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1º semestre de 2021
Em seu Descartes segundo a ordem das razões, talvez o mais influente comentário da
filosofia de René Descartes no ensino universitário brasileiro, Martial Gueroult propõe a
busca do que, a partir de Victor Delbos, ele chama de “significação exata” de uma filosofia –
e, mais particularmente, da filosofia cartesiana.1 Essa significação seria obtida com o
abandono de alguns tipos de abordagem do pensamento filosófico afeitos à liberação de uma
“imaginação viva e impaciente”, à “fantasia”, a “voos livres”, a “iluminações” e a “epifanias”
(os quais, assevera o autor, embora encontrem aqui e ali alguma verdade, o fazem apenas por
um feliz acaso) em prol de uma investigação rigorosa dos textos, nomeadamente de suas
tramas argumentativas, de sua lógica interna, em suma, do que Gueroult chamou de sua
arquitetônica: “é no texto”, ele assevera, “que a filosofia, que não consiste em vão delírio,
pretende descobrir a chave do enigma a ela proposta pela obra dos grandes gênios. E esse
texto é preciso explicar”.2
Essa proposta de aproximação aos textos filosóficos, hoje comumente chamada de
método estrutural de leitura, foi fundamental para os estudos em filosofia e, sobretudo, em
história da filosofia no Brasil. Decerto, ela não será negligenciada em nosso curso, pois,
acredito, trata-se de uma abordagem bastante útil para a introdução de alunos de nível
universitário ao estudo de obras filosóficas – ou, no mínimo, de obras filosóficas que melhor
se prestam a esse tipo de abordagem, como é o caso da obra cartesiana. Nesta primeira aula,
porém, tratarei de um assunto relegado, no mínimo, ao segundo plano por Gueroult, a saber, o
contexto histórico-biográfico que envolve a figura de Descartes. Conhecer tal contexto, se não
nos oferece a chave da filosofia cartesiana, como bem sustenta o comentador, talvez tenha o
mérito de, por assim dizer, nos ambientar ao mundo cartesiano, bem como às relações que o
pensamento do autor que acompanharemos ao longo deste curso mantém com a tradição, isto
é, com o pensamento que lhe foi precedente e que ele pretende ultrapassar.
As vias de acesso ao que acabo de chamar de mundo cartesiano são variadas. Na aula
de hoje, privilegiarei uma delas: a educação do jovem Descartes.
1
Martial GUEROULT, Descartes segundo a ordem das razões, São Paulo: Discurso, 2016, p. 9.
2
Ibid., p. 10. Quando propõe a “explicação”, no lugar da “compreensão”, Gueroult opõe-se à tradição
hermenêutica de extração diltheiana. Para a hermenêutica de Wilhelm Dilthey, em particular, cf. esp. Wilhelm
DILTHEY, Hermeneutics and Study of History, Princeton: Princeton University Press, 1996, pt. I.
*
Fui nutrido nas letras desde minha infância e, por ter-me persuadido de que
era possível, por meio delas, adquirir um conhecimento claro e seguro de
tudo o que é útil à vida, sentia um desejo muito intenso de aprendê-las. Mas,
tão logo terminei todo esse percurso de estudos, ao final do qual se costuma
ser admitido na classe dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois eu
me encontrava emaranhado em tantas dúvidas e erros que me parecia não ter
obtido outro proveito, ao procurar instruir-me, senão o de ter descoberto
cada vez mais minha ignorância.4
Dessa passagem, gostaria de reter dois pontos. Primeiramente, a expectativa manifestada por
Descartes quanto a sua educação escolar: a da aquisição de um conhecimento claro, ou seja,
inequívoco, e seguro, ou seja, garantido, de tudo o que é útil à vida; portanto, um
conhecimento voltado à prática e a partir do qual fosse possível orientar as próprias ações. Em
segundo lugar, a decepção de Descartes com sua educação escolar: em vez de oferecer um
conhecimento que lhe possibilitasse bem conduzir sua vida, enredou-o em uma colcha de
dúvidas, de modo que, longe de torná-lo douto, tão somente aprofundou a consciência de sua
própria ignorância.5 No entanto, que educação é essa à qual Descartes se refere?
