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EGITO
ANTIGO
Tradução de Elza Marques Lisboa de Freitas Revisão técnica de Manoel Barros da Motta
Rio de Janeiro
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■ Traduzido de:
Histoire de L'Egypte Ancienne
m História do Egito Antigo
ISBN 978-85-309-3538-2
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edição-2012
1. Egito - História - Até 640 d.C.. C. 2. Egito - Política e governo - Até 640 d.C. 3. Egito - Civilização - Até 640 d.C. I. Título. II. Série.
INTRODUÇÃO.................................................................................................................5
PARTE I: AS ÉPOCAS DA FORMAÇÃO....................................................................14
CAPÍTULO I: DA PRÉ-HISTÓRIA À HISTÓRIA...................................................15
Panorama Geral.......................................................................................................15
A Formação.............................................................................................................15
Os Primeiros Habitantes..........................................................................................16
Caçadores e Agricultores.........................................................................................17
Transição para o Neolítico.......................................................................................19
O Pré-Dinástico "Primitivo"....................................................................................20
O Pré-Dinástico Antigo...........................................................................................22
O Gerzeano..............................................................................................................26
A Escrita..................................................................................................................27
A Unificação Política..............................................................................................29
As Paletas................................................................................................................31
CAPÍTULO II: RELIGIÃO E HISTÓRIA.................................................................37
Os Emblemas...........................................................................................................37
As Cosmologias.......................................................................................................37
Do Mito à História...................................................................................................40
CAPÍTULO III: O PERÍODO TINITA.......................................................................43
Os Primeiros Reis....................................................................................................43
Calendário e Datação...............................................................................................45
O Fim da Dinastia....................................................................................................46
A Segunda Dinastia.................................................................................................47
A Monarquia Tinita.................................................................................................50
PARTE II: A ERA CLÁSSICA......................................................................................56
CAPÍTULO IV: O ANTIGO IMPÉRIO.....................................................................57
O Advento da III Dinastia.......................................................................................57
Djoser e Imhotep.....................................................................................................57
O Fim da III Dinastia...............................................................................................59
Senefru.....................................................................................................................60
Queops.....................................................................................................................62
Os Herdeiros de Queops..........................................................................................63
Userkaf e os Primeiros Tempos da V Dinastia........................................................66
A Supremacia Heliopolitana....................................................................................67
Izezi ou Unas...........................................................................................................68
Nascimento da VI Dinastia......................................................................................69
Pepi I.......................................................................................................................71
A Expansão para o Sul............................................................................................72
Ao Fim do Império..................................................................................................76
A Sociedade e o Poder.............................................................................................77
A Plástica Egípcia....................................................................................................80
A Estatuária.............................................................................................................81
Relevos e Pinturas...................................................................................................89
INTRODUÇÃO
Escrever uma História do Egito faraônicos não apresenta mais, nos nossos dias, o
aspecto aventureiro que tal tentativa ainda conservava na virada do século XX. G.
Maspero compunha, então, em plena fase de crescimento do cientificismo, sua
monumental Histoire des Peuples de L'Orient, e, alguns anos depois, J. H. Breasted, sua
History of Egypt - duas obras que estão, ainda hoje, à base da maioria das sínteses. Não
há muito tempo, porém, na escala das outras Histórias, o peso da Bíblia e da tradição
clássica relegavam a civilização egípcia a uma zona de pouca nitidez ainda
testemunhada, hoje, pelas grandes querelas cronológicas passadas do século XIX ao
nosso.
Essas discórdias opõem os partidários de uma cronologia dita "longa", em geral os
mais distantes do uso científico das fontes de documentação, aos adeptos de uma
história menos poética e mais tributária dos dados arqueológicos. As disputas acabaram
amainando, e já admitimos geralmente, uma cronologia curta, aceita por todos ou quase,
com variações de algumas poucas gerações. Embora já exista, grosso modo, um acordo
quanto aos dois primeiros milênios, os progressos recentes da pesquisa fizeram
retroceder o problema aos primórdios da História e trouxeram novo enfoque à questão
da origem da civilização. Não constitui o menor paradoxo da egiptologia - uma das
ciências mais jovens aplicadas aos períodos remotos da Antiguidade, se considerarmos
seu nascimento há cerca de século e meio com Jean-François Champollion - estar ela,
graças ao uso das técnicas mais recentes, à frente da procura das origens da
humanidade.
A cultura faraônica sempre fascinou aqueles que a descobriam, ainda que fossem
incapazes de entender os mecanismos profundos de um sistema cujas realizações
causavam, todas elas, certa impressão de perenidade e de sabedoria imutáveis. Em
particular, os viajantes gregos, não podendo transmitir às suas cidades esses valores
primordiais, espalharam desde cedo a imagem que tinham vindo buscar: a de uma fonte
do pensamento humano, respeitável e misteriosa, de uma etapa ilustre, mas, tão somente
uma etapa, à luz da perfeição do modelo grego. As discrições feitas por eles da
civilização e a do seu quadro refletem tanto a atração quanto certa reticência frente a
costumes que pareciam suspeitos devido ao desconhecimento quase forçado das fontes.
Os gregos empreenderam uma exploração sistemática do país: realidades
contemporâneas com Heródoto, no quinto século antes da nossa era, geografia, na pena
de Diodorus de Sicília e na de Estrabão, na geração seguinte, ambos familiarizados com
o Vale por uma estadia prolongada "no terreno", arcanos religiosos com Plutarco seis
séculos depois. Paralelamente a esses últimos empreendimentos, outros trabalhos
sorviam diretamente de fontes propriamente egípcias, redescobertas nos períodos dos
soberanos Lágidos graças a pesquisas como as de Manethon e, após, do geógrafo
Ptolomeu.
O olhar que os romanos, por sua vez, voltaram ao Egito não se deteve apenas nas
riquezas do país e na fortuna dos herdeiros de Alexandre, ainda que ali seguissem os
mesmos passos de Antônio, César, Germânico, Adriano, Severo e outros: Plínio ou
Tácito não procuravam alvo diferente do que buscavam seus predecessores gregos,
historiadores e geógrafos. Mas o Egito, área de erudição privilegiada dos herdeiros de
Aristóteles, tais como Teofrasto, respondia também a uma atração profunda pelos
valores orientais. As primeiras manifestações apareceram em Roma no século II a.C.,
quando a Cidade, julgando-se ameaçada na sua estrutura própria pelo crescimento dos
cultos orientais travestidos nos traços gregos das Ba- cantes, adotou um decreto do
SenadoI inspirado por Catão: os valores tradicionais foram salvos por algum tempo do
surgimento impetuoso do Oriente, ao preço de vários milhares de mortos.
As cidades gregas foram forçadas à submissão ao imperium romano que herdou de
Alexandre uma nova imagem do Oriente: através dele, a realeza helenística recebia das
mãos dos depositários do poder de Rá a autoridade sobre o universo, abrindo assim o
caminho para o reinado não compartilhado de Roma sobre o mundo conhecido. A união
desse novo dono do mundo com Cleópatra, última descendente dos faraós - ainda que
fosse fictícia - consagrando a associação de Hélios e de Selene, selava a fusão do
Ocidente e do Oriente.
A união foi, porém, breve e Augusto, tal como outrora Catão, destruiu-lhe o fruto,
que poderia tornar-se tão perigoso para o equilíbrio do império nascente quanto haviam
sido as Bacanais, mandando assassinar Cesarion após a conquista de Alexandria no ano
30 a.C. O Egito, transformado em propriedade pessoal do imperador, inseria-se
definitivamente na galeria dos vassalos de Roma, mas ia conservar, porém, sua antiga
áurea de sabedoria e de ciência, reavivada e transmitida pela coiné mediterrânea ao
novo centro de gravidade do universo.
Duas imagens se sobrepõem, então. A primeira é a de uma civilização helenística
do Egito, que percebemos através de obras tais como a de Teócrito. As duas culturas se
unem em uma harmonia que encontramos em Apolônio de Rodes e em toda a corrente
do pensamento alexandrino. A segunda liga-se a uma tradição que poderíamos
denominar "orientalizante", ilustrada por Apuleio ou Heliodoro de Emeso. Esta última
reforça o aspecto misterioso da velha civilização, indo no mesmo sentido da filosofia: o
neoplatonismo dá origem à corrente hermética, através da renovação do pitagorismo
que marca, no Ocidente, o início do Império. O hermetismo será mais tarde, junto com a
Cabala, o principal meio de acesso a uma civilização tornada definitivamente
incompreensível pela exclusão cristã. Essa tendência para o esoterismo é realçada pelo
crescimento dos cultos egípcios que acompanha a expansão do império, popularizando
através das figuras de Osí- ris, ísis e Anubis a paixão pelo arquétipo do soberano
egípcio, percebido como um dos modelos da sobrevivência após a morte.
Tudo muda em 380 d.C, com o édito de Teodósio consagrando o cristianismo
como religião do Estado e proibindo, sem volta, os cultos pagãos. Ele condena
irremediavelmente, assim, a civilização egípcia ao silêncio. O fechamento dos templos,
iniciado por Constâncio II em 356, e definitivamente consumado com o massacre dos
sacerdotes do Serapeum de Alexandria em 391, significa, de fato, não só o
encerramento da prática religiosa, mas, ainda, o abandono da base cultural que a
suportava, transmitida inteiramente por uma língua e por uma escrita cuja continuidade
era assegurada apenas pelos religiosos. Os cristãos vingaram-se cruelmente das
perseguições dos "idolatras", devastando templos e bibliotecas e massacrando as elites
intelectuais de Alexandria, de Mênfis e da Thebaida. Os últimos que escaparam foram
os focos do Baixo Núbia e do Alto Egito. Eles só foram os últimos graças à posição
geográfica, situados no limesII imperial, o que lhes reservava um papel de resistentes,
preparados que haviam sido por longa tradição de lutas contra os antigos colonizadores
do vale do Nilo. A partir de meados do sexto século, após o fechamento definitivo do
templo de ísis em Philae, longo manto de silêncio recobriu necrópoles e templos,
entregues à pilhagem e a toda sorte de reutilizações: capelas transformadas em
habitações ou estábulos ou, ainda, em simples fontes de materiais de construção,
passando naturalmente pela transformação dos santuários em igrejas. Por mais de cinco
séculos Karnak irá abrigar conventos e mosteiros; no alto de seus muros os olhos
I
N.t.: Senatus consultam.
N.t.: No Egito Antigo, cerimônia do jubileu, celebrada tradicionalmente a partir do trigésimo ano de
um faraó.
II
Zona fronteiriça de província do Império Romano.
vazados dos antigos deuses vão acompanhar o novo culto, por entre as escamas de um
reboco grosseiro.
Os sítios urbanos tiveram mais sorte: a enchente anual do Nilo e o aproveitamento
das terras tornavam praticamente impossível o deslocamento dos habitantes e, assim, as
cidades antigas foram sendo progressivamente recobertas. Várias cidades modernas, em
especial no Norte do país, mas também no Sul, são apenas o resultado final de uma
série de superposições originadas, com frequência, na alvorada da História.
Certos templos até conservaram, por vezes, o caráter de locais sagrados, um pouco
como se o sentido profundo do sincretismo religioso dos antigos houvesse marcado
seus descendentes, a ponto de fazer-lhes preservar esses "temenos" que assim fornecem
estratigrafias na escala de milênios. A acumulação que separa, no templo de Luxor, o
piso do pátio de Ramsés II e a mesquita de Abu-el-Haggag, representa mais de dois mil
anos. Esse mesmo local conheceu sucessivamente a invasão por assírios, persas, gregos
e romanos com o assentamento de um campo militar e toda uma gama de cultos do
Império que foram ali celebrados, pelo Cristianismo e, por fim, pelo Islã. O santo ao
qual está dedicada a mesquita recebe ainda hoje uma procissão anual de barcas que não
deixam de lembrar aquelas que levavam, outrora, Amon-Rá de um templo a outro.
Esse exemplo não é único, sítios conservados assim são numerosos no Vale, no
Delta ou em locais muito afastados como o oásis de Dakhala, onde outra mesquita, a de
El-Qsar, antiga capital Ayoubida, repousa sobre uma estratigrafia contínua cuja base
data provavelmente da XVIII dinastia ou, talvez, até do Médio Império.
O arqueólogo alegra-se por esta acumulação, pela sua capacidade de conservação.
Claro está que não permite ao historiador encontrar tudo o que deseja. Tendo perdido
sua língua e sua religião, submetido às leis do vencedor que transforma ou desvirtua
suas próprias estruturas - a aplicação do Direito romano ao país, por exemplo, ergueu
uma barreira muitas vezes difícil de remover para se reencontrar as marcas do código
nativo anterior o Egito é rapidamente separado dos seus valores tradicionais. O
Cristianismo do Egito, reivindicando com justiça o primado histórico e religioso no
Oriente, desenvolveu uma civilização original e rica tanto pela sua arte quanto por seu
pensamento. Isso não impede que tenha feito tábula rasa dos antigos valores. Em
contrapartida, os Coptas deram voz ao pensamento popular, bem distante dos cânones
religiosos. Sua influência na arte e na arquitetura é inegável, quando não fosse pelo
incremento da tapeçaria figurativa ou pelo tratamento dado às faces nas figuras dos
jazigos, que conduz às notáveis máscaras mortuárias popularizadas pelas escolas do
Faiyum. Essa arte prefigura, ainda, o aporte islâmico, com a renovação das técnicas
ornamentais ou a passagem ao uso da cúpula na arquitetura. Da mesma forma, a
monarquia fez surgir, desde meados do século III, com Paulo, o Egípcio, uma tradição
original cuja vitalidade atual ilustra bem sua pertinência ao patrimônio profundo do
Egito.
O Islã, brando e tolerante quando da conquista e mais exigente depois, possibilitou
o crescimento de novos valores. Eles são fundadores, também, do Egito
contemporâneo, mas que estão bem distantes dos tempos dos faraós, nos quais a
tradição religiosa, retomando temas esparsos dos escolásticos como o (pseudo) Beroso,
via os opressores da verdadeira Fé. Ramsés II, em especial, representado inicialmente
como o adversário de Moisés, tornou-se o paradigma do mal. É preciso aguardar o fim
do século XIX e a criação da República Árabe do Egito para ver o faraó, reintegrado na
História pelos livros escolares ao sabor dos altos e baixos da política contemporânea,
tornar-se um dos símbolos da nação árabe e, de forma mais ampla, da grandeza passada
do país.
