Você está na página 1de 11

IFILO31102 (FM) – FILOSOFIA GERAL: PROBLEMAS METAFÍSICOS I

1º semestre de 2021

A UL A 1: C O N T E X T O H I ST Ó R I C O - B IO G RÁF ICO : A E DUCAÇ ÃO DE D E SCART E S

Em seu Descartes segundo a ordem das razões, talvez o mais influente comentário da
filosofia de René Descartes no ensino universitário brasileiro, Martial Gueroult propõe a
busca do que, a partir de Victor Delbos, ele chama de “significação exata” de uma filosofia –
e, mais particularmente, da filosofia cartesiana.1 Essa significação seria obtida com o
abandono de alguns tipos de abordagem do pensamento filosófico afeitos à liberação de uma
“imaginação viva e impaciente”, à “fantasia”, a “voos livres”, a “iluminações” e a “epifanias”
(os quais, assevera o autor, embora encontrem aqui e ali alguma verdade, o fazem apenas por
um feliz acaso) em prol de uma investigação rigorosa dos textos, nomeadamente de suas
tramas argumentativas, de sua lógica interna, em suma, do que Gueroult chamou de sua
arquitetônica: “é no texto”, ele assevera, “que a filosofia, que não consiste em vão delírio,
pretende descobrir a chave do enigma a ela proposta pela obra dos grandes gênios. E esse
texto é preciso explicar”.2
Essa proposta de aproximação aos textos filosóficos, hoje comumente chamada de
método estrutural de leitura, foi fundamental para os estudos em filosofia e, sobretudo, em
história da filosofia no Brasil. Decerto, ela não será negligenciada em nosso curso, pois,
acredito, trata-se de uma abordagem bastante útil para a introdução de alunos de nível
universitário ao estudo de obras filosóficas – ou, no mínimo, de obras filosóficas que melhor
se prestam a esse tipo de abordagem, como é o caso da obra cartesiana. Nesta primeira aula,
porém, tratarei de um assunto relegado, no mínimo, ao segundo plano por Gueroult, a saber, o
contexto histórico-biográfico que envolve a figura de Descartes. Conhecer tal contexto, se não
nos oferece a chave da filosofia cartesiana, como bem sustenta o comentador, talvez tenha o
mérito de, por assim dizer, nos ambientar ao mundo cartesiano, bem como às relações que o
pensamento do autor que acompanharemos ao longo deste curso mantém com a tradição, isto
é, com o pensamento que lhe foi precedente e que ele pretende ultrapassar.
As vias de acesso ao que acabo de chamar de mundo cartesiano são variadas. Na aula
de hoje, privilegiarei uma delas: a educação do jovem Descartes.
1
Martial GUEROULT, Descartes segundo a ordem das razões, São Paulo: Discurso, 2016, p. 9.
2
Ibid., p. 10. Quando propõe a “explicação”, no lugar da “compreensão”, Gueroult opõe-se à tradição
hermenêutica de extração diltheiana. Para a hermenêutica de Wilhelm Dilthey, em particular, cf. esp. Wilhelm
DILTHEY, Hermeneutics and Study of History, Princeton: Princeton University Press, 1996, pt. I.
*

Como vocês poderão conferir em diversas biografias, 3 Descartes nasceu em 1596 em


La Haye, hoje Descartes, na região de Touraine, localizada ao centro-oeste da França.
Membro de uma família abastada, pertencente à assim chamada pequena aristocracia (estrato
composto por burgueses frequentemente ligados à posse de terras, em oposição aos burgueses
ligados à atividade comercial) e que viria alcançar a nobreza (mas apenas em 1668; isto é,
dezoito anos após a morte de nosso autor), Descartes estudou no que logo se tornaria um dos
mais ilustres internatos da França, o Colégio Henri IV, fundado pelo rei que cede seu nome à
instituição em La Flèche, ao fim do ano de 1603. Esse período de sua vida, que segue dos 11
aos 20 anos de idade (não obstante essa periodização seja controversa), é registrado pelo
próprio Descartes na Primeira Parte de seu escrito mais célebre, o Discurso do método para
bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências ou, simplesmente, Discurso
do método, texto que introduzia A dióptrica, Os meteoros e A geometria, ditos ensaios desse
método, nos quais o filósofo publica pela primeira vez suas contribuições para as áreas da
física, da meteorologia e da geometria. Ali, Descartes relata:

Fui nutrido nas letras desde minha infância e, por ter-me persuadido de que
era possível, por meio delas, adquirir um conhecimento claro e seguro de
tudo o que é útil à vida, sentia um desejo muito intenso de aprendê-las. Mas,
tão logo terminei todo esse percurso de estudos, ao final do qual se costuma
ser admitido na classe dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois eu
me encontrava emaranhado em tantas dúvidas e erros que me parecia não ter
obtido outro proveito, ao procurar instruir-me, senão o de ter descoberto
cada vez mais minha ignorância.4
Dessa passagem, gostaria de reter dois pontos. Primeiramente, a expectativa manifestada por
Descartes quanto a sua educação escolar: a da aquisição de um conhecimento claro, ou seja,
inequívoco, e seguro, ou seja, garantido, de tudo o que é útil à vida; portanto, um
conhecimento voltado à prática e a partir do qual fosse possível orientar as próprias ações. Em
segundo lugar, a decepção de Descartes com sua educação escolar: em vez de oferecer um
conhecimento que lhe possibilitasse bem conduzir sua vida, enredou-o em uma colcha de
dúvidas, de modo que, longe de torná-lo douto, tão somente aprofundou a consciência de sua
própria ignorância.5 No entanto, que educação é essa à qual Descartes se refere?

3
Aqui, apoiar-me-ei sobretudo nas obras de Geneviève Rodis-Lewis (Descartes: uma biografia, Rio de Janeiro:
Record, 1996), Stephen Gaukroger (Descartes: uma biografia intelectual, Rio de Janeiro: Contraponto;
EdUERJ, 1999), e Desmond M. Clarke (Descartes: a biography, New York: Cambridge University Press,
2006).
4
René DESCARTES, Discurso do método & Ensaios, São Paulo: Editora Unesp, 2018, p. 71.
5
O tema da consciência da própria ignorância, desenvolvido em chave positiva, persegue a filosofia desde a
Grécia clássica, como indica a máxima socrática “Somente sei que nada sei”. No século XV, esse tema foi
2
Por um lado, tratava-se de uma educação em grande medida herdeira da escolástica
medieval. A escolástica, para dizê-lo brevemente, foi um movimento teológico-filosófico que
teve seu ápice no século XIII e que desempenhou um papel fundamental no surgimento do
ensino universitário. Segundo Nicola Abbagnano, “nos primeiros séculos da Idade Média, era
chamado de scholasticus o professor de artes liberais e, depois, o docente de filosofia ou
teologia que lecionava[,] primeiramente[,] na escola do convento ou da catedral, [e] depois, na
Universidade”.6 Nesse sentido, escolástica quer dizer o ensino promovido nas escolas. Tal
ensino se dirigia basicamente a quatro áreas: as artes liberais (gramática, lógica e retórica,
ministradas no trivium, e aritmética, música, geometria e astronomia, ministradas no
quadrivium), o direito, a medicina e a teologia – frequentemente, as primeiras eram
consideradas propedêuticas e subordinadas às outras três. Em termos metodológicos, por sua
vez, esse ensino era exercido de duas maneiras principais: a partir da lectio, isto é, o exame de
textos clássicos (primeiramente, da cristandade, e, depois, do mundo greco-romano, pagão), e
da disputatio, isto é, a abordagem de um dado problema, apresentado na lectio, por meio de
um debate em que se consideravam tanto argumentos favoráveis quanto argumentos
contrários ao ponto suscitado.
No que se refere à produção de conhecimento, a escolástica dedicava-se em especial
aos comentários, isto é, à interpretação dos textos legados pelas grandes auctoritates de uma
dada área do saber – por exemplo, Platão e Aristóteles, no caso da lógica; Cícero e
Quintiliano, no caso da retórica; etc. Auctoritas fundamental, como se pode imaginar, era
também a Igreja, por intermédio da decisão de um concílio, de uma bula papal ou mesmo da
sententia de um padre. O recurso às autoridades era um elemento fundamental da educação
escolástica, e pode-se dizer que todo o conteúdo ensinado nas escolas se organizava em torno
da reverência a essas autoridades. Sob esse ângulo, a ideia de autonomia do pensamento,
referente tanto à aquisição do conhecimento quanto à consequência dessa aquisição, de
primeira importância para a filosofia moderna, notoriamente durante o Iluminismo, não

