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Biblioteca Nacional de Portugal –– Catalogação na Publicação

ETNOGRAFIA E INTERVENÇÃO SOCIAL : POR UMA PRAXIS REFLEXIVA

Etnografia e intervenção social : por uma praxis reflexiva / coord. Pedro


Gabriel Silva, Octávio Sacramento, José Portela. – (Extra-colecção)
ISBN 978-989-689-118-3

I – SILVA, Pedro Gabriel, 1973-


II – SACRAMENTO, Octávio José Rio do, 1973-
III – PORTELA, José Francisco Gandra, 1950-

CDU 364

Título: Etnografia e Intervenção Social:


Por Uma Praxis Reflexiva
Coordenação: Pedro Gabriel Silva, Octávio Sacramento
e José Portela
Editor: Fernando Mão de Ferro
Depósito legal n.º 329 909/11

Lisboa, Setembro de 2011


Vidas embargadas: a institucionalização temporária
de estrangeiros ilegais em Portugal no contexto
das actuais políticas de imigração
_____________________________________________

Octávio Sacramento
Manuela Ribeiro

Introdução

A gestão da imigração, muito em particular a dita ilegal, constitui


actualmente uma das grandes preocupações dos países mais desenvolvi-
dos do hemisfério norte. A prová-lo está a crescente expansão do tecido
institucional ao longo da “fileira”, desde as acções de intervenção a mon-
tante, visando o “controlo remoto” (Zolberg 2003) e a dissuasão nos paí-
ses de origem e de trânsito migratório1 (Nieuwenhuys e Pécoud 2007),
até à detenção e extradição daqueles que são detectados em situação jurí-
dica irregular no país de destino. Na fase final do circuito de intervenção,
começam a ganhar grande relevância, sobretudo na Europa, os centros de
detenção temporária de imigrantes. Estes centros representam novas
estratégias dos Estados para disciplinar o espaço e a mobilidade de imi-
grantes tidos como indesejados (Broeders e Engbersen 2007).
Em Portugal, o primeiro centro desta natureza surge em 2006, no
Porto, sob a designação de Unidade Habitacional de Santo António
(UHSA). Com o intuito de proceder à avaliação do seu funcionamento,
passado cerca de um ano desde a sua abertura, foi solicitado pelo Serviço
de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) um estudo de diagnóstico a uma
equipa do Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento
(CETRAD-UTAD), da qual fizemos parte2. Foi, então, realizada uma

1 Acções geralmente financiadas pela Organização Internacional das Migrações (OIM) e


pelos países ocidentais.
2 Deve ressalvar-se que o presente texto é, em boa medida, tributário dos resultados
apurados no referido estudo, cuja realização, para além dos autores deste artigo, contou
também com a participação dos investigadores do CETRAD Alberto Baptista e
Fernando Bessa Ribeiro. Algumas das reflexões desenvolvidas pelo primeiro autor do
142 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

avaliação de acompanhamento, que passou, no seu essencial, por examinar


as condições materiais, os processos, as práticas e as sociabilidades que
caracterizam o quotidiano da instituição, sempre com o objectivo de deli-
near sugestões tendentes a melhorar globalmente o seu funcionamento. É
precisamente com base nos elementos empíricos proporcionados pelo
estudo em causa3, já apresentado sob a forma de relatório (Ribeiro et al.
2007b), que procuraremos debater neste texto a experiência portuguesa
de institucionalização e extradição dos imigrantes considerados ilegais,
dando prioridade de análise quer ao modo como os próprios, na primeira
pessoa, expressam a vivência do processo, quer às consequências que ele
desencadeia nos seus respectivos projectos migratórios e biográficos. A
finalizar, ensaia-se uma pequena reflexão em que se equacionam possí-
veis ajustamentos nas políticas e práticas institucionais que dão corpo à
detenção e extradição de imigrantes no espaço Schengen, uma reflexão
que decorre da constatação da progressiva transformação do “Espaço
Europeu de Liberdade, Segurança e Justiça”, cuja génese remonta ao Tra-
tado de Amesterdão, em 1997, num espaço meramente securitário.
No debate ter-se-á sempre presente, como cenário de fundo, a exis-
tência de uma conjuntura internacional marcada pela crescente fortificação
das fronteiras dos países mais ricos e pela sofisticação dos instrumentos de
controlo/repressão dos fluxos migratórios, muito em especial quando o que

texto, nomeadamente as que constam da secção “A política de portões selectivos…”,


inscrevem-se numa pesquisa para Doutoramento que beneficia do apoio da FCT através
da bolsa SFRH/BD/60862/2009. Aproveitamos, ainda, para agradecer os comentários
críticos e as sugestões do Prof. José Portela (UTAD_CETRAD), os quais, todavia, não
lhe conferem qualquer responsabilidade no teor e na expressão dos conteúdos aqui
desenvolvidos.
3 No processo de pesquisa empírica, que decorreu entre Novembro de 2006 e Junho de 2007,
optou-se por uma abordagem que integrou diversos procedimentos metodológicos, asse-
gurando-se, assim, uma compreensão mais aprofundada do contexto social em causa. O
trabalho de recolha da informação começou pelas fontes documentais de diversas institui-
ções, tendo em vista, sobretudo, aceder a elementos estatísticos e legais sobre a detenção e
extradição de imigrantes no espaço europeu. De seguida, recorreu-se também ao inquérito
por questionário, tendo sido inquiridos 42 utentes, o que representa cerca de 26% do total
dos que passaram pela UHSA no primeiro semestre de 2007. Aos agentes institucionais
(funcionários da UHSA, membros das organizações parceiras e prestadores externos de
serviços) foram realizadas entrevistas semi-directivas. Para além destes procedimentos
mais estandardizados de recolha de informação, procurou-se também assegurar a pesquisa
empírica por via de exercícios mais ou menos pontuais de observação participante. Assim,
em todas as visitas à instituição, os membros da equipa procuravam colectar elementos
empíricos através da observação directa e dos diálogos informais com os mais diversos
actores, registando posteriormente a informação sob a forma de notas de campo. De forma
a explorar um pouco mais a abordagem etnográfica, dois dos elementos da equipa esti-
veram a residir na UHSA (cada qual pelo período de uma semana), acompanhando por
dentro o quotidiano da instituição.
Vidas embargadas 143

está em causa são as migrações de cidadãos pobres e pouco qualificados


dos países do Sul, como é o caso dos utentes que encontrámos na UHSA.
Nesta conjuntura, os centros de detenção temporária de imigrantes consti-
tuem mais um elemento da complexa engrenagem de dispositivos que per-
mite aos países ricos, em função dos seus interesses, gerir estrategicamente
o ritmo, volume e composição dos diferentes fluxos que decorrem das suas
conexões globais. No que diz respeito à União Europeia, como nota
Godinho (2007: 73), “[…] ao mesmo tempo que se desterritorializam as
relações entre os cidadãos dos Estados-membros, são reterritorializadas
aquelas que respeitam a cidadãos de Estados terceiros”.
O resultado desta (des)territorialização selectiva é um sistema que
exclui uma significativa percentagem de indivíduos de aceder às (poten-
ciais) oportunidades da globalização, podendo mesmo admitir-se a exis-
tência do que Martin et al. (2006: 513) designam por un-globalization.
Além dos seus inúmeros efeitos perversos (Andreas 2001; Peixoto et al.
2005), esta situação é reveladora “[…] de uma hipocrisia política: os
governos limitam o fluxo de pessoas que necessitam de ajuda humanitá-
ria, mas ao mesmo tempo a força de trabalho e a economia destes países
só podem sobreviver à competição internacional tendo acesso ao custo do
trabalho barato que os migrantes garantem” (Grassi 2006: 302). Parece
mesmo fundamental para a actual economia de mercado a existência de
um sistema que limita a livre circulação de pessoas e convida a fluxos
migratórios irregulares, constituídos sobretudo por indivíduos profunda-
mente vulneráveis à imposição de regimes laborais convenientes para as
entidades empregadoras. A designação “grande muro do capital” (Davis
2008) ilustra na perfeição as ambiguidades estratégicas deste sistema.

A institucionalização de ilegais: entre a preocupação humanista e a


lógica carcerária

Na Europa, a abordagem ao problema da imigração ilegal tem vindo


a ser marcada pela intensificação do recurso à detenção administrativa de
cidadãos de países terceiros em situação irregular, procurando-se, assim,
acelerar o processo de extradição e, simultaneamente, dar um sinal de
desencorajamento a potenciais imigrantes (Broeders e Engbersen 2007:
1602). Com efeito, os centros de detenção temporária para cidadãos não-
-nacionais em situação irregular, embora com formatos e designações
diversas, têm vindo a ser criados e adoptados como instrumentos das
políticas de imigração em todos os países de mais elevada procura por
parte de estrangeiros, vindos sobretudo dos países com maiores problemas
de estabilidade económica e política, em busca de melhores condições e
144 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

