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REVISTA COSMOS desde 2003 construindo o anticolonialismo

1679-0650
MARÇO-ABRIL - N.2 - 2022

HISTÓRIA SOCIAL
ORG. PROFA. DRA. REJANE MEIRELES A. RODRIGUES
LEIA OS LIVROS DAS EDIÇÕES
CIÊNCIAS REVOLUCIONÁRIAS

COMPROMISSO COM A HISTÓRIA E A CLASSE TRABALHADORA

As edições ciências revolucionárias, selo editorial pertencente a editora


Raízes da América, possui como objetivo principal difundir a literatura
militante de caráter revolucionário, anti-imperialista e progressista no
cenário nacional.
Nossos principais projetos, embora possam, em algum momento,
apresentar conteúdos programáticos distintos, refletem, de todo o
modo, uma carência editorial que se faz fundamental para nosso país e
que, no nosso entender, deve ser promovida exclusivamente para casar
as lutas existentes contra inimigos de classe em comum: o imperialismo;
e a partir deste panorama, traçar literaturas que demonstrem a
esquerda, a todos os progressistas, e a nossa sociedade, quem são
nossos algozes e que métodos podem ser perseguidos pelo ser social
para mudar a trágica realidade que se coloca em cena.
​Além de reedições, traduções, e teses acerca do resgate do que melhor
de cultural e revolucionário nossa esquerda clássica, exclusivamente,
produziu no Brasil e no mundo no decorrer do século XIX e XX,
acreditamos numa proposta interdisciplinar que pretende trilhar
caminhos muito além das ciências humanas

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Sumário
MARÇO - ABRIL - 2022 - N. 2 1679-0650

Editorial - 04
História Social - org.
Profa. Dra. Rejane Meireles A.
Rodrigues - 08
A lógica da sobrevivência entre os
pescadores artesanais de São
Francisco-MG -09
Cassiano Ricardo, Jorge Amado e
as ideias de nação e democracia no
Brasil do Estado Novo. -22
FAZENDA GAMELEIRA: trabalho e
cotidiano - 37
Cotidiano e trabalho: imagens como
construção de memória no Distrito
de Engenheiro Dolabela - 49

REVISTA COSMOS desde 2003 construindo o anticolonialismo

EDITORIAL -
PROF. DRA. REJANE MEIRELES A. RODRIGUES
MARÇO-ABRIL DE 2022 - N. 2

A História Social é o eixo deste dossiê, em tempos de


desmonte dos direitos sociais e da naturalização do trabalho
sem amparo social por parte do Estado, precisamos pensar e
discutir temas que estão voltados a trazer à tona a exploração
e as mazelas do cotidiano. Isso vem cumprir uma das funções
da História, que é a de provocar o debate, a análise e o
questionamento sobre esses conflitos, além de suscitar uma
reflexão ampla com o maior número possível de grupos que
compõe a sociedade.
O local de análise dos artigos é o Norte do Estado de Minas
Gerais, e como conceito que os permeia destacamos o de
trabalho, cabendo destacar que são quatro artigos, sendo que
três discutem trabalho e um discute o conceito de identidade.
No entanto, existe um eixo que liga todos eles, uma vez que os
quatro estão entrelaçados pela História Social.
No campo metodológico, os autores analisaram a oralidade, as
imagens, a literatura e a imprensa, possibilitando pensarmos
não somente nos sujeitos, nos espaços e nos processos
históricos, abrindo, assim, brecha para a reflexão sobre a
produção da fonte oral e os encaminhamentos metodológicos
de como problematizar a imprensa, a fotografia e a literatura.
Vale ressaltar que o Norte de Minas teve uma formação
histórica, em relação ao trabalho, de muita exploração,
poucos direitos sociais concedidos aos trabalhadores, e a
sedimentação de uma prática de uso de mão de obra barata
no campo, que se estendeu para a cidade com a mudança do
foco em relação à formação das primeiras indústrias na
região.

04
Desde colonos, meeiros, vaqueiros, boias frias, até os
trabalhadores braçais das empresas localizadas nas cidades
mais populosas da região norte do estado, e pescadores nas
margens do Rio São Francisco, o trabalho ao longo do tempo e
pelo espaço do Norte de Minas teve e tem uma trajetória de
exploração, de não valorização e principalmente de pouco
engajamento por parte de muitos trabalhadores na luta por
seus direitos sociais. Logo, o texto do professor Reinaldo
Pereira vem nos chamar atenção para esta luta dentro da
Industrial Malvina, localizada em Engenheiro Dolabela, no qual
os trabalhadores resistiram em todas as instancias ao
fechamento desta empresa.
No tocante à pesca, também percebemos estes
comportamentos de exploração e pouca relevância social
para esta prática tão antiga, da qual a trajetória de
reconhecimento passou por muita exploração, como
apresentado pelo professor Roberto Mendes em sua tese de
doutorado, cujo recorte tornou-se o texto que ele apresenta
aqui. As relações dos pescadores com o Rio São Francisco, a
existência de uma cooperativa, e mesmo os direitos sociais
adquiridos em tempos de piracema, são questões analisadas
por Mendes.
A exploração, tema que infelizmente se reproduz também no
campo, é o enfoque abordado por Silvana Ferreira no artigo
que ela nos apresenta ao trazer as memórias dos
trabalhadores da Fazenda Gameleira, localizada em Brasília
de Minas. Este artigo é fruto do terceiro capítulo da
dissertação intitulada: “Nós vivia nos tempo do cativêro:
vivências e trajetórias de trabalhadores rurais brasilminenses
(1970 / 90)”, título que também nomeia o artigo aqui
apresentado e foi recortado de uma frase dita por um
trabalhador ao ser entrevistado por Silvana, o que
lamentavelmente reflete as condições de trabalho análogas à
escravidão ocorridas em pleno século XX.

05
Desde colonos, meeiros, vaqueiros, boias frias, até os
trabalhadores braçais das empresas localizadas nas cidades
mais populosas da região norte do estado, e pescadores nas
margens do Rio São Francisco, o trabalho ao longo do tempo e
pelo espaço do Norte de Minas teve e tem uma trajetória de
exploração, de não valorização e principalmente de pouco
engajamento por parte de muitos trabalhadores na luta por
seus direitos sociais. Logo, o texto do professor Reinaldo
Pereira vem nos chamar atenção para esta luta dentro da
Industrial Malvina, localizada em Engenheiro Dolabela, no qual
os trabalhadores resistiram em todas as instancias ao
fechamento desta empresa.
No tocante à pesca, também percebemos estes
comportamentos de exploração e pouca relevância social
para esta prática tão antiga, da qual a trajetória de
reconhecimento passou por muita exploração, como
apresentado pelo professor Roberto Mendes em sua tese de
doutorado, cujo recorte tornou-se o texto que ele apresenta
aqui. As relações dos pescadores com o Rio São Francisco, a
existência de uma cooperativa, e mesmo os direitos sociais
adquiridos em tempos de piracema, são questões analisadas
por Mendes.
A exploração, tema que infelizmente se reproduz também no
campo, é o enfoque abordado por Silvana Ferreira no artigo
que ela nos apresenta ao trazer as memórias dos
trabalhadores da Fazenda Gameleira, localizada em Brasília
de Minas. Este artigo é fruto do terceiro capítulo da
dissertação intitulada: “Nós vivia nos tempo do cativêro:
vivências e trajetórias de trabalhadores rurais brasilminenses
(1970 / 90)”, título que também nomeia o artigo aqui
apresentado e foi recortado de uma frase dita por um
trabalhador ao ser entrevistado por Silvana, o que
lamentavelmente reflete as condições de trabalho análogas à
escravidão ocorridas em pleno século XX.

06
Cristina Dias Malveira pesquisou acerca do estudo de projetos
voltados para a identidade nacional e processos políticos. Ela
discutiu especificamente as militâncias políticas e os projetos
de nação dos literatos Cassiano Ricardo e Jorge Amado nos
espaços da literatura e da imprensa durante o Estado Novo,
alinhavando este dossiê com uma reflexão sobre Democracia,
conceito e prática tão caros nos tempos atuais.
Desta forma, prezados leitores, deixamos aqui o convite para
a leitura, reflexão e debate que, quero crer, os artigos lhes
provocarão.Espero que as inquietações que por ventura esta
leitura provoque tenham encaminhamentos de pesquisa tão
significativos para vocês quanto estes quatro textos têm para
o Norte de Minas, e para o Programa de Pós Graduação em
História da Universidade Estadual de Montes Claros -
Unimontes.

Profa. Dra. Rejane Meireles A. Rodrigues


Unimontes

07
História
Social
org.
Profa. Dra. Rejane
Meireles A. Rodrigues
ROBERTO MENDES RAMOS PEREIRA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES
CLAROS - UNIMONTES

A lógica da
sobrevivência entre
os pescadores
artesanais de São
Francisco-MG. 09
Este texto tem o propósito de abordar a questão da
sobrevivência entre os pescadores artesanais da cidade
norte-mineira de São Francisco. É baseado em minha tese de
doutorado em História pela Universidade Federal de
Uberlândia, apresentada e defendida em 2015, intitulada
“Sobre(vivências): modos de vida, trabalho e
institucionalização dos pescadores artesanais de São
Francisco-MG (1960-2014)”. Tratar desse assunto ainda hoje
se mostra como tarefa relevante no meio acadêmico visto que
a lógica da sobrevivência entre os pescadores artesanais,
seja no período de fartura de peixes ou no de escassez, ao
que parece, segue critérios próprios, muitas vezes
negligenciando a continuidade de sua própria pesca ou ainda
a legislação que proíbe a pesca ilegal ou mesmo o ciclo de
reprodução dos peixes, ou seja, nem mesmo questões
ecológicas, ao que tudo indica, quando se trata da própria
sobrevivência, ficam em segundo plano na lista de
prioridades desses pescadores artesanais.
Na referida tese acima, discuti no capítulo 2 como se deram
as experiências dos pescadores artesanais em dois momentos
de suas vidas no rio São Francisco, um tempo passado de
grande fartura, e outro mais atual, de escassez e falta de
peixes. Diversos aspectos foram abordados, tais como a
legislação e os órgãos de fiscalização, principalmente no
período de transição entre fartura e escassez, ou seja,
basicamente nas décadas de 1980 e 1990, ou ainda as
principais razões para a diminuição das espécies no leito do
rio. Aqui não me aterei a esses pontos, mas apenas ao
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comportamento desses pescadores que parecem seguir uma


lógica um tanto individualista no trato com o meio ambiente
em que trabalha e vive ou mesmo na sua relação com os
outros pescadores
PESCANDO NA FARTURA
Um dos nossos entrevistados, morador da cidade de Januária,
o senhor Binú, bem relatou o que, em geral, os pescadores
vivenciavam nas décadas anteriores à década de 1980: “o
surubim, a gente pegava surubim à vontade, à vontade, o
surubim, curimatã e outros peixes”1 . A fartura de peixe era
uma realidade em todo o São Francisco, na quantidade e na
variedade.
Era tão grande a fartura que muitos dos pescados eram
dispensados pelos pescadores, priorizando os peixes maiores
ou os mais saborosos. Exemplo disso era o que ocorria na
pesca do cari, uma espécie menos apreciada pelos pescadores
em relação aos outros. Dois dos pescadores entrevistados,
“seu Dió” e o senhor Januário, nos relataram que era comum
os pescadores jogarem os peixes caris pescados nas “crôas”
(faixas de areia na orla ou no meio do rio), servindo aos
montes, como alimento para outros animais. O senhor
Januário lembra que quando era criança e pescava com o pai
a fartura de peixe era tão grande que quando passavam nas
“crôas” do rio o que via eram esses peixes descartados:
“ninguém queria comer cari não, urubu comia que nem
cachorro”, concluiu o pescador.2
Durante a pesquisa, foram entrevistados pescadores das
cidades mineiras de São Francisco, Januária, Três Marias e
São Romão, e em todas as ocasiões, o saudosismo e a
exaltação dessa fartura foram percebidos nas falas desses
pescadores. Fotos, entrevistas, jornais, relatos de viajantes,
todas as fontes me apontaram que a abundância de peixes
neste período, independentemente do seu tipo, era de
impressionar. A piscosidade aí existente era tamanha que foi
caracterizada com uma “feição de milagre” por Moojen
(1940), autor citado pelos irmãos Alexandre Godinho e Hugo
Godinho3 , e qualificada como “fabulosa” por Carlos Lacerda
(1965), em seu relato de viagem à região como membro da
União Nacional dos Estudantes, no início da década de 1960,
identificando aí peixes que chegavam a 1,80m e 70 Kg.

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Essa situação compartilhada pelos ribeirinhos ao longo do
São Francisco, em certa medida, favoreceu para a
construção de um jeito de viver a vida entre os pescadores
aí presentes. Se fora do rio São Francisco, em geral, no que
se refere às suas casas e às suas condições econômicas e
sociais, o que se via era uma população majoritariamente
pobre e carente, quando se referia ao rio a lógica era
outra: a da abundância e da fartura. Nessa direção,
vivenciava-se uma certeza entre esses pescadores ao se
dirigirem ao rio em busca de comida para si e suas
famílias. Essa noção apareceu em vários relatos dos
pescadores e pescadoras: “Você já saia, já podia ir até na
certeza que você já vinha com o pão dentro de comer, era
baratinho, mas você tinha o pão certo”4 , ressaltou o
senhor Antônio. Na mesma direção, a senhora América
Geralda da Silva confirma essa constatação do passado:
Ó... lembro como hoje. Data de.... década de 70, por aí.
Porque nessa década ele tinha bastante água ainda. Era um
rio que você podia acreditar: não, vou buscar um dinheiro
hoje. Você podia sair pro rio, poucas horas você chegava
com um peixe, tava com um dinheiro na mão, né?5 Era
baratinho, mas você tinha o pão certo, porque naquele
tempo a dificuldade era pra você vender o peixe, porque
pegar era mais fácil. Não é igual hoje, que a dificuldade é
de você ter o peixe pra vender e antigamente não, a
dificuldade era pra vender o peixe, porque era pequeno
demais e tinha muito peixe, tinha muito peixe. (...) Vendia
ali baratinho aquele negócio todo. (...). O peixe que saia
mais era o surubim. Se você pegasse o surubim, meu
amigo, de qualquer maneira você vendia, era mais um
peixe branco, Curimatá, pirá, pirá também não tinha valor
naquela época, não tinha valor. Cansemo de pegar peixe e
salgar pra fazer os fardos pra mandar pra Bahia, vender
na Bahia
Nessa última fala, do senhor Vanilson, o que se percebe é
análise do pescador sobre o valor do peixe naquele
contexto, muito baixo, dada a fartura existente. Nessas
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condições, a sobrevivência era garantida pela grande


quantidade de peixe que o rio oferecia para o consumo
direto, mas como fonte de renda, de modo a tornar o peixe
produto de venda, isso dificilmente ocorria.
Esse relaxamento na
fiscalização sobre o
trabalho pesqueiro no São
Essa desvalorização dos peixes neste Francisco, percebido a
período parecia refletir na própria partir das entrevistas, fez
desvalorização do trabalho dos com que fosse possível
homens e mulheres que faziam da identificar uma prática que
pesca um meio de vida. Se o os próprios pescadores
crescimento demográfico da cidade reconhecem ter exercido
se intensificou a partir da segunda em seu trabalho diário: a
metade da década de 1970, como matança indiscriminada de
visto no capítulo anterior, isso peixes. Neste processo, as
significa que até esse momento a técnicas utilizadas para a
vida do campo era o local de morada captura do peixe nem
de grande parte da população. A sempre se davam por meio
desvalorização do seu trabalho e do das usuais varas de pescar,
peixe capturado era tão latente em redes ou tarrafas. Para
suas vidas que, em face da fartura capturar um maior número
do pescado no dia a dia, muitos deles de pescado, a utilização de
preferiam jogá-lo fora ou dá-lo para técnicas rudimentares,
algum parente ou conhecido a atualmente consideradas
sentir-se totalmente anulado num ilegais, se dava sem
comércio que não o reconhecia o qualquer impedimento.
valor do seu trabalho. Apesar de Analisando a situação,
tanta fartura e de um acesso livre ao pressionado pela condição
rio, um aspecto que chama atenção vivenciada no momento de
na prática pesqueira desses sua fala, ou seja, a falta de
profissionais artesanais é a pesca peixes no rio São Francisco,
predatória, para que se extraísse o entre alguns pescadores
máximo possível de peixes numa só artesanais, foi possível
pescaria. Em algumas de suas falas é notar nos discursos de
evidente até a utilização de recursos alguns pescadores uma mea
que hoje, no século XXI, são tidos culpa no que se refere às
como ilegais. Mas isso só era formas utilizadas em outros
possível porque havia um certo tempos. Muitos deles
relaxamento na fiscalização naquele reconhecem em suas
contexto em que a exploração do trajetórias profissionais um
meio ambiente, seja nas matas ou passado marcado por tipos
nos rios, era algo usual. de pesca predatória:

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E a gente matava o peixe com a maior crueldade, né?
Fazia a rapa do Timbó e o Tingui, você rapava aquela rapa
do Tingui ou Timbó, batia na água e aquela água por onde
passava, distante seis, oito, dez quilômetros, descia
matando o peixe, mas não tinha tempo de peixe que não
morresse e eu era fanático naquilo (Sr. Fabiano, São
Francisco-MG, 11/09/2013).

O arrastão era uma rede que antigamente era feita de


caroá, né? De um mato, de um cipó que tem no cerrado.
Então a gente tirava e tecia. (...) Então tinha os
arrastões, a gente dava os lances de arrastões pra pegar
uma quantidade de peixe. Tinha um produto chamado
Timbó, né, batia na água, aí os peixes ficavam boiando
porque a água amargava muito, aí era hora de eles fechar
o círculo, e todo peixe ficava preso tipo um balaio. Então
era muito bonito. (...) quase nada ficava, porque arrastava
tudo de uma vez (Dona América Geralda da Silva, São
Francisco-MG, 05/05/2012).

Tinha aquela pescaria. Eu acho que foi aquela pescaria


que acabou mais com o peixe, o Surubim. Porque [era]
uma pescaria que você botava o trem no chão arrastando
a rede grossa, surubim batia, mas não furava. Eu tinha Pesca de arrastão

uma rede...metia o pau essa rede (Sr. Paulo Sérgio, São


Francisco-MG, 04/01/2013).

As redes de “caceia” era rede que andava submersa, e


matava muito peixe. Que o peixe naquele tempo não
conhecia o que era rede, eu comecei a pescar com eles
[referindo-se a dois amigos com os quais aprendeu a
pescar]. Era anzol, corda, nós matava muito peixe e aí eu
gostei da pescaria e continuei, mas ai já veio através da
Piracema7 , depois de muito tempo a SUDEPE
[Superintendência de Desenvolvimento da Pesca], que a
primeira fiscalização foi a SUDEPE (Sr. Vanilson de Jesus,
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São Francisco-MG, 30/07/2013).