retomado por Nicolau de Cusa, com cujo pensamento a filosofia cartesiana mantém alguns pontos de contato,
em seu A douta ignorância (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003). Não é a essa tradição, porém, que se filia
Descartes, o qual, no trecho supracitado, refere-se à consciência de sua própria ignorância em chave negativa.
6
Nicola ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, 7a ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 344. O termo
“Universitas” passou a ser usado no século XII, para designar as corporações de mestres e aprendizes. Nesse
sentido, falava-se em Universitas mercatorum, para se referir à corporação dos comerciantes, por exemplo. No
século XIII, ganhou destaque uma corporação específica, a Universitas magistrorum et scholarium, isto é a
corporação de professores e alunos, que, através dos anos, passou a ser designada meramente como
Universitas, isto é, como Universidade. Cf. RIDDER-SYMOENS, Hilde de (Org.), A History of University in Eu-
rope, Cambridge: Cambridge University Press, 1992, cap. 1–2.
3
encontrava guarida da educação escolástica, que assumia um caráter marcadamente livresco e
subordinado aos dogmas da Igreja.
Por outro, tratava-se igualmente de uma educação promovida em uma sociedade em
franca transformação, de maneira que, somada à influência escolástica, outras forças se
faziam presentes na instrução recebida por Descartes, em especial o papel assumido pela
Companhia de Jesus no ensino, no contexto da Contra Reforma. Vejamos essa questão mais
de perto.
Como dito acima, Descartes cumpriu sua formação escolar no Collège Henry IV, de La
Flèche. Segundo Stephen Gaukroger, “os collèges”, isto é, as instituições de ensino do que
hoje chamaríamos de nível básico, “tinham uma dimensão política muito explícita. Acima de
tudo, eram uma criação da pequena aristocracia”, ou seja, do estrato social a que pertencia
Descartes.7 Esse estamento, prossegue o autor, era desprezado e, ao mesmo tempo, nutria
desprezo pela nobreza, que, a seus olhos, não possuía o que a pequena aristocracia acreditava
ser um valor fundamental: a civilidade, entendida como um autocontrole, uma autodisciplina,
um comedimento nas maneiras de proceder, de comportar-se, na condução da vida cotidiana.
Esse valor, que pode ser remontado à temperança grega, fazia da pequena aristocracia,
sempre de acordo com Gaukroger, “a classe mais apropriada para assumir o controle político
e dirigir a sociedade de um modo novo e humano”, e “a chave para a conquista desse objetivo
parecia estar na educação”.8 Por isso, as assembleias municipais, nas quais a pequena
aristocracia ocupava numerosos cargos, assumiram gradativamente a gestão administrativa e
pedagógica dos collèges ao longo do século XVI. Neles, era oferecido “um tipo de currículo
muito diferente do que era oferecido pelas escolas diocesanas”, nas quais imperava a tradição
escolástica, “inaugurando um currículo humanista completo”, destinado a, no seio da
burguesia, formar uma classe “capaz de articular e propor suas ideias e objetivos”, de modo a
“suplantar os da nobreza”, em especial nas discussões realizadas nas assembleias, e, por
conseguinte, de assumir o controle do Estado.9
No entanto, o projeto político da pequena aristocracia falhou e já no fim do século XVI,
quando nasce Descartes, os collège municipais franceses se encontravam em crise. No lugar
de fazer avançar a virtude em seus alunos, eles acabaram por limitar-se a servir de meio para
o acesso destes à formação em profissões liberais, como o direito e a medicina, e,

