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Fronteiras da narrativa

Gérard Genette
Faculte des Lettres et Sciences Humaines, Paris.

Caso sc aceite, por convenção, permanecer no domínio da ex-


pressão literária, definir-se-á sem dificuldade a narrativa como a
representação de um acontecimento ou de uma série de aconteci-
mentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem e, mais particu-
larmente, da linguagem escrita. Esta definição positiva (e corren-
te) tem o mérito da evidência e da simplicidade; seu inconveniente
principal é talvez, justamente, encerrar-se e encerrar-nos na evi-
dência, mascarar aos nossos olhos aquilo que precisamente, 110 ser
mesmo da narrativa, constitui problema e dificuldade, apagando
de certo modo as fronteiras do seu exercício, as condições de sua
existência. Definir positivamente a narrativa é acreditar, talvez pe-
rigosamente, na idéia ou no sentimento de que a narrativa éeviden-
te, dc que nada é mais natural do que contar u m a história ou arru-
mar um conjunto de ações em u m mito, u m conto, uma epopéia,
u m romance. A evolução da literatura e a consciência literária te-
rão tido, entre outras felizes conseqüências, a dc chamar a atenção,
bem ao contrário, sobre o aspecto singular, artificial c problemáti-
co do ato narrativo. É necessário voltar mais uma vez ao estupor de
Valéry diante dc um enunciado como "A marquesa saiu às cinco
horas". Sabe-se quanto, sob formas diversas e muitas vezes contra-
ditórias, a literatura moderna viveu c ilustrou esse espanto fecun-
do, como se quis e se fez, em seu f u n d o mesmo, interrogação, aba-
lamento, contestação do propósito narrativo. Esta questão falsa-

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m e n t e ingênua: por que a narrativa? - poderia pelo menos inci-


tar-nos a pesquisar, o u mais simplesmente, a reconhecer os limites
de certo modo negativos da narrativa, a considerar os principais
jogos de oposições por meio dos quais a narrativa se define, se
constitui cm face das diversas formas da não narrativa.

Diegesis e mimesis

U m a primeira oposição é aquela indicada p o r Aristóteles cm


algumas frases rápidas da Poética. Para Aristóteles, a narrativa (die-
gesis) é um dos dois modos da imitação poética (mimesis), o outro
sendo a representação direta dos acontecimentos p o r atores falan-
do c agindo diante do público 1 . Aqui instaura-se a distinção clássi-
ca e n t r e poesia narrativa e poesia dramática. Esta distinção estava
já esboçada por Platão no 3 o livro da República, com duas diferen-
ças, a saber, que, p o r um lado, Sócrates nega ali à narrativa a quali-
dade (isto é, para ele, o defeito) da imitação, e que p o r outro lado
ele toma em consideração aspectos de representação direta (diálo-
gos) q u e podem c o m p o r t a r u m poema não dramático como os de
H o m e r o . Há portanto, nas origens da tradição clássica, duas parti-
ções aparentemente contraditórias, em que a narrativa opor-se-ia à
imitação, aqui como sua antítese, e lá como um dos seus modos.

Para Platão, o d o m í n i o daquilo que ele c h a m a lexis (ou manei-


ra de dizer, p o r oposição a logos, que designa o que é dito) divide-se
teoricamente em imitação p r o p r i a m e n t e dita (mimesis) e simples
narrativa (diegesis). Por simples narrativa, Platão c o m p r e e n d e tudo
o que o poeta narra "falando em seu próprio n o m e , sem procurar
fazer crer que é um outro q u e fala" 2 : assim, q u a n d o H o m e r o n o
canto I da Ilíada nos diz a propósito de Crises: "Ele linha vindo às
belas naves dos Aqueus, para reaver sua filha, trazendo um imenso

1.1448a.
2.393a.

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resgate c s e g u r a n d o , sobre seu bastão de o u r o , as fitas d o arqueiro


Apoio; e ele suplicava a todos os Aqueus, mas s o b r e t u d o aos dois
filhos de Atreu. b o n s estrategistas de guerra" 3 . Ao c o n t r á r i o , a imi-
tação consiste, a partir do verso seguinte, n o fato de H o m e r o fazer
falar o p r ó p r i o Crises, ou, s e g u n d o Platão, de falar f i n g i n d o ser
Crises, e "esforçando-se para n o s dar na m e d i d a d o possível a ilu-
são de q u e não é H o m e r o que fala, m a s sim o velho, sacerdote de
Apoio". Eis o texto do discurso d e Crisés: "Atridas, e vós t a m b é m ,
A q u e u s de boas grevas, possam os deuses, habitantes do Olimpo,
conceder-vos a destruição da cidade de P r í a m o , c depois vosso re-
t o r n o sem f e r i m e n t o s a vossos lares! Mas a m i m , restituí m i n h a fi-
lha! E para isso, aceitai o resgate que vedes aqui, p o r consideração
ao filho de Zeus, ao a r q u e i r o Apoio". Ora, ajunta Platão, H o m e r o
teria p o d i d o i g u a l m e n t e prosseguir sua história sob u m a form». pu-
r a m e n t e narrativa, narrando as palavras de Crisés e m vez de repro-
duzi-las, o que, para a m e s m a passagem, teria dado, em estilo indi-
reto e prosa: " O sacerdote, t e n d o chegado, p e d i u aos deuses que
lhes concedessem a tomada de T r ó i a e os preservassem de morrer
em c o m b a t e , e p e d i u aos gregos que lhe devolvessem a filha em tro-
ca de u m resgate, e por respeito ao deus" 4 . Esta divisão teórica, que
opõe, n o interior da dicção poética, os dois m o d o s p u r o s c hetero-
gêneos da narrativa c da imitação, c o n d u z e f u n d a u m a classifica-
ção própria dos gêneros, que c o m p r e e n d e os dois m o d o s puros
(narrativo, representado pelo antigo d i t i r a m b o , m i m é t i c o , repre-
s e n t a d o pelo teatro), mais u m m o d o misto, ou, mais precisamente,
alternado, que é o da epopeia, c o m o se acaba de ver pelo exemplo
da 1liada.

A classificação de x^ristóteles é, à p r i m e i r a vista, completa-


m e n t e diferente, pois que reduz toda a poesia à imitação, distin-
g u i n d o s o m e n t e dois m o d o s iiniiaiivos, o d u e l o , q u e é o que Plalão

3.lUada> l, 12-16. Tradução francesa dc Mazon.


