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Transcrição da Entrevista do Professor António Nóvoa

feita pela Escola Superior de Educação de Coimbra

Título: “Os novos desafios na formação de educadores/as e professores/as”

Data: 13 fevereiro 2020

Pergunta 1: Há muito que se fala de a escola acompanhar as mudanças. Como é


que se consegue articular o ritmo e as especificidades do sistema educativo com
o ritmo da sociedade?

AN: A escola vai mudar muito nos próximos anos e essa mudança é uma mudança
absolutamente inevitável, isto é, a dimensão das tecnologias, do digital,
das transformações sociais, das redes vão abrigar a escola a uma profunda
mudança. Eu gostaria que essa mudança acontecesse na perspetiva de uma
metamorfose, isto é, de uma mudança de forma da escola mas em que a escola
mantivesse aquilo que é essencial do ponto de vista do seu núcleo: o conhecimento,
a aprendizagem, a capacidade de aprender a viver uns com os outros; que essas
dimensões da escola se mantivessem e se prolongassem no tempo e que não
perdêssemos a escola por incapacidade da sua transformação. O ritmo de
mudança da escola é sempre um ritmo de mudança mais lento do que o ritmo
tecnológico ou do que o ritmo digital, mas isso não quer dizer que a escola não
tenha, até pela possibilidade de ter os jovens lá dentro, ter as novas gerações,
um potencial de transformação absolutamente imenso. Eu estou certo que a escola
vai mudar muito nos próximos anos, pode usar no mau sentido, pode mudar no bom
sentido, esperemos que seja no bom sentido.

Pergunta 2: Existem várias especulações sobre como deveria ser o professor do


futuro. Na sua opinião, como deveria ser o professor do presente?

AN: Para mim, aquelas ideias futuristas em que o professor é substituído por umas
máquinas ou por uns dispositivos, etc, eu não digo que isso não seja possível, mas
perde-se uma dimensão que é uma dimensão central, para mim, da educação, que
é a dimensão humana; e essa dimensão é insubstituível; não é possível substituir
essa relação humana, essa dimensão humana, por máquinas. Não quer dizer que
as máquinas não são importantes, são essenciais como instrumentos como
possibilidade de aceder a conhecimentos que de outra forma não teríamos, mas
não podemos perder esta dimensão humana e por isso o professor para mim é
insubstituível e não consigo imaginar nada que possa substituir um bom professor.
Agora, um professor dos tempos presentes não é igual ao professor do meu tempo,

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é desde logo um professor tem que trabalhar em equipa é um professor que não
trabalha sozinho dentro da sala de aula, o professor tem que trabalhar com outros,
com outros colegas, com outros professores, até com pessoas que não são
professores, na construção das aprendizagens dos alunos; é um professor que não
se pode fechar dentro do espaço da sala de aula; é um professor que assumirá
cada vez mais o papel de alguém que acompanha os alunos na sua aprendizagem
e menos o papel daquele que dá aulas; não quer isto dizer que o conhecimento não
é importante, o conhecimento é central, não há ensino não há educação, não há
aprendizagem sem conhecimento. Mas quer dizer que hoje a relação de um aluno
com o conhecimento, até pela facilidade de aceder ao conhecimento, é muito mais
uma relação de ir à procura desse conhecimento, com o apoio do professor,
certamente, com a supervisão do professor sempre, mas também numa relação
com os outros colegas, numa relação com pessoas que estão fora da escola. Há
aqui uma mudança enorme no que é a forma de organização do trabalho do
professor que certamente não é, já hoje no presente, ir dar a sua aula de uma hora,
e muda para outra turma e dá outra aula de uma hora e muda para outra turma e
dá outra aula de uma hora. Há uma mudança fundamental na organização do
trabalho docente e isso já se vê em muitas escolas, não estou a dizer nada que
não aconteça já, são realidades que acontecem em milhares e milhares de escolas,
mas que tem que se estender ao conjunto do sistema educativo e das nossas
escolas.

Pergunta 3: As novas gerações cresceram com outros estímulos e têm outra


forma de interagir com o mundo que as rodeia. Esta nova realidade tem mais
vantagens ou riscos?