7
GAUKROGER, Descartes: uma biografia intelectual, p. 58.
8
Ibid., p. 59. Para as quatro virtudes, depois nomeadas cardeais, em Platão, cf. PLATÃO, A república [ou Sobre
a justiça, diálogo político], São Paulo: Martins Fontes, 2006, liv. 4.
9
Cf. GAUKROGER, Descartes: uma biografia intelectual, p. 60–2.
4
consequentemente, a sua ascensão social. Além disso, segundo George Huppert, a educação
oferecida nos collège acabou por voltar-se contra a própria pequena aristocracia.

Pensando em criar adeptos em meio à gente do povo, ao permitir que ela


compartilhasse de sua educação clássica e sua moral reformista, a pequena
aristocracia simplesmente dera armas ao inimigo. Havia hordas de
advogados recém-diplomados prontas a questionar os privilégios da
aristocracia rural, enquanto exércitos de balconistas capazes de cantar os
salmos dispunham-se a matar e a incendiar em nome do Senhor. Uma
geração de conflitos sociais brutais, precariamente disfarçados de cruzada
religiosa, ensinou à pequena aristocracia que ela estava sozinha no mundo.
[...] A dolorosa retirada que a aristocracia rural se impôs durante as Guerras
de Religião foi mais do que um recuo tático: foi uma debandada, um sauve
qui peut generalizado, que mandou os pequenos aristocratas de volta para
suas bibliotecas particulares.10
Todavia, conquanto o fracasso do projeto da pequena aristocracia, a tradição dos
collège não desapareceu. Na virada do século XVI para o século XVII, ela foi assumida pela
Companhia de Jesus, que, depois de ser expulsa da França em razão de sua suposta
cumplicidade com um atentado à vida do rei Henri IV, em 1596, retorna àquele país, sob as
ordens do mesmo rei, em 1603. Mesmo que os objetivos da educação jesuítica divergissem
dos da educação humanista provida pela pequena aristocracia (neste caso, a formação de uma
classe capaz de tomar o poder político, naquele, a de uma elite cristã), os jesuítas mantiveram
importantes características dos collège municipais, entre elas, o oferecimento de uma
educação uniforme para todos os alunos, no lugar de uma educação direcionada, específica, a
diferentes estamentos sociais, como costumava ocorrer no medievo, e o currículo fortemente
calcado no ensino das línguas e das culturas clássicas.
O colégio de La Flèche, assim como os demais colégios jesuítas, seguia os preceitos
do Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu, isto é, do Plano e Organização de Estudos
da Companhia de Jesus, em tradução livre, ou simplesmente Ratio Studiorum, espécie de
manual, extremamente detalhado, do ensino jesuíta, concebido na última década do século
XVI e publicado em sua forma final, que perdurou até 1832, no ano de 1599. A título de
ilustração do nível minúcia nas instruções desse manual desse manual, bem como de certas
continuidades entre os preceitos nele expostos e o ensino escolástico, exponho doravante
alguns trechos seus.
Em primeiro lugar, são apresentados os objetivos do ensino jesuítico e o papel que tem
o Provincial, isto é, o sacerdote que ocupa o posto superior de certo número de paróquias, no
cumprimento desses objetivos:
10
George HUPPERT, Les Bourgeois Gentilshommes: an Essay on the Definition of Elites in Renaissance France,
apud Ibid., p. 63.
5
Como um dos ministérios mais importantes de nossa Companhia é ensinar
ao próximo todas as disciplinas convenientes ao nosso Instituto, de modo a
levá-lo ao conhecimento e amor do Criador e Redentor nosso, tenha o
Provincial como dever seu zelar com todo empenho para que aos nossos
esforços tão multiformes no campo escolar corresponda plenamente o fruto
que exige a graça de sua devoção.11
Dado que o conhecimento e o amor de Jesus Cristo é o objetivo primeiro dos estudos
jesuíticos, os professores devem dedicar a essa tarefa atenção fundamental:

O fim especial do Professor, tanto nas aulas quando se oferecer a ocasião,


como fora delas, será mover os seus ouvintes ao serviço e ao amor de Deus e
ao exercício das virtudes que Lhe são agradáveis, e alcançar que para este
objetivo orientem todos os seus estudos.
Para que se conserve isso na memória, antes de começar a aula reze uma
breve oração apropriada, que professor e alunos deverão ouvir de cabeça
descoberta; ou pelo menos, faça ele, de cabeça descoberta, o sinal da cruz e
comece.
Ajude, além disto, os seus discípulos com orações frequentes a Deus e com
os exemplos de sua vida religiosa. Bom será que não descuide [d]as
exortações pelo menos nas vésperas das festas mais solenes ou antes das
grandes férias. Exorte-os principalmente à oração, ao exame vespertino de
consciência, à recepção digna e frequente dos sacramentos da penitência e da
eucaristia, à frequência diária da missa, à assistência ao sermão, nos dias
festivos, à fuga dos maus costumes, ao horror dos vícios e à prática das
virtudes dignas do cristão.12
Como o ensino escolástico, e isso é algo que convém enfatizar, o ensino jesuítico
mantinha grande preocupação com a manutenção das tradições teóricas e com o recurso às
autoridades. É o que mostra a seguinte prescrição:

Ainda [que] em assuntos que não apresentem perigo algum para a fé e a


piedade, ninguém introduza questões novas em matéria de certa importância,
nem opiniões não abonadas por nenhum autor idôneo, sem consultar os
superiores; nem ensine cousa alguma contra os princípios fundamentais dos
doutores e o sentir comum das escolas. Sigam todos de preferência os
mestres aprovados e as doutrinas que, pela experiência dos anos, são mais
adotados nas escolas católicas.13
Em filosofia, assim como em teologia, matérias que “concorrem para o mesmo fim”,
isso representa sobretudo a adoção do pensamento aristotélico-tomista.

Como as artes e as ciências da natureza preparam a inteligência para a


teologia e contribuem para a sua perfeita compreensão e aplicação prática e
por si mesmas concorrem para o mesmo fim, o professor, procurando
sinceramente em todas as cousas a honra e a glória de Deus, trate-as com a

