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T E OR I A D O DIREIT O

Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

EM BUSCA DE UM NOVO FUNDAMENTO PARA


116

O SISTEMA JURÍDICO: para além da norma


fundamental de Hans Kelsen
A NEW FOUNDATION FOR THE LEGAL SYSTEM:
beyond Hans Kelsen’s basic norm
Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo.

RESUMO ABSTRACT
Tece algumas comparações entre os conceitos de sistema de This work makes some comparisons between Hans Kelsen’s
Hans Kelsen e o de Niklas Luhmann, demonstrando a distin- system concepts and Niklas Luhmann’s, thus demonstrating
ção de maior relevância entre eles, a saber: a que se dá entre their most relevant distinction, namely: Kelsen’s concepts
os conceitos de unidade, defendido por Hans Kelsen, e os de of unity versus Luhmann’s call for differentiation. Such
diferença, sustentados por Niklas Luhmann. O resultado dessas comparisons give rise to the introduction of a new early-stage
comparações é a apresentação, em linhas inicias, de um novo concept of legal system for Law Theory.
conceito de sistema jurídico para Teoria do Direito.
KEYWORDS
PALAVRAS-CHAVE Law Theory; system; legal system; Hans Kelsen; Niklas
Teoria do Direito; sistema; sistema jurídico; Hans Kelsen; Niklas Luhmann.
Luhmann.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIII, n. 78, p. 116-130, jul./dez. 2019


Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

Se o nosso princípio é levado a sério, apresenta-se, então, o segundo problema: quando se exige uma
fundamentação para tudo, então terá que se exigir, também, uma fundamentação para os conhecimentos aos quais foi
remetida a concepção – ou seja, o referido conjunto de enunciados – a fundamentar. Isto conduz à uma situação com três
alternativas que parecem, ou são, inaceitáveis, portanto a um trilema que eu, em vista da analogia existente entre
a nossa problemática e o problema que o famoso barão da mentira teve que solucionar uma vez,
denomino de trilema de Münchhausen.
(ALBERT, 1976, p. 26).

1 INTRODUÇÃO autopoiese, a de tempo (segundo Luhmann), a de especificação


O problema da pesquisa que move este artigo é: quais fo- funcional e codificação binária e, ainda, a de autorreferência e he-
ram as contribuições que a doutrina de Niklas Luhmann deu terorreferência (re-entry). Em um terceiro instante desses objeti-
ao conceito de sistema? Esse problema, por sua vez, pode abrir vos específicos, o texto se dedicará a apresentar a ideia de rede
espaço para a seguinte hipótese: as contribuições de Luhmann de interconexões dinâmicas e recursivas. E aí, nesta passagem do
sobre o conceito de sistema parecem ter o potencial de provocar trabalho, serão realçados alguns aspectos, como, por exemplo, a
uma verdadeira “reviravolta” sobre a noção de sistema sustenta- opção de Luhmann pelo conceito de rede ao invés da ideia da
da por Hans Kelsen. Em outras palavras, a concepção de sistema hierarquia, além de trazer à baila, como o sociólogo alemão lida
de Luhmann parece ter a capacidade de desconstruir o conceito com o problema do paradoxo do início do sistema.
de sistema, até então, compartilhado pela maioria dos juristas1. Todo este trabalho de apresentação da noção de sistema defen-
O trabalho aqui levado a efeito, ao longo das passagens que dida por Luhmann será aqui acompanhado, sempre que possível, 117
se seguem, é justificável por diversas razões. Uma delas é a me- das observações pertinentes levadas a cabo por Thomas Vesting. A
lhor compreensão das ideias de Luhmann, as quais ainda não doutrina de Vesting, além de bem esclarecer os ensinamentos de
são suficientemente bem difundidas e compreendidas pela co- Luhmann, também se mostra útil a fazer críticas construtivas à lição
munidade de operadores do Direito do Brasil. Uma outra razão, do sociólogo alemão. Em suma, a doutrina de Vesting é um exce-
não menos importante, é a de oportunizar ao leitor um maior lente “fio condutor” na comparação entre o conceito de sistema de
aprofundamento em torno do conceito de sistema, na medida Kelsen com o conceito de sistema de Luhmann.
em que este se dê conta de que é possível estudar o mesmo Postas as coisas assim, convém abordar o primeiro dos ob-
conceito (sistema) a partir de diferentes ângulos de observação. jetivos específicos, ou seja, aquele que será dedicado a apre-
E, a essas justificativas se somam uma terceira, a de que a socie- sentar e debater a distinção básica da doutrina de Luhmann, a
dade dos dias atuais se caracteriza pela sua complexidade e dife- distinção entre sistema e ambiente.
renciação, o que, por sua vez, demanda do Direito um constante
ato de repensar os conceitos básicos da teoria do Direito. E o 2 DISTINÇÃO ENTRE SISTEMA E AMBIENTE
conceito de sistema, por sinal, é, talvez, o mais importante deles. A teoria dos sistemas de Luhmann pode ser interpretada –
Sendo assim, o objetivo principal deste artigo é oferecer, tomando como ponto de referência a teoria pura do Direito de
embora em breve linhas, uma compreensão panorâmica acerca Hans Kelsen – como um novo esforço para reagir à crise do po-
da doutrina de Niklas Luhmann sobre o conceito de sistema e, sitivismo jurídico sem renunciar ao conceito de sistema. Todavia,
ao mesmo tempo em que isso for feito, comparar essa doutrina em Luhmann, o conceito de sistema recebe um sentido comple-
à lição de Hans Kelsen e a alguns dos conceitos sustentados por tamente distinto. Diferentemente do que se dava no positivismo
esse último autor. Esse é o objetivo principal, reitere-se, porque jurídico, o sistema da teoria dos sistemas não é mais edificado a
o pressuposto do qual se parte é que a concepção de sistema partir da noção de “unidade interna”2 de normas jurídicas e ins-
defendida por Kelsen é, ainda hoje, pelo menos no Brasil, a con- tituições coordenadas entre si3.
cepção tradicional de sistema, ou seja, a concepção de sistema A hipótese de Kelsen de que o sistema jurídico necessita
mais aceita e mais difundida. pressupor uma “norma fundamental” 4 (um imperativo categó-
Para alcançar o referido objetivo principal, este trabalho pre- rico, nos termos de Kant) para poder operar com êxito, também
tende percorrer uma trilha de objetivos específicos, os quais serão é abandonada por Luhmann. No lugar dela, aparece a demar-
abordados na seguinte ordem: primeiramente, será apresentada cação contínua do sistema jurídico em relação a tudo que não
a distinção entre sistema e ambiente. Feito isso, a seguir, será ex- é Direito (VESTING, 2015, p. 131), o ambiente social. Ao invés
plicado o conceito de fechamento operacional do sistema, mo- de orientar-se pela unidade, a teoria dos sistemas se deixa con-
mento no qual serão esclarecidas algumas noções como a de duzir pela ideia de diferença5, por um pensamento que constrói

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a noção de sistema jurídico a partir de uma distinção, a dis- todo pensamento8. De acordo com Spencer Brown, as formas
tinção sistema/ambiente. Entenda-se por sistema, como explica não são aquilo que prescrevem certa configuração, tal como, por
Luhmann (2016, p. 56), “um nexo entre operações faticamente exemplo, a linguagem das formas do escultor francês Rodin, a
consumadas, que, na qualidade de operações sociais, devem qual termina por determinar a configuração de suas esculturas.
ser comunicações, o que sempre as distingue, então, adicio- Elas, as formas, segundo Brown (2008, p. 32), são linhas divisó-
nalmente, como comunicações jurídicas”. Isso, porém, signifi- rias, marcações de uma diferença que separam dois lados, em
ca: “não buscar a distinção inicial em uma tipologia normativa suma, um sentido inteiramente inovador para esta palavra9.
ou axiológica, mas, sim, na distinção entre sistema e ambiente” Por sua vez, a execução da separação, a marcação, o traçar o
(LUHMANN, 2016, p. 56). limite/fronteira, baseia-se em uma instrução, qual seja, a instru-
A definição de sistema, com distinção entre sistema e am- ção para encontrar uma distinção (uma diferença). A finalidade
biente, pretende considerar a compreensão teórico-cognitiva de é expressar, entre outros, que todos os enunciados, axiomas ou
que toda observação (ou descrição) deve começar por uma dis- princípios “primeiros”, tais como eles eram constitutivos para o
tinção ou diferença6. Nesta passagem, Luhmann adota como sistema natural-filosófico (o jusnaturalismo moderno) e jurídico-
premissa de raciocínio a tradição platônica da arte da distinção -positivista (o positivismo jurídico), são antecedidos por uma dife-
conceitual, de acordo com a qual todo objeto ao ser apontado, renciação, que, apenas quando – em um determinado lugar, em
somente pode sê-lo se for diferenciado em relação a outro ob- um determinado momento – uma distinção é encontrada e algo,
jeto. Vale aqui destacar, nesse sentido, o método da diairesis a partir dela, é designado (afirmado), é que se pode dar início a
(do grego hairéo, agarrar, pegar), trabalhado e delimitado nos uma operação passível de observação (VESTING, 2015, p. 133).
últimos diálogos de Platão (2007, p. 253). Esse método servia Postas as coisas desta maneira, o conceito de forma de
à diferenciação conceitual, à repartição de categorias (do grego, Spencer Brown funciona como o ponto de partida da teoria
géne) (VESTING, 2015, p. 132). dos sistemas de Luhmann. O “primeiro” enunciado10, o iní-
cio ou fundamento do sistema, atrofia-se, transformando-se,
[...] a teoria dos sistemas se deixa conduzir pela de conceitos teoricamente ambiciosos, como, por exemplo, a
ideia de diferença, por um pensamento que Constituição de um soberano através de um (hipotético) con-
trato social (como defendeu Thomas Hobbes, por exemplo),
constrói a noção de sistema jurídico a partir de de um sujeito transcendental (como quer Kant), de um espírito
uma distinção, a distinção sistema/ambiente que se realiza na história (como sustenta Hegel) ou de uma li-
118 vre vontade (como quer o positivismo jurídico, em especial, Carl
Hoje o pensamento teorético-diferencial está pulverizado em Schmitt), na execução de uma marcação/distinção.
diversas disciplinas acadêmicas, proeminentemente, sobretudo, Desse modo, portanto, o início do sistema consiste na trans-
na sociologia de Pierre Bourdieu e nas “práticas distintivas” por formação de uma indefinição contextual na definição de dois
ele analisadas. Ademais, recorde-se, por oportuno, a constatação lados, em que cada lado da forma é o outro lado do outro lado
fundamental da arbitrariedade da determinação do signo, como (LUHMANN, 2016, p. 60). Por exemplo, caso se desenhe um cír-
sustenta Ferdinand Saussure (2006, p. 81-83). De acordo com ela, culo em uma folha branca de papel, serão produzidos, ao mes-
o valor de um signo linguístico somente é definido por meio de mo tempo, uma diferença e uma marcação, ou seja, a face inter-
uma diferenciação em relação a outro, mas não a partir da uni- na e a face externa do círculo, que se definem, cada uma, pela
dade do valor do signo com um ser por ele representado. Sendo outra face que a ela se opõe. O sistema da teoria dos sistemas
assim, a designação “maçã”, para dar um exemplo, funciona na é entendido, assim, como um caso de aplicação dessa forma de
comunicação cotidiana porque “maçã” pode ser facilmente distin- dois lados, do modo como o concebia Spencer Brown. Ele se
guida de “pera”, e não porque a palavra “maçã” tem uma relação baseia em uma forma que distingue o sistema de seu ambiente
ontologicamente (em sua essência7) estável com a fruta por ela e que, ao mesmo tempo, o designa.
designada (VESTING, 2015, p. 132). Assim, a unidade do sistema ou a ideia de unidade11 dá
Na segunda etapa de sua obra, contudo, Luhmann eleva a lugar à ideia de distinção ou diferença, e a distinção mais bási-
um nível mais radical o seu pensamento distintivo. Enquanto a ca de todas, segundo Luhmann, é a que existe entre sistema e
dicotomia platônica entre conceito e contraconceito desenvolvia- ambiente. Portanto, dessa forma, renuncia-se a toda e qualquer
-se sempre a partir de uma unidade pressuposta, de acordo com proposta de solução unitária para o sistema. A unidade, incluin-
a qual, no fim das contas, todas as diferenças eram eliminadas do, também, a identidade dialética entre diferença e identida-
na unidade do Ser daquele que é; Luhmann transforma o pensa- de, é descartada por Luhmann, que agora se socorre da noção
mento distintivo em uma teoria “pós-ontológica” (para além do de diferença ou pela “diferença entre identidade e diferença”
conceito de essência) – compreendida as coisas do ponto de vista (VESTING, 2015, p. 134) 12.
da filosofia tradicional (VESTING, 2015, p. 132-133).
Para ele, Luhmann, o conceito de sistema é um caso de apli- 3 FECHAMENTO OPERACIONAL
cabilidade de outro conceito, o conceito de forma do matemático 3.1 AUTOPOIESE
inglês Spencer Brown. A obra deste último, Laws of Form (de Na medida em que a teoria do Direito entende a ela própria,
1969), propõe uma lógica (completamente original) ou, como em geral, como uma teoria das normas (ou sobre as normas),
denomina Thomas Vesting, uma protológica pré-identitária, que ela se interessa logo de início, quando não exclusivamente, por
coloca a diferença e o paradoxo como consumações iniciais de estruturas supostamente estáveis, por textos ou enunciados ju-

