenvolver
atividades de novo tipo, cuja constituição essencial não pode ser apreendida
com nenhuma categoria da natureza (LUKÁCS, 2013, p. 402).

Tais saltos ontológicos proporcionam ao ser social o desenvolvimento das


funções psíquicas superiores, transformando a realidade objetiva e subjetiva
estabelecida na e para as práticas sociais. Possibilitam ir da lógica formal à dialética, das
ações espontâneas às ações conscientes, do senso comum à consciência filosófica e da
visão sincrética à síntese. ‟Em síntese, não se trata de optar entre relações autoritárias
ou democráticas, no interior da sala de aula, mas de articular o trabalho desenvolvido
nas escolas com o processo de democratização da sociedade” (SAVIANI, 2012a, p. 78).
50

Pensarmos, a partir da perspectiva ontológica de educação, a educação escolar,


não se restringe ao mundo das ideias ou às críticas reprodutivistas, mas na proposição
de ações concretas que vão além da sala de aula e dos muros das escolas, sem ao mesmo
tempo perdê-las do foco. Segundo Saviani (2012b), essas ações são articuladas à
construção de caminhos e possibilidades, dialeticamente ligadas à historicidade e à
totalidade social, bem como perpassam pela ‟[...] reorganização do trabalho educativo,
levando em conta o problema do saber sistematizado, a partir do qual se define a
especificidade da educação escolar” (p. 84).
Na avaliação de tais situações, jamais se deve esquecer que o homem, em
seus atos e nas ideias, nos sentimentos etc. que os preparam, acompanham,
reconhecem e criticam, sempre está dando respostas concretas a dilemas de
ação perante a vida, com os quais ele, enquanto homem que vive em
sociedade, é confrontado, em cada caso, por uma sociedade bem determinada
(de modo imediato: por classe, estrato etc. descendo até a família), mesmo
que ele pense estar agindo puramente por impulsos advindos de sua
necessidade interior. Do nascimento ao túmulo, essa determinação, do campo
de ação da resposta posta pela pergunta, nunca cessa de atuar (LUKÁCS,
2013, p. 287).

Podemos verificar como isso se dá materialmente pela privatização e


monopolização dos conhecimentos historicamente construídos, o desaparecimento da
busca das melhores formas de apropriações dos saberes escolares, a cisão cada vez
maior na divisão do trabalho manual e intelectual, a dissociação entre teoria e prática e
na formação de força de trabalho como mercadoria. Além disso, na intensificação da
precarização e intensificação do trabalho, na manipulação tecnológica da maquinaria, na
valorização do valor de troca, no recrudescimento da mais-valia, na racionalização do
tempo e ampliação da alienação.
Portanto, na atual conjuntura societal complexa do sistema do capital, a
educação escolar se configura por um conjunto de implicações socioeconômicas
contraditórias, cuja essência/existência se constitui, em grande parte, por determinadas
ideologias de classes com interesses antagônicos. Assim, para analisarmos o atual
estágio de desenvolvimento da educação escolar, emerge a necessidade de desvelar essa
particularidade — a ideologia — e quais os componentes e mecanismos a compõe e
como se relacionam, constituem e são constituídas pela educação escolar. Construções
humanas relacionadas as lutas de classes que implicam no processo de formação e
desenvolvimento humano.
51

1.3. Ideologia: relações e contradições no processo de formação humana.

A análise que realizamos até aqui, do trabalho como princípio ontológico e


educativo, ajuda-nos a compreender a gênese e o desenvolvimento do processo de
humanização, da educação e da educação escolar. Para Lukács (2013), a essência da
atividade educativa ‟[...] consiste em influenciar os homens no sentido de reagirem às
novas alternativas de vida do modo socialmente intencionado” (p. 178).
Na análise dessas questões, percebemos que a atividade educativa é uma prática
humana intencional e consciente que constitui e conduz o desenvolvimento do ser social
e da sociedade como uma produção que envolve ideologia. Numa totalidade complexa,
dinâmica e constituída de conflitos como a nossa sociedade, todas as formas de
educação se manifestam na realidade concreta configuradas por uma ideologia, quer a
percebemos ou não.
No entanto, a verdade é que, em nossas sociedades, tudo está ‟impregnado de
ideologia”. Além disso, em nossa cultura liberal-conservadora o sistema
ideológico, socialmente estabelecido e dominante, funciona de modo a
apresentar – ou desvirtuar – suas próprias regras de seletividade, preconceito,
discriminação e até distorção sistemática como ‟normalidade”,
‟objetividade” e ‟imparcialidade científica” (MÉSZÁROS, 2012, p. 57).

Lukács (2013) afirma que ‟[...] toda elaboração puramente consciente da


realidade, não importando quando e como, torna-se faticamente uma ideologia, tem
como ponto de partida o processo de reprodução da vida humana que se tornou social”
(p. 539). Dessa maneira, a ideologia como uma forma de ser e determinação de
existência está presente desde a gênese do processo de constituição e desenvolvimento
do ser enquanto ser social, da sociedade e da atividade educativa.
O caráter ideológico da atividade educativa coloca em movimento dialético a
subjetividade e a objetividade, o ideal e o real, a consciência e a realidade, o universal e
o particular, a totalidade e a singularidade, a individualidade e o gênero humano, as
contradições e a historicidade, a ciência e a filosofia (DUARTE, 2013). Queremos dizer
com isso que, quanto mais a atividade educativa se expande na sociedade, mais esta
práxis se torna imanente às relações ideológicas que se articulam dialeticamente aos
elementos e mecanismos econômicos, sociais e culturais de um determinado modo de
produção.
A educação, por mais "primitiva" que seja, por mais rigidamente que esteja
presa à tradição, pressupõe um comportamento do indivíduo, no qual já
podiam estar disponíveis os primeiros rudimentos para a formação de uma
ideologia, visto que, nesse processo, necessariamente são prescritas normas
52

sociais de cunho geral ao indivíduo quanto ao seu comportamento futuro


enquanto homem singular e inculcados modelos positivos e negativos de tal
comportamento. Essa socialização do comportamento individual atua
diretamente como costume herdado, mas não se pode esquecer que ela tem de
ser, inclusive no estágio mais primitivo do desenvolvimento da humanidade,
um produto de pores teleológicos (LUKÁCS, 2013, p. 475).

A essência da ideologia, segundo Mészáros (2013), constitui-se na relação


concreta do ser humano com a totalidade social no processo de produção material da
vida social. Nas palavras de Lukács (2013), ‟[...] a ideologia é, sobretudo, a forma de
elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e
capaz de agir” (p. 465). É constituída no processo do pôr teleológico, no momento ideal
de constituição da finalidade para a criação do novo, no desenvolvimento da vida
produtiva, melhor dizendo, a constituição ontológica da ideologia se apresenta no
momento ideal do pôr teleológico. É efetivada somente no fim do ideal posto pelo ser
humano para e na realidade material concreta constituída por determinados
conhecimentos conscientes do meio no qual se configura.
Nesse sentido, Mészáros (2012, p. 65) afirma que ‟[...] a ideologia não é ilusão
nem superstição religiosa de indivíduos mal orientados, mas uma forma específica de
consciência social, materialmente ancorada e sustentada”. Tal consciência social é
constituída de abstrações reais e concretas da totalidade social, construídas pelos seres
humanos no processo histórico, na luta pela vida material produtiva, como elaborações
ideais advindas do mundo empírico.
[...] não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da
consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida
real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a
consciência apenas como sua consciência desses indivíduos práticos, atuantes
(MARX E ENGELS, 2007, p. 94).

A ideologia é um conjunto de elaborações ideais conscientes, intencionais e


interessadas do pensamento humano sobre a totalidade social, que se constitui para a
efetivação de determinados fins na vida produtiva. Trata-se, portanto, de uma categoria
constituída e desenvolvida historicamente por elementos e mecanismos da produção
material e cultural e dos conflitos da vida social em concordância dialética entre o real e
o ideal. Segundo Lukács (2013), um ideal ‟[...] pode se converter em ideologia só
depois que tiver se transformado em veículo teórico ou prático para enfrentar e resolver
conflitos sociais, sejam estes de maior ou menor amplitude, determinantes dos destinos
53

do mundo ou episódios” (p. 467).Ao emergir no ato do pôr teleológico como prévia
ideação, a ideologia implica em todas as práxis, tornando-se elemento da configuração e
materialização de determinada visão de mundo, composta por finalidades e objetivos
construídos pelos seres humanos a partir dos conflitos sociais.
Como categoria que institui as visões de mundo, a ideologia constitui a
consciência e a concepção dos indivíduos singulares sobre a totalidade social,
materializa-se nas ações na realidade concreta e nas reações às perguntas advindas da
prática social, bem como no processo de objetivações e apropriações, assim como tende
a se totalizar como força dominante na estrutura social produtiva.
A produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio,
imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio
material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar,
o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação
direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção
espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da
moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são produtores
de suas representações, de suas ideias e, assim por diante, mas os homens
reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado
desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele
corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência
não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é
o seu processo de vida real (MARX e ENGELS, 2007, p. 93-94).

Por conseguinte, o discurso ideológico se expressa como uma concepção de


mundo condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas, servindo a
determinados interesses de grupos e classes sociais. ‟Os interesses desse discurso não
devem ser articulados como proposições teóricas abstratas, mas sim como indicadores
práticos bem fundamentados e estímulos efetivamente mobilizadores, direcionados às
ações socialmente viáveis dos sujeitos coletivos reais” (MÉSZÁROS, 2012, p. 66). O
discurso ideológico tende a se generalizar quanto mais às relações econômicas da
sociedade se tornam desenvolvidas.
Para Marx e Engels (2007), ‟[...] ao desenvolverem sua produção e seu
intercâmbio materiais, os homens transformam também, com esta sua realidade, seu
pensar e os produtos de seu pensar” (p. 94). Além disso, criam elementos e mecanismos
ideais para o desenvolvimento e propagação de determinados propósitos dentro da
esfera socioeconômica. Em cada modo socioeconômico de determinado tempo histórico
se expressa de acordo com interesses sob formas socioeconômicas específicas de grupos
ou classes que compõem a estrutura social fundamental de cada tipo de organização
societal, em uma relação dialética entre particular e o universal.
54

Logo, a existência social da ideologia parece pressupor os conflitos sociais,


que precisam ser travados, em última instância, em sua forma primordial, isto
é, socioeconômico, mas que desenvolvem formas específicas em cada
sociedade concreta: justamente as formas concretas da respectiva ideologia
(LUKÁCS, 2013, p. 471).

Desse modo, a ideologia pode ser compreendida na plenitude ontológica


somente dentro da ‟totalidade complexa dinâmica” da sociedade, dos conflitos sociais e
das lutas de classe de um determinado modo de produção. Conforme Marx e Engels
(2010, p. 40), ‟[...] a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das
lutas de classe”. Nesta história, os embates ideológicos de interesses vitais dentro da
estrutura social se manifestam de forma antagônica, onde determinado grupo ou classe
busca o controle e a manipulação do metabolismo social, perpetuando, de forma
escancarada ou oculta, as finalidades e objetivos particulares, como sendo de interesse
geral de toda sociedade.
Neste contexto de conflitos socioeconômicos no processo histórico de
reprodução da vida social, os seres humanos vão construindo e incorporando elementos
e mecanismos de uma determinada ‟ideologia de classe”.
A ideologia, como forma específica de consciência social, é inseparável das
sociedades de classe. Ela se constitui como consciência prática inescapável
de tais sociedades, vinculada à articulação dos conjuntos e estratégias rivais
que visam ao controle do metabolismo social sob todos os seus princípios e
aspectos. Os interesses sociais, que se revelam ao longo da história e que se
entrelaçam de modo conflitante, encontram suas manifestações no plano da
consciência social na grande diversidade do discurso, relativamente
autônomo (mas, de forma nenhuma, independente), com seu impacto
poderoso mesmo sobre os processos materiais mais tangíveis do metabolismo
social (MÉSZÁROS, 2008a, p. 9).

Os seres humanos, na necessidade de dar respostas a estes conflitos da estrutura


social, vão construindo e assimilando objetivações alternativas, negando, adaptando ou
reproduzindo elementos e mecanismos ideológicos direcionados aos interesses de
determinada classe social. Segundo Lukács (2013, p. 472), ‟[...] essa determinação só
pode se tornar um motor da práxis quando os homens singulares vivenciam esses
interesses como seus próprios e tentam impô-los no quadro das relações vitalmente
importantes para eles com outras pessoas”. Nesse quadro, o desenvolvimento de todas
as práxis sociais pressupõe a existência de uma disputa ideológica de classe que
influencia na tomada de consciência do ser social.
55

A base material e espiritual da ideologia constituída na prática socioeconômica


torna-se a teorização15 das objetivações e apropriações dentro das lutas de classe,
melhor dizendo, torna-se a forma pela qual os seres humanos tomam conhecimento de
seus conflitos sociais mediante a luta de reprodução material da vida.
A questão principal é, por conseguinte, que o surgimento de tais ideologias
pressupõe estruturas sociais, nas quais distintos grupos e interesses
antagônicos atuam e almejam impor esses interesses à sociedade como um
todo como seu interesse geral. Em síntese: o surgimento e a disseminação de
ideologias se manifestam como a marca registrada geral das sociedades de
classes (LUKÁCS, 2013, p. 472).

Na conjuntura da sociedade de classes, a ideologia tende a generalizar-se


socialmente dentro de uma hierarquia de valores definidos e determinados pelo poder
econômico da classe hegemônica. ‟O fato é, portanto, o seguinte: indivíduos
determinados, que são ativos na produção de determinadas maneiras, contraem entre si
estas relações sociais e políticas determinadas” (MARX E ENGELS, 2007, p. 93).
Logo, os elementos e mecanismos da ideologia hegemônica estão ligados aos interesses
da classe dominante de determinado modo de produção societal e tempo histórico, pois
o ser humano nunca é independente das condições históricas (LUKÁCS, 2013).
Configura-se, assim, um cenário que direciona-se no sentido em que a classe
dominante constrói a ideologia e a classe dominada tende a se apropriar e reproduzir
esta ideologia como se fosse sua e única.
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto
é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da
produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo
que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os
pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As
ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações
materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas
como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe
a classe dominante, são as ideias de sua dominação (MARX E ENGELS,
2007, p. 47).

Neste cenário, a ideologia da classe dominante afirma, justifica, inverte,


escamoteia e oculta a realidade, promovendo, inibindo ou impedindo totalmente o
processo de efetivação da humanização em razão de interesses econômicos particulares.

15
Teorização é aqui compreendida a partir dos fundamentos do materialismo histórico dialético, ou seja, a
teoria não se dissocia da prática. “Toda prática necessita de uma teorização que se manifesta somente na
prática. O que significa que, no trabalho tomado em si mesmo, é a práxis que estabelece o critério
absoluto da teoria” (LUKÁCS, 2013, p. 94).
56

Para provar sua continuada viabilidade, a ordem socioeconômica estabelecida


deve constantemente se ajustar às condições mutáveis de dominação. Através
de toda a história por nós conhecida, a ideologia desempenhou papel
importante nesse processo de reajustes estruturais. A reprodução bem-
sucedida das condições de dominação não poderia ocorrer sem a participação
na atividade de poderosos fatores ideológicos para a manutenção da ordem
existente (MÉSZÁROS, 2012, p. 327).

Portanto, nenhuma ideologia, enquanto elaboração constituída pelos seres


humanos a partir dos conflitos sociais da vida produtiva e desenvolvida na práxis social,
é neutra, involuntária, imparcial, natural e inocente. Para Lukács (2013), ‟[...] a
ideologia, mesmo sendo também uma forma de consciência, de modo algum é pura e
simplesmente idêntica à consciência da realidade” (p. 520). Ao manifestar-se na
realidade conflituosa e contraditória no interior das lutas de classe, a ideologia produz
distorções entre a aparência e a existência, oculta, inverte e manipula a essência da
realidade concreta e real. Tais distorções são produzidas pela classe dominante e
escamoteiam mecanismos e elementos da realidade de maneira interessada e
objetivando determinadas finalidades na sociabilidade.
A ideologia que resulta da luta de classes é direcionada à manutenção do ‟status
quo”, composta historicamente por elementos e mecanismos contraditórios ao processo
de humanização. ‟No entanto, a ordem social que ela defende é necessariamente
dilacerada por contradições e antagonismos internos, por mais bem-sucedida que seja,
através dos tempos, a reprodução do quadro estrutural hierárquico de dominação e
subordinação” (MÉSZÁROS, 2012, p. 327). Como já dissemos, o discurso ideológico
se constitui de elaborações e ideias hegemônicas que tendem a se generalizar e a se
manifestar para todos como a melhor forma de produção e reprodução material da vida
social.
Na atual conjuntura social, estruturada pelos pressupostos do sistema do capital,
os interesses da classe burguesa, que é a classe dominante, coincidem com os ditames
do capital e se configuram como ideologia hegemônica, em contraposição aos interesses
e necessidades da classe social dos trabalhadores.
A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas
como dignas e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do
sacerdote, do poeta, do sábio seus servidores assalariados. A burguesia
rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações familiares e
reduziu-as a meras relações monetárias (MARX E ENGELS, 2010, p. 42).

Nesta sociedade, da qual fazemos parte, a ideologia hegemônica funciona como


um instrumento de propagação, reprodução e conservação do capital direcionado pelos
57

interesses particulares e privados dos detentores do poder econômico. Conforme Lukács


(2013), “[...] a ideologia é um meio de luta social, que caracteriza toda a sociedade” (p.
465). Esta luta social e desigual que envolve o interesse da classe burguesa em
contraposição da classe dos trabalhadores manifesta-se na realidade de forma violenta
diante do processo de humanização. Faz desaparecer, por meio de elementos e
mecanismos atrelados ao sistema do capital, a gênese do ser social como parte da
totalidade do desenvolvimento societal; naturaliza a história, normaliza os conflitos
reais entre as classes sociais, bem como nega as contradições da prática social.
Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecerem de cabeça para
baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo
histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina
resulta de seu processo de vida imediatamente físico. Totalmente ao contrário
da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu.
Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou
representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados
para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens
realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o
desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida
(MARX e ENGELS, 2007, p. 94).

A ideologia burguesa constrói um conjunto de elaborações ideais inversas,


distorcidas e aparentes acerca da realidade concreta constituída por princípios,
elementos e mecanismos do modo de produção capitalista. Segundo Mészáros (2012, p.
69), tais elementos e mecanismos ‟[...]fornecem apenas uma explicação plausível, a
partir da qual se possa projetar a estabilidade da ordem estabelecida. É por isso que a
ideologia dominante tende a produzir um quadro que atenua os conflitos e eterniza os
parâmetros do mundo social”. São ideias constituídas a partir das apreensões das
próprias contradições presentes nas lutas de classes, tendo como eixo central a
contradição entre capital e trabalho.
É claro que as ideologias dominantes da ordem social estabelecida desfrutam
de uma importante posição privilegiada em relação a todas as variedades de
‟contraconsciência”. Assumindo uma atitude positiva para com as relações
de produção dominantes, assim como para com os mecanismos
autorreprodutivos fundamentais da sociedade, podem contar, em suas
confrontações ideológicas, com o apoio das principais instituições
econômicas, culturais e políticas do sistema todo (MÉSZÁROS, 2012, p.
233).

Dessa forma, as ideologias da classe dominante se manifestam na realidade como


verdades absolutas e únicas, pautadas em objetivos que caminham na direção de
determinados fins socioeconômicos. Marx e Engels (2007), na crítica à filosofia alemã,
especificamente na crítica à Feuerbach, ressaltam a tendência violenta da ideologia
58

dominante: ‟[...]toda a relação dominante foi declarada como uma relação religiosa e
transformada em culto, culto ao direito, culto ao estado, etc. Por toda parte, girava-se
em torno de dogmas e da crença em dogmas. O mundo foi canonizado numa escala cada
vez maior” (p. 84).
Essas narrativas de base ideológica se expressam em uma visão unilateral como
um falseamento, não como sinônimo de mentira, dos verdadeiros interesses da
humanidade no sentido ontológico. ‟Porém, verdade ou falsidade, ainda não fazem de
um ponto de vista uma ideologia” (LUKÁCS,2013, p. 467). São falsas diante do
verdadeiro sentido ontológico da essência e desenvolvimento do ser enquanto ser social,
porém são reais, já que partem das contradições da realidade concreta. As reais
determinações estão escondidas de forma subliminar e escamoteadas por ações humanas
interessadas, estão postas de forma velada dentro da macroestrutura econômica, política
e cultural. Todavia, manifestam-se concretamente, com o intuito de garantir interesses
particulares, contribuindo, assim, na intensificação da alienação dos trabalhadores e na
perpetuação das relações de poder.
Dia após dia, torna-se assim claro que as relações de produção nas quais a
burguesia se move não têm um caráter uno, simples, mas um caráter dúplice;
que, nas mesmas relações em que se produz a riqueza, também se produz a
miséria; que, nas mesmas relações em que há desenvolvimento das forças
produtivas, há uma força produtora de repressão; que essas relações só
produzem a riqueza burguesa, ou seja: a riqueza da classe burguesa,
destruindo continuamente a riqueza dos membros integrantes dessa classe e
produzindo um proletariado sempre crescente (MARX, 2009, p. 139).

A ideologia se sustenta no discurso liberal, que é, de acordo com Marx e Engels


(2007), “[...] a expressão idealista dos interesses reais da burguesia” (p. 196). Trata-se
de um discurso que justifica as contradições e impede o desvelamento das relações entre
essência e aparência16, reforçando princípios do capital, dentre os quais destacamos o
individualismo, o utilitarismo, o pragmatismo, a mercadoria, o dinheiro, o lucro, a
divisão capitalista do trabalho, a competitividade, a mais valia, a alienação, o trabalho
assalariado, ou seja, princípios que, em sua aparência, são importantes para a formação
humana e desenvolvimento da sociedade, mas que, em sua essência, levam ao inverso,
conduzem a um processo de formação alienada e desumana e a destruição da sociedade.
Esses princípios são colocados como força sobrenatural, absoluta, a-histórica e
necessária para o pleno desenvolvimento da formação do ser e da sociedade, com o

16
Lukács (2013) denomina a aparência de “[…] deformação fenomênica da essência” (p. 382).
59

objetivo de escamotear a realidade, amenizar os conflitos e manter a hegemonia do


capital na organização e condução das relações sociais. Segundo Marx e Engels (2007),
a ideologia burguesa “[...] derrota a história, dissolvendo-a em pensamentos, puros
pensamentos, que nada são além de pensamentos e que, no final dos tempos, confrontar-
se-ão apenas com um exército de ideias” (p. 190). São ideais que naturalizam, distorcem
e apagam as contradições das relações sociais e colocam a totalidade social a serviço de
interesses particulares de uma determinada classe, como já analisamos anteriormente.
Um dos mecanismos ideológicos mais poderosos é a submissão do trabalho ao
capital, por meio de um discurso ideológico que inverte a realidade ao colocar que o
trabalho é resultado do capital e que sem o capital não existiria o trabalho.
Como, de um lado, as condições do trabalho são postas como componentes
objetivos do capital, e, de outro, o próprio trabalho é posto como atividade
nele incorporada, o processo do trabalho como um todo aparece como
processo próprio do capital e o pôr do mais-valor como seu produto, cuja
grandeza, por essa razão, também não é medida pelo trabalho excedente que
o capital força os trabalhadores a realizar, mas como produtividade acrescida
que ele confere ao trabalho. O produto do capital propriamente dito é o lucro.
Nesse sentido, ele agora é posto como fonte da riqueza (MARX, 2011, p.
696).

O objetivo que a ideologia burguesa dá ao trabalho, efetivada nas relações


materiais, é voltado ao trabalho alienado17— o capitalista se apossa, como se fosse
propriedade privada, do trabalho de outro ser humano. Tal processo distancia o trabalho
da essência ontológica e aproxima-o dos princípios do sistema do capital. O trabalho,
nesta concepção, não garante as condições necessárias para o desenvolvimento do
gênero humano e da individualidade no sentido da formação para a humanização.
Com efeito, a formação capitalista altamente desenvolvida produz uma forma
fenomênica similarmente deformada, que os praticantes ativos e os porta-
vozes teóricos dessa práxis são tão pouco capazes de discernir quanto os
gregos antigos eram capazes de decifrar o poder misterioso do dinheiro.
Referimo-nos ao encobrimento do mais-valor pelo lucro, que surge de modo
economicamente espontâneo e é indispensável à práxis capitalista, àquele
mundo fenomênico capitalista, no qual o mais-valor desaparece
completamente atrás do lucro e da reificação (LUKÁCS, 2013, p. 379).

Todavia, mesmo em tais condições de existência e nas contradições entre a


ideologia burguesa, a grande maioria dos trabalhadores, emergem perspectivas
ideológicas contra-hegemônicas, voltadas para os interesses da classe trabalhadora, num
movimento de ‟contrainternalização” da ideologia do sistema do capital. As

17
Nos próximos itens deste capítulo, iremos retomar e aprofundar a discussão da categoria trabalho
alienado e alienação.
60

perspectivas contra-hegemônicas possibilitam outras formas de compreensão do real e


de ação, nesta realidade, contribuindo na formação de uma consciência prática de luta
contra-hegemônica, numa verdadeira práxis. De acordo com Mészáros (2012, p. 328),
‟[...] do ponto de vista da ideologia dominante, o conflito hegemônico em curso nunca
será descrito como um conflito entre iguais potenciais. Isto levantaria a questão da
legitimidade e conferiria racionalidade histórica ao adversário”.
Percebemos, claramente, a importância da educação escolar, nesta luta contra-
hegemônica, bem como na possibilidade de nos posicionarmos como professores e
pesquisadores que defendem os interesses da classe trabalhadora, com o objetivo de
desconstruir, desmistificar e desmascarar a ideologia do sistema do capital e seus sutis
componentes e mecanismos.
Para Lukács (2013, p. 480), ‟ [...] no embate das ideologias ou, em estágios mais
desenvolvidos, na luta ideológica das classes, o desmascaramento de uma ideologia pela
outra desempenha um papel importante, por vezes decisivo”. A tarefa educativa contra-
hegemônica necessita da construção de uma visão crítica da totalidade, da apropriação
da consciência de classe, da incorporação, na práxis, de uma outra ideologia voltada
para a construção de uma nova ordem social.
Para Gramnsci (1991), a perspectiva ideopolítica contra-hegemônica se constitui
numa luta de posição crítica contra a ideologia do capital. No entanto, tal luta necessita
do conhecimento profundo da totalidade social, que permite o desvelamento das
contradições e dos elementos e mecanismos estruturantes da ideologia hegemônica. Tais
conhecimentos, por sua vez, sustentam-se no que há de mais de desenvolvido na cultura
e das diversas ciências construídas e acumuladas no decorrer do desenvolvimento
histórico da humanidade.
Segundo Marx e Engels (2007), reconhecido o trabalho como a essência, como a
base de todas as atividades, a práxis pode construir novas categorias e transformar a
realidade e o próprio homem. Para os autores, construir um campo de luta e resistência
contra a realidade brutal e violenta da economia política, que atinge a todos os seres
humanos, principalmente a classe social dos trabalhadores, é uma necessidade
ontológica.
[...] é a própria essência da totalidade econômica que prescreve o caminho a
seguir para conhecê-la. Esse caminho correto, contudo, se não se tem
constantemente presente a dependência real ao ser, pode levar a ilusões
idealistas; de fato, é o próprio processo cognoscitivo que – se considerado em
61

seu isolamento e como algo autônomo – contém em si a tendência à


autofalsificação (LUKÁCS, 2012, p. 304).

Ainda segundo Lukács (2013), ‟[...] nesse ponto, faz-se necessária uma gênese
ontológica-social, executada de modo objetivamente científico, para que se possa
detectar, por trás das formas fenomênicas, a essência autêntica” (p. 383). É preciso
revelar, com a ajuda do conhecimento científico e filosófico, as formas fenomênicas que
impedem a leitura do processo dialético sobre a totalidade social e que impedem
também a construção de uma práxis emancipatória, que para nós é o desenvolvimento
de novas formas de realizar a formação humana no sentido ontológico. Desmascarar os
elementos e mecanismos da ideologia do capital é uma necessidade para o pleno
desenvolvimento do gênero humano e da individualidade do ser social.
Portanto, se os representantes teóricos dos proletários quiserem conseguir
alguma coisa com a sua atividade literária, deverão insistir, sobretudo, em
que sejam eliminadas todas as fraseologias que enfraquecem a consciência do
acirramento dessa oposição, todas as fraseologias que mascaram essa
oposição e até oferecem aos burgueses o ensejo de, por segurança,
aproximar-se dos comunistas por força de seus devaneios filantrópicos
(MARX e ENGELS, 2007, p. 452).

Compreende-se, a partir do que foi exposto até aqui, a dinâmica das relações
entre a vida produtiva, a atividade educativa e os elementos e mecanismos ideológicos
que implicam na formação humana. Segundo Marx (2013), ‟[...] de fato, a legenda do
pecado original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão com
o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como
pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso”. Para compreendermos
melhor a conjuntura complexa e contraditória da ideologia do capital e as implicações
na educação escolar, é necessário analisar a constituição e o desenvolvimento dos
principais elementos e mecanismos que constituem esta ideologia.

1.3.1. A estrutura e o desenvolvimento dos elementos e mecanismos ideológicos do


capital

A atual conjuntura socioeconômica do capital, organizada e desenvolvida de


forma a atender e manter os interesses da classe social burguesa, possui elementos e
mecanismos ideológicos constituídos historicamente na vida produtiva dentro do
processo de lutas de classe. Tais elementos e mecanismos quase sempre estão ocultos à
62

percepção de todos os indivíduos, mas implicam, diretamente, na estrutura e funções


das variadas áreas e instâncias da vida social, inclusive na educação escolar. Conforme
Gramsci (1991), dentro da ordem social do modo de produção capitalista, existem, de
forma geral, nos atos educativos e inclusive na educação formal, certas imposições e
determinações sociais hierárquicas de poder que se originam dos interesses privados da
classe hegemônica e que se sustentam por meio de elementos e mecanismos
ideológicos.
Tais elementos e mecanismos visam à conservação, reprodução e propagação
dos ditames do capital. Esses movimentos que caracterizam a origem e disseminação da
ideologia de classe se dão por meio da imposição e internalização, nós percebendo ou
não, de discursos legitimados voltados à formação, na classe dominada, de
determinados conhecimentos e valores, que, por sua vez, vão dando forma à consciência
e ao comportamento dos indivíduos singulares. De acordo com Mészáros (2012, p. 58),
Nas sociedades capitalistas liberal-conservadoras do Ocidente, o discurso
ideológico domina a tal ponto a determinação de todos os valores que muito
frequentemente não temos a mais leve suspeita de que fomos levados a
aceitar, sem questionamento, um determinado conjunto de valores ao qual se
poderia opor uma posição alternativa bem fundamentada, juntamente com
seus comprometimentos mais ou menos implícitos.

Nesta realidade histórica, contraditória e de múltiplas determinações, de acordo


com Saviani (2012b), foram construídos e consolidados, não de maneira absoluta, novos
ideais e concepções de homem, história, sociedade, atividade educativa e educação
escolar, com a finalidade geral de produzir e reproduzir, indefinidamente, um
determinado quadro socioeconômico de reestruturação social controlada pelo capital.
‟Sob o domínio do capital, o objetivo é assegurar que cada indivíduo adote como suas
próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema” (MÉSZÁROS,
2008a, p. 44).
Neste contexto de produção social da própria existência humana, a perspectiva
ontológica de educação é negada, invertida ou direcionada ao desconhecido para não se
concretizar plenamente, sob o risco de desestabilizar ainda mais o capital. A formação
humana vai, portanto, sendo deformada, fragmentada, esfacelada, mecanizada e
coisificada. Para Marx (2008, p. 47), ‟[...] na produção social da própria existência, os
homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade;
essas relações correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais”.
63

Desta maneira, os elementos e mecanismos ideológicos se configuram e se


apresentam na realidade de forma oculta, escamoteada, subliminar, fragmentada,
distorcida, naturalizada, invertida e aparente, num contexto de violência que perpassa as
relações sociais.
É também forçoso que ela seja apresentada como justificativa ideológica
absolutamente inquestionável e pilar de reforço da ordem estabelecida. Para
esta finalidade, devem ser fundidas, de modo que possam caracterizar a
condição, historicamente contingente e imposta pela força, de hierarquia e
subordinação como inalterável ditame da ‟própria natureza”, pela qual a
desigualdade, estruturalmente reforçada, seja conciliada com a mitologia de
‟igualdade e liberdade” – livre opção econômica e ‟livre escolha política”
segundo a terminologia de The Economist – e ainda santificada como nada
menos que ditame da própria razão (MÉSZÁROS, 2011, p. 99).

A construção histórica da ideologia dominante, que faz parte da ordem


sociometabólica do capital, está enraizada nos conflitos entre as classes sociais18. Tal
processo é constituído a partir de condições objetivas, cuja origem está nos séculos
XVII, XVIII e XIX, período histórico marcado pelo processo de constituição do
‟homem mercantil” e da ‟sociedade da mercadoria”, sustentado pela doutrina
ideológica do liberalismo.
O liberalismo enquanto doutrina, formalizado a partir de fins do século XVII
e constituído, plenamente, no século XVIII, só pode ser entendido como
ponto de chegada do processo de amadurecimento da visão de mundo
burguesa. Nada há no liberalismo que não tenha sido suscitado pela própria
existência burguesa. Não há qualquer bandeira liberal que não tenha nascido
das lutas da burguesia contra as forças feudais (ALVES, 2007, p. 77).

Para que seja possível compreender todo esse movimento em sua essência e
captar as condições, objetivos e componentes econômicos, históricos, culturais e
políticos que constituem a ideologia dominante da sociedade contemporânea, é preciso,
portanto, identificar e analisar a constituição dos pré-juízos que sustentam os elementos
e mecanismos ideológicos do capital na atualidade e que explicam, justificam e
legitimam, aparentemente, a atual realidade violenta e desumana em que vivemos.
O desvelamento e a compreensão das contradições são os primeiros movimentos
necessários para a construção de novos caminhos emancipatórios, tanto para as
atividades educativas quanto para a sociedade de maneira geral.

18
Classe social é uma categoria essencial na teoria marxiana, na qual abordamos como uma característica
da sociedade capitalista constituída por duas classes fundamentais a burguesia e a classe trabalhadora-
proletariado com interesses antagônicos. Está relacionada à estrutura socioeconômica, papel político e aos
conflitos sociais. (BOTTOMORE, 2012).
64

Na realidade sócio-histórica, é evidente, não há fatos isolados, apenas


complexos sociais interagentes. Em consequência, o significado de tais
complexos é inerentemente dinâmico, e se manifesta através dos complicados
laços estruturais que os casos particulares da imediaticidade prevalecente têm
entre si, precisamente no interior da totalidade interativa e através dela. E,
desde que os próprios complexos sociais são objetivamente estruturados
desse modo, o significado real e potencial de cada caso particular só pode ser
aprendido em um quadro teórico abrangente: um quadro capaz de considerar
de modo pleno a dinâmica de seus deslocamentos e de suas transformações
internas (MÉSZÁROS, 2011, p. 238).

No início do século XVII, originando-se na Europa e logo se expandindo para


todo o mundo, constitui-se um projeto de sociedade a partir de elementos e mecanismos
ideológicos que se contrapunham à ordem social vigente, cuja principal característica,
naquele momento, era a submissão dos homens à hierarquia humana absoluta dos
poderes dominantes representados pelas grandes monarquias e ao discurso do ‟atraso”
societal advindo do período feudal (CHAVES, 2007).
De acordo com Locke (1983a), tratava-se de uma defesa da liberdade e da
igualdade entre os homens, em que “[...] a liberdade natural do homem consiste em estar
livre de qualquer poder superior na terra, e não sob a vontade ou a autoridade legislativa
do homem, tendo somente a lei da natureza como regra” (p. 43). Tais são os argumentos
centrais da estrutura da concepção liberal que dão sustentação à ideologia dominante
atual.
Esta ideologia foi-se constituindo em meio à expansão do capitalismo, tendo
como eixo central a defesa da liberdade e a igualdade entre os homens, o que para a
época possuía um caráter revolucionário.
O capitalismo, em dado momento, representou– não só no plano econômico,
mas também no cultural – uma extraordinária revolução na história da
humanidade. Seu nascimento e explicitação implicavam a atualização de
possibilidades apenas latentes na economia feudal desenvolvida, atualização
que dependia, por sua vez, da dissolução e desintegração das relações feudais
de produção, de suas formas de divisão do trabalho. Esse caráter
objetivamente progressista do capitalismo permitia aos pensadores que se
colocavam no ângulo do novo a compreensão do real como síntese de
possibilidades e realidade, como totalidade concreta em constante evolução
(COUTINHO, 2010, p. 25).

Começam a ser derrubadas as concepções de mundo cujas origens remontam ao


feudalismo e são construídos novos princípios, elementos e mecanismos ideológicos
gerais sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade sustentados pelo liberalismo num
período denominado historicamente de modernidade. O conceito principal que define o
liberalismo moderno, segundo Chaves (2007), é o de liberdade na forma burguesa: ‟[...]
65

um conceito bem mais amplo, que abrange a liberdade do indivíduo, não só na área
econômica, mas também na área política e social” (p. 9). Tanto para as elites feudais
quanto para a burguesia em ascensão e, mesmo para a cada vez maior classe proletária,
a ideologia liberal representava na aparência os melhores princípios para todos que
poderiam servir de base estruturante à nova organização societal, o capitalismo.
Na gênese do pensamento moderno burguês, a razão se torna o principal
instrumento de poder ao transformar a natureza, o próprio homem e realizar a apreensão
objetiva da totalidade social. O racionalismo, que visa o domínio das forças da natureza
pela ciência, por meio da razão, o homem supostamente passa a ter a possibilidade de
controlar não só toda a natureza, mas os outros homens.
Tais ideias, fundamentadas no princípio geral ‟liberdade e igualdade”, originam-
se das contradições daquele contexto social e histórico dentre as quais destacamos a
ascensão da burguesia. O conjunto de ideias que constituem o liberalismo é composto
de elementos e mecanismos ideológicos que justificavam e legitimavam a necessidade
de abertura das relações sociais, econômicas, culturais e políticas. Um dos principais
representantes dessa ‟nova ideologia” foi John Locke, um dos maiores intelectuais do
liberalismo, defensor da ideia da propriedade natural dentro dos princípios do
liberalismo democrático e crítico das ideias metafísicas e do inatismo, defendidas por
instituições religiosas e pela monarquia, que representavam os centros das decisões
econômicas e políticas da época.
Segundo Mészáros (2008, p. 42), os princípios ideológicos propostos por Locke
se manifestam ainda no atual momento histórico: ‟[...] no final tudo se reduzia a
relações de poder nuas e cruas, impostas com extrema brutalidade e violência nos
primórdios do desenvolvimento capitalista”. Esta ‟nova ideologia” denominada de
maneira geral como liberalismo colocava como proposição primordial a negação do
controle hegemônico absolutista das monarquias e da igreja e propagava a necessidade
do domínio total da natureza e da vida material produtiva por todos os seres humanos.
Conforme Chaves (2007), o liberalismo é uma liberdade para o indivíduo ter o
direito a ‟[...] não ser coagido, não obrigado a fazer, nem impedido a fazer a terceiros.
Ser livre, portanto, não deve ser confundido com ‘ter condições materiais de fazer’, ‘ter
recursos para fazer’, ‘ter poder de fazer’, ‘ter capacidade de fazer’ alguma coisa” (p.
11). Aparentemente, tal proposição ideológica possui elementos e mecanismos que se
apresentam como algo essencial ao desenvolvimento dos seres humanos e da sociedade.
66

Mas, em sua essência, visa à manutenção da ordem capitalista, dos interesses burgueses
que impedem o desenvolvimento pleno de toda a sociedade e, consequentemente, a
formação dos seres humanos no sentido ontológico.
No sentido de defesa do liberalismo, Locke (1983a, p. 45) afirmava que “[...]
seja que consideremos a razão natural, que nos diz terem os homens, uma vez nascidos,
têm direito à própria preservação, e, consequentemente, à comida e à bebida e a tudo
quanto a natureza lhes fornece para a subsistência”. Tal projeto ideológico legitimava a
necessidade da constituição de um indivíduo livre e igual perante a natureza e a lei.
A filosofia liberal sustenta-se no princípio fundamental de que quando o
indivíduo, ao se associar com outros indivíduos, passa a viver em sociedade,
a liberdade torna-se o seu bem supremo e, enquanto tal, tem preponderância
sobre qualquer outro bem que possa ser imaginado. [...] a liberdade é
essencial para e por nos preservar um espaço privado, inviolável, que não
possa ser transgredido pelos nossos semelhantes. Para o liberalismo, é
imperativo, na nossa vida em sociedade, buscar a maior liberdade possível
para cada indivíduo que seja compatível com igual liberdade para todos
(CHAVES, 2007, p.7-8).

De acordo com a ideologia liberal na própria existência singular, o ser humano


já possuía a possibilidade absoluta de construir e tomar posse, de forma individualista,
de qualquer propriedade a partir das condições e capacidades já garantidas pela
natureza. O ser humano é colocado como livre por natureza para realizar quaisquer
ações que achar provenientes e irá se colocar ao controle de outro somente por opção
individual, pois tem o poder da sua vida e o direito para realizar as decisões que achar
necessárias.
Neste período, portanto, as monarquias soberanas reinavam em todas as nações
do continente europeu. Libertar o indivíduo daquele controle espiritual e material que
perpassava as sombras do tradicionalismo da idade média, as superstições idealistas da
igreja, a hierarquia de privilégios dos monarcas absolutista e o aprisionamento à terra
era um dos objetivos da nova ordem que nascia (MARX E ENGELS, 2010). Partindo da
crítica desta realidade de aprisionamento do indivíduo através da imposição do poder
soberano e absoluto, foram-se constituindo os ideais do liberalismo, que justificavam e
legitimavam as mudanças sociais e econômicas impostas pelo modo de produção
capitalista.
Assim, pautados na liberdade e igualdade, todos os homens deveriam aspirar à
felicidade como um direito e o simples fato de existir já garantiria tal aspiração “[...]
sem sujeitar-se à vontade ou à autoridade de outrem” (LOCKE, 1983a, p. 56). Dá-se
67

início a um tempo marcado por novas concepções e uma visão de mundo que,
rapidamente, torna-se hegemônica. Essa elaboração ideal propagada e defendida pela
burguesia, classe precursora destes elementos e mecanismos ideológicos, foi sendo
apropriada pelos seres humanos, ao longo do processo histórico, como sendo a essência
e a existência da superação do atraso social da idade média.
A constituição do liberalismo, paralelamente, construiu ideologicamente o
indivíduo e legitimou, em seu nome, as reivindicações burguesas, alardeando
as conquistas viabilizadas na luta como conquistas dessa entidade ideológica.
As barreiras feudais que tolhiam o comércio foram vistas como a negação do
direito de o indivíduo realizar, livremente, as trocas. As normas das
corporações foram denunciadas como instrumentos que tolhiam a liberdade
do indivíduo de produzir livremente (ALVES, 2007, p. 79).

Foi construído um discurso ideológico central no qual se enfatizava que todos os


seres humanos têm uma “propriedade natural”, que está no próprio corpo do indivíduo,
representada pelo trabalho. Dessa ótica, acreditava-se que todos os seres humanos têm
em si uma propriedade igual e natural em seu estado de natureza desenvolvida pela
capacidade e esforço individual a partir das condições de igualdade e liberdade. Nesse
sentido, Chaves (2007), ao analisar a liberdade e os direitos individuais na visão do
liberalismo, destaca um dos mecanismos que legitimam tal doutrina — a ideia do direito
à propriedade.
Sem o direito à propriedade, os outros direitos ficam esvaziados. Se eu não
tenho o direito de propriedade sobre o fruto de meu trabalho, fica
comprometido o direito à minha integridade pessoal, à minha expressão, à
minha locomoção, à minha associação com outros e à minha ação em busca
da felicidade (p.18).

O proprietário não deveria mais ser o rei ou o senhor feudal, mas o próprio
indivíduo, pois sua riqueza está em seu corpo, que é a própria propriedade do ser.
Portanto, a propriedade natural do ser humano, associada ao direito à liberdade e à
igualdade já garantida pela lei da natureza, começa a ter importância primordial no
processo de legitimação da constituição dos princípios liberais burgueses. A liberdade
deveria organizar e regular as ações em sociedade e que qualquer indivíduo pode
realizar o que achar importante sem precisar da vontade de outra pessoa.
Sob este prisma, o indivíduo seria posto na sociedade com a capacidade e
liberdade de transformar a natureza em propriedade em si, através da técnica e da
ciência, por meio da empregabilidade de sua propriedade natural, ou seja, o trabalho,
com base na lei da razão e do direito privado. O indivíduo, ao desenvolver esta
68

potencialidade representada pelo trabalho, inerente a todos os indivíduos, retiraria do


estado de natureza a riqueza dos seus bens e ampliaria a riqueza de toda a sociedade.
Este discurso se legitimou ao acenar com a possibilidade de que todos poderiam ampliar
cada vez mais suas propriedades individuais de maneira democrática.
É uma visão de mundo que se constitui na luta contra os obstáculos feudais,
postos principalmente ao desenvolvimento do comércio. O próprio termo
liberalismo ganha significado em face dessa ingente necessidade de a
burguesia comercial libertar-se dos entraves feudais que prejudicam a
atividade mercantil (ALVES, 2007, p. 78).

Dentre os elementos e mecanismos ideológicos do liberalismo, destacamos: a


liberdade individual, a afirmativa sobre a capacidade de dominação da natureza e das
propriedades de todos os homens por meio da razão sem distinção social; a fonte de
poder natural de ação do indivíduo advindo do trabalho; a propriedade em si como
instrumento de poder; a competição para legitimar o livre arbítrio; a igualdade de todos
já estabelecidos pelas forças da natureza; a liberdade como expressão de felicidade
plena; a possibilidade de ampliar os bens e as propriedades individuais; a
individualidade como uma virtude e a vida plena como consequência da ampliação das
propriedades.
Sobre o liberalismo, Marx e Engels (2007) ressaltam que tais elementos e
mecanismos se baseiam em reais interesses de classe, que, na verdade, são interesses
materiais, ‟[...] puras autodeterminações da ‘vontade livre, da vontade em si e para si,
da vontade humana, transformando-a, desse modo, em puras determinações conceituais
ideológicas e postulados morais” (p. 194). Nessa perspectiva ideológica, o homem passa
a ter a necessidade, mas somente como possibilidade de ampliar suas propriedades por
meio do trabalho do seu corpo e tudo aquilo que tomar posse, o que ninguém por direito
poderá retirar. Se alguém retirar a propriedade de um indivíduo, estará retirando a
própria vida do outro, colocando-se com todo direito em estado de guerra, já que foi
com a propriedade natural individual que o ser se apropriou em forma de posse daquilo
que estava disponível na natureza para todos.
A ideologia do capital, pautada na doutrina liberal, começa a se organizar e
incorporar-se como hegemônica entre os homens, baseada na ideia de possibilidades de
construção de um indivíduo livre e igual perante todos, com direitos naturais e
capacidade racional de tomar posse de quaisquer ideias e propriedades, não devendo
cumprir ordens autoritárias de outro indivíduo. Cada indivíduo pode se desenvolver
69

livremente de acordo com o uso de suas faculdades corporais e racionais como um


cidadão.
O ser tem a capacidade e o direito de construir e controlar seu próprio
desenvolvimento na sociedade, de atribuir poder de posse a tudo aquilo que fixar,
principalmente, trabalho intelectual através da sua força produtiva livre. Assim, cada
indivíduo é visto como livre para desenvolver e ampliar sua propriedade, retirando das
reservas naturais tudo aquilo que tiver disponível, sem que ninguém o atrapalhe para
isso. O fruto do trabalho do corpo torna-se um dos eixos fundamentais de justificativas
para a posse privada das propriedades e do acúmulo.
Nessa perspectiva ideológica, ao considerar-se que a ação e o produto do
trabalho são resultados do desenvolvimento da propriedade natural do indivíduo,
justifica-se porque apenas alguns serão beneficiados e usufruirão da consequência do
esforço individual, que, ao mesmo tempo, apropria-se do direito de ampliar suas posses.
De acordo com Locke (1983a), na defesa do liberalismo, aquele indivíduo que toma
posse de qualquer propriedade, que está disponível na natureza pelo trabalho, faz
aumentar o desenvolvimento comum da sociedade.
Desse modo, o indivíduo, ao colocar trabalho na natureza e daí retirar riquezas
ao dispor de suas forças e habilidades individuais, toma posse do direito natural de
produzir e acumular propriedades numa quantidade cada vez maior que faz aumentar
nas mesmas proporções o desenvolvimento da sociedade. Procedimento realizado em
detrimento de outro indivíduo que talvez não o faça, por falta de esforço ou
incapacidade, tornando-se, assim, justificado o acúmulo de bens pela conquista
individual como resultado do mérito e do talento. Ao adquirir o que está disponível na
natureza, mesmo de forma excedente e justificado pelo seu esforço individual, o
homem, a cada conquista, torna-se mais virtuoso e diferente, o que acaba contribuindo
ainda mais com a reserva comum da humanidade (LOCKE, 1983a).
Legitima-se, neste sentido, a ampliação da propriedade natural por meio do
esforço individual, dos bens particulares como reserva comum da humanidade e o
acúmulo de propriedades a cada oportunidade. Alimenta-se, então, a falsa ideia de que,
quanto mais propriedade o indivíduo adquire, mais desenvolve seu direito aos bens, à
vida e à liberdade, pois o próprio indivíduo é colocado ideologicamente com as
condições e a capacidade de construir suas oportunidades e seu próprio caminho
70

independente da totalidade social, somente por sua capacidade individual inerente à lei
da natureza e da razão.
Percebe-se que, no decorrer da história, esses elementos e mecanismos
ideológicos que constituem o liberalismo foram sendo internalizados por todos,
principalmente no atual momento histórico, movimento essencial para a manutenção do
sistema do capital.
O liberalismo, enquanto visão de mundo, impregnou todos os campos de
atividade da burguesia e todas as ações burguesas. Como não poderia deixar
de ocorrer, também a educação sofreu o influxo dessa visão de mundo.
Enquanto doutrina, o liberalismo deve ser visto como a expressão mais
desenvolvida da visão de mundo burguesa (ALVES, 2007, p. 79).

Na essência, a partir desse discurso ideológico, construído historicamente,


concluiu Mészáros (2011, p.98): ‟[...] as oportunidades de vida dos indivíduos, sob tal
sistema, são determinadas segundo o lugar em que os grupos sociais a que pertençam
estejam realmente situados na estrutura hierárquica de comando do capital”. Na
aparência, o indivíduo, independente da historicidade e da totalidade por meio de sua
capacidade intelectual ou pelo esforço do trabalho manual, pode tomar posse do direito
de apropriar-se da maior parte das propriedades existentes no meio natural e dos meios
sociais.
O liberalismo é, pois, a grande teoria ideológica que traz consigo variados
elementos e mecanismos que explicam, justificam, legitimam, manipulam, distorcem a
realidade concreta social, econômica, política e cultural atual marcada pelos interesses
da classe social hegemônica.
Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu todas as
relações feudais, patriarcais, idílicas. Dilacerou impiedosamente os variados
laços feudais que ligavam o ser humano a seus superiores naturais, e não
deixou subsistir de homem para homem outro vínculo que não o interesse nu
e cru, o insensível "pagamento em dinheiro". Fez da dignidade pessoal um
simples valor de troca e, no lugar das inúmeras liberdades já reconhecidas e
duramente conquistadas, colocou a liberdade de comércio sem escrúpulos.
Numa palavra, no lugar da exploração mascarada por ilusões políticas e
religiosas, colocou a exploração aberta, despudorada, direita e árida (MARX
e ENGELS, 2010, p. 42).

Nesse caso, o indivíduo, em sua aparência, é um trabalhador livre, autônomo,


competitivo e igual a todos no seu estado de natureza. Mas, em sua essência, não é livre,
à medida que pertence a uma sociedade dirigida e organizada pela suposta "mão
invisível do mercado", direcionada pela ideologia do capital (CHAVES, 2007). O corpo
ideológico do liberalismo é, portanto, o próprio processo que propicia a base para a
71

legitimação dos componentes e princípios do sistema do capital para a formação do


homem mercantil contemporâneo em uma sociedade da mercadoria. ‟Todavia, ao
internalizar as onipresentes pressões externas, eles devem adotar as perspectivas globais
da sociedade mercantilizada como inquestionáveis limites individuais a suas aspirações
pessoais” (MÉSZÁROS, 2008, p. 45).
Nessa perspectiva, a ideologia do sistema do capital ao incorporar a teoria liberal
legitima que, por meio do esforço individualista e da ação do trabalho manual ou
intelectual em meio às possibilidades, o indivíduo justifica seus bens, a liberdade, a
felicidade e a própria vida. Mas, como nos diz Marx (2010a, p. 83), no contexto do
modo de produção capitalista, ‟[...] o homem (o trabalhador) só se sente como [ser]
livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda
habitação, adornos etc., e em suas funções humanas só se sente como animal. O animal
se torna humano; e o humano, animal”.
Logo, a ideologia do sistema do capital propaga o discurso de que todos os seres
humanos são supostamente colocados como possuidores dos direitos e privilégios de
usufruírem das maiores riquezas produzidas pela sociedade. Para a classe dominante,
aquele que não consegue atingir tal suposta felicidade proposta pela ideologia burguesa,
não consegue em razão de incapacidade individual, empreendedora, pela falta de mérito,
comprometimento e talento. ‟No entanto, é irônico (e bastante absurdo) que os
propagandistas de tal sistema acreditem que ele seja inerentemente democrático e
suponham que ele realmente seja a base paradigmática de qualquer democracia
concebível” (MÉSZÁROS, 2011a, p. 96).
A constituição e o desenvolvimento do liberalismo analisado até aqui se
tornaram um dos ideais que estruturaram, no nosso entendimento, a ideologia do
sistema do capital. Proposições que naturalizam as relações sociais injustas negam o
processo de humanização, a plena liberdade, a historicidade, utilizando dos
conhecimentos e de toda a riqueza material e cultural humana, por poucos em
detrimento de muitos, e distanciam a possibilidade real de construirmos uma
perspectiva ontológica de educação. Como diz Mészáros (2008, p. 45), “[...] apenas a
mais consciente das ações coletivas poderá livrá-los dessa grave e paralisante situação”.
Portanto, é necessário entender, na atualidade, como são os princípios, as
características e as relações entre indivíduo/sociedade no contexto socioeconômico do
sistema do capital, bem como compreender e construir novos pores teleológicos,
72

desvelar os discursos, as contradições e os interesses que hoje constituem a realidade


social. Analisar como essa conjuntura afeta a educação escolar é uma necessidade
ontológica.

1.3.2. Princípios e características estruturais da ideologia do sistema do capital e o


processo de alienação

Na sociedade contemporânea, defrontamo-nos com a complexificação dos


elementos e mecanismos ideológicos, cuja origem e desenvolvimento analisamos no
tópico anterior, pois ‟[...] apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade
burguesa em todas as formas de sociedade” (MARX, 2013, p. 58). Como vimos, tais
elementos e mecanismos são formas, determinações, princípios e características
históricas presentes na essência do sistema sociometabólico do capital. Para Mészáros
(2008a, p.53), esse sistema social ‟[...] torna-se uma total mistificação ideológica à
medida que os resultados parciais se transformam numa teoria geral, reivindicando para
si validade universal, ao mesmo tempo também que a dimensão histórica é eliminada
do panorama”.
Para compreendermos as complexas interações e pressupostos que constituem a
ideologia do sistema do capital, torna-se uma necessidade partimos da análise dos
princípios e características da sociedade burguesa.
A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização da
produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a
compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a
organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade
desaparecidas, com cujos escombros e elementos se edificou, parte dos quais
ainda carrega consigo como resíduos não superados, parte que nela se
desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc. A anatomia do
ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os
indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser
compreendidos quando a própria forma superior já é conhecida. Do mesmo
modo, a economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc (MARX,
2011, p. 58).

