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HISTÓRIA DO

EGITO
ANTIGO
Tradução de Elza Marques Lisboa de Freitas Revisão técnica de Manoel Barros da Motta

Rio de Janeiro
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■ Traduzido de:
Histoire de L'Egypte Ancienne
m História do Egito Antigo
ISBN 978-85-309-3538-2
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edição-2012

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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Grimal, Nicolas, 1948-
História do Egito Antigo / Nicolas Grimal; tradução de Elza Marques Lisboa de Freitas; revisão técnica de Manoel Barros da
Motta. - Rio de Janeiro: Forense, 2012. il. - (Episteme : política, história, clínica)

Tradução de: Histoire de 1'Egypte Ancienne Anexo


Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-309-3538-2

1. Egito - História - Até 640 d.C.. C. 2. Egito - Política e governo - Até 640 d.C. 3. Egito - Civilização - Até 640 d.C. I. Título. II. Série.

CDD: 932 CDU: 94(32)


11-4901.
Sumário

INTRODUÇÃO.................................................................................................................5
PARTE I: AS ÉPOCAS DA FORMAÇÃO....................................................................14
CAPÍTULO I: DA PRÉ-HISTÓRIA À HISTÓRIA...................................................15
Panorama Geral.......................................................................................................15
A Formação.............................................................................................................15
Os Primeiros Habitantes..........................................................................................16
Caçadores e Agricultores.........................................................................................17
Transição para o Neolítico.......................................................................................19
O Pré-Dinástico "Primitivo"....................................................................................20
O Pré-Dinástico Antigo...........................................................................................22
O Gerzeano..............................................................................................................26
A Escrita..................................................................................................................27
A Unificação Política..............................................................................................29
As Paletas................................................................................................................31
CAPÍTULO II: RELIGIÃO E HISTÓRIA.................................................................37
Os Emblemas...........................................................................................................37
As Cosmologias.......................................................................................................37
Do Mito à História...................................................................................................40
CAPÍTULO III: O PERÍODO TINITA.......................................................................43
Os Primeiros Reis....................................................................................................43
Calendário e Datação...............................................................................................45
O Fim da Dinastia....................................................................................................46
A Segunda Dinastia.................................................................................................47
A Monarquia Tinita.................................................................................................50
PARTE II: A ERA CLÁSSICA......................................................................................56
CAPÍTULO IV: O ANTIGO IMPÉRIO.....................................................................57
O Advento da III Dinastia.......................................................................................57
Djoser e Imhotep.....................................................................................................57
O Fim da III Dinastia...............................................................................................59
Senefru.....................................................................................................................60
Queops.....................................................................................................................62
Os Herdeiros de Queops..........................................................................................63
Userkaf e os Primeiros Tempos da V Dinastia........................................................66
A Supremacia Heliopolitana....................................................................................67
Izezi ou Unas...........................................................................................................68
Nascimento da VI Dinastia......................................................................................69
Pepi I.......................................................................................................................71
A Expansão para o Sul............................................................................................72
Ao Fim do Império..................................................................................................76
A Sociedade e o Poder.............................................................................................77
A Plástica Egípcia....................................................................................................80
A Estatuária.............................................................................................................81
Relevos e Pinturas...................................................................................................89
INTRODUÇÃO

Escrever uma História do Egito faraônicos não apresenta mais, nos nossos dias, o
aspecto aventureiro que tal tentativa ainda conservava na virada do século XX. G.
Maspero compunha, então, em plena fase de crescimento do cientificismo, sua
monumental Histoire des Peuples de L'Orient, e, alguns anos depois, J. H. Breasted, sua
History of Egypt - duas obras que estão, ainda hoje, à base da maioria das sínteses. Não
há muito tempo, porém, na escala das outras Histórias, o peso da Bíblia e da tradição
clássica relegavam a civilização egípcia a uma zona de pouca nitidez ainda
testemunhada, hoje, pelas grandes querelas cronológicas passadas do século XIX ao
nosso.
Essas discórdias opõem os partidários de uma cronologia dita "longa", em geral os
mais distantes do uso científico das fontes de documentação, aos adeptos de uma
história menos poética e mais tributária dos dados arqueológicos. As disputas acabaram
amainando, e já admitimos geralmente, uma cronologia curta, aceita por todos ou quase,
com variações de algumas poucas gerações. Embora já exista, grosso modo, um acordo
quanto aos dois primeiros milênios, os progressos recentes da pesquisa fizeram
retroceder o problema aos primórdios da História e trouxeram novo enfoque à questão
da origem da civilização. Não constitui o menor paradoxo da egiptologia - uma das
ciências mais jovens aplicadas aos períodos remotos da Antiguidade, se considerarmos
seu nascimento há cerca de século e meio com Jean-François Champollion - estar ela,
graças ao uso das técnicas mais recentes, à frente da procura das origens da
humanidade.
A cultura faraônica sempre fascinou aqueles que a descobriam, ainda que fossem
incapazes de entender os mecanismos profundos de um sistema cujas realizações
causavam, todas elas, certa impressão de perenidade e de sabedoria imutáveis. Em
particular, os viajantes gregos, não podendo transmitir às suas cidades esses valores
primordiais, espalharam desde cedo a imagem que tinham vindo buscar: a de uma fonte
do pensamento humano, respeitável e misteriosa, de uma etapa ilustre, mas, tão somente
uma etapa, à luz da perfeição do modelo grego. As discrições feitas por eles da
civilização e a do seu quadro refletem tanto a atração quanto certa reticência frente a
costumes que pareciam suspeitos devido ao desconhecimento quase forçado das fontes.
Os gregos empreenderam uma exploração sistemática do país: realidades
contemporâneas com Heródoto, no quinto século antes da nossa era, geografia, na pena
de Diodorus de Sicília e na de Estrabão, na geração seguinte, ambos familiarizados com
o Vale por uma estadia prolongada "no terreno", arcanos religiosos com Plutarco seis
séculos depois. Paralelamente a esses últimos empreendimentos, outros trabalhos
sorviam diretamente de fontes propriamente egípcias, redescobertas nos períodos dos
soberanos Lágidos graças a pesquisas como as de Manethon e, após, do geógrafo
Ptolomeu.
O olhar que os romanos, por sua vez, voltaram ao Egito não se deteve apenas nas
riquezas do país e na fortuna dos herdeiros de Alexandre, ainda que ali seguissem os
mesmos passos de Antônio, César, Germânico, Adriano, Severo e outros: Plínio ou
Tácito não procuravam alvo diferente do que buscavam seus predecessores gregos,
historiadores e geógrafos. Mas o Egito, área de erudição privilegiada dos herdeiros de
Aristóteles, tais como Teofrasto, respondia também a uma atração profunda pelos
valores orientais. As primeiras manifestações apareceram em Roma no século II a.C.,
quando a Cidade, julgando-se ameaçada na sua estrutura própria pelo crescimento dos
cultos orientais travestidos nos traços gregos das Ba- cantes, adotou um decreto do
SenadoI inspirado por Catão: os valores tradicionais foram salvos por algum tempo do
surgimento impetuoso do Oriente, ao preço de vários milhares de mortos.
As cidades gregas foram forçadas à submissão ao imperium romano que herdou de
Alexandre uma nova imagem do Oriente: através dele, a realeza helenística recebia das
mãos dos depositários do poder de Rá a autoridade sobre o universo, abrindo assim o
caminho para o reinado não compartilhado de Roma sobre o mundo conhecido. A união
desse novo dono do mundo com Cleópatra, última descendente dos faraós - ainda que
fosse fictícia - consagrando a associação de Hélios e de Selene, selava a fusão do
Ocidente e do Oriente.
A união foi, porém, breve e Augusto, tal como outrora Catão, destruiu-lhe o fruto,
que poderia tornar-se tão perigoso para o equilíbrio do império nascente quanto haviam
sido as Bacanais, mandando assassinar Cesarion após a conquista de Alexandria no ano
30 a.C. O Egito, transformado em propriedade pessoal do imperador, inseria-se
definitivamente na galeria dos vassalos de Roma, mas ia conservar, porém, sua antiga
áurea de sabedoria e de ciência, reavivada e transmitida pela coiné mediterrânea ao
novo centro de gravidade do universo.
Duas imagens se sobrepõem, então. A primeira é a de uma civilização helenística
do Egito, que percebemos através de obras tais como a de Teócrito. As duas culturas se
unem em uma harmonia que encontramos em Apolônio de Rodes e em toda a corrente
do pensamento alexandrino. A segunda liga-se a uma tradição que poderíamos
denominar "orientalizante", ilustrada por Apuleio ou Heliodoro de Emeso. Esta última
reforça o aspecto misterioso da velha civilização, indo no mesmo sentido da filosofia: o
neoplatonismo dá origem à corrente hermética, através da renovação do pitagorismo
que marca, no Ocidente, o início do Império. O hermetismo será mais tarde, junto com a
Cabala, o principal meio de acesso a uma civilização tornada definitivamente
incompreensível pela exclusão cristã. Essa tendência para o esoterismo é realçada pelo
crescimento dos cultos egípcios que acompanha a expansão do império, popularizando
através das figuras de Osí- ris, ísis e Anubis a paixão pelo arquétipo do soberano
egípcio, percebido como um dos modelos da sobrevivência após a morte.
Tudo muda em 380 d.C, com o édito de Teodósio consagrando o cristianismo
como religião do Estado e proibindo, sem volta, os cultos pagãos. Ele condena
irremediavelmente, assim, a civilização egípcia ao silêncio. O fechamento dos templos,
iniciado por Constâncio II em 356, e definitivamente consumado com o massacre dos
sacerdotes do Serapeum de Alexandria em 391, significa, de fato, não só o
encerramento da prática religiosa, mas, ainda, o abandono da base cultural que a
suportava, transmitida inteiramente por uma língua e por uma escrita cuja continuidade
era assegurada apenas pelos religiosos. Os cristãos vingaram-se cruelmente das
perseguições dos "idolatras", devastando templos e bibliotecas e massacrando as elites
intelectuais de Alexandria, de Mênfis e da Thebaida. Os últimos que escaparam foram
os focos do Baixo Núbia e do Alto Egito. Eles só foram os últimos graças à posição
geográfica, situados no limesII imperial, o que lhes reservava um papel de resistentes,
preparados que haviam sido por longa tradição de lutas contra os antigos colonizadores
do vale do Nilo. A partir de meados do sexto século, após o fechamento definitivo do
templo de ísis em Philae, longo manto de silêncio recobriu necrópoles e templos,
entregues à pilhagem e a toda sorte de reutilizações: capelas transformadas em
habitações ou estábulos ou, ainda, em simples fontes de materiais de construção,
passando naturalmente pela transformação dos santuários em igrejas. Por mais de cinco
séculos Karnak irá abrigar conventos e mosteiros; no alto de seus muros os olhos

