Você está na página 1de 31

REVISTA COSMOS

desde 2003 construindo o anticolonialismo


1679-0650

JANEIRO-FEVEREIRO 2022 - N.1

LAIR MIGUEL
EDUCADORA E ESCRITORA
ANTIRRACISTA E ANTICOLONIALISTA
LEIA OS LIVROS DAS EDIÇÕES
CIÊNCIAS REVOLUCIONÁRIAS

COMPROMISSO COM A HISTÓRIA E A CLASSE TRABALHADORA

As edições ciências revolucionárias, selo editorial pertencente a editora

Raízes da América, possui como objetivo principal difundir a literatura

militante de caráter revolucionário, anti-imperialista e progressista no

cenário nacional.

Nossos principais projetos, embora possam, em algum momento,

apresentar conteúdos programáticos distintos, refletem, de todo o

modo, uma carência editorial que se faz fundamental para nosso país e

que, no nosso entender, deve ser promovida exclusivamente para casar

as lutas existentes contra inimigos de classe em comum: o imperialismo;

e a partir deste panorama, traçar literaturas que demonstrem a

esquerda, a todos os progressistas, e a nossa sociedade, quem são

nossos algozes e que métodos podem ser perseguidos pelo ser social

para mudar a trágica realidade que se coloca em cena.

​A lém de reedições, traduções, e teses acerca do resgate do que melhor

de cultural e revolucionário nossa esquerda clássica, exclusivamente,

produziu no Brasil e no mundo no decorrer do século XIX e XX,

acreditamos numa proposta interdisciplinar que pretende trilhar

caminhos muito além das ciências humanas

Entre em contato hoje!

cienciasrevolucionárias@gmail.com

Compre pelo site

https://www.cienciasrevolucionarias.com/loja
REVISTA COSMOS

EDITORIAL
desde 2003 construindo o anticolonialismo

HTTPS://WWW.ANTICOLONIALISMO.ORG/

HTTPS://REVISTACOSMOS.ORG/
em homenagem a EDUCADORA E JANEIRO-FEVEREIRO. 2022 - N.1

ESCRITORA LAIR MIGUEL

A Revista Cosmos em 2020 conseguiu ter um sequência de publicação

muito positiva, já em 2021 foram publicados apenas dois números, pois

foram muitos os desafios nesse período de pandemia, mesmo assim dois

números significou a continuidade da publicação de temas e questões

fundamentais para a luta contra o fascismo e toda forma de opressão. Em

2022 organizamos para que bimestralmente consigamos publicar com

qualidade e intervir diretamente na realidade a partir dos temas que são

caros e importantes para a classe trabalhadora.

Abrimos 2022 com uma grande revista, pois a homenageada nos

proporcionou ler a sua obra inédita e com isso conseguimos antecipar e

identificar uma escritora ainda inédita, mas fundamental para organizar

nossa mentalidade para uma narrativa antirracista, anticolonial e

antimachista. A educadora e escritora Lair Miguel nos deu o privilégio de

lê-la e conhecê-la como construtora de uma narrativa incrível que é do

tamanho de grandes escritoras brasileiras. O tamanho está na sua

capacidade de edificar outra narrativa que revele o Brasil nas suas

dimensões reais e na grandeza de superação de todos os problemas que

são direcionados pela opressão.

A narrativa da educadora e escritora Lair Miguel nos coloca diante da

tomada de decisão do que faremos com nossas vidas na luta direta contra

toda forma de opressão que violem a dignidade da pessoa humana, mas a

narrativa não é dura como podem pensar e é exatamente isso que nos

encanta: a narrativa é leve, doce, bem-humorada e nos anima para viver

com a dignidade que almejamos.

Muito obrigado professora, educadora, escritora Lair Miguel.