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rídicos singulares, mas não por suas res- a poder distinguir a si mesmo de outros A partir dessa concepção de sistema
pectivas aplicações. Se este não é o traço sistemas do mundo? A resposta para esta autopoiético, Niklas Luhmann dirige toda
de todas as teorias que já se elaborou so- pergunta é: através do fechamento ope- a sua atenção para o condicionamento
bre o Direito, sem dúvida, pelo menos ele racional autopoiético. Luhmann (1997, interno dos elementos e estruturas do
o é da teoria do Direito imaginada pelo p. 37-48) chama de “sistemas opera- sistema (ou seja, do repertório e da es-
normativismo jurídico de Hans Kelsen13. cionalmente fechados” aqueles siste- trutura do sistema14). E é ele, Luhmann
A teoria dos sistemas de Luhmann pen- mas que, “para a produção das próprias (2016, p. 43), que sustenta que o siste-
sa, de certo modo, inversamente. Para ela, operações, dependem da rede de ope- ma pratica uma associação seletiva, uma
o ato da ação linguística relevante para rações próprias e, nesse sentido, repro- seleção de informações interna ao siste-
o Direito, a comunicação jurídica, como duzem a si mesmos”. Isto é, o sistema ma, e apenas quando esse é o caso é que
quer Luhmann, está em primeiro plano. pressupõe a si mesmo e realiza por faz sentido “falar de elementos próprios
A teoria dos sistemas, como desta- meio de algumas de suas operações do sistema, de limites do sistema ou de
ca Vesting, não detém sua atenção, por sua própria reprodução. Distintamente diferenciação”. A autonomia do sistema,
exemplo, sobre a norma do art. 823 do de algumas teorias da auto-organiza- no sentido da compreensão tradicional
BGB (Código Civil alemão) como tal ou ção mais antigas, a reprodução sucessi- do conceito – autolegislação, autolimi-
como componente de um texto legal va do sistema não guarda respeito ape- tação (do grego, autonomia) –, aparece,
abrangente. Para ela o que interessa é nas às estruturas próprias do sistema, então, como decorrência do fechamen-
o uso que se faz dessa norma em um mas também às operações elementa- to operacional do sistema autopoiético
episódio comunicativo, o que pode as- res (repertório), que o próprio siste- (LUHMANN, p. 2016, p. 63).
sumir diferentes formas comunicação, ma não consegue desagregar de modo O sistema seleciona e associa eventos
mas, em geral, é possível dizer que o que mais amplo (ou reduzir a um elemento comunicativos (a comunicação é a unida-
Luhmann denomina como episódio co- mais básico) “e, por conseguinte, a tudo de mais básica ou elementar do sistema,
municativo é o que, juridicamente, cos- que, no sistema, funciona como unida- segundo Luhmann) portadores de senti-
tuma-se chamar de um caso, como sus- de para o sistema” (LUHMANN, 1983, do que se atribuem ao sistema jurídico e
tenta Vesting (2015, p. 135). p. 132-166). A produção ininterrupta das utilizam suas estruturas. Contudo, apenas
É verdade que Kelsen (2005, p. 168- estruturas e dos elementos do sistema, para fazer um contraponto, a corporeidade
169) já havia isolado este aspecto dinâmi- na rede do sistema é denominada – em do aperto de mão com o qual duas partes
co do Direito de toda “estática jurídica”, alusão a Humberto Maturana e Francisco concluem um contrato, apenas para chamar 119
mas relacionara a dinâmica da produção Varela (1998, p 69) – como “autopoiese” atenção, não faz parte do sistema, como res-
contínua do Direito, caso a caso, ao fim e é introduzida por Luhmann como uma salta Vesting (2015, p. 137). Com isso, não
e ao cabo, a uma idealidade estável no “invariante” (uma constante) na Teoria se questiona que um contrato por ser “sela-
tempo, a uma norma fundamental que do Direito (VESTING, 2015, p. 136). do” através deste gesto físico tão caracterís-
concluía a estruturação em níveis do or-
denamento jurídico. Luhmann, por sua Autopoiese do sistema significa dizer, em outras palavras,
vez, corta ainda mais essa amarra e se- autoprodução (do grego, autos, auto e poiesis, produzir, fazer)
gue as correntes pragmáticas da filosofia
(da linguagem) desde Wittgenstein. Desse
das estruturas e elementos próprios do sistema pelo sistema,
modo, no pensamento de Luhmann e de não a criação do sistema pelo sistema.
sua teoria dos sistemas, a norma jurídi-
ca perde o seu status de objeto ontoló- Autopoiese do sistema significa di- tico em algumas culturas (mediante contato
gico. A teoria do Direito, como irá anun- zer, em outras palavras, autoprodução corporal recíproco), mas apenas se supõe
ciar Vesting (2015, p. 135), não observa (do grego, autos, auto e poiesis, produ- que o aperto de mãos só se torna relevante
normas (supostamente) estáveis, mas zir, fazer) das estruturas e elementos pró- para o Direito, e o seu sistema, se houver
eventos jurídicos fugazes – celebrações de prios do sistema pelo sistema, não a cria- se tornado objeto da comunicação jurídica
contratos, sentenças judiciais, atos admi- ção do sistema pelo sistema. O processo (da norma efetivamente aplicada), o que
nistrativos, processos legislativos etc. – no da autoprodução em rede nunca inclui acontece, por exemplo, quando uma teste-
contexto dos quais as normas funcionam o controle sobre todas as causas (pois o munha, em juízo, relata o aperto de mãos.
como estruturas para repetições, para reu- sistema não é capaz de se auto-observar Todo o resto, segundo a teoria dos
tilizações em situações sempre diferentes. por inteiro, permanecendo, sempre, um sistemas de Luhmann, é ambiente do sis-
Quando se associa, então, a ideia de ponto cego de observação). Nesse caso, tema jurídico. O fechamento operacional
um acontecimento jurídico composto de ressalta Thomas Vesting (2015, p. 136), a autopoiético do sistema jurídico funda-
“comunicações” singulares com a teo- teoria dos sistemas é como a fotografia. -se, por conseguinte, em um fechamen-
ria da diferença, resulta, logo de início, A fotografia não é capaz de fotografar o to informacional (ou semântico), mas
a seguinte indagação: como o sistema fotógrafo enquanto fotografa. Em suma, não em hermetismo causal (autarquia),
jurídico pode repetir a sua demarcação o processo de autoprodução do sistema como ressalta Vesting (2015, p. 137). O
de modo continuamente operacional e nunca parte do pressuposto de que não fechamento operacional, objetiva a ma-
estabilizar-se historicamente de maneira haja um ponto cego. nutenção de estabilidade de um limite

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semântico, a associação de Direito com Direito no lado interno fessor universitário, na qualidade de corpos (extensões, como
do sistema, ao mesmo tempo em que todas as outras comu- diria Spinoza20), de ser humano completo, nunca são ou serão
nicações e todos os outros eventos permanecem insignifican- componentes do sistema, afirma Luhmann. Sim, até mesmo a
tes. Em resumo, só existe comunicação jurídica nos limites do voz, porque não, permanece sempre e necessariamente inaudí-
sistema jurídico – e em nenhuma outra parte (até porque, os vel no sistema (TEUBNER, 1993, p. 59).
demais sistemas sociais, como, por exemplo, o da economia, Essa disposição inicial não implica concluir que sistemas co-
terão, como ressalta Luhmann, suas próprias comunicações)15. municativos (formados a partir de uma comunicação própria) e
O elemento que não pode ser desagregado de modo mais ambiente humano sejam compreendidos como independentes
amplo e que exclui todo o sistema social – inclusive o sistema um do outro. Comunicação é – na esteira da lição de Spencer
jurídico – de seu ambiente natural é a linguagem, ou melhor, Brown – o lado interno da forma, que sempre apresenta um
o uso que se faz da linguagem, a “comunicação” (VESTING, lado externo. Assim como a sociedade, o sistema jurídico tam-
2015, p. 137)16. A comunicação não é concebida por Luhmann bém pressupõe constantemente, em seu ambiente, sistemas
conforme o modelo emissor/receptor, como transmissão de psíquicos e, nessa medida, está acoplado a sistemas de cons-
mensagens de emissor para receptor, mas consiste em três se- ciência por meio da linguagem de modo estrutural-constan-
leções, são elas: a informação, a mensagem e a compreensão te (não apenas operacional-momentâneo) (VESTING, 2015,
(Ibidem)17. Dentre elas, a compreensão é decisiva para a unida- p. 138-139). Isso é o que Luhmann denomina como acoplamen-
de ou a conclusão de um episódio comunicativo. to estrutural. E é ele, Luhmann (2016), que usa também a ex-
pressão “interpenetração” para se referir a fenômeno semelhan-
O sistema da teoria dos sistemas é um te, mas desde que seja para se referir a contextos teórico-sociais.
sistema dinâmico, quase que, talvez Contudo, convém ressaltar, os acoplamentos estruturais
também não alteram em nada a autopoiese de sistemas sociais.
exagerando, com vida própria. Ele não é feito
E mais, nenhum pensamento pode sair do sistema jurídico para
de partículas sólidas, mas sim de atos de penetrar na consciência do ser humano individual (desde que
linguagem ou comunicações. ele seja levado a sério como “pensamento”) e, inversamente,
a consciência individual nunca pode intervir na autopoiese do
Todavia, Luhmann não impõe nenhuma grande exigência à sistema jurídico (VESTING, 2015, p. 139.). Dito de outro modo,
compreensão, como ressalta Vesting (2015, p. 137). Não se tra- os sentidos que constituem a comunicação típica do sistema ju-
120 ta de ato voltado para o entendimento (como parece ser na te- rídico não, necessariamente, são levados em consideração pela
oria de Habermas18), de “idealizações” associadas ao “meio da operacionalidade dos sistemas psíquicos, assim como, por ou-
linguagem”. A compreensão, em Luhmann, é, simplesmente, a tro ângulo, os sentidos que são operacionalizados pelo sistema
possibilidade de acesso à comunicação para que, a partir dela, psíquico não, necessariamente, afetam o padrão de funciona-
origine-se uma comunicação posterior. Na medida em que a mento do sistema jurídico.
comunicação reage à comunicação, ainda que de modo repe- A consciência, ou sistema psíquico, não tem a capacidade
lente, a cadeia indefinidamente emaranhada dos acontecimen- de desencadear no sistema jurídico senão confusões, surpre-
tos linguísticos continua sendo trançada. Nesse aspecto, mais sas ou perturbações, enquanto, por outro lado, o cérebro, a
uma vez, Luhmann se socorre da lição de Spencer Brown. O sis- circulação sanguínea e a musculatura não podem tornar-se
tema da teoria dos sistemas é constituído por apenas um único objeto da comunicação jurídica. É a unidade da distinção que
elemento, as comunicações, assim como o cálculo operacional assume o lugar da identidade (direta) entre ser humano e
de Spencer Brown só se vale de um único operador (VESTING, Direito ou entre ser humano e sociedade. Uma leitura política
2015, p. 137-138). O sistema conecta em rede exclusivamente identificará nisso, afirma Vesting (Ibidem), a continuidade da
afirmações linguísticas (quando são bem-sucedidas, isto é, com- tradição liberal do contrato social (Hobbes, Locke, Rousseau, o
preendidas), mas não é concebido como um “sistema de adi- iluminismo escocês, entre outros.), na medida em que, inclu-
ção” (VESTING, 2015, p. 138), como, por exemplo, o Estado, na sive em Luhmann, mantém-se sempre conservada uma ten-
doutrina de Jellinek, segundo a qual o Estado é constituído por são indivíduo e sistema social, uma estranheza para com o
três elementos: território nacional, povo nacional e poder estatal outro lado, que não admite uma “supressão” dessa diferença
(ZIPPELIUS, 1997, p. 61-67). em uma ideia ou comunidade jurídica.
Em contrapartida, todos os eventos não comunicativos per-
tencem ao ambiente do sistema jurídico. Assim, estão excluídos 3.2 TEMPO
do sistema jurídico não apenas edifícios, como escritórios de O sistema da teoria dos sistemas é um sistema dinâmico,
advocacia, tribunais e repartições públicas, mas também pes- quase que, talvez exagerando, com vida própria. Ele não é feito
soas19, como advogados, juízes ou professores universitários. de partículas sólidas, mas sim de atos de linguagem ou comuni-
Realmente, a consciência humana – nesse contexto, a teoria dos cações. Dessa maneira, no que toca aos sistemas autopoiéticos,
sistemas fala quase sempre de “sistemas psíquicos” ou “siste- somente pode se falar de “elemento” no sentido de elementos
mas de consciência” – participa do sistema jurídico por meio do temporalizados, de eventos ou operações ligadas ao momen-
sentido que é transmitido nas comunicações jurídicas, do signi- to. Por conseguinte, o termo “operação” é definido, segundo
ficado das expressões ou dos textos (VESTING, 2015, p. 138). Luhmann (2016, p. 43), “como a reprodução dos elementos
Contudo, repita-se mais uma vez, o advogado, o juiz ou o pro- relacionados a um evento” de um sistema.

