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CAPITULO I

O ESPÍRITO DA CIVILIZAÇÃO AMERICANA

1. Prosperidade e idealismo
2. A tradição democratica
3. Renovação permanente

Geralmente se faz fóra dos Estados Unidos uma idéa talvez grandiosa de sua
civilização, mas em grande parte deformada.    A espectaculosidade de sua
grandeza material, a vibração de sua vida nacional, e a coragem leve e fácil de
romper com as convenções e a té com algumas das mais fortes tradições humanas,
levam o estrangeiro a uma comprehensão superficial da America do Norte.
A maior parte das vezes, pensando em termos de sua propria    nação, elle
depressa julga os Estados Unidos, como o paiz do dollar, da machina, da
suppressão dos valores moraes e espirituais que sempre engrandeceram as
conquistas mais finas das velhas civilizações.
Será preciso ir á America, conviver com o seu povo, frequentar as suas
Universidades, para se descer um pouco mais ao fundo dessa civilização e lobrigar
o espirito que a anima.
E a primeira surpreza que agrada o visitante despreconcebido e sincero será
a de perceber o logar secundario que occupa na mentalidade americana a
imprevista prosperidade economica que o paiz chegou a desfructar.
Nem o numero dos seus millionarios, nem a altura dos seus arranhas-céos,
nem a grandeza de suas cidades, nem o vulto de seus progressos materiaes, jamais
allucinaram o americano.
Talvez no início do desenvolvimento industrial moderno, houvesse um
momento de justificado assombro diante dos portentos do homem, e o americano se
excedesse no julgamento desses valores externos de sua civilização.    Depressa,
porém, tal febre passou, e quem quizer renovar o seu espirito ao contacto de uma
honesta e insalutar philosophia de valores moraes e humanos, comprehendidos na
sua mais alta plenitude, tem que ir aos Estados Unidos e aprender com seus
leaders um novo idealismo.
A tradição americana, o que ha de ficar com a lição permanente desse povo,
como sua contribuição característica para a humanidade, não é puramente o
industrialismo moderno, mas o espírito de sua democracia.
Todos os progressos materiaes, esses progressos que atordôam e perturbam
o estrangeiro que se céga para os outros aspectos apenas para uma cousa, bem
certo que fundamental: elles tornaram e tornam possivel o progresso humano.
2 ANISIO TEIXEIRA

Em vez da machina estar a destruir o homem, como prophetas mal avisados


annunciaram e annunciam ainda, é o sentido da alta dignidade e valor do indivíduo
que ella virá. Por fim, a implantar.
E esse é o sentido da propria civilização americana, si a quizermos interpretar
pelas tendencias e correntes de aspiração com que nos acenam os factos e as
idéas na sua significação mais delicada e profunda.
Nada mais fugido á analyse concreta do que as tendencias e correntes de
factos e aspirações que circulam em um paiz.    Tentamos, entretanto, apontar, aqui
e alli, os signaes e vestigios mais esclarecedores de que se está processando
nessa parte do atlantico, um novo estado de vida, entre os homens.
A grande scena apparente na America é, com effeito, a da civilização material
que o povo americano construiu, mais grandiosa e magnificente do que todas as
que já existiram no passado.    Nada disto porem é um fim em si mesmo.    Antes, si
o americano se deleita, como todo o mundo, com o vulto dos seus progressos, é
que elle percebe, obscuramente, no seu vigoroso idealismo, que é o homem que se
está melhorando, que são as suas condições de vida que estão modificando.
Os reis de industria que são os heroes dessa nacionalidade, não o são
porque amontoaram fortunas inimaginaveis, mas porque foram os realizadores de
serviços novos ou de novas ideas em serviços velhos – porque afinal são os
melhoradores da vida.
O bom senso americano, está claro, se diverte com a mentalidade
embolorada de certos philosophos que alimentam inexplicavelmente um secreto
terror pelo bem estar material.    “Isto não pode durar”, dizem alguns.    Qualquer
formidavel currupção está a se preparar no bojo de ouro e aço dessa grandeza
monstruosa.
Tal gente está a soffrer de pesadelos.    São pobres inveterados que já não
acreditam na tranquilidade.    Riquezas, para essas imaginações da edade media,
são jogos do demônio.
A intelligencia sadia do americano está muito distante desses delirios.    A
visão do continente, hontem bravio e selvagem hoje domesticado, civilizado, trazido
ao manejo facil do homem com as suas distancias encurtadas, seus productos
manufacturados, suas possibilidades de conforto realizadas – é a visão tranquilla e
pratica de quem apenas começou a sua obra mas que a vê bem encaminhada e util.
O perigo de uma casa rica e luxuosas não existe para o homem ambicioso e
persistente que a construiu como parte do sonho lucido e pratico de uma vida mais
folgada e mais feliz.    Para esse, a casa apenas construida deixou praticamente de
existir em sua imaginação para construir simplesmente um dos elementos com que
pode contar na prosecução do seu sonho de vida.    O perigo existe para o pobre
que fôr de repende atirado dentro desse esplendor que não construiu e, offuscado, o
tomar como fim em si mesmo.    Esse fica para sempre inutilizado, e o resto de sua
vida se consome e, gozar as maravilhas do palacio.
Todos os dias ouvimos dizer que o americano perdeu o sentido da “arte de
viver”.    Que esse furioso fazedor de cousas, no esforço desmesurado de construi,
está a deixar escapar as partes mais finas da existencia.    Tremendo amontoador de
riquezas não sabe gozar as suas riquezas.    A verdade que se occulta nessa
constante critica, está, a meu vêr, no que vinha ha pouco dizendo.    E’ o pobre
3 EM MARCHA PARA DEMOCRACIA

