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Texto Especial 211 – dezembro 2003

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Arquitetura, projeto e conceito (1)


Carlos Alberto Maciel

Carlos Alberto Maciel é arquiteto e urbanista, mestre em Teoria e Prática de Projeto pela
EA-UFMG, professor no Unicentro Izabela Hendrix e na Universidade de Itaúna, possui
projetos premiados em diversos concursos nacionais, como o Centro de Arte Corpo, o 4o
Prêmio Jovens Arquitetos e a 4a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo.
A realização de um projeto de arquitetura, como
qualquer outro trabalho, tem premissas que lhe são
próprias: há um programa a ser atendido, há um lugar
em que se implantará o edifício, e há um modo de
construir a ser determinado. Esse conjunto de premissas
é elaborado graficamente em um desenho que opera
como mediador entre a idéia do projeto e sua realização
concreta.

A idéia de um conceito que participe como elemento


indutor do processo de projeto é de modo recorrente
compreendida como algo externo a essas premissas,
uma ficção, analogia, metáfora ou discurso filosófico
que, servindo como ponto de partida, daria relevância ao
projeto e milagrosamente articularia todos os
condicionantes em uma forma significativa. Essa
estratégia reduz a importância de dados existentes do
problema e valoriza elementos que em princípio sequer
existem como premissas necessárias para a realização
da arquitetura. Na ausência de um grande padrão ideal
legitimador das ações do arquiteto, já diagnosticada
desde a emergência do pensamento pós-moderno, a
busca de ficções legitimadoras isoladas como algo que
confira qualidade à arquitetura tem sido uma estratégia
usual tanto entre arquitetos que ocupam posições
dominantes no cenário internacional como na produção
local, prática e acadêmica.

Em contrapartida a essa tendência, proponho pensar o


conceito como o esforço do arquiteto em compreender,
interpretar e transformar os dados pré-existentes do
problema arquitetônico, que se constituem em
fundamento para seu trabalho: o lugar, o programa, e a
construção. Esta abordagem não procura determinar um
procedimento lógico e racional que concatenaria uma
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Affonso Eduardo Reidy, 1953. O MAM é um
seqüência de resultados obtidos cientificamente a partir exemplo de resposta inventiva do arquiteto às demandas de uso, do lugar e da
da observação dos condicionantes. Tal entendimento do construção. A estrutura externa em pórticos que atiranta a laje do segundo pavimento
processo de projeto – e por conseqüência, do conceito -, permite a liberação integral do pavimento e a abertura integral dos espaços internos,
descortinando a paisagem da Baía da Guanabara. Foto do autor
em oposição extrema à primeira abordagem citada,
suporia a eliminação completa da subjetividade do
arquiteto. Contudo, no processo de projeto, a
compreensão e interpretação de cada aspecto colocado
como premissa exige por parte do arquiteto a tomada de
sucessivas decisões. Cada uma dessas decisões é um
ato racional, operado a partir do conhecimento
específico do problema, relativizado pela experiência
vivida do arquiteto e pelo momento em que se realiza o
projeto. Como esclarece Brandão acerca da leitura ou
fruição de uma obra acabada, “[t]oda compreensão é
histórica e emerge da situação existencial e da
experiência vivida por aquele que se propõe à tarefa de
compreender ou interpretar alguma coisa” (2). Assim, a
aparente restrição que a delimitação clara de um campo
de ação sobre o qual o arquiteto opera durante o
processo de projeto não se constitui em eliminação da
subjetividade, mas, pelo contrário, exige um
direcionamento desta subjetividade como algo operativo
sobre os problemas efetivamente colocados pelo mundo
ao arquiteto. Enquanto a busca pelo conceito por parte
do fruidor ou usuário parte da interpretação do objeto
em si, no ato do projeto o objeto é o que se busca
realizar, e portanto não se dá ao conhecimento do autor
para que dele se extraiam, se compreendam ou se
estabeleçam conceitos. Sendo assim, é necessário
recuar nesta busca por algo concreto que, antes da
realização do edifício, já esteja disponível ao
conhecimento do arquiteto e que permita sua
interpretação. No caso do projeto, o que se coloca como
concreto à compreensão do arquiteto são, na grande
maioria dos casos, as demandas e determinações
relativas ao lugar, ao programa e à construção.