A História desconhece assim, à força, os faraós a partir do quinto século da nossa
era. O abandono progressivo do Copta em favor do árabe rompe o último laço com a
Antigüidade. A lenda passa a dominá-la, seguindo uma tendência natural, já presente
nos súditos do Faraó, que atribuíam de bom grado a seus antigos reis aventuras dignas
das Mil e Uma Noites. Rapidamente, o passado, que alguns monumentos emergindo
das areias sugeriam glorioso, atiçou a cobiça pelas riquezas vislumbradas ao acaso das
escavações clandestinas que participam também da tradição do Egito eterno. Circulam
compilações tais como O livro das maravilhas soterradas para guiar os caçadores de
tesouros em um universo povoado de espíritos, onde Bes transforma-se no gnomo
Aiatallah, e Sekmhet torna-se uma ogra pavorosa, sem esquecer a gigante Saranguma...
É claro que os sábios fazem pouco dos insensatos que perseguem tais quimeras. Mas,
embora Ibn Khaldum condene a loucura desses insensatos, isto não impede o califa Al-
Mamun, filho do célebre Al-Rachid, de atacar a pirâmide de Queops. Ele inicia, assim,
um processo que, passando sucessivamente pelos saqueadores e pelos que retiraram
pedras para reaproveitá-las, irá despir as pirâmides de Gizé dos seus mistérios e
também dos blocos de calcário fino de que eram revestidas antes de se tornarem fonte
de materiais para a construção dos palácios da cidade mameluca e otomana do Cairo.
Entregue por todos os lados aos ataques dos caçadores de tesouros, dos cons-
trutores e dos produtores de cal, a memória do país se vê transformada pelos novos
ocupantes. Alguns grandes feitos e algumas crenças profundas sobrevivem quase
intocados, através de personagens como Abu-el-Haggag. A tendência mais generalizada
consiste em reinterpretar aquilo que não podemos entender, por meio da única
abordagem das próprias origens que aceitamos, os textos sagrados. Os cristãos, assim
como os muçulmanos, entregam-se a essa busca das fontes: para eles o Egito é a terra
bíblica por excelência, da Babilônia aos caminhos do Êxodo, e todos ali se reconhecem,
Coptas ou Cristãos do Ocidente.
Esses últimos descobrem o país quando das peregrinações e das cruzadas. Eles o
veem na qualidade de crentes, informados por tradições herdadas da civilização greco-
bizantina. O exemplo mais célebre de tal deformação é o próprio nome das pirâmides.
O termo usado para designar essas grandes construções de pedra que os Cristãos vêm
admirar ao pararem no Cairo, a caminho da Terra Santa, é uma palavra grega. Nessa
língua, o nome indica um bolo de trigo - certamente porque as pirâmides lembravam
essa forma aos primeiros "turistas". Depois, com base em uma etimologia reconstituída
a partir do nome do trigo, pyros, na origem da palavra, a tradição interpretou as
construções como sendo antigos silos de trigo - o que mostra como fora esquecida a sua
verdadeira função. Parece normal aos peregrinos, aos olhos de quem o Egito é antes de
tudo um grande exportador de cereais, verem nas pirâmides silos nos quais José teria
guardado o trigo durante os anos de fome. A essas lembranças da Bíblia mescla-se,
também, a das maravilhas que, desde o início do século V d.C., haviam encantado os
imperadores, grandes colecionadores de obras de arte egípcias e de obeliscos que ainda
concorrem para a glória de Roma e de Istambul. A Renascença presencia um retorno ao
exotismo arquitetônico, e as esfinges de aparência egípcia disputam com as pirâmides,
de pedra ou vegetais a presença nos jardins europeus. É necessário aguardar, porém, a
segunda metade do século XVI, isto é, a retomada das relações comerciais após a
conquista turca - retomada essa que vai dar à França o papel que cabia a Veneza até o
século anterior - para que ao Egito conheça uma voga que não irá cessar.
As narrativas dos viajantes que visitaram o Egito seguindo os passos de seus
predecessores árabes - Abu Salih, Ibn Battuta, Ibn Jobair e outros - tiveram grande
influência nesta moda. Entre eles destacaremos a peregrinação do dominicano Fe- lix
Fabri ou a viagem do botânico Pierre Belon do Mans, integrando a comitiva do
embaixador enviado pela França à Sublime Porta logo após a conquista. Os relatos
submetem-se, muitas vezes, às regras em voga, como ocorre com as narrativas de João
de Palermo, Joos van Ghistele, a caminho do misterioso reinado do Preste João,
Michael Heberer Von Bretten, Samuel Kiechel, Jan Sommmer e muitos outros. Será o
próprio aspecto artificial desses relatos que agrada? Em todo caso, eles encontram
muitos leitores.
Convém reservar, nessa enumeração sucinta, um lugar de destaque aos autores
como Maqrizi ou, mais próximo daqueles viajantes, a Leão, o Africano. Alguns, como
Christophe Harant, se esmeram em seguir os passos dos clássicos, especialmente os de
Estrabão e de Deodoro de Sicília, cujas obras foram impressas, pela primeira vez, em
fins do século XV. Outros tentam reencontrar o mesmo veio científico: o geógrafo
André Thévet ou o médico Prosper Alpino, de Pádua, cuja permanência de quase quatro
anos no Egito, aliada a um conhecimento profundo da obra de seus antecessores, de
Heródoto a P. Belon do Mans, passando por Avicena, Ptolomeu, Deodoro, Plínio etc.,
fornece material para três obras sobre a fauna, a flora e a medicina que permaneceram
como modelos.
Poderíamos esperar que os viajantes do século XVII seguiriam este caminho mais
científico ou, pelo menos, melhor documentado. Não é o caso, em que pese a voga
crescente do orientalismo, alimentada pela política estrangeira de Colbert e as
"turcarias" incipientes, como a do Burguês Fidalgo: comerciantes, diplomatas em
missão ou simples turistas se atêm a descrições de praxe, muitas vezes inexatas, que não
vão além da região do Cairo. Os detalhes são raros e permanecem sempre muito
materiais, buscando dar informações mais práticas do que científicas ou históricas. É o
caso de Georg Christoff von Neitzschitz, Don Aquillante Rocchetta, Johan Wild e suas
aventuras dignas de um romance picaresco, e de outros tantos. A tendência está mais
para a observação do Oriente contemporâneo, quer seja no decorrer de breves passagens
ou de longas estadias no seio da nova "nação francesa" do Egito: o Frei Coppin é um
exemplo...
Esta é, também, a época de nascimento dos "gabinetes de curiosidades", renovação
da moda das antiguidades e antecipação das grandes coleções que formam o núcleo dos
principais museus europeus. Viajantes e eruditos se põem a explorar a redescoberta da
civilização egípcia que se dá um pouco ao acaso das exumações de múmias. Obtém-se
delas um pó, sem igual para regenerar, entre outras coisas, as terras aráveis; esse pó é
tão disputado na Europa que os ingleses criaram "moinhos de múmias" para
satisfazerem a demanda sempre crescente. Os autores antigos são muito lidos, e
Heródoto é o primeiro guia a ser levado nas viagens ao Egito, já em voga antes da
Revolução Francesa.
Algumas grandes figuras destacam-se entre esses viajantes, mais "profissionais"
desde Thévenot: arqueólogos e antiquários como o Padre Vansleb, Lucas ou Fourmont,
médicos como Granger, exploradores como Poncet e Lenoir. Aos poucos, o Egito
aparece através de alguns grandes sítios: por volta de 1668, redes- cobre-se Karnak,
conhecido desde o final de século XV graças ao mapa de Ortelius e ao relato do
Veneziano Anônimo, e Mênfis, quase um século depois. Publica-se até, em Londres,
em 1641, uma primeira obra dedicada inteiramente às pirâmides.
No século XVIII aparecem as análises científicas: Nordon, Pococke, Donati, as
relações do Padre Sicard, Volney, Balthasar de Monconys, o amigo de Athanasio
Kircher, cujos trabalhos irão inspirar Champollion, Savary e muitos outros que
preparam, a seu modo, o trabalho da Expedição do Egito. É a grande virada da
egiptologia. O enfrentamento das nações ao fim da Revolução desperta muitas
esperanças e abre um campo quase ilimitado à sede de conhecimentos dos herdeiros da
Enciclopédia. Os jovens sábios que acompanham o exército de Bonaparte iniciam uma
monumental Description de l 'Egypte que cobre não só a fauna, a flora e os recursos do
país mas, ainda, todas as formas de arquiteturas e de artes - em resumo, todas as
civilizações que lá se sucederam.
Durante meses, enfrentando sofrimentos incríveis, com coragem, persistência e
precisão dignas de elogios, eles reúnem uma massa de documentos que vai alimentar
não só o trabalho dos decifradores, mas, também, boa parte das análises modernas.
Doravante, o orientalismo deixa de ser uma moda para tornar-se uma corrente literária e
artística. As obras se multiplicam, de Gerard de Nerval a Eugè- ne Delacroix, passando
pelo estilo "retorno do Egito", os maravilhosos desenhos de James Owen e de David
Roberts, que aliam com perfeição temas orientalizantes e precisão arqueológica, não
esquecendo as composições relacionadas menos ao Egito e mais ao nascimento do
império colonial: Gerôme, que visita o Sinai na companhia de Paul Renoir e de Bonnat,
por ocasião da inauguração do canal de Suez, Fromentin, Guillaumet, Belly cujo
"Peregrinos dirigindo-se a Meca" causou escândalo no Salão de 1861... Nesse meio
tempo, os trabalhos de Thomas Young na Inglaterra e de Jean-François Champollion na
França haviam lançado os fundamentos da egiptologia moderna.
Em 1822, após muitas dificuldades causadas tanto pelas transformações políticas
que provocaram seus deslocamentos entre Grenoble, Paris e Figeac quanto pela
resistência oposta pelas autoridades científicas, Jean-François Champollion expõe na
Lettre à M. Ducier as bases do seu método, para decifrar os hieróglifos. Ele o
desenvolve, no ano seguinte, em um Précis du système hiéroglyphique. Enquanto seus
detratores ainda procuram uma falha no sistema, ele já mergulha nas grandes coleções
reunidas por aventureiros atraídos por um país que lhes oferece toda a sedução de um
novo mundo. Eles peneiram os sítios por conta dos cônsules estrangeiros no Egito e
aproveitam a valorização do país sob Mehemet Ali e seus sucessores: é o espantoso
duelo entre Giambattista Belzoni, agindo por conta de Henry Salt, e de Bernardino
Drovetti por sua vez sustentado, entre outros, pelo marselhês Jacques Rifaud. Esses
confrontos épicos, mais próximos de rezzou (rázias) que da arqueologia, estão na
origem dos primeiros acervos do British Mu- seum, do Louvre e de Turim.
E, aliás, esta última coleção, reunida por Drovetti e vendida em 1824 ao rei da
Sardenha, que dá a Champollion a oportunidade de ser o primeiro a explorar as listas
reais. Ele também escreve um Pantheon, primeiro quadro da religião que irá completar -
enfim!... - no próprio Egito. Faz, por sua vez, o levantamento e a descrição de enorme
massa de documentos, publicados 40 anos após sua morte nos Monuments d'Egypte et
de Nubie. De retorno a Paris, consegue apenas dar alguns cursos na cátedra criada para
ele no Collège de France; morre em 4 de março 1832, com 42 anos, após ter lançado
definitivamente as bases da língua em uma Grammaire égypcienne, só publicada em
1835.
A França passava, assim, a ocupar o primeiro plano na egiptologia nascente. A
obra dos sucessores de Champollion iria confirmar essa posição, principalmente com o
trabalho de A. Mariette no próprio terreno. O modo como realizou a escavação de
grandes sítios como Saqara ou Tanis é relativamente indefensável aos olhos da
arqueologia moderna. No entanto, não se limitou ele a ser o realizador bem-sucedido
das escavações do Serapeum, de Karnak ou de Tanis. Soube explorar seus próprios
achados e aqueles, relativamente fortuitos, que o acaso o levou a conhecer. Conseguiu,
principalmente e com muita firmeza, induzir o vice-rei Said a lançar as bases de um
órgão capaz de pôr fim a saída maciça das antiguidades rumo a coleções europeias e a
mantê-las no local.
Do museu de Bulaq ao do Cairo, começou a se constituir o maior conjunto
existente de testemunhos da civilização faraônica. Ao mesmo tempo, o Serviço das
Antiguidades assegurou aos poucos a exploração científica dos sítios, limitando- -lhes a
pilhagem. As rivalidades que opuseram nações europeias só chegaram a afetar o
trabalho dos seus cidadãos durante os períodos de guerra. A expedição prussiana de
1842 a 1845 e as Denkmâler aus Agypten und Athiopien, publicadas 10 anos mais tarde
por Richard Lepsius, forneceram à comunidade científica um terceiro bloco de
inscrições e de monumentos que ela consulta até hoje.
O fim do século XIX consagra definitivamente a egiptologia como ciência e
constitui a segunda virada da sua história, quer pelas descobertas realizadas no terreno,
quer pela exploração dos achados e pelo estabelecimento de instituições capazes de
assegurar o desenvolvimento seu. Entre os sucessores de Auguste Mariette, cabe um
lugar de destaque a Gastón Maspero: descobridor dos Textos das Pirâmides e diretor do
Serviço de Antiguidades soube salvar da pilhagem a maior parte das múmias da
Tebaida, e foi, também, o fundador da escola francesa, na cátedra de Champollion, onde
sucedeu a De Rougé. Ele pode ser considerado como um dos pais da egiptologia
moderna, junto com Henri Brugsch, na Alemanha, e Sir Fl. Petrie, na Grã-Bretanha.
Deve-se a esse último o estabelecimento das regras da arqueologia científica, que ele
firmou em 1898, no quadro da British School of Archaeology.