Boa Leitura

Editoras e editores da Revista


Sumário
JANEIRO-FEVEREIRO. 2022 - N.1 1679-0650

05      Escritos inéditos de


Lair Miguel

20      Lair Miguel -Uma


escritora para mudar o
mundo

Escritos
literários
inéditos de
Lair Miguel
seleção realizada pela Revista Cosmos

Lair Miguel da Silva


LAIR MIGUEL DA SILVA

Escritos inéditos
JANEIRO-FEVEREIRO. 2022 - N.1

CHIKA

A MENINA
QUE QUERIA ESTUDAR
LAIR MIGUEL DA SILVA

O IRMÃO JOSÉ MIGUEL E A ESCRITORA LAIR MIGUEL DA SILVA


RELEMBRANDO A INFÂNCIA

Ainda me lembro da minha mãe contar que eu


apressei para nascer. Não, eu não nasci de sete
meses como acontece com algumas crianças,
foram só uns dias de adiantamento. Quando
nasci minha mãe ficou preocupada pois
minhas unhas ainda não estavam bem
formadas. Uma amiga dela lhe explicou que
era porque ainda faltava uns dias para eu
nascer, quando completassem os dias, as
minhas unhas ficariam normais. Isso foi em
1979.
Fui crescendo, não muito, meu pai, minha
mãe, meus irmãos e minhas irmãs, todos altos,
porém, eu sempre fui baixotinha. Quando
terminava de mamar a mamadeira
espreguiçava e dizia: “Oh vida dula”. Naquela
época eu ainda não sabia o que é uma vida
dura... Não mesmo, porque a patroa da minha
mãe me dava leite Ninho. Era escondido do
marido, ela calculava, e quando via que o leite
estava para acabar ela falava com a minha
mãe: “Eu separei umas roupas que eu quero
que você capriche mais”, minha mãe já
entendia o código e sabia que era a lata de
leite Ninho que ela havia colocado na mala de
roupas que minha mãe levava para lavar em
casa.
Depois teve um prefeito que distribuía leite
em pó , eu não me lembro qual foi. Mas, lembro
de comer leite em pó com açúcar, grudava no
céu da boca. Quem distribuiu leite também foi
o presidente José Sarney. Tem gente que não
gosta dele, é verdade que nesse governo a
inflação ficou altíssima, mas, pobre não
entende de inflação, pobre quer saber se tem
ou não alimento para saciar a fome.

REVISTA COSMOS PÁG. 08


Me lembro que na época do Sarney nós íamos à
cantina (Associação dos Moradores do Bairro)
buscar o ticket para pegar o leite. Era uma
cartela com trinta tickets, cada dia trocava um,
por um litro de leite. Minha mãe saía para
trabalhar e falava que o ticket estava em cima
da mesa, às vezes nós esquecíamos de buscar o
leite. A tarde ela chegava, ficava nervosa e
dava bronca. No outro dia nós íamos no
armazém levando os dois tickets, aí trocava por
leite e pão. Mas, tinha gente que trocava o
ticket das crianças por pinga e cigarro.
Antes do Sarney foi o Tancredo Neves, ele foi
eleito, mas, faleceu antes de assumir o cargo.
Minha madrinha falava para minha mãe ir à
casa dela à noite, porque na hora do Jornal
Nacional iriam dar notícias do presidente. Ela
falava que o presidente estava sendo castigado
porque falou que nem Deus o segurava
governar o Brasil. Minha mãe concordava.
Depois do Sarney, o próximo presidente foi o
Collor, Fernando Collor de Melo, foi o primeiro
presidente eleito por voto direto após a
ditadura . Esse presidente também distribuiu
leite, nessa época nós já não pegávamos mais,
por causa da idade. Ele não dava o ticket como
o Sarney, era o saquinho de leite, quem não
buscasse no postinho de saúde até determinada
hora ficava sem. Houve muita confusão e
cortaram a distribuição de leite. O presidente
também saiu antes da hora, ele fez umas coisas
erradas, e o povo o tiraram.
Nessa época a moeda brasileira mudou de
nome: primeiro Cruzeiro, depois Cruzado,
Cruzado Novo, depois Cruzeiro novamente,
Unidade Real de Valor (URV) e o Real. 1 URV (
CR$ 2.750,00) = 1 Real. Difícil era converter
esse dinheiro, muita gente não sabia fazer
conta. Antes do Cruzeiro teve também o Réis,
mas desse eu não lembro, minha mãe falava
muito pouco a respeito dele.