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Para o sistema jurídico também, o está mergulhado no tempo e, por isso, teoria dos sistemas é uma teoria estrita-
tempo somente é dado como relaciona- constitui e reproduz, sempre seguindo mente pós-ontológica24, como consigna
do a um evento, como momento, como o presente, o que se impõe no agora Vesting (2015, p. 141). Para Luhmann,
diferença entre um antes e um depois e por um determinado tempo, forma- não existe identidade material dos ele-
do tempo (VESTING, 2015, p. 140). Mas ções que produzem vínculos temporais mentos, de um lado, e temporalidade
o momento não marca tanto um deter- (LUHMANN, 2016). das operações, de outro lado. Muito pelo
minado ponto no tempo cronométrico O sistema jurídico também produz e contrário, a ideia é que só existe identida-
que flui regularmente (como Cronos, na reproduz um ir e vir constante; os ele- de – seja de objetos (coisas) ou sujeitos
mitologia grega), o tempo dos minutos, mentos desaparecem, como explica (pessoas) – no tempo25. O tempo é um
das horas, dos dias e das semanas etc., Vesting (2015, p. 141), porque eles não evento imanente à comunicação, que
apesar deste tempo, deste aspecto sobre podem se manter no tempo, devendo tampouco pode ser subtraído por meio
o tempo, também desempenhar um pa- ser continuamente renovados. Por essa de uma ficção de ordem “lógica” preexis-
pel importante no Direito – por exemplo, razão, para o sistema jurídico, a “nor- tente ao tempo, sobre a qual se baseia o
nos prazos prescricionais. Para o sistema matividade” não é dada como norma- famoso segundo jurídico.
da teoria dos sistemas, o tempo é, antes tividade estável no tempo21 ou mesmo A ideia de um tempo pontualizado
de tudo, uma dimensão da definição de como “Direito Natural eterno”22,23. De rompe de modo mais ou menos total –
sentido (o espaço-tempo em que o sen- fato, o sistema jurídico, como todos os assim como outras figuras de pensamen-
tido se formou); ele é feito de “atualiza- sistemas sociais, objetiva a sua autore- to da teoria dos sistemas – com a cons-
ções de possibilidades significativas que, produção, mas o tempo pontualizado de ciência cotidiana e a tradição filosófica
no momento de sua realização, voltam a Luhmann é irreversível, como o tempo e, por consequência, faz parte das gran-
desaparecer” (LUHMANN, 2016, p. 69). da física moderna (o tempo de Newton), des pretensões que emanam desta teo-
O juiz requer a produção de pro- de modo que um “manter-se igual a si ria para o pensamento (tradicional). Isso
vas, e, já no momento seguinte, so- mesmo” das estruturas sistêmicas, do có- porque a filosofia clássica de Aristóteles
mente pode ser lembrado disso me- digo binário e das normas com ele rela- até Hegel – assim como o “senso co-
diante protocolo. Tomando como cionadas (programa) não é possível, se- mum”26 – sempre partiu de um assen-
ponto de partida essa abordagem, não por intermédio de um intercâmbio tamento ontológico do tempo (VESTING,
o que se quer dizer é que, segun- constante entre os elementos, de uma 2015, p. 142).
do Luhmann, o Direito opera sem- atividade ininterrupta. Desse modo, enquanto na filosofia 121
pre em um presente pontual e que se
mantém atualizado (algo próximo de A “codificação” é reservada a estruturas estritamente
Kairós, para fazer alusão novamente binárias no sentido cibernético, ou seja, a um
à mitologia grega): tudo que aconte-
ce, acontece ao mesmo tempo, como,
esquematismo bivalente, que só conhece um valor positivo
por exemplo, agora, neste – ou no (o lícito) e um valor negativo (o ilícito) [...]
próximo – momento (VESTING, 2015,
p. 140). “Também passado e futuro O sistema jurídico executa a repro- clássica o tempo era tratado como um
são sempre, e apenas, simultaneamen- dução do sentido normativo com base fato ontológico, como um movimento no
te relevantes, são horizontes temporais no emprego sempre atual e contextual espaço, a compreensão que Luhmann
de operações sempre presentes e so- de enunciados jurídicos, assegurando, as- tem sobre o tempo quebra e abandona a
mente podem ser distinguidos como sim, a manutenção das normas jurídicas distinção tradicional entre estática e dinâ-
tais no presente. Sua conexão recursi- (expectativas contrafáticas) existentes. Isso mica, repouso e movimento, fixo e flui-
va é produzida em operações sempre não exclui a possibilidade da reutilização do. Enquanto na concepção tradicional,
atuais” (LUHMANN, 2016, p. 71). das mesmas regras em outras situa­ções. assim também em Kelsen, o fixo sempre
Em sistemas autopoiéticos, como se Mas a reutilização das normas não é mais foi considerado como o lado superior,
pretende que o sistema jurídico agora entendida – como na doutrina historicista em Luhmann, todo fixo é fundado no
também o seja, esse tempo conectado de Savigny – como sinônimo de um pas- fluido, ou melhor, repouso e movimento,
à ideia de momento, o tempo do mo- sado ou tradição que domina o presente estática e dinâmica, que difundem con-
mento, por assim dizer, é constitutivo. e o futuro. E reutilização também não sig- sigo sempre uma ideia de verticalidade
Sistemas autopoiéticos existem apenas nifica mais aplicação de uma lei universal (ou hierarquia), dão lugar a um nexo cir-
no momento de sua execução, no mo- que se estende – como na filosofia prática cular (VESTING, 2015, p. 142) (o fixo não
mento de sua operacionalidade propria- jusnaturalista de Kant e no positivismo ju- apenas pressupõe o fluido, porque não
mente dita, mas não de modo perdu- rídico da Escola de Exegese do século XIX se trata de pressuposição, a ideia sobre
rável, para além do evento (VESTING, – para dentro de um futuro homogêneo o fixo, ela mesma, já remete ao fluido).
2015, p. 140). Identidades (os elemen- que repete continuadamente o presente
tos ou unidades básicas do sistema, a (VESTING, 2015, p. 141). 3.3 ESPECIFICAÇÃO; ESPECIFICAÇÃO
comunicação) não são preexistentes Em especial deste ponto de vista – no FUNCIONAL E CODIFICAÇÃO BINÁRIA
ao tempo, pelo contrário, o sistema que tange à pontualização do tempo – a Sistemas autopoiéticos operam como