AN: A realidade das sociedades e das tecnologias e do digital é o que é, nós não
podemos que gostar mais ou gostar menos, mas essa é a realidade. A escola tem
que trabalhar com essa realidade, a escola tem que ser capaz de, em cima
dessa realidade, conduzir os alunos e as aprendizagens para o lugar que é o
lugar que a escola entende que deve ser; e a escola e os professores têm
uma responsabilidade nisso O filósofo francês Alain [Finkielkraut] no princípio do
século XX é uma coisa extraordinária, ele dizia o professor é aquele que consegue
fazer com que os alunos no fim se agradem com aquilo que no princípio não lhes
agradava nada; de facto o professor não está ali para agradar aos alunos nem está
ali para dizer ‘o menino não gosta de matemática e não te dar matemática’, não, o
professor está ali para conseguir que o aluno que não gostava de nada de
matemática no princípio, no fim goste de matemática. E esse trabalho é um
trabalho que hoje não pode deixar de recorrer aos instrumentos digitais, às
maneiras de acesso ao conhecimento, não pode deixar de recorrer a relação entre

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os alunos, à capacidade de uma formação mútua, de uma cooperação entre os
alunos, entre os alunos mais novos e os alunos mais velhos, entre o que está dentro
da escola e que está fora da escola. É essencial, não vale a pena interrogarmo-nos
se é bom se é mau, quer dizer é o que temos, é a sociedade que temos, é a maneira
como a sociedade se organizou e a escola tem que trabalhar com isso; não se pode
fechar os olhos e imaginar-se numa escola isolada no meio de uma aldeia ou de
uma montanha como era há cem anos atrás, isso não existe, não é essa a realidade
dos nossos alunos, não é essa a realidade da sociedade do século XXI, não é essa
realidade das escolas. Por isso temos de ser capazes de trabalhar com isto, não para
nos deixarmos asfixiar por isto, mas para sermos capazes de com isto conduzirmos
todas as crianças às aprendizagens e conduzirmos aos lugares, aos
conhecimentos, às culturas que nós adultos entendemos que é importante que elas
lá cheguem. Nós temos uma responsabilidade perante as próximas gerações,
perante as gerações futuras. Não se trata nunca de ensinar nem de educar nem de
aprender aquilo que os meninos gostam; trata-se de sermos capazes de fazer com
que eles gostem eventualmente daquilo que no princípio não gostavam nada.

Pergunta 4: Continuamos a apostar na formação de futuros bons profissionais,


competitivos e produtivos ou começa a haver uma maior atenção à educação
emocional, à formação de seres humanos conscientes e felizes?

AN: Eu não sou capaz de responder a isso de uma forma muito direta
porque, durante muito tempo quando dava as aulas aos professores, aos alunos
que iam ser professores, uma das coisas que lhes dizia sempre, e da qual estou
absolutamente convencido, é: sempre que vocês coloquem uma pergunta
dicotômica, não respondam; porque não há resposta possível, isto é, a resposta está
numa terceira coisa, não está numa dicotomia; o que é importante, é o ensino ou a
aprendizagem? as duas coisas; o que é que é importante, a autoridade ou a
liberdade?; a liberdade é essencial mas pode haver educação se autoridade? o que
é que é importante, o conteúdo o método? como é que eu posso separar essas duas
coisas? o que é que é importante, é dimensão profissional ou a dimensão humana?;
a profissão faz parte da dimensão humana, eu não consigo imaginar o
nosso desenvolvimento humano pleno sem uma relação com o trabalho, sem uma
relação com a profissão, portanto é preciso as duas coisas, é preciso esse equilíbrio
e esse equilíbrio muitas vezes tem faltado. Em muitos discursos, há discursos muito
centrados sobre a dimensão quantitativa, profissionalizante, dar uma profissão às
pessoas, serem as elites das elites, os melhores dos melhores, nessa espécie de
competição, às vezes até obsessiva, excessiva e que muitas vezes provoca um mal
enorme aos próprios alunos que são os melhores alunos e que num determinado
momento se cansam disso. E depois às vezes parece que há um discurso um