Lugar

E delinearia meu projeto, tendo em conta a


intenção dos humanos que iriam me pagar;
atento à localização, às luzes, às sombras e aos
ventos; feita a escolha do terreno, de acordo
com suas dimensões, sua exposição, seus
acessos, terras contíguas, e a natureza
profunda do subsolo... (3)

A geografia, a topografia e a geometria do terreno, sua


conformação geológica, a paisagem física e cultural, a
estrutura urbana, o sol, os ventos e as chuvas e ainda a
legislação de uso e ocupação do solo são dados pré-
existentes que podem ser extraídos de uma análise
cuidadosa do lugar. Cada um desses aspectos se
coloca de antemão ao conhecimento do arquiteto: tudo
já está ali, demandando apenas um esforço rigoroso de
observação. Buscar compreender as implicações de
cada um destes aspectos nas relações de uso e no
processo de construção é fundamental tanto sob o ponto
de vista técnico como conceitual.

Sob o ponto de vista pragmático e técnico, a


compreensão do lugar em todos os aspectos citados Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Affonso Eduardo Reidy, 1953. A solução do
traz o conhecimento necessário para se evitarem apoio em “V” equilibra os esforços na base do pórtico por gerar um momento contrário
devido ao apoio da laje arqueada do 1o pavimento no segmento menor do pilar. Esse
equívocos banais que podem comprometer a recurso, que torna a estrutura mais esbelta pela redução da resultante de momento fletor
habitabilidade dos espaços, gerando incompatibilidades na base do pórtico, sugere um conhecimento consistente do comportamento das
em relação ao clima e à natureza, que interferem na estruturas por parte do arquiteto, gera economia em relação a outras soluções menos
engenhosas e resulta na forma final do edifício. Foto do autor
vida cotidiana e exigem remendos posteriores, nem
sempre pertinentes. Essas correções a posteriori, na
maioria dos casos, interferem nas soluções formal e
construtiva pretendidas para o edifício e chegam a
comprometer a arquitetura nas suas relações de uso.
Esses mesmos equívocos decorrentes da
desconsideração do lugar podem implicar ainda em
graves incompatibilidades técnicas na relação entre a
construção e o sítio, agindo negativamente sobre o
equilíbrio das forças naturais e acarretando ao edifício
desgaste mais acelerado pela ação do tempo em virtude
da inadequação da sua inserção, seja no que diz
respeito à relação com o terreno natural ou com os
aspectos do clima ou mesmo com uma estrutura urbana
pré-existente. Podem acarretar ainda aumentos
consideráveis no custo de final de construção e
manutenção do edifício, comprometendo sua viabilidade
e por vezes inviabilizando sua construção.

Sob o ponto de vista conceitual, a compreensão e a


interpretação do lugar podem contribuir para gerar o
espaço arquitetônico, na medida em que tem o potencial
de induzir modos diferenciados de ordenação da
construção e das relações de uso que ali acontecem. A
Casa de Canoas, Oscar Niemeyer, 1953. A casa é exemplar na relação com o lugar pela
conformação pré-existente do terreno natural, sua consideração da topografia e da paisagem; reedita os padrões de ordenação tradicional
planimetria e altimetria, e ainda a sua relação com a dos usos ao inverter as hierarquias tradicionalmente aceitas entre público e privado,
estrutura urbana, com a paisagem e com os aspectos ocultando a área íntima sob a plataforma e abrindo os espaços de convívio para a
paisagem, com a integração e continuidade entre interior e exterior; é ainda uma
naturais inerentes ao sítio, relativos ao clima, permitem exploração radical das possibilidades da estrutura em concreto armado, atingindo alto
a identificação de diretrizes latentes de ordenação do índice de esbeltez dos pilares e aparente leveza da laje curvilínea que demarca a
espaço e da forma. Tais diretrizes, uma vez interferência humana na paisagem. Foto do autor
interpretadas pelo arquiteto, podem se repercutir
diretamente na configuração final do objeto
arquitetônico, seja de modo a reafirmar os aspectos
espaciais e formais pré-existentes no lugar, seja de
modo a negá-los, ou ainda de modo a incluí-los como
referência parcial à realização da construção, em uma
dialética permanente entre as determinações do lugar,
do programa e da construção.