Elencar a utilização do timbó, cipó do cerrado Olha, eu aprendi foi isso. Eu gosto da
com um poder de envenenar os peixes após ter profissão, eu gosto de mexer dentro d’água.
o seu sumo exprimido na água, ou das redes de Eu gosto de ficar mais é lá no mato vendo a
natureza. Eu gosto da natureza. Eu gosto de
caceia, capazes de cobrir uma grande área do água. Então eu aprendi a fazer isso. Quando
rio e de modo indiscriminado arrastar todos os saio pra fora, fico doidinho querendo ir pro
tipos de peixe com os mais diferentes rio. Num agüento ficar fora não. [E
tamanhos ali existentes, foi um meio de alguns complementa, ao associar este trabalho à sua
pescadores anunciarem que a forma de pescar saúde íntegra:] Pra te falar a verdade, eu fora
era outra, de forma rudimentar e longe de [da água] fico com o corpo mais ruim do que
qualquer regulamentação por parte de algum tando (sic) dentro da água. Já acostumei.
[Mais adiante revela o que vivencia todos os
órgão fiscalizador. Há relatos entre os dias]: As leis estão rigorosas demais, tá muito
pescadores que alguns já chegaram a pescar difícil. Você toma chuva, toma sol, depois você
duzentos peixes num único dia. O caráter pega no sol quente o dia todo, de noite você tá
rudimentar e artesanal desse trabalho em São morto. Tem hora que você chega na beira do
Francisco era percebido na falta de elementos rio, tem que acender o fogo ... É molhado. Eu
mais modernos para o seu desenvolvimento. não sei como que eu não sinto nada hoje. Eu
Assim, a utilização de barcos e canoas feitas de já fiz tantas estripulias, porque faz parte da
profissão. Eu meio que fico adoentado e eu
madeira, bem como o uso de redes feitas com ponho as mãos pro céu e dou graças a Deus...
elementos da natureza (fibras, matos, etc.) e 63 anos, desde menino dentro d’água e não
ainda os meios de captura dos peixes sinto nada 8
(envenenamento, rede de caceia,etc.), faziam
da pesca neste período uma atividade que por Notei nos relatos desses pescadores uma
si só revelava as condições de trabalho contradição bastante problemática.
daqueles que a desenvolviam. Apesar de expressarem uma
Se a lógica da pesca em tempos de fartura era importância do rio São Francisco,
a de explorar, capturar, retirar o máximo exaltando-o como meio de
possível de peixes do leito do rio, sem se sobrevivência para suas famílias, esses
preocuparem com o futuro ou a continuidade próprios pescadores, em outras partes
dessa fartura, quando o peixe começou a se das entrevistas, expressaram grande
tornar escasso, parece que o critério foi o tristeza pela atual situação do rio,
mesmo, ainda que confrontando, agora sim, principalmente pela drástica
leis e órgãos fiscalizadores que proibiam a diminuição do número de peixes em seu
pesca predatória. leito. Ao que parece, essa visão do rio
como mantenedor das populações
E O PEIXE SE TORNOU ESCASSO. ribeirinhas está mais associada à uma
experiência construída num passado
A partir das entrevistas dos pescadores e da
análise do contexto em que se deram as não muito distante, falas resultantes de
principais leis e criação de órgãos memórias em torno daquele tempo de
fiscalizadores contra a pesca predatória, abundância de peixes e no qual a
percebi que a partir da década de 1980 aquela opulência do rio garantia-lhe a
fartura de peixes no rio São Francisco foi sobrevivência, do que uma visão
significativamente minimizada por diversos originada de suas vivências mais atuais.
fatores nas décadas seguintes, que vão do
assoreamento do rio, da contaminação das
águas do rio São Francisco, do barramento do
rio (construção de barragens e hidrelétricas),
da diminuição dos índices pluviométricos indo
até a própria pesca predatória, que,
conjuntamente, deram outro tom à pesca no
rio São Francisco. De modo geral, atualmente,
muitos trazem consigo visões contraditórias
sobre a atividade pesqueira. Assim, prazer e
repulsa, posturas de apreciação e desagrado
compartilham espaço na fala dos pescadores,
construindo olhares ora distintos, ora
semelhantes. Não é difícil, por exemplo, nos
depararmos com visões como a do pescador
Manuel que, mesmo entendendo a pesca como
uma profissão difícil, não deixa de expressar o
sentimento pelo que faz:
REVISTA COSMOS PÁG. 15
Mesmo em meio a tantos fatores de tensão, Saulo Jackson de Araújo Brito (2012),
dentre tantos aspectos dos modos de vida como pesquisador da conjuntura nas
desses pescadores e que permanecem até margens do São Francisco, identificou
hoje, sendo, pois, um dos mais diversos tipos de trabalhadores nesse
característicos da vida às margens do rio espaço, mostrando que ali se
São Francisco, é a constante presença das encontram não apenas pescadores, mas
vazantes, ilhas no leito ou nas porções também vazanteiros, areeiros,
marginais do rio destinadas à agricultura. tombadores, revelando, ao final, que
O peixe sendo escasso ou não, as plantações nesse espaço esses trabalhadores
nessas áreas sempre são frutíferas, forjam coletivamente modos de vida,
contribuindo diretamente na uma cultura aliada às mudanças
sobrevivência não somente dos pescadores, ocorridas nesse lugar, nas relações
como na vida de muitos outros ribeirinhos. sociais e de trabalho, colocando-os
A dinâmica da plantação nas vazantes é como sujeitos de suas próprias
sempre orientada pelo ciclo da natureza. histórias. Com a escassez de peixe
Seca e cheia, estiar e chover constituem evidente, um aspecto presente na vida
muito mais do que fenômenos da natureza dos pescadores é a necessidade de
para as pessoas que plantam nas vazantes, procurarem locais onde há uma maior
mas uma renovação constante das presença do peixe, o que pressupõe que
esperanças de que a comida sempre estará eles estejam cada vez mais distantes de
no prato de suas famílias. Em geral, o onde anteriormente pescavam. Assim,
calendário anual é dividido entre esses se antes a captura do peixe era uma
dois períodos em torno dos quais a vida é garantia diária, próximo mesmo do
organizada: o tempo das chuvas, local de morada do pescador, agora há
geralmente os meses de novembro a uma necessidade de se criar
março; e o tempo da seca, de abril a acampamentos, moradias provisórias
outubro, quando as águas do rio abaixam e geralmente feitas nas ilhas, crôas ou
o terreno se mostra bastante fértil para margens que servem de abrigo para os
diversos tipos de plantação. Nas pescadores durante o período de pesca,
entrevistas, muitos pescadores revelaram o qual pode durar dias ou até semanas.
que agora no período de escassez de peixes O pescador Manuel relata que o
suas vidas não giram apenas em torno do acampamento no qual trabalha fica nas
rio, mas no complexo rio-vazante: margens do rio, uma “casinha” onde
guarda as suas tralhas. Segundo ele,
Plantava, plantava. A minha roça eu “cada um faz o seu. Você faz o seu aqui,
nunca larguei. Eu pescava as horas, né? E você tem sua rede e o seu barco. Se você
eu só pescava de anzol na hora de meio dia quiser fazer junto com o meu, você faz.
pra tarde ai amarrava anzol e tal, não Lá hoje só tem quatro [pescadores] e
mexia só com pescaria não, mexia com roça dois barcos. Eu vim ontem, o outro
e pescando. (Bernaldino, pescador de São rapaz veio. Nós retornamos amanhã. Lá
Romão - MG) fica sem ninguém. Ninguém mexe lá
não”9 .
Mas agora melhorou mais, porque eu Servindo-lhe de abrigo, durante os dias
planto minha vazante, pesco e sou de pesca, esses acampamentos
aposentado (Paulo Sérgio, pescador de São compõem o cotidiano dos pescadores
Francisco-MG) artesanais como uma “segunda casa”
que, mesmo provisória, é um
referencial para o seu acesso ao rio, à
vazante que geralmente é ali cultivada
e ao seu lugar na sociedade como um
homem que vive do rio.

REVISTA COSMOS PÁG. 16


Devido às grandes distâncias entre a casa dos pescadores e os acampamentos
nos quais se instalam por um período, duas realidades vivenciadas por eles são
bastante visíveis. A primeira é a utilização de barcos a motor como uma
necessidade no trabalho na pesca com o objetivo de diminuir o esforço físico e o
consequente cansaço nesta tarefa de locomoção do barco. A segunda é relativa à
rotina neste espaço de trabalho, já que muitos dos pescadores saem para pescar,
deixando seus lares, levando alguns mantimentos, roupas e suas tralhas de
pesca; colocados no barco, só voltarão quando tiverem um resultado satisfatório
na realização do seu trabalho, o que muitas vezes não acontece. Ao se
instalarem nesses acampamentos, suas acomodações geralmente são precárias,
feitas, muitas vezes, com pedaços de pau, palhas e lonas. Essas acomodações
precárias se devem ao fato de que na época das chuvas tudo aquilo estará
debaixo d’água, sendo, portanto, desnecessário construir acomodações
resistentes e duradouras. Além disso, a constante mudança de lugar para outros
pontos do rio também é outro motivo para a construção de um acampamento
precário, dando-lhe um caráter provisório.
Em geral, a decisão sobre em que ponto do rio São Francisco se fará um
acampamento é tomada tanto pelo critério da fartura de peixes naquele ponto,
quanto pela presença (ou não) de outros pescadores, visto que o rio, ao que
parece, é constantemente disputado pelos próprios pescadores. Onde um grupo
está pescando, em regra, outros não se aproximam. Nesses locais é realizado o
que eles denominam de “lance”, um espaço que pode chegar a trezentos metros,
o qual é previamente limpo (tirando-lhe paus e outros possíveis obstáculos do
rio) por um ou mais pescadores, para que esses possam lançar suas redes
livremente. Esse trabalho de preparação do lance é o que constitui o direito de
acesso àquela faixa do rio pelos pescadores que o exerceram. Nessa dinâmica, o
direito de pescar onde o próprio pescador limpou seu “lance”, constantemente,
se torna um ponto de tensão entre os pescadores, tanto entre os próprios
pescadores artesanais como entre esses e os amadores. O pescador Manuel
Ribeiro relata como esse processo ocorre:

Tem vez que você limpa um lance de rede aqui, você gasta um mês, dois ali
gastando dinheiro, um cara chega, não ranca um pau e quer apossear daquele
lance de rede. Aí tem existido muito, a confusão é entre eles mesmo. Porque eu
acho direito o seguinte: vamos limpar um lance de rede ali? Vambora, porque
uma andorinha sozinha não faz verão. Nós vamos um grupo aí de 3 barcos, seis
pessoas, aí você faz o lance de rede, ele fica sendo seu, todo ano você vai pra ali,
não vai perturbar ninguém que ta limpando o lance, porque todo mundo tem o
dele, eu tenho o meu 10 .

Assim, mesmo já sabendo que pescar é uma atividade coletiva, as relações de


solidariedade aparecem entre os pescadores artesanais nessa tarefa de limpar o
rio e compartilhar um espaço de lance principalmente como uma necessidade, já
que o trabalho isolado é um tanto desgastante. Nos acordos informais criados
nessas relações, o acesso a um espaço do rio São Francisco para desenvolver seu
trabalho vai se reproduzindo nas combinações tácitas entre esses profissionais.
Documento algum existe, mas, ao que parece, regras são instituídas de modo
informal entre eles, numa clara noção de que, mesmo tendo disputas entre os
pescadores artesanais (e também com outros tipos) por um espaço no rio, ainda
assim, parece prevalecer a noção permeada de valor de que o rio é de todos, “é
da nação”.
Na entrevista com o senhor Higino, constatei uma típica família de pescadores,
REVISTA COSMOS PÁG. 17

cujos ensinamentos do ofício são passados de pai para filho, visto que seu pai foi
pescador, sua esposa pescadora e todos os quatro filhos seguiram o mesmo
caminho. Ao informar-me que aprendeu a pescar com o seu pai, e que este só
pescava de anzol, o senhor Higino faz referência às técnicas de pesca que estão
sempre se modificando ao longo do tempo. Ele aponta como foi o seu método de
aprendizado: “aprendi a pescar com pai. Agora... Mas pai nessa época pescava só
de anzol e tudo. Ele não sabia pescar uma tarrafa. Sabia nada e nada. Eu aprendi
a tecer uma rede, uma tarrafa por conta própria, eu agradeço que ninguém me
ensinou”, completa. De todos os pescadores que relataram esse aprendizado
construído no seio familiar, selecionamos algumas falas que revelam a figura do
pai como principal referência para a iniciação no mundo do trabalho:
Eu tenho trinta anos só de carteira. Praticamente quando eu comecei a
entender por gente né? Eu já sabia o que que era água e aprendi a pescar
com meu pai (Manuel, 25/02/2012).

Eu nasci aqui mesmo, não foi em São Francisco, mas foi no município. Desde
a idade de 8 anos que eu pescava mais meu pai. Meu pai era pescador
(Mariano, 05/05/2012)

Nossos avôs, nossos pais ensinou a gente trabalhar de todas as maneiras,


não só da pesca, mas todo jeito de roça. Eu mesmo trabalho em qualquer
lugar, capino, roço, corto de machado, de tudo eu faço um pouquinho. Por
quê? Porque aprendi com meus pais, não foi só pesca. Nós vivemos de pesca
(Dona América, 05/05/2012)

Além dessa característica que aponta a família ou o trabalho coletivo como


parte das atividades pesqueiras, há ainda uma forma de organização do
trabalho pesqueiro em que os pescadores artesanais, não possuindo os
instrumentos de pesca (“tralhas”, redes, barcos, etc.), acabam indo trabalhar
para alguém que os possui. Isso ocorre não apenas devido à falta de
instrumentos de trabalho, mas porque o próprio trabalho da pesca exige
essa cooperação, de modo que são raras as ocasiões em que um pescador
trabalha sozinho. Nessas relações, acordos são forjados entre os pescadores.
Neles, os proprietários dos instrumentos de pesca acabam por impor aos que
não os possuem uma condição de trabalho. Nesse formato, o produto da
pesca é dividido a partir de um acordo de porcentagem para cada um, entre
o pescador e o dono dos instrumentos de trabalho, como é o caso do
pescador Manoel Ribeiro, que nos relatou sobre o barco que utiliza para a
pesca: “Tenho não, eu tô pescando de ajudante mais um colega meu. Tem
uma sociedade aí. Mas o meu barco mesmo tá em Três Marias. Tem o barco e
o motorzinho” 11. Dona Paulina também nos informou que o seu marido, o
senhor Januário, já trabalhou muito para outro pescador, “seu Pindô”, e nos
explicou como funciona esse contrato:
Às vezes você pesca, você é pescador. Aí você tem toda a tralha, tem o
barco, tem o dinheiro, aí você caça os pescador e faz de conta que é uma
firma. Você tem a firma, aí você caça os peão pra pescar pra você. Pindô
tinha uns 10 peão. Você é pescador, aí você procura 3 homens pra pescar. O
peixe que os menino pega passa pra você, aí você tira a porcentagem deles e
você vende o peixe pra outras pessoas mais caro12 . Dona Paulina indica que
esse tipo de associação com membros fora da família nem sempre
REVISTA COSMOS PÁG. 18

compensa, seja pelo valor pago pelo contratante (apenas 10%) seja pelos
incidentes ocorridos, como ocorreu com o seu marido que foi multado pela
Polícia Ambiental e teve que arcar com todo o ônus. Esse quadro aponta
para uma hierarquia dentro do próprio grupo de pescadores, revelando que
a noção de trabalho solidário inexiste quando os interesses e as condições
de trabalho de cada um se fazem presentes nas relações entre eles. Assim, a
solidariedade no trabalho existente nos tempos de fartura tem ganhado uma
feição de acordo no qual cada pescador participa da relação de trabalho,
tirando dessa participação uma parcela dos ganhos.
Atualmente, a incerteza no sucesso no trabalho de captura do pescado tem feito o
pescador entender que o tempo da pesca é regido por critérios impostos pelas
próprias condições da pesca, as quais englobam o sucesso (ou não) da pescaria,
diretamente relacionado à presença do peixe em determinado trecho do rio, mas
também aos aspectos das proibições impostos pelas leis da pesca ou mesmo ao
conhecimento e à habilidade que os pescadores possuem na prática pesqueira.
Assim, é errôneo pensar que esses trabalhadores “fazem o seu tempo, já que na
pesca artesanal o controle do tempo se dá por outros vieses.
Ao final, com a captura do peixe, uma questão importante que emerge na vida do
pescador é a destinação deste pescado. Antigamente, a grande quantidade de
peixes disponível no rio favorecia uma destinação que poderia ser tanto para os
poucos frigoríficos existentes na cidade, intermediários na exportação dos peixes,
como para o próprio consumo da família e até de conhecidos. Agora, com o peixe
em pouca quantidade nas mãos, o que fazer com ele? Alimentar-se? Vender? Pra
quem? Como? O que fazer com o dinheiro obtido com essa venda? Para alguns, a
prioridade é a alimentação da própria família. Para outros, o peixe é utilizado
como meio para comprarem outros produtos indispensáveis em casa. Para a
senhora Paulina, “conforme o que você pega, aí você vende”. É nessa condição
imposta pelo trabalho que ela, organizadora do lar, indica a destinação do dinheiro
obtido com a comercialização do que se pesca:
"Você compra um pouco do alimento pra comer, arroz, feijão. Se der pra comprar
carne, tudo bem. Se não der, você compra ali 5 quilos de arroz, 3 de feijão, óleo,
chinelo. Depende do tanto dinheiro que você fazer, uns 100 reais, uns 30 reais. É
conforme o dinheirinho que você fazer pelo peixe. Se você fizer 100 reais, você tira
50 pra despesa, 50 pra o chinelo, e assim a gente vai passando. No outro dia, Deus
abençoa que você pega mais um pouquinho. A vida do pai é pescando. Quando ele
tá no sol quente trabalhando, eu já aviso logo: você não vai pra o sol quente mais
não"
Entendendo que na vida e no trabalho desses pescadores artesanais há um modelo
econômico condicionado pelo sistema composto pelas ações de pescar o peixe,
vender o peixe e comprar o que lhes faltam em casa, percebemos que nesse
processo, tendo como pressuposto as dificuldades vivenciadas no trabalho, já
citadas neste estudo, e também as diversas pressões econômicas existentes, o
trabalho desses pescadores tem como elemento fundamental de organização da
vida a própria condição de se pescar ou não. Portanto, o “SE” [pescar] ganha mais
do que um sentido condicional no seu trabalho, é, na verdade, um elemento
determinante na organização da própria vida no âmbito do lar. A certeza que
permeava o trabalho da pescaria em outros tempos definitivamente desapareceu
dos modos de vida desses pescadores. A certeza de que traria para casa uma
quantidade de peixes que serviria de sustento para a família foi, aos poucos, dando
lugar a um sentimento de insegurança quanto à própria profissão, um drama social
de toda uma categoria de trabalhadores que vive entre a paixão pela pesca e a
necessidade de se enveredar para novas e diferentes formas de ofício. Atualmente,
o pescador olha para o rio e não o reconhece, pois este se apresenta desfigurado.
Olha para si e também não se reconhece, pois, pouco a pouco, sente sua atividade
de pescador sendo minimizada pelas difíceis condições de trabalho. Onde havia
água, hoje as “croas” tomam conta. No lugar da abundância de peixes o que se vê é
REVISTA COSMOS PÁG. 19

