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pos bem demarcados: os trabalhos realizados nas dé- mente apontada nos estudos sobre as licenciaturas, mas
cadas de 1970 e 1980 – em que, segundo os autores, quase sempre em termos genéricos ou superficiais –
o conceito de formação subjacente era fundamental- entre a formação inicial e a prática docente. Essas for-
mente o de treinamento – e os trabalhos realizados mas concretas traduzem-se num conjunto de exem-
nos anos de 1990, em que “supera-se o termo treina- plos específicos de questões que se colocam para o
mento” e “inicia-se uma nova etapa na pesquisa so- professor na prática da educação matemática escolar e
bre formação de professores” (Ferreira et al., 2000, que são ignoradas ou tratadas de forma insuficiente ou
p. 265). Uma das direções para a qual aponta essa inadequada pelo processo de formação na licenciatura.
nova etapa é a análise do processo de formação espe- Acreditamos que uma compreensão profunda dessas
cífica dentro das licenciaturas. Lüdke (1994) afirma particulares formas com que a formação matemática
que é preciso repensar o processo de formação ini- do licenciando se desconecta da prática docente na
cial do professor da escola básica e as formas de escola, por um lado, ainda está por se desenvolver e,
articulação entre conteúdo, pedagogia e prática do- por outro, é condição necessária para que se possa
cente, a partir do papel fundamental da formação es- avançar no sentido de elaboração de propostas alterna-
pecífica. Ela diz: tivas mais eficazes. Em outras palavras, nossa expec-
tativa é a de que o desencadeamento de um processo
[...] já é tempo de se alterar a direção do eixo que vem de identificação e análise das formas concretas com
norteando a licenciatura, fazendo-o centrar-se claramente que se manifesta a dicotomia entre formação e prática
no lado das áreas específicas. [...] Isso não implica, entre- pode conduzir, eventualmente, a uma percepção ampla
tanto, que não haja uma importante contribuição da área e fundamentada das razões pelas quais esse proble-
pedagógica, cuja continuidade deve ser assegurada, mas numa ma – tão consensualmente indesejado – persiste, inco-
articulação epistemológica diferente com as outras áreas, modamente, nos cursos de formação de professores.
não numa simples relação temporal de sucessão. Deve-se Nosso estudo circunscreve-se ao tema “núme-
partir do conteúdo específico, para trabalhar-se a dimensão ros naturais” e ao caso do Curso de Licenciatura em
pedagógica em íntima relação com ele. (p. 9) Matemática da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Trabalhamos com as seguintes fontes: li-
No caso da licenciatura em matemática, essa po- vros didáticos escolares e livros destinados a profes-
sição apresenta uma mudança de foco importante, na sores do ensino básico; documentos relativos ao Curso
medida em que inclui no debate a formação de “con- de Licenciatura em Matemática da UFMG (ementas,
teúdo”, usualmente considerada parte autônoma den- programas e referências bibliográficas de cada uma
tro do processo geral de formação do professor. das disciplinas); entrevistas com os professores das
Neste trabalho, descrevemos parte do conheci- disciplinas do curso de licenciatura da UFMG nas quais
mento matemático envolvido nas questões que se o tema é abordado; textos utilizados como referência
colocam para o professor em sua prática docente na básica nas disciplinas do curso de licenciatura da
escola básica, confrontando-o com o conhecimento UFMG e, finalmente, uma parte selecionada da litera-
matemático veiculado na licenciatura. As questões que tura de pesquisa no campo da educação matemática.
se colocam para o professor em sua prática docente Observamos, entretanto, que neste texto não são ex-
escolar são identificadas como tais a partir da análise ploradas exaustivamente todas essas fontes.
da literatura de pesquisa no campo da educação ma- Duas idéias básicas orientaram o estudo:
temática.