Programa

Acreditava que um navio, de algum modo,


deveria ser criado pelo conhecimento do mar,
como que moldado pela própria onda!... Mas, na Casa de Canoas, Oscar Niemeyer, 1953. Geralmente identificada e conhecida pela laje
verdade, esse conhecimento consiste em curvilínea pousada sobre o patamar com a pedra e a piscina, a casa apresenta sob a
substituir o mar, em nossos raciocínios, pelas plataforma a base em pedra, pouco conhecida, que abriga a área íntima, estabelecendo
um contraste radical entre o peso, a massa, e o fechamento da base e a leveza e
ações que ele exerce sobre um corpo, - como se abertura do pavimento superior.Essa diferenciação reforça a exploração dos diversos
se tratasse, para nós, de descobrir as outras sistemas construtivos, das diferenciações entre público e privado e da relação com o
ações que a essas se opõem, defrontando-nos terreno e a paisagem. Foto do autor
tão somente com um equilíbrio de poderes, uns
e outros extraídos da natureza, onde não se
combatiam utilmente (4).

Os usos e atividades que geralmente dão origem à


demanda por um edifício são em geral colocados no
início do processo de projeto. Também são colocadas
as restrições relativas à economia, um aspecto
geralmente desconsiderado ou subestimado pelos
arquitetos (5).

Desconsiderar as definições relativas às limitações


econômicas ou entendê-las como uma restrição à
criação é recorrer à exclusão do problema para buscar
uma solução mais simples e fácil (6). A consideração
das questões de economia, quando se opera com
recursos limitados, característica recorrente no contexto
brasileiro, é antes de tudo uma premissa que pressupõe
a viabilidade da construção. Sendo assim, ignorar as
restrições e limitações de ordem econômica representa
em um contexto de escassez um ato de
irresponsabilidade em relação ao usuário, no caso de
uma relação particular entre arquiteto e cliente, ou em
relação à sociedade, no caso em que o cliente se trate
de uma instituição pública. Representa ainda um
descompromisso do arquiteto com a realização concreta
de sua obra. A necessidade da atenção à economia
remete à questão do decoro, apontada por Vitruvio: “o
decoro é o aspecto correto da obra, que resulta da
perfeita adequação do edifício, no qual não haja nada
que não esteja fundado em alguma razão” (7). Mesmo
em situações em que a escassez não é condição para a
realização da arquitetura, o dispêndio excessivo e
supérfluo implica em última instância na inserção direta
do trabalho do arquiteto no mundo do consumo
desenfreado, a promover a não preservação dos
recursos naturais disponíveis para o homem no planeta.
Como aponta Moneo,

A construção de um edifício requer um empenho


enorme e um grande investimento. Arquitetura
em princípio, quase por princípio econômico,
deve ser durável. Os materiais devem assegurar
vida longa aos edifícios. Antes um edifício era
construído para durar para sempre ou, pelo
menos, certamente não esperávamos que
desaparecesse (8).