I
N.t.: Senatus consultam.
N.t.: No Egito Antigo, cerimônia do jubileu, celebrada tradicionalmente a partir do trigésimo ano de
um faraó.
II
Zona fronteiriça de província do Império Romano.
vazados dos antigos deuses vão acompanhar o novo culto, por entre as escamas de um
reboco grosseiro.
Os sítios urbanos tiveram mais sorte: a enchente anual do Nilo e o aproveitamento
das terras tornavam praticamente impossível o deslocamento dos habitantes e, assim, as
cidades antigas foram sendo progressivamente recobertas. Várias cidades modernas, em
especial no Norte do país, mas também no Sul, são apenas o resultado final de uma
série de superposições originadas, com frequência, na alvorada da História.
Certos templos até conservaram, por vezes, o caráter de locais sagrados, um pouco
como se o sentido profundo do sincretismo religioso dos antigos houvesse marcado
seus descendentes, a ponto de fazer-lhes preservar esses "temenos" que assim fornecem
estratigrafias na escala de milênios. A acumulação que separa, no templo de Luxor, o
piso do pátio de Ramsés II e a mesquita de Abu-el-Haggag, representa mais de dois mil
anos. Esse mesmo local conheceu sucessivamente a invasão por assírios, persas, gregos
e romanos com o assentamento de um campo militar e toda uma gama de cultos do
Império que foram ali celebrados, pelo Cristianismo e, por fim, pelo Islã. O santo ao
qual está dedicada a mesquita recebe ainda hoje uma procissão anual de barcas que não
deixam de lembrar aquelas que levavam, outrora, Amon-Rá de um templo a outro.
Esse exemplo não é único, sítios conservados assim são numerosos no Vale, no
Delta ou em locais muito afastados como o oásis de Dakhala, onde outra mesquita, a de
El-Qsar, antiga capital Ayoubida, repousa sobre uma estratigrafia contínua cuja base
data provavelmente da XVIII dinastia ou, talvez, até do Médio Império.
O arqueólogo alegra-se por esta acumulação, pela sua capacidade de conservação.
Claro está que não permite ao historiador encontrar tudo o que deseja. Tendo perdido
sua língua e sua religião, submetido às leis do vencedor que transforma ou desvirtua
suas próprias estruturas - a aplicação do Direito romano ao país, por exemplo, ergueu
uma barreira muitas vezes difícil de remover para se reencontrar as marcas do código
nativo anterior o Egito é rapidamente separado dos seus valores tradicionais. O
Cristianismo do Egito, reivindicando com justiça o primado histórico e religioso no
Oriente, desenvolveu uma civilização original e rica tanto pela sua arte quanto por seu
pensamento. Isso não impede que tenha feito tábula rasa dos antigos valores. Em
contrapartida, os Coptas deram voz ao pensamento popular, bem distante dos cânones
religiosos. Sua influência na arte e na arquitetura é inegável, quando não fosse pelo
incremento da tapeçaria figurativa ou pelo tratamento dado às faces nas figuras dos
jazigos, que conduz às notáveis máscaras mortuárias popularizadas pelas escolas do
Faiyum. Essa arte prefigura, ainda, o aporte islâmico, com a renovação das técnicas
ornamentais ou a passagem ao uso da cúpula na arquitetura. Da mesma forma, a
monarquia fez surgir, desde meados do século III, com Paulo, o Egípcio, uma tradição
original cuja vitalidade atual ilustra bem sua pertinência ao patrimônio profundo do
Egito.
O Islã, brando e tolerante quando da conquista e mais exigente depois, possibilitou
o crescimento de novos valores. Eles são fundadores, também, do Egito
contemporâneo, mas que estão bem distantes dos tempos dos faraós, nos quais a
tradição religiosa, retomando temas esparsos dos escolásticos como o (pseudo) Beroso,
via os opressores da verdadeira Fé. Ramsés II, em especial, representado inicialmente
como o adversário de Moisés, tornou-se o paradigma do mal. É preciso aguardar o fim
do século XIX e a criação da República Árabe do Egito para ver o faraó, reintegrado na
História pelos livros escolares ao sabor dos altos e baixos da política contemporânea,
tornar-se um dos símbolos da nação árabe e, de forma mais ampla, da grandeza passada
do país.
A História desconhece assim, à força, os faraós a partir do quinto século da nossa
era. O abandono progressivo do Copta em favor do árabe rompe o último laço com a
Antigüidade. A lenda passa a dominá-la, seguindo uma tendência natural, já presente
nos súditos do Faraó, que atribuíam de bom grado a seus antigos reis aventuras dignas
das Mil e Uma Noites. Rapidamente, o passado, que alguns monumentos emergindo
das areias sugeriam glorioso, atiçou a cobiça pelas riquezas vislumbradas ao acaso das
escavações clandestinas que participam também da tradição do Egito eterno. Circulam
compilações tais como O livro das maravilhas soterradas para guiar os caçadores de
tesouros em um universo povoado de espíritos, onde Bes transforma-se no gnomo
Aiatallah, e Sekmhet torna-se uma ogra pavorosa, sem esquecer a gigante Saranguma...
É claro que os sábios fazem pouco dos insensatos que perseguem tais quimeras. Mas,
embora Ibn Khaldum condene a loucura desses insensatos, isto não impede o califa Al-
Mamun, filho do célebre Al-Rachid, de atacar a pirâmide de Queops. Ele inicia, assim,
um processo que, passando sucessivamente pelos saqueadores e pelos que retiraram
pedras para reaproveitá-las, irá despir as pirâmides de Gizé dos seus mistérios e
também dos blocos de calcário fino de que eram revestidas antes de se tornarem fonte
de materiais para a construção dos palácios da cidade mameluca e otomana do Cairo.
Entregue por todos os lados aos ataques dos caçadores de tesouros, dos cons-
trutores e dos produtores de cal, a memória do país se vê transformada pelos novos
ocupantes. Alguns grandes feitos e algumas crenças profundas sobrevivem quase
intocados, através de personagens como Abu-el-Haggag. A tendência mais generalizada
consiste em reinterpretar aquilo que não podemos entender, por meio da única
abordagem das próprias origens que aceitamos, os textos sagrados. Os cristãos, assim
como os muçulmanos, entregam-se a essa busca das fontes: para eles o Egito é a terra
bíblica por excelência, da Babilônia aos caminhos do Êxodo, e todos ali se reconhecem,
Coptas ou Cristãos do Ocidente.
Esses últimos descobrem o país quando das peregrinações e das cruzadas. Eles o
veem na qualidade de crentes, informados por tradições herdadas da civilização greco-
bizantina. O exemplo mais célebre de tal deformação é o próprio nome das pirâmides.
O termo usado para designar essas grandes construções de pedra que os Cristãos vêm
admirar ao pararem no Cairo, a caminho da Terra Santa, é uma palavra grega. Nessa
língua, o nome indica um bolo de trigo - certamente porque as pirâmides lembravam
essa forma aos primeiros "turistas". Depois, com base em uma etimologia reconstituída
a partir do nome do trigo, pyros, na origem da palavra, a tradição interpretou as
construções como sendo antigos silos de trigo - o que mostra como fora esquecida a sua
verdadeira função. Parece normal aos peregrinos, aos olhos de quem o Egito é antes de
tudo um grande exportador de cereais, verem nas pirâmides silos nos quais José teria
guardado o trigo durante os anos de fome. A essas lembranças da Bíblia mescla-se,
também, a das maravilhas que, desde o início do século V d.C., haviam encantado os
imperadores, grandes colecionadores de obras de arte egípcias e de obeliscos que ainda
concorrem para a glória de Roma e de Istambul. A Renascença presencia um retorno ao
exotismo arquitetônico, e as esfinges de aparência egípcia disputam com as pirâmides,
de pedra ou vegetais a presença nos jardins europeus. É necessário aguardar, porém, a
segunda metade do século XVI, isto é, a retomada das relações comerciais após a
conquista turca - retomada essa que vai dar à França o papel que cabia a Veneza até o
século anterior - para que ao Egito conheça uma voga que não irá cessar.
As narrativas dos viajantes que visitaram o Egito seguindo os passos de seus
predecessores árabes - Abu Salih, Ibn Battuta, Ibn Jobair e outros - tiveram grande
influência nesta moda. Entre eles destacaremos a peregrinação do dominicano Fe- lix
Fabri ou a viagem do botânico Pierre Belon do Mans, integrando a comitiva do
embaixador enviado pela França à Sublime Porta logo após a conquista. Os relatos
submetem-se, muitas vezes, às regras em voga, como ocorre com as narrativas de João
de Palermo, Joos van Ghistele, a caminho do misterioso reinado do Preste João,
Michael Heberer Von Bretten, Samuel Kiechel, Jan Sommmer e muitos outros. Será o
próprio aspecto artificial desses relatos que agrada? Em todo caso, eles encontram
muitos leitores.
Convém reservar, nessa enumeração sucinta, um lugar de destaque aos autores
como Maqrizi ou, mais próximo daqueles viajantes, a Leão, o Africano. Alguns, como
Christophe Harant, se esmeram em seguir os passos dos clássicos, especialmente os de
Estrabão e de Deodoro de Sicília, cujas obras foram impressas, pela primeira vez, em
fins do século XV. Outros tentam reencontrar o mesmo veio científico: o geógrafo
André Thévet ou o médico Prosper Alpino, de Pádua, cuja permanência de quase quatro
anos no Egito, aliada a um conhecimento profundo da obra de seus antecessores, de
Heródoto a P. Belon do Mans, passando por Avicena, Ptolomeu, Deodoro, Plínio etc.,
fornece material para três obras sobre a fauna, a flora e a medicina que permaneceram
como modelos.
Poderíamos esperar que os viajantes do século XVII seguiriam este caminho mais
científico ou, pelo menos, melhor documentado. Não é o caso, em que pese a voga
crescente do orientalismo, alimentada pela política estrangeira de Colbert e as
"turcarias" incipientes, como a do Burguês Fidalgo: comerciantes, diplomatas em
missão ou simples turistas se atêm a descrições de praxe, muitas vezes inexatas, que não
vão além da região do Cairo. Os detalhes são raros e permanecem sempre muito
materiais, buscando dar informações mais práticas do que científicas ou históricas. É o
caso de Georg Christoff von Neitzschitz, Don Aquillante Rocchetta, Johan Wild e suas
aventuras dignas de um romance picaresco, e de outros tantos. A tendência está mais
para a observação do Oriente contemporâneo, quer seja no decorrer de breves passagens
ou de longas estadias no seio da nova "nação francesa" do Egito: o Frei Coppin é um
exemplo...
Esta é, também, a época de nascimento dos "gabinetes de curiosidades", renovação
da moda das antiguidades e antecipação das grandes coleções que formam o núcleo dos
principais museus europeus. Viajantes e eruditos se põem a explorar a redescoberta da
civilização egípcia que se dá um pouco ao acaso das exumações de múmias. Obtém-se
delas um pó, sem igual para regenerar, entre outras coisas, as terras aráveis; esse pó é
tão disputado na Europa que os ingleses criaram "moinhos de múmias" para
satisfazerem a demanda sempre crescente. Os autores antigos são muito lidos, e
Heródoto é o primeiro guia a ser levado nas viagens ao Egito, já em voga antes da
Revolução Francesa.
Algumas grandes figuras destacam-se entre esses viajantes, mais "profissionais"
desde Thévenot: arqueólogos e antiquários como o Padre Vansleb, Lucas ou Fourmont,
médicos como Granger, exploradores como Poncet e Lenoir. Aos poucos, o Egito
aparece através de alguns grandes sítios: por volta de 1668, redes- cobre-se Karnak,
conhecido desde o final de século XV graças ao mapa de Ortelius e ao relato do
Veneziano Anônimo, e Mênfis, quase um século depois. Publica-se até, em Londres,
em 1641, uma primeira obra dedicada inteiramente às pirâmides.
No século XVIII aparecem as análises científicas: Nordon, Pococke, Donati, as
relações do Padre Sicard, Volney, Balthasar de Monconys, o amigo de Athanasio
Kircher, cujos trabalhos irão inspirar Champollion, Savary e muitos outros que
preparam, a seu modo, o trabalho da Expedição do Egito. É a grande virada da
egiptologia. O enfrentamento das nações ao fim da Revolução desperta muitas
esperanças e abre um campo quase ilimitado à sede de conhecimentos dos herdeiros da
Enciclopédia. Os jovens sábios que acompanham o exército de Bonaparte iniciam uma
monumental Description de l 'Egypte que cobre não só a fauna, a flora e os recursos do
país mas, ainda, todas as formas de arquiteturas e de artes - em resumo, todas as
civilizações que lá se sucederam.
Durante meses, enfrentando sofrimentos incríveis, com coragem, persistência e
precisão dignas de elogios, eles reúnem uma massa de documentos que vai alimentar
não só o trabalho dos decifradores, mas, também, boa parte das análises modernas.
Doravante, o orientalismo deixa de ser uma moda para tornar-se uma corrente literária e
artística. As obras se multiplicam, de Gerard de Nerval a Eugè- ne Delacroix, passando
pelo estilo "retorno do Egito", os maravilhosos desenhos de James Owen e de David
Roberts, que aliam com perfeição temas orientalizantes e precisão arqueológica, não
esquecendo as composições relacionadas menos ao Egito e mais ao nascimento do
império colonial: Gerôme, que visita o Sinai na companhia de Paul Renoir e de Bonnat,
por ocasião da inauguração do canal de Suez, Fromentin, Guillaumet, Belly cujo
"Peregrinos dirigindo-se a Meca" causou escândalo no Salão de 1861... Nesse meio
tempo, os trabalhos de Thomas Young na Inglaterra e de Jean-François Champollion na
França haviam lançado os fundamentos da egiptologia moderna.
Em 1822, após muitas dificuldades causadas tanto pelas transformações políticas
que provocaram seus deslocamentos entre Grenoble, Paris e Figeac quanto pela
resistência oposta pelas autoridades científicas, Jean-François Champollion expõe na
Lettre à M. Ducier as bases do seu método, para decifrar os hieróglifos. Ele o
desenvolve, no ano seguinte, em um Précis du système hiéroglyphique. Enquanto seus
detratores ainda procuram uma falha no sistema, ele já mergulha nas grandes coleções
reunidas por aventureiros atraídos por um país que lhes oferece toda a sedução de um
novo mundo. Eles peneiram os sítios por conta dos cônsules estrangeiros no Egito e
aproveitam a valorização do país sob Mehemet Ali e seus sucessores: é o espantoso
duelo entre Giambattista Belzoni, agindo por conta de Henry Salt, e de Bernardino
Drovetti por sua vez sustentado, entre outros, pelo marselhês Jacques Rifaud. Esses
confrontos épicos, mais próximos de rezzou (rázias) que da arqueologia, estão na
origem dos primeiros acervos do British Mu- seum, do Louvre e de Turim.
E, aliás, esta última coleção, reunida por Drovetti e vendida em 1824 ao rei da
Sardenha, que dá a Champollion a oportunidade de ser o primeiro a explorar as listas
reais. Ele também escreve um Pantheon, primeiro quadro da religião que irá completar -
enfim!... - no próprio Egito. Faz, por sua vez, o levantamento e a descrição de enorme
massa de documentos, publicados 40 anos após sua morte nos Monuments d'Egypte et
de Nubie. De retorno a Paris, consegue apenas dar alguns cursos na cátedra criada para
ele no Collège de France; morre em 4 de março 1832, com 42 anos, após ter lançado
definitivamente as bases da língua em uma Grammaire égypcienne, só publicada em
1835.
A França passava, assim, a ocupar o primeiro plano na egiptologia nascente. A
obra dos sucessores de Champollion iria confirmar essa posição, principalmente com o
trabalho de A. Mariette no próprio terreno. O modo como realizou a escavação de
grandes sítios como Saqara ou Tanis é relativamente indefensável aos olhos da
arqueologia moderna. No entanto, não se limitou ele a ser o realizador bem-sucedido
das escavações do Serapeum, de Karnak ou de Tanis. Soube explorar seus próprios
achados e aqueles, relativamente fortuitos, que o acaso o levou a conhecer. Conseguiu,
principalmente e com muita firmeza, induzir o vice-rei Said a lançar as bases de um
órgão capaz de pôr fim a saída maciça das antiguidades rumo a coleções europeias e a
mantê-las no local.
Do museu de Bulaq ao do Cairo, começou a se constituir o maior conjunto
existente de testemunhos da civilização faraônica. Ao mesmo tempo, o Serviço das
Antiguidades assegurou aos poucos a exploração científica dos sítios, limitando- -lhes a
pilhagem. As rivalidades que opuseram nações europeias só chegaram a afetar o
trabalho dos seus cidadãos durante os períodos de guerra. A expedição prussiana de
1842 a 1845 e as Denkmâler aus Agypten und Athiopien, publicadas 10 anos mais tarde
por Richard Lepsius, forneceram à comunidade científica um terceiro bloco de
inscrições e de monumentos que ela consulta até hoje.
O fim do século XIX consagra definitivamente a egiptologia como ciência e
constitui a segunda virada da sua história, quer pelas descobertas realizadas no terreno,
quer pela exploração dos achados e pelo estabelecimento de instituições capazes de
assegurar o desenvolvimento seu. Entre os sucessores de Auguste Mariette, cabe um
lugar de destaque a Gastón Maspero: descobridor dos Textos das Pirâmides e diretor do
Serviço de Antiguidades soube salvar da pilhagem a maior parte das múmias da
Tebaida, e foi, também, o fundador da escola francesa, na cátedra de Champollion, onde
sucedeu a De Rougé. Ele pode ser considerado como um dos pais da egiptologia
moderna, junto com Henri Brugsch, na Alemanha, e Sir Fl. Petrie, na Grã-Bretanha.
Deve-se a esse último o estabelecimento das regras da arqueologia científica, que ele
firmou em 1898, no quadro da British School of Archaeology.
Na virada do século XX, as potências europeias desenvolvem, a partir de suas
instituições museológicas e universitárias, os organismos que estão na origem das
pesquisas atuais: Missão Arqueológica Francesa, em 1880, transformada em Instituto
Francês de Arqueologia Oriental, em 1898, Egypt Exploration Fund, Deutsche Orient
Gesellschaft. Os avanços dos meios de comunicação ampliam as descobertas que se
sucedem: a capital de Akhenaton em Tell el-Amarna, antes da guerra de 1914, a tumba
de Tutankamon em 1922, a necrópole dos reis tanitas em 1939, a grande barca de
Queops em 1954 e o resgate dos monumentos da Núbia nos anos 1960, para destacar
apenas alguns dos principais exemplos. Foi sobretudo o tesouro de Tutaqnkamon que
colocou a egiptologia ao alcance do grande público, graças à exposição itinerante de
suas peças por volta dos anos 1970 - cujo sucesso acarretou, por sua vez, a realização
de muitas outras com temáticas próximas. E também porque vai ao encontro, em face
do aparente mistério da sua descoberta, de uma corrente sempre vivaz, cuja origem se
alimenta, em maior ou menor grau, nas fontes do hermetismo e da Cabala, marcada por
movimentos iniciáticos. Essa corrente popularizou os grandes temas isíacos, da Flauta
Mágica até Aida, cujo libreto foi escrito por A. Mariette, passando pelo culto de Ísis em
Notre-Dame de Paris durante a Revolução e, também, grande número de interpretações
esotéricas da civilização egípcia, aplicadas às pirâmides, à religião etc.
A descoberta de H. Carter, pela grande quantidade de objetos preciosos revelados
mais do que pela importância histórica da descoberta, só investigada de fato, mais tarde,
provoca exatamente, no público, a imagem de uma mistura na qual o mistério
prevalece, com seu séquito de tesouros e de maldições. Essas duas palavras -
fortemente ligadas ao termo faraó - formam uma imagem que confere até hoje à
egiptologia uma áurea romanesca.
A interação de todos esses elementos e o crescimento explosivo do turismo de
massa não deixaram de acentuar o desequilíbrio entre a imagem corrente entre o
público - também desejada por ele - e uma ciência da qual tendemos a minimizar a
juventude e o longo caminho ainda a percorrer para poder descrever uma civilização tão
rica nos seus menores detalhes.
Os progressos alcançados nesses últimos anos no conhecimento do Egito "antes
dos faraós" recolocam em pauta os limites tradicionalmente atribuídos à civilização:
estamos longe dos "40 séculos" que separavam Bonaparte das pirâmides! Após ter dado
o passo importante que liberou o Egito do poder da Bíblia, a trama de conhecimentos e
de técnicas não parou, desde o fim do século XIX, tanto de aumentar a precisão da
cronologia quanto de tornar mais longínquas as origens da civilização.
Talvez mais do que qualquer outra, a civilização faraônica está no âmago do
debate a respeito da noção de História: sua duração excepcionalmente longa dentro de
um quando rígido reforça a oposição clássica entre História e Pré-História, aceitando o
surgimento da escrita como divisória implícita entre elas. Admite-se ter ocorrido essa
separação no quarto milênio antes da nossa era. Essa data era relativamente confortável
até os últimos anos, na medida em que ela encontra, na Mesopotâmia, uma
concordância que remete, mais ou menos, à problemática bíblica: basta atribuir à Baixa
Mesopotâmia um nítido adiantamento sobre o Egito para que se confundam o local do
surgimento da escrita e aquele suposto ser o paraíso terrestre. Além disso, o quarto
milênio tem a vantagem de oferecer aspectos de uma etapa decisiva na evolução do
Homem, com o aparecimento de estruturas sociais que dão testemunho do seu
distanciamento do estado primitivo: ele assegura seu domínio sobre a natureza,
alcançando definitivamente, nas margens do Nilo e também nas do Eufrates, a condição
de agricultor sedentário.
Torna-se fácil, então, estabelecer a clivagem entre o momento em que se completa
a civilização, confirmado pela invenção da escrita, e a fase considerada preparatória,
cuja duração depende do ponto de partida considerado: maximalista, quando adotamos
o ponto de vista dos pré-historiadores, ou muito restritiva se nos limitarmos a uma
definição estreita da historicidade.
Esta problemática, que poderia passar, até cerca de meio século atrás, por uma
querela darwinista, assumiu nova dimensão quando o sistema de datação referido à
erosão fluvial, imaginado por Boucher de Perthes para o vale do rio Somme, foi
aplicado por K. S. Stanford e A. J. Arkell ao vale do Nilo: a associação dos vestígios da
atividade humana aos cortes geológicos propicia um ponto de amarração aos dados
arqueológicos visto que, não sendo estratificados, não podiam ser hierarquizados em
sistemas de "sequência-datas" tais como definidos por Fl. Petrie no início do século.
Embora análises paleoclimatológicas e geológicas mais recentes, como as de K. Butzer
e de R. Said, tenham modificado a escala das datas, ficou claro, já antes da Segunda
Guerra Mundial, que não só a "pré-história" dos faraós assumia uma amplitude
insuspeitada, mas, que apresentava tanta variedade e aspectos de tal completude, em
muitos pontos, que se tornava difícil encará-la apenas como uma etapa preparatória.
Soma-se a isto nosso conhecimento ainda bastante parcial da pré-história egípcia,
desde os trabalhos fundamentais de G. Caton-Thompson no Faiyum e, principalmente,
no oásis de Kharga, ou de J. Hester e P. Hoebler no de Dunkul. Muitos elementos
revelados pela exploração sistemática do Baixo Núbia não foram inteiramente
publicados, e vastas regiões ainda têm muito para nos revelar, como, entre alas, o oásis
de Dakhala, o Gebel Oueinat e, mais para oeste, Kufra e o Darfur. Mas, mesmo sem
voltar tanto no espaço ou no tempo, nosso conhecimento do Egito mais antigo ainda
apresenta muitas lacunas, embora trabalhos mais recentes, especialmente no Delta,
projetem uma nova luz sobre os tempos pré-dinásticos: para nos convencermos, basta
lembrar que a descoberta do sítio pré-histórico de Elkab por P. Vermeersch remonta,
apenas, a 1968!
A importância do período pré-histórico enquanto história não escrita só adquiriu
todo o seu peso quando os antropólogos e os etnólogos deram a conhecer civilizações
tais como as da América pré-colombiana ou, mais perto de nós, as da África negra. O
grau de extremo refinamento alcançado por alguns impérios desprovidos de qualquer
tradição escrita nos leva a rever os critérios usados para definir o nível de uma
sociedade. Essa mudança de perspectivas promoveu, por sua vez, a aplicação dos
métodos de investigação dos pré-historiadores fora do limite de seus próprios campos
de trabalho: a arqueologia passou a dar mais atenção à cronologia relativa dos sítios -
principalmente na medida em que, após um século de levantamentos no campo, os
egiptólogos, vislumbrando o fim da longa coleta de inscrições lapidares e a redução dos
achados papirológicos, se voltaram para sítios antes desprezados por menos pródigos
em dados escritos.
A exploração dos sítios em áreas urbanas encetada nesses últimos 20 anos no vale
do Nilo, ou além, quase sempre sob pressão do crescimento selvagem das grandes
aglomerações, foi realizada, assim, em forma de escavações para salvamentos ou para
levantamentos. Tornaram obsoleto o velho antagonismo entre filologia e arqueologia,
ao fim do qual só a primeira se revela capaz de dar conta de uma civilização, já que a
segunda não passaria de disciplina auxiliar, relegada às tarefas inferiores de coleta
documentária.
Abertura e mudança de enfoques favoreceram a eclosão de novas técnicas que
tornaram as datações mais rápidas e mais seguras: todos os métodos que usam análises
de radioatividade são hoje familiares ao público (carbono 14, análises iso- tópicas
diversas e, mais recentemente, termo-luminescência e pesquisa de traços de potássio-
argônio), assim como a dendrocronologia, a palinologia etc. Os próprios procedimentos
da pesquisa também evoluíram: fotografia aérea, levantamentos topográficos ou
arquitetônicos por estéreo-fotogrametria, tratamento informatizado dos dados e até a
axonometria e a reconstituição de edifícios realizada diretamente em computador a
partir desses dados...
Enfim, adiante dos progressos técnicos, esses novos métodos de trabalho pro-
vocaram a mudança do pensamento dos pesquisadores, e surgiu a idéia de que um caco
de cerâmica pode ter um peso tão grande no entender um fato quanto um grão de pólen
ou um fragmento de papiro. Diante desta multiplicação das fontes, o historiador vê-se
obrigado, ele também, a abrir seu método a diversas disciplinas.
PARTE I: AS ÉPOCAS DA FORMAÇÃO
CAPÍTULO I: DA PRÉ-HISTÓRIA À HISTÓRIA