estrangeiro que lastima com os olhos cumpridos, o desperdicio desastrado do


americano.
Para o americano, porem, a sua obra tem sentido mais dilatado e vivaz.    A
sua nação foi concebida em liberdade, na phrase de Lincoln, e nella todos os
homens haviam de ter direito á vida, á liberdade e á felicidade.    É essa tradição de
liberdade e democracia, que informa poderosamente a mentalidade pratica deste
povo.    Liberdade e felicidade não são porém dons da natureza, mas conquistas
humanas.    Ser livre consiste em poder mais.    Quando o vapor substitui a véla, foi a
liberdade humana que se augmentou.    Quando do meu telephone, em Nova York,
eu estendi a minha voz até Londres, foi a minha liberdade que cresceu.    Quando
Chicago foi trazido ao meu alcance, em cinco horas de avião, foi a minha liberdade
effectiva de movimento que se dilatou.    Mais do que isso, liberdade significa ainda
garantia contra as doenças; e, por outro lado, segurança de saude, de diversões e
de conforto.    Mas todo esse plano de prosperidade, que pode ser assegurado pela
prosperidade economica e pelo desenvolvimento scientifico, está, longe de ser
completo.    Para o homem ser feliz será preciso ainda que se lhe ensine a viver com
os outros homens num espirito de livre e generosa participação, com um sentimento
de legitima fraternidade.
Bem sei que seculos de eloquencia e palavreado, desacompanhados de
realizações praticas, estragaram, todos estariamos a dizer irremissivelmente, esses
familiares ideaes democraticos de liberdade, egualdade e fraternidade.    De minha
parte, eu os fui restaurar nas fontes americanas.    Ali é que estive lobrigando como
elles não são os engôdos que a nossa eloquente demagoga latina estivera a pique
de me fazer crer.    O que os Estados Unidos estão realizando através de sua
educação e de suas innumeras instituições sociaes é o alargamento e expansão da
vida em todos os sentidos.    E’ uma cultura, uma cultura material, intellectual, moral
e artistica, de que todos venham a participar, que se está elaborando nessa parte do
planeta.    Nenhuma face do problema está esquecida, parte alguma do
desenvolvimento material da republica ganhou tal hypertrophia que a leve a medrar
á custa de sacrificios de valores.    Conscientemente, deliberadamente, é para o bem
estar de todos os americanos, sem distincção, sem barreiras sinão as impostas pela
natureza, é por uma vida mais larga e mais ampla, que todas as forças dessa
civilização estão lutando.

A TRADIÇÃO DEMOCRATICA

A grande tradição nacional de democracia vem com o correr dos tempos se


aprofundando e se alargando.    De simples democracia politica, ou do direito de se
ter um voto no governo do paiz, passou a significar o direito de cada individuo ás
opportunidades necessarias para, na medida de seus forças, se desenvolver
plenamente no campo economico ou no campo    social.    Não só o individuo terá
meios ao seu alcance para a libertação de seus talentos, para a expressão total dos
seus valores, como a sociedade lhe fornecerá os elementos para comprehender os
interesses em conflicto do seu paiz e se ajustar, na estructura social, como unidade
efficiente e benefica.    Quer dizer: a tradição democratica não só provê ao preparo
do individuo, como tal, dando-lhe opportunidades economicas e educativas, como
ainda o prepara para a vida social.
4 ANISIO TEIXEIRA