Nosso objetivo não é, nesse estágio de investiga- • A matemática escolar não se reduz a uma ver-
ção, propor alternativas, mas descrever formas con- são elementar e “didatizada” da matemática cien-
cretas com que se expressa a dicotomia – reiterada- tífica.
car e dividir por potências de 10 (cada casa à esquer- relato de como a questão da comutatividade do produ-
da vale dez vezes a anterior e cada casa à direita vale to aparece como dúvida genuína numa sala de 3a série
1/10 da anterior). Observe-se, ainda, que a distributi- e descreve como ela, na condição de professora, pôde
vidade do produto em relação à adição, a associativi- ajudar os alunos na construção de um entendimento
dade e a comutatividade da adição estão implícitas fundamentado dessas propriedades.
nos aspectos citados acima. Por exemplo, 562 é igual Essa fundamentação é realmente importante, ten-
a cinqüenta e seis dezenas mais duas unidades e tam- do em vista que, muitas vezes, a criança aceita a co-
bém a três centenas, vinte e seis dezenas e duas uni- mutatividade da adição e da multiplicação e, na falta de
dades, e ainda a cinco centenas e sessenta e duas um entendimento significativo da questão, transfere
unidades etc. As autoras referem-se também a uma indevidamente a mesma propriedade para a subtração
diversidade de pesquisas empíricas que convergem e divisão. Um estudo de M. Brown (1981b) detecta
para a conclusão de que o domínio do sistema deci- esse tipo de procedimento em alunos da escola secun-
mal de numeração é um processo que se desenvolve dária inglesa, num estágio que corresponderia, no Bra-
ao longo de todo o ensino fundamental e que é um sil, à quinta e sexta séries do ensino fundamental. Ela
dos aspectos mais complicados da aprendizagem a relata o fato de que, num problema envolvendo a divi-
respeito dos números. Ao sintetizar a seção do livro são de dois números naturais, 36% das crianças de 12
em que discutem o assunto, elas escrevem: anos deu como resposta 26 ÷ 286, enquanto apenas
34% respondeu corretamente 286 ÷ 26. A pesquisado-
Como foi visto, existem muitas facetas no processo ra infere, tomando por base entrevistas com alguns
de compreensão do sistema posicional de numeração. Evi- dos sujeitos, que a tendência geral entre os alunos que
dências sugerem que algumas das idéias envolvidas não são responderam na forma invertida (26 ÷ 286) era pensar
de fácil domínio. [...] Há indicações de que erros e idéias que as duas alternativas eram idênticas. De todo modo,
incorretas se desenvolvem tanto nas séries iniciais como nas conclusões desse estudo ela afirma que no máxi-
nas seguintes e, de fato, o domínio desse assunto é incom- mo 30% dos sujeitos (alunos de 12 anos) reconheciam
pleto até o final do ensino fundamental. que a divisão não era comutativa. E destaca que os
O ensino do sistema posicional parece ser um proces- professores do ensino secundário (que corresponderia
so de longo prazo, não limitado a algumas aulas, mas de- mais ou menos às últimas quatro séries do ensino fun-
mandando uma progressão cuidadosamente planejada por damental no Brasil) cometem um grande erro quando
um longo período de tempo. (Dickson et al., 1993, p. 221, partem do princípio de que os conceitos e idéias mate-
grifo nosso)*2 máticas relativas às operações com os naturais foram
apreendidas nas séries iniciais.
Em relação às propriedades das operações com Dickson et al. (1993), por sua vez, assim se re-
os naturais, estudos indicam que, em sua prática do- ferem ao processo de aprendizagem relativo às ope-
cente na escola, o professor não deve tomar como rações com os naturais:
evidente o fato de que a vezes b resulta no mesmo
valor que b vezes a. O mesmo poderia-se dizer a res- Assim, como em outras áreas da matemática, o en-
peito da associatividade: em situações do ensino esco- tendimento das operações com os números se desenvolve
lar, não é óbvio que a vezes (bc) dê o mesmo resultado ao longo de anos; os significados de cada uma das operações
que (ab) vezes c. Brown (1996) faz um interessante se estende gradualmente até cobrir um amplo e mais abstra-
to espectro de situações. Isto continua sendo verdadeiro
mesmo quando os números envolvidos são números natu-
2
Todas as citações marcadas com o símbolo * referem-se a rais pequenos, como nos casos da maioria dos estudos a que
traduções nossas de originais em inglês ou espanhol. nos referimos nesta seção.