oportunidades de vida. Atendendo a que a pena de expulsão de imigran-


tes é, na esmagadora maioria dos casos, ditada por infracções de cariz
administrativo, o seu internamento e consequente privação de liberdade
aparecem, em termos formais, justificadas por intenções eminentemente
cautelares e preventivas, ou seja, as de garantir a presença dos visados
durante a instrução dos respectivos expedientes administrativos e a exe-
cução da medida sentenciada.
Em 2009, o número deste tipo de estabelecimentos públicos na
Europa já ultrapassava as duas centenas e meia (Migreurop 2009). Em
Portugal, a criação de estruturas de instalação temporária de estrangeiros
que não reúnam os requisitos fixados por lei está legalmente contemplada
desde 19944 e foi sendo materializada nas chamadas “zonas de trânsito”
dos complexos aeroportuários de Lisboa, Porto, Faro, Funchal e Ponta
Delgada5, locais onde eram albergados, à espera do desfecho dos corres-
pondentes processos, os solicitantes de asilo, os estrangeiros com entrada
recusada e os imigrantes com ordem de expulsão do país.
A UHSA foi criada pelo Decreto-Lei n.º 44/2006 de 24 de Fevereiro,
tendo vindo a ser instalada numa zona residencial da cidade do Porto, em
instalações que, no passado recente, tiveram como função acolher jovens
sob tutela judicial. O seu funcionamento assenta numa estrutura organiza-
tiva em que, para além de uma estrutura de coordenação do SEF, partici-
pam outras entidades de natureza jurídica diversa e com vínculos de
colaboração distintos, como é o caso do Serviço Jesuíta aos Refugiados
(SJR) e da OIM. A entrada em funcionamento desta unidade permitiu
libertar as instalações aeroportuárias existentes para o exclusivo acolhi-
mento dos estrangeiros considerados como “inadmissíveis” e põe igual-
mente fim à detenção, em cadeias comuns, de imigrantes a aguardar o
afastamento do país. Por comparação com a situação precedente, a UHSA
consubstancia um projecto de evidente evolução organizativa que, entre
outros, a configura como um “centro de 2.ª geração”. Pelos pressupostos
que subjazem à sua criação, pela materialização que veio a assumir, pelos
princípios e conteúdos inscritos no seu Regulamento Interno (SEF 2006),
a UHSA apresenta-se, no contexto nacional, como uma unidade pioneira
e experimental e, em última instância, com pretensões de organização
modelar para uma futura geração de congéneres. Em linha com os pres-
supostos humanistas dos Direitos Humanos, assume como objectivo fun-
damental “proporcionar alojamento temporário aos utentes em situação
de cumprimento de uma medida de afastamento do território português de

4 Lei n.º 34/94 de 14 de Setembro.


5 Decreto-Lei n.º 85/2000 de 12 de Maio.
Vidas embargadas 145

uma forma condizente à dignidade humana” (idem: art.º 3.º, cap.º I do


Regulamento Interno).
À data da realização do estudo acima mencionado, os utentes da
UHSA correspondiam aos seguintes elementos de caracterização sócio-
económica: 69% são homens e 31% mulheres; a grande maioria situa-se
na faixa etária dos 20 aos 40 anos (71%) e é solteira (78%); predominam,
como seria de esperar, cidadãos com baixos índices de escolaridade
(somente 10% declara ter formação superior); e são provenientes de paí-
ses com problemas de desenvolvimento, sendo de destacar os de nacio-
nalidade brasileira (36%), os da Europa de Leste (19%) e os de diversos
países africanos (33%), com destaque para os subsarianos. Cerca de
metade (47%) dos inquiridos declararam ter entrado em Portugal nos
últimos três anos prévios ao da inquirição levada a cabo, havendo, porém,
seis indivíduos que reportaram ter chegado há mais de sete anos.
A institucionalização na UHSA para posterior extradição decorre de
uma medida de coacção imposta pelo tribunal da área onde se procedeu à
detenção policial. Esta medida implica uma reclusão do imigrante que pode
estender-se até um máximo de 60 dias. Da totalidade dos utentes, 35% já
tinham sido instados judicialmente a sair do país de forma voluntária. Não
o tendo feito e sendo detectados pelas forças de segurança, foram novamen-
te presentes a tribunal e sujeitos a ordem de extradição. Após a deliberação
judicial, o encaminhamento para a UHSA é assegurado por uma força poli-
cial, culminando assim um processo que se rege pela Lei 23/2007 de 4 de
Julho. A região de Lisboa e o Algarve encontram-se entre as principais
áreas de proveniência dos utentes da UHSA.
Depois de instalados, quase todos reconhecem que a UHSA apresen-
ta padrões funcionais, de higiene e de conforto minimamente satisfatórios
e adequados. Nesta apreciação tendem a recorrer a comparações nas quais
utilizam referências que remetem para as condições materiais e as expe-
riências de vida que viveram até à data da detenção, destacando – quase
todos – as melhorias significativas proporcionadas pela UHSA:

í Aqui é tudo melhor do que no sítio aonde eu vivia.6


í Estava a viver numa casa, sem água, sem luz……
í Ao que eu já passei e vivi nestes últimos anos, isto aqui é, para
mim, um hotel de cinco estrelas!!

6 Atendendo a que o contexto em causa é bastante circunscrito, facilitando a identificação


dos vários actores sociais que o integram, optamos por não facultar aqui qualquer ele-
mento (nem mesmo o sexo e a idade) que, eventualmente, possa contribuir para a que-
bra do anonimato dos nossos informantes.
146 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

Em termos gerais, e apesar das limitações decorrentes do facto de se


tratar de um edifício não construído de raiz para o fim em vista, a que se
juntam obras de adaptação relativamente modestas, a instituição possui as
condições mínimas de habitabilidade e conforto para acolher por períodos
relativamente curtos (até um máximo de 60 dias) homens e mulheres
sujeitos a privação da liberdade e com trajectos de vida difíceis. A quali-
dade das instalações físicas da UHSA colocam-na na esteira da exigência
que a lei lhe fixa, ou seja, a de ser “um espaço a funcionar em condições
dignas” (Decreto-Lei n.º 44/2006, de 22 de Fevereiro). É também de des-
tacar o excelente padrão de relacionamento humano que os responSáveis
da unidade vêm sendo capazes de estabelecer, envolvendo inspectores do
SEF, seguranças, outros funcionários, membros das ONG presentes,
voluntários e utentes. As observações directas e as inquirições efectuadas
permitem afirmar que, desde que a unidade começou a funcionar, não há
registo ou sequer indícios de práticas de maus-tratos, de uso de violência
contra os utentes, nem de hostilidade aberta e continuada entre estes e o
pessoal de serviço na unidade. Pelo contrário, constata-se a existência de
um empenho efectivo por parte da generalidade dos funcionários da
UHSA no sentido da resolução dos problemas com que os utentes se
debatem. Este acompanhamento próximo, quase empático, é largamente
facilitado pela dimensão da unidade, mormente em termos físicos e
sobretudo da capacidade máxima de alojamento que ela comporta, a qual
pouco excede as três dezenas de pessoas internadas em simultâneo. Trata-
-se, com efeito, de uma escala institucional compatível e facilitadora do
desenvolvimento de uma interacção relativamente intensa e sistemática
entre todos os elementos do grupo social alargado que compõe o universo
da UHSA e, por consequência, de um controlo atento das ocorrências que
nele se vão registando.
Tomando eventuais castigos e maus-tratos de vária ordem (seja por
palavras ou por actos), como indicadores mais imediatamente expressivos
de negação do direito ao “respeito e tratamento digno” que é reconhecido
aos detidos (SEF 2006: art.º 6.º e alínea a) do art.º 9.º, cap.º III, Regula-
mento Interno), os resultados que apurámos apontam para a inexistência
de falhas dignas de registo por parte dos agentes institucionais interve-
nientes no dia-a-dia da UHSA. Com efeito, a pergunta “já alguma vez se
sentiu maltratado/a dentro desta casa?” recebeu 95% de respostas negati-
vas, não sendo raras as expressões de estranheza e de surpresa dos res-
pondentes face ao conteúdo desta questão. As duas únicas alegações de
maus-tratos que foram mencionadas são reportadas a ocorrências muito
pontuais e podem ser consideradas de reduzida gravidade, tendo mesmo
uma das “ofendidas” reconhecido que devolveu a ofensa no acto: Fiz uma
pergunta e ela [uma agente da segurança] me respondeu com malcriação;
Vidas embargadas 147

Recebi uma má resposta [de uma agente da segurança]. Mas também dei
logo o troco e respondi à letra! Igualmente pouco expressivos são os
dados apurados no que diz respeito à imposição de castigos aos detidos,
pois somente três dos inquiridos declararam já ter sido objecto de proce-
dimentos que interpretam como tal:

í Já me aconteceu não ter sido autorizada a sair para o exterior, por ter
feito alguma coisa.
í [Os seguranças] Mandam-me subir e ficar no quarto, porque eu gosto
muito de brincar com os rapazes. Eu vou, mas não fico lá muito tempo.
Desço logo de seguida.
í Foi-me dito [por uma agente da segurança]: ““se não comes não vais
subir”” [para o quarto]. Fui praticamente obrigada a comer e proibida
de fazer greve de fome como pretendia.

A existência pontual deste tipo de atritos não nos impede, todavia, de


constatar que o tratamento dos utentes, a par do funcionamento geral da
unidade e das suas condições materiais, colocam a UHSA em linha com os
padrões internacionais de Direitos Humanos e da generalidade dos critérios
definidores de estabelecimentos de detenção sadios (healthy custodial
establishments7), na esteira da definição de uma prisão “saudável” proposta
pela Organização Mundial de Saúde. Embora a este nível institucional os
utentes tenham os seus direitos básicos minimamente salvaguardados,
importa não esquecer que o quadro estrutural das políticas de imigração, de
que resultam este tipo de centros, e a lógica securitária que lhes é subjacen-
te constituem uma afronta desses mesmos direitos. A UHSA, tal como a
generalidade das chamadas “instituições totais” (Goffman 1999; Foucault
1999), caracteriza-se por um modelo de funcionamento fortemente burocra-
tizado, em que, por um lado, quase tudo é alvo de uma regulamentação
detalhada e de rigoroso cumprimento em praticamente todas as circunstân-
cias e, por outro, se evidencia uma preocupação securitária, alicerçada
numa vigilância panóptica, a que apenas escapam os poucos espaços e
situações de mais estrita privacidade pessoal8.