Ao se estabelecer um programa, surge a necessidade


da determinação de dimensões dos espaços a fim de
acomodar as diversas atividades propostas para o
edifício. Esse dimensionamento se constitui em parte
fundamental da interpretação do programa. Como
aponta Le Corbusier, a noção da dimensão deve ser
algo que ultrapassa a abstração da reprodução de
padrões métricos universalmente aceitos, considerando
as dimensões e a escala do homem como referência
para a determinação dos espaços:

O metro é apenas uma cifra sem corporeidade


[...] As cifras do Modulor são ‘medidas’, e, por
conseguinte, feitos em si que têm corporeidade;
[...] os objetos que se deve construir [...] são, de
qualquer modo, ‘continentes do homem’ ou
prolongamentos do homem. Para escolher as
melhores medidas vale mais ‘vê-las e apreciá-
las com a separação das mãos’ do que pensá-
las somente (isso para as medidas muito
próximas da estatura humana). [...] A arquitetura
(e com essa palavra englobo a quase totalidade
dos objetos construídos) deve ser tão carnal e
substancial como espiritual e especulativa (9).

Para além das questões relativas às proporções da


forma, o domínio efetivo das dimensões permite a
atuação ativa do arquiteto sobre a construção a fim de
definir espaços qualitativamente distintos. A definição da
ambiência de um espaço de permanência ou de um
percurso e a demarcação de seu caráter público ou
privado são diretamente determinados pelas suas
dimensões. Portanto o dimensionamento é fundamental,
em primeira instância, para um domínio das demandas
de espaço a que correspondem as diversas atividades
e, em segunda instância, para a definição de hierarquias
e demarcação de diferenciações claras entre os
espaços de naturezas distintas.

Em relação aos usos e atividades demandados em um


programa, para além de um atendimento imediato às
questões utilitárias entendidas em um sentido
funcionalista, é possível buscar como parte desta
estratégia conceitual a investigação dos diversos modos
de vida dos usuários, conhecidos ou imaginados, a fim
de buscar nesses modos de vida as especificidades que
sugiram o espaço mais apropriável e mais adequado
para que estes hábitos tomem lugar. Como aponta
Brandão,

Os conceitos, como aqueles que elaboramos


durante a produção de um projeto, não surgem
do nada, mas da reflexão sobre a nossa própria
experiência dos espaços e daquilo que nos
fornece a tradição que lhes concerne. Assim,
(...) cumpre elaborar a reflexão sobre nossa
experiência desses espaços, sobre a imagem,
os significados e sentidos que a tradição nos
transmite e que se depositou como repertório da
cultura (10).

Essa compreensão da tradição pode aqui ser tomada


como uma interpretação do repertório acumulado da
cultura a fim de transformá-lo em proposições
adequadas para o presente, ao invés de reproduzir
padrões de espaço culturalmente desenvolvidos ao
longo da história para esta ou aquela finalidade. Nesse
sentido, parece mais fértil, como sugere Valéry, construir
o navio a partir da compreensão das forças que o mar
lhe impõe, ou seja, pensar o espaço fisicamente
construído a partir das forças e tensões que as
diferenciações entre os domínios do individual e do
coletivo nele determinam. A partir deste entendimento,
parece possível interpretar e interferir nestes diferentes
modos de vida, a partir da reelaboração dos padrões
recorrentes na tradição, promovendo articulações
variadas entre as atividades e os domínios territoriais, a
fim de estabelecer no espaço físico continuidades e
descontinuidades, integrações, separações e
fragmentações, ora controladas pelas necessárias
transições, ora justapostas em demarcações e rupturas
violentas entre os domínios do público e do privado.

A demarcação de territórios com caracterizações


distintas em suas relações de privacidade evoca a
premissa de que a arquitetura se funda na necessidade
de mediação das relações humanas (11). A partir desse
entendimento, é possível superar uma visão
funcionalista, que definiria o espaço como atendimento
objetivo a atividades específicas, passando ao
entendimento da questão dos usos e da ocupação
humana do espaço edificado a partir da compreensão
das diversas possibilidades de vivência do edifício no
cotidiano. Habitamos simplesmente o espaço, mesmo
quando nele momentaneamente não desenvolvemos
qualquer atividade, ou seja, o habitar não passa pela
noção da função ou da utilidade imediata.