Na virada do século XX, as potências europeias desenvolvem, a partir de suas
instituições museológicas e universitárias, os organismos que estão na origem das
pesquisas atuais: Missão Arqueológica Francesa, em 1880, transformada em Instituto
Francês de Arqueologia Oriental, em 1898, Egypt Exploration Fund, Deutsche Orient
Gesellschaft. Os avanços dos meios de comunicação ampliam as descobertas que se
sucedem: a capital de Akhenaton em Tell el-Amarna, antes da guerra de 1914, a tumba
de Tutankamon em 1922, a necrópole dos reis tanitas em 1939, a grande barca de
Queops em 1954 e o resgate dos monumentos da Núbia nos anos 1960, para destacar
apenas alguns dos principais exemplos. Foi sobretudo o tesouro de Tutaqnkamon que
colocou a egiptologia ao alcance do grande público, graças à exposição itinerante de
suas peças por volta dos anos 1970 - cujo sucesso acarretou, por sua vez, a realização
de muitas outras com temáticas próximas. E também porque vai ao encontro, em face
do aparente mistério da sua descoberta, de uma corrente sempre vivaz, cuja origem se
alimenta, em maior ou menor grau, nas fontes do hermetismo e da Cabala, marcada por
movimentos iniciáticos. Essa corrente popularizou os grandes temas isíacos, da Flauta
Mágica até Aida, cujo libreto foi escrito por A. Mariette, passando pelo culto de Ísis em
Notre-Dame de Paris durante a Revolução e, também, grande número de interpretações
esotéricas da civilização egípcia, aplicadas às pirâmides, à religião etc.
A descoberta de H. Carter, pela grande quantidade de objetos preciosos revelados
mais do que pela importância histórica da descoberta, só investigada de fato, mais tarde,
provoca exatamente, no público, a imagem de uma mistura na qual o mistério
prevalece, com seu séquito de tesouros e de maldições. Essas duas palavras -
fortemente ligadas ao termo faraó - formam uma imagem que confere até hoje à
egiptologia uma áurea romanesca.
A interação de todos esses elementos e o crescimento explosivo do turismo de
massa não deixaram de acentuar o desequilíbrio entre a imagem corrente entre o
público - também desejada por ele - e uma ciência da qual tendemos a minimizar a
juventude e o longo caminho ainda a percorrer para poder descrever uma civilização tão
rica nos seus menores detalhes.
Os progressos alcançados nesses últimos anos no conhecimento do Egito "antes
dos faraós" recolocam em pauta os limites tradicionalmente atribuídos à civilização:
estamos longe dos "40 séculos" que separavam Bonaparte das pirâmides! Após ter dado
o passo importante que liberou o Egito do poder da Bíblia, a trama de conhecimentos e
de técnicas não parou, desde o fim do século XIX, tanto de aumentar a precisão da
cronologia quanto de tornar mais longínquas as origens da civilização.
Talvez mais do que qualquer outra, a civilização faraônica está no âmago do
debate a respeito da noção de História: sua duração excepcionalmente longa dentro de
um quando rígido reforça a oposição clássica entre História e Pré-História, aceitando o
surgimento da escrita como divisória implícita entre elas. Admite-se ter ocorrido essa
separação no quarto milênio antes da nossa era. Essa data era relativamente confortável
até os últimos anos, na medida em que ela encontra, na Mesopotâmia, uma
concordância que remete, mais ou menos, à problemática bíblica: basta atribuir à Baixa
Mesopotâmia um nítido adiantamento sobre o Egito para que se confundam o local do
surgimento da escrita e aquele suposto ser o paraíso terrestre. Além disso, o quarto
milênio tem a vantagem de oferecer aspectos de uma etapa decisiva na evolução do
Homem, com o aparecimento de estruturas sociais que dão testemunho do seu
distanciamento do estado primitivo: ele assegura seu domínio sobre a natureza,
alcançando definitivamente, nas margens do Nilo e também nas do Eufrates, a condição
de agricultor sedentário.
Torna-se fácil, então, estabelecer a clivagem entre o momento em que se completa
a civilização, confirmado pela invenção da escrita, e a fase considerada preparatória,
cuja duração depende do ponto de partida considerado: maximalista, quando adotamos
o ponto de vista dos pré-historiadores, ou muito restritiva se nos limitarmos a uma
definição estreita da historicidade.
Esta problemática, que poderia passar, até cerca de meio século atrás, por uma
querela darwinista, assumiu nova dimensão quando o sistema de datação referido à
erosão fluvial, imaginado por Boucher de Perthes para o vale do rio Somme, foi
aplicado por K. S. Stanford e A. J. Arkell ao vale do Nilo: a associação dos vestígios da
atividade humana aos cortes geológicos propicia um ponto de amarração aos dados
arqueológicos visto que, não sendo estratificados, não podiam ser hierarquizados em
sistemas de "sequência-datas" tais como definidos por Fl. Petrie no início do século.
Embora análises paleoclimatológicas e geológicas mais recentes, como as de K. Butzer
e de R. Said, tenham modificado a escala das datas, ficou claro, já antes da Segunda
Guerra Mundial, que não só a "pré-história" dos faraós assumia uma amplitude
insuspeitada, mas, que apresentava tanta variedade e aspectos de tal completude, em
muitos pontos, que se tornava difícil encará-la apenas como uma etapa preparatória.
Soma-se a isto nosso conhecimento ainda bastante parcial da pré-história egípcia,
desde os trabalhos fundamentais de G. Caton-Thompson no Faiyum e, principalmente,
no oásis de Kharga, ou de J. Hester e P. Hoebler no de Dunkul. Muitos elementos
revelados pela exploração sistemática do Baixo Núbia não foram inteiramente
publicados, e vastas regiões ainda têm muito para nos revelar, como, entre alas, o oásis
de Dakhala, o Gebel Oueinat e, mais para oeste, Kufra e o Darfur. Mas, mesmo sem
voltar tanto no espaço ou no tempo, nosso conhecimento do Egito mais antigo ainda
apresenta muitas lacunas, embora trabalhos mais recentes, especialmente no Delta,
projetem uma nova luz sobre os tempos pré-dinásticos: para nos convencermos, basta
lembrar que a descoberta do sítio pré-histórico de Elkab por P. Vermeersch remonta,
apenas, a 1968!
A importância do período pré-histórico enquanto história não escrita só adquiriu
todo o seu peso quando os antropólogos e os etnólogos deram a conhecer civilizações
tais como as da América pré-colombiana ou, mais perto de nós, as da África negra. O
grau de extremo refinamento alcançado por alguns impérios desprovidos de qualquer
tradição escrita nos leva a rever os critérios usados para definir o nível de uma
sociedade. Essa mudança de perspectivas promoveu, por sua vez, a aplicação dos
métodos de investigação dos pré-historiadores fora do limite de seus próprios campos
de trabalho: a arqueologia passou a dar mais atenção à cronologia relativa dos sítios -
principalmente na medida em que, após um século de levantamentos no campo, os
egiptólogos, vislumbrando o fim da longa coleta de inscrições lapidares e a redução dos
achados papirológicos, se voltaram para sítios antes desprezados por menos pródigos
em dados escritos.
A exploração dos sítios em áreas urbanas encetada nesses últimos 20 anos no vale
do Nilo, ou além, quase sempre sob pressão do crescimento selvagem das grandes
aglomerações, foi realizada, assim, em forma de escavações para salvamentos ou para
levantamentos. Tornaram obsoleto o velho antagonismo entre filologia e arqueologia,
ao fim do qual só a primeira se revela capaz de dar conta de uma civilização, já que a
segunda não passaria de disciplina auxiliar, relegada às tarefas inferiores de coleta
documentária.
Abertura e mudança de enfoques favoreceram a eclosão de novas técnicas que
tornaram as datações mais rápidas e mais seguras: todos os métodos que usam análises
de radioatividade são hoje familiares ao público (carbono 14, análises iso- tópicas
diversas e, mais recentemente, termo-luminescência e pesquisa de traços de potássio-
argônio), assim como a dendrocronologia, a palinologia etc. Os próprios procedimentos
da pesquisa também evoluíram: fotografia aérea, levantamentos topográficos ou
arquitetônicos por estéreo-fotogrametria, tratamento informatizado dos dados e até a
axonometria e a reconstituição de edifícios realizada diretamente em computador a
partir desses dados...
Enfim, adiante dos progressos técnicos, esses novos métodos de trabalho pro-
vocaram a mudança do pensamento dos pesquisadores, e surgiu a idéia de que um caco
de cerâmica pode ter um peso tão grande no entender um fato quanto um grão de pólen
ou um fragmento de papiro. Diante desta multiplicação das fontes, o historiador vê-se
obrigado, ele também, a abrir seu método a diversas disciplinas.
PARTE I: AS ÉPOCAS DA FORMAÇÃO
CAPÍTULO I: DA PRÉ-HISTÓRIA À HISTÓRIA
Panorama Geral
À primeira vista, a civilização egípcia sugere um todo coerente com uma duração
incomum conferindo-lhe um lugar especial na história da humanidade. Ela parece surgir
já inteiramente constituída, por volta de meados do quarto milênio a.C., para só
desaparecer em fins do século IV d.C. Esses quase 40 séculos causam a impressão de
uma estabilidade imutável aliada a uma instituição política que nada, nem mesmo as
invasões, conseguiram abalar.
O próprio país apresenta uma unidade geográfica que nos leva a cogitar se não
seria ela a causa dessa perenidade. O Egito é uma longa faixa de terras culti- váveis que
se estende por mais de mil quilômetros entre 24 e 31 graus de latitude Norte, formando
o curso inferior do Nilo, encaixado, de Assuã ao Mediterrâneo, entre o planalto da Líbia
e a cadeia de montes do deserto Arábico (prolongamento, aliás, do escudo do deserto
Núbio). Esse vale, cuja largura não passa de uns 40 quilômetros no máximo foi, do
Olduvaiense, há cerca de um milhão de anos, até a época histórica, uma das áreas
menos impróprias a vida Oriental, enquanto Sahel passou por alternâncias climáticas
radicais reduzindo-o progressivamente à zona árida atual.
Ainda assim, convém matizar, conforme as épocas, a imagem tradicional de um
vale acolhedor ao Homem. Estudos geomorfológicos recentes, mais aprofundados,
assim como a prospecção nas zonas desérticas e subdesérticas ocidentais - mais ou
menos relacionados primeiramente com o projeto da barragem Alta de Assuã e, depois,
com a procura de novas áreas, no deserto líbio, para compensar o esgotamento das
terras do Vale - alteraram bastante a visão geral do passado do Egito. O maior
conhecimento dos mecanismos gerais da formação dos solos devido especialmente aos
trabalhos de R. Said e às explorações de R. Schild e F. Wendorf, cujos resultados foram
publicados nos últimos anos, permitiu a atualização das teorias elaboradas no início do
século, ainda hoje apresentadas nas obras de caráter geral. Revisamos, especialmente, o
papel das depressões lacustres do planalto líbio. As escavações em curso nos oásis que
deram origem a essas teorias nos permitem vislumbrar melhor a influência que tiveram
na migração da vida organizada rumo ao Vale do Nilo: a teoria do "Ur Nil", que teria
aparecido após o recuo do mar eocênico entre o erg da Líbia e o vale atual, é hoje
encarada com prudência, assim como a idéia inicial de um vale primitivo com
luxuriante exuberância, quando os homens vieram povoá-lo.
A Formação
Os Primeiros Habitantes
No fim desse longo percurso atingimos o Pluvial Abassiano. São quase 50 mil anos
no decorrer dos quais a cultura acheulense pôde espalhar-se nas zonas ocidentais. Se
essa difusão ocorreu realmente, ela deve ser considerada certamente como origem dos
elos entre a civilização nilótica e as africanas cujos estágios ulteriores conservam
marcas, mas não podemos determinar se sinalizam uma troca e, se assim for, em qual
direção ela ocorreu. É realmente tentador ver nessas civilizações as vertentes opostas de
uma mesma cultura que teria avançado pelas vias de penetração naturais da futura zona
saariana. A difusão das línguas nilo-saarianas do alto Nilo para o Saara oriental ou para
áreas geograficamente mais próximas do Egito e análises palinológicas recentes
realizadas nos oásis do deserto líbio fornecem importante dado para avaliação: uma
flora que poderia corresponder a um desenvolvimento comum.
A probabilidade dessa articulação é ainda maior pelo fato de corresponder ao fim
da passagem do homo erectus ao homo sapiens, na virada do centésimo milênio a.C., ou
seja, ao estabelecimento de uma cultura comum representada por um tipo humano
dolicocéfalo cuja evolução pode ser comparada à dos seus contemporâneos da África
do Norte e da Europa. Deve-se ter, porém, certa prudência ao fazer esse tipo de
afirmação, porque a vertente africana ainda é mal conhecida e, também, porque os
dados egípcios estão longe de serem completos.
As depressões lacustres no deserto ocidental oferecem às culturas do final do
Acheulense e do Musteriano (cerca de 50000 a 30000 anos a.C.) um ambiente no qual
notamos a presença de ovos de avestruz e de um animal que parece ser o ancestral do
onagro. O fim do Acheulense marca uma nítida revolução tecnológica - a passagem das
ferramentas bifaciais às de pedra lascada - revolução esta durável, espalhada pela
África, atendendo bem às novas condições de vida. Esse período prolonga-se até cerca
de 30000 anos a.C. e corresponde às civilizações Musteriana e à Ateriana. É o fim de
uma economia baseada na caça, nascida na savana, que culminou com a civilização
Ateriana, baseada no uso do arco. Largamente presente no Magreb e no sul do Saara,
essa civilização prolongou-se por bastante tempo na Núbia sudanesa e nos oásis do
deserto da Líbia. Ela poderia ser o último estágio da base africana comum já citada.
Caçadores e Agricultores
Seria arriscado formular uma hipótese; entretanto, podemos talvez supor que a
explosão demográfica paralela a essa evolução fez surgir o domínio de uma cultura
guerreira, que teria crescido às custas dos agricultores. É certo, porém, que esta primeira
forma da agricultura, embora tosca, surgiu às margens do Nilo, quando ainda era
desconhecida no Próximo Oriente. Isto não basta para afirmar uma raiz propriamente
nilótica, nem para refutar o Próximo Oriente como local de surgimento do tipo de
sociedade agrícola que irá implantar-se no Vale ao fim do período Epipaleolítico.