7 “The four criteria of a healthy custodial establishment, modified to fit the inspection of
the removal centres, are: safety –– all detainees are held in safety and with due regard to
the insecurity of their position; respect –– detainees are treated with respect for their
human dignity; purposeful activity –– detainees are able, and expected, to engage in
activity that is likely to benefit them; preparation for release –– all detainees are able to
keep in contact with the outside world and are prepared for their release, transfer or
removal” (HM Chief Inspector of Prisons 2007: 9).
8 Um exemplo paradigmático desta preocupação securitária: à entrada, e durante a estadia
na instituição, tal como acontece num estabelecimento prisional comum, são retirados
aos utentes todos os seus objectos de valor, assim como aqueles que possam ser usados
148 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

Do regresso imposto ao desejo de voltar

Para a imensa maioria das pessoas a quem ele é imposto, o interna-


mento num centro de detenção temporária significa a suspensão dos
modos de vida e das rotinas que preenchiam o seu quotidiano habitual e a
passagem súbita e não planeada a um tempo quase exclusivamente preen-
chido pela espera, isto é, vazio de ocupações e actividades. A detecção
por parte das autoridades policiais, embora frequentemente equacionada
como probabilidade é, por regra, recebida com surpresa, mesmo por
aqueles que são reincidentes, ou seja, pelos que registam já processos
anteriores de identificação como ilegais e não deram sequência à notifi-
cação para abandono voluntário do país que, por então, lhes foi decreta-
da. Esta é, aliás, uma situação relativamente comum entre os imigrantes
que são encaminhados para a UHSA. Com efeito, cerca de 35% do total
dos inquiridos no âmbito deste estudo reportaram a existência de ordens
anteriores de afastamento que não acataram, o que indica que a reclusão
tende a ser, em grande medida, accionada como meio para evitar a repeti-
ção dos incumprimentos.
Mas mais do que surpresa, a reacção inicial à detecção e subsequentes
desenvolvimentos processuais conducentes à expulsão são muitas vezes
descritos como de choque. Assim se lhe referem os que contam já vários
anos de estadia em Portugal e que, mesmo na condição de clandestinos, por
cá foram engendrando soluções de vida, necessariamente precárias, tanto
no plano pessoal como laboral, que agora vêem brusca e radicalmente sus-
pensas: Já estava estabelecido em Portugal [aonde chegou há quatro anos].
Estava a trabalhar. Sinto-me injustiçado; Fiquei sentido por ver que tudo o
que consegui até aqui fica para trás. Assim se lhe referem também muitos
dos que chegaram há menos tempo e que vêem desfeita, quando ainda mal
se começava a esboçar, a possibilidade de realização de expectativas pró-
prias e dos respectivos núcleos familiares.
São relativamente poucos (cerca de 30%) os que dizem ter transpos-
to os portões da UHSA com tranquilidade e encarado com normalidade a
situação em que se acharam. O grupo dos que declaram este tipo de sen-
timentos é integrado sobretudo por indivíduos protagonistas de experiências
migratórias mais extensamente marcadas pelo fracasso e que

como artefactos de agressão. São também, logo nesta fase inicial, retidos os bens de que
são portadores e que, pelo seu valor material, possam constituir objecto de cobiça e
levar ao roubo por parte de terceiros ou ser usados para qualquer tipo de comércio no
interior do estabelecimento – jóias, relógios, dinheiro e telemóveis – ou que, de algum
modo, possam ser utilizados/utilizáveis como meios de (auto)agressão – telemóveis,
objectos inflamáveis, latas, fios, sprays, agulhas, atacadores, entre outros.
Vidas embargadas 149

(sobre)vivem da mendicidade, da arrumação de carros, da caridade alheia


e similares, alguns dos quais, uma minoria, não hesitam mesmo em afir-
mar que se sentiram aliviados por serem aqui acolhidos: Senti tranquili-
dade por ver que era melhor do que a rua [aonde vivia desde que chegou
a Portugal, há poucas semanas]. Quando fui apanhado, estava há três
dias sem comer e, de repente, encontro uma casa aonde há de tudo! E
houve até um que confessou ter-se entregue voluntariamente para ser
deportado, porque estava interessado em regressar ao seu país e não dis-
punha, de todo, de meios para custear a despesa da viagem. A tranquili-
dade de estado de espírito que muitos destes respondentes proclamam
tem muito a ver quer com a indiferença que alguns deles abertamente
opõem ao que lhes está a acontecer, quer com a presunção de outros de,
pelo facto de estarem indocumentados, preverem como improvável a
conclusão com eficácia do pedido de reconhecimento e de emissão do
necessário salvo-conduto para o seu repatriamento por parte das represen-
tações diplomáticas dos seus países. Daí, a sua forte convicção de que,
esgotado o prazo legal de 60 dias de detenção, serão devolvidos à liber-
dade: Não sabe o que estar aqui a fazer. Não sabe o que se passa. Mas
eu feliz, muito brinca, optimista! Estar só à espera que tempo passa.
Dois dos inquiridos fizeram questão de justificar o “nada” que dizem ter
sentido aquando da sua transferência para a UHSA, por uma espécie de
incapacidade de sentir o que quer que fosse, tal era o tamanho do cho-
que provocado pela detenção: Estava tão ““anestesiada”” que não deu
para sentir nada. E há também quem consiga encarar com uma ponta
de humor a entrada (e a estadia) na UHSA: Imaginei que estava voltan-
do ao colégio interno. É o mesmo formato! Porém, a grande maioria
(67%) dos respondentes assume como fortemente impactantes a detec-
ção e, mais em especial, a detenção, e aponta a ansiedade, o medo, a
angústia, a apreensão, a tristeza como sentimentos dominantes a par da
frustração, do desânimo e da revolta. Vários referem expressamente ter-
-se sentido confusos e “perdidos”:

í Quando aqui cheguei senti-me como um peixinho de rio atirado ao


mar!
í Senti-me completamente confuso! A primeira coisa é a incerteza, o que
vai acontecer e quanto tempo vou ficar aqui fechado? A segunda coisa
é mesmo estar fechado!

Esta mistura de sentimentos, sendo primordialmente suscitada pela


perspectiva de expulsão, é grandemente reforçada pelo internamento com-
pulsivo e pela privação de liberdade que ele implica: Eu já vinha arrasada
no caminho todo. Aqui ainda fiquei mais arrasada. Estou trancada. As
150 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

primeiras horas, os primeiros dias e, sobretudo, as primeiras noites são


reportadas como dramáticas, como muito difíceis de viver. A insónia, o
nervosismo, os distúrbios emocionais, a perda de apetite, são as expressões
mais comuns do trauma que a situação representa para quase todos os que
aqui chegam, com uma incidência especialmente elevada entre as mulheres,
que constituem, neste campo, um grupo particularmente vulnerável:

í Chorei dia e noite. Chorei dois dias. Não comia, nem bebia!
í Chorei até dizer chega!
í Nos primeiros dias para quem chega é difícil. As pessoas chegam aqui
cheias de stress.
í Sentia permanentemente um nó no estômago!

Com a continuação da estadia na unidade e a constatação do seu


modo de funcionamento e do tipo de vivências que nela se desenvolvem,
alguns dos sentimentos iniciais tendem a atenuar-se e alguns mesmo até a
dissipar-se, embora os efeitos da privação de liberdade continuem a ser
apontados como muito extensos e penalizadores e, como tais, geradores
de afloramentos de revolta e de mal-estar:

í Sinto-me mal... Não suporto esta falta de liberdade.


í Ao fim dos cinquenta e quatro dias que já levo nesta casa, continuo a
sentir-me um pássaro dentro de uma jaula.
í Estou aqui há dez dias e estou saturado desta clausura!
í A gente nunca roubou, nunca matou... para estar aqui presa!

Mas, para muitos, outros sentimentos igualmente negativos começam,


entretanto, a nascer, sendo decorrentes, sobretudo, das expectativas sobre o
andamento dos processos e seu desfecho. O medo do futuro; a frustração e
a perda de auto-estima perante o fracasso inscrito na deportação; a solidão e
o desamparo perante a completa ausência de referências afectivas próximas
e significativas em Portugal – familiares, amigos, companheiros – e/ou a
distância a que se encontram das que possam ter; a impotência e o desco-
nhecimento perante a burocracia e as leis são, entre outros, factores que
induzem e alimentam a formação de estados depressivos ou ansiosos reve-
lados por muitos dos utentes que foram observados neste estudo:

í Nem sei como vou me vou habituar outra vez ao meu país. Saí de lá já
vai para dezasseis anos e nunca mais lá voltei.
í Nossa Senhora! Levarem-me assim de volta para a minha terra!
Aparecer à minha mãe assim, com estas roupitas [fornecidas pela
UHSA]!
Vidas embargadas 151

í Não era assim que eu queria apresentar-me perante a minha filha e o


resto da minha família.

Para a maioria, porém, o que se vai tornando mais penoso é o “arras-


tar” do tempo de internamento e sair dali “o mais depressa possível” aca-
ba por se converter numa preocupação maior. Saber “quando vão sair”,
“quando se vão embora” passa a ser, depois de percebida como irreversí-
vel a ordem de expulsão, a questão que mais os inquieta e a que mais
repetidamente colocam aos responsáveis do centro. A situação que estão
a viver e as questões que a mesma lhes suscita, passam, como muitos
afiançam, a dominar-lhes por inteiro o pensamento, a absorver e a con-
sumir o que lhes vai restando de ânimo, retirando-lhes concentração e
interesse relativamente a outros assuntos: Fico o dia todo só a pensar na
situação de uma pessoa. Não tem futuro. Penso sempre na família e na
vida. E um ou outro dos que já contam mais tempo de reclusão vai mes-
mo mais longe e admite que o seu comportamento e o seu relacionamento
com os demais têm vindo progressivamente a ficar contaminados pelo
seu estado de espírito inquieto e em permanente e estéril cogitação:
Maior vontade de ““xingar””, de bater, de tratar com arrogância. Enfim,
de implicar e descarregar sobre os outros!
Mesmo no rescaldo do trauma da detenção e da ordem de expulsão,
muitos são os detidos que, de forma convicta e peremptória, fazem refe-
rência aos seus planos de “voltar a tentar a sorte” por via da emigração
para algum dos países que compõem o lado mais rico do mundo. A dis-
posição vigorosamente expressa de não desistirem do sonho que, por ago-
ra, se está a tornar um pesadelo, a resistência a declararem-se derrotados
pelas múltiplas adversidades que tiveram de enfrentar para cá chegarem e
enquanto por cá permaneceram, são, no conjunto, um eloquente indicador
de quão má há-de ser a vida que os espera nos sítios para onde estão a ser
mandados de volta. Com efeito, a esmagadora maioria dos utentes da
UHSA, quando interpelados sobre os seus projectos de vida para o futu-
ro, (re)afirma a sua intenção de regressar à Europa, sendo Portugal um
entre vários destinos possíveis:

A X. tenciona voltar para Portugal. No entanto, só voltará com um con-


trato de trabalho, de forma a evitar a situação em que agora se encontra.
Não suportaria voltar a fracassar. Gosta muito de Portugal e ainda não
perdeu a esperança de comprar casa e de montar um negócio no nosso
país. (Notas de campo, UHSA, 20/02/2007)

No cômputo total da amostra de detidos inquiridos, 91% responde-


ram que vão voltar a tentar emigrar. Destes, 51% dizem que pretendem,
152 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

especificamente, voltar para Portugal. Para os que continuam a inscrever


a emigração nos seus planos de futuro, a expulsão de que agora estão à
espera ganha um peso e um significado ainda maiores, por ter associada
uma pena adicional de inibição por alguns anos de reentrada em território
português, o que agrava consideravelmente a mágoa e a ansiedade em
que muitos vivem desde que foram detectados e detidos. A Europa, sem
concretizar qualquer país, aparece mencionada em 21% das respostas ao
inquérito como destino eleito para novos projectos migratórios. Olhando
para o futuro com mais reservas, os restantes 19%, certamente condicio-
nados de forma negativa pela situação actual em que se encontram, não
colocam assim de modo tão explícito a intenção de regresso ao continente
europeu, ainda que não fechem por completo a porta a essa possibilidade
ou apenas o façam em relação a Portugal: Voltar a emigrar para qual-
quer país, menos Portugal. Somente numa percentagem residual (9%) as
respostas vão no sentido da recusa da hipótese de uma nova aventura no
estrangeiro, expressando, ao contrário, a intenção de ficar no país de ori-
gem: Ao que eu tenho vivido de experiências, a porrada de mais que
apanhei, aqui e na França…… descobri que no Brasil, afinal, eu estou no
céu. Só que não sabia dar valor……
É de relevar que a grande maioria daqueles que tem no seu horizonte
de expectativas a concretização de um novo projecto migratório refere que
procurará fazê-lo em moldes diferentes, de modo a evitar uma nova extra-
dição: Se eu pensar em voltar, eu volto ““normal””, mas na altura legaliza-
da. Só voltarei se vier para Portugal legalizada e com a minha filha! Resta
saber se esta é uma simples preocupação circunstancial, um discurso que
pretende ser “politicamente correcto”, em função da experiência de deten-
ção pela qual estão a passar, ou se, pelo contrário, se trata de uma efectiva
preocupação em não correr riscos e não ver novamente goradas as expecta-
tivas de vida associadas e/ou projectadas em tais planos.
Independentemente do quadro subjectivo que enforma esta preo-
cupação, ela deveria ser aproveitada para promover o esclarecimento
dos utentes e para consciencializá-los sobre os procedimentos correctos
e sustentados a adoptar e a seguir sempre que voltem a ponderar a rea-
lização de um novo projecto migratório. Este trabalho pedagógico
estratégico e sistemático, a pensar no longo prazo, está explicitamente
definido e atribuído nos termos do Regulamento Interno e do protocolo
de colaboração entre o SEF e as organizações que com ele colaboram
na UHSA (OIM e JRS Portugal) e tem ganho forma, sobretudo, através
da elaboração de folhetos informativos, em diversas línguas, para dis-
tribuição aos utentes. Tal informação, porém, praticamente não transpa-
rece, não tem visibilidade no discurso dos utentes, sendo que nenhum
Vidas embargadas 153

dos que foram inquiridos se lhe referiu enquanto tal. Foram apenas cap-
tadas algumas referências vagas e soltas ao assunto, das quais se deduz
que só muito pontual e informalmente os inspectores dão alguns conselhos
aos utentes, informando-os acerca das vias mais adequadas para even-
tuais tentativas de regresso.

Quotidianos de rotina e espera

O modelo organizacional/funcional da UHSA acaba por condicionar


decisivamente os ritmos e a ocupação do quotidiano dos utentes do cen-
tro, instaurando formatos mais ou menos rígidos e muito padronizados de
estar e de viver o dia-a-dia, com escassas ou mesmo nulas alternativas e
escolhas fora dos esquemas instituídos e impostos. Os horários são um
bom exemplo da formatação estrutural que caracteriza o dia-a-dia do cen-
tro. Praticamente todas as acções e actividades que preenchem a agenda
diária dos utentes são enquadradas por horários previamente estipulados e
incontornáveis: horários para levantar, para tomar o pequeno-almoço,
para descer dos quartos, almoçar, receber visitas, usar o telemóvel, lan-
char, jantar, deitar e apagar as luzes do quarto.
O dia começa cedo no centro. Às 8h00 soa uma campainha que assi-
nala a hora para despertar. Logo de seguida, os seguranças, um em cada
piso, batem de forma vigorosa na porta de cada quarto, abrem-na ligeira-
mente e anunciam em voz alta que é tempo de acordar e de sair da cama.
A intervenção pessoal dos seguranças no despertar dos utentes decorre do
facto de estes não disporem de relógios, que são, salvo raras e específicas
excepções, retidos a quem os tem, aquando da entrada no centro. Com
efeito, apenas aos muçulmanos é permitido conservar a posse dos reló-
gios, para que possam cumprir os horários de oração prescritos pelo seu
credo religioso. Esta excepção vale sobretudo como reflexo da intenção
dos responsáveis da UHSA de atenderem às especificidades de ordem
cultural significativas em termos da identidade e da dignidade dos uten-
tes9. Aliás, a atenção à diversidade cultural dos utentes e a preocupação
de, no que é considerado essencial, a atender, aparece formalmente assu-
mida em alguns dispositivos e práticas institucionais, desde a disponibili-
dade dos designados mediadores culturais até à viabilização do jejum do
mês do Ramadão.

9 Mas vale também como efeito demonstrativo de que, afinal, o potencial dos relógios de
pulso para destabilizar ou ameaçar o ambiente e a segurança interna da UHSA, a existir,
é muito baixo, pois não há notícia de que até hoje tenha havido qualquer incidente
decorrente do seu uso pelos utentes.
154 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

Retomando a análise da rotina diária da vida na UHSA, há a salien-


tar que, por vezes, quando os utentes se atrasam, ou porque não querem
levantar-se, ou porque entretanto voltaram a adormecer, os seguranças
retornam aos respectivos quartos e insistem com a necessidade de se
aprontarem, sob pena de perderem o pequeno-almoço, que apenas pode
ser tomado entre as 8h00 e as 9h0010. Mesmo assim, há sempre alguém
que escolhe ficar sem a refeição da manhã e continuar na cama. Quase
todos os que se levantam para o pequeno-almoço, antes de descerem para
o rés-do-chão, onde as refeições são servidas, fazem a sua higiene pessoal
no quarto de banho comum existente em cada uma das duas alas dos dois
pisos em que se situam os quartos. Alguns optam por tomar banho à noi-
te, antes de deitar. Outros ainda, provavelmente por questões que reme-
tem para os estilos de vida, só tomam banho a cada dois ou três dias, o
que tende a suscitar alguns comentários de crítica e de desconforto por
parte dos colegas e de funcionários do centro, sobre a sua alegada falta de
higiene e consequente mau odor. As questões de natureza higieno-
-sanitária constituem, amiúde, um dos principais focos de tensão nos
quadros de sociabilidades entre utentes e, acima de tudo, entre estes e os
seguranças que, no dia-a-dia, são os funcionários mais directamente res-
ponsáveis por zelar pelo cumprimento das regras que compõem o regu-
lamento da UHSA.
À higiene matinal segue-se a descida para a sala do pequeno-almoço,
situada no rés-do-chão. Trata-se de uma refeição rápida, depois da qual
alguns utentes recolhem aos respectivos quartos, para dormir mais um pou-
co, para ler ou até para a reza/meditação matinal; outros ficam-se pela sala
de convívio, a ver televisão, a ler o jornal ou simplesmente a conversar;
outros ainda deambulam entre a sala de convívio e o pequeno pátio interior.
Os que por hábito regressam aos quartos depois do pequeno-almoço, às
10h00 têm de voltar a abandoná-los e obrigatoriamente deixá-los livres até
às 12h00, para a revista de segurança e para a limpeza, tal como está estipu-
lado no Regulamento Interno. A revista dos quartos destina-se, nas palavras
de um dos vigilantes, a ver se realmente lá em cima não está nada que pos-
sa pôr em risco a segurança. Se é que as janelas não foram mexidas, ou
que as cortinas estão no sítio e não falta nada. Todos os dias das 10 às 11,
uma hora mais ou menos, para fazermos a revista aos quartos todos. Esta
rotina de fiscalização é difícil de entender e mais ainda de aceitar por parte
de alguns utentes que a consideram um exagero de zelo, que os vai deixan-
do cada vez mais exasperados: Tudo é revistado. Todos os dias. Tenho