A arquitetura pode surgir do conhecimento e da


interpretação dos condicionantes impostos pela vida
cotidiana. Quando entendida assim, resulta mais
circunstancial e menos ideal. Nesse sentido, cada
projeto é um ato único, que deve incorporar as
contradições específicas surgidas do embate entre seus
condicionantes. A forma é portanto algo que resulta
deste embate, e é mais relevante quando evita os
gestos retóricos que procuram, por um lado, a
determinação de uma linguagem a priori e, por outro
lado, a caracterização de um discurso sobre algum dos
aspectos envolvidos na sua realização.

A arquitetura pode prescindir do discurso, desvestir as


pretensões excessivas que extrapolam seus
fundamentos primeiros e cuidar daquilo que lhe é mais
caro, e tem sido mais abandonado, que é a importância
do conhecimento da construção como o único meio de
viabilização do espaço físico destinado à habitação pelo
homem.

Construção

Eupalinos era senhor de seu preceito. Nada


negligenciava. Prescrevia o corte das tábuas no
veio da madeira, a fim de que, interpostas entre
a alvenaria e as vigas que nelas se apoiassem,
impedissem a umidade de penetrar nas fibras,
embebendo-as e apodrecendo-as. Prestava a
mesma atenção a todos os pontos sensíveis do
edifício. Dir-se-ia tratar-se de seu próprio corpo.
Durante o trabalho da construção, raramente
afastava-se do canteiro. Conhecia todas as suas
pedras: cuidava da precisão de seu talhe,
estudava minuciosamente todos os meios de
evitar que as arestas se ferissem ou que a
pureza dos encaixes se alterasse. Ordenava a
prática da cinzeladura, a reserva dos calços, a
execução de biséis no mármore dos adornos,
dispensava o mais fino cuidado ao reboco que
aplicava nos muros de simples pedra (12).

A definição das fundações, da estrutura, das proteções


contra as intempéries, das instalações complementares,
dos processos construtivos e dos detalhes, bem como a
eleição dos materiais, são escolhas do arquiteto que
visam a viabilizar a realização do espaço imaginado e
resultam na forma arquitetônica. Assim como nos
aspectos relativos ao lugar e ao programa, é possível
identificar diretrizes latentes de ordenação do espaço e
da forma em cada aspecto relacionado à construção.
Pensar cada um desses aspectos para além de suas
determinações técnico-funcionais, da viabilização do
abrigo, implica em pensar o elemento da construção
como gerador de espaço, e não o contrário. Respeitar
as especificidades de cada solução técnica,
compreender o comportamento dos elementos em
relação às forças da natureza, em especial a gravidade,
implica em explorar conceitualmente as possibilidades
da construção. Nesse sentido, cabe concordar com
Joaquim Guedes, que aponta que “[h]á que aprender a
imaginar o objeto e ao mesmo tempo inventar sua
construção” (13).

O conhecimento da construção é a única possibilidade


de se viabilizar concretamente a idéia do objeto
arquitetônico. Sua desconsideração é a garantia da
falência da arquitetura – e do arquiteto -, na medida em
que deixa para outro a responsabilidade fundamental
das definições que em última instância implicam na
geração da forma visível e tangível do edifício, e na
definição da ambiência e da conformação do espaço
interior destinado à vida humana. Desconhecer os
procedimentos para a construção do objeto é operar
apenas sobre a imagem pretendida para o edifício e seu
espaço interior, é o simulacro da decoração e do
ornamento supérfluo. Se há algum caminho possível
para a arquitetura nesse momento, acredito ser sua
realização através da manipulação ativa de sua lógica
de construção, operando a partir de seus fundamentos
para atingir uma resposta concreta, fisicamente
edificada, que faça repercutir no objeto arquitetônico, de
modo complexo, o conhecimento, a interpretação e a
transformação de todas as restrições e determinações
do lugar, do programa e das próprias possibilidades de
construção.