A qualidade do material encontrado nos sítios de Qadam, o tipo das sepulturas -
seja pela arquitetura, seja pela separação entre os túmulos de crianças e de adultos
(Hoffman, 1979, p. 94), para dar um só exemplo - e o que esses elementos revelam do
estilo de vida dos seus ocupantes apresentam muitos pontos em comum com as
civilizações do Neolítico.
O Pré-Dinástico "Primitivo"
A passagem ao pré-dinástico antigo - por volta de 4500 a.C. - também ocorre sem
mudanças profundas. Podemos até dizer que essa separação é arbitrária, na medida em
que ela corresponde apenas à primeira fase conhecida do sítio de el-Amra, a cerca de
120km ao sul de Badari, no centro da região onde se encontram, de Assiut a Gebelein,
os depósitos pré-dinásticos mais ricos. Esta fase encontra sua correspondência, 150km
mais ao sul, na primeira ocupação do sítio de Nagada; ela é encontrada, também, em
toda a volta do Nilo, entre o Gebel el-Arak e Gebelein. A cerâmica apresenta uma dupla
evolução: primeiro na decoração, com o aparecimento de motivos geométricos tirados
do reino animal ou do vegetal, pintados ou entalhados e, segundo, na forma,
essencialmente, com vasos teriomórficos. A arte da cerâmica já atinge alto nível, como
testemunham as "dançarinas" com os braços erguidos, cujo exemplar mais belo se
encontra no museu de Brooklyn.
Pela forma afuselada, o corpo da dançarina não deixa de lembrar as "mulheres-
violino" das Cíclades.
A Escrita
A Unificação Política
Os Emblemas
As Cosmologias
As cosmologias são três, mas podemos dizer que representam variações políticas
sobre um único e mesmo tema: a criação (do universo), pelo sol, a partir do elemento
líquido, para o que a enchente anual do Nilo forneceu o arquétipo. O primeiro sistema é
aquele elaborado em Heliópolis, a antiga cidade santa, na qual os faraós vinham
antigamente fazer reconhecer seu poder, que se tornou hoje um bairro do Cairo. A
cosmologia heliopolita é a primeira, por ser historicamente a mais antiga, mas, também,
porque os teólogos nunca cessaram de voltar a ela, ao longo dos séculos.
Ela descreve a criação segundo um esquema cujas grandes linhas ela partilha com
suas rivais. No início era o Noun, elemento líquido incontrolado, traduzido com
freqüência como "caos". Não se trata de um elemento negativo, mas simplesmente de
um não criado, não organizado, contendo nele os germes possíveis da vida. Aliás, este
elemento não desaparece após a criação: fica entocado nas fronteiras do mundo
organizado, que ele ameaça invadir periodicamente se o equilíbrio do universo vier a
ser rompido. Ele é sede das forças negativas, sempre prontas a intervir e, de maneira
mais geral, de tudo o que escapa às categorias do universo. As almas penadas, que não
foram beneficiadas com os ritos funerários apropriados, por exemplo, ou as crianças
natimortas, que jamais tiveram força suficiente para aceder ao mundo sensível aí
flutuam, como afogados à deriva.
É deste caos que saiu o sol, do qual não se conhece a origem, já que "veio à
existência por si mesmo". Ele aparece sobre um monte de terra, recoberta por areia
virgem, emergindo fora da água e se materializa pela presença de uma pedra elevada, o
benben, que é o objeto de um culto no templo de Heliópolis, considerado como o
próprio lugar da criação. O monte de terra evoca muito claramente o tell emergindo das
vagas de água maior enchente do rio, e o benben, a petrificação do raio de sol, adorado
sob a aparência de um obelisco, truncado e pousado sobre uma plataforma. Este deus,
que é seu próprio criador, é alternativamente Rá, o sol propriamente dito, Atum, o Ser
acabado por excelência, ou ainda Khepri, que era representado sob a forma de um
escaravelho, e cujo nome significa "transformação", à imagem daquela que, acreditava-
se, acontecia ao besouro rolando sua pílula pelos caminhos.
O demiurgo tira a criação de sua própria semente: masturbando-se ele põe no
mundo um casal, o deus Chou, o Seco, e a deusa Tefnout, a Úmida, cujo nome,
invocador, designa o cuspe, outra forma de expulsão da substância divina, se acre-
ditarmos na lenda de ísis e de Rá. Da união entre Seca e Úmida nasce um segundo
casal, o Céu, Nout, e a Terra, Geb, uma mulher e um homem. O Céu e a Terra têm
quatro filhos: ísis e Osíris, Seth e Nephtys. Esta enêade divina, repartida em quatro
gerações, estabelece a ligação entre a criação e os homens. As duas últimas gerações
introduzem, com efeito, o reino humano integrando a lenda de Osíris, modelo da
paixão, que é a parte dos mortais. O segundo casal é estéril. O primeiro, fértil, constitui
o protótipo da família real: Osíris, rei do Egito, assassinado à traição por seu irmão Seth
- que representa a contrapartida negativa e violenta da força organizadora simbolizada
pelo faraó. Ele se apropria do trono após sua morte. ísis, modelo de esposa e de viúva,
ajudada por sua irmã Nephtys, reconstitui o corpo despedaçado de seu marido. Anubis,
o chacal, nascido, segundo dizem, dos amores egítimos de Nephtys, vem socorrê-la para
embalsamar o rei defunto. Depois ela da à luz um filho póstumo, Hórus, homônimo do
deus solar Edfu e, como ele, encarnando em um falcão. Ela o esconde nos mangues do
Delta, próximo da cidade sagrada de Buto, com a cumplicidade da deusa Hathor, a vaca
nutriz. A criança cresce e, após uma grande luta contra seu tio Seth, obtém do tribunal
dos deuses, presidido por seu avô Geb, a reintegração na herança de seu pai que, ele, se
vê confiar o reino dos mortos...
A esse esquema do reino dos deuses se prendem numerosas lendas secundadas ou
complementares, que os teólogos multiplicaram a seu prazer, para introduzir uma
divindade local, embelezar seu papel na cosmologia ou assegurar a fusão sincrética de
muitos conjuntos. Disso resulta uma imbricação complexa de mitos que se recortam
com freqüência entre eles, e todos põem em cena deuses que reinam sobre a terra e que
são sujeitos às paixões humanas. Pouco se trata aí a questão da própria criação dos
homens, que parece contemporânea àquela do mundo, com uma só exceção: a lenda do
"olho de Rá". O Sol perde seu olho. Envia seus filhos, Chou e Tefnout, em busca do
fugitivo, mas o tempo passa sem que eles voltem. Decide então substituir o olho
ausente. Nesse meio tempo o olho fugitivo volta e vê que foi substituído. Põe-se a
chorar de ódio, e, de suas lágrimas (,remout), nascem os homens (remet). Então, Rá o
transforma em cobra e o prende à sua cabeça: ele é o uaereus encarregado de fulminar
os inimigos do deus. O aspecto anedótico da criação dos homens é, aí, excepcional, e
podemos supor que esta origem deve-se, antes de mais nada, ao jogo de palavras,
tentador demais para o teólogo, entre o nome das lágrimas e o da humanidade.
O tema do olho prejudicado ou substituído conhece vários desenvolvimentos: ele
serve também para explicar o nascimento da Lua, segundo olho de Thot, o deus escriba
com cabeça de íbis, ou o olho sadio de Hórus. Este, com efeito, perdeu um olho por
ocasião do combate que o opôs a Seth pela posse do reino do Egito; Thot devolveu-lhe
o olho e o teria feito protótipo da integridade física. É por essa razão que ele figura, em
geral, nos caixões onde garante ao morto o pleno uso de seu corpo.
Rá, o rei dos deuses, tem de lutar para conservar um poder que tentam arrebatar-lhe
os inimigos encarniçados, conduzidos por Apofis, personificação das forças negativas,
cada noite, durante sua incursão pelo além. Hórus, à frente dos arpoado- res da barca
divina, o ajuda a vencê-los, consagrando assim uma nova contaminação dos mitos solar
e de Osíris. As tentativas feitas contra o rei dos deuses tomam às vezes uma direção
mais inesperada. Por exemplo, é ísis, a Grande Maga, que tenta ganhar poder sobre Rá
fazendo-o picar por uma serpente modelada na argila molhada na saliva que o deus,
transformado em um velho débil, deixa escapar de sua boca, ao partir de manhã para
iluminar o universo. O rei divino é tomado pela própria potência saída de seu corpo:
para ser salvo, deve revelar àquela que criou o encantamento o segredo da sua energia
vital - os nomes dos seus kaous. Esse era o objetivo de Isis, que queria apoderar-se,
assim, do poder sobre ele aprendendo seus nomes secretos... Sem dúvida, o velho deus
consegue desmanchar a armadilha da feiticeira, mas o texto é interrompido e não
conhecemos o fim da história.
O Egito possui, ele também, o mito da revolta dos homens contra seu criador, que
decide, então, a conselho da assembleia dos deuses, destruí-los. Para isso, envia à terra
seu olho sob a forma da deusa Hathor, mensageira da sua fúria. Ela devora, em um dia,
parte da humanidade, e depois adormece. Rá, julgando a punição suficiente, espalha
cerveja na noite. Misturada ao Nilo, ela tem a aparência de sangue. Ao acordar, a deusa
sorve a beberagem e cai, abatida pela embriaguez. A humanidade está salva, mas Rá,
decepcionado com ela, decide retirar-se para o céu, nas costas da vaca celeste que será
sustentada pelo deus Chou. Ele entrega a administração da terra a Thot, e as serpentes,
insígnias da realeza, para Geb. Assim é consumada a separação dos deuses e dos
homens, cada um tendo seu lugar designado no universo, que conhece daí por diante o
espaço e o tempo - djet e neheh. Essa lenda sobre o furor apaziguado lembra a da Deusa
Distante: uma leoa furiosa que aterrorizava a Núbia. Um mensageiro de se pai, Rá, a
traz de volta ao Egito, apaziguada, sob a aparência de uma gata, transformada pelo Sol
em sua guardiã.
A cosmologia heliopolita prevalece, como podemos ver, assimilando os principais
mitos do país. Mas não é a única. A cidade de Hermópolis, hoje Achmou- nein, cerca de
300 quilômetros ao sul do Cairo, capital da XV província de Alto Egito, elaborou sua
própria cosmologia, que foi durante um tempo rival da de Heliópolis. Ela aborda o
problema na contramão dessa última: nela o Sol não é o primeiro, mas o último elo da
cadeia. O ponto de partida é o mesmo: um caos líquido não criado, no qual se batem
quatro tipos de rãs e de serpentes que reúnem suas forças para criar e depositar um ovo
sobre uma ponta de terra que emerge fora da água. Cada um destes casais é composto
por um elemento e seu paredro: Noun e Naunet, o oceano primordial que Heliópolis
integra, como vimos, em seu próprio sistema; Heh e Hehet, água que procura sua via;
Kekou e Keket, a obscuridade, e, enfim, Amon o deus oculto e seu paredro Amaunet. A
seguir, quando Amon, último elemento da octóade,I irá se tornar o deus dinástico, o
clero tebano encarregar-se-á de reconstituir uma "família" no esquema mais humano,
assegurando a transição entre a criação e o reino humano, como a de Heliópolis.
O sistema heliopolitano e hermopolitano, assim como os grandes mitos populares,
como os de Osíris, apresenta elementos tirados do substrato profundo da civilização dos
quais alguns têm ressonância nas civilizações africanas: Anubis lembra o chacal
incestuoso, com seu papel prometeico anterior aos Nomos entre os Dogons do Mali,
cuja cosmogonia repousa igualmente sobre oito deuses fundadores. Poderíamos, aliás,
multiplicar aproximações desse tipo: Amon é, aqui como lá, o carneiro de ouro celeste,
com a fronte ornada de pequenos chifres e uma cabaça, evocando o disco solar; Osíris
lembra o Lebe, cuja ressurreição é anunciada pelo novo crescimento do sorgo,
enquanto, mais profundamente e para além do verbo criador, o indivíduo é composto
por uma alma e uma energia vital (Griaule, 1966, p. 28-31; 113-120; 66; 194 e segs.),
que os egípcios denominavam ba e ka.
Do Mito à História
Os Primeiros Reis
Qualquer que seja a solução escolhida, a I dinastia inicia-se com Aha. Junto com a
I, recebe de Manethon a designação de "Tinita", devido ao nome do seu suposto berço,
a cidade, Tis (ou Tinis), próxima de Abidos, onde foram encon- trados os túmulos de
todos os reis da primeira dinastia e de alguns da segunda. A maioria desses reis tinha,
entretanto, outra sepultura, nas imediações de Mênfis.
O estado desses túmulos não permite esclarecer se eram sepultados, como se
pensou, nas proximidades da nova capital política, para respeitar a dualidade do país,
embora conservassem monumentos funerários no Alto Egito - de onde devia emanar o
seu poder em um local que se tornou conhecido depois como a cidade santa de Osíris.
As duas dinastias constituem um todo de 3150 a.C. até 2700 a.C, quase cinco
séculos durante os quais a civilização acaba de adquirir suas características defini-
tivas. É um período mal conhecido, por falta de documentação, principalmente, já que a
principal fonte dos conhecimentos, excluindo-se a Pedra de Palermo, conti- nua sendo o
conjunto de túmulos descobertos em Abidos e em Saqara e o material lá encontrado.
Atribui-se certamente a Aha, como a todo fundador, mais do que ele realizou de
fato. Caso confunda-se com Narmer, ele terá sido o promotor do culto do crocodilo
Sobek, no Faiyum, e o fundador de Mênfis. Ele teria provavelmente instaurado, junto
com sua administração, o culto do touro Apis. Supõe-se, ainda, que organizou o país
recém-unificado, praticando uma política de conciliação com o Norte. E, pelo menos, o
que se pode deduzir pelo fato de o nome da sua esposa, Neithhotep, "que Neith seja
apaziguada", ser formado a partir do nome da deusa Neith, oriunda de Sais, no Delta.
3150-2700 Período Tinita
a.C.
3150-2925 1 Dinastia
.....-3150 Vários reis (?) entre os quais
"Escorpião"
3150-3125 Narmer-Menás
3125-3100 Aha
3100-3055 Djer
3055-3050 Uadji ("Serpente")
3050-2995 Den
2995-.... Adjib
-2950 Semerkhet
2960-2926 Qaa
2925-2700 II Dinastia
2925- Hotepsekhemui
Nebré
Nineter
Uneg
Senedj
Peribsen
Sekhemib
-2700 Khasekhem/Khasekhemui
Figura 13 - Quadro cronológico do período Tinita.