4.393e. Tradução francesa de Chambrv.

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nomeia p r o p r i a m e n t e imitação, e o narrativo, q u e Aristóteles de-


n o m i n a , c o m o Platão, diegesis. P o r o u t r o lado, Aristóteles parece
identificar p l e n a m e n t e não só, c o m o Platão, o g ê n e r o dramático ao
m o d o i m i t a t i v o , m a s t a m b é m , sem levar e m consideração cm p r i n -
cípio seu caráter m i s t o , o g ê n e r o épico ao m o d o narrativo p u r o .
Esta r e d u ç ã o p o d e p r e n d e r - s e ao lato de q u e Aristóteles define,
mais e s t r i t a m e n t e do que Platão, o m o d o imitativo pelas condições
cênicas da representação dramática. Ela p o d e justificar-se igual-
m e n t e pelo fato de q u e a obra épica, q u a l q u e r q u e seja a parte mate-
rial dos diálogos ou discursos e m estilo direto, e m e s m o se esta par-
te s o b r e p u j a a da narrativa, p e r m a n e c e e s s e n c i a l m e n t e narrativa,
visto q u e os diálogos são aí n e c e s s a r i a m e n t e e n q u a d r a d o s e condu-
zidos pelas partes narrativas q u e c o n s t i t u e m , 110 s e n t i d o próprio, o
f u n d o , ou, caso se queira, a t r a m a de seu discurso. D e resto, Aristó-
teles reconhece e m H o m e r o esta superioridade sobre os outros poe-
tas épicos, q u e ele i n t e r v é m p e s s o a l m e n t e o m e n o s possível e m seu
p o e m a , c o l o c a n d o na maior parte das vezes e m cena personagens
caracterizados, c o n f o r m e o papel d o poeta, q u e é i m i t a r o mais pos-
sível 5 . Desse m o d o , ele p a r e c e b e m r e c o n h e c e r i m p l i c i t a m e n t e
o c a r á t e r i m i t a t i v o dos diálogos h o m é r i c o s e, p o r t a n t o , o caráter
misto da dicção épica, narrativa e m seu f u n d o , m a s dramática na
sua maior extensão.

A diferença e n t r e as classificações de Platão e Aristóteles re-


duz-se assim a u m a simples variante de termos: essas d u a s classifi-
cações c o n c o r d a m b e m sobre o essencial, q u e r dizer, a oposição do
d r a m á t i c o e d o narrativo, o p r i m e i r o s e n d o c o n s i d e r a d o pelos dois
filósofos c o m o m a i s p l e n a m e n t e imitativo q u e o s e g u n d o : a c o r d o
sobre o fato, de q u a l q u e r m o d o s u b l i n h a d o pelo desacordo sobre os
valores, pois Platão c o n d e n a os poetas e n q u a n t o imitadores, a co-
meçar pelos d r a m a t u r g o s , e sem exceção de H o m e r o , julgado ainda
d e m a s i a d o m i m é t i c o para u m poeta narrativo, só a d m i t i n d o na ci-

5.1460a.

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Fronteiras da narrativa

d a d e u m poeta ideal cuja dicção austera seria tão p o u c o m i m é t i c a


q u a n t o possível; e n q u a n t o q u e Aristóteles, s i m e t r i c a m e n t e , coloca
a tragédia acima da epopéia, e louva e m H o m e r o t u d o o q u e aproxi-
ma sua escritura da dicção dramática. O s dois sistemas são, portan-
to, idênticos, com a única reserva dc u m a inversão de valores: para
Platão como para Aristóteles, a narrativa c u m m o d o e n f r a q u e c i d o ,
a t e n u a d o da representação literária - e percebc-sc mal, à p r i m e i r a
vista, o q u e poderia fazê-los m u d a r de opinião.

É necessário e n t r e t a n t o i n t r o d u z i r aqui u m a observação com a


qual n e m Platão n e m Aristóteles parecem ter-se p r e o c u p a d o , c q u e
restituirá à narrativa t o d o o seu valor e toda a sua i m p o r t â n c i a . A
imitação direta, tal c o m o f u n c i o n a em cena, consiste em gestos e
falas. E n q u a n t o q u e c o n s t i t u í d a p o r gestos, ela p o d e e v i d e n t e m e n -
te representar ações, mas escapa aqui ao plano lingüístico, q u e é
aquele o n d e se exerce a atividade específica do poeta. E n q u a n t o
q u e c o n s t i t u í d a p o r falas, discursos e m i t i d o s p o r p e r s o n a g e n s (é
evidente q u e c m u m a obra narrativa a p a r t e de imitação reduz-se a
isso), ela n ã o é, r i g o r o s a m e n t e falando, representativa, pois que se
limita a r e p r o d u z i r tal e qual u m discurso real ou fictício. Pode-se
dizer q u e os versos 12 a 16 da Iliada > citados mais acima, nos dão
u m a representação verbal dos atos de Crises, m a s n ã o se p o d e dizer
a m e s m a coisa dos cinco versos seguintes: eles n ã o representam o
discurso de Crisés: trata-se dc u m discurso r e a l m e n t e p r o n u n c i a -
do, eles o repetem, literalmente, e, caso se trate de u m discurso fictí-
cio, eles o cotatüuem, do m e s m o m o d o l i t e r a l m e n t e ; nos dois casos,
o trabalho da representação c nulo, nos dois casos, os cinco versos
de H o m e r o se c o n f u n d e m r i g o r o s a m e n t e com o discurso dc Cri-
sés: n ã o acontece e v i d e n t e m e n t e a m e s m a coisa c o m os cinco ver-
sos narrativos q u e p r e c e d e m , e q u e não se c o n f u n d e m de n e n h u m a
m a n e i r a c o m os atos de Crises.

