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Teoria Racial Crítica e a Comunicação Digital: conexões contra a dupla


opacidade

Chapter · December 2019

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Tarcízio Silva
Universidade Federal do ABC (UFABC)
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 TEORIA RACIAL CRÍTICA E COMUNICAÇÃO DIGITAL:
CONEXÕES CONTRA A DUPLA OPACIDADE

TARCÍZIO SILVA

RESUMO

O artigo apresenta uma introdução à Teoria Racial Crítica,


framework teórico-metodológico proposto inicialmente por pes-
quisadores do Direito para combater a aplicação racista da legis-
lação, para discutir debates e objetos contemporâneos da comu-
nicação digital. A Teoria Racial Crítica (TRC) transpôs as frontei-
ras do Direito e tem sido aplicada em diversos países afrodiaspó-
ricos à Educação, Sociologia e outras áreas como a Comunicação,
mas ainda tangencial nesta última. Com o objetivo de colaborar
para as conexões deste framework teórico, o artigo apresenta e
discute, do ponto de vista da comunicação digital, seis pilares de-
finidores da TRC: a) a ordinariedade do racismo; b) construção
social da raça; c) interseccionalidade e anti-essencialismo; d) re-
conhecimento do conhecimento experiencial; e) agência no com-
bate efetivo da opressão racial; e f) a interdisciplinaridade.

PALAVRAS-CHAVE: teoria racial crítica; comunicação digital;


algoritmos; plataformas digitais; raça.

ABSTRACT

The article presents an introduction to Critical Race Theory, a


theoretical-methodological framework initially proposed by law
researchers to combat racist application of legislation, to discuss
contemporary objects of digital communication. Critical Race

127
Theory (CRT) has crossed the boundaries of legal scholarship
and has been applied in several aphrodiasporic countries to edu-
cation, sociology and other areas such as communication, but
still tangential in the latter. In order to contribute to connect this
theoretical framework to digital communication studies, the ar-
ticle presents and discusses six defining pillars of the CRT: a) the
ordinary nature of racism; b) social construction of race; c) inter-
sectionality and anti-essentialism; d) recognition of experiential
knowledge; e) agency in the effective fight against racial oppres-
sion; and f) interdisciplinarity.

KEYWORDS: critical race theory; digital communication; algo-


rithms; digital platforms; race

INTRODUÇÃO

A construção de uma genealogia do interesse acadêmico sobre


estudos comunicacionais debruçados sobre a internet não é fácil,
na medida em que tanto a transformação dos objetos quanto das
lentes de pesquisa é um fenômeno contínuo e cambiante em in-
teração – os próprios métodos e materiais de observação transi-
tam ao longo do tempo.
Scolari (2009) apresentou dez anos atrás uma das tipologias
mais interessantes das primeiras décadas dessa história. A pri-
meira fase é intitulada como Founding Fathers e compreende o
período entre 1960 e 1984 quanto às primeiras especulações teó-
ricas sobre computação e produção de protótipos. A segunda
fase, Origens, é caracterizada por produções sobre hipertextos,
interfaces, comunicação mediada por computador e afins, entre
1984 e 1993. Com a disseminação da web, o terceiro período com-
preende de 1993 a 2000 e multiplica os discursos sobre as "ciber-
culturas": popular, acadêmica e crítica. Em um foco, as reflexões
sobre sociedade digital na imprensa, audiovisual e debate pú-
blico, e noutro foco, a descrição sistemática dos processos, atores

128
e eventos pela academia, com um nicho performando aborda-
gens mais críticas e aprofundadas.
Entre 2000 e 2008, Scolari identifica um período que chama
de Internet Studies. No período, a pesquisa se torna mais inter-
disciplinar e há uma reconfiguração das teorias e metodologias
sobre a comunicação digital, incluindo perspectivas da Teoria
Ator-Rede, Análise de Redes Sociais e afins, coincidindo com o
boom dos sites de redes sociais.
Ao final deste período, alguns casos clássicos de interferên-
cia/imbricação da internet em esferas da sociedade são registra-
dos, como a vitoriosa e disruptiva campanha de Obama nos EUA
(GOMES et al, 2009) e a evolução da massa crítica de usuários
de internet e sites de redes sociais – o Facebook superou MyS-
pace neste ano e se consolidou como a maior plataforma de mídia
social, com mais de 100 milhões de usuários.
A partir desse período se discute amplamente como a internet
pode ser um espelho ou representação da sociedade. Do ponto de
vista do estudo etnográfico digital, Hine (2015) defende três ca-
racterísticas (os 3 “Es”) da internet: embedded (“imersa”), embo-
died (“corporificada”) e everyday (“cotidiana”), em evidente
contraste com a ideia da separação do “virtual” e presencial
(HINE, 2000) do final da década de 90 e início dos 2000s,
quando a metáfora das janelas para o ciberespaço (TURKLE
1997; LEMOS e PALACIOS, 2001) era vigente, onde os internau-
tas poderiam, inclusive, experienciar identidades até contrastan-
tes com suas identidades perceptíveis físicas. Uma década de-
pois, porém, os sites de redes sociais multiplicam as ancoragens
de dados e identificadores com os papéis sociais presenciais e fí-
sicos dos indivíduos (BOYD, 2010; RECUERO, 2012), onde parte
da empolgação está na capacidade de mudar as lentes entre indi-
víduos e redes na coleta e visualização de dados.
Alguns declaram, portanto, o “fim do virtual”, pois a questão
não seria mais “o quanto da sociedade e cultura está online, mas
como diagnosticar mudanças culturais e condições sociais