O Fim da Dinastia
A Segunda Dinastia
Semerkhet fez-se sepultar em Abidos, assim como seu sucessor, Qaa, talvez seu
filho, cujo reinado encerra a primeira dinastia sem qualquer enfrentamento que explique
esta mudança, reportada por Manethon. Parece simplesmente que o poder tenha se
deslocado para Mênfis se considerarmos que os três primeiros reis da segunda dinastia,
pelo menos, escolheram ser sepultados em Saqara. Outro sinal desse deslocamento
geográfico é o próprio nome do soberano que inaugura a nova dinastia: Hotepsekhemui,
"os Dois Poderosos estão em paz". Os Dois Poderosos sào, é claro, Hórus e Seth. O
nome nebti desse rei confirma de fato a interpretação dada, pois ele adota "as Duas
Senhoras estão em paz". Essa escolha deve ser uma alusão política à oposição entre o
Norte e o Sul, que não ocorreu necessariamente de forma violenta, mas revela a
situação do país, sempre pronto para dividir-se em dois, em caso de conflito. Apropria
família real manteve relações com o Delta oriental, com a região de Bubastis, sem
dúvidas: podemos deduzi-lo observando a prática do culto de Bastet e de Soped, um
deus falcão local assimilado, desde cedo a Hórus, filho de Osíris. É nessa época,
também, que se estabeleceu o culto solar, ainda que o nome de RáI só apareça no nome
de Hórus do sucessor de Hotepsekhe- mui, Nebré, "o Senhor do Sol" ou, mais
provavelmente e com menos orgulho, "Rá é (meu) mestre". Rá assume em definitivo o
lugar do "deus do horizonte", de quem provém. Essa escolha religiosa vê-se confirmada
pelo sucessor de Nebré, Nineter, "aquele que pertence ao deus". Os dois devem ser os
donos das tumbas situadas por baixo da calçada de Unas, em Saqara, onde foram
encontrados cilindros-selos com seus nomes, mas essa imputação é pouco segura, por
falta de outros documentos, escritos. Os selos não ficaram obrigatoriamente ligados ao
rei cujo nome ostentam; encontramos outros semelhantes nos túmulos de diversas
pessoas, súditos e talvez sucessores. Encontrou-se, por exemplo, no túmulo de
Khasekhemui, em Abidos, um cilindro com o nome de Nineter, embora não possa haver
qualquer dúvida quanto à identidade do dono do túmulo.
Documentos de outro tipo podem sofrer deslocamentos afastando-se de contextos
originais. Trata-se dos vasos de pedra cujas inscrições são tão valiosas para o
conhecimento de certos fatos históricos e da organização administrativa do país quanto
eram as inscrições encontradas nas tabuletas de marfim da I dinastia. Encontraram-se
lotes muito importantes, parte deles pertencentes ao reinado de Nineter, nas galerias
subterrâneas da pirâmide de Djoser, segundo soberano da III dinastia. Esta descoberta
confirma a duração desses testemunhos históricos, transmitidos de geração em geração,
quer tenham sido usados ou não. No caso do túmulo de Djoser, permaneceram no
mesmo ambiente, ao passo que os vasos jubilares reais de que já falamos tiveram outro
destino: ofertados aos dignitários e conservados pelas respectivas famílias, acabaram
entre o mobiliário funerário de longínquos descendentes.
Os sucessores de Nineter, Uneg e Senedj são quase desconhecidos. Afora as listas
reais, são mencionados apenas em inscrições nos vasos encontrados na pirâmide de
Djoser. É possível que o poder desses reis tenha ficado restrito à área de Mênfis. Senedj
foi contemporâneo do rei Peribsen, que deveria ter uma estátua na sua tumba, se
acreditarmos que existia na IV dinastia um "superior dos sacerdotes uab de Peribsen na
necrópole de Senedj, no templo e em outras áreas". Desse último, conhecemos, em
Abidos, o túmulo que lhe erigiu seu sucessor local, Sekhemib "o homem de coração
poderoso" e o material ali encontrado, vasos de pedra e objetos de cobre. Também
foram achadas duas lápides com o nome do rei dentro do Serek- uma representação do
palácio em planta, precedida pela fachada, representada em elevação: o nome do
soberano está inscrito no quadro definido pela planta. O conjunto constitui a escrita
normal do nome Hórus dos soberanos. Em geral, encontra-se o falcão Hórus acima
desta "fachada de palácio"; já o nome de Peribsen encontra-se sob invocação de Seth.
Esses vários elementos nos convidam a pensar que as relações entre os dois reinos
deterioraram-se, por volta do fim do reinado de Nineter, talvez em conseqüência da
nova orientação religiosa escolhida por Nebré, que teria privilegiado o Norte em
demasia. O silêncio das listas reais a respeito de Peribsen e do seu sucessor abidesiano,
e a escolha clara de Seth para deus tutelar, sugerem que o Sul havia recuperado sua
autonomia - Peribsen teve, por exemplo, um "chanceler do rei do Alto Egito" - ou, pelo
menos, que não mais reconhecia os soberanos de Mênfis, vistos pela tradição como
legítimos detentores do poder, conforme esquema que se tornou clássico em seguida. O
I
N.t.: Também Ré.
poder de Peribsen estendia-se, pelo menos, até Elefantina, onde foram encontradas, em
1985, marcas de selos com seu nome, e onde sabemos ter existido, mais tarde, um
templo consagrado a Seth. O fato de os cultos funerários de Senedj e de Peribsen terem
sido associados à IV dinastia deixa pensar que durante seu reinado a oposição dos dois
reinos não teria sido violenta.
A situação muda com Khasekhem,"o Poderoso (isto é, Hórus) está coroado".
Originário de Hierakômpolis, ele consagrou no seu templo, quando da coroação,
objetos comemorando uma vitória sobre o Norte: inscrições em vasos de pedra e duas
estátuas, uma de xisto e outra de calcário, representando-o sentado em um assento com
pequeno encosto. Essas estátuas, praticamente as primeiras do tipo, já estabelecem o
cânone das representações reais. O soberano encontra-se revestido do manto envolvente
da festa-sed, e ostenta, nas duas estátuas, a coroa branca do Alto Egito. Isto não
significa obrigatoriamente que Khasekhem tenha escolhido atribuir ao Alto Egito a
origem do seu poder. Considerando o traje exibido, essas estátuas devem ter pertencido
a um conjunto, semelhante a outros encontrados em locais diferentes, representando
alternativamente o soberano, durante as cerimônias de coroação, como rei do Alto e do
Baixo Egito, segundo o mecanismo da festa-sed. O pedestal dessas estátuas está
decorado com prisioneiros, amontoados em uma confusão de corpos desarticulados.
Por ocasião da vitória indicada nos objetos comemorativos, Khasekhem
transforma, sem dúvidas, seu nome em Khasekhemui, "os Dois Poderosos estão
coroados", colocando Hórus e Seth acima do Serek e escolhendo, como nome de rei do
Alto e do Baixo Egito, "através dele, as Duas Senhoras estão em paz". Essa tomada de
controle do Egito, com aparência de reunificação, coincide com uma evolução
arquitetônica, acompanhada por uma vigorosa política de construções. Khasekhemui
executa obras em pedra, em Hierakômpolis, Elkab e Abidos, onde seu túmulo é o maior
entre os de todos os soberanos da II dinastia.
Figura 15 - Estátua de Kasekhem proveniente de Hierakômpolis. Xisto. Museu do
Cairo.
A Monarquia Tinita
I
N.t.: Principal conselheiro e administrador do rei.
Figura 16 - Mapa dos "nomos" do Baixo Egito.
Djoser e Imhotep
Djoser - o Hórus Neteri-khet - é muito mais célebre graças às suas obras e à
própria historiografia egípcia. É uma das grandes figuras da história egípcia, entre
tantas, por ter promovido a arquitetura em pedra, criada pelo seu arquiteto Imhotep, que
passou a ser, ele também, objeto de culto na Época Baixa. Seu tempo permaneceu
ligado a certa imagem da monarquia. É o que mostra um célebre apócrifo, uma esteia
gravada a mando de Ptolomeu V Epifânio por volta de 187 a.C., mais de dois mil anos
depois, nas rochas de Sehel, perto de Elefantina, na Primeira Catarata. Esse texto relata
uma fome que teria ocorrido no reinado de Djoser e que mostra como o rei soube
vencê-la. Nele vemos Djoser queixar-se do estado do país:
"Meu coração estava em grande aflição porque o Nilo não tinha chegado a
tempo, por um período de sete anos. O grão estava escasso, as sementes
ressecadas, todo alimento que tínhamos era pouco, cada qual estava privado
da sua renda. Chegava-se a ponto de não poder caminhar: as crianças
choravam, os jovens estavam abatidos, os velhos, com os corações
entristecidos, ficavam sentados no chão, pernas dobradas, as mãos
entrelaçadas. Até a corte passava necessidades; os templos estavam
fechados, e os santuários, empoeirados. Tudo o que existia estava em
aflição".
"Farei subir, por ti, as águas do Nilo; não mais haverá anos com falta de
inundação em qualquer terra: as flores crescerão e vergarão sob o peso do
pólen" (Barguet, 1983, p. 15 e 28).
O fim da dinastia não é mais claro que seu início; temos dificuldades para casar os
dados encontrados nas listas reais aos da arqueologia. Na falta de documentos
explícitos, a arqueologia sugere uma ordem de sucessão baseada na evolução
arquitetônica das sepulturas reais. Descobriram-se, de fato, no sítio de Zauiet el-Ariam,
a meio caminho entre Gizé e Abusir, duas sepulturas piramidais, a mais meridional das
quais, geralmente denominada pirâmide "em camadas" está nitidamente inspirada nas
de Sekhemkhet e de Djoser, em Saqara.
Provavelmente inacabado, este túmulo pode ser atribuído, em face das inscrições
em vasos, ao Hórus Khaba, desconhecido por outras fontes, que foi associado ao rei
Huni citado na lista real de Saqara e pelo Cânone de Turim. Esse Cânone atribui-lhe um
reinado de 24 anos, que deve ser situado no primeiro quarto do século XXVI a.C. Sua
posição de último rei da dinastia é confirmada por um texto literário composto pelo
escriba Kaires, se acreditarmos nas miscelâneas re- missidas. Trata-se de um
Ensinamento destinado ficticiamente a um personagem contemporâneo do rei Teti, de
quem foi o vizir, e na proximidade de cuja pirâmide foi sepultado, em Saqara. Trata-se
de Kagemni que, à semelhança de Imhotep, se tornara lendário desde o fim do Antigo
Império, atribuindo-se a ele uma carreira iniciada já no reinado de Senefru. De fato, o
texto termina assim:
Se Huni for realmente o último rei da III dinastia, falta encontrar um lugar para o
outro construtor de Zauiet el-Ariam, que alguns grafitos identificam como o Horas
Nebka(re) ou Neferka(re): a arquitetura da sua pirâmide o situa na III dinastia ou, pelo
menos, a um período com retorno ao estilo daquela época. Será isto, porém, bastante
para vermos nele o Nebkare da lista de Saqara, isto é, o Mesochris de Manethon - de
qualquer modo, um predecessor de Huni?
Como se nota, ainda está longe uma descrição satisfatória da história desta dinastia,
e não é impensável que pesquisas arqueológicas futuras trarão um melhor entendimento
do seu encadeamento. Ignoramos, também, por qual motivo ocorreu uma mudança de
dinastia, cuja marca mais tangível é o deslocamento da necrópo- le real para o sul, de
Zauiet el-Ariam para Meidum e Dachur, antes do retorno ao norte, com Queops.
Senefru
Meresankn, mãe de Senefru, o fundador da nova dinastia, não tinha sangue real;
era, sem dúvida, uma concubina de Huni, mas nada nos permite afirmá-lo. Se assim for,
seu filho terá desposado uma das suas meio-irmãs, Heteferes I, filha de Huni e mãe de
Queops, procurando confirmar, assim, pelo sangue, a legitimidade do seu poder. Essa
filiação ilustra bem a complexidade das genealogias da IV dinastia. Um estudo delas,
ainda que sumário, mostra a implicação profunda da família real no governo do país.
Como seus antecessores da III dinastia, Djoser e Nebka, Senefru permaneceu como
uma figura lendária, lembrada como muito boa na literatura. É até divinizado, no Médio
Império, tornando-se o modelo de rei perfeito, invocado por soberanos como
Amenemhat I, quando buscam legitimar o próprio poder. Essa consideração,
acompanhada da grande popularidade atestada pela onomástica, chegou até à
restauração do seu templo funerário em Dachur. Não faltam fontes para descrever seu
reinado, que deve ter sido longo - uns 40 anos no máximo - e glorioso. A Pedra de
Palermo deixa perceber que ele foi um rei guerreiro: teria di rigido uma expedição
contra a Núbia para abafar uma "revolta" no Dodecasqueno, trazendo de volta 7.000
prisioneiros, quantidade essa enorme, considerando que essa região, correspondendo
aproximadamente à Núbia egípcia, tinha, nos nossos tempos, há cerca de 30 anos,
apenas 50.000 habitantes. Dessa campanha, teria trazido, também, grande número de
cabeças de gado, 200.000 às quais se juntaram, segundo a mesma fonte, 13.000 outras,
que trouxe de uma campanha contra os Líbios, na qual fez, ainda, 11.000 prisioneiros.
Essas campanhas militares eram mais que simples rázias contra populações
insubmissas: desde os primeiros tem- pos da era tinita, a Núbia representava, para o
Egito, um verdadeiro reservatório de mão de obra, seja para trabalhar nas grandes obras,
seja para manter a ordem, pois os povos do deserto oriental - os Medjaus e, mais tarde,
os Blemies - forneciam o essencial das forças policiais do reino. Juntava-se a isto, é
claro, a preocupação em conservar sob controle as rotas das caravanas que traziam
produtos africanos como ébano, marfim, incenso, animais exóticos - girafas e macacos,
cuja moda foi crescendo ao longo do Antigo Império ovos de avestruz, peles de panteras
etc. importava, ainda, o controle dos locais de produção de certos bens importados,
como o ouro, explorado em todo o deserto da Núbia, do sudeste do Uadi Alaqi até o
Nilo, ou o diorito, a oeste de Abu Simbel.