No passado pensava-se que a criança, tendo assegura- números naturais, do sistema de numeração decimal e
do um domínio do significado, por exemplo, da multiplica- dos algoritmos associados (ver discussão sobre os al-
ção, poderia simplesmente ir adiante e aprender métodos goritmos mais adiante) se coloca como demanda efeti-
de cálculo mais e mais complexos. Entretanto, os resulta- va da prática profissional docente na escola básica.
dos de pesquisa apresentados anteriormente sugerem que Entretanto, em todo o seu curso, o licenciando não é
um cuidado explícito deve ser tomado para que a criança se exposto sistematicamente (isto é, como parte integrante
familiarize gradualmente com os vários modelos associa- da ementa ou do programa de alguma disciplina) a uma
dos à multiplicação, e que essa tarefa se estende, com cer- discussão sobre esse assunto. Em todas as disciplinas
teza, para a escola secundária. Um dos modos de fazer isso do curso as operações de adição e multiplicação de
é por meio da discussão da seguinte questão: de quantas naturais e suas propriedades são tomadas como “fatos
maneiras essencialmente diferentes uma criança pode in- conhecidos”, saberes anteriores aos pontos de partida
ventar um “problema” cuja solução se expresse por uma dos programas e ementas curriculares.
conta do tipo 5 X 3? (p. 237-238, grifo nosso)* Uma decisão curricular dessa natureza se ajusta
perfeitamente à visão que Courant e Robbins (1964)
Fica claro que uma discussão a respeito dos sig- expõem logo na primeira página do primeiro capítulo
nificados e das propriedades das operações com os de sua conhecida obra, em que procuram explicar “o
naturais – de modo especial a multiplicação e a divi- que é a matemática”:
são – e do sistema decimal de numeração interessa
diretamente à formação matemática na licenciatura, Por sorte, os matemáticos não têm que se ocupar
porque, na sua prática docente na escola, o professor com o aspecto filosófico da transição que proporciona a
estará lidando com alunos cujo processo de apreen- passagem de coleções de objetos concretos ao conceito
são conceitual e operacional dos conhecimentos en- abstrato de número.
volvidos nessas questões ainda não se completou. Consideraremos, portanto, como dados, os números
No entanto, como já foi observado, o processo naturais, juntamente com as duas operações fundamen-
de extensão dos conjuntos numéricos que se desen- tais, adição e multiplicação, mediante as quais eles po-
volve a partir da quinta série do ensino fundamental dem ser combinados. (p. 8, grifo nosso)*
colocará para o professor da escola, em sua prática,
a questão da extensão das operações com os naturais Os matemáticos, como produtores de conheci-
para um campo numérico mais amplo, os racionais. mento de fronteira, realmente não têm que se ocupar
Num abrangente estudo das idéias envolvidas no pro- com a questão da construção do conceito de número
cesso escolar de expansão dos naturais até os racio- e nem com a questão dos significados das operações
nais, Behr et al. (1983) comentam: elementares com os naturais. Mas o que procuramos
mostrar aqui é que, num projeto de formação mate-
[...] foi comum observar regressões significativas na com- mática na licenciatura, assumir a posição do matemá-
preensão dos conceitos. Os conceitos já trabalhados ante- tico diante dessas questões e desenvolver o processo
riormente devem ser não só relembrados, mas integrados de formação a partir de um ponto em que o conjunto
progressivamente a sistemas mais complexos; [...] idéias dos números naturais é considerado dado, juntamen-
que são verdadeiras em domínios restritos, podem ser enga- te com as operações de adição e multiplicação, signi-
nosas, incorretas ou mesmo inúteis quando transportadas fica furtar-se ao enfrentamento de questões postas
para novos domínios. (p. 104, grifo nosso)* pelas necessidades concretas da própria prática para
a qual se pretende formar o profissional.