10 Só são admitidas excepções para as crianças e os adolescentes, que podem levantar-se mais
tarde, sendo-lhes permitido tomar o pequeno-almoço depois do período estabelecido.
Vidas embargadas 155

horror disso. Deixam tudo desarrumado. Todos os dias. Nem a caixa dos
óculos escapa……!
Implícita ou explicitamente, muitos dos utentes mostram-se desagra-
dados com a interdição de acesso aos quartos durante o período atrás
referido, tanto mais quanto é certo que, para muitos deles, o quarto é uma
espécie de porto de abrigo, um refúgio para soltar o espírito e a mente e
enganar o tempo com sonos dormidos fora de horas. A parte final da
manhã é, para quase todos, gasta numa mais ou menos entediante espera
pelo almoço, entre mais um cigarro, um jogo de ténis-de-mesa, uma
pequena conversa de circunstância, uma breve e geralmente pouco inte-
ressada leitura do jornal, um jogo de cartas, quase sempre com a televisão
ligada como pano de fundo. Muitos limitam-se a permanecer sentados
nos sofás, imersos nos seus pensamentos e angústias, simplesmente
aguardando o próximo toque de rotina, que se faz ouvir às 12h30. É o
sinal para a hora do almoço, que se prolonga até às 13h30.
A seguir ao almoço e até ao próximo toque de campainha, o tempo
reparte-se entre regressos aos quartos (para descansar, rezar e ler), à sala de
convívio (ver televisão e filmes em DVD, jogar às cartas, algumas leituras e
conversas esporádicas), deambular pelos corredores, em conversas breves
com os colegas e os seguranças, e pelo pátio interior, onde os fumadores
saciam o seu vício, enquanto outros jogam ténis-de-mesa e outros ainda
assistem ao jogo, ou simplesmente estão por lá, numa atitude desinteressada
e passiva, em aparente desinteresse perceptivo. Durante a semana, a partir
das 14h00 e até às 16h00, os utentes podem aceder aos seus telemóveis,
pelo que aqueles que dispõem deste meio de comunicação aproveitam a
oportunidade para telefonar e enviar mensagens, ou tão-só para dele usu-
fruir, como se de um brinquedo se tratasse. Segundo a coordenadora do
centro, a regra relativa ao período de uso do telemóvel visa, acima de tudo,
evitar que a sua utilização concorra com a participação nas actividades pro-
postas como forma de ocupação dos tempos livres, se bem que as iniciati-
vas lúdicas oferecidas pelo centro sejam manifestamente escassas. Ainda
segundo a coordenadora, ao fim-de-semana, e alegadamente para os com-
pensar do facto de não haver actividades recreativas e de lazer, os utentes
podem usar o telemóvel de manhã e à tarde.
Às 16h00 volta a fazer-se ouvir um anúncio de campainha, desta vez
para anunciar o lanche, cujo horário se prolonga até às 16h30. Após esta
rápida refeição, retomam-se as possíveis (e escassas) formas de ocupação
do tempo, que são as mencionadas até aqui e pouco mais. Estas rotinas só
mudam ligeiramente quando há iniciativas/actividades promovidas pelos
voluntários, visitas e/ou consultas médicas. Além disto, poderão ainda
acrescentar-se dois pequenos e, aparentemente, banais exemplos que
representam uma ténue fuga às rotinas: a lavagem da roupa pessoal na
156 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

lavandaria e a realização ocasional de pequenos trabalhos de jardinagem


nos espaços verdes junto à entrada do bloco residencial, que um ou outro
utente pede para realizar.
Chegadas as 19h00, ecoa novamente a campainha, avisando que são
horas de jantar. O período fixado para esta refeição prolonga-se até às
20h00. Trata-se de um horário que desagrada à generalidade das muitas
brasileiras que têm passado pela UHSA, pois coincide com um pico televi-
sivo rico em telenovelas, que elas tanto apreciam, não só pelos conteúdos
dramáticos que abordam, mas sobretudo pelo fugaz e virtual regresso às
origens que lhes proporcionam. Por isso, quase sempre, elas procuram
comer o mais rapidamente possível para poderem retomar os episódios
interrompidos. Tal como elas, a esmagadora maioria dos restantes utentes,
não porque tenha um motivo óbvio e verdadeiramente forte para tal, tam-
bém não se demora muito na refeição. No entanto, à excepção dos utentes
de nacionalidade brasileira, os demais não se mostram muito interessados
nas telenovelas, preferindo disputar mais uma partida de ténis-de-mesa ou
um jogo de cartas, findos os quais, poderão então, numa atitude de quase
resignação, deixar-se ficar em frente ao ecrã, para seguir os noticiários,
algum jogo de futebol, ou apenas por não terem mais nada para fazer.
Por volta das 21h50, momento que coincide novamente com um
período reservado pela maioria dos canais para a difusão de telenovelas – o
que causa, mais uma vez, um notório desagrado a alguns utentes, em espe-
cial às mulheres brasileiras – os seguranças chamam toda a gente para um
chá acompanhado de biscoitos, na sala de refeições. Terminada a toma do
chá, por volta das 22h00, os utentes recolhem aos quartos para dormir. Pra-
ticamente todos consideram que o horário de deitar poderia ser prolongado,
no mínimo, até às 23h00. Após a subida para os quartos, o segurança que se
encontra em cada um dos pisos fecha a luz, passados cerca de 15 minutos.
Só no caso de o utente pedir, é que ele a poderá deixar ficar acesa mais
algum tempo, sensivelmente entre meia hora a uma hora, no máximo. Nos
quartos, alguns utentes, nomeadamente os que detêm níveis de escolaridade
mais elevados, aproveitam para ler, se bem que as condições de iluminação
não sejam as mais propícias para a leitura. São bastantes os detidos que
dizem sentir dificuldades em adormecer, muito em particular nos primeiros
dias após a entrada no centro, havendo mesmo alguns que necessitam de
calmantes e ansiolíticos para os ajudar a dormir.
A hora de levantar, 8h00, e a de ir dormir, 22h00, suscitam uma
oposição e uma resistência muito fortes e muito generalizadas da parte
dos utentes, por serem ambas, alegadamente, muito cedo. A primeira,
pela desocupação que espera as pessoas, que não vêem, por isso, necessi-
dade de sair tão cedo da cama, até porque são muitos os que dizem ter
problemas para conciliar o sono, permanecendo acordados durante boa
Vidas embargadas 157

parte da noite, só conseguindo adormecer de madrugada. A segunda, por


ser completamente estranha aos hábitos de vida diária de muitos deles,
em especial das mulheres brasileiras que trabalhavam em actividades “da
noite”: Pelo facto de eu estar acostumada a trabalhar à noite e aí, de
repente, ter de acordar de dia e dormir à noite, não está sendo nada
fácil. Mas também por impedi-los de assistir ao que consideram ser a
melhor parte da programação televisiva ou por prolongar em demasia o
número de horas para dormir, quando o sono mais lhes falta e nem sequer
podem recorrer a mais um cigarro para ajudar a queimar tempo. Estes
horários, em especial o nocturno, são, por isso, identificados por cerca de
60% dos utentes inquiridos como a regra de funcionamento do centro a
que tem sido mais difícil adaptarem-se, pelo que, com insistência, pro-
põem a sua alteração, a sua flexibilização.
Os dados recolhidos mostram que, quer pelas formas, quer pelos
conteúdos que lhe dão corpo, o quotidiano-padrão dos detidos na UHSA
é manifestamente monocórdico, “arrastado”, entediante e acinzentado,
numa rotina que apenas se suspende em datas que, por serem especiais, se
hão-de assinalar com a realização de alguma iniciativa extraordinária,
como por exemplo, o Natal, o Carnaval, ou a festa do Santo António.
Estas celebrações especiais são, recorrentemente, invocadas e recriadas
nos discursos dos utentes, como um intervalo, mesmo breve, de diferen-
ciação e de cor no viver dos dias na UHSA.
A análise dos conteúdos ocupacionais que preenchem os dias pro-
longados dos detidos na UHSA põe, desde logo, em destaque a manifesta
pobreza dos mesmos, uma pobreza que tem sobretudo a ver com a escas-
sez de possibilidades em aberto e com a passividade física e intelectual a
que induzem as que estão efectivamente disponíveis. Daí que a generali-
dade dos detidos considere que o seu dia-a-dia se faz justamente de “não
fazer nada”, numa desocupação que todos identificam como nefasta para
o corpo, mas mais ainda para o espírito: Trinta e três dias aqui sem fazer
nada, sem me ocupar de nada! Sinto-me cada vez mais fatigado, mais
cansado. O quotidiano-padrão dos detidos na UHSA transcorre, assim,
num quadro de solicitações/possibilidades ocupacionais manifestamente
limitadas, largamente confinadas aos espaços interiores e em que predo-
minam as práticas individuais e passivas: Não faço nada, de todo! Vejo
televisão, vou para o quarto, rezo e algumas vezes leio um bocado. Tal
situação de inércia física e mental concorre, inevitavelmente, para o
aumento da tensão psicológica dos detidos e das dificuldades em viverem
de forma positiva a sua estadia na unidade, como, com insistência, os
próprios fazem questão de sublinhar: As pessoas que são fracas de cabe-
ça acabam ainda por ficar pior, por não terem nada para fazer!
158 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

Não surpreende, por isso, que à pergunta “em termos gerais e se


pudesse, o que é que mudaria para tornar melhor o funcionamento deste
centro?” tantos se tivessem referido expressamente à necessidade de criar
e disponibilizar mais actividades ocupacionais, sobretudo de natureza
física: “Um ginásio a sério”, “actividades desportivas, incluindo aos
sábados”, “fazer mais exercício físico, para tirar o stress das pessoas”,
“colocar mais actividades de ocupação e de trabalho”. Mas também
actividades diferentes e, de preferência, com mais forte componente de ar
livre: “pequenos trabalhos de jardinagem e agrícolas, pequenas repara-
ções, para ocupar o tempo”, “tirar ervas e cuidar do jardim”, “regar e
cuidar das plantas”, “fazer hortas e cuidar delas”. Nas (muitas) suges-
tões de outras actividades, destacam-se igualmente as de conteúdo educa-
tivo: “Mais actividades para as pessoas, cursos de pintura, de língua
portuguesa, sei lá!”, uma proposta que reflecte o total vazio de oportuni-
dades educacionais que, em contracorrente ao que é comum neste tipo de
estabelecimentos, se regista na UHSA. Com efeito, esta não inclui a pro-
visão de qualquer iniciativa dentro deste âmbito, mormente as concebidas
e dirigidas a jovens e crianças que por lá também passam, situação que
vem sendo justificada pela relativamente curta duração das estadias
médias e a elevada rotatividade dos residentes.
A escassa ocupação do tempo livre dos detidos revela-se como uma
das principais debilidades do funcionamento da UHSA, sendo tal debilida-
de, em grande medida, imputável à dependência do voluntariado. Também
nesta área parece dominar um entendimento do voluntariado como uma
prestação sem outras obrigações, regras ou compromissos, senão os que
encaixem e se ajustem à disponibilidade e à “vontade” de quem o pratica, e
que, como tal, acaba sempre a secundar outras prioridades. Do que fica
exposto, poder-se-á mesmo concluir que a pouca oferta de alternativas ocu-
pacionais é um domínio em que o funcionamento da UHSA mais explici-
tamente vem falhando, quer por relação ao que o seu próprio Regulamento
Interno fixa, quer por relação ao que sobre esta matéria é recomendado por
instâncias internacionais de referência, já anteriormente indicadas.