REVISTA COSMOS PÁG. 09


Meu irmão mais velho me deu uma
muda de amora. Nós a plantamos,
ele furou a cova e eu coloquei a
muda e a terra. Depois ele me
ajudava regar a plantinha que logo
se tornou uma arvorezinha dando
as frutinhas gostosas. Quando meu
irmão chegava do trabalho eu lhe
dizia: “Vamos pegar amorinha”.
Esse meu irmão gostava muito de
pescar. Um dia ele e o meu
padrinho trouxeram um jacaré. A
carne de jacaré é boa, é igual a de
peixe. Meu padrinho pendurou o
couro do jacaré no portão. Minha
mãe falava: “Chika vai buscar um
pouquinho de sal lá na sua
madrinha”. Eu dizia: “Não mãe, o
jacaré tá lá no portão”. Ela ficava
nervosa e falava: “Vai lá logo
porqueira, o bicho tá morto, é só o
couro”. Eu ia morrendo de medo.
Até que um dia roubaram o jacaré,
ou melhor, o couro, foi um alívio.
Eu pensei que tinham roubado o
couro para passar medo nas
crianças. Mas, minha mãe me
explicou que, o couro de jacaré é
muito valioso, com ele faz, bolsa,
sapato, e vende por um alto preço
no mercado. Nem os animais
escapam da ganância capitalista.
Mas na época eu não sabia o que é
capitalismo, muito menos
Consciência Ecológica, e fiquei
satisfeita com o sumiço do jacaré.
Não me importando de comer a
REVISTA COSMOS PÁG. 10

carne, já que naquela época era


raro o dia que tínhamos alguma
carne.
Lembro de uma vez que passamos muito
tempo sem comer carne, não tínhamos
condições de comprar. O dia que o meu pai
chegou com o embrulho e nós vimos que
era carne, começamos a bater palmas,
ficamos muito alegres. Porém quando
minha mãe entregou o prato para o meu
irmãozinho e ele viu a carne, ele começou a
gritar dizendo que era bicho. Minha mãe
falava: “É carninha meu filho” e ele
chorava e gritava. Ficou com medo e não
quis comer. Nós rimos muito dele.
Teve uma vez que passamos muito tempo
sem comer feijão também. Às vezes não
tinha dinheiro para comprar nenhum
alimento, aí minha mãe ia no armazém
comprava fiado e anotava na caderneta.
Passamos muita necessidade, mas, nunca
dormimos com fome. Tinha vez que a dona
do armazém nos dava balas e pirulitos, era
muito bom.
REVISTA COSMOS PÁG. 11
Minha mãe era muito amorosa
e trabalhadeira. Todos os dias
na hora do almoço e do jantar
ela fazia uma oração, primeiro
o “Pai nosso”, depois ela dizia
assim: “ Senhor meu Deus, peço
que abençoe, multiplique e
nunca deixe faltar o alimento
no meu lar, no lar dos meus
parentes, amigos e vizinhos.
Prepare o alimento para os
moradores de toda a face da
terra. Amém.”
Era muito bom ouvir as
histórias que minha mãe
gostava de contar, mas, o dia
que ela contou que minha
bisavó estava fugindo com
medo, e foi “pega a laço” entre
https://cura.art/portfolio/robinho-
umas bananeiras, eu fiquei santana/
com um nó na garganta. Fiquei
muito triste, entretanto,
naquela época eu não
compreendia nem a metade da
complexidade dessa expressão.
A escravidão no Brasil foi uma
realidade dolorosa, e que
infelizmente não finalizou
com a Lei Áurea, 1888.
REVISTA COSMOS PÁG. 12