Figura 20 - Genealogia sumária da IV dinastia: gerações 1-6.
Essa última preocupação estava por trás das campanhas que todos os reis rea-
lizaram no Sinai, desde Sanakht. Não tinham por objetivo conter improváveis inva-
sores vindos da Sírio-Palestina, mas o de garantir a exploração das minas situadas a
oeste da península, no Uadi Nash e o Uadi Magara, onde eram extraídos o cobre, a
malaquita e, principalmente, as turquesas. Senefru não fugiu a essa regra. Dirigiu uma
expedição contra os Beduínos que retomavam, a cada vez, a posse dos locais só
exploradas temporariamente pelos egípcios. Ele estabeleceu solidamente a exploração
das minas, a julgar pela sua popularidade sempre vivaz no Sinai durante o Médio
Império. Esse estado de guerra larvada com as populações nômades em nada impedia as
relações comerciais com o Líbano e com a Síria, passando pela costa marítima da
Fenícia. Senefru enviou, até, uma expedição, comportando cerca de 40 navios, para ir lá
buscar madeira de construção, sempre escassa no Egito.
Construtor de navios, de um palácio, de fortalezas, de casas e de templos, Senefru
foi, ainda, o único soberano ao qual se pode atribuir a construção de três pirâmides. Em
um primeiro tempo ele voltou-se, de fato, para o sítio de Meidum, muito ao sul das
necrópoles dos seus predecessores. Lá, fez construir um túmulo com uma técnica ainda
próxima daquela usada no de Djoser: esta pirâmide não devia estar longe da conclusão,
possivelmente no ano 13 de seu reinado, quando a abandonou para iniciar, em Dachur,
a construção de duas novas edificações que deveriam resultar na pirâmide perfeita. É
difícil saber o motivo da transferência da necrópole real para Meidum, seguida de seu
retorno ao Norte. A escolha de Meidum procurava certamente marcar uma diferença em
relação à dinastia anterior, e deve ter correspondido à primeira metade do reinado. A
família real tinha certamente laços com a região, já que o ramo primogênito foi ali
sepultado, em especial, Nefermat, que foi vizir de Senefru. Seu filho, Hemiunu, ocupou
o mesmo cargo no reinado de Queops, que quisemos ver, às vezes, como seu tio.
Retomando a tradição familiar iniciada pelo pai, com Huni, construiu, para seu rei, a
grande pirâmide de Gizé, pelo que recebeu a honra de se beneficiar de um túmulo com
sua estátua, nas proximidades da obra. Outro hóspede ilustre de Meidum foi Rahotep,
cuja estátua, representando-o ao lado da sua esposa Nefret, é uma das obras-primas do
Museu do Cairo (figura 33).
Queops
''Não houve maldade que não fosse praticada por Queops. Primeiro, fechou
todos os templos e proibiu aos egípcios a realização de sacrifícios. Depois,
obrigou-os a trabalhar para ele. Uns foram empregados para explorar as
pedreiras nos montes da Arábia, para arrastar os blocos extraídos de lá até o
Nilo e para atravessá-los, em batéis, até o outro lado do rio; outros recebiam
as pedras e arrastavam-nas até a montanha da Líbia. Cem mil homens eram
empregados, a cada três meses, nesses trabalhos. Quanto ao tempo durante
o qual o povo foi assim atormentado, foram gastos 10 anos só para construir
a calçada por onde eram arrastadas as pedras. (...) Os trabalhos na própria
pirâmide duraram 20 anos. (...) Esgotado por essas despesas, Queops foi até
à infâmia de prostituir sua própria filha, ordenando-lhe que tirasse dos seus
amantes certa importância em dinheiro. Ignoro a quanto montava essa
importância, os sacerdotes não me informaram. Ela não só obedeceu à
ordem do pai, como também quis deixar seu próprio monumento. Pediu a
todos que vinham vê-la que lhe dessem uma pedra. Essas, disseram-me os
sacerdotes, foram as pedras usadas para construir a pirâmide que está no
meio das três, em frente da grande pirâmide, e que tem um fletro I e meio de
cada lado" (Histórias, II, 1124-126).
Os Herdeiros de Queops
Queops teve dois filhos, nascidos de mães diferentes, que lhe sucederam. O
primeiro foi Djedefre (Didufri), que sobe ao trono na morte do pai. Sua personalidade e
seu reinado permanecem obscuros; nem mesmo podemos dizer se reinou apenas oito
anos, como indica o Cânone de Turim, ou mais (sem chegar, porém, aos 63 de
Manethon). Seu acesso ao poder marca, no entanto, uma mudança indiscutível,
prenunciadora das grandes transformações do fim da dinastia. Ele é o primeiro a incluir
em sua titulação o nome de "filho de Rá" e escolhe trocar Gizé por Abu Roach, uma
dezena de quilômetros mais ao norte, onde faz construir seu túmulo. A escolha desse
local não deve ser indiferente: deve sinalizar, sem dúvida, um retorno aos valores
anteriores a Queops. Essa parte do planalto já fora adotada durante a III dinastia.
Djedefre retoma, ainda, a orientação norte-sul e adota uma planta retangular inspirada,
certamente, nos modelos de Saqara. Esse complexo, com um templo de culto, uma
imensa calçada em rampa ascendente e um templo de acolhida ainda não desenterrado
não foi concluído, o que deixa supor um reinado bastante curto. Além disso, o
complexo foi muito pilhado, o que talvez não seja significativo, já que foi construído
com materiais preciosos, como sienito e quartzito vermelho de Gebel el-Amahr, que
devem ter provocando muitas cobiças. Chassinat encontrou, assim, em 1901, no
entorno da pirâmide, um lote de fragmentos provenientes de um grupo de 20 estátuas de
quartzito que representavam o rei. Os mais belos figuram entre as obras-primas da
plástica real e estão hoje conservados no Museu do Louvre.
Não é clara a posição de Djedefre dentro da família real, em especial no que toca a
seus laços com seu meio-irmão Quefren, que lhe sucedeu. Não conhecemos o nome de
sua mãe, mas sabemos que ele desposou provavelmente sua meio-irmã Heteferes II, que
também foi esposa de Kauab. Este foi o príncipe herdeiro de Queops, de quem foi vizir,
falecendo antes do pai. Conhecemos seu túmulo, um dos primeiros do cemitério
oriental da pirâmide de Queops, e sabemos que sua memória foi preservada, visto que o
príncipe Khaemuaset fez restaurar sua estátua no templo de Mênfis. Da união de Kauab
e de Heteferes II nasceu a princesa Meresankn III, que desposou Quefren, enquanto
Heteferes II teve, com Djedefre, Neferhetepes, uma das "possíveis" mães de Userkaf.
Figura 21 - Genealogia sumária da IV dinastia, gerações 4-6: ramo primogênito.
Tendo desaparecido Kauab, Djedefre teria entrado em competição com seu outro
irmão, Djedefhor, cuja mastaba, inacabada e voluntariamente danificada, foi
encontrada nas proximidades da de Kauab. Seria isto o sinal de uma perseguição? É
difícil dizer. Não é impossível, na medida em que Djedefhor é pai da rainha Khen-
kaus, mãe de Sahure e de Neferirkare, que seria provavelmente a Redjedjet do Papiro
de Westcar, aquela que deveria gerar, por obra de Rá, os primeiros reis da V dinastia,
como anunciou o mago Djedi a Queops. Teria havido, então, uma luta entre dois ramos
rivais; Djedefre teria prevalecido sobre Djedefhor e, depois, o poder teria refinado ao
ramo primogênito, com Quefren. Esta hipótese tem certo peso em vista do julgamento
da posteridade a respeito dos filhos de Queops. Um grafito da XII dinastia, encontrado
no Uadi Hamamat incluiu Djedefhor e seu outro meio-irmão Baefre na sucessão de
Queops, depois de Quefren. Além disto, a tradição legitimista fez dele um personagem
quase igual, em muitos aspectos, a Imhotep. Homem de letras, ele é o autor de um
Ensinamento que os alunos estudavam nas escolas, obra da qual muitas passagens se
tornaram proverbiais e são citadas pelos melhores autores, de Ptahotep até a época
romana. Perito em textos funerários, ele descobriu no santuário de Her- mópolis, "em
um bloco de quartzito do Alto Egito, sob os pés da Majestade do deus", quatro dos mais
importantes capítulos do Livro dos Mortos: a fórmula do capítulo 30 B. que impede o
coração de testemunhar contra seu dono, a do capítulo 64, capital, pois abre a
transfiguração "das quatro tochas" (137A), e, por fim, aquela que confirma a glória do
defunto no reino dos mortos (148). Precursor de Satni Kamois, ele é, também, quem
introduz o mago Djedi no Papiro de Westcar. Sua dimensão quase mítica impede a
avaliação do seu real papel histórico: se confiarmos nos textos, ele já era um sábio
respeitado na época de Queops, e ainda vivia no reinado de Mikerinos.
Com Quefren, volta-se ao ramo primogênito e à tradição de Queops, como
confirmam cerca de 25 anos de reinado glorioso. Ele retorna a Gizé e faz edificar sua
pirâmide ao sul da de seu pai, dotando-a de um templo de acolhida construído em
calcário e granito. A. Mariette descobriu em 1860, no vestíbulo desse templo, entre
vários fragmentos jogados em um poço, uma das mais belas estátuas do Museu do
Cairo, representando Quefren sentado no trono real, protegido pelo deus dinástico
Hórus, envolvendo-lhe a nuca com as asas (figura 28), da qual se descobriu
recentemente uma similar (Vandersleyen, 1988). A ruptura não deve ser tão forte
quanto se diz amiúde. Não há solução de continuidade entre os dois reinados. Muito
pelo contrário, Quefren mantém-se na mesma linha teológica iniciada por seu
predecessor.
Ele não só conserva o título de ''filho de Rá" como amplia de forma magistral a
afirmação da importância de Atum frente a Rá, já destacada pelo rei anterior. É da
época de Djedefre, de fato, o primeiro exemplar conhecido de esfinge real, encontrada
em Abu Roach. Entre as estátuas encontradas por E. Chassinat que evocamos acima, a
magnífica cabeça que se encontra no Museu do Louvre pertencia provavelmente a uma
esfinge. Quefren faz revestir e esculpir um bloco monumental deixado por uma
escavação realizada no tempo de Queops no planalto de Gizé, dando-lhe a forma de um
leão cuja cabeça reproduz a sua própria face, coroada com o nemes. Essa esfinge, na
mesma escala da pirâmide que será identificada ao novo império, em Harmaquis,
representa o rei como hipóstase de Atum. A localização da esfinge ao pé da necrópole,
assim como o templo que o rei faz erigir à frente, mostra seu duplo valor: Quefren é a
"imagem viva" - shesep ânkh, que se escreve por meio de um hieróglifo representando
justamente uma esfinge deitada - de Atum, enquanto vivo e quanto no além, após
completar sua transfiguração.
Com sua esposa, Khamerernebti I, ele tem um filho, Menkaure, "Estáveis são os
kau de Rá" ou Mikerinos, retomando a transcrição de Heródoto, que foi seu sucessor
imediato. Entre os dois, Manethon insere Bicheris ou Baefre, "Rá é seu ba", que vemos
mencionado na XII dinastia, ao lado de Djedefhor, e que é provavelmente o mesmo que
Nebka, cuja pirâmide inacabada foi achada em Zauiet el- -Ariam. Mikerinos perde um
filho e é seu outro filho, Chepseskaf, quem, tendo-lhe sucedido, irá concluir seu templo
funerário e, talvez, até sua pirâmide, a terceira do conjunto de Gizé. É a menor das três,
mas a única a ser revestida, com granito na parte inferior e com calcário fino na parte
superior. Em face da dúvida deixada por Manethon, esses elementos falam mais a favor
da idéia de um reinado de 18 anos e não de 28.
Chepseskaf é o último rei da dinastia. No intuito, sem dúvida, de estreitar, os laços
entre os dois ramos da família real, ele desposa Khentkaus, filha de Djedefhor, em cujo
túmulo, situado em Gizé está escrito "mãe de dois reis do Alto e Baixo Egito" - ao que
tudo indica, como vimos, Sahure e Neferirkare - e era considerada pelos egípcios a
ancestral da V dinastia. Parece que não tiveram herdeiros, a não ser que se deva
considerar o efêmero Thanftis (Djedefptah) de Manethon, ao qual a Cânone de Turim
atribui um reinado de dois anos. Chepseskaf adotou uma política religiosa diferente
daquela dos seus antecessores: ainda que faça um edito - o primeiro que conhecemos -
para proteger seus sítios funerários, rompe com a tradição, fazendo construir, para ele,
em Saqara, um túmulo com a forma de um grande sarcófago. Também Khentkaus
parece ter estado dividida: tem dois túmulos, um em Gizé e outro em Abusir, nas
proximidades da pirâmide do seu filho, construído, porém, em um estilo que marca um
nítido retorno à III dinastia. Esse distanciamento em relação às concepções
heliopolitanas aparece, ainda, na escolha por Chepseskaf, do grão-sacerdote de Mênfis,
Ptahchepses, para esposo da sua filha Khamat.
Figura 22 - Genealogia sumária da IV dinastia, gerações 4-6: ramos mais novos.