Effectivamente, existe certo conflicto entre o desenvolvimento completo das


capacidades individuaes e os diversos e contradictorios interesses da sociedade.    A
democracia americana visa facilitar a necessaria conciliação social, alargando os
pontos de interesse commum, expandindo as possibilidades de contacto e
integrando, tanto quanto possivel, toda a estructura social.    O cidadão encontra,
assim, opportunidades para entender plenamente a multidão de interesses em
conflicto do paiz e de ajustar ao seu plano complexo e vasto.
A democracia, deste modo, representa a expansão geral da vida em busca de
formas mais ricas, mais amplas e mais satisfactorias.    Em geral, os mais generosos
ideaes podem vir a ser victimas das proprias instituições criadas para os exprimir,
uma vez se tornem ellas fixas e imutaveis.    Dahi a necessidade de que nenhuma
instituição, seja ella forma de governo, ou forma de organização de familia, ou o que
fôr – venha a ser julgada definitivamente e final.    Todas as instituições não são mais
do que tentativas para solver o eterno problema do maior bem humano.    Quando
uma sociedade collocar as instituições acima do homem, prégando a lealdade a
ellas como a suprema virtude civica, deixa, ipso facto, de ser democratica.
Como se vê, tal concepção afastou-se de muito da concepção tradicional de
democracia, para se transformar numa tendencia, que não jura fidelidade a nada do
que esteja estabelecido, mas antes estimúla uma deliberada attitude de mudança
em todos os departamentos da vida humana.    Democracia, assim, é o nome por
que se designa a propria aspiração humana de progresso.    Em vez de se confundir
com as instituições, é a medida e o criterio pelos quaes as instituições são julgadas.
E é nesse sentido que Kilpatrick a define como “respeito pelo homem”; e é ainda por
isso que a devemos comprehender menos como um facto, do que como um ideal,
ou melhor, um programma, de execução difficil, longa e, talvez, indefinida.    Não
existe democracia, poder-se-ia dizer, mas attitudes democraticas.
A philosophia que corrobóra tal concepção é a philosofia que se desprende
da sciencia moderna.    Antes que o homem tivesse accumulado os conhecimentos
que fazem a grandeza de nossa época, a philosophia predominante era a de
indisfarçavel desconfiança no homem.    O homem, como homem, tendia
irreprimivelmente para o mal.    Graças á cadeia das instituições, e a uma serie de
“verdades externas”, vinha-se a contel-o dentro de uma supposta ordem,
condicionadora do limitado e precario progresso compativel com a sua natureza
corrompida.    A hypothese evolucionista lançada por Darwin deu inicio ao debate
sobre esse postulado.    Especialmente durante os ultimos decennios, o trabalho do
pensamento humano tem sido o de “elaborar os corollarios e consequencias dessa
doutrina”.    E tudo que se tem estudado e se tem investigado tem vindo reforçar as
suas bases, e estabelecer uma confiança maior no homem.    Em vez da creatura
decahida que imaginava a philosophia anterior, é, antes um animal em longa e
laboriosa evolução.    Completa ou apparentemente completa a evolução biologica, a
sua evolução social está ainda em pleno processo.    A atormentada historia do
homem nesse evoluir voluntario, dá-lhe direito a credito por todas as suas
realizações, nenhuma dellas lhe tendo sido passada directamente do céo á terra.    E
é diante disso, que a philosophia da vida se transformou.    O homem teve a sua
carta de maioridade.
Fundamentalmente, a nova concepção democratica se baseia nesta
confiança no homem, a quem se deu o direito de decidir sobre o que mais lhe
convem, alterando-se, com isso, diversos outros conceitos essenciaes.    Verdade
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passou a significar simplesmente o attributo de uma hypothese que, até o momento,


prova ser correcta.    Idéa, simplesmente o resultado formulado de passadas
experiencias.    E experiencia, em ultima analyse, não só todo o estofo da vida
mesma, como a fonte unica de nossos conhecimentos, de nossas hyphoteses e de
nossa philosophia.    A sciencia experimental e os processos de prova e
demonstração passaram, assim, a ser a sancção unica para a acceitação ou repulsa
de qualquer systema de idéas.