Praying Mother
Chantella Norris

De vez em quando, meu pai brincava


com nós, ele pegava as bacias e nós
batíamos e cantávamos “Marcha
Soldado” aí ele gritava “sentido” e nós
colocávamos a mão na testa. Tinha vez
que ele lavava nossos pés e chinelos. A ESCOLA
Ele esfregava bem forte um pé da Demorou, mas enfim chegou o tão
nossa havaiana , depois colocava o par sonhado dia de ir para escola. Me
junto e perguntava: “Qual tá limpo e lembro que no primeiro dia minha
qual tá sujo”? irmã me deu banho para eu ir à
Houve uma vez, que surgiu uma escola. Eu falei que já tinha sete
grande quantidade de bicho-de-pé. anos, dava conta de tomar banho
Meu pai falou que não era para deixar sozinha. Minha irmã fingiu não
nós brincar com terra e era para nos ouvir, e me deu uma “faxinada”,
manter o dia todo de calçado fechado como ela e minha mãe gostavam de
para evitar os bichos. Minha mãe falar. Vesti uma saia azul e uma
falou, como que eu vou manter os blusinha branca de manga fofa.
meninos calçados eles não tem Levei os cadernos em uma pastinha
sapatos. No outro dia cedo meu pai preta que o meu pai me deu, era
comprou sapato para mim, minha usada, mas, era bonitinha. (Tinha
irmã, e meu irmão. muita criança que levava os
Antes de chegarmos à loja meu pai materiais no saquinho de arroz).
olhou nossos pés e falou “Meu Jesus, Minha irmã amarrou o lápis na
não adiantou nada eu lavar o pé borracha para não perder.
doceis”, a maioria das ruas não tinham Quando cheguei à escola, só se
asfalto, a poeira era muita. Aí ele viu ouvia choro, muito choro. As
uma moça lavando a calçada e pediu a crianças não queriam deixar os
mangueira emprestada e lavou de familiares irem embora. A hora de
novo nossos pés para que pudéssemos despedir, minha irmã falou: “Não
experimentar os sapatos. Os sapatos vai chorar não”, mas eu já estava
tinham cheirinho de chiclete. chorando, silenciosamente é claro,
[...] pois, achava um exagero o
escândalo daquelas crianças
Eu tinha muita vontade de ir para birrentas. Eu pensava será que
escola, tentava adivinhar o que estava essas crianças não querem
escrito nos papéis. Eu perguntava: aprender ler, escrever, não querem
“Mãe aqui tá escrito assim”? E falava estudar?
alguma coisa segundo minha
imaginação. Minha mãe dizia: “Não é
isso que está escrito não. Fica calma,
quando ocê for para escola, ocê vai
aprender ler e escrever”. Eu ficava
muito preocupada, as filhas da patroa
da minha mãe eram pequenininhas e
já iam para escola, mas eu tinha que
esperar completar sete anos. Um dia
eu falei que queria fazer “Jardim da
infância”, minha mãe falou para eu
deixar de bobeira.

REVISTA COSMOS PÁG. 13


Minha mãe lavava e passava roupa na
casa dos outros, fazia faxina também.
Além de trabalhar nas casas na cidade,
teve uma época que ela trabalhou na
roça, na colheita de café. Essa roça não
era muito longe, ela me levava de
companhia, nós íamos a pé. Durante todo
o percurso eu ia tagarelando na cabeça
da minha mãe que andava preocupada,
pois estava esperando o sexto filho. Eu
ficava tentando adivinhar se era menino
ou menina. Também escolhia vários
nomes para a criança. Às vezes minha
mãe falava: “Chika fica caladinha só um
pouquinho”.
Por fim, o neném chegou, uma menininha.
Porém, antes da chegada da minha irmã ,
minha mãe foi dispensada do trabalho,
acho que o patrão ficou com medo de que
ela passasse mal lá na roça. Ele alegou
que o serviço havia acabado. Minha mãe
ficou muito triste porque ela ainda
precisava comprar algumas coisas. Certa
manhã minha mãe viu uma turma que ia
para roça e falou: “É, só eu que fui
dispensada”. Como eu não podia fazer
nada apenas guardei parte da tristeza da
minha mãe no meu coração.
Nessa época minha irmã mais velha
estava aprendendo “corte e costura”, ela
fez um vestido para nenenzinha , ficou
uma gracinha. Minha irmã mamava na
minha mãe, mas o leite não era somente
dela. Minha mãe falava que tinha que
reservar um peito porque a tarde a
mulher vinha buscar leite para o neto
que nasceu doentinho. Minha mãe
contava que sempre amamentava outras
crianças, desde que meu irmão mais
velho nasceu. Em troca as pessoas davam
rapadura e milho de canjica, dizem que é
bom para aumentar o leite.
REVISTA COSMOS PÁG. 14
O ensino médio foi muito difícil para mim,
trabalhava durante o dia de doméstica e
estudava à noite, queria muito fazer
faculdade. Porém os professores não
orientavam como deveríamos fazer para
entrarmos na faculdade, naquela época não
havia o Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM). Alguns professores até comentavam,
mas era apenas com um grupo seleto de
alunos do qual eu não fazia parte.
Teve um dia que eu não aguentei e na hora do
recreio eu pedi que a professora me
explicasse sobre um curso que ela havia
comentado com os colegas lá na sala. Ela
falou que aquilo não era para mim. Em
seguida ela ficou desconsertada e disse que já
havia passado o período de inscrição, e que
quando ela soubesse de outro curso iria me
avisar. Nunca me avisou.
Nessa época eu adoeci, tive uma anemia
muito severa, tinha dificuldade para estudar,
não conseguia memorizar o que havia
estudado. Mas, não desisti, em 1997 eu
terminei o ensino médio e comecei a luta para
conseguir entrar na faculdade.
Meu pai havia achado uma lista telefônica do
município de Uberlândia no lixo. Eu consegui
encontrar o número do telefone da
Universidade Federal de Uberlândia e passei
a ligar periodicamente para saber a data da
inscrição do vestibular que na época era feita
pelos Correios. Para conseguir ligar era
preciso ir ao orelhão, às vezes tinha outras
pessoas querendo telefonar também, aí eu
tinha que ficar aguardando na fila. Teve um
REVISTA COSMOS PÁG. 15