129
através da Internet” (ROGERS, 2013, p. 2155). Entretanto, a ideia
de um mundo e sociedade totalmente digitalizados parte de uma
visão ocidental e eurocentrada, complexificada tanto pelas trans-
formações dos problemas do “digital divide” (DANIELS, 2013)
quanto da luta de grandes corporações contra a neutralidade das
redes, como a iniciativa de lobby Internet.org, que tentou inten-
sificar a colonização de dados dos países periféricos ao oferecer
“internet gratuita”, mas para acessar apenas sites e aplicativos de
um punhado de corporações (SHAHIN, 2019).
Finalmente, presenciamos o protagonismo de perspectivas
críticas – ou mesmo desalentadoras – do pensamento sobre o di-
gital tanto na academia quanto na conversação pública. Diagnós-
ticos e críticas sobre os impactos nocivos da internet na dissemi-
nação de desinformação (LYNCH, FREELON e ADAY, 2016), al-
goritmização (PASQUALE, 2015; SILVEIRA, 2017) e capitalismo
de plataforma (SRNICEK, 2017) ganham destaque associados ao
avanço da desigualdade econômica e radicalização de grupos, so-
bretudo ultra-direita, neo-nazistas e supremacistas brancos.
Neste panorama complexo, um framework teórico-metodoló-
gico desenvolvido no Direito e Educação afrodiaspóricos tem
sido aplicado por pesquisadoras para entender os fenômenos so-
cio-tecnológicos contemporâneos, a Teoria Racial Crítica (TAL,
1996; POMPPER, 2005; NOBLE, 2013, 2018; BROCK, 2012,
2016; ALI, 2013; BENJAMIN, 2016; MUNGO, 2017). Conside-
rando sua ainda relativamente ausente da bibliografia brasileira
sobre o tema, o objetivo do artigo é realizar uma apresentação
dos seus pilares, sublinhando sua adequação aos estudos sobre
raça, relações étnico-raciais e racismo e implicações nas tecnolo-
gias de comunicação, entendidas como práticas complexas mate-
rializadas.

55 Texto original: “how much of society and culture is online, but rather how to diag-
nose cultural change and societal conditions by means of the Internet”.

130
TEORIA RACIAL CRÍTICA

Qual o lugar do debate sobre categorias e identidades raciais,


do ponto de vista de construção de comunidades por empatia ét-
nico-racial, de um lado, e das opressões e dominações racializa-
das, por outro, nos estudos sobre internet? Em revisão bibliográ-
fica dos estudos de internet sobre raça e racismo, Daniels (2013)
levanta a bibliografia anglófila em grupos de temas como identi-
dade e comunidade, games, fandoms online e cultura popular,
notícias online e esportes, sites de redes sociais, blogs, entre ou-
tros. Concluiu que a literatura dos Internet Studies reproduz a
exotização da alteridade, resiste à análise honesta do racismo en-
quanto sistema e à recusa de ver o papel da branquitude, nunca
racializada quanto os demais grupos minorizados. Assim, preci-
saríamos de um framework teórico que “reconheça a persistên-
cia do racismo online enquanto simultaneamente reconheça as
profundas raízes da desigualdade racial nas estruturas sociais
existentes que moldam a tecnocultura”56 (DANIELS, 2013, p.
711).
Defendemos que a Teoria Racial Crítica (TRC)57 é este fra-
mework teórico interdisciplinar contra o que chamamos de dupla
opacidade, o modo pelo qual os discursos hegemônicos invisibi-
lizam tanto os aspectos sociais da tecnologia quanto os debates
sobre a primazia de questões raciais nas diversas esferas da soci-
edade – incluindo a tecnologia, recursivamente. A Teoria Racial
Crítica tomou forma nos Estados Unidos durante o final dos anos
1970, reunindo inicialmente professores, advogados, ativistas e
pesquisadores do Direito preocupados tanto com a estagnação
dos avanços obtidos pelos movimentos de direitos civis no país
quanto com a aplicação discrepante da lei ao mesmo tempo em

56 Texto original: "acknowledges the persistence of racism online while simultane-


ously recognizing the deep roots of racial inequality in existing social structures that
shape technoculture".
57 Originalmente Critical Race Theory, também traduzida por “Teoria Crítica da Raça”
ou “Teoria Crítica Racial”.

131
que se defendia sua neutralidade. Um dos eventos fundadores foi
o curso e livro de Derrick Bell, primeiro professor afro-americano
na escola de Direito de Harvard, Race, Racism and American
Law. No curso (lançado em 1981) e em suas atuações acadêmicas
e civis, Bell desafiou as concepções liberais do Direito como “ce-
gueira racial”, integracionismo e “igualdade legal formal” que, ao
invés de serem efetivas, apenas serviam à retórica do poder con-
tra qualquer debate racial.
A saída de Bell de Harvard deflagrou um movimento, por es-
tudantes, para solicitar a manutenção de um curso sobre raça e
racismo no Direito do ponto de vista de algum/a professor/a de
grupo minorizado e racializado, como afro-americanos ou asiáti-
cos-americanos. Entretanto, Harvard negou-se a levar essa soli-
citação em consideração. Como resultado, estudantes criaram o
“The Alternative Course” (“O Curso Alternativo”), que se tornou
a primeira expressão institucionalizada da Teoria Racial Crítica
ao juntar diversas pensadoras e pensadores que desenvolveram
a perspectiva ao longo das décadas seguintes (CRENSHAW et al.,
1996).
Desafiando a força institucional da universidade ao desenvol-
ver seu próprio evento, os proponentes da TRC manifestaram o
poder das contra-narrativas como alternativas a um fazer cientí-
fico falho por se pretender neutro enquanto representava apenas
interesses de uma elite limitada. Allen, de acordo, identifica na
Comunicação, que a teorização nos campos hegemônicos da dis-
ciplina “geralmente não mergulha nas dinâmicas raciais de po-
der. Além disto, raramente menciona racismo de modo a explici-
tamente analisar questões de níveis macro”58 (ALLEN, 2007,
p.260). Então seguimos na identificação e descrição de alguns
dos principais pressupostos e objetivos da Teoria Racial Crítica
(TRC): a) a ordinariedade do racismo; b) a visão sobre raça e das
relações raciais como construção social; c) interseccionalidade e
anti-essencialismo; d) a importância do reconhecimento do

58 Texto original: "usually does not delve into power dynamics of race. Furthermore,
it infrequently mentions racism in explicit ways that analyze macrolevel issues”.