RENOVAÇÃO PERMANENTE

Si a America do Norte representasse, apenas, uma inacreditavel


prosperidade material, dominada por uma baixa philosophia materialista de gozo a
todo panno e a todo custo, si os Estados Unidos fossem apenas o sonho acanhado
de certos socialistas do reinado do Prazer universal, sonho com que se agita parte
de uma Europa pobre e dividida, bem pouca inspiração teriam os homens que
buscar nesse trepidante braseiro de civilização.
Uma “elite” rica e prospera sempre existiu e si tivessemos apenas uma “elite”
mais rica e mais prospera e mais numerosa nos Estados Unidos – nada de novo
teria succedido no mundo.    E os mesmos conflictos, as mesmas chagas, as
mesmas miserias fariam da experiencia americana tão sómente um espectaculo
mais tremendo para olhar entristecido do philosopho.
Felizmente, porem, não ha somente uma nova e precaria prosperidade, mas,
um novo idealismo.    Um idealismo robusto e sadio que pode confortar as
inteligencias mais inquietas de vida nobre e fina para a humanidade.
O “pioneiro” já desappareceu, mas o seu espirito inspira a America, com a
mesma coragem salutar e a mesma forte poesia.    Seja o grande industrial,
victorioso na obra parcial e de realização objectiva, seja o scientista, armado, como
nenhum dos seus antecessores, com instrumentos e meios de pesquizas, seja o
americano commum, de salario mais elevado que o de todos os seus companheiros
de labor nos outros paizes, seja a mulher americana, com a sua independencia
quasi conseguida, seja o menino ou a menina americana, com opportunidades
educativas de toda a ordem, offerecidas para a livre expansão dos seus nascentes
talentos, – todos estão animados do mesmo espirito sadio de uma vida de trabalho
arduo e corajoso, onde as compensações só contarão quando forem degraus para
uma possibilidade maior de acção e de poder.
Poderá parecer enthusiasmo ingenuo tal visão das cousas na America.    Não
tive porém até agora razão para crêr que ella não seja real.    Os aspectos mais
vulgares da vida naquelle paiz revelam essa attitude moça de idealismo e de força.
Nada transpira a corrupção ou a decadência.    Um dia que se passe em uma cidade
dos Estados Unidos, um dia em contacto com a sua população, no trabalho, nas
refeições, nos prazeres, – é bastante para fazer crêr ao visitante que a riqueza da
America é um    estimulo para seu optimismo e para seu progresso e não uma
condição para a sua proxima decadencia.
Não quero, entretanto, dizer com isto, que as novas condições não tenham
trazido problemas que são diametralmente oppostos aos da primitiva e limitada vida
dos pioneiros.    O crescente industrialismo, a onda absorvente de immigrantes, o
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desapparecimento das condições anteriores de vida da familia, uma nova


concepção de liberdade para homens e mulheres, o estremecer de todas as bases
das antigas instituições, tudo isto faz dessa civilização – cousa muito mais complexa
do que a singela organização agraria de um seculo atraz.    Mas o que vale notar é
que para os problemas novos, o americano traz o mesmo velho espirito com que
resolveu as suas primeiras difficuldades: – o espirito pratico, recto e prompto do
pioneiro, com a coragem e o humanismo pragmatico de sua philosophia.
Poder-se-á dizer que as tradições puritanas do americano é que lhe dão a
disciplina robusta que o caracteriza nesse estagio de sua liberdade, si quisermos
procurar uma razão para esse phenomeno de saude moral, máu grado todas as
possibilidades de dissolução que as novas condições apparentemente deveriam
favorecer.
Ha, porém, outra interpretação que me parece mais eloquente e impressiona
mais fortemente o meu espirito.    E é que, dadas as condições de progresso, o
homem entregue a si mesmo, progridirá.    Isso parece um pobre logar commum.
Entretanto é a conclusão de maior alcance que a experiencia americana vem
corroborar.    Era aquella mesma concepção puritana da vida, que negava essa
conclusão.    E com ella todas as demais concepções religiosas antigas.    O
postulado era que o homem, “animal decahido”, tendia para o mal não se lhe
podendo dar sinão uma liberdade relativa.    Dahi todas as leis repressivas, todos os
tabu’s da velha moral e todo o caracter sagrado das “instituições”.    Si tocassemos
nesses pilares, a sociedade se faria logo em pedaços.
No auge da prosperidade dessa doutrina, em plena edade-média, a
christianissima cidade de Florença tinha 22.000 mendigos e sustentava 3.000
cortezans.    Em vez porém de se vêrem nisto as condições sociaes da época que a
condemnavam a taes resultados, era a pobre natureza humana que levava a fama.
A America veiu permittir levantar essa milenaria accusação.    Si as condições
comportarem honestidade, o homem será honesto.    Si as condições comportarem
moralidade e temperança sexual, o homem será temperante e moralizado.    Si as
condições comportarem saúde, saúde sob todos os pontos de vista, social, religiosa,
individual, familiar, moral, o homem será são.
Essa confiança no homem está assegurando uma nova base para a direcção
da sociedade.    E’ dentro dessa confiança que a educação, que a industria, que todo
o progresso está sendo conduzido, na America, para uma civilização que será
verdadeiramente nova na face da terra.
A concepção democratica desse povo, não é, assim, a simples theoria de um
velho idealismo, mas a resultante immediata desses factos.    Não ha, nos Estados
Unidos uma theoria de democracia, contra uma pratica de democracia.    A primeira
pode ir um pouco na frente da segunda, mas uma e outra constituem um só corpo, a
presente e activa philosophia americana da vida.

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