uma abundância de barcos. O rio, de espaço social de convivência, onde as pessoas


tomavam banho, lavavam roupa, trabalhavam cotidianamente, tendo seu curso
natural barrado, controlado, tornou-se simplesmente instrumento de uso do
capital, que vê em suas águas apenas um meio para mover turbinas de
hidrelétricas ou para aperfeiçoar os enormes projetos de irrigação que, em geral,
servem para produção de alimentos para outros mercados consumidores e em
quase nada beneficia as populações locais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas últimas cinco décadas a vida dos pescadores artesanais do rio São
Francisco, em específico na cidade de mesmo nome, ao Norte de Minas
Gerais, transformou-se consideravelmente. De uma situação de fartura e
abundância, todos eles passaram a vivenciar uma situação de escassez
de peixes em seu trabalho diário. A sobrevivência sua e da família
tornou-se, nesse sentido, desafiadora e dependente de outras atividades
econômicas e de uma postura mais enérgica em busca do pão de cada
dia. No trabalho do pescador, a certeza do peixe a cada momento em que
se dirigia ao rio deu lugar à insegurança por não saber se encontrará
algum pescado para levar para sua família. Assim, ser pescador tem
deixado de ser uma identidade, mas apenas uma dentre tantas outras
possíveis na vida de centenas de homens e mulheres que noutros tempos
viviam exclusivamente do rio.
Pescar e ser vazanteiro, pescar e ser barqueiro, pescar e ser
comerciante, pescar e trabalhar limpando lotes baldios, dentre tantas
outras mostraram-se possibilidades concretas em busca da
sobrevivência.
Em tempos de fartura, essa sobrevivência era certa. Tão certa que, ao ter
o cesto cheio de pescado, muitos desses peixes nas mãos dos
profissionais do rio eram até descartados na orla do rio como lixo.
Atualmente, na carência de peixes no leito do rio, esse “lixo” faz falta em
muitas mesas. O peixe tornou-se escasso, as leis de fiscalização se
tornaram mais rígidas, a concorrência por um “peixinho” que seja tem se
mostrado mais intensa e desleal.
Entre esses dois momentos, de fartura e escassez, algo que pouco se viu
ou se vê é um consenso e uma prática efetiva com um caráter mais
ecológico, de proteção e manutenção do
pescado para tempos futuros. Tanto antes da década de 1980, quando
havia peixes em abundância, quando depois desse tempo, em que a vida
pesqueira se tornou mais árdua, a prática e o discurso de proteção não
se evidenciaram no cotidiano desses pescadores. Se antes esses
pescadores utilizaram de meios rudimentares numa pesca predatória,
atualmente, a partir de conversas com policiais ambientais que atuam
em defesa do rio São Francisco, o que mais ouvimos é que apreenderam
REVISTA COSMOS PÁG. 20

redes de pesca fora do padrão, desrespeito às leis ambientais, pesca em


tempos de piracema, dentre outras práticas ilegais.
Dessa forma, a sobrevivência desses pescadores, a partir dessa pesquisa
sobre os seus comportamentos e visões, parece se fundamentar numa
lógica individualista, imediatista e bastante distante do prisma da
preservação ambiental. Se isso não se enquadrar a todos os pescadores
artesanais de São Francisco, ao menos de um número significativo desses
profissionais artesanais que têm no rio a sua principal referência de
vida e de trabalho.
1 Entrevista realizada com Benedito Dionísio da Referências
Silva, pescador aposentado, 103 anos, no dia 06
de agosto de 2013, em sua residência em

Januária-MG. Entrevista realizada com América Geralda da Silva,


2 Entrevista realizada com Januário Mendes pescadora, 49 anos, no dia 03 de janeiro de 2013,
Abreu, pescador, 57 anos, no dia 04 de janeiro de em sua residência no bairro Sagrada Família em
2013, em sua residência no bairro Sagrada
São Francisco-MG.
Família, em São Francisco-MG. 3GODINHO, H. P. &
GODINHO, A.L. (ORGS). Breve visão do São
Entrevista realizada com o senhor Manuel Ribeiro
Francisco, p. 15-24. In: GODINHO, H. P. & Pereira, pescador, 63 anos, no dia 25 de Fevereiro
GODINHO, A.L. (orgs). Águas, peixes e pescadores de 2012, em sua residência no bairro Aparecida em
do São Francisco das Minas Gerais. Belo São Francisco-MG.
Horizonte: PUC Minas, 2003, p. 18. 4 Entrevista Entrevista realizada com Paulina dos Santos Abreu,
realizada com Vanilson de Jesus dos Santos,
pescadora, 46 anos, no dia 03 de janeiro de 2013,
pescador, 64 anos, no dia 30 de julho de 2013, em
sua residência no bairro Centro, em São
em sua residência no bairro Sagrada Família em
Francisco-MG. São Francisco-MG.
5 Entrevista realizada com América Geralda da Entrevista realizada com Vanilson de Jesus dos
Silva, pescadora, 49 anos, no dia 03 de janeiro de Santos, pescador, 64 anos, no dia 30 de julho de
2013, em sua residência no bairro Sagrada 2013, em sua residência no bairro Centro, em São
Família em São Francisco-MG. 6 Entrevista
Francisco-MG.
realizada com Vanilson de Jesus dos Santos,
pescador, 64 anos, no dia 30 de julho de 2013, em
GODINHO, H. P. & GODINHO, A.L. (ORGS). Breve
sua residência no bairro Centro, em São visão do São Francisco, p. 15-24. In: GODINHO, H. P.
Francisco-MG. & GODINHO, A.L. (orgs). Águas, peixes e pescadores
7 Segundo o Instituto Estadual de Floresta de do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte:

Lair Miguel
Minas Gerais – IEF-MG, a palavra piracema é de PUC Minas, 2003, p. 18.
origem tupi e significa "subida do peixe". Refere-
MINAS GERAIS. IEF. Piracema. Disponível em <
se ao período em que os peixes buscam os locais
mais adequados para desova e alimentação. O
http://www.ief.mg.gov.br/pesca/piracema>;
fenômeno acontece todos os anos, coincidindo acesso em 12 mar 2012.
com o início do período das chuvas, entre os PEREIRA, Roberto Mendes Ramos. Sobre(vivências):
meses de novembro e fevereiro, período, modos de vida, trabalho e institucionalização dos
portanto, proibido à pesca. O diretor de pescadores artesanais de São Francisco-MG (1960-
fiscalização da pesca, Marcelo Coutinho
2014). Tese. Programa de Pós-graduação de
Amarante, explica que as restrições na pesca
durante o período da piracema têm como
História. Universidade Federal de Uberlândia.
objetivo garantir que os peixes nativos da região Uberlândia, 2015
possam procriar em seu período de reprodução.
“O período piracema é fundamental para a
reposição das espécies que vivem nos rios,
barragens e represas do Estado”, afirma. MINAS
GERAIS. IEF. Piracema. Disponível em <
http://www.ief.mg.gov.br/pesca/piracema>;
acesso em 12 mar 2012.
8 Entrevista realizada com o senhor Manuel
Ribeiro Pereira, pescador, 63 anos, no dia 25 de
Fevereiro de 2012, em sua residência no bairro
REVISTA COSMOS PÁG. 21

Aparecida em São Francisco-MG.


9 Entrevista realizada com o senhor Manuel
Ribeiro Pereira, pescador, 63 anos, no dia 25 de
Fevereiro de 2012, em sua residência no bairro
Aparecida em São Francisco-MG
10 Entrevista realizada com o senhor Manuel
Ribeiro Pereira, pescador, 63 anos, no dia 25 de
Fevereiro de 2012, em sua residência no bairro
Aparecida em São Francisco-MG
11 Entrevista realizada com Manuel Ribeiro
Pereira, pescador, 63 anos, no dia 25 de
Fevereiro de 2012, em sua residência no bairro
Aparecida em São Francisco-MG. 12 Entrevista
realizada com Paulina dos Santos Abreu,
pescadora, 46 anos, no dia 03 de janeiro de 2013,
em sua residência no bairro Sagrada Família em
São Francisco-MG.
13 Entrevista realizada com Paulina dos Santos
Abreu, pescadora, 46 anos, no dia 03 de janeiro
de 2013, em sua residência no bairro Sagrada
Família em São Francisco-MG.
CASSIANO RICARDO, JORGE AMADO
E AS IDEIAS DE NAÇÃO E
DEMOCRACIA NO BRASIL DO
ESTADO NOVO.
CRISTINA DIAS MALVEIRA
MESTRA EM HISTÓRIA PELA UNIMONTES
CRISMALVEIRA@ GMAIL.COM

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INTRODUÇÃO

Vivemos um momento ímpar na atualidade, onde direitos conquistados


estão sendo questionados, tal como a nossa democracia. Heróis e
salvadores da pátria surgem para resolver os problemas do país, tal tema e
debate, que relaciona identidade nacional e as discussões políticas e
que envolvem ainda conceitos de democracia, se colocam, portanto, como
muito importantes. Além disso, como argumentou Ariel Goldstein (2019), a
grande divisão que se observa entre as pessoas insatisfeitas e a
incapacidade das instituições da democracia liberal para incorporar as
demandas que foram surgindo é fato comum não só no Brasil, como
também na Europa, América Latina e nos Estados Unidos (GOLDSTEIN, 2019,
p.17). No Brasil, principalmente, a violência das cidades e a desilusão
política das pessoas levou a um crescimento da direita, contexto no qual
apresenta-se a anulação das liberdades democráticas que é exposta como
um preço a ser pago pela restauração da ordem (GOLDSTEIN, 2019, p.25).
A iniciativa de pesquisa sobre esse tema se deveu, portanto, ao incômodo
de perceber, neste contexto, que noções de identidade nacional
construídas com base no caráter homogeneizador da cultura, difundidas
em governos autoritários, como o de Getúlio Vargas, ainda são utilizadas
em instituições e espaços públicos, como a escola e a mídia, em
contraposição às diversas discussões já feitas por historiadores do
período. A título de exemplo, podemos citar o retorno do momento cívico
nas escolas, pregando aos alunos a questão da obediência e culto a heróis,
personalidades e símbolos e ainda, o retorno em momentos
comemorativos, como o da consciência negra, de padrões baseados na
exclusão dos conflitos sociais. Na mídia, políticos se apresentam como
heróis dispostos a “salvar” o país, seja da corrupção ou mesmo da
degradação dos valores cristãos. As redes sociais se tornaram um espaço
para a inserção das pessoas no debate político, onde houve uma rápida
multiplicação do apoio às práticas políticas que oferecem uma espécie de
salvação mágica, dentro de um discurso simples e construído em torno do
patriotismo que nega as disparidades econômicas, sociais e culturais dos
diversos grupos da sociedade.
Neste artigo, portanto, propomos uma discussão que envolve o
entendimento das maneiras pelas quais os literatos Cassiano Ricardo e
Jorge Amado pretenderam convencer que a ideia de democracia,
defendida por eles, era a mais útil ao momento político vivenciado e para
o projeto de identidade nacional e, assim, disputaram espaço no cenário
político. A leitura das fontes nos encaminhou a destacar o tema
democracia, uma vez que o mesmo pareceu muito caro aos autores no
processo de construção da ideia de nação em suas narrativas.

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CASSIANO RICARDO E A DEMOCRACIA SOCIAL

No período abarcado por esta pesquisa, o envolvimento com a política e


também com o Estado atingiram de forma diferente as carreiras de Jorge
Amado e Cassiano Ricardo, levando-os a grandes distâncias na mesma
conjuntura histórica. Cassiano Ricardo, integrou os autores que
comungavam da ideia de que o partido era o próprio Estado, questão
discutida pelos autores da revista Cultura Política e analisada pela
historiadora Ângela de Castro Gomes (2005), uma vez que havia a
desvinculação da vontade popular e os partidos políticos, configurados
sob o âmbito do Liberalismo “ Na democracia social e econômica daqueles
que trabalham, o povo estaria presente nas corporações e nos órgãos
técnicos, que exprimiriam para as elites esclarecidas suas aspirações
coletivas” (GOMES, 2005, p.208).
Neste jogo político, Ricardo pretendeu “desmontar” a farsa do liberalismo,
por outro lado, se distanciar também do comunismo. Torna-se elucidativo
lembrar que, apesar da sua ausência em partidos políticos, antes mesmo
de aderir ao governo, Ricardo já possuía um posicionamento com relação à
democracia, como podemos observar em Martim Cererê, apesar de que não
podemos afirmar que defendia já em 1927 um Estado forte. Ele era um
defensor da República, como argumentou o autor George Leonardo Coelho
(2017). A adesão ao governo não é feita de maneira imediata, embora
quando concretizada, tenha sido enfática.
Ao aderir ao governo em 1938, quando foi convidado por Luiz Vergara,
então secretário de Vargas para conversar com o mesmo (COELHO, 2017,
p.18) e, mais tarde, aceitou o convite para diretor do jornal A Manhã,
Cassiano combinou seus interesses de escritor, de falar sobre uma forma
de viver e fazer política “brasileiramente”, aos ideais do governo. Cassiano
Ricardo mostrou seu posicionamento, o mesmo que teve nas artes, de
renegar tudo o que fosse estrangeiro, ele defendeu
uma outra espécie de democracia, na qual o povo, formado pelas três
raças, tal como argumentou no livro de poemas, Martim Cererê,
construíssem uma nação em que houvesse a união pelo
verdadeiro nacionalismo. No jornal, ele utilizou o passado bandeirante e
estas argumentações para defender o que, então, foi chamado de
democracia social. Ângela de Castro Gomes afirmou que tal democracia
social foi uma reformulação do ideal democrático que sintetizou o projeto
do Estado Novo de forma a conduzir suas formulações na dupla direção do
passado e do futuro revolucionário do país (GOMES, 2005, p. 190). Assim,
nesta nova democracia, o cidadão abriria mão dos direitos políticos em
prol dos direitos sociais, distanciando o conceito de democracia dos ideais
liberais, o importante era promover o bem do povo trabalhador (GOMES,
2005, p. 201). Por isso, tornou-se importante analisar o que os autores
entendiam e defendiam como democracia, tal conceito definiu seus
projetos de nação. Desta forma, Cassiano Ricardo contribuiu amplamente
com este projeto de democracia social, combinando seus interesses
literários e posicionamentos políticos com o que propunha o regime.

REVISTA COSMOS PÁG. 24


A ideia de democracia social combinou com um pensamento
muito comum entre os intelectuais da época, que era a
desqualificação de ideias estrangeiras: Liberalismo, Fascismo e
Socialismo, como apontou Maria Helena Capelato, quando
analisou em sua obra o pensamento liberal na imprensa paulista
de 1920 a 1945 (CAPELATO, 1989, p. 14). Tal posicionamento, era
sustentado por Cassiano Ricardo e isto o levou a distanciar de
Plínio Salgado, quando este propôs o Integralismo. Podemos
observar, então, que as rupturas, tal como a amizade,
desempenham um papel decisivo quando se pensa as estruturas
de sociabilidade no meio intelectual (SIRINELLI, 2003, p.250).
Este posicionamento, contrário às ideias estrangeiras, foi
esclarecido em um texto de Cassiano Ricardo no jornal A Manhã
em 1941, quando expôs o programa do jornal que, para ele tinha o
objetivo “doutrinário” para, assim “ (...) colaborar na formação da
consciência brasileira, na defesa do nosso sistema de vida e no
combate às ideologias malsãs e forasteiras que pretendam
violentar a índole do nosso povo” (A Manhã, 9 de agosto de 1941,
p.4) Apesar disso, Cassiano não descartou certa semelhança do
movimento da Bandeira, fundado por ele, do Integralismo. De
certa forma, as críticas ao Integralismo reforçaram o elo entre
literatura e política, mantendo Cassiano Ricardo em
conformidade com as propostas do governo, que no discurso
político, também rejeitava os “ismos” estrangeiros.
Principalmente no ensaio Marcha para o Oeste, Cassiano Ricardo
tratou, tanto da democracia social, como também realizou uma
reformulação do passado brasileiro de maneira a passar uma
ideia de colaboração amigável das ditas três raças na época do
movimento das bandeiras:
"Em torno das minas, tal como no planalto, onde exercera ofícios
mecânicos, o homem branco, livre e independente não se
limitava ao comercio nos balcões e a feitoria nos engenhos, mas
punha-se a trabalhar manualmente, em igualdade de condições
com mestiços, índios e negros". (RICARDO,1970, p. 372)

REVISTA COSMOS PÁG. 25


Ao idealizar o bandeirantismo, Cassiano Ricardo procurou no passado, ações que
concretizassem as ideias do presente, tornando o Estado autoritário uma necessidade
para a união de todos em torno da formação de uma consciência, que defendesse um
sistema de vida tipicamente brasileiro. Ao recontar os caminhos dos bandeirantes,
tanto na poesia como no ensaio, Cassiano Ricardo defendeu uma “raça cósmica”
(RICARDO, 1983, p.56). A raça cósmica foi um pensamento elaborado por José
Vasconcelos em seu livro La raza cósmica: mission de la raza ibero americana.
Publicado em 1925, o livro de Vasconcelos trouxe as bases desse pensamento que
defendeu a ascensão de uma nova raça, a chamada quinta raça, que se desenvolveu a
partir da mestiçagem das quatro grandes raças contemporâneas do autor: a branca, a
vermelha, a negra e a amarela. Essa quinta raça estaria predestinada a grandes
conquistas, uma vez que aproveitaria as capacidades de cada raça e unidas pelo amor
e pela espiritualidade chegariam ao triunfo: “En el suelo de América hallará terminó
la dispersión, alí se consumará la unidad por el triunfo del amor fecundo, y la
superación de todas las estirpes.” (VASCONCELOS, 1948, p.14). Por outro lado,
Vasconcelos pregou ainda um patriotismo fundamentado nessa união que rejeitaria as
teses de raça pura pregada pelos brancos europeus e norte-americanos que seguia os
moldes dos “saxões”, ou seja, primeiramente, os povos americanos deveriam rejeitar o
pensamento que lhes foi imposto, o patriotismo que lhes foi dado e superar esse
passado (VASCONCELOS, 1948, p.8). Tomando as bases do pensamento sobre a raça
cósmica: espiritualidade, amor cristão e união das raças, Cassiano Ricardo procurou
dar outro significado ao passado brasileiro, de forma a excluir os processos
conflituosos que fizeram parte da sua formação e enfatizando situações colaborativas
nas quais o povo participava ativamente, citando, por exemplo, no seu ensaio, a região
de Piratininga, na época colonial, onde: “ (...) a eleição de gente do povo chega a
inquietar certa autoridade” (RICARDO, 1970, p.374). Portanto, a origem da democracia
tipicamente brasileira estava, para ele, neste processo histórico, e a partir desta
origem baseada na colaboração e no coletivismo, o Brasil de Vargas criou uma nova
política, que para Cassiano Ricardo, era melhor que os regimes europeus, por
exemplo, uma vez que era baseada também na índole pacífica do brasileiro. Mas esse
caráter colaborativo, o qual ele relaciona ainda à experiência de vida indígena que,
segundo Ricardo, mesmo esse “comunismo” primário indígena, já fora ultrapassado no
progresso da história, explicou ele, difere muito deste comunismo “utópico que rezam
as teorias pregadas às massas ignorantes” (RICARDO, 1970, p.68). Para o jornal A
Manhã, esses pensamentos eram passíveis de repressão quando transformados em
instrumento de subversão social. Em seguida, o artigo falou sobre a grande extensão
da propaganda comunista na França e acabou por relacionar a derrota francesa à
passividade dos governantes franceses com relação à doutrina comunista, que se
alastrou com vários jornais e folhetins, distribuídos em usinas e nos quarteis. “ (...) Os
dirigentes franceses presumiram, talvez demasiado, do bom senso tradicional da
nação” (A Manhã, Rio de Janeiro 21 de agosto de 1941), o que levou essas ideologias a
penetrarem nas manifestações de atividade social, como afirmou o jornal. De forma
geral, para que o mesmo não ocorresse no Brasil, caberia ao Estado fiscalizar o que
REVISTA COSMOS PÁG. 26

estava sendo propagado de ideologia estrangeira:


Quando se fala em democracia, esquecem-se os sociólogos, que geralmente fazem o jogo de
convenções políticas, que o único conceito real de democracia é o que objetiva uma sociedade
dentro da qual sejam elididos todos os preconceitos. Democracia substancial seria só aquela em
que não houvesse distinção nem classes, nem situação social, nem raças. Em tal sentido talvez seja
o Brasil o país mais democrático do mundo. (...)Aqui a humanidade faz uma suprema prova
democrática: a de compor a vida sob o lema pregado pelo próprio Cristo, de confraternizar as
criaturas, gerar entre elas o espírito de cooperação, sem que nenhuma barreira separe o branco
do preto ou do amarelo, o pobre do rico, o nacional do estrangeiro. Preconceitos de cor, de credo
ou de origem não vigoraram e nem vigoram no processo de nossa formação, pelo que a
solidariedade brasileira é expressa por um generoso e inédito sentido de pura fraternidade. (A
Manhã, Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1941, p. 4)

Ademais, o jornal recorreu a citação de Oliveira Viana, com o seu livro Problemas de
Política Objetiva, para revisar o sentido da palavra democracia. Deste modo, citando o
“ilustre sociólogo patrício”, explicaram que, na visão do mesmo, o regime democrático
não seria aquele em que o indivíduo participa do governo, como indivíduo, mas seria
como um membro de uma classe organizada “ A verdadeira democracia, aquela que
proporciona ao povo ‘maior soma de felicidade’, substituiu os partidos políticos,
meros agrupamentos de interesses e ambições, destituídos de significação humana e
social, pelas classes organizadas” (A Manhã, Rio de Janeiro, 1 de fevereiro de 1942).
Segundo este ponto de vista, defendido pelo jornal, deveria haver a reformulação da
ideia de democracia para evidenciar aqueles que trabalhavam e que realmente
forjavam a estrutura econômica da nacionalidade, pois o corporativismo exigia
melhor orientação das massas. O momento da Segunda Guerra Mundial permitiu ainda
a Cassiano Ricardo reelaborar o conceito de democracia de forma a favorecer a ideia
de democracia social. Já no seu artigo publicado em agosto de 1941, ressaltou ele a
necessidade de repensar a palavra democracia. Para ele, não havia sentido que os
combatentes morressem em defesa de algo que já não mais funcionava. Nos seus
argumentos, alegou que não havia um só tipo de democracia, e se alguém se
dispusesse a morrer pela democracia nos dias em que viviam, deveriam se questionar
por qual democracia estariam fazendo tal sacrifício. Morrer pelo nacional-socialismo
não seria a mesma coisa que morrer pelo social- nacionalismo, dentre tantos
significados para a democracia, liberal, corporativa, igualitária, burguesa, entre
outras, não haveria sentido em morrer por uma democracia que não fosse uma forma,
um estilo de vida, de cultura, de civilização (A Manhã, Rio de Janeiro, 26 de agosto de REVISTA COSMOS PÁG. 27
1941, p.4). Isto posto, Cassiano Ricardo pretendeu convencer o leitor dos benefícios da
sua proposta, estabelecendo uma relação entre o conceito de democracia por ele
articulado, com o que estabelecia o regime. Concluiu, então, que não valeria a pena
morrer por uma simples “ficção jurídica”, mas valeria a pena morrer pela democracia
social, proposta pelo regime Vargas, uma vez que esta reajustou as instituições à
realidade social brasileira, por meio da Constituição de 10 de novembro. Para ele, tal
democracia já havia sido posta em prática pelos bandeirantes. Desta maneira,
defendendo o projeto do governo no jornal A Manhã, colocou em evidência também a
essência da sua própria produção literária, o bandeirante paulista como herói da
nação, que estava, então, presente para além das páginas do seu livro. O literato
conseguiu unir o seu projeto literário com suas expectativas políticas.
JORGE AMADO: DEMOCRACIA,
INTELECTUALIDADE E LIBERDADE

A notícia da união do Brasil com os Aliados na Segunda Guerra trouxe


de volta Jorge Amado ao Brasil em 1942, que se encontrava no exílio,
onde escreveu um romance em defesa dos presos políticos da ditadura
Vargas, especialmente o líder da esquerda, Luís Carlos Prestes. A nova
situação política permitiu a Jorge Amado e seus companheiros que
estavam exilados voltarem e, por sua vez colaborarem na luta com o
inimigo comum: o nazifascismo. Porém, como afirmou Zélia Gattai em
suas memórias, ao chegar, Amado foi preso em Porto Alegre e
permaneceu três meses na Casa de Correção do Rio de Janeiro. Então o
enviaram à Salvador sem permissão para sair da cidade (GATTAI, 2002,
p.14). Sem o direito de ir e vir pelo país, o espaço que estava disponível
a Jorge Amado para cumprir suas intenções de luta contra o
nazifascismo eram os jornais de Salvador. Ele passou, então, a escrever
as suas crônicas no jornal O Imparcial. O periódico pertencia a
Franklin Lins de Albuquerque e fazia oposição ao governo do
interventor Landulfo Alves. Jorge Amado era amigo do filho de
Albuquerque, Wilson Lins1 e, assim, foi convidado a participar do
jornal como cronista (VEIGA, 2012, p. 23). Desta forma, o autor ficou
responsável pela coluna Hora da Guerra desse jornal de Salvador,
enquanto seu romance, escrito no exílio, ainda circulava no Brasil de
forma clandestina e em espanhol. Na crônica “ Maníacos do
Assassinato”, podemos perceber que, além de utilizar as mesmas armas
dos anticomunistas, relacionando os opositores à traição, covardia e
violência, destacou também a oposição do integralismo em relação à
democracia. Para ele, a guerra era uma luta do bem contra o mal, na
qual os democratas estavam do lado do bem e da liberdade, que se
relacionava à democracia. Para ele, o termo democracia possuía quase
o mesmo sentido de liberdade. Estar do lado oposto, do Integralismo,
significava a escravidão do país, se submeter ao imperialismo alemão.
Uma das torturas aplicadas aos escritores presos, e praticada, segundo
Amado, ainda em 1940, consistia em coloca-los em celas ao lado dos
operários, soldados e marinheiros torturados “ Durante a noite
acordavam os escritores presos para que eles pudessem ouvir os gritos,
os uivos de dor, as maldições dos seus companheiros espancados”
(AMADO, 1981, p. 284). Pela perspectiva de Jorge Amado, as prisões
foram, não apenas um meio de vingança política e pessoal, mas ainda
REVISTA COSMOS PÁG. 28

uma forma que “os defensores da civilização” enriqueciam à custa dos


bens dos presos e o dinheiro que, principalmente famílias judias
ofereciam em troca da liberdade (AMADO, 1981, p. 284). As prisões dos
escritores nem sempre eram sustentadas por seu posicionamento
político, como salientou Gustavo Sorá, “ Quando não eram acusados de
comunistas, os romancistas ‘sociais’ eram atacados por sua linguagem
obscena” (SORÁ, 2010, p. 223).
Sobre a prisão de Graciliano Ramos, pelo
relato de Jorge Amado, foi concretizada
por causa de “uma simples denúncia de
um integralista”. Com relação a isso,
Amado procurou mostrar que o governo
que se aliava ao integralismo era uma
noite de terror por perseguir a
inteligência brasileira

A Graciliano Ramos, o maior romancista do


Brasil, trouxeram de Alagoas (...) no porão de
um navio entre criminosos comuns, assassinos
e pederastas. No Rio mandaram-no para a
Colônia de Dois Rios, onde os presos políticos
eram sujeitos a trabalhos forçados (...).
Graciliano Ramos não teve mais saúde. Crime
da polícia brasileira contra um dos maiores
escritores americanos (AMADO, 1981, p. 285)

Para Jorge Amado a verdadeira


“inteligência” estava do lado da
democracia e da liberdade. Amado fez
críticas veementes a autores que “se
venderam” ao governo. Para ele, ser
contrário à democracia e a liberdade não
era apenas participar do governo
“tirano” de Vargas, mas também, fechar
os olhos para as injustiças, não utilizar a
literatura como um campo de combate
contra as mazelas sociais. Enfim, fazer
uma literatura que estivesse distante do
povo “Nos jornais brasileiros do
imperialismo europeu e americano,
Coelho Neto e outros cuspiam sua
pequena literatura de pastiches. Tinham
um sagrado horror pelo povo” (AMADO,
1981, p. 79), nisto, segundo Amado, o povo
não tomava conhecimento do escritor e
da literatura como algo útil. Para ele, a
importância da literatura estava
REVISTA COSMOS PÁG. 29

justamente na sua utilidade para debater


as questões sociais. Ele só concebia como
boa literatura aquela que estivesse
engajada.
O literato Jackson de Figueredo2 , também foi alvo das duras críticas
por parte de Jorge Amado. Em relação a esse autor, acusou-o de
reacionário, de escrever contra a literatura proletária de Lima
Barreto, que denunciou em seus romances os inimigos do povo. Para
ele, Jackson de Figueredo “ vai ensinar censura aos policiais,
precursor de toda a polícia política do país, avô do DIP, beato,
medroso e avaro. Incapaz de armar uma frase (...). Dele nasceria
diretamente o integralismo de Plínio Salgado. ” (AMADO, 1981, p. 84).
Sobre a literatura de Plínio Salgado, Jorge Amado explicou que ele
teria misturado literatura de cordel com Minha Luta, de Hitler, na
provocação anticomunista, e ainda, Por que me Ufano de meu País, do
conde de roda Afonso Celso, no “ papaguear de mentiras patrioteicas”
(AMADO, 1981, p. 251). Para ele, a mistura muito mal elaborada com o
futurismo de Marinetti e o arianismo de alemão produziu uma má
literatura em que nunca se escreveu tanta idiotice e tanta cretinice,
nisto ainda criticou Gustavo Barroso e Carlos Maul, na sua opinião,
fracassados da literatura (AMADO, 1981, p. 252). O mesmo
posicionamento sobre a literatura moldou o pensamento de Jorge
Amado nas suas crônicas na coluna “Hora da Guerra”, no jornal O
Imparcial. Em suas narrativas ele procurou incentivar a literatura
engajada no combate ao nazifascismo, pois segundo ele os
nazisfascistas eram inimigos da cultura e da inteligência (O
Imparcial, Salvador, 31 de dezembro de 1942). Nesse sentido, citou
exemplos de como os nazistas alemães expulsaram grandes
intelectuais do seu país, exclusivamente para satisfazer a doutrina
racial: Thomas Mann e seu irmão Henrich Mann, Remarque, Ludwing,
Zweig, Einstein “ Os monstros da Gestapo, entre gargalhadas bestiais,
expulsando das suas pátrias o que havia de mais profundo na
inteligência universal” (O Imparcial, Salvador, 31 de dezembro de
1942). Para ele, o momento necessitava que os escritores saíssem de
sua posição diante da realidade:
Por que então os escritores todos, todos os artistas, os sábios, os poetas, não se
atiram à luta real e decidida contra a ameaça de escravidão nazista que pesa
sobre o mundo e sobre o Brasil? Por que alguns se deixam ficar, cômoda e
criminosamente, perdidos em sonetos e em poemas, em inoportunas discussões
de ordem estética? (O Imparcial, Salvador, 31 de dezembro de 1942)
Utilizar as palavras como uma arma contra o totalitarismo de Hitler, a
favor da liberdade, ou seja, do lado das democracias, era o
REVISTA COSMOS PÁG. 30

posicionamento que Jorge Amado queria dos demais escritores


naquele momento. No seu pensamento, só era um escritor de verdade,
só mereceria o seu reconhecimento, aqueles que se colocassem
contrários a “ indignidade germano-fascista”. Do contrário, ele
deixaria de ser um escritor ou artista para ser simplesmente um “nazi
traidor da pátria” (O Imparcial, Salvador, 31 de dezembro de 1942).
Amado convocou os escritores baianos para a Legião da Cultura para a
Vitória, grupo de escritores baianos, engajados na luta contra o
nazifascismo. Essa ideia de Jacinta Passos3 recebeu, assim, o apoio de
Jorge Amado “ De parte todas as diferenças de ordem estética. Lado a lado,
acadêmicos e modernos, católicos e livre-pensadores, escritores da ‘arte
pela arte’ e escritores da arte social. Para provarmos ao nazismo que a
poesia é realmente a arma do povo, da liberdade e da pátria. ” (O
Imparcial, Salvador 31 de dezembro de 1942). Assim, Amado se mostrou
reconciliado, em parte, com os escritores da “arte pela arte”, que tanto
receberam críticas no romance, desde que os mesmos fizessem frente com
ele na luta contra o nazi fascismo. Em março de 1943, Amado voltou a
argumentar contra a perseguição à intelectualidade. Por duas vezes, no
período analisado, ele tratou da morte de Garcia Lorca na Espanha. Ele
utilizou a morte do poeta para levantar a sua bandeira de união dos
intelectuais contra o nazifascismo e o Integralismo, para ele “vassalo do
nazi fascismo” no Brasil (O Imparcial, Salvador, 18 de março de 1943). No
seu pensamento, os intelectuais deveriam ficar ao lado dos Aliados, pois,
ao contrário do Nazismo que persegue a ciência e a arte, “ Nas
democracias os sábios são respeitados e amados na sua vida ou na sua
memória. São colocados ao lado dos guerreiros, estadistas e dos poetas.
Construtores dos povos e das nações. ” A ciência, para ele era a “bandeira
de liberdade e de progresso” e por isso odiada pelo nazi fascismo e pelo
integralismo, porque, para Amado, eles odeiam tudo que represente
perigo para a sua ideologia (O Imparcial, Salvador, 18 de março de 1943).
Para ele, nas democracias, os intelectuais estariam a salvo, pois poderiam
pensar livremente. No Brasil, tal como ele viu no período de escrita de O
Cavaleiro da Esperança, isto não era possível, uma vez que, para ficar no
poder, no período de 1935 “ Getúlio apoiava-se em uma trilogia trágica:
Rao, Filinto e Plinio Salgado. Latifúndio, imperialismo e fascismo”
(AMADO, 1981, p.259). Portanto, desde a escrita de O Cavaleiro da
Esperança, Amado depositou a sua esperança política na união com as
democracias, que, segundo ele, foi uma conquista da ANL, que realizou
uma educação política, levantara em cada homem o amor à pátria e à
liberdade “ O Brasil ao lado das democracias é também fruto da Aliança
Nacional Libertadora” (AMADO, 1981, p. 263). Porém, Jorge Amado
terminou o romance em 3 de janeiro de 1942, nesse período, apesar de em
seu discurso de fim de ano reproduzido pelo jornal A Manhã, em 1º de
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janeiro de 1942, Vargas ter mostrado seu apoio aos Aliados, por causa do
ataque aos Estados Unidos, não estava ainda totalmente comprometido
com o conflito.
O posicionamento brasileiro só se dará
mais tarde, ao longo do ano de 1942 e,
por fim, com a declaração de guerra
em agosto desse referido ano. Com as
notícias que chegavam à Jorge Amado
no exílio em Buenos Aires ele teria se
arriscado a dizer, com toda certeza,
que o Brasil já se encontrava ao lado
das democracias? Ou teria alterado o
romance mais tarde para dar o efeito
de clarividência a Luiz Carlos Prestes
que, à frente da ANL, teria promovido
o processo de conscientização política
do qual falou Jorge Amado? Benedito
Veiga (2012) apontou uma questão
parecida em sua obra sobre Jorge
Amado, na qual explorou a questão do
tenentismo. Segundo Veiga, Jorge
Amado em suas narrativas n’ O
Imparcial criou uma ligação entre o
tenentismo e momento atual do
conflito contra o Sem sugestões “ Jorge
Amado, usando o argumento, talvez
como uma carícia intelectual a Getúlio
Vargas, modifica os ideais basilares do
tenentismo e o coloca com um
movimento democrático já cheio de
inspirações antifascistas” (VEIGA,
2012, p. 31): “ Naquele 5 de julho de 22,
na praia de Copacabana, começou a
ser escrita a História moderna do
Brasil. Dali nasceu a Grande Marcha, a
Revolução de 30, e nasceu também o
espírito antifascista” (O Imparcial,
Salvador, 6 de julho de 1943). Antes
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mesmo, argumentou Veiga, da