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rede de comunicações (VESTING, 2015, p. 142-143). Comunicações norma como forma de comunicação do Direito, e não à expectati-
tomam como ponto de partida as comunicações que lhe an- va individual de pessoas singulares28. Por consequência, o proces-
tecedem, para, logo a seguir – no futuro – encadear consigo samento de expectativas normativas é compreendido como uma
outras comunicações. Comunicações jurídicas (as normas jurí- tentativa da sociedade moderna de, “ao menos no plano das expec-
dicas efetivamente aplicadas) também são sempre um elo (ou tativas, ajustar-se a um futuro ainda desconhecido, genuinamente
link) em uma rede de comunicações que tomam como pre- incerto” (LUHMANN, 2016a, p. 130)29.
missa as comunicações jurídicas anteriores e, por sua vez, dão À vista disso, enfatiza-se, mais uma vez, a estabilidade di-
causa as comunicações jurídicas vindouras (TEUBNER, 1993, nâmica dos sistemas autopoiéticos. O sistema jurídico precisa
p. 105). Tomando como parâmetro o modelo de uso linguís- construir, mesmo pressionado por uma condição de transfor-
tico da matemática, esta interconexão dinâmica e de proxi- mação social acelerada e pela incerteza própria do futuro, uma
midade do sistema também é chamada como “recursão” ou rede de vínculos temporais estáveis, sempre conectando expec-
“interconexão recursiva”27. tativas normativas com expectativas normativas e, por meio dis-
so, ir estabilizando a sociedade como um todo de modo di-
[...] o direito alusivo à proteção contra as nâmico (VESTING, 2015, p. 144). Em suma, o sistema jurídico
emissões pode regular o dano à qualidade deve ter a capacidade de estabilizar a sociedade e mantê-la co-
esa, sem, no entanto, pressupor que ela, a sociedade, perma-
de vida causado pela exposição a ruídos no
necerá inalterável.
interior de uma residência, valendo-se para Entrementes, em Recht der Gesellschaft (Direito da
tanto da diretriz 2.058 da Associação Sociedade), constata-se de modo mais claro que na obra an-
alemã de Engenharia [...] terior, Sociologia do Direito, que o sistema jurídico demanda
uma codificação própria para o seu fechamento autopoiético
Nesse ponto, no que toca ao tipo de elementos emprega- (LUHMANN, 2016a, p. 60). O conceito de “codificação” diz res-
dos, o sistema jurídico não se diferencia em nada dos demais peito a uma dicotomia (binômio ou distinção) que não pode
sistema sociais: é sempre a interconexão (uma rede) recursiva ser desagregada (não pode ser reduzida a algo mais simples)
(interdependente) de comunicações dependentes do momen- de modo mais amplo e que, por sua vez, apenas é utilizada em
to (efêmeras) e que caracteriza a autopoiese. Para descrever o um específico sistema da sociedade, e em nenhum outro (cada
sistema jurídico, apesar disso, como um sistema (autônomo) subsistema social tem o seu próprio código binário). A “codifi-
122 diferenciado na sociedade, há de se conseguir mostrar o que cação” é reservada a estruturas estritamente binárias no sentido
distingue a comunicação jurídica de outros tipos de comunica- cibernético30, ou seja, a um esquematismo bivalente, que só co-
ção como, por exemplo, da comunicação econômica (VESTING, nhece um valor positivo (o lícito) e um valor negativo (o ilícito)
2015, p. 143). Luhmann procura demonstrar a autonomia da co- e, dessa forma, termina por excluir outros valores “terceiros”
municação jurídica orientando-se, em particular, pelos seguintes (VESTING, 2015, p. 144-145).
termos-chave: “especificação funcional do Direito” e “codificação Sempre que são feitas afirmações jurídicas (embora impli-
binária” (LUHMANN, 2016, p. 98). “Somente as duas aquisições citamente) e a validade do Direito é reivindicada de modo cog-
juntas, função e código, permitem que as operações específicas noscível, a comunicação atribui-se ao sistema jurídico31. Isso não
ao Direito distingam-se claramente de outras comunicações e, as- acontece apenas em Juízo, por exemplo, em caso de pedido de
sim, possam reproduzir-se a partir de si mesmas, com impreci- rejeição da ação, mas também pode se dar fora de organizações
sões apenas marginais” (LUHMANN, 2016, p. 101). específicas do mundo jurídico. As afirmações jurídicas, neste úl-
A Rechtssoziologie (Sociologia do Direito), um dos primeiros timo sentido, seriam mais frequentes no contexto de contra-
trabalhos de Luhmann (1983, p. 103), desenvolve e trabalha o tos. Contudo, é possível admitir outras hipóteses. Destarte, por
conceito de autonomia do Direito no contexto de uma análise exemplo, quando estudantes protestam em Seul para dar vazão
funcional teórico-social. Luhmann (2016, p. 56) também se atém à sua rejeição a uma legislação trabalhista aprovada por maioria
a este conceito, o de diferenciação funcional, mais tarde, na me- parlamentar e brigam pela preservação do status quo ante, eles
dida em que, em Recht der Gesellschaft (Direito da Sociedade), estão exigindo, na verdade, recorrendo ao código do “ilícito”, o
ele ainda entende por “especificação funcional” (VESTING, 2015, Direito anterior. A resposta do Primeiro Ministro, por sua vez,
p. 143-144) a orientação do sistema jurídico por um problema de que pretende ater-se à flexibilização da legislação trabalhista,
especificamente social (o de preservar as suas próprias normas), em desprezo ao discurso de proteção contra demissões de pro-
cuja solução bem-sucedida não pode ser substituída por nenhum fissionais iniciantes, também é, por seu turno, uma comunica-
outro sistema funcional e, por consequência, deve ser pulverizada ção jurídica. O novo Direito, relativo às demissões é qualificado
para dentro da sociedade em geral. – em acordo com o Direito (lícito) – como o novo Direito agora
De acordo com Luhmann, essa função especificamente social em vigor (VESTING, 2015, p. 145).
do sistema jurídico consiste, repita-se mais uma vez, na garantia Sendo assim, o código binário do sistema jurídico (lícito/
de expectativas normativas asseguradas contra decepções de modo ilícito) não é nada além do que a estrutura de um método de
contrafático (mesmo que os fatos não correspondam ao que a ex- atribuição que disciplina a oscilação entre licitude, como valor
pectativa estabelece) – eventualmente por meio do poder político positivo, e ilicitude, como valor negativo32. Todavia, o exemplo
sancionado – para o caso de não serem satisfeitas. Neste ponto, o dos estudantes sul-coreanos em protesto torna claro que a co-
aspecto temporal, a segurança da expectativa, faz alusão sempre à dificação do sistema jurídico no nível da observação de primeira

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ordem (Luhmann fala em diferentes ti- nologia jurídica, normas (regras ou prin- ção do passado, o recurso sempre atual
pos de observação) opera com grandes cípios). São apenas os programas (na lin- a arquivos, decisões judiciais, estatutos,
incertezas. Seria totalmente aceitável que guagem da sociologia de Luhmann), as leis, contratos ou publicações científicas
os estudantes, em seu próprio autoen- normas jurídicas (na linguagem jurídica próprias da seara jurídica tornam-se,
tendimento, pretendessem agir politica- corrente), que conduzem a atribuição a então, um apoio para o bom funciona-
mente e que terceiros, como o corres- um ou a outro lado do código. No siste- mento do sistema jurídico, pois, graças
pondente do jornal alemão Frankfurter ma jurídico, essa atribuição ocorre exclu- a estratégias como essas, o sistema ju-
Allgemeine Zeitung, por exemplo, te- sivamente por meio da forma (ou padrão rídico ganha a capacidade de encon-
nham compreendido o protesto dos es- de linguagem) se/então do programa trar orientação diante do horizonte de
tudantes como reação a uma política de condicional (juízo hipotético), mas não um futuro desconhecido (Ibidem). Em
ensino fracassada e não como um argu- mediante programas finalísticos34 ou de suma, quem orienta o sistema jurídico é
mento jurídico, sobretudo se não podia formas novas de procedimentalização do o próprio sistema jurídico.
restar dúvida quanto à correção formal Direito (VESTING, 2015, p. 147).
da criação da lei (VESTING, 2015, p. 146). A partir do momento em que o 3.4 AUTORREFERÊNCIA E HETERORREFERÊNCIA
Por consequência, um manejo estável do sistema jurídico consegue especificar (RE-ENTRY)
código lícito/ilícito apenas pode ser viabi- esses programas condicionais (espe- Distintamente dos sistemas abertos
lizado no nível da observação de segun- cializar as suas normas) 35 para finalida- para o mundo das teorias mais antigas,
da ordem, ou seja, no nível da expertise des próprias (disciplinar condutas, por o sistema imaginado pela teoria dos sis-
profissional, dentro do qual advogados, exemplo), o fechamento operacional do temas é um sistema operacionalmen-
tribunais ou professores universitários sistema jurídico faz avançar o disciplina- te fechado, no qual a abertura somente
conferem (ou não conferem) ao protes- mento e o refinamento da argumenta- é “possível em razão do fechamento”
to dos estudantes alguma relevância aos ção interna ao Direito (imunizando as (LUHMANN, 2016a, p. 76) 37. Em siste-
olhos do sistema jurídico. normas jurídicas e as decisões que ne- mas autopoiéticos, o ambiente somente
A definição formal da observação de las se fundam). Com o auxílio da escrita pode ser reputado relevante por força de
segunda ordem é: a observação de ob- (que foi uma verdadeira revolução tec- contribuições que sejam próprias ao sis-
servadores ou, em outros termos, o ob- nológica), o sistema jurídico constitui tema, ou seja, exclusivamente em razão
servar a observação dos observadores. uma memória sistêmica independente36 das próprias possibilidades informacio-
Do ponto de vista conteudístico, a obser- da consciência individual, inclusive um nais internas ao sistema (VESTING, 2015, 123
vação de segunda ordem tem forte vín- cânone de argumentos jurídicos. p. 147). Para conseguir repertoriar pro-
culo a uma lidar de modo reflexivo com
distinções e, por força disso, no sistema Se o sistema almeja ser completo, acabará incorrendo
jurídico, a distinção lícito/ilícito deve ser em contradições internas. O que, pelo raciocínio inverso,
manejada juridicamente, ou seja, pelos
juristas, e não de modo religioso, ético implica em uma outra conclusão: o preço da coerência
ou político (Ibidem). do sistema é a sua incompletude.
De acordo com Luhmann, o siste-
ma jurídico somente se torna operacio- A partir dessas bases, o sistema pode cessos deste tipo de modo teoricamen-
nalmente fechado quando normas de sempre tomar como referência os resulta- te consistente, Niklas Luhmann recorre
Direito unem-se a normas de Direito já dos das próprias operações (o modo como novamente a uma figura de pensamento
existentes e o esquematismo binário lí- as normas foram aplicadas) e as consequên- trabalhada por Spencer Brown, qual seja,
cito/ilícito é manejado de modo con- cias dessas operações para operações futu- a re-entry (a reentrada) (Ibidem).
tínuo33, conservando o seu padrão de ras (como aprimorar os procedimentos e as Segundo este raciocínio, o sistema
funcionamento. Os estudantes sul-core- rotinas do sistema a partir do próprio funcio- autopoiético dispõe da possibilidade de
anos recorrem à ideia de “justiça”, mas namento do sistema). Um exemplo disso é refletir ou copiar o ambiente para dentro
o Primeiro Ministro faz referência à ob- o que se vê quando o sistema, em seu fun- de si, sempre de acordo com as suas pró-
servância de que foram respeitados to- cionamento, é levado a lembrar constante- prias possibilidades comunicativas. Ou
dos os dispositivos jurídicos no processo mente de suas memórias acumuladas (do seja, por meio da reentrada o sistema au-
legislativo. Desse modo, o caso se torna aprendizado adquirido ao longo do tempo), topoiético adquire a capacidade de per-
claro para o observador que reflete so- graças à possibilidade de recorrer a textos mitir que a distinção volte a entrar naqui-
bre ele: na medida em que no protesto (VESTING, 2015, p. 147) (a lei, por exemplo). lo que ela mesma distinguiu (LUHMANN,
dos estudantes se trate de comunicação Mas não apenas isso. Outro exem- 2016a, p. 76) (que o sistema reexamine
jurídica, se é que o é, esta não é, com plo que também pode e deve ser lem- a demanda trazida pelo ambiente e, tal-
certeza, juridicamente digna de proteção brado é como o sistema, que é capaz de vez, em um segundo momento, incorpo-
(VESTING, 2015, p. 146). aprender com a sua própria operação, re ou reincorpore a diferença). O Direito
Auxiliam para a diferenciação do sis- desenvolve a capacidade de adaptar, distingue-se das normas técnicas, mas
tema jurídico, além, do código binário, sempre que necessário, o saber adquiri- pode transformar normas técnicas em
programas especiais, ou seja, na termi- do às situações sempre novas. A recep- conteúdo do Direito (permitindo, assim,