Vemos assim que o conhecimento dos significa- É importante observar ainda que uma compreen-
dos e das propriedades das operações básicas com os são – significativa em termos da prática docente es-
colar – das operações com os números naturais não tos, um certo domínio da linguagem – das situações
se produz, automaticamente, como resultado de um em que uma determinada operação (e não outra) for-
estudo desse conjunto numérico desenvolvido por nece a resposta correta para um dado problema
uma abordagem formal e lógico-dedutiva, em que (Dickson et al., 1993; Carpenter & Moser, 1983;
certos fatos são tomados como princípios (princípio Greer, 1992). Nesses casos, os números referem-se
da indução etc.), definem-se as operações e demons- sempre a objetos concretos, e a resolução correta do
tram-se rigorosamente as propriedades e outros fatos problema, ao mesmo tempo em que traduz uma rela-
relacionados a essas operações (a comutatividade, a ção flexível com a idéia de número – uma abstração
associatividade etc.). Conhecer as operações, num que se “concretiza” em situações determinadas – pode
sentido relevante para o ensino escolar, não se identi- ser, também, mais um exercício na direção da cons-
fica com conhecer a cadeia que estabelece a depen- trução dessa relação.
dência lógico-formal entre as suas propriedades, os Sobre essa questão, mais uma vez, os estudos
postulados, as definições e os conceitos primitivos de Margaret Brown fornecem-nos dados interessan-
adotados. Pensando-se a questão em termos das ne- tes. Quando ela pediu a uma amostra de cerca de 500
cessidades da prática profissional docente na escola alunos de 11 anos de idade para inventar um “proble-
básica, o conhecimento do conjunto dos naturais ma” cuja solução fosse dada por uma determinada
como uma estrutura lógica axiomática não substitui – “conta”, a percentagem de respostas consideradas
em alguns casos chega até a esconder, por meio de corretas foi a seguinte:
uma assepsia que elimina tudo aquilo que não é con-
siderado estritamente essencial – o conhecimento dos Tabela 4 – Inventar um problema (dada uma conta)
naturais como objeto de ensino e de aprendizagem da Conta Resposta considerada correta (%)
matemática escolar. Posto de outra forma, o essenci- 84 – 28 77
al a respeito dos números naturais, de acordo com os 9÷3 60
valores da matemática científica, nem sempre coin- 84 ÷ 28 42
cide com aquilo que é considerado essencial da pers- 9x3 45
pectiva da matemática escolar. 84 x 28 31
Do ponto de vista segundo o qual se desenvolve Fonte: Brown, 1981a, p. 40.
o processo de formação matemática na licenciatura,
as operações com os naturais são pensadas com seus Afora o fato de que a multiplicação tenha se
significados abstratos, que se expressam “essencial- mostrado mais difícil que a divisão – embora em ter-
mente” pelas propriedades (comutatividade, associa- mos da execução do algoritmo esta última seja, de
tividade, elemento neutro etc.) e se realizam com nú- modo geral, considerada mais difícil –, os resultados
meros, isto é, com objetos abstratos, já concebidos e mostram também que números grandes causam maio-
percebidos como tais. Mas, na prática docente esco- res problemas. Isso nos permite inferir que, pelo menos
lar, o trabalho com as operações aritméticas básicas é nestes casos, o conceito de número, associado ao
também até certo estágio do desenvolvimento da cri- processo de produção de significado para as opera-
ança, instrumento de apoio no processo de constru- ções, ainda não chegou ao nível de abstração em que
ção do próprio conceito abstrato de número. De fato, diferenças desse tipo não mais importam.