A atual estrutura socioeconômica, denominada de uma sociedade essencialmente


produtora de mercadoria19, mesmo com o grande avanço e desenvolvimento tecnológico

19
Categoria entendida como objeto social produto do trabalho humano, desenvolvida na produção
burguesa constituída por valor de uso com predominância do valor de troca, reflete aos homens os
caracteres e propriedades sociais e as relações objetivas da vida material produtiva. Apresentam-se
73

que propiciou para a sociedade e o distanciamento das relações eminentemente naturais,


continua cada vez mais desigual e aprofundando os problemas sociais. ‟Por isso, ao
mesmo tempo em que elabora um conhecimento objetivo de aspectos essenciais da
realidade, tende a deformar, ideologicamente, várias categorias desse processo”
(COUTINHO, 2010, p.29). Podemos dizer que, nos dias atuais, há um maior
distanciamento do sentido ontológico de formação humana em todas as atividades
educativas. ‟A teoria do conhecimento burguesa resolve a questão por meio de uma
pura interpretação idealista de todos os fenômenos sociais, com o que desaparece mais
ou menos inteiramente, como é óbvio, o caráter ontológico do ser social” (LUKÁCS,
2012, p. 406).
Um sistema que gera muita riqueza para a classe dominante, porém dadas suas
contradições, produz pobreza, desigualdade, injustiça, violência e desumanização. Gera
muita riqueza material, espiritual e desenvolvimento tecnológico, mas não para todos.
O trabalhador se torna mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a
sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma
mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização
do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do
mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz
a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que
produz, de fato, mercadorias em geral (MARX, 2010, p. 80).

De acordo com Mészáros (2011), o sistema do capital, por se efetivar a partir do


princípio essencial da constituição do ser humano e da sociedade, o trabalho, sujeita à
sua lógica e ao seu controle, desde as mais simples e até as mais complexas dimensões
da vida humana.
Ao contrário da mitologia apologética de seus ideólogos, o modo de operação
do sistema do capital é a exceção e não a regra, no que diz respeito ao
intercâmbio produtivo dos seres humanos com a natureza e entre si. O capital
não é simplesmente uma ‟entidade material” – também não é um mecanismo
racionalmente controlável, como querem fazer crer os apologistas do
supostamente neutro mecanismo de mercado – mas é, em última análise, uma
forma incontrolável de controle sociometabólico”. [...] no curso histórico até
o presente, de longe a mais poderosa – estrutura ‟totalizadora” de controle à
qual tudo mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim provar sua
‟viabilidade produtiva” ou parecer, caso não consiga se adaptar (p. 96).

Como complexo social, o sistema do capital é colocado ideologicamente pela


classe dominante na aparência como o tipo de relação universal socioeconômica mais
desenvolvida e como única forma de desenvolvimento pleno de toda a humanidade

aparentemente como coisas ‟fantasmagóricas”, mas na essência útil as necessidades e interesses do


capital, onde os produtores ficam a margem do processo e do produto (MARX, 2013).
74

(MARX E ENGELS, 2010). Mas, na essência, vai cada vez mais se configurando
materialmente como uma sociedade exploradora, violenta, desigual, injusta e
excludente, que leva à desumanização. ‟Naturalmente, do ponto de vista da
autopercepção eternizante do capital, a relação do presente, tanto com o passado como
com o futuro, deve ser deliberadamente deturpada” (MÉSZÁROS, 2011, p. 605).
Marx e Engels (2007, p. 94) destacam que ‟[...] em toda ideologia, os homens e
suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno
resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos
na retina resulta de seu processo de vida físico”. Logo, a ideologia do capital se
constitui e é constituída pela estrutura e dinâmica socioeconômica, apresentando-se sob
a forma de um ideal da classe burguesa que, ao ocultar as contradições, inverte e
distorce o real em detrimento dos interesses particulares.
[...] em nossa sociedade tudo está impregnado de ideologia, quer a
percebemos, quer não. Além disso, em nossa cultura liberal-conservadora, o
sistema ideológico socialmente estabelecido e dominante funciona de modo a
apresentar – ou desvirtuar” – suas próprias regras de seletividade,
preconceito, discriminação e até distorção sistemática como ‟normalidade” e
‟objetividade” e ‟imparcialidade científica” (MÉSZÁROS, 2012, p. 57).

O motor dessa dinâmica é a contradição entre capital e trabalho constituído, em


síntese, pelas lutas de classe, as relações de poder, a mais-valia e o trabalho assalariado
e o eixo deste circuito é a produção e circulação de mercadorias e dinheiro que se
estabelecem na realidade concreta entre trabalhadores de um lado, proprietários somente
da própria força de trabalho, e os capitalistas, donos dos meios de produção. ‟Os
produtores são radicalmente separados do material e dos instrumentos de sua atividade,
tornando-lhes impossível produzir para o seu próprio uso, já que nem sequer
parcialmente estão no controle do próprio processo de produção” (MÉSZÁROS, 2011,
p. 624). Temos, portanto, uma totalidade que constitui os princípios da ideologia do
capital, fundada na dominação de classe, produção de mercadorias, na propriedade
privada dos meios de produção, na divisão do trabalho, na exploração do homem pelo
homem, na desigualdade social, no fetichismo da mercadoria, na supervalorização do
dinheiro, na intensificação da mais-valia, no consumismo e na busca incessante pelo
lucro (MARX, 2013).
Os conflitos de interesses entre as classes sociais e as modificações na
estruturação e dinâmica da produção, circulação, distribuição e consumo articulado a
reestrurações na divisão social do trabalho resultaram nessas novas configurações,
75

princípios e características que passaram a permear as condições materiais e não


materiais da produção da vida social. ‟A sociedade burguesa moderna, que brotou das
ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que
estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar
das que existiram” (MARX e ENGELS, 2010, p. 40).
Desse modo, mesmo no capitalismo contemporâneo, a ideologia do capital se
efetiva ainda sob a forma de luta de classes, entendendo como classe social um conjunto
de pessoas ou grupos que têm uma determinada concepção ideológica de mundo que
cumpre determinada função dentro do modo geral da produção socioeconômica.
Temos em mente, quanto a isso, sobretudo, dois complexos que diferenciam
com nitidez a sociedade originalmente unitária: a divisão entre trabalho
intelectual e trabalho braçal e a divisão entre cidade e campo, que, no
entanto, ininterruptamente se entrecruzam com o surgimento de classes e
antagonismos de classes (LUKÁCS, 2013, p. 179).

A classe dominante, ao deter o capital e os meios de produção, detém o poder de


direção material e intelectual da estrutura (econômica) e da superestrutura20 (ideológica,
jurídica e política), utilizando-se desse poder para a conservação e ampliação de seus
interesses e concepções. ‟As relações de produção burguesas são a última forma
antagônica do processo de produção social; antagônica não no sentido de um
antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições de existência
sociais dos indivíduos” (MARX, 2008, p. 48). A liberdade dos capitalistas advém da
exploração, aprisionamento e empobrecimento da classe trabalhadora, em que as formas
e determinações para o desenvolvimento do gênero e da individualidade humana na
essência são mistificados, ideologicamente, a serviço da justificativa da positividade do
capital.
As classes do sistema do capital lutam por projetos antagônicos de hegemonia
material e intelectual, pois têm interesses bastante diferentes. Mas cabe ressaltar que,
em nome da propagação do capital, as formas burguesas se apropriam de alguns
interesses recíprocos para facilitar determinados encaminhamentos ideológicos de
interesse unilateral. Segundo Lukács (2013 p. 185), ‟[...] uma classe só existe
socialmente em interação prática com as demais classes da formação em que se

20
A estrutura são as relações materiais da base econômica e a superestrutura condiciona a existência e as
formas do estado e da consciência social que inclui as relações não materiais. Um movimento histórico,
desigual e não autônomo. A organização social nasce na estrutura que constitui, fundamenta e determina
as condições da superestrutura para além das percepções deterministas e economicistas pensadas na
lógica formal (BOTOMORE, 2012).
76

encontra. Não pode haver nada mais falso, portanto, do que considerar relações de
classe bem determinadas isoladas dessa posição que ocupam na respectiva totalidade”.
Nesse contexto, ambas as classes se distanciam do caráter ontológico estabelecido na
relação entre ser social e sociedade.
A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma
autoalienação humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada
nessa autoalienação humana, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela
possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-
se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de
uma existência desumana (MARX, 2011a, p. 48).

Essa conjuntura exacerba, na atualidade, uma das contradições motores da história


que coloca em movimento a realidade, as forças produtivas e as relações de produção21.
Nessa dinâmica contraditória que resulta na atual organização societal, a produção do
capital, destacamos uns dos princípios fundamentais da ideologia burguesa: a mais-
valia, o dinheiro e o fetichismo da mercadoria. A questão da mais-valia é uma das
categorias primordiais dentre dos princípios da ideologia do sistema do capital. Advinda
da intensificação da exploração do homem pelo homem, a mais-valia também chamada
de mais-valor ou sobretrabalho se constitui no processo de produção de mercadorias
como criação de valor excedente que torna como forma de lucro, no qual o trabalhador
produz e recebe o mínimo para sobrevivência transformado em salário22.
Para Marx (2011, p. 270) ‟[...] o pôr do trabalho excedente é a condição
necessária para o crescimento do valor ou para a valorização do capital”. Entende-se por
mais-valor a exploração do homem pelo homem por meio do trabalho no processo de
produção de excedente de mercadorias não paga ao trabalhador e a apropriação privada
desse resultado pelo capitalista como capital.
O caráter fetichista da mercadoria, por sua vez, é considerado por Marx (2013,
p.147) ‟[...] apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui
assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”. A mercadoria
como produto do trabalho com preponderância do valor de troca ideologicamente ganha
vida própria, autônoma e sobrenatural na produção, distribuição, circulação e consumo.

21
As forças produtivas estão relacionadas aos meios de produção, à força de trabalho e as relações de
produção são constituídas pela propriedade econômica das forças produtivas (MARX, 2008).
22
De acordo com Marx (2012, p.33), ‟o salário é a soma em dinheiro que o capitalista paga por um
determinado tempo de trabalho ou pela prestação de um determinado trabalho”. Um valor troca para o
trabalhador que vende a disposição de sua força de trabalho como mercadoria e como valor útil para o
capitalista que a compra com o valor menor que o trabalhador cria com o intuito da extrair o excedente
pela exploração.
77

Esse caráter coisifica, mecaniza e encoberta as relações sociais, a historicidade e a


totalidade do processo violento no qual se efetiva a mercadoria. Além disso, o
fetichismo atribui uma supervalorização das mercadorias em detrimento a vida social e
oculta o processo de exploração do trabalho para a produção de mercadorias, que é onde
se origina todo o processo de desumanização (MÉSZÁROS, 2011).
O dinheiro, forma material do fetichismo da mercadoria, é ‟[...] o representante
material universal da riqueza” (MARX, 2011, p. 164). Está oculto pela ideologia o fato
de que o dinheiro é, na realidade, uma construção social e violenta contra o
desenvolvimento da sociedade e do ser social no sentido ontológico, uma mercadoria
que possui valor de troca universal e submete uma grande parte das relações sociais
como as premissas que o constituem uma das expressões máximas do fetichismo da
mercadoria. O dinheiro, como produto das relações sociais, na realidade, não possui
vida própria como aparentam os discursos ideológicos do mercado financeiro e nem
produz a felicidade plena.
Portanto, a ideologia do sistema do capital se efetiva como hegemônica dentro
da totalidade social, composta por elementos e mecanismos da concepção liberal de
mercado e possui como eixo central a cisão entre capital e trabalho. Dessa forma,
desenvolvem-se características violentas como o individualismo, a competitividade, a
discriminação, a desigualdade. Características da ‟sociedade da mercadoria” que se
estabelecem cada vez mais na forma de universalidade.
Vivemos sob condições de uma desumanizante alienação e de uma subversão
fetichista do real estado de coisas dentro da consciência (muitas vezes
também caracterizado como reificação) porque o capital não pode exercer
suas funções sociais metabólicas de ampla reprodução de nenhum outro
modo. Mudar essas condições exige uma intervenção consciente em todos os
domínios e em todos os níveis da nossa existência individual e social
(MÉSZÁROS, 2008, p. 59).

Conforme Marx (2010), nesta estrutura societal, o trabalho e a vida produtiva


aparecem ao homem apenas como meio para a satisfação de uma carência, a
necessidade de manutenção da subsistência. O trabalho passa a ser difundido
ideologicamente como sinônimo de emprego, forma natural e aparente de liberdade,
com a única função de sobrevivência, uma capacidade e forma natural de criação de
novas possibilidades para o desenvolvimento de si e da sociedade considerada como
propriedade mercadológica de cada pessoa.
78

Podemos ver, claramente, como se dá o processo de desumanização a partir


desses princípios e características da ideologia do sistema do capital na atualidade.
Sob o comando do capital, o sujeito que trabalha não mais pode considerar as
condições de sua produção e reprodução como sua própria propriedade. Elas
não mais são os pressupostos naturais do seu eu como constitutivos da
‟extensão externa de seu corpo”. Ao contrário, elas agora pertencem a um
‟ser estranho” reificado que confronta os produtos com suas próprias
demandas e os subjuga aos imperativos materiais de sua própria constituição.
Assim, a relação entre o sujeito e o objeto da atividade produtiva é
completamente subvertida, reduzindo o ser humano ao status desumanizado
de uma ‟mera condição material de produção” O ter domina o ser em todas
as esferas da vida. Ao mesmo tempo, o eu dos sujeitos produtivos é destruído
por meio da fragmentação e da degradação do trabalho à medida que eles são
subjugados às exigências brutalizantes do processo de trabalho capitalista
(MÉSZÁROS, 2011, p. 611).

Nesse movimento, o trabalhador converte-se em mercadoria e a atividade


produtiva do ser humano se vê externa a si num processo denominado de alienação.
‟Estranha ao homem a natureza, e o homem de si mesmo, de sua própria função ativa,
de sua atividade vital; ela estranha do homem o gênero humano” (MARX, 2010, p. 84).
O trabalho alienado separa o produtor do processo e do produto do próprio trabalho no
qual passa a não pertencer ao trabalhador, mas ao proprietário das forças produtivas
direcionado para o mercado controlado pelo processo ‟sociometabólico do capital”.
Aquele que detém o capital, que não participa da produção e sobre o produto, obtém as
melhores condições de apropriar os meios e os produtos mais desenvolvidos e
complexos que a sociedade construiu historicamente.
Portanto, a alienação caracteriza-se por um estranhamento do trabalhador em
relação à objetivação, tanto no processo como no produto de seu trabalho.
O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa, pelas leis
nacional-econômicas, em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem
para consumir; que quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se
torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele
fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador; que
quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna;
quanto mais rico de espírito o trabalho, mais pobre de espírito e servo da
natureza se torna o trabalhador (MARX, 2010, p. 82).

Conforme Mészáros (2011), a raiz da alienação é a exploração do ser humano


articulada à propriedade privada dos meios de produção e da força de trabalho
pertencente ao capitalista. A vida genérica torna-se estranha, ou seja, a própria essência
humana torna-se capital, um mero meio pragmático de sobrevivência. ‟A forma
capitalista de apropriação dos resultados do trabalho faz com que, tanto a apropriação
79

quanto a objetivação, em vez de humanizarem a vida do trabalhador, alienem-no da


riqueza material e não material” (DUARTE, 2013, p.73). Logo, o trabalho alienado,
como um dos princípios da ideologia do sistema do capital, mecaniza, coisifica, limita,
esvazia e empobrece o desenvolvimento do gênero e da individualidade humana,
intensificando as condições desumanas nas quais sobrevive a maioria das pessoas.
A ideologia dominante requer a ajuda de instituições sociais, políticas e culturais
para se reproduzir e se legitimar em todos os níveis da vida social, aparentemente, como
objetivos “neutros”, que visam o desenvolvimento do indivíduo para a vida em
sociedade (SAVIANI, 2012b). A educação escolar como atividade humana que possui a
potencialidade de desenvolver a formação humana no sentido da humanização, de
construir a crítica do real e de desvelar essas contradições que permeiam a totalidade
social, muitas vezes é utilizada aos propósitos ideológicos do capital com a função de
explicar, justificar, reproduzir e conservar essa atual realidade violenta. Além disso, é
utilizada como meio de amenizar os conflitos sociais e dificultar a construção de novos
caminhos e sentidos para um trabalho educativo para além do capital.
De acordo com Marx e Engels (2010, p. 43), “[...] a burguesia não pode existir
sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as
relações econômicas, portanto todo o conjunto das relações sociais”. Assim, novas
configurações e finalidades são estabelecidas, manipuladas e controladas na educação
escolar, direcionadas pela ideologia do capital, tanto para os alunos quanto aos
professores. Nisso se revela claramente a dicotomia que existe entre uma formação para
os dominantes e uma formação para os dominados.
As instituições formais de educação certamente são uma parte importante do
sistema global de internalização. Mas apenas uma parte. Quer os indivíduos
participem ou não – por mais ou menos tempo, mas sempre em um número
de anos bastante limitado – das instituições formais de educação, eles devem
ser induzidos a uma aceitação ativa dos princípios reproduzidos orientadores
dominantes na própria sociedade, adequados a sua posição na ordem social, e
de acordo com as tarefas reproduzidas que lhes foram atribuídas
(MÉSZÁROS, 2008, p. 44).

Para Duarte (2013), ‟[...] a escola foi-se universalizando; a burguesia e seus


aliados colocaram em ação mecanismos que aproximaram as atividades educativas
escolares das formas mais alienantes que a vida cotidiana assumiu na sociedade
capitalista”. Desse modo, a ideologia do sistema do capital implica na escola e para se
80

reproduzir utiliza e torna as necessidades do capital como se fossem de todos os seres


sociais que compõem a sociedade.
Desde já, é evidente que o trabalhador, durante toda sua vida, não é senão
força de trabalho, razão pela qual todo o seu tempo disponível é, por natureza
e por direito, tempo de trabalho, que pertence, portanto, à autovalorização do
capital. Tempo para a formação humana, para o desenvolvimento intelectual,
para o cumprimento de funções sociais, para relações sociais, para o livre
jogo das forças vitais físicas e intelectuais, mesmo o tempo livre do domingo
– e até mesmo no país do sabatismo – é pura futilidade (MARX, 2013, p.
337).

Nessa sociedade, a escola realiza, por vezes, uma função distorcida e objetiva,
uma formação empobrecida, caracterizada pela busca de resultados rápidos visando à
preparação mínima da força de trabalho para o mercado e, ao mesmo tempo,
contraditoriamente, objetiva também um certo tipo de acolhimento social que busca
minimizar os graves problemas sociais enfrentados pela classe trabalhadora, inclusive a
pobreza, ou ainda valendo-se de determinados mecanismos ideológicos violentos como
as provas estandartizadas (LIBÂNEO, 2012).
Na atualidade, conforme Duarte (2012), essa forma de educação acaba por
contribuir na intensificação da exploração do trabalho, cada vez mais violenta, arbitrária
e imediatista. Mészáros (2008, p. 45) destaca que ‟[...] uma das funções principais da
educação formal, nas nossas sociedades, é produzir tanta conformidade ou ‟consenso”
quanto for capaz, a partir de dentro e por meio dos seus próprios limites
institucionalizados e legalmente sancionados”. Tal contexto nos leva a perder cada vez
mais o sentido e o significado do trabalho e da educação como criação e emancipação
humanas, porém, na contradição, são estes princípios e características da ideologia do
sistema do capital que nos levam à construção de novos caminhos.
Nessas condições, a escola tende a aprofundar a separação entre trabalho manual
e intelectual, estabelecendo uma formação para o comando e outra para a execução.
Uma educação escolar dualista que oferece uma formação intelectual para os filhos da
burguesia e um treinamento manual para os filhos da classe trabalhadora.
Dia após dia, torna-se assim mais claro que as relações de produção nas quais
a burguesia se move não têm um caráter uno, simples, mas um caráter
dúplice; que, nas mesmas relações em que se produz a riqueza, também se
produz a miséria; que, nas mesmas relações em que há desenvolvimento das
forças produtivas, há uma força produtora de repressão; que essas relações só
produzem a riqueza burguesa, ou seja: a riqueza da classe burguesa,
destruindo continuamente a riqueza dos membros integrantes dessa classe e
produzindo um proletariado sempre crescente (MARX, 2009, p. 139).
81

Os conhecimentos que são ensinados aos trabalhadores são trabalhados, na


maioria das vezes, de maneira restrita e particular, objetivando a reprodução do capital e
a manutenção da hegemonia dominante.
A consumação da ascendência histórica do capital intensifica, até o ponto de
ruptura, uma das contradições básicas do sistema: a que existe entre a sempre
crescente socialização da produção (em direção à plena globalização) e seu
controle hierárquico restritivo por diferentes tipos de personificações do
capital. A irrevogável extrapolação do capital no plano das condições
elementares da reprodução sociometabólica é a consequência inevitável desta
contradição (MÉSZÁROS, 2011, p. 256).

Para Saviani (2012b), os trabalhadores, na ideologia do capital, têm que ter o


mínimo de instrução, mas apenas o necessário para participarem da produção e
reprodução dessa sociedade, inseridos no processo de produção pautado pelo
individualismo, utilitarismo e competitividade. Uma das principais contradições da
educação escolar, na atualidade, é a afirmação da escola como instituição necessária e,
ao mesmo tempo, a negação do conhecimento desenvolvido e complexo que poderia
verdadeiramente desenvolver o potencial humano. Contradição que acaba por negar a
especificidade, a centralidade e a função social da educação escolar.
A educação escolar tornou-se uma importante ferramenta da ideologia do
sistema do capital para direcionar e controlar a formação humana, a sensibilidade do
real e a consciência de uma grande parte da sociedade.
A grande questão é: o que é que aprendemos de uma forma ou de outra? Será
que a aprendizagem conduz à autorrealização dos indivíduos como
‟indivíduos socialmente ricos” humanamente, ou está ela a serviço da
perpetuação, consciente ou não, da ordem social alienante e definitivamente
incontrolável do capital? Será o conhecimento o elemento necessário para
transformar em realidade ideal da emancipação humana, em conjunto com
uma firme determinação e dedicação dos indivíduos para alcançar, de
maneira bem-sucedida, a autoemancipação da humanidade, apesar de todas
as adversidades, ou será, pelo contrário, a adoção pelos indivíduos, em
particular, de modos de comportamentos que apenas favorecem a
concretização dos objetivos reificados do capital? (MÉSZÁROS, 2008, p.
47).

Numa síntese, diante de tudo o que foi exposto neste capítulo, podemos afirmar
que a educação escolar é produto e, ao mesmo tempo, produtora de mecanismos e
elementos ideológicos, mas traz em si contradições que podem levar ao conhecimento e
a uma formação no sentido da humanização e daí a importância do desvelamento desses
mesmos mecanismos como a construção de novos caminhos. A educação escolar é,
portanto, espaço onde podemos criar formas de luta contra-hegemônica.
82

Conforme Mészáros (2011), torna-se uma necessidade essencial construirmos


um processo de formação e emancipação voltado a uma nova ordem social, pois, a
ideologia do sistema do capital, atualmente configurada de forma subliminar na
realidade concreta, intensifica a violência da exploração do trabalho na direção do
processo de desumanização.
Que a emancipação da classe trabalhadora tem de ser conquistada pela
própria classe trabalhadora; Que a luta pela emancipação da classe
trabalhadora significa não a luta por privilégios e monopólios, mas por iguais
direitos e deveres e pela abolição de todo domínio de classe; que a sujeição
econômica do homem que trabalha para o monopolizador dos meios de
trabalho, isto é, das fontes de vida, repousa no âmago da servidão em todas as
suas formas, de toda miséria social, degradação mental e dependência
política; Que a emancipação do trabalho não é uma emancipação local, nem
nacional, mas um problema social que abrange todos os países em que existe
a sociedade moderna e depende, para sua solução, da confluência prática e
teórica de todos os países avançados (MARX, 2012, p. 79-80).

A particularidade da totalidade que elegemos dentro da educação escolar e que


para nós revela, de forma mais evidente, as relações, as contradições, os elementos e os
mecanismos violentos e ideológicos do sistema do capital nas condições históricas
atuais é o currículo. Consideramos essa particularidade um instrumento da prática social
que sintetiza e organiza a função social e os objetivos da escola; no atual momento
histórico trabalha-se diretamente na organização e elaboração da cultura humana, que se
tornou determinante no trabalho do professor, ou seja, no ensino.
83

CAPÍTULO II

CURRÍCULO ESCOLAR, ENSINO E VIOLÊNCIA SUBLIMINAR

Neste capítulo, a partir da perspectiva ontológica de educação apresentada, no


capítulo anterior, pretendemos discutir o objeto nuclear desta pesquisa — o currículo
escolar. Em nossa análise, buscamos apreender a estrutura e a dinâmica da organização
e funcionamento desse instrumento cultural, pedagógico e político, constituído,
historicamente, no âmbito da educação escolar, nas contradições do sistema do capital.
Consideramos o currículo como o principal instrumento norteador do trabalho educativo
escolar e, atualmente, uma importante temática nas discussões sobre a escola, no campo
das políticas públicas, da formação de professores, da organização do trabalho
pedagógico e do processo de ensino e aprendizagem.
A origem do currículo como instrumento da prática social efetivado através do
ensino pela mediação do trabalho docente coincide com a construção histórica do modo
de produção capitalista e da educação escolar. Nesse contexto de lutas de classes e de
relações de poder, determinados componentes e mecanismos ideológicos compõem este
instrumento articulado às relações sociais de produção material e não material,
definindo a constituição e propagação de elementos de um tipo de violência
escamoteada contra o processo de humanização que denominamos de violência
subliminar.
No primeiro item, destacaremos a discussão da cultura e da ciência, no contexto
do campo do currículo escolar, como elementos ontológicos constituintes do gênero e
da individualidade humana, essenciais no desenvolvimento da produção material e não
material da vida social. Entende-se que, desde o surgimento da modernidade e a
consolidação do modo de produção capitalista, tem se intensificado a utilização e
controle funcional desses elementos pelo sistema do capital, provocando a ampliação
das contradições, no processo de formação humana, inclusive no âmbito escolar.
No segundo item, explicitaremos a articulação entre currículo, ensino e trabalho
docente, destacando o ensino como um dos elementos ontológicos essencial na
contribuição com a formação e desenvolvimento humano. Buscamos os conceitos de
currículo, ensino e trabalho docente com base na perspectiva ontológica de educação na
tentativa de melhor compreender os pressupostos que contribuem com a reprodução dos
84

ditames ideológicos do capital, no âmbito escolar, e as contradições na construção de


novos caminhos para além de uma sociedade da mercadoria, de uma educação
mercadológica e da formação de um ser humano mercantil.
No terceiro item do capítulo, com base na compreensão das relações e
contradições entre diferentes ideias pedagógicas constituídas historicamente, analisamos
os princípios, características, contradições e aspectos filosóficos, pedagógicos e
ideopolíticos que constituem uma configuração e uma dinâmica curricular denominada
de currículo fetiche. No quarto item, aprofundamos a análise sobre a perspectiva do
currículo fetiche, destacando as duas categorias fundamentais que o constituem, no
nosso entendimento: o relativismo cultural intersubjetivo e a propriedade intelectual. No
último item deste capítulo, concluímos nossa análise do currículo escolar, apresentando
o conceito de violência subliminar, a articulação com a ideologia e a identificação e
análise de elementos que contribuem com a materialização do currículo fetiche.

2.1. Cultura, ciência e currículo à luz da ontologia do ser social

A história das produções materiais e não materiais construídas, no processo


dialético entre apropriação e objetivação, colaboram, efetivamente, no desenvolvimento
de variados elementos ontológicos e criação de diversas ferramentas e instrumentos que
influenciam na formação e complexificação do gênero e da individualidade humana. O
advento do capitalismo e da modernidade, na contradição, colaboraram com esses
desenvolvimentos e criações, principalmente, ao propiciar um grande, rápido e contínuo
afastamento das barreiras naturais, um maior domínio sobre a natureza, a criação de
novos saberes objetivos, a ampliação das características sociais sobre os objetos,
aprofundamento da consciência sobre os fenômenos sociais, o aumento expressivo da
tecnológica, da complexificação das relações sociais e maior dependência dos seres
humanos nas produções socioeconômicas.
Segundo Marx (2011, p.40), ‟[...] quanto mais fundo voltamos na história, mais o
indivíduo, e por isso também, o indivíduo que produz, aparece como dependente, como
membro de um todo maior”. Os seres humanos criam os produtos materiais e não
materiais somente articulados à totalidade socioeconômica, os quais implicam na
essência e existência do ser social, nas relações da produção material da vida social e na
construção de determinadas ideologias.
85

As perguntas que os processos econômicos suscitam na transformação


dinâmica das formações, cujas respostas levam os homens singulares a se
formarem e desenvolverem tanto como seres genéricos quanto como
individualidades, de fato têm a base de sua realidade última nas objetividades
economicamente determinadas da sua respectiva atualidade, mas
ultrapassam, ininterruptamente, essa imediatidade justamente no entorno
social do ser, sobretudo naquele que está baseado na divisão social do
trabalho (LUKÁCS, 2013, p. 534).

Pela mediação do trabalho, as produções são construídas na elaboração e


apropriação de conhecimentos sobre objetos presentes na natureza e em fenômenos
sociais. As propriedades dos objetos são apropriadas pelos seres humanos e, ao
sofrerem objetivações, passam a ser denominados de instrumentos com novas funções e
objetivos sociais. De acordo com Duarte (2013, p. 29), ‟[...] nessa perspectiva, pode-se
dizer que foi a produção de instrumentos que fez surgir algo que, até então, não existia:
a relação entre sujeito e objeto”. Percebemos, no sentido ontológico, que é, nesta
relação processual dialética entre o sujeito e o objeto, produção material e não material
e, apropriação e objetivação efetivadas dentro do contexto socioeconômico pela
mediação do trabalho, que o ser humano começa a criar, elaborar, organizar e
estabelecer novos pôres teleológicos, ideologias, a sociabilidade, a educação e a cultura.
Nesse processo que envolve o desenvolvimento humano, no sentido da
humanização, passamos a destacar a questão da cultura. Conforme Gramsci (1991), a
cultura emerge a partir do trabalho nas relações complexas da vida econômica,
considerada como um dos elementos ontológicos primordiais da formação e do
desenvolvimento humano e na luta contra-hegemônica dentro da educação escolar.
O que caracteriza essa peculiaridade é a relação entre objetivação e
apropriação, que se efetiva já nas formas mais elementares de relacionamento
do ser humano com a natureza, já no primeiro ato histórico de produção dos
meios de satisfação das necessidades humanas e de criação, nessa produção,
de necessidades qualitativamente novas (DUARTE, 2013, p. 35).

A constituição da cultura humana se estabelece a partir da produção dos meios de


satisfação de necessidades humanas coletivas e individuais e se desenvolve na
intensificação da vida material produtiva. Logo, ‟[...] praticamente, a universalidade do
homem aparece precisamente na universalidade que faz da natureza inteira o ser corpo
inorgânico, tanto na medida em que ela é o objeto/matéria e o instrumento de sua
atividade vital” (MARX, 2010, p. 84). No sentido ontológico, a cultura envolve a
construção de conhecimentos sobre a natureza orgânica e inorgânica que compõem os
86

instrumentos para o processo de execução do trabalho, consequentemente, das relações


sociais.
Segundo Lukács (2013, p. 155), “[…] o homem se tornou homem, exatamente
nessa luta, por meio dessa luta contra a própria constituição naturalmente dada, e que o
seu desenvolvimento ulterior, o seu aperfeiçoamento, só pode seguir se realizando por
esse caminho e com esses meios”. A cultura como produto das objetivações é
constituída a partir do momento em que os seres humanos começam a realizar
transformações elementares na natureza naquilo que necessitam para sobreviver e
reproduzir o gênero e a individualidade, transformando e adequando o meio natural em
determinadas necessidades das atividades humanas (ENGELS, 2009).
Os conhecimentos, os valores, a ética e os costumes passam a ser fenômenos
sociais produtos históricos das ações humanas as quais compõem a cultura. Segundo
Marx (2010, p. 128), ‟[...] como tudo o que é natural tem de começar, o homem tem
como seu ato de gênese a história, que é, porém, para ele, uma [história] sabida e, por
isso, enquanto ato de gênese com consciência, é ato de gênese que se suprassume. “A
história é a verdadeira história natural do homem”. Percebe-se, portanto, que é na
produção histórica da socialidade que o ser humano constitui e desenvolve a cultura,
considerada como um conjunto de produtos não materiais das atividades humanas,
instituídas no processo da práxis, manifestando-se somente articulada à produção
material da prática social.
A produção da cultura não se limita somente à relação direta com a natureza ou
se apresenta isolada das relações sociais, mas se amplia e torna-se mais complexa nas
produções entre os homens e é composta por toda riqueza material e não material já
construída historicamente. Os saberes objetivos que compõem a cultura são
incorporados à prática social e utilizados de forma consciente na construção da
sociabilidade e no desenvolvimento da coletividade. ‟Ocorre que não há outra maneira
de o indivíduo humano formar-se e desenvolver-se como ser genérico, senão pela
dialética entre a apropriação da atividade humana objetivada no mundo da cultura e a
objetivação da individualidade por meio do trabalho” (SAVIANI e DUARTE, 2012,
p.22).
A dinâmica sociocultural coincide com a constituição da prática social, da
gênese da formação humana, das contradições que compõem e movem a realidade e, a
totalidade social, pois, ‟[...] o homem é um ser que responde, a quem o processo
87

objetivo faz perguntas” (LUKÁCS, 2013, p. 518). É nessa relação entre o natural e o
social, o sujeito e o objeto, a objetividade e a subjetividade, o singular e o plural que a
cultura humana é produzida. Forma um conjunto de conhecimentos/saberes e valores
que se manifestam na história como produtos das atividades humanas e patrimônio da
humanidade.
Segundo Lukács (2012, p. 287), ‟[...] as formas de objetividade do ser social se
desenvolvem à medida que a práxis social surge e se explicita a partir do ser natural,
tornando-se cada vez mais claramente sociais”. Por meio da produção, apropriação e
objetivação da cultura desenvolvida pela práxis, os seres humanos colocam em
movimento o objeto, a realidade a qual pertencem e o próprio ser que se objetiva.
Assim, a cultura não se constitui e se manifesta no imediato da vida individual e
em particularidades isoladas das relações materiais e sociais, mas articulada
dialeticamente ao universal, à historicidade e à totalidade em uma realidade concreta
composta por contradições.
O objeto nesse caso é, primeiramente, a produção material. Indivíduos
produzindo em sociedade – por isso, o ponto de partida é, naturalmente, a
produção dos indivíduos socialmente determinada. O caçador e o pescador,
singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo, pertencem às
ilusões desprovidas de fantasia das robinsonadas do século XVIII, ilusões
que de forma alguma expressam, como imaginam os historiadores da cultura,
simplesmente uma reação ao excesso de refinamento e um retorno a uma vida
natural mal-entendida (MARX, 2011, p. 39).

A cada conjunto de atividades históricas construídas em forma de saberes


objetivos, que coincidem com a complexificação da socialidade e das relações sociais
de produção, resultante da vida socioeconômica, a cultura humana se amplia. Os seres
humanos vão se apropriando historicamente do acúmulo das atividades socioculturais
condensadas de outros seres humanos de várias gerações, proporcionando
transformações e saltos qualitativos tanto para a sociedade quanto para-si. Assim sendo,
os produtos da cultura têm um caráter potencial para a formação da consciência, de
novas faculdades mentais e do desenvolvimento da práxis como atos de humanização.
Entendemos, portanto, a cultura como natureza modificada, conjunto de
atividades humanas historicamente construídas. Envolve trabalho, transformação, pôr
teleológico, movimento, acúmulo de atividade, condensação de atividade humana e
transferência dessa atividade pela educação transmitida e propagada socialmente de
geração em geração. Significa um processo dialético entre produção, conservação e
88

reprodução de instrumentos, técnicas da vida produtiva, valores e normas flexíveis para


a socialidade humana construída por saberes objetivos durante a historicidade dos
fenômenos sociais. Um conjunto de conhecimentos sobre a produção material concreta
da vida social, sendo a ciência, a arte e a filosofia, as formas de objetivações mais
desenvolvidas do gênero humano, que são os produtos da atividade humana primordiais
da cultura para o desenvolvimento do processo de humanização (LUKÁCS, 2013).
Ter condições reais de apropriação do patrimônio sociocultural é uma
necessidade ontológica de todos os seres humanos, no sentido da democratização da
sociedade. Segundo Lukács (2012, p. 348), ‟[...] tudo aquilo que, no trabalho e por meio
do trabalho, surge de, expressamente humano, constitui a esfera do humano na qual
direta ou indiretamente baseiam-se todos os valores”. Podemos afirmar que a gênese da
cultura coincide com a essência, existência e a reprodução do ser social. Logo, o
desenvolvimento dos fenômenos culturais devem ser apropriados por todos os seres
humanos, na relação entre individualidade e gênero humano pela mediação do trabalho
como princípio educativo23, nas variadas formas de educação, inclusive a educação
escolar.
A cultura articulada à educação escolar deve ‟[...] levar os seres humanos a um
certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa
autonomia na orientação e na iniciativa” (GRAMSCI, 1991, p. 121). A educação escolar
possui a possibilidade de trabalhar com a cultura humana elaborada, sistematiza e
complexa e tem, no currículo escolar, o instrumento primordial e o eixo central para
materializar o trabalho de organização, elaboração24, síntese e socialização da cultura
transformada em saber escolar, composto, principalmente, pelos campos da ciência, da
filosofia e da arte.
Na perspectiva ontológica, a cultura propicia condições aos seres humanos de
compreenderem o processo histórico de transformação da natureza, dos seres humanos,
da prática social e, ao mesmo tempo, criar caminhos para a mudança na sociedade e do
próprio sujeito, já que ‟[...] o homem só pode pôr aqueles fins cujos meios adequados à
sua efetivação, domina de fato” (LUKÁCS, 2013, p. 58). Afirmamos, portanto, que a

23
A partir dos fundamentos teórico-metodológicos da perspectiva ontológica de educação, o conceito de
‟trabalho como princípio educativo” foi discutido no capítulo 1, principalmente nos itens 1.1 e 1.2.
24
De acordo com Saviani (2012, p. 67), "[...] elaboração do saber não é sinônimo de produção de saber. A
produção do saber é social, ocorre no interior das relações sociais. A elaboração do saber implica
expressar de forma elaborada o saber que surge da prática social".
89

cultura composta pelas ciências, filosofias e as artes fazem parte da formação da


essência e existência ontológica do ser social, da organização do trabalho educativo e
constitui o núcleo fundante do currículo escolar.
Os seres humanos, na produção, sistematização e transmissão de saberes
objetivos sobre a natureza e a sociedade, têm a possibilidade de compreender racional e
concretamente a realidade por meio da consciência dos atos dos pôres teleológicos. Esse
processo revela a origem da ciência, considerada, nesta pesquisa, como elemento
ontológico constituinte da cultura, primordial para a formação humana, porém, pautado
por contradições. Logo, ‟[...] todo elemento, toda parte é também aqui um todo; o
‘elemento’ é sempre um complexo com propriedades concretas, qualitativamente
específicas, um complexo de forças e relações diversas que agem em conjunto”
(LUKÁCS, 2012, p. 307).
Assim, é a partir da elaboração da razão, na relação entre objetivação e
apropriação, elaboradas para o domínio e transformação da natureza, na prática social,
que os seres humanos iniciam a constituição, o desenvolvimento e a complexificação da
ciência na vida produtiva, consequentemente, intensifica-se o aprofundamento e a
compreensão dos saberes objetivos e da realidade de modo racional e consciente.
As experiências mais elementares da vida ensinaram aos humanos que os
eventos de sua existência na realidade objetiva são compreensíveis de modo
racional; ou seja, que educar o entendimento e a razão pode ser importante
para o domínio da realidade, precisamente porque esses instrumentos são
capazes de reproduzir fielmente no pensamento o essencial e o universal dos
fatos e de seu decurso. Isso não converte a autoatividade do entendimento e
da razão em algo ilusório, justamente porque o essencial, o universal e o legal
jamais são dados de modo imediato, nem podem ser simplesmente
reproduzidos, mas devem ser conquistados mediante um penoso trabalho
autônomo (LUKÁCS, 2012, p. 266).

Para que isso seja efetivado, o ser social necessita criar uma significação para os
objetos naturais e sociais não de forma arbitrária, ‟[...] precisa conhecer a natureza do
objeto para poder adequá-lo às suas finalidades. Ou seja, para que o objeto possa ser
transformado e inserido na ‟lógica” da atividade humana, é preciso que o ser humano se
aproprie de sua ‟lógica natural” (DUARTE, 2013, p. 28). Remetendo-nos às palavras de
Lukács (2013), a gênese da ciência relacionada à razão não pode se afastar de sua forma
originária, ou seja, do trabalho, ‟[...]se originam da investigação referente a necessidade
prática e ao melhor modo de satisfazê-las, ou seja, da tentativa de encontrar os melhores
meios no trabalhar” (p. 60). Desse modo, os seres humanos, para se objetivarem na
90

realidade concreta pelo trabalho e se formarem humanamente, no sentido ontológico,


mesmo sem perceber, necessitam de se apropriar do campo da ciência.
Nessa compreensão ontológica da ciência, o ser humano, por meio da razão,
necessita distinguir e construir as propriedades, as características, os aspectos, os
elementos e os mecanismos da natureza e, consequentemente, da sociedade, para atingir
finalidades complexas. Atividade desenvolvida na direção de determinados propósitos
universais e particulares dentro da esfera socioeconômica que contribuem com a
constituição e desenvolvimento do gênero e da individualidade.
[...] a inserção da natureza na prática social exige um certo grau de
conhecimento da natureza em si mesma que deve ser entendida
historicamente, ou seja, como um processo em cujo início esse conhecimento
do objeto em si mesmo está indissociavelmente ligado à usa utilidade prática
para os seres humanos. Com o desenvolvimento social, o conhecimento foi
adquirindo autonomia em relação à utilidade prática dos objetos (DUARTE,
2013, p. 29).

Para Lukács (2013, p. 57), ‟[...] em suma, o ponto no qual o trabalho se liga ao
surgimento do pensamento científico e ao seu desenvolvimento é, do ponto de vista da
ontologia do ser social, exatamente aquele campo por nós designado como investigação
dos meios”. Tais meios estão vinculados à apropriação dos conhecimentos dos objetos
da natureza, aos nexos causais, ao processo no qual se efetivam na prática social e aos
instrumentos e produtos do trabalho fundamentais para o desenvolvimento produtivo da
sociedade e do ser social, ou seja, da individualidade e do gênero.
Os seres humanos como produtos dos atos de humanização precisam conhecer
os conceitos nucleares numa visão de síntese da realidade real e concreta, da
complexidade da natureza e da sociedade, as contradições das relações sociais e as
transformações históricas. Trata-se de um processo árduo e complexo que se torna
historicamente uma necessidade ontológica que os eleva à condição, cada vez maior, de
apropriar da riqueza cultural. Proporciona a construção e elaboração de saberes
objetivos cada vez mais complexos, elaborados e sistematizados para a coletividade e o
desenvolvimento da vida produtiva.
Desse modo, a vida produtiva torna-se cada vez mais complexa por meio dos
atos humanos de conhecimento, apropriação e objetivação dos meios, dos modos de
execução e dos produtos do trabalho, que, por sua vez, levam os seres humanos
ànecessidade de novos saberes objetivos autônomos, mais elaborados e sistematizados,
91

não somente a partir da natureza, mas de toda construção produzida e elaborada no


curso da história das relações humanas (MARX, 2013).
Trata-se de uma práxis de base científica que propicia melhores condições para
explicar e desenvolver as relações socioeconômicas, a totalidade da prática social, as
lutas de classes e as contradições constituídas pelas atividades humanas que movem a
realidade concreta. Logo, não há como o ser social criar e transformar através da práxis
se não conhecer, pelo menos, os conhecimentos científicos básicos da existência do
objeto.
É, portanto, a partir da tendência intrínseca de autonomização da investigação
dos meios, durante a preparação e execução do processo de trabalho, que se
desenvolve o pensamento cientificamente orientado e que mais tarde se
originaram as diferentes ciências naturais. Naturalmente, não se trata da
gênese única de um novo campo de atividade a partir do anterior. Na
realidade, essa gênese continuou a repertir-se, ainda que de formas muito
diversas, através de toda a historiada ciência até hoje (LUKÁCS, 2013, p. 60-
61).

Na perspectiva da ontologia do ser social, conforme Marx e Engels (2007), é a


ciência da história a determinação última da explicação e movimento da sociedade e do
ser social, pois é no movimento do real das relações sociais que qualquer objeto se
revela. Em suma, ‟[...] a ciência brota da vida, e na vida mesma – saibamos ou não,
queiramos ou não – somos obrigados a nos comportar espontaneamente de modo
ontológico” (LUKÁCS, 2012, p. 293). Nasce com a ampliação da vida genérica e do
desenvolvimento dos atos de objetivação e apropriação desenvolvidas pelo trabalho
como princípio educativo e se diversifica com a divisão social do trabalho.
Para Lukács (2013), ‟[...] a divisão social do trabalho faz surgir, de modo
diferenciado, diversas ciências, a fim de dominar o ser especificamente social da mesma
maneira que, com a ajuda das ciências naturais, o metabolismo com a natureza se tornou
cada vez mais dominável” (p. 564). Assim sendo, o nosso critério inicial de verdade
para a compreensão da cultura, da ciência e do currículo escolar é a história da
totalidade da prática social, ‟[...] a vida social é essencialmente prática. Todos os
mistérios que induzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática
humana e na compreensão dessa prática” (MARX e ENGELS, 2007, p. 539).
Nessa perspectiva, entende-se que a função social da escola se relaciona à
apropriação da síntese do saber objetivo do mundo natural e social transformado em
saber escolar presente na riqueza sociocultural composta pelas ciências, a filosofia e as
92

artes orientadas pelo ensino mediado pelo trabalho docente. Ou seja, relacionado às
condições de ensino e do desenvolvimento do trabalho docente, o currículo deve
trabalhar os saberes elaborados, complexos e ‟clássicos” da cultura que foram
historicamente construídos pelos seres humanos.
Vê-se, assim, que para existir a escola não basta a existência do saber
sistematizado. É necessário viabilizar as condições de sua transmissão e
assimilação. Isso implica dosá-lo e sequenciá-lo de modo que a criança passe
gradativamente do seu não domínio ao seu domínio. Ora, o saber dosado e
sequenciado para efeitos de sua apropriação no espaço escolar, ao longo de
um tempo determinado, é o que nós convencionamos chamar de ‟saber
escolar” (SAVIANI, 2012a, p.17).

Na relação entre cultura, ciência e currículo escolar, emerge a necessidade de


entendermos, em linhas gerais, a categoria ‟clássico”. Categoria esta ressaltada por
Saviani (2012a), no trato com o saber no trabalho educativo escolar e relacionada à
perspectiva ontológica de educação, cujo saber clássico se diferencia do tradicional e
pode ser caracterizado como aquele objeto social do pensamento que ‟[...] resistiu ao
tempo, logo sua validade extrapola o momento em que ele foi proposto” (p.87).
Compreendemos o saber objetivo clássico constituído pelos seres humanos nas relações
entre complexos sociais, estabelecido em determinado desenvolvimento econômico, a
partir da ‟ciência da história”. É considerado no processo global do curso histórico-
social um conhecimento universal e que permanecesse e atravessa os espaços e tempos
na totalidade da vida produtiva coletiva.
De acordo com Lukács, (2012, p. 376) ‟[...] o caráter histórico dessas
constelações faz com que a classicidade, em primeiro lugar, não possa ser representada
por um tipo ‘eterno’; ela o é, ao contrário, pelo modo de manifestação mais puro
possível de determinada formação, e o modo possibilitador de uma fase determinada
dela”. Isto significa que o saber clássico não necessariamente é o mais antigo, o arcaico,
o mais moderno, com maior tecnologia, de determinada classe social, o mais utilitarista
ou pragmático, o determinista, fonte da verdade absoluta e que irá ficar eternamente.
Mas, possui um caráter permanente, que mesmo com os mecanismos ideológicos do
capital atuando na naturalização da história e orientando como nos diz Coutinho (2010)
em direção a ‟miséria da razão”, faz-se presente, de forma significativa e necessária, na
compreensão real e concreta do desenvolvimento da vida social coletiva no sentido da
humanização.
93

Segundo Lukács, (2012, p.378) ‟[…] Marx define como clássico o


desenvolvimento no qual as forças econômicas, determinantes em última instância, se
expressam de modo mais claro, mais evidente, mais sem interferências, mais sem
desvios etc. do que nos demais casos” (LUKÁCS, 2012, p.378). Algo que deve
permanecer como nuclear na riqueza cultural, conhecimentos complexos e essenciais
para a explicação do desenvolvimento da produção material da vida social que abrevia e
condensa a explicação de fatos, propiciou saltos ontológicos e a compreensão de
fenômenos ou objetos de conhecimentos.
Portanto, entendemos como “clássico” aquele saber nuclear de fenômenos
naturais e sociais que marcaram a historicidade e proporcionaram, direta ou
indiretamente, saltos qualitativos na generidade e na individualidade humana.
Conhecimentos que retratam a evolução histórica e possibilitam as condições de
desvelar as contradições concretas da totalidade social para além da aparência. Assim,
abre-nos possibilidades de compreensão de elementos ontológicos e epistemológicos
que nos revelam as objetivações sociais mais importantes daquele desenvolvimento e
progresso socioeconômico e os desdobramentos do processo da práxis de determinado
tempo e espaço histórico, inclusive a cultura popular, não no sentido hierárquico, de
negação ou desvalorização de outros conhecimentos de determinados grupos.
O trabalho com o saber clássico evita que ‟[...] invertemos o sentido da escola e
considerando questões secundárias e acidentais como principais, passando para o plano
secundário aspectos principais da escola” (SAVIANI, 2012a, p. 87). A importância de
reportarmos aos clássicos na articulação entre cultura, ciência e currículo escolar, pode
ser vista nas obras de Marx e Engels, ao escolher, os clássicos de sua época para tecer
suas considerações críticas, materialistas, históricas e dialéticas, por exemplo, a filosofia
de Demócrito e Epicuro, a filosofia do direito de Hegel, a filosofia alemã, aos
economistas ingleses e franceses ligados à economia política, aos socialistas utópicos
como o Sr. Proudhon, aos fenômenos sociais mais complexos que podem ser
observados em suas obras políticas e ao desenvolvimento socioeconômico inglês que
abre caminhos para a compreensão da economia norte americana.
Um dos fenômenos clássicos da cultura que podemos destacar, como exemplo,
ressaltado por Engels (2009), é a formação do estado nas polis gregas. ‟Um desses
casos bem expressivos é o que Marx costuma designar como ‟classicidade” de uma fase
de desenvolvimento. Talvez o caso mais expressivo seja o da determinação, por Marx,
94

do desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra, que ele considera um


desenvolvimento clássico” (LUKÁCS, 2012, p.375). A escola como uma instituição
social está relacionada com esse saber clássico, sem negar a importância da cultura
popular, não podendo limitar-se aos conhecimentos espontâneos do senso comum e aos
saberes de determinados grupos. Pode, pois, constituir-se num critério importante para a
seleção e avaliação dos conteúdos do trabalho educativo, ou seja, para a organização do
currículo escolar.
Para nós, o currículo escolar, na direção de uma formação da individualidade
para-si, tornou-se um instrumento que, atualmente, possui o potencial de revelar, de
forma mais clara e intensa, a essência, os princípios, as contradições, os elementos e os
mecanismos da prática social que implicam na formação e desenvolvimento humano. É
por meio do currículo que se realiza o trabalho direto e específico de apropriação e
objetivação da cultura humana.
O processo de formação do indivíduo para si envolve um conjunto complexo
de fatores, sendo um deles a apropriação das objetivações genéricas para si.
Cabe ao trabalho educativo escolar, um importante papel na mediação entre a
relação entre objetivação-apropriação que se realiza no cotidiano e a relação
objetivação-apropriação nos campos da ciência, da arte e da filosofia, ou seja,
das objetivações genéricas para si. Não se trata apenas de que a escola deve
colocar os alunos em contato com os conhecimentos científicos, artísticos e
filosóficos, mas também que a escola deve produzir nos alunos a necessidade
de apropriação permanente desses conhecimentos em níveis cada vez mais
elevados. A função da escola não é, portanto, a de adaptar o aluno às
necessidades da vida cotidiana, mas de produzir nele necessidades referentes
a esferas mais elevadas de objetivação do gênero humano (DUARTE, 2013,
p. 213).

De acordo com Saviani (2012a), isso se estabelece em consequência, do saber


metódico, sistemático, científico, elaborado que passa a predominar sobre o saber
espontâneo, natural, assistemático, resultando daí que a especificidade da educação
passa a ser determinada pela forma escolar. Os saberes objetivos socioculturais são
transformados em saberes escolares, objeto central do currículo escolar, fruto das
transformações históricas e das contradições da realidade concreta. São construídos na
relação entre objetivação-apropriação, tendo como produtos primordiais e
preponderantes os campos da ciência, da arte e da filosofia. Saberes que, na perspectiva
ontológica de educação, determinam o eixo do currículo escolar que se efetiva através
do ensino na articulação dialética entre conteúdo e forma.
O currículo, nesta pesquisa, é entendido como um instrumento da prática social
desenvolvido na escola, estabelecido entre os sujeitos do processo de ensino e
95

aprendizagem, nas políticas públicas e na realidade, no sentido marxiano desse conceito.


Conforme Saviani (2012a), em síntese, é o instrumento que organiza o conjunto das
atividades nucleares distribuídas no tempo e espaço escolar. Emerge, a partir de uma
leitura ontológica, no contexto da constituição da educação escolar ligado diretamente
ao trabalho e à economia política25. Expressa e materializa uma determinada concepção
de homem, sociedade, educação, formação humana e escola.
Assim, compreender a gênese, a estrutura e a dinâmica do currículo escolar é
fundamental em nossa perspectiva ontológica de educação e educação escolar. Uma das
principais premissas para entendermos a sua constituição e o desenvolvimento, é a
compreensão das condições históricas e políticas da prática educativa, o contexto mais
desenvolvido e complexo das relações econômicas de produção e os patamares mais
elevados das ideias e dos saberes objetivos da cultura humana, com ênfase na ciência,
na filosofia e nas artes, articulado às múltiplas interconexões socioeconômicas e
ideológicas.
[...] quando se visualiza a totalidade do processo global – a uma elevação, a
um aprofundamento, a uma ampliação de sua personalidade humana,
contribuem para deixá-lo em condições de, nas crises do desenvolvimento da
humanidade, transcender a sua própria particularidade, optar pelo ser-para-si
do gênero humano (LUKÁCS, 2013, p. 560).