3
Aqui, apoiar-me-ei sobretudo nas obras de Geneviève Rodis-Lewis (Descartes: uma biografia, Rio de Janeiro:
Record, 1996), Stephen Gaukroger (Descartes: uma biografia intelectual, Rio de Janeiro: Contraponto;
EdUERJ, 1999), e Desmond M. Clarke (Descartes: a biography, New York: Cambridge University Press,
2006).
4
René DESCARTES, Discurso do método & Ensaios, São Paulo: Editora Unesp, 2018, p. 71.
5
O tema da consciência da própria ignorância, desenvolvido em chave positiva, persegue a filosofia desde a
Grécia clássica, como indica a máxima socrática “Somente sei que nada sei”. No século XV, esse tema foi
2
Por um lado, tratava-se de uma educação em grande medida herdeira da escolástica
medieval. A escolástica, para dizê-lo brevemente, foi um movimento teológico-filosófico que
teve seu ápice no século XIII e que desempenhou um papel fundamental no surgimento do
ensino universitário. Segundo Nicola Abbagnano, “nos primeiros séculos da Idade Média, era
chamado de scholasticus o professor de artes liberais e, depois, o docente de filosofia ou
teologia que lecionava[,] primeiramente[,] na escola do convento ou da catedral, [e] depois, na
Universidade”.6 Nesse sentido, escolástica quer dizer o ensino promovido nas escolas. Tal
ensino se dirigia basicamente a quatro áreas: as artes liberais (gramática, lógica e retórica,
ministradas no trivium, e aritmética, música, geometria e astronomia, ministradas no
quadrivium), o direito, a medicina e a teologia – frequentemente, as primeiras eram
consideradas propedêuticas e subordinadas às outras três. Em termos metodológicos, por sua
vez, esse ensino era exercido de duas maneiras principais: a partir da lectio, isto é, o exame de
textos clássicos (primeiramente, da cristandade, e, depois, do mundo greco-romano, pagão), e
da disputatio, isto é, a abordagem de um dado problema, apresentado na lectio, por meio de
um debate em que se consideravam tanto argumentos favoráveis quanto argumentos
contrários ao ponto suscitado.
No que se refere à produção de conhecimento, a escolástica dedicava-se em especial
aos comentários, isto é, à interpretação dos textos legados pelas grandes auctoritates de uma
dada área do saber – por exemplo, Platão e Aristóteles, no caso da lógica; Cícero e
Quintiliano, no caso da retórica; etc. Auctoritas fundamental, como se pode imaginar, era
também a Igreja, por intermédio da decisão de um concílio, de uma bula papal ou mesmo da
sententia de um padre. O recurso às autoridades era um elemento fundamental da educação
escolástica, e pode-se dizer que todo o conteúdo ensinado nas escolas se organizava em torno
da reverência a essas autoridades. Sob esse ângulo, a ideia de autonomia do pensamento,
referente tanto à aquisição do conhecimento quanto à consequência dessa aquisição, de
primeira importância para a filosofia moderna, notoriamente durante o Iluminismo, não
retomado por Nicolau de Cusa, com cujo pensamento a filosofia cartesiana mantém alguns pontos de contato,
em seu A douta ignorância (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003). Não é a essa tradição, porém, que se filia
Descartes, o qual, no trecho supracitado, refere-se à consciência de sua própria ignorância em chave negativa.
6
Nicola ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, 7a ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 344. O termo
“Universitas” passou a ser usado no século XII, para designar as corporações de mestres e aprendizes. Nesse
sentido, falava-se em Universitas mercatorum, para se referir à corporação dos comerciantes, por exemplo. No
século XIII, ganhou destaque uma corporação específica, a Universitas magistrorum et scholarium, isto é a
corporação de professores e alunos, que, através dos anos, passou a ser designada meramente como
Universitas, isto é, como Universidade. Cf. RIDDER-SYMOENS, Hilde de (Org.), A History of University in Eu-
rope, Cambridge: Cambridge University Press, 1992, cap. 1–2.
3
encontrava guarida da educação escolástica, que assumia um caráter marcadamente livresco e
subordinado aos dogmas da Igreja.