" A palavra cão, diz William J a m e s , não m o r d e . " Caso se c h a m e


imitação poética o fato de r e p r e s e n t a r p o r meios verbais u m a reali-
d a d e n ã o verbal e, e x c e p c i o n a l m e n t e , verbal ( c o m o se c h a m a imi-

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tação pictural o fato de representar por meios pieturais uma reali-


dade não pictural e, excepcionalmente, pictural), é preciso admitir
que a imitação encontra-se nos cinco versos narrativos, e não se en-
contra de modo nenhum nos cinco versos dramáticos, que consis-
tem simplesmente na interpolação, no meio de um texto represen-
tando acontecimentos, de um outro texto diretamente tomado a
esses acontecimentos: como se um pintor holandês do século
XVII, numa antecipação de certos procedimentos modernos, ti-
vesse colocado no meio de uma natureza morta não a pintura de
concha de ostra, mas uma concha de ostra verdadeira. Esta compa-
ração simplista foi introduzida aqui para indicar claramente o ca-
ráter profundamente heterogêneo de um modo de expressão ao
qual nos habituamos tanto, que não percebemos as mais abruptas
modificações de registro. A narrativa "mista", segundo Platão,
quer dizer, o modo de relação mais corrente e mais universal, "imi-
ta" altsrnativamente sobre o mesmo tom e, como diria Michaux,
"sem mesmo ver a diferença", uma matéria não verbal que ela deve
efetivamente representar o melhor que puder, e uma matéria ver-
bal que se representa por si mesma, e que se contenta o mais das ve-
zes em citar. Caso se trate de uma narrativa histórica rigorosamen-
te fiel, o historiador-narrador deve ser muito sensível à mudança
de "regime, quando passa do esforço narrativo na relação dos atos
realizados à transcrição mecânica das falas pronunciadas, mas
quando se trata de uma narrativa parcial ou completamente fictí-
cia, o trabalho da ficção, que sc exeree igualmente sobre conteúdos
verbais e não verbais, tem sem dúvida por efeito mascarar a dife-
rença que separa os dois tipos de imitação, dos quais um está, se
posso dizê-lo, em crise direta, enquanto que o outro faz intervir
um sistema de engrenagens mais complexo. Admitindo (o que é
entretanto difícil) que imaginar atos e imaginar laias procedem da
mesma operação mental, "dizer" esses atos e dizer essas falas cons-
tituem duas operações verbais muito diferentes. Ou antes, só a pri-
meira constitui uma verdadeira operação, um ato de dicção no sen-

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Fronteiras da narrativa

tido platônico, comportando uma série de transposições c equiva-


lências, e uma série de escolhas inevitáveis entre os elementos da
história a serem retidos e os elementos a serem abandonados, entre
os diversos pontos de vista possíveis, etc. - todas as operações evi-
dentemente ausentes quando o poeta ou o historiador se limita a
transcrever um discurso. Pode-se certamente (deve-se mesmo)
contestar esta distinção entre o ato de representação mental e o ato
de representação vcibal - entre o logos e a lexis - , mas isto significa
contestar a própria teoria da imitação, que concebe a ficção poética
c o m o um simulacrc da realidade, tão transcendente ao discurso
que o institui quanto o acontecimento histórico é exterior ao dis-
curso do historiador ou a paisagem representada no quadro: teoria
que não faz nenhuma diferença entre ficção e representação, o ob-
jeto da ficção se reduzindo por ela a um real fingido e que espera
ser representado. Ora, resulta que nesta perspectiva a noção mes-
mo de imitação sobre o plano da lexis é uma pura miragem, que de-
saparece à medida que nos aproximamos dela: a linguagem só
pode imitar perfeitamente a linguagem, ou, mais precisamente, o
discurso só pode imitar perfeitamente um discurso perfeitamente
idêntico; e m resumo, um discurso só pode imitar ele mesmo.
Enquanto lexis, a imitação direta, é, exatamente, uma tautologia.

N ó s fomos assim conduzidos a esta conclusão inesperada, que


o único m o d o empregado pela literatura enquanto representação é
o narrativo, equivalente verbal de acontecimentos não verbais e
também (como mostra o exemplo tórjado por Platão) de aconteci-
mentos verbais, a não ser que ele se apague neste último caso dian-
te de uma citação direta na qual se anula toda função representati-
va, aproximadamente c o m o um orador judiciário pode interrom-
per seu discurso para deixar o tribunal examinar uma prova con-
creta. A representação literária, a mimesis dos antigos, não é por-
tanto a narrativa mais os "discursos": é a narrativa, e somente a
narrativa. Platão oporia mimesis a diegesis c o m o uma imitação per-
feita a uma imitação imperfeita; mas a imitação perfeita não é mais

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u m a imitação, é a coisa m e s m o , e f i n a l m e n t e a única imitação é a


imperfeita. Mimesis é diegesis.

Narração e descrição

Mas a representação literária assim d e f i n i d a , se ela se c o n f u n -


de com a narrativa (no s e n t i d o lato), n ã o se r e d u z aos e l e m e n t o s
p u r a m e n t e narrativos (no sentido estrito) da narrativa. É preciso
agora i n t r o d u z i r de direito, n o seio m e s m o da diegesis, u m a distin-
ção q u e não aparece n e m em Platão n e m e m Aristóteles, e q u e de-
senhará uma nova fronteira, interior ao d o m í n i o da representação.
T o d a narrativa c o m p o r t a com efeito, e m b o r a i n t i m a m e n t e m i s t u -
radas e em proporções m u i t o variáveis, de u m lado representações
de ações e de acontecimentos, que c o n s t i t u e m a narração propria-
m e n t e dita, c de o u t r o lado, representações de objetos e persona-
gens, que são o fato daquilo que se d e n o m i n a h o j e a descrição. A
oposição e n t r e narração c descrição, além de a c e n t u a d a pela tradi-
ção escolar, é u m dos traços maiores de nossa consciência literária.
Trata-se n o e n t a n t o aqui de u m a distinção relativamente recente,
da qual seria necessário estudar a l g u m dia o n a s c i m e n t o e o desen-
v o l v i m e n t o na teoria e na prática da literatura. N ã o parece, à pri-
meira vista, que tenha tido uma existência m u i t o ativa antes do sé-
culo X I X , q u a n d o a i n t r o d u ç ã o de longas passagens descritas em
u m g ê n e r o t i p i c a m e n t e narrativo como o r o m a n c e coloca em evi-
dência os recursos e as exigências do procedimento 6 .

Essa persistente confusão, ou despreocupação em distinguir,


que indica m u i t o claramente, e m grego, o emprego do t e r m o co-
m u m diegesis, deve-se talvez, s o b r e t u d o , ao staius literário m u i t o
desigual dos dois tipos de representação. E m princípio, é evidente-

6. Encontramo-la, entretanto, cm Boileau, a propósito da epopéia: "Sede vivo c apres-


sado cm vossas narrações; Sede rico e pomposo cm vossas descrições" (Art. Poci. III,
p. 257-258).