Ao problematizarmos o currículo escolar, podemos afirmar que é um produto e


instrumento da atividade humana, perpassa ideologia e relações de poder e possui como
função social elementar contribuir potencialmente no processo de formação humana no
sentido da humanização e no desenvolvimento potencial do gênero e da individualidade
do ser social. Entretanto, ao analisarmos o currículo escolar, devemos ter a consciência
que, mesmo a melhor apropriação e assimilação dos conhecimentos científicos,
filosóficos e artísticos transformados em saberes escolares, poderá, muitas vezes, não
levar a uma formação e desenvolvimento humano para uma consciência crítica da
realidade concreta.
O currículo, como uma expressão dialética da realidade, é constituído pelo
conjunto de atividades humanas que envolvem os atos de descobrir, instituir, produzir,
transcender as necessidades intelectuais mais desenvolvidas, ‟[...] atividades essenciais
que a escola não pode deixar de desenvolver, sob a pena de se descaracterizar, de perder
a sua especificidade” (SAVIANI, 2012a, p. 87). Esse instrumento possui o potencial de

25
Termo utilizado por Marx (2013) para definir a estrutura e a dinâmica do modo de produção capitalista.
96

contribuir no objetivo de aprofundar e refinar a formação do ser social por meio da


socialização e instrumentalização dos ‟conceitos nucleares”26 da cultura humana.
Propicia a mediação para a identificação e ampliação da compreensão do mundo natural
e social e das contradições universais e particulares da totalidade.
Conforme Saviani (2012), uma das condições necessárias para a construção e
desenvolvimento do currículo pautado na perspectiva ontológica de educação é a
produção da consciência filosófica articulada à ciência. Isso significa passar de uma
concepção sincrética, do senso comum, espontânea, fragmentada, idealista, cientificista,
utilitarista, segmentada, a-histórica, incoerente com a totalidade social, linear,
desarticulada, mecânica e passiva para uma concepção unitária, histórica, materialista,
dialética, coerente, articulada, ativa, conceitual, política e sintética. Assim, ‟[...] a
filosofia aprofunda as generalizações das ciências, antes de tudo, por estabelecer uma
relação inseparável com o nascimento histórico e o destino do gênero humano, com a
essência, o ser e o devir humanos” (LUKÁCS, 2013, p. 540).
Defendemos uma concepção de currículo escolar como instrumento coletivo
composto de conhecimentos nucleares que contribuam de maneira significativa para a
humanização. Também propicie o acesso à cultura mais elaborada, complexa e clássica,
considerando que o patrimônio sociocultural deve ser apropriado por todos os seres
humanos, independente da classe social, possibilitando, assim, o pleno desenvolvimento
de novas formas intelectuais e saltos qualitativos.
Toda perspectiva curricular envolve uma determinada visão de mundo,
elementos e mecanismos ideológicos que cumprem uma determinada função na
totalidade social. “O conhecimento que penetra na escola, aqueles “princípios, ideias e
categorias” legítimas, deriva de uma história determinada e de uma realidade econômica
e política também determinada. Para entendê-lo, precisamos situá-lo naquele contexto
socioeconômico” (APLLE, 2006, p. 212). Logo, observamos que o currículo se torna,
na prática, efetivamente potencial somente por meio do ensino que, por sua vez, em
suas especificidades, apenas se materializa com base em um determinado projeto

26
Entendemos a categoria ‟conceitos nucleares” com base na definição de ‟conceito” desenvolvido por
Vigotski (2001), para o qual um conceito é uma síntese histórica, só podendo ser compreendida na
relação com outros conceitos. O conceito não é simplesmente um conjunto de conexões associativas que
se assimilam com a ajuda da memória, nem um hábito mental automático, mas um autêntico e completo
ato do pensamento.
97

curricular construído historicamente, permeado pelas lutas de classes e realizado pela


mediação do trabalho docente.
Consideramos o ensino a atividade primordial no trabalho educativo escolar,
atividade que materializa a função social, pedagógica e política da escola. Tal atividade
se constitui essencialmente na concretização do currículo, que é, como já dissemos, o
principal ‟instrumento” da educação escolar. Sendo assim, emerge a necessidade de,
com base na prática social, analisarmos a articulação entre currículo, ensino e trabalho
docente, ou seja, a relação entre o instrumento e a atividade e como isso se realiza no
processo de formação humana.

2.2. A articulação entre currículo, ensino e trabalho docente: repercussões na


formação humana

O ensino ao nível da compreensão científica e filosófica, nas condições reais e


históricas em que nos encontramos, é um elemento ontológico e ferramenta27 da
atividade social fundamental no processo de apropriações dos saberes objetivos, na
efetivação das objetivações, na propagação da cultura entre as gerações,
consequentemente, no desenvolvimento humano. No âmbito escolar, o ensino dos
saberes objetivos transformados em saberes escolares sistematizados, com o caráter
pedagógico e político, constitui o currículo e é um dos princípios fundamentais da
função social da escola. O ato de ensinar envolve conhecimentos científicos e
filosóficos que, por meio do trabalho docente, incidem na materialização do currículo,
consequentemente, no desenvolvimento das funções psíquicas superiores, na formação
humana e na luta da vida social enfrentadas pelos alunos.
Na articulação entre currículo, ensino e trabalho docente, a busca de uma teoria
de justiça econômica e social que contribua efetivamente no processo de formação
humana está relacionada ao grande dilema do capital diante da educação escolar: como
educar a massa de trabalhadores, utilizando a articulação entre currículo, ensino e
trabalho docente, de forma suficiente para que reproduzam mais mercadorias,
conservem os valores e princípios dos ditames do capital e incorporem as mudanças

27
O termo ferramenta é aqui utilizado no sentido Marxiano, refere-se a um produto histórico realizado
pelos seres humanos na e para a vida produtiva, para a efetivação de novas objetivações com base nos
objetos presentes na natureza e nas relações sociais (MARX, 2010).
98

exploradoras do mercado de trabalho, mas de forma que o trabalho educativo escolar


não propicie a reflexão, a apropriação crítica do mundo natural e social, a construção de
novos atos conscientes de pensar e agir no caminho da compreensão da realidade, das
contradições e das possíveis transformações? Ou seja, como educar o suficiente para
reproduzir o capital, mas, insuficientemente, para destruí-lo, ao mesmo tempo?
Nas contradições desse grande dilema, os saberes escolares e o trabalho com os
conceitos nucleares dos conteúdos dos campos das ciências, da filosofia e das artes,
presentes no currículo por meio do ensino realizado pelo trabalho docente, podem
produzir uma contribuição determinante na formação do ser humano. Para esta
contribuição, ‟[...] o currículo e o ensino precisam deitar suas raízes em uma teoria de
justiça econômica e social, uma teoria que tenha seu enfoque principal na ampliação do
poder e do favorecimento aos menos favorecidos” (APPLE, 2006, p. 213). Uma das
lutas é para que o ensino dos conhecimentos clássicos não seja propriedade privada de
determinada classe ou grupo e que possamos ter melhores condições para a práxis do
trabalho docente. Ações que são uma das necessidades para a efetivação de um
currículo e ensino que contribua para a construção de uma educação pública de
qualidade no sentido da democratização da sociedade.
Logo, não é possível discutir o que ensinar sem relacionarmos com o como
ensinar e as condições de quem ensina articulado a totalidade social. O currículo como
instrumento é colocado em movimento, na direção da função social da escola, somente
na ação, pelo ato da atividade de ensinar mediado pelo trabalho docente. Para Libâneo
(2012, p. 40), o papel do ensino se refere à ‟[...] atividade de mediação para promover o
encontro formativo – afetivo, cognitivo, ético, estético – entre o aluno e o objeto de
conhecimento, ou seja, a relação ativa do aluno com a matéria, destacando-se o papel
das condições concretas para a realização dessa atividade”.
No objetivo de promover o encontro formativo, a articulação entre currículo,
ensino e trabalho docente possui, como uma das funções primordiais, instrumentalizar
os seres humanos para a produção material da vida social. Na perspectiva ontológica de
educação instrumentalização,
[...] trata-se de apropriar dos instrumentos teóricos e práticos necessários ao
equacionamento dos problemas detectados na prática social. Como tais
instrumentos são produzidos socialmente e preservados historicamente, a sua
apropriação pelos alunos está na dependência de sua transmissão direta ou
indireta por parte do professor. Digo transmissão direta ou indireta porque o
professor tanto pode transmiti-los diretamente como pode indicar os meios
pelos quais a transmissão venha a se efetivar. Obviamente, não cabe entender
99

a referida instrumentalização em sentido tecnicista. Trata-se da apropriação


pelas camadas populares das ferramentas culturais necessárias à luta social
que travam diariamente para se libertar das condições de exploração em que
vivem (SAVIANI, 2012b, p. 71).

A importância da articulação entre currículo, ensino e trabalho docente se


estabelece nas falas de quase todos os professores (as) entrevistados nesta pesquisa. Dos
dezenove entrevistados, dezesseis deles afirmam, de forma geral, que não é possível
pensar o ensino na ausência de uma orientação curricular e não poderia existir uma
escola de qualidade sem currículo. Tais afirmações são construídas mesmo a maioria
dos sujeitos não sabendo explicitar teoricamente e, de forma ampla e clara, os conceitos
de currículo, ensino, trabalho docente e a importância dos mesmos na construção dos
objetivos e funções do trabalho educativo escolar. Percebe-se, também, que o currículo
é considerado insignificante se não envolver o ato de ensinar mediado pelo trabalho do
professor, uma articulação entre o conteúdo, a forma e as condições concretas e reais
para efetivação.
Sobre essa articulação, com base nos dados das entrevistas, levantam-se algumas
contradições. Dezesseis sujeitos entrevistados ressaltaram a importância da relação entre
currículo, ensino e trabalho docente, porém, com dificuldades de expressar uma
concepção de educação e apropriações científicas e filosóficas sistematizadas sobre esta
articulação que propicie a compreensão e a construção de novos pores teleológicos e
objetivações críticas envolvendo questões sobre a democratização da sociedade. Esses
professores (as) com estas dificuldades tendem a ficarem mais frágeis e suscetíveis à
propagação de ideias pragmáticas, utilitaristas e relativistas ligadas aos princípios do
capital, à incorporação de mecanismos ideológicos, com maior dificuldade na luta
contra-hegemônica e na efetivação concreta da função social da escola na perspectiva
ontológica de educação.
Outra contradição que identificamos, nos dados de dez professores e professoras,
é a valorização da articulação entre currículo, ensino e trabalho docente justificadas
somente por envolver a transcrição de competências e habilidades presentes no
currículo referência que devem ser ensinados pelo trabalho do professor. Nos cadernos
de reorientação curricular, podemos observar essas competências e habilidades restritas
ligadas a conhecimentos mínimos de cada campo do conhecimento, variados valores de
convivência e de adaptação ao mercado de trabalho.
100

Ao mesmo tempo, tivemos seis professores (as) que se contrapõem às


proposições do currículo referência, colocando o ensino como uma importante
ferramenta para tal propósito. Destes três professores (as) explicitaram a contra-posição
na exaltação de uma nova organização curricular e um ensino com base nos conteúdos e
formas que tiveram mais facilidades na graduação, que gostavam na educação básica,
em que os alunos têm menos dificuldades e aos saberes apropriados dos professores que
tiveram na educação básica e os definiram como um profissional que executava um
trabalho de qualidade. Junto a esses encaminhamentos, supervalorizam o relativismo e
‟[...] não é difícil de perceber que o relativismo cultural incide diretamente sobre o
currículo escolar, acarretando sua fragmentação, podendo levar, no limite, ao seu
desaparecimento” (DUARTE, 2010, p.36).
Os outros três sujeitos partem de concepções teóricas pedagógicas e políticas
bem definidas, pautados em uma determinada concepção de educação com base
científica e filosófica para nortear a contraposição ao currículo referência e constituir
outras possibilidades e proposições a partir da relação educação escolar e sociedade para
além dos ditames do capital. Estes pressupostos que envolvem a prática social e a
articulação entre currículo, ensino e trabalho docente com base em Saviani (2012, p. 76)
“[…] não é outra coisa senão aquela pedagogia empenhada decididamente em colocar a
educação a serviço da referida transformação das relações de produção capitalista”.
Portanto, observa-se, no movimento da práxis, que podem ser construídas novas
possibilidades e alternativas de direcionamentos de formas diferentes ou contrárias ao
proposto pela perspectiva curricular de uma rede de ensino, porém, sem negar as
determinações e incidências do currículo prescrito para execução do trabalho educativo
escolar. Ao direcionar o trabalho docente e o ensino de forma diferente ou contrário do
estabelecido no projeto curricular, os professores (as) partem de uma determinada
concepção curricular, não sendo necessariamente a reprodução, na íntegra, proposta
pela rede de ensino. No movimento dialético por trás do trabalho docente e do ensino,
existe a constante produção e reprodução de um currículo escolar em que, mesmo não
percebendo, está ligado à totalidade social. Logo, entendemos que o ensino realizado
pelo trabalho docente, no movimento contraditório e histórico, necessita ser construído
e pautado na estrutura, organização e dinâmica de uma proposta e perspectiva
curricular.
101

Entende-se que uma proposta e perspectiva curricular dependem de mediações


como o posicionamento pedagógico e político da rede de ensino e da escola ligado às
implicações da conjuntura socioeconômica, às condições para a efetivação do trabalho
docente e escolhas e decisões dos professores (as) perante esse contexto. Segundo
Libâneo (2012, p. 52),
[…] mais especificamente, referem-se, por um lado, às políticas educacionais
e diretrizes normativas para o ensino; às práticas socioculturais, familiares,
locais; por outro lado, ao funcionamento da escola, como as práticas de
organização e gestão, o espaço físico, o clima organizacional, os meios e
recursos didáticos, o currículo, os tempos e espaços; às condições pessoais e
profissionais dos professores; às características individuais e socioculturais
dos alunos, às disposições internas para estudo e acompanhamento das
atividades didáticas, necessidades sociais e aprendizagem; ao relacionamento
entre professor e alunos, alunos e colegas.

Sendo assim, com base na análise dos dados tanto das entrevistas quanto dos
documentos utilizados nesta pesquisa, afirmamos que o currículo escolar se efetiva na
prática social e incide no movimento do desenvolvimento humano somente por meio do
ensino realizado pelo trabalho docente que, por sua vez, em suas especificidades de
forma perceptiva ou não, somente se materializa com base em um determinado projeto
curricular. Observa-se que ‟[...] ao assumir o ensino de uma matéria, os professores,
geralmente, partem de um conteúdo já estabelecido num projeto pedagógico curricular”
(LIBÂNEO, 2011a, p. 97). Entretanto, o ensino não se estabelece, necessariamente de
maneira absoluta, na lógica de causa e efeito perante o que é estabelecido no currículo e
sempre da mesma forma, pois isso depende de uma síntese de múltiplas determinações.
Dentre as determinações que possibilitam a construção de condições de ir além
da lógica formal de causa e efeito, destacamos a formação inicial e continuada do
professor, a compreensão das pressuposições da rede de ensino, a visão ideológica de
mundo, a concepção política, apreensão científica e filosófica do currículo, o domínio
dos conteúdos, a compreensão pedagógica das formas de mediação entre o sujeito e o
objeto de conhecimento, o tempo e espaço para o ato de ensinar e as condições de
trabalho do professor(a).
Não há como pensar em um trabalho pedagógico deslocado dos
condicionantes sociais, políticos, culturais, econômicos, bem como das
próprias condições pessoais dos sujeitos que ensinam e aprendem. A
trajetória de vida dos professores, a sua origem de classe, a sua formação, o
estágio que se encontram na carreira, também determinam o modo como os
docentes conduzem a sua carreira (ASSIS, 2012, p.120).
102

Observamos, nos dados das entrevistas, que as principais condições que


implicam no trabalho docente são os saberes advindos quando os professores (as) eram
alunos da educação básica, construídos durante a formação inicial e os constituídos das
experiências da prática educativa em sala de aula. Tais condições são, também,
constituídas pelo conjunto de apropriação/objetivação realizadas pela individualidade,
com base no conceito ontológico de trabalho e pelas implicações da precarização e
intensificação do trabalho docente.
Cabe enfatizar que, para a efetivação dos propósitos de uma perspectiva
curricular e o desenvolvimento de um trabalho educativo escolar de qualidade por meio
do ensino, é essencial a contínua luta contra a precarização e intensificação do trabalho
docente. Pautado em determinada perspectiva curricular, o professor precisa construir
“para-si” saberes para além dos conhecimentos apropriados na sala de aula, da formação
inicial e das experiências quando aluno do ensino básico. A formação não se realiza por
si mesma, como se o docente fosse um autodidata, um “apóstolo”, muito menos uma
maturação biológica que levaria um indivíduo a ser um bom professor. É necessário
articular formação e trabalho, propiciar condições de trabalho que envolvam formação
continuada e aprofundamento científico e filosófico, permitindo ao professor constituir
“em-si” e “para-si” todos os conhecimentos pedagógicos e políticos necessários para a
materialização de um trabalho de qualidade no sentido da democratização da sociedade.
Dentre os saberes, destacamos conhecer os princípios ontológicos do ser social,
ter o domínio das correntes pedagógicas, dos conteúdos específicos de determinado
componente curricular, proposições políticas bem definidas na relação entre educação e
sociedade, a compreensão da prática social. Além disso, propiciar os meios para a
aprendizagem dos alunos a partir de saberes científicos e filosóficos, a aquisição de
conhecimentos teóricos para incentivar a vontade de conhecer, propiciar as formas,
elementos e mecanismos para a apropriação dos conteúdos, ter conhecimento didático,
compreensão do projeto político pedagógico da escola, possuir determinada concepção
e compromisso com a formação e desenvolvimento dos alunos.
O trabalho docente não se reduz à pura transmissão de conhecimentos, nem à
crença na sua apropriação espontânea pelo aluno, nem à mera formação
política. É um processo simultâneo de transmissão/assimilação ativa, no qual
o professor intervém, trazendo um conhecimento sistematizado e no qual o
aluno é capaz de reelaborá-lo criticamente com os recursos que traz para a
situação de aprendizagem. Processo esse cujo ponto de partida e ponto de
chegada é a prática social; supõe-se ai, um trabalho competente do professor,
seja no domínio da matéria, seja no domínio metodológico, afim de que o
103

trabalho docente tenha efeitos formativos duradouros, em termos de sua


relevância para a transformação do mundo social (LIBÂNEO, 2011, p. 146).

Na perspectiva de uma articulação entre currículo, ensino e trabalho docente que


tenha efeitos formativos duradouros e de transformações do mundo social, os dados das
entrevistas nos levam à reflexão de algumas questões que propiciam repercussões no
trato da referente articulação. Relacionado à conjuntura socioeconômica do sistema do
capital e educação, destacamos os elementos; precarização e intensificação do trabalho
docente.
Constata-se, portanto, que o professor convive diariamente em um campo de
trabalho dinâmico, complexo, não linear, cujas decisões que orientam as
atividades e as práticas educativas são sempre sínteses dialéticas entre o
instituído (legislações, diretrizes, parâmetros curriculares, planos), o
instituinte (o currículo em ação) e as condições reais de trabalho (ASSIS,
2012, p. 121).

As transformações e as condições impostas pelo capital influenciam no controle


e direcionamento da formação das forças produtivas, caracterizada pela separação do
trabalho manual e intelectual, objetivamente propagadas no mundo do trabalho e
incorporadas no trabalho docente. “No trabalhador existe, pois, subjetivamente, o fato
de que o capital é o homem totalmente perdido de si, assim como existe, no capital,
objetivamente, o fato de que o trabalho é o homem totalmente perdido de si” (MARX,
2010, p. 91). Nessas contradições entre capital e trabalho, se o trabalho constitui o ser
social e está multifacetado, alienado e fragmentado, o trabalho do professor, parte
constitutiva e constituinte das contradições da realidade concreta, também se encontra
nessas condições violentas em relação ao desenvolvimento humano no sentido
ontológico.
As principais contradições acirradas pelo trabalho docente estão diretamente
interligadas ao modelo econômico atual, onde novas configurações e finalidades são
estabelecidas estreitamente vinculadas aos princípios da alienação do trabalho e aos
ditames do mercado. ‟Efetuou-se uma subproletarização intensa através do aumento do
trabalho parcial, temporário e subcontratado. Ocorre a intensificação do trabalho, maior
controle sobre o processo produtivo, redução dos níveis de segurança e perda dos
direitos dos trabalhadores” (MASCARENHAS, 2002, p. 8). As condições de trabalho
passam a ter implicações orgânicas marcantes no trabalho docente, na qualidade da
educação escolar, na articulação entre currículo e ensino e no processo de formação
humana dos alunos e dos próprios professores (as).
104

Esse cenário de precarização e intensificação do trabalho docente que implica a


articulação entre currículo e ensino não acontece por acaso ou por algo natural e neutro
das relações socioeconômicas. Surge a necessidade, por parte da classe dominante, de
formar estratégias para a constituição de um novo tipo de aluno e professor para efetivar
determinados interesses que implicam no currículo e no ensino. “Está em jogo a
constituição de um novo tipo de professor, formado sobre novas bases e que serviria
como correia de transmissão, na produção da nova mentalidade adequada aos interesses
do capital nos novos tempos” (SHIROMA e EVANGELISTA, 2003, p. 89). É
construída uma realidade voltada ao trabalho docente relacionado ao ensino e ao
currículo constituído por mecanismos ideológicos que contribuem diretamente com a
reprodução dos ditames do capital.
O trabalho docente, numa tendência hegemônica, passa a moldar-se de acordo
com os ditames do capital e as constantes transformações do mercado. Esse contexto
configura o desenvolvimento de um trabalho precarizado e de intensificação articulado
a uma educação mercantilizada, uma realidade histórica em nosso país de
desqualificação do trabalho docente que, infelizmente, apresenta-se de forma bem
concreta e, ás vezes, escamoteada, também, em nosso estado.
Os relatos dos professores e professoras nos revelam algumas das questões que
nos demonstram as condições de trabalho e a indignação dos mesmos perante o atual
cenário: ‟Nos sentimos maltratados, descuidados, desmotivados, um objeto a ser
moldado, um zero à esquerda” (P2). ‟Minha vida é muito corrida, é aula, aula. Nem
tive a oportunidade de ver meus filhos crescerem, e também ressalto a questão da
saúde, tive problemas sérios de saúde. Já cheguei a iniciar o dia 6 horas, sem direito a
intervalo e a ter uma alimentação e ficar de manhã, à tarde e a noite. Começar sete da
manhã e terminar onze horas da noite era minha rotina, fora finais de semana e
feriados, isto para ter um mínimo de qualidade de vida” (P5). ‟A vida de professor não
é uma vida, penso meu trabalho 24 horas, o reconhecimento é muito longe” (P6). ‟Tem
professores que trabalha nos três turnos, mais de 1000 alunos em quatro e cinco
escolar, pensa!” (C7).
De acordo com os dados que obtivemos junto aos professores e professoras que
participaram desta pesquisa, ao tratarmos das condições de trabalho e atuação
profissional, a média de tempo real de trabalho nas escolas é de 60 horas que equivale a
42 aulas semanais, fora as atividades extraescolares destacadas pelos sujeitos,
105

compostas, principalmente, por atividades como corrigir provas, atividades, trabalhos de


pesquisa e fazer o planejamento das aulas. Isso leva à reflexão sobre a falta de
condições básicas, como o tempo, para buscar novas alternativas de organização do
trabalho pedagógico, a dedicação em cursos de formação continuada e construção de
novos instrumentos para além dos apresentados pelos documentos em análise.
As principais dificuldades e problemas relatados pelos sujeitos da pesquisa que
incidem no currículo e no ensino foram a estrutura das escolas, falta de apoio do estado
para o desenvolvimento do trabalho pedagógico, carga horária alta, excesso de serviços
para casa, falta de concurso público para a entrada de novos professores, baixos salários,
inexistência de planos de cargo atrativos, a inexistência de formação continuada, a falta
de interesse e indisciplina dos alunos, instabilidade nas cargas horárias, grande número
de alunos por sala. E, na particularidade dos coordenadores, acrescentam-se o desvio e
acúmulo de funções.
O documento Pacto da Educação traz elementos que caracterizam as imposições
de valores ao trabalho docente advindas dos princípios do mercado de trabalho e que
são direcionadas a uma perspectiva de privatização e terceirização das escolas públicas.
As escolas são organizadas com moldes de uma empresa dentro de um mercado que
propaga princípios de exploração, competição, flexíbilização, burocratização e
individualismo, pautados pela “meritocracia” e a busca de “resultados quantitativos” de
forma pragmática e utilitarista. Nesse cenário, os coordenadores (as) destacam que os
professores (as) são direcionados a reproduzir o currículo e as propostas didáticas com
objetivos mecanizados das avaliações externas, excetuando-se as disciplinas de arte,
filosofia, sociologia e educação física.
Na análise dos pilares que constituem o documento plano de reforma
educacional, percebem-se estratégias e uma organização em que os professores (as),
coordenadores (as) e o grupo gestor são direcionados a uma perspectiva economicista de
desenvolvimento, com ênfase em metas e índices na lógica meritocrática da competição
e do individualismo. Os professores relataram, nas entrevistas, ao serem questionados
sobre o trabalho na escola, que a atual organização leva a um grupo vigiar o trabalho de
outro grupo, pois, se algum falhar em algum ponto colocado pela rede, as verbas e as
bonificações, direcionadas à escola, aos alunos e aos professores, podem ser
prejudicadas com cortes e rotulações.
106

A condição essencial para a existência e supremacia da classe burguesa é a


acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e o crescimento
do capital; a condição de existência do capital e o trabalho assalariado. Este
baseia-se, exclusivamente, na concorrência dos operários entre si (MARX e
ENGELS, 2010, p.51).

Esse contexto de intensificação e precarização do trabalho docente se torna mais


brutal com as condições dos professores submetidos a contratos temporários.
Relacionada à discussão do campo do currículo na rede, destacamos uma das falas das
entrevistas dos professores (as): ‟Para falar a verdade não, não conheço, talvez seja
por eu ser contrato, por que a gente é mais ainda um zero à esquerda, é uma correria
um tira tira de aula, uma instabilidade que a gente fica doido. Agente dorme com aula e
acorda sem, por causa de mais um pouco que um salário mínimo. Primeiro tem que
estabilizar e ficar tranquilo para, depois, pensar em currículo, pois nunca temos tempo
e cabeça para isso” (P.9).
Esses professores (as), diante das condições de trabalho, não se consideram parte
do processo e com voz ativa, principalmente na questão do trabalho com o currículo. As
questões da relação entre educação e sociedade, que envolve o contexto desse
instrumento, são naturalizadas e mascaradas, mesmo os sujeitos denunciando, em forma
de questionamento, a realidade enfrentada. Percebe-se, portanto, a ausência de
construção de novas proposições e maior distanciamento das discussões voltadas à
busca de uma educação pública de qualidade, de gestão pública e um currículo e ensino
pautados sobre princípios contra hegemônicos a estrutura, organização e dinâmica do
sistema do capital.
Esses professores (as), que exercem o trabalho por meio de contratos
temporários, recebem, como salário, quase metade de um professor (a) efetivo que
passou por um concurso público. Eles relataram que não conhecem os cadernos de
"reorientação curricular" e nem o documento "Pacto pela Educação", somente os eixos
temáticos, os conteúdos, as competências e habilidades presentes no currículo
referência. A maioria dos sujeitos diz que não pensam em questões sobre o currículo
fora do plano anual e do planejamento solicitado quinzenalmente pela rede. Logo, os
professores (as) terão muito mais dificuldade de compreender, criticamente, os
princípios, as contradições, os elementos, pressupostos e mecanismos ideológicos
presentes no currículo escolar bem como as condições de proporem novos conteúdos e
formas para o trato com o ensino que implica na formação dos alunos.
107

Os alunos são, então, direcionados a uma concepção de educação, no ambiente


escolar permeado pela concorrência e pelo individualismo, a uma suposta formação para
o mercado ou uma exclusão do mundo do trabalho, já anunciada pelas condições
históricas, enfatizadas pelas incidências das avaliações externas que propiciam uma
ênfase na mecanização e exaltação da lógica de matematização do pensamento e a
formação de um indivíduo mercantil.
Nesta perspectiva, o professor profissional seria aquele que experimentaria
soluções, que demonstraria compromisso com seu cliente, que atenderia com
eficiência às demandas da instituição, que desenvolveria "motivação
individual para o trabalho", mas seria refratário à "mobilização de sua
categoria", de modo que se sentiria mais membro de determinada
organização escolar e menos trabalhador de uma categoria profissional
(SHIROMA e EVANGELISTA, 2003, p. 92).

De acordo com os dados dos documentos e das entrevistas, a proposta curricular,


de maneira geral, é construída para direcionar o trabalho docente, consequentemente, a
formação dos alunos para ao suposto acúmulo de conhecimentos mínimos, direcionados
à prova do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e para as avaliações externas,
sintetizados na busca de índices e metas. Contraditoriamente, tais objetivos devem ser
alcançados perante a exaltação da prática e negação da teoria na construção da
organização do trabalho pedagógico e político dos professores, o trabalho com o
“mínimo” e, às vezes, ressaltados até a negação dos saberes científicos, filosóficos e
artísticos, com proposições de ênfase no trabalho com os conhecimentos utilitaristas,
prazerosos e pragmáticos do cotidiano dos alunos e professores (as).
Em suma, uma formação ideológica com pressupostos contraditórios voltados à
reprodução de conhecimentos pragmáticos, ao isolamento e à competição entre os
indivíduos, ao desenvolvimento da capacidade intelectual no sentido da matematização
do pensamento. Uma formação escolar que seja direcionada ao desenvolvimento da
capacidade empreendedora, para que o jovem, no futuro, seja capaz de montar seu
próprio negócio. Ou a escola propiciar a promoção dos alunos, a possibilidade e não
condições de alguns conseguirem um bom emprego e propagar os ditames do capital.
Com base nos cadernos de reorientação curricular, em análise, e nos dados das
entrevistas que envolvem o trabalho na escola, uma das logomarcas que identificamos,
que legitima a formação na escola pública, é ‟ser um cidadão de sucesso” e responsável,
sabendo dos direitos individualistas. Consideramos um dos mecanismos ideológicos
propagado pelo discurso neoliberal que manipula, escamoteia e oculta as verdadeiras
108

relações capitalistas e, infelizmente, está evidente no Brasil e também na rede de ensino


em análise bem como na articulação entre currículo, ensino e trabalho docente.
O capitalismo manipulatório levou à exaustão os recursos de manipulação
das instâncias intrapsíquicas do homem, pelas quais se constituem os
consentimentos espúrios à dominação do capital nas ‟sociedades
democráticas”. O sociometabolismo do capital ocorre por meio do tráfico de
valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado que incidem sobre as
instâncias intrapsíquicas. [...] a construção do novo homem produtivo utiliza,
com intensidade e amplitude, estratégias de subjetivação que implicam a
manipulação incisiva da mente e do corpo por conteúdos ocultos e
semiocultos das instâncias intrapsíquicas (ALVES, 2014, p. 68).

Nesse contexto ideológico e violento contra a formação humana, os ditames do


capital implicam, ajustam e instauram determinações marcantes na articulação entre
currículo, trabalho docente e ensino. Com base nos documentos e na fala da maioria dos
sujeitos da pesquisa, ao serem questionados sobre os principais desafios e problemas no
trabalho com o currículo, um ponto muito ressaltado dentro de uma teia de
manipulações é a situação dos alunos, professores e os pais, ideologicamente ressaltados
como os autores centrais e isolados do sucesso ou insucesso da vida escolar e da entrada
e permanência no mercado de trabalho com um fardo de autorresponsabilização.
No insucesso, a culpa recai, primeiramente, sobre a escola e os professores (as),
e são, muitas vezes, colocados como desqualificados, despreparados e incompetentes;
em segundo lugar, os alunos, por serem desinteressados; e, em terceiro, os pais, que, por
serem pertencentes a uma classe de baixa renda, são vistos como sujeitos que não
souberam dar educação aos próprios filhos. ‟A intensificação, entrelaçando-se com a
autointensificação, consiste, portanto, em processos sutis que, nem sempre perspectiveis
a olho nu, aprisionam o professor em suas atividades profissionais” (ASSIS, 2012, p.
124). Logo, algumas das mazelas da sociedade vão para a conta da escola pública
justificadas pela falta de capacidade industriosa dos alunos e professores.
O professor começa a não se reconhecer na ação e no produto do trabalho, sendo
que a situação o restringe, mecaniza e o direciona ao isolamento perante a totalidade
social. Pela própria proposta curricular, os problemas e mazelas da sociedade são
justificados pela má situação inerentes a uma educação de péssima qualidade, de
professores desqualificados e alunos que não se esforçam. Um contexto que implica no
currículo e no ensino onde a dicotomia entre teoria e prática, negação da ciência e da
filosofia, a separação entre trabalho manual, intelectual e o relativismo dão o norte,
pautado por um currículo eclético, híbrido e contraditório que captura a subjetividade de
109

professores, alunos e pais, levando ao aprofundamento da reprodução e legitimação dos


princípios que causam a alienação.
Estamos lidando com uma operação de produção de consentimento ou
unidade orgânica entre pensamento e ação que não se desenvolve de modo
perene, sem resistências e lutas cotidianas. Enfim, o processo de ‟captura” da
subjetividade do trabalho vivo é um processo intrinsecamente contraditório e
densamente complexo, que articula mecanismos de coerção/consentimento e
de manipulação não apenas no local de trabalho, por meio da administração
pelo ‟olhar”, mas nas instâncias sociorreprodutivas, com a pletora de valores-
fetiches e emulação pelo medo que mobiliza as instâncias da pré-
consciência/inconsciência do psiquismo humano (ALVES, 2014, p. 66).

A força de trabalho do professor como mercadoria passa a ser lembrada quando


ocorre algum problema no transcorrer da organização imposta. Além da captura da
subjetividade, existe uma destruição das proposições para a construção de novos pores
teleológicos por parte dos professores e alunos para além do capital. ‟Ora, a intensa
densidade manipulatória do capitalismo global, seja na instância do consumo, ou seja,
na produção, atinge a subjetividade do trabalho vivo, impedindo que se possam
despertar no homem necessidades reais do desenvolvimento da personalidade”
(ALVES, 2014, p. 66). Observamos, assim, professores que contrapõe e ainda realizam
resistências, mas desanimados e desacreditados. Os atos de novos pores teleológicos
dentro do âmbito escolar são esfacelados, são enfatizados a separação entre a vida social
e o próprio trabalho, sendo que o sonho da formação continuada ressaltada pelos
sujeitos desta pesquisa persiste como ilusão.
Portanto, a concretude do currículo se realiza, pois, pela atividade de ensino de
um conjunto muito grande de professoras e professores cuja capacidade de luta e
resistência é testada a cada dia, a cada nova imposição, a cada violência não vista de
forma clara aos olhos humanos, advinda dos elementos do sistema do capital que
coincide com o contexto educacional, gerando um conjunto de trabalhadores
debilitados, desapontados, mas ainda com esperança; eles se autoculpabilizam e, muitos
deles, levantam a possibilidade de desistência da profissão caso tivessem outra
oportunidade.
Mas o mais preocupante, quando se faz a distinção entre trabalho e tempo
livre, é a associação do tempo de trabalho ao sofrimento, à dor, ao desprazer,
o tempo de não viver. Só é possível vislumbrar a felicidade fora do espaço e
do tempo de trabalho. Essa é maldição do trabalho alienado, do fetichismo do
produto, do massacre do produtor (MASCARENHAS, 2002, p. 72).
110

De acordo com Duarte (2010, p. 48), ‟[…] em termos pedagógicos, é necessário


superar a educação escolar, em suas formas burguesas, sem negar a importância da
transmissão, pela escola, dos conhecimentos mais desenvolvidos que já tenham sido
produzidos pela humanidade”. Uma superação que envolve ações para além da sala de
aula e, ao mesmo tempo, envolva proposições específicas tanto sobre o objeto do
conhecimento, o sujeito da aprendizagem e as formas de ensinar realizadas pelo
trabalho docente.
O ensino dos saberes escolares, materializados no currículo, é o ato primordial
na efetivação da função social da escola, realizado pela mediação do trabalho docente,
que contribui com a formação e o desenvolvimento do gênero e da individualidade
humana. ‟O ensino opera uma mediação cultural cujo papel é, precisamente, promover
o desenvolvimento mental, por meio da aprendizagem, convertendo a aprendizagem em
desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral” (LIBÂNEO, 2012, p. 41). Potencialmente,
essa atividade enfatiza e coloca em movimento a função metodológica, pedagógica,
social e política dos saberes nucleares presentes no currículo mediado pelo trabalho
educativo do professor (SAVIANI, 2012). Portanto, ressaltamos que para a efetivação
do currículo, o ensino é o elemento central, porém depende intrinsecamente das
condições de ação do trabalho docente.
Em nossa investigação, através dos dados das entrevistas com os professores(as)
e coordenadores(as), questionados sobre trabalho na escola, treze sujeitos nos
possibilitaram deparar com algumas concepções sobre o trabalho docente que envolve o
currículo e o ensino e entram em contradição com a perspectiva ontológica de educação
dentre as quais destacamos: o trabalho do professor como mero orientador e facilitador
da aprendizagem dos alunos, a experiência cotidiana da sala de aula e a reprodução da
prática de antigos professores como únicas fontes de conhecimentos, a substituição das
funções do professor pelas tecnologias, exaltação da personalidade emotiva como
critério absoluto para propiciar a aprendizagem dos conteúdos, conhecer os saberes
utilitaristas e prazerosos do cotidiano de todos os alunos, negação da ciência e da teoria,
primazia do sujeito.
Além disso, ressaltaram a importância e a influência da personalidade e das
práticas cotidianas de ex-professores que tiveram, durante a formação inicial, como eixo
orientador para a maneira pessoal de organizar e realizar o ensino, o trabalho com os
meios tecnológicos como o conteúdo fundamental para um ensino e aprendizagem de
111

sucesso, o caráter de sacerdócio da profissão docente, a necessidade de sempre partir da


subjetividade e/ou do conhecimento particular de cada aluno, a necessidade de buscar e
identificar meios para que os alunos possam aprender sozinhos os conhecimentos, a
existência de vários perfis de bons professores e o elogio de professores (as) que sigam
tudo que é proposto, sem questionamentos, restringindo o ensino às informações dos
alunos e ao mínimo proposto no currículo referência.
Os coordenadores e coordenadoras, quando questionados sobre o que
responderiam os alunos se lhes perguntassem o que é um bom professor, nos
forneceram respostas bem interessantes. ‟Olha, na visão deles, é aquele professor que
os deixa à vontade, dá nota, não chama a atenção, eles não querem serem cobrados”
(C4). ‟Um bom professor seria, para eles, aquele que deixa estudando o tempo inteiro,
e mostra que o conhecimento não tem limite. Eles estão acostumados com o pouco, o
simples, uma aula que, às vezes, nem podemos chamar de aula, eles querem aquela
vidinha e ficam abitolados naquilo” (C9). ‟Aluno não gosta de professor despreparado,
eles curtem com este tipo de professor, sabe aquele professor que deixa fazer tudo
aquilo que os alunos querem. Aluno não gosta disto, querem, mas não gostam, querem
sempre um professor que cobra e trabalhe bem os conteúdos, os professores que são
mais exigentes com eles e consigo mesmo. Não aqueles professores que chegam
perdidos, os meninos não são bobos, sabem quem são aqueles que não estão
preparados” (C8).
Com base na perspectiva ontológica de educação e nos dados analisados,
consideramos o trabalho docente como o conjunto de atividades realizadas pelo
professor, dentro do âmbito escolar, com a proposição de desenvolver a individualidade
humana. Tem como uma das funções específicas, propiciar, por meio do ensino, formas
para ‟a apropriação ativa dos conhecimentos” científicos, filosóficos e artísticos
materializados no currículo.
O núcleo do trabalho docente é, portanto, o encontro direto do aluno com o
material formativo (as matérias), encontro esse que tem sido chamado de
apropriação ativa de conhecimentos, cujos resultados formativos passam
pelas múltiplas mediações que contextualizam a situação pedagógica
(LIBÂNEO, 2011, p. 150).

Para que sejam construídas novas condições e possibilidades do trabalho docente


na articulação entre currículo e ensino, ressaltamos Saviani (2012, p. 55), ao dizer que
‟[...] o dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes
112

dominam. Então, dominar o que os dominantes dominam é condição de libertação”.


Assim, o processo de identificar, compreender, desmistificar e emancipar as
contradições da articulação entre currículo, ensino, trabalho docente e as
especificidades, na atual realidade, torna-se uma necessidade ontológica na
compreensão do processo de formação humana, onde o domínio da cultura constitui
instrumento indispensável para a participação política das massas. Se os membros das
camadas populares não dominam os conteúdos culturais, eles ficam mais distantes de
poder fazer valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra as ideologias da
classe dominante, que se servem desses conteúdos culturais para legitimar e consolidar
a sua dominação.
Ao negarmos as relações e implicações dialéticas do currículo, do trabalho
docente e do ensino, no processo de formação humana, os objetivos e funções da
educação escolar, assim como sua prática efetiva, podem cair no puro e absoluto
idealismo, direcionando a não efetivação da ‟apropriação ativa dos conhecimentos”.
Portanto, para além da lógica formal, toda teoria social que se expressa no currículo
escolar somente se objetiva na prática social através do ensino que, por sua vez,
constitui-se pautado por uma teoria social da totalidade, sendo mediado pelo trabalho
docente.
[...] ênfase ora nos aspectos materiais ora nos aspectos formais do ensino,
entre a formação cultural e científica e a experiência sociocultural dos alunos,
caberia, ainda, a aposta na universalidade da cultura escolar de modo que á
escola caberia transmitir saberes públicos a todos, que apresentam um valor,
independente de circunstâncias e interesses particulares, em função da
formação geral. Mas, junto a isso, permeando os conteúdos, caberia
considerar a diversidade cultural, a coexistência das diferenças, a interação
entre indivíduos de identidades culturais distintas, incorporando noções de
prática, de cultura, de comunidade de aprendizagem (LIBÂNEO, 2010, p.
57).

Sendo assim, a articulação entre currículo, ensino e trabalho docente, na


perspectiva ontológica de educação, refere-se às abstrações do concreto pensado,
pautado na ciência e na filosofia, realizadas pelo professor a partir da prática social,
voltado à efetivação do processo de apropriação dos saberes nucleares materializados no
currículo escolar. Segundo Saviani (2012, p. 74), um ‟[...] movimento que vai da
síncrese ("a visão caótica do todo") à síntese ("uma rica totalidade de determinações e
de relações numerosas") pela mediação da análise ("as abstrações e determinações mais
simples)”. São ações que incidem no desenvolvimento dos alunos e sobre as
113

contradições sociais, caminhando de uma visão sincrética para síntese da totalidade


social, articulada, constantemente, com a ação pedagógica e política, ou seja, a
articulação do trabalho desenvolvido nas escolas com o processo de democratização da
sociedade.
Podemos dizer, então, que, com base no currículo, o processo do trabalho
docente envolve atividades de ensino e aprendizagem e a qualidade de tais atividades.
De acordo com Libâneo (2010, p. 57), ‟[...] teria como tônica ajudar os alunos a
aprender a pensar, teoricamente, a dominar as ações mentais conectadas com os
conteúdos, a adquirir instrumentos e procedimentos pelos quais se chega aos conceitos e
ao desenvolvimento cognitivo”. Nesse sentido, a incorporação dos instrumentos
culturais, dos conhecimentos teóricos científicos, a consciência filosófica, pedagógica e
política na inter-relação entre currículo, trabalho docente e ensino são fundamentos
essenciais para a contribuição com a formação humana dos seres sociais inseridos no
âmbito escolar.
De tal modo, o currículo e ensino são ferramentas indispensáveis na relação
entre apropriação/objetivação dos conhecimentos historicamente construídos da prática
social que envolve elementos culturais ativos de transformação social. Na perspectiva
ontológica de educação, o currículo e o ensino devem caminhar na direção de uma
organização integrada voltada para o desenvolvimento pleno de todos os seres sociais,
que envolva os conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos ‟[...] justamente
porque o domínio da cultura constitui instrumento indispensável para a participação
política das massas” (SAVIANI, 2012, p. 55). Um trabalho que propicie a apropriação
dos fundamentos nucleares dos componentes curriculares a partir das contradições da
prática social inter-relacionada aos aspectos pedagógicos, éticos, políticos e didáticos.
Segundo Manacorda (2010, p. 80), ‟[...] isso significa que a escola não pode
deixar de se configurar a não ser como processo educativo em que coincidem a ciência e
o trabalho”. Procurando, de acordo com Saviani (2010, p. 76), ‟[...] encontrar formas de
solucionar, dialeticamente, a contradição objetividade/ subjetividade, em superar a visão
de saber absoluto sem cair no relativismo”.
Portanto, o projeto curricular, o ensino e o trabalho docente, defendidos nesta
pesquisa, caminha dentro das problemáticas, contradições e possibilidades da prática
social para além da mecanização, do senso comum, dos conhecimentos espontâneos e
da lógica formal que permeiam os ditames do sistema do capital. São necessários um
114

currículo e ensino que relacionem, dialeticamente, os conceitos da vida cotidiana, os


conceitos científicos, do mundo natural e da totalidade social, sem deixar que pontos
primários do trabalho educativo escolar sejam substituídos por questões secundárias.
Uma articulação entre currículo, ensino e trabalho docente deve voltar-se para a
complexa e árdua luta de construção de uma sociedade que tenha como bandeira uma
verdadeira liberdade humana, cada um de acordo com sua "necessidade", cada um de
acordo com a sua "capacidade". ‟O saber elaborado, portanto, devidamente dosado e
sequenciado (convertido em saber escolar), dever ser socializado, mediante um processo
pedagógico metódico, sistemático, que inclui as experiências do cotidiano sem a elas se
restringir” (SAVIANI, 2010, p. 75). Uma organização do trabalho educativo escolar
deve possibilitar a apropriação dos conhecimentos científicos articulados à filosofia e às
artes com um dos objetivos de abrir a construção das condições reais de formação da
consciência crítica do mundo natural e social.
Na tentativa de melhor compreender a articulação entre currículo, ensino e as
implicações no processo de formação humana, no próximo item desse capítulo, iremos
destacar a dinâmica das concepções curriculares hegemônicas e a constituição de uma
perspectiva curricular que denominamos de currículo fetiche.

2.3. A dinâmica das concepções curriculares hegemônicas e a constituição de um


currículo fetiche

Atualmente, os conhecimentos e valores trabalhados nas variadas formas


educacionais, inclusive a escola, são direcionados para que o metabolismo do capital
continue sendo executado, legitimado e ampliado. Nesse sentido, ‟[...] as determinações
gerais do capital afetam, profundamente, cada âmbito particular, com alguma influência
na educação, e, de forma nenhuma, apenas as instituições educacionais formais”
(MÉSZÁROS, 2008, p. 43). Essas determinações direcionadas pela classe burguesa que,
no contexto da origem e consolidação da modernidade, defendia a explicação da
realidade como "um todo racional" para produzir, consolidar, conservar e legitimar seus
interesses e status quo passam, no atual momento histórico, a ter como uma das "tarefas
ideológicas" negar, impedir e limitar a compreensão da visão de totalidade e
historicidade por meio da razão (COUTINHO, 2010).
115

Segundo Marx (2013, p. 829), a consolidação e legitimação do modo de


produção capitalista, num contexto de relações sociais violentas e desumanas, onde
reina a ‟escravidão disfarçada de assalariados”,
‟[...] se fazia necessário para trazer à luz as eternas "leis naturais" do modo
de produção capitalista, para consumar o processo de cisão entre
trabalhadores e condições de trabalho, transformando, num dos pólos, os
meios sociais de produção e subsistência em capital, e, no pólo oposto, a
massa do povo em trabalhadores assalariados, em "pobres laboriosos" livres,
esse produto artificial da história moderna. Se o dinheiro, segundo Augier,
"vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces", o
capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés.

Por meio de mecanismos ideológicos, principalmente nos dias atuais, o sistema


do capital, que compõe as formas burguesas, conduz a compreensão da realidade e da
educação e a constituição de determinadas perspectivas curriculares para questões
pragmáticas, utilitaristas, fragmentadas, distanciando a apreensão das ciências, a
negação da articulação com a filosofia e o rompimento com a ontologia materialista
histórica. A formação e o desenvolvimento humano, nesta conjuntura, tende a se
restringir e a submeter-se, não de forma determinista, aos interesses dos detentores das
forças e dos meios de produção, uma vez que o sistema do capital, para reproduzir-se,
necessita educar, cientificamente, o trabalhador e, ao mesmo tempo, educá-lo
ideologicamente.
O trabalhador labora sob o controle do capitalista, a quem pertence seu
trabalho. O capitalista cuida para que o trabalho seja realizado corretamente e
que os meios de produção sejam utilizados de modo apropriado, a fim de que
a matéria-prima não seja desperdiçada e o meio de trabalho seja conservado,
isto é, destruído apenas na medida necessária à consecução do trabalho. Em
segundo lugar, o produto é propriedade do capitalista, não do produtor direto,
do trabalhador. O capitalista paga, por exemplo, o valor da força de trabalho
por um dia. Portanto, sua utilização, como a de qualquer outra mercadoria,
por exemplo, um cavalo, que ele aluga por um dia, pertence-lhe por esse dia
(MARX, 2013, p. 262).

Essas contradições entre o capital, as relações de produção e as forças produtivas


também constituem implicações no trabalho educativo escolar, repercutindo direta e
indiretamente nas perspectivas curriculares das escolas públicas. ‟As professoras e os
professores, de todas as épocas e lugares, sempre estiveram envolvidos, de uma forma
ou outra, com o currículo, antes mesmo que o surgimento de uma palavra especializada
como ‘currículo’ pudesse designar aquela parte de suas atividades que, hoje,
conhecemos como currículo” (SILVA, 2011, p. 21).
116

O currículo, ao se constituir e manifestar-se nas relações sociais, é composto por


disputas, mecanismos, elementos e relações de poder que cumprem determinadas
funções ideológicas na totalidade social, influenciam nas posições de reprodução,
resistência e contraposição às contradições presentes na luta da produção material e não
material da vida social dos alunos, possibilitando contribuir com a formação humana.
Desse modo, quaisquer propostas curriculares são orientadas por uma determinada visão
de sociedade, homem, educação e escola que, por sua vez, implicam no trabalho
docente, no ensino e na formação dos professores e alunos. Dado isso, o campo do
currículo deve ser entendido ‟[...] não meramente em termos dos padrões de interação
social que dominam as salas de aula, mas, em termos de uma padronização mais ampla
de relações sociais e econômicas, na estrutura social, da qual os professores e a própria
escola são parte” (APLLE, 2006, p. 97).
Por meio do currículo, é possível, ao capital, obter mais possibilidades e
alternativas de construir, manter e propagar o domínio e o controle da formação e do
desenvolvimento humano, pois a escola, talvez seja atualmente, um dos lócus que mais
propicia possibilidades de se revelar as contradições entre capital, trabalho e educação.
Sendo assim, embora não possamos afirmar que há um determinismo econômico sobre
a educação escolar e o currículo, trata-se de compreender que o contexto econômico se
vale de certos mecanismos ideológicos e até mesmos violentos contra a formação
humana que implicam, diretamente, no âmbito escolar, inclusive no currículo e no
ensino. Mecanismos que geram problemas e dificuldades no processo do trabalho
educativo escolar e dificultam a construção de uma educação pública de qualidade
voltada à democratização da sociedade.
De acordo com os dados dos dezenove professores (as) entrevistados, entre as
soluções de determinadas dificuldades e problemas que repercutem no currículo
destacam-se: a construção de projetos de valorização utilitarista do cotidiano dos
professores e alunos, como a valorização de metodologias de ensino lúdicas, mais
preocupadas com o prazer e bem estar psicológico dos alunos do que com a
aprendizagem dos conteúdos. Ao mesmo tempo, no documento Pacto da Educação,
valoriza-se a aplicação de testes e avaliações em grande escala que possam mensurar a
quantidade de conteúdos aprendidos.
Apreende-se que ambas as proposições enfatizadas recaem em projetos
educativos pautando os princípios hegemônicos do mercado de trabalho, mesmo quando
117

os professores (as) questionam a proposta curricular da rede. Direcionam a uma


formação técnica e instrumentalista para os alunos, esfacelam a ciência e a teoria no
âmbito escolar, enfatizam o desenvolvimento do individualismo, das capacidades
empreendedoras e inovadora dos alunos, por meio do desenvolvimento de competências
e habilidades assim como o aumento da competitividade. Além disso, questões
primárias, com base na função social da escola, são trocadas por ações secundárias que
distanciam das condições para a construção de novas proposições para além do capital.
Também são enfatizadas as singularidades, exaltam-se a experiência pragmática
como orientação para a prática educativa, e, ao mesmo tempo, hipervalorizam-se a
cultura popular e os princípios do capital. Isso acarreta uma grande dificuldade tanto
para professores (as) quanto para alunos de ter condições de compreender, pautados
numa sensibilidade crítica, o mundo natural e social em que vivemos, identificar as
contradições, construir novas proposições sobre elementos e mecanismos ideológicos e
uma práxis pautada por uma concepção bem definida de sociedade, educação, ser
humano, formação humana, escola e ensino na direção da perspectiva ontológica de
educação.
Em nossa análise das relações e contradições entre trabalho, educação, currículo
escolar e ensino, que emergiram dos dados dos documentos e das entrevistas,
identificamos categorias que nos ajudam a compreender melhor o cenário
socioeconômico e histórico da dinâmica das perspectivas curriculares hegemônicas e as
incidências no processo de formação humana. Dentre as categorias, destacamos as
seguintes: mercado de trabalho, intersubjetivismo empírico, fetichismo, consumismo,
idealismo, cientificismo, fragmentação, determinismo, lógica formal, individualismo,
competitividade, relativismo, racionalidade técnica, eficiência, utilitarismo,
pragmatismo, cotidiano e senso comum.
Na compreensão dessas categorias como mediadoras da realidade, com os
problemas e desafios colocados pelos professores e professoras que participaram desta
pesquisa e as ações propostas para enfrentar tais situações que emergiram das
contradições da realidade, percebe-se, no contexto oculto e subliminar, uma inversão
contraditória, interessada e intencional nos atos de pensar a formação e o
desenvolvimento humano com base na perspectiva ontológica de educação. Tal
situação, que envolve o currículo e o ensino, responde e compõe os anseios das
determinações do modo de produção capitalistas, tem como uma das consequências
118

ideológicas garantir a legitimação e reprodução da ordem do capital. Uma suposta e


aparente integração, adaptação e reprodução passiva, neutra, violenta e, aparentemente
legítima dos indivíduos, a vida produtiva alienante do mercado de trabalho. São
princípios, elementos e mecanismos que promovem a construção de um trabalho
educativo escolar e uma perspectiva curricular direcionado à alienação.
Essa forma de educação e o currículo escolar passam a terem o intuito geral de
selecionar e hierarquizar as forças de trabalho e os meios espirituais, voltados a uma
formação mínima para o mercado.
A educação, que tenderia, sobre a base do desenvolvimento tecnológico
propiciado pela microeletrônica, à universalização de uma escola unitária
capaz de proporcionar o máximo de desenvolvimento das potencialidades dos
indivíduos e conduzi-los ao desabrochar pleno de suas faculdades espirituais,
é colocada, inversamente, sob a determinação direta das condições de
funcionamento do mercado capitalista (SAVIANI, 2005, p. 22).

Diante das questões que analisamos nas entrevistas e nos documentos, no atual
momento histórico, o currículo parece tornar-se o instrumento do âmbito escolar onde
mais se revelam mecanismos e elementos ideológicos e de violência contra a formação
humana no âmbito escolar.
As escolas são usadas para propósitos hegemônicos no ensino de valores
culturais e econômicos e de propensões supostamente "compartilhadas por
todos" e que, ao mesmo tempo, "garantem" que apenas um número
determinado de alunos seja selecionado para níveis mais altos de educação
por causa da sua "capacidade" em contribuir para a maximização da produção
de conhecimento tecnológico de que a economia necessita (APPLE, 2006, p.
101).

