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CDU 364
Octávio Sacramento
Manuela Ribeiro
Introdução
Recebi uma má resposta [de uma agente da segurança]. Mas também dei
logo o troco e respondi à letra! Igualmente pouco expressivos são os
dados apurados no que diz respeito à imposição de castigos aos detidos,
pois somente três dos inquiridos declararam já ter sido objecto de proce-
dimentos que interpretam como tal:
í Já me aconteceu não ter sido autorizada a sair para o exterior, por ter
feito alguma coisa.
í [Os seguranças] Mandam-me subir e ficar no quarto, porque eu gosto
muito de brincar com os rapazes. Eu vou, mas não fico lá muito tempo.
Desço logo de seguida.
í Foi-me dito [por uma agente da segurança]: “se não comes não vais
subir” [para o quarto]. Fui praticamente obrigada a comer e proibida
de fazer greve de fome como pretendia.
7 “The four criteria of a healthy custodial establishment, modified to fit the inspection of
the removal centres, are: safety – all detainees are held in safety and with due regard to
the insecurity of their position; respect – detainees are treated with respect for their
human dignity; purposeful activity – detainees are able, and expected, to engage in
activity that is likely to benefit them; preparation for release – all detainees are able to
keep in contact with the outside world and are prepared for their release, transfer or
removal” (HM Chief Inspector of Prisons 2007: 9).
8 Um exemplo paradigmático desta preocupação securitária: à entrada, e durante a estadia
na instituição, tal como acontece num estabelecimento prisional comum, são retirados
aos utentes todos os seus objectos de valor, assim como aqueles que possam ser usados
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como artefactos de agressão. São também, logo nesta fase inicial, retidos os bens de que
são portadores e que, pelo seu valor material, possam constituir objecto de cobiça e
levar ao roubo por parte de terceiros ou ser usados para qualquer tipo de comércio no
interior do estabelecimento – jóias, relógios, dinheiro e telemóveis – ou que, de algum
modo, possam ser utilizados/utilizáveis como meios de (auto)agressão – telemóveis,
objectos inflamáveis, latas, fios, sprays, agulhas, atacadores, entre outros.
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í Chorei dia e noite. Chorei dois dias. Não comia, nem bebia!
í Chorei até dizer chega!
í Nos primeiros dias para quem chega é difícil. As pessoas chegam aqui
cheias de stress.
í Sentia permanentemente um nó no estômago!
í Nem sei como vou me vou habituar outra vez ao meu país. Saí de lá já
vai para dezasseis anos e nunca mais lá voltei.
í Nossa Senhora! Levarem-me assim de volta para a minha terra!
Aparecer à minha mãe assim, com estas roupitas [fornecidas pela
UHSA]!
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dos que foram inquiridos se lhe referiu enquanto tal. Foram apenas cap-
tadas algumas referências vagas e soltas ao assunto, das quais se deduz
que só muito pontual e informalmente os inspectores dão alguns conselhos
aos utentes, informando-os acerca das vias mais adequadas para even-
tuais tentativas de regresso.
9 Mas vale também como efeito demonstrativo de que, afinal, o potencial dos relógios de
pulso para destabilizar ou ameaçar o ambiente e a segurança interna da UHSA, a existir,
é muito baixo, pois não há notícia de que até hoje tenha havido qualquer incidente
decorrente do seu uso pelos utentes.
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10 Só são admitidas excepções para as crianças e os adolescentes, que podem levantar-se mais
tarde, sendo-lhes permitido tomar o pequeno-almoço depois do período estabelecido.
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horror disso. Deixam tudo desarrumado. Todos os dias. Nem a caixa dos
óculos escapa
…!
Implícita ou explicitamente, muitos dos utentes mostram-se desagra-
dados com a interdição de acesso aos quartos durante o período atrás
referido, tanto mais quanto é certo que, para muitos deles, o quarto é uma
espécie de porto de abrigo, um refúgio para soltar o espírito e a mente e
enganar o tempo com sonos dormidos fora de horas. A parte final da
manhã é, para quase todos, gasta numa mais ou menos entediante espera
pelo almoço, entre mais um cigarro, um jogo de ténis-de-mesa, uma
pequena conversa de circunstância, uma breve e geralmente pouco inte-
ressada leitura do jornal, um jogo de cartas, quase sempre com a televisão
ligada como pano de fundo. Muitos limitam-se a permanecer sentados
nos sofás, imersos nos seus pensamentos e angústias, simplesmente
aguardando o próximo toque de rotina, que se faz ouvir às 12h30. É o
sinal para a hora do almoço, que se prolonga até às 13h30.