Panorama Geral

À primeira vista, a civilização egípcia sugere um todo coerente com uma duração
incomum conferindo-lhe um lugar especial na história da humanidade. Ela parece surgir
já inteiramente constituída, por volta de meados do quarto milênio a.C., para só
desaparecer em fins do século IV d.C. Esses quase 40 séculos causam a impressão de
uma estabilidade imutável aliada a uma instituição política que nada, nem mesmo as
invasões, conseguiram abalar.
O próprio país apresenta uma unidade geográfica que nos leva a cogitar se não
seria ela a causa dessa perenidade. O Egito é uma longa faixa de terras culti- váveis que
se estende por mais de mil quilômetros entre 24 e 31 graus de latitude Norte, formando
o curso inferior do Nilo, encaixado, de Assuã ao Mediterrâneo, entre o planalto da Líbia
e a cadeia de montes do deserto Arábico (prolongamento, aliás, do escudo do deserto
Núbio). Esse vale, cuja largura não passa de uns 40 quilômetros no máximo foi, do
Olduvaiense, há cerca de um milhão de anos, até a época histórica, uma das áreas
menos impróprias a vida Oriental, enquanto Sahel passou por alternâncias climáticas
radicais reduzindo-o progressivamente à zona árida atual.
Ainda assim, convém matizar, conforme as épocas, a imagem tradicional de um
vale acolhedor ao Homem. Estudos geomorfológicos recentes, mais aprofundados,
assim como a prospecção nas zonas desérticas e subdesérticas ocidentais - mais ou
menos relacionados primeiramente com o projeto da barragem Alta de Assuã e, depois,
com a procura de novas áreas, no deserto líbio, para compensar o esgotamento das
terras do Vale - alteraram bastante a visão geral do passado do Egito. O maior
conhecimento dos mecanismos gerais da formação dos solos devido especialmente aos
trabalhos de R. Said e às explorações de R. Schild e F. Wendorf, cujos resultados foram
publicados nos últimos anos, permitiu a atualização das teorias elaboradas no início do
século, ainda hoje apresentadas nas obras de caráter geral. Revisamos, especialmente, o
papel das depressões lacustres do planalto líbio. As escavações em curso nos oásis que
deram origem a essas teorias nos permitem vislumbrar melhor a influência que tiveram
na migração da vida organizada rumo ao Vale do Nilo: a teoria do "Ur Nil", que teria
aparecido após o recuo do mar eocênico entre o erg da Líbia e o vale atual, é hoje
encarada com prudência, assim como a idéia inicial de um vale primitivo com
luxuriante exuberância, quando os homens vieram povoá-lo.
A Formação

O momento desse povoamento levanta a questão da duração e da extensão


geográfica dessa cultura: como identificar um ponto de início levando em conta os
fatores que deram origem à civilização faraônica e respeitando, ao mesmo tempo, a
natureza própria de um período anterior muito mais longo?
A documentação sugere atribuir o início da pré-história egípcia ao fim do Pluvial
Abassiano, no Paleolítico Médio, cerca de 120.000-90.000 anos a.C. De fato,
esquematizando grosseiramente, consideramos hoje que a povoação do deserto ocorreu
em seguida a esse longo período. Ele abriu, por assim dizer, a zona à expansão da
cultura acheulense, que se desenvolvia nas margens do Nilo. Essa cultura é o último elo
de uma cadeia cujos vestígios mais antigos, encontrados nas proximidades do templo
rupestre de Abu Simbel, remontam, ao que tudo indica, a aproximadamente 700000
anos a.C., ou seja, ao fim do Pleistocênio Superior. Desde o Olduvaiense, a presença
humana no Egito é, pois, contínua no Vale, pelo menos entre o Cairo e Tebas ou
Adaima, e, na Núbia, durante todo o Acheulense.
Esta fase do Pleistocênio Superior marca uma ruptura entre o Pleistocênio Pluvial
(a partir de 10.000.000 de anos a.C.), época do Paleonilo com sua vegetação alimentada
por precipitações intensas regulares, e o Pluvial Edfon, que repete as mesmas condições
climáticas, mas após um período de hiperaridez que terá durado cerca de um milhão de
anos. O Protonilo escava então o seu curso, paralelo ao do rio atual, a oeste do futuro
Vale, durante uma centena de milênios, e dá lugar, em seguida, ao Pré-Nilo, que
acumula, por um período cinco vezes maior, sedimentos da Etiópia.

Os Primeiros Habitantes

No fim desse longo percurso atingimos o Pluvial Abassiano. São quase 50 mil anos
no decorrer dos quais a cultura acheulense pôde espalhar-se nas zonas ocidentais. Se
essa difusão ocorreu realmente, ela deve ser considerada certamente como origem dos
elos entre a civilização nilótica e as africanas cujos estágios ulteriores conservam
marcas, mas não podemos determinar se sinalizam uma troca e, se assim for, em qual
direção ela ocorreu. É realmente tentador ver nessas civilizações as vertentes opostas de
uma mesma cultura que teria avançado pelas vias de penetração naturais da futura zona
saariana. A difusão das línguas nilo-saarianas do alto Nilo para o Saara oriental ou para
áreas geograficamente mais próximas do Egito e análises palinológicas recentes
realizadas nos oásis do deserto líbio fornecem importante dado para avaliação: uma
flora que poderia corresponder a um desenvolvimento comum.
A probabilidade dessa articulação é ainda maior pelo fato de corresponder ao fim
da passagem do homo erectus ao homo sapiens, na virada do centésimo milênio a.C., ou
seja, ao estabelecimento de uma cultura comum representada por um tipo humano
dolicocéfalo cuja evolução pode ser comparada à dos seus contemporâneos da África
do Norte e da Europa. Deve-se ter, porém, certa prudência ao fazer esse tipo de
afirmação, porque a vertente africana ainda é mal conhecida e, também, porque os
dados egípcios estão longe de serem completos.
As depressões lacustres no deserto ocidental oferecem às culturas do final do
Acheulense e do Musteriano (cerca de 50000 a 30000 anos a.C.) um ambiente no qual
notamos a presença de ovos de avestruz e de um animal que parece ser o ancestral do
onagro. O fim do Acheulense marca uma nítida revolução tecnológica - a passagem das
ferramentas bifaciais às de pedra lascada - revolução esta durável, espalhada pela
África, atendendo bem às novas condições de vida. Esse período prolonga-se até cerca
de 30000 anos a.C. e corresponde às civilizações Musteriana e à Ateriana. É o fim de
uma economia baseada na caça, nascida na savana, que culminou com a civilização
Ateriana, baseada no uso do arco. Largamente presente no Magreb e no sul do Saara,
essa civilização prolongou-se por bastante tempo na Núbia sudanesa e nos oásis do
deserto da Líbia. Ela poderia ser o último estágio da base africana comum já citada.
Caçadores e Agricultores

A cultura Khormusana - assim designada devido ao nome Khor Musa, sítio


arqueológico localizado a certa distância de Uadi Halfa, onde foram encontrados
vestígios de uma civilização que nasceu no Médio Paleolítico por volta de 45000 a.C. e
desapareceu em torno de 20000 a.C. - está mais ligada ao Nilo do que às outras. Este
último grupo combina a alimentação de savana - boi selvagem, antílope, gazela - e o
produto da pesca, o que revela a adaptação de populações expulsas das zonas saarianas
pela seca ao meio nilótico. Nessa época o Vale torna-se um cadinho no qual se fundem
os elementos da futura civilização faraônica: no momento em que o Subpluvial
Makhadma dá lugar à fase árida do Neonilo que ainda persiste nos nossos dias. A
desertificação das zonas saarianas parece ter expulsado os homens, então, das
depressões dos oásis da Líbia, empurrando-os rumo ao Vale. Formaram-se grupos
separados continuando, cada qual a seu modo, uma evolução que fora iniciada em
comum, evolução esta por vezes paralela à de indústrias locais como as encontradas no
Gebel Suhan.
A virada seguinte ocorre entre 15000 e 1000 anos a.C.: na Núbia, o Gemaiano
sucede ao Halfano, a cultura de Dabarosa à do Khorrausano. A transição para o
micrólito, já perceptível na segunda metade do Halfano, completa-se inteiramente com
o Balaniano.
Com mais de 20 sítios entre a segunda catarata e Toshka, a cultura Qadiana
constitui uma etapa importante pelo seu material lítico tendendo para uma técnica
lamelar, mas, acima de tudo, pelos sinais da evolução econômica que atesta. En-
contramos vestígios de "foices para colheita" que seriam o primeiro indício de uma
tentativa de agricultura; as análises palinológicas confirmam a presença de gramí- neas
e, pelo menos em Esna, de cevada selvagem. Esta experiência - se podemos assim dizer
- não parece ter sobrevivido à virada do Xo milênio a.C.