De acordo com Gramsci (1991, p. 7), ‟[...] todos os homens são intelectuais,
pode-se-ia dizer, então; mas nem todos os homens desempenham, na sociedade, a
função de intelectuais”. Isso se estabelece, principalmente, em razão dessas condições e
determinações da realidade atual, gestada pelos interesses capitalistas. A seleção,
organização e distribuição dos saberes escolares tornam-se um forte aspecto ideológico
em favor da manutenção da macroestrutura socioeconômica. Mas, sem perder de vista a
contradição — esses mesmos saberes escolares, organizados de forma “neutra” com
base nos princípios do capital, tanto mantêm e aprofundam as coisas como estão quanto
permitem o questionamento e negação da realidade, a identificação das contradições, o
emergir de novas necessidades e a construção da sensibilidade crítica para a construção
árdua de caminhos de mudança que vão para além do capital.
119

O currículo atual, proposto pela rede, em análise, é permeado pela dinâmica das
principais perspectivas curriculares das escolas públicas no Brasil, é uma construção
histórica, socioeconômica e ideopolítica, advinda da estrutura de tendências
educacionais, nas quais, com base nesta pesquisa, destacamos o ‟tecnicismo” e o
‟escolanovismo” (SAVIANI, 2012a). O tecnicismo teve sua proeminência, nos meados
do século XX, enfatizava a aproximação da educação com as necessidades e a vida
produtiva das fábricas e do processo tecnocrático industrial e administrativo para o
desenvolvimento econômico.
Ao final das décadas de 1960 e 1970, quando ao modelo taylorista-fordista se
contrapõem novos parâmetros de organização e gerenciamento do sistema
produtivo, quando a ordem social subjuga-se de modo absoluto aos ditames
da acumulação flexível, as demandas pela formação do indivíduo apto a
adequar-se a esses novos tempos, obviamente, recaem sobre a educação
escolar. No esteio da reestruturação do capital em curso, as ideias da ‟teoria
do capital humano” tornavam-se palavras de ordem (MARTINS, 2010, p.
17).

O saber e o como fazer com maior eficiência e eficácia, de forma precisa, a


fragmentação dos indivíduos e os atos de aprimorar somente a técnica com finalidades
quantitativas voltadas ao aumento da produção, destacaram-se no direcionamento da
concepção de formação. Variados objetivos específicos e procedimentos técnicos para
obtenção de determinados resultados das fábricas era o eixo da proposta, com o intuito
contínuo de mapear as principais habilidades e competências para tais propósitos
(SILVA, 2011).
A partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios
de racionalidade, eficiência e produtividade, advoga a reordenação do
processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional. De modo
semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril, pretende-se a objetivação do
trabalho pedagógico. Com efeito, se no artesanato o trabalho era subjetivo
isto é, os instrumentos de trabalho eram dispostos em função do trabalhador e
este dispunha deles segundo seus desígnios, na produção fabril essa relação é
invertida. Aqui, é o trabalhador que deve adaptar-se ao processo de trabalho,
já que este foi objetivado e organizado na forma parcelada (SAVIANI,
2012a, p. 11).

Trata-se de um modelo curricular que coloca a escola, principalmente pública,


interligada aos objetivos do modo de produção capitalista. Tornam-se os principais
objetivos a construção de habilidades, competências e padrões formativos técnicos para
o desenvolvimento das forças de trabalho. Um currículo com base nas necessidades das
120

indústrias, com finalidades mínimas de propiciar o saber ler, escrever e contar,


enfatizando a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual (GRAMSCI, 1991).
Vê-se uma adaptação passiva e neutra, através do trabalho mínimo com saberes
objetivos e a seleção de algumas ciências, como mercadorias fragmentadas nas
disciplinas escolares. Outros conhecimentos culturais eram considerados como simples
e meras atividades complementares voltadas a potencializar o acúmulo de determinados
saberes das ciências ou estimular as produções materiais voltadas ao processo da mais-
valia, ligado à indústria, na justificativa de poupar tempo para o aumento quantitativo da
produção econômica (MANACORDA, 2010).
Segundo Apple (2006, p. 86), essa concepção curricular era ‟[...] uma tentativa
ideológica de garantir um controle especializado e científico da sociedade com a
justificativa de garantir o mau ajustamento de trabalhadores em seus empregos”.
Constituía, assim, um currículo interessado ideologicamente, direcionado à
racionalidade técnica, burocrático, linear, engessado, sequencial e mecânico, com a
preocupação de manter e desenvolver a funcionalidade econômica capitalista na
máxima de resultados e a construção de autoculpa dos indivíduos e da educação pelas
mazelas da sociedade.
Para Silva (2011, p.23), com base nas propostas de Bobbit e Taylor, esta
perspectiva,
[...] propunha que a escola funcionasse da mesma forma que qualquer outra
empresa comercial ou industrial. Tal como uma indústria queria que o
sistema fosse capaz de especificar precisamente que resultados pretendia
obter, que pudesse estabelecer métodos para obtê-los de forma precisa e
formas de mensuração que permitissem saber com precisão se eles foram
realmente alcançados. [...] Estava claramente voltado para a economia. A
palavra-chave era ‟eficiência”.

Na década de 1930, ganha força a teoria educacional do ‟escolanovismo”. Uma


suposta e aparente concepção crítica construtivista que direcionava ideários de
contraposição à pedagogia tradicional28. É produto de um vasto desenvolvimento
histórico, iniciado na década de 1920, que se tornou a base de alguns princípios aos
indícios futuros dos discursos e narrativas educacionais da corrente pós-moderna29 que
hoje, infelizmente, tem grande influência no campo do currículo escolar (DUARTE,

28
Termo utilizado por Saviani (2012a), ver páginas 5 e 6.
29
Essa teoria, composta por discursos e narrativas, será melhor analisada no próximo item deste capítulo.
121

2006). Essa teoria educacional possui como fundamentos, para a composição do


currículo, a exaltação do processo em detrimento do produto, do método em relação ao
conteúdo, da experiência do dia-dia e dos saberes populares, com base no interesse
subjetivo prático do cotidiano imediato, prazeroso e utilitarista dos alunos e professores.
As justificativas para a legitimação de tal teoria perpassam pela ausência de
liberdade, aprender com o aluno e sua comunidade, ênfase no indivíduo, na experiência,
na autonomia, na valorização da diversidade, do senso comum, nos métodos, nos meios,
na forma e compreensão do professor (a) como mero orientador e facilitador da
aprendizagem. Além disso, ressalta uma contraposição às tendências de supostas
imposições culturais sendo que justifica que a ciência subordina o principal foco da
escola, ou seja, os saberes cotidianos dos alunos e da cultura popular. A cultura regional
e os saberes locais e singulares passam a ser o ponto de partida e de chegada do
currículo para a construção da cidadania dita processual e flexível.
São considerados conteúdos significativos e relevantes para o aluno aqueles
que tenham alguma utilidade prática em seu cotidiano. Soma-se a esse
utilitarismo o princípio epistemológico pragmatista de que o conhecimento
tem valor quando pode ser empregado para a resolução de problemas da
prática cotidiana (DUARTE, 2010, p. 37).

Iniciam-se, no âmbito escolar e nas discussões sobre o currículo, um processo


ideológico que supervaloriza os variados discursos singulares e de supostas realidades.
As narrativas subjetivistas dissociadas das questões objetivas e os saberes isolados e
neutros passam a substituir a teoria, a ciência, a filosofia, a arte e o contexto da
historicidade. A vida prática imediata é colocada capaz de explicar tudo por ela mesma,
as igualdades de oportunidades, a diferença e a diversidade tornam-se logomarca
ideológica desta tendência curricular.
As ações da articulação entre currículo, ensino e trabalho docente, passam a ser
relativas em uma sociedade considerada como um conjunto de várias realidades
particulares, assim o acaso da vida determinaria o que é importante para a singularidade
de cada indivíduo. ‟A cada modelo de ser humano corresponderá um tipo de
conhecimento, um tipo de currículo. No fundo da teoria do currículo, está, pois, uma
questão de identidade ou de subjetividade” (SILVA, 2011, p. 15).
De acordo com Libâneo (2013), essas construções históricas das teorias
educacionais direcionam a formação humana no âmbito escolar e repercutem,
122

atualmente, nas variadas propostas curriculares das redes públicas municipais, estaduais
e federais em todo Brasil. A estrutura dessas teorias educacionais implica nas dinâmicas
das perspectivas curriculares que, por sua vez, não se estabelecem na lógica de uma
concepção sequencial, onde uma teoria e uma perspectiva foram superando à outra ou as
teorias, na lógica formal, sobrepõem as perspectivas curriculares.
Na particularidade pesquisada e na lógica da educação básica brasileira, ausente
de um sistema de educação, vemos, contraditoriamente, em confluência, as duas teorias
presentes nas perspectivas curriculares constituídas. As teorias educacionais
propiciaram a constituição de perspectivas curriculares que, atualmente, tornaram-se
hegemônicas no âmbito escolar. Tanto as teorias educacionais quanto as perspectivas
curriculares se direcionam na legitimação e propagação dos ditames do sistema do
capital, consequentemente, incidem na formação humana.
A proposta curricular da rede de ensino analisada é parte constituinte e
constituída pela atual conjuntura societal do modo de produção, caracterizada como
uma sociedade da mercadoria e uma educação mercantilizada. Para Libâneo (2013),
atualmente, no Brasil, configuram-se duas perspectivas curriculares hegemônicas, um
currículo caracterizado como instrumental e outro definido como um currículo
intercultural.
Para o autor, o currículo instrumental é caracterizado por uma proposta de
desenvolvimento de competências mínimas, inserção dos alunos no mundo do consumo
e das tecnologias interessadas ao sistema do capital. Além disso, influencia na
construção da consciência da comunidade escolar para não ir contra o sistema,
mascarados por mecanismos ideológicos de valores para a cidadania, de solidariedade,
socialização, paz, harmonia e empregabilidade.
Mantém, aí, uma escola de conteúdos mínimos necessários ao trabalho e
emprego, mas realça-se ainda mais a noção de aprendizagem como aquisição
de habilidades dissociadas do seu conteúdo e significado pouco contribuindo
para o desenvolvimento das capacidades intelectuais e a formação da
personalidade. Define-se, assim, uma proposta de educação voltada para os
mais pobres, visando atender a suas necessidades mínimas, suficientes para
empregos e sobrevivência social (LIBÂNEO, 2013, p. 59).

O currículo intercultural objetiva-se para a relevância da cultura particular ou de


grupos isolados, experiência dos alunos e dos professores, limita-se à questão social
pragmática e enfatiza a singularidade do processo de ensino e aprendizagem. Nessa
perspectiva curricular, é ressaltado que o aluno é marginalizado, pois não tem voz no
123

processo de ensino e aprendizagem e a cultura local é rejeitada. Tal perspectiva traz


alguns questionamentos que nos levam a irmos além:
Como definir conteúdos que devam ser ensinados a todas as crianças se o
critério de relevância ou até mesmo de veracidade dos conhecimentos é a
cultura específica à qual pertence o indivíduo? Como definir-se um currículo
comum a todos se não existe uma cultura que possa ser referência para todos?
Se existem milhares de culturas particulares, existirão milhares de culturas de
currículos? Ou o currículo escolar dissolvido e em seu lugar é colocado um
suposto diálogo entre as culturas das quais fazem parte os alunos? E o que
define qual é a cultura de cada aluno: etnia, classe social, gênero, idade, local
onde mora, os meios de comunicação, os programas de televisão, os estilos
musicais, as religiões, as atividades de lazer, o esporte preferido? (DUARTE,
2010, p.36).

Nessa conjuntura, os dados da realidade concreta, tanto dos documentos quanto


das entrevistas, propiciam-nos a compreensão da consolidação de duas perspectivas
curriculares pautadas em uma visão eclética, híbrida e contraditória com proposições
relativistas. Uma caracterizada como perspectiva neotecnicista de base instrumentalista
e outra neoconstrutivista de caráter culturalista intersubjetivo. No nosso entendimento,
ambas as perspectivas são relativistas com princípios liberais articulam-se com o
objetivo de escamotear as desigualdades, explorações sociais, a alienação, a exclusão e
todas as mazelas do trabalho da educação escolar, voltadas à alienação.
São direcionadas, principalmente, para atingir metas e índices quantitativos para
custeio de financiamentos, lucratividade, promoção político partidária, seleção de
subjetividades e maximização da produção de mercadorias, da mais-valia, do lucro e da
expansão ideopolítica do neoliberalismo. Essas características são articuladas com a
ênfase ao relativismo, ao neopositivismo, ao pragmatismo, à lógica formal, à busca
ilusória de conhecimentos prazerosos e utilitaristas, ao desaparecimento da teoria e da
ciência, da negação da visão de totalidade social e da historicidade.
Essas perspectivas hegemônicas curriculares são construídas com base em
políticas educacionais advindas das propostas de organismos internacionais (Unesco,
Unicef, Banco Mundial, FMI, etc.) e grupos econômicos (bancos e associações
assistencialistas). Nessa lógica violenta são construídos elementos que compõem
documentos estaduais, como os ressaltados nesta pesquisa: o ‟Pacto da Educação” — o
eixo norteador da proposta curricular — e os cadernos de reorientação curricular que
possuem o currículo referência como suposto produto.
As políticas educacionais em curso sob auspícios dos organismos
internacionais carregam uma visão de escola em que há sobreposição da
missão social e econômica sobre a missão pedagógica. Currículo e escola são
124

instrumentos para resolver problemas sociais ou econômicos para minimizar


os efeitos indesejáveis da pobreza em relação aos interesses do mercado.
Concebe-se escola como focada nas necessidades imediatas do aluno, não no
conhecimento e na aprendizagem, produzindo esvaziamento dos conteúdos,
já que predomina um currículo baseado em habilidades e competências
desprovidas de reflexividade (LIBÂNEO, 2013, p.61).

O primeiro documento estadual supracitado, de forma mais geral, explicita a


proposta educacional da rede de ensino, composto por elementos funcionais ocultos e
apresenta o currículo como o eixo norteador de todos os pilares que constituem as ações
nele apresentadas, colocando os cadernos de reorientação como base da construção do
pilar dois — adotar práticas de ensino de alto impacto na aprendizagem. Segundo
Martins (2010, p. 18-19):
Após vencermos o século XX, acompanhando a vitória da lógica mercantil
no campo da educação, cada vez mais se vê o currículo orquestrado pelos
organismos internacionais, cujas palavras de ordem foram e continuam
sendo: quantidade, produtividade, e equidade com máxima racionalização e
otimização dos recursos existentes. [...] nela, o saber fazer passa a se
sobrepor a qualquer outra forma de saber, apresentando-se travestido,
também, sob a forma de competência. Competência... baseada no critério da
lucratividade e da sociabilidade adaptativa, equidistante, portanto, de critérios
sociais éticos e humanos.

O segundo documento, referente aos cadernos de reorientação curricular,


caracteriza-se por descrições funcionais e objetivas mais escamoteadas e articuladas
com características ecléticas, inclusive alguns indícios relevantes de uma perspectiva
crítica de educação. Esse documento tem, nos termos diversidade, diferença,
coletividade, cidadão, inovação, resultados e a busca da cidadania, as principais
orientações ideopolíticas. Uma ferramenta ideológica utilizada como apaziguadora das
contradições da realidade concreto que envolve os conflitos sociais, de manipulação e
neutralidade de ideários contra-hegemônicos, onde os relevantes indícios de uma
perspectiva crítica recaem no ecletismo idealista.
Os cadernos de reorientação curricular destacam uma hipervalorização do
relativismo. Colocam como propósitos gerais e legitimadores um suposto
desenvolvimento de produtos considerados inovadores sobre o ensino e a aprendizagem
para contribuir na formação de supostos cidadãos para o mercado de trabalho. Produtos
pedagógicos assistencialistas somente pautados na experiência, a mecanização mínima
de habilidades, competências, valores para o mercado de trabalho e aparentes conteúdos
significativos restritos à vida cotidiana ou arranhando o mínimo da cultura elaborada e
sistematizada propostos pelo currículo referência.
125

Além disso, em todos os cadernos, principalmente na educação física, há uma


exaltação da vida cotidiana do aluno não somente como ponto de partida, mas como
linha norteadora para uma “construção” aparentemente autônoma, flexível e liberal do
trato com os conteúdos a partir da mera orientação do professor (a) pautado,
principalmente, em conhecimentos práticos advindos da experiência de sala de aula.
Estas proposições nessa perspectiva curricular, é colocada como algo ideologicamente
inovador e criativo para alunos e professores com a justificativa que estes se
reconheçam na escola em relação às suas comunidades de origem e o respeito à cultura
regional e às experiências individuais.
O documento apresenta, em nossa análise, uma proposta curricular restrita ao
levantamento dos dados da realidade escolar de cada região como base para a seleção
dos conhecimentos, valorização da cultura local, uma ilusória proposta de formação
continuada pautado na troca de experiências e a preocupação com metas e índices
envolvendo taxa de evasão, reprovação e avaliações externas e enfatiza-se a produção e
desenvolvimento de capacidades abstratas de formação para acompanhar as
transformações do mercado capitalista.
Assim como o trabalho passa a ter o seu valor determinado, não pelo seu
conteúdo concreto, nem pelo conteúdo concreto de seus produtos, mas sim
pelo valor abstrato, isto é, seu valor de troca, assim também a educação passa
cada vez mais a ser valorizada não por seus conteúdos concretos, mas por
produzir as capacidades abstratas que permitiriam o ‟aprender a aprender”. O
objetivo a ser alcançado com a educação escolar não é o de formar um
indivíduo que possua determinados conhecimentos, mas o indivíduo disposto
a aprender aquilo que for útil à sua incessante adaptação às mutações do
mercado globalizado (DUARTE, 2006, p.116).

No caderno cinco (2009a), considerado como um dos produtos mais elaborados


da rede, podemos observar alguns dos propósitos das perspectivas curriculares em
discussão.
Espera-se que esse novo jeito de caminhar, construído a muitas mãos (com a
participação dos profissionais da rede) seja validado como um momento de
conquista de valores, inovação e transformação das práticas educativas no
Ensino Fundamental e médio, contribuindo para que, juntos, alcancemos as
metas e índices propostos pelo processo de Reorientação Curricular: redução
das taxas de evasão e repetência nas escolas estaduais, implementação de
uma proposta curricular com novos recortes, abordagens de conteúdos e
práticas docentes que assumam as aprendizagens específicas de cada área
com a valorização do dia-dia do professor e alunos; aprendizagens ligadas à
leitura e produção de textos, como compromisso de todos; ampliação dos
espaços de discussão coletiva nas escolas e nas subsecretarias regionais da
educação (p.15).
126

Nesse documento, pensar a educação do ponto de vista do direito, da diferença e


da diversidade é a grande diretriz da proposta, pautada na valorização da experiência
pragmática do trabalho coletivo de educadores e um suposto diálogo para orientar o
trabalho com o currículo. Segundo os documentos propostos em 2010, os principais
desafios que o Estado tem pela frente, colocados no Pacto da Educação como base para
o currículo referência, é universalizar o acesso ao ensino fundamental e médio, concluir
o processo de informatização das matrículas, adequar a estrutura física das escolas aos
portadores de necessidades especiais, garantir o transporte dos alunos da zona rural,
além de ampliar significativamente as vagas de Educação Infantil e Ensino Médio. São
propostas desarticuladas e singulares que se orientam na direção dos atos de cumprir
metas e índices e organizar as burocracias organizacionais e funcionais imediatas da
rede e que convergem aos interesses de uma formação mercantil.
São propostas ideológicas, como por exemplo, a afirmação que sempre teria uma
contínua formação continuada aos professores da rede, com apoio das universidades do
estado e uma ação de caráter participativo ativo na elaboração dos documentos e no
processo contínuo de discussões sobre a questão do currículo escolar. Mas, o que se
consolidou, na realidade concreta, foram poucas participações e espaços de discussões,
sendo que, quando aconteceram, ocorreram de forma restrita, limitada, mecanizada e
ilusória, como diz o relato do sujeito (P1): ‟Já fizemos algumas reuniões para discutir o
currículo geral da rede, o que fizemos foi a pessoa responsável jogou alguns eslaids
confusos, vindo da secretaria sem saber explicar profundamente a proposta, recolheu
alguns planos de aula supostamente legais e interessantes dos professores, colocou em
discussão prévia alguns, inclusive o meu plano de aula foi pego como exemplo para
fazer o currículo. Mas, no final das contas, não tivemos resultados e nem retorno
nenhum, isto falo por todas áreas, por que sempre converso com os colegas e eles
acharam horrível também o jeito que fizeram. Todos nós, professores, ficamos como
meros espectadores, nada que foi discutido nos planos estavam depois na proposta
final, acho que foi uma jogada deles”.
Na contradição, no currículo referência, há imposição de um emaranhado de
eixos temáticos, conteúdos, competências, habilidades e expectativas de aprendizagens
desarticulados, prontos, mecanizados e engessados. É colocado para todos os
professores (as) aparentemente como produto da participação de todos de maneira
democrática e aberto as possibilidades de uma suposta flexibilidade e autonomia da
127

escola, do professor e das necessidades dos alunos. A perspectiva aproxima no que


Duarte (2006) descreve sobre o posicionamento valorativos da proposta pedagógica do
‟aprender a aprender” que implicam no currículo escolar.
As aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo, nas quais está
ausente a transmissão, por outros indivíduos, de conhecimentos e
experiências, é tida como mais desejável. [...] a ideia de que é mais
importante o aluno desenvolver um método de aquisição, elaboração,
descoberta, construção de conhecimentos, do que aprender os conhecimentos
que foram descobertos por outras pessoas. [...] consiste em supervalorizar o
método de conhecimento em detrimento do conhecimento como produto,
articula-se também à ideia de que uma educação democrática não pode
privilegiar uma determinada concepção ideológica, política etc. Uma
educação democrática seria uma educação relativista (p. 34-37).

Não podemos deixar de destacar que os cadernos de reorientação curricular são


compostos por um conjunto de narrativas e discursos que por vezes, trazem indícios e
orientações interessantes, no caminho da perspectiva ontológica da educação. Mas,
como partimos da totalidade para a particularidade, do geral para o particular e do
concreto real ao concreto pensado, colocamos essas ações como estratégias e
mecanismos ideológicos. E, na contradição, significa também indícios de resistência e
contraposição perante o imposto no contexto da proposta, articulado à crítica e ao
desenvolvimento socioeconômico e cultural hegemônico da nossa sociedade. Partes nas
quais não deixam de ser importantes indícios para a luta contra-hegemônica.
Cabe ressaltar que os princípios, fundamentos e objetivos do capitalismo
permeado pelo contexto histórico, presente nas perspectivas curriculares ao se
manifestarem nessa realidade contraditória de disputas e conflitos sociais, não se
estabelecem, no controle geral e absoluto do currículo escolar, muito menos produz,
institui e efetiva um determinismo exacerbado no ensino e na formação humana. Ou
seja, uma ação que impossibilite potencialmente quaisquer novos caminhos, condições e
possibilidades contra-hegemônicas de resistência e contraposição. ‟Pois, a esfera
cultural não é um ‘mero reflexo’ das práticas econômicas. Ao contrário, a influência,
reflexo ou determinação, é altamente mediada pelas formas humanas de ação” (APPLE,
2004, p. 38).
O documento ‟Pacto pela Educação”, como uma das bases para o currículo em
análise, direciona a formação e o desenvolvimento para a produtividade, o utilitarismo
mercadológico, a busca de resultados, incentivo ao consumismo, ao individualismo, à
128

performance, à competitividade, a metas, a meritocracia, à racionalidade técnica e ao


idealismo subjetivo.
Uma educação para os pobres, baseada no princípio da satisfação de
necessidades básicas de aprendizagem, tem como meta a consecução de um
padrão mínimo de qualidade. Insiste-se que se trata de aprender
‟conhecimentos úteis, habilidades de raciocínio, aptidões e valores” definidos
em níveis desejáveis de aquisição de conhecimentos (competências) cujo
desempenho deve ser avaliado. É notório que o padrão mínimo de qualidade
refere-se a um mínimo básico para um cidadão pobre para atender
necessidades imediatas ligadas principalmente ao trabalho, o que significa
descartar o conhecimento universal relacionado com a comunicação oral e
escrita e às dimensões da realidade física e social (LIBÂNEO, 2013, p. 60).

Na agenda do documento, composta por um conjunto de ações, ao refletirmos,


criticamente, a partir da totalidade social, podemos observar o direcionamento dessas
características supracitadas. Ao expor a necessidade de mudanças na educação escolar,
no estado, o termo resultados quantitativos em base nacional aparece nos primeiros
escritos. Os resultados e metas quantitativas tornaram-se os objetivos a serem
alcançados, orientados por avaliações externas, com base no índice de desenvolvimento
educacional (IDEB), em que o currículo entra na discussão como eixo central para
atingir tais objetivos.
Dentre os dezenove sujeitos que entrevistamos, sendo nove coordenadores e
coordenadoras, três colocam que o único objetivo claro das propostas educacionais e
curriculares do estado é a busca de resultados quantitativos por meio das avaliações
externas e menor número de reprovados para não baixar os índices que prejudicam a
nota do IDEB. Mas, todos apresentam dúvidas, quando questionados sobre o objetivo da
busca desses resultados na relação entre educação e currículo, principalmente os
professores (as) com contratos temporários. Os que não citaram a busca de resultados
quantitativos não souberam se posicionar como podemos ver na fala do sujeito P6, ‟(...)
o que eles buscam não sei não, é muito vago, e jamais falando sobre o currículo. Se
perguntarem o que a rede busca, eu não sei te fala”.
Para melhor compreensão dos objetivos, os propósitos e a funcionalidade do
documento que compõem as políticas educacionais do estado, a organização da escola, a
proposta curricular e o ensino, pegamos como exemplo ilustrativo os sujeitos C8 e C7.
O sujeito C7 destaca: ‟O estado não está nem aí para o professor e para os alunos, não
tem preocupação, esta preocupado com números e números e a coisa funcionar,
índices, números, somente os aspectos quantitativos, um estado que comemora 3.4 na
129

média do IDEB e coloca isto como grande avanço não existe nenhuma preocupação
com a formação humana. Eu tenho vergonha se minha filha falar que alcançou esta
nota, não esta querendo um bom professor e aluno nunca, sem falar das condições
opressoras que foram realizadas para aumentar esta nota como as imposições para os
professores das matérias críticas treinarem os alunos”. Sujeito C8: ‟É uma questão
delicada, hoje eu vejo o estado e as propostas curriculares muito preocupado com
números, índices e estatísticas, uma escola adequação para alcançar um suposto nível
ideal no IDEB, tem que sair bem nas avaliações externas, uma supervalorização dos
números e fica restrito em preocupar muito com isso, aprovar todos os alunos para
menos reprovações não tendo o intuito em preocupar com o desenvolvimento integral
do aluno. As condições para alcançar isto na maioria das vezes não são boas”.
O objetivo central do documento Pacto da Educação se resume em ‟ser
referência nacional em educação”. Essa afirmação requer alguns questionamentos: para
que? Por quê? Para quem? Quais as condições? Quais os interesses reais e concretos? O
que está, de forma subliminar, nesse interesse de ser referência? O currículo, nessa
proposta, é imposto como demanda, como currículo referência padronizado, engessado
com base no mínimo para toda a rede. Segundo os professores, a proposta curricular é
composta por um grande número de conteúdos, expectativas e eixos temáticos
fragmentados e isolados que propiciam somente o trabalho superficial dos conteúdos e
chegam ao final do ano sem cumprir todas as exigências burocráticas cobradas no
currículo referência.
O currículo referência30 é proposto no Pacto da Educação numa estreita relação
com o ensino. Já na primeira ação do pilar dois, com o título adotar práticas de ensino
de auto impacto na aprendizagem, podemos observar tal aproximação e interesse
ideológico. Esse instrumento, mesmo de forma oculta, coloca o currículo como eixo
norteador de todos os pilares31, o qual atribui um papel central na organização da
educação escolar, no processo de ensino-aprendizagem, na direção da articulação

30
Documento curricular imposto em 2012 pela rede estadual composto por eixos temáticos, conteúdos,
competências e habilidades.
31
O documento de reforma educacional goiana ‟Pacto pela educação: um futuro melhor exige
mudanças”, é constituído por cinco pilares: 1- Valorizar e fortalecer o profissional da Educação, 2-Adotar
práticas de ensino alto impacto na aprendizagem, 3- Reduzir significamente a desigualdade educacional,
4- Estruturar sistema de reconhecimento e remuneração por mérito, 5- Realizar profunda reforma na
gestão e na infraestrutura da rede estadual de ensino.
130

ideológica de legitimação dos interesses da classe dominante e na distorção e inversão


da realidade concreta constituída por desigualdades sociais e lutas de classes.
As escolas distorcem sistematicamente as funções do conflito social na
coletividade. As manifestações sociais, intelectuais e políticas dessa distorção
são multifacetadas. Podem contribuir de maneira significativa para a
sustentação ideológica que serve para fundamentalmente orientar os
indivíduos em direção a uma sociedade desigual (APLLE, 2006, p. 144).

O currículo referência é proposto pautado em uma aparente liberdade, a partir do


de conteúdos mínimos obrigatórios supostamente colocados como flexíveis, podendo
ser mudados de acordo com a importância utilitarista da vida cotidiana dos alunos, dos
professores e da realidade isolada de cada escola. Nas entrevistas, podemos observar a
assimilação e a consolidação dessa proposta: ‟Temos que tomar muito cuidado, todo o
currículo proposto pela rede fica muito distante da vida deles, por isto temos que
trabalhar o mínimo, mas ainda bem que é liberal e flexível. Alguns alunos sempre falam
que está muito distante da vida deles e questionam, ‘pra que vou utilizar isto para
minha vida, não vou precisar disto, professores’. Logo, respondo, para o seu sucesso
no mercado de trabalho e para sua vida no dia-dia” (C5).
Essa suposta flexibilidade, autonomia e liberdade tão ressaltadas são indiferentes
para o capital. A alternativa ao trabalho com os conteúdos mínimos, engessados,
mecânicos e lineares determinados pelo currículo referência é proposta a partir dos
saberes da vida restrita do cotidiano dos alunos, comunidade e professores que tendem a
se pautarem na visão mercadológica de educação.
Há que se difundir a ideia de que o desemprego e o constante adiantamento
da concretização da promessa de fazer o Brasil ingressar no primeiro mundo
são consequências da má formação dos trabalhadores, da mentalidade
anacrônica difundida por uma escola não adequada aos novos tempos, com
seus conteúdos ultrapassados, seus recursos pedagógicos obsoletos, com
professores sem iniciativa própria, sem criatividade e sem espírito de trabalho
coletivo e ainda uma comunidade de pais que não arregaça as mangas para
trabalhar em permanente mutirão de recuperação e preservação das escolas
do bairro (DUARTE, 2006, p. 47).

Logo, a perspectiva curricular presente no documento Pacto da Educação


configura a educação básica32 em atividades mínimas de algumas ciências, com ênfase
na matemática, português e ciências naturais, as quais se tornam modelos para pensar as
outras áreas do conhecimento. Além disso, percebe-se a negação e subordinação das

32
Nesta pesquisa, investigamos o currículo e o ensino nos anos finais ou segunda etapa do Ensino
Fundamental (6º ao 9º anos) e Ensino Médio; é a estas etapas/níveis que nos referimos quando utilizamos
a expressão Educação Básica.
131

ciências humanas, da filosofia e da arte a estas atividades mínimas, acompanhadas,


contraditoriamente, da exaltação de saberes pragmáticos do cotidiano do aluno e de
outros meros componentes curriculares considerados como simples atividades de
complementação.
Assim sendo, o eixo da proposta curricular circunscreve-se em um currículo
mínimo para educação básica, voltado para a baixa qualidade, as necessidades mínimas
de existência, capacitação de mão de obra e a empregabilidade. ‟Assim, o discurso
sobre a educação possui a tarefa de esconder as contradições do projeto neoliberal da
sociedade, isto é, as contradições do capitalismo contemporâneo, transformando a
superação de problemas sociais para o indivíduo e a educação” (DUARTE, 2006, p.47).
A concepção de formação humana, presente no currículo, passa a ser o que valoriza o
individual, misturando, ideologicamente, metas educacionais da economia política com
a valorização das particularidades de cada sujeito e do cotidiano utilitarista.
O currículo composto por disciplinas é direcionado por uma concepção de
mundo positivista de conhecimento voltado a um cientificismo de resultados, mas, ao
mesmo tempo, ressalta uma hipervalorização e uma pseudo orientação democrática na
valorização dos conhecimentos particulares dos professores e alunos como base para as
reorientações e reformulações da proposta do estado.
As formas de conhecimento (tanto aberto como oculto) encontradas nas
escolas implicam noções de poder e de recursos e controle econômico. A
própria escolha do conhecimento escolar, o ato de designar as formas dos
saberes escolares, embora possam não ocorrer conscientemente, são, com
frequência, baseados em pressuposições ideológicas e econômicas que
oferecem regras do senso comum para o pensamento e a ação dos educadores
(APPLE, 2006, p. 84).

Ainda sobre o currículo referência, destacamos a caracterização geral realizada


pelas coordenadoras e coordenadores. Os problemas ressaltados foram: a falta de
coerência dos livros com o currículo proposto, grande quantidade de conteúdos, falta de
uma visão e objetivos claros da proposta, falta e deficiência na formação continuada,
um currículo desinteressante, engessado, saberes isolados da totalidade, gradativos, e
fragmentados e descontínuos.
Além disso, ressaltam a repetição de conteúdos e temáticas, conteúdos soltos e
vagos, imposição determinista, um currículo extenso, quantitativamente, com uma gama
muito grande de conteúdos, falta de aprofundamento sobre os conteúdos, grande
132

burocracia no planejamento das aulas com ênfase na avaliação e no método e


dificuldade de lidar com a proposta curricular.
Como reprodutora, a escola atua na seleção e distribuição do conhecimento,
da mesma maneira estratificada pela qual está constituída a sociedade. [...]
Como produtora, o que a escola faz é criar conhecimento técnico-
administrativo em alto nível para empresas econômicas, além de produzir
formas culturais ideológicas a serviço dos grupos que estão no poder. Como
legitimadora, a escola cumpre o papel de mascaramento das desigualdades,
veiculando ideias que façam parecer natural e justo o sistema econômico-
social vigente e que possibilitem a justificação e aceitação do domínio de
determinado(s) grupo(s) (SAVIANI, 2010, p. 49).

Na contraposição, cada professor quer propor, de acordo com a sua realidade


particular e subjetiva, uma proposta curricular com a justificativa geral que os
conteúdos do currículo da rede não estão ligados à utilidade do dia-dia dos alunos,
sendo que o mais importante para a formação deles é voltar ao mercado, valorizando,
como ponto de partida e chegada e suporte para a construção do currículo, os
conhecimentos dos professores adquiridos durante a experiência profissional e os
saberes dos alunos do seu cotidiano. De acordo com sujeito (C8) ‟Os professores são
muito difíceis, cada um quer uma coisa, mas cada um sabe o que cada menino quer e
precisa”. ‟A organização do currículo da rede são conteúdos muito vagos, sem
objetivos claros e definidos. Essa organização intensifica e enfatiza o mínimo”.
Dos 19 professores (as) entrevistados, 12 acham de forma geral positivo o
currículo referência, pautados principalmente na justificativa ideológica da
bimestralização33 dos conteúdos dos componentes curriculares realizadas pela rede,
presente na introdução do documento e propagada entre as escolas. A importância desse
documento é justificada pela bimestralização, na hipótese de que se, por acaso, um
aluno sair de uma escola da rede e ir para outra, da mesma cidade ou qualquer local do
estado, irá ter condições de trabalhar o mesmo conteúdo, consequentemente, ter a
mesma formação. Os professores, a partir dessa premissa ideológica de que a mudança
dos fatores não pode alterar o resultado, relatam também a importância da flexibilidade,
liberdade e ênfase na diferença para incluir ou mudar a ordem dos conteúdos como
ponto apaziguador de quaisquer críticas mais elaboradas sobre a proposta. ‟O currículo
tem que ter o conteúdo mínimo para ser executado em qualquer lugar do estado, as

33
Bimestralização é um dos termos centrais identificado no caderno 5 das reorientações e muito utilizado
pelos professores (as) nas entrevistas. Este termo se refere a separação por bimestres, em forma de listas,
de conteúdos, eixos temáticos e expectativas de aprendizagem já definidos pela rede de ensino.
133

habilidades que o mercado exige, o dia-dia, ser flexível, direcionado ao cotidiano, ligar
sempre com a vontade dos alunos, tendo isto já está bom” (C5).
Além disso, essa perspectiva curricular cria, na contradição, a ilusão idealista34
da garantia do sucesso dos alunos na produção material da vida social ao juntar com a
massa de trabalhadores no mercado de trabalho, através do acúmulo quantitativo de
conhecimentos presentes no currículo escolar. Saberes relativos ao cotidiano dos alunos
conquistados pelo esforço individual, promovendo suposto desenvolvimento econômico
da sociedade e do indivíduo. Para Marx e Engels (2010a, p. 50), ‟[...] para oprimir uma
classe é preciso poder garantir-lhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma
existência servil”. Essas condições transparecem na realidade por meio de mecanismos
ideológicos, como por exemplo, a valorização do discurso da diferença como estratégia
de harmonização das relações sociais nos países pobres, escondendo-se os conflitos
econômicos de poder e as desigualdades entre grupos e classes sociais. Além disso, a
propagação do discurso que existe emprego para todos e bons salários para aqueles que
se esforçam, basta esforço, mérito, ser eficiente e criativo.
A função metodológica e social do currículo da rede se aproxima da articulação
realizada por Mészáros (2008) sobre a relação entre educação escolar e capital, ou seja,
há uma proposta de construção de uma educação para os ricos e uma educação para os
pobres, que precisam ser controlados pelos interesses dominantes que selecionam
alguns para servir de modelo para enfatizar a ideologia da culpabilização dos indivíduos
que não conseguem êxito nas relações materiais da vida social. ‟Para sermos honestos,
devemos reconhecer que o campo do currículo finca suas raízes no próprio solo do
controle social” (APPLE, 2004, p. 85). Um currículo que separa o trabalho manual e
intelectual, dicotomiza a teoria da prática, nega a historicidade e a totalidade social e
submete professores e alunos a uma pseudodemocratização.
Logo, o projeto curricular objetiva, de maneira interessada ideologicamente,
garantir aos alunos a confluência contraditória da permanência na vida escolar com
autovalorização do cotidiano utilitarista e pragmático com conhecimentos da cultura
popular e negação dos saberes ‟clássicos” da ciência, da filosofia e da arte e, ao mesmo
tempo, a cobrança destes saberes voltados a eficiência e eficaz pautada em metas e

34
"O adjetivo ‘idealista’ é usado aqui não com referência à adesão a ideias, mas com referência ao
princípio segundo o qual os problemas sociais são resultados de mentalidades errôneas, acarretando a
crença de que a difusão pela educação de novas ideias entre os indivíduos, especialmente os das novas
gerações, levaria a superação daqueles problemas" (DUARTE, 2010, p.35).
134

índices. Outros pontos que podemos destacar são a inserção e adaptação ao mercado de
trabalho, a construção das possibilidades de sucesso na vida profissional e a formação e
desenvolvimento na direção da construção da cidadania.
Pensar nas escolas como mecanismos de distribuição cultural é importante,
pois, como o marxista italiano Antonio Gramsci observou, um elemento
crítico para a ampliação da dominação ideológica de determinadas classes
sobre outras é o controle do conhecimento que preserva e produz as
instituições de determinada sociedade (APPLE, 2006, p. 61).

Em suma, no caso da atualidade, percebemos a constituição e a consolidação


contraditória de uma concepção curricular à qual denominamos de ‟currículo fetiche”.
Um instrumento ideológico que aproxima das características do fetichismo da
mercadoria, ‟[...] aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise
resulta em que ela é uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e
melindres teológicos” (MARX, 2013, p. 146).
Esse instrumento da vida social, presente no trabalho educativo escolar,
constitui-se na harmoniosa confluência ideológica de duas perspectivas curriculares, a
neotecnicista instrumental de homogeneização mercadológica orientada a uma formação
mínima para a reprodução, produção e legitimação dos princípios e ditames do mercado.
E a perspectiva neoconstrutivista culturalista intersubjetiva que ressalta a
hipervalorização da heterogeneidade e da diversidade, pautada na valorização do
multiculturalismo pragmático utilitarista que exalta o cotidiano imediato da
subjetividade dos alunos e dos professores.
Logo, constata-se nesta pesquisa que a concepção curricular da rede de ensino
em análise é composta pela constituição de um currículo fetiche, que possui como eixo
central um relativismo sensível-suprassencível35. O currículo é colocado, na realidade,
com determinado valor de troca para suprir as necessidades do mercado. Para se
justificar como importante a vida social, a proposta aparenta ter função essencial à
formação e ao desenvolvimento humano e para a economia política, porém, legitimado
com vida própria e caracteres do próprio instrumento, restrito à totalidade e à
historicidade. Torna-se um instrumento ‟fantasmagórico” que vai além da realidade
concreta separado do contexto violento e ideológico no qual é constituído e constitui ao
mesmo tempo. Pautado em um caráter místico e enigmático, o concreto, considerado

35
Termo utilizado por Marx (2013) para caracterizar a existência real do objeto ou instrumento, porém, a
funcionalidade é alterada pelos seres humanos por uma reflexão ilusória e idealista de orientação
ideológica.
135

como uma síntese de múltiplas determinações complexas, constituídas na historicidade


das relações sociais, é transformado como reflexão ilusória dos atos humanos isolados,
neutros, naturais e fragmentados que emergem de variadas realidades.
As propriedades do currículo se encontram a partir dele e nele mesmo, existentes
como fruto das propriedades do próprio instrumento e restrito somente à sala de aula e a
supostos interesses das “comunidades” locais e quando amplia um pouco recai na
exaltação do trabalho com o mínimo. A forma é colocada separada do conteúdo, a
essência se esfacela na aparência, a totalidade desaparece na diferença e a singularidade
se exalta no utilitarismo da diversidade. Um instrumento que,
[...] não só se mantém com os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo
diante de todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem
minhocas que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar
por vontade própria (MARX, 2013, p. 146).

Portanto, com base na perspectiva ontológica de educação, essa orientação


curricular tem o intuito ideológico que resulta em violência contra a formação e o
desenvolvimento de alunos e professores (as). Com base nos ditames da ordem do
capital, objetiva escamotear e mascarar as desigualdades sociais, convencer, reproduzir,
explorar, construir alienações, apaziguar os conflitos, negar a historicidade e a
totalidade através do seu caráter fetichista. Uma perspectiva curricular que pode ser
direcionada às críticas e à caracterização que Marx (2013) faz ao fetichismo da
mercadoria.
Para Marx (2013, p. 147), ‟[...] uma impressão luminosa de uma coisa sobre o
nervo óptico não se apresenta, pois, como um estímulo subjetivo do próprio nervo
óptico, mas como forma objetiva de uma coisa que está fora do olho”. Logo, estas
perspectivas curriculares hegemônicas, que compõem a constituição desse currículo
fetiche, estão inter-relacionadas à totalidade da estrutura e dinâmica da sociedade e das
particularidades objetivas que constituem a organização do âmbito escolar. Conforme
Lukács (2013), a forma e o conteúdo de um conhecimento de algum fenômeno ou
objeto social estão interligados às estruturas macro socioeconômicos. ‟O conhecimento
que penetra na escola — aqueles princípios, ideias e categorias — deriva de uma
história determinada e de uma realidade econômica e política também determinada”
(APLLE, 2006, p. 212). Assim sendo, para nós o currículo fetiche é um dos
instrumentos, no âmbito escolar, onde mais se revelam os elementos e mecanismos
ideológicos e violentos que propiciam na contradição princípios que contribuem na
136

direção tanto para uma formação no sentido da desumanização quanto para a


humanização.
Na contradição, o professor (a) pode repreender esses elementos e mecanismos
presente no currículo fetiche e transformá-los como novas possibilidades
emancipatórias para a construção e desenvolvimento da formação humana no âmbito
escolar, já que ‟[...] os tipos de sistematização institucional e cultural que nos controlam
foram construídos por nós mesmos, e que podem também ser reconstruídos”. (APLLE,
2006, p. 46). Para isso, emerge a necessidade de continuarmos identificando e
compreendendo quais os mecanismos e elementos ideológicos e como estes se revelam
como componentes violentos que estão presentes, atualmente, no currículo escolar e
ensino que implicam a formação e desenvolvimento dos nossos alunos, porém de forma
oculta e subliminar.

2.3.1. Os pressupostos ideológicos do Currículo fetiche

Na história da sociedade, no decorrer do desenvolvimento e transformação dos


modos de produção socioeconômicos, não há registros de se ter criado e produzido,
universalmente, tantos meios e objetos materiais e espirituais — cultura, ciência,
tecnologia, mercadorias — como temos visto na sociedade contemporânea. ‟O que
diferencia as épocas econômicas não é ‘o que’ é produzido, mas ‘como’, ‘com que
meios’ de trabalho. Esses não apenas fornecem uma medida do grau de
desenvolvimento da força de trabalho, mas também indicam as condições sociais nas
quais se trabalham” (MARX, 2013, p. 257).
No modo de produção capitalista, contraditoriamente, nunca se desenvolveu
tanta pobreza, desigualdade social, exploração, mais-valia, alienação, individualismo,
competitividade, consumismo, exaltação do valor de troca, acúmulo de propriedade-
privada, negação da ciência em nome da técnica, destruição dos recursos naturais e a
construção de elementos categoriais e mecanismos ideológicos ocultos e sublimares da
classe dominante que implicam as variadas esferas da vida humana (MÉSZÁROS,
2011).
No sistema do capital, ‟[...] o operário torna-se um simples apêndice da máquina
e dele só se requer o manejo mais simples, mais monótono, mais fácil de aprender. O
custo do operário se reduz, quase exclusivamente, aos meios de subsistência que são
137

necessários para viver e perpetuar sua espécie” (MARX e ENGELS, 2010, p. 46). Os
indivíduos da classe trabalhadora passam a vender o que restou, a força de trabalho, a
sua única riqueza, em troca de salário e de produção de excedente por meio da
exploração.
É neste contexto violento que os dados da realidade concreta nos revelam a
constituição do currículo fetiche que traz consigo, como parte constitutiva, elementos
categoriais pautados em determinados fundamentos ideopolíticos. Estes propiciam
implicações e contradições ideológicas marcantes que levam ao que Apple (2006)
denomina de processo de rotulação no trabalho educativo escolar. ‟O processo de
rotulação tende a funcionar como uma forma de controle que busca homogeneizar a
realidade social, eliminar percepções incompatíveis e usar meios, supostamente
terapêuticos, para criar um consenso moral, valorativo e intelectual” (p.176). Esse
instrumento, utilizado como forma de controle ideológico, de acordo com os interesses
da classe dominante, é apresentado como não totalitário e nem determinista, mas
democrático e flexível de caráter pluralista.
Entendemos que se trata de um currículo eclético e híbrido, de base filosófica
neopositivista, pragmático e marcadamente liberal, complementado por princípios do
idealismo subjetivo, produto da “subjetividade cognoscível do em-si” e da lógica formal
de pensamento. ‟A unidade da ciência, para o neopositivismo, é a unidade da linguagem
científica, segundo o modelo da física moderna. [...] A ciência trata dos fenômenos
como fórmulas matemáticas ideais sujeitas à manipulação, sem considerar seu caráter
ontológico” (DELLA FONTE, 2010, p. 92).
O currículo fetiche é, portanto, manipulador, pautado na fragmentação da
racionalidade técnico-científica, na neutralidade, na burocratização, na proposição do
fim da historicidade, no discurso, no esfacelamento da totalidade social, no
desaparecimento das lutas de classe e na exaltação de uma cidadania de possibilidades.
Dentre as características do currículo mais citadas pelos sujeitos da pesquisa,
destacamos a burocratização, que, em nossa leitura, reproduz um tipo de
homogeneização formalista do conhecimento, que acaba por tornar-se um conjunto de
regras prescritas para o professor. Tanto é que, nas propostas curriculares, confundem-
se e atravessam-se objetivos e conteúdos de ensino.
Na gênese do pensamento fetichizado, particularmente das correntes ligadas
ao que designamos como ‟miséria da razão”, situa-se, ainda, um outro
fenômeno da maior importância. Pensamos na tendência da economia
138

capitalista no sentido de burocratizar todas as atividades humanas, desde as


econômicas e políticas até as mais refinadamente ‟espirituais”. A
burocratização ocorre quando determinados procedimentos práticos são
coagulados, formalizados e repetidos mecanicamente; com isso, empobrece-
se a ação humana, que é assim desligada de sua relação tanto com a realidade
quanto com suas finalidades. Esse caráter repetitivo da ação burocratizada
bloqueia o contato criador do homem com a realidade, substituindo a
apropriação humana do objeto por uma manipulação vazia de dados, segundo
esquemas formais pré-estabelecidos (COUTINHO, 2010, p. 40-41).

Além disso, o currículo fetiche age na captura da subjetividade de alunos, pais e


professores, implicando a negação das contradições e da práxis humana para impedir
princípios de mudanças. ‟No campo da produção de capital, busca-se a apropriação não
apenas de habilidades técnico-profissionais da força de trabalho, mas também de
disposições subjetivas do trabalho vivo, em prol dos interesses da produção de
mercadorias” (ALVES, 2014, p. 59). Direciona o desaparecimento da sensibilidade
crítica, convence a defesa de seus princípios pela classe marginalizada e a ‟destruição
da razão” articulada à negação da ontologia.
Esse instrumento, presente no âmbito escolar, constituído nas contradições da
cisão entre capital e trabalho, é, também, ideologicamente caracterizado por um
‟intervalo totalitário de caráter pluralista” (MESZÁROS, 2012). Na particularidade
desta pesquisa, isso significa a utilização do currículo como uma estratégia ideológica
da classe dominante que consiste em fragmentar, segregar e descentralizar o espaço-
tempo de ação do capital. Pois, o caráter totalitário e repressivo, apresentado
abertamente de maneira constante, monopolista, clara e evidente, traz perigo à
hegemonia e à ordem estabelecida. É colocado como "intervalo", já que necessita, em
alguns momentos, de retomar o domínio total da situação, mesmo sendo com
imposições deterministas e abertas aos olhos humanos.
Para Mészáros (2012, p. 244), ‟[...] a principal função do intervalo totalitário é
reconstituir a estrutura geral do metabolismo social capitalista e, assim, preparar o
terreno para um retorno do modo pluralista de legitimação político-ideológico”. Essa
característica pluralista se manifesta, no currículo fetiche, com o intuito de naturalizar e
aumentar a ordem estabelecida, aproximando, aparentemente, alguns interesses entre as
classes, como manipular e ocultar o caráter determinista, opressor e violento, levar à
cooptação dos interesses da classe dominante como se fosse da classe dominada e
legitimar-se como única e melhor proposta.
139

Na dinâmica epistemológica, o currículo fetiche é consolidado de forma eclética


com "regras formais pseudo-objetivas", com características ideológicas de neutralidade,
"praticabilidade", "imediaticidade", indiferença política, de base liberal,
pseudodemocrático e, principalmente, pluralista.
Os termos de referência deste pluralismo, sejam estabelecidos pelos
pressupostos não contestáveis e pelos imperativos constitucionais
apriorísticos da própria ordem social prevalecente, o caráter de classe do
pluralismo nunca é realmente questionado pelas forças de oposição
institucionalizadas. Elas mesmas são constituídas para operar dentro dos
limites predeterminados da estrutura de legitimação política e ideológica do
adversário. Na verdade, a aceitação aberta e ritualisticamente reiterada
daquela estrutura, em nome do pluralismo – que não consegue reconhecer o
vínculo efetivo deste último com os interesses parciais dos capitais em
competição, interesses opostos aos da esmagadora maioria da sociedade –,
torna o modo estabelecido de legitimação pluralista uma das armas mais
poderosas do arsenal da ideologia dominante (MÉSZÁROS, 2012, p. 244-
245).

Logo, a caracterização geral do currículo fetiche, composto por elementos


categoriais ideológicos, relacionam-se à tendência ideologizante da decadência,
esvaziamento e desaparecimento da teoria, dos fundamentos do materialismo histórico
dialético e da perspectiva ontológica de educação.
O que realmente interessa é assinalar o caráter nitidamente ideológico das
novas categorias ‟corrigidas” que ocupam agora o primeiro plano. Em lugar
do humanismo, surge ou um individualismo exarcebado, que nega a
sociabilidade do homem, ou a afirmação de que o homem é uma coisa, ambas
as posições levando a uma negação do momento (relativamente) criador da
práxis humana; em lugar do historicismo, surge uma pseudo-historicidade
subjetivista e abstrata, ou uma apologia da positividade, ambas
transformando a história real (o processo de surgimento do novo) em algo
‟superficial” ou ‟irracional”; em lugar da razão dialética, que afirma a
cognoscibilidade da essência contraditória do real, vemos o nascimento de
um irracionalismo fundado na intuição arbitrária, ou um aprofundamento do
agnosticismo decorrente da limitação da racionalidade às suas formas
puramente intelectivas (COUTINHO, 2010, p. 30-31).

Essas características presentes no currículo fetiche e os princípios dos elementos


categoriais ideológicos que o compõem se revelam e expressam, na particularidade
desta pesquisa, tanto nos documentos quanto nos relatos dos fatos realizados pelos
professores (as). Os sujeitos da pesquisa e os documentos que norteiam a discussão do
currículo, com base nos princípios liberais, neopositivistas complementado pelos ideais
da pós-modernidade, portanto, trazem uma concepção de realidade e conhecimento que
nega e separa a ciência da filosofia, cria a dicotomia entre subjetividade e as relações
objetivas, recusa a teoria e a separa da prática. Desse modo, as análises singulares se
140

isolam do universal, o sujeito se distancia do objeto de conhecimento e os processos de


meros fatos pragmáticos e fragmentados passam a ser o critério de verdade perante a
construção de variadas supostas realidades particulares.
‟Essa fragmentação da realidade social contemporânea, comandada pelo
processo de mundialização do capital, tem sua correspondência no pensamento pós-
moderno, que rejeita qualquer possibilidade de captação do sentido da totalidade do real
e da história” (DUARTE, 2006, p. 78). Articulado a análise dos dados somente quatro
sujeitos ampliam a discussão para além dos muros da escola, ‟[...] na direção de uma
sociedade em que esteja superado o problema da divisão do saber” (SAVIANI, 2012b,
p. 79).
Essas afirmações com a mediação dos fundamentos teórico-metodológicos
advêm dos dados analisados, por exemplo, em algumas das falas dos professores (as)
(P8), (C7), (C8), (P5): “Os alunos cobram e buscam, muitas vezes, conhecimentos que a
própria estrutura societal cobra deles, mas eles fazem isto sem perceber. Por isso, não
devemos ficar presos somente discutindo sobre a vida cotidiana deles e nem ficar
presos a este sistema. Temos que romper com as demandas do capital, temos que
ajudar eles a colocar outros óculos e este processo não é fácil”. […] acho que a
questão sobre a divisão do saber e a transmissão envolve um cenário sociológico e
cultural construída ao longo do tempo, uma questão mais ampla que está relacionada
com as relações da sociedade de uma forma geral. […] Eu acredito na escola pública,
precisamos relacionar com as problemáticas da sociedade que advêm das relações
sociais, estamos tratando de formação humana, é uma vidinha de vários alunos. [...]
todas as ações que realizamos na escola temos que contextualizar e relacionar com a
prática social, ou seja, as relações sociais. Devemos ir para realidade concreta e
observar o movimento da sociedade para pensarmos o currículo.
A comunidade, os alunos, pais e professores são colocados pelos sujeitos da
pesquisa em supostas realidades diferentes, o que nos leva à compreensão da
inexistência de uma visão de mundo que considere uma realidade e cultura universal
concreta pautada na totalidade, na contradição e na mudança. O espaço empírico
pragmático de ação particular e isolado de cada professor (a) e alunos suprassume a
leitura da atual realidade global. Contraditoriamente, os professores (as) e
coordenadores (as) que trabalham em mais do que uma escola da rede afirmam que a
construção do planejamento de aula, a partir do aluno, articulado ao mínimo proposto
141

pelo currículo referência, posto como momento preponderante de trabalho com o


currículo, é o mesmo em todas as escolas, o que muda é somente a ordem dos conteúdos
dados.
Sobre essa questão, umas das reflexões das contradições é a exaltação
intersubjetiva de conhecimentos empíricos do professor, que já pré-estabelece, de
maneira idealista e liberal, uma pluralidade de realidades discursivas dos alunos, das
comunidades voltadas somente nas relações particulares. Os critérios utilizados para o
trabalho com o currículo tornam-se intersubjetivos e pragmáticos na lógica formal de
matematização do pensamento tendo como contexto a busca de adaptação dos alunos ao
mercado.
O conhecimento decisivo para as decisões que o professor toma em sua
atividade profissional não é aquele proveniente dos livros e das teorias, mas o
conhecimento tácito que se forma na ação, no pensamento que acompanha a
ação e no pensamento sobre o pensamento que acompanha a ação. E o maior
objetivo do trabalho do professor seria contribuir para que seus alunos
também aprendam a pensar e a resolver problemas postos por suas práticas
cotidianas. Em suma, tudo gira ao aprender a aprender e ao aprender fazendo
(DUARTE, 2010, p. 42).