consolidação do fascismo e nazismo
no poder, Jorge Amado já os narra
como conscientes do que viria depois
(VEIGA, 2012, p. 31).
Mas não se trata de constatar se o romance foi alterado posteriormente,
ou se Jorge Amado cometeu um erro de anacronismo na sua narrativa n’O
Imparcial. Questão mais interessante é notar que Jorge Amado, ao narrar
a vida de Prestes nesse momento da criação ANL e todo o processo de sua
prisão, por causa do levante de 1935, ou quando falou sobre o tenentismo,
no jornal, uma vez que não falava diretamente de Prestes, Amado o
inseriu em uma realidade histórica, mas que as necessidades de seu
presente acabaram por influenciar sua memória dos acontecimentos.
Como explicou Girardet (1987), o mito político nunca deixa de enraizar-se
de uma certa forma na realidade histórica, ao contrário dos grandes
heróis imaginários, no processo de heroificação de uma pessoa “de carne
e osso”, há uma menor liberdade de reinvenção (GIRARDET, 1987, p. 81).
Porém, nesse processo de heroificação, ao qual Jorge Amado se dispôs ao
escrever O Cavaleiro da Esperança, e, na medida das suas possibilidades
de fala, dar continuidade nesse processo em O Imparcial, houve uma
certa adequação, para que as atitudes de Luiz Carlos Prestes
correspondessem a expectativa da comunidade naquele momento: a
necessidade de união com as democracias4 . Era necessário ainda para o
momento, na visão de Jorge Amado, defender a intelectualidade e que
esta mesma intelectualidade defendesse os ideais democráticos. Como já
foi exposto anteriormente, Jorge Amado sentia que o nazifascismo e o
autoritarismo, de modo geral, perseguiam a intelectualidade de várias
formas. Ele, então, utilizou o espaço do jornal para colocar em defesa do
livre pensamento. Ao invés de queimar livros como fizeram e faziam os
governos autoritários e nazifascistas, Jorge Amado apoiou uma ideia para
difundir o pensamento da intelectualidade: a biblioteca do combatente,
que consistiu em formar uma biblioteca ambulante para os soldados. Era
um meio de estar presente no combate embora de outra forma “Se é um
dever de todos ajuda-la, é, especialmente, um dever dos escritores e
jornalistas. Os que, como eu, vivem daquilo que escrevem devem ser os
mais entusiastas cooperadores” (O Imparcial, Salvador, 27 de outubro de
1943). Para ele, os intelectuais não poderiam de forma alguma apoiar o
nazifascismo, pois o mesmo era o lado obscurantista na guerra, enquanto
os livros eram as “armas das Américas livres” (O Imparcial, Salvador, 27
de outubro de 1943).
Essas falas, nas quais Jorge Amado defendeu a intelectualidade,
ajudaram a reforçar ainda o poder do campo intelectual perante a
sociedade, pois o autor procurou convencer de que a intelectualidade, de
certa forma, esteve presente em momentos cruciais da história do Brasil
e que, sem ela, os rumos tomados poderiam ser outros. Ele sublinhou a
importância do seu próprio campo, o intelectual, na definição de
questões políticas. Ao colocar a oposição “América livre”, que se utiliza
dos livros como armas contra a Alemanha, onde se expulsa intelectuais e
queimam-se livros, Jorge Amado insinuou, então, que sem a valorização
do intelectual, o Brasil poderia ter caído no mesmo obscurantismo da
Alemanha Nazista “ Estamos lutando pela democracia ao lado das Nações
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Unidas. Estamos lutando contra o obscurantismo, contra aqueles que


queimam livros e prendem escritores”, diz ele, mais tarde, na sua crônica
“Cultura e Democracia”, “ Seria o pior sinal para o futuro se alguém
tocasse agora nos livros e nos escritores brasileiros. Afinal não estamos
na Espanha de Franco nem na Alemanha de Hitler” (O Imparcial,
Salvador, 4 de fevereiro de 1944).
Neste sentido, Jorge Amado utilizou do espaço do
Jornal O Imparcial para convencer os leitores e
também seus pares, não apenas do perigo
nazifascista, mas, para além disso, procurou
defender o seu próprio lugar na sociedade como
um escritor social. Ao criticar a falta de ação de
alguns escritores e enaltecer o engajamento de
outros, Amado procurou reuni-los em torno da
defesa da democracia o que, nas entrelinhas, foi
uma crítica ao autoritarismo que ainda
predominava no Brasil. Pois a democracia
defendida por ele era diferente daquela pregada
pelo governo, defende-la não era a mesma coisa
do que defender a continuidade do regime. Uma
linha tênue separou o que era necessário para
Jorge Amado defender no governo naquele
momento e defender definitivamente a
continuidade do regime. A sua noção de
democracia não combinava de forma alguma com
autoritarismo, ela se unia a sua concepção de
liberdade política e social.

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Considerações Finais
Nessa pequena reflexão que ponderou alguns pontos do
pensamento e militância de dois intelectuais que
vivenciaram o Estado Novo, observamos nas narrativas
dos autores uma necessidade defesa e explicação do
termo democracia, embora cada qual tenha adequado o
conceito e as práticas para que reforçassem o seu
próprio ponto de vista a respeito dos caminhos que
deveria trilhar o Brasil como nação. Ricardo propôs uma
adequação do conceito político para que este legitimasse
e fortalecesse as propostas do governo Vargas. Por todo
o recorte da pesquisa, encontramos a tentativa de
convencer o leitor que Vargas propunha uma nova
democracia, que diferentemente da democracia liberal,
atendia o povo nas suas necessidades, promovendo o
bem comum por meio da inclusão de medidas de
“autoridade” por parte do Estado, explicando que o
momento político assim exigia. Mas, para Jorge Amado, a
ideia de democracia não combinaria, de forma alguma,
com qualquer medida autoritária, especialmente no que
feria a liberdade de expressão da intelectualidade. Por
fim, é necessário salientar que os dois intelectuais
contribuíram para o engajamento político da
intelectualidade naquele momento, quer por uma
posição mais favorável ao governo, quer por um
posicionamento contrário. A questão do poder envolveu,
também, os seus textos de forma a motivar ações que
pretendiam promover uma identidade nacional entre os
escritores e leitores. A análise feita a partir da utilização
das duas fontes, literatura e imprensa, foi importante,
portanto, não apenas para esclarecer melhor como se
deu a construção do pensamento de Cassiano Ricardo e
Jorge Amado, com relação à nação, como ainda
proporcionou enxergar os demais participantes da
história, ou seja, aqueles que contribuíram, de forma
indireta, porque eram lidos por esses intelectuais, e
aqueles que participaram dos debates nos referidos
jornais. Por meio do diálogo entre as fontes, que ampliou
a investigação no que se refere às militâncias políticas
desses intelectuais, foi possível ainda observar que não
podemos definir os intelectuais apenas a partir dos seus
textos literários ou dos grupos de literatura que
participavam. Houve disputas e alianças, influências do
campo político perceptíveis a partir da análise da
trajetória de cada um e da literatura para além do texto.
Como afirmou Williams (2011), a relação do projeto
intelectual com sua formação é sempre decisiva e não
deve haver a sua separação (WILLIAMS, 2011, p. 172),
desta maneira, podemos entender os conflitos em uma
maior profundidade e dimensão.

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Referências Bibliográficas
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Passos, coração militante: poesia, prosa, biografia, fortuna crítica. Salvador: EDUFBA-CORRUPIO, 2010.
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In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: vol.30, n 62, p.623-642, setembro de 2017.
GATTAI, Zelia. Um baiano romântico e sensual: três relatos de amor. Rio de Janeiro: Record, 2002.
GIRADET, Raul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. GOLDSTEIN, Ariel. A
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PINHO, Adeítalo Manoel. Uma história da literatura de jornal: o Imparcial da Bahia. Tese (doutorado em
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SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: REMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de
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Fontes:
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RICARDO, Cassiano. Martim Cererê: o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis. Rio de Janeiro: José
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________________________________. Marcha para o Oeste: a influência da “Bandeira” na
formação social e política do Brasil. 4 ed . Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.
A Manhã, Rio de Janeiro, agosto de 1941 a novembro de 1943.
O Imparcial, Salvador, dezembro de 1942 a dezembro de 1943.

NOTAS:
1 Wilson Lins, além de ter sido o diretor na última fase d’O Imparcial (1940-1947) iniciou uma coluna de
crônicas e críticas ao governo de Getúlio Vargas e ao interventor da Bahia Landulfo Alves (PINHO,
2008, p. 97). Lins trabalhou ainda no Diário de Notícias, Diário da Bahia e A Tarde e foi colaborador do
Jornal da Bahia. Romancista, novelista, cronista e ensaísta, tinha como tema constante em suas obras o
regionalismo, principalmente a região do São Francisco. Utilizou muito o pseudônimo de Rubião Brás.
Disponível em:
https://web.archive.org/web/20140101142120/http://www.al.ba.gov.br/deputados/Deputados-
Interna.php?id=370 acesso fevereiro de 2020. Entre outras obras escreveu: O Médio São Francisco: uma
sociedade de pastores e guerreiros, obra na qual analisa a questão do São Francisco como o “rio da
unidade nacional”, partindo da sua própria experiência e vivência na região.
2 Jackson de Figueredo Martins nasceu em Aracaju, em 1891. Foi bacharel em direito, mas se dedicou à
política e ao jornalismo. Também organizou o movimento católico leigo. Fundador da revista A Ordem
entre 1921 e 1922, combateu nesse espaço o comunismo, o liberalismo e a revolução de um modo geral.
Foi através de sua obra que o pensamento conservador, tradicionalista ou reacionário foi introduzido
no Brasil. Colaborou ainda no Gazeta de Notícias e O jornal, além de ter escrito entre outras obras
Afirmações em 1921, A reação do bom senso em 1922 e A coluna de Fogo em 1925. Disponível em
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/jackson_de_figueiredo. Quando Jorge
Amado escreveu O Cavaleiro da Esperança, esse autor já havia falecido, Amado se referiu a ele como
um precursor do conservadorismo e da literatura de influência integralista.
3 A escritora baiana Jacinta Velloso Passos nasceu no município de Cruz das Almas no Recôncavo
baiano em 1914. Em 1942, quando o Brasil entrou na guerra, Jacinta Passos envolveu-se com os grupos
de esquerda e se dedicou com afinco à poesia e à luta contra o nazifascismo. Tornou-se também
jornalista, publicando em O Imparcial semanalmente a “Página Feminina” que, segundo a biografia feita
por Janaína Amado, ampliou muito os assuntos habitualmente reservados às mulheres, introduzindo
discussões políticas e literárias. Casou-se com o irmão mais novo de Jorge Amado, James Amado em
1943 e em 1945 filiou-se ao PCB. AMADO, Janaína. Biografia de Jacinta Passos: Canção da liberdade. In
AMADO, Janaína (Org.) Jacinta Passos, coração militante: poesia, prosa, biografia, fortuna crítica.
Salvador: EDUFBA-CORRUPIO, 2010.
4 Em sua obra Girardet observou que “todo processo de heroificação implica, em outras palavras, uma
certa adequação entre a personalidade do salvador virtual e as necessidades de uma sociedade em um
dado momento de sua história. O mito tende, assim, a definir-se em relação à função maior que se acha
episodicamente atribuída ao herói, como uma resposta a uma certa forma de expectativa, a um certo
tipo de exigência. ” (GIRARDET, 1987, p. 82).
36
G.

OS
SM
CO
Silvana Ferreira Mendes
Licenciada e Mestre em História pela
Universidade Estadual de Montes Claros.

FAZENDA
GAMELEIRA:
TRABALHO E
COTIDIANO

REVISTA COSMOS PÁG. 37


A cidade de Brasília de Minas / MG desde as origens no
século XIX esteve ligada às atividades agropecuárias e
assim permaneceu durante todo o século posterior.
Àquelas reproduziram práticas e relações sociais que
lentamente se alteraram alcançando os anos 1980 /90
divergindo amplamente do que o Estatuto do
Trabalhador Rural de 1963 preconizava. Pelo menos
foram estas as informações trazidas pelos relatos de ex-
trabalhadores rurais que muito contribuíram para a
produção da dissertação “Nós vivia nos tempo do
cativêro: vivências e trajetórias de trabalhadores rurais
brasilminenses (1970 / 90” que fora apresentada à
Universidade Estadual de Montes Claros em junho de
2019. O objetivo perseguido durante os trabalhos de
pesquisa foi tentar entender as trajetórias e vivências
dos trabalhadores rurais do município como um todo,
porém ao longo das entrevistas acabamos por recair de
forma incisiva e não intencional sobre aqueles
interligados à fazenda Gameleira. Como se percebeu, em
outras fazendas espalhadas pelo município de Brasília
de Minas, os trabalhadores também eram desrespeitados,
tinham relações turbulentas e marcadas pela exploração,
o estilo de vida cotidiana sendo pautado pelo exercício
de muitas e variadas atividades, além da escassez de
quase tudo. Ainda com a pesquisa em andamento
percebeu-se que tal fazenda despertava nos
entrevistados o desejo e até mesmo uma necessidade em
falar sobre a mesma e seus habitantes, sendo eles
proprietários ou não. Dentre os ex-trabalhadores rurais
que serviram na Fazenda Gameleira estão o senhor José
Alves Ferreira que juntamente com seu pai lá exerceram
a função de trabalhadores rurais de foice, enxada e
machado. As condições de trabalho eram realmente
muito difíceis - as ferramentas eram de sua propriedade,
os ingredientes da alimentação basicamente arroz e
macarrão quase sempre desacompanhados do feijão. Seu
José, ou Zé Verde como é popularmente conhecido, relata
que trabalhou na Fazenda Gameleira carpindo roças,
roçando mangas, cortando e carregando cana nos
ombros - "meus ombro era igual de cavalo véi", andava
umas quatro léguas de sua casa até o local de trabalho.

REVISTA COSMOS PÁG. 38


Fonte:https://www-geografia.blogspot.com/2014/09/brasilia-de-minas-historia-e-geografia.html

Ele cunzinhava uma mistura de banana; a fava ou feijão catadô era


mexido com farinha de mii. De vez im quando fazia um mingau
engrolado de fubá e leite como merenda de mei-dia. Ora que o sol saía,
já tava no sirviço e quando a pessoa num chegava cedo trabaiava até de
noite pa discontá. Num tinha negoço de discanso de mei-dia.1
Os relatos de Zé Verde não somente confirmam as rudes
condições de trabalho que imperavam nas fazendas do
município de Brasília de Minas como também fala sem o temor
característico identificado na maioria das entrevistas sobre o Sr.
(xxxxxx) – proprietário da Fazenda Gameleira. Tenta
caracterizá-lo de forma mais humana ressaltando não somente
suas virtudes, mas também suas fraquezas e possíveis deslizes.
Ainda sobre sua trajetória pessoal informa que era comum o
trabalho de garotos de doze anos em diante no manuseio de
diversas ferramentas em quaisquer atividades rurais: moagem
de cana, plantio e colheita de roça. "Nas muagem, quando o sol
saía já tinha quato carga de rapadura pronta". Segundo ele, toda
a família se levantava à meia-noite e ao nascer do sol estavam
prontas duzentas rapaduras. À criança e ao adolescente não
eram dispensados nenhum tratamento diferenciado, eram mini
adultos que deveriam ajudar a família prover o sustento. Os
estudos de Garcia Júnior2 nos dão conta de que todos os
membros de um mesmo grupo doméstico devem ajudar ao pai de
família, pequeno produtor, a obter o necessário ao consumo
familiar. Sendo aquele que determina e requer a ajuda que julga
suficiente para suprir as demandas da unidade familiar. Ainda
segundo o autor, confrontados a um trabalhador pago, o esforço
dos filhos aparece como gratuito, apesar de potencialmente
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todos os membros da unidade familiar serem trabalhadores. Do


trabalhador mirim era esperada a mesma eficiência no
manuseio de qualquer ferramenta, quer fosse enxada, machado,
foice, facão. A riqueza das informações de Zé Verde se dá não
somente por conta dos detalhes do dia a dia na fazenda, mas
também deixa claro acerca das relações de trabalho - a rudeza
por parte dos patrões no dia-a-dia e as formas de descarte
quando os mesmos não eram mais benquistos na propriedade.
Frente ao comportamento do fazendeiro (coragem e valentia antes
referidos), verifica-se ainda o procedimento de alguns empregados, devido
as suas atitudes foram chamados na região de capangas: “Na fazenda
Gameleira tinha capanga, eu conheci um chamado João Vaqueiro, muito
marvado! Ele era de natureza pior do que o véio (xxxx), muitas e muitas
vezes ele buscava o povo que (xxxxx) mandava, amarrado no cabo do
animal.”3
Esta forma violenta de tratar os empregados, fora amplamente contada e
recontada por parcela considerável dos entrevistados. Cada um se lembra
de episódio marcante protagonizado pelo fazendeiro e/ou filhos e/ou
vaqueiros - estes faziam às vezes de jagunços / capangas, sendo
requisitados para executar corretivos ou mesmo buscar alguém que de
alguma forma desobedecesse às regras da fazenda. Chico4 se lembra de
João Vaqueiro e reafirma a sua fama de valentia na fazenda – reconta
entre risadas o episódio em que o dito vaqueiro enfrentara o fazendeiro5 .
Segundo Chico, João Vaqueiro tinha a função de fazer “ruindade” com os
outros, enquanto guiava o camarada o velho (xxxx) ia atrás chutando os
fundos (as nádegas) daquele. Sempre andava armado. E apesar de afirmar
que o dito fazendeiro era muito malvado, ressalta que nunca fora
maltratado por ele. E com voz em tom bem mais baixo conta-nos que o
fazendeiro batia “ne gente dimais”, tanto mandava como ele mesmo dava
pezada nas pessoas. “Matava aquelas vacas cheia de câimbra pa dá o povo.
A comida da famia dele era outra, fia.” Este entrevistado, trabalhara na
fazenda Gameleira onde sua família fora agregada até ser expulsa porque
um de seus irmãos, que era carreiro, engravidara uma moça de lá. Chico
levava alimentação para os camaradas em seus locais de serviço,
independentemente da distância percorria-a a pé, “chegava do armoço,
voltava, era na hora do café, quando chegava do café, era hora da janta.”
Ganhava pelo serviço prestado o suficiente para comprar “bala doce”. Mas
informa que no momento do acerto recebia vales que seriam trocados na
venda da fazenda no momento das compras de víveres e suprimentos para
o consumo familiar. Normalmente estes vales eram insuficientes para
quitar toda a dívida, sendo comum, os trabalhadores ficarem sempre na
condição de devedores. Naquela época, Chico era ainda adolescente, mas
reafirma a versão do Sr. Zé Verde acerca do cardápio cotidiano bem como
a existência de tarefas que ocupavam todos os membros de uma mesma
família - sua mãe e irmãs trabalharam nas colheitas de algodão.
D. Pedrelina6 se lembra de que deputados e outras autoridades almoçavam
em casa do Sr. (xxxx) e sua filha Lúcia ainda adolescente de 14 anos era a
escolhida para cozinhar nestas ocasiões. Depois de muito relutar, a
entrevistada acabou por confessar que era íntima da casa de seu (xxxx),
era lavadeira da família e a Lúcia era filha do cunhado daquele. Mas se
esquiva com discrição das perguntas e ressalta um pouco exageradamente
as virtudes do Sr. (xxxx) "ele era muitio boa pessoa". Em algum ponto da
entrevista Lúcia, a filha, junta-se à conversa e afirma "tem duas coisas
sobre Ti (xxxx) que num conto" e a mãe confirma tal decisão e explica a
motivação "tenho medo". Os depoimentos de mãe e filha carregados de
evasivas acabaram por dizer muito mais através das palavras não ditas.
Mas uma expressão insistentemente repetida pela filha ecoou fundo: "os
escravos de Tio (xxxx)". Quando inquirida sobre, a mãe tentou
desconversar afirmando que era porque os empregados trabalhavam
muito, mas a filha esclareceu "não era só de trabalhar muito, pelo fato de
ter muita coisa comigo, eu fechava assim (mostra com a mão espalmada
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sobre os olhos) pra não ver as coisas que aconteciam aos finais da tarde
com os escravos de Tio (xxxx)." E ainda compara às reportagens veiculadas
na mídia televisiva acerca de casos de trabalho escravo na atualidade -
"Isso num tá longe, não. Já aconteceu em nossa família" - conta-nos que é
este o pensamento que lhe ocorre nos momentos em que assiste a estas
reportagens. Mas se referir aos trabalhadores da fazenda Gameleira como
escravos, já o fora feito por diferente entrevistado num outro contexto.
Por volta de 73 a 74, eu trabalhava
emprestado para (xxxx) por um arrendatário
da fazenda. Era um campo de algodão, nós
tínhamos que limpar tudo; eram uns dezessete
meninos de 11 a 16 anos. Ficamos sabendo que o
tratamento naquela fazenda era de escravos;
como nós fomos emprestados pelo
arrendatário chamado Nato, nós fomos assim
mesmo prestar o serviço. Esperando pelo
almoço, chegou a bacia de cumida, farinha
dura, fava e sebo; então combinamos que se o
café da tarde fosse da mesma forma que foi o
almoço, a gente ia embora, mas um de nós
tinha que dar um assovio para avisar. Quando
chegou o café em uma lata de querosene e uns
copos de lata também e rapadura pra comer.
De repente veio queijo e requeijão
acompanhado de uma garrafa térmica,
inclusive foi a primeira vez que vi uma
garrafa daquele jeito. Mas aquilo tudo não era
pra nós. Como havíamos combinado, um de
nós deu o sinal e todos correram fugindo da
fazenda, mesmo assim (xxxx) correu atrás da
gente perguntando o que tinha acontecido.
Logo mais, a noite (xxxx) procurou o
arrendatário e falou com ele que se o mesmo
tratasse aqueles empregados com boas
comidas nunca iria enricar.7