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que a distinção entre normas técnicas e Direito volte a entrar de que o Direito (o sistema jurídico) oriente-se exclusivamente
dentro de si), porque, antes, distinguiu-se de normas técnicas. pelo código binário lícito/ilícito40.
Essa capacidade interna ao sistema de re-entry (reentrada) tam- Ladeur, citado por Vesting (2015, p. 148-149), faz uma in-
bém é apontada pelo binômio autorreferência/heterorreferên- teressante analogia entre o modo operacional de sistema (au-
cia. Isso se relaciona com a aptidão do sistema para incorpo- topoiéticos) operacionalmente fechados com a situação de um
rar em si mesmo a diferença entre o sistema (autorreferência) cego. O cego recorre a uma bengala para avaliar a estabilidade
e ambiente (heterorreferência) e de poder, assim, observar-se do ambiente que o rodeia, averiguando se esse lhe oferece so-
(LUHMANN, 2016a, p. 52-62), a si mesmo, no nível de segunda lidez suficiente para que continue se movimentando. Com a
ordem com o auxílio dessa distinção (VESTING, 2015, p. 148). ajuda da codificação binária estável/instável, o cego edifica um
No sistema jurídico, essa distinção tem duplo efeito. sistema de orientação operacionalmente fechado ao encadear
Primeiramente, porque a distinção entre autorreferência e he- umas às outras as percepções singulares que ele produz ao tate-
terorreferência, no que toca ao tipo de expectativa, a normati- ar seu ambiente. Isso viabiliza – se ele não deixar de se locomo-
va, dá margem a outros desdobramentos através da distinção ver pela cidade – que ele continue se movimentando com relati-
mais abrangente entre fechamento normativo e abertura cog- va segurança, apesar da bengala não lhe oferecer, em absoluto,
nitiva (LUHMANN, 2016a, p. 77). Isso significa, principalmente, uma descrição, sequer de modo aproximado, do ambiente que
que o sistema jurídico aprende, como nenhum outro sistema, a o cerca. O cego consegue apenas fazer ideias (aproximações)
separar normas (autorreferência) de fatos (heterorrefrência) e, sobre aquilo que o código estável/instável por ele utilizado, lhe
ao fazê-lo, tenta evitar toda e qualquer tendência de suavização fornece em termos de informações (VESTING, 2015, p. 150).
dessa distinção, inclusive todas as tentativas de deduzir normas É justamente por isso que o ponto de partida fundado na
a partir de fatos (VESTING, 2015, p. 148) (como o fez, por exem- teoria da diferença, invocada pela teoria dos sistemas, tem gran-
plo, Émile Durkheim) 38. des desdobramentos teórico-cognitivos. Eis o primeiro: aquilo
No que toca à codificação binária, resulta da distinção que o sistema observa como realidade, não é a realidade como
entre autorreferência e heterorreferência, além disso, vale tal, mas sempre comente aquilo que se apresenta como reali-
acrescentar que a referência a um saber externo somente dade de acordo com a codificação própria ao sistema. Com isso
pode produzir efeitos por intermédio do nível da programa- é incompatível, em especial, a ideia de que um sistema social
ção do código, das leis, das normas jurídicas e das jurispru- pode identificar a realidade “como um todo” (Ibidem). É dizer,
dências (LUHMANN, 2016a, p. 93). É somente porque, no Luhmann admite que o sistema, em seu funcionamento, sem-
124 Direito Civil, exige-se de forma expressa a observância do cui- pre apresentará um “ponto cego”. Logo, tudo que o sistema
dado necessário no trânsito (o exemplo é de Vesting (2015, jurídico aprende sobre o seu ambiente não é um conhecimento
p. 148-149), que faz alusão ao art. 276 do BGB – Código Civil exaustivo sobre a sociedade como um todo, mas, sim, um co-
alemão) no qual o Direito que disciplina a responsabilida- nhecimento apenas e tão somente sobre o seu ambiente.
de pode recepcionar convenções sociais em transformação. Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar, em prin-
É somente porque o Direito público, muitas vezes, faz in- cípio, a visão limitada do sistema (sempre condicionada pelo
tegrar cláusulas gerais em suas estruturas normativas que o seu código binário) sobre o mundo tem vantagens relevantes.
Direito Administrativo, para dar mais um exemplo, pode ape- O cego, para voltar ao exemplo de Ladeur, percebe que a benga-
lar a convenções sociais para referir-se, repulsa de perigos, a la, quando manuseada com habilidade, viabiliza uma boa orien-
probabilidades e experiências da vida cotidiana. tação, isto é, assegura uma alta sensibilidade no que tange ao
ambiente (Ibidem). É por força exatamente, do fechamento do
[...] o interesse de Derrida pela desconstrução sistema e da utilização de apenas uma diferença (estável/instável)
das fundamentações definitivas recuou em que o deficiente visual adquire a capacidade de reconhecer rapi-
damente modelos repetitivos e, deste modo, esboçar um “mapa
relação à demanda pela comprovação de
territorial” relativamente complexo de seu ambiente (Ibidem).
uma conexão existente e o ipso entre o Nesse ponto, reside a vantagem do código binário: é so-
Direito e uma ”justiça vindoura” [...] mente porque os sistemas sociais, em algum momento de sua
história, começam a especificar as próprias operações – assim
Algo parecido também se dá no Direito técnico: como os como uma “célula-mãe” se especifica em células neuronais – e
valores de referência decorrentes da expertise tecnológica po- processá-las apenas de acordo com o próprio código binário (e
dem ser considerados informação juridicamente relevantes, o os programas que dele fazem parte) que eles encontram um
direito alusivo à proteção contra as emissões pode regular o acesso próprio para o ambiente, uma forma própria de proces-
dano à qualidade de vida causado pela exposição a ruídos no in- samento da complexidade desorganizada (esta complexidade é
terior de uma residência, valendo-se para tanto da diretriz 2.058 o ambiente) (Ibidem).
da Associação alemã de Engenharia39, no exemplo de Vesting O mesmo exemplo revela ainda uma outra circunstância: sis-
(2015, p. 149). É exatamente nestas situações que as normas temas autopoiéticos somente podem existir no plural. O sistema
dispõem de um fechamento muito amplo perante condições do jurídico delimita a sua fronteira não apenas em relação ao seu
ambiente que não podem ser determinadas antecipadamente. ambiente natural, como também em relação ao seu ambiente
Deste modo, contudo, de acordo com o raciocínio de Luhmann, social, e, na atualidade, sobretudo, em relação a outros sistemas
o fechamento normativo do sistema jurídico não é afetado des- funcionais ou, como prefere Luhmann, outros subsistemas so-

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ciais, a exemplo da Economia, Política, assim, a bengala do deficiente visual só gico de um material regulatório que se
Artes, Religião, Ciência etc. Economia, polí- faz sentido, só tem a sua razão de ser, só deve pressupor como desprovido de la-
tica, ciência ou meios de comunicação em funciona, na medida em que o ambien- cunas. Os enunciados jurídicos não mais
massa operam do mesmo modo, em con- te coloca à disposição uma complexida- estão situados e outro nível categorial su-
formidade com as codificações binárias (e de acessível para o seu código (VESTING, perior em relação ao seu uso como era
funções) próprias, mas a diversidade de 2015, p. 151). o caso no positivismo jurídico (VESTING,
sistemas (funcionais) autônomos permi- 2015, p. 152).
te ao sistema jurídico utilizar para si como 4 REDE DE INTERCONEXÕES DINÂMICAS E Pelo contrário, as comunicações jurí-
ambiente a complexidade estruturada por RECURSIVAS dicas fazem uso de estruturas sistêmicas
outros sistemas. 4.1 REDE AO INVÉS DE HIERARQUIA e, ao fazê-lo, modificam o seu sentido46
É inaceitável, sobretudo para o sis- O sistema jurídico autopoiético para, na operação subsequente, voltar a
tema jurídico, que outros sistemas fun- não se encontra estruturado em for- utilizar e a transformar a estrutura ante-
cionais, como, por exemplo, o sistema ma de pirâmide42 ou em níveis, ele riormente transformada. O sistema está
econômico, desenvolvam uma autônima não é determinado de cima para bai- constantemente em movimento e, quan-
própria e coloquem à disposição uma xo de modo hierárquico, “mas sempre do trabalha, sempre o faz com base em
complexidade adequadamente estru- de modo heterárquico, ou seja, colate- um movimento duplo: ele não mascara
turada. Não é concebível, por exemplo, ral, isto é, em redes de proximidade”43. elementos repetíveis de situações passa-
que um sistema jurídico autônomo possa Ele oscila entre um evento e outro e das (o que Luhmann chama de “conden-
existir sem juristas profissionais (a impor- é sustentado exclusivamente por seus sação”)47 e mantém estruturas (códigos,
tância da doutrina e da jurisprudência). próprios modos operacionais recur- no sentido jurídico, programas, ou seja,
Na atualidade, portanto, o profissiona- sivos (que fazem referência a si mes- as normas), desde que elas se apresen-
lismo jurídico pressupõe organizações mo). Ele aplica operações a resultados tem como dignas de serem mantidas no
especializadas, como, por exemplo, os de operações e filtra (ou seleciona) por momento da operação (o que Luhmann
escritórios de advocacia, os tribunais, meio de repetição suficientemente lon- chama de “confirmação” 48), sendo este
a administração pública, as instituições ga aquelas formas capazes de manter o segundo movimento. Isso explica, por
de ensino superior etc. Por sua vez, os a estabilidade sob condições dinâmi- sua vez, a atenção da teoria da autopoie-
advogados, juízes e assessores jurídicos cas (o sistema aprende e evolui a par- se está totalmente voltada para a questão
precisam ser remunerados. Todavia, isso tir de suas próprias operações), como, de como é possível estabelecer a repeti- 125
só é possível em uma economia funda- por exemplo, por meio do recurso re- ção cognoscível no sistema em operação
da no dinheiro, globalmente competitiva petido a formas contratuais já experi- (VESTING, 2015, p. 152-153) contínua49.
(VESTING, 2015, p. 151) etc. Em suma, a mentadas, para assim também conse- Em suma, o foco da teoria da autopoiese,
complexidade estruturada do sistema ju- guir solucionar constelações de casos em português coloquial, mas que pela
rídico não existe por si só, antes depende até então desconhecidas (VESTING, sua didática vale aqui recorrer, é explicar
da existência de outros sistemas, como, 2015, p. 152). como é possível “trocar o pneu do carro
no exemplo acima, a economia41. Assim, a teoria dos sistemas consu- com o carro em movimento”.
O exemplo de Ladeur também é bas- ma a transição “de um horizonte de pro- O sistema jurídico em forma de rede,
tante didático no que toca à diferenciação blemas hierarquicamente dedutivo para imaginado por Luhmann, é apresentado
funcional dentro da sociedade moderna. um processo heterárquico (‘de caso para aqui de modo detalhado, porque ele será
O homem deficiente visual também deve caso’) de formação do Direito” 44. No lu- de grande utilidade na tarefa de trocar e
partir do premissa de que há uma ordem gar das etapas indutivas e dedutivas ver- substituir o construtivismo sistêmico hie-
pré-estruturada em seu ambiente (ou ticais do sistema jurídico-positivista surge rarquicamente estruturado do século
seja, de que há outros subsistemas so- uma rede de interconexão horizontal, di- XIX – sobretudo pela jurisprudência dos
ciais). Ele deve, por exemplo, poder to- nâmica e recursiva entre operações, uma conceitos – e que foi levado adiante pelo
mar como ponto de partida a circunstân- “fabricação-justificação” contínua do Normativismo de Kelsen. Nessa pers-
cia de que ruas não são a mesma coisa Direito45. Algo próximo daquilo que su- pectiva, este artigo é um esboço do que
que passeios públicos, de que pessoas gere Tercio Sampaio Ferraz Junior (2015, se pretende sustentar em sede de tese
são, em geral, cordiais umas com as ou- p 149), referindo-se a Felix von Cube, ao de doutorado: uma nova concepção de
tras (e não grosseiras) e de que os cami- falar de uma série de normas fundamen- sistema para Teoria do Direito. Então, e
nhos que ele realiza conduzem-no para tais que vão sendo substituídas, em se- com ele, apresentação de um pouco do
lugares onde ele pode satisfazer as ne- quência, umas pelas outras, por meio de pensamento de Luhmann, mostra-se
cessidades da vida cotidiana, como, por uma regra de calibração. oportuno por dois motivos, pelo menos:
exemplo, o corte de seu cabelo. Se não A rede de interconexão dinâmica do em primeiro lugar, porque o positivis-
houvesse toda esta diversidade de com- sistema autopoiético latera, em especial, mo jurídico não pode ser simplesmente
plexidades estruturadas (multiplicidade a relação entre sistema e operação ou re- substituído por uma arbitrariedade me-
de diferentes subsistemas sociais) o có- gra e decisão. Para a teoria dos sistemas, todológica (VESTING, 2015, p. 153), que,
digo binário – no caso do cego, estável/ o uso do Direito não é a “aplicação” mais nos dias que correm, por exemplo, domi-
instável – seria totalmente inútil. Sendo ou menos obrigatória sob o aspecto ló- na o amplamente difundido “pensamen-