11
COMPANHIA DE JESUS. “Organização e plano de estudos da Companhia de Jesus”, in Leonel FRANCA, O
método pedagógico dos jesuítas: o “Ratio Studiorum”, introdução e tradução, Rio de Janeiro: Agir, 1952,
p. 119, modificada.
12
Ibid., p. 144.
13
Ibid., p. 145.
6
diligência devida, de modo que prepare os seus alunos, sobretudo os nossos
para a teologia e acima de tudo estimule o conhecimento do Criador.
Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos
que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou,
mais ainda, em contradição com a verdadeira fé. Semelhantes argumentos de
Aristóteles ou de outro filósofo, contra a fé, procure, de acordo com as
prescrições do Concílio de Latrão, refutar com todo vigor.
Sem muito critério não leia nem cite na aula intérpretes de Aristóteles
infensos ao Cristianismo; e procure que os alunos não lhes cobrem afeição.
Por essa mesma razão não reúna em tratado separado as digressões de
Averrois (e o mesmo se diga de outros autores semelhantes) e, se alguma
cousa boa dele houver de citar, cite-a sem encômios e, quanto possível
mostre que hauriu em outra fonte.
Não se filie nem a si nem a seus alunos em seita alguma filosófica como a
dos Averroistas, dos Alexandristas e semelhantes; nem dissimule os erros de
Averrois, de Alexandre e outros, antes tome daí ensejo para com mais vigor
diminuir-lhes a autoridade.
De Santo Tomás, pelo contrário, fale sempre com respeito; seguindo-o de
boa vontade todas as vezes que possível, dele divergindo, com pesar e
reverência, quando não for plausível a sua opinião.
Ensino todo o curso de filosofia em não menos de três anos, com duas horas
diárias, uma pela manhã e outra pela parte, a não ser que em alguma
universidade se oponham os seus estatutos.
Por essa razão não se conclua o curso antes que as férias de fim do ano
tenham chegado ou estejam muito próximas.14
Percebam que embora o Ratio Studiorum admita problemas igualmente no pensamento
pagão de Aristóteles, no pensamento islâmico de Averrois e no pensamento cristão de Tomás
de Aquino, a forma como o professor deve tratar cada um desses três autores diverge, a fim
que de a autoridade da religião cristã – assim como a do pensamento surgido em outros
contextos religiosos, mas devidamente assimilados pelo cristianismo – se sobreponha às
demais.
Em termos específicos, a formação integral no Colégio de La Flèche se dava ao longo
de treze anos e percorria o que, de acordo com nosso vocabulário contemporâneo, poderiam
ser chamados de três módulos. O primeiro módulo, com duração de seis anos, abrigava os
chamados “estudos elementares”. Seus primeiros quatro anos eram dedicados ao estudo das
gramáticas e à aquisição de fluência nas línguas grega e latina, consideradas fundamentais a
qualquer pessoa letrada. Além disso, os alunos também tinham lições de retórica, onde se
estudava basicamente as obras de Aristóteles, de Cícero e de Quintiliano, e de leitura e escrita
de poemas nas línguas clássicas. O primeiro era o único módulo cursado pela grande maioria
dos estudantes do colégio. Depois dele, contudo, era oferecido o segundo módulo,
14
Ibid., p. 158–9.
7
direcionado ao estudo de filosofia, com duração de três anos. Vale dizer que, diferentemente
do que hoje em geral se pratica em cursos escolares e universitários de filosofia, isto é, um
ensino da história da filosofia, o curso realizado pelo jovem Descartes dedicava-se sobretudo
à especulação, compreendida em sentido amplo. Assim, o primeiro ano do módulo de
filosofia era dedicado à lógica (aristotélica); o segundo, à física e às matemáticas, que, além
de incluírem as áreas da aritmética e da geometria, abarcava também área como a astronomia
e a música; e o terceiro, ao estudo da metafísica (aristotélico-tomista, mas também
suareziana). O cumprimento dessas disciplinas é mencionado por Descartes na Primeira Parte
do Discurso do método, na qual ele tece sua avaliação a respeito do aprendizado de cada uma
delas. Por fim, o último módulo, com duração de quatro anos, era dedicado à teologia. Uma
vez que este último módulo era realizado apenas por aqueles que desejavam seguir carreira
eclesiástica, Descartes não o fez, deixando o Colégio de La Flèche, rumo ao curso de Direito
da Universidade de Poitiers, após nove anos de estudo.15
Quanto à metodologia, havia quatro formas principais de instrução, bastante
semelhantes às legadas pela escolástica: a lectio, as repetitiones, as sabbatinae disputationaes
e as menstruae disputationes. A lectio, como já dito, consistia na leitura e no comentário de
um texto. O professor fazia a leitura inicial e explicava o significado de palavras
desconhecidas ou incompreendidas, bem como as implicações de passagens obscuras,
enquanto os estudantes, em uníssono, repetiam o texto em voz alta. 16 As repetitiones eram
uma espécie de orientação, realizada por um monitor, em que os alunos faziam um resumo
das aulas que haviam assistido durante o dia e, então, fomentavam uma longa discussão a fim
de dirimir quaisquer dificuldades que tivessem com o conteúdo. As sabbatinae
disputationaes, consistiam em debates sabáticos entre os alunos na presença de um professor.
Nesses debates, um defendens expunha e defendia uma tese preparada ao longo da semana.
Em seguida, um argumentans apresentava objeções a essa tese, em um máximo de três.
Terminada disputa, os auxiliares de cada aluno poderiam apresentar considerações
suplementares. Enfim, semelhantes às sabbatinae disputationaes, havia as menstruae
disputationes, que eram a forma principal de avaliação da produção dos alunos, coisa que, de
certo modo, foi introduzida pelos jesuítas. Nesses debates, cada defendens possuía dois