Esta entrevista nos é bastante cara não


somente por confirmar a presença de
crianças e adolescentes exercendo funções de
adultos como prática corriqueira nas
fazendas, como também nos traz a
informação de que as lavouras poderiam ser
cultivadas também sob a forma de
arrendamento e principalmente nos confirma
o que as entrevistas mais recentes já o
fizeram – a rudeza no trato com os
trabalhadores. Nos certifica de que o
proprietário tinha consciência da precária
alimentação oferecida àqueles, não se pode
pensar que talvez fosse responsabilidade de
encarregados ou gerentes apenas. O cardápio
escolhido para ser oferecido aos
trabalhadores era algo pensado, contabilizado
como economia para o proprietário.
As lacunas deixadas por mãe e filha - D.
Pedrelina e Lúcia -, foram de certa forma,
preenchidas pelos depoimentos de três irmãs8
que também participaram da vida doméstica
na sede da fazenda Gameleira. Uma das quais,
fora babá dos filhos dos proprietários, sendo
responsável por todos os cuidados
concernentes aos mesmos, a exceção da filha
mais velha. A rotina diária começava antes
s
que os raios de sol surgissem, pois sua
ore
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primeira tarefa consistia em buscar leite no ad


curral para o preparo das mamadeiras. lh
Durante todo o dia acompanhava as crianças, aba
pernoitando junto às mesmas em noites tr
alternadas. Era uma atividade combinada os
ra
entre seus pais e os patrões sendo a pa
alimentação que fazia no ambiente de do
trabalho sua única remuneração, porém ura
aquela somente acontecia após todos os ns
membros da família já terem se saciado. Ce
Ajudada por uma de suas irmãs, que neste momento se junta a nós,
relembra muitos episódios vividos na fazenda; alguns relatos têm a
publicação permitida, outros não e alguns sequer são contados. A primeira,
ainda afirma que não usava calçados por não os terem e que gostava dos
momentos em que viajava acompanhando a família a Brasília de Minas e
Montes Claros, mas deixa claro que não chegara a conhecer tais cidades,
somente as casas em que hospedavam. Mesmo assim, estes se constituíam os
melhores momentos em seu trabalho como babá. Afirma ainda que o
patrão, apesar de muito exigente e rigoroso, não as maltratavam. Sendo a
convivência com a patroa muito mais difícil e ilustra com um episódio
acontecido por ocasião de uma passagem de natal em que fora presenteada
pelo patrão com uma linda blusa e que no momento de rescindir o
“contrato” a patroa não a deixara levar. Juntas as irmãs, que neste momento
da entrevista são três, contam alguns detalhes do cotidiano dos
trabalhadores e moradores da fazenda, sendo um de seus irmãos o carreiro,
outro trabalhava no engenho, as duas irmãs mais novas visitavam a sede
constantemente para brincarem com as filhas do proprietário enquanto a
mãe fazia os trabalhos de costura para a família; sendo o pai um dos
empreiteiros nas roçadas de manga, desta forma se verifica que toda a
família exercia trabalhos específicos na fazenda Gameleira. Segundo
aquelas, havia duas cozinheiras - cita nomes e são os mesmos que a filha de
D. Pedrelina considerara escravas - com responsabilidades definidas: uma,
pela comida que seria servida aos proprietários, demais familiares,
visitantes e aos empregados domésticos; a outra tinha por obrigação
cozinhar para os camaradas e demais empregados como os vaqueiros. A
diferenciação entre ambas também se dava no trato e no local de trabalho,
a primeira era considerada como “a madrinha” e labutava na cozinha da
casa, enquanto a segunda manuseava uma grande panela em uma trempe
feita com pedras de morro que se localizava na parte externa da casa num
galinheiro desativado. “As comidas eram preparadas numa trempe armada
num galinheiro, onde era despejada a fava diretamente do saco, sem
escolher. O arroz era quebradinho com picado de mamão, banana verde ou
abóboras regadas a sebo bovino.”9 A sede da fazenda era constantemente
visitada por pessoas que possuíam algum tipo de demanda com a justiça,
eram estranhos e perambulavam pelos cantos. Certa feita um deles acabara
por acertar um tiro “sem intenção” na perna de uma dessas garotas. O
irmão que trabalhava no engenho tivera uma desavença com o proprietário
por este exigir que o mesmo voltasse ao serviço depois de ter sido
seriamente acidentado no manuseio de um dos equipamentos de trabalho. A
irmã mais velha é mais explícita em suas declarações, enquanto as outras
duas claramente não dizem tudo que sabem e uma delas ainda pede "não
grava isso, não" e verifica-se outro ponto de intercessão com os
depoimentos de D. Pedrelina ao afirmarem que aconteciam muitas coisas
que não podem ser contadas. Quanto às atividades ligadas ao engenho,
Antônio Pereira da Silva10 ou simplesmente Tone Carreiro, afirma que em
certa ocasião o encarregado do engenho apanhara do proprietário com um
bagaço de cana e ainda completa "trabaiava um dia pa ganhá meio quilo de
toicinho, já levava o imbornal".11 Tal quantificação, na atualidade
equivaleria afirmar que um dia de serviço valeria de quatro a cinco reais
em valor monetário atual.
Lá no (xxxx) a comida era rúim dimais - picado de banana. Quando
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perguntado se chegara a morar na Fazenda Gameleira a resposta foi: _


"Deus que livra"! E justifica "aquele home era rúim dimais - o home era
mau, moça! Ali quem num tinha medo dele era só o João Vaquero. Ele batia
nos camarada". Mané Véio achou a cancela aberta e passou também. Quande
foi iscurecendo João Vaquero foi lá na casa dele com um mucado de jagunço
e marrou ele e levou ele pa drumi no depósito na fazenda do véi. Judiou dele
e ele trabaiô treis dia teno que cumê o que não gostava. Só depois de
concluídos os três dias de desagravo pela cancela aberta que o Mané Véio
fora solto pra ir para casa. 12
Manoel Mendes13 constituíra e criara família em terras de terceiros como
agregado prestando serviços a variados proprietários como arador de terra,
construindo cercas, ordenhando vacas. Inclusive um dos proprietários fora
(xxxx), onde tinha que chegar antes que o sol nascesse porque o fazendeiro
mandava voltar caso chegasse após a claridade do dia, este só terminava para o
trabalhador quando houvesse escurecido - o relógio mais certo era o mata
pasto que fechava suas folhas às seis horas, o que determinava o horário de
saída do serviço, orienta o Sr. “A”14 - de volta pra casa ainda ia ao lajeado
apanhar água na cabeça para a labuta na casa se preparando para recomeçar
no dia seguinte. “Nós trabaiava seis meses cortando cana. Entrava o mês de
outubro parava e ia preparar as roça.” Executava todos os tipos de serviço –
machado, enxada, corte de cana, ajudava na ordenha das vacas. Aposentouse
por influência do senhor (xxxx). Acredita que a alimentação precária oferecida
pelas fazendas por onde trabalhara ao longo de sua vida produtiva fora a
grande responsável por seu estado bastante deteriorado de saúde. Depois que
se mudara para o Paraná a alimentação também continuara a ser ruim e pelas
descrições dele juntamente com sua família percebe-se que em algumas
propriedades menores - cita nomes - a alimentação oferecida aos trabalhadores
era melhor, mas as atividades desempenhadas eram de curta duração. Nas
proximidades somente a fazenda Gameleira oferecia serviço o ano todo, apesar
de que “o povo tinha medo dele (se referia a xxxx)”. Seu Manoel nos conta que
um certo Rufino estando endividado na dita fazenda fora impedido de
trabalhar em outra propriedade por um sujeito com a espingarda em punho a
mando do Sr. (xxxx). Como forma de desagravo tivera que trabalhar seis dias
sem comer e sem beber no canavial da fazenda Gameleira. Sobre a
remuneração, o entrevistado ainda relembra que seus filhos e irmãos também
trabalhavam na fazenda e recebiam vales ao final do dia. Quando completavam
seis dias podia-se trocar por dinheiro - o que era raridade - ou por mercadorias
na venda e ainda afirma que vários dos filhos do fazendeiro responsáveis pelo
controle dos vales davam prejuízo aos trabalhadores, estes muitas vezes
trabalhavam e perdiam o dia por conta da desonestidade deles que se
recusavam a entregar ou anotar o vale corretamente sob qualquer pretexto. O
Sr. A.15, cuja família também fora freguesa na venda da fazenda Gameleira,
dali comprando tecidos e sal e vendendo mamona, fava, milho; curiosamente
nos informa a existência de duas medidas diferentes para fazer tais transações
– era uma medida maior para medir produtos comprados dos fregueses e outra
medida de tamanho menor para os produtos que estavam saindo do
estabelecimento.
Segundo ele, havia um livro grosso onde se faziam as anotações dos dias
trabalhados pelos camaradas, caso estes fizessem algo que desagradasse aos
proprietários, o dia seria cortado. Também o trabalhador poderia perder o(s)
dia(s) trabalhado(s) se, por um descuido, perdesse a latinha16 onde
costumavam guardar os tais vales17. Para o entrevistado, era incomum o
trabalhador receber dinheiro, quase sempre eram os vales que seriam trocados
em momento oportuno por mercadorias na dita venda. E afirma: “não tinha
valor, não”! se referindo tanto ao valor do dia trabalhado quanto aos frutos da
produção local levados à venda pelos trabalhadores. Contava-se os dias devidos
ao trabalhador e equiparava às mercadorias levadas por aquele - “num tinha
valor, não! Ninguém sabia nem que dinhêro era”.
O Sr. “A” fora vaqueiro na Fazenda Gameleira, onde aprendera o ofício desde a
adolescência quando começara guiando bois, e reafirma o desvio de função
quando escalado para ir em busca de algum camarada que houvesse faltado ao
trabalho, seu dia ficaria por conta do faltoso. Todos os dias do ano havia
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serviço na fazenda, inclusive toda a sua família trabalhara na fazenda para


onde se dirigiam diariamente, e explica a existência de metas diárias a serem
cumpridas e não se permitia que houvesse uma quebra destas metas
independentemente das condições adversas que poderiam ser encontradas. As
frutas do grande pomar dos fundos da residência principal e as canas jamais
poderiam ser degustadas pelos camaradas, se o fizessem as cascas deveriam
ser enterradas para que seus dias não fossem cortados, pois se flagrados, se
constituiria num roubo. Explica que os filhos do proprietário eram
responsáveis por fiscalizarem os camaradas durante o exercício das tarefas, e
também eram os mesmos que controlavam o caderno de anotações na venda,
sendo identificados os que faziam tais anotações de forma mais honesta.
Muita das vez, cê pegava o sirviço e ficava duente e eles falava: no dia
que ocê pegô aqui, cê num tava duente! É mintira, põe pra ele mais um
dia de sirviço! Tinha pessoa, Silvana, que falava assim “vim contá
meus dia, tô deveno noventa dia. Já tá bem face deu pagá!!Intão eu
falava assim, Silvana, o livro era todo seu? Os fio dele era disaforado.
Vinha pra qui (Fazenda Varjota e Ponte do Mangaí) com aqueles
bagaço (pessoas de má índole) de lá de Brasíla, tudo armado e até
punha os cavalo dento das venda. Es chegava na casa da gente e a
cabeça dos cavalo só faltava entrá dentro de casa. Se a gente
discuidasse e fosse lá na fazenda acumpanhado dum cachorro, eles
atirava nele im riba do cê.18
A fazenda era sempre cheia de trabalhadores de todas as funções,
inclusive pessoas estranhas provindas de lugares distantes fugindo de
alguma querela na justiça. A estes eram destinadas as piores tarefas
em lugares mais remotos e de difíceis acessos, não eram remunerados
e quando percebiam o excesso de exploração, fugiam da fazenda.
Conta o caso de um Chico que fugira e deixara a esposa e filhos na
fazenda, depois de instalado numa outra propriedade, enviara o novo
patrão para buscá-los e este teve que pagar uma suposta dívida
contraída pelo fugitivo e ainda recebera a recomendação de que o
mesmo não deveria passar nem mesmo na estrada que corta a
propriedade. Confirma como prática recorrente os castigos físicos a
trabalhadores da fazenda, inclusive as mulheres - tanto as adultas
quanto as mocinhas (cita nomes e conta episódios a título de
exemplificação).
Um dia mes nós tava lá (na casa do entrevistado juntamente com o seu
pai e um Genésio) e esse Genésio disse que não ia trabaiá limpano o pé
do ingem no outo dia (seria um domingo) que ia pa fulia. Aí pai falô:
Oh, Genésio, tu num foi não e lá vem o véi. Ele vinha e dava cada
piratada! Genésio falô: Pois ele num me pega, não! E correu pa dento
dum canavial que tinha, que pudia escondê criminoso. O véi foi em
Brasíla e trôxe duas puliça com umas espingarda mais o Valdomiro –
que era um vaqueiro deles. Procurô dimais até pu rumo de São João da
Ponte e Boa Vista, mas num encontrô ele. O Genésio iscondeu na casa
de seu padrim que procurô (xxxx) pra acertá as conta do afiado e
levou o recado de proibição de passá dentro das terra. Tinha um Lino
(Arlindo era o nome) que passô no alambique e tomô um pouco de
cachaça. O alambiqueiro (João Prata) negou ter entregue a cachaça e
mesmo assim ambos foram deixados presos em um quartinho para
trabalharem a semana seguinte com a finalidade de pagarem pela
dita bebida. No dia seguinte, quando a porta do quartinho fora aberta
o Lino conseguiu fugir e os carcereiros puseram os cães em seu
encalço. Mas não conseguiram alcançá-lo, enquanto o alambiqueiro
além de ter que trabalhar a semana como prometido, ainda recebeu
uma surra. Naquele tempo cê apanhava (cita nomes de agressores e
agredidos), dava o sangue pra eles lá e num tinha acerto.19
As ferramentas poderiam ser de propriedade da fazenda, no entanto
não eram fornecidos utensílios para os trabalhadores beberem água.
As condições materiais das vestimentas também eram muito ruins,
haviam muitos remendos feitos com linhas fiadas artesanalmente e os
calçados, quando os tinham, eram amarrados por cordas e feitos de
couro de animais. As crianças usavam roupas sumárias e os pés
descalços e “escola naquele tempo... Oh, gente! Escola ficava para os
dias de folga do serviço”.