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to da ponderação” (LUHMANN, 2016a, p. 268). E, em segundo completo, acabará incorrendo em contradições internas. O que,
lugar, porque a teoria dos sistemas não foi a única a executar pelo raciocínio inverso, implica em uma outra conclusão: o preço
uma mudança para modelos heterárquicos de ordenação50. da coerência do sistema é a sua incompletude53.
Outras teorias avançadas, por sinal, como, por exemplo, as Luhmann converte o conhecimento da filosofia natural (so-
análises desenvolvidas por Havelock sobre a origem da cultura bre o jusnaturalismo), sensato e seguro por si mesmo, o enun-
(da escrita) grega ou, ainda, os estudos feitos pela filosofia pós- ciado “primeiro”54, na forma do paradoxo, que resta como for-
-moderna (da escrita) de Jacques Derrida (2006, p. 109-120) ma única e ainda possível de saber incondicional (LUHMANN,
também vêm a ser uma reformulação teórica marcada pela di- 2016a, p. 174). Com isso fica mais ou menos suspensa a ques-
namicidade e horizontalidade da forma de ordenação e, nesse tão do início do sistema, do seu principiar, inclusive a questão
sentido, comparável à teoria dos sistemas. Na obra de Derrida, “do poder da distinção primeira entre lícito e ilícito” (TEUBNER,
o tema é debatido em especial, em torno dos conceitos centrais 1993, p. 199), que é redirecionada para o postulado de uma
de “différance” e “itérabilité” (DERRIDA, 2006, p. 79-90). Assim “manutenção do paradoxo jurídico” (VESTING, 2015, p. 155). A
como o sistema proposto pela teoria dos sistemas, realiza um teoria dos sistemas apenas considera como comunicações per-
movimento duplo constante de condensação e confirmação, a tencentes ao sistema jurídico aquelas que asseveram sempre
escrita de Derrida também atrela toda repetição com a ideia uma atribuição aos valores “lícito” e “ilícito”, não se aprofun-
de alteridade (iterabilidade, ou possibilidade de iteração), com dando mais amplamente na questão sobre se é justo o Direito
um deslocamento (ou alteração) e uma prorrogação de senti- processar suas operações de acordo com o código lícito/ilícito
do permanentes, que todo ato de reapropriação de um texto (Ibidem). Em suma, a teoria dos sistemas não é uma metafísica
necessariamente acarreta. Essa ideia de formação recursiva (do jurídica, mas uma teoria que procura descrever a operacionali-
sistema ser construído e se reconstruir a partir de si mesmo) dade do sistema jurídico.
dos sistemas tem que vir a ser adaptada a uma teoria do Direito Muito pelo contrário, diga-se de passagem, Luhmann in-
jurídico-científica e precisa ser mais amplamente elaborada em verte os papéis: a formação do Direito é necessária justamente
suas consequências (VESTING, 2015, p. 153-154). Para tanto, o porque não se pode ficar paralisado diante da constatação do
trabalho de Günther Teubner e, também, de K.-H. Ladeur são, paradoxo. Uma jurisdição ordenada só pode existir quando
sem dúvida, de grande importância. o sistema jurídico institucionaliza mecanismos de “despara-
doxização”55 contínua ou de “desevolvimento” do paradoxo de
4.2 O PARADOXO DO INÍCIO fundamentação (ou seja, de explicar como a operacionalidade do
126 Ao abandonar o princípio da hierarquia, a teoria dos sistemas sistema é possível, apesar do seu paradoxo). Ademais, o paradoxo
também renuncia a ideia, ainda comum no positivismo jurídico, de fundamentação do sistema é transformado, em operação con-
de um ápice sustentador do sistema51. De acordo com Luhmann tínua, em um paradoxo decisório, de acordo com o qual as ques-
(2016a, p. 73), o sistema jurídico deixa de ser garantido “por uma tões jurídicas precisam ser decididas justamente por serem inso-
norma superior referencial (norma fundamental), uma lei supe- lúveis (do ponto de vista sociológico, por exemplo) (VESTING,
rior (Constituição) ou uma instância superior”. O sistema jurídico 2015, p. 243-248). Por seu turno, o desenvolvimento contínuo do
dinâmico e recursivamente interconectado baseia-se muito mais paradoxo decisório é assegurado pela instituição da obrigação de
em um paradoxo, mais exatamente na impossibilidade da aplica- decidir dentro da jurisdição pública (vedação do non liquet56) da
ção do código jurídico a si mesmo. A questão sobre se a distinção proibição da negação do Direito (conforme, por exemplo, o artigo
entre lícito e ilícito – utilizada no sistema jurídico como distinção 300 do Código de Processo Civil alemão57), que, por sua vez, é
última e que não pode ser reduzida a algo mais básico ou ele- sustentada por uma forma de interpretação jurídica (a argumen-
mentar – é lícita ou ilícita, não pode ser decidida no sistema jurídi- tação) totalmente delineada e formatada à medida da decisão
co, não importando através de quais normas jurídicas o código bi- judicial (VESTING, 2015, p. 155-156).
nário, por seu turno, é regulado: é somente a distinção entre lícito Neste contexto, a teoria da autopoiese revela-se como uma
e ilícito – o “ponto cego”, que deve permanecer invisível – o que, oferta (VESTING, 2015, p. 156) para não se envolver de modo
de fato, possibilita observações (afirmações) (VESTING, 2015, nenhum nas questões relacionadas à fundamentação. Como
p. 154) específicas ao Direito52. os próprios sistemas autopoiéticos produzem as estruturas e
Neste ponto, depara-se aqui, novamente, com o problema os elementos (o repertório) de que são constituídos nas redes
já abordado no contexto da Teoria Pura do Direito de Kelsen desses próprios elementos, o desenvolvimento paradoxal do
de os sistemas autônomos, manifestadamente, não consegui- sistema autopoiético inicia-se exatamente no momento em que
rem fundamentar a si mesmos (sem cair em contradições), uma o sistema entra – com a “primeira” comunicação – no “fluxo
compreensão que está associada, em especial, a Turing e Gödel do tempo” (perdendo para sempre toda a sua “inocência”58).
(VESTING, 2015, p. 155). Dito de outra maneira, é como se o pró- No momento em que as operações temporais do sistema po-
prio Kelsen tivesse se dado conta, ainda que de modo implícito dem ser observadas, o sistema já começou a processar (já está
ou indireto, que o preço da norma fundamental é fundamentar o em funcionamento); E somente sob este pressuposto é que se
sistema jurídico com base em algo externo ou alheio ao sistema pode levantar a questão sobre o início do sistema e descobrir
jurídico. Nas palavras dele, fundamentar a norma posta a partir que o início é sempre um mito fabricado no sistema e pelo sis-
de uma norma pressuposta. E este preço, na linguagem de Gödel tema (VESTING, 2015, p. 156).
(2009, p. 100-130), poderia ser traduzido da seguinte maneira: Ademais, o sistema jurídico sempre foi tomado como ob-
o preço da completude é a incoerência. Se o sistema almeja ser jeto de reflexão, após o início do seu processamento, pois só

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quando ele trabalha, quando está em estabelece a différrance justamente na-


sua plena prática, é que pode passar a quele processo elementar “com o qual é NOTAS
ser estudado como objeto de uma aná- colocado o primeiro traço sobre o qual 1 Esta parece ser a compreensão de Thomas
Vesting (2015, p. 131-169).
lise sistêmica. “A práxis jurídica sempre repousa toda diferenciação e toda iden- 2 “A norma fundamental de uma ordem jurídica
opera em uma situação com Direito his- tificação” (DERRIDA, 2006, p. 113), para, não é uma norma material que, por seu conte-
toricamente dado, pois, de outro modo, então, por sua vez, poder “desconstruir” údo ser havido como imediatamente evidente,
seja pressuposta como a norma mais elevada da
ela não poderia ter a ideia de distin- essa diferenciação e essa identificação. qual possam ser deduzidas – como o particular
guir a si mesma como práxis jurídica” Contudo, em publicações posteriores, do geral – normas de conduta humana através
(LUHMANN, 2016a, p. 57). Da mesma sobretudo depois da polêmica sobre de uma operação lógica. As normas de uma or-
dem jurídica têm de ser produzidas através de
maneira, do ponto de vista histórico, não Paul De Man, em 1987, o interesse de um ato especial de criação. São normas postas,
existe um início do Direito (ou se existe, Derrida pela desconstrução das funda- quer dizer, positivas, elementos de uma ordem
como afirma Derrida, ele foi esquecido), mentações definitivas recuou em relação positiva. Se por Constituição de uma comuni-
dade se entende a norma ou as normas que
“mas apenas situações em que era su- à demanda pela comprovação de uma determinam como, isto é, por que órgãos e atra-
ficientemente plausível supor que ante- conexão existente e o ipso entre o Direito vés de que processos – através de uma criação
riormente também se procedia segundo e uma ”justiça vindoura” (justice a venir). consciente do Direito, especialmente, o processo
legislativo, ou através do costume – devem ser
normas jurídicas” (Ibidem). Essa “virada para filosofia prática” desá-
produzidas as normas gerais da ordem jurídica
Neste cenário de tendências, há que gua, por sua vez, em uma concepção da que constitui a comunidade, a norma fundamen-
se alertar para circunstância de que, nos justiça como a experiência do impossí- tal é aquela norma que é pressuposta quando
primeiros anos do século XX, a busca por vel no Direito (VESTING, 2015, p. 158) o costume, através do qual a Constituição sur-
giu, ou quando o ato constituinte (produtor da
fundamentações definitivas também abran- ou como, se assim se preferir, a possi- Constituição) posto conscientemente por deter-
gia as ciências humanas (e não apenas os bilidade constante da desconstrução do minados indivíduos são objetivamente interpre-
estudos de matemática fundamental). Direito62. E aqui, uma vez mais, por cami- tados como fatos produtores de normas; [...]”
(KELSEN, 1998, p. 221).
Entrementes, ela se encontrava, em mui- nhos diferentes, as pesquisas de Derrida 3 Bobbio (1999, p. 19-36) defende expressamen-
tas ocasiões, sob o jugo duvidoso de uma e Luhmann parecem chegar a conclu- te, nesse sentido, que o ordenamento jurídico
busca simplesmente impulsiva e excessi- sões semelhantes. não é um mero conjunto de normas jurídicas,
como parecia sustentar Hans Kelsen, mas, sim,
vamente empolgada por pontos de rup- um conjunto de normas e instituições jurídicas.
tura e brechas nas instituições da socieda- 5 CONCLUSÃO Registra-se, desde já, que não se desconhece
de liberal. Dito de outro modo, apocalipse, É possível, a partir de todo o conte- aqui as divergências que Bobbio mantém com 127
a doutrina de Santi Romano.
crepúsculo da humanidade e declínio do údo abordado, extrair algumas conclu- 4 “A derivação das normas de uma ordem ju-
Ocidente eram palavras de ordem, bandei- sões, são elas: a) o conceito de sistema rídica a partir da norma fundamental dessa
ras levantadas em razão e por conta desta imaginado por Kelsen parece não ser ordem é executada demonstrando-se que as
normas particulares foram criadas em con-
busca (VESTING, 2015, p. 157). mais compatível com o atual estágio da formidade com a norma fundamental. [...]
No contexto de uma crítica filosófi- sociedade moderna; b) por força disso, Se perguntarmos por que a Constituição é
ca, Walter Benjamin (2011, p. 101-120), a noção de hierarquia deve dar lugar ao válida, talvez cheguemos a uma Constituição
mais velha. Por fim, alcançaremos alguma
por exemplo, falava já em 1921 da “ex- modelo heterárquico; c) o conceito de
Constituição que é historicamente a primei-
periência desanimadora da insolubilida- pirâmide deve ser substituído pela noção ra e que foi estabelecida por um usurpador
de última de todos os problemas jurídi- de rede; d) assim como, a norma fun- individual ou por algum tipo de assembleia.
cos”59. A partir desse ponto, Benjamin damental deve ceder espaço à noção de A validade dessa primeira Constituição é a
pressuposição última, postulado final, do qual
desenvolveu uma crítica em torno do paradoxo; e) além, é lógico, do conceito depende a validade de todas as normas de
Direito Moderno, o qual é supostamente de unidade ser, agora, substituído, pela nossa ordem jurídica” (KELSEN, 2005, p. 168).
fundado e moldado no poder e (na via ideia de diferença; f) a qual, por seu tur- 5 A consequência disso é que a noção de “li-
mite” ou “fronteira” talvez seja, como ressalta
da violência)60 – e depositou totalmente no, se vale de dicotomias ou binômios, Thomas Vesting (2015, p. 131), o conceito
o cuidado com o Direito e a Justiça nas sendo, entre eles, o mais fundamental, mais importante para a descrição das caracte-
mãos de um Deus que estaria por vim o binômio sistema/ambiente, de acordo rísticas de um sistema.
6 Dito de modo mais simples, toda afirmação
(VESTING, 2015, p. 157). Outros como com a lição de Luhmann, também segui- toma como pressuposto uma distinção que
Carl Schmitt, interessavam-se menos da por Raffaele De Giorgi. lhe é anterior. Aqui, como destaca Vesting,
por filosofia histórica e teologia do que Espera-se, portanto, com este traba- Luhmann recorre à lição de Platão. Neste sen-
tido, consulte-se Vesting (2015, p. 132).
pelas forças políticas concretas que, em lho, lançar as bases para uma reformu- 7 Se é que é possível falar em essências. Ou,
um mundo dominado por instâncias de lação do conceito tradicional de sistema como adverte Pirro, de Élida, e o seu discípulo,
poder anônimas, ainda estavam em con- jurídico adotado pela Teoria do Direito, Sexto Empírico, se há essências, ou verdades,
não é possível afirmar que elas existem.
dições de produzir o contato direto com bem como pavimentar a estrada para, 8 Este tipo de lógica é o que Vesting (2015,
uma forma autêntica de “originalidade em momento posterior, um futuro artigo p. 133) explica como um “tipo de apriorismo
ontológica”, qual seja, a decisão61. talvez, traçar um paralelo entre a teoria não filosófico” ou de “lógica primitiva da ob-
servação e de sua reflexividade”.
Os primeiros trabalhos de Jacques dos sistemas, compreendida ao modo
9 Como destaca Vesting (2015, p. 133), o con-
Derrida ainda denotam pontos de con- de Luhmann, e a cultura computacional. ceito de forma, sustentado por Brown, pos-
tato com essa tradição do pensamento Mas isso, contudo, já é objeto de um fu- suiria, ao mesmo tempo, automoderação/
original. A Gramatologia, em especial, turo trabalho. autocontinência.