dia que tinha muita gente na fila, quando


estava quase chegando a minha vez, eu
lembrei que estava apenas com o cartão,
tinha esquecido o papel com o número
anotado, a sorte foi que a minha sobrinha
estava comigo e ficou guardando o lugar para
mim enquanto eu corri para buscar o papel.
Todos os anos a madrinha do prédio me dava presentes.
Eu ficava ansiosa esperando. O primeiro presente que
eu lembro de ter ganhado foi um boneco que mamava
mamadeira, o nome dele era Gluglão. Eu ganhei
também uma boneca que quando aperta a barriga dela,
ela chora, o nome dela é Lilita, ganhei uma boneca que
tinha cabelo branco e meus irmãos falavam: “Benção
vovó” e eu ficava com raiva. Às vezes minha madrinha
trazia brinquedos para meus irmãos também. Uma vez,
meu irmão ganhou um helicóptero muito bonito,
chamava Supermáquina. Nessa época, nós havíamos
mudado de religião e quando meu irmão ia orar ele
dizia: “Jesus abençoa a Supeimáquina, a guitarra, o
violão e a caixa de som”.

Lair, a boneca e sua irmã Ana Maria


REVISTA COSMOS PÁG. 17

Miguel da Silva
Lair Miguel

UMA ESCRITORA PARA


MUDAR O MUNDO
Lair Miguel

UMA ESCRITORA PARA


MUDAR O MUNDO

TULIO BARBOSA
PROFESSOR DO INSTITUTO DE GEOGRAFIA DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

REVISTA COSMOS PÁG. 20


A ANÁLISE DE UMA OBRA INÉDITA É ALGO RARO,
POIS A OBRA PRECISA SER EXPLICITADA PARA
QUE SE TENHA A DIMENSÃO REAL DA MESMA. O
TRABALHO DA ESCRITORA E EDUCADORA LAIR
MIGUEL APRESENTA UMA NARRATIVA QUE SE
ORGANIZA COMO COMPOSIÇÃO ENTRE UM MUNDO
VIVIDO E UM MUNDO QUE GOSTARIA DE VIVER,
MAS NÃO SE TRATA DE UMA ORGANIZAÇÃO
NARRATIVA ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO, MAS
UMA CONSTRUÇÃO DAS PALAVRAS QUE
APRESENTA A NARRATIVA COMO POSSÍVEL. A
OBRA INÉDITA DA PROFESSORA LAIR
ENCONTRARÁ, NÃO TENHO DÚVIDAS, EM POUCO
TEMPO GRANDE REPERCUSSÕES POSITIVAS QUE
SE AVOLUMARÃO PELA INTUIÇÃO LITERÁRIA
DESSA GRANDE ESCRITORA.
LAIR ESCREVE COM UMA GRANDE ATENÇÃO CADA
PARTE DE SUA VIDA E AO MESMO TEMPO
APRESENTA A TOTALIDADE DE SUA VIDA COMO
INTEGRALIDADE DE UM MUNDO AINDA EM
CONSTRUÇÃO. ELA NÃO FAZ UMA BIOGRAFIA,
NÃO SE TRATA DE DIZER SOBRE SUA VIDA, MAS
COMO SUA VIDA É UMA RELAÇÃO PERMANENTE
ENTRE O MUNDO QUE TODOS NÓS VIVEMOS. LAIR
É UMA ESCRITORA QUE FAZ O REALISMO PAUSAR
DIANTE DE UM ROMANTISMO REVOLUCIONÁRIO E
EDIFICA TODOS OS VALORES DE UMA ESCRITA
DIALÉTICA QUE MOVIMENTA ESCALAS E
ATRIBUTOS SOCIAIS, POLÍTICOS, ECONÔMICOS E
CULTURAIS.