Figura 1 - Cronologia sumária do fim do Paleolítico Superior.

Seria arriscado formular uma hipótese; entretanto, podemos talvez supor que a
explosão demográfica paralela a essa evolução fez surgir o domínio de uma cultura
guerreira, que teria crescido às custas dos agricultores. É certo, porém, que esta primeira
forma da agricultura, embora tosca, surgiu às margens do Nilo, quando ainda era
desconhecida no Próximo Oriente. Isto não basta para afirmar uma raiz propriamente
nilótica, nem para refutar o Próximo Oriente como local de surgimento do tipo de
sociedade agrícola que irá implantar-se no Vale ao fim do período Epipaleolítico.
A qualidade do material encontrado nos sítios de Qadam, o tipo das sepulturas -
seja pela arquitetura, seja pela separação entre os túmulos de crianças e de adultos
(Hoffman, 1979, p. 94), para dar um só exemplo - e o que esses elementos revelam do
estilo de vida dos seus ocupantes apresentam muitos pontos em comum com as
civilizações do Neolítico.

Figura 2 - Principais sítios paleolíticos da Núbia.

A ligação com essa última época foi estabelecida pelas descobertas de P.


Vermeersch no sítio de Elkab: um elo contemporâneo da transição do Arkiniano para o
Sharmakiano, nas proximidades do Uadi Halfa, e para o Qaruniano no Faiyum, que
revela a adaptação ao meio nilótico da cultura dos caçadores que se tomaram
pescadores e não agricultores. A transição para a agricultura ocorre em condições ainda
pouco claras, em meados do VIo milênio: talvez por influência do Oriente Próximo, em
que pese a tentativa anterior, e embora a primeira domesticação de animais pareça ter
sido africana. Esta transição estende-se por longo período e pesquisas recentes, tais
como o levantamento realizado na Tebaida pela Universidade de Cracóvia e pelo
Instituto Alemão do Cairo (Ginter, Koslovski, Pawlikovski, 1985, p. 40-41) mostram
que ela comporta etapas intermediárias.

Figura 3 - Principais sítios paleolíticos do Egito.


Transição para o Neolítico

A ruptura essencial entre a Pré-História e a História ocorre na virada do VIIo para o


VIo milênio, um período ainda mal conhecido (Finkenstaedt, 1985, p. 144 e segs.) que
separa o Epipaleolítico do Neolítico. Tudo parece concorrer para uma mudança radical
da civilização: um novo período subpluvial favorece tanto a cria- ção de animais quanto
o crescimento da agricultura nas beiras do Vale e na região dos oásis ocidentais. Esse
crescimento acelera o desenvolvimento das técnicas de tecelagem e de olaria; no
espaço de quase dois milênios que separa o seu início do período pré-dinástico
propriamente dito, do meio do VIIo milênio ao do Vo, firmam-se praticamente todos os
elementos de uma civilização que permanecerá sempre uma cultura da pedra, em que
pese o aparecimento dos metais.
Além dos grupos núbios e da seqüência de Elkab, já descritos acima, conhecemos,
em relação à última fase da pré-história egípcia, entre outras, as instalações do Faiyum
("B" e depois "A", por volta de meados do VIo milênio) no Vale, assim como os sítios
de Badari (Hemamieh) e de Deir Tasa na ponta meridional do Baixo Egito e os sítios de
Merimde-Beni-Salameh e de el-Omari, perto de Heluam, hoje quase nos subúrbios do
Cairo. Os vestígios revelam uma mistura de traços ainda firmemente ancorados na
tradição dos caçadores, mas com diversas novidades (Huard et Leclant, 1980). O
aperfeiçoamento das armas manifesta-se nas pontas afiadas das flechas trabalhadas em
sílex polido e dos aipões de osso que fazem parte dos instrumentos clássicos dos
pescadores. E nesse longínquo período que se forma a imagem cultural do ambiente
nilótico, perpetuada nas cenas de caça e de pesca nos brejos, pintadas mais tarde sobre
as paredes dos túmulos da época faraônica, lembrando um tempo em que o agricultor
firmava seu domínio sobre o mundo selvagem. A organização da sociedade
desenvolve-se em base agrícola; os assentamentos aparecem em forma de fazendas
dedicadas tanto à criação quanto às plantações. Conservam-se em silos os produtos das
colheitas, basicamente trigo e cevada. Além da olaria, pratica-se também a cestaria, e já
se exerce a fiação do linho e o trabalho do couro, assim como a criação de ovinos,
caprinos, suínos e bovinos. Essas atividades não irão mudar nos milênios seguintes.
As crenças funerárias seguem os mesmos caminhos que revelam a transição da
vida de caçador para a de agricultor. As sepulturas deixam aos poucos as aglomerações,
afastando-se do mundo dos vivos e fixando-se nos limites das terras cultiváveis. O
morto recebe um viático de cereais e de oferendas alimentares, mas leva consigo
ferramentas para caçar no além, e um mobiliário rústico constituído principalmente por
cerâmicas. Deitado de lado, em posição contraída, ele inicia uma viagem que já parece
dirigi-lo para o Ocidente que o Sol banha todo dia com seus raios, após deixar os vivos.
Visto que a exploração sistemática dos sítios neolíticos do Vale ainda está longe da
conclusão, seria prematuro afirmar se a distribuição dos sítios hoje conhecidos resulta
do simples acaso das descobertas ou se revela uma clivagem entre o sul e o norte do
país. Devemos considerar que os sítios do Norte - os da região do Cairo e de Faiyum -
possuíam uma indústria lítica superior, demonstrada pela fabricação das armas de sílex
e pela invenção dos vasos de pedra, ao passo que o grupo do Sul distinguia-se pela
magnífica qualidade da sua cerâmica, com potes incrustados, vermelhos com bordas
pretas, que "permanecerá característica das culturas egípcias pré-dinásticas"
(Vercoutter, 1987, p. 90)?
O desafio dessa visão é importante pois afeta a interpretação do conjunto do
processo de unificação dos dois Egitos, cuja dualidade é confirmada por toda a história
faraônica. Esse amadurecimento estende-se por pouco mais de um milênio, cerca de
4500 a 3150 a.C. As diferenças entre os dois grupos culturais acentuam-se inicialmente
para diminuir em seguida, mas nunca chega a haver uma fusão completa entre elas. O
novo corte corresponde ao surgimento da metalurgia, mas não se deve dar-lhe alcance
exagerado: o cobre é pouco usado, como ocorrerá por longo tempo em seguida, e a
transição não é brutal. Distinguimos hoje quatro etapas, do princípio do período
Calcolítico até a época Tinita.

O Pré-Dinástico "Primitivo"

A primeira - o pré-dinástico "primitivo" (do meio do VIo ao meio do Vo milênio)


testemunha o último estágio do Faiyum A no norte e do Badariano no Sul. As
diferenças persistem mais nos vasos de pedra e nas ferramentas e armas de sílex, talvez
mais elaborados no Norte e já bastante próximos das manufaturas atestadas, no fim do
Antigo Império nos oásis do deserto da Líbia. Podemos pensar nas magníficas facas
com finos retoques descobertas por G. Caton-Thomson, que não deixam de lembrar as
do sítio de Balat, em Dakhala. É preciso manter, porém, certa prudência, pois a
produção no Badariano não é menos evoluída, especialmente a de pontas de flechas. A
diferença repousa mais na importância relativa, em cada grupo, das atividades de caça e
de pesca em cada um dos dois grupos cujos produtos tinham, certamente, maior
participação na alimentação das populações do Faiyum, assim como, mais tarde,
naquelas dos oásis.
De qualquer modo, é preciso observar, a par de melhoras previsíveis do mobiliário
e do equipamento agrícola, uma sensível evolução dos ritos funerários, combinando
também os dois aspectos culturais mencionados atrás. Se o defunto é sepultado envolto
em peles de animais, o túmulo ganha um aspecto cada vez mais arquitetônico.
Aparecem também certas formas plásticas destinadas a perdurarem na civilização
egípcia: as cerâmicas com bordas pretas, já vistas, adquirem alto acabamento; surgem
objetos de osso e de marfim: pentes, colheres para cosméticos, pequenas figuras
femininas com caracteres sexuais acentuados que prefiguram as "concubinas"
destinadas a regenerar a potência sexual do morto, jóias e amuletos com figuras
humanas ou animais. Algumas dessas peças são produzidas com a chamada "faiança
egípcia" (Hoffman, 1979, fig. 38-39, p. 138-139).
Figura 4 - Principais sítios neolíticos do Egito.
O Pré-Dinástico Antigo

A passagem ao pré-dinástico antigo - por volta de 4500 a.C. - também ocorre sem
mudanças profundas. Podemos até dizer que essa separação é arbitrária, na medida em
que ela corresponde apenas à primeira fase conhecida do sítio de el-Amra, a cerca de
120km ao sul de Badari, no centro da região onde se encontram, de Assiut a Gebelein,
os depósitos pré-dinásticos mais ricos. Esta fase encontra sua correspondência, 150km
mais ao sul, na primeira ocupação do sítio de Nagada; ela é encontrada, também, em
toda a volta do Nilo, entre o Gebel el-Arak e Gebelein. A cerâmica apresenta uma dupla
evolução: primeiro na decoração, com o aparecimento de motivos geométricos tirados
do reino animal ou do vegetal, pintados ou entalhados e, segundo, na forma,
essencialmente, com vasos teriomórficos. A arte da cerâmica já atinge alto nível, como
testemunham as "dançarinas" com os braços erguidos, cujo exemplar mais belo se
encontra no museu de Brooklyn.
Pela forma afuselada, o corpo da dançarina não deixa de lembrar as "mulheres-
violino" das Cíclades.

Figura 5 - "Dançarina" de Mamariya. Pré-dinástico antigo, terracota pintada. H =


0,29m, museu de Brooklyn.

O Vale se abre ao exterior por necessidade, porque dispõe de poucas matérias-


primas. Metais, como o cobre, são encontrados um pouco na Núbia e ao sul de Uadi
Alaqi, especialmente, nas proximidades do Mar Vermelho, no Sinai e na cadeia de
montes Arábicos, onde ocorrem, ainda, chumbo, estanho, gale- na e um pouco de ouro,
encontrados, também, nas proximidades da Primeira Catarata. A Núbia sempre foi a
maior fonte de ouro para o Egito; mais tarde fornece um pouco de ferro vindo do
longínquo reino de Meroe, um dos raros produtores desse minério, junto com o oásis de
Baharya. Quanto às pedras preciosas, a turquesa e a malaquita encontram-se no Sinai; o
jaspe vem dos montes Arábicos, entre Uadi Gasus e Uadi el-Qash, as esmeraldas das
margens meridionais do Mar Vermelho e as ametistas da região de Assuã. As rochas
brandas, como o calcário, são bastante frequentes, encontram-se em forma de
afloramentos no planalto líbio. No Vale, o calcário encontra-se, do norte ao sul, em
Toura - uma das pedreiras mais exploradas desde o Império Antigo até nossos dias - em
Beni-Hassan, na região de Amarna, no Médio Egito, em Abidos e em Gebelein no Alto
Egito. O alabastro é encontrado, em forma de calcita, um rouco no Uadi el-Garawi, na
região de Mênfis, e, principalmente, em Hatnub, no Médio Egito; em forma de gipsita,
ocorre no Faiyum. O arenito aparece ao sul de Esna, e suas principais jazidas estão no
Gebel el-Silsile e em Kertassi, na Baixa Núbia. As rochas duras, muito prezadas desde
a Pré-História estão disseminadas. Encontra-se basalto no norte e dolerito no Faiyum;
na cadeia Arábica ocorre mais dolerito, e também pórfiro e granito; na zona da Primeira
Catarata há quartzito, diorito, esteatito e granito.
A única pedra realmente disseminada em todo o país é o sílex, cujas jazidas
acompanham os afloramentos calcários no Vale e no planalto da Líbia. Todas as outras
são exploradas em pedreiras, geralmente temporárias, cujas localizações, um pouco
afastadas das zonas cultivadas ou fronteiriças, forçam os egípcios a organizarem, toda
vez, verdadeiras expedições durante as quais devem assegurar o controle, quer dos
locais de extração, quer das vias de passagem dos produtos. Essas necessidades
determinarão um dos aspectos principais da política externa dos faraós, dirigida
primeiro para proteger as zonas próximas do Vale contra as incursões de povos
estrangeiros.
As contribuições externas aparecem até na iconografia; descobrimos, por exemplo,
personagens com barbas cujos semblantes lembram as tribos líbias. Al- guns produtos
vêm do Sul distante, como a obsidiana e, talvez, o próprio cobre, atribuído com certa
precipitação ao Sinai. Esses sinais se multiplicam até a unificação final dos dois reinos,
testemunhando o vigor das trocas já existentes, quer com o Sul - devemos supor que o
trânsito das caravanas já se estabeleceu - quer com o Oeste - provavelmente aí também
pelos oásis - e com o Leste, passando pelo Sinai e pela faixa litorânea. Efetuam-se, da
mesma forma, trocas entre os dois grupos culturais do Norte e do Sul, se pudermos
considerar o achado de louças de pedra em el-Amra como testemunho do aporte do
Norte.
Figura 6 - Os recursos naturais do Egito.