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Fronteiras da narrativa

m e n t e possível conceber textos p u r a m e n t e descritivos, visando a


representar objetos em sua única existência espacial, fora de qual-
q u e r a c o n t e c i m e n t o e m e s m o de q u a l q u e r d i m e n s ã o temporal, h
m e s m o mais fácil conceber u m a descrição pura de q u a l q u e r ele-
m e n t o narrativo d o que o inverso, pois a mais sóbria designação
dos elementos c circunstâncias de u m processo p o d e já passar por
u m esboço de descrição: u m a frase c o m o "A casa é branca com u m
telhado de ardósia e janelas verdes" n ã o c o m p o r t a n e n h u m traço
de narração, e n q u a n t o que u m a frase c o m o " O h o m e m aproxi-
mou-se da mesa e a p a n h o u uma faca" c o n t é m pelo m e n o s , ao lado
dos dois verbos de ação, três s u b s t a n t i v o s que, por m e n o s qualifi-
cados q u e estejam, p o d e m ser considerados c o m o descritivos so-
m e n t e pelo f a t o de designarem seres a n i m a d o s ou i n a n i m a d o s ;
m e s m o u m verbo p o d e ser mais ou m e n o s descritivo, na precisão
que ele dá ao espetáculo da ação (basta para se convencer deste fato
c o m p a r a r " e m p u n h o u a faca", por exemplo, a " a p a n h o u a faca"), e
por c o n s e g u i n t e n e n h u m v e r b o c c o m p l e t a m e n t e isento de resso-
nância descritiva. Pode-se p o r t a n t o dizer que a descrição é mais
indispensável do que a narração, u m a vez que é mais fácil descre-
ver sem n a r r a r do que n a r r a r sem descrever (talvez p o r q u e os obje-
tos p o d e m existir sem m o v i m e n t o , mas n ã o o m o v i m e n t o sem ob-
jetos). M a s esta situação de p r i n c í p i o indica já, de fato, a natureza
da relação que u n e as d u a s funções na imensa maioria dos textos li-
terários: a descrição poderia ser concebida i n d e p e n d e n t e m e n t e da
narração, mas de fato não se a e n c o n t r a por assim dizer n u n c a em
estado livre; a narração, por sua vez, n ã o p o d e existir sem descri-
ção, mas esta d e p e n d ê n c i a não a i m p e d e de representar constante-
m e n t e o p r i m e i r o papel. A descrição é m u i t o n a t u r a l m e n t e ancilla
narrationis, escrava s e m p r e necessária, m a s s e m p r e submissa, ja-
mais emancipada. Existem gêneros narrativos, como a epopéia, o
conto, a novela, o r o m a n c e , em que a descrição p o d e ocupar u m lu-
gar m u i t o g r a n d e , e m e s m o m a t e r i a l m e n t e o maior, sem cessar de
ser, como por vocação, u m simples auxiliar da narrativa. N ã o exis-

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tem, ao contrário, gêneros descritivos, e imagina-se mal, fora do


d o m í n i o didático (ou de ficções semididáticas c o m o as de Júlio
Verne), u m a obra e m que a narrativa se comportaria como auxiliar
da descrição.

O estudo das relações e n t r e o narrativo e o descritivo reduz-se


p o r t a n t o , no essencial, a considerar as funções diegéticas da descri-
ção, isto é, o papel representado pelas passagens ou os aspectos des-
critivos na economia geral da narrativa. Sem tentar e n t r a r aqui n o
detalhe deste estudo, reter-se-á pelo menos, na tradição literária
"clássica" (de H o m e r o ao fim do século XIX), duas funções relati-
v a m e n t e distintas. A p r i m e i r a é, de certa forma, de o r d e m decora-
tiva. Sabe-sc que a retórica tradicional classifica a descrição, do
m e s m o m o d o que as outras figuras de estilo, entre os o r n a m e n t o s
do discurso: a descrição longa e detalhada apareceria aqui como
uma pausa e u m a recreação na narrativa, de papel p u r a m e n t e esté-
tico, c o m o o da escultura em u m edifício clássico. O exemplo mais
célebre disso é talvez a descrição do escudo dc Aquiles n o canto
X V I I I da Ilíada7. É sem dúvida neste papel de cenário q u e pensa
Boilcau q u a n d o r e c o m e n d a a riqueza e a p o m p a nesse gênero de
trechos. A época barroca ficou marcada por u m a espécie dc proliíè-
ração, do excurso descritivo, m u i t o sensível, por exemplo, n o Moy-
sesauvé de S a i n t - A m a n t , m a s q u e acabou p o r d e s t r u i r o equilíbrio
do p o e m a narrativo e m seu declínio.

A segunda g r a n d e f u n ç ã o da descrição, a mais claramente ma-


nifestada hoje, p o r q u e se impôs, com Balzac, na tradição do gênero
romanesco, é de ordem s i m u l t a n e a m e n t e explicativa e simbólica:
os retratos físicos, as descrições de roupas e móveis t e n d e m , em
Balzac, e seus sucessores realistas, a revelar e ao m e s m o t e m p o a
justificar a psicologia dos personagens, dos quais são ao m e s m o
t e m p o signo, causa e efeito. A descrição torna-se aqui, o que não

7. Pelo menos como a tradição clássica a interpretou c imitou. É preciso notar contudo
que a descrição neste caso tende a animar-se e portanto a sc narrativizar.

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Fronteiras da narrativa

era na época clássica, u m e l e m e n t o maior da exposição: que se pen-


se nas casas de Mlle. C o r m o n em La vieille filie ou de Balthasar
Claés em LM recherche de l'ab$olu. T u d o isso é não obstante já b e m
conhecido para que c o n t i n u e insistindo. N o t e m o s s o m e n t e que a
evolução das formas narrativas, s u b s t i t u i n d o a descrição orna-
m e n t a l pela descrição significativa, tendeu (pelo m e n o s até o iní-
cio do século X X ) a reforçar a dominação do narrativo: a descrição
p e r d e u , sem n e n h u m a d ú v i d a , em a u t o n o m i a o que g a n h o u em
i m p o r t â n c i a dramática. Q u a n t o a certas formas d o r o m a n c e con-
t e m p o r â n e o que apareceram inicialmente c o m o tentativas de libe-
rar o m o d o descritivo da tirania da narrativa, não é certo q u e seja
preciso v e r d a d e i r a m e n t e interpretá-las assim: caso se considere
sob este p o n t o de vista, a obra de Robbe-Grillet apareceria talvez
s o b r e t u d o como u m esforço para realizar u m a narrativa ( u m a his-
tória) por meio quase exclusivo de descrições i m p e r c e p t i v e l m e n t e
modificadas de página em página, o que pode passar ao m e s m o
t e m p o por u m a p r o m o ç ã o espetacular da função descritiva, e por
u m a confirmação notável de sua irredutível finalidade narrativa.