132
conhecimento experiencial; e) a agência da TRC no combate efe-
tivo da opressão racial e f) a necessária interdisciplinaridade
(FERREIRA, 2014; DELGADO e STEFANCIC, 2017; FERREIRA
e QUEIROZ, 2018).

a) Ordinariedade do racismo

Vivemos em um mundo que “foi fundamentalmente moldado


nos últimos quinhentos anos pelas realidades da dominação eu-
ropeia e a gradual consolidação da supremacia branca global”59
(MILLS, 2014, p. 354). No Brasil, as manifestações contemporâ-
neas e mensuráveis da supremacia branca podem ser citadas do
macro ao micro, de economia e emprego à violência obstetrícia:
mulheres negras recebem em média apenas 50% do que recebem
homens brancos60; apenas 4,7% do quadro executivo das 500
maiores empresas do Brasil é composto por pessoas negras61; es-
tudantes negros representam apenas 28,9% na pós-graduação e
professoras pretas doutoras um desalentador 0,3%62; 75% das ví-
timas de homicídio no país são negras63; e mulheres negras são
66% das vítimas de violência obstétrica64.
Esses dados e outras realidades sociais percebidas pela popu-
lação negra brasileira levaram Nascimento a falar da iniquidade

59 Texto original: “"foundationally shaped for the past five hundred years by the
realities of European domination and the gradual consolidation of global white suprem-
acy".
60 Disponível em: https://www.dieese.org.br/analiseped/2013/2013pednegros-
met.pdf. Acesso em: 02 dez. 2019.
61 Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uplo-
ads/2016/04/Perfil_social_racial_genero_500empresas.pdf. Acesso em: 02 dez. 2019.
62 Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2015-05/ne-
gros-representam-289-dos-alunos-da-pos-graduacao. Acesso em: 02 dez. 2019. Dispo-
nível em: https://www.geledes.org.br/menos-de-3-entre-docentes-da-pos-graduacao-
doutoras-negras-desafiam-racismo-na-academia/. Acesso em: 02 dez. 2019.
63 Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-
homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Acesso em: 02
dez. 2019.
64 Disponível em: https://www.almapreta.com/editorias/realidade/segundo-minis-
terio-da-saude-62-8-das-mulheres-mortas-durante-o-parto-sao-negras. Acesso em: 02
dez. 2019.

133
como característica fundamental do Estado brasileiro, pois “tem
sido a cristalização político-social dos interesses exclusivos de
um segmento elitista, cuja aspiração é atingir o status ário-euro-
peu em estética racial, em padrão de cultura e civilização”
(NASCIMENTO, 2019, p. 286), através de um “pacto narcísico”
que inclui um esforço contínuo de exclusão econômica, moral,
afetiva e política dos negros no universo social brasileiro
(BENTO, 2002). Então a ideia de que atos de racismo são apenas
aqueles explícitos, ligados à discriminação explícita e geralmente
discursiva, ignora as formas mais insidiosas de racismo que man-
têm e reproduzem as desigualdades abissais de forma recursiva.
Consequentemente, a Teoria Racial Crítica vê o racismo como
“ordinário, não aberracional – “ciência normal”, o modo usual
pela qual sociedade funciona, a experiência comum e cotidiana
da maior parte das pessoas de cor deste país”65 (DELGADO e
STEFANCIC, 2017, p. 8, trad. livre), sido definida como a “inves-
tigação crítica sobre como o Direito “reproduz, reifica e norma-
liza racismo na sociedade”66 (LÓPEZ, 2003, p. 83) em particular
para indivíduos de classe baixa e pessoas racializadas. Ao enfati-
zar o olhar sobre os processos de reprodução, reificação e norma-
lização do racismo em seu campo de emergência, a TRC natural-
mente foi expandida para outros campos, onde a população afro-
diaspórica passou a ter um olhar crítico e lugar de fala e análise
sobre a realidade social.
Ganham lentamente corpo na pesquisa sobre comunicação e
sociedade digitais as questões raciais, ao mesmo tempo que a
ameaça oferecida “pela supremacia branca online é risco episte-
mológico à nossa acumulação e produção de conhecimento sobre

65 Texto original: “ordinary, not aberrational - "normal science," the usual way soci-
ety does business, the common, everyday experience of most people of color in this coun-
try”.
66 Texto original: “critically interrogate how the law reproduces, reifies, and normal-
izes racism in society”.