Ainda sobre a negação de uma realidade e cultura universal propagada pelo


currículo fetiche, o conhecimento é visto, pela maioria dos sujeitos, somente no espaço
do próprio cotidiano de si, dos alunos e da comunidade ou dos interesses de
determinados grupos fragmentados. ‟Essas tentativas de subjetivação da realidade
partem da negação do estatuto ontológico do mundo objetivo ou da impossibilidade de a
ele ter acesso” (DELLA FONTE, 2011, p. 29). O conhecimento apresenta-se para a
realidade como algo pré-determinado e restrito à particularidade da sala de aula
composta somente por experiências intersubjetivistas.
Para evitar o currículo da rede, a maioria dos sujeitos desta pesquisa passam a
estabelecer o próprio currículo, de acordo com os conhecimentos intersubjetivos
advindos da experiência ou no direcionamento do livro didático, apostilas e de
propostas de aulas já prontas. “Devemos trabalhar o mínimo do currículo referência,
mas, no segundo momento, construir o nosso de acordo com o que acho mais próximo
da vida do aluno (P3). A questão do currículo, eu tenho um pouco de dificuldade, antes
seguia o jeito que a rede queria, hoje trabalho o mínimo deles e faço o meu por conta
própria, pois acho que não atende às expectativas dos alunos (P4). Atualmente o
currículo da rede vem diferente dos livros didáticos, ai sempre falo para os professores
mudarem o currículo e adequar ao livro” (C1).
142

A maioria dos coordenadores (as) colocam os próprios conhecimentos advindos


da experiência como norteadores para o trabalho dos outros professores com o
currículo, ‟[...] ao passo que todos eles se imaginam girando a manivela da história
mundial ao traçarem o longo fio de suas próprias fantasias” (MARX e ENGELS, 2007,
p. 449). As ações, por meio do ensino, que os professores realizam e que acabam por
consolidar a efetivação do currículo fetiche, muitas vezes, estão fundamentadas nas
reminiscências de quando eram alunos, na prática de outro professor, na determinação
restrita do livro didático e, principalmente, nos saberes da própria prática cotidiana.
Nesse sentido, a realidade e o conhecimento são expostos como produtos da
"subjetividade cognoscível em-si".
A concepção do currículo é pautada na primazia da prática dissociada da teoria,
uma prática pela prática, o conhecimento pelo conhecimento, o fazer pelo fazer. ‟É
crucial a experiência, o que tenho de experiência, passo para os professores e posso
falar pra eles que vivi ou vivo isto, aí os professores não reclamam e tentam copiar,
todos fazem isto, o que vale é a prática” (C5). Para Duarte (2006, p. 79), ‟[...] cada vez
maior vem sendo a importância dada à chamada troca de experiências na área
educacional: em nome da valorização da experiência profissional de cada professor, o
que acaba por existir é a legitimação do imediatismo, do pragmatismo e da
superficialidade que caracterizam o cotidiano alienado”.
Esse sentido de percepção da realidade e trato com o conhecimento articulado ao
currículo fetiche leva-nos à afirmação de que o mundo do “eu” do professor aprisionado
no mundo do capital, negligenciado intencionalmente da totalidade e historicidade pelo
caráter burocrático da rede, pautado pelos interesses da ideologia dominante, passa a ser
o que é determinado e exaltado como “universal”, “a fonte da verdade”, “o único” e o
início da criação idealista das múltiplas e plurais realidades. Sendo isso proposto com o
slogan da “mudança” e “inovação” do currículo em busca de melhores índices e metas.
Nesse processo de desenvolvimento da alienação do professor (a) ao currículo
fetiche ressaltamos também a passagem do “eu” egocêntrico para a cópia das práticas
do “outro” professor com maior posse quantitativa de empiria ou mais reflexivo sobre o
próprio cotidiano ou até mesmo a cópia do mundo “fetichizado”, colocado pela maioria
dos livros didáticos, e isolados no pensamento idealista do trabalho com o mínimo
presente no currículo referência.
143

Essas características ligadas ao idealismo e à ideologia dominante, infelizmente,


estão presentes na reprodução violenta do currículo fetiche todos os dias, em várias
escolas públicas, compostas por milhares de alunos e professores.
Uma das tarefas mais difíceis que há é a de descer do mundo do pensamento
para o mundo real. A realidade imediata do pensamento é a linguagem.
Assim, como os filósofos autonomizaram o pensamento, também tiveram de
autonomizar a linguagem num reino próprio. Este é o segredo da linguagem
filosófica, na qual os pensamentos, como palavras, possuem um conteúdo
próprio. O problema de descer do mundo dos pensamentos para o mundo real
se converte no problema de descer da linguagem para a vida (MARX e
ENGELS, 2007, p. 429).

De maneira contraditória, durante a análise dos documentos e quando os sujeitos


da pesquisa foram questionados, principalmente, sobre os objetivos e propósitos do
currículo no âmbito escolar, os dados nos demonstram que essas múltiplas realidades
idealistas e ideológicas convergem aos propósitos de uma sociedade, a "sociedade da
mercadoria". Uma realidade que possui como denominador comum os princípios do
capital, principalmente, a universalização do valor de troca, a supervalorização do
dinheiro e a intensificação da mais-valia (MARX, 2011). Um contexto aparente,
igualitário de possibilidades, competitivo, considerado benéfico para aqueles que
conseguirem aproveitar e desenvolver a capacidade individual com maior proeza e
mérito.
A perspectiva do ‟currículo fetiche” é marcada pelo acúmulo mínimo de
competências e habilidades nos princípios do valor de troca — prêmio aluno,
bonificações aos professores, maiores verbas para aquelas escolas que se destacarem nas
avaliações externas (GOIÁS, 2010). É transmitido aos alunos um discurso ideológico de
que, quanto maior o acúmulo de conhecimentos úteis para o desenvolvimento dos
princípios da economia e dos valores desta sociedade, no qual contraditoriamente a
própria proposta curricular nega ao supervalorizar a subjetividade e o cotidiano e afirma
ao mesmo tempo, mais bem sucedidos serão na lógica do mercado de trabalho e nas
relações sociais em geral.
‟A educação está sendo posta em sintonia com um esvaziamento completo, à
medida que seu grande objetivo é tornar os indivíduos dispostos a aprender qualquer
coisa, não importando o que seja, desde que seja útil à sua adaptação incessante aos
ventos do mercado” (DUARTE, 2006, p. 54). As mazelas da sociedade são colocadas
como consequência da falta de esforço e da capacidade intelectual dos alunos e pais, da
144

incapacidade de alguns professores e gestores, de não considerarmos o cotidiano do


aluno ou o descompromisso do estado com o salário do professor e com a estrutura
física das escolas. Tudo isso colocado como determinado e incorrigível, estando além
do alcance dos seres humanos uma mudança radical.
Somos informados de que a sociedade está asselvajada e que, por essa razão,
os indivíduos que compõem essa mesma sociedade sofrem de todo tipo de
debilidade. A sociedade se separa desses indivíduos, se autonomiza; ela se
asselvaja por conta própria e o sofrimento dos indivíduos é apenas
decorrência desse asselvajamento (MARX e ENGELS, 2007, p. 446).

Alguns professores (as) colocam a impossibilidade de pensar um currículo


universal respeitando as particularidades articulado à totalidade, mas somente
fragmentado, voltado à especificidade singular do aluno, da comunidade e do professor,
focado somente na frágil prática com a própria disciplina. Isso observamos nas falas de
alguns dos sujeitos: “Pensar o currículo é uma coisa mais particular de cada área,
cada disciplina, a especificidade é de cada área. Não tem como pensar a questão do
currículo se não for por cada professor, de acordo com a sua realidade particular, de
cada aluno, lá na sala de aula” (C2). ‟Na questão do currículo, vai muito de cada
escola, cada escola faz o sentido, de acordo com a comunidade e cada aluno, cada uma
tem um critério diferente da outra” (P3). ‟Tenho que planejar minhas aulas de acordo
com a vontade de cada aluno e devo adaptar para agradar cada um” (P1).
No currículo fetiche, portanto, é constituída e reafirmada uma primazia do
sujeito, o recuo da teoria e o esvaziamento da ciência e da filosofia como pares
dialéticos. A ciência quando trabalhada, é relativamente dosada, fragmentada na
proposta do aprender a fazer, a ser e estar. O referente currículo orienta o trabalho para
o mínimo de competências e habilidades com princípios mercadológicos e de adaptação
ao convívio social, busca resultados pragmáticos separados de reflexões filosóficas.
Contraditoriamente, ao mesmo tempo, a proposta curricular cobra dos alunos e
professores (as) variados resultados imediatos, por exemplo, através de desempenhos
em avaliações externas e o sucesso no ENEM.
Na constituição e efetivação desses pressupostos, características, aspectos e
princípios do currículo fetiche, aparentemente ausentes de ideologia e de racionalidade,
encontramos na realidade concreta elementos categoriais ideológicos que, para nós,
ajudam na afirmação, legitimação, reprodução e propagação dos princípios e ditames da
ordem do capital no âmbito escolar. Esses elementos categoriais vão, de forma oculta e
145

subliminar, impondo uma proposta atraente e sedutora do currículo fetiche, construindo


implicações e contradições ideológicas na formação e no desenvolvimento humano.

2.3.2. Currículo fetiche: implicações e contradições ideológicas do relativismo


cultural intersubjetivo e da propriedade intelectual

De acordo com os dados desta pesquisa, até aqui analisados, eles expressam e
revelam implicações e contradições de elementos categoriais ideológicos presentes na
perspectiva do currículo fetiche, dentre os quais destacamos o que denominamos de
propriedade intelectual e relativismo cultural intersubjetivo, ambos tendo como base a
confluência de princípios do neopositivismo e do liberalismo com o complemento de
elementos da corrente culturalista pós-moderna.
A primeira categoria — propriedade intelectual — aproxima-se das propostas da
perspectiva neotecnicista, apresentada no item 2.3, e está ligada ao contexto,
características e princípios ressaltados e verificados na análise que fizemos sobre a
constituição dos princípios ideológicos do capital. É importante ressaltar que, embora
oculta, a valorização da propriedade intelectual, na relação com o currículo e ensino,
perpassa os documentos e as entrevistas que analisamos. Esse elemento categorial é
caracterizado pela dinâmica de constituição e desenvolvimento da ‟sociedade da
mercadoria” e do ‟homem mercantil” articulados, intrinsecamente, aos princípios da
doutrina ideológica do liberalismo. ‟A meta é a formação de um indivíduo preparado
para a constante adaptação às demandas do processo de reprodução do capital”
(DUARTE, 2006, p. 63).
A segunda categoria, denominada de relativismo cultural intersubjetivo, tem
como determinação última o pragmatismo, atrelado aos princípios dos discursos,
narrativas da pós-modernidade e da tendência do multiculturalismo com ênfase na
cultura popular e nos saberes do cotidiano. ‟Cabe observar que o que se encontra, no
centro de formulações como multi/interculturalismo e os Estudos Culturais, não é a
defesa da diversidade cultural, mas o relativismo ontológico e o ceticismo
epistemológico” (DELLA FONTE, 2011, p.34), o que perpassa pelos princípios da
perspectiva neoconstrutivista analisado no item anterior. Tem preponderância na
particularidade desta pesquisa, nos relatos dos professores e seus princípios estão
presentes nas tendências curriculares hegemônicas atualmente no Brasil.
146

Esse elemento categorial ideológico possui princípios que propagam a negação


da impossibilidade da universalidade da cultura, a inexistência de uma totalidade social
da realidade, exaltação da subjetividade fragmentada, esvaziamento das relações sociais,
e supervalorização da diversidade e do cotidiano pautados, principalmente, no
multiculturalismo advindos dos discursos e narrativas pós-modernas. Para Duarte (2010,
p. 43), ‟[...] o multiculturalismo tem desempenhado o papel do cavalo de Troia que
trouxe, para dentro da educação escolar, o pós-modernismo com toda sua carga de
irracionalismo e anticientificismo.
As características gerais desse elemento categorial se aproximam da análise
realizada no capítulo um, no item 1.1, no qual destacamos a doutrina filosófica,
instituída por fundamentos que se configuram como uma ‟falsa ontologia” e um
‟antiontologismo” (LUKÁCS, 2012). ‟O resultado desse processo é o fortalecimento de
uma ontologia velada, estreitamente vinculado a uma prática imediata, conveniente aos
interesses manipulatórios do capital” (DELLA FONTE, 2010, p. 97).
Iremos iniciar a análise das principais características, princípios, implicações e
contradições ideológicas desses elementos categoriais pela propriedade intelectual. Esse
elemento tem como base os princípios e mecanismos do liberalismo que foram
incorporados pela classe social burguesa, no modo de produção capitalista. Também
atravessam os espaços e tempos históricos e, hoje, vemos os princípios impregnados nos
discursos hegemônicos da perspectiva do currículo fetiche. ‟O liberalismo, enquanto
visão de mundo, impregnou todos os campos de atividade da burguesia e todas as ações
burguesas. Como não poderia deixar de ocorrer, também a educação sofreu o influxo
dessa visão de mundo” (ALVES, 2007, p. 79).
Os princípios do liberalismo é uma visão de mundo muito importante para o
currículo fetiche, pois traz mecanismos ideológicos que se tornaram, atualmente,
hegemônicos, dentro do âmbito escolar, principalmente, na discussão do currículo
escolar. Sustentam os discursos de legitimação dos ditames do capital e revelam como
fortes e perigosos mecanismos ideológicos que capturam a subjetividade de alunos, pais
e professores e distorcem os fenômenos socioeconômicos da realidade concreta.
As características desse elemento categorial se baseiam no discurso da
valorização da propriedade natural de cada indivíduo dentro dos princípios do
liberalismo moderno. Essa concepção ideológica critica as ideias metafísicas, inatas e
propaga a tese de que os indivíduos, no estado de natureza, não possuem saberes
147

presentes em sua propriedade natural que possam provocar uma relação de


superioridade ou inferioridade hierárquica e soberana. Essa perspectiva nega quaisquer
justificativas que coloquem em pauta a desigualdade como proveniente das lutas entre
as classes, dentro do sistema do capital, e ressalta os saberes natos construídos desde o
estado de natureza como um ponto importante na justificativa das diferenças sociais,
culturais e econômicas entre os seres humanos.
Com base no discurso teórico-ideológico, pautado pela doutrina liberal, e na
importância dada à propriedade natural na construção da vida, da liberdade e dos bens, é
ressaltado que ‟[...] o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis, e
dá-lhe toda vantagem e domínio que tem sobre eles, [...] isto requer arte e esforço para
situá-lo à distância e fazê-lo seu próprio objeto” (LOCKE, 1983b, p. 139). É proposto
que o homem não nasce com ideias inatas, mas como um tipo de folha em branco, ou
seja, não há nada impresso em sua mente e não sofre implicações do contexto histórico.
O indivíduo é analisado como uma tábula rasa, não possuindo coisa alguma em sua
alma sendo construída a partir da subjetividade.
Sendo assim, a mente é considerada como um “armazém” da propriedade natural
do indivíduo a ser preenchida por conhecimentos advindos da experiência da vida
cotidiana que compõe a propriedade intelectual. É colocada como algo construído,
inicialmente, pela ação industriosa presente no próprio corpo de cada indivíduo, pelo
contato com o conhecimento que aparentemente esta disponível a todos, de maneira
igual e democrática em toda parte.
Ainda na direção da ideologia liberal que estrutura a categoria propriedade
intelectual, os acúmulos de conhecimentos na mente, dentre as suas funcionalidades
mercadológicas, suprem as necessidades que surgem na relação do homem com a
natureza e com outros homens. Além disso, aquele indivíduo que tem um acúmulo de
conhecimentos é supostamente colocado como a possibilidade de garantir, de forma
absoluta, a ampliação do direito que está na aparência para todos, de todas as
propriedades que possam utilizar e desenvolver. O indivíduo, na própria propriedade
natural, é visto com uma capacidade industriosa (empreendedora), a qual é entendida
como pré-disposições de faculdades naturais de reflexão e sensação do homem que
proporcionam invenções, reconstrução, produções, inovações e aquisição de ideias
presentes no meio, advindas da ação subjetiva.
148

Justifica-se o acúmulo de propriedade intelectual por propiciar ao ser humano


condições de tornar-se um homem ainda mais industrioso, aumentando a própria
propriedade natural e contribuindo com a ampliação da reserva comum da humanidade.
Consideramos a propriedade intelectual com o propósito de ser a base para qualquer
indivíduo alargar a capacidade industriosa, acumulando e transformando em riqueza
individual privada com a obrigação de estender o benefício para a sociedade.
Com a posse privada da propriedade intelectual, surgem outras justificativas para
legitimação do mesmo. Em um mundo neoliberal, qualquer indivíduo com a posse de
muita propriedade intelectual passa a ter o poder de determinadas certezas e
transformações que a propriedade natural não alcançaria. Cada ser humano começa a ter
a necessidade de fazer as suas reflexões e construir seus próprios proveitos e utilidades
sobre o processo de aquisição dessa propriedade pela própria experiência de vida, pois
tais ações proporcionam aos indivíduos o poder e a diferenciação entre si. De modo que,
o ser, pela ação do seu corpo, com a ajuda de sua capacidade industriosa presente na
propriedade natural, vai preenchendo a mente vazia e acumulando na memória
conhecimentos produzidos por ideias advindas da realização de experiências,
constituindo a própria propriedade intelectual.
Com base nos princípios da propriedade intelectual, os conhecimentos presentes
no currículo fetiche ou construídos pela sua orientação tornam-se meras mercadorias
como valor de troca para garantir novas mercadorias, favorecendo a efetivação e
reprodução da exploração e da mais-valia. O dinheiro36 passa a ser a força motriz e o
componente mediador para um suposto acúmulo da propriedade intelectual, a forma
‟fantasmagórica” desse mero papel é colocado como elemento a-histórico e natural de
grande importância para os objetivos a serem alcançados no trato com o currículo
fetiche. Ainda é colocado como o único significado da busca do conhecimento, do
acúmulo de propriedade intelectual e um dos objetivos da formação humana. Por
exemplo, podemos, de maneira evidente, ver tais princípios que norteiam o currículo
fetiche no documento Pacto pela Educação no pilar quatro — estruturar
reconhecimento e remuneração por mérito (bônus de desempenho aos servidores,
prêmio escola, poupança para alunos, educadores do ano).

36
Nossa referência para a discussão do conceito de dinheiro está em Marx (2011, p. 90 a 270).
149

Na análise de algumas das variadas contradições ideológicas da propriedade


intelectual, verifica-se que todos os seres humanos são considerados possuidores de
direitos e privilégios de usufruírem das maiores riquezas dessa sociedade. Aquele
indivíduo que não consegue atingir tal felicidade, proposta pelo modo de produção
pautado na liberdade e igualdade, é justificado pela razão da incapacidade individual,
empreendedora, falta de mérito e talento, de não ter construído e acumulado
propriedades intelectuais que garantiriam tais benefícios.
As deturpações desse tipo são a regra quando há riscos realmente elevados, e
assim é, particularmente, estabelecida como uma ‟ordem natural”
supostamente inalterável. A história deve então ser reescrita e propagandeada
de uma forma ainda mais distorcida, não só nos órgãos que em larga escala
formam a opinião pública, desde os jornais de grande tiragem às emissoras de
rádio e de televisão, mas até nas supostamente objetivas teorias acadêmicas
(MÉSZÁROS, 2008, p. 37).

Com a posse da propriedade intelectual presente na concepção do currículo


fetiche, aparentemente através do esforço individual e da ação do indivíduo, no acúmulo
de conhecimentos na mente, voltados ao mercado capitalista, o indivíduo justifica seus
bens, a liberdade, a felicidade e a própria vida. No sistema do capital, esses aspectos são
enfatizados de acordo com a destreza e aproveitamento particular e inovador, a partir
das possibilidades já existentes na natureza, das criadas pelas próprias atitudes
empreendedoras do indivíduo e das provenientes da aplicação de competências e
habilidades adquiridas ao longo das experiências da vida.
A educação deve preparar os indivíduos para acompanharem a sociedade no
acelerado processo de mudança, ou seja, enquanto a educação tradicional
seria resultante de sociedades estáticas, nas quais a transmissão dos
conhecimentos e tradições produzidas pelas gerações passadas era suficiente
para assegurar a formação das novas gerações, a nova educação deve pautar-
se no fato de que vivemos, em uma sociedade dinâmica, na qual as
transformações em ritmo acelerado tornam os conhecimentos cada vez mais
provisórios, pois um conhecimento que hoje é tido como verdadeiro pode ser
superado em poucos anos ou mesmo em alguns meses. O indivíduo que não
aprender a se atualizar estará condenado ao eterno anacronismo, à eterna
defasagem de seus conhecimentos (DUARTE, 2010, p. 10).

Um dos objetivos do currículo fetiche, pautado pela propriedade intelectual,


perpassa pela premissa de que aquele ser que conseguir possuir um armazém com maior
quantidade de acúmulo de conhecimentos em sua memória irá realizar a leitura,
apreensão, intervenção e posse do mundo, de maneira mais virtuosa, racional e
diligente, o que o tornará um homem útil à sociedade, mais honrado e alcançará um dos
150

objetivos da modernidade: transformar o indivíduo em homem mercadológico de


negócios.
Portanto, a categoria da propriedade intelectual traz poderosos mecanismos
ideológicos, torna-se uma dos eixos fundamentais na legitimação do currículo fetiche,
faz do indivíduo livre e igual perante todos dentro de uma pseudodemocracia, um
indivíduo-cidadão possuidor de várias possibilidades de ampliar e construir novas
propriedades privadas, desconsiderando as condições reais do contexto violento das
lutas de classes, das desigualdades sociais, da exploração, da mais-valia e do trabalho
assalariado. ‟Tudo isso é uma parte integrante da educação capitalista pela qual os
indivíduos particulares são, diariamente e por toda parte, embebidos nos valores da
sociedade de mercadorias, como algo lógico e natural” (MÉSZÁROS, 2008, p. 82).
A outra categoria norteadora, que nos ajuda a desvelar os mecanismos
ideológicos contraditórios do currículo fetiche, é o que denominados de relativismo
cultural intersubjetivo. Este pauta-se na negação dos conhecimentos da totalidade, no
indeferimento da prática social como ponto de partida e chegada para a compreensão da
realidade, esfacelamento da teoria, ênfase na dicotomia entre teoria e prática e na
exaltação das informações inerentes ao cotidiano pragmático voltados ao senso comum,
em realidades constituídas por fenômenos puramente causais e naturais, a partir da
pluralidade intersubjetiva etnocêntrica de fatos particulares.
Os fundamentos que pautam esse elemento categorial ideológico dicotomiza a
relação entre ciência e filosofia e se apropria do ‟idealismo intersubjetivo” de
orientação gnosiológica, da passividade e neutralidade social para se legitimar na
realidade. Além disso, nega a ontologia, as lutas de classes e o contexto violento da
economia política.
O relativismo cultural intersubjetivo perpassa as características do pensamento
neopositivista e se relaciona diretamente ao ceticismo epistemológico37, nega a
historicidade, os pares dialéticos que nos ajudam a explicar a realidade, enfatiza e exalta
os momentos idealistas, pragmáticos e utilitaristas e os pontos de vistas intersubjetivos
produzidos em cada particularidade. ‟Como se percebe, o ceticismo epistemológico

37
Argumenta a ilusão da existência de uma realidade concreta e de uma teoria do conhecimento que
explique e compreenda a realidade concreta. Tem como base a metafísica, o idealismo e a singulariedade
poética que se opõem às relações objetivas críticas que envolvem a construção de uma nova ordem social
em uma sociedade sem qualquer tipo de exploração e sem classes sociais (DELLA FONTE,2010).
151

reinante sentencia o antirrealismo: a realidade é incognoscível, ou porque não existe ou


porque não passa de uma descrição ou convenção de uma comunidade” (DELLA
FONTE, 2010, p. 80). Enfatiza-se, no relativismo cultural, a efemeridade, a volatilidade,
a fragmentação, a descontinuidade e ecletismo das diferenças pelo "caos paradoxal"
(COUTINHO, 2010).
Dentro do discurso ideológico hegemônico, o conhecimento válido passa a ser
aquele que é útil para a reprodução dessa realidade que está em constante movimento
volátil e os que proporcionam um aparente prazer imediato.
Os sujeitos sociais dissolvem-se pela atomização do social em redes flexíveis
de jogos de linguagem heteromórficos, que se disseminam e que não podem
ser disciplinados por regras gerais. A realização diferenciada e heterogênea
de jogos de linguagem cria instituições sociais “em pedaços”, de onde
emanam regras de enunciação que definem o que pode ser dito e como pode
ser dito. Porém, esses poderes institucionais, dispersos em nuvens de
elementos narrativos, não estabelecem limites absolutos, pois essas regras de
enunciação são mutáveis e flexíveis. A sociedade, assim, teria se
transformado num conjunto descentrado e pluralista de redes de enunciado de
diferentes tipos (EVANGELISTA, 2008, p. 13).

Os conhecimentos, como produtos das ações humanas, são descartados; a cultura


humana geral é recusada, a relação e as particularidades da totalidade das ciências e da
filosofia são esfaceladas, a vivência do processo se torna argumento de legitimação
absoluta. Para Duarte (2010a, p. 115), ‟[...] é um equívoco considerar etnocêntrica a
transmissão universalizada da ciência, da filosofia e da arte pela escola, assim como
considerar que o relativismo cultural favoreça o livre desenvolvimento dos indivíduos”.
Desse modo, entendemos que o relativismo cultural intersubjetivo enfatiza as
dicotomias entre unidade/diversidade, particular/universal, singular/plural, apropriando-
se do discurso da prática individualista, fragmentada, imediata, idealista, quantitativa e
pragmática, como critério de verdades parciais e flexíveis para a construção de várias
supostas realidades.
Temos o "Único" já suficientemente esclarecido em suas "refrações"
multiformes e antediluvianas, como homem, caucasiano caucásico, cristão
consumado, verdade do liberalismo humano, unidade negativa de realismo e
idealismo, etc. Com a construção histórica do "Eu", cai o próprio "Eu". Esse
"Eu", o fim de uma construção histórica, não é um Eu "corpóreo", gerado de
modo carnal por homem e mulher, que não necessita de construções para
existir; ele é um "Eu" gerado intelectualmente por duas categorias,
"idealismo" e "realismo", uma mera existência ideal (MARX e ENGELS,
2007, p. 235).
152

Justifica-se, com base no respeito do "individualismo" articulado à teoria


culturalista da pós-modernidade, por meio do discurso ideológico, sendo o mundo visto
como algo permeado por várias realidades, identidades, narrativas, transformações
tecnológicas e crises isoladas que provocaram o desaparecimento dos princípios da
modernidade, da incapacidade da teoria e da prática social de explicar as verdades que
constituem a realidade, em nome da valorização da diversidade e a diferença de
indivíduos ou grupos. Na análise de Libâneo (2010, p. 46), ‟[...] destacam-se, nesse
quadro, as questões do multiculturalismo, desdobradas na diversidade social, no
relativismo cultural, na valorização de experiências intersubjetivas”. Denegando a
existência da totalidade social, da cultura universal e das atuais contradições entre
capital e trabalho.
Com base nesse elemento categorial ideológico, os indivíduos passam a viver na
aparência com base na autorreferência e, independente da totalidade social, em razão da
exacerbação da prática e de saberes intersubjetivos da imediata cotidianidade.
Aos educadores caberia conhecer a realidade social não para fazer a crítica a
essa realidade e construir uma educação comprometida com as lutas por uma
transformação social radical, mas sim para saber melhor quais competências
a realidade social está exigindo dos indivíduos. A criatividade não deve ser
confundida com a busca de transformações radicais, busca da superação
radical da sociedade capitalista, mas sim criatividade em termos de
capacidade de encontrar novas formas de ação que permitam melhor
adaptação aos ditames da sociedade capitalista (DUARTE, 2010, p. 12).

Logo, esses elementos categoriais ideológicos do currículo fetiche apresentam-se


como elementos violentos e ocultos que direcionam a um resultado educacional que
implica e direciona a formação e o desenvolvimento dos alunos no sentido da
desumanização. Propaga, mesmo sem percebermos um valor mercantilizado do
conhecimento e de formação, voltado à impossibilidade de captação do concreto,
permeado pela supervalorização da eficiência instrumental produtivista. E, ao mesmo
tempo, é construído e propagado por pseudoações populistas e democráticas, sendo que
a valorização dos discursos intersubjetivos confundem e impedem a construção de
possibilidades reais de emancipação vinculadas às condições materiais e históricas.
Os conhecimentos sincréticos, empíricos, fortuitos, heterogêneos e de senso
comum substituem a sistematização de relações explicativas causais já
conquistadas pela humanidade e, assim, (re)significa-se a realidade,
identificada, então, com o compartilhamento de interpretações. Delega-se,
sobretudo, à "sabedoria de vida" o papel de orientar o sujeito no mundo,
identificado minimamente com a vida cotidiana e com intensas e rápidas
transformações (LIBÂNEO, 2013, p.21).
153

O currículo fetiche, portanto, com base nas implicações e contradições


ideológicas da propriedade intelectual e do relativismo cultural intersubjetivo, articulado
às contradições entre capital e trabalho, constitui variados mecanismos ideológicos que
ocultam e naturalizam a realidade, invertem, manipulam, distorcem e engendram um
caráter de violência que atinge o processo de humanização. Logo, no próximo item,
trataremos da relação dos componentes ideológicos que sustentam o currículo fetiche e
a constituição de elementos de "violência subliminar”, no campo do currículo, que
incidem na formação e desenvolvimento humano.

2.4. A materialização da violência subliminar no currículo fetiche

O processo investigativo, realizado até aqui, sobre o currículo articulado à atual


estrutura, organização e dinâmica societal constituída pelo sistema ideológico do capital
e composta por determinações socioeconômicas, políticas e culturais, em contraposição
aos fundamentos teórico-metodológicos da perspectiva ontológica de educação,
propicia-nos melhores condições de captar e revelar o movimento contraditório, para
além da aparência, além de compreender e desvelar os principais elementos e
mecanismos ideológicos e de violência subliminar presentes na perspectiva do currículo
fetiche que implicam na formação.
As escolas não apenas controlam as pessoas; elas também ajudam a controlar
o significado da formação. Pelo fato de preservarem e distribuírem o que se
percebe como ‟conhecimento legítimo” – o conhecimento que ‟todos
devemos ter” – as escolas conferem legitimidade cultural ao conhecimento de
determinados grupos. Todavia, isso não é tudo, pois a capacidade de um
grupo tornar seu conhecimento o ‟conhecimento de todos” se relaciona ao
poder desse grupo em uma arena política e econômica mais ampla (APPLE,
2006, p. 103-104).

Na essência da concepção do currículo fetiche, ‟[...] os produtos do cérebro


humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam
relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das
mercadorias, os produtos da mão humana” (MARX, 2013, p. 148). Essa totalidade de
síntese de múltiplas determinações complexas, produto das relações sociais permeadas
por uma ‟arena política e econômica” de lutas de classes, compõe, atualmente, as
154

contradições, os elementos, as características, os princípios, os mecanismos, os


objetivos e a função ideológica do currículo fetiche.
A concepção de formação e desenvolvimento humano imposta pelo currículo
fetiche é direcionada, ideologicamente, por essa conjuntura socioeconômica direcionada
à desumanização, afetando, de forma violenta, a vida e as relações sociais,
principalmente da classe dos trabalhadores.
O sistema do capital é, na realidade, o primeiro na história que se constitui
como totalizador irrecusável e irresistível, não importa quão repressiva tenha
de ser a imposição de sua função totalizadora em qualquer momento e em
qualquer lugar em que encontre resistência. (MÉSZÁROS, 2011a, p. 97).

O currículo fetiche, estabelecido na prática social, tem como um dos objetivos


centrais suprir as necessidades espirituais formativas básicas e mínimas dos filhos da
classe trabalhadora, com um dos objetivos de reproduzir os conhecimentos mínimos
necessários para a produção e manutenção do sistema do capital. Necessita, para tanto,
também constituir determinadas formas de conhecimento cujo critério ideológico é de
reproduzir e conservar não só as forças de produção, mas também as relações
produtivas, selecionar algumas subjetividades para o mercado e, mesmo expandindo a
exploração, a alienação e a desigualdade social, não permitir que o sistema como um
todo entre em colapso. Portanto, na lógica do capital, não basta reproduzir os
conhecimentos mínimos para a produção, é preciso também reproduzir certa visão de
mundo, para que a grande massa de explorados, justamente por terem adquirido esses
conhecimentos mínimos, não se volte contra o sistema.
Para Marx (2010, p. 31), ‟[...] a economia nacional conhece o trabalhador apenas
como animal de trabalho, como uma besta reduzida às mais estritas necessidades
corporais”. É preciso, dessa forma, um imenso investimento do capital na reprodução
ideológica, que se dá por meio também do currículo escolar. Os princípios e
características da economia política, que constituem este instrumento ideológico, geram
e necessitam de uma certa violência para um melhor controle das relações humanas.
Logo, destaca-se a necessidade ontológica de continuarmos as análises para além
das formas aparentes e visíveis sobre o currículo fetiche e, aprofundemos na
problematização de questões subliminares presentes na realidade concreta, porém, não
apresentadas de forma clara aos olhos humanos. Questões estas que se expressam na
realidade real como violência ao processo de formação e desenvolvimento humano.
155

Nós com o intuito de desvelar elementos, mecanismos e contradições,


direcionamentos as reflexões para a construção de novos caminhos e pores teleológicos
de saída desta crise violenta contra o processo de humanização, advinda da estrutura e
dinâmica do modo de produção capitalista. ‟Por isso, no âmbito da importante
estratégia de combate à ideologia dominante, desmascarar o princípio da universalidade,
naturalização da vivência e concepção de mundo burguesa é fundamental”
(MASCARENHAS, 2015, p. 56).
Este cenário em que predomina a concepção de mundo burguesa, a economia
política – sistema do capital pautado pela produção de excedente de mercadorias – e o
currículo fetiche, como já vimos neste capítulo, são regulados, controlados e
constituídos por vários componentes e mecanismos ideológicos. Esses componentes e
mecanismos engendram, nessa realidade de desigualdade e exploração, a naturalização,
a inversão, a mistificação e o ocultamento de elementos de violência presentes nas
relações sociais, escamoteados, muitas vezes, sob a forma de “conhecimento”.
Desde a escravidão, cuja premissa reside na capacidade gradativamente
adquirida pelo homem de produzir mais do que necessário para manter e
reproduzir a si mesmo, até a fixação da jornada de trabalho no capitalismo, a
violência permanece como momento integrante da realidade econômica de
todas as sociedades de classe (LUKÁCS, 2012, p. 338).

Mas, no capitalismo, com base na contradição entre capital e trabalho, na


exaltação do valor de troca, na implementação da dinâmica do trabalho assalariado, da
alienação e da mais-valia, a questão da violência se amplia de forma estrondosa.
Prolifera nos tipos, nas formas e na quantidade, tanto nas ações claras e explícitas,
efetivadas nas relações sociais, quanto nas violências menos sensíveis e sutis à
percepção consciente dos seres humanos. Trata-se de um fenômeno socioeconômico,
consequência das mazelas desse modo de produção, fruto da imposição de miséria
material e espiritual produzida para a maioria dos seres humanos e, também construída,
ideologicamente, com o intuito de servir de repressão, controle, conservação e
reprodução do desenvolvimento dos interesses privados da classe dominante.
Segundo Lukács (2012, p. 377-378), ‟[...] a violência é um momento, é órgão
executivo do desenvolvimento direto das forças econômicas, e, também, aquele no qual
ela cria condições inteiramente novas para a economia, reestruturando, diretamente, as
relações de distribuição”. A estrutura, a dinâmica, os princípios e as características da
economia articulados à ideologia são a base para a produção real de vários tipos e
formas de violência explícita ou oculta.
156

Essas violências se expressam na ‟[...] imperturbabilidade estóica com que o


economista político encara as violações mais inescrupulosas do ‟sagrado direito de
propriedade” e os atos de violência mais grosseiros contra as pessoas, sempre que estes
sejam necessários para produzir as bases do modo de produção capitalista” (MARX,
2013, p. 799). Um fenômeno de construção histórica que se manifesta, atualmente, em
várias áreas da vida social e traz poderosos elementos de contraposição à perspectiva
ontológica de educação.
A violência, como realidade real e concreta diante de seus vários tipos e formas de
manifestação, é constituída nos princípios dos conflitos das lutas de classes na relação
dialética entre objetividade e subjetividade, nas relações materiais e espirituais.
Fenômeno socioeconômico efetivado na e para a totalidade, nas contradições da
realidade concreta e ligada atualmente diretamente à dinâmica, ao desenvolvimento e
aos componentes ideológicos do sistema do capital. Segundo Marx (2010, p. 87), o ser
humano, no sistema do capital, passa ‟[...] a se relacionar com a sua própria atividade
como uma [atividade] não livre, então ele se relaciona com ela como atividade a serviço
de, sob domínio e violência e o jugo de um outro homem”.
Estamos falando de uma violência inerente a um sistema, não só da violência
física, direta e isolada, mas, principalmente, das formas sutis que sustentam as relações
sociais de dominação e exploração. Alguns tipos e formas de violência são mais
explícitas, claras e evidentes como, por exemplo, a descida de centenas de jovens das
comunidades, nas grandes metrópoles, para cometer ações de violência, nos grandes
centros urbanos, como roubos com vítimas fatais, as guerras civis, o narcotráfico, o
aumento da violência nas famílias, na escola, no trânsito.
Outras formas de violência articuladas a mecanismos ideológicos são menos
evidentes, como o processo de imigração do Oriente Médio, nas mais variadas formas
desumanas, o aumento brutal do desemprego, a desigualdade social, a destruição dos
recursos naturais, a fome e miséria em todo mundo. O tipo de violência que queremos
revelar e desvelar, nesta pesquisa, e que está inter-relacionada as outras formas e tipos
de violências supracitadas, manifesta-se pelo engendramento ideológico, de modo
oculto, escamoteada e sublimar dentro das relações sociais, porém, entendemos que é
um tipo de violência muito real e concreta, direcionada e manipulada para não ser
percebida como atos de uma violência cotidiana e, aparentemente, não articulada
dialeticamente à ideologia do capital.
157

Para Mascarenhas (2015, p. 50), ‟[...] as características das relações sociais


capitalistas favorecem o estabelecimento da violência e esta, muitas vezes, faz-se
bastante explícita, mas também, inúmeras vezes, apresentando-se de uma maneira não
explicitada, subliminar”. Logo, o currículo fetiche, constituído pelos princípios,
características e os componentes ideológicos do capital, consolida-se, no atual momento
histórico, como um instrumento que manifesta elementos e mecanismos de violência.
Atinge os ideias de formação e desenvolvimento humano no sentido da humanização,
porém, através dos mecanismos ideológicos apresentam-se de forma oculta,
escamoteada e subliminar de maneira natural.
Segundo Lukács (2013, p. 188), ‟[...] na crise econômica, a unidade de produção
capitalista e suas proporções corretas são impostas com violência”. Para ocultar essas
imposições e seus verdadeiros interesses e elementos de violência, que se manifestam
no currículo fetiche, o sistema dominado pela ordem do capital tem lançado mão de
mecanismos ideológicos de escamoteamento. Esses elementos de violência e os
mecanismos são introjetados, na sociedade, para a legitimação, reprodução e
conservação do sistema. Assim, contribuem, significativamente, para que as condições
de desigualdade, exploração e alienação sejam mantidas e até mesmo aprofundadas. E
também para que esses elementos não venham a ser revelados, despidos, escancarados
e, talvez, até combatidos.
Os mecanismos ideológicos agem na práxis social, porém ‟[...] essa
determinação só pode se tornar um motor da práxis quando os homens singulares
vivenciam esses interesses como seus próprios e tentam impô-los no quadro das
relações vitalmente importantes para eles com outras pessoas” (LUKÁCS, 2013, p.
472). A classe dominada passa a agir de acordo com os pensamentos da classe
dominante de forma natural e reproduz os interesses da classe hegemônica como se
fossem seus.
A classe dominada apropria e propaga esses elementos violentos da ideologia do
sistema do capital, presente no currículo fetiche, como se fossem legítimos e de
interesse próprio. Para Duarte (2012, p. 39), ‟[...] o desenvolvimento da humanidade é
analisado como um processo histórico contraditório, heterogêneo, que se realiza por
meio das concretas relações sociais de dominação, que têm caracterizado a história
humana até aqui”. O tipo de violência, presente no instrumento em análise, somente se
efetiva quando os seres humanos se incorporam e propagam, conscientes ou não, os
158

elementos presentes no mesmo, engendrados pelos mecanismos e componentes


ideológicos. Na aparência, esses elementos, na maioria das vezes, são considerados e
propagados como se fossem da natureza humana, necessários e imprescindíveis ao
pleno desenvolvimento da humanização e de uma suposta sociedade do conhecimento.
Para a maioria dos sujeitos desta pesquisa, vivemos em uma sociedade do
conhecimento e o currículo fetiche deve estar voltado para esta concepção de
conhecimento, que, para nós, é bastante violenta e que afeta a formação humana,
levando os sujeitos a fazerem uso pragmático do conhecimento que vão adquirindo, à
competição e ao individualismo e não para a formação plena do potencial e das
capacidades humanas. Nessa visão, o indivíduo, de acordo com as suas particularidades,
deve-se adaptar às transformações tecnológicas, desenvolvendo informações e
conhecimentos úteis, imediatos, com data marcada para desaparecer, em uma realidade
impossível de ser explicada racionalmente. O homem deve ser definido por sua
utilidade pragmática de saberes de acordo com os requisitos do mercado, já que os
conhecimentos são temporais, voláteis e individuais, construídos por variadas
realidades.
Assim, a chamada sociedade do conhecimento é uma ideologia produzida
pelo capitalismo, é um fenômeno no campo da reprodução ideológica do
capitalismo. Dessa forma, para falar sobre algumas ilusões da sociedade do
conhecimento é preciso, primeiramente, explicitar que essa sociedade é, por
si mesma, uma ilusão que cumpre determinada função ideológica na
sociedade capitalista contemporânea (DUARTE, 2008, p. 13).

Os professores e alunos direcionam-se as práticas que são frutos de incorporação e


propagação de elementos de violência, ligados aos ditames da ordem do capital,
engendrados pelos mecanismos ideológicos, como algo natural, como se fosse de
necessidade vital de todos os seres humanos e interesse comum da sociedade. Processo
oculto e subliminar, como podemos muito bem desocultar, ao analisarmos o relato de
um dos sujeitos que participou da pesquisa (P3): ‟Na proposta curricular da rede,
temos que trabalhar em cima do vestibular, a escola deve trabalhar o que vai precisar e
vai ser cobrado lá fora, temos que estudar o que vai cair no Enem e focar no mercado
de trabalho e selecionar os melhores. Acho isto bom, pois vivemos num mundo do
conhecimento, de concorrência, desempenho, inovação e muita competição. Devemos
andar como a sociedade muda e é isto que o currículo pede para nós. E, ao menor
tempo possível, temos que socializar e adaptar os alunos em boas condutas para não
virar maus elementos. E formar os alunos, de acordo com a realidade de cada região,
159

partindo do conhecimento de cada um, principalmente o que está no cotidiano dele,


isso que interessa e que buscamos”.
Com base em Mészáros (2008, p. 44), ‟[...] trata-se de uma questão de
"internalização", pelos indivíduos, da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na
hierarquia social, juntamente com suas expectativas "adequadas" e as formas de conduta
certa”. Na qual somente uma sensibilidade crítica, uma consciência filosófica científica
e um processo de ‟contrainternalização”, pautada na visão de historicidade e totalidade
social, poderá desvelar esse caráter ideológico e de violência presente neste
instrumento.
Os mecanismos ideológicos, presentes no currículo fetiche, tornam-se poderosos
e violentos componentes que atingem a consciência de professores e, principalmente,
dos alunos filhos da classe trabalhadora oriundos da escola pública. ‟Os interesses
sociais que se desenvolveram, ao longo da história, e se entrelaçam, conflituosamente,
manifestam-se, no plano da consciência social, na grande diversidade de discursos
ideológicos, que exercem forte influência sobre os processos materiais mais tangíveis
do metabolismo social” (MÉSZÁROS, 2012, p. 65). Na aparência, os objetivos do
currículo fetiche, permeados por discursos ideológicos no metabolismo social, são
colocados como benéficos, claros, coerentes, entusiastas e com propósitos inovadores,
eficientes, modernos e evidentes, mas, na essência, recaem no brutal e violento processo
de desumanização que nega a perspectiva ontológica de educação.
A dinâmica da incorporação e objetivação dos elementos de violência,
engendrados pelos mecanismos ideológicos do capital, intensifica, expressa e efetiva o
tipo sutil e oculto de violência que se manifesta no currículo fetiche.
Os indivíduos, que compõem a classe dominante, possuem, entre outras
coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam
como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente
que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que
eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que
regulam a produção e a distribuição das ideiasde seu tempo; e, por
conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época (MARX e
ENGELS, 2007, p. 47).

Para Mészáros (2012, p. 58), ‟[...] naturalmente, aqueles que aceitam, de modo
imediato, a ideologia dominante como a estrutura objetiva do discurso ‟racional” e
‟erudito” rejeitam como ilegítimas todas as tentativas de identificar os pressupostos
ocultos e os valores implícitos com que está comprometida a ordem dominante”. Esses
160

mecanismos ideológicos concebem um caráter sublimar sobre os elementos de violência


que podem ser compreendidos somente na complexidade da totalidade social, da
historicidade, da estrutura e dinâmica das funções ligadas à propagação dos ditames do
capital e dos conflitos de interesses entre as classes sociais (MASCARENHAS, 2015).
Desse modo, na relação dialética entre ideologia e violência, destacamos o
conceito do tipo de violência que se manifesta no currículo fetiche, o qual denominamos
de violência subliminar.
A violência subliminar é aqui compreendida como violência oculta,
disfarçada, encoberta, dissimulada, escondida para não ser vista, dita e
revelada, não ultrapassando o limiar, ficando submersa. O aspecto central do
ocultamento da realidade que se apresenta na constituição desse tipo de
violência é engendrado por meio de mecanismos ideológicos
(MASCARENHAS, 2015, p. 50).

Nesta pesquisa, afirmamos que esse tipo de violência manifesta-se, de forma


oculta, no currículo fetiche, que, por sua vez, está intrinsecamente ligado aos
componentes e mecanismos ideológicos do sistema do capital. Em nossa análise, trata-
se de uma das formas preponderantes de violência, na sociedade atual, uma vez que
abrange variadas esferas da vida social de maneira oculta, sustenta a normalidade
socioeconômica, dificulta pensarmos, criticamente, a reprodução contraditória e a
legitimidade das variadas formas de violência. Além do que propicia condições
subjetivas para a efetivação de outros tipos de violência, inclusive as mais explícitas,
impedindo ações mais amplas para a construção de caminhos conscientes, no sentido de
soluções reais e concretas de superação do capital e resolução de tantos problemas que
levam às condições de vida desumanas dessa sociedade.
Logo, o currículo fetiche gera elementos de violência subliminar e utiliza-se de
mecanismos ideológicos para que não sejam revelados seus verdadeiros interesses e,
assim, chegar à consciência humana como um instrumento que, aparentemente, traz o
conhecimento e a cidadania, mas que, na verdade, gera o direcionamento, não absoluto,
para um processo de desumanização da vida e das relações sociais. Os mecanismos dos
quais se vale a violência subliminar no currículo fetiche aparecem como fatos
corriqueiros, constituídos pela própria vida cotidiana particular de cada indivíduo, em
variadas realidades e isoladas da totalidade e historicidade. Segundo Mészáros (2008, p.
49), essa perspectiva de educação,
[...] exclui a esmagadora maioria da humanidade do âmbito da ação como
sujeitos, e condena-os, para sempre, a serem apenas considerados como
objetos (e manipulados no mesmo sentido), em nome da suposta
161

superioridade da elite: meritocrática, tecnocrativa, empresarial, ou o que quer


que seja.

Os elementos de violência subliminar, presentes no currículo fetiche, negam a


essência ontológica do ser e perseguem o objetivo de produzir e reproduzir força de
trabalho desqualificada (e não qualificada, como apregoam os slogans da sociedade do
conhecimento) e consumidores passivos. Visam, também, ajustar e adaptar durante o
processo de escolarização, o imenso número de jovens estudantes, a futura força de
trabalho, pautado em metas, meritocracia e índices de acordo com os interesses do
capital, propagando o caráter de desumanização a milhares de alunos e professores. Na
efetivação da violência subliminar, no currículo fetiche, seus elementos implicam atos
intencionais de alienação e a ideologia aparece com um papel fundamental de direcionar
a realidade para a reprodução, legitimação, conservação e a manutenção.
No contexto de manifestação dos componentes e mecanismos ideológicos do
sistema do capital e dos elementos de violência subliminar, presentes no currículo
fetiche, os seres humanos acabam coisificando e mecanizando as ações objetivas que os
constituem como seres sociais. Nesse processo, pautado pela ideologia dominante, vai
se consolidando a desconstituição ontológica do gênero e da individualidade de
professores e alunos nas relações sociais, tornando-se cada vez mais difícil para os
sujeitos a construção de sua própria autonomia e liberdade, pois não conseguem se
apropriar da realidade concreta e, assim, desenvolver todas as suas potencialidades
enquanto seres sociais.
A ideologia mantém a aparência de unidade, escamoteamento os conflitos, os
antagonismos, por meio de seu apelo pacificador. Mas a paz que ela
pronuncia não se efetiva, pois na sociedade de classes, as relações sociais são
contradições e antagônicas. Então, o grande recurso utilizado pela ideologia
dominante é o da mistificação. [...] os princípios que norteiam a sociedade de
mercado capitalista são componentes ideológicos imprescindíveis para a
manutenção da violência subliminar (MASCARENHAS, 2015, p. 52).

As visões de mundo dos professores e alunos tendem a ficar restritas às práticas


imediatas e utilitaristas sendo que estes caminham rumo a um unidirecionamento
atemporal, centrado no relativismo, que nega a totalidade e a historicidade. A
consciência do dominante acaba por se constituir a consciência do dominado, não de
forma determinista absoluta, mas, restringindo e fragmentando o caráter do potencial
ontológico do gênero e da individualidade humana, fazendo com que o sujeito se isole
162

dentro de um individualismo exarcebado e de um pluralismo pragmático etnocêntrico


(MARX e ENGELS, 2007).
A realidade dessa orientação conflituosa e estruturalmente determinada da
ideologia não é, de modo algum, eliminada pelo discurso pacificador da
ideologia dominante. Esta ideologia deve apelar para a ‟unidade” e para a
violência – a partir do ponto de vista e em defesa do interesse das relações de
poder hierarquicamente estabelecidas – precisamente para legitimar suas
reivindicações hegemônicas em nome do ‟interesse comum” da sociedade
como um todo (MÉSZÁROS, 2012, p. 67).

No documento norteador, nas propostas do currículo fetiche, podemos perceber


vários elementos que, em uma análise para além da aparência, demonstra a expressão da
violência subliminar na proposta. A formação prática de professores direcionada para
as lacunas da rede em cada localidade; Metodologias inovadoras: estudo de caso e
orientação prática; Mapeamento das competências, busca de talentos na rede e
certificação com base na meritocracia; Formação prática com metodologias
inovadoras; Parceria com associações sociais privadas; Escolas de referência em que
novos professores aprendem na prática com professores experientes; Etapa do estágio
probatório em que o novo docente é acompanhado por professor referência, passa por
treinamento prático em sala; a referência no banco de aulas prontas; A troca de
experiências (GOIÁS, 2011).
Na análise dos variados elementos de violência subliminar, que se manifestam
no currículo fetiche, percebe-se a intensificação cada vez maior do caráter sutil, natural
e oculto desses elementos diante da sensibilidade crítica dos professores. Para Mészáros
(2012a, p. 66),
[...] as diferentes formas ideológicas de consciência social têm (mesmo se em
graus variáveis, direta ou indiretamente) implicações práticas de longo
alcance em todas as suas variedades, na arte e na literatura, assim como na
filosofia e na teoria social, independentemente de sua vinculação
sociopolítica a posições progressistas ou conservadoras.