E necessário observar e n f i m que todas as diferenças que sepa-


ram descrição e narração são diferenças de c o n t e ú d o , que não têm
p r o p r i a m e n t e existência scmiológica: a narração liga-se a ações ou
acontecimentos considerados c o m o processos puros, e por isso
m e s m o acentua o aspecto temporal e d r a m á t i c o da narrativa; a des-
crição ao contrário, u m a vez que se demora sobre objetos e seres
considerados e m sua simultaneidade, e encara os processos eles
m e s m o s como espetáculos, parece s u s p e n d e r o curso d o t e m p o e
c o n t r i b u i para espalhar a narrativa n o espaço. Estes dois tipos de
discurso p o d e m , portanto, aparecer c o m o e x p r i m i n d o duas atitu-
des antitéticas d i a n t e d o m u n d o e da existência, u m a mais ativa, a
outra mais contemplativa e logo, s e g u n d o u m a equivalência tradi-
cional, mais "poética". M a s do p o n t o de vista dos m o d o s de repre-
sentação, narrar u m a c o n t e c i m e n t o e descrever u m objeto são duas
operações semelhantes, que põem c m jogo os m e s m o s recursos da

275
Gérard Genecte

linguagem. A diferença m a i s significativa seria talvez q u e a narra-


ção restitui, na sucessão t e m p o r a l do seu discurso, a sucessão
i g u a l m e n t e temporal d o s a c o n t e c i m e n t o s , e n q u a n t o q u e a descri-
ção deve m o d u l a r n o sucessivo a representação de objetos simultâ-
neos e justapostos n o espaço: a linguagem narrativa se distinguiria
assim p o r u m a espécie d e coincidência temporal c o m seu objeto,
do qual a l i n g u a g e m descritiva seria ao c o n t r á r i o irremediavel-
m e n t e privada. M a s esta oposição perde m u i t o de sua força na lite-
ratura escrita, o n d e nada i m p e d e o leitor de voltar atrás e de consi-
derar o texto, em sua s i m u l t a n e i d a d e espacial, c o m o u m analogon do
espetáculo q u e descreve: os caligramas de Apollinaire ou as disposi-
ções gráficas do Coup de dés só fazem levar ao limite a exploração de
certos recursos latentes d a expressão escrita. Por o u t r o lado, n e n h u -
ma narração, m e s m o a da reportagem radiofônica, n ã o é rigorosa-
m e n t e sincrônica ao a c o n t e c i m e n t o que relata, e a variedade das re-
lações q u e p o d e m g u a r d a r o t e m p o da história e o da narrativa acaba
de reduzir a especificidade da representação narrativa. Aristóteles
observa já que u m a das v a n t a g e n s da narrativa sobre a representa-
ção cênica c p o d e r tratar diversas ações simultâneas 8 : m a s é obriga-
da a tratá-las s u c e s s i v a m e n t e , e e n t ã o sua situação, seus recursos e
seus limites são a n á l o g o s aos da l i n g u a g e m descritiva.

P a r e c e p o r t a n t o c l a r o q u e , e n q u a n t o m o d o da r e p r e s e n t a ç ã o
literária, a descrição n ã o se d i s t i n g u e b a s t a n t e n i t i d a m e n t e da
n a r r a ç ã o , n e m pela a u t o n o m i a de seus fins, n e m pela o r i g i n a l i d a d e
de seus m e i o s , para q u e seja necessário r o m p e r a u n i d a d e n a r r a t i -
vo-descritiva (a d o m i n a n t e n a r r a t i v a ) q u e Platão c A r i s t ó t e l e s de-
s i g n a r a m n a r r a t i v a . Se a descrição m a r c a u m a f r o n t e i r a da n a r r a -
tiva, é b e m u m a f r o n t e i r a i n t e r i o r , c, t u d o s o m a d o , b a s t a n t e i n d e -
cisa: e n g l o b a r - s e - á p o r t a n t o s e m p r e j u í z o , n a noção de n a r r a t i v a ,
todas as f o r m a s da r e p r e s e n t a ç ã o literária, e c o n s i d c r a r - s e - á a

8.1459b.

276
Fronteiras da narrativa

descrição n ã o c o m o u m dos seus m o d o s (o q u e i m p l i c a r i a u m a es-


p e c i f i c i d a d e de l i n g u a g e m ) , p o r é m , m a i s m o d e s t a m e n t e , c o m o
u m de seus aspectos - m e s m o s e n d o este, d e u m c e r t o p o n t o de
vista, o m a i s a t r a e n t e .

Narrativa e discurso

Ao ler-se a República e a Poética^ parece q u e Platão e Aristóteles


r e d u z i r a m apriorística e i m p l i c i t a m e n t e o c a m p o da literatura ao
d o m í n i o particular da literatura r e p r e s e n t a t i v a : poiesis = mimesis.
Caso c o n s i d e r e m o s t u d o o q u e se e n c o n t r a e x c l u í d o do poético por
esta decisão, v e r e m o s desenhar-se u m a ú l t i m a f r o n t e i r a da narrati-
va, q u e poderia ser a mais i m p o r t a n t e e a m a i s significativa. T r a -
ta-se s o m e n t e , n a d a m a i s n a d a m e n o s , da poesia lírica, satírica e di-
dática: seja, para só citar a l g u n s dos n o m e s q u e u m grego dos sécu-
los V ou IV devia c o n h e c e r , P í n d a r o , Alceu, Safo, Arquíloco, H e -
síodo. Assim, p a r a Aristóteles, c apesar de q u e usa o m e s m o m e t r o
q u e H o m e r o , E m p é d o c l e s n ã o é u m poeta: " É preciso c h a m a r a u m
poeta e ao o u t r o físico e não poeta" 9 . M a s c e r t a m e n t e A r q u í l o c o ,
Safo, P í n d a r o n ã o p o d e m ser c h a m a d o s físicos: o q u e possuem e m
c o m u m todos os excluídos da Poética é q u e sua obra não consiste
em imitação, p o r narrativa ou representação cênica, de u m a ação,
real ou fingida, exterior à pessoa e à palavra d o poeta, m a s simples-
m e n t e e m u m discurso m a n t i d o p o r ele d i r e t a m e n t e e c m seu pró-
prio n o m e . P í n d a r o canta os m é r i t o s d o v e n c e d o r olímpico. Arquí-
loco invcctiva seus i n i m i g o s políticos, H e s í o d o dá conselhos aos
agricultores, E m p é d o c l e s ou P a r m ê n i d c s e x p õ e m sua teoria d o
u n i v e r s o : não h á neles n e n h u m a representação, n e n h u m a ficção,
s i m p l e s m e n t e u m a fala q u e se investe d i r e t a m e n t e no discurso da
obra. Pode-se dizer a m e s m a coisa da poesia elegíaca latina e de
t u d o q u e c h a m a m o s h o j e m u i t o l a r g a m e n t e poesia lírica, e, passan-