A política de portões selectivos e os seus efeitos perversos: constatações


para abordagens alternativas ao problema da imigração

Num mundo globalizado, marcado por um complexo sistema de flu-


xos, conexões e hibridismos (Hannerz 1996, 1997; Papastergiadis 2000;
Gilroy 2001; Appadurai 1990), temos vindo a assistir, sobretudo na últi-
ma década, à implementação de políticas migratórias cada vez mais res-
tritivas e repressoras por parte dos países mais ricos, associada a uma
Vidas embargadas 159

cada vez maior preocupação em vigiar e controlar os fluxos transconti-


nentais de pessoas11. No entender de Nieuwenhuys e Pécoud (2007:
1676), os Estados são agora mais capazes de controlar as migrações que
no passado, sendo que a aparente ineficácia de regulação dos fluxos
migratórios reside no mito de uma soberania perfeita que nunca existiu.
Consciente deste crescente poder dos Estados para superintender de
forma selectiva os fluxos internacionais de pessoas, Werbner (1999: 18)
destaca que “[…] the celebration of hybridity, in-betweenness or double
consciousness by diasporic poets, artists and intellectuals proves to be a
self-interested strategy, divorced from working class migrants’’ (or in-
digenous people’’s) predicaments and concerns”.
As metáforas do hibridismo, da crioulização e da fluidez tendem a
negligenciar e até a despolitizar as diversas formas pelas quais as assime-
trias sociais são sistematicamente produzidas e reproduzidas num espaço
global de fluxos, contribuindo para a constituição de um sistema marcado
por profundas assimetrias materiais e simbólicas (Cunningham e Heyman
2004: 298). Estas contradições de um mundo hierarquicamente conectado
são explicitadas por Alvarez (1995), ao afirmar que as fronteiras são obli-
teradas quando estão em causa interesses económicos que amiúde se
sobrepõem à própria autodeterminação dos Estados e, em sentido inverso,
erguidas como obstáculos intransponíveis quando se depararam com
cidadãos pobres, mestiços e/ou pertencentes a minorias étnicas. É forçoso
não esquecer que o capital é mais flexível e móvel que os direitos resi-
denciais12 (Heyman 1994: 54), pelo que, em alternativa à imagem do
“mundo líquido” de Bauman (2000), parece-nos mais pertinente a ideia
de gated globe proposta por Cunningham (2004)13. Esta última impede a
evacuação da dimensão política da reflexão sobre as mobilidades globais,
mostrando-nos a fronteira como um elemento com uma permeabilidade
selectiva, utilizado para “[…] gerar diferentes intensidades de vulnerabi-
lidade, num círculo vicioso de inseguridade jurídica e precaridade
laboral” (Romero 2008: 167).
A criação do Espaço Schengen na Europa é um exemplo paradigmáti-
co da cada vez maior capacidade de controlo, selectividade e triagem dos

11 Subjacente a esta preocupação está um quadro ideológico dominante no qual os imi-


grantes pobres dos países do Sul tendem a ser vistos como “inimigos públicos”
(Broeders, 2007: 72).
12 Esta é mesmo uma das principais marcas do “nexo neoliberal” entre formas securitárias
de nacionalismo e amplas manifestações transnacionais de mercado livre (Sparke 2006).
13 O reconhecimento da insuficiência conceptual da metáfora da liquidez de Bauman
representa uma evolução teórica face a alguns argumentos desenvolvidos em texto
anterior (Sacramento e Bessa Ribeiro, 2009).
160 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

cidadãos de países terceiros que procuram aceder aos países que integram o
espaço comum de circulação. Para tal, tem vindo a ser implementado um
processo integrado de vigilância das fronteiras externas da Europa, com o
objectivo de blindar a entrada a amplas categorias de imigrantes tidos como
indesejados14. Os principais instrumentos deste processo são três grandes
sistemas de vigilância – o Sistema de Informação Schengen (SIS1 e SIS2),
o sistema de impressões digitais European Dactyloscopie (Eurodac) e o
Sistema de Informação sobre Vistos (VIS) – que configuram uma estrutura
panóptica digital produtora de uma vasta base de dados electrónica, por via
da qual é assegurado o controlo das fronteiras exteriores e, simultaneamen-
te, a detecção dos imigrantes que as logram transpor e se encontram em
situação irregular (Broeders 2007)15.
No que diz mais especificamente respeito ao controlo interno da
imigração, as informações proporcionadas por estes sistemas facilitam a
aquisição dos vários elementos biográficos dos imigrantes irregulares,
indispensáveis à identificação formal dos respectivos países de origem e
posterior concretização da sua repatriação. Deste modo, poderá ser gra-
dualmente ultrapassada aquela que (ainda) é uma das grandes vulnerabi-
lidades nos centros de detenção (a inexistência de documentos de
identificação ou a morosidade na sua aquisição, como pudemos testemu-
nhar no decurso do trabalho de campo na UHSA), responsável por taxas
de extradição de imigrantes irregulares bastante aquém das taxas de
detenção (Broeders e Engbersen 2007). Numa primeira análise, podere-
mos considerar esta situação intrigante, atendendo sobretudo aos eleva-
dos custos operacionais envolvidos no processo de identificação e
detenção que precede a repatriação. Na UHSA, cada utente detido impli-
ca uma despesa média diária de €73,25 para os cofres do Estado.

14 Esta pode ser considerada a finalidade mais ou menos declarada. Uma outra finalidade
real destas políticas migratórias repressivas, ainda que encoberta e difusa, é criar con-
dições para a constituição de uma classe trabalhadora transnacional estratificada não
apenas pelas competências técnicas e pela etnicidade, mas também pelo seu estatuto
legal (Castles 2004: 223), o que poderá, certamente, servir as pretensões dos Estados e
dos grandes grupos económicos, directa ou indirectamente interessados numa força de
trabalho desorganizada, flexível e vulnerável (Nieuwenhuys e Pécoud 2007: 1676).
15 O controlo dos fluxos migratórios está a transformar-se numa autêntica “guerra sem
quartel”, caracterizando-se por uma extraordinária flexibilidade e abrangência, o que
permite a vigilância das fronteiras propriamente ditas, a monitorização interna de cida-
dãos estrangeiros e o “controlo remoto” (Zolberg 2003) dos potenciais imigrantes fora
do espaço europeu. Assim, torna-se bastante redutor assumir que a instauração da UE
tem por base um processo de eliminação das fronteiras. Na realidade, o que tem vindo
a acontecer são mudanças na localização e configuração das fronteiras e, por outro
lado, a sua intensificação no perímetro exterior do espaço europeu (Balibar, apud
Jones 2009: 182).
Vidas embargadas 161

Independentemente do possível ganho de eficácia proporcionado


pelos sistemas de vigilância e produção de informação que têm vindo a
dar forma a uma “Europa panóptica” (Engbersen 2001), os centros de
detenção de imigrantes parecem cumprir, desde logo, uma das suas fun-
ções fundamentais, que é mais de ordem simbólica. Como nota Perrouty
(2003), o que se pretende é enviar um duplo sinal: (i) o principal e mais
forte é para ser enviado para fora, para os candidatos-migrantes, aos quais
se procura mostrar o que os espera; (ii) um sinal simultâneo é dirigido
para dentro, para a opinião pública interna, com o intento de demonstrar
que os “problemas” são levados a sério e, assim, serenar os fantasmas da
imigração, por vezes exacerbados pelos mesmos que depois se preocu-
pam em atenuá-los. A estas duas “funcionalidades” simbólicas, Gorski e
Beiras (2007) acrescentam uma outra: a construção de fronteiras e
demarcações internas, através de mecanismos biopolíticos que determi-
nam diferentes graus de cidadania e de pertença social.
As estratégias de encarceramento e, de um modo geral, as políticas
migratórias fortemente repressivas nas quais se inscrevem suscitam inú-
meros efeitos perversos e, muitas vezes, contrários aos supostos objecti-
vos que com elas se pretendem alcançar. São alguns destes efeitos que, de
forma breve, debatemos de seguida, procurando implicitamente mostrar a
necessidade de repensar a actuação institucional dominante na abordagem
da imigração europeia.

Mais securitarismo, menos justiça e liberdade

O pânico generalizado provocado pelos ataques terroristas em Nova


Iorque, Madrid e Londres, muitas vezes fomentado e explorado politica-
mente pelas forças mais conservadoras, criou condições decisivas para a
construção social dos imigrantes como folk devils (Saux 2007)16, asso-
ciando-se a luta contra o terrorismo e a segurança interna à repressão da
imigração irregular, apresentada como inevitável e legítima:

““irregular immigration’’ is being subsumed into a European legal setting


that treats it as a crime and a risk against which administrative practices

16 Recentemente, no Verão de 2010, a atitude do Governo Sarkozy face aos ciganos em


França, responsabilizando-os de modo infundado por muitos dos problemas do país,
nomeadamente os mais directamente relacionados com a criminalidade e insegurança,
constitui um bom exemplo deste fenómeno. A eleição desta comunidade como bode
expiatório dos males do país e a sua posterior expulsão não é inocente. É que os ciganos,
um pouco à semelhança dos judeus por altura da II Guerra Mundial, não têm propriamen-
te um Estado-Nação para os defender, o que os torna particularmente vulneráveis às arbi-
trariedades e exageros de políticas migratórias de inspiração ultranacionalista.
162 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

of surveillance, detention, control and penalisation are necessary and


legitimised”” (Guild, Carrera e Balzacq 2008: 4).