Na análise conjuntural, os principais elementos de violência presentes no


currículo fetiche são: a negação da cultura universal como patrimônio da humanidade e
da perspectiva ontológica de educação; valorização funcional do conhecimento voltado
somente ao mercado com caráter de valor de troca; exaltação dos conhecimentos
pragmáticos utilitaristas do cotidiano e dos saberes intersubjetivos dos professores; o
individualismo; a competitividade; as dicotomias entre singular/universal, teoria/prática
e indivíduo/sociedade, subjetividade/objetividade, conteúdo/forma, ciência/filosofia; o
163

esfacelamento da visão de totalidade e historicidade; a hipervalorização das


competências, habilidades mercadológicas, metas e índices que compõe os ditames dos
princípios da propriedade privada em detrimento ao público; o imediatismo; o
relativismo; o isolamento pautado em discursos intersubjetivos, a captura e seleção de
subjetividades.
Além disso, ressaltamos, também, como mecanismos de violência subliminar
presentes no currículo fetiche: a mecanização e matematização do pensamento; a
imposição de suposta incapacidade inata do potencial humano; o idealismo subjetivo; o
ecletismo; a busca pelo eficaz e a eficiência, o hibridismo e a neutralidade científica; o
reducionismo teórico, científico e filosófico; a visão de que não há necessidade de
conhecimentos teóricos sólidos e sistematizados para o ensino escolar; a negação da
universalidade genérica do ser humano; a exaltação da cultura popular e a negação da
cultura universal; a concepção de unidade referente à visão mercadológica como fonte
para a formação; a impossibilidade de apreensão da realidade; a glorificação da
liberdade de mercado; a precarização e intensificação do trabalho docente; a indiferença
política; a primazia da prática e a busca incessante de uma cidadania nos moldes da
ideologia do capital.
Destacamos, ainda, os elementos de violência subliminar presentes no currículo
fetiche, no interior do processo de educação escolar: o utilitarismo como critério para a
seleção de conteúdos escolares e organização do currículo; o esfacelamento da razão
como capacidade intelectual humana; a burocratização; a meritocracia e o
empreendedorismo, apresentados como capacidades intelectuais; a fragmentação da
realidade e do ser humano, nos conteúdos escolares; mecanismos de autoculpabilização
individual, presentes nas formas de avaliação escolar; competitividade, elitização e
hierarquização entre escolas, professores e alunos; o espontaneísmo como princípio
pedagógico e a preocupação somente com o bem estar psicológico do aluno; a formação
técnica-instrumentalista e a busca de uma eficiência quantitativa e produtivista de
informações e não com o conhecimento e a aprendizagem; a não consciência e até
mesmo a negação das lutas de classe que se manifestam na educação escolar.
Logo, na análise do currículo fetiche, constituído e legitimado por esses elementos
de violência subliminar, podemos perceber que estão proliferando, cada vez mais, de
forma natural e oculta dentro das escolas públicas, “[...] discursos que misturam a
eternização do esvaziamento próprio da cotidianidade contemporânea à visão romântica
164

de um passado ressignificado livremente pela subjetividade fragmentada do indivíduo


pós-moderno” (DUARTE, 2010a, p. 106).
Os mecanismos ideológicos, constituídos na totalidade social, propagados pelo
currículo fetiche, estão ficando ainda mais elaborados e difíceis de ser identificados e
desconstruídos. O esfacelamento da razão, os discursos do fim da história, das lutas de
classe e do trabalho estão ganhando corpo e expressões ainda mais violentas; os
discursos e narrativas da pós-modernidade e do multiculturalismo hoje hegemônicas,
infelizmente, estão tornando como fonte determinista absoluta de verdade.
A totalidade não é um fato formal do pensamento, mas constitui a reprodução
ideal do realmente existente; as categorias não são elementos de uma
arquitetura hierárquica e sistemática, mas, ao contrário, são na realidade
"formas de ser, determinações da existência", elementos estruturais de
complexos relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas inter-relações
dinâmicas dão lugar a complexos cada vez mais abrangentes, em sentido
tanto extensivo quanto intensivo (LUKÁCS, 2012, p. 297).

Sendo assim, entendemos que é possível partir da realidade concreta,


compreender suas contradições, negá-la e superá-la, o que é possível quando realizamos
o movimento de desvelar a estrutura e a dinâmica desta síntese de múltiplas
determinações na qual constitui e é constituída pelo currículo.
Mas a ideologia que nos faz acreditar que tudo depende do capital é tão forte
e arraigada que fica parecendo loucura, devaneio, a construção de uma
sociedade do trabalho, sem mercado e mercadoria. A sociedade dos
produtores livremente associados. ‟[...] Um elemento importante nessa
caminhada é a demonstração do poder da ideologia e a desmistificação e
desmascaramento da ideologia dominante (MASCARENHAS, 2015, p. 55).

No próximo capítulo, com base nos fundamentos teórico-metodológicos


desenvolvidos até aqui, e que nos levaram à essência da educação escolar e do currículo
fetiche, iremos trabalhar essas relações e contradições na particularidade do ensino da
Educação Física escolar.
165

CAPÍTULO III

O CURRÍCULO FETICHE NA ESPECIFICIDADE DO ENSINO DA


EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
Neste capítulo, com o intuito de continuarmos entendendo a complexa e
contraditória perspectiva do currículo fetiche e as implicações ideológicas, no processo
de formação e desenvolvimento humano, enfatizamos a discussão da especificidade do
currículo e ensino da educação física. O processo histórico desse componente curricular
já nos revela várias problemáticas articuladas às implicações das contradições da visão
entre capital e trabalho, principalmente, no que se refere à discussão do currículo e
ensino. Observa-se nesse processo a propagação de uma suposta e aparente crise de
identidade e de legitimação da educação física escolar, mas, na essência, percebe-se que
as problemáticas são consequências dos direcionamentos do modo de produção
capitalista ao processo de formação humana, no âmbito escolar, que implica na
construção do currículo e do ensino.
Atualmente o que se observa é o emergir e direcionamentos para a consolidação
de uma nova tendência curricular para a educação física escolar, composta de velhas
abordagens com novas roupagens ideológicas. Ações ditas, na aparência críticas,
emancipatórias, progressistas e humanistas, porém, na essência, corroboram na
reprodução, legitimação e ampliação dos ditames ideopolíticos da ordem do capital,
direcionando a formação e o desenvolvimento humano à desumanização. Existe, em
nossa compreensão perante os variados desafios, um grave problema na compreensão
do currículo e ensino da educação física escolar, a ausência de uma abordagem
ontológica que venha a sustentar os fundamentos científicos, filosóficos e ideopolíticos
que direcionam a formação e desenvolvimento humano no sentido da humanização.
Nesse contexto, no item 3.1, com base nos fundamentos da perspectiva
ontológica de educação, iremos discutir o objeto nuclear de conhecimento da educação
física, a essência da constituição dos saberes escolares desse componente curricular e a
contribuição dessa prática social na formação humana. No próximo item, enfatizamos
os dados dos documentos e das entrevistas para analisarmos as proposições do currículo
fetiche na especificidade da educação física. Uma análise que nos revela a contradição
híbrida que, de um lado, é colocada a necessidade de um currículo organizado por uma
lista de manuais de conteúdos e metodologias e, do outro, uma concepção culturalista
166

pós-moderna de ensino e aprendizagem que enfatizam a perspectiva do currículo


fetiche.
No item 3.2.1, trazemos as características dos pressupostos do currículo fetiche
na educação física. Em seguida, colocamos em pauta a discussão que envolve a
apreensão da aparência e da essência do contraditório ‟movimento renovador” da
educação física escolar, estabelecido na década de 1980, e os desdobramentos no atual
momento histórico. Com base nas contradições dos dados das entrevistas e dos
documentos, resgatamos o processo da historicidade para além das meras descrições
lineares, deterministas e mecânicas de abordagens, tendências e correntes que, em
síntese, emerge a construção de uma nova tendência para a educação física nos dias
atuais, fruto de orientações ideológicas da aparência.
No último item, diante das problemáticas do currículo de educação física, no
atual tempo histórico, trazemos a discussão da articulação dialética entre violência
subliminar e ideologia para agora, na especificidade do currículo e ensino da educação
física, identificar, analisar e compreender os elementos, os componentes e os
mecanismos que constituem o processo de formação no âmbito escolar com o intuito de
construir novas possibilidades e condições para além do currículo fetiche.

3.1. O objeto nuclear de conhecimento e os saberes escolares do currículo de


educação física na concepção ontológica de educação

Pensar o currículo da educação física escolar, remete-nos, necessariamente, à


reflexão sobre a questão do “conhecimento”, instrumento de grande importância no
processo de humanização, produto das apropriações/objetivações históricas, parte
constitutiva da cultura e da função social da escola. Na educação básica, o currículo da
educação física nos apresenta questões intrigantes e recorrentes que a acompanham no
decorrer do processo de consolidação e legitimação como uma disciplina escolar, dentre
as quais se destacam: A educação física tem o quê ensinar? Qual o objeto nuclear de
conhecimento da educação física? Quais são os conhecimentos específicos? A educação
física possui conhecimentos científicos? Interrogações complexas que nos trazem,
ainda, nos dias atuais, dúvidas e problemáticas que implicam na construção de um
trabalho educativo escolar de qualidade, cujas incertezas levam os professores (as) a
167

afirmarem a direção ideológica do relativismo e do pragmatismo como se observa nos


dados desta pesquisa.
Nesta pesquisa, quando questionados sobre o elemento categorial “campo do
currículo”, a maioria dos professores e professoras de educação física sentiram
dificuldade para expressar como entendem os conhecimentos escolares. Porém, todos
percebem que há discordâncias e contradições entre a própria visão de currículo, a da
rede de ensino, em análise, dos outros professores e dos alunos, como podemos ilustrar
com as seguintes falas: “Na questão dos professores em geral é interagir e socializar e
temas sobre saúde, para o estado gostam que direcionam para o esporte, mas com
propostas de vários conhecimentos desorganizados. Para mim, temos que trabalhar
temas para tentar tirar os meninos das drogas, das ruas, interagir com a sociedade e
qualidade de vida e, na visão dos alunos, brincar, liberar energia, sorrir, se libertar”
(P3). “É meio difícil falar sobre isto, a educação física trabalha muita coisa, acho que
deve tentar obter conhecimentos sobre cuidar do corpo e o que ele pode ingerir e os
exercícios físicos. Para os alunos, muitos deles é somente diversão, desestressar
aquelas aulas maçantes. Para a rede, nem sei o que eles querem” (P2). “Pra rede, ela
está perdida, não tem objetivo central, quem vai dar aula fica perdido. Para os
professores, na maioria das vezes, é somente esporte por que a vivência deles foi
somente esporte, trabalha a dança porque gosta de dança. Para os alunos, querem
somente um momento de ficar sem fazer nada e os meninos jogando futebol. Para mim,
o conhecimento que deve ser tratado no currículo é tudo que envolve a cultura
corporal” (P5).
Diante de tais questões e no limite desta pesquisa, temos como um dos objetivos
refletir sobre as interrogações supracitadas, relacionadas à crise da especificidade do
conhecimento da educação física escolar, o que implica a constituição e legitimação do
currículo fetiche. Tal objetivo nos leva a complexa tarefa de compreender as
problemáticas, as contradições, as condições e as possibilidades do trato com os saberes
da educação física escolar, bem como pensar na construção de um currículo para além
da perspectiva do currículo fetiche.
Além disso, tais interrogações, relacionadas ao currículo de educação física,
especificamente sobre a questão do objeto nuclear de conhecimento e dos saberes
escolares, trazem o desafio de tentarmos construir caminhos para emancipar o trabalho
168

educativo restrito aos fenômenos cientificistas de base biológica ou construtivista, de


caráter puramente gnosiológico/epistemológico que nega a dimensão ontológica.
Como há uma ausência de reflexões referentes a essa questão, o que ocorre,
no interior da Educação Física, é uma separação entre dois aspectos, abrindo-
se as possibilidades para indicar que a determinação das atividades
desenvolvidas por homens e mulheres é dada pela cultura, em que se
compreendem as manifestações culturais, como possuindo em-si os
elementos necessários para que se alterem as relações entre os complexos
formadores do ser social. Ou, então, a relação social-natural passa a ser
observada como uma relação entre dois pólos: homens e mulheres e
Natureza. Assim, consideramos que as críticas à questão do corpo e às ações
com o corpo, especificamente o movimento, portanto às tematizações da
Educação Física são pertinentes, mas não alcançam a real determinação
dessas manifestações, pois não a fazem, tendo em vista a questão do em-si do
corpo. Não um em-si hipostasiado, mas o ser-propriamente-assim
(ORTIGARA, 2002, p. 223).

Na perspectiva de buscar as reais e concretas determinações sobre o objeto


nuclear e os saberes escolares do currículo de educação física, no sentido do “ser-
propriamente-assim”, recorremos, novamente, aos fundamentos da perspectiva
ontológica de educação. Uma leitura que abrange, conforme Mello (2009), não somente
a busca da legitimidade dos conhecimentos da educação física ou o caráter funcional
cientificista dos saberes presentes no currículo, no sentido de atender às mudanças e
transformações das relações de produção e das forças produtivas do sistema do capital,
mas também a investigação da necessidade da educação física escolar na historicidade,
num projeto de emancipação da humanidade em relação aos ditames da ordem social do
capital.
Ressaltamos, assim, a importância de irmos aos fundamentos ontológicos com
base no que foi analisado no capítulo um, principalmente nos itens 1.1, 1.2, e no
capítulo dois no item 2.1, para pensarmos, na formação e no desenvolvimento do ser
como ser social, no sentido do processo da humanização, as principais questões sobre a
essência histórica do objeto nuclear de conhecimento da educação física e dos saberes
objetivos que foram transformados em saberes escolares. Nesse sentido, reforçamos a
tese de Ortigara (2002).
A questão com que nos defrontamos é a ausência, nos estudos em Educação
Física, de uma abordagem ontológica que possa fundamentar teoricamente a
especificidade do andar, do correr, do saltar, etc., como específicos da
atividade humana. Indagamos a determinação ontológica do ser social e
afirmamos sua necessidade para vislumbrar uma explicação realista e crítica
do processo de produção e reprodução de homens e mulheres, dos
conhecimentos e saberes, no qual está o complexo educativo, incluindo a
Educação Física. Apontamos, então, a obra lukacsiana da ontologia do ser
social como possibilidade de suprir essa ausência (p. 205).
169

Na perspectiva ontológica materialista histórica, a constituição da formação e do


desenvolvimento do ser como ser social, no processo de humanização, envolve pôr
teleológico, ideologia, a relação entre apropriação e objetivação e determinações
potenciais históricas das relações de produção, das forças produtivas, da cultura, da
ciência, da filosofia e da arte. “Quanto mais formações sociais se desenvolvem em
amplitude, altura e profundidade, quanto mais intensa for a interação social entre elas,
tanto mais a consciência humana pode aproximar-se do pôr da humanidade como
unidade filogenético-social do gênero humano” (LUKÁCS, 2013, p. 200). Nessa
dinâmica das formações sociais e da vida produtiva, que compõe a sociabilidade e a
constituição da “unidade filogenético-social do gênero humano”, os seres humanos
criam e recriam sempre novas atividades e instrumentos materiais e não materiais no
decorrer da história que implicam a humanização.
Sendo assim, o ser humano não nasce com a consciência e a apropriação do
conjunto das atividades sociais condensadas sobre o corpo e o movimento presentes na
sociedade, muito menos os saberes culturais produto dos atos históricos que,
potencialmente, afastam-no, cada vez mais, das barreiras naturais e enriquece o gênero e
a individualidade humana.
Portanto, pelo movimento, cria-se o material, que pela atividade cria a vida, e
nela o trabalho humano, cria as sociedades. Para conhecer a sociedade,
portanto, conhecer o seu grau de desenvolvimento, sua cultura, é necessário
recuperar esses elementos ontológicos do ser social. Para compreender as leis
gerais que regem as sociedades e compreender como elas determinam a
consciência, é necessário tratar do elemento fundante da sociedade, e este é,
portanto, o trabalho (TAFFAREL, 2010, p. 20).

Ressaltamos que, diferentemente dos outros animais, os seres humanos, produtos


dos atos históricos, não têm a sobrevivência, a formação e nem a reprodução da vida
social garantida pela natureza, necessita pela mediação do trabalho transformá-la e criar
novas condições, como sujeito da práxis, para suprir as necessidades e criar novas
condições para o desenvolvimento em-si e para-si. “Não há história social, se não
houver transformação da realidade humana, se não houver desenvolvimento. Mas não
há desenvolvimento humano, se não houver a transformação das necessidades
humanas” (DUARTE, 2013, p.33). Os seres sociais, portanto, por meio da vida
produtiva, com mediação do trabalho e da práxis, como elementos fundamentais da
170

constituição do gênero e da individualidade, num processo dialético entre apropriações e


objetivações, constroem a sociedade e produzem por meio dela a si mesmos.
De acordo com Lukács (2013, p. 52), “[...] só podemos falar do ser social
quando concebemos que a sua gênese, o seu distinguir-se da sua própria base, seu
tornar-se autônomo baseiam-se no trabalho, isto é, na contínua realização de
finalidades”. Nesse processo socioeconômico necessário para a constituição e
desenvolvimento da humanização, produto das causalidades postas, advindas do
conjunto de pôres teleológicos, novos instrumentos, atividades e formas de consciência
e representação do mundo são construídos pelo trabalho.
O gênero e a individualidade humana, produtos históricos das relações sociais,
foram constituídos na elaboração do mundo objetivo num processo contínuo de
transformações e saltos ontológicos. “A minha própria existência é atividade social; por
isso, o que faço a partir de mim, faço a partir de mim para a sociedade, e com a
consciência de mim como um ser social” (MARX, 2010, p. 107). A existência dos seres
humanos, a cada efetivação dos pores teleológicos, a partir da transformação da
natureza e das relações com outros seres humanos, tornam mais complexa a vida social
e a si mesmos. Necessitam de contínuas novas apropriações para realizar diferentes
objetivações como respostas às perguntas advindas das sínteses de múltiplas
determinações complexas da totalidade social.
Na essência da produção e reprodução da totalidade social, que implicam o
processo de humanização, os seres têm a necessidade ontológica de dominar a natureza
inorgânica e orgânica para transformá-la pela mediação do trabalho (MARX, 2010). Um
ponto fundamental é apropriar-se de saberes objetivos sobre o corpo e o movimento,
parte constitutiva da formação e desenvolvimento do gênero, “objetos da ciência
natural” e, ao mesmo tempo, “objetos da arte”, pois, a própria vida biológica
transformada em social é objeto histórico de conhecimento cultural.
Portanto, se quisermos apreender a produção e a reprodução do ser social, de
modo ontologicamente correto, devemos, por um lado, ter em conta que o
fundamento irrevogável é o homem em sua constituição biológica, em sua
reprodução biológica; por outro lado, devemos ter sempre em mente que a
reprodução se dá num entorno, cuja base é a natureza, a qual, contudo, é
modificada de modo crescente pelo trabalho, pela atividade humana; desse
modo, também a sociedade, na qual o processo de reprodução do homem
transcorre, realmente, cada vez mais, deixa de encontrar as condições de sua
reprodução "prontas", na natureza, criando ela própria através da práxis
social humana (LUKÁCS, 2013, p. 171).
171

É pela práxis social que, composto de dois movimentos dialéticos entre a


hominização, desenvolvimento físico orgânica do homem, e humanização,
desenvolvimento do homem como ser social, são criados novos meios, condições e
necessidades para o desenvolvimento da economia, da educação, da cultura e
socialidade. Segundo Lukács (2013, p. 410), “[...] o homem, sem jamais perder a
determinidade biológica de sua vida, constrói para si uma forma de ser nova e bem
própria, a da socialidade”. Inicia-se, portanto, na apropriação e objetivação dos meios
para suprir as necessidades humanas da vida produtiva, a produção de saberes objetivos
sobre o corpo e o movimento do ser social considerados fundamentais para o
desenvolvimento do gênero humano.
A espécie humana não tinha, na época do homem primitivo, a postura
corporal do homem contemporâneo. Aquele era quadrúpede e este é bípede.
A transformação ocorreu, ao longo da história da humanidade, como
resultado da relação do homem com a natureza e com os outros homens. O
erguer-se, lenta e gradualmente, até a posição ereta, corresponde a uma
resposta do homem aos desafios da natureza. Talvez necessitou retirar os
frutos da árvore para se alimentar, construindo uma atividade corporal nova:
ficar de pé (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 39).

Várias transformações e criações materiais e não materiais, que ocorreram ao


longo da história na formação e desenvolvimento do gênero e da individualidade,
produto da objetivação da essência humana, envolvem saberes objetivos sobre o corpo e
o movimento. Portanto, “[...] a objetivação da essência humana, tanto do ponto de vista
teórico quanto prático, é necessária tanto para fazer humanos os sentidos do homem
quanto para criar sentido humano correspondente à riqueza inteira do ser humano e
natural” (MARX, 2010, p. 110). Um processo no qual o ser humano começa a regular e
controlar o seu metabolismo com a natureza, relacionar com outros seres humanos e
criar determinadas manifestações culturais, utilizando os conhecimentos inerentes à
consciência corporal.
De acordo com Marx (2013, p. 255), “[...] a fim de se apropriar da matéria
natural de uma forma útil para sua vida, ele põe em movimento as forças naturais
pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos”. Nesse pôr em
movimento a “corporeidade” constitutiva do gênero e da individualidade humana, o
trabalho tem função fundamental. Na constituição da corporeidade, destaca-se a mão
como o primeiro instrumento de trabalho do homem, “[...] supõe-se que a descobriu
quando teve que atirar uma pedra para se proteger dos animais. Nessa ação, ele
172

distendeu os tendões e compreendeu que, com a mão, poderia fazer muitas coisas para
garantir a sua sobrevivência” (COLETIVO DE AUTORES, 2009, p. 40).
Logo, os atos históricos na relação entre apropriação e objetivação, dentro do
contexto socioeconômico, torna-se a dinâmica central da construção dos saberes
objetivos sobre a corporeidade incorporada ao gênero humano.
Com efeito, aquilo que acontece com o ser natural na utilização da pedra e
que é totalmente heterogêneo com relação ao seu uso como faca ou como
machado, podendo sofrer essa transformação somente quando o homem põe
cadeias causais corretamente conhecidas, acontece também no próprio
homem com os seus movimentos etc., na sua origem biológico-institiva. O
homem deve pensar seus movimentos expressamente para aquele
determinado trabalho e executá-los em contínua luta contra aquilo que há
nele de meramente instintivo, contra si mesmo (LUKÁCS, 2013, p. 80).

É na produção e reprodução histórica que o homem se forma e se


autocompreende como ser social, cria e apropria-se da cultura, estabelecendo novas
formas e modos de consciência sobre a corporeidade. “Como consciência genérica, o
homem confirma a sua vida social real e apenas repete no pensar a sua existência
efetiva, tal como, inversamente, o ser genérico se confirma na consciência genérica, em
sua universalidade como ser pensante” (MARX, 2010, p. 107). A formação da
consciência, produto do distanciamento entre o sujeito e o objeto, tem papel
fundamental na construção da corporeidade, o sujeito traz o objeto — o homem em
movimento, ou seja, o corpo e o movimento — ao pensamento e reflete sobre este
objeto para que venha a ser incorporado como conhecimento.
O domínio da consciência, que põe finalidades sobre todo o restante do
homem, sobretudo sobre o próprio corpo, assim obtido, da consciência
humana sobre a sua própria pessoa, podem ser encontradas ao longo de toda a
história da humanidade, mesmo que com formas variadas e conteúdos sempre
novos e diferentes (LUKÁCS, 2013, p. 134).

As ações produtivas da vida socioeconômica tornam-se o momento


preponderante da criação dos saberes sobre a corporeidade, construídos no decorrer da
história. “Só com a descoberta e a produção do novo, do que até ali não se conhecia,
durante o processo do trabalho, na utilização de seus produtos, etc. surgem na
consciência novos e múltiplos conteúdos, que exigem imperativamente comunicação”
(LUKÁCS, 2013, p. 216). Esses saberes sobre a corporeidade, ainda desconhecidos do
“ser natural humano”, dos quais fazem parte o andar, correr, saltar, jogar e outras
manifestações mais complexas, construídas na história da produção e reprodução da
vida em sociedade e do próprio ser social, são transformados em conteúdos objetivos—
173

atividades sociais — que passam a constituir o patrimônio cultural do gênero como


instrumentos não materiais da vida social.
Homens e mulheres permanecem seres insuprimivelmente biológicos –
nascem, crescem e morrem –, mas mudam radicalmente sua inter-relação
com o ambiente, enquanto intervêm ativamente sobre ele com o pôr
teleológico. Sujeitando o ambiente a transformações pretendidas, sofrem as
próprias transformações. É nesse processo que o andar, o correr, o saltar, o
pular, o jogar, a princípio determinados biologicamente, passam por
transformações que os tornam atividades sociais (ORTIGARA, 2002, p. 211-
210).

Num sentido mais amplo, os seres humanos, pela práxis e, no transcorrer da


socialidade humana, no jogo das forças físicas e mentais desenvolvidas nos atos dos
pôres teleológicos, estabelecem e constroem, na relação entre o biológico e o social, a
subjetividade e a objetividade e, a partir daí, conhecimentos mais elaborados e
complexos sobre a corporeidade. Esses conhecimentos, diante das condições históricas,
começam a se manifestar na realidade concreta, ligados às determinações produtivas
como atividades corporais. Não em razão da natureza ou do contato e interação destes
saberes com o meio, mas com base no desenvolvimento das relações sociais de
determinado modo de produção, fruto das objetivações acumuladas e condensadas,
construídas historicamente pelos próprios seres humanos.
Essas atividades corporais desenvolvidas nas relações sociais se diversifica
como manifestações culturais passam a perpetuar-se como instrumentos não materiais
para o desenvolvimento humano e reprodução da vida social. “Um instrumento é, num
determinado sentido, um resultado imediato da atividade de quem produziu. Assim,
contém o trabalho objetivado da pessoa ou das pessoas que participaram de sua
produção” (DUARTE, 2013, p. 41). Os seres humanos, utilizando destes instrumentos,
produto das objetivações, começam a construir novas formas de ser e determinações de
existência, nexos causais e relações com o mundo natural e social.
O conjunto de saberes sobre as atividades corporais são incorporados à prática
social e expressos em determinadas condições de tempo e espaço, afastando, cada vez
mais, as barreiras naturais e aumentando a diversidade. Tornam-se, na realidade
concreta, uma necessidade ontológica constituinte do gênero e da individualidade
humana, processo essencial para o processo geral de humanização.
Em particular, a peculiaridade qualitativa da autocompreensão do ser humano
é decisivamente determinada pelos tipos de atividade que a respectiva
estrutura econômica da sociedade promove ou inibe, faculta ou impede etc.
Essas condições de ser ontológicas, altamente complexas, determinam, para
174

cada ser humano singular (no interior de sua classe, nação etc.), o espaço
concreto de suas possibilidades de reação e de ação (LUKÁCS, 2012, p. 53).

Na apropriação das atividades corporais, inseridas nas relações sociais, tais


ações geraram outras necessidades, faculdades e capacidades que propiciaram saltos
qualitativos na formação do gênero humano e da individualidade, no mundo objetivo.
Ao apropriarem-se das especificidades dos meios naturais e sociais que produzem a
riqueza das atividades corporais, utilizadas na realidade objetiva de modo racional, os
seres humanos produziram novas necessidades e a criação de novos símbolos, signos,
significados e fenômenos culturais.
Os seres humanos, ao tornarem os saberes e a própria vida produtiva mais
complexos, criando novos signos e significados sobre as atividades corporais como
instrumentos da prática social, desenvolvem saberes cada vez mais elaborados,
sistematizados e metódicos. Trata-se de um pensamento histórico, cientificamente
orientado, produto das relações humanas, articulado à filosofia e às artes. “Quando
desenvolve diferentes saberes sistematizados, ordenados, articulados e
institucionalizados, são transformados, portanto, numa produção simbólica: um jogo,
uma ginástica, uma dança, uma luta” (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 40).
Produções culturais que, nas formas mais desenvolvidas, têm o potencial de expressar a
explicação da historicidade da corporeidade como o objeto nuclear da educação física.
A corporeidade é entendida nas dimensões científica, filosófica e artística como
a essência da produção das atividades corporais que são consideradas instrumentos que
tornaram-se patrimônio cultural. Um conceito que compreende os saberes sobre a
relação dialética entre corpo e movimento, produto da constituição do ser como ser
social. Em síntese, a corporeidade, com base nos fundamentos da perspectiva ontológica
de educação, é efetivada, na socialidade, compreendida como a consciência do ser
social sobre o corpo em movimento, constituída nos complexos sociais existentes na
produção das objetivações históricas compostas pelas representações do homem em-si e
para-si.
Na perspectiva ontológica, a corporeidade é transformada, a cada novo pôr
teleológico, efetivado na relação entre apropriação e objetivação, colocada em
movimento no e para o trabalho e através de outras atividades construídas a partir desta
mediação, transformando a origem “biológico-institivo” do corpo e do movimento em
produtos sociais fruto da práxis. “Nesse processo, encontra-se o movimento humano,
175

que estabelece uma relação dialética — na mediação orgânico e social — com o


mundo” (ORTIGARA, 2002, p.32). São saberes objetivos que geram, potencialmente,
contribuições enriquecedoras na formação e no desenvolvimento do gênero e da
individualidade.
O produto do trabalho contém a atividade humana nele fixada, ele é a
objetivação do trabalho, é a atividade transformada em objeto: a realização
efetiva do trabalho é a sua objetivação. Nesse sentido, o produto do trabalho
é a realização efetiva do sujeito, é a transformação da atividade do sujeito em
um objeto social (SAVIANI e DUARTE, 2012, p.23).

O currículo da educação física, portanto, na perspectiva ontológica de educação


deve abordar o conjunto de conhecimentos, de saberes sistematizados e elaborados
sobre a corporeidade, objeto nuclear desse componente curricular. Aborda o
conhecimento do corpo em ação e a ampliação e complexificação das atividades
corporais, importantes no processo de enriquecimento do gênero e da individualidade
humana no sentido da humanização. Atividades “sócio-antropológicas do movimento”
que “[...] podem ser identificadas como formas de representação simbólica de realidades
vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas”
(COLETIVO DE AUTORES, 2009, p. 39).
Na perspectiva ontológica de educação, o campo do conhecimento, que aborda
as manifestações e tematizações sobre o conjunto das atividades corporais acumuladas e
condensadas como produto da história social, denominaremos de cultura corporal. Um
conceito que possui, como essência estrutural, a corporeidade e pode ser sintetizada
como o campo que trata os saberes objetivos sobre o conjunto de atividades corporais
produzido historicamente pela humanidade.
Nessa perspectiva da reflexão da cultura corporal, um conhecimento
universal, patrimônio da humanidade que igualmente precisa ser transmitido
e assimilado pelos alunos da escola. A sua ausência impede que o homem e a
realidade sejam entendidos dentro de uma visão de totalidade. Como
compreender a realidade natural e social, complexa e contraditória, sem uma
reflexão sobre a cultura corporal humana? (COLETIVO DE AUTORES,
2009, p.43).

No âmbito escolar, lócus que possui, como eixo central, o trato com o
conhecimento elaborado, algumas das temáticas mais complexas e desenvolvidas ao
decorrer da história que compõe a cultura corporal, destacam-se: a ginástica, os jogos,
os esportes, as danças e as lutas abordadas nas dimensões econômica, biológica, social e
política. Esses são um dos saberes escolares nucleares que formam os conteúdos do
176

ensino que compõem o currículo de educação física, configurado pelo conjunto de


atividades corporais institucionalizadas que, por sua vez, compõem o campo da cultura
corporal. “Assim o homem, simultaneamente ao movimento da corporeidade, foi
criando outras atividades, outros instrumentos e, através do trabalho, foi transformando
a natureza, construindo a cultura e se construindo” (COLETIVO DE AUTORES, 2012,
p.40). São conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos que devem ser
selecionados, organizados, distribuídos e desenvolvidos no currículo de educação física
articulado à historicidade e no revelar das contradições da totalidade social.
Um currículo que deve organizar o conjunto de atividades nucleares distribuídas
no tempo e espaço escolar. Um instrumento que possibilite o desenvolvimento e
apreensão de síntese da articulação dialética entre o mundo natural e social e as
unidades entre o ser social e a natureza e entre o corpo e a mente orientado pelos
conhecimentos clássicos da cultura corporal.
Clássico é aquilo que resistiu ao tempo, tendo uma validade que extrapola o
momento em que foi formulado. Define-se, pois, pelas noções de
permanência e referência. Uma vez que, mesmo nascendo em determinadas
conjunturas históricas, capta questões nucleares que dizem respeito à própria
identidade do homem como um ser que se desenvolve historicamente, o
clássico permanece como referência para as gerações seguintes que
empenham em apropriar-se das objetivações humanas produzidas ao longo
do tempo (SAVIANI E DUARTE, 2012, p. 31).

A dinâmica do currículo de educação física, portanto, é uma área do


conhecimento, tendo como objeto nuclear a corporeidade que constitui saberes objetivos
sobre atividades corporais considerados instrumentos essenciais ao desenvolvimento do
gênero e da individualidade humana no sentido da humanização. Ao serem
transformados em saberes escolares, as atividades corporais são configuradas e
tematizadas, num campo do conhecimento denominado de cultura corporal, que aborda
saberes científicos, filosóficos e artísticos, na dimensão pedagógica e política, sendo
que, no período contemporâneo, articula-se ao contexto histórico e ideológico das lutas
de classes.
Nas últimas décadas, a área da educação física escolar, no Brasil, principalmente
ao tratar do currículo escolar, composto por um direcionamento hegemônico de
adaptação às reestruturações produtivas, ajustes estruturais socioeconômicos, as
imposições da redefinição do papel do estado, tudo estruturado pela política neoliberal,
passa por profundas transformações nos ideários ideopolíticos e pedagógicos. Um
177

direcionamento voltado à propagação dos ditames ideológicos neoliberais que recai,


muitas vezes, numa mera perspectiva reformista reprodutivista.
A recusa reformista em abordar as contradições do sistema existente, em
nome de uma presumida legitimidade de lidar apenas com as manifestações
particulares – ou, nas suas variações “pós-modernas”, a rejeição apriorística
das chamadas grandes narrativa sem nome de petits récits idealizados
arbitrariamente – é na realidade apenas uma forma peculiar de rejeitar, sem
uma análise adequada, a possibilidade de se ter qualquer sistema rival, e uma
forma igualmente apriorística de eternizar o sistema capitalista
(MÉSZÁROS, 2008, p. 62-63).

De acordo com Duarte (2012, p. 43), “[...] a passagem à sociedade capitalista


implicou profundas alterações nas relações entre produção material, produção do saber e
apropriação do saber”. Orientada, num contexto subliminar e violento, pautado pelos
ditames do capital, percebem-se as tendências puramente epistemológicas-gnosiológicas
tornando-se hegemônicas na área da educação física escolar, acompanhadas do
pensamento neopositivismo, do pragmatismo e da corrente pós-moderna. ‟A ênfase das
preocupações curriculares recai na cientifização, ou seja, na busca do estatuto epis-
temológico da Educação Física” (TAFFAREL, 2010, p. 32).
Estamos, portanto, diante de uma conjuntura que distorce, naturaliza, mistifica e
oculta as contradições e questões essenciais do processo de compreensão crítica do
currículo de educação física, para além da perspectiva do currículo fetiche. Um contexto
de produção do conhecimento e de trabalho que nos leva à necessidade de
aprofundarmos as reflexões sobre as relações, contradições e problemáticas do currículo
fetiche na especificidade da educação física escolar.

3.2. As proposições do currículo fetiche na especificidade da educação física escolar

A perspectiva do currículo fetiche, na especificidade da educação física, na rede


de ensino em análise, é estruturada dentro de uma área de organização curricular
denominada Linguagens, Códigos e suas tecnologias. Além do documento Pacto da
Educação, que atualmente orienta a tendência pedagógica e ideopolítica da rede de
ensino e do caderno de orientação curricular número 5 (2009c), o qual aborda
proposições para todas as disciplinas, a perspectiva do currículo da rede estadual é
composta por elementos presentes em mais quatro documentos específicos: o caderno
de reorientação curricular número 3 – Currículo e práticas culturais (2009d); o caderno
178

6.4 – Sequências didáticas e convite à ação (2009b), ambos voltados para o ensino
fundamental; o caderno número 7 – Referências Curriculares para o ensino médio
(2010) e o Currículo Referência da rede estadual (2012), na especificidade da educação
física, que traz os eixos temáticos, as competências, as habilidades e as expectativas de
aprendizagem para todas as escolas do estado. Esses documentos, que circunscrevem a
tendência da perspectiva curricular — o currículo fetiche – revela princípios,
contradições, elementos e mecanismos que servem de proposições para o ensino da
educação física da rede. Esses documentos foram elaborados entre os anos de 2004 a
2010 e suas propostas desenvolvidas a partir do ano de 2012.
De acordo com Rodrigues e Soares Junior (2014, p. 206), para a construção das
proposições de todo o processo de debate e reflexão desses documentos na
especificidade da educação física,
[…] foi utilizado, como referência teórico-metodológica, o método dialético
de conhecimento baseado na pedagogia histórico-crítica, fundamentado nas
obras de Saviani (2008) e de Gasparin (2003) e na concepção da Educação
Física crítico-superadora (COLETIVO DE AUTORES, 1992). Nesta
perspectiva, cabe à Educação Física o trato pedagógico de conjunto de
conhecimentos relacionados à cultura corporal, tais como o esporte, a
ginástica, a dança, os jogos, etc.

Compreende-se na contradição a importância e o avanço do anúncio de tais


propostas nos cadernos de reorientação de educação física, mas temos a consciência da
fragilidade da argumentação teórica, exposta nos documentos em forma de anúncio, da
maneira mínima e fragmentada que é apresentada, ausência de uma boa formação
continuada dos complexos fundamentos das propostas e da presença de elementos e
mecanismos ideológicos, naturalizando e ocultando as contradições do contexto da
realidade concreta. Isso nos leva à reflexão de que esses documentos direcionam-se à
compreensão de que os professores (as) da rede são meros orientadores com uma
formação inicial ruim que precisam de manuais para desenvolver, pelo menos, uma
educação mínima para pobres. Uma proposta distante do anunciado e que, no máximo,
enquadra-se em indícios aparentes de orientação crítico-reprodutivista, onde ao
professor (a) é colocada a necessidade (e por vezes a obrigação) de mudar a si e não a
realidade, sendo que as condições são fruto de fenômenos causais sem o
desenvolvimento de uma práxis efetivamente crítica e emancipatória.
Um currículo e um ensino fundamentados em manuais, que partem de
pressupostos ideológicos e rotulam os professores como profissionais incapazes de
179

selecionar os conteúdos mais adequados e elaborar suas metodologias de ensino,


necessitando de orientações, por vezes impostas, para realizar o trabalho. São formas
burocráticas de imposição do currículo sobre as escolas e professores, que deverão ser
materializadas e controladas. Para isso, pagam bônus, mexem no salário, aplicam vários
testes, ameaçam com corte das verbas, não deixam os professores respirarem, limitam
as condições de efetivação do currículo a poucos conteúdos, o que para nós, fatalmente,
leva a uma má formação dos estudantes.
Esses documentos apresentam elementos e mecanismos ideológicos, que
constituem o currículo fetiche na especificidade da educação física. São apresentadas
proposições que, em sua aparência, fundamentam-se em referenciais teórico-
metodológicos atraentes e, muitas vezes, bastante convincentes, caracterizados como
críticas, emancipatórias, humanistas e progressistas. Percebem-se que os fundamentos
teórico-metodológicos e os elementos e mecanismos, já analisados, no capítulo anterior,
estruturam a proposta curricular da rede e compõem o que denominamos de currículo
fetiche. Ainda impossibilitam a junção harmônica ou complementar dos fundamentos
expostos pelas referências, presentes nos documentos, na especificidade da educação
física.
Na contradição, a proposta das referências teórico-metodológicas da educação
física presente nos documentos tem a possibilidade de se efetivar, porém, como uma
construção contra-hegemônica pautada por outros fundamentos que vão para além dos
elementos e mecanismos presentes no currículo fetiche e se aproximam da perspectiva
ontológica de educação. A ‟proposta” curricular, aparentemente crítica, emancipatória e
humanista, apresentada pelos documentos, é muito contraditória em relação à
‟concepção” de educação e ensino que compõe a perspectiva do currículo fetiche. É
evidente que a concepção de educação e ensino, na perspectiva ontológica, que propicia
a base para a Pedagogia Histórico-Crítica38 e para a crítico-superadora não irá se
enquadrar nos moldes do currículo fetiche e nem se consolidar materialmente.
Observa-se que, dos dez professores (as) entrevistados, somente três ressaltaram
uma das propostas, a pedagogia crítico-superadora, como uma das possibilidades de
prática pedagógica justificada por relacionar-se com a questão social e cultural, mas não

38
Segundo Saviani (2012a), esta teoria pedagógica emerge para além das propostas crítico-reprodutivistas
e consolida-se, em 1979, como uma abordagem pautada pelos fundamentos materialistas, históricos e
dialéticos com função pedagógica e política para além do capital.
180

chegaram a explicitar os fundamentos teórico-metodológicos como podemos ilustrar nas


seguintes falas:
[…] na faculdade, passei por um período de transição teórica entre a
concepção tecnicista e uma mais humanista, a qual destaca a crítico-
superadora que ampliou muito as discussões, mas, se nós não investirmos na
formação continuada, você fica parado no tempo e não consegue trilhar essa
difícil proposta humanista (P5). Na faculdade e, principalmente no estágio,
tive o contato com a corrente crítico-superadora, que trata da cultura em
geral de forma mais crítica, relacionada com a sociedade, mas é muito
teórica, uma proposta quase impossível de efetivar na realidade, precisa ser
mais estudada (P6).

Essas análises nos trazem a reflexão de que para a efetivação dessas propostas
— Pedagogia Histórico-Crítico e a Crítico-Superadora — a apropriação, a assimilação e
o domínio dos fundamentos teórico-metodológicos para a construção de uma práxis,
propícia à necessidade de uma compreensão teórica de base científica e filosófica sólida
da concepção de ser humano, sociedade, educação, conhecimento e escola por parte dos
professores (as). Além disso, necessita-se, em nossa análise, da consolidação de um
projeto de formação humana, na direção da perspectiva ontológica de educação, uma
sensibilidade crítica na organização do trabalho educativo escolar, saberes científicos e
filosóficos sobre o ato de ensinar, apropriação consistente sobre os conhecimentos da
educação física a serem trabalhados presentes no currículo e princípios políticos que
caminham na luta contra-hegemônica, na defesa da socialização da riqueza material e
não material, e da democratização da sociedade para além dos ditames do capital.
De acordo com Saviani (2012a), a pedagogia histórico-crítica,
[...] procura-se fundar e objetivar historicamente a compreensão da questão
escolar, a defesa da especificidade da escola e a importância do trabalho
escolar como elemento necessário ao desenvolvimento cultural, que concorre
para o desenvolvimento humano em geral. A escola é, pois, compreendida
com base no desenvolvimento histórico da sociedade; assim compreendida,
torna-se possível a sua articulação com a superação da sociedade vigente em
direção a uma sociedade sem classes, a uma sociedade socialista. É dessa
forma que se articula a concepção política socialista com a concepção
pedagógica histórico-crítica, ambas fundadas no mesmo conceito geral de
realidade, que envolve a compreensão da realidade humana, como sendo
construída pelos próprios homens, a partir do processo de trabalho, ou seja,
da produção das condições materiais ao longo do tempo (p.88).

Para alcançar esses objetivos, emerge a necessidade de uma boa formação inicial
e continuada, que se direciona aos fundamentos teóricos, científicos e filosóficos da
perspectiva ontológica de educação e não como se observa nas propostas dos referentes
documentos. Imposições imediatas e pragmáticas, uma gama muito grande de
181

conteúdos repetitivos com uma organização fragmentada, com elementos pedagógicos


ecléticos e de um conjunto de relatos de experiências e formas de cartilhas e manuais
didático-pedagógicos compostos por competências, habilidades e expectativas de
aprendizagem de orientações metodológicas, colocadas à disposição para os professores
(as) os reproduzirem, como “fórmulas mágicas”, visando a um ensino de educação
física de qualidade.
O currículo fetiche, na especificidade do componente curricular, em análise,
impõe determinações sobre o que, como e para que ensinar, ao mesmo tempo é,
ideologicamente, provida pelos elementos da corrente pós-moderna de conhecimento,
aprendizagem e desenvolvimento. A consciência dos professores é direcionada à ideia
de que os mesmos têm liberdade de reformulações como se apresenta na fala do
professor (a) (P7): “[…] a proposta é meio engessada, mas, como tenho liberdade de
trocar de currículo, utilizo o mínimo do currículo referência e sempre renovo, eu vou
sempre renovando, eu não gosto de repetir e me pergunto sempre se o aluno vai querer
a aula. Assim, acho que os alunos serão mais autônomos e críticos, respeitando a
realidade particular de cada um”. Para o sistema do capital, a flexibilidade e a
liberdade são ações insignificantes, pois os fundamentos que norteiam a proposta
recaem e direcionam-se aos interesses de mercado e supre seus objetivos.
O espaço de liberdade, tão propagado nos documentos e pelos sujeitos desta
pesquisa, para o trato com o currículo, é, ao mesmo tempo, a negação do próprio
trabalho docente, pois, quando o professor (a) não é controlado em direção ao trabalho
com as competências e habilidades mínimas dos saberes presentes no currículo fetiche,
quem vai escolher a organização e a dinâmica são os alunos. Isso é uma forma
ideológica de manobrar, capturar e controlar a práxis dos professores (as), orientando a
formação, mas que não acontece de maneira harmônica. Essas formas não são
deterministas e absolutas, pois envolvem uma síntese de múltiplas determinações
complexas de contradições advindas das relações sociais.
A margem de liberdade e flexibilidade atribuída no discurso da proposta está
sustentada nas ideias de que os alunos constroem o próprio conhecimento, logo,
percebe-se que o professor não tem a liberdade tão exaltada. Liberdade é ensinar bem,
ter o domínio do processo e do produto do trabalho, é o próprio professor conseguir
estruturar o ensino, sem depender de livro ou apostilas, munido dos conhecimentos
182

científicos e filosóficos, construídos, historicamente, para desenvolver um bom trabalho


docente.
Essa contradição híbrida é um problema generalizado da escola pública
brasileira que se encontra, também, no componente curricular de educação física, sendo
que, de um lado, é colocada a necessidade de um currículo organizado por uma lista de
manuais de conteúdos e metodologias e, do outro, uma concepção culturalista pós-
moderna de ensino e aprendizagem.
Mas, já é possível, nas condições atuais, fazer com que os conhecimentos
científicos, artísticos e filosóficos se tornem necessários para os indivíduos,
produzindo o movimento de superação dos limites da vida cotidiana e da
individualidade centradas na satisfação das necessidades particulares. Para
isso, o trabalho educativo precisa ter como referência, do ponto de vista da
formação dos alunos, o movimento de superação da individualidade em si por
sua incorporação à individualidade para si; e precisa ter como referência, para
a definição dos conteúdos e métodos de ensino, as objetivações mais
desenvolvidas do gênero humano (DUARTE, 2013, p. 215).

Na análise dos documentos, percebe-se, nesta proposta curricular eclética e


híbrida, a confluência contraditória de várias interpretações, abordagens e orientações
didático-pedagógicas, de formação e desenvolvimento humano da educação física, as
quais são apresentadas, aparentemente, como uma única perspectiva crítica, humanista e
progressista. Essa característica, ilustramos com uma passagem da introdução do
caderno sete (2010) que trata da especificidade da educação física.
Definir um conceito único para o currículo de educação física não é tarefa
fácil, é quase impossível, pois a teoria e a prática deste componente curricular
resultam de diferentes contextos, variadas culturas e realidades e distintos
interesses dos sujeitos, ao longo da história. Pode-se ilustrar essa
problemática por meio das seguintes questões: Educação Física é esporte?
Educação física é atividade física? Educação física é educação do
movimento? Educação física é educação pelo movimento? Ou educação
física é educação sobre o movimento? (p. 13)

Concordando com Rodrigues e Soares Júnior (2014, p. 207), ‟[...] apesar de se


perceber uma tentativa de desenvolver uma proposta de Educação Física fundamentada
na tendência crítico-superadora, foi percebida uma característica híbrida da proposta
pedagógica, com influência de outras matrizes teóricas da Educação Física”. A proposta
curricular é composta num jogo de linguagens de diversos discursos e narrativas,
utilizando-se do termo ‟cultura corporal”, na abordagem da pedagogia crítico-
superadora e da proposta didático-pedagógica da pedagogia histórico-crítica como uma
183

boa estratégia ideológica de legitimação e reprodução da perspectiva do currículo


fetiche.
Em nossa compreensão, as matrizes teóricas da educação física, encontradas na
proposta curricular e presente nos documentos, são compostas, de um lado, por uma
visão neopositivista pragmática apresentada, por exemplo, em uma lista de conteúdos
determinados sobre a ‟educação corporal” de base biofisiológica para a construção de
uma vida saudável e, temos, de outro, uma concepção de currículo e ensino com
elementos da corrente culturalista pós-moderna, com narrativas voltadas à defesa do
desenvolvimento da “expressão corporal autônoma” para uma vida repleta de valores
morais e éticas.
Em síntese, o caráter crítico, emancipatório, humanista e progressista da tão
exaltada ‟educação corporal” e “expressão corporal autônoma”, presentes na proposta
curricular, somente ficam nas ideológicas boas intenções idealistas e recaem no que
estamos chamando de currículo fetiche na especificidade da educação física. Uma
perspectiva contraditória e fantasmagórica que se direciona à reprodução dos princípios
da ordem do capital.
Nesse tipo de organização curricular da educação física, podemos afirmar que,
após o professor (a) reproduzir o mínimo presente no currículo referência, na aparência,
a rede supostamente não considera ou se importa sobre qual a concepção de educação e
aprendizagem e quais os conhecimentos trabalhados. Um emaranhado de contradições
que, ao figurar no discurso da liberdade de organização curricular, pautado na exaltação
da cultura popular, torna a proposta, quando conhecida, um nada, como podemos ver na
crítica do professor (a) (P.1): “[…] na verdade, nem sei o que a rede quer da educação
física, o currículo referência propõe um grande número de conteúdos desconectados
um dos outros, eles misturam tudo, trabalham muito superficial e depois, a cada ano,
repete tudo novamente, a mesma organização”. Os poucos fundamentos críticos
presentes nos documentos estão soltos e imersos numa proposta esvaziada de sentido,
diferente e distorcida da anunciada. Assim, não adianta apresentar uma ‟proposta”
crítica se os fundamentos científicos e filosóficos da ‟concepção” vão para outra
direção.
Observa-se, nas falas dos professores (as), a preocupação da incessante busca do
‟milagre educacional” para um ensino de educação física de qualidade. Nesse sentido,
os professores (as) entrevistados, ao serem questionados sobre possíveis proposições
184

para o trabalho com o currículo e ensino da educação física, seis deles propõem a
necessidade urgente da construção de um livro didático para a educação física.
Recorrem também à mera reprodução de experiências de professores, quando eram
alunos, a cópia dos manuais, presentes nas sequências didáticas, as atividades que os
próprios alunos indicam, reprodução das meras ‟cartilhas” da prática dos esportes ou
recaem nas aulas livres, onde são disponibilizados alguns materiais, sendo que, com a
prática da orientação, os alunos praticam alguma atividade, o chamado ‟rola bola”.
Em suma, a forma invertida em que a proposta é colocada, num processo
forçado de tentar conciliar discursos e visões pedagógicas e políticas conservadoras e a
aparência de concepções críticas, recai em umas das proposições do currículo fetiche, na
especificidade da educação física. Quer conciliar o inconciliável e transmitir a imagem,
que é uma única e ótima proposta necessária para a destruição de todas as mazelas e a
crise pela qual passa a escola pública e os problemas do trato com o currículo e ensino
da educação física escolar.
A concepção anunciada na proposta desaparece, no nível da constelação dos
discursos, fazendo, ideologicamente, a proposta emergir como algo necessário para
reproduzir, fielmente, a formação de diversas identidades. Assim sendo, expressar uma
proposta crítica, emancipatória, humanista e progressista de currículo e ensino não
garante a materialização das mesmas, principalmente, da forma como é apresentada
nesses documentos, ausente de um processo de investigação coerente com a exposição,
distante das contradições da realidade real e concreta, sendo, ainda, constituído,
legitimado e propagado por variados mecanismos ideológicos, cuja conjuntura e
contradições possibilitam a construção de caminhos contra-hegemônicos.
A concepção, que norteia a proposta curricular de uma rede de ensino, tem que
ser do conhecimento pleno dos professores, sendo necessário que os docentes
conheçam, profundamente, a concepção com base numa filosofia científica e tenham
consciência do processo e do produto da organização do ensino e aprendizagem.
Partimos da pressuposição de que o mais importante e que sustenta um bom currículo e
ensino de educação física deve ter, como fundamentos, a concepção ontológica de
educação.
No caminho árduo e complexo da luta contra-hegemônica, temos que começar a
propagar, cientificamente, que o currículo e ensino da educação física escolar não
podem ser constituídos por receitas e manuais de sequências didáticas servindo para
185

todos os eixos temáticos e conteúdos, pautados na lógica formal positivista de


pensamento e, contraditoriamente, ligados à visão pós-moderna.
Refletir e objetivar as questões do currículo e ensino da educação física é um
trabalho muito sério e complexo, que não pode ser realizado do modo que os
documentos colocam para os professores (as). Cadernos, em forma de manuais,
lançados para critérios utilitaristas e burocráticos, não resolvem a questão se não
construirmos, verdadeiramente, um currículo e ensino pautados na direção da elevação
científica e filosófica do gênero e da individualidade humana, pautados em fundamentos
de base ontológica. Os tais vão para além dos interesses ideológicos do sistema do
capital articulados a uma boa e contínua formação dos professores (as).
Mesmo que a rede propicie, aos professores, cadernos com ‟palavras bonitinhas”
ou até a mera apresentação simplista, mínima e supérflua de uma verdadeira proposta
crítica, na discussão sobre o currículo e ensino, o que pode propiciar, de
verdadeiramente positivo, é a identificação de contradições que nos levem a novos
caminhos para além do pragmatismo e do relativismo.
Tendo em vista a luta pela socialização da riqueza material e simbólica que o
ser humano produziu e acumulou historicamente, cabe-nos, como
intelectuais, por um lado, realizar uma crítica ácida à escola e aos seus
mecanismos de privatização do conhecimento e de reprodução da lógica
social vigente; por outro, potencializar as fissuras e contradições que
permeiam essa instituição e a tornam também um espaço de conflito
(DELLA FONTE, 2011, p. 36).

As contradições são muito grandes e, para compreendê-las e superá-las, é


necessária a construção de uma síntese de múltiplas determinações complexas como as
condições de trabalho, a prática pedagógica, a formação de professores, a seleção e
organização de conteúdos, as perspectivas da disciplina, da escola e de escolhas
pedagógicas e políticas dos professores munidos de uma concepção de sociedade,
educação e formação.
Segundo Rodrigues e Soares Júnior (2014, p. 209), ‟[...] outros estudos precisam
ser realizados, procurando analisar, de forma empírica, os impactos dessa política
curricular na realidade escolar concreta do estado de Goiás”. Logo, enquanto não
formos à raiz dos problemas e compreendermos, criticamente, as contradições da
realidade concreta, não estaremos conscientes da concepção de educação e do trabalho
educativo escolar necessários à compreensão da totalidade social, uma vez que a
186

proposta da rede, na especificidade da educação física, está desenvolvendo um currículo


na perspectiva do currículo fetiche.