9.1447b.

277
Gérard Genecte

d o à prosa, de t u d o que é eloqüência, reflexão moral e filosófica 1 0 ,


exposição científica ou paracientífica, ensaio, correspondência,
diário í n t i m o , etc. T o d o esse d o m í n i o i m e n s o de expressão direta
quaisquer que sejam seus modos, seus torneios, suas formas, esca-
pa à reflexão da Poética e n q u a n t o negligencia a f u n ç ã o representa-
tiva da poesia. T e m o s aí u m a nova divisão, de uma a m p l i t u d e m u i -
to grande, pois q u e divide e m d u a s partes de i m p o r t â n c i a sensivel-
m e n t e igual o c o n j u n t o d o q u e c h a m a m o s hoje literatura.

Esta divisão c o r r e s p o n d e a p r o x i m a d a m e n t e à distinção pro-


posta r e c e n t e m e n t e por E m i l e Benveniste 1 1 e n t r e narrativa (ou his-
tória) e discurso, com a diferença que Benveniste engloba na catego-
ria d o discurso t u d o que Aristóteles c h a m a v a imitação direta, e
que consiste efetivamente, ao m e n o s por sua p a r t e verbal, e m dis-
curso e m p r e s t a d o pelo poeta ou n a r r a d o r a u m de seus persona-
gens. Benveniste mostra q u e certas formas gramaticais, c o m o o
p r o n o m e s ( e s u a referência implícita tu), os " i n d i c a d o r e s " p r o n o -
minais (certos d e m o n s t r a t i v o s ) ou adverbiais ( c o m o aqui, agora,
hoje, ontem, amanhã, etc.), e, pelo m e n o s em francês, certos t e m p o s
d o verbo, como o presente, o passado c o m p o s t o ou o f u t u r o , se en-
c o n t r a m reservados ao discurso, e n q u a n t o q u e a narrativa em sua
f o r m a estrita é m a r c a d a pelo e m p r e g o exclusivo da terceira pessoa
e de formas como o aoristo (passado simples) e o mais-que-perfeito.
Q u a i s q u e r q u e sejam os detalhes c as variações de u m i d i o m a a ou-
tro, todas estas diferenças se r e d u z e m c l a r a m e n t e a u m a oposição
e n t r e a objetividade da narrativa e a subjetividade d o discurso;
m a s é preciso i n d i c a r que se trata n o caso de u m a objetividade e de
uma subjetividade definida por critérios de o r d e m p r o p r i a m e n t e
lingüística: é "subjetivo" o discurso no qual se marca, explicita-

10. C o m o é a dicção que conta aqui, e não o que é dito, excluir-se-ão desta lista, como o
fez Aristóteles (1447b), os diálogos socráticos de Platão, e todas as exposições em for-
ma dramática, que se prendem à imitação em prosa.
11. "I.es relations de temps dans le verbe français", B.S.L. 1959; reimpresso nos Pmblè-
mes de linguistiquégénérale, p. 237-250.

278
Fronteiras da narrativa

m e n t e ou não, a presença de (ou a referência a) eu, mas este eu n ã o


se define de n e n h u m m o d o como a pessoa que m a n t é m o discurso,
do m e s m o m o d o que o presente, que é o t e m p o por excelência do
m o d o discursivo, não se d e f i n e de n e n h u m m o d o c o m o o m o m e n -
to em q u e o discurso é e n u n c i a d o , sem e m p r e g o m a r c a n d o "a coin-
cidência do a c o n t e c i m e n t o descrito com a instância d o discurso
que o descreve" 1 2 . I n v e r s a m e n t e , a objetividade da narrativa se de-
f i n e pela ausência de toda referência ao n a r r a d o r : " P a r a dizer a
verdade, o n a r r a d o r não existe m e s m o mais. Os a c o n t e c i m e n t o s
são colocados c o m o se p r o d u z e m à m e d i d a que aparecem n o hori-
zonte da história. N i n g u é m fala a q u i ; os a c o n t e c i m e n t o s parecem
narrar-se a si mesmos" 1 3 .

T e m o s aí, sem n e n h u m a dúvida, uma descrição perfeita da-


quilo que é, em sua essência e em sua oposição radical a toda f o r m a
dc expressão pessoal do locutor, a narrativa em estado p u r o , tal
c o m o se pode i d e a l m e n t e conceber e tal como se pode efetivamen-
te localizá-la em alguns exemplos privilegiados, c o m o os que o
p r ó p r i o Benveniste toma e m p r e s t a d o ao historiador Glotz e a Bal-
zac. R e p r o d u z i m o s aqui o extrato de Gambara, que analisaremos a
seguir em detalhe:

"Após uma volta pela galeria, o rapaz olhou a l t e r n a t i v a m e n t e o


céu e seu relógio, fez u m gesto de impaciência, e n t r o u em u m a ta-
bacaria, o n d e acendeu u m charuto, colocou-se d i a n t e de u m espe-
lho, e lançou u m olhar a suas roupas, u m p o u c o mais rico d o que o
p e r m i t e m em F r a n ç a as leis d o gosto. Reajustou seu c o l a r i n h o e
seu colete de v e l u d o negro sobre o qual se cruzava diversas vezes
u m a dessas grossas correntes de ouro fabricadas e m G ê n o v a ; en-
tão, após haver lançado de u m só m o v i m e n t o sobre o o m b r o es-
q u e r d o o casaco forrado de veludo c a r r u m a n d o - o com elegância,

12. "Dc la subjeciiviié dans le langage". Op. cit., p. 262.