REVISTA COSMOS PÁG. 21


QUANDO LI A PRIMEIRA VEZ “CHIKA: A MENINA
QUE QUERIA ESTUDAR” COMPREENDI INÚMERAS
DIMENSÕES DESSA OBRA DE ARTE TÃO INCRÍVEL
E COMO A MESMA PODERIA UM GRITO CONTRA
TODA FORMA DE OPRESSÃO, NA SEGUNDA VEZ
QUE A LI CONSEGUI OBTER O MÁXIMO DE
APROVEITAMENTO DE SUAS CONSTRUÇÕES
GLOBAIS DE VIDA E SUA INTUIÇÃO ENQUANTO
NARRADORA DE UM SISTEMA DE MUNDO QUE SE
VIVIFICA PELA INTENSIDADE DAS QUESTÕES
EXISTENCIAIS. “CHIKA”, PORTANTO, É UMA
INTUIÇÃO QUE VIVE EM CADA MENINA QUE
DESEJA DESTRUIR O RACISMO E A OPRESSÃO. O
MAIS IMPORTANTE É QUE NÃO SE TRATA DE
LIVRO DE PROTESTO OU UMA NARRATIVA PARA
CRIAR PROTESTOS, MAS UM LIVRO DE AMOR
PELA VERDADE E PELA LIBERDADE E QUE SUA
LEITURA LEVA A UMA RUPTURA COM A
CONSTRUÇÃO DE TODA FORMA DE OPRESSÃO. O
PROTESTO QUEM FAZ É A NARRATIVA QUE
VAMOS VIVENCIANDO E A POESIA DE LAIR
ENQUANTO NARRATIVA É UMA RUPTURA QUE
VAI SENDO MOSTRADA PELAS DIVERSAS
SITUAÇÕES VIVIDAS POR UMA CRIANÇA QUE
DESEJAVA APENAS APRENDER E DEPOIS ADULTO
DESEJA ENSINAR. O DESEJO É O PONTO DE NOSSA
EXISTÊNCIA, QUANDO ACUMULADOS COM O
CAPITALISMO NOSSOS DESEJOS SÃO DE CONSUMO
IMEDIATO, MAS QUANDO APRESENTADOS COMO
RUPTURAS ALMEJAMOS A REVOLUÇÃO E A
DESTRUIÇÃO DE UM MUNDO QUE APENAS
OPRIME.

REVISTA COSMOS PÁG. 22


“Chika” é ao mesmo tempo Lair e
toda as mulheres negras
brasileiras que viveram na
transição de uma sociedade rural
para um urbanismo ainda
vivificado pelo coronelismo e pelo
poder dominante. Lair nos
apresenta um cerrado feito de
gente e uma gente que é feita de
um cerrado que somente Lair pode
nos mostrar. As plantas, os
animais, o solo e as pessoas são o
cerrado que Lair nos apresenta e
nos leva sempre a pensar na
alteração de uma situação quando
os elementos apresentados são
colocados em cenas diferentes e
nos fazem compreender
argumentos tão decisivos para
pensar o tempo presente. Lair nos
mostra o mato e a cidade, a
indústria e a caça, os ciganos e as
patroas, os filhos e os pais, a
família e o mundo. A narrativa de
Lair é revolucionária, pois não
permite que a leitura tipifique
aventuras ou devaneios, mas nos
colocam diante de árbitros da
situação e decidimos como
acompanharemos a narrativa, mas
em pouco tempo todas as
possibilidades de distanciamento
dos julgamentos são preceitos
antirracistas, anti-machistas e
anti-opressão.