REVISTA COSMOS PÁG. 44


O entrevistado nos conta que as pessoas se sujeitavam a estas
situações de vida e de trabalho por conta da pobreza de espírito, da
falta de recursos materiais e até mesmo por medo de enfrentar o
desconhecido, mas principalmente o medo das retaliações por parte
do fazendeiro e/ou ajudantes e/ou filhos. Desta forma, continuavam a
viver cotidianamente com o que angariava e a sonhar com o que
talvez viesse a adquirir exercendo atividades em outras propriedades
mais distantes.
Ele (se refere a XXX) era o home mais ladrão de tudo, Silvana! Ladrão
de terra, de dia de sirviço! Por isso que es tá aí hoje quase tomano pão
de criança. Judiô dimais das famía pobre e pobre de tudo! Es robô nós
dimais, aquela terra era boa dimais. Uns 8 alqueires que era de meu
avô.20
Nesta fala está a motivação pela qual o entrevistado não deseja que
seu nome seja publicado, até hoje o problema desta terra ainda está
pendente na justiça. Segundo ele a Gameleira era moradia de várias
famílias e o Sr. (xxxx) ajudado por um conhecido agrimensor (cita
nome bastante conhecido, hoje já idoso e muito doente) resolvera
medir a terra e anexá-la a sua propriedade. De acordo o Sr. “A”, o
acontecido se dera por volta de 1964 (ele calcula que teria uns 8 anos
de idade à época). Foram construídas cercas que delimitavam
somente o quintal e um pedacinho de brejo para as famílias de
moradores. “Passô a cerca berando a porta, assim”. Descreve a
riqueza da terra, cujas águas eram abundantes e molhavam umas
bananeiras que eram cuidadas por sua família. Havia um trecho de
mata virgem que tão logo o fazendeiro se apossara da terra mandara
derrubá-lo e o transformara numa área de pastagens para o gado.
Segundo ele, fora plantado um canavial pelo Sr. (xxxx), cujo acesso se
daria através das roças plantadas por seu avô e seu pai, desta forma
as mesmas eram constantemente estragadas pelo trânsito de carros
de bois e camaradas. “Chegava com os carro e dava uma volta dentro
das roça com a fava já estralano e o mii dibuiano. Acabava cas roça!
Cansô de fazê num foi uma, nem duas vez.” Lembra-se de que até
mesmo o pedacinho destinado ao quintal fora usado para o plantio do
dito fazendeiro, mas sua mãe resolvera ir conversar com aquele que
acabara por abandonar tal intento. “Uai, seu (xxxx), ocê tomô a terra
toda, onde vou criá meus fio? Aí no dia seguinte, os camarada num
voltô pa mexê no quintal, mais não.”
De acordo com o Sr. “A”, quando o Sr. (xxxx) resolvera dividir suas
propriedades com seus filhos, novamente entrara em cena o dito
agrimensor. No momento da execução da partilha fora reservada esta
parte juntamente com a sede da fazenda a (xxxx Filho). E aí, o litígio
continuou! Desta vez por via judicial. O Sr. “A” assegura ter direito à
terra que sempre fora ocupada por sua família e o (xxxx Filho) se
considera o herdeiro legítimo e empossado da mesma. Ambos alegam
ter a documentação da dita terra mas o herdeiro parece desejar
seguir os passos do pai e continua tentando reduzir o tamanho da
área destinada à família e quando encontra algum gado ali manda
retirá-lo e prendê-lo em currais ou queima ou impede plantações na
área. Este episódio da queima da plantação de cana acontecera logo
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quando “começô o real”, ou seja, por volta do ano de 1994 e fora


resolvido de forma que o Sr. (xxxx Filho) tivera que ressarcir o dano
causado com a quantia de quatrocentos reais pagos em duas vezes. As
tentativas de impedir que fossem efetuadas novas plantações se
davam através de recados de proibição ou efetivamente com ações -
mandava desatrelar os bois do arado quando estavam preparando a
terra. Vale ressaltar que nesta área ainda residem irmãos e sobrinhos
do Sr. “A”, este reside com sua esposa numa outra propriedade mas
continua a prestar assistência aos parentes e a lutar para preservar o
que considera herança de seu avô.
Durante todo o período de entrevistas e depois no trabalho de análise
das mesmas, tudo provoca surpresa com relação à Fazenda Gameleira,
principalmente as relações de sociais verticais travadas em seu
cotidiano. É como se estivesse todo esse tempo montando um
intrincado quebra cabeças, onde as peças começam a se encaixar
conferindo sentido, dando outro colorido ao que vi e ouvi em minha
infância. Não parece combinar as ações que foram amplamente
testemunhadas pelas falas dos entrevistados àquele rosto bonachão e
de sorriso fácil quando estava em companhia dos amigos ao qual
presenciei algumas vezes quando criança, mas casa perfeitamente
com trechinhos de conversas cochichadas e às frases soltas que
ouvira sem, no entanto, compreender. Derradeiro dia que nós trabaiô
lá, as filhas dele (cita as duas mais velhas) nós tava jantando e elas
ficou rudiano nós cumeno uma gamela de cumida. Elas pegou e falou:
qual dos cês que tá devendo papai? O que tiver devendo, tá liberado.
Quem tava ganhando, tá liberado. Doje em diente não tem mais
camarada. Vamo levar papai. A fazenda já tá entregue pa (xxxx
Filho), ou seja, a herança fora dividida em vida. Daí 2 meses o véi
morreu.21 O Sr. Manoel Mendes estava presente no momento em que
as filhas do Sr. (xxxx) deram por encerradas as atividades na fazenda
sob a direção do próprio, sendo inusitada a forma como o fizeram -
não ofereceram aos trabalhadores da fazenda Gameleira um acerto
de contas justo - perdoaram aos devedores do fazendeiro, mas não
pagaram as dívidas daquele junto aos trabalhadores credores. Isto se
deu provavelmente no início do ano de 1993, uma vez do seu
falecimento a 31 de maio do mesmo ano. Reviver as experiências dos
ex-trabalhadores rurais da Fazenda Gameleira através dos relatos de
quem vivenciou e/ou presenciou é muito importante para que se tente
vislumbrar os modos de vida daquelas na trajetória de construção do
município de Brasília de Minas. Mas um questionamento inquieta o
ouvinte / leitor / entrevistador – por que tais condições de
trabalhado e relações sociais conturbadas eram toleradas ainda nas
décadas de 1970 / 90? Talvez o Sr “A”, em sua narrativa nos conduza a
uma possível, ao afirmar que era a pobreza de isprito” dos
trabalhadores rurais que os impediam de procurarem alternativas
outras de sobrevivência fora daquele ambiente conhecido, porém
adverso. “Pobreza de isprito” pode ser interpretada como falta de
iniciativa, medo de aventurar-se em busca de melhorias em
ambientes novos aos quais não se tinha familiaridade ou talvez,
poderia ser entendida também por medo de retaliações por parte do
ex-patrão e o ex-trabalhador não saber ou não ter como delas se
defender. Analisando os depoimentos, entendemos que a permanência
destes trabalhadores na referida fazenda se devia ao fato de sê-la a
única propriedade onde se oferecia serviço durante todo o ano em
consequência da demanda expressiva de mão de obra necessária às
suas atividades. Outro fator provavelmente era a venda –
estabelecimento comercial - cuja finalidade era comprar a pequena
produção dos trabalhadores e vender-lhes todos os víveres e
suprimentos que possibilitavam a manutenção de si e seus familiares.
A venda constituía-se num engenhoso mecanismo de manutenção dos
trabalhadores na fazenda, uma vez as dívidas contraídas por aqueles
serem dificilmente saldadas.
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Os ex-trabalhadores rurais passaram a morar nos arredores da sede
do município onde fundaram ruas e posteriormente, bairros.
Sofreram muitas discriminações por conta de suas manifestações
culturais e costumes. As folias de reis – Seu Zé Verde é folião -, os
quintais plantados com feijão guandu por onde circulavam porcos e
galinhas, os cavalos e burros continuavam sendo o transporte dos
mais abastados. As feridas e outros males sendo curados através de
benzimentos e promessas aos santos. Desta forma se constituíram nos
desbravadores da rua São Francisco e no Andu, atual Santa Cruz. A
trajetória traçada na execução da pesquisa fora redirecionada pelas
informações trazidas pelos entrevistados, frustrações a parte,
entendemos a importância deste trabalho para se compreender um
pouco da formação social, econômica e cultural do município de
Brasília de Minas, uma vez não se encontrar publicações que tenham
seus trabalhadores rurais como sujeitos históricos.
As fontes orais são únicas e significativas por causa de seu enredo, ou
seja, do caminho no qual os materiais da história são organizados
pelos narradores para contála. Por meio dessa organização, cada
narrador dá uma interpretação da realidade e situa nela a si mesmo e
aos outros e é nesse sentido que as fontes orais se tornam
significativas para nós.22
O valor desta narrativa histórica se avoluma quando se tem ciência de
seu caráter único, uma vez da morte de alguns entrevistados e a idade
avançada de tantos outros, tem-se a certeza de que talvez suas
experiências e vivências jamais seriam recontadas e /ou
compartilhadas.

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http://iscapoetica.blogspot.com/2011/10/boia-fria.html
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AQUINO, Leila Cordeiro de. Coronelismo Tardio em
Angicos de Minas / Brasília de Minas -
1950 a 70. Unimontes. São Francisco. 2006. Monografia.
JUNIOR, Afrânio Raul Garcia. Terra de Trabalho: trabalho
familiar de pequenos produtores.
Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1983.
KHOURY, Yara Aun. Historiador, as fontes orais e a escrita
da história. In: MACIEL, Laura
Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto; KHOURY, Yara Aun.
(orgs). Outras Histórias:
memórias e linguagens. Olho D’Água. 2006.
LISTA DE ENTREVISTADOS:
"A"
Antônio Pereira da Silva (vulgo Tone Carreiro). Lavrador
aposentado. 81 anos. Gravado em
15/02/17. Brasília de Minas.
Dalcília Gonçalves de Sousa. Aposentada. 72 anos. Gravado
em 20/11/17. Suas irmãs que estavam presentes não
permitiram que seus nomes fossem divulgados. Brasília de
Minas.
Francisco Ferreira de Queiróz. Lavrador. 59 anos.
Entrevista gravada em 19/05/17. Brasília de Minas
José Alves Ferreira (vulgo Zé Verde), 65 anos; lavrador
aposentado e folião. Gravado em
21/01/2015. Brasília de Minas.
Manoel Mendes, trabalhador rural aposentado, 87 anos.
Entrevista gravada em 30/03/18.
Ponte do Mangaí, atual município de Japonvar / MG.
Pedrelina Gonçalves de Jesus. Aposentada de 87 anos.
Gravado em 22/01/2015. Brasília de Minas
NOTAS
1 Depoimento de José Alves Ferreira (vulgo Zé Verde), 65
anos; lavrador aposentado e folião. Gravado em
21/01/2015. Brasília de Minas.
2 JUNIOR, Afrânio Raul Garcia. Terra e Trabalho: trabalho
familiar de pequenos produtores. Rio de Janeiro. Paz
e Terra. P 117; 103-104.
3 AQUINO, Leila Cordeiro. Coronelismo Tardio em Angicos
de Minas / Brasília de Minas – 1950 / 70. Unimontes. São
Francisco. 2006. Monografia. P 64.
4 Depoimento de Francisco Ferreira de Queiróz. Lavrador.
59 anos. Entrevista gravada em 19/05/17. Brasília de
Minas.
5 O episódio recontado por muitos entrevistados dá conta
de que o Sr. (xxxx) reclamara algo ao João Vaqueiro e
como forma de reforçar abrira a cancela soltando um
bocado do gado preso e o empregado em resposta à
afronta do patrão atirara na lata de leite derramando-o
totalmente. É o único relato que dá conta do fazendeiro
ter sido afrontado por um subalterno, todos os outros é o
inverso.
6 Depoimento de Pedrelina Gonçalves de Jesus.
Aposentada de 87 anos. Gravado em 22-01-2015. Brasília
de Minas.
7 Antonio Jose Mendes (Tone de Valério) em entrevista a
AQUINO, Leila Cordeiro de. Op. Cit. P 68.
8 Depoimento de Dalcília Gonçalves de Sousa. Aposentada.
72 anos. Gravado em 20-11-17. Suas irmãs que estavam
presentes não permitiram que seus nomes fossem
divulgados. Brasília de Minas.
9 Sr. “A.” Op. Cit.
10 Depoimento de Antônio Pereira da Silva (vulgo Tone
Carreiro). Lavrador aposentado. 81 anos. Gravado em 15-
02-17. Brasília de Minas.
11 Sacola confeccionada com tecido grosso e com alças
REVISTA COSMOS PÁG. 48

laterais para se usar à tiracolo para carregar objetos e /


ou mantimentos.
12 Tone carreiro. Op. Cit.
13 Manoel Mendes. Op. Cit. 14 Sr. “A.” Op. Cit. 15 Sr. “A.” Op.
Cit.
16 Latinhas compradas com soda cáustica eram utilizadas
como cofres onde se guardavam os vales.
17 Os vales eram anotações feitas em tirinhas de páginas
de cadernos onde se anotava cada dia trabalhado e
deveriam ser apresentados no momento de acertar as
contas na venda.
18 Sr. “A.” Op. Cit. 19 Sr. “A.” Op. Cit. 20 Sr. “A.” Op. Cit. 21
Manoel Mendes. Op. Cit.
22 KHOURY, Yara Aun. Op. Cit. P 84.
COTIDIANO E TRABALHO: IMAGENS COMO
CONSTRUÇÃO
DE MEMÓRIA NO DISTRITO DE
ENGENHEIRO DOLABELA

José Reinaldo Pereira


Analista Educacional na Superintendência Regional de Ensino de Montes
Claros e Professor Mestre em História na rede estadual de ensino de Minas
Gerais nas Escola Estadual Antônio Canela
Engenheiro Dolabela, breve histórico.

Engenheiro Dolabela concerne em um


distrito pertencente ao município de
Bocaiuva, mas, no decorrer do século XX,
era propriedade da empresa Granjas
Reunidas do Norte e Cia., sob
administração do conde Alfredo Dolabella.
Inicialmente, era um vilarejo construído
pela empresa para abrigar os funcionários
que prestavam serviços para a Industrial
Malvina, que ali fora instalada. Produtora
de açúcar e álcool na região de Engenheiro
Dolabela, a Usina, foi, durante décadas do
século XX, responsável por imprimir
modos de vida e formas de trabalho
naquele lugar. Lá, foi elaborada uma
infraestrutura igual à de cidades da
região. O local contava com água
encanada, rede de esgoto, escola, hospital,
cinema, campo de futebol, luz elétrica e
hotel para atender as pessoas que vinham
de fora a fim de prestar serviços à
empresa (SIQUEIRA, 2001). Durante muito
tempo, a Industrial Malvina foi
responsável por parte significativa da
produção açucareira e etílica do norte de
Minas Gerais, sobressaindo na gestão dos
Matarazzo e, expressivamente, na
administração do grupo Atalla (CASTRO,
2006). Relevante para o desenvolvimento
político, econômico e social da região2 , a Engenheiro Dolabela MG, como era a usina industrial Malvina S/A

extensão territorial da empresa era Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=WupRUbwMoQk

bastante grande, e muitas pessoas vinham


de outras cidades, como Corinto,
Buenópolis, Bocaiuva Mirabela, para
trabalhar na instituição, principalmente
durante o período de safra e corte de cana.
No entanto, apenas a cidade de Bocaiuva
contava com a receita de impostos pagos
pela usina.
Por várias décadas do século XX, a
Industrial Malvina S/A polarizou a força
de trabalho local, ou seja, fez-se uma
referência importante para a geração de
REVISTA COSMOS PÁG. 50

emprego. Por conseguinte, de modo


natural, os moradores das redondezas
viam no estabelecimento uma
possibilidade concreta de obter trabalho e
renda. Hoje, esta não é mais uma realidade
nesse lugar. A pujança vivida no tempo de
atividade da Malvina ficou no passado,
guardada em fotografias e na memória
daqueles que convivem com o que restou.
A fotografia como recurso para a produção do conhecimento
histórico
O uso de imagens e fotografias como parte do processo de
elaboração do conhecimento em História é algo já consagrado pela
historiografia. Esses elementos contribuem para que possamos,
guardadas as devidas proporções, perceber parte das dinâmicas
inerentes às pessoas ou aos grupos sociais analisados.
Especificamente no que diz respeito ao nosso objeto de estudo, as
imagens são fundamentais como parte da abordagem em torno da
construção da memória do cotidiano e do trabalho das pessoas em
Engenheiro Dolabela e na Industrial Malvina, contemplando essas
fotografias não apenas o espaço laboral em que eram fabricados o
açúcar e o álcool, mas também outras áreas, como a praça, o estádio
de futebol, as ruas, o plantio e o corte da cana. É sabido que, com o
advento da Revolução Industrial e o investimento em pesquisas
científicas contribuíram significativamente para o surgimento de
várias invenções, que se modernizaram e foram evoluindo ao longo
dos tempos, passando a fazer parte do contexto econômico e social
da humanidade. Sobe essa égide, uma das ferramentas fundamentais
para a assimilação do processo histórico, a fotografia, se insere
como uma dessas inovações, colaborando “enquanto possibilidade
inovadora de informação e conhecimento, instrumento de apoio à
pesquisa nos diferentes campos da ciência e também como forma de
expressão artística”. (KOSSOY, 2012, p. 27). Desde a descoberta da
fotografia, foi travado um embate entre a validade documental
como fonte histórica ou não. A sua aceitação tem passado por
diversas discussões, o que nos possibilita citar:
Entre as manifestações importantes ou significativas da memória
coletiva, encontra-se o aparecimento, no século XIX e no início do
século XX, de dois fenômenos. O primeiro, em seguida a Primeira
Guerra Mundial, é a construção de monumentos aos mortos. (...)O
segundo é a fotografia, que revoluciona a memória: multiplica-a e
democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca
antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da
evolução cronológica. (LE GOFF, 1990, p. 466).
A fotografia como fonte começou a ser trabalhada com mais ênfase
na França, a partir da terceira geração dos Annales, como um
documento visual. Nesse contexto, Le Goff evoca a importância dos
monumentos aos mortos erigidos após a Primeira Guerra Mundial,
marco simbólico não só do conflito, mas uma permanente lembrança
entranhada na memória do povo europeu. A reprodução imagética
adquire papel semelhante, mas paralelo, à medida que registra um
determinado tempo e espaço, uma fração única do tempo, congelada
por meio de um click, que permanecerá gravada em um papel
através das gerações. Logo, a representação fotográfica também é
um culto à memória não somente dos mortos, mas dos interesses
envolvidos em sua produção. A fotografia, segundo Le Goff, está
entre os grandes documentos para se fazer história por consistir em
provas de que algo aconteceu com a precisão nunca antes atingida.
Nesse sentido, Kossoy postula:
REVISTA COSMOS PÁG. 51

A imagem do real retida pela fotografia (quando preservada


ou reproduzida) fornece o testemunho visual e material dos
fatos aos espectadores ausentes da cena. A imagem
fotográfica é o que resta do acontecido, fragmento
congelado de uma realidade passada, informação maior de
vida e morte, além de ser o produto final que caracteriza a
intromissão de um ser fotógrafo num instante dos tempos.
(KOSSOY, 2012, p. 38).
Para o autor, a imagem concerne em um
instrumento capaz de fornecer o testemunho
de um fato ocorrido, levando-o ao
conhecimento de todos os que não se faziam
presentes no momento. Ao paralisar uma
parte do tempo, o retrato registra o
acontecido e se torna uma informação
preciosa, que pertence ao passado e à
memória. Mesmo sendo intencional ou
realista, representa uma inegável expressão
coletiva ou individual; a figura mostra toda
a riqueza do simples ato de ver por
intermédio do fotógrafo, que expressa, por
meio de sua técnica e sua criatividade, a
produção de um texto visual, capaz de
retratar as etapas da vida, do tempo e da
evolução. Em contrapartida, a história por
meio da fotografia3 parte para a análise e
submete o conteúdo que compõe a imagem a
um exame iconográfico e interpretativo,
buscando identificar se há valor documental
que possibilite o resgate da memória visual
do indivíduo. (KOSSOY, 2012). Nessa
perspectiva, Mauad (1996) salienta que é
importante estar atento a alguns problemas
que vão surgindo quando se decide utilizar a
fotografia como fonte não verbal:
No que diz respeito à fotografia, alguns
problemas merecem atenção especial.
Problemas que envolvem tanto a natureza
técnica da imagem fotográfica como o
próprio ato de fotografar, apreciar e
consumir fotografias, entendendo-se este
processo como o circuito social da fotografia.
Deve-se acrescentar ainda, é claro, os
problemas relativos à análise do conteúdo da
mensagem fotográfica, que envolvem
questões específicas aos elementos
constitutivos desta mensagem. (MAUAD, 1996,
p. 6).
Assim sendo, ao se propor a trabalhar com
fotografias, é preciso, durante o processo de
manipulação, compreender e problematizar
o material de análise, devendo dispensar
maior atenção às questões técnicas e
iconográficas. Cabe ao historiador
identificar e interpretar partes ou a
totalidade de componentes que integram a
mensagem visual exposta de caráter social.
REVISTA COSMOS PÁG. 51

Em conformidade com Mauad, “a fotografia é


uma fonte histórica que demanda por parte
do historiador um novo tipo de crítica. O
REVISTA COSMOS PÁG. 52

testemunho é válido, não importando se o


registro fotográfico foi feito para
documentar um fato ou representar um
estilo de vida”. (MAUAD, 1996, p.8).
Podemos enfatizar que as fotografias consistem em
documentos que contribuíram significativamente para a
compreensão das dinâmicas do trabalho e das mudanças que
possibilitaram uma transformação local. As imagens
selecionadas para este artigo, nos permite observar a
transformação ocorrida no distrito de Engenheiro Dolabela
ao longo do tempo, registros feitos sob encomenda pelos
gestores da época. O futebol relacionava diretamente com o
trabalho e o dia a dia das pessoas que ali viviam, e que, na
atualidade ainda faz parte do cotidiano local, não da mesma
forma como vemos nos registros fotográficos ao longo do
texto. A prática esportiva era incentivada e patrocinada pela
empresa estratégia de controle e organização social do
período, o que não é mais realidade. Vale ressaltar que,
durante o processo de análise das imagens, observamos que
houve uma profunda transformação na forma como o
empreendimento agroindustrial era percebido por seus
gestores. Se, até os anos 1960, prevaleciam figuras em que os
trabalhadores apareciam como parte integrante da paisagem
fabril, a partir da década de 1970, com o processo de
modernização do cultivo e do tratamento da cana, além das
transformações no modelo de gestão, o funcionário passou a
ter papel secundário na memória fotográfica na Industrial
Malvina. Na prática, as imagens nos permitem elaborar
sentidos em torno das próprias transformações da sociedade
brasileira, por meio das quais deixamos de ser carentes de
tecnologias e dependentes, quase exclusivamente, da mão de
obra humana para rompermos esse paradigma e
atravessarmos o acelerado processo de modernização do
parque industrial e dos métodos de produção, em que as
máquinas assumem o papel de representar o aumento da
produtividade e dos lucros, e os homens são elementos
importantes, mas estão condicionados à eficiência dos
equipamentos. No entanto, não pretendemos abordar toda
essa discussão nesse artigo. Dessa forma, percebemos eu ao
longo dos anos, Engenheiro Dolabela teve seus espaços
registrados, desde o tempo da sua fundação, ainda sob gestão
dos Dolabella, posteriormente, dos gerentes do grupo
Matarazzo, até a atuação do grupo Atalla. Essas fotografias,
com a ação do tempo, amarelaram ou quase se apagaram,
mas resistem e nos testemunham a evolução dessa localidade.
A análise que propusemos está dividida em três momentos:
primeiro, o cenário urbano; segundo, o futebol, algo mais que
REVISTA COSMOS PÁG. 53

recreação e terceiro, o trabalhador e o trabalho na gestão


Matarazzo.