134
raça, racismo e direitos civis na era digital”67 (DANIELS, 2009,
p. 8). Por exemplo, a lassidão da pesquisa sobre raça e racismo
online contrastou com a visão estratégica de membros da Ku
Klux Klan que, como documenta Daniels, viam na internet uma
possibilidade de “criar uma reação em cadeia de esclarecimento
racial que vai chacoalhar o mundo pela velocidade de sua con-
quista intelectual” nas palavras do supremacista branco David
Duke em 1998 (DANIELS, 2018, p. 64). Duke é ativo apoiador do
portal neonazista Stormfront, responsável por uma das primei-
ras grandes estratégias análogas a fake news, ao comprar o do-
mínio <martinlutherking.org>, simular um website sério e publi-
car informações falsas sobre o ativista negro.
Aqui, essa percepção sobre a ordinariedade do racismo é es-
pecialmente importante quanto aos impactos tecnológicos sobre
relações raciais em um mundo construído sobre a retroalimenta-
ção entre capitalismo e supremacia branca (NASCIMENTO,
2016, 2019; MILLS, 2014; SOUZA, 2017). Podemos falar de uma
dupla opacidade da dificuldade de tratarmos tanto de questões
raciais quanto da incorporação de valores em dispositivos tecno-
lógicos – sobretudo os que reúnem mais e mais dispositivos au-
tomatizados como os algorítmicos.
Vinte anos depois da citação acima de Duke, o uso de plata-
formas digitais como mídias sociais e mensageiros mobile virou
o jogo em eleições e referendos por todo o mundo, enquanto
ainda há batalhas discursivas se estes movimentos são ou não ex-
tremistas ou supremacistas. A construção das sociedades moder-
nas é fruto de colonização e racialização desenvolvida ao longo
de séculos e, portanto, “somente entendendo a descolonização e
a desracialização eles (acadêmicos da diáspora africana) pode-
riam entender o desenvolvimento do capitalismo e da sociedade
moderna” (ZUBERI, 2016, p. 476).

67 Texto original: “white supremacy online is the epistemological menace to our ac-
cumulation and production of knowledge about race, racism, and civil rights in the dig-
ital era”.

135
Ao ignorar as relações étnico-raciais no processo de design e
construção de dispositivos de comunicação digital, “a indústria
tech deixou uma abertura para nacionalistas brancos – e eles es-
tão sempre procurando oportunidades para empurrar sua ideo-
logia”68 (DANIELS, 2018, p. 63, trad. livre) ao paroxismo do final
da década de 2010.

b) Raça como construção social

A assunção e os desdobramentos da percepção de raça como


uma construção social compõem o segundo grande pilar da Teo-
ria Racial Crítica. Apesar da aparente superação do racismo cien-
tífico na segunda metade do século XX, ainda são frequentes as
recusas em se discutir raça e racismo, geralmente pautadas por
argumentos a-históricos sobre igualdade biológica. É preciso
ainda sublinhar que raça não é “objetiva, inerente ou fixa, não
corresponde a uma realidade biológica ou genérica; na verdade,
raças são categorias que a sociedade inventa, manipula ou apo-
senta quando conveniente”69 (DELGADO, STEFANCIC e
HARRIS, 2017, p. 9, trad. livre). Entretanto, como acontece na
maioria das esferas da atividade humana, seu impacto se dá nas
trocas simbólicas que criam, reforçam ou contestam relações de
poder. Raça, neste sentido efetivo e na práxis, pode ser vista
como “um fenômeno social sui generis no qual sistemas contes-
tados de significado servem como conexões entre características
físicas, faces e personalidade” (LÓPEZ, 2003, p. 240).
É particularmente relevante sublinhar este ponto da TRC, por
considerar que a presença ou ausência de variáveis e identifica-
ção de leituras raciais por produtores e usuários de sistemas in-
formacionais online também não é um dado fixo, mas em

68 Texto original: “the tech industry has left an opening for White nationalists—and
they are always looking for opportunities to push their ideology”.
69 Texto original: “objective, inherent, or fixed, they correspond to no biological or
genetic reality; rather, races are categories that society invents, manipulates, or retires
when convenient”.

136
constante reinvenção e controvérsias. Os significados de raça, ra-
cismo e processos de racialização se transformam na relação en-
tre informação e corporificação nas tecnologias digitais de comu-
nicação, biometria e vigilância, que possuem fronteiras cada vez
menos nítidas.
Uma postura comum das plataformas de mídias sociais é es-
conder o caráter explícito de raça, mas permitir suas manifesta-
ções ou manipulações através de proxies ou atalhos por atores
específicos. Sweeney (2013), por exemplo, identificou o direcio-
namento de anúncios discriminatórios a afro-americanos através
do uso de nomes próprios de cultura negra e africana no busca-
dor Google. Por outro lado, a oferta de conteúdo de mídia em
bancos de imagens como Shutterstock traz como resultado famí-
lias e representações brancas – apenas depois de mobilização de
grupos, como a ONG Desabafo Social, o site incluiu a variável de
raça/etnia como filtro no buscador70.
A escolha de inclusão ou exclusão de variáveis raciais em in-
terfaces de busca de conteúdo ou anúncios é contextual e deve ser
vista como variável analítica relevante. Um dos casos mais rele-
vantes neste sentido foi a denúncia feita pela ProPublica, em
2016, de que o Facebook permitia excluir racialmente públicos
em anúncios de habitação, prática proibida desde 1968 nos EUA.
Mais chocante foi a estratégia de defesa: a plataforma alegou que
as opções tratavam apenas de “Afinidade Multicultural”, mas a
exclusão só poderia ser realizada nas categorias Afro-America-
nos, Asiáticos-Americanos e Hispânicos. Caucasianos/brancos,
porém, não se configurava como uma categoria possível no sis-
tema, gerando um dos casos mais explícitos de design discrimi-
natório que se desenrola desde então (SYLVAIN, 2018).
Desse modo, não só as interfaces digitais para os usuários co-
muns quanto as possibilidades ou impossibilidades para os usu-
ários corporativos de exercer influência e construir mensagens

70 Disponível em: http://desabafosocial.com.br/blog/2017/06/12/desabafo-social-


interfere-no-mecanismo-de-busca-do-maior-banco-de-imagem-do-mundo/. Acesso em:
02 dez. 2019.