REVISTA COSMOS PÁG. 23


A narrativa de “Chika” é inédita,
não na composição de temas e
problemas, mas na ordem do
discurso que apresenta uma
menina que vive e uma menina
que continua a viver o sonho de
estudar, mas o estudo não é o fim e
nem o meio, o estudo é a condição
da própria existência, então, Lair É PRECISO EXISTIR
edifica uma credibilidade para PARA LAIR DENTRO
uma menina do cerrado que
DE UMA LÓGICA QUE
argumenta com o mundo. Os
argumentos e a credibilidade SUPERE O MUNDO
narrativa se fazem não pelas QUE SE CIVILIZOU
diversas situações, mas pela PELA VIOLÊNCIA E
integralidade da obra, pela
DESTRUIÇÃO; ASSIM,
totalidade das páginas que podem
ser lidas em diversas LAIR EVOCA OUTRA
combinações. A narrativa é linear CIVILIZAÇÃO E ESSA
e lemos sem distanciarmos do NASCE DO CERRADO,
tempo presente, mas também a DA CIDADE EM
narrativa é circular e pode nos
CONSTRUÇÃO, DAS
fazer retornar aos mesmos temas
várias vezes e não se trata de QUESTÕES
repetição e sim de compreensão de CULTURAIS QUE
uma teogonia que precisa ser PARTEM DA LUTA
descrita a partir do cerrado por
CONTRA O RACISMO
meio de edificações de temas que
nos voltam, pois o mundo ainda
não foi para nenhum lugar. Lair
quer que o mundo vá para um
lugar melhor e seus temas tão
amplos que podem ser lidos
combinando diversas situações
fazem com que seu livro se torne
único. Lair narra múltiplas
direções que sempre ecoam no seu
princípio: o conhecimento como
procedimento único para existir.
É preciso existir para Lair dentro de uma lógica que
supere o mundo que se civilizou pela violência e
destruição; assim, Lair evoca outra civilização e
essa nasce do cerrado, da cidade em construção,
das questões culturais que partem da luta contra o
racismo. Lair é uma artista que tem plena certeza
de seu tempo e sabe perfeitamente o espaço que
vive e assim nos leva para viver com ela para
sempre, ou seja, quem a ler não conseguirá
abandonar as similitudes entre o mundo construído
e o mundo negado. Lair apresenta a construção de
um mundo que nega as mulheres negras um espaço,
mas ao mesmo tempo Lair apresenta as
contradições desse mundo e por meio dessas edifica
uma nova disposição para existir: uma disposição
que ecoa uma posição e ninguém que a ler poderá
ficar sem buscar um novo fôlego para exterminar
todo racismo e opressão. O livro de Lair é um livro
que não é de protesto, mas fará com que cada leitor
e leitora busque esse protesto como ruptura
definitiva de um sistema de mundo colonizado. Lair
é uma escritora anticolonial, uma escritora que
imprime a pausa do tempo nas artes e pensamentos
de crianças e o movimento de uma intelectual que
busca essa tranquilidade infantil, mas que na
verdade era repleta de questões e problemas, e
mostra como cada ponto precisa ser
exaustivamente narrado. A exaustão da narrativa
não se dá pelo volume de palavras, pois as palavras
vão sendo processadas de tal forma que o leitor e a
leitora se sentirão em alguns momentos com
vontade de resgatar aquela menina negra e pobre
de sua vida tão exaustiva e, de repente, descobrem
que essa vida continua em milhares de crianças.
Lair nos deixa sem fôlego, pois nos revela uma
cmposição colonialista em cada argumento e busca
a superação imediata na própria narrativa
REVISTA COSMOS PÁG. 25
Lair é uma escritora que elenca
o humor como arma da crítica.
Sua obra também pode, com
deve, ser lida como humor. Lair
apresenta ao mesmo tempo uma
narrativa humorística, realista, Lair cria em nós
romântica e moderna. O humor memórias que
sublinha as questões que se
passamos a vivenciá-
avolumam como tragédia e a
tragédia somente ocorre
las como nossa e seu
quando o riso deixa de ser uma otimismo flui por todo
condição vital da narrativa, mas nosso espírito e como
a tragédia somente vem quando seu eu tivesse lido um
encontramos os ecos na
desses livros feitos
realidade que vivemos e Lair
cria para nós memórias. para nos sentir bem e
A arte de criar memórias que pensarmos melhor,
não vivemos é um talento como se fosse um livro
incrível de uma escritora que
que nos ajude a
tem como tema a família e o
cerrado num mundo que se
entender o mundo e
organiza para tornar sempre não nos conformarmos
sua vida como uma condição de com o mundo, mas
superação. Lair nos mostra aceitarmos que no
como superar essa condição de
mundo existem
aprisionamento de um mundo
que faz com que o sofrimento situações que foram
pareça regra, pois para Lair o criadas para serem
sofrimento é uma condição que superadas.
precisa ser deixada para trás
sempre e esse sempre é o que
move sua narrativa.
Encontramos em cada situação
problema que a escritora nos
apresenta imediatamente uma
solução: o otimismo e o amor
pela verdade.