Com efeito, o medo do terrorismo e, por outro lado, a existência de


amplas possibilidades tecnológicas para fazer face a este medo foram as
principais forças impulsionadoras de políticas visando uma Europa mais
segura (Broeders 2007; Bessa 2008).
Uma das primeiras evidências desta vertigem securitária surge com
as alterações agendadas pelo Programa de Haia para o Espaço de Liber-
dade, Segurança e Justiça na Europa comunitária17, promovendo-se a
segurança a prioridade absoluta, acima e à margem da liberdade e da jus-
tiça, apresentadas como valores inferiores e independentes (Bigo 2006).
Sob o enigmático título Strengthening Freedom, o programa prevê práti-
cas coercivas de vigilância através de vários sistemas de informação (des-
tacando-se os sistemas biométricos), a articulação das diversas bases de
dados e a intensificação do controlo/repressão dos fluxos migratórios
(política de vistos mais restritiva, reforço das fronteiras, combate à imi-
gração irregular e agilização dos processos de extradição), negligencian-
do os profundos impactos negativos que estas medidas têm ou podem vir
a ter na justiça, liberdade e demais direitos fundamentais dos indivíduos
(Guild, Carrera e Balzacq 2008). Estamos mesmo em crer que, em função
da obsessão face à imigração e à segurança, o Espaço de Liberdade,
Segurança e Justiça ficará seriamente comprometido, muito em particular
os valores da liberdade e da justiça, fundamentais para a construção da
cidadania europeia. Simultaneamente, e por mais paradoxal que possa
parecer, nada garante que se esteja a caminhar de forma sustentada para
um espaço europeu mais seguro (Saux 2007).
O primado da lógica securitária-carcerária está bem patente no
recurso excessivo à detenção dos imigrantes em situação irregular, depois
de presentes a tribunal. A maioria (59%) dos que inquirimos na UHSA
declarou que, antes da detenção, não tinha sido sujeita a nenhum outro
tipo de medidas de coação, um dado que pode ser tomado como indício
do modo como os juízes exercem o poder de que estão investidos, privi-
legiando a mais grave das medidas de coacção prevista na lei, simulta-
neamente aquela que comporta mais custos financeiros para o Estado18 e,

17 A sua génese remonta ao Tratado de Amesterdão (1997). Mais tarde, a iniciativa é


impulsionada nas conclusões dos Conselhos Europeus de Tampere (1999), Laeken
(2001) e Sevilha (2002), nos quais se trabalha sucessivamente para a criação de um
Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, assente sobretudo numa política comum de
imigração e asilo.
18 A instalação temporária e todos os custos associados à extradição, nomeadamente a
viagem, são suportados por inteiro pelo erário público.
Vidas embargadas 163

acima de tudo, a mais violenta para o cidadão. A sua aplicação é, além do


mais, profundamente desproporcional face à gravidade da infracção, que
é de simples âmbito administrativo.
Atendendo a esta desproporcionalidade e à violência com que a reclu-
são é vivida pelos detidos, deverá primar o princípio favor libertatis, adop-
tando-se a detenção como excepção e a saída em liberdade como regra
(Rocha e Regidor, www.mugak.eu). É forçoso não esquecer que os princí-
pios da Liberdade, do Direito e da Democracia e o respeito pelos direitos e
liberdades fundamentais dos seres humanos constituem-se como primeiras
referências da fundação da UE e como requisitos imprescindíveis daquilo
que ela própria define como “a comprehensive community immigration and
asylum policy”, de que são parte integrante os processos de extradição e
readmissão dos imigrantes em situação irregular (COM 2002). Neste senti-
do, a Rede Europeia Contra o Racismo (ENAR 2002) estabelece um con-
junto de sugestões de reforço de direitos, garantias e liberdades, a
implementar pela UE no âmbito das suas políticas de extradição, nomea-
damente: (i) a criação de uma entidade independente para a monitorização
dos procedimentos de repatriação, (ii) o desenvolvimento de um código de
conduta a seguir por todos os intervenientes no processo de extradição,
desde a detenção até à readmissão no país de origem, (iii) a avaliação e
concretização de alternativas à detenção, (iv) a ponderação das circunstân-
cias e trajectos biográficos dos imigrantes em situação irregular.
Mais do que tratar a mobilidade migratória como um desafio de
segurança, ela deverá ser tratada, acima de tudo, no âmbito da esfera do
trabalho e dos direitos sociais básicos, enquadrada por uma política
comum que garanta equidade no tratamento, independentemente da
nacionalidade (Carrera 2007). Só deste modo será possível a constituição
daquilo que Sassen (2003) designa por “cidadania desnacionalizada”.

Estigmatização e exclusão social

Os discursos e práticas dominantes dos países mais desenvolvidos


face à imigração têm subjacentes processos mais ou menos declarados de
estigmatização e exclusão social, por via dos quais as comunidades de
imigrantes são amiúde transformadas em bode expiatório de múltiplos
problemas sociais e económicos (Welch 2003: 322). Estes processos
podem, desde logo, vislumbrar-se em muitos dos rótulos utilizados para
fazer referência à imigração, não só no campo mediático e no domínio do
senso comum – que frequentemente empregam terminologias geradoras
de receios, tais como “invasão” e “avalanche” de imigrantes –, como
também no contexto da actuação institucional. Expressões como
164 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

“imigrantes ilegais”, ou tão-só “ilegais”, “a luta contra”, “o combate”,


utilizadas por exemplo pela UE, geram a constituição de um status identi-
tário associado ao perigo e à criminalidade (Balzacq e Carrera 2006), o
que acaba por suscitar suspeição generalizada e fomentar tensões e cliva-
gens sociais19. Não é de estranhar que as mesmas instituições que contri-
buem para este clima de medo e instabilidade social proponham depois,
como suposta solução para tal, o reforço de uma estratégia (repressão da
imigração, detenção dos imigrantes em situação irregular) que é ela pró-
pria a causa maior do problema que se quer enfrentar. A reclusão em cen-
tros de detenção, por exemplo, é mais um contexto de reforço de estigmas
e pânicos morais. Reproduz-se, assim, um ciclo vicioso cuja quebra
implicará uma significativa mudança de paradigma na abordagem do
fenómeno da imigração.
O actual paradigma assenta claramente na vigilância e exclusão dos
imigrantes20, como nota Broeders (2007: 71): “Surveillance of this group is
aimed at their exclusion from key societal institutions, discouraging their
stay and ultimately, the deportation of apprehended irregular migrants”.
Parece-nos legítimo admitir-se que esta estratégia de exclusão social é,
ideologicamente, movida por políticas de identidade e alteridade que visam
manter as inúmeras fronteiras da desigualdade (político-administrativas,
étnicas, culturais, de pobreza, entre outras), de um mundo organizado de
forma hierárquica. Ao (tentarem) transgredir estas fronteiras, os imigrantes
em geral e, de forma mais intensa, os que se encontram em situação jurídica
irregular são, desde logo, alvo de processos de rotulagem e de exclusão
social. A Europa panóptica constitui-se, deste modo, como uma “fábrica de
exclusão” (Engbersen 2001). Os centros de detenção de imigrantes para
posterior extradição, como destaca Perrouty (2003), são mesmo o exemplo

19 Consciente do impacto negativo decorrente da utilização institucional deste tipo de


rótulos, a ENAR (2002) recomenda, por exemplo, a utilização do termo “indocumen-
tado”, em alternativa a “ilegal”, pois os seres humanos, qualquer que seja o seu estatu-
to jurídico, nunca poderão ser considerados ilegais. Embora isto possa parecer um
mero pormenor, não podemos esquecer que este tipo de categorizações utilizadas por
instâncias públicas desempenham um papel significativo, como nota Foucault (2004)
através do conceito de governamentalidade, na construção da identidade pessoal dos
indivíduos, na definição da sua situação social e na conformação às imposições norma-
tivas do aparelho estatal.
20 Em Maio de 2009, por exemplo, o governo italiano de Silvio Berlusconi, sob forte
pressão da extrema-direita, aprovou um decreto-lei que agrava a penalização da imi-
gração irregular, potenciando, assim, as múltiplas exclusões que convergem no fenó-
meno. Agora, os imigrantes em situação considerada ilegal, além de detidos para
extradição, têm de pagar uma coima entre €5000 a €10 000. Além do mais, qualquer
tipo de ajuda e/ou “facilidade” (v.g. arrendamento de habitação) que lhes seja prestada
por cidadãos nacionais sujeita estes últimos a pena de prisão.
Vidas embargadas 165

mais evidente da produção de formas de exclusão social e territorial – pro-


dução de atopos, segundo Bourdieu (1998) – que recaem sobre os indiví-
duos que personificam as contradições do sistema e a negação do seu
ordenamento ideológico. Subjacente está a ideia de que o mundo só será
mais seguro se essas contradições e incertezas forem eliminadas ou, pelo
menos, controladas (Amoore 2006).
O ambiente de estigmatização e exclusão social decorrente da maio-
ria das políticas migratórias e estratégias de actuação institucional, além
da enorme violência simbólica (e, não raro, física) a que sujeita os imi-
grantes, sobretudo os ditos ilegais, contribui para que um fenómeno já de
si bastante opaco se torne ainda mais “subterrâneo”, fomentando crimina-
lidades que se querem reduzir, agravando a vulnerabilidade de pessoas
em situação precária e reduzindo as possibilidades de apoio social. No
limite, com estas manifestações sociais de sectarismo, a própria democra-
cia poderá estar em perigo, pois, como adverte Soroa (apud Guerrero
2007: 95), “a essência da democracia moderna radica na constante inclu-
são de mais pessoas no âmbito da cidadania. O seu ideal utópico é a uni-
versalidade… Não reconhecer a cidadania ao imigrante que trabalha
connosco lembra em demasia o modelo social da família vitoriana, de
senhores em cima e serviçais em baixo”.