Por outro, tratava-se igualmente de uma educação promovida em uma sociedade em
franca transformação, de maneira que, somada à influência escolástica, outras forças se
faziam presentes na instrução recebida por Descartes, em especial o papel assumido pela
Companhia de Jesus no ensino, no contexto da Contra Reforma. Vejamos essa questão mais
de perto.
Como dito acima, Descartes cumpriu sua formação escolar no Collège Henry IV, de La
Flèche. Segundo Stephen Gaukroger, “os collèges”, isto é, as instituições de ensino do que
hoje chamaríamos de nível básico, “tinham uma dimensão política muito explícita. Acima de
tudo, eram uma criação da pequena aristocracia”, ou seja, do estrato social a que pertencia
Descartes.7 Esse estamento, prossegue o autor, era desprezado e, ao mesmo tempo, nutria
desprezo pela nobreza, que, a seus olhos, não possuía o que a pequena aristocracia acreditava
ser um valor fundamental: a civilidade, entendida como um autocontrole, uma autodisciplina,
um comedimento nas maneiras de proceder, de comportar-se, na condução da vida cotidiana.
Esse valor, que pode ser remontado à temperança grega, fazia da pequena aristocracia,
sempre de acordo com Gaukroger, “a classe mais apropriada para assumir o controle político
e dirigir a sociedade de um modo novo e humano”, e “a chave para a conquista desse objetivo
parecia estar na educação”.8 Por isso, as assembleias municipais, nas quais a pequena
aristocracia ocupava numerosos cargos, assumiram gradativamente a gestão administrativa e
pedagógica dos collèges ao longo do século XVI. Neles, era oferecido “um tipo de currículo
muito diferente do que era oferecido pelas escolas diocesanas”, nas quais imperava a tradição
escolástica, “inaugurando um currículo humanista completo”, destinado a, no seio da
burguesia, formar uma classe “capaz de articular e propor suas ideias e objetivos”, de modo a
“suplantar os da nobreza”, em especial nas discussões realizadas nas assembleias, e, por
conseguinte, de assumir o controle do Estado.9
No entanto, o projeto político da pequena aristocracia falhou e já no fim do século XVI,
quando nasce Descartes, os collège municipais franceses se encontravam em crise. No lugar
de fazer avançar a virtude em seus alunos, eles acabaram por limitar-se a servir de meio para
o acesso destes à formação em profissões liberais, como o direito e a medicina, e,
7
GAUKROGER, Descartes: uma biografia intelectual, p. 58.
8
Ibid., p. 59. Para as quatro virtudes, depois nomeadas cardeais, em Platão, cf. PLATÃO, A república [ou Sobre
a justiça, diálogo político], São Paulo: Martins Fontes, 2006, liv. 4.
9
Cf. GAUKROGER, Descartes: uma biografia intelectual, p. 60–2.
4
consequentemente, a sua ascensão social. Além disso, segundo George Huppert, a educação
oferecida nos collège acabou por voltar-se contra a própria pequena aristocracia.
11
COMPANHIA DE JESUS. “Organização e plano de estudos da Companhia de Jesus”, in Leonel FRANCA, O
método pedagógico dos jesuítas: o “Ratio Studiorum”, introdução e tradução, Rio de Janeiro: Agir, 1952,
p. 119, modificada.
12
Ibid., p. 144.
13
Ibid., p. 145.
6
diligência devida, de modo que prepare os seus alunos, sobretudo os nossos
para a teologia e acima de tudo estimule o conhecimento do Criador.
Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos
que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou,
mais ainda, em contradição com a verdadeira fé. Semelhantes argumentos de
Aristóteles ou de outro filósofo, contra a fé, procure, de acordo com as
prescrições do Concílio de Latrão, refutar com todo vigor.
Sem muito critério não leia nem cite na aula intérpretes de Aristóteles
infensos ao Cristianismo; e procure que os alunos não lhes cobrem afeição.
Por essa mesma razão não reúna em tratado separado as digressões de
Averrois (e o mesmo se diga de outros autores semelhantes) e, se alguma
cousa boa dele houver de citar, cite-a sem encômios e, quanto possível
mostre que hauriu em outra fonte.
Não se filie nem a si nem a seus alunos em seita alguma filosófica como a
dos Averroistas, dos Alexandristas e semelhantes; nem dissimule os erros de
Averrois, de Alexandre e outros, antes tome daí ensejo para com mais vigor
diminuir-lhes a autoridade.