O desenho como mediador

Sou avaro em divagações. Concebo como se


executasse (14).

A representação gráfica é, e parece que por muito


tempo continuará sendo, o modo de mediação entre a
idéia e a sua realização concreta, a construção.
Portanto, o desenho é o ponto crítico no processo, pois
não é apenas a representação final de uma idéia
pensada de antemão, mas é a própria construção da
idéia. Enquanto desenha, o arquiteto testa hipóteses de
resolução das diversas contradições que surgem do
embate entre as demandas impostas pelo sítio, pelo
programa e pela construção. Como confirma Brandão,

a expressão gráfica (...) não é apenas


representação de uma idéia mas um momento
de compreensão e construção dessa idéia.
(...)Dizer que essa relação é dialógica significa
dizer que ela se desenvolve a partir do jogo de
perguntas e respostas que são colocadas entre
os dois momentos. Esse jogo se desenvolverá
também para estabelecer a relação entre o
projeto e a obra e, depois, entre a obra e o
habitante. Cumpre reafirmar, desde já, que a
própria definição do conceito é mediatizada
pelas perguntas colocadas pela construção, pela
contextualização e pela fruição da obra (15).

Como mediador que visa a concepção e a realização do


edifício, o desenho deve explicitar com clareza os
procedimentos para a construção do objeto. Se tratado
de modo abstrato e desvinculado da lógica e das
implicações da construção, o desenho perde sua
relação direta com o objeto arquitetônico, e deixa de ser
o meio para sua realização. Arrisca-se assim a não
realização do edifício como previsto, por mera
impossibilidade ou divergência entre a técnica possível e
o espaço e volume imaginados. A deficiência da
representação decorre do desconhecimento da
construção. Portanto, a representação, para ser
suficiente e para viabilizar a construção de um edifício
qualquer, deve se fundamentar no conhecimento de
todas as premissas que interferem nesta realização do
objeto. Rafael Moneo confirma essa hipótese:

Muitos arquitetos atualmente inventam


processos e ensinam técnicas de desenho sem
a preocupação com a realidade da construção.
A tirania dos desenhos é evidente em muitos
edifícios em que o construtor procura seguir
literalmente o desenho. A realidade pertence ao
desenho, não ao edifício. [...] Os edifícios se
referem tão diretamente às definições do
arquiteto e estão tão desconectados com a
operação da construção que a única referência
é o desenho. Mas um verdadeiro desenho de
arquitetura deve implicar sobretudo o
Conhecimento da construção (16).

A necessidade do conhecimento acumulado associado à


observação acurada dos aspectos específicos que
dizem respeito a cada projeto sugere uma possibilidade
de abordagem metodológica do projeto arquitetônico. O
ato de projetar pode ser entendido como um trabalho
reflexivo, um esforço de equilíbrio entre o construir, o
habitar e o pensar colocados como premissa para este
debate. É um ato de pensar a construção, o hábito e o
lugar, de modo a transformar a situação pré-existente
em algo novo, que configure um suporte habitável, no
sentido pragmático da configuração do abrigo e da
proteção que o conhecimento da técnica viabiliza, e no
sentido específico da mediação das relações humanas,
que somente se realiza a partir do conhecimento da vida
cotidiana e da atuação intencional do arquiteto sobre as
articulações físicas do espaço e da construção. A
linguagem e a forma surgem como decorrência
imediata, mas não óbvia, deste trabalho reflexivo sobre
os dados pré-existentes do problema.

Fiar-se em relatos legitimadores externos, ainda que


eleitos caso a caso, é cometer o mesmo erro dos
herdeiros desavisados de arquiteturas do passado, que
entenderam a arquitetura de sua época como um
padrão baseado em um repertório formal a ser
reproduzido, reduzindo a importância da consideração
efetiva dos condicionantes reais que surgem da vida
cotidiana.