REVISTA COSMOS PÁG. 26


REVISTA COSMOS PÁG. 27
NÃO SE TRATA DE OTIMISMO
DE AUTOAJUDA, MAS UM
OTIMISMO LITERÁRIO QUE NOS
APRESENTA A VIDA COMO
VIDA E NUNCA COMO
PERCURSO PARA A MORTE.
LAIR ME FEZ COMPREENDER
TODA SUA ESTRUTURA
NARRATIVA COMO CONDIÇÃO
DE SUPERAÇÃO DO
SOFRIMENTO. LAIR NOS
MOSTRA SEU SOFRIMENTO
PARA QUE NÓS NÃO
SOFRAMOS. LAIR É UMA
ESCRITORA SOLIDÁRIA COM
SUAS LEITORAS E LEITORES E
SEMPRE QUE APRESENTA UMA
SITUAÇÃO DIFÍCIL NÃO DESEJA
QUE TENHAM UM TÉRMINO
NARRATIVO PROCESSADO
PARA UM MAL-ESTAR, AO
CONTRÁRIO TODA TRAGÉDIA É
APRESENTADA COMO UMA
POSSIBILIDADE PARA
CONSTRUIR UM CAMINHO
REVOLUCIONÁRIO.

REVISTA COSMOS PÁG. 28


Lair é minha escritora preferida. Ela
conseguiu apresentar um lado humano
que vamos esquecendo nas narrativas
literárias, um lado humano que evoca
a arte como princípio da felicidade e o
conhecimento como uma verdade que
precisa nos fazer feliz, mas não essa
felicidade passageira, sim uma
felicidade que precisa ser
compartilhada permanentemente. Lair
é uma construtora de memórias
coletivas que colocam em evidência ao
mesmo tempo o Estado, a família, a
ANTÔNIO CÂNDIDO
religião, a natureza e a sociedade. Sua
narrativa impressiona pela capacidade
de transitar por temas e situações que
em outros escritores e escritoras
seriam blocos oclusos; assim, Lair é
uma escritora essencialmente dialética
de seu tempo e que permite a
construção de uma história do futuro.

Se o grande Antônio Cândido lesse Lair


Miguel escreveria como a verdade e a
realidade não são exageros na composição
narrativa e o vínculo entre o vivido e o
escrito teria se tornado uma experiência
social de todos e todas leitoras. Uma
experiência social que se avoluma na
prática social contra as narrativas racistas,
machistas e opressoras.

REVISTA COSMOS PÁG. 29


LAIR É A VOZ QUE FALTAVA NA
COMPOSIÇÃO DE UMA
NARRATIVA QUE NOS FAZ
EXISTIR COM UM PROPÓSITO:
BUSCARMOS A FELICIDADE
COLETIVAMENTE. PARA QUE
EXISTA A FELICIDADE É
IMPORTANTE A LUTA DIRETA
CONTRA TODAS AS FORÇAS DO
MAL.
LAIR É UMA ESCRITORA QUE
INAUGURA UMA NARRATIVA
ANTICOLONIAL E QUE NÃO SE
DEIXA SEDUZIR POR
PRECIOSISMOS ACADÊMICOS OU
FÓRMULAS NARRATIVAS
PRONTAS, MAS BUSCA UMA
COMPOSIÇÃO ENTRE POESIA,
VIDA E LIBERDADE.

REVISTA COSMOS PÁG. 30


fale@anticolonialismo.org

https://revistacosmos.org/

Você também pode gostar