15
CLARKE, Descartes: a biography, cap. 1.
16
Clarke cita um interessante comentário de Michel de Montaigne sobre essa experiência de ensino. Diz o
filósofo francês: “Não cessam de nos gritar aos ouvidos, como que por meio de um funil, o que nos querem
ensinar, e o nosso trabalho consiste em repetir”. Em contrapartida, Montaigne propõe que o preceptor “não lhe
peça contas [ao aluno] apenas das palavras da lição, mas também de seu sentido e substância, julgando do
proveito, não pelo testemunho da memória, e sim pelo da vida”. Michel de MONTAIGNE, Ensaios, São Paulo:
34, 2016, p. 186–7. Cf. também CLARKE, Descartes: a biography, p. 26.
8
adversários, um de sua própria turma e outro de uma série superior. Além disso, tratava-se de
uma atividade bastante ritualizada, que frequentemente evocava o mundo esportivo e que era
acompanhada pelos demais alunos do colégio, que tinham liberdade para aplaudir os bons
argumentos.17
Quanto ao conteúdo, convém destacar que, no ensino das letras, os textos eram
apresentados aos alunos de forma fragmentada, sob a forma de excertos, com vistas a despir
os escritos antigos daquilo que os tornava pertencentes a sua época e de assimilá-los ao
pensamento cristão. Além disso, aparentemente o objetivo do estudo dos textos clássicos não
era o de compreender e avaliar seu conteúdo, mas o de apreciar seu estilo. Nesse sentido, o
ensino jesuíta das letras era meramente formal e visava não o que hoje chamaríamos de
pensamento crítico, mas o bem falar, a boa expressão. O mesmo não ocorria no currículo de
filosofia, no qual, de fato, buscava-se a compreensão do conteúdo das obras examinadas.
Contudo, principalmente em razão da censura, fazia-se uso copioso de comentários
autorizados, nomeadamente os de Pedro da Fonseca, de Francisco de Toledo e de Francisco
Suárez, filósofos e teólogos jesuítas ibéricos, que garantiam a interpretação ortodoxa dos
textos clássicos. Assim, embora o Ratio Studiorum recomendasse o ensino de Aristóteles e de
Tomás de Aquino, nem um nem outro eram ensinados em si mesmos, de sorte que, se
Descartes foi instruído na tradição aristotélico-tomista, o foi em uma vertente, por assim
dizer, muito específica, apregoada pelos jesuítas.
Após essa pequena exposição, ficamos mais próximos de compreender o
descontentamento de Descartes com sua educação escolar. Como sugerem mais de um
intérprete da filosofia cartesiana, esse descontentamento dizia menos respeito às normas ou
aos métodos do ensino jesuítico – como afirma o próprio Descartes, La Flèche era um dos
melhores colégios da época – que, para usar as palavras de Franklin Leopoldo e Silva, “o
próprio ensino tal como era em geral ministrado no seu tempo e que refletia uma certa
concepção do que fosse o saber”. Tal concepção de saber, pudemos ver de relance, envolvia
“a extrema valorização da cultura antiga e um certo dogmatismo, que faziam o saber depender
da autoridade mais que do exercício independente da razão”. Esse tipo de ensino, continua
Leopoldo e Silva, levará nosso autor a “desconfiar de quase tudo o que havia aprendido ao
longo de seus anos de estudos” e, como veremos ao longo do curso, a procurar desde os
fundamentos um novo caminho para a instituição da verdade e da certeza nas ciências.18