137
de forma racializada são apresentadas de forma intencional-
mente confusas pelas plataformas, aproveitando-se do fato que
“a velocidade com a qual as funcionalidades de tecnologias da co-
municação podem evoluir levam a um estado persistente de re-
tardamento entre percepção e realidade” (NAPOLI e CAPLAN,
2018, p. 157).

c) Interseccionalidade

A perspectiva interseccional nasceu na interface entre Teoria


Racial Crítica e estudos feministas a partir de uma proposição de
Kimberlé Crenshaw (1989). A autora partiu de casos de batalhas
legais sobre discriminação laboral nos EUA, onde já existia al-
guma sensibilidade e precedentes para análise do papel do ra-
cismo e do machismo de forma isolada. Mas a intersecção entre
duas ou mais opressões, que penaliza mulheres negras, por
exemplo, não era considerada em suas particularidades. Para
Crenshaw, adotar “frameworks de questão-única não apenas
marginaliza as mulheres negras nos próprios movimentos que as
clamam como parte constituinte, mas também torna o objetivo
elusivo de acabar com o racismo e patriarcado ainda mais difícil
de atingir”71 (1989, p. 152).
A relevância da interseccionalidade, portanto, levou pesquisa-
doras e pesquisadores a elaborar a partir dessa prerrogativa, en-
tendendo a relação entre categorias e marcadores de diferença
quanto a raça, gênero, classe, origem geográfica, neuroatipici-
dade, status de cidadania e outros. Nos estudos de objetos de co-
municação, a ingerência do digital na vida cotidiana evoca alertas
específicos sobre o papel da interseccionalidade. Na medida em
que a privatização da internet complica a dataficação, o neolibe-
ralismo enfraquece avanços sociais e o capitalismo de dados se

71 Texto original: “single-issue framework for discrimination not only marginalizes


Black women within the very movements that claim them as part of their constituency
but it also makes the illusive goal of ending racism and patriarchy even more difficult
to attain”.

138
insere na gestão do cotidiano, como aponta Cottom (2016). Ao
estudar o modo pelos quais faculdades privadas online direcio-
nam atividades e comunicação a estudantes negras marginaliza-
das, aponta que suas atividades classificatórias também combi-
nam camadas de raça, classe e gênero e “focar nos processos pe-
los quais atenção é estratificada usando affordances técnicas
como geradores de leads e algoritmos de busca pode clarificar es-
tes processos”72 (COTTOM, 2016, p. 225).
Mais do que uma prerrogativa programática, a intersecciona-
lidade se torna também aspecto inerente do método da TRC. Ao
revisar a contribuição do pensamento de mulheres negras para a
comunicação no Brasil, Correa e colaboradores apontam, a partir
dos desdobramentos de Crenshaw,

que a emergência dos discursos, expressões e formas de conhe-


cimento dos sujeitos marginalizados permite a compreensão de
aspectos estruturais e complexos das interações sociais de
forma mais ampla. Desse modo, partindo das práticas de des-
legitimação discursiva e violência epistêmica como mecanis-
mos do racismo, sexismo e demais formas de opressão estrutu-
rais e estruturantes, estas práticas se ramificam em toda a soci-
edade, organizando todos os espaços de poder e visibilidade
(CORREA et al, 2018, p. 156)

Interseccionalidade é essencial, portanto, para entender como


o capitalismo se reinventa para manter e aproveitar ao máximo a
“subordinação estrutural, a confluência entre gênero, classe, glo-
balização e raça” (CRENSHAW, 2002, p. 14). Do ponto de vista
empírico da disciplina e ferramental das humanidades digitais, o
projeto interseccional “pede que comecemos com as especificida-
des de um conjunto de dados, identifiquemos as camadas de di-
ferença que intersectam com estes dados e usemos o conheci-
mento como base para o desenho do projeto” (RISAM, 2015, p.

72 Texto original: “focusing on the process by which attention is stratified using tech-
nical affordances like lead generators and search algorithms can clarify these pro-
cesses”.

139
30, trad. livre73). Essas camadas de diferença são relevantes para
a compreensão de um dos temas de pesquisa mais relevantes da
comunicação digital hoje – os algoritmos e seus vieses nocivos
(OSOBA e WELSER IV, 2017). Estes últimos são efetivamente
inscritos em tecnologias muitas vezes por omissão direcionada
por uma falta de noção de alteridade de desenvolvedores e enge-
nheiros de computação (ALI, 2013).
Quem produz as tecnologias? Quem escreve os códigos? Qual
o usuário-padrão imaginado por estas pessoas? Uma perspectiva
interseccional formula estas questões sobre os objetos de pes-
quisa – e sobre os pesquisadores. Entre as principais empresas
do Vale do Silício, por exemplo, a mediana de profissionais ne-
gros é de apenas 2,5%, enquanto representam cerca de 14% da
população estadunidense74. Os olhares que um grupo minorizado
pode ter sobre um determinado problema pode, com frequência,
abrir as caixas-pretas de um determinado sistema, como vere-
mos no caso de Buolamwini e Gebru (2018) na próxima seção. O
conceito de lugar de fala, popularizado para além da academia
nos últimos anos no Brasil em grande medida por feministas ne-
gras (RIBEIRO, 2017) se aproxima de preocupações interseccio-
nais sobre os objetos de análise, mas também sobre seus sujeitos.
De forma similar, Pompper investiga o conceito de diferença nas
Relações Públicas, a partir das propostas da TRC, e descobriu se-
rem especialmente raros os trabalhos escritos por “pesquisador
que explicitamente descreva seu ou sua raça, etnia e cultura em
comparação às dos participantes do estudo ou que descreva

73 Texto original: "asks us to begin with the specificities of a data set, identify the
layers of difference that intersect within it, and use that knowledge as a basis for project
design".
74 Dados combinados a partir da Comissão de Iguais Oportunidades em Emprego
dos EUA e de crowdsourced, compilados em https://www.revealnews.org/article/heres-
the-clearest-picture-of-silicon-valleys-diversity-yet/. Acesso em: 02 dez. 2019.