Produção e intensificação de ilegalidades

A criação de quadros legais mais severos como procedimento para a


prevenção de crimes e infracções produz, com bastante frequência, efeitos
contrários aos esperados. Como é destacado por muitos dos teóricos da
rotulagem social (Becker 1966; Lemert 1972), o reforço do controlo social
não implica a atenuação do problema que se quer enfrentar, podendo mes-
mo ocasionar a sua intensificação e a emergência de problemas colaterais
inesperados. Deste modo, Welch (2003) afirma que o controlo social tende
a ser irónico, gerando uma escalada de efeitos perversos decorrentes do
comportamento ou situação que se propõe suprimir, como é claramente
perceptível no contexto da imigração: “[……] strict new laws have compoun-
ded the problem as well as created others (e.g., a massive increase in
detained immigrants, racial discrimination, denials of due process, and
various human and civil rights violations)” (idem: 327). Pode mesmo admi-
tir-se que o endurecimento das políticas migratórias irá incrementar o tráfi-
co de pessoas21 e demais ilegalidades que aquelas próprias políticas visam

21 O conceito de tráfico de pessoas tende a ser utilizado de forma exagerada e indiscrimina-


da nos discursos antitráfico produzidos sobretudo por instâncias internacionais (caso da
166 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

combater. No que diz mais especificamente respeito ao reforço do controlo


interno dos imigrantes, através da vigilância policial e da detenção para
extradição, as consequências poderão ser, de igual modo, bastante negati-
vas, destacando-se o alastramento daquilo que Broeders e Engbersen
(2007) designam, grosso modo, por “estruturas sociais nebulosas” (foggy
social structures), como as que a seguir se referem.
As severas restrições promovidas pelas leis de imigração no espaço
europeu e os procedimentos de fortificação das fronteiras mais elabora-
dos e musculados têm, desde logo, um efeito perverso: “cada vez mais
migrantes têm que recorrer a agentes especializados na migração e maior
número de organizações começam a dedicar-se a esta actividade […]”
(Peixoto et al. 2005: 59). De igual modo, Andreas (2001) e Guerette e
Clarke (2005) constatam um significativo aumento e sofisticação de
organizações criminosas que se dedicam ao tráfico na América do Norte
(México–EUA), recorrendo a percursos e a estratégias que, por vezes,
estão na origem da morte das pessoas traficadas. Deste modo, aquilo que
era um problema de imigração ilegal tem vindo a transformar-se num
problema de tráfico de pessoas, ao qual estão conectadas, directa ou indi-
rectamente, várias outras manifestações de criminalidade decorrentes da
necessidade de se camuflar a permanência irregular no país de destino ou
de se proceder à sua regularização.
Surgem, deste modo, autênticos mercados informais e ilegais nas
esferas laboral, do arrendamento imobiliário, relacional/matrimonial e da
documentação (Broeders e Engbersen 2007). São bastante comuns, por
exemplo, os mercados de documentos através do casamento com cida-
dãos nacionais (Grassi 2006), em que as partes aceitam contrair matrimónio

ONU), representantes governamentais, académicos e ONG, negligenciando-se as várias


dimensões e nuances do fenómeno, bem como as diferenças face ao que se considera imi-
gração ilegal e smuggling (Peixoto et al. 2005; Nieuwenhuys e Pécoud 2007;
Bordonaro e Alvim 2008). Não raro, ignora-se mesmo a existência de inúmeras situações
em que, por exemplo, a mobilidade migratória é assegurada por via do recurso a redes
sociais (não criminosas e, por vezes, sem intuito económico estrito) de parentesco,
afecto/intimidade, amizade ou vizinhança (Ribeiro et al. 2007a). O resultado desta utili-
zação pouco criteriosa do conceito de tráfico é a emergência de “pânicos morais” e a
construção de um problema social (Grupo Davida 2005; Bordonaro e Alvim 2008), no
qual se identificam traficantes e traficados de forma abstracta e desfocada e, por conse-
quência, se instaura o imperativo ético e político de salvar as alegadas vítimas, mesmo
que estas assim não se considerem e não queiram, de todo, ser “salvas”. Todavia, o que
está verdadeiramente em causa é uma instrumentalização massiva e até mesmo intimida-
tória da noção de tráfico, cujo principal objectivo é inibir, de preferência logo nos países
de origem, a mobilidade de potenciais migrantes: “the ‘‘trafficking’’ discourse relies on the
assumption that it is better for women to stay at home rather than leave and ‘‘get in
trouble’’ ” (Agustín 2004: 87). Por outro lado, procura assegurar-se legitimidade para dar
continuidade ao projecto de construção da fortaleza europeia.
Vidas embargadas 167

de forma instrumental, por conveniência mútua: uma por razões financei-


ras, outra para assegurar a concessão de autorização de residência. Este é
apenas um exemplo das muitas “instituições paralelas” (Mahler 1995),
sem qualquer cabimento jurídico, que operam no âmbito dos fluxos
migratórios internacionais, em resposta a uma conjuntura persecutória
que impõe cada vez mais restrições a esses mesmos fluxos.
Muitas destas instituições estão, de algum modo, articuladas e/ou inte-
gradas em redes migratórias informais, que proporcionam capital social aos
candidatos a imigrantes, tanto para iniciarem o seu projecto migratório,
como para, já depois de entrados no país de acolhimento, permanecerem na
sombra protectora das suas respectivas comunidades étnicas (Engbersen
2001), beneficiando do auxílio de compatriotas e de familiares. Esta ajuda
mais informal e os serviços prestados por “instituições paralelas” configu-
ram “estruturas sociais nebulosas” (Broeders e Engbersen 2007) que, ao
promoverem a invisibilidade social dos indivíduos, dificultam largamente
as acções de vigilância, detecção e detenção levadas a cabo pelas forças
policiais e pelo aparelho judicial do Estado. Contudo, os novos instrumen-
tos de produção de informação a que atrás nos referimos (SIS1 e SIS2,
Eurodac e VIS), ao gerarem elementos de identificação não só sobre os
imigrantes como também sobre o seu entorno (amigos, familiares), pode-
rão, em muitos casos, inviabilizar a camuflagem que lhes é assegurada
pelas respectivas redes sociais. Apesar de tudo, o ciclo vicioso de efeitos
perversos continua. Com a intensificação dos sistemas de controlo, aumenta
a dependência face a organizações cada vez mais subterrâneas/criminosas e
acentuam-se as situações de vulnerabilidade e exclusão social, impossibili-
tando o acesso dos imigrantes aos serviços básicos e remetendo-os para lá
dos limiares mínimos de dignidade humana.

Conclusão

Os centros de detenção temporária de imigrantes constituem, como


ficou dito, parte integrante das designadas “hard-line immigration policies”
(Russel 2006) que as lideranças da generalidade dos países, sobretudo os
mais desenvolvidos, têm vindo a adoptar como meios de contenção e de
regulação do progressivo crescimento da presença de migrantes internacio-
nais, mais em particular dos que chegam em busca de trabalho e de melho-
res condições de vida. Criados como instrumento de “combate” à imigração
irregular, estes centros operam no âmbito das medidas de expulsão e reten-
ção de “imigrantes sem papéis” e, como tais, considerados ilegais.
Recentemente convertido em país de destino de imigrantes, Portugal
institui, com a criação da UHSA, o primeiro centro especificamente
168 Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

vocacionado para efectivar o repatriamento coercivo de estrangeiros detec-


tados sem documentos de autorização de permanência no país. À seme-
lhança dos já existentes um pouco por todo o mundo, a UHSA foi
estabelecida tendo subjacente uma forte intenção de controlo e de dissuasão
da imigração irregular. De controlo, pela imposição, entre outros, de uma
pena adicional de interdição, por largos anos, de retorno ao país por parte
dos que são objecto de expulsão. De dissuasão, pelo pressuposto de que a
existência destes centros e a experiência dos que por lá passam acabem
constituindo referência para os que ponderam a possibilidade de emigrar de
forma ilícita e os faça pensar duas vezes sobre o recurso a tal procedimento.
Todavia, e tal como os resultados do estudo realizado na UHSA também
confirmam, nem a detenção nem a subsequente expulsão têm surtido os
efeitos previstos, ou seja, os de fazer as pessoas desistirem de tentar melhor
sorte fora dos seus países de origem. Tal constatação indicia, como ficou
dito, a gravidade e a extensão das causas que originam a decisão de emigrar
e das circunstâncias que obrigam as pessoas a fazê-lo. Apesar de decisivos
e incontornáveis, estes aspectos continuam, todavia, a ser largamente sub-
sumidos pelas preocupações de segurança que dominam as estratégias e as
medidas que os governos dos países mais desenvolvidos têm vindo a
implementar para lidarem com a crescente procura por parte de imigrantes
que, por sua vez, os vêem como objectos supremos de desejo, mas onde
são, cada vez mais, vistos como indesejáveis.
Embora a legislação nacional, e bem assim a que vigora noutros países
da União Europeia e fora dela, considerem a imigração irregular apenas
como um delito de tipo administrativo, os centros de detenção temporária
que todas instituem para enquadrar a execução da sua punição segue, de
muito perto, um modelo prisional. Desde logo, pela privação de liberdade
dos indivíduos por períodos de tempo que, no mínimo, se podem estender
por vários meses e, no máximo, nem sequer ter limite, quer ainda, no que
concerne às condições de funcionamento dos centros, em grande medida
similares, e não raro mesmo piores, às que se registam nas prisões. Com
efeito, e como tem sido abundantemente denunciado por agências interna-
cionais, grupos de activistas de direitos civis, ONG e jornalistas, entre
outros, são muitos os países em que tais condições desrespeitam, de forma
expressa e por omissão, os direitos e liberdades fundamentais das pessoas
migrantes. Neste aspecto, cabe reconhecer que, apesar da iniludível matriz
securitária que a enforma e que informa todas as vertentes do seu funciona-
mento, a UHSA apresenta um padrão de condições materiais e, sobretudo,
de práticas relacionais que a distingue substancialmente da maioria das suas
congéneres estrangeiras e a converte mesmo em exemplo de boas práticas.
Vidas embargadas 169

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