Ainda mais interessante é o aparecimento de formas arquitetônicas históricas:


alguns modelos - pequenas maquetes que os mortos levavam com eles para o além -
revelaram a existência de casas e de muros feitos com tijolos semelhantes aos que eram
conhecidos na época pré-tinita (Hoffman, 1979, p. 147-148). Isto significa que o
próprio conceito da cidade egípcia, a organização urbana, remonta pelo menos a esta
época.
O Gerzeano

A descoberta da cultura de el-Gerseh, a alguns quilômetros de Meidum, permitiu a


identificação de um terceiro período, o Gerzeano, segunda fase do Nagada. As
diferenças entre esses dois grupos são muito claras, possibilitando-nos medir a
influência crescente do Norte sobe o Sul, até resultar em uma cultura mista, o pré-
dinástico recente (Nagada III), imediatamente antes da unificação do país, que perdura,
grosso modo, por três séculos, de 3500 a 3150 a.C.
O Amrassiano e o Gerzeano diferem sobretudo pela produção de cerâmica. As
massas são diferentes, mas isto se deve antes às localizações geográficas do que a uma
evolução técnica. O Gerzeano desenvolve extraordinariamente os motivos estilizados,
assumindo formas geométricas para reproduzir temas vegetais e naturalistas, usados na
representação da fauna e de certos traços da civilização. A fauna não apresenta
surpresas: avestruzes, cabras montesas e cervídeos confirmam um ambiente
subdesértico de caça. Pelo contrário, os vasos se animam com personagens e barcos
transportando emblemas claramente divinos (Vandier, 1952, p. 332-363; F. Yahky,
BIFAO 85, 1985, p. 187-195). São eles, talvez, os precursores dos estandartes usados
para caracterizar as províncias séculos depois. Tais cenas, relatadas em forma de
pictogramas, serão emblemá- ticas ou históricas? Parece ainda mais difícil responder a
essa pergunta por se tratar de material votivo proveniente, na maior parte, de contextos
funerários. Não é porém desprovido de significado o fato de se juntar a essas
configurações um outro tipo, observado desde o Badariano: as paletas entalhadas em
xistos, usadas para moer os produtos destinados a pintar os corpos, materiais esses que
acompanham com freqüência os mortos e que vão assumir rapidamente um valor
histórico.
Comparada à civilização faraônica, a cultura Gerzeana já alcançou alto grau de
elaboração, principalmente nas áreas funerária e religiosa. Os túmulos tornaram-se
verdadeiras réplicas das habitações, muitas vezes dotadas de vários cômodos com
mobílias abundantes. Notamos também amuletos, figurinhas e objetos rituais de-
corados com temas representando animais - leões, touros, bovídeos, hipopótamos,
falcões etc. - que representaram divindades desde muito cedo, como sabemos. É claro
que persiste bastante incerteza em tais reconstruções feitas a partir de elementos
esparsos. Desconsideramos, muitas vezes e, em especial, os elementos que não tiveram
posteridade, mas notamos que se firmam, pouco a pouco, os principais elementos
constituintes da civilização unificada que virá em seguida. Os dados fornecidos pela
arqueologia mostram que a passagem para a História deu-se em lenta evolução; não
resultou, como se acreditou por muito tempo, de uma revolução brutal que teria trazido
novas tecnologias (essencialmente a metalurgia), nova estrutura social (a organização
em povoamentos agrícolas), novos materiais (os tijolos) e a escrita. Esses elementos são
atribuídos costumeiramente à Mesopotâ- mia apenas porque lá foram comprovados na
mesma época e parece mais simples conferir uma origem comum ao "modo de
produção asiático".
A presença no Egito de cilindros mesopotâmicos da época de Jemdet Nasr (meio
do IVo milênio a.C.) não significa, como nota J. Vercoutter (1987, p. 101 e segs.) nada,
além de relações comerciais comprovadas igualmente com a Sírio-Pa- lestina, a Líbia e
o Sul. Testemunhos isolados não bastam para afirmar tal invasão. A faca encontrada no
Gebel el-Arak, hoje conservada no Museu do Louvre, exibe, é verdade, uma decoração
mesopotâmica, mas ela é a única na série bem documentada de marfins decorados com
figuras (Vandier, 1951, p. 533-560). Um documento como o pião de um jogo da época
tinita encontrado em Abu Roach, figurando uma casa com cobertura de duas águas
(Louvre E 14.698) - prevista, pois, para permitir o escoamento da chuva - invocada
muitas vezes em testemunho de influência mesopotâmica, não tem maior pertinência.
Pode ser apenas um objeto importado, tão exótico quanto um cilindro, e deve-se
lembrar, ainda, que o próprio Egito conhecia abundantes precipitações...
O Egito não precisou ir buscar tão longe a arte do fabrico de tijolos que desco-
briram, eles também, aparentemente por volta do Vo milênio a.C.: podemos adiantar,
sem ceder a um determinismo geográfico exagerado, que a argila é o material mais
abundante, sempre à disposição do homem, tanto na Mesopotâmia quanto no Vale do
Nilo ou nos oásis ocidentais. O uso mais tardio da pedra deve-se menos à evolução das
técnicas metalúrgicas - aliás, menos usadas pelos que extraíam as pedras do que
poderíamos supor - que à demanda de uma organização e de recursos importantes, mais
a alcance dos faraós que das dinastias locais dos últimos tempos da Pré-História.

A Escrita

O que podemos dizer da importação ou do surgimento espontâneo da escrita em


uma civilização? A hipótese tem pouco peso em face das representações nagadianas nos
vasos, nas quais podemos seguir todo o caminho percorrido pela estilização
progressiva, dos vegetais aos animais, passando pelas danças rituais, para desembocar
nos símbolos divinos que já são verdadeiros hieróglifos (Vandier, 1952, p. 294-296;
Amrassiano, p. 333-361 e 341, fig. 231: Gerzeano).
Figura 7 - Detalhes das representações na "tumba decorada" de Hierakômpolis.

Esses espelham, de fato, o princípio fundamental da escrita egípcia, que variou


pouco ao longo de toda a civilização: a combinação de pictogramas e fonogramas. É
difícil determinar o momento da passagem de um ao outro, se é que existiu; só
encontramos, como argumento a seu favor, a concisão das primeiras inscrições. O fato
de usarem geralmente um símbolo único, sem qualquer dos complementos fonéticos
usados mais tarde na escrita, sugere o emprego de uma representação direta. Isto
equivale a considerar a notação fonética como um progresso técnico tendendo a
acelerar-se com o tempo, trazendo uma sobrecarga gráfica cada vez mais explícita que
prenunciaria, de certa forma, a escrita alfabética. É uma impressão que podemos ter,
comparando os textos do Império Antigo aos do primeiro milênio, mas será ela
acertada?
A escrita hieroglífica associa pictogramas, ideogramas e fonogramas. O
pictograma é a representação direta: desenhar um homem, uma casa ou um pássaro
equivale a designá-los. O princípio é o mesmo das representações parietais pré-
históricas, tão simples que percebemos imediatamente seus limites, a realidade das
coisas. A representação direta dos conceitos não parece fácil, ainda que recorrendo a
processos metonímicos: indicar o efeito pela causa - o vento através da vela inflada de
um navio - ou o conteúdo pelo continente - a jarra de cerveja designando a própria
cerveja; o rolo de papiro marcando uma operação envolvendo escrita - etc. Existe,
também, o problema dos homófonos: "sa", que se representa por meio de um pato de
perfil, designa tanto "o pato" quanto "o filho". Torna-se necessário, então, desligar
certos sinais dos seus valores ideográficos para conservar apenas o valor fonético; o
hieróglifo do pato servirá para representar o som do grupo de letras sa, quer se trate de
filho ou de pato. A diferença entre os dois far-se-á por meio de um sinal com valor
determinante genérico acrescentado ao fonema: um homem para o filho, um pássaro
para o pato. Nesse último caso, o encontro dos dois sinais "pato" poderia criar
confusão; para evitá-la, o determinante é substituído por um traço vertical para indicar
que o símbolo é usado pelo valor primeiro que representa.
Se cada fonograma conserva, em princípio, o valor ideogramático, alguns sinais
especializam-se, na representação dos fenômenos mais correntes. São essencialmente
sinais de um só caractere que formam uma espécie de alfabeto com 26 letras
possibilitando teoricamente indicar todos os sons. Na prática, o Egípcio faz uso de
outros sinais que representam, isolados, fonemas de duas a seis "letras", embora possam
conservar eventualmente seus valores ideogramáticos próprios. A escrita adota, assim,
um conjunto de símbolos que pode comportar, entre ideogramas, fonogramas e
determinantes, de um a vários milhares de sinais, conforme a riqueza de expressão e a
época.
Os hieróglifos são reservados, sobretudo, para as inscrições lapidares e, de modo
mais geral, para as inscrições murais, gravadas, entalhadas ou pintadas. Seus princípios
não evoluem, das primeiras inscrições até as dos templos da época romana. As únicas
variações encontram-se no grafismo: maior ou menor estilização ou, ao contrário,
enriquecimento, realismo, tendência arcaizante ou inovadora, varando conforme a
finalidade desejada pelos hierogramas.
Documentos administrativos, contábeis ou jurídicos, assim como o arquivamento
de textos em geral, de composições literárias a ritos religiosos, fizeram, desde cedo, uso
de uma escrita cursiva, batizada "hierática" pelos turistas gregos da Época Baixa.
Deram-lhe esse nome porque acreditavam, pelo que haviam visto, ser essa escrita
reservada ao uso do clero, em oposição ao "demótico", que parecia só estar difundido
na população. Na realidade, o demótico era apenas uma nova forma do hierático,
surgida por volta do século VII a.C. O princípio do hierático é simples: são hieróglifos
abreviados, considerados individualmente ou em grupos para os conjuntos de sinais
mais freqüentes. Do Império Antigo aos últimos sécu- los da civilização, esta forma de
escrita taquigráfica evoluiu para uma forma cada vez mais simples cujas etapas finais
são, justamente, o demótico e uma evolução tebana, ocorrida na época etíope e persa,
que teve o seu apogeu em meados do primeiro milênio a.C., o hierático "anormal".
Influenciada pelos intercâmbios com o Mediterrâneo e pelas dominações grega e
romana, a escrita evolui afinal para uma notação alfabética, o copta, que não passa do
mesmo alfabeto grego com acréscimo de sete letras necessárias para representar
fonemas ausentes nessa língua. O copta, reproduzindo o estado da língua por volta do
século III d.C., tornou-se, com o abandono do politeísmo, a escrita da Igreja - mas
apenas da Igreja - com o grego continuando a ser a escrita oficial, substituído pelo
árabe, após a conquista. Desde então, o copta manteve-se como língua comunitária dos
cristãos egípcios e. hoje, como língua litúrgica. Foi seu conhecimento que permitiu a
Champollion reconstituir a base da fonética egípcia antiga.
A hierática é a escrita utilitária por excelência, usada, pois, nas escolas de escribas.
O jovem aluno traça as primeiras letras, com ajuda do cálamo, em cacos de cerâmica ou
em lascas de calcário que os Modernos designam pelo termo grego "ostracon". Esse
suporte tão humilde, que basta pegá-lo em um monte de louças quebradas ou entre
rejeitos de uma pedreira, pode ser substituído por tabuletas de argila nas quais se
escreve por meio de um estilete. O uso do papiro, mais caro, fica reservado para textos
de maior importância: arquivos, documentos contábeis, textos sacros, mágicos,
científicos ou literários, que podem ser transcritos depois em rolos de couro ou em
tabuletas recobertas de estuque.

A Unificação Política

Essas reflexões sobre a formação da civilização faraônica coincidem com a


questão, debatida por muito tempo, do processo da unificação final: dois séculos levam
à reunião das duas culturas, apresentada pelas fontes egípcias como uma vitória do Sul
sobre o Norte. Entretanto, a análise das estruturas da sociedade que se desenvolveu
mostra claramente a influência do norte, ou seja, do vencido. Esse dossiê aberto há
tempos por K. Seth e H. Kees (Vandier, 1949, p. 24 e segs.), quando a reconstituição do
período pré-dinástico era puramente especulativa, ainda está longe de terminar, embora
possamos agora acompanhar melhor as etapas que conduziram à formação e ao
confronto final de dois reinos. H. Kees apresenta a hipótese segundo a qual essa
situação seria o reflexo de uma primeira unificação do país sob a égide do Norte,
rompida por um motivo obscuro e refeita mais tarde pelos reis do Sul, limitando-se a
retomar o modelo preexistente. Essa hipótese é hoje invalidada pelos dados
arqueológicos que nos permitem acompanhar a influência crescente, desde o Tasiano,
das culturas do Norte sobre o Médio e o Alto Egitos, de Badari a Nagada (Kaiser,
1985).
A descrição que os próprios egípcios fizeram desse período da história não fornece
uma base para a escolha a um ou outro sentido. A documentação direta constitui-se
essencialmente das paletas que vimos surgir no Badariano, dando uma idéia do
processo de integração do Mito à História. Objetos de natureza apenas votiva, eles
apresentam dois tipos principais; o primeiro constitui-se de figurações zoomórficas
simples, com o contorno da paleta representando o corpo do animal. São tartarugas,
peixes, hipopótamos etc. O segundo tipo é mais complexo, combina figurações
simbólicas e notações históricas nas quais já aparece o homem. As cenas representadas
comemoram eventos cujo real alcance é dificilmente avaliável.

Datas Época Núbia, Vale Delta Faiyum


Aproxim
adas Sudão

5540- Neolítico Shaheinab Badarian Merimd Faiyum


Variante oA A Beni
4500 Cartum Hemamie e Salamé
Shendi (El- h
Ghaba)
4500- Pré- Shamarkian Amrassia Omari A
dinástic o no (Heluan
4000 o Antigo Shendi (El- (Nagada o)
Kadada) 1) Badari
B (El-
Khatara)
4000- Pré- Grupo A (V Gerzeano Omari B
dinástic a 3- A
3500 o Médio catarata) (Nagada
II)
3500- Pré- Gerzeano Meadi
dinástic B
3300 o (Nagada
Recente III)
3300- Época
pré-
3150 tinita
Figura 8 - Tabela cronológica do fim do Neolítico.