uma das grandes questões pedagógicas no trabalho M. Brown, em sua tese de doutorado, atribui a
com as operações elementares no ensino escolar é a maior dificuldade (observada em alunos da escola
da construção de significados para elas, isto é, o de- secundária) com o significado da multiplicação e da
senvolvimento da capacidade de identificação – me- divisão (de números naturais) à estrutura dessas ope-
diante estratégias que envolvem, entre outros elemen- rações (apud Dickson et al., 1993). Assim, segundo
Brown, os números que são somados ou subtraídos, “essencial”, no estudo da divisão de naturais, é real-
numa determinada situação, referem-se a objetos si- mente o argumento da existência e unicidade referido
milares que são combinados ou dissociados. Por acima. A cadeia de resultados, que começa com o
exemplo, para a conta 2 + 3: 2 carros + 3 carros = 5 lema da divisão de Euclides, passa pela caracteriza-
carros. Nos casos da multiplicação e da divisão, no ção do máximo divisor comum de dois elementos
entanto, não só os objetos envolvidos são, geralmen- como combinação linear deles e vai até o teorema da
te, de tipos diferentes, como também, em cada caso, decomposição única em fatores primos, deve ser cui-
cada objeto de um tipo tem de ser associado a um dadosamente construída para que a adaptação dos
correspondente conjunto de objetos de outro tipo. Por argumentos a conjuntos mais gerais – inteiros de
exemplo, para a conta 2 x 3: duas pessoas, a cada Gauss, por exemplo, onde não se pode trabalhar com
pessoa três carros. Então, (2 x 3) carros no total. a noção de maior e menor, como nos naturais – traga
Também aqui, vê-se que a criança ainda pode se à luz o máximo de generalidade com que se podem
prender – de um modo pouco flexível – à grandeza pensar essas idéias.3 Desse modo, certas caracterís-
concreta (carros, pessoas) a que se refere o número ticas do conjunto dos inteiros e dos polinômios são
numa dada situação, e isso provoca dificuldades no vistas como expressões concretas e particulares de
processo de produção de significado para a opera- uma estrutura matemática mais geral: a dos anéis
ção. Nesses casos, o professor precisa lidar com o euclidianos.
processo de construção de significados muito mais No entanto, para o professor da escola, em sua
por meio de reiteradas “concretizações” em diferen- prática docente, uma visão formal que “unifica” essas
tes situações, do que por definições por indução ou estruturas – números inteiros e polinômios sobre Q
de deduções formais das propriedades estruturais das ou R – faz mais sentido como um elemento suple-
operações, já que estas últimas expressam exatamen- mentar a uma abordagem específica delas, em que a
te o contrário: a identificação de todos os significa- questão da produção de significados, no sentido es-
dos concretos possíveis. colar, para cada um dos elementos que as compõem –
A divisão de números naturais é tratada apenas as operações, suas propriedades etc. – esteja coloca-
na disciplina Fundamentos da Álgebra Elementar, da e discutida. No caso dos naturais especificamente
dentre todas as obrigatórias do currículo do Curso o professor da escola básica enfrentará a questão do
de Licenciatura em Matemática. Mas é abordada num significado das operações, do seu uso na resolução
contexto em que o fundamental é a existência e de problemas, da extensão da idéia de número e das
unicidade do quociente e do resto. Em outras pala- operações correspondentes para os inteiros, racionais
vras, trata-se de demonstrar formalmente (isto é, a
partir do princípio da boa ordem no conjunto de nú-
meros naturais, ou de seu equivalente, o princípio 3
Observe-se, nesse sentido, a definição de máximo divisor
da indução) a seguinte proposição (ver, por exem- comum (MDC) de dois inteiros positivos: em lugar da formulação
plo, Birkhoff & Maclane, 1980, p. 17-18): dados natural, mais simples, direta e descritiva – o maior número que
dois naturais a e b, com b > 0, existem dois naturais divide os dois – opta-se por outra que caracteriza o MDC como o
q e r, tais que a = bq + r, 0 ≤ r < b. Para cada par número natural d que satisfaz a duas propriedades (Birkhoff &
a,b dado, os naturais q e r são univocamente deter- Maclane, 1980, p. 19):
minados. a) d é um divisor comum dos números dados;
Se o horizonte da disciplina é desenvolver uma b) todo divisor comum dos números dados é divisor de d.
percepção do conjunto dos inteiros e do conjunto dos Esta última forma teria a vantagem de ser generalizável
polinômios sobre Q, R ou C como exemplos típicos e para domínios não-ordenados, ao mesmo tempo em que explicitaria
elementares da estrutura de anel euclidiano, então o o essencial da noção.