140
esforços para endereçar diferença a fim de minimizar vieses po-
tenciais”75 (POMPPER, 2005, p. 154).

d) Conhecimento experiencial

O reconhecimento do ponto de vista da população e dos pes-


quisadores negros e de minorias políticas e sexuais como agentes
de construção de conhecimento também é um pilar da Teoria Ra-
cial Crítica, frequentemente ligada ao ativismo efetivo nos ambi-
entes acadêmicos e de produção do conhecimento. Essa alteri-
dade experienciada continuamente no cotidiano parte de uma
dualidade constante entre o pensamento, oralidades e escrita so-
bre si por parte da população negra em contraposição aos ideais
totalizantes do positivismo. Para além disto, pesquisadoras ne-
gras evocam a noção de “outro do outro”, ao tratar do ponto de
vista ou lugar de fala (RIBEIRO, 2017), reconhecendo que “con-
ceitos de sabedoria, conhecimento acadêmico e ciência estão in-
trinsicamente ligados ao poder e autoridades raciais”
(KILOMBA, 2008, p. 27).
Zuberi enfatiza este ponto ao tratar de como a Teoria Racial
Crítica se desdobrou nas Ciências Sociais, nos EUA, advinda do
Direito. Mas, a rigor, boa parte de pensadores negros desde o fi-
nal do século XIX, que escreveram sobre sociedade, como o pró-
prio W. E. B. Du Bois, Maria H. Stewart e Frederick Douglass,
pavimentaram o caminho do uso da fundamentação analítica
para combater a supremacia branca na prática.

Assim como os pesquisadores marginalizados, mulheres e


pessoas de cor frequentemente se engajavam na academia
como agentes de mudança. Eles estavam preocupados em de-
safiar as hierarquias existentes e transformar as próprias pers-
pectivas dos cientistas sociais. Eu faço este destaque para que

75 Texto original: “researcher who explicitly described his or her race, ethnicity, and
culture as compared to study participants’ or who described efforts to address difference
in order to minimize potential bias”.

141
possamos reconhecer que a TCR existia ainda antes que tivesse
este nome. A emergência da TCR como um movimento intelec-
tual e político é um momento fundamentalmente importante
desta articulação. (ZUBERI, 2016, p. 467)

A emergência de dois grupos de objetos na pesquisa em comu-


nicação digital recente é exemplo do conhecimento experiencial
de pesquisadoras negras dedicadas ao campo e da “função das
histórias e da cultura e da maneira como as histórias são histori-
camente e socialmente posicionadas à medida que contamos”
(FERREIRA, 2014, p. 245). Um deles é resultado da convergên-
cia entre três aspectos: a ascensão de pontos de vista de mulheres
negras em espaços acadêmicos, a tendência de valorização da
transição capilar como um resgate político da estética afro-brasi-
leira e mídias sociais como espaço de agregação comunitária e
contra-narrativas. Os prolíficos trabalhos sobre as comunidades
relacionadas a transição capilar e cabelo afro nos últimos cinco
anos, realizados por graduandas, pós-graduandas e pesquisado-
ras negras, mostram o uso do online na construção dessas comu-
nidades e contra-narrativas estéticas. A partir de Crenshaw, por
exemplo, Souza e Muniz concluem sobre universitárias da Unilab
que “o empoderamento que a afirmação estética trouxe para elas
possibilitou inclusive um questionamento maior das opressões a
que estavam submetidas em contexto universitário e também ge-
ográfico” (2017, p. 97). Sobre os desafios da invisibilidade, Buo-
lamwini publicou diversos experimentos de análise de viés e dis-
criminação algorítmica nos últimos anos, com destaque para dois
projetos. O primeiro deles (BUOLAMWINI, 2017;
BUOLAMWINI e GEBRU, 2018) investigou APIs de visão com-
putacional para entender vieses de raça e gênero na identificação
de rostos e características como o próprio gênero e idade. Estas
tecnologias, de corporações como IBM e Microsoft, são emprega-
das de aplicativos mobile de entretenimento a tecnologias de vi-
gilância e, portanto, cada vez mais críticas nos fluxos de mensu-
ração biopolítica. As pesquisadoras identificaram também um

142
abismo na acurácia de identificação das variáveis, de um espectro
que vai da precisão altíssima em fotos de homens brancos a taxas
de erros enormes em fotos de mulheres negras. Além do artigo
acadêmico, disponibilizaram o site GenderShades.org, que ex-
plica claramente os principais resultados do experimento com
páginas interativas, gráficos e vídeos. E desenvolveram um da-
taset mais eficiente que o usado por aqueles fornecedores de vi-
são computacional. Depois de publicar os resultados, os fornece-
dores supracitados das tecnologias publicaram notas sobre os er-
ros. Um ano depois, o projeto reproduziu o experimento nas APIs
para conferir se os índices melhoraram (RAJI e BUOLAMWINI,
2019), identificando que o gap entre a acurácia diminuiu – tam-
bém incluíram outros fornecedores, Amazon e Kairos, para com-
paração e expansão do impacto.
O fazer acadêmico nesta trajetória destes experimentos de Bu-
olamwini, como pudemos ver, foi além da materialidade das mé-
tricas tradicionais de publicação e citações, incluindo divulgação
científica e impacto mensurável. Ao “destacar o tema das dispa-
ridades de performance classificatória e amplificar consciência
pública do problema, o estudo foi capaz de motivar empresas a
priorizar a questão e gerar melhorias significativas” (RAJI e
BUOLAMWINI, 2019, p. 6). Mas esta jornada começou antes, do
ponto de vista experiencial da estudante. Em um TED de 2016,
Joy Buolamwini comentou como, em uma demonstração de re-
conhecimento racial durante um evento,

a demonstração funcionou com toda a gente até chegar a minha


vez. Provavelmente já adivinham. Não conseguiu detectar o
meu rosto. Perguntei aos responsáveis o que é que se passava,
e acontece que tínhamos usado o mesmo software genérico de
reconhecimento facial. Do outro lado do mundo, aprendi que o
preconceito do algoritmo pode viajar tão depressa quanto um
download de arquivos da Internet.76