3.2.1. A caracterização dos pressupostos do currículo fetiche no ensino da


educação física

A análise que empreendemos do currículo fetiche, na especificidade da educação


física, com base nos dados das entrevistas e documentos analisados, parte do
pressuposto de que a educação física é um componente curricular que se direciona, com
preponderância, como uma atividade compensatória, ocupando tempos e espaços
curriculares e escolares diferenciados em relação às outras disciplinas. O que
encontramos nas escolas é a concepção de educação física como suporte para
desenvolvimento de capacidades cognitivas para outros componentes curriculares e
valores morais éticos para convívio em sociedade, por meio de atividades esvaziadas de
sentido para professores e alunos, ou fundamentando-se em verdadeiros “slogans”,
como o slogan do desenvolvimento da saúde. Dentre as capacidades que a educação
física ajudaria a desenvolver, aparecem, nos dados, a memória, atenção, raciocínio,
cálculo, imaginação, caráter empreendedor, criatividade, companheirismo, espírito
competitivo, respeito às regras e normas, diálogo, disciplina, autonomia, solidariedade,
amizade, cooperação, honestidade.
Pode-se observar que o currículo fetiche de educação física tem como uma das
características a ausência de proposições de saberes escolares específicos que
possibilitem um maior desenvolvimento das funções psíquicas superiores, por meio da
apropriação dos conteúdos. Pois, além da presença de um conjunto muito grande de
propostas de conteúdos sem um direcionamento claro e objetivo, a maioria dos sujeitos
que entrevistamos colocam os momentos causais como determinantes na construção dos
saberes da educação física a serem trabalhados na escola, muitas vezes, restritos aos
conhecimentos que os alunos acham úteis, prazerosos ou que já conhecem e sobre os
quais querem mais informações.
Outro ponto bastante ressaltado sobre o sentido do trato com o currículo recai no
discurso idealista de que a educação física é também uma “disciplina do
entretenimento”, com o objetivo de ajudar no descanso ou desgaste físico dos alunos
para o desenvolvimento de outros componentes curriculares. Um momento de lazer,
187

como sinônimo de saúde e atividade física, tendo em vista uma melhor bem-estar para
enfrentar a luta diária dos estudos e da vida futura. ‟Vejo assim, se a escola não tivesse
a educação física para desestressar e fazer algo de diferente, acho que a escola estava
perdida” (P2). Dos dez professores (as) de educação física, oito professores direcionam
a organização do trabalho docente como sendo um momento da teoria (sala de aula) e
outro da prática (quadra), mas, ao mesmo tempo, todos ressaltam a importância dos dois
momentos.
A quadra, como ambiente da escola, é compreendida como o local propício para
o desenvolvimento de atividades voltadas a ‟jogos” e local somente da prática.
Observamos que a aula prática é considerada, por alguns professores, como um
momento desprovido de conhecimentos, no qual estão ausentes ciência e filosofia. Um
local onde, na maioria das vezes, os alunos controlam as atividades ali desenvolvidas. A
análise dos relatos nos permite captar também que há predominância dos meninos, neste
momento em que os alunos assumem o controle da aula. ‟Olha, nas aulas práticas, é
meio complicado, tendo que colocar todos na quadra, mas as meninas quase não fazem,
nesta fase de adolescência, querem preocupar com o cabelo, unha e celular” (P1). Isto
nos mostra um direcionamento do trabalho educativo que leva ao relativismo
caracterizado pela falta de orientação e compreensão do que e como ensinar e, do objeto
nuclear de conhecimento da educação física.
Na caracterização geral do currículo fetiche, na especificidade da educação
física, muitos dizem que melhorou com a proposta de reorientação curricular, pois antes
não tinham nenhum direcionamento sobre o que ensinar na educação física. ‟Antes era
somente fazer exercício, era jogar bola, agora tem outras áreas de jogos, lutas, bem
estar, saúde, agora tá mais amplo, já tem algo mais direcionado, pois antes não tinha”.
(P.3). Mas, relatam: ‟Sobre o currículo de educação física, ainda está muito vago e
incompleto. De forma geral, não vejo que o aluno não tem, hoje os alunos ficam na
sala, passa regras e textos para os alunos copiarem ou coloca jogos de xadrez para os
meninos jogarem, nem ir para a quadra nem vão mais. Antes era atividade física, hoje
nem isto. Nossos professores ainda estão muito perdidos sobre o currículo de educação
física” (C8). ‟Hoje, a maioria dos professores cruzam os braços e deixam a bola e aula
rolarem” (P.2). Isto nos mostra a importância de repensarmos a formação inicial e
continuada de professores (as) e enfatizar o par dialético entre conteúdo/método como
momento preponderante na organização do trabalho educativo escolar.
188

São colocadas como conteúdo diferenciado as aulas ditas teóricas, como


podemos ilustrar com a fala do sujeito (P1): ‟Também dou algumas aulas teóricas, pois
educação física não é somente prática, quando você dá, pelo menos, uma aula na sala é
bom e diferente”. Esta dicotomia entre teoria e prática neste componente curricular
torna-se um ponto importante na reflexão sobre o currículo e ensino, pois, fragmenta e
mecaniza o conhecimento, distancia da função social da escola, enfatiza o pragmatismo
e o relativismo. De acordo com os relatos, o que basta é, pelo menos, uma aula dita
teórica para cumprir com as obrigações burocráticas, principalmente com notas e
planejamento, ações que nos leva a afirmar a ênfase na prática pela prática. Na visão
ontológica de educação, a teoria e a prática são pares dialéticos e devem ser
desenvolvidas como componentes inerentes a práxis do professor (a), em uma visão que
toda prática tem teorização e a teoria para manifestar-se na realidade necessita da
prática.
A educação física é considerada como uma atividade que pode contribuir com a
formação dos alunos, porém, para a maioria dos professores (as) é justificado através do
desenvolvimento dos valores do cotidiano. Os mais ressaltados destacam-se como: tirar
da rua, pelo incentivo ao esporte, qualidade de vida pela atividade física, evitar as
drogas, interação social, adaptar as condições do mercado de trabalho, trabalhar o corpo
para melhor desenvolvimento no trabalho, desenvolver a aptidão física para resistir a
luta diária, queima de calorias.
Alguns dos pressupostos presentes nos documentos se resumem na
supervalorização do ‟princípio da inclusão”, respeito pela diferença entre gênero, raça e
a diversidade com valorização das singularidades dos sujeitos; princípio da pluralidade
cultural e supervalorização da cultura popular — a meta é incluir todos no
desenvolvimento da educação corporal e pela expressão corporal autônoma, através do
trabalho com os saberes da cultura corporal, construída na comunidade com auto
referência o próprio cotidiano do aluno. A escola e a prática da educação física deve ser
o local de reconhecimento da singularidade, da diversidade realizada pelo
desenvolvimento da expressão corporal autônoma (GOIÁS, 2009c). Na seleção dos
conteúdos, presentes no currículo, não são considerados a ênfase nos saberes
‟clássicos”, mas os ‟privilegiados” de acordo com os conhecimentos mais próximos da
região e da comunidade na qual está localizada a escola, os saberes populares do
189

cotidiano dos alunos ligados à cultura corporal e aos que servem como suporte para o
mercado de trabalho.
Nos documentos que tratam da especificidade da educação física, os discursos e
narrativas partem da aparência como se fossem suposições críticas. Às vezes os
discursos se aproximam de um trato com o ensino verdadeiramente crítico, porém,
recaem na contradição entre a aparência da proposta e a essência da concepção.
O ensino da Educação Física pode ser responsável pela formação humana
dos estudantes, no sentido da ampliação de suas capacidades e
potencialidades corporais, intelectuais, comunicativas, afetivas, artísticas,
técnicas, éticas, sociais e políticas. Cabe aos professores ampliarem as
referências de pensamento dos estudantes, elaborarem uma leitura de mundo
sobre a realidade social, a partir dos elementos da cultura corporal,
possibilitarem aos estudantes, gradativamente, superar o saber do senso
comum sobre o esporte, jogo, dança, ginástica, lutas, em direção à
construção de um pensamento crítico, explicativo sobre a constituição dessas
diferentes manifestações corporais na história da humanidade, como também
em nosso cotidiano (GOIÁS, 2009e, p. 105).

Para o trabalho com o currículo de educação física, por meio do ensino, é


propagado que cada sala é uma realidade diferente e passa por várias mudanças, todos
os momentos, cujos conteúdos devem ser articulados ao trabalho, com o mínimo
estabelecido pelo currículo referência, e selecionados, organizados, distribuídos e
avaliados, a partir desses pressupostos, onde a troca de experiência é colocada como
fonte de verdade. Para a proposta, ressalta-se muito a construção de aulas abertas,
flexíveis e criativas ligadas à cultura corporal regional, porém seguindo a determinação
do currículo referência. Visa-se a aprimorar as habilidades corporais, as capacidades
físicas e técnicas, nas diversas realidades, e também contribuir com a formação da
consciência acerca do corpo, refletir sobre as técnicas e valores do cotidiano, nele
inscritos pelo desenvolvimento da expressão corporal autônoma (GOIÁS, 2009c).
O professor é considerado mero organizador e facilitador da aprendizagem, com
o papel fundamental de dar apoio a ação curricular e o processo de ensino e
aprendizagem, com base no trabalho e com os conhecimentos das práticas corporais do
cotidiano dos alunos. As práticas pedagógicas devem superar o “fazer por fazer”, o
“jogar por jogar”, o “exercitar por exercitar”, o “competir por competir”, rompendo,
assim, com as posturas enraizadas de atuar como meros instrutores de exercícios
físicos, como técnicos esportivos que selecionam, organizam e comandam jogos
escolares, ou como simples animadores de jogos e brincadeiras dos alunos, nos dias de
190

planejamento da escola, mas como um apoiador que facilita a aprendizagem. (GOIAS,


2009).
São muito destacados, no currículo referência, na especificidade da educação
física, os termos experimentar e vivenciar para as ditas ‟aulas práticas” e identificar e
compreender na lógica formal de pensamento para as ditas ‟aulas teóricas”. Recaem na
visão singular e dicotômica de fazer algo para depois transcrever. Pressupostos que
direcionam o trato com o currículo para um ensino que separa a teoria da prática, o
trabalho manual do intelectual e isola o saber como algo produzido na
intersubjetividade. E, quando o conteúdo proposto é um pouco ampliado, o objeto de
conhecimento é visto nele mesmo, naturalizado, sem nexo com a totalidade social e suas
contradições, principalmente sobre os termos saúde, valores éticos morais e movimento
corporal, que norteiam todos os eixos temáticos.
Questionados sobre a possibilidade de novas formações, somente três
professores (as) mostraram interesse na área da educação escolar como tema para
continuar os estudos, mas sempre colocam a questão da importância da formação
continuada. Segundo o sujeito (P1): ‟Se tiver as condições, estou aberta à formação
voltada à escola, mas o difícil é isto, passamos por muitas dificuldades dentro e fora da
escola, e, no trabalho dentro da escola, principalmente, nós professores de educação
física. Somos muito mais rejeitados por todos os lados”. Isso reforça os indícios de que
o contexto da educação física escolar é mais complexo que outros componentes
curriculares. Revela, também, a descrença do professor no exercício do seu trabalho, o
próprio trabalho torna-se algo secundário para a vida dos trabalhadores, esfacelando a
consciência de que somos seres sociais e históricos e que as mudanças são possíveis. Os
sujeitos levantam a esperança idealista de que outras áreas de atuação da educação física
poderá trazer novas perspectivas e condições de trabalho.
O trabalho com o currículo fetiche possibilita determinadas afirmações como a
não necessidade de conhecimentos científicos e filosóficos da formação inicial dos
professores (as) e da formação continuada, como exemplo a fala do sujeito (P3) “[…]
não sinto falta nenhuma da necessidade de ter realizado uma graduação em educação
física para trabalhar o currículo e ensino da área de atuação e, muito menos, uma
formação continuada, somente se fosse para trabalhar algumas coisas que os cadernos
traz, mas para o currículo referência está passado de bom ”. Alguns sujeitos relatam
que os conhecimentos apropriados advêm do cotidiano com os alunos, um trabalho
191

docente que, infelizmente, satisfaz o que a rede, a escola, os alunos e pais esperam da
educação física escolar. Isso nos mostra, superficialmente, uma tendência do atual
cenário precário da formação de professores e da própria prática dos docentes, no
componente educação física, que necessitam de propostas que vão além das
perspectivas relativistas.
Observa-se a presença do mecanismo ideológico que, num currículo eclético
como a proposta do currículo fetiche, respeitando o mínimo proposto pela rede, o ensino
de qualquer coisa possui um grande valor. Possibilita a legitimação e propagação de
ideias da ineficácia da universidade para ser professor (a) de educação física escolar, a
reprodução de conhecimento com base no cotidiano e na experiência bem como a
reprodução de práticas como fonte para a efetivação de uma boa aula de educação
física. Os conhecimentos da faculdade, dicotomizados em teoria e prática, voltados ao
trabalho com o currículo e ensino da educação física escolar, são colocados como
superados, em desuso, fora da realidade. ‟A questão da teoria e prática é um problema,
pois quando estamos na faculdade é somente o conhecimento técnico e teoria e, quando
chega na realidade que está atuando, na prática é outra coisa, vai muito além da
teoria. Vai mais do perfil de cada professor, do dom, das várias realidades regionais e
das identidades dos alunos” (P3). Alguns professores percebem a fragilidade dos
próprios cursos, mas, ao mesmo tempo, colocam a culpa em si, dizendo que poderiam
ter aproveitado mais o curso e ter construído uma formação diferente para superar as
dificuldades que enfrentam, ignorando as contradições da totalidade social.
Os professores (as), com base na proposta do currículo da rede, rotulam
dicotomias que negam a teoria e os saberes da graduação. Colocam a teoria como
sinônimo de faculdade e uma das saídas relatadas para o enfrentamento das dificuldades
com o trabalho da disciplina educação física dentro das escolas é a experiência. Muitos
sujeitos das entrevistas ressaltaram, incluindo os coordenadores (as), que é normal, na
faculdade, não se propiciar de uma boa formação, pois a função delimitada a esta
instituição é somente propiciar as pistas para que o sujeito ‟autônomo” venha a buscar
os conhecimentos. ‟É no dia dia que você vai aperfeiçoando seu conhecimento, temos
que buscar novos conhecimentos juntamente com os alunos, vamos vendo o que eles
mais gostam de aprender” (P2). Os professores (as) recaem no poderoso discurso
violento e ideológico de que é somente na prática e na experiência em sala que os
192

saberes do professor (a), no trato com o currículo, vão ampliar e se complementar, já


que a maioria relata serem vistos como meros ‟orientadores físicos”.
Os pressupostos do currículo fetiche possibilitam discursos ideológicos; destaca-
se a ineficácia e a discordância dos conhecimentos da faculdade em relação aos que são
necessários para o trabalho com o currículo, principalmente, em razão das vontades
contrárias dos alunos em relação do que é ensinado na faculdade. ‟A faculdade você
aprende a teoria né? e aqui, quando você começa na prática, você vê que a coisa é
diferente, nestes 12 anos, eu pude corrigir muitas coisas, ainda erro muito, mas sempre
a gente vai corrigindo com a própria prática, tentando melhorar as minhas aulas,
aprendi uma coisa aqui, outra ali, e aprendemos muito com os alunos, quando eles
propõem, ficamos sabendo o que eles gostam. Então, minha atuação é bem diferente
desde quando comecei. Melhoro como professora, principalmente o ano que pego
alunos que propõe muita coisa, trazendo novos conhecimentos” (P1). Ao mesmo
tempo, os professores (as) ressaltam a falta de conhecimento teórico que condiz com a
realidade e sempre reafirmam que o que foi superando este déficit foi a própria
experiência pragmática, utilitarista e prazerosa.
Quando questionados sobre os problemas além dessa relação entre teoria e
prática, que envolve a formação inicial e a escola, ressaltam a falta de mais horas de
estágio supervisionado como o principal problema de suas formações, o que influencia
no trabalho com o currículo e ensino de educação física. Pautam-se sobre a ideológica
justificativa de que mais horas de encontro com a realidade seria melhor, pois, assim,
conheceriam mais sobre quais são os conhecimentos dos alunos sobre as práticas
corporais e como gostam de ter as aulas de acordo com a particularidade de cada sujeito.
Ainda na análise da caracterização dos pressupostos do currículo fetiche no
ensino da educação física, a maioria dos sujeitos, ao realizarem algumas críticas sobre o
curso de formação de professores, com base na análise da proposta do currículo da rede,
recaem em várias contradições. Ao mesmo tempo em que colocam os conhecimentos
dos alunos sobre a educação corporal e o desenvolvimento das expressões corporais
autônomas como pontos de partida e chegada para o trato com o currículo,
contraditoriamente, ressaltam a crítica sobre professores da graduação que deixam por
conta dos alunos as aulas, por exemplo, fazendo seminários, onde a dúvida fica por
conta do outro colega, sem intervenção, mediação e transmissão do conteúdo pelo
professor (a) por meio do ensino.
193

As intervenções pedagógicas do trabalho docente deverão ocorrer,


principalmente, em casos de conflitos entre os alunos, no levantamento da proposta da
aula ou na reflexão sobre valores e ética, durante a aula em que estão intrínsecos,
principalmente na prática de jogos. Com essa proposta curricular, determinados
objetivos, insignificantes para a formação e o desenvolvimento dos alunos no sentido da
humanização são ressaltados, por exemplo, quando os professores (as), ao serem
questionados sobre a função da educação física, consideram o controlar o
“comportamento indisciplinado dos estudantes” como um dos objetivos no trato com o
currículo. A aula de educação física é colocada como uma atividade que pode levar o
aluno ao autocontrole e a um comportamento mais disciplinado perante as regras da
escola e da sociedade. A exclusão das aulas práticas de educação física, daqueles alunos
ditos indisciplinados em outras disciplinas, é também entendida como uma forma de
desenvolver neles o autocontrole, através da punição.
Os próprios professores, no trato com o currículo fetiche, ora se veem como
orientadores físicos, ora como educadores físicos, sendo que a melhor aula, na
especificidade da educação física, é colocada quando os mesmos conseguem colocar
todos para participarem das ditas ‟aulas práticas”. O bom professor, na especificidade
da educação física, além das características supracitadas, é descrito pelos sujeitos das
entrevistas como aquele docente que possui uma ótima relação professor-aluno, sendo
que uma das preocupações principais passa a ser as relações interpessoais, excluindo
qualquer tipo de abordagem científica. De acordo com o sujeito P2:
‟A educação física influencia muito no andamento da escola e da formação;
o aluno precisa de um momento de diversão com disciplina, não é de
bagunça que estou falando. Ele está ali com as matérias pedagógicas:
matemática, português, mas os alunos também querem um pouquinho de
diversão, para não ficar aquela coisa massante a semana inteira, isto
atrapalha. Se tiver a educação física, ele trabalha nas outras disciplinas
melhor, pois ele precisa de lazer. Claro que temos que passar o conteúdo,
mas também a prática”.

Um ponto forte no trato com o currículo e o ensino da educação física é a


prevalência de saberes espontâneos, do senso comum, do achismo e da inexistência de
um objeto nuclear de conhecimento claro e sólido. Do que o professor gosta,
principalmente, ligado a conhecimentos anatômicos e fisiológicos, sobre o corpo e o
esporte, é reproduzido em suas aulas; as outras propostas passam a ser direcionadas e
194

resumidas, principalmente, pelas aulas de recreação ou textos produzidos, em sala,


sobre a temática em moda, ‟a saúde”.
Quando questionados sobre o que ensinam, destacaram esportes lúdicos e jogos
pré-desportivos, musculação na adolescência, alimentação, noções de esporte,
suplementos, anabolizantes, socialização. Conteúdos ditos modernos, ligados
principalmente à saúde, cuidar do corpo, formação corporal, atividades recreativas com
algumas modalidades esportivas, como o futebol (futebol de salão) para os meninos e
voleibol para as meninas, primeiros socorros, princípios de cidadania, saber respeitar,
cooperação.
Aos questionados sobre o que ensinam na educação física, os professores (as)
ressaltam os conteúdos de interesses deles e dos alunos. ‟Os conteúdos que tentamos
trabalhar o que está no cotidiano do aluno, é a questão da obesidade, sobre as drogas,
o autoconhecimento, a postura do aluno, agente trabalha sobre a questão do
alongamento, os esportes coletivos mais famosos, a questão da solidariedade,
companheirismo, trabalho em equipe, capacidades físicas e ai vai lapidando. O que a
gente vê o que é mais importante, trabalhamos mais voltados para o Enem. Caiu uma
questão sobre voleibol no ENEM, estas coisas mais específicas, mais utilitaristas e ai
têm mais interesse. O aluno trabalha a base de troca, ele tem que saber o que isto vai
ser importante para a vida dele imediata, senão ele não quer. Tem que ser útil para ele,
senão eles tá nem ai. A importância dos conteúdos é a saúde, A educação física é uma
área da saúde” (P9).
Na especificidade da educação física, que envolve o trabalho com o currículo e
ensino, os principais problemas foram a falta de material e estrutura, seguir o currículo
da rede por acharem muito complicado, falta de coerência e clareza da proposta
curricular da rede, dificuldade de transmitir os conhecimentos para os alunos, número
de aulas, impossibilidade de aprofundar os conteúdos, em razão da grande quantidade
de expectativas de aprendizagens a serem trabalhadas. Dentre outras dificuldades,
ressaltamos as próprias falas dos professores. Trabalho na rede há 12 anos, hoje a
educação física não tem uma grade curricular com uma proposta clara, tem somente a
organização de conteúdos a serem cumpridos. (P1). ‟Teve uma escola que fui dar aula
que o professor chegava, nem entrava em sala, levava os alunos para a quadra, as
meninas chegavam e sentavam na arquibancada, mexendo no celular e os meninos
jogando bola, todas as aulas, imagina!!” (P6)
195

Ainda sobre os problemas que implicam no currículo e ensino da educação


física, a maioria dos professores (as) reclamaram sobre a imposição, quase determinista,
de projetos que não estão diretamente relacionados à área de atuação. As aulas da
educação física podem ser substituídas ou os alunos devem sair somente nas aulas desse
componente curricular. ‟Um desafio da educação física que temos é que não é um nem
dois alunos no processo que não apropriou de nada, basicamente, dos conhecimentos
da educação física, chega no terceiro ano do ensino médio e não sabe nada” (P6).
‟Tem alunos que passam anos e não sabem o que estudam a educação física, existe
uma diversidade muito grande e isto é muito grave hoje na educação física. É muito
fácil levar os alunos para a quadra e deixar eles jogarem e pensar que isto vai fazer
formação” (P8)
Outras dificuldades relatadas, que implicam no currículo e ensino, é quebrar o
paradigma do futebol e o determinismo de algumas escolas sobre quantas aulas práticas
e quantas teóricas o professor (a) deve trabalhar. ‟Nós temos um problema, o famoso
rola bola, é uma questão de negociação, vocês fazem isto que em três aulas eu te dou
uma aula livre” (P6). Outro problema ressaltado ocorre no ensino médio com os
chamados tópicos que separam uma aula de educação física e outra denominada de
tópico, como se fossem duas disciplinas distintas. Ressaltam-se a repetição dos
conteúdos e eixos temáticos, muito amplos, tudo muito mecanizado.
Diante dessas características e contradições presentes nos dados da realidade,
que levantamos no processo desta pesquisa, percebe-se uma forma ideológica da
aparência que está se tornando hegemônica nas discussões e na materialização do
currículo e do ensino, distanciando-se dos fundamentos da perspectiva ontológica de
educação. Desse modo, no próximo item, com base nos pressupostos identificados nos
dados das entrevistas, analisaremos o movimento renovador da dinâmica curricular da
educação física, que envolve duas abordagens ideológicas, a da aparência e a da
essência.

3.3. O movimento renovador da dinâmica curricular da educação física: da


aparência à essência

No Brasil da década de 1980, após a abertura ideopolítica, com o fim da ditadura


e o paulatino reestabelecimento da democracia, a ampliação da base sindical e a luta
196

pelo arrocho salarial e por uma educação pública de qualidade, atrelado à expansão da
globalização do capital, emergiram e expandiram-se novas concepções pedagógicas e
ideias críticas sobre a organização, direcionamento da dinâmica curricular e do trabalho
educativo escolar (SAVIANI, 2012).
Novas propostas ditas críticas, fundamentadas em concepções ‟humanistas e
progressistas” de educação e sociedade, em contraposição às teorias conservadoras e
reprodutivistas, algumas se contrapondo aos ditames do capital, começaram a ser
difundidas, nas discussões sobre a educação escolar, e também no componente
curricular educação física (COLETIVO DE AUTORES, 2009). Essa conjuntura de
produções teóricas implicaram novas construções e reformulações, principalmente em
questões epistemológicas, sobre o papel, a função e os objetivos do currículo da
educação física escolar e reflexões referente ao ensino39.
Nesse período, as discussões foram ampliadas pela necessidade de
transformação das contradições do próprio contexto socioeconômico, das retrógradas
teorias tradicionais conservadoras e a procura do estatuto científico e filosófico para a
área educacional. Essas discussões contribuíram para a legitimação da necessidade da
abertura de novos cursos de pós-graduação, em educação e educação física, e a
consequente proliferação de pesquisas acadêmicas voltadas para a compreensão das
relações entre educação, sociedade e educação física. A abertura científica, filosófica e
política promoveram e impulsionaram a construção de conhecimentos para um
movimento renovador da educação física escolar, com maior sensibilidade crítica para
além das dinâmicas curriculares até então hegemônicas, voltadas à aptidão física e às
concepções higienista, militarista e esportivista.
De acordo com Coletivo de Autores (2009, p. 55), ‟[…] os movimentos
renovadores da educação física se caracterizam pela presença de princípios, em torno do
ser humano, sua identidade e valor, tendo, como fundamento, os limites e interesses do
homem, surgindo como crítica a determinadas correntes”.
Esse movimento buscou legitimar a educação física escolar com uma nova visão
ligada a teorias críticas da educação, que se aproximam da discussão com as relações
sociais, culturais, valores humanistas, o respeito às diferentes identidades, a diversidade

39
Até os anos de 1980, a Educação Física brasileira constitui-se o currículo e ensino basicamente pela
prática de atividades físicas, fundadas em métodos ginástico e desportivo que visam à manutenção da
saúde – entendida somente em seus aspectos biofisiológicos – ou a educação psicomotora, com uma
concepção pedagógica de cunho tecnicista (ORTIGARA, 2002).
197

e a democratização do conhecimento. Trata-se de tendências teóricas do currículo


direcionadas à contraposição da ideia de aptidão física, da psicologia
comportamentalista, do cientificismo presente na corrente da psicomotricidade, do
reducionismo biologicista, em síntese, vertentes que buscavam realizar uma discussão
crítica sobre educação, capital e trabalho (CASTELLANI, 2002).
Foram construídas, na área da educação física escolar, a partir deste período,
propostas rotuladas como críticas, emancipatórias, humanistas ou progressistas. Esse
processo ficou marcado principalmente após a publicação, em 1992, da primeira edição
da obra chamada ‟Coletivo de Autores”, na qual se consolida uma perspectiva
pedagógica, fruto de um trabalho de vários professores (as), de várias universidades do
Brasil, com a proposta da cultura corporal como temática de estudo, organizada a partir
de uma abordagem da teoria pedagógica denominada de “crítico-superadora”.
Os temas tratados, neste livro, levam em consideração, portanto, as condições
reais do exercício profissional, a partir das quais se pretende que cumpram a
tarefa de auxiliar o professor no aprofundamento dos conhecimentos de
educação física como área de estudo e campo de trabalho. Este livro expõe e
discute questões teórico-metodológicas da educação física, tomando-a como
matéria escolar que trata, pedagogicamente, temas da cultura corporal, ou
seja, os jogos, a ginástica, as lutas, as acrobacias, a mímica, o esporte e
outros. Este é o conhecimento que constitui o conteúdo da Educação Física
(COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 19-20).

A concepção crítico-superadora fundamenta-se, preponderantemente, no


materialismo histórico dialético em sua compreensão sobre a sociedade, o homem, a
educação e o conhecimento. Trata-se, portanto, de uma concepção que constitui uma
orientação curricular completamente oposta ao direcionamento conservador, mas busca
uma reflexão curricular e pedagógica ampliada e forma dialética sobre a realidade social
e natural. Porém, cabe ressaltar, por ser uma construção por autores de bases teórico-
epistemológicas diferentes, sendo que se percebe, também, a presença da perspectiva
humanista de Paulo Freire, principalmente, ao abordar a questão da organização do
trabalho pedagógico.
Esse período histórico, marcado por novos pensamentos teóricos, foi
denominado por vários autores da área acadêmica como ‟movimento de renovação” da
educação física escolar. Este termo foi utilizado, principalmente, para legitimar novas
propostas teórico-metodológicas para o trabalho com o currículo e ensino voltados à
aproximação com a discussão da cultura, de problemas vinculados às relações sociais e
distanciamento da visão puramente biológica do ser humano e do paradigma da aptidão
198

física (BRACHT, 1997). Foram construídas novas tendências, correntes, diferentes


análises epistemológicas e reformulações da visão sobre o processo histórico das ditas
abordagens pedagógicas da educação física escolar que orientavam a dinâmica do
currículo e ensino.
No contexto das diferentes e interessadas análises sobre o processo histórico da
educação física, que possibilitam a base para atuais reflexões sobre o movimento
renovador, emergiram diversas compreensões, interpretações e direcionamentos sobre
esse movimento. ‟Nessa época, desponta uma geração que começa a denunciar o
estabelecido, assumindo posições numa perspectiva de crítica social” (MARINHO,
2012, p. 30). Essas novas caracterizações, tanto sobre o contexto histórico quanto do
próprio ‟movimento de renovação”, possibilitaram a base para a criação de novas e
diferentes visões e tendências de currículo e ensino para a educação física rotuladas
como críticas.
As análises das concepções de realidade, conhecimento, desenvolvimento
humano, ensino, escola, educação e trabalho educativo escolar que pautam a dinâmica
do currículo de educação física propiciam a base do ‟movimento de renovação”,
passando a ser, em nossa concepção, consolidadas e direcionadas em duas direções
ideológicas distintas e contraditórias, ambas consideradas como críticas, humanistas e
progressistas.
A primeira abordagem denominamos como a ideologia da essência, construída
numa proposição emancipatória do sistema do capital, direcionando-se por um
complexo categorial de educação para uma nova ordem social, voltada ao processo de
humanização, na direção dos fundamentos da perspectiva ontológica de educação.
Uma concepção histórico-dialética que trabalha com as categorias de
totalidade, contradição e historicidade, pode superar a identificação
positivista entre objetividade e neutralidade, substituindo-a pela noção de que
a universalidade do conhecimento constitui-se em produto histórico da
totalidade da práxis social humana (DUARTE, 2012a, p. 53).

Já a outra abordagem, diretamente relacionado a análise do currículo fetiche,


definimos como a ideologia da aparência que recai nas acepções relativistas,
reprodutivistas, conservadoras, utilitaristas, imediatas, pragmáticas, burocráticas e
espontâneas, que tendem a levar à ‟destruição” e à ‟miséria da razão, do currículo e do
ensino”, naturalização e fragmentação da totalidade social e à reprodução da alienação.
Abordagem esta, com base nos dados até aqui analisados, como a proposição que
199

infelizmente possui maior preponderância na composição da perspectiva do currículo


fetiche na especificidade da educação física.
As formas ideológicas da aparência são compostas principalmente pela estrutura
e dinâmica das correntes ‟estruturalista-funcional positivista” e da corrente ‟culturalista
pós-moderna”. Tratam o processo histórico da educação física, quando considerado, e o
‟movimento de renovação” como fatos isolados, a-políticos, neutros, mecânicos,
naturalistas independentes do contexto socioeconômico. As propostas e abordagens
pedagógicas da educação física, que compõem a base curricular, são vistas nelas
mesmas independentes da totalidade social e da historicidade, questões que propiciaram
a construção do ‟movimento renovador” e a preocupação de construção de novas
abordagens epistemológicas. De acordo com Mello (2009):
A preocupação exposta acontece no sentido daquele anunciado por Bracht,
ou seja, preocupação em reformular ou abandonar as “velhas”
abordagens positivistas e marxistas para se posicionarem criticamente ou
assumidamente nas novas perspectivas pós-modernas, muito mais
apropriadas à “realidade atual”. Dentre as temáticas, as questões sobre o
“corpo” também possuem grande relevo. Não por acaso, nessas perspectivas
não só o indivíduo é tomado como isolado, diferente, único, como também é
subjetividade sensível, na qual é necessário abandonar a “repressora”
racionalidade e fazer com que o homem se reencontre na sensibilidade
corporal (p. 261).

Os saberes da educação física são descritos, na lógica formal do pensamento e


são considerados produto de meros fatos de particularidades específicas, de construções
culturais subjetivas, isoladas e naturais, ligadas às ciências biológicas. ‟Uma vez que,
segundo sua fantasia, as relações entre os homens, toda a sua atividade, seus grilhões e
barreiras são produtos de sua consciência, consequentemente, propõem aos homens o
seu postulado moral de trocar sua consciência atual pela consciência crítica e egoísta”
(MARX e ENGELS, 2007, p. 84).
As explicações ideológicas conservadoras e consensuais da aparência sobre o
processo histórico da educação física, processo este que contribuiu para a construção da
necessidade do ‟movimento renovador”, é explicado como uma linha do tempo
composta por meros momentos fragmentados e evolucionistas, onde uma concepção,
dita mais evoluída, supera a outra mais frágil, até chegar a um suposto ápice e fim da
história. Utiliza-se de jogos de linguagem, interpretações conservadoras liberais e
propostas culturalistas como ferramentas que, supostamente, propiciarão a solução de
todos os problemas singulares relacionados ao currículo e ensino da educação física,
200

sem considerar os verdadeiros e atuais paradigmas, categorias e determinações


econômicas, políticas e sociais que implicam a dinâmica curricular.
Os grupos representantes do pensamento conservador, contudo, continuam
atuantes, inconformados e desacostumados com o diálogo, a sua principal
estratégia é uma tentativa de desideologização do debate em torno da
educação física. Ao fazê-lo, ideologizam-no mais ainda. Esta postura
conservadora, norteada pela ideologia liberal, ou neoliberal, veicula uma
visão de mundo apoiada numa ótica de consenso. É a tentativa de harmonizar
o inarmonizável, mascarando a luta de classes” (MARINHO, 2012, p.31).

Na abordagem ideológica da aparência, podemos situar muitas perspectivas,


tendências pedagógicas e dinâmicas curriculares da educação física escolar, que
emergiram e se consolidaram a partir da década de 1980, que ressaltam como questões
preponderantes para a compreensão do currículo e ensino, ‟o cultural e a diversidade”,
nas quais destacamos aquelas relacionadas à corrente teórica da pós-modernidade.
Na análise dos cadernos de reorientação curricular, números 5 (2009a) e 7
(2010), ao tratarem sobre o processo da história da educação física, restringem-na, ao
mínimo de explicação teórica, quando muito somente às particularidades, momentos
isolados da historicidade, onde ressaltam tendências, correntes psicológicas e biológicas
que foram superadas pelas culturalistas.
As perspectivas higienista, militarista e esportivista são explicitadas como
abordagens culturais que emergiram em diferentes realidades e tempos históricos, por
meio de fenômenos oriundos de pequenos grupos, nos quais, em razão de problemas
avulsos e isolados sem explicações reais e concretas, promoveram a proliferação de
ideias necessárias para aquele tempo e espaço, consequentemente, ao currículo e ensino
da educação física escolar, sendo transformadas pela necessidade das mudanças que
ocorrem na realidade.
A abordagem ideológica da essência do ‟movimento renovador” ultrapassa os
limiares da aparência e desvela a estrutura, a dinâmica e as contradições da realidade
concreta e real relacionada ao modo de produção capitalista, onde se constituiu e
manifesta a dinâmica curricular da educação física.
Trata-se, portanto, no concernente à Educação Física no Brasil, de apostar na
imperiosidade de traduzir o acesso ao saber – produzido, sistematizado e
acumulado historicamente – pelas classes subalternas, nas “coisas”
pertinentes aos aspectos sócio-antropológicos do movimento humano, através
da socialização do corpo de conhecimento existente a respeito do
conhecimento do homem em movimento. [...] saberes que extrapolam os
limites orgânicos e biológicos, pois o homem é essencialmente social e
cultural. Cabe a nós, numa correlação de forças pautada na concepção
201

transformadora da prática da Educação Física, desestabilizar o quadro


hegemônico (CASTELLANI, 1988, p. 220-221).

Nesta abordagem, o movimento de renovação é considerado como produto


histórico da dinâmica das lutas de classes, dentro de uma síntese de múltiplas
determinações complexas, no modo de produção capitalista. ‟A intervenção de um
pensamento à esquerda prioriza temas de inspiração político-ideológica, no encalço do
desvelamento de problemas sociais. Partindo do pressuposto de que Educação física é
educação, buscam-se alternativas para criar uma outra educação física” (MARINHO,
2012, p. 32). Este movimento de inspiração político-ideológico, na essência, é efetivado
na totalidade da prática social, constituído por ideias de contraposição às contradições
entre capital e trabalho, e aos pensamentos positivistas e liberais que implicam
diretamente no currículo e ensino.
As propostas e abordagens históricas da educação física dão a base para a
construção desse movimento, que surgiu como produto de diferentes momentos
históricos, de uma realidade contraditória, na qual a dinâmica curricular é marcada por
um conjunto de conhecimentos do patrimônio cultural do gênero humano, fruto das
objetivações, nas lutas de classes, pois, ‟[...] a história de toda sociedade, até nossos
dias, moveu-se em antagonismos de classe, antagonismos que se têm revestido de
formas diferentes nas diferentes épocas” (MARX e ENGELS, 2010, p. 57).
Na análise do processo histórico da educação física, com base na abordagem
ideológica da essência, o ‟movimento renovador” não é visto nele mesmo como produto
mecânico e natural da mera negação da perspectiva de ginástica biologicista ou de
abordagens higienistas, militares e esportivistas. É uma manifestação de um fenômeno
social, material, histórico e dialético pautada por uma determinada ‟concepção” contra-
hegemônica de sociedade, homem, educação, formação humana, conhecimento, escola e
trabalho educativo a partir de uma compreensão ontológica.
Nesse projeto, a função social do currículo é ordenar a reflexão pedagógica
do aluno de forma a pensar a realidade social. Para desenvolvê-la, apropria-se
do conhecimento científico, confrontando-o com o saber que o aluno traz do
seu cotidiano e de outras referências do pensamento humano: a ideologia, as
atividades dos alunos, das relações sociais, entre outras (COLETIVO DE
AUTORES, 2009, p. 29).

Logo, a essência do ‟movimento renovador” deve ser instituída e composta por


ações históricas concretas, reais e ideopolíticas de contrainternalização diante de
contradições das relações de produção socioeconômica do sistema do capital, nas quais
202

a educação física escolar é parte constituinte e constituída. Um movimento que parte da


prática social e considera os alunos como indivíduos concretos, a concepção de
formação é realizada no sentido da humanização fundamentada na concepção do
‟socialismo científico” e da perspectiva ontológica de educação.

3.3.1. Os desafios do atual tempo histórico do currículo e ensino de educação física

O ‟movimento de renovação” aparente da educação física intensificou a


influência da corrente pós-moderna, nas dinâmicas curriculares, consequentemente, nas
ações do ato de ensinar. Uma influência ainda rotulada com um caráter ‟crítico,
progressista e humanista”, que provoca um processo de fragmentação, distorção
ideológica na organização e no trato com o conhecimento e recaem à reprodução dos
ditames do capital, com ênfase ao relativismo e ao multiculturalismo. Conforme Duarte
(2012), essa corrente teórica apresenta-se, hoje, como o modo hegemônico, na discussão
do campo do currículo e ensino, defendendo que o conhecimento é sempre parcial e
particular, não tem como prever os rumos da sociedade e realizar a leitura da realidade
como totalidade social.
Com base nessa corrente, a aparência é colocada, ideologicamente, como a
essência, logo, na abordagem ideológica da aparência, o dito ‟movimento renovador”
que marcou o processo epistemológico da educação física escolar é atualmente
direcionado principalmente pela corrente pós-moderna.
É defendida e propagada, ocultamente, pelos cadernos de reorientação curricular
em análise, legitimada pela ruptura da educação física com o reducionismo puramente
biológico, valorização das culturas locais do aluno na construção dos conhecimentos,
das diversidades de narrativas e discursos bem como a aproximação com o
desenvolvimento dos valores morais, éticos e a cidadania, sendo que essa abordagem
torna-se um forte complexo categorial ideológico do currículo fetiche na especificidade
da educação física.
Para o pós-modernismo, o problema não reside na visão burguesa de cultura
humana, mas na própria ideia de que possa haver uma cultura universal.
Rejeitando tal ideia, os pós-modernos afirmam que qualquer projeto
educacional, pautado explicita ou implicitamente no suposto da existência ou
mesmo da possibilidade de uma cultura universal, é conservador, autoritário e
etnocêntrico. Em oposição a tudo isso, postulam o relativismo cultural como
um dos pilares da educação em geral, incluída nesta a educação escolar
(DUARTE, 2010a, p. 102).
203

Percebe-se, nos cadernos de reorientação curricular e nos dados das entrevistas,


a utilização hegemônica de elementos da abordagem aparente de compreensão do
‟movimento renovador” pautado pela corrente pós-moderna. O relativismo e o
multiculturalismo são expostos como eixos centrais numa proposta híbrida e eclética
como se fosse da perspectiva ideológica da essência, postulam implicações marcantes
no currículo e ensino da educação física. Nos cadernos, a perspectiva do currículo
fetiche, na especificidade da educação física escolar, é colocada na aparência como uma
ideológica proposta crítica, emancipatória, progressista, humanista, porém, na essência,
essas meras intenções presentes nos cadernos não passam o limiar das folhas de papéis
que o compõem.
Essa proposta aparente é composta por mecanismos ideológicos úteis para nos
confundir e sutis para formar a consciência de professores e alunos. Reproduz e propaga
os princípios e elementos dos ditames do capital como algo natural e, quando
comentados, são ignorados ou analisados superficialmente como meros fenômenos
secundários diante dos problemas presentes na escola e no trabalho com o currículo
escolar. Utilizam de fraseologias ideológicas como a diversidade, a cidadania e a
valorização da cultura local, pautados em uma errônea ‟proposta” crítica, para se
legitimar no âmbito escolar. Percebe-se, por meio das entrevistas e dos documentos, que
a abordagem da essência do ‟movimento renovador” é desconhecida pela maioria dos
sujeitos entrevistados e negada pelos documentos.
Apesar do ímpeto democrático, anti-imperialista, anticolonial de algumas
posturas relativistas, aquelas que mais se beneficiam de formulações que
defendem a multiplicidade de verdades são grupos conservadores cujos
interesses podem, por um lado, ser criticados, quanto a sua pretensão de
verdade universal; porém, por outro, são preservados à medida que, mesmo
assim, possuem legitimidade e verdade contextual, podem conviver e
mesclar-se com outras narrativas culturais (DELLA FONTE, 2011, p. 35).

Os cadernos de reorientação curricular, que tratam da educação física, fazem


uma contextualização histórica na forma aparente do ‟movimento renovador”. Um
resumo de uma página do processo histórico é colocado como a estrutura e dinâmica da
proposta curricular e de ensino e a representação da justificativa da necessidade de
ressignificação dessa área de conhecimento.
A educação física brasileira na escola revela, no decorrer de sua história,
pelo menos três momentos particulares em sua constituição. No primeiro,
sob a influência dos médicos-higienistas, no século XIX, quando foi
204

solicitada a disciplinar e educar o corpo por meio de hábitos saudáveis de


higiene. No segundo, influência dos militares, na primeira metade do século
XX, a educação física foi destinada a aprimorar a raça brasileira e
desenvolvimentos de corpos fortes e saudáveis e defesa da pátria. E o
terceiro momento iniciou-se, na segunda metade do século XX, quando ela
foi fortemente influenciada pela esportivação que se disseminava pelo país,
na escola a educação física começou a ser considerada o berço da formação
de atletas de alto rendimento (GOIÁS, 2010).

Como podemos observar, os cadernos de reorientação curriculares direcionados


a educação física, articulados às características e princípios do currículo fetiche,
apresentam uma mera descrição fragmentada do desenvolvimento de episódios
históricos da educação física escolar, na Europa e no Brasil, dentre os quais foram
destacados a influência médico-higienista, militarismo e a esportivação. São
apresentados de maneira restrita, com o intuito somente de superar a limitação do ensino
da prática excludente esportiva voltada à aptidão física, do fazer pelo fazer da atividade
física e incluir a discussão do cultural e o respeito à diferença e à diversidade, tendo,
como ponto crucial de suposta emancipação, a forma aparente do ‟movimento
renovador”.
A história da educação física é descrita nesses documentos, numa linha do tempo
linearmente positivista, isolada, fragmentada, mostrando variadas realidades e
momentos, na direção da matematização do pensamento. O pensamento fetichizado
rompe com a historicidade e a totalidade ontológica encarna um pensamento imediatista
e fragmentado, incapaz de atingir a essência do objeto de conhecimento, justificado,
ideologicamente, como a incapacidade da razão de explicar o real de uma realidade
dominada por uma ‟ineliminável irracionalidade” que se completa com a ‟miséria da
razão” (COUTINHO, 2010).
Partindo, portanto, da abordagem ideológica da essência do ‟movimento
renovador”, fruto das modificações da produção material da vida social, realizamos uma
breve contextualização histórica da educação física que, no nosso entendimento,
propicia uma base para repensar a dinâmica curricular. Em síntese, foi do contexto do
processo socioeconômico, principalmente a partir do século XIX, que a educação física,
ainda denominada de ginástica, sofreu grande influência das perspectivas higienista,
militarista e esportivista.
Para manter a sua hegemonia, a burguesia necessita, então, investir na
construção de um novo homem, um homem que possa suportar uma nova
ordem política, econômica e social, um novo modo de reproduzir a vida sob
novas bases. A construção desse homem novo, portanto, será integral, ela
205

cuidará igualmente dos aspectos mentais, intelectuais, culturais e físicos. É


nesta perspectiva que podemos entender a educação física como a disciplina
necessária a ser viabilizada em todas as instâncias, de todas as formas, em
todos os espaços onde poderia ser efetivada a construção deste homem novo:
no campo, na fábrica, na família, na escola (SOARES, 2001, p. 5).

Nesse período de construção de um novo homem, marcado pela expansão do


modo capitalista e a consolidação da modernidade, das ciências naturais biológicas de
matriz positivista e expansão do liberalismo, ‟[...] a educação física será a própria
expressão física da sociedade capitalista. É o homem biológico e não o homem
antropológico o centro da nova sociedade” (SOARES, 2001, p. 6). Logo, as três fortes
influências, as perspectivas higienista, militarista e esportivista, no currículo e no ensino
da educação física no Brasil, tiveram como pano de fundo a estrutura e dinâmica
ideopolítica da lógica do mercado em que predomina a produção de mercadorias, ou
seja, de capital produzido e movimentado pela extração da mais-valia.
Nessa conjuntura emerge, a partir da perspectiva dominante, a separação entre
teoria e prática, corpo e mente, trabalho manual e trabalho intelectual. “Esta perspectiva
de educação física escolar tinha como objeto de estudo o desenvolvimento da aptidão
física do homem, contribuiu historicamente para a defesa dos interesses da classe no
poder, mantendo a estrutura da sociedade capitalista” (COLETIVO DE AUTORES,
2012, p. 37). É nessa realidade contraditória, utilizando o currículo e o ensino como
importantes ferramentas ideológicas, que as abordagens pedagógicas da educação física
surgiram e proliferaram.
Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolve-se
também o proletariado, a classe dos operários modernos, os quais só vivem
enquanto têm trabalho e só têm trabalho enquanto seu trabalho aumenta o
capital. Esses operários, constrangidos a vender-se a retalho, são mercadoria,
artigo de comércio como qualquer outro; em consequência, estão sujeitos a
todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado
(MARX e ENGELS, 2010, p. 46).

O corpo considerado uma mera mercadoria e o movimento, como ferramenta de


possibilidade de ampliação da mais-valia, passam a ter uma importância e papéis
fundamentais nesse processo. São construídas dinâmicas curriculares voltadas ao
desenvolvimento de ‟aptidões naturais” de modo mecânico para acompanhar as
necessidades das reestruturações produtivas e para justificar a hierarquização e a
intensificação da exploração da força de trabalho (SOARES, 2001). O desenvolvimento
da técnica, da força física, a criação de um homem veloz, forte e resistente para produzir
206

e competir mais, num mercado dito pautado na aparência pela igualdade, liberdade e
fraternidade, eram alguns dos objetivos que norteavam o currículo e ensino da educação
física escolar, mesmo sendo consolidadas em diferentes épocas e apresentadas de
diversas formas.
A educação física era considerada uma mera atividade neutra e a-histórica
voltada a atividades físicas biomecânicas de repetição de movimentos, que tinham
importância mercadológica para ajudar no desenvolvimento do sistema do capital.
“Nessa linha de raciocínio, pode-se constatar que o objetivo é desenvolver a aptidão
física. O conhecimento que se pretende que o aluno apreenda é o exercício de atividades
corporais que lhe permitam atingir o máximo rendimento de sua capacidade física”
(COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 37). Recaíam em proposições e determinações
no currículo e ensino que legitimavam a hegemônica burguesa como o individualismo, a
competitividade, mas mascarados por mecanismos ideológicos que naturalizavam todo
o contexto violento.
Uma onda de adequação do ser humano como indivíduo puramente biológico à
sociedade econômica, em razão dos ditames do capital, é formulada com base em um
ideal de ‟corpo mercadoria”. Tudo em nome da saúde, da ordem e do progresso do
mercado. ‟Entre os mecanismos por eles utilizados, destaca-se a Educação física,
disciplinadora dos corpos e da vontade... apologia da saúde física como
responsabilidade individual” (SOARES, 2001, p. 135). Os exercícios físicos mecânicos
e repetitivos eram a fonte das tendências dentro do reducionismo biologicista. Era
proposto, nas dinâmicas curriculares, um desenvolvimento puramente anatômico e
fisiológico do corpo e do movimento orientado para adaptação de acordo com as
mudanças das reestruturações das forças produtivas.
Evidenciar os aspectos da biologização e naturalização do homem e da
sociedade se faz necessário, uma vez que a educação física, no século XIX,
constitui-se, basicamente, a partir de um conceito anatomofisiológico do
corpo e dos movimentos que esta realiza. O seu referencial estará carregado
de intenções como: regenerar a raça, fortalecer a vontade, desenvolver a
moralidade e defender a pátria. As ciências biológicas e a moral burguesa
estão na base de suas formulações práticas. Desta forma, torna-se
indispensável frisar que o espaço dado à educação física, neste período,
significou disciplinarização de movimentos, domesticação, pois se configura
como mais um canal, absolutamente dominado pela burguesia, para veicular
o seu modelo de corpo, de atividade física, de saúde... a sua visão de mundo
(BRACHT, 1997, p. 49).
207

Contudo, as ideologias da essência e da aparência, que abordam o ‟contexto


histórico” e do ‟movimento renovador”, presente nos cadernos e nos relatos de alguns
professores (as), modificam as atuais condições reais do trato com o currículo e o
ensino. No contexto atual, mesmo diante da predominância do modelo esportivista,
professores e estudiosos da área têm buscado construir novas concepções didático-
pedagógicas que superem as práticas tradicionais, rompendo com repetições
mecânicas de exercícios e técnicas em si mesmas, as quais exigem do educando a mera
execução de atividades que visam ao condicionamento e à aptidão física (GOIÁS,
2010).
Logo, pautado na estrutura, dinâmica, características e elementos da perspectiva
do currículo fetiche, podemos afirmar que, atualmente, como produto do contexto
histórico e especificamente do movimento renovador, emerge uma nova tendência
ideológica da educação física escolar pautada na corrente culturalista pós-moderna. É
justificada como o modo ideal de superar as condições tradicionais em razão da
necessidade da superação da perspectiva conservadora biologicista (aptidão física)
respeitando a cultura, a diferença, a diversidade e o cotidiano do aluno.
Em síntese, valendo-nos dos dados das entrevistas e da análise dos documentos,
podemos afirmar que a educação física como componente curricular do currículo fetiche
está imersa na prática social com uma nova tendência ideopolítica e pedagógica.
Distancia-se de uma perspectiva ontológica de educação e gera vários mecanismos
ideológicos, principalmente, por ser legitimada como uma tendência crítica,
emancipatória e progressista. No entanto, mesmo que, na aparência, tal concepção
pareça defender questões culturalistas e democráticas, na essência
[…] apoia-se nos fundamentos sociológicos, filosóficos, antropológicos,
psicológicos e, enfaticamente, nos biológicos para educar o homem forte,
ágil, apto, empreendedor, que disputa uma situação social privilegiada na
sociedade competitiva de livre concorrência: a capitalista. Procura através da
educação, adaptar o homem à sociedade, alienando-o da sua condição de
sujeito histórico, capaz de interferir na transformação da mesma. Recorre à
filosofia liberal para a formação do caráter do indivíduo, valorizando a
obediência, o respeito às normas e à hierarquia. Apoia-se na tendência
biologicista para adestrá-lo. Essas concepções e fundamentos informam um
dado tratamento do conhecimento (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p.
37).

Trata-se de uma tendência que está se tornando hegemônica na discussão e nas


proposições sobre currículo e ensino da educação física, compostas por múltiplas
linguagens e narrativas da corrente pós-moderna justificada pelo aparente ‟movimento
208

renovador”. É, na verdade, uma nova proposta que se sustenta em metodologias não


diretivas de velhas roupagens teóricas, do processo histórico da educação física, onde
tudo se torna conhecimento válido, inovador, emancipador e crítico, bastando
distanciar-se da proposta da aptidão física, trabalhar a teoria e valores morais, ser
instrumento para o desenvolvimento em outra disciplina, proporcionar o
comportamento disciplinar de solidariedade e companheirismo, relacionar o biológico
com as relações culturais locais, trabalhar a teoria e depois a prática, fazer com que os
alunos gostem e participem das aulas práticas, utilizar os saberes dos alunos para a
construção do conhecimento e respeitar a diferença e a diversidade voltada a cidadania.
Entendemos tal tendência como compensatória e reprodutivista, onde dominar a
educação corporal e desenvolver a expressão corporal autônoma é apresentado como
eixos fundamentais para a dinâmica curricular. Uma educação e expressão corporal que
se limitam aos conhecimentos biológicos sobre o corpo e no desenvolvimento de
movimentos, de maneira livre e autônoma, relacionado à promoção da saúde e valores
éticos morais.
Contra uma possível falta de legitimação, o professor de educação física não
soube, até o momento, articular nada muito além de ‟altos brados de
indignação” e um discurso, na maioria das vezes, teoricamente inconsistente,
isto quando não se apega ou faz um discurso ‟legalista”, confundindo
legalidade com legitimidade (BRACHT, 1997, p. 36).

Essa tendência é constituída de dois movimentos contraditórios: de um lado, um


estruturalismo-funcionalista, positivista, liberal e biologicista, que recai na confluência
de princípios militares, higienistas e esportivistas e, de outro lado, com mais influência,
a perspectiva relativista culturalista da pós-modernidade, ligada ao que denominamos,
na especificidade da educação física, de reducionismo biopsicosocial. Ambos os
movimentos são velados pela exaltação da temática saúde, de valores éticos morais e
desenvolvimento motor, transformados em competências e habilidades. Coloca-se a
educação física como uma disciplina compensatória que deve ajudar no
desenvolvimento de saberes de outros componentes curriculares. Em suma, podemos
ilustrar, na fala da professora (P4): ‟Trabalho muito jogos e temas sobre saúde, pois,
trabalhando jogos, vai propiciar o desenvolvimento da matemática e outras disciplinas
e dos movimentos, além disso vai ajudar na saúde e na construção de valores humanos
e regras, pois eles estão precisando muito”.
209

Em suma, nessa nova tendência eclética e híbrida do currículo e ensino da


educação física, o trabalho com os conteúdos são, na maioria das vezes, requisitos
somente para o aparato de cumprir os aspectos burocráticos de nota, planejamento
quinzenal e afirmar o trabalho da teoria e do currículo referência dentro do aparente
‟movimento de renovação” da educação física. Ressalta-se a importância da teoria e da
prática, mas a suposta ‟aula prática” é exposta como sinônimo de quadra e a ‟teoria”
como sinônimo de sala de aula, num contexto dito democrático, liberal e que respeita a
diversidade, a diferença e a liberdade de expressão corporal de cada aluno. Na
contradição, ressalta-se a crítica do professor (a) (P5):
O que infelizmente acontece hoje é a exigência de uma aula prática e outra
teórica, a escola determina e a própria proposta do currículo referência da
educação física nos leva a este ridículo. Para tal situação mudar, penso que
o professor tem que legitimar, lutar e justificar a educação física e seus
conteúdos. As aulas teóricas estão na ilusão, no máximo decorar a história
do basquete e a prática resumida no fazer pelo fazer ou no famoso rola bola,
isto não é liberdade, a teoria deve estar acoplada com a prática.