e reais e o problema do ensino dos algoritmos para ao ensino dos algoritmos. Dentro do amplo espectro
encontrar os resultados das operações. em que se acomodam as posições a respeito desse
O uso dos algoritmos formais para as operações assunto, destacamos duas para situar minimamente a
básicas, diferentemente do uso das calculadoras, traz questão:
à tona a questão da lógica do seu funcionamento e
coloca, para o professor da escola básica, a necessi- • Com as calculadoras, a ênfase no processo
dade de uma percepção clara dos princípios em que escolar pode ser direcionada à resolução de pro-
se baseia a sua justificativa, ou seja, a razão pela qual blemas, aos significados das operações e às
eles fornecem corretamente os resultados. Alguns análises críticas dos resultados. O trabalho com
estudos sugerem que muitos dos erros cometidos as calculadoras para obter corretamente os re-
pelos alunos ao utilizarem os algoritmos têm origem sultados deve ser priorizado, abandonando-se
no fato de que o estudante não entende a lógica se- o ensino dos algoritmos formais (Wheatley &
gundo a qual o algoritmo funciona (Baroody, 1987, Shumway, 1992).
p. 225-231; Dickson et al., 1993, p. 252-269). • Além de promover estimativas mais críticas dos
Em relação ao algoritmo da divisão, por exem- resultados das operações e ajudar os alunos a
plo, é interessante observar que, já em 1930, F. B. desenvolver certo tipo de familiaridade com os
Knight faz o seguinte comentário ao analisar uma lis- números (number sense), o uso das calculado-
ta com 12 exemplos de divisão de números naturais: ras pode liberar alunos e professores da execu-
“[...] do ponto de vista matemático, os exemplos são ção repetitiva de certos cálculos, mas não impli-
todos iguais. Todos são exemplos de divisão de natu- ca na dispensa definitiva do saber fazê-los (Lima,
rais e isto é tudo que há para ser dito. Do ponto de 1991, p. 199-203). Isso significa que, segundo
vista do ensino, entretanto, existem importantes di- essa posição, ainda deve fazer parte da prática
ferenças entre eles” (Knight, 1930, p. 161). E pros- escolar o ensino dos algoritmos formais para o
segue explicitando algumas das diferenças entre os cálculo do resultado das operações.
12 casos apresentados: um contém dificuldades do
tipo “vai 1” em algumas das multiplicações que apa- De todo modo, o fato a destacar-se aqui é que,
recem no processo de execução do algoritmo; em para participar com certa autonomia das discussões
outro caso aparece o dígito zero “no meio” do quoci- que eventualmente se desenvolvam a respeito do as-
ente; outro, ainda, apresenta dificuldades para o alu- sunto em sua escola, o futuro professor deve, antes
no no momento de estimar o valor do primeiro dígito de tudo, conhecer como os algoritmos funcionam, a
do quociente etc. lógica operacional deles, as possíveis dificuldades dos
Considerando-se atualmente o uso mais ou me- alunos na sua utilização etc. Assim, o conhecimento
nos generalizado das calculadoras, os algoritmos para sobre os algoritmos formais ainda continua sendo parte
as operações fundamentais já não desempenham o da demanda da prática profissional docente na escola
mesmo papel no ensino fundamental que desempe- básica hoje e, portanto, essa questão se coloca tam-
nhavam em 1930. Mas, de todo modo, a questão que bém para o processo de formação na licenciatura.
se coloca para um curso de licenciatura, hoje, é a
necessidade de discutir os algoritmos tendo como re- Considerações finais
ferência a realidade do processo de ensino e aprendi-
zagem escolar. Dessa perspectiva, observa-se, antes A axiomática é, sem dúvida, uma forma impor-
de qualquer outra coisa, que ainda não há consenso tante de organizar e sistematizar o conhecimento ma-
na discussão sobre as formas de utilização das calcu- temático, mas serve a propósitos definidos que, mui-
ladoras nas salas de aula da escola, em substituição tas vezes, se chocam com os pedagógicos. Morris Kline
(1974), na sua análise crítica do chamado movimento colar, é fundamentalmente inconveniente identificar.