A procedência desses documentos, provenientes, grosso modo, da ponta do Delta


até Hierakômpolis, capital dos reis formadores das federações do Sul, confirma a
grande área de difusão da cultura Gerzeana. Os temas são próximos daqueles que ornam
os objetos de marfim ao longo de todo o Gerzeano e até o início da época Tinita.
Representam a fauna - aves pernaltas, leões, elefantes, touros, cervídeos, cobras,
hipopótamos etc. - característica tanto do Vale quanto das zonas subdesérticas, em
cortejos ou em cenas opondo carnívoros e herbívoros (Vandier, 1952, p. 539 e segs.;
547) mas também elefantes e cobras ou touros entre eles.
As Paletas

As configurações animais citadas são encontradas nas paletas, com ou sem


presença humana. Foram achadas duas paletas desse tipo em Hierakômpolis, uma delas
encontra-se no Louvre. Ambas são limitadas por cães opostos frente a frente e. entre
seus corpos, evolui uma fauna do tipo indicado acima, formando um verdadeiro
emaranhado (Vandier, 1952, p. 579 e segs.). Vemos no anverso uma raposa tocando
flauta - tema fartamente encontrado, mais tarde, nas fábulas egípcias - e, no reverso,
dois animais fantásticos com pescoço alongado para enquadrarem a cavidade na qual
eram moídos os cosméticos. Esses animais ocorrem com frequência nas fábulas e
contos fantásticos: já presentes no cabo da faca de Gebel Tarif, eles são vistos, ainda, na
paleta de Narmer e lembram as feras da faca de Gebel el-Arak...

Figura 9 - Paleta de Hierakômpolis, anverso e reverso.

Serão os animais fantásticos simples vestígios pré-históricos comparáveis aos seus


longínquos parentes das grutas de Altamira, na Espanha? Não há nada que permita
enquadrá-los em uma espécie determinada; cada detalhe pertence a um animal
diferente. Combinando-se esses detalhes de origens diversas resultam animais
monstruosos que lembram vagamente as grandes feras e os sáurios. Os elementos dessa
composição não ocorrem por acaso, são sempre animais temíveis, feras e predadores,
contribuindo, cada qual, com uma ou outra parte característica: garras, cascos, bocas e
presas etc. Escapando do real, essas composições tornam-se símbolos do poder animal
que o homem deve enfrentar para organizar o cosmos. O guerreiro exibido no cabo da
faca de Gebel el-Arak enfrenta duas feras, só com a força dos seus braços, enquanto os
monstros da paleta de Narmer, mantidos presos, ligam-se pelos pescoços, de modo a
formarem a cavidade onde se moíam os materiais. Nas paletas, a intervenção humana
orienta-se sempre no sentido de colocar ordem na criação: da paleta "com Avestruzes",
conservada em Manchester, àquela dita "da Caçada", compartilhada pelos British
Museum e o Louvre. Essa última é mais explícita: nela vemos uma expedição
organizada para matar, mas também para capturar animais selvagens. Leões são
trespassados por flechas, enquanto caprinos e cervídeos tocados por cães são capturados
e levados presos.
Os homens, armados com arcos, lanças, machados, lanças de arremesso e maças
piriformes, estão organizados militarmente, postados atrás de estandartes exibindo um
falcão encimando um escudo, além do sinal que será adotado, na escrita corrente, para
designar o Oriente. Estão representados, também, um santuário divino e um touro de
duas cabeças que lembram a parte superior da paleta de Narmer.
A paleta "dos Abutres" conservada no British Museum e no Ashmolean Museum
relata um confronto puramente humano, mas representado de forma simbólica: dois
guerreiros de tipo provavelmente líbio - cabeludos e barbudos, usando um estojo
peniano - são maltratados por um leão e por abutres, enquanto dois estandartes
idênticos aos da paleta "da Caçada" encabeçam filas de prisioneiros com os braços
atados atrás das costas. Nesse caso, o simbolismo é claro: o leão, uma das principais
imagens do poder real, assim como o touro, assegura, ajudado pelo abutre - divindade
tutelar de Hierakômpolis - o domínio do reino do falcão, que ainda não é o deus
dinástico Hórus, sobre os povos do Norte.
Outras etapas balizam esta conquista, como a paleta "dos Touros", conservada no
Louvre, que traz o touro, segunda imagem do poder real, chifrando uma pessoa da etnia
do Norte, acima de uma procissão de prisioneiros atados à mesma corda presa aos
emblemas de cinco reinos federados. No anverso, veem-se os nomes dos vencidos,
escritos em forma de pictogramas, cercados por muros com ameias.
Figura 10 - Paleta "da Caçada" (reconstituída), anverso, e Paleta "dos Abutres".

Os dois testemunhos da última fase da conquista são igualmente provenientes de


Hierakômpolis. O primeiro é uma cabeça de maça pertencente a um rei, representado de
pé e portando a coroa branca característica do Sul. Vestindo uma túnica e uma longa
tanga, com uma cauda de touro atada ao cinto, ele abre um canal usando uma enxada
enquanto outro homem enche um grande cesto com terra e outros fazem trabalhos
diversos nas proximidades da água, ao lado de uma palmeira plantada em um vaso. O
rei, cujo nome é indicado por um pictograma figurando um escoipião, está representado
com uma altura heroica, maior, em meio a cenas de reconhecimento e debaixo de uma
fila de estandartes nos quais vemos as futuras províncias do país. Pendurados aos
estandartes veem-se pássaros, os rekhyt, que os textos posteriores indicam serem os
habitantes do Baixo Egito.
A paleta de Narmer, conservada no Cairo, mostra a última etapa. No anverso
vemos esse rei cujo nome está escrito por meio de dois hieróglifos - o peixe nar e a
tesoura mer - no mesmo traje de Escorpião, mas tendo a mais uma barba postiça. Com
uma maça piriforme na mão direita, ele esmaga a cabeça de um homem designado
explicitamente como pertencente ao reino do Norte pela imagem situada acima da sua
cabeça: um falcão, no qual reconhecemos o Hórus do Sul, segurando uma cabeça
emergindo de uma touceira de papiros. O rei está acompanhado por dois porta-
sandálias, e sob seus pés jazem dois inimigos mortos. O reverso mostra uma cena
semelhante à da cabeça da maça: em torno do motivo central da cavidade mencionada
atrás, de um lado e outro, dois registros reafirmam o triunfo de Narmer: embaixo, um
touro rompe um muro com ameias, pisoteando um inimigo vencido; no alto, o rei,
portando agora a coroa vermelha do Norte - seu nome inscrito à frente confirma tratar-
se realmente da mesma pessoa - adianta-se, sempre seguido pelo porta-sandálias e
precedido pelos estandartes da províncias vencedoras e por um homem no qual
desejamos ver a prefiguração do vizir. À frente, debaixo do signo de Hórus triunfante
dirigindo-se em peregrinação à cidade santa de Buto, estão alinhados os mortos, com as
cabeças entre as pernas. Outra cabeça de maça pertencente ao mesmo Narmer (Vandier,
1952, fig. 394, p. 603) confirma essa vitória: vemos o rei debaixo de um pálio
jubilatório, acompanhado pelos mesmos personagens, recebendo a homenagem de
cativos e, também, de animais, "centenas de milhares" se acreditamos na legenda que os
acompanha. Fato ainda mais marcante, os animais, antes livres, estão agora dentro de
cercados.
Esses documentos, secundados também por outros, como a paleta dita "do Tributo
Líbio", reforçam a hipótese "hidráulica" do nascimento da civilização. Somos forçados
a reconhecer que a irrigação acompanha a constituição de um Estado no qual
encontramos quase todos os elementos do poder faraônico, da religião à escrita,
passando pela economia, pela habitação e pelas estruturas de governo (Butze, 1976).
Figura 11 - Cabeça da maça de Escorpião e de Narmer.
Figura 12 - A paleta de Narmer, anverso e reverso.
CAPÍTULO II: RELIGIÃO E HISTÓRIA

Os Emblemas

O simbólico animal que os documentos associam às etapas sucessivas da conquista


testemunha uma integração do Mito à História. Deduziu-se uma origem totêmica da
religião a partir da existência, desde a época pré-dinástica, desses emblemas que se
perpetuam ao longo da civilização para representar as províncias que compunham o
país (Moret, 1923). Seu caráter simbólico é manifesto: uma gazela sobre um escudo,
por exemplo, representa a região de Beni Hassan; uma lebre, a província vizinha de
Ashmunein; um golfinho, a de Mendes etc. É tentador ver aí o resultado da federação,
de um conjunto geográfico ou tribal, realizado em torno de uma divindade cujo em-
blema reproduz o símbolo (flechas e bode da deusa Neith para Sais; cetro-ouas para
Tebas; relicário do chefe de Osíris para Abidos), ou materializado por uma estrutura
política ("a Muralha Branca", figurando aquela que contornava Mênfis; ou "Terra do
Arco", designando a província da Baixa Núbia, acrescentada por conquista ao país).
Supôs-se que cada uma das insígnias representava a primeira etapa da constituição
política do país: o grupo humano de base, qualquer que fosse, identificava-se a seu
totem que representava a potência divina dominante no local. Esta fase constitutiva
supõe uma cosmologia que dá conta satisfatoriamente da hierarquia das potências,
constatada de modo empírico. Em outros termos, deve ter-se formado uma federação
divina local, em torno de um demiurgo, que encontramos nas "famílias" divinas
honradas em cada capital de província. O local da federação se constitui assim em torno
de um espaço sagrado, marcado pelo temenos divino, ao qual se superpõe o do poder do
qual ele é o fundamento: a Muralha branca ou o Relicário de Osíris. A geografia
religiosa fixou esses cânones, delimitando com precisão seu lugar no conjunto do qual
se tornaram parte, e reconhecendo-lhes localmente um lugar calcado sobre o sistema
universal no qual se integram. Cada deus vê-se atribuir, à testa de sua própria família, o
mesmo papel que o criador universal ocupa frente à do Pantéon. Daí uma grande
semelhança na organização material do culto e de seus locais, seja qual for a divindade.
A explicação totêmica da religião não é plenamente satisfatória, primeiro porque o
sistema egípcio não agrupa todos os elementos do totemismo. Ela se enquadra
igualmente mal com a antropomorfização e com a passagem à abstração das
cosmologias da época ou com o delicado problema da hipóstase, que está no coração do
sistema teocrático (Assman, 1984). Isso não impede certos pontos de convergência com
as concepções totêmicas, essencialmente africanas, embora não possamos falar de
empréstimos estruturais feitos a esses sistemas.