A seguir ao almoço e até ao próximo toque de campainha, o tempo
reparte-se entre regressos aos quartos (para descansar, rezar e ler), à sala de
convívio (ver televisão e filmes em DVD, jogar às cartas, algumas leituras e
conversas esporádicas), deambular pelos corredores, em conversas breves
com os colegas e os seguranças, e pelo pátio interior, onde os fumadores
saciam o seu vício, enquanto outros jogam ténis-de-mesa e outros ainda
assistem ao jogo, ou simplesmente estão por lá, numa atitude desinteressada
e passiva, em aparente desinteresse perceptivo. Durante a semana, a partir
das 14h00 e até às 16h00, os utentes podem aceder aos seus telemóveis,
pelo que aqueles que dispõem deste meio de comunicação aproveitam a
oportunidade para telefonar e enviar mensagens, ou tão-só para dele usu-
fruir, como se de um brinquedo se tratasse. Segundo a coordenadora do
centro, a regra relativa ao período de uso do telemóvel visa, acima de tudo,
evitar que a sua utilização concorra com a participação nas actividades pro-
postas como forma de ocupação dos tempos livres, se bem que as iniciati-
vas lúdicas oferecidas pelo centro sejam manifestamente escassas. Ainda
segundo a coordenadora, ao fim-de-semana, e alegadamente para os com-
pensar do facto de não haver actividades recreativas e de lazer, os utentes
podem usar o telemóvel de manhã e à tarde.
Às 16h00 volta a fazer-se ouvir um anúncio de campainha, desta vez
para anunciar o lanche, cujo horário se prolonga até às 16h30. Após esta
rápida refeição, retomam-se as possíveis (e escassas) formas de ocupação
do tempo, que são as mencionadas até aqui e pouco mais. Estas rotinas só
mudam ligeiramente quando há iniciativas/actividades promovidas pelos
voluntários, visitas e/ou consultas médicas. Além disto, poderão ainda
acrescentar-se dois pequenos e, aparentemente, banais exemplos que
representam uma ténue fuga às rotinas: a lavagem da roupa pessoal na
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cidadãos de países terceiros que procuram aceder aos países que integram o
espaço comum de circulação. Para tal, tem vindo a ser implementado um
processo integrado de vigilância das fronteiras externas da Europa, com o
objectivo de blindar a entrada a amplas categorias de imigrantes tidos como
indesejados14. Os principais instrumentos deste processo são três grandes
sistemas de vigilância – o Sistema de Informação Schengen (SIS1 e SIS2),
o sistema de impressões digitais European Dactyloscopie (Eurodac) e o
Sistema de Informação sobre Vistos (VIS) – que configuram uma estrutura
panóptica digital produtora de uma vasta base de dados electrónica, por via
da qual é assegurado o controlo das fronteiras exteriores e, simultaneamen-
te, a detecção dos imigrantes que as logram transpor e se encontram em
situação irregular (Broeders 2007)15.
No que diz mais especificamente respeito ao controlo interno da
imigração, as informações proporcionadas por estes sistemas facilitam a
aquisição dos vários elementos biográficos dos imigrantes irregulares,
indispensáveis à identificação formal dos respectivos países de origem e
posterior concretização da sua repatriação. Deste modo, poderá ser gra-
dualmente ultrapassada aquela que (ainda) é uma das grandes vulnerabi-
lidades nos centros de detenção (a inexistência de documentos de
identificação ou a morosidade na sua aquisição, como pudemos testemu-
nhar no decurso do trabalho de campo na UHSA), responsável por taxas
de extradição de imigrantes irregulares bastante aquém das taxas de
detenção (Broeders e Engbersen 2007). Numa primeira análise, podere-
mos considerar esta situação intrigante, atendendo sobretudo aos eleva-
dos custos operacionais envolvidos no processo de identificação e
detenção que precede a repatriação. Na UHSA, cada utente detido impli-
ca uma despesa média diária de €73,25 para os cofres do Estado.
14 Esta pode ser considerada a finalidade mais ou menos declarada. Uma outra finalidade
real destas políticas migratórias repressivas, ainda que encoberta e difusa, é criar con-
dições para a constituição de uma classe trabalhadora transnacional estratificada não
apenas pelas competências técnicas e pela etnicidade, mas também pelo seu estatuto
legal (Castles 2004: 223), o que poderá, certamente, servir as pretensões dos Estados e
dos grandes grupos económicos, directa ou indirectamente interessados numa força de
trabalho desorganizada, flexível e vulnerável (Nieuwenhuys e Pécoud 2007: 1676).
15 O controlo dos fluxos migratórios está a transformar-se numa autêntica “guerra sem
quartel”, caracterizando-se por uma extraordinária flexibilidade e abrangência, o que
permite a vigilância das fronteiras propriamente ditas, a monitorização interna de cida-
dãos estrangeiros e o “controlo remoto” (Zolberg 2003) dos potenciais imigrantes fora
do espaço europeu. Assim, torna-se bastante redutor assumir que a instauração da UE
tem por base um processo de eliminação das fronteiras. Na realidade, o que tem vindo
a acontecer são mudanças na localização e configuração das fronteiras e, por outro
lado, a sua intensificação no perímetro exterior do espaço europeu (Balibar, apud
Jones 2009: 182).
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Conclusão
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