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bocadinho etéreo, sobre a questão humana como se a dimensão profissional do
trabalho não estivesse também dentro da dimensão humana. É preciso equilíbrios.
A escola é um espaço de muito equilíbrio, é um espaço de muito bom senso e é bom
que não haja fundamentalismos na escola, é bom que não haja pessoas que
pensam que sabem tudo, que têm as soluções para tudo e que desenvolvem uma
espécie de um discurso em que só veem um dos lados. Eu uso muitas vezes um
texto de escrevi, e que acho que é aquele que tem o título mais bonito, e não é meu,
por isso é que eu digo que ele é o mais bonito, o título é de um conto do
João Guimarães Rosa, o grande escritor brasileiro, chama-se A Terceira Margem do
Rio, e o João Guimarães Rosa diz não vale a pena estarmos numa margem ou na
outra, nas dicotomias, o movimento, o processo, o caminho, a viagem faz-se na
terceira margem do rio, e a terceira margem do rio é o próprio rio. Aí é que está o
movimento e eu julgo que na escola é a mesma coisa; precisamos de encontrar
essas dinâmicas de movimento sabendo que essas dinâmicas são diferentes de
uma criança para outra criança para outra criança, que nem todas trabalham ao
mesmo ritmo, que nem todos aprendem da mesma maneira, que nem todas
querem as mesmas coisas, mas é preciso encontrar essa dinâmica de equilíbrio
num discurso que nos conduza ao movimento, à viagem e não em dicotomias que
não nos ajudam a pensar nem a escola do presente nem a educação do futuro.

Pergunta 5: Considera que ser educador / professor atualmente num mundo que
muda a um ritmo vertiginoso é assustador ou uma grande oportunidade?

AN: É muito assustador; hoje os professores vivem muito assustados, assustados por
muitas razões; pelo desprestígio da profissão por um excesso de burocracia, a
carga burocrática sobre o trabalho dos professores, a carga de prestação de
contas, de formulários, de papéis é absolutamente assustadora; a quantidade de
coisas que os professores são supostos ensinar é imensa; há um nível de exigências
enorme sobre os professores, imenso sobre os professores sem que lhes tenha
sido usada a capacidade de eles poderem exercer plenamente isso. Nós estamos a
pedir imenso aos professores e não lhes estamos a dar os instrumentos,
instrumentos de autonomia, instrumentos a formação, instrumentos de bem estar
até do ponto de vista profissional; estamos num momento muito difícil e em cima
disto os professores têm a consciência de que a profissão está a mudar muito; já
não se é professor hoje como se era professor há 30 ou 40 anos atrás, há relações
que estão a mudar muito, que a que ideia do que é ser professor, do próprio horário
do seu trabalho, tudo está a mudar a um ritmo vertiginoso e portanto isto é
um momento assustador para os professores, é um momento difícil para os
professores. E é por isso que é preciso que os poderes públicos que as instituições
como as universidades ou as instituições de ensino superior, como as associações,

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consigam perceber este momento da vida dos professores e sejam capazes de lhes
dar o apoio que permita transformar este susto, ou esta angústia, estes dilemas,
em qualquer coisa de positivo. É por isso que chamar a atenção sistematicamente
para a ideia da importância dos professores, para a ideia de que os professores não
vão ser substituídos por máquinas, para a ideia de que os professores continuarão
a ter um papel decisivo no futuro é muito importante e é por isso que é
também muito importante escrever, publicar coisas sobre experiências de
professores. A UNESCO, onde estou agora como sabe, tem uma revista, acabou
de dedicar uma dessas revistas ao tema ‘os professores que mudam o mundo’,
com experiências de todo o mundo de professores extraordinários, que estão a fazer
coisas extraordinárias às vezes em condições dificílimas; porque é também a
partir desta mostrar o que se faz que também vamos tendo inspiração para outras
coisas. Os professores são um grupo, uma classe, são pessoas, são profissionais
absolutamente indispensáveis para o futuro; não há ninguém mais importante para
o futuro, para a formação das próximas gerações, para a formação das gerações
que já estão e que continuam a querer formar-se e a querer ter novas
oportunidades de formação; não há nada mais importante que os professores.
Agora, os professores não se podem fechar, não podem ficar uma atitude defensiva,
não podem ficar numa atitude excessivamente angustiada e têm que ser capazes
de se apresentar ao mundo, de se expor publicamente, de serem capazes de dizer
‘nós não podemos resolver tudo mas estamos a fazer coisas, estamos a trabalhar
de outra maneira, estamos a construir novos caminhos’ e este prestígio, e este
reconhecimento público que lhes virá desta capacidade de avançar com novas
ideias e novas capacidades, é absolutamente central. Quando digo isto – eu sei
que fiz muito da minha vida a pensar e a refletir sobre os professores e posso ter
aqui e uma atitude parcial – mas eu estou absolutamente convencido que não há
nada na educação, não houve no passado não há no presente e não haverá no
futuro, não há nada que substitua um bom professor. Essa é uma matriz, do ponto
de vista da relação humana, que é absolutamente imprescindível e isso é uma coisa
que os professores têm que guardar dentro deles e têm que saber, em cada
momento, que no meio de tantas dificuldades nada, mas mesmo nada, substitui um
bom professor.

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