De Santo Tomás, pelo contrário, fale sempre com respeito; seguindo-o de
boa vontade todas as vezes que possível, dele divergindo, com pesar e
reverência, quando não for plausível a sua opinião.
Ensino todo o curso de filosofia em não menos de três anos, com duas horas
diárias, uma pela manhã e outra pela parte, a não ser que em alguma
universidade se oponham os seus estatutos.
Por essa razão não se conclua o curso antes que as férias de fim do ano
tenham chegado ou estejam muito próximas.14
Percebam que embora o Ratio Studiorum admita problemas igualmente no pensamento
pagão de Aristóteles, no pensamento islâmico de Averrois e no pensamento cristão de Tomás
de Aquino, a forma como o professor deve tratar cada um desses três autores diverge, a fim
que de a autoridade da religião cristã – assim como a do pensamento surgido em outros
contextos religiosos, mas devidamente assimilados pelo cristianismo – se sobreponha às
demais.
Em termos específicos, a formação integral no Colégio de La Flèche se dava ao longo
de treze anos e percorria o que, de acordo com nosso vocabulário contemporâneo, poderiam
ser chamados de três módulos. O primeiro módulo, com duração de seis anos, abrigava os
chamados “estudos elementares”. Seus primeiros quatro anos eram dedicados ao estudo das
gramáticas e à aquisição de fluência nas línguas grega e latina, consideradas fundamentais a
qualquer pessoa letrada. Além disso, os alunos também tinham lições de retórica, onde se
estudava basicamente as obras de Aristóteles, de Cícero e de Quintiliano, e de leitura e escrita
de poemas nas línguas clássicas. O primeiro era o único módulo cursado pela grande maioria
dos estudantes do colégio. Depois dele, contudo, era oferecido o segundo módulo,
14
Ibid., p. 158–9.
7
direcionado ao estudo de filosofia, com duração de três anos. Vale dizer que, diferentemente
do que hoje em geral se pratica em cursos escolares e universitários de filosofia, isto é, um
ensino da história da filosofia, o curso realizado pelo jovem Descartes dedicava-se sobretudo
à especulação, compreendida em sentido amplo. Assim, o primeiro ano do módulo de
filosofia era dedicado à lógica (aristotélica); o segundo, à física e às matemáticas, que, além
de incluírem as áreas da aritmética e da geometria, abarcava também área como a astronomia
e a música; e o terceiro, ao estudo da metafísica (aristotélico-tomista, mas também
suareziana). O cumprimento dessas disciplinas é mencionado por Descartes na Primeira Parte
do Discurso do método, na qual ele tece sua avaliação a respeito do aprendizado de cada uma
delas. Por fim, o último módulo, com duração de quatro anos, era dedicado à teologia. Uma
vez que este último módulo era realizado apenas por aqueles que desejavam seguir carreira
eclesiástica, Descartes não o fez, deixando o Colégio de La Flèche, rumo ao curso de Direito
da Universidade de Poitiers, após nove anos de estudo.15
Quanto à metodologia, havia quatro formas principais de instrução, bastante
semelhantes às legadas pela escolástica: a lectio, as repetitiones, as sabbatinae disputationaes
e as menstruae disputationes. A lectio, como já dito, consistia na leitura e no comentário de
um texto. O professor fazia a leitura inicial e explicava o significado de palavras
desconhecidas ou incompreendidas, bem como as implicações de passagens obscuras,
enquanto os estudantes, em uníssono, repetiam o texto em voz alta. 16 As repetitiones eram
uma espécie de orientação, realizada por um monitor, em que os alunos faziam um resumo
das aulas que haviam assistido durante o dia e, então, fomentavam uma longa discussão a fim
de dirimir quaisquer dificuldades que tivessem com o conteúdo. As sabbatinae
disputationaes, consistiam em debates sabáticos entre os alunos na presença de um professor.
Nesses debates, um defendens expunha e defendia uma tese preparada ao longo da semana.
Em seguida, um argumentans apresentava objeções a essa tese, em um máximo de três.