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10 Este problema seria trabalhado, também, para distinguir da Constituição em sentido ju- – de que um lado recorre ao outro, o qual,
por Hans Albert, sob o nome de Trilema de rídico-positivo. Ela é o ponto de partida de um por sua vez, reproduz o primeiro – é a base
Münchhausen (ou Trilema de Agripa). Ele, o processo: do processo da criação do Direito da matemática moderna sobre o inexpectável
trilema de Agripa – referência ao cético gre- positivo. Ela própria não é uma norma posta, e sobre a compreensão da incalculabilidade a
go de mesmo nome – é um termo cunhado posta pelo costume ou pelo ato de um órgão partir da produção sistemática de valores in-
pela filosofia para ressaltar a alegada impos- jurídico, não é uma norma positiva, mas uma trínsecos (LUHMANN, 2016, p. 82).
sibilidade de se provar qualquer verdade norma pressuposta, na medida em que a ins- 28 Se fosse singular, a proposta de Luhmann
garantida, mesmo nos campos da lógica e tância constituinte é considerada como a mais terminaria se assemelhando ao utilitarismo de
matemática. É o nome de um argumento da elevada autoridade e por isso não pode ser Jeremy Bentham. E aí é preciso ressaltar que
teoria do conhecimento que remonta, mais havida como recebendo o poder constituinte Luhmann rechaça qualquer aproximação de
recentemente, ao filósofo Hans Albert e, mais através de uma outra norma, posta por uma sua teoria sistêmica com a proposta utilitarista,
tradicionalmente, segundo Diógenes Laércio, autoridade superior” (KELSEN, 1998, p. 222). pois esta última, aos olhos do sociólogo ale-
a Agripa o Cético. Em suma, se a razão é o 14 Neste sentido Ferraz Jr. (2015, p. 204-205). mão, peca pelo seu excesso de reducionismo
fundamento das coisas, como é possível 15 Ressaltando e explicando em pormenor este (LUHMANN, 2016a, p. 125).
fundamentar o fundamento? Nesse sentido, processo gradativo de fragmentação social, a 29 A função do Direito consiste, em outras pala-
vale aqui uma breve transcrição: “Se o nosso partir do início da Era Moderna, Fábio Konder vras, em possibilitar a formação de expectati-
princípio é levado a sério, apresenta-se, então, Comparato (2006, p. 17-36) traz uma excelen- vas em uma sociedade que, ela mesma, tor-
o segundo problema: quando se exige uma te contribuição acerca do tema. na-se cada vez mais um problema (VESTING,
fundamentação para tudo, então terá que se 16 No mesmo sentido, De Giorgi (2017, 2015, p. 144).
exigir, também, uma fundamentação para os p. 225-228). 30 Cibernético em contraposição, por exemplo,
conhecimentos aos quais foi remetida a con- 17 No mesmo sentido, Luhmann (2004, ao conceito linguístico de código, o code em-
cepção – ou seja, o referido conjunto de enun- p. 457-460). pregado como sinônimo de signo ou símbolo.
ciados – a fundamentar. Isso conduz à uma 18 Habermas (2012, p. 190-210). A este respeito, mais detalhes em Luhmann
situação com três alternativas que parecem, 19 O vocábulo “pessoa” não deve ser compreendi- (2016a, p. 176) e Wiener (1993, p. 48-72).
ou são, inaceitáveis, portanto a um trilema do como sinônimo de ser humano ou indivíduo, 31 Apenas faz parte do sistema jurídico em si [...]
que eu, em vista da analogia existente entre a pois este pode ser usado, em sociologia, como uma comunicação que afirma a atribuição dos
nossa problemática e o problema que o famo- um feixe que concentra em si muitos e diferentes valores “lícito” e “ilícito”; pois somente uma
so barão da mentira teve que solucionar uma papéis sociais ou, de outro modo, um ator que comunicação deste tipo busca e afirma uma
vez, denomino de trilema de Münchhausen” pode encenar muitos e diferentes personagens. interconexão recorrente no sistema jurídico
(ALBERT, 1976, p. 26). 20 Spinoza (2011, p. 12). (LUHMANN, 2016a, p. 67).
11 “[…] se renunciarmos a reconduzir a valida- 21 Como sustentava o jusnaturalismo antigo, de 32 O Direito da sociedade realiza-se mediante refe-
de da Constituição estadual e a validade das Aristóteles, o jusnaturalismo medieval, de São rência a um código, e não mediante uma regra
normas criadas em conformidade com ela a Tomás de Aquino e, também, o jusnaturalis- de produção (seja ela hipotética ou categórica,
uma norma posta por uma autoridade meta- mo moderno, de Samuel Pufendorf. razoável ou fática) (LUHMANN, 2016a, p. 70).
jurídica, como Deus ou a natureza – apenas 22 Em “Ética a Nicômano”, diga-se de passagem, 33 A diferenciação de um sistema jurídico ope-
pode ser que a validade desta Constituição, a Aristóteles assinala como características do di- racionalmente fechado pressupõe que o sis-
128 aceitação de que ela constitui uma norma vin- reito natural, as seguintes: tratarem-se de nor- tema possa operar no nível da observação de
culante, tem de ser pressuposta para que seja mas gerais, serem normas dificilmente modi- segunda ordem, e não apenas eventualmente,
possível interpretar os atos postos em confor- ficáveis, apresentarem-se como normas dadas mas de modo contínuo. Ou seja, que o siste-
midade com ela como criação ou aplicação aos homens pelo cosmos e, por fim, serem ma jurídico seja capaz de observar a sua pró-
de normas jurídicas gerais válidas, e os atos normas com a pretensão de universalidade. pria observação (LUHMANN, 2016a, p. 70).
postos em aplicação destas normas jurídicas 23 Por isso, Luhmann sustenta que códigos (códi- 34 Luhmann parece não ter refletido acerca das
gerais como criação ou aplicação de norma gos binários de reprodução do sistema) e pro- normas programáticas. Não se tem a impres-
jurídicas individuais válidas. Dado que o fun- gramas (as normas, expectativas contra-fáticas) são de que ele seja contra este tipo de norma,
damento de validade de uma norma somente não são encontrados como fatos de qualidade mas que suas reflexões não se debruçaram
pode ser uma outra norma, este pressuposto própria, como, tal qual ideias, levassem uma sobre elas. Sobre as normas programáticas,
tem de ser uma norma: não uma norma posta existência própria acima da comunicação. consulte-se Pimenta (1999).
por uma autoridade jurídica, mas uma norma 24 Uma teoria que prescinde da ideia de essência 35 Ibidem.
pressuposta, quer dizer, uma norma que é ou, melhor dizendo, que é avessa à ideia de que 36 Como bem registra Jacques Derrida, em
pressuposta sempre que o sentido subjetivo existam essências. Este aspecto pós-ontológico, Gramatologia, a língua escrita é um arquivo da
dos fatos geradores de normas postas de por sinal, em muito se afina às ideias de pós-mo- cultura humana e completamente autônomo
conformidade com a Constituição é interpre- dernos como, por exemplo, Jean-François Lyotard, à memória das consciências individuais. Este
tado como o seu sentido objetivo. Como essa em sua obra “A condição pós-moderna”. será um dos argumentos que levará Derrida
norma é a norma fundamental de uma ordem 25 Sobretudo a linguagem – isso é refletido a sustentar a precedência da língua escrita
jurídica, isto é, de uma ordem que estatui atos por Luhmann de modo insuficiente, sus- sobre a língua falada, contrariando, assim, a
coercivos, a proposição que descreve tal nor- tenta Vesting – é o paradigma para uma tradição, em sentido contrário, oriunda da li-
ma, a proposição fundamental da ordem jurí- substância que não é, mas que se torna e, ção de Platão.
dica estadual em questão, diz: devem ser pos- por conseguinte, está em contínua transfor- 37 Escreve Morin (2011, p. 29): “o aberto se incli-
tos atos de coerção sob os pressupostos e pela mação. Transformação da qual também fala na sobre o fechado”.
forma que estatuem a primeira Constituição Saussure e, sobre a qual, Christian Stetter 38 Luhmann (2016a, p. 86 e ss.).
histórica e as normas estabelecidas em confor- prefere o termo “flutuação”. Saussure expri- 39 Essa diretriz refere-se à avaliação de ruído in-
midade com ela”. (KELSEN, 1998, p. 223-224). miu essa propriedade da linguagem em uma dustrial na vizinhança.
12 Esta ideia, ao nosso ver, apesar de arrojada, imagem marcante, a saber: duas vezes por 40 Neste ponto, é preciso fazer alguma ressal-
não é nova, o que não retira, de modo algum, mês, Boguslawski – morador de um vilarejo va ao raciocínio de Niklas Luhmann. Afinal,
o brilho da construção de Luhmann. Em nosso russo – mandava fazer uma fotografia de si. o Direito não pode começar a sua operação
sentir, ideia similar, apresentada de outra manei- Quando, depois de vinte anos, estas fotogra- sem uma reserva de saber que é, por sua
ra, já se encontra esboçada na Ética de Spinoza fias foram colocadas lado a lado, na sequência vez, gerada pela sociedade, num primeiro
(2011, p. 11-48), mais especificamente, quando cronológica de seu surgimento, cada um dos momento, e não pelo próprio Direito. Não
o filósofo holandês discorre sobre a sua ideia de retratos vizinhos mostravam sempre o mesmo existe regra jurídica sem convenções sociais.
“Deus” e a sua tese, apresentada logo a seguir, Boguslawski, mas a primeira e a última mos- É dizer, as regras jurídicas e o sistema jurídico
de que Deus é a única “causa livre”. travam dois homens completamente diferen- como um todo não surgiram a partir de um
13 “Neste sentido, a norma fundamental é a tes. (VESTING, 2015, p. 141-142). nada, de um grau zero.
instauração do fato fundamental da criação 26 A expressão é aqui empregada no sentido de 41 Como bem pontua Fábio Konder Comparato
jurídica e pode, nestes termos, ser designada senso vulgar, do conhecimento do homem leigo. (2006, p. 47), este processo de diferenciação
como constituição no sentido lógico-jurídico, 27 O conceito matemático das funções recursivas funcional dentro do sistema social só se deu