Essa nova tendência de velhas roupagens, apresentada e materializada na forma


da aparência do movimento de renovação, constitui a preponderância da perspectiva do
currículo fetiche na especificidade da educação física escolar.
O discurso das classes no poder será aquela que afirmará a necessidade de
garantir às classes mais pobres não somente a saúde, mas também uma
educação higiênica e, através dela, a formação de hábitos morais. É este
discurso que incorpora a educação física e a percebe como um dos
instrumentos capazes de promover uma assepsia social, de viabilizar esta
educação higiênica e de moralizar os hábitos (SOARES, 2001, p. 11).

As temáticas sobre saúde e os valores éticos morais, constituídos nas


expectativas de aprendizagens, são colocados como a base para o desenvolvimento do
currículo e ensino. Tanto a saúde quanto os valores éticos morais tornam-se fortes
mecanismos ideológicos na legitimação e materialização do currículo fetiche na
especificidade da educação física.
O estudo do conhecimento educacional é um estudo ideológico, a
investigação do que determinados grupos sociais e classes, em determinadas
instituições e em determinados momentos históricos, consideram
conhecimento legítimo (seja este conhecimento do tipo lógico ‟que”, ‟como”
ou ‟para”). É, mais do que isso, uma forma de investigação orientada
criticamente, no sentido que escolhe concentrar-se em como esse
conhecimento, de acordo com sua distribuição nas escolas, pode contribuir
para um desenvolvimento cognitivo que fortaleça ou reforce os arranjos
institucionais existentes (e em geral problemáticos) na sociedade (APLLE,
2006, p. 83).
210

Esses conhecimentos hegemônicos são marcas ideológicas da nova tendência.


Os sentidos do trato com outros saberes, como, por exemplo, o esporte, recaem nesta
nova marca de legitimação da educação física no âmbito escolar. Na visão da essência
do ‟movimento renovador”, a exaltação da saúde e dos valores morais e éticos não
ocorrem por mero acaso, mas são engendrados pelas relações socioeconômicas. São
produto das transformações da ordem do capital, advinda da necessidade do currículo de
educação física responder às mudanças ideológicas do mercado de trabalho articulado
às implicações da corrente hegemônica da pós-modernidade. Faz parte da construção de
um novo tipo de trabalhador fruto das últimas reestruturações produtivas (a produção
flexível), na relação entre bem-estar físico e mais-valia e, das narrativas culturalistas em
que o tempo é visto como descontínuo, a história é fragmentada e descontínua e os
saberes são produtos isolados e estagnados de determinado local.
A ordem do capital, com as renovadas estratégias híbridas para extrair mais-
valia e viabilizar novas formas de consumo, expande o discurso ideológico presente no
currículo de educação física do corpo saudável e de determinados valores éticos morais,
com o intuito de encontrar formas de promover mais consumo, produzir mais e mais
mercadorias, estratégias ideológicas orientadas por discursos neoliberais e pós-
modernos da busca do bem-estar físico e social. O modo de produção engendra, nas
relações do trabalho educativo da educação física, inclusive no currículo e ensino, os
interesses dominantes da ordem do capital.
Pode-se convincentemente argumentar que a ‟força bombeadora” do capital,
que extrai o trabalho excedente, não conhece fronteiras (embora tenha limites
estruturais, que as personificações do capital recusam, e devem recusar,
reconhecer), e assim pode-se corretamente considerar que tudo o que se
puder imaginar como extensão quantitativa da força extratora de trabalho
excedente corresponde à própria natureza do capital, ou seja, está em perfeita
sintonia com suas determinações internas. Em outras palavras, o capital
ultrapassa infatigavelmente todos os obstáculos e limites com que
historicamente se depara, adotando até as formas de controle mais
surpreendentes e intrigantes – aparentemente em discordância com seu
caráter e funcionalmente ‟hibrídas” – se as condições o exigirem. De fato, é
assim que o sistema do capital constantemente redefine e estende seus
próprios limites relativos, prosseguindo no seu caminho sob as circunstâncias
que mudam, precisamente para manter o mais alto grau possível de extração
do trabalho exedente, que constitui sua história e seu modo real de
funcionamento (MÉSZÁROS, 2011, p. 103).

Portanto, a nova tendência ideológica da educação física escolar, que compõe a


perspectiva do currículo fetiche, possui variadas estratégias ideológicas, pois, atrás de
toda tendência, corrente ou abordagem pedagógica, existe uma intenção permeada pelas
211

relações sociais, fruto das atuais lutas de classes e relações de poder. Ao irmos à raiz
dessa nova tendência da educação física, observa-se que não tem nada de novo, são
novas roupagens da ideologia liberal e do positivismo com novos componentes e
mecanismos complementares presentes no pensamento pós-moderno.
[...] filha do liberalismo e do positivismo, deles absorveu o gosto pelas leis,
pelas normas, pela hierarquia, pela disciplina, pela organização da forma. Do
liberalismo, forjou suas “regras” para os esportes modernos (que, não por
acaso, surgiram na Inglaterra), dando-lhes a aparência de serem “universais”
e vencer na vida pelo seu próprio esforço. Do positivismo, absorveu, com
muita propriedade, sua concepção de homem como ser puramente biológico e
orgânico, ser que é determinado por caracteres genéticos e hereditários, que
precisa ser “adestrado”, “disciplinado”. Um ser que se avalia pelo que
resiste.(SOARES, 2001, p. 49).

Os elementos da nova tendência liberal e pós-moderna do currículo e ensino de


educação física, pautada em reformulações idealistas entre teoria e prática, corpo e
mente e objetividade e subjetividade, são apresentados, atualmente, como um fenômeno
natural e parte da prática da maioria dos professores (as) desta pesquisa. Essa tendência
teórica integrada à reprodução do cotidiano do trabalho com o currículo e ensino de
educação física, realizado pelos professores (as), impõe sobre a estes sujeitos e aos
alunos a responsabilidade individualista de transformar a si mesmo na impossibilidade
de transformar a totalidade. As condições de transformação e apreensão da totalidade
são colocadas como irracionalistas, resultado de fatos casuais produzidos em variadas
realidades. ‟Sublimada em questões metodológicas, a característica essencial dessa
orientação consiste em afastar da realidade (e, consequentemente, das categorias
racionais que a refletem) os problemas conteudísticos, os problemas da contradição”
(COUTINHO, 2010, p. 50).
Afirma-se, portanto, que uma das principais problemáticas do currículo e do
ensino da educação física, no atual momento histórico, é desvelar e desmontar o poder
ideológico dessa forma de aparência do ‟movimento renovador” de base liberal com
preponderância da corrente culturalista pós-moderna ligada ao relativismo cultural, ao
multiculturalismo e ao reducionismo biopsicosocial. É desmontar o discurso ideológico
das variadas concepções de ‟educações físicas escolares” constituídas na multiplicidade
de várias ‟realidades fantasmagóricas”, compostas de discursos e narrativas dentro de
um jogo de linguagem pós-moderna de base liberal e apropriar das contradições deste
contexto como fundamentos para a construção de uma práxis contra-hegemônica.
212

A direção dada à Educação Física no período analisado não merece elogios,


todavia precisa ser compreendida de modo mais abrangente para que não seja
reproduzida nos dias de hoje valendo-se, apenas, de nova roupagem. E
perguntamos se os apelos da mídia e do mercado às formulas frenéticas de
‟cuidar do corpo” e de ‟valores morais disciplinadores”, hoje, não seriam a
nova roupagem de um higienismo, eugenismo e militarismo pós-moderno?
(SOARES, 2001, p. 137).

Outro desafio que destacamos está relacionado à necessidade essencial de


voltarmos à essência da historicidade da educação física, dentro da totalidade social e do
‟movimento renovador”, fazendo desse fenômeno socioeconômico e cultural, pautado
na sensibilidade crítica e nos fundamentos da perspectiva ontológica de educação,
ferramentas contra-hegemônicas. Assim se constrói uma base científica e filosófica
sólida de contrainternalização, que possibilite as condições reais e concretas de
destruição das fraseologias ideológicas do passado reducionista e retrógrado das
tendências e abordagens políticas e pedagógicas, do presente conservador e do futuro
idealista que fazem do currículo fetiche de educação física uma das problemáticas atuais
na educação escolar.
Essa nova tendência de ideário construtivista constitui a perspectiva do currículo
fetiche, na especificidade da educação física, uma máquina ativa e atrativa que possui
forte tendência para a reprodução dos ditames do capital. A educação física torna-se um
componente curricular ‟alegórico e compensatório” do currículo fetiche que, na
materialidade dos mecanismos ideológicos se esfacela e, na pseudolegitimidade,
pautada na reprodução da legalidade do mercado e como uma mera atividade de busca
da autonomia da expressão corporal, infelizmente, caminha ao desaparecimento.
Nesta ótica, sustenta-se em princípios funcionalistas que só prevêem
possibilidades para interação, continuidade, conservação, harmonia,
equilíbrio e ajustamento sociais. A ideologia capitalista tende a tornar-se
senso comum, restringindo o leque de opções das classes dominadas. Se
perguntarmos a um pobre qual o sonho da sua vida, a resposta quase
inevitável será: ser rico, ou seja, trocar de lado. O papel do professor, como
intelectual orgânico que opta pelos desfavorecidos, é abrir o campo de
percepção daqueles que o cercam para as contradições do capitalismo, dando-
lhes opções (MARINHO, 2012, p. 194).

Na direção de um professor e pesquisador que opta, de modo pedagógico e


político, pela defesa de uma educação pública de qualidade, de gestão pública para a
classe trabalhadora, afirma-se, portanto, que a atual realidade, produto de um processo
histórico socioeconômico, gerou o surgimento de uma nova tendência, que passou da
reprodução de um currículo pautado na aptidão física, na preparação de um
213

“corpo/objeto” para o desenvolvimento de um “corpo/fantasma”, tendo como eixo a


saúde e os princípios morais e éticos, em busca da cidadania com base nos pensamentos
da pós-modernidade.
Mello (2009) já nos colocava indícios sobre essa nova abordagem ideológica de
aparência crítica diante da análise empreendida da produção científica da área da
Educação Física divulgada no CONBRACE – Congresso Brasileiro de Ciências do
Esporte, dos anos de 1999, 2001 e 2003, referente aos GTTs (Grupo de Trabalho
Temático) Escola e o de Epistemologia.
Enfim, nos GTTs, epistemologia e escola, ao se tentar abandonar o
paradigma da aptidão física e buscar se justificar pela “cultura corporal de
movimento”, na verdade os professores mudaram o enfoque, mas continuam
a justificá-la pelos possíveis valores e normas de conduta. Fica evidenciado,
assim, que acompreensão do que é ser “crítico” na Educação Física está
relacionada à rejeição à técnica, à racionalidade científica (ou a qualquer
racionalidade), à disciplina e está próxima da ‘liberdade de movimentos’,
‘sensibilidade’, ‘autonomia’, etc. (p. 268).

No final, a referente dinâmica curricular, denominada de currículo fetiche,


direciona-se aos interesses do capital, porém, ao mesmo tempo, ajuda-nos a identificar
as contradições e possibilita a construção de novos caminhos verdadeiramente críticos,
progressistas, humanistas e emancipatórios em direção à humanização e à
democratização dos saberes escolares e da sociedade.
O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de
tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles tem
de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente
sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é,
muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma
determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses
indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim produzem o
modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das
condições materiais de sua produção (MARX e ENGELS, 2007, p. 87).

Portanto, diante das problemáticas para o currículo e o ensino da educação física


escolar, emerge a necessidade ontológica de realizarmos a “crítica da crítica crítica” tal
como a crítica que Marx e Engels fizeram aos irmãos neohegelianos, Bruno Bauer e
Edgar Bauer, no livro ‟A Sagrada Família40”. Ou seja, com base no conteúdo e na forma
da visão da essência do ‟movimento renovador”, que se relaciona aos fundamentos da
perspectiva ontológica de educação, deve-se criticar as críticas realizadas pela corrente
pós-moderna (nova tendência da educação física), que fez a crítica sobre a concepção

40
Livro escrito em 1843, orientado à crítica a filosofia alemã, principalmente aos neohegelianos. Ver “A
sagrada família ou a crítica da crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes”. São Paulo, Boitempo,
2011.
214

crítica da essência do movimento renovador da educação física — concepção marxista


— que, por sua vez, realizou a crítica às tendências tradicionais conservadoras do
reducionismo biológico.

3.4 . Os elementos e mecanismos ideológicos e de violência subliminar no currículo


e ensino de educação física: em busca de novas possibilidades e condições

Atualmente, como vimos no item anterior, o trato com o currículo e o ensino da


educação física, na educação básica, mesmo com a ampliação das abordagens
pedagógicas e políticas em um viés crítico e progressista, realizado principalmente a
partir da década de 1990, ainda sofre os rendimentos contraditórios dos mecanismos
ideológicos e violentos do contexto histórico conservador e reducionista de estrutura
liberal e positivista, que legalizou e legitimou esse componente curricular, na área das
ciências biológicas no âmbito escolar.
As questões sociais passam a ser ‟naturais” e o homem ‟social” passa a ser
‟homem biológico”. A educação física, filha do liberalismo e do positivismo,
deles absorveu o gosto pelas leis, pelas normas, pela hierarquia, pela
disciplina, pela organização da forma. Do liberalismo, forjou suas ‟regras”
para os esportes modernos (que, não por acaso, surgiram na Inglaterra),
dando-lhes a aparência de serem universais e, deste modo, permitindo a todos
ganhar no jogo e vencer na vida pelo seu próprio esforço. Do positivismo,
absorveu, com muita propriedade, sua concepção de homem como ser
puramente biológico e orgânico, ser que é determinado por caracteres
genéticos e hereditários, que precisa ser ‟adestrado”, disciplinado. Uma
educação física pautada por estes pressupostos deixa-nos muitas indagações,
especialmente quando o seu texto ganha contexto (SOARES, 2001, p. 50).

Percebe-se, no contexto desses rendimentos históricos articulados à


reestruturação produtiva do capital, um hegemônico direcionamento curricular e de
ensino de educação física, composto por componentes e fundamentos relativistas e
pragmáticos da corrente pós-moderna. Também constituído pelo slogan ideológico de
um currículo multicultural, que possui como eixo a propagação de competências e
habilidades voltadas ao trato dos “valores morais éticos”, “bem-estar-físico” e
“promoção da saúde”. Trata-se de uma dinâmica curricular “fantasmagórica”,
direcionando-se a uma concepção que valoriza os princípios da cidadania de cada
indivíduo com ênfase no respeito a diferença, a diversidade, a autonomia e aos direitos
individuais e, ao mesmo tempo, propiciando o desenvolvimento da economia, das
215

múltiplas culturas e regiões, contribuindo com a propagação dos saberes populares e da


livre concorrência de mercado.
De acordo com Duarte (2010, p. 34), trata-se de ‟[...] ideias pedagógicas que
assumem novos sentidos, especialmente pelo contexto ideológico, no qual predomina
uma visão de mundo pós-moderna acrescida de elementos neoliberais, quase nunca
admitidos como tal”. Na verdade, manifesta-se uma confluência contraditória de
concepções teóricas caracterizadas pela perspectiva do currículo fetiche considerada, na
aparência, como uma nova tendência teórica ‟crítica” de currículo e ensino da educação
física escolar.
A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva
não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. Na prática, tem o
homem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza interior
de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não realidade de um
pensamento que se isola da prática é uma questão puramente escolástica
(MARX e ENGELS, 2007, p. 537).

O currículo fetiche, na especificidade da educação física, é parte dessa questão


escolástica com o novo ‟imperialismo simbólico e novos léxicos” de vocábulos
ideopolíticos, da pós-modernidade, enraizada no neoliberalismo e no neopositivismo,
“[…] as explicações pedagógicas são sistematizadas a partir de uma lógica formal.
Trata-se de um currículo conservador, onde a reflexão pedagógica não explica as
relações sociais e mascara seus conflitos” (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 29).
Nessa perspectiva curricular e de ensino, emerge a predominância de alguns
mecanismos ideológicos e elementos de violência subliminar, que implicam a formação
e o desenvolvimento humano, imprescindíveis para a manutenção e propagação dos
princípios da sociedade de mercado capitalista dentro do âmbito escolar.
Os mecanismos e componentes ideológicos da forma burguesa, atualmente
presentes nessa aparente ‟nova” tendência crítica de currículo e ensino da educação
física escolar de influência pós-moderna, mas na essência estruturada em ‟velhos”
princípios liberais e positivistas, direciona-se a formar a consciência dos sujeitos
envolvidos no trabalho educativo escolar. Por meio, principalmente, dos componentes
ideológicos burgueses da inversão, distorção, naturalização e mistificação das relações
sociais dentro de um processo que,
[…] ao desconectar os problemas de sua estrutura geradora, faz com que os
indivíduos se sintam fracassados, impotentes e incompetentes, o que os
imobiliza e faz perder a noção da força inerente ao coletivo. Esse efeito é
muito benéfico para a manutenção do status quo, mas é extremamente danosa
216

para as pessoas, esmagadas pela máquina de triturar que com sua engrenagem
composta pelo fetichismo da mercadoria e alienação do trabalho, violenta-as
de forma subliminar em seus íntimos recônditos (MASCARENHAS, 2015, p.
54).

Esses mecanismos e componentes, além de fazer parte das proposições ou


contraposições dos professores (as), no trabalho com o currículo e ensino, engendram
um caráter subliminar às violentas relações, princípios e elementos alienantes
produzidos pelo sistema do capital dentro da vida social que implicam o trabalho
educativo escolar.
Para os pós-modernos, o conceito de ideologia perde totalmente seu sentido,
pois não há possibilidade de se fazer a crítica aos elementos de falsidade e
engano presentes na ideologia das classes dominantes. Essa impossibilidade
decorre de vários princípios do pós-modernismo: a recusa de qualquer
metanarrativa com base na qual pudesse ser feita a crítica ideológica; a recusa
da ideia de verdade, por meio da recusa de que possamos afirmar que um
determinado pensamento corresponda mais à realidade que outro; a redução
de tudo a um confronto entre discursos, sendo que não podemos nos situar
acima desses discursos, pois o nosso sempre será mais um dos discursos
(DUARTE, 2006, p. 86).

Na direção da contraposição aos pensamentos da corrente pós-moderna, afirma-


se, com base nos dados das entrevistas e dos documentos analisados mediados pelos
fundamentos teóricos-metodológicos relacionados aos variados componentes
ideológicos do sistema do capital, propagados e legitimados no âmbito escolar, a
manifestação de alguns elementos e mecanismos de violência subliminar no currículo
fetiche na especificidade do ensino da educação física escolar.
Com maior proximidade à dinâmica curricular, destaca-se o relativismo cultural
como eixo curricular, o trato com o mínimo de saberes específicos da área, ausência de
um sistema único, sólido e verdadeiramente crítico de orientação curricular, o cotidiano
e os saberes populares como critérios centrais na construção do currículo, ausência de
um objeto nuclear de conhecimento, supervalorização mercadológica das temáticas
“saúde” e “valores morais e éticos”. Configura-se um currículo e um ensino vazios de
ciência e vagos de fundamentos filosóficos, fundamentados num ecletismo utilitarista na
questão do que ensinar, o slogan mercadológico do ‟corpo saudável e do bem-estar”
como eixo central e funcional dos conteúdos da cultura corporal, levando à valorização
dos conhecimentos ditos prazerosos propostos pelos alunos como meio de construção
do currículo escolar.
217

Ressaltamos ainda, na dinâmica curricular, os seguintes mecanismos de


violência subliminar: a educação física escolar como disciplina compensatória,
considerada como sinônimo de saúde ou atividade de recreação; supervalorização das
expressões corporais subjetivistas; neutralidade da seleção e organização dos conteúdos
em relação à totalidade social e nas proposições das competências, habilidades e
expectativas de aprendizagens; seleção de saberes populares das práticas corporais
como algo central na organização curricular e a rotulação dessa área do conhecimento
nas ciências biológicas.
Destacam-se também, como mecanismos de violência subliminar, a defesa da
abordagem ideológica da aparência do movimento renovador, a supervalorização
epistemológica culturalista do conceito de cultura corporal e a desconsideração dos
princípios ontológicos, a consideração do termo cultura corporal como sinônimo de um
conjunto de temáticas, compostas por conhecimentos anatômicos e fisiológicos,
direcionados a educar o corpo e o movimento e desenvolver as expressões corporais
autônomas, reprodução mecânica das sequências didáticas, a substituição dos saberes
escolares específicos da área por temas transversais, a visão idealista da necessidade
epistemológica da existência de várias concepções teóricas de educação física escolar
para atender aos interesses das variadas identidades dos alunos.
Além desses mecanismos, destacam-se a influência dos princípios das
perspectivas higienistas, militares e esportivistas com novas roupagens, a
secundarização do currículo de educação física em detrimento as outras disciplinas,
repetição dos mesmos conteúdos e expectativas de aprendizagem, ao decorrer de todo o
ensino fundamental e médio, a contradição entre a proposta aparente apresentada nos
documentos e a essência da concepção curricular da rede, a falta de conhecimentos dos
professores (as) sobre a concepção curricular da rede, os conteúdos valorizados não
somente pelos conhecimentos neles contidos e sim pelo valor de troca a ser estabelecido
nos ditames do capital, a valorização da propagação de temáticas da cultura corporal por
meio da reprodução das práticas corporais que os alunos já conhecem.
Observa-se o estabelecimento de mecanismos e elementos de violência
subliminar também na materialização e efetivação do currículo por meio do ensino
como a supervalorização de metodologias em forma de jogos, em detrimento do
conteúdo, o professor considerado um mero educador físico orientador e facilitador de
aprendizagem, aulas resumidas na prática de aulas recreativas e no chamado “rola bola”,
218

ênfase em metodologias que restringem a função de disciplinar e cuidar, os conteúdos


esfacelados por propostas metodológicas de desenvolvimento de funções psíquicas por
meio de jogos, primazia da subjetividade, a delimitação determinista de uma aula
prática e outra teórica.
Ainda relacionado ao ensino, destaca-se o trabalho com o currículo de educação
física somente através da disposição de uma aula semanal, dicotomia entre conteúdo e
forma, o desenvolvimento do espírito competitivo, considerar o processo de elaboração
do conhecimento e desenvolvimento das funções psíquicas superiores como produtos de
esquemas subjetivos de interação com o meio ambiente, naturalização dos saberes
científicos e filosóficos para a objetivação do ensino, hipervalorização do lúdico no
trato com os conteúdos.
Na relação entre currículo e ensino, ressaltamos, ainda, como elementos e
mecanismos de violência subliminar, a exaltação do desenvolvimento biofisiológico,
conteúdos metodológicos voltados ao fortalecimento do físico para um bom
desenvolvimento na vida produtiva, o dualismo entre corpo e mente, dicotomia entre
teoria e prática, a desconsideração e insignificância da necessidade e importância da
formação inicial e continuada para o trabalho com o currículo e ensino da educação
física, a experiência pragmática, como eixo fundamental central para o ato de ensinar,
considerar os alunos como construtores dos conhecimentos da cultura corporal, a
concepção de ser humano, movimento e corpo determinado, puramente, por caracteres
genéticos e hereditários pré-determinados, distanciamento de posições políticas e da
compreensão de concepções pedagógicas clássicas para o trato com o currículo.
O currículo fetiche, na especificidade do ensino da educação física, portanto,
legitima e propaga elementos de violência subliminar engendrados por meio de
mecanismos ideológicos como se fosse de interesses de todos e direcionado ao bem
comum para toda a sociedade para a manutenção da mesma lógica da sociedade
capitalista. Segundo Mello (2009):
A Educação Física, em construção hoje, com nova roupagem, em muito se
parece com aquela do século XIX, quando era necessário formar o caráter, ou
seja, formar o cidadão para a sociedade capitalista. Ao que parece, as
mudanças realizadas ou pretendidas são ajustes dessa disciplina à
reorganização para a manutenção da mesma lógica da sociedade capitalista, e
não há em seus professores qualquer posicionamento em direção a uma
possibilidade ou necessidade de um rompimento radical com essa lógica
(p.268).
219

Diríamos que o ‟novo terreno ideológico” da dinâmica curricular da educação


física, que nasce das reestruturações produtivas do capital, é também uma nova ‟atitude
psicológica” que alimenta a afirmação da aparência das superestruturas e a consciência
dos professores (as) e alunos. Os sujeitos, conscientes ou não, ao reproduzirem esses
elementos violentos, na formação e no desenvolvimento humano, sustentam a
normalidade do modo sociometabólico do capital e dificultam a construção de novos
caminhos emancipatórios.
Não podemos nos deixar apanhar pelas armadilhas do nhenhenhém neoliberal
que grassa à nossa volta. Não podemos ter vergonha de continuar acreditando
na imperiosa necessidade de teorizarmos nossa prática, de a refletirmos
exaustivamente em nosso cotidiano, em buscarmos reconstruir nossa
confiança e esperança de que somos capazes de intervir nesta realidade em
que nos inserimos, de maneira a construirmos, dia a dia, os pilares de uma
educação física comprometida com um quadro de cultura corporal
qualitativamente novo, constitutivo da cultura do homem e da mulher
brasileiros e comprometido com a estruturação de uma sociedade socialista
(CASTELLANI, 2002, p. 81).

No sentido da práxis, os desafios do currículo e do ensino da educação física são


muitos, mas podem ser construídos caminhos que nos levam a superação, nesse
universo ideológico de naturalização, mistificação e inversão das exigências
econômicas, culturais e sociais do mercado. ‟Se assumirmos uma postura de classe
social para a educação, os interesses e necessidades que devem ser levados em
consideração não são os dos ‟indivíduos”, e, sim, os interesses de classe” (BRACHT,
1997, p. 67).
Assim sendo, pautando-nos pelos interesses da classe trabalhadora e pela
compreensão das relações e contradições entre ontologia, educação, ideologia,
currículo, violência subliminar e educação física, abrem-se novas possibilidades e
condições para buscarmos a construção de um ‟[...] currículo para a educação física,
capaz de dar conta de uma reflexão pedagógica ampliada e comprometida com os
interesses das camadas populares, que tem como eixo: a constatação, a interpretação, a
compreensão e a explicação da realidade social complexa e contraditória” (COLETIVO
DE AUTORES, 2012, p. 30). Um currículo e um ensino que vão além das ordenações
ideológicas violentas do capital e que cumpram a função social da escola, no sentido
ontológico, direcionada ao processo de humanização e para a construção de caminhos
emancipatórios voltados a uma nova ordem social.
220

Acreditamos, com base nas contradições das relações sociais e nos fundamentos
teórico-metodológicos da perspectiva ontológica de educação, na possibilidade de
construção de novos caminhos para o currículo e o ensino da educação física escolar
para além dos componentes, mecanismos e elementos ideológicos e de violência
subliminar de um currículo fetiche. De acordo com Saviani (2012a),
[...] imbuído dessa concepção, trata-se de penetrar no interior dos processos
pedagógicos, reconstruindo suas características objetivas e formulando as
diretrizes pedagógicas que possibilitarão a reorganização do trabalho
educativo sob os aspectos das finalidades e objetivos da educação, das
instituições formadoras, dos agentes educativos, dos conteúdos curriculares e
dos procedimentos pedagógicos-didáticos que movimentarão um novo éthos
educativo voltado à construção de uma nova sociedade, nova cultura, um
novo homem (p. 81).

Nessa direção, uma importante tarefa e estratégia de combate à perspectiva do


currículo fetiche, é o desmascaramento da concepção de mundo burguesa e dos
elementos de violência subliminar, engendrados pelos mecanismos ideológicos
desenvolvidos no âmbito da produção material e não material da vida social, inclusive
na escola, no currículo, no ensino e no trabalho docente. Preocupar-se com essas
questões é agir, pedagógica e politicamente, pela defesa de uma escola pública de
qualidade e de gestão pública, pela democratização da produção material e não material
do gênero e da individualidade para todos os seres sociais. É combater, pela práxis, os
discursos e narrativas reprodutivistas e conservadores e construir iniciativas reais de
contrainternalização a essa realidade de alienação desumana, conscientes de que isto
não é tarefa fácil e deve ser uma luta coletiva.
Em suma, é nas contradições materiais, construídas historicamente, presentes
nas lutas de classe e, por dentro das atuais condições objetivas das relações sociais, em
que devemos construir a nossa luta contra-hegemônica. As esferas da ideologia e de
violência subliminar estão construídas; desvendá-las para poder superá-las torna-se uma
necessidade ontológica para o processo de humanização (DIAS JUNIOR e LIMONTA,
2015).
221

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão realizada neste processo investigativo, que abordou, de forma geral,


a relação entre a atual conjuntura socioeconômica e a educação escolar, surgiu do nosso
posicionamento político e da necessidade de compreendermos os sentidos pedagógicos,
ideopolíticos, os princípios científicos e filosóficos da formação humana. Teve como
objeto nuclear o currículo, na especificidade da educação física, articulado ao processo
de formação humana constituída na historicidade e totalidade social. O objetivo maior
foi compreender a constituição e as repercussões, no atual momento histórico, das
relações e contradições entre ontologia, ideologia, educação, currículo e violência
subliminar no currículo e no ensino da educação física escolar. A pesquisa visou,
também, contribuir com a formação inicial e continuada de professores, respectivamente
com o trabalho docente e o ensino, pautando-se na concepção ontológica de educação
fundamentada no materialismo histórico dialético.
Tivemos também a intenção de contribuir com a construção de novos caminhos,
para o entendimento da função social da escola, do currículo, do ensino e a organização
do trabalho educativo do componente curricular educação física para além do currículo
fetiche. Esforçamo-nos para a construção de conhecimentos de “contrainternalização”
que poderão nos ajudar na luta complexa da superação dos elementos e mecanismos
ideológicos e de violência subliminar que, infelizmente, compõem, atualmente, o
currículo, obstaculizam a realidade que perpassa a escola e implicam o direcionamento
da formação e desenvolvimento humano no âmbito escolar.
Esta pesquisa articulou o levantamento bibliográfico-documental com a
inquirição por meio de entrevistas semiestruturadas com professores de educação física
e coordenadores na rede de ensino SEDUCE/GO (Secretaria de Estado de Educação,
Cultura e Esporte de Goiás). A análise da particularidade do currículo da rede estadual
de Goiás nos levou a compreender a constituição e desenvolvimento de elementos
ontológicos importantes para a formação humana, determinadas especificidades da
educação escolar, a identificação de componentes e mecanismos da ideologia do sistema
do capital e de violência subliminar presente no currículo e ensino. Uma análise que
resultou na constatação sintetizada de uma categoria que denominamos de currículo
fetiche.
222

Em síntese, realizamos uma análise crítica sobre os fundamentos político-


filosóficos (ideopolíticos) do currículo escolar, aprofundando na especificidade do
componente curricular da educação física, proposto e desenvolvido na SEDUCE/GO.
Destacamos, neste processo de sensibilidade crítica, o objeto em estudo, o
desenvolvimento teórico do currículo fetiche, contido na proposta curricular da
educação física escolar e, como uma questão de fundo, a compreensão dos mecanismos
e componentes de violência subliminar e os seus nexos ideopolíticos com o sistema do
capital.
Nesse cenário, refletimos sobre o processo de formação humana na educação
escolar, no qual destacamos a importância do ensino dos conteúdos da educação física,
sem desconsiderar o par dialético objetivos-avaliação, mas chamando a atenção para a
importância do par dialético conteúdo-método no ato educativo. Percebemos que nós,
professores e pesquisadores, temos, pela frente, vários problemas e contradições que
devem ser enfrentados na tentativa de construir de maneira contínua uma práxis
pedagógica e política contra-hegemônica. Ações que contribuem na defesa de uma
educação escolar pública de gestão pública de qualidade, em meio a um contexto
educacional que, infelizmente, sustenta-se quase que, em sua totalidade, no
pragmatismo, utilitarismo e relativismo.
Chegamos às considerações finais, conscientes da possibilidade de afirmarmos
que uma das formas de luta contra-hegemônica é o enfrentamento e a apropriação dos
fundamentos dos referenciais clássicos da teoria marxiana e marxista. Essas referências
teórico-metodológicas nos propiciaram a mediação científico-filosófica necessária para
uma profunda e complexa análise da realidade concreta para além da aparência, das
distorções e armadilhas dos mecanismos ideológicos, trazendo, para a pesquisa e para o
pesquisador, uma grande contribuição científica, filosófica e ideopolítica. Além disso,
propiciou o desvelar, o direcionamento e a compreensão de conceitos e categorias que
nos levaram para níveis complexos de análise da realidade concreta.
Foi de fundamental importância a nossa decisão de nos apropriarmos dessa
teoria como mediação em nosso encontro com a realidade concreta. Afirmamos, assim,
a defesa da perspectiva ontológica de educação, estruturada pelos fundamentos do
materialismo histórico dialético, não como o direcionamento teórico-metodológico de
solução de todos os problemas ou como forma de aplicabilidade e enquadramento do
objeto de investigação, mas com a convicção de que, nesta perspectiva, estão presentes
223

fundamentos e proposições de investigação mediadoras que nos instrumentalizaram


para percebermos, as contradições e a unidade na diversidade entre o currículo, a
formação humana e a totalidade social. Também a importância, hoje, da educação
escolar, do currículo e ensino como um dos determinantes do desenvolvimento do
gênero e da individualidade humana, na direção da construção de novas possibilidades
para além da perspectiva do currículo fetiche.
O currículo fetiche é um currículo caracterizado por princípios ideopolíticos
oriundos das forças produtivas do capital que se revelam soberanas sobre os processos
de humanização e contrapõem a perspectiva ontológica de educação, realidade que
constitui e implica no ensino da Educação Física escolar. Afirmamos, portanto, com
base no que foi observado, nesta pesquisa, que o currículo escolar como produto e, ao
mesmo tempo, produtor de mecanismos e elementos ideológicos, traz em si
contradições que podem contribuir ou distanciar o processo de formação no sentido da
humanização.
Logo, é preciso continuar a desvelar, com a ajuda dos conhecimentos científicos
e filosóficos, as formas fenomênicas que impedem a leitura do processo dialético sobre
a totalidade social, a educação escolar e o currículo. Formas que dificultam e, às vezes,
impedem a construção de uma práxis emancipatória que para nós, uma das principais
formas, é o desenvolvimento de um trabalho educativo que contribua com a formação
humana no sentido da concepção ontológica de educação.
Desmascarar os elementos e mecanismos da ideologia do capital e de violência
subliminar, presentes no currículo escolar, e apropriar-se de componentes contra-
hegemônicos para a construção do trabalho educativo escolar pode contribuir muito
para o desenvolvimento do gênero humano e da individualidade dos alunos, no sentido
da humanização. Esses mecanismos e elementos, nos dias atuais, como vimos no
processo investigativo, tomam proporções ainda mais preocupantes, pois, além de
contribuir com a reprodução e legitimação dos princípios do sistema do capital,
presentes no currículo fetiche, são, às vezes, apresentados na realidade concreta, na
aparência, como propostas filosóficas e pedagógicas críticas, mas que, na essência,
enfatiza o caráter de violência subliminar contra a formação e desenvolvimento
humano.
Compreendemos com esta pesquisa, na contraposição ao currículo fetiche, a
importância de que professores e professoras lutem pela construção de um projeto
224

unitário de formação humana e educação escolar, na direção da perspectiva ontológica


de educação. Trata-se da construção de um projeto de educação articulado a uma
sensibilidade crítica sobre a relação entre a organização do trabalho educativo escolar e
a totalidade social, por meio de saberes científicos, filosóficos e metodológicos
articulados a princípios pedagógicos e políticos que nos ajudem na contra-hegemonia.
Destacamos a necessidade de superação de uma contradição que resulta num
problema generalizado da escola pública brasileira e que se encontra, também, no
componente curricular educação física: de um lado, é colocada a necessidade de um
currículo organizado por uma lista de conteúdos e objetivos e, do outro, uma concepção
culturalista pós-moderna de ensino e aprendizagem. Ressaltamos, ainda, na dimensão
dos sentidos da formação do currículo fetiche, outra contradição que necessita ser
superada: por um lado, o individualismo exarcebado, a neutralidade científica e
filosófica, a crença na autossufiência individual e, ao mesmo tempo, a supervalorização
da eficiência e eficácia técnica, resultados pragmáticos, produtivismo, utilitarismo e a
matematização do pensamento.
No processo de análise dessas contradições, constatamos, para a construção da
luta contra-hegemônica, a necessidade do conhecimento pleno dos professores sobre a
concepção de sociedade, ser humano, educação, escola e ensino, que norteia a proposta
curricular da rede a que está vinculada. É necessário que os docentes conheçam,
profundamente, a concepção curricular e tenham consciência do processo e do produto
da organização do ensino e da aprendizagem. Chegamos à pressuposição de que um dos
pontos mais importantes e que sustenta um bom currículo e ensino de educação física
deve ter como mediação os fundamentos a concepção ontológica de educação.
A concepção ontológica nos permitiu ir à raiz e à base dos fundamentos,
propriedades, pressupostos, capacidades, problemas e necessidades educacionais dos
seres humanos, a partir da compreensão dos processos de formação da dinâmica maior
de constituição do gênero e da individualidade, no sentido da humanização e da
alienação. Reafirmamos, assim, a compreensão ontológica de formação humana e de
educação que norteou esta pesquisa: a compreensão do ser humano como ser social e
histórico que, a partir do trabalho, vai-se humanizando como sujeito da práxis, dentro da
totalidade histórica constituída por contradições, tendo como eixo o processo de
apropriação e objetivação e, elemento primordial, o pôr teleológico. Trata-se de uma
225

concepção de que o objeto, o sujeito e a vida do ser social são frutos da vontade e
consciência humana permeada por ideologias.
A formação dos seres humanos, como seres sociais, foi compreendida como
produto estabelecido na historicidade da vida social produtiva, dentro da relação entre o
homem e a natureza, o indivíduo e a sociedade, a objetividade e a subjetividade, o
sujeito e o objeto, o particular e a totalidade. Nesse sentido, demonstramos que a
educação, como objeto da ontologia, compõe o ser, refina e aprofunda o caráter social
humano, reelabora finalidades da vida produtiva, dissemina os saberes objetivos, a
cultura e cria novas formas e conteúdo de sociabilidade, que se manifestam, tanto na
singularidade genérica quanto na individualidade do ser social. O pôr teleológico e o par
dialético apropriação e objetivação são elementos constitutivos do trabalho e as células
geradoras da vida social, do desenvolvimento e da complexificação da educação, como
práxis social, manifestam-se, na educação escolar e no currículo, que, por sua vez, é
parte constitutiva do ser social.
Percebemos que a educação e a educação escolar somente se manifestam na
realidade permeada por determinadas ideologias de classe. A ideologia, na essência do
conceito, foi aprendida, nesta pesquisa, como parte constitutiva da formação do ser
social, uma elaboração de prévia-ideação da realidade, no momento ideal do pôr
teleológico, forma-se na consciência e manifesta-se nos conflitos sociais, no
desenvolvimento do pensamento humano sobre a realidade. Trata-se de um conceito
erigido nas lutas de classe e nas relações de poder, que institui visões de mundo,
constitui a consciência e a concepção dos indivíduos singulares sobre a totalidade
social, materializa-se nas ações na realidade concreta, nas reações às perguntas advindas
da prática social e dos conflitos socioeconômicos, travados na produção material e não-
material, bem como no processo de objetivações e apropriações.
Configura-se, assim, um cenário educacional escolar que se direciona no sentido
em que a classe dominante constrói a ideologia e a classe dominada tende a se apropriar
e reproduzir essa ideologia como se fosse sua e única. Vimos que, atualmente, a classe
dominante é pautada pela ideologia do sistema do capital que implica a educação
escolar e o currículo. Logo, o currículo fetiche constitui e é constituído por
componentes e mecanismos ideológicos que corroboram para que os interesses da classe
dominante sejam propagados e os princípios do capital legitimados e expandidos.
226

Entendemos que o currículo fetiche é um instrumento eclético e híbrido, de base


filosófica neopositivista, pragmático e marcadamente liberal, complementado por
princípios da corrente da pós-modernidade, caracterizada pelo idealismo subjetivo,
produto da “subjetividade cognoscível do em-si” e da lógica formal de pensamento. O
currículo fetiche, constituído pela confluência de teorias educacionais e curriculares, é
caracterizado pela fragmentação da racionalidade técnico-científica, na neutralidade de
questões da totalidade social, na burocratização, na proposição do fim da historicidade e
impossibilidade de apreensão da realidade concreta, na exaltação dos discursos e
narrativas, no esfacelamento da função social da escola, no desaparecimento das lutas
de classe e na exaltação de uma cidadania de acordo com as possibilidades criadas pela
lógica do mercado capitalista.
Na composição do currículo fetiche, percebemos a consolidação de duas
perspectivas curriculares com proposições oriundas do relativismo e do liberalismo,
uma caracterizada como perspectiva neotecnicista de base instrumentalista, orientada
para uma formação mínima para a produção, reprodução e legitimação dos princípios e
ditames do mercado e outra neoconstrutivista, de caráter culturalista e intersubjetiva,
que ressalta a hipervalorização da heterogeneidade e da diversidade, pautadas na
valorização do multiculturalismo pragmático utilitarista que exalta o cotidiano imediato
dos alunos e dos professores.
A educação escolar se constitui, dessa forma, numa aparentemente harmoniosa
confluência ideológica de duas perspectivas curriculares. Nessa confluência, chegamos
à identificação de duas categorias essenciais que norteiam o currículo fetiche: a
propriedade intelectual e o relativismo cultural intersubjetivo. A primeira categoria traz
a concepção de que o conhecimento é uma mera mercadoria como valor de troca para
garantir novas mercadorias, favorecendo a efetivação e reprodução da exploração e da
mais-valia. A outra categoria, norteadora do currículo fetiche, que apreendemos e que
proporcionou o desvelar de outros mecanismos ideológicos contraditórios foi o
relativismo cultural intersubjetivo.
O currículo fetiche, portanto, com base nas implicações e contradições
ideológicas da propriedade intelectual e do relativismo cultural intersubjetivo vai
constituindo variados mecanismos ideológicos que ocultam e naturalizam a realidade,
invertem, manipulam, distorcem e engendram um caráter de violência que atinge o
processo de formação e desenvolvimento humano, no sentido da humanização, por
227

exemplo, no distanciamento dos princípios da educação escolar da perspectiva


ontológica de educação e no esfacelamento da função social da escola.
O processo histórico da educação física, quando consideramos o ‟movimento de
renovação”, é compreendido como fato isolado e independente do contexto
socioeconômico. Constatamos que, na realidade concreta do ensino nas escolas, o
‟movimento de renovação” intensificou a influência do pensamento pós-moderno nas
dinâmicas curriculares e, consequentemente, na atividade de ensinar.
O currículo fetiche, na especificidade da educação física, é constituído de dois
movimentos contraditórios: de um lado, um estruturalismo-funcionalista, positivista,
liberal e biologicista, que recai na confluência de princípios militares, higienistas e
esportivistas. Por outro lado, com mais influência, emerge uma perspectiva relativista e
culturalista da pós-modernidade, ligada ao que denominamos, na especificidade da
educação física, de reducionismo biopsicosocial. Ambos os movimentos exaltam os
conhecimentos sobre saúde, desenvolvimento motor e valores morais, mas estes são
transformados em competências e habilidades. Chegamos à compreensão de que a
proposta curricular, na especificidade da educação física, é composta de um discurso,
aparentemente crítico e progressista, com preponderância do relativismo e do
multiculturalismo.
A educação física apresenta-se como uma disciplina compensatória que deve
ajudar no desenvolvimento de saberes de outros componentes curriculares. Trata-se de
uma perspectiva contraditória, direcionada à reprodução de conhecimentos que muito
pouco contribuem para a formação e o desenvolvimento das crianças e jovens no
sentido ontológico.
Em razão da necessidade ontológica e das condições socioeconômicas atuais, é
fundamental, então, na contraposição ao currículo fetiche, que nós, professores,
tenhamos o compromisso pedagógico e político de trabalhar com a cultura elaborada,
sistematizada, complexa e com os conhecimentos escolares clássicos. Logo, também é
necessário defender um currículo escolar como um instrumento primordial e o eixo
central para materializar o trabalho de organização, elaboração, síntese e socialização da
cultura transformada em saber escolar, composto, principalmente, pelos campos da
ciência, da filosofia e da arte.
Nessa pesquisa, entendeu-se que a função social da escola se relaciona à
apropriação da síntese do saber objetivo do mundo natural e social, transformado em
228

saber escolar presente na riqueza sociocultural, composta pelas ciências, a filosofia e as


artes orientadas pelo ensino e mediadas pelo trabalho docente. Ou seja, a escola,
relacionada às condições sociais para o desenvolvimento do trabalho docente deve
trabalhar os saberes elaborados, complexos e ‟clássicos” da cultura, sendo que foram
historicamente construídos pelos seres humanos, e possibilitar a apropriação crítica dos
mesmos.
Sendo assim, concluímos que é possível partir da realidade concreta,
compreender os limites, as contradições, negá-la e superá-la, dinâmica que pode se
tornar real quando realizamos o movimento que tentamos fazer nesta pesquisa, o de
desvelar a síntese da estrutura e dinâmica das múltiplas determinações complexas que
circunscrevem o contexto da educação escolar e do currículo. Para, daí, construirmos,
pautados numa perspectiva ontológica de educação, fundamentos teóricos/práticos para
novas propostas curriculares e de ensino que se distanciem dos princípios e
características do currículo fetiche.
Para a construção e apreensão de uma práxis de contraposição à perspectiva do
currículo fetiche, enfatizamos a importância de todos os professores (as) terem as
condições reais de acesso e permanência em uma boa formação inicial e continuada,
tendo a pesquisa de base científica e filosófica como eixo central e a teoria como base
fundamental. Destacamos, também, a necessidade de novos estudos voltados para a
questão do ensino na perspectiva ontológica de educação e à formação da consciência
dos professores de educação física no sentido pedagógico e político.
Não se trata somente de conciliar a formação com o trabalho, promover a
reflexão sobre a prática ou elaborar manuais curriculares e pedagógicos para o
professor. Mas devemos realizar um trabalho coletivo de ‟(re)conscientização” da
importância da apropriação dos conhecimentos científicos e filosóficos mais
desenvolvidos e complexos na formação docente, observando-se que a formação não
pode ficar restrita à apropriação de conhecimentos específicos da disciplina, mas deve
abarcar também conhecimentos sobre o campo do currículo, ensino e sobre o
desenvolvimento humano em seu sentido mais amplo.
Necessita-se, portanto, construir uma relação tal entre formação e trabalho que
implique na práxis dos professores e professoras, passando pelas condições de trabalho,
pela defesa de uma formação inicial e continuada que dêem condições intelectuais para
a realização de um trabalho educativo cada vez mais autônomo. Observamos que um
229

dos problemas mais difíceis de ser enfrentado talvez seja, justamente, o desafio de
propiciar uma formação que amplie a consciência dos professores. Em nosso trabalho
de análise das entrevistas, vimos que é candente a necessidade de que o professor de
educação física compreenda a importância da relação teoria e prática. Acreditamos que
essa compreensão passa, necessariamente, pela apropriação de uma concepção de
formação e desenvolvimento humano, pelo domínio dos conhecimentos específicos da
área e pelo domínio de conhecimentos pedagógico-didáticos.
Acreditamos que, mesmo diante das atuais condições de precarização e
intensificação do trabalho docente, devemos tentar construir novas possibilidades e
condições para o trabalho com o currículo e o ensino para além do relativismo. Iniciar
uma luta, desde o cotidiano da sala de aula até os cursos de formação inicial e
continuada, insistir na formação de grupos de estudos e na realização de pesquisas em
parceria com as instituições de formação.
A pesquisa que realizamos sobre o currículo e o ensino de educação física na
rede estadual de Goiás, leva-nos a considerar que se faz urgente uma ‟guerra de
posição” frente à determinadas concepções e práticas curriculares e de ensino que, na
aparência, são consideradas críticas e progressistas, mas que, na essência, desvalorizam
o conhecimento dos professores e levam a uma formação frágil; esta, possivelmente,
levará o estudante a reproduzir princípios que levam à desumanização. Chegamos nestas
considerações finais com a consciência de que, para ser um bom professor, inclusive de
educação física, precisamos ter muito conhecimento e não a negação da razão e da
teoria e a exaltação do pragmatismo.
A maioria dos professores e professoras que foram sujeitos desta pesquisa
confirmam a concepção pragmática de formação que perpassa por todos os cursos de
licenciatura, de que os cursos têm muita teoria e pouca prática. No entanto, o que nossa
pesquisa revela é que há pouca teoria nos cursos, pois os professores não estão
conseguindo compreender a realidade em que realizam seu trabalho e, se não a
compreendem, não conseguem transformá-la.
O currículo deve continuar a ser uma temática de preocupação entre nós,
professores e pesquisadores. Isso se dá, principalmente, em razão das contínuas
reestruturações do sistema do capital, das transformações de seus mecanismos
ideológicos, da criação de novos elementos de violência subliminar e da forte tendência
230

hegemônica das aparentes perspectivas críticas, nas proposições sobre currículo e


ensino, pautadas, principalmente, pela corrente culturalista da pós-modernidade.
Todavia, observamos, durante o processo investigativo, que, mesmo nesta
realidade marcada pelos elementos e mecanismos ideológicos e de violência subliminar
que envolvem o currículo e o ensino, ainda se fazem presentes a esperança e a
resistência de muitos professores e professoras. Vimos, concretamente, que o otimismo
da vontade ainda supera o pessimismo da razão e, com base nas contradições da
realidade concreta, podemos, a cada dia, continuar a travar a luta coletiva.
O ensino escolar é, hoje, um dos elementos ontológicos essenciais no processo
de formação humana. É por meio do ensino que se efetiva o currículo e cada indivíduo
pode se apropriar da cultura humana elaborada historicamente. Logo, o professor e a
professora de educação física, na efetivação do seu trabalho educativo escolar,
necessitam de apropriar-se de conhecimentos científicos e filosóficos sobre o ato de
ensinar. Abrem-se, a partir desta pesquisa, várias possibilidades de investigação sobre o
ensino nos diversos componentes curriculares, inclusive na educação física, uma nova
problemática, um novo desafio, mas que, ao mesmo tempo, poderá gerar novas
possibilidades para a educação escolar, na permanente e árdua construção da
democratização da sociedade para além do capital.
231

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237

ANEXOS

ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA I


(COORDENADORA/COORDENADOR)

ATUAÇÃO PROFISSIONAL

I- Há quanto tempo atua na carreira docente? Há quanto tempo trabalha na rede?


Nesta escola? Este tempo fez diferença na sua atuação como coordenadora? Por quê?
II- Trabalha em outra(s) escola(s) e redes? Se sim, percebe algumas diferenças nas
propostas pedagógicas, curriculares entre as instituições e redes de ensino?
III- Quantas horas, em média, você trabalha por semana, considerando todas as suas
atividades? Dentre as suas atividades, tem algum tempo dedicado as questões que
envolvem o currículo escolar?
IV- Como se tornou coordenadora/coordenador? Em síntese, como podemos definir
as funções e objetivos da coordenadora/coordenador?

TRABALHO NA ESCOLA/CURRÍCULO ESCOLAR

I- O que seria um professor ideal? (Para você, professores, alunos e rede).


II- Quais são os principais problemas e desafios vivenciados em seu trabalho?
Especificamente, quais os problemas e desafios dos professores em relação ao trabalho
com o currículo escolar?
III- Se você participasse da reorientação do currículo da rede, você iria propor
algumas mudanças? Quais?
IV- Na sua opinião, qual a importância do currículo para o desenvolvimento do
trabalho educativo (trabalho docente, ensino)? Quais as considerações sobre a função do
currículo escolar e do currículo de educação físíca?

6. Comentários, opiniões ou perguntas sobre o tema da pesquisa e das questões que


foram e não foram abordadas aqui e que você considera importantes.
Muito obrigado por sua colaboração! Lembramos que sua participação tem total
anonimato e sigilo garantidos.
238

ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA II


(PROFESSOR E PROFESSORA DE EDUCAÇÃO FÍSICA)

1. DADOS DE IDENTIFICAÇÃO:

I-Unidade
escolar:_______________________________________________________________

II- Sexo: ( ) Feminino ( ) Masculino

III- Idade: ( ) 20 a 30 anos ( )31 a 40 anos ( ) 41 a 50 anos ( )51 a 60

( ) 61 anos ou mais

IV- Qual a escolaridade dos pais?

V- Qual a sua formação? Pretende realizar novas formações? Se sim, Quais?

2. ATUAÇÃO PROFISSIONAL (PROFESSORA/PROFESSOR DE EDUCAÇÃO


FÍSICA):

I- Há quanto tempo atua na carreira docente? Há quanto tempo trabalha na rede? Nesta
escola? Este tempo faz diferenças nas suas atuações como professor(a)? Como?

II- Trabalha em outra(s) escola(s) ou redes? Se sim, percebe algumas diferenças nas
propostas entre as instituições e redes? Existem diferenças na concepção de educação
física e do currículo entre as escolas e as redes?

III- Quantas horas, em média, você trabalha por semana, considerando as atividades
para além da sala de aula dentro e fora da escola? Exerce outra
atividade/profissão/função fora da área educacional? Algumas dessas horas de trabalho
envolvem a questão do currículo escolar?

IV- Por que escolheu a profissão de professor? E quais as motivações para a escolha da
educação física?

V- Se pudesse teria outra profissão? Por quê? Quais as motivações atuais para o
desenvolvimento do seu trabalho?

3. FORMAÇÃO:
239

I- Você achou suficiente a sua formação inicial para ingressar na carreira docente? O
que poderia ter sido melhor e quais pontos você percebeu que foram primordiais para
seu trabalho?

II-Em sua opinião, quais conhecimentos para a formação de professores você iria
propor para um bom trabalho nas escolas?

III- Quais foram os conhecimentos de sua formação que mais o influenciaram na


organização atual do seu trabalho nas escolas?

IV- Durante a sua formação teve contato com as discussões do campo do currículo e do
currículo de educação física? Achou satisfatório?

V- Você percebeu mudanças nas propostas curriculares das redes desde a sua formação
até os dias atuais? Se sim, você se lembra quais foram?

4. TRABALHO NA ESCOLA:

I- Quais são as atividades que você realiza na escola? (O que ensina e outras atividades
que realiza). Quais seus principais propósitos/objetivos?

II- Quais são os principais problemas e desafios vivenciados em seu trabalho na rede? E
nesta escola? Em sua opinião, o que é necessário para enfrentá-los?

III- Em sua opinião, o que é um trabalho educativo (ensino ou trabalho docente) ideal?
O que os alunos esperam de um professor?

IV- Qual(is) a(s) função(ões) e objetivo(s) da educação escolar? (pra rede, você,
professores e alunos)

V- O currículo proposto pela rede influência na organização do seu trabalho? Por quê?

VI- Como você planeja suas aulas?

5. CAMPO DO CURRÍCULO:

I-Qual o papel da educação física escolar?(pra você, rede, professores e alunos)


240

II-Você conhece a proposta de reorientação (ressignificação) curricular e o currículo de


educação física da rede estadual? Como julga? Quais as suas considerações? Recorre às
orientações curriculares para planejar?

III-Se você participasse da reorientação do currículo de educação física, você iria


propor alguma mudança? Quais?

IV- Em sua opinião, quais os principais conhecimentos e conteúdos necessários para a


construção de um currículo ideal de educação física? Por quê?

V- Qual a importância do currículo para o desenvolvimento do trabalho educativo? A


proposta curricular da rede influência em seu trabalho?

6. Você tem alguns comentários, opiniões ou perguntas sobre questões e a temática


em geral que foram e não foram abordadas aqui e que você considera importantes.

Muito obrigado por sua colaboração! Lembramos que sua participação tem total
anonimato e sigilo garantidos.

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