FRANCESCO MATARAZZO
Desenvolvimento de Engenheiro Dolabela através das fotografias. O
cenário urbano de Engenheiro Dolabela passou por mudanças ao
longo dos tempos, transformações foram ocorrendo à medida que a
indústria se desenvolvia. Uma área até então exclusivamente rural
tomou aspectos de cidade; milhares de trabalhadores se deslocaram
para o local a fim de conseguir serviço na fábrica de açúcar que ali
se instalara. Dessa forma, fica evidente que a implantação da usina
foi o que impulsionou a ocupação urbana daquela região. No
entanto, o local de origem de Engenheiro Dolabela é bastante antigo,
passou pela construção e pela inauguração da estação ferroviária
em 1922, com a chegada da Estrada de Ferro Central do Brasil,
denominada de Estação Jequitaí (VASCONCELLOS, 1934).

FIGURA 1 - Vista de Engenheiro Dolabela em fase de


desenvolvimento.

Fonte: Acervo, TOLENTINO NETO, Nicolau.

FIGURA 2 - Construção do coreto da praça central de Engenheiro


Dolabela

Fonte: Acervo, PEREIRA, J. R

Nessas duas imagens, podemos perceber a ocorrência de


transformações: na figura 1, há construção de casas, que já
aparecem concluídas na segunda imagem; a praça aparenta ser
ainda um projeto em andamento, há uma marcação no centro que,
na figura 2, é substituída pelo coreto já erguido. Ao fundo, vemos
uma faixa branca que consideramos ser o muro do Estádio
REVISTA COSMOS PÁG. 54

Hermelindo Matarazzo, o que nos fez questionar se o campo de


futebol foi erguido antes da criação da Associação Desportiva do
Jequitaí. Descobrimos que sim, de acordo com relatos e em
decorrência de outras fotografias feitas nesse campo de futebol já
murado.
Na figura 3, que acreditamos ter sido feita no decorrer dos anos
1970, podemos evidenciar como o cenário de Engenheiro Dolabela
havia se transformado: a praça, que, em outras imagens, era um
projeto, se mostra toda gramada, com bastantes árvores cobrindo o
coreto; a arborização também pode ser vista em torno das casas. O
processo de urbanização de Engenheiro Dolabela, conforme vemos
nas imagens acima, modificou as áreas em que acontecia a
socialização dos moradores. Nas imagens analisadas chama-nos a
atenção que o local de onde o fotógrafo realizou o registro A
arborização da praça não só permitiu criar um ambiente que
replicasse o das cidades maiores, mas ainda propiciou que o estádio
não fosse, como antes, visto a longa distância. Contudo, isso não fez
com que fosse arrefecido o interesse pelo esporte. O futebol, parte
do cotidiano, mais que recreação.
FIGURA 3 - Fotografia da praça central já construída e arborizada.

Fonte: Acervo, PEREIRA, J. R

O processo de urbanização de Engenheiro Dolabela, conforme vemos


nas imagens acima, modificou as áreas em que acontecia a
socialização dos moradores. Nas imagens analisadas chama-nos a
atenção que o local de onde o fotógrafo realizou o registro A
arborização da praça não só permitiu criar um ambiente que
replicasse o das cidades maiores, mas ainda propiciou que o estádio
não fosse, como antes, visto a longa distância. Contudo, isso não fez
com que fosse arrefecido o interesse pelo esporte.
O futebol, parte do cotidiano, mais que recreação.

O futebol fazia parte da vida cotidiana dolabelense. Seus campinhos


e o estádio constituem-se como monumentos que lá foram erguidos,
estão presentes nas memórias dos ex-trabalhadores e permitem-nos
REVISTA COSMOS PÁG. 55

compreender as imagens aliadas aos depoimentos, viabilizando


análises muito mais complexas e próximas das percepções relatadas
por aquelas pessoas. Na figura 4, datada entre os anos 1960 e 1961,
segundo conseguimos apurar4 , a qual trata do Democrata Futebol
Clube (DFC), que foi um dos times-base para a formação do time de
futebol da Associação Desportiva do Jequitaí, ADJ, notamos que o
campo principal de futebol de Engenheiro Dolabela já estava
murado, porém ainda era de terra - ele só recebeu gramado anos
depois.
FIGURA 4 - Jogadores do Democrata Futebol Clube - Engenheiro
Dolabela, 1960.

Fonte: Acervo, PEREIRA, J. R


Na imagem em explanação, vemos os jogadores uniformizados -
notadamente jogadores jovens -, dando a entender que a prática do
esporte era incentivada pela empresa, visto que os atletas estavam
equipados com material esportivo adequado ao futebol, além de,
possivelmente, terem um treinador (primeiro homem à direita de
calça). Aqui se encontra ilustrado o início da prática organizada do
futebol amador. O relacionamento entre os esportistas e indústria
era total: aqueles eram trabalhadores no horário de expediente e,
quando fora das dependências da empresa, atletas que faziam uso
do estádio construído pela Industrial Malvina para a prática do
esporte. O uniforme da equipe era financiado pela usina, e todo o
material esportivo também ficava às expensas da fábrica. A
fotografia 5 é datada de 1965, consoante publicação do Sr. Geraldo
Rocha feita na rede social Facebook, na qual ele relata ter
participado do jogo, dizendo ainda que se tratava de uma partida de
futebol entre o time da ADJ e o Cassimiro de Abreu da cidade de
Montes Claros. A imagem foi registrada antes do início da partida;
nela, temos a presença da Rainha da ADJ eleita no período e dos
capitães, sendo o de camisa branca o Tito, e o outro jogador o
Marcelinho.
FIGURA 5 - Partida de futebol entre o time da ADJ e o Casimiro de
Montes Claros.
REVISTA COSMOS PÁG. 56

FONTE: ACERVO, BRANDÃO, J. H


Notamos que há muitas fotos relacionadas ao futebol com a pose
clássica: alguns jogadores em pé e outros agachados. Nesta imagem
acima, mesmo em preto e branco, é possível perceber que o
gramado já havia sido plantado, já contava com alambrados ao
fundo, que separavam o público do campo. Na figura 9, datada de
meados dos anos 1970, o colorido revela como era o gramado. Nela,
apreciamos como o público lotava o estádio nas partidas do clube.
Nessa última fotografia abaixo, podemos ver os atletas posando
orgulhosos para a foto oficial do time. A quantidade de pessoas em
volta do alambrado sugere que era um jogo importante. O time
reflete o novo modelo de gestão da empresa no período. O campo
aparece com o gramado em bom estado, como podemos verificar na
imagem, os jogadores bem uniformizados e equipados - os que se
encontram em pé, mostram-se posicionados com os braços cruzados,
e os agachados certamente copiavam a forma como os atletas
profissionais se posicionavam para as fotografias antes das
partidas. Arquibacada, alambrados, tudo parece bem pintado,
oferecendo um aspecto de limpeza e organização.
Faz-se salutar discorrer que o futebol sempre estivera presente na
região e fez parte da rotina do povo, o qual alternava o trabalho e o
lazer que eram oferecidos pela empresa. O incentivo dedicado aos
jogadores foi imprescindível para a evolução do esporte local. Sob
essa ótica, a gestão do grupo Matarazzo contribuiu bastante para
essa prática, proporcionando estrutura física; o grupo Atalla deu
continuidade a isso, promovendo a manutenção dos espaços,
investindo na locomoão dos atletas (com a compra do ônibus), além
de oferecer pagamento extra por jogo, equipamentos esportivos de
boa qualidade, uniformes, redução de carga horária de trabalho,
acompanhamento médico, preparação física e treinador de futebol.

FIGURA 6 - Time da ADJ no Estádio Hermelindo Matarazzo posando


para foto

REVISTA COSMOS PÁG. 57

FONTE: ACERVO, PEREIRA, J. R


O trabalhador como representação do trabalho na Industria
Malvina.

Dentre a vasta quantidade de fotografias que retratavam


trabalhadores escolhemos três, as imagens mostram o trabalho na
Industrial Malvina, trazem alguns aspectos que chamam a nossa
atenção para a época; funcionários são fotografados durante o
processo de trabalho e fazem parte da empresa como peças
fundamentais; todos se encontram, de certa forma, bem vestidos; o
cenário se mostra aparentemente limpo, o que denota que essas
memórias estavam sendo produzidas como atos intencionais de
registro. Nesse sentido, alguns entrevistados relataram que o
estabelecimento contratava fotógrafo para efetuar tais registros, o
que nos fez questionar quem era(m) esse(s) fotógrafo(s). Embora
houvesse cuidado ao capturar o momento, questões técnicas
demonstram que não se tratava de um profissional da imagem.
FIGURA 7 - Trabalhador posando para foto dentro da Industrial
Malvina.

FONTE: ACERVO, PEREIRA, J. R.

Na figura 7, verificamos que o trabalhador faz


pose para ser fotografado. Além disso, ele
aparenta estar bem vestido, o cenário é limpo;
todavia, um profissional da imagem buscaria
aproveitar melhor a luz, teria posicionado sua
câmera de forma que o enquadramento fosse
melhor e, quando alcançasse um ângulo que o
favorecesse, registraria a informação que
desejava transmitir.
Na fotografia abaixo temos quatro trabalhadores
posando para o fotógrafo. Contemplemos que o
funcionário que está com a mão no saco de açúcar
se encontra bem vestido e alinhado; não obstante,
REVISTA COSMOS PÁG. 58

ele está descalço, e, novamente, o ângulo da


imagem não favorece a reprodução, o que pode
indicar que esse registro não tenha sido efetuado
por um profissional.
FIGURA 8 - Trabalhadores pesando açúcar

Fonte: Acervo, PEREIRA, J. R

Essas imagens almejam mostrar que o trabalhador não só está


no seu local de trabalho, mas que ele é parte do processo,
desempenha o seu papel, contribui com a instituição e faz
questão de registrar esse momento. O funcionário também é da
empresa, ele não consiste apenas em um empregado, é parte de
todo o mecanismo que permite o desempenho da indústria. como
podemos notar na fala do Sr. Marcos, o qual, quando
questionado acerca da vivência dentro da usina no dia a dia do
trabalho, relatou o que o marcara:
O companheirismo, era uma família, um ajudava om outro,
exatamente, cada torneiro tinha um ajudante, o torneiro titular
fazia questão de transmitir pra você o conhecimento tudo
certinho, era muito bom, o pessoal era muito humano pra
ensinar os outros, tinha aqueles mais carrancudo, mais era
normal, faz parte né, mas a maioria fazia questão de te ensinar.
(Marcos, entrevista concedida em 2019).
Ao rememorar suas vivências no trabalho, o entrevistado
descreve que havia por partes de alguns trabalhadores mais
experientes a boa vontade de transmitir seus conhecimentos
para os novatos; porém, ao mesmo tempo, ressalta que nem
todos manifestavam esse desejo e os chama de “carrancudos”,
supondo que eram pessoas de difícil trato. (Durante minha
experiência como operário, tive contato com funcionários mais
antigos da Nestlé, alguns com mais de 20 anos de trabalho na
empresa. Assim, pude constatar que, de fato, há pessoas que se
sentem satisfeitas em transmitir seu conhecimento, mas outras
REVISTA COSMOS PÁG. 59

dificultam a informação e não demonstram vontade de ensinar.


Essa dificuldade eu senti, vivenciei; entendi claramente a fala
do o Sr. Marcos.)
FIGURA 09: Trabalhadores na oficina mecânica

Fonte: Acervo, PEREIRA, J. R

Ao comparar os colegas de trabalho com


uma família, o ex-funcionário nos leva a
inferir que o tempo o qual passavam
juntos lhes permitia se conhecerem bem.
Percebemos que essa união e a troca de
saberes encontram-se presentes em
algumas fotografias da época, uma
construção de memória que a empresa
estava, de forma intencional ou não,
produzindo. Nesta figura abaixo, podemos
contemplar os operários em uma oficina:
temos um torno, onde um funcionário faz
esclarecimentos ao outro, o qual volta
toda a sua atenção para a máquina,
enquanto alguns observam o que está
sendo explicado e/ou ensinado no
momento.
O trabalho significado, experimentado
por pessoas que dedicaram toda a sua
vida àquele empreendimento e,
sobretudo, que prestaram serviços entre
as décadas de 1960 e 1980, tempo em que
Engenheiro Dolabela foi se
transformando, nos permite compreender
REVISTA COSMOS PÁG. 58

melhor o processo histórico do trabalho e


da gestão do lugar em análise. Durante a
gestão do Matarazzo, evidenciamos que a
empresa procurou retratar o processo
fabril junto ao trabalhador, um fazendo
parte do outro - característica do período.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contato com diversas fotografias da comunidade de Engenheiro


Dolabela e da Industrial Malvina sempre me causaram
curiosidade; os comentários que eu ouvia acerca dessa
localidade, enquanto criança, me despertavam a imaginação. Ao
me aprofundar nas histórias do lugar, conheci as experiências e
vivências dos trabalhadores - alguns eram filhos de pessoas que
haviam trabalhado para a empresa em outro tempo e relatavam o
que ouviram quando crianças, histórias de personagens que não
vivem mais, mas que puderam ser conhecidos através dos
registros fotográficos feitos na época. Assim, este trabalho, de
forma sucinta, buscou demonstrar como a fotografia é fonte
importantíssima para a análise e construção do processo
histórico. A imagem paralisada no tempo, de forma intencional
ou não, colabora para a restauração da memória coletiva ou
individual. Durante a pesquisa constatei que quando havia
alguma fotografia que o entrevistado fazia questão de mostrar,
ou mesmo visualizando as que eu possuía, a riqueza da conversa,
dos relatos são perceptíveis, a narração de como e quando as
fotografias foram feitas nem sempre era preciso, mas, as pessoas
que estão presentes em alguns retratos fazia com que a saudade,
sorrisos e até olhos cheios d’águas viessem à tona durante as
diversas conversas que pude travar durantes alguns anos de
pesquisa. A cena congelada no papel tem o poder de trazer a
memória da pessoa que viveu a época, fatos e pessoas que
participaram daquele momento, mas, contudo, não foram
fotografados. Os casos são diversos, portanto, pode-se afirmar
que a imagem consiste no resgate de outras lembranças que não
seriam acessadas, dessa forma, colaborando diretamente com o
fato ocorrido no determinado momento registrado, tendo em
vista que a imagem capturada pertence a um momento a uma
ação que foi paralisada no tempo. Do cenário, restam ruinas, os
personagens, alguns ainda habitam aquele espaço e mantem viva
a memória daquilo que restou REVISTA COSMOS PÁG. 60
FONTES E REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS
Entrevista: (ex-funcionários da Industrial Malvina)
Marcos Antônio Lessa, entrevista concedida em 2019.
Raquel Aparecida Duarte, entrevista concedida em 2020.
CANABARRO, Ivo. Fotografia, história e cultura fotográfica:
aproximações Estudos
Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXXI, n. 2, p. 23-39, dezembro 2005,
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/articl
e/view/1336/1041 acessado em 03/02/2020
CASTRO, Janaína de Cássia da Paixão e. A greve dos trabalhadores rurais
de Engenheiro Dolabela. Monografia apresentada para conclusão do
curso de História. UNIMONTES, Montes Claros, 2006.
COUTO, Ronaldo Costa. Matarazzo: Colosso Brasileiro, São Paulo: Ed.
Planeta – 1ª edição, 2004.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História Oral- memória, tempo,
identidades, Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 4ª ed. São Paulo, Ateliê Editorial,
2012.
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VASCONCELLOS, Max. Vias brasileiras de comunicação: a Estrada de
Ferro Central do Brasil, linha do centro e ramaes. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1934

NOTAS
2 Destacamos a palavra região em virtude da empresa movimentar a
economia de cidades próximas, como Corinto, Curvelo e Buenópolis,
além de empregar muitas pessoas, sobretudo no período de corte de
cana, e outros trabalhadores que migraram do Nordeste do Brasil e se
instalaram na região.
3 Em se comparando com outros seguimentos de pesquisa
historiográfica tem um volume menor de produções científicas, e no
Brasil, especificamente, essa discussão em torno do tema “fotográfico” é
relativamente recente. (CANABARRO, 2005)
REVISTA COSMOS PÁG. 60

4Através da Raquel, ex-funcionária da Industrial Malvina, conseguimos


informação de uma pessoa, conhecida pela alcunha de “Zé de Neco”, que
alegou estar presente na figura 7: ela afirmou que a foto fora feita entre
1960 e 1961.
Vaga-lume e o dinossauro
por Tulio Barbosa

O vaga-lume
encontrou o
dinossauro e ficou
maravilhado com um
bicho tão grande sem
luz própria.
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