76 Disponível em: https://www.ted.com/talks/joy_buolamwini_how_i_m_figh-


ting_bias_in_algorithms/transcript?language=pt. Acesso em: 02 dez. 2019.

143
A ênfase que a Teoria Racial Crítica dá, então, ao conheci-
mento experiencial não pode ser subestimada. Além do caso
acima ter sido visto por milhões de pessoas no site da TED e ter
motivado a pesquisadora, trata-se de um caso particular sobre o
valor do conhecimento experiencial particular. Associado à des-
treza técnica e acadêmica posterior, este conhecimento permitiu
que duas pesquisadoras sozinhas propusessem um sistema mais
eficiente do que dezenas de desenvolvedores da IBM e Microsoft.

e) Transformação social

O próximo pilar é imbricado nos anteriores e podemos evocar


os casos citados. A prática política de transformação social, en-
tão, é outro pilar do movimento, uma vez que esta “mede pro-
gresso pelo avanço nos trilhos para a transformação social fun-
damental” (MATSUDA et al, 1993, p. 202)77. Desse modo, habili-
tar mudanças positivas da realidade social é uma prerrogativa da
TRC. Se as tecnologias podem engendrar processos de racializa-
ção e injustiças, também é necessário “pressionar as fronteiras
das políticas públicas de modo que a compreensão dos modos
que a marginalização é mantida possa mudar substancial-
mente”78 (NOBLE, 2018, p. 1301).
Em trabalho sobre websites de universidades e seu papel na
representação e acolhimento de estudantes racializados nos
EUA, Mungo pontua que “a presença ou ausência de pessoas de
cor em websites de universidades, o texto que ocorre junto a suas
imagens, os papéis que desempenham e as mensagens sobre raça
são todos elementos importantes”79 (MUNGO, 2016, p. 242). In-
terrogar os modos pelos quais estes websites são construídos é

77 Texto original: “measures progress by a yardstick that looks to fundamental social


transformation”.
78 Texto original: “press the boundaries of public policy so that the understanding of
the complex ways that marginalization is maintained can substantially shift”.
79 Texto original: “presence or absence of people of color on university websites, the
text that occurs alongside their images, the roles they are shown playing, and the mes-
sages about race are all important elements”.

144
uma tarefa que envolve tanto a análise de representação dos per-
sonagens escolhidos quanto sua contextualização socio-histórica
com dados – como distribuição racial da cidade do campus e da
composição do alunado da instituição – e reflexão sobre o papel
das universidades no combate às desigualdades, por exemplo.
Este chamado pelo trabalho “além dos muros da academia”,
para citar a frase que já se tornou clichê, não se trata de uma crí-
tica ao acadêmico ou “academicismo” como se fosse uma posição
ruim per si. Como apontam Ladson-Billings e Donnor, o desafio
não é a rejeição do conhecimento acadêmico ou papel da univer-
sidade nem defender que todos devam seguir o lugar e o ethos
acadêmico “mas reconhecer as identidades ‘de fora da academia’
que devemos recrutar para nós mesmos a fim de sermos pesqui-
sadores mais efetivos em nome de quem pode usar nossas com-
petências e habilidades”80 (2008, p.298).
Em um zeitgeist neoliberal que glorifica as empresas de tec-
nologia e CEOs, Broussard propôs o termo “technochauvinismo”
para dar conta de algumas assunções hegemônicas sobre tecno-
logia:

a crença que a tecnologia é sempre a solução [...], geralmente


acompanhada por crenças vizinhas como meritocracia; valores
políticos tecnolibertarianistas; celebração da liberdade de ex-
pressão ao ponto de negar que assédio online é um problema; a
noção que computadores são mais “objetivos” ou “enviesados”
porque eles destilam questões e respostas em avaliação mate-
mática; e uma fé inabalável que se o mundo criasse mais com-
putadores e os usassem apropriadamente, problemas sociais
desapareceriam e criaríamos uma utopia digital (BROUSSARD,
2018, p. 166).

A comunicação como objeto e como fim se entrelaçam no


olhar da TRC, uma vez que os ambientes digitais se tornam um

80 Texto original: “recognize the 'outside the academy' identities that we must recruit
for ourselves in order to be more effective researchers on behalf of people who can make
use of our skills and abilities”.