Notas

1
Este artigo foi elaborado originalmente para publicação e apresentação em
mesa redonda do Seminário Arquitetura e Conceito, promovido pelo Núcleo
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura
da UFMG, em julho de 2003, sob o Tema: “Construir, Habitar, Pensar, hoje.
O que é Projetar?”, sob a coordenação do prof. Dr. José dos Santos Cabral
Filho.

2
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. “Linguagem e arquitetura: o problema do
conceito”. Revista de Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo.
vol.1, n.1, novembro de 2000. Belo Horizonte: Grupo de Pesquisa
"Hermenêutica e Arquitetura" da Escola de Arquitetura da UFMG.
Disponível: <http://www.arq.ufmg.br/ia>. Acesso em 25 jun. 2003.

3
VALÉRY, Paul. Eupalinos ou O Arquiteto. Tradução Olga Reggiani. São
Paulo: Editora 34, 1996, p. 175.

4
Idem, ibidem, p. 155.

5
Vitruvio aponta a economia como um importante definidor da arquitetura,
sendo um pressuposto à utilidade. Daí resulta a abordagem, neste
trabalho, da economia em conjunto com as questões referentes ao uso,
configurando as demandas relativas ao programa. Sobre isso, cf.
VITRUVIO, Marco Lucio. Los diez libros de arquitectura. Tradução direta do
latim, prólogo e notas por Agustín Blanquéz. Barcelona: Editorial Iberia,
1955, p.16.

6
Robert Venturi aponta a simplificação decorrente da exclusão de problemas
como uma estratégia para assegurar uma pré-determinação da forma.
Contrapõe a essa tendência a necessidade da busca por uma
complexidade que inclua efetivamente na resolução da forma as diversas
demandas que comparecem no processo de projeto. Cf. VENTURI, Robert.
Complexidade e Contradição em Arquitetura. Tradução Álvaro Cabral. São
Paulo: Martins Fontes, 1995.

7
VITRUVIO. Op. cit., p.14.

8
”The construction of a building entails an enormous amount of effort and a
major investment. Architecture in principle, almost by economic principle,
should be durable. Materials should provide for the buildings's long life. A
building formerly was built to last forever or, at least, we certainly did not
expect it to disappear”. MONEO, Rafael. “The solitude of Buidings”. Kenzo
Tange Lecture, Harvard University Graduate School of Design, março,
1985. (discurso). Disponível: <http://web.arch-mag.com/3/recy/recy1t.html>.
Acesso em 05 jun 2003, s/p.

9
LE CORBUSIER. El modulor: Ensayo sobre uma medida armonica a la
escala humana aplicable universalmente a la arquitectura y a la mecánica.
Buenos Aires: Editorial Poseidon, 1961, p. 56-57.

10
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Op. cit., s/p.

11
Para aprofundar o entendimento da arquitetura como mediação dos
códigos de ética da sociedade, cf. CABRAL FILHO, José dos Santos.
Formal games and interactive design. Sheffield: School of Architectural
Studies, 1996. (Tese), seção 1.3.1. Disponível:
<http://www.arquitetura.ufmg.br/lagear/cabral/phd/index.html>. Acesso em
15 mar. 2000.

12
VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 39.

13
GUEDES, Joaquim. “Geometria Habitada”. In: VALÉRY, Paul. Eupalinos ou
O Arquiteto. Tradução Olga Reggiani. São Paulo: Editora 34, 1996
(Prefácio), p.12.

14
VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 51.

15
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Op. cit., s/p.

16
Many architects today invent processes or master drawing techniques
without concern for the reality of building. The tyranny of drawings is evident
in many buildings when the builder tries to follow the drawing literally. The
reality belongs to the drawing, not to the building. [...] The buildings refer so
directly to the architect's definition and are so unconnected with the
operation of building that the only reference is the drawing. But a truly
architectural drawing should imply above all the Knowledge of construction.
MONEO, Rafael. Op. cit., s/p.
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