A ascensão de Userkaf, "Poderoso é o seu ka", ao trono não parece ter pro- vocado
grandes mudanças no país ou na administração (conhecemos exemplos de permanência
nos cargos de funcionários da IV dinastia, como Nikaankh, em Thena, no Médio
Egito). Aliás, só o Papiro Westcar indica ter sido ele filho de Redjedjet, portanto,
talvez, Khentkaus: uma tradição sólida via nele um filho da princesa Neferhetepes da
qual o Museu do Louvre possui um fabuloso busto de calcário (Vandier, 1958, p. 48-
49). Ele seria, então, neto de Djedefre e da rainha Heteferes II: um descendente do
ramo mais novo da família real... Mas tudo depende da identidade do marido de
Heteferes! Não sabemos quem foi: teria sido ele o "sacerdote de Rá, senhor de
Sakhebu" do papiro de Westcar? Com efeito, Userkaf faz construir, em Saqara-Norte, a
certa distância do complexo de Djoser, uma pirâmide com pequenas dimensões, hoje
muito danificada. Ao mesmo tempo, inicia uma tradição, observada por seus
sucessores, fazendo construir um templo solar em Abusir, que deveria ser uma réplica
do de Heliópolis, a cidade mais caracterís- 1 tica da nova dinastia. A cidade de Abusir,
escolhida por Sahure, Neferirkare e Niu- | serre para serem lá sepultados, está
certamente ligada ao próprio local de origem da nova família real, a cidade de Sakhebu
que concordamos geralmente ser Zat el-Qom, a uns 10 quilômetros ao norte de Abu
Roach, mais ou menos no nível do ponto em que o Nilo se separa em dois braços, o de
Roseta e o de Damieta. A nova ordem de coisas transparece, também, no nome de
Hórus escolhido por Userkaf, irimat, "aquele que coloca Maât em prática", o equilíbrio
do universo assegurado pelo criador: quer dizer que ele se considera como aquele que
recoloca a criação em ordem. Seu reinado foi provavelmente curto, mais próximo dos
sete anos que lhe atribuiu o Cânone de Turim que dos 28 de Manethon. Essa duração e
o abandono do seu culto funerário no fim da V dinastia mostram bem a relativa
importância que teve seu reinado. Ele teve, todavia, alguma atividade, especialmente
no Alto Egito, onde desenvolveu o templo de Tod consagrado a Montu, o deus da
Tebaida antes de ser o da guerra. Do seu reino datariam, também, as relações com o
mundo egeu: encontramos no seu templo funerário um vaso proveniente de Citara. É o
| primeiro indício dessas relações, provavelmente comerciais, atestadas na V dinastia
pela presença em Dorak de um assento marcado com o nome de Sahure e de objetos,
nessa região, exibindo os nomes de Menkahuor e de Djedekare-Izezi.
A Supremacia Heliopolitana
A V dinastia parece ter aberto o Egito para o exterior, tanto para o norte quanto
para o sul. Os relevos do templo funerário que Sahure, sucessor de Userkaf, fez
construir em Abusir apresentam, além da representação dos países vencidos - mais um
lugar comum da fraseologia que um testemunho histórico - o retorno de uma expedição
marítima dirigida a Biblos, prolongando-se até o interior sírio, se acreditarmos na
presença de ursos nessas terras. Atribuiu-se igualmente a Sahure uma campanha contra
os Líbios, cuja realidade pode suscitar algumas dúvidas. Parece que as relações
estabelecidas com os outros países teriam tido motivação essencialmente econômica,
como já ocorrera no reinado de Userkaf, quer no caso da exploração das minas do Sinai
e das pedreiras a oeste de Assuã onde voltou a extrair diorito, quer na determinação de
uma expedição à região de Punt, que lhe atribui a Pedra de Palermo, e da qual
encontramos, talvez, algum vestígio nos relevos do seu templo funerário.
Os egípcios situavam Punt no "País do deus", nome pelo qual foram designadas,
desde o Médio Império, as regiões orientais. Achamos que devia situar-se em algum
lugar entre o Sudão e o norte da Eritréia. Trata-se de uma região da qual importavam
essencialmente mirra e, mais tarde, incenso e, também, electrumI, ouro, marfim, ébano,
resinas, gomas, peles de leopardos etc.: produtos exóticos que eram encontrados na
África. As relações comerciais com Punt são atestadas ao longo da V e da VI dinastias,
em especial no Médio Império. As expedições realizadas nesse período por Henenu, por
conta do rei Montuhotep III, e de outros, para Sesostris I e para Amenemhat II,
fornecem indícios preciosos a respeito do caminho percorrido. Partindo da região de
Tebas, as expedições iam até o Uadi Hamamat e embarcavam em Mersa Gauasis, onde
escavações conjuntas recentes da Universidade de Alexandria e da Organização das
Antigüidades Egípcias revelaram, há alguns anos, instalações portuárias do Médio
Império. Deviam desembarcar perto de Porto Sudão, após terem navegado pelo Mar
Vermelho. Encontramos indícios dessa navegação nos relevos do templo que a rainha
Hatshepsout, da XVIII dinastia, mandou gravar nas paredes do seu templo funerário em
Deir-el-Bahari. Em seguida as expedições penetravam nas terras, dirigindo-se para
oeste e para o sul da Quinta Catarata. Tais relações continuaram no Novo Império com
Tutmés III, Amenhotep II, Seth I, Ramsés II e, principalmente, Ramsés III. Em seguida,
elas diminuíram, só voltando a ter importância no fim da época faraônica.
Os reinados dos sucessores de Sahure são mal documentados. Pouco se pode dizer
a respeito da política de Neferirkare-Kakai, seu irmão, segundo o Papiro Wes- tcar,
exceto o fato de ter sido provavelmente gravada a Pedra de Palermo durante seu
reinado. Encontrou-se no seu templo funerário, em Abusir, entre 1893 e 1907, um lote
muito importante de papiros documentários datando do reinado de Izezi ao de Pepi II.
Esse conjunto era o arquivo mais importante do Antigo Império que conhecíamos até a
missão do Instituto Egiptológico da Universidade de Praga encontrar em 1982, em um
depósito do templo funerário de Reneferef,II localizado em um sítio próximo, um lote
ainda mais rico. O estudo das quatro descobertas de Abusir e dos achados mais recentes
de templo de Reneferef completarão nosso conhecimen- to sobre o funcionamento dos
grandes domínios reais do Antigo Império.
Entre Neferirkare e Reneferef, situa-se Chepseskare, soberano efêmero, cujo
reinado não passou de alguns meses, e cujo único vestígio encontrado, sem mencionar
I
N.t.: Electrum é uma liga natural de ouro e prata.
II
3 N.t.: Reneferef é o mesmo rei Neferefre.
Manethon, é a marca de um selo proveniente de Abusir. Já Reneferef é mais conhecido,
principalmente depois que a missão tcheca empenhou-se na escavação do seu templo
funerário. As descobertas feitas entre 1980 e 1986 modificaram ligeiramente a imagem
que tínhamos desse rei cuja pirâmide inacabada parecia indicar como secundário. Além
da grande descoberta dos papiros e das tabuletas inscritas, as barcas de madeira, as
estátuas de prisioneiros e as do rei, reveladas em 1985, são testemunhos da grandeza
desse rei pouco conhecido.
Niuserre reinou cerca de 25 anos. Talvez fosse filho de Neferirkare, cujas
construções inacabadas em Abusir ele reutilizou para erguer seu templo de acolhida. É
conhecido principalmente pelo templo solar que mandou edificar em Abu Gurob, o
único construído inteiramente em pedra que chegou até nós quase completo, e cuja
arquitetura dá uma idéia de como devia ser seu modelo heliopolitano. Deduziu-se daí
que seu reinado marcou o apogeu do culto solar, o que é certamente exagerado. E
preciso constatar, entretanto, que certa mudança ocorre depois dele: seu sucessor
Menkauhor, do qual pouco se sabe, continuou explorando, como Niu- serre, as minas
do Sinai, e não foi sepultado em Abusir.
Hesitamos em localizar sua pirâmide não encontrada entre Dachur e Saqara-Norte,
onde era cultuado durante o Novo Império (Berlandini RdE 31, 3-28). Mas, a atribuição
a Menkahuor da pirâmide em ruínas situada a leste daquela de Teti, em Saqara- -Norte,
esbarra em um problema estratigráfico difícil de superar: a imbricação de uma mastaba
da III dinastia nos vestígios do seu canto sul (Stadelmenn, LA IV, 1219). Tampouco
sabemos se o seu templo solar, igualmente conhecido pelas inscrições, encontrava-se
em Abusir. Nesse caso, ele teria sido o último a usar esse sítio, já que todos os seus
sucessores escolheram Saqara.
Essa é a época na qual os funcionários provinciais e os da Corte aumentam seu
poder e sua autonomia, criando um movimento que vai parar de crescer, solapando
progressivamente o poder central. Podemos avaliar essa ascensão pela riqueza da
mastaba de um deles, Thi, que desposou uma princesa, Neferhetepes, fez carreira sob
Neferirkare-Kakai, morreu durante o reinado de Niuserre e foi sepultado em Saqara (cf.
infra figura 61). Esse "barbeiro chefe da casa real" tinha o comando dos domínios
funerários de Neferirkare e de Neferefre, e era também o controlador dos açudes, das
fazendas e das culturas. O tamanho e as decorações do túmulo que construiu para si e
para sua família ainda estariam fora do alcance de um simples súdito, na dinastia
anterior.
Izezi ou Unas
Izezi adota uma política que, sem romper com o dogma heliopolitano, se distancia
um pouco dele. Escolhe um nome de rei do Alto e Baixo Egito que ainda continua
invocando Rá: Djedekare "estável é o ka de Rá", mas não constrói o templo solar, e é
sepultado em Saqara-Sul, portanto, mais perto de Mênfis, nas proximidades do lugarejo
moderno de Saqara. Seu reinado é longo: Manethon indica uns 40 anos, mas esse
número não é confirmado pelo Cânone de Turim que só lhe dá 28. De qualquer forma,
tempo pelo menos suficiente para uma festa jubilar, atestada por um vaso conservado
no Museu do Louvre. Assim como Sahure, adota uma política externa vigorosa que o
conduz aos mesmos parceiros: ao Sinai, onde são atestadas duas expedições ao Uadi
Magara, com intervalo de 10 anos, às pedreiras de diorito, a oeste de Abu Simbel -
expedição esta lembrada por um grafito encontrado em Tomas - e, muito mais longe, a
Bi- blos e ao reino de Punt. O poder dos funcionários continua aumentando no seu
reinado, quando vemos surgir verdadeiros feudos. Os vizires que se sucederam durante
esse terço de século deixaram em Saqara túmulos que são testemunhos da sua
opulência, como, por exemplo, Reshepses, que foi, ainda, o primeiro go- vernador do
Alto Egito. O mais célebre dentre eles foi Ptahotep, autor, segundo a tradição, de um
Ensinamento ao qual farão referência os textos sábios e reais até a época etíope.
Na realidade, deveríamos falar de vários Ptahotep, dois dos quais têm um túmulo
em Saqara, no setor ao norte da pirâmide de Djoser. O vizir de Djedekare é o que está
enterrado só (PM III 599). Seu neto, Ptahotep Tshefi, que viveu até a época de Unas,
está enterrado perto, em um anexo da mostaba de Akhtihotep, filho do vizir e, ele
também, vizir (PM 1112 599). A ele são atribuídas Máximas que chegaram até nós
através de uma dezena de manuscritos, dos quais um papiro e três ostracasI são
provenientes de uma aldeia de artesãos de Deir el-Medineh, o que confirma a audiência
desse texto na época remissida, quando ainda eram ensinados nas escolas de escribas. A
atribuição dessa obra a Ptahotep não significa obrigatoriamente que ele seja o autor. As
cópias mais antigas datam do Médio Império e não permitem afirmar que o original
remonte ao antigo Império e, mais especificamente, ao fim da V dinastia, embora
sabendo que a obra já era mencionada na XII dinastia. A questão não tem, aliás, grande
importância: essas Máximas, de conteúdo muito conformista, definem regras gerais de
vida e são atribuídas a Ptahotep porque, ao que tudo indica, ele era o símbolo dos altos
funcionários que asseguravam a ordem estabelecida.
O pessoal político e administrativo permanece notavelmente estável, ao contrário
da família reinante que termina com Unas, em quem pensamos ver, sem garantias, o
filho de Djedekare. A divisão dinástica de Manethon faz dele o último soberano da V
dinastia e encerramos geralmente no seu reinado o período clássico de Antigo Império,
considerando a VI dinastia como o início da decadência que englobou todo o Primeiro
Período Intermediário até a reunificação das Duas Terras por Montuhotep II. Esse corte
é duplamente artificial. Primeiro, porque não passa de uma projeção da divisão de
Manethon, mas também porque violenta o curso da história, criando uma ruptura que a
historiografia egípcia não reconheceu como tal. Não conhecermos boa quantidade de
funcionários que serviram sucessivamente a Djedekare, a Unas e a Teti, primeiro rei da
VI dinastia, e, além disso, a era de Unas está longe de ter sentido a decadente! No seu
reinado, ao qual o Cânone de Turim e Manethon atribuem, ambos, cerca de 30 anos, o
Egito pratica uma diplomacia ativa com Biblos e com a Núbia. O rei ficou conhecido
como construtor, em Elefantina e, sobretudo, em Saqara-Norte, onde seu complexo
funerário, restaurado na época de Ramsés II, para o príncipe Khaemuaset, é prova de
uma grandeza que lhe valeu, mais tarde, a posição de divindade local.
Nascimento da VI Dinastia
Embora o Antigo Império esteja no apogeu, e não haja qualquer sinal de violência
visível, é provável que os feudos instalados no país representassem alguma ameaça ao
poder central. A esse problema, juntava-se outro, a falta de um herdeiro masculino.
Parece que a ascensão de Teti ao trono solucionou essa dupla crise. Ele adota o nome de
I
4 N.t.: Fragmentos de vaso, em cerâmica ou pedra.
Hórus, Seheteptaui, "Que pacifica as Duas Terras", já indicando qual vai ser seu
programa político. Esse mesmo nome será adotado no decorrer da história do Egito
pelos reis que precisaram restabelecer a unidade do país após graves perturbações
políticas: Amenemhat I, Apofis, Petubastis II, Pi(ankh)i... Longe de romper com a
dinastia precedente, Teti desposa Iput, filha de Unas, que lhe dará o filho Pepi I. Inscrito
na linhagem legítima, pratica uma política de aliança com a nobreza, dando sua filha
mais velha, Sesheshet, em casamento a Mereruka, que foi seu vizir e, em seguida,
controlador dos sacerdotes da sua pirâmide, nas proximidades da qual foi sepultado, em
uma das mais belas mastabas de Saqara-Norte. A pirâmide que Teti faz construir, a
segunda com textos, após a de Unas, marca o retorno a certas tradições da IV dinastia.
Renova, em especial, com a construção de pirâmides para rainhas, ao passo que Unas
tinha-se contentado em sepultar suas esposas em mastabas. A da rainha Khuit
desapareceu, mas encontramos os restos de Iput em uma pequena pirâmide construída a
uma centena de metros ao norte daquela do seu esposo.