145
local essencial para disputas de narrativas do ponto de vista da
retórica dos ativismos e participação digitais e também do res-
gate de história, dados e informações ou, ainda, promoção de li-
teracias digitais na interface com a educação (DANIELS,
NKONDE e MIR, 2019). Uma “tecnologia do resgate” é o que de-
fine Gallon ao propor uma perspectiva negra sobre as humanida-
des digitais. Os esforços de “trazer a humanidade plena de pes-
soas marginalizadas através do uso de plataformas e ferramentas
digitais”81 (GALLON, 2015, s.p.) aproximam, para a autora, tanto
projetos típicos de humanidades digitais quanto movimentações
como o #BlackLivesMatter e casos de auditoria algorítmica como
os citados.

f) Interdisciplinaridade

Por fim, como também o conceito de interseccionalidade já ci-


tado evoca, a interdisciplinaridade é considerada marca essencial
para os objetivos de projetos calcados na Teoria Racial Crítica.
Para Obasogie, “ligar métodos das ciências sociais com a teoria
crítica racial fornece uma oportunidade notável de produzir pen-
samento acadêmico racial que seja tanto teoricamente sofisti-
cado quanto empiricamente robusto”82 (OBASOGIE, 2013, p.
185).
Ao transitar do Direito para Educação, História, Sociologia,
Comunicação e outras disciplinas, a TRC demonstrou sua capa-
cidade transdisciplinar que, justamente, pode ajudar a superar
uma “literatura acadêmica hegemônica tende a tratar raça como
um aspecto a-histórico, essencialista e despolitizado da identi-
dade”83 (ALLEN, 2007, p. 260). Mas, para além de inspirar

81 Texto original: “bring forth the full humanity of marginalized peoples through the
use of digital platforms and tools”.
82 Texto original: “Linking social science methods with critical race theory provides
a remarkable opportunity to pursue race scholarship that is both theoretically sophisti-
cated and empirically robust”.
83 Texto original: “mainstream communication scholarship tends to treat race as an
ahistorical, essential, and depoliticized aspect of identity”.

146
programas de investigação em outras disciplinas, a TRC procura
ir além para promover “uma análise mais abrangente e multifa-
cetada de como raça, racismo e (des)igualdade racial se manifes-
tam” (FERREIRA, 2014, p. 243). Uma vez que o digital se es-
praiou para diferentes facetas semânticas e materiais da socie-
dade, merecem destaque propostas informadas pela TRC que se
debruçam especialmente sobre o aspecto interdisciplinar, pode-
mos citar a Critical Technocultural Discourse Analysis e a apro-
ximação ao conceito de “microagressões raciais”.
Desenvolvida pelo psiquiatra Chester Pierce nos anos 1970, a
trajetória das pesquisas sobre microagressões tenta entender
como racismo – e posteriormente outros tipos de opressões – se
manifestam em agressões contínuas e aparentemente sutis no
cotidiano de grupos minorizados. Aproximar da TRC permite
que se vá “além da interação agressor-vítima e ilustra que estes
atos racistas cotidianos possuem um propósito, sejam cometidos
conscientemente ou não, de perpetuar e justificar um sistema
amplo de dominação racial”84 (HUBER e SOLORZANO, 2014, p.
18). Aplicada a estudos de racismo online e crimes de ódio em
suas manifestações discursivas e algorítmicas, expande-se a tipo-
logia clássica de microagressões para incluir desinformação e de-
seducação (TYNES et al, 2019; SILVA, 2019).
A Análise Tecnocultural Crítica de Discurso (Critical
Technocultural Discourse Analysis) foi proposta por Brock
(2012, 2016) e performa “análises do design virtual e material das
tecnologias da informação com um olhar investigativo sobre a
produção de significado através das práticas e articulações dos
usuários em questão”85 (BROCK, 2016, p.2). O entendimento é
que a CTDA busca abordar a Internet e objetos de mídia para
pensar multimodalmente: infraestrutura, serviço, plataforma,

84 Texto original: “beyond a perpetrator-target interaction and illustrates that these


everyday racist acts have a purpose, whether committed consciously or not, to perpet-
uate and justify a larger system of racial domination”.
85 Texto original: “analyses of information technology material and virtual design
with an inquiry into the production of meaning through information technology prac-
tice and the articulations of information technology users in situ”.

147
aplicações, objeto, sujeito, ação e discurso são indissociáveis e o
pesquisador parte da análise crítica não apenas de conteúdos,
mas também como o meio evoca e materializa as relações de po-
der e racialização que formatam os "usuários" e "produtores" em
diferentes engajamentos com o fenômeno em questão.

CONCLUSÕES E DESDOBRAMENTOS

Buscamos, neste artigo, apresentar os principais pilares da


Teoria Racial Crítica e colaborações possíveis para debates con-
temporâneos sobre objetos da comunicação digital, notadamente
potenciais impactos de interfaces e algoritmos digitais em um
mundo plataformizado e cada vez mais opaco.
A partir de seis dos pilares mais característicos da perspectiva
da Teoria Racial Crítica, queremos promover – sem pretensões a
universalismos ou perspectivas positivistas – que de fato louva-
mos seu “reconhecimento como um movimento, assim como
através da colaboração de indivíduos e tradições oriundas de ou-
tras disciplinas” (ZUBERI, 2016, p. 482). Concordamos com
Silva e Pires quanto ao papel da TRC “questiona fatos que tam-
bém são relevantes no Brasil ao se discutir a estrutura racial-
mente hierarquizada da sociedade e das instituições” (2015, p.
68). As semelhanças entre a tradição estadunidense e o pensa-
mento de pensadores negros brasileiros sobre raça permite “evi-
denciar tanto as estratégias e políticas antirracistas desenvolvi-
das pelos acadêmicos negros, como as estratégias de exclusão, si-
lenciamento e apagamento articuladas pelo supremacismo
branco – ambos em uma perspectiva transnacional” (FERREIRA
e QUEIROZ, 2018, p. 218). Um projeto interdisciplinar que não
veja a comunicação apenas como campo de formatos e meios por
uma “tecnofilia acrítica” e possa buscar de fato seu valor social,
cultural e político (SODRÉ, 2012).
Em trabalhos vindouros se buscará a verticalização do debate
sobre os pilares da Teoria Racial Crítica no campo, fenômenos,

148
objetos e redes da comunicação digital, com vista a somar aos es-
forços de conexões epistemológicas das similaridades e proble-
mas em comum das populações afrodiaspóricas.

149
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