da matemática moderna, comenta essa questão: Em suma, o que o estudo nos sugere é que, tendo em
vista as inadequações e insuficiências apontadas, a
Por volta da metade do século XIX, os números e suas articulação do processo de formação na licenciatura
propriedades estavam estabelecidos com base no uso corren- com as questões postas pela prática docente escolar,
te. Do mesmo modo, as propriedades das funções, derivadas mais do que tentar integrar à prática escolar uma for-
e integrais, usadas no Cálculo, eram aceitas com base no que mação específica orientada pela matemática científi-
parecia evidente para as funções mais simples ou na confir- ca – o fracasso histórico das disciplinas integradoras
mação dos resultados pelas aplicações físicas. Os matemáti- reforça a hipótese de que tal formação possa não ser
cos então se viram diante da tarefa de construir uma funda- “integrável” – demandaria uma concepção de forma-
mentação lógica para as propriedades e resultados que eles ção “de conteúdo” que leve em conta a especificidade
utilizavam. [...] Assim, uma complicada e artificial estrutura do destino profissional do licenciado e tome como
de axiomas e teoremas foi erigida. O propósito dessa estrutu- referência central a matemática escolar. Isso pressu-
ra era satisfazer as necessidades profissionais dos matemáti- põe evidentemente o desenvolvimento, por meio de
cos, que insistiam numa estrutura dedutiva, e nunca o de outros estudos e pesquisas, de uma compreensão
servir como uma abordagem pedagógica. (p. 50)* aprofundada das relações entre matemática científica
e matemática escolar e do papel de cada uma delas na
A idéia dominante, entretanto, é a de que, fora da prática docente escolar.
organização lógico-formal-dedutiva, o conhecimento
matemático torna-se um amontoado de fatos disper- PLÍNIO CAVALCANTI MOREIRA, professor do Departa-
sos, sem conexões e, portanto, sem o formato de mento de Matemática da Universidade Federal de Minas Gerais, é
uma teoria. A formação matemática na licenciatura doutorando em educação na mesma universidade. Publicou recen-
desenvolve-se orientada pelos valores conceituais e temente: com DAVID, Maria Manoela M. S., Números racionais:
estéticos da matemática científica, assegurando assim, conhecimentos da formação inicial e prática docente na escola
em tese, um estatuto de formação teórico-científica. básica (Bolema, nº 21, 2004, p. 1-19); idem, Matemática escolar,
A articulação do processo de formação na licenciatu- matemática científica, saber docente e formação de professores
ra com a prática escolar é então concebida como uma (Zetetiké, v. 11, nº 19, 2003, p. 57-80); Matemática escolar e
tarefa a ser executada a partir do exterior da forma- matemática científica: um nome em comum e diferenças substan-
ção matemática. tivas, In: III Encontro Mineiro de Educação Matemática (CD-
O estudo que apresentamos procurou mostrar ROM). Belo Horizonte, SBEM-MG. E-mail: plinio@ufmg.br
que a abordagem lógico-dedutiva – nos termos em
que se organiza a matemática científica – não somente
é insuficiente para a sistematização da matemática MARIA MANUELA MARTINS SOARES DAVID, doutora
escolar como é também muitas vezes inadequada. em educação pela Universidade de Londres, Inglaterra, é professora
Essa inadequação provém de várias características da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.
apontadas no estudo, mas uma das principais está Publicou recentemente: com BLANTON, M. e STYLIANOU, D.
associada ao fato de que a abordagem lógico-dedutiva The nature of instructional scaffolding in undergraduate students’
é profundamente “econômica” na busca da “essência transition to mathematical proof. (Proceedings of the 27th Annual
abstrata” dos conceitos e de características gerais das Meeting of the International Group for the Psychology of
estruturas matemáticas particulares. Isso muitas ve- Mathematics Education, 2003, v. 2, p. 113-120); Linguagem e
zes resulta numa identificação de certas interpreta- interações sociais na sala de aula e a construção do significado de
ções e construtos associados aos conceitos ou às demonstração pelos alunos (In: III Encontro Mineiro de Educação
estruturas que, do ponto de vista da matemática es- Matemática (CD-ROM). Belo Horizonte, SBEM-MG); com LOPES,
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Teachers’ mathematical knowledge: formation and teaching practice in the elementary school
This article, analyse the process of formation for mathematics’ teachers at undergraduate level, confronting the mathematical
knowledge transmitted in this process with some of the issues the teacher is faced with at school. The study focuses on the natural
number system and refers to the undergraduate degree in mathematics at the Federal University of Minas Gerais (UFMG), its
place as a reproducer of hegemonic social standards, but also stressing its importance for the production of subjectivity and for
the revision of socially constructed values.
Key-words: production of subjectivity; relations of power; school