17
Cf. GAUKROGER, Descartes: uma biografia intelectual, p. 71–2.
18
Cf. Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, São Paulo: Moderna, 1993, p. 18.
9
Aula 2

A metafísica, junto da estética, da ética, da epistemologia e da lógica, é uma das cinco


grandes áreas às quais, desde o pensamento clássico grego, se dedica a filosofia. No entanto, o
que exatamente devemos compreender por esse termo? A palavra “metafísica” é normalmente
atribuída a Andrônico de Rodes, filósofo peripatético do primeiro século antes de Cristo
responsável por organizar uma coletânea das obras de Aristóteles. Tratar-se-ia, nesse caso, de
um termo meramente classificatório, usado passa designar os textos aristotélicos dispostos
logo após a Física, de onde o termo “metafísica”, isto é, depois da Física. Através do tempo,
porém, o termo passou a ser usado de maneira mais geral, a fim de designar o que Aristóteles
chamou de filosofia primeira, a saber, o ramo da filosofia que tem por objeto os fundamentos
dos conhecimentos particulares ou, nas palavras do próprio filósofo, um saber (épistèmé) que
visa os “primeiros princípios e as causas mais elevadas”, princípios esses encontrados além
(ou aquém, mas em todo caso à parte) do mundo físico. Consagraram-se, assim, como os
principais objetos da metafísica – e é isso que encontraremos na metafísica cartesiana – a
investigação de Deus e da alma.19
O gênero textual escolhido por Descartes para expor seu pensamento metafísico é o da
meditação. Mais que um gênero filosófico, a meditação é um gênero textual tomado da
literatura religiosa, “geralmente dedicado a descrever o caminho de quem busca a salvação a
partir das trevas do pecado. As meditações religiosas”, explica Scribano, “são obras didáticas
nas quais a experiência pessoal deveria servir para guiar os leitores mais com o exemplo que
com o preceito, ao longo do itinerário que levou o autor à salvação”. 20 A escolha desse
gênero, então, é coerente com o que Descartes já havia feito no Discurso do método,
publicado quatro anos antes, em 1637. Como indica o nome da obra, no Discurso, o filósofo
não pretendia estabelecer um tratado (isto é, a exposição de um sistema filosófico acabado,
pronto a revelar a verdade sobre os assuntos aos quais se dedica) sobre o método, mas apenas
discursar, versar sobre suas investigações, a fim de, como ele mesmo diz, à maneira de uma
“fábula”, mostrar como ele se esforçou para conduzir sua própria razão, coisa que ele
esperava poder ser útil a algum leitor, sem ser nocivo a nenhum.21 Por isso, ambas as obras
são escritas na primeira pessoa do singular. Descartes reflete, investiga, medita, e quer que o
leitor o acompanhe nesse exercício. Em nosso curso, buscaremos levar a sério a proposta de
Descartes, seguindo-o passo a passo na construção de sua metafísica, abordando seu texto
com uma lupa, com vistas não a conhecer meramente o conteúdo da metafísica cartesiana,
cuja verdade fundamental, sumarizada no cogito, no “penso, logo existo”, é bastante
conhecida do senso comum, mas justamente o percurso investigativo desse que é um dos
maiores representantes da filosofia europeia.

19
Cf. José Ferrater MORA, Diccionario de filosofia, Buenos Aires: Editorial Sudamérica, 1999, p. 184–8.
20
Emanuela SCRIBANO, Guia para leitura das “Meditações Metafísicas” de Descartes, São Paulo: Loyola,
2007, p. 23.
21
Cf. DESCARTES, Discurso do método & Ensaios, p. 71.

Você também pode gostar