Terminada disputa, os auxiliares de cada aluno poderiam apresentar considerações
suplementares. Enfim, semelhantes às sabbatinae disputationaes, havia as menstruae
disputationes, que eram a forma principal de avaliação da produção dos alunos, coisa que, de
certo modo, foi introduzida pelos jesuítas. Nesses debates, cada defendens possuía dois
15
CLARKE, Descartes: a biography, cap. 1.
16
Clarke cita um interessante comentário de Michel de Montaigne sobre essa experiência de ensino. Diz o
filósofo francês: “Não cessam de nos gritar aos ouvidos, como que por meio de um funil, o que nos querem
ensinar, e o nosso trabalho consiste em repetir”. Em contrapartida, Montaigne propõe que o preceptor “não lhe
peça contas [ao aluno] apenas das palavras da lição, mas também de seu sentido e substância, julgando do
proveito, não pelo testemunho da memória, e sim pelo da vida”. Michel de MONTAIGNE, Ensaios, São Paulo:
34, 2016, p. 186–7. Cf. também CLARKE, Descartes: a biography, p. 26.
8
adversários, um de sua própria turma e outro de uma série superior. Além disso, tratava-se de
uma atividade bastante ritualizada, que frequentemente evocava o mundo esportivo e que era
acompanhada pelos demais alunos do colégio, que tinham liberdade para aplaudir os bons
argumentos.17
Quanto ao conteúdo, convém destacar que, no ensino das letras, os textos eram
apresentados aos alunos de forma fragmentada, sob a forma de excertos, com vistas a despir
os escritos antigos daquilo que os tornava pertencentes a sua época e de assimilá-los ao
pensamento cristão. Além disso, aparentemente o objetivo do estudo dos textos clássicos não
era o de compreender e avaliar seu conteúdo, mas o de apreciar seu estilo. Nesse sentido, o
ensino jesuíta das letras era meramente formal e visava não o que hoje chamaríamos de
pensamento crítico, mas o bem falar, a boa expressão. O mesmo não ocorria no currículo de
filosofia, no qual, de fato, buscava-se a compreensão do conteúdo das obras examinadas.
Contudo, principalmente em razão da censura, fazia-se uso copioso de comentários
autorizados, nomeadamente os de Pedro da Fonseca, de Francisco de Toledo e de Francisco
Suárez, filósofos e teólogos jesuítas ibéricos, que garantiam a interpretação ortodoxa dos
textos clássicos. Assim, embora o Ratio Studiorum recomendasse o ensino de Aristóteles e de
Tomás de Aquino, nem um nem outro eram ensinados em si mesmos, de sorte que, se
Descartes foi instruído na tradição aristotélico-tomista, o foi em uma vertente, por assim
dizer, muito específica, apregoada pelos jesuítas.
Após essa pequena exposição, ficamos mais próximos de compreender o
descontentamento de Descartes com sua educação escolar. Como sugerem mais de um
intérprete da filosofia cartesiana, esse descontentamento dizia menos respeito às normas ou
aos métodos do ensino jesuítico – como afirma o próprio Descartes, La Flèche era um dos
melhores colégios da época – que, para usar as palavras de Franklin Leopoldo e Silva, “o
próprio ensino tal como era em geral ministrado no seu tempo e que refletia uma certa
concepção do que fosse o saber”. Tal concepção de saber, pudemos ver de relance, envolvia
“a extrema valorização da cultura antiga e um certo dogmatismo, que faziam o saber depender
da autoridade mais que do exercício independente da razão”. Esse tipo de ensino, continua
Leopoldo e Silva, levará nosso autor a “desconfiar de quase tudo o que havia aprendido ao
longo de seus anos de estudos” e, como veremos ao longo do curso, a procurar desde os
fundamentos um novo caminho para a instituição da verdade e da certeza nas ciências.18
17
Cf. GAUKROGER, Descartes: uma biografia intelectual, p. 71–2.
18
Cf. Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, São Paulo: Moderna, 1993, p. 18.
9
Aula 2
19
Cf. José Ferrater MORA, Diccionario de filosofia, Buenos Aires: Editorial Sudamérica, 1999, p. 184–8.
20
Emanuela SCRIBANO, Guia para leitura das “Meditações Metafísicas” de Descartes, São Paulo: Loyola,
2007, p. 23.
21
Cf. DESCARTES, Discurso do método & Ensaios, p. 71.