É certo que a política de pacificação de Teti deu frutos. Sua atividade como legislador
em Abidos é atestada por um decreto isentando o templo de impostos; ele é, também, o
primeiro soberano nominalmente relacionado com o culto de Ha- thor em Dendara. Ele
dá continuidade, o que mostra a boa saúde da política interna, às relações internacionais
da V dinastia: sempre com Biblos, talvez com Punt e a Núbia, em todo caso, até Tomas
pelo menos. As várias fontes não concordam quanto à duração do seu reinado: menos de
sete meses segundo o Papiro de Turim, o que não é plausível, ou 33 anos, conforme
Manethon, o que parece demasiado, pois não temos a comprovação de uma festa jubilar.
A data mais baixa conhecida é a do "sexto recenseamento", operação realizada, em
média, a cada dois anos ou a cada ano e meio. Manethon informa que ele morreu
assassinado. Isso reforça a idéia de distúrbios e dá um segundo ponto de aproximação
com Amenemhat I! Esta morte violenta explicaria o curto reinado do seu sucessor,
Userkare, cujo nome - "poderoso é o ka de Rá" - lembra muito a V dinastia, a ponto de
ter sido considerado algumas vezes como um dos chefes da oposição que teria
assassinado Teti, segundo Manethon. Ao contrário da freqüente alegação escrita,
Userkare não é inteiramente desconhecido. É verdade que ele só é citado no Cânone de
Turim e na lista de Abidos, mas possuímos outros documentos com seu nome. Um deles
cita uma equipe de trabalhadores assalariados vindos do nomo Qau el-Kebir, ao sul de
Assiut, para executar grandes trabalhos, sem dúvida a construção do seu túmulo. Como
a transição para Pepi parece ter ocorrido sem choques, talvez se deva ver nele, pelo
contrário, um apoio que teria favorecido a regência da rainha Iput, viúva de Teti,
enquanto seu filho não tinha idade suficiente para subir ao trono.
Figura 23 - Genealogia sumária da VI dinastia: gerações 1-4.
Pepi I
"Sua Majestade mandou-me ainda, pela terceira vez, ir a Iam. Saí do nomo
tinita pela rota do Oásis e encontrei o governador de Iam em marcha para a
terra de Tje- meh, na direção do oeste. Fui atrás dele até a terra de Tjemeh e
o venci, de modo que ele rogou a todos os deuses pelo Soberano (...) [Desci
em Imaau (?)] que fica ao sul de Irtjet e ao fundo de Zatju, e encontrei o
governador de Irtjet, Zatju e Uauat, todos juntos numa coligação. Mas eu
desci com 300 burros carregados com incenso, ébano, óleo-hekenu, grãos-
sat, peles de panteras, presas de elefantes, bumerangues, todas essas coisas
belas, de valor, pois o governador de Irtjet, Zatju e Uauat via a força
múltipla das tropas de Iam que desciam comigo na Residência, com a
expedição enviada comigo (...)" (Roccati, 1982, p. 205).
A "rota dos Oásis", partindo do nomo tinita, dirige-se para Kharga, e segue depois
pela "pista de 40 dias", o Darb el-Arbain, até Sélima. Ela encontra, também, ao norte de
Kharga, a pista que conduz para o oeste, onde se encontram os Tjemehus. atravessando
Dakhala e Farafra. Escavações recentes do Instituto Francês de Arqueologia Oriental e
do Royal Ontario Museum confirmaram amplamente a colonização do Oásis de
Dakhala desde o início da VI dinastia, ou mesmo antes. Os habitantes do vale
chegavam á região de Balat, na entrada do oásis, perto do Darb el-Tauil, cujo
desemboque situa-se nas proximidades da cidade moderna de Manfalut. Essa coloni-
zação deu-se com a finalidade de explorar os recursos agrícolas da localidade, longe de
desprezíveis, e para controlar, também, a passagem do Sul para o Oeste e para o Norte
(Giddy, 1987, p. 206-212). Uma confirmação da função de fronteira que tinha o oásis
talvez possa ser encontrada em uma boneca rogatória, encontrada na cidade agrícola de
Balat, que lança uma maldição sobre a população de Iam (Grimal, 1985). De qualquer
forma, a abertura do Egito para a África e para o curso superior do Nilo vai continuar
durante o longo reinado de Pepi II, que foi um período brilhante para o Oásis de
Dakhala. O jovem rei, um ano apenas após subir ao trono, sucedendo a seu meio-irmão,
ficou muito impressionado pelas viagens de Harkhuf, mandando-lhe uma carta que o
cortesão não deixou de colocar em destaque na história da sua vida:
A Sociedade e o Poder
Assim termina o Antigo Império: com um período confuso, durante o qual se
acelera a desagregação do poder central enquanto a situação externa torna-se tanto mais
ameaçadora quanto mais enfraquecido o poder. O aumento das particularida- des locais
gera ema competição em torno do trono que vai manifestar-se em forma de
enfrentamentos entre blocos geográficos que pretendem ter, cada qual, a única e mesma
legitimidade. Embora o conceito de poder não tenha mudado, parece menos inacessível
àqueles que, nos primeiros tempos, não poderiam pensar em conquistá-lo. Desde o
início da III dinastia, a monarquia evoluiu no plano teológi- co, acrescentando dois
novos nomes à titulação: o de Hórus de Ouro, que aparece com Djoser, e,
principalmente, o de "Filho de Rá", cujo uso vemos sistematizado desde Neferirkare. O
acesso da V dinastia ao poder mostra que o fundamento teo- crático prevalece sobre
qualquer outro, a ponto de unir estreitamente os novos reis a um clero particular. Essa
dependência, da qual encontraremos vários exemplos na história dos séculos seguintes,
contribui para reforçar a centralização do poder e para constituir uma sociedade muito
hierarquizada, desenvolvendo-se em torno do rei e da família real, cujo modelo
reencontramos na organização das necrópoles em torno da pirâmide do soberano. A
enfeudação das potências provinciais, cujo poder cresce ao longo das gerações, é obtida
com a concessão progressiva de pri- vilégios crescentes que vão reforçar a autoridade
dos poderosos locais, dando-lhes um lugar na hierarquia nacional.
Esta política traduz-se por uma inflação de títulos áulicos cobrindo antigas funções
caídas em desuso, mas conservadas pelo seu valor honorífico. O processo, ilustrado em
alto grau, mais tarde, por Luís XIV na França, é favorecido pelo aumento do volume da
administração, quer em atribuições, quer na quantidade de funcionários, repousando
essencialmente nos escribas, cujas tarefas se multi- plicam no mesmo ritmo dos
escritórios. Desenvolve-se, assim, toda uma série de funções de mando, tornando-se
difícil saber qual parte da realidade elas cobrem de fato. Um exemplo encontra-se no
título "chefe dos segredos": pode ser, sem ordem, "das missões secretas", "de todas as
ordens do rei", "das decisões judiciais", "do palácio", "das coisas que um só homem
vê", "das coisas que um só homem ouve", "da casa da adoração", "das palavras
divinas", "do rei em todos os locais", "da corte de justiça", "dos mistérios do céu" etc.
Os títulos puramente honoríficos são mais fáceis de detectar, na medida em que se
referem a cargos que não correspondem a qualquer coisa, como sabemos. E o caso do
"Amigo Único", outrora conselheiro particular do rei, tendo-se tornado uma indicação
genérica dos corte- sões, do "Chefe dos Dez do Alto Egito", da "Boca de Pe", do
"Preposto a Nekhen": todas funções puramente simbólicas. A esses títulos somam-se
aqueles diretamente ligados à pessoa do rei - os "cabeleireiros", os "porta-sandálias", os
"médicos", os "prepostos às coroas" e "outros tintureiros" - e as funções sacerdotais
ligadas a um deus local ou ao culto funerário...
No total, a imagem que emerge da administração é semelhante a uma pirâmide no
topo da qual reina o soberano que tem, em princípio, o domínio de tudo. mas que só
trata diretamente, na prática dos assuntos militares e religiosos. Para o essencial,
reporta-se ao vizir (tjaty), cujo ancestral já vimos surgir na II dinastia. Essa função é
confiada pela primeira vez no reinado de Senefru, sendo atribuída a príncipes de
sangue: a Nefermat, ao seu filho Hemiunu, em seguida, e, depois, a Kauab e a outros. O
vizir é, de certa forma, o chefe do executivo, e tem poder sobre praticamente todos os
setores: ele é o "chefe de todos trabalhos do rei", "chefe da casa das armas", "chefe das
câmaras dos paramentos do rei", "chanceler do rei do Baixo Egito" etc. Ele também é
juiz, como mostra a intervenção de Uni no caso do harém de Pepi I, mas nem todos os
casos passam obrigatoriamente por ele. Na mesma época, aparece a figura do
"Chanceler do Deus", homem de confiança escolhido diretamente pelo rei para realizar
uma missão específica: expedição às minas ou às pedreiras, viagens comerciais ao
estrangeiro, direção de um determinado monopólio real. Para desempenho da tarefa,
atribui-se ao "Chanceler do Deus", uma tropa da qual será o general ou o almirante, se
for uma frota. Sinal de enfraquecimento do poder central e de maiores necessidades da
administração, o cargo de vizir é duplicado no reinado de Pepi II, ficando um
encarregado do Alto. e o outro, do Baixo Egito.
Dependem do vizir os quatro grandes departamentos da administração, aos quais
deve ser acrescentada a administração provincial com a qual ele se comunica através
dos "chefes de missões". O primeiro departamento é o "Tesouro", ou. retomando a
separação original entre os dois reinos, conservada até o fim da civilização, o "Duplo
Celeiro", dirigido por um "chefe do Duplo Celeiro" comandado pelo vizir. O Tesouro
gerencia o conjunto da economia e, em especial, os impostos provenientes
essencialmente do segundo grande departamento: a agricultura, dividida, por sua vez,
em dois ministérios. O primeiro trata dos rebanhos - criação e engorda -, dividindo-se
novamente em duas "casas" confiadas, cada, a um sub- diretor assistido por escribas. O
segundo encarrega-se das culturas propriamente ditas: o "serviço dos campos",
presidido por um "chefe dos campos" assistido por "escribas dos campos" e o das terras
recuperadas da inundação (khentyu-che). Os títulos de propriedade são guardados pelo
terceiro departamento, o dos arquivos reais, que conserva, ainda, todos os documentos
civis, essencialmente contratos e testamentos, bem como o texto dos decretos reais que
constituem a base regulamentar consultada pelo último departamento, o da justiça,
encarregado de aplicar as leis (hepu). A importância desse último é proporcional ao seu
valor fundamental no sistema teocrático, como mostra o título atribuído, na IV dinastia
a seu titular, "o maior dos Cinco da casa de Thot" e, na V, "sacerdote de Maât"...
O parceiro do governo organizado desta forma é a administração local, que
repousa no desmembramento do país em nomos. Não conhecemos a do Baixo Egito por
ser necessariamente muito pobre a arqueologia do Delta. O essencial da documentação
diz respeito ao Médio e ao Alto Egito, mas o quadro que podemos formar dessas
regiões também vale para a outra. A administração local é, certa- mente, a que
apresenta evolução mais sensível no Antigo Império. A base encon- tra-se na mudança
do estatuto dos nomarcas que quase não são mais deslocados e que transformam, muito
rapidamente, o cargo em hereditário, de fato, quando não de direito. Vemos surgir, nas
capitais provinciais, necrópoles particulares dos príncipes nas quais ocorre com a
mesma regularidade a recondução da função de sacerdote funerário de pai para filho - o
que está conforme com a tradição - e de governador da província - o que está menos!
Na maioria dos casos, essa feudali- dade repousa na exploração econômica da região,
um dos principais encargos do nomarca, que é, antes de tudo, o administrador
encarregado da manutenção da irrigação («âdj-mer) e o conservador dos domínios
(heqa-hut).
Essa transferência de poder era impensável, na origem. Como todo o país per-
tence ao rei, por ser ele hipóstase do criador, o funcionário é devedor, ao soberano, de
um trabalho que deve fornecer em troca da manutenção de sua própria vida. Essa
situação exprime-se, em egípcio, pela palavra "imakhude difícil tradução, que significa
a relação de clientela em face do rei. Ele provê, protege e alimento, na vida como no
além: é ele que dá a seu servidor a concessão funerária e os elementos do túmulo que
esse servidor teria muitas dificuldades para conseguir pelos seus próprios meios, tais
como o sarcófago, a falsa-porta ou o altar de oferendas, e talvez as estátuas que servirão
como suporte da sua alma na existência futura. Acima de tudo, ele garante o serviço da
oferenda por meio de uma dotação funerária confirmada por uma carta de imunidades
liberando de impostos o domínio constituído pelo defunto. Esse princípio, o mesmo que
rege os domínios dos templos, traz no seu âmago um germe de destruição do Estado.
De fato, favorece a pulverização da propriedade, empobrecendo o rei, de forma
irreversível, embora quase imperceptível no início. Os lucros alcançados, graças a esse
sistema, pelos detentores de tais concessões, representam uma perda certa para a
economia, já que escapam ao sistema de redistribuição assegurado pelo Estado, mas,
isto não é o mais importante. De fato, mais grave é o mecanismo criado: esses domínios
tornam-se a base de uma feudalidade, e seus detentores procuram capturar, no seu
próprio benefício, as prerrogativas atinentes às propriedades reais.
Os quadros cujas linhas mestras apresentamos acima não vão mudar ao longo da
civilização faraônica, assim como os fundamentos da sociedade. Isto não significa que
não haverá evolução, as mudanças irão ocorrer essencialmente na relação estabelecida
entre o poder central e a base local: reforço do poder do ou dos vizires, remodelação
das circunscrições administrativas, criação de governadorias etc. A estrutura que eles
impõem à vida do país permanecerá quase inalterada, até os últimos tempos. A
hierarquia social continuará assentada nos mesmos valores, enquanto a vida quotidiana
evoluirá pouco, principalmente entre as camadas me- nos favorecidas da população. Há
muito pouca diferença entre os camponeses do Antigo Império, o suplicante do oásis
que veremos em breve e os felás que culti- vavam o trigo para Roma...
A Plástica Egípcia