As Cosmologias

As cosmologias são três, mas podemos dizer que representam variações políticas
sobre um único e mesmo tema: a criação (do universo), pelo sol, a partir do elemento
líquido, para o que a enchente anual do Nilo forneceu o arquétipo. O primeiro sistema é
aquele elaborado em Heliópolis, a antiga cidade santa, na qual os faraós vinham
antigamente fazer reconhecer seu poder, que se tornou hoje um bairro do Cairo. A
cosmologia heliopolita é a primeira, por ser historicamente a mais antiga, mas, também,
porque os teólogos nunca cessaram de voltar a ela, ao longo dos séculos.
Ela descreve a criação segundo um esquema cujas grandes linhas ela partilha com
suas rivais. No início era o Noun, elemento líquido incontrolado, traduzido com
freqüência como "caos". Não se trata de um elemento negativo, mas simplesmente de
um não criado, não organizado, contendo nele os germes possíveis da vida. Aliás, este
elemento não desaparece após a criação: fica entocado nas fronteiras do mundo
organizado, que ele ameaça invadir periodicamente se o equilíbrio do universo vier a
ser rompido. Ele é sede das forças negativas, sempre prontas a intervir e, de maneira
mais geral, de tudo o que escapa às categorias do universo. As almas penadas, que não
foram beneficiadas com os ritos funerários apropriados, por exemplo, ou as crianças
natimortas, que jamais tiveram força suficiente para aceder ao mundo sensível aí
flutuam, como afogados à deriva.
É deste caos que saiu o sol, do qual não se conhece a origem, já que "veio à
existência por si mesmo". Ele aparece sobre um monte de terra, recoberta por areia
virgem, emergindo fora da água e se materializa pela presença de uma pedra elevada, o
benben, que é o objeto de um culto no templo de Heliópolis, considerado como o
próprio lugar da criação. O monte de terra evoca muito claramente o tell emergindo das
vagas de água maior enchente do rio, e o benben, a petrificação do raio de sol, adorado
sob a aparência de um obelisco, truncado e pousado sobre uma plataforma. Este deus,
que é seu próprio criador, é alternativamente Rá, o sol propriamente dito, Atum, o Ser
acabado por excelência, ou ainda Khepri, que era representado sob a forma de um
escaravelho, e cujo nome significa "transformação", à imagem daquela que, acreditava-
se, acontecia ao besouro rolando sua pílula pelos caminhos.
O demiurgo tira a criação de sua própria semente: masturbando-se ele põe no
mundo um casal, o deus Chou, o Seco, e a deusa Tefnout, a Úmida, cujo nome,
invocador, designa o cuspe, outra forma de expulsão da substância divina, se acre-
ditarmos na lenda de ísis e de Rá. Da união entre Seca e Úmida nasce um segundo
casal, o Céu, Nout, e a Terra, Geb, uma mulher e um homem. O Céu e a Terra têm
quatro filhos: ísis e Osíris, Seth e Nephtys. Esta enêade divina, repartida em quatro
gerações, estabelece a ligação entre a criação e os homens. As duas últimas gerações
introduzem, com efeito, o reino humano integrando a lenda de Osíris, modelo da
paixão, que é a parte dos mortais. O segundo casal é estéril. O primeiro, fértil, constitui
o protótipo da família real: Osíris, rei do Egito, assassinado à traição por seu irmão Seth
- que representa a contrapartida negativa e violenta da força organizadora simbolizada
pelo faraó. Ele se apropria do trono após sua morte. ísis, modelo de esposa e de viúva,
ajudada por sua irmã Nephtys, reconstitui o corpo despedaçado de seu marido. Anubis,
o chacal, nascido, segundo dizem, dos amores egítimos de Nephtys, vem socorrê-la para
embalsamar o rei defunto. Depois ela da à luz um filho póstumo, Hórus, homônimo do
deus solar Edfu e, como ele, encarnando em um falcão. Ela o esconde nos mangues do
Delta, próximo da cidade sagrada de Buto, com a cumplicidade da deusa Hathor, a vaca
nutriz. A criança cresce e, após uma grande luta contra seu tio Seth, obtém do tribunal
dos deuses, presidido por seu avô Geb, a reintegração na herança de seu pai que, ele, se
vê confiar o reino dos mortos...
A esse esquema do reino dos deuses se prendem numerosas lendas secundadas ou
complementares, que os teólogos multiplicaram a seu prazer, para introduzir uma
divindade local, embelezar seu papel na cosmologia ou assegurar a fusão sincrética de
muitos conjuntos. Disso resulta uma imbricação complexa de mitos que se recortam
com freqüência entre eles, e todos põem em cena deuses que reinam sobre a terra e que
são sujeitos às paixões humanas. Pouco se trata aí a questão da própria criação dos
homens, que parece contemporânea àquela do mundo, com uma só exceção: a lenda do
"olho de Rá". O Sol perde seu olho. Envia seus filhos, Chou e Tefnout, em busca do
fugitivo, mas o tempo passa sem que eles voltem. Decide então substituir o olho
ausente. Nesse meio tempo o olho fugitivo volta e vê que foi substituído. Põe-se a
chorar de ódio, e, de suas lágrimas (,remout), nascem os homens (remet). Então, Rá o
transforma em cobra e o prende à sua cabeça: ele é o uaereus encarregado de fulminar
os inimigos do deus. O aspecto anedótico da criação dos homens é, aí, excepcional, e
podemos supor que esta origem deve-se, antes de mais nada, ao jogo de palavras,
tentador demais para o teólogo, entre o nome das lágrimas e o da humanidade.
O tema do olho prejudicado ou substituído conhece vários desenvolvimentos: ele
serve também para explicar o nascimento da Lua, segundo olho de Thot, o deus escriba
com cabeça de íbis, ou o olho sadio de Hórus. Este, com efeito, perdeu um olho por
ocasião do combate que o opôs a Seth pela posse do reino do Egito; Thot devolveu-lhe
o olho e o teria feito protótipo da integridade física. É por essa razão que ele figura, em
geral, nos caixões onde garante ao morto o pleno uso de seu corpo.
Rá, o rei dos deuses, tem de lutar para conservar um poder que tentam arrebatar-lhe
os inimigos encarniçados, conduzidos por Apofis, personificação das forças negativas,
cada noite, durante sua incursão pelo além. Hórus, à frente dos arpoado- res da barca
divina, o ajuda a vencê-los, consagrando assim uma nova contaminação dos mitos solar
e de Osíris. As tentativas feitas contra o rei dos deuses tomam às vezes uma direção
mais inesperada. Por exemplo, é ísis, a Grande Maga, que tenta ganhar poder sobre Rá
fazendo-o picar por uma serpente modelada na argila molhada na saliva que o deus,
transformado em um velho débil, deixa escapar de sua boca, ao partir de manhã para
iluminar o universo. O rei divino é tomado pela própria potência saída de seu corpo:
para ser salvo, deve revelar àquela que criou o encantamento o segredo da sua energia
vital - os nomes dos seus kaous. Esse era o objetivo de Isis, que queria apoderar-se,
assim, do poder sobre ele aprendendo seus nomes secretos... Sem dúvida, o velho deus
consegue desmanchar a armadilha da feiticeira, mas o texto é interrompido e não
conhecemos o fim da história.
O Egito possui, ele também, o mito da revolta dos homens contra seu criador, que
decide, então, a conselho da assembleia dos deuses, destruí-los. Para isso, envia à terra
seu olho sob a forma da deusa Hathor, mensageira da sua fúria. Ela devora, em um dia,
parte da humanidade, e depois adormece. Rá, julgando a punição suficiente, espalha
cerveja na noite. Misturada ao Nilo, ela tem a aparência de sangue. Ao acordar, a deusa
sorve a beberagem e cai, abatida pela embriaguez. A humanidade está salva, mas Rá,
decepcionado com ela, decide retirar-se para o céu, nas costas da vaca celeste que será
sustentada pelo deus Chou. Ele entrega a administração da terra a Thot, e as serpentes,
insígnias da realeza, para Geb. Assim é consumada a separação dos deuses e dos
homens, cada um tendo seu lugar designado no universo, que conhece daí por diante o
espaço e o tempo - djet e neheh. Essa lenda sobre o furor apaziguado lembra a da Deusa
Distante: uma leoa furiosa que aterrorizava a Núbia. Um mensageiro de se pai, Rá, a
traz de volta ao Egito, apaziguada, sob a aparência de uma gata, transformada pelo Sol
em sua guardiã.
A cosmologia heliopolita prevalece, como podemos ver, assimilando os principais
mitos do país. Mas não é a única. A cidade de Hermópolis, hoje Achmou- nein, cerca de
300 quilômetros ao sul do Cairo, capital da XV província de Alto Egito, elaborou sua
própria cosmologia, que foi durante um tempo rival da de Heliópolis. Ela aborda o
problema na contramão dessa última: nela o Sol não é o primeiro, mas o último elo da
cadeia. O ponto de partida é o mesmo: um caos líquido não criado, no qual se batem
quatro tipos de rãs e de serpentes que reúnem suas forças para criar e depositar um ovo
sobre uma ponta de terra que emerge fora da água. Cada um destes casais é composto
por um elemento e seu paredro: Noun e Naunet, o oceano primordial que Heliópolis
integra, como vimos, em seu próprio sistema; Heh e Hehet, água que procura sua via;
Kekou e Keket, a obscuridade, e, enfim, Amon o deus oculto e seu paredro Amaunet. A
seguir, quando Amon, último elemento da octóade,I irá se tornar o deus dinástico, o
clero tebano encarregar-se-á de reconstituir uma "família" no esquema mais humano,
assegurando a transição entre a criação e o reino humano, como a de Heliópolis.
O sistema heliopolitano e hermopolitano, assim como os grandes mitos populares,
como os de Osíris, apresenta elementos tirados do substrato profundo da civilização dos
quais alguns têm ressonância nas civilizações africanas: Anubis lembra o chacal
incestuoso, com seu papel prometeico anterior aos Nomos entre os Dogons do Mali,
cuja cosmogonia repousa igualmente sobre oito deuses fundadores. Poderíamos, aliás,
multiplicar aproximações desse tipo: Amon é, aqui como lá, o carneiro de ouro celeste,
com a fronte ornada de pequenos chifres e uma cabaça, evocando o disco solar; Osíris
lembra o Lebe, cuja ressurreição é anunciada pelo novo crescimento do sorgo,
enquanto, mais profundamente e para além do verbo criador, o indivíduo é composto
por uma alma e uma energia vital (Griaule, 1966, p. 28-31; 113-120; 66; 194 e segs.),
que os egípcios denominavam ba e ka.

Do Mito à História

A terceira cosmogonia é muito mais completa, de um ponto de vista teológico. Nós


a conhecemos por um documento único, tardio, pois data do reino do soberano kushita
Chabaka, no limiar do VII e do VI séculos a.C.: uma grande pedra de granito vinda do
templo de Ptah em Mênfis e conservada no British Museum. Ela se apresenta como a
cópia de um antigo papiro "roído pelos vermes" e combina os elementos dos dois
precedentes enquanto reconhece ao deus local, Ptah, o papel de demiurgo. Poderíamos
mesmo dizer que são elementos heliopolitanos e osirianos que dominam, com uma
busca bem nítida, todavia, de abstração na formulação do mecanismo da criação que
ocorre pelo exercício combinado do pensamento e do verbo.
Esse texto data manifestamente do Antigo Império, período em que Mênfis teve o
primeiro papel nacional, e, sem dúvida, até na V dinastia, ou seja, na época na qual a
doutrina heliopolitana prevaleceu definitivamente. Data igualmente da V dinastia o
primeiro documento conhecido, de outro tipo, que tem por finalidade explícita mostrar a
continuidade que liga os homens aos deuses: a Pedra de Palermo.
Essa Pedra pertence à categoria dos anais relativamente numerosos que nos
chegaram em forma de listas reais, acompanhadas ou não de comentários. A mais
célebre é a obra de Manethon, um padre de Sebenitos (hoje Samanoud, na margem
ocidental do braço de Damieta, no Delta), que vivia na época grega, durante os reinados
dos dois primeiros Ptolomeus. Foi ele que determinou a partição da cronologia histórica
em 30 dinastias, desde a unificação do país por Menés, ao qual foi assimilado Narmer,
até a conquista macedônica. Infelizmente suas Aegyptiaca só nos chegaram, de forma
muito fragmentada, através de obras tardias (Helk, 1956). As listas anteriores datam,
quase todas, da época dos Ramsés. Amais importante é um papiro redigido no reinado
de Ramsés II, conservado no museu de Turim, sobre o qual Champollion foi o primeiro
a trabalhar, e que traz uma lista organizada por dinastias indo das origens até ao Novo
Império. E sem dúvida em uma lista desse tipo que se inspiraram as "tabelas", como as
do "Quarto dos Ancestrais", de Karnak, hoje no Louvre, as do templo funerário de Seth
I, em Abidos, a que foi encontrada em Saqara, no túmulo de Turnroi, um
contemporâneo de Ramsés II, e outras de menor amplitude (Grimal, 1986, p. 597 e
segs.).
I1
N.t.: Octóade - grupo de oito, partilhando a mesma natureza.
A Pedra de Palermo é uma placa de pedra negra, fragmentária, apresentando a lista
dos reis desde Aha, o primeiro soberano da primeira dinastia, e até, pelo menos, o
terceiro rei da V dinastia, Neferikare. Infelizmente esse documento é incompleto, e sua
proveniência é desconhecida. Chegou ao Museu de Palermo em 1877, por doação;
depois, seis novos fragmentos apareceram no comércio e estão conservados agora no
Museu do Cairo e no University College de Londres. A autenticidade desses fragmentos
foi posta em dúvida, questionando-se até mesmo se pertencem ou não à Pedra de
Palermo, e uma viva controvérsia se estabeleceu a esse respeito já há quase um século.
Os fragmentos do Cairo enumeram os reis que, no começo, usavam alter-
nativamente a coroa do Alto e do Baixo Egito. Manethon e o Canon de Turim
apresentam, ainda que conservando a estrutura analística, uma formulação cosmo-
lógica das origens: a integração do Mito à História se faz pelo recurso à Idade de Ouro,
durante a qual os deuses reinaram sobre a terra. As listas reais reproduzem os dados das
cosmogonias e mais particularmente daquela de Mênfis: no início encontra-se o
fundador, Ptah, cujo papel é próximo do de Chnum, o oleiro que criou a humanidade no
seu torno, modelando o receptáculo da centelha divina com o material desde sempre
disponível ao homem, a argila. Rá sucede-lhe. Sol, criador da vida, dissipando as trevas,
é o protótipo da realeza, realeza esta que cederá a Chou, o ar, separador da Terra e do
Céu.
Assim estão dispostos os tempos principais da criação. Os compiladores gregos de
Manethon que viram em Ptah o deus ferreiro Hephaistos, e em Hélios-Rá, o Sol, não se
enganaram quanto a isso. Chou e seu sucessor Geb, a Terra, partilham o papel de
Cronos e de Zeus em Deodoro de Sicília, que reconhece assim em Geb o pai dos
homens. Vemos que a História é um prolongamento do Mito, e que não existe, para os
egípcios, nenhuma solução de continuidade entre os deuses e os homens: sua sociedade
é uma reprodução cotidiana da criação e, como tal, deve refletir a ordem do cosmos em
todos os seus níveis. Seu modo de constituição segue, voluntariamente, o do universo, o
que não deixa de influenciar as análises contemporâneas que dele se fazem.
Osíris sucede a Geb, e, após a usurpação de Seth, Hórus sobe no seu trono. O
Cânone de Turim dá em seguida uma seqüência de três deuses: Thot, cujo papel já
vimos acima, Maât, e um Hórus cujo nome se perdeu... Maât ocupa um lugar à parte no
panteon: ela não é propriamente uma deusa, mas sim uma entidade abstrata. Representa
o equilíbrio alcançado pelo universo graças à criação, isto é, a conformidade com a
verdade de sua natureza. Como tal, ela é a medida de todas as coisas, da justiça até a
integração da alma do morto na ordem universal, no momento do julgamento final. Ela
lhe serve então de contrapeso, equilibrando sua pesagem na balança de Thot. Ela é
igualmente o alimento dos deuses, aos quais ela traz sua har- monia. Assim o reinado de
Maât é a Idade de Ouro, que cada soberano vai procurar restabelecer, afrontando as
forças negativas tradicionais que buscam, a cada dia, entravar o percurso do Sol: Maât é
o ponto de partida de uma história cíclica.
Nove deuses sucedem a ela, assimilados por Eusébio aos heróis gregos. Eles
asseguram, assim como esses, a transição em direção ao poder dos fundadores
humanos: as "Almas" (akhou) de Hierakômpolis, Buto e Heliópolis, cuja série termina
com os "companheiros de Hórus". Sem dúvida é preciso ver aí o reflexo das lutas que
conduziram à unificação do país, nas quais o Cânone de Turim identifica muitas
linhagens locais. Ele distingue claramente o primeiro "rei de Alto e Baixo Egito"
(nysout-bity), Meni (Menés), cujo nome repete duas vezes, mas com uma diferença
importante: a primeira vez ele o escreve com um determinativo humano, a segunda,
com um determinativo divino (Gardiner, 1959, PLI; Malek, BIFAO 68, (1982. p. 95).
Esse Meni - Menés em Erastóstenes e Manethon - será ele, como é se pensa
geralmente, Narmer, ou simplesmente um modo de designar, como é o hábito nos
textos, "qualquer um" em geral, cujo nome se perdeu? Pensaríamos então no rei
Escorpião ou em qualquer outro cujo nome não chegou até nós. De qualquer forma,
compreendemos mal porque foi citado duas vezes. Será por ter passado da situação de
"qualquer um" à de "rei qualquer", mudando de nome e, ao mesmo tempo, de status,
com o documento vendo nele a encarnação não individualizada da soma dos detentores
locais do poder, fundidos em um arquétipo da unidade? Isso explicaria o fato de a pedra
de Palerma só conhecer como primeiro rei um Aha. que seria então um outro nome, o
"nome de Hórus", de Narmer-Menés...
CAPÍTULO III: O PERÍODO TINITA

Os Primeiros Reis

Qualquer que seja a solução escolhida, a I dinastia inicia-se com Aha. Junto com a
I, recebe de Manethon a designação de "Tinita", devido ao nome do seu suposto berço,
a cidade, Tis (ou Tinis), próxima de Abidos, onde foram encon- trados os túmulos de
todos os reis da primeira dinastia e de alguns da segunda. A maioria desses reis tinha,
entretanto, outra sepultura, nas imediações de Mênfis.
O estado desses túmulos não permite esclarecer se eram sepultados, como se
pensou, nas proximidades da nova capital política, para respeitar a dualidade do país,
embora conservassem monumentos funerários no Alto Egito - de onde devia emanar o
seu poder em um local que se tornou conhecido depois como a cidade santa de Osíris.
As duas dinastias constituem um todo de 3150 a.C. até 2700 a.C, quase cinco
séculos durante os quais a civilização acaba de adquirir suas características defini-
tivas. É um período mal conhecido, por falta de documentação, principalmente, já que a
principal fonte dos conhecimentos, excluindo-se a Pedra de Palermo, conti- nua sendo o
conjunto de túmulos descobertos em Abidos e em Saqara e o material lá encontrado.
Atribui-se certamente a Aha, como a todo fundador, mais do que ele realizou de
fato. Caso confunda-se com Narmer, ele terá sido o promotor do culto do crocodilo
Sobek, no Faiyum, e o fundador de Mênfis. Ele teria provavelmente instaurado, junto
com sua administração, o culto do touro Apis. Supõe-se, ainda, que organizou o país
recém-unificado, praticando uma política de conciliação com o Norte. E, pelo menos, o
que se pode deduzir pelo fato de o nome da sua esposa, Neithhotep, "que Neith seja
apaziguada", ser formado a partir do nome da deusa Neith, oriunda de Sais, no Delta.
3150-2700 Período Tinita
a.C.
3150-2925 1 Dinastia
.....-3150 Vários reis (?) entre os quais
"Escorpião"
3150-3125 Narmer-Menás
3125-3100 Aha
3100-3055 Djer
3055-3050 Uadji ("Serpente")
3050-2995 Den
2995-.... Adjib
-2950 Semerkhet
2960-2926 Qaa
2925-2700 II Dinastia
2925- Hotepsekhemui
Nebré
Nineter
Uneg
Senedj
Peribsen
Sekhemib
-2700 Khasekhem/Khasekhemui
Figura 13 - Quadro cronológico do período Tinita.