13. Ibid., p. 241.

279
Gérard Genecte

retomou seu passeio sem se deixar distrair pelas olhadelas burgue-


sas q u e recebia. Q u a n d o as lojas começaram a se i l u m i n a r e a noite
lhe pareceu bastante escura, ele se dirigiu para a praça do Palais-
Royal como u m h o m e m que temia ser reconhecido, pois contor-
nou a praça até a fonte, para g a n h a r o abrigo dos fiacres à entrada
da rua Froidmanteau..."

Neste grau de pureza, a dicção própria da narrativa é de certa


forma a transitividade absoluta do texto, a ausência perfeita (dei-
x a n d o de lado algumas infrações às quais voltaremos d e n t r o em
pouco), n ã o s o m e n t e do narrador, mas t a m b é m da própria narra-
ção, pela eliminação rigorosa de qualquer referência à instância dc
discurso que o constitui. O texto está aí, sob nossos olhos, sem ser
proferido por n i n g u é m , e n e n h u m a (ou quase) das informações
que c o n t é m exige, para ser compreendida ou apreciada, de ser rela-
cionada com sua fonte; avaliada por sua distância ou sua relação ao
locutor c ao ato de locução. Se c o m p a r a r m o s u m tal e n u n c i a d o com
u m a frase como esta: "Eu esperava para escrever a você que tivesse
m o r a d a fixa. E n f i m estou decidido: passarei o inverno aqui"1"1, mc-
dir-se-á a q u e p o n t o a a u t o n o m i a da narrativa opõe-se à dependên-
cia do discurso, cujas determinações essenciais (quem é eu, q u e m é
você) que lugar designa aqui?) só podem ser decifradas e m relação à
situação na qual foi produzida. No discurso, alguém fala, e sua si-
tuação n o ato m e s m o de falar é o foco das significações mais im-
portantes; na narrativa, como o diz Benvenistc com força, nin-
guém fala, n o sentido de que em n e n h u m m o m e n t o temos de nos
perguntar quem fala (onde e quando, etc.) para receber integralmen-
te a significação do texto.

Mas é preciso acrescentar logo que as essências da narrativa e


do discurso assim definidas não se e n c o n t r a m quase nunca em es-
tado p u r o em n e n h u m texto: há quase sempre u m a certa proporção

14. SENANCOUR. Oberman. Carta V.

280
Fronteiras da narrativa

de narrativa no discurso, u m a certa dose de discurso na narrativa.


Para dizer a verdade, aqui se esgota a simetria, pois tudo se passa
como se os dois tipos de expressão se encontrassem m u i t o diferen-
t e m e n t e afetados pela contaminação: a inserção de elementos nar-
rativos no plano do discurso não basta para emancipar este último,
pois eles p e r m a n e c e m com maior freqüência ligados à referência
do locutor, que fica implicitamente presente no ú l t i m o plano, e
que pode intervir de novo a cada instante sem que este retorno seja
considerado c o m o u m a " i n t r u s ã o " . Assim, lemos nas Mémoires
d'outre-tombe esta passagem a p a r e n t e m e n t e objetiva: " Q u a n d o o
mar estava alto e havia tempestade, as ondas, chicoteadas ao pé do
castelo, do lado da g r a n d e praia, espirravam até as g r a n d e s torres.
A vinte pés de altura acima da base de u m a dessas torres, u m para-
peito de granito dominava, estreito e escorregadio, inclinado, pelo
qual se atingia o revelim que defendia o fosso: tratava-se de pegar o
instante entre duas ondas, atravessar o perigoso sítio antes que a
onda se quebrasse e cobrisse a torre..." 15 Mas sabemos que o narra-
dor, cuja pessoa foi m o m e n t a n e a m e n t e eliminada d u r a n t e esta
passagem, não foi muito longe, e não ficamos n e m surpresos n e m
embaraçados q u a n d o ele retoma a palavra para acrescentar: " N e -
n h u m de nós se recusava à aventura, mas eu vi crianças empalide-
cer antes de tentá-lo". A narração não t i n h a verdadeiramente saído
da o r d e m do discurso na primeira pessoa, que a t i n h a absorvido
sem esforço n e m distorção, c sem cessar de ser ele mesmo. Ao con-
trário, qualquer intervenção de elementos discursivos no interior
de u m a narrativa é sentida como u m a infração ao rigor do partido
narrativo. Acontece isto com a breve reflexão inserida por Balzac
n o texto transcrito acima: "sua roupa um pouco mais rica do que o per-
mitetn em França as leis do bom gosto". Pode-se dizer o m e s m o da ex-
pressão demonstrativa "uma dessas correntes de ouro fabricadas em
Gênova", que contém e v i d e n t e m e n t e o esboço d e u m a passagem

15. Livro primeiro, cap. V.

281
Gérard Genecte

n o presente (fabricadas c o r r e s p o n d e n ã o a que se fabricavam, mas


sim a que se fabricam) e dc u m a alocução direta ao leitor, implicita-
m e n t e tomado c o m o t e s t e m u n h a . Dir-se-ia a i n d a o m e s m o do ad-
jetivo "olhadelas burguesas" e da locução adverbial "com elegância",
q u e implicam u m j u l g a m e n t o cuja f o n t e é aqui visivelmente o nar-
rador; da expressão relativa "como um homem que temiaque e m la-
tim seria expressa no s u b j u n t i v o pela apreciação pessoal que com-
p o r t a ; € e n f i m da c o n j u n ç ã o "pois c o n t o r n o u " , q u e i n t r o d u z u m a
explicação p r o p o s t a pelo autor. E e v i d e n t e q u e a narrativa n ã o in-
tegra esses enclaves discursivos, j u s t a m e n t e c h a m a d o s p o r Geor-
ges Blin " i n t r u s õ e s d o a u t o r " , tão f a c i l m e n t e q u a n t o o discurso
acolhe os enclaves narrativos: a narrativa inserida n o discurso se
transforma em e l e m e n t o d o discurso, o discurso inserido na narra-
tiva p e r m a n e c e discurso e f o r m a u m a espécie de quisto m u i t o fácil
dc r e c o n h e c e r e localizar. A pureza da narrativa, dir-se-ia, é mais
fácil de preservar do q u e a do discurso.