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com o início da Era Moderna, por volta da de que esta norma foi produzida de acordo há justiça sem esta experiência da aporia, por
segunda metade do século XV, e, completa o com a norma fundamental. Nas páginas que impossível que seja. A justiça é uma experiên-
autor, teria sido impulsionado a partir de duas seguem começaremos por considerar apenas cia do impossível. Uma vontade, um desejo,
grandes “molas mestras”, a saber: a filosofia e a ordem jurídica estadual, quer dizer, uma uma exigência de justiça cuja estrutura, não
a sua mentalidade racionalista, bem como a ordem jurídica cuja validade é limitada a um fosse uma experiência da aporia, não teria
difusão do monoteísmo. determinado espaço, o chamado território do nenhuma chance de ser o que ela é, a saber,
42 “Se se pergunta pelo fundamento de validade Estado, e é tida como soberana, quer dizer, apenas um apelo à justiça. Cada vez que as
de um norma pertencente a uma determinada como não subordinada a qualquer ordem jurí- coisas acontecem ou acontecem de modo
ordem jurídica, a resposta apenas pode consis- dica superior. O problema do fundamento de adequado, cada vez que se aplica tranquila-
tir na recondução à norma fundamental desta validade das normas de uma ordem jurídica mente uma boa regra a um caso particular, a
ordem jurídica, quer dizer: na afirmação de que estadual começará por ser tratado sem ter em um exemplo corretamente subsumido, segun-
esta norma foi produzida de acordo com a nor- conta uma ordem jurídica internacional havida do um juízo determinante, o direito é respei-
ma fundamental”(KELSEN, 1998, p. 222). como supra-ordenada ou subordinada àquela tado, mas não podemos ter certeza de que a
43 Aqui, em relação com a função do Direito ordem jurídica” (KELSEN,1998, p. 139). justiça o foi. O direito não é a justiça. O direito
(LUHMANN, 2016a, p. 144). 52 “O paradoxo do sistema é [...] o ponto cego é o elemento do cálculo, é justo que haja um
44 Este parece ter sido o esforço da obra de Tercio do sistema que de fato possibilita a operação direito, mas a justiça é incalculável, ela exige
Sampaio Ferraz Júnior, na medida em que con- do observar. [...] Ele é o fundamento que deve que se calcule o incalculável; e as experiências
juga os estudos de Tópica de Theodor Viehweg permanecer não visualizado, o que faz com aporéticas são experiências tão improváveis
com as lições de Niklas Luhmann acerca da que todo fundamentar tenha caráter dog- quanto necessárias da justiça, isto é, momen-
noção de sistema (VESTING, 2015, p. 152) mático – inclusive a tese de que a distinção tos em que a decisão entre o justo e o injusto
45 Algo próximo, a nosso ver, da concepção rizo- entre lícito/ilícito é introduzida evidentemente nunca é garantida por uma regra”.
mática sustentada por Gilles Deleuze e expli- com razão, porque, de outro modo, não po- 60 Derrida (2007, p. 59-134) dedica grande aten-
cada, aqui no Brasil, por Elton Luiz Leite (2007, deria existir jurisdição ordenada” (LUHMANN, ção a estes estudos de Benjamin.
p. 15-16). Nesse sentido, escreve este último 2016a, p. 234). 61 Baseada em seu famoso conceito de “Estado
autor: “Quando pensamos a árvore jurídica a 53 Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2015, p. 181) de Exceção”. Na situação ou estado de exceção
partir não apenas do seu solo (o Estado), mas parece concordar com esta conclusão. pode-se perceber que a norma jurídica advém
dos seus frutos (a Justiça), percebemos que o 54 Aqui valem as palavras de Hegel (1997, de uma ordem normativa concreta que se apre-
modelo da árvore talvez já não seja suficiente. p. 33) ao afirmar que o problema da lógica é o senta nas situações limites. A soberania como
E é aqui que a Botânica também pode fornece começo, ou seja, fundamentar o fundamento. criadora da ordem política e a ideia de que o es-
uma imagem nova. De fato, além das árvores, Nesse sentido, transcreve-se aqui uma peque- vaziamento do sentido do político ocorre como
há ainda as formações vegetais de natureza na passagem: “Temos como suposto o co- consequência da falta de um espaço autônomo
rizomática, cujas raízes são rizomas. O rizo- nhecimento, que pertence à Lógica, daquele de decisão sobre os critérios do agir político são
ma é uma raiz que troca a profundidade do método segundo o qual, na ciência, o conceito princípios presentes nas suas obras. Escreve
solo pela sua superfície sem fronteiras. As se desenvolve a partir de si mesmo, progride Schmitt (1999, p. 27): “De pronto, quem não
plantas rizomáticas crescem horizontalmente: a produz as suas determinações de maneira vê na medula de todo o direito mais que seme-
suas raízes espalham-se em todas as direções imanente, em vez de se enriquecer pela gra- lhante fim não está em situação de encontrar
possíveis e só visam a verticalidade se for por tuita afirmação de que há outros aspectos e um conceito de ditadura, porque todo o orde- 129
intermédio de um muro que ser quer ultra- pela aplicação da categoria do universal”. namento jurídico é simplesmente uma ditadura
passar, transpor. Nesse sentido, é impossível 55 Mecanismos que mitigam, ou procuram man- latente ou intermitente”.
determinar o número de raízes que servem de ter invisível o paradoxo do sistema durante o 62 “Visivelmente, Montaigne distingue aqui as leis,
apoio ao movimento de uma planta rizomáti- funcionamento do sistema. isto é, o direito, da justiça. A justiça do direito, a
ca, visto que suas raízes são múltiplas, incontá- 56 A expressão latina non liquet, como ensina justiça como direito não é a justiça. As leis não
veis: brotam e nascem conforme as exigências George Marmelstein, é uma abreviatura da são justas como leis. Não obedecemos a elas
de expansão da planta”. frase iuravi mihi non liquere, atque ita iudica- porque são justas, mas porque têm autoridade.
46 Por exemplo, as normas têm o seu sentido tu illo solutus sum, que significa mais ou me- A palavra ‘crédito’ porta toda a carga da pro-
“resignificado” pela jurisprudência a cada nos isso: “jurei que o caso não estava claro o posição e justifica a alusão ao caráter ‘místico’
novo precedente ou entendimento. suficiente e, em consequência, fiquei livre da- da autoridade. A autoridade das leis repousa
47 Ele não oculta a circunstância de que se vale quele julgamento”. Ao declarar o non liquet, o apenas no crédito que lhe concedemos. Nelas
de programas (as normas). juiz romano se eximia da obrigação de julgar acreditamos, eis seu único fundamento. Esse
48 O sistema mantém o sentido das normas, os casos nos quais a resposta jurídica não era ato de fé não é um fundamento ontológico ou
desde que ele, o sistema, compreenda que tão nítida. (MARMELSTEIN) Non Liquet. Lat. is racional. E ainda resta pensar no que significa
o sentido delas, ou elas próprias, devam ser not clear. In the Roman courts, when any of crer” (DERRIDA, 2007, p. 21).
mantidas. E o que leva o sistema a entender the judges after the hearing of a cause, were
que as normas devem ser mantidas? O sistema not satisfied that the case was made clear
compreender que a sua própria autonomia (ou enough for them to pronounce a verdict, they
REFERÊNCIAS
subsistência) frente aos desafios impostos pelo were privileged to signify this opinion by cas-
ALBERT, Hans. Tratado da razão crítica.
ambiente social não está comprometida em ra- ting a ballot inscribed with the letters ‘N. L.’
Tradução: Idalina Azevedo da Silva, Erika Gudde,
zão desta ou daquela norma que não apresenta the abbreviated form of the phrase non liquet.
Maria José P. Monteiro. Rio de Janeiro: Tempo
mais a operacionalidade que dela se espera. (BLACK, 1951). Tradução livre: “Non Liquet,
Brasileiro, 1976. p. 26.
49 É importante constatar que se trata de repeti- do latim, não é claro. Nas cortes romanas,
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e lingua-
ção, não obstante o deslocamento de sentido. quando qualquer juiz, após ouvir uma causa,
gem. Tradução: Susana Kampf Lages e Ernani
Somente quando o sentido é suficientemente não ficava satisfeito, pois considerava que o
Chaves. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2011.
generalizado é que as experiências de empre- caso não havia sido exposto de forma suficien-
p. 101-120.
go podem surtir efeito em novas situações e temente clara a ponto de ensejar a pronúncia
BLACK, Henry Campbell. Black’s law dictionary. 4th
a repetição pode ser identificada e observada de um veredito, eles tinham a possibilidade de
ed. St. Paul: West Publishing Co., 1951.
como repetição. apontar esse fato colocando as letras “N. L.”,
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento ju-
50 O modo de rede, ou em forma de rede (prio- forma abreviada de non liquet”.
rídico. Tradução: Maria Celeste Cordeiro Leite
rizando a horizontalidade), não é uma novida- 57 No Código de Processo Civil brasileiro há dis-
dos Santos. Apresentação: Tercio Sampaio Ferraz
de lançada pela teoria dos sistemas (VESTING, positivo semelhante.
Júnior. 10. ed. Brasília: Ed. UnB, 1999. p. 19-36.
2015, p. 153). 58 O perder a inocência significa que o sistema sabe
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e
51 “Se se pergunta pelo fundamento de validade que é fundado num paradoxo, tem consciência
religião no mundo moderno. 2. ed. rev. pelo autor.
de uma norma pertencente a uma determi- disso, mas opera a partir desta circunstância.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 17-36.
nada ordem jurídica, a resposta apenas pode 59 Assim, também, Derrida (2007, p. 1-58).
DE GIORGI, Raffaele. Ciência do direito e legiti-
consistir na recondução à norma fundamental Transcreve-se aqui um trecho da obra de
mação: crítica da epistemologia jurídica alemã
desta ordem jurídica, quer dizer: na afirmação Derrida (2007, p. 30): “Mas acredito que não
de Kelsen a Luhmann. Tradução: Pedro Jimenez

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIII, n. 78, p. 116-130, jul./dez. 2019


Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

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