A razão desta dissimetria é de resto m u i t o simples, m a s nos de-


signa um caráter decisivo da narrativa: n a verdade, o discurso n ã o
tem n e n h u m a pureza a preservar, pois é o m o d o " n a t u r a l " da lin-
guagem, o mais aberto c o m a i s universal, a c o l h e n d o por definição
todas as f o r m a s ; a narrativa, ao c o n t r á r i o , é u m m o d e particular,
definido p o r u m certo n ú m e r o de exelusões e de condições restriti-
vas (recusa do presente, da p r i m e i r a pessoa, etc.). O discurso p o d e
" n a r r a r * sem cessar de ser discurso, a narrativa não pode "discor-
r e r " s e n sair de si mesma. Mas não p o d e t a m b é m abster-se dele
sem t o m b a r n a secura e na indigência: é p o r q u e a narrativa não
existe nunca p o r assim dizer na sua f o r m a rigorosa. A m e n o r ob-
servação geral, o m e n o r adjetivo u m p o u c o m a i s q u e descritivo, a
m a i s discreta comparação, o m a i s m o d e s t o "talvez", a mais inofen-
siva das articulações lógicas i n t r o d u z e m e m sua t r a m a u m tipo dc
fala q u e l h e é e s t r a n h a , e c o m o refratária. Seria preciso, para estu-
dar e m detalhe esses acidentes às vezes microscópicos, n u m e r o s a s
e minuciosas análises de textos. U m dos objetivos deste e s t u d o po-

282
Fronteiras da narrativa

deria ser o de rcpcrtoriar e classificar os meios pelos quais a litera-


tura narrativa (e p a r t i c u l a r m e n t e r o m a n e s c a ) t e m t e n t a d o organi-
zar de u m a maneira aceitável, n o i n t e r i o r de sua p r ó p r i a lexis, as re-
lações delicadas que aí e n t r e t ê m as exigências da narrativa e as ne-
cessidades do discurso.

Sabe-se c o m efeito q u e o r o m a n c e n u n c a c o n s e g u i u resolver de


m a n e i r a convincente e definitiva o p r o b l e m a colocado p o r essas
relações. Ora, como foi o caso da época clássica, e m u m Cervantes,
u m Scarron, u m Ficlding, o a u t o r - n a r r o d o r , a s s u m i n d o c o m p h -
c e n t e m e n t e seu próprio discurso, i n t e r v é m na narrativa c o m uma
indiscrição i r o n i c a m e n t e m a r c a d a , i n t e r p e l a n d o seu leitor n o tom
da conversação familiar; ora, ao contrário, c o m o se vê a i n d a na
m e s m a época, ele transfere todas as responsabilidades do discurso
a u m p e r s o n a g e m p r i n c i p a l q u e falará, isto é, narrará e comentará
ao m e s m o t e m p o os a c o n t e c i m e n t o s , na p r i m e i r a pessoa: é o caso
dos r o m a n c e s picarescos, de Lazarillo a Gil Blas, e de o u t r a s obras
f i c t i c i a m e n t e autobiográficas c o m o Manon Lescaut ou a Vie de Ma-
riatme; ora a i n d a , não p o d e n d o se resolver n e m a falar e m seu pró-
prio n o m e n e m a confiar essa tarefa a u m só p e r s o n a g e m , ele repar-
te o discurso entre os diversos atores, seja sob a f o r m a de c a m s ,
c o m o fez f r e q ü e n t e m e n t e o r o m a n c e do século X V I I I ( I m nouveile
Héloise, Les liaisors dangereuse$)> seja, à maneira m a i s ágil c sutil de
u m Joyce ou de u m F a u l k n e r , f a z e n d o sucessivamente a narrativa
ser a s s u m i d a pelo discurso i n t e r i o r de seus p r i n c i p a i s persona-
gens. O ú n i c o m e m e n t o c m q u e o e q u i l í b r i o e n t r e narrativa e dis-
curso parece ter sido a s s u m i d o c o m u m a boa consciência perfeita,
sem e s c r ú p u l o ou ostentação, é e v i d e n t e m e n t e o século X I X , a ida-
de clássica da narração objetiva, de Balzac a T o l s t o i ; vê-se ao con-
trário a q u e ponto a época m o d e r n a acentuou a consciência da difi-
culdade, ate tornar certos tipos de alocução c o m o fisicamente im-
possíveis para os escritores m a i s lúcidos e mais rigorosos.

Sabe-se b e m , p o r exemplo, c o m o o esforço para c o n d u z i r a nar-


rativa ao seu mais alto grau de pureza levou certos escritores ame-

283
Gérard Gcnette

ricanos,como H a m m e t t ou H e m i n g w a y , a excluir deia a exposição


dos motivos psicológicos, sempre difícil de apresentar sem recurso
a considerações gerais de natureza discursiva, as qualificações im-
plicando n u m a apreciação pessoal do narrador, as ligações lógicas,
etc., até reduzir a dicção romanesca a essa sucessão brusca de fra-
ses curtas, sem articulações, que Sartre reconhecia em 1943 em
L*Etranger de Ca mus, e que se pôde reencontrar dez anos mais tar-
de em Robbe-Grillet. O que se interpretou com freqüência como
uma aplicação à literatura das teorias behavioristas i r a talvez so-
m e n t e o efeito de uma sensibilidade particularmente aguda a cer-
tas incompatibilidades da linguagem. T o d a s as flutuações da escri-
tura romanesca contemporânea ganhariam sem dúvida se analisa-
das sob este ponto de vista, e particularmente a tendência atual,
talvez inversa da precedente, e completamente manifestada em u m
Sollers ou u m T h i b a u d e a u , por exemplo, de fazer desaparecer a
narrativa no discurso presente do escritor no ato de escrever, no
que Michel Foucault chama "o discurso ligado ao ato de escrever,
contemporâneo de seu desenvolvimento e encerrado nele" 16 . T u d o
se passa aqui como se a literatura tivesse esgotado ou ultrapassado
os recursos de seu m o d o representativo, c quisesse refletir sobre o
m u r m ú r i o indefinido de seu próprio discurso. Talvez o romance,
após a poesia, vá sair definitivamente da idade da representação.
Talvez a narrativa, na singularidade negativa que acabamos de lhe
reconhecer, seja já para nós, como a arte para Hegel, j m a coisa do
passado, que é preciso considerar às pressas em sua retirada, antes
que tenha desertado completamente nosso horizonte.

16. K L'arrierc-fable". L'Arc, número especial sobre Júlio Verne, p. 6.

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