O túmulo da rainha, descoberto em Nagada, continha abundante mobília, assim


como uma tabuleta gravada com o nome de Aha. Esse rei teria fundado um templo de
Neith em Sais, e celebrado as festas de Anubis e de Sokaris, o falcão mumificado, bem
como seu próprio jubileu, sua cerimônia sed.1 Seu reinado teria sido pacífico, o que não
o teria impedido de iniciar a longa série de guerras, travadas por seus sucessores, contra
os Núbios, os Líbios, os vizinhos do Sul e os do Oeste. A julgar pela menção, na Pedra
de Palermo, de navios de cedro, ele também teria guerreado com a Sírio-Palestina.
Notamos que, afinal, seu reinado está razoavelmente bem documentado e que deve ter
terminado por volta de 3100 a.C. Aha tem dois túmulos, um em Saqara e outro em
Abidos.
É provável que a sucessão de Aha tenha apresentado problemas. A lista de Turim
apresenta uma lacuna entre Menés e seu sucessor It(i), predecessor, por sua vez, de
outro It(i), que assimilamos ao Hórus Djer. Essa flutuação indicaria uma curta regência
da rainha Neithhotep ao fim da qual o trono teria passado para o filho de uma concubina
do rei? Essas questões de filiação, difíceis de esclarecer devido à parca documentação,
repetem-se para os sucessores de Djer. Ele teria tido uma filha, a rainha Merneith "a
amada de Neith'\ cujo túmulo foi encontrado na necrópole real de Abidos. Como os
documentos do seu túmulo indicam ser ela a mãe de Den, quarto rei da primeira
dinastia, deduzimos que ela foi a esposa de Uadji (ou Djet), sucessor de Djer. O reinado
de Djer ampliou a política externa do país com expedições na Núbia, até Uadi Halfa, e
talvez na Líbia e no Sinai, se nos basearmos na presença de jóias com turquesas no seu
túmulo, pedra tradicionalmente importada do Sinai. Ele dá seguimento, ainda, à
organização do país no plano econômico e no religioso, funda o palácio de Mênfis e
determina seu enterro em Abidos, onde é, talvez, o protótipo histórico de Osíris. Está
enterrado em com- panhia da sua corte - o que não significa, como se pensou por muito
tempo, que os cortesãos devessem acompanhar o soberano na morte, de forma violenta
(Kaplony, LÃ 1, 1111, n. 9). Trata-se, pelo contrário, da primeira atestação do soberano
as- sumindo o futuro funerário de seus subordinados, associando os túmulos deles ao
seu, como ocorrerá, mais tarde, nas grandes necrópoles reais. A época de Djer foi
brilhante e próspera, pelo que podemos concluir do mobiliário funerário de seus
contemporâneos, como o da tumba do chanceler Hemaka em Saqara.
Calendário e Datação

Um documento do reinado de Djer provocou o reexame de toda a datação da


primeira dinastia, levantando à questão do seu calendário. Trata-se de uma plaque- ta
de marfim (figura 14) sobre a qual se pensou ver a representação de uma vaca deitada,
tendo, entre os chifres, um broto de planta significando o ano. Parece-nos ver, nessa
imagem, a representação da deusa Sothis, ou seja, da estrela Sirius (Vandier, 1952. p.
842-843; Drioton & Vandier, 1962, p. 61). Se tal interpretação for correta, esta simples
figura significaria que os egípcios já haviam estabelecido, desde o reino de Djer, uma
aproximação entre o nascer helíaco de Sirius e o início do ano. Teriam inventado,
portanto, o calendário solar.
É provável que os egípcios usassem, nos primeiros tempos, um calendário lunar do
qual conservamos muitos indícios. Mais tarde, a defasagem entre os cômputos e a
realidade levou-os a adotar um calendário baseado no fenômeno mais regular e mais
fácil de observar as enchentes do Nilo. Assim, dividiram o ano em três es- tações de
quatro meses com 30 dias cada, correspondendo ao ritmo agrícola determinado pelas
enchentes. A primeira estação é a da inundação (Akhet), a segunda, a da germinação e
do crescimento (Peret), e a terceira, a da colheita (Chemu).
Ora. acontece que o início das enchentes, escolhido para início do ano, pode ser
observado, na latitude de Mênfis - onde supomos ter ocorrido a unificação do país -
justamente quando ocorre o nascimento helíaco de Sirius. Esse fenômeno dá-se, no
calendário Juliano, no dia 19 de julho (cerca de um mês antes, no calendário
gregoriano), mas não no dia 19 de julho de todos os anos. Todos sabem que o ano solar
real tem 365 dias e 6 horas. A diferença de um quarto de dia que se acumula a cada ano
afasta pouco a pouco as datas dos dois fenômenos, cuja simultaneidade só pode ser
novamente observada após 1.460 anos - que denominamos "período sotíaco". Esse
fenômeno - a coincidência do primeiro dia do ano e do nascimento de Sirius - foi
constatado pelo menos uma vez na história egípcia, no ano 139 d.C. Graças a alguns
pontos de referência baseados em observações feitas pelos próprios egípcios, podemos
fixar então, datas precisas dentro desses períodos, que reportamos a 1317, 2773 e 4323
a.C. Sabemos, por exemplo, que o ano 9 de Ame- nhotep I corresponde a 1537 ou a
1517, dependendo do local de observação do fenômeno, e que o ano 7 de Sesostris III
corresponde a 1877. A data de 4323 foi abandonada porque muito discrepante dos
dados arqueológicos; em compensação, 2773 parece ser um bom ponto de partida para
a criação do calendário, ainda que não se adapte ao reinado de Djer. Podemos superar
esse argumento, observando que a presença de Sothis nessa plaqueta não constitui uma
prova em si. O fato de ter sido constatado o fenômeno não implica forçosamente que
tenha sido adotado um novo calendário. Assim como o calendário civil e o religioso
coexistirão ao longo da civilização egípcia, não está fora de propósito supor que o
calendário lunar ainda vigorava no reinado de Djer, e que só foi substituído pelo solar
por ocasião do período sotíaco seguinte, por volta do fim da segunda dinastia.
Figura 14 - Plaqueta de marfim de Djer.

O Fim da Dinastia

Pouco sabemos a respeito do sucessor de Djer, Uadji - ou "Serpente", se


preferirmos considerar seu nome como um pictograma - a não ser que ele dirigiu uma
expedição rumo ao Mar Vermelho, provavelmente para explorar as minas do deserto
oriental. Seu túmulo, em Abidos, forneceu numerosas lápides; uma delas, com seu
nome, está conservada no Louvre.
Den, quarto rei da dinastia, deixou a memória de um reinado glorioso e rico, talvez
iniciado com uma regência, de Merneith, que teria favorecido o poder dos altos
funcionários - poder esse limitado depois por Den. O certo é que o novo soberano
praticou uma política exterior vigorosa, voltada, desde cedo, para o Próximo Oriente,
pois dirigiu uma campanha "asiática" desde o primeiro ano do seu reinado. Ele teria
chegado a trazer da campanha um harém de prisioneiras, tornando-se, nisto, um
precursor de Amenhotep III. Podemos supor que essa atividade guerreira, aumentada
com uma expedição contra os Beduínos, no Sinai, orientou a escolha do seu nome de
"rei do Alto e do Baixo Egito" [nysout-bity): Khasty "o estrangeiro" ou "o homem do
deserto", deformado em grego para Usaphais, por Manethon. Ele é, aliás, o primeiro a
acrescentar a seus títulos esse terceiro nome, no qual pensamos encontrar o reflexo de
uma política interna ativa: construção de uma fortaleza, celebração de cerimônias
consagradas aos deuses Atum e Apis, recenseamento do país (se acreditarmos na Pedra
de Palermo). Praticou, também, uma política de conciliação com o Norte que se percebe
não só no nome da sua esposa Merneith, mas, também, na criação de um cargo de
"chanceler do rei do Baixo Egito", ocupado por Hemaka, cujo túmulo foi descoberto
em Saqara. Além de rico mobiliário, encontrou-se, nesse túmulo, uma tabuleta com o
nome do rei Djer, que pode ser, porém, o testemunho de uma festa jubilar de Den já
conhecida de outra fonte (Hornung & Staehelin,1974, p. 17). Essa tabuleta exibe a
menção mais antiga de uma múmia - talvez a de Djer (Vandier, 1952, p. 845-848) - o
que não deixa de ser surpreendente, na medida em que a prática da mumificação só é
relatada mais tarde. Encontramos, no túmulo erigido por Den em Abidos, um
pavimento de granito, aliás, primeiro exemplo conhecido, do emprego da pedra em uma
arquitetura que usava, até então, exclusivamente tijolos.
Avalia-se o reinado de Den em cerca de meio século, o que explica o período
relativamente curto do seu sucessor, Adjib, "o homem de coração valente", cujo nome
de rei do Alto e Baixo Egitos, Merpubia(i), posto pela primeira vez sob invocação dos
"dois deuses" (nebouy), foi transformado em Miebis por Manethon. Adjib deve ter
subido tarde ao trono, com idade bastante avançada permitindo-lhe celebrar pouco após
sua festa jubilar. Esta cerimônia, a festa-sed, deve seu nome ao da cauda do touro e,
talvez, também, ao canídeo Sed, um deus que assimilamos a Upuaut, "o abre
caminhos", o chacal de quem Anubis obtém suas habilidades funerárias. Ela se perde na
noite dos tempos e constitue um rito de renovação do poder, destinado a exibir o vigor
do rei. Celebrada, em princípio, após 30 anos de reinado, constituía-se essencialmente
da repetição dos ritos de coroação: assunção das coroas e das insígnias do poder sobre
os dois Egitos, nos pavilhões próprios de cada reino. Acrescenta-se a isto uma parte
mais física da cerimônia, comportando uma corrida e uma visita, em procissão, às
divindades do país nos seus respectivos templos. Por fim, o rei executa diversos ritos de
nascimento e de fundação. A cerimônia enseja a emissão de objetos comemorativos: na
época que consideramos, eram vasos de pedra ornados com a titulação do rei.
Possuímos alguns desses vasos, comemorando a festa promovida por Adjib no seu novo
palácio de Mênfis, cujo nome é revelador, significando "a proteção envolve Hórus".
Lembraremos do seu reinado a introdução do nome posto sob invocação dos "Dois
Senhores", ou seja, de Hórus e de Seth, os deuses antagonistas do Norte e do Sul,
reunidos na pessoa do rei. Quer dizer que o rei reúne na sua pessoa a dualidade do
Egito, mas, também, a do poder de Hórus - que assegura a permanência do equilíbrio -
e do poder mais destruidor de Seth, que ele afasta do Egito.
O fim da primeira dinastia é mais conturbado. Devido certamente ao longo reinado
de Den, a sucessão não ocorreu sem choques. Semerkhet destaca-se nitidamente do seu
predecessor, chegando ao ponto de fazer-lhe apagar o nome nos vasos comemorativos,
querendo claramente marcar assim sua própria legitimidade - legitimidade essa posta
em dúvida pela Tabela de Saqara, da qual seu nome foi por sua vez apagado. Sua
titulação revela certamente uma carreira anterior à ascensão ao trono, talvez religiosa,
visto que escolheu para nome nebti "aquele que guarda as duas Senhoras", isto é,
Nekhbet, a deusa-abutre de Nekhen (Elkab), e Uadjet, a deusa-serpente de Pe e de Dep
(Buto), as protetoras do Sul e do Norte, e adotou, ainda, para nome de Hórus, "o
familiar dos deuses".

A Segunda Dinastia

Semerkhet fez-se sepultar em Abidos, assim como seu sucessor, Qaa, talvez seu
filho, cujo reinado encerra a primeira dinastia sem qualquer enfrentamento que explique
esta mudança, reportada por Manethon. Parece simplesmente que o poder tenha se
deslocado para Mênfis se considerarmos que os três primeiros reis da segunda dinastia,
pelo menos, escolheram ser sepultados em Saqara. Outro sinal desse deslocamento
geográfico é o próprio nome do soberano que inaugura a nova dinastia: Hotepsekhemui,
"os Dois Poderosos estão em paz". Os Dois Poderosos sào, é claro, Hórus e Seth. O
nome nebti desse rei confirma de fato a interpretação dada, pois ele adota "as Duas
Senhoras estão em paz". Essa escolha deve ser uma alusão política à oposição entre o
Norte e o Sul, que não ocorreu necessariamente de forma violenta, mas revela a
situação do país, sempre pronto para dividir-se em dois, em caso de conflito. Apropria
família real manteve relações com o Delta oriental, com a região de Bubastis, sem
dúvidas: podemos deduzi-lo observando a prática do culto de Bastet e de Soped, um
deus falcão local assimilado, desde cedo a Hórus, filho de Osíris. É nessa época,
também, que se estabeleceu o culto solar, ainda que o nome de RáI só apareça no nome
de Hórus do sucessor de Hotepsekhe- mui, Nebré, "o Senhor do Sol" ou, mais
provavelmente e com menos orgulho, "Rá é (meu) mestre". Rá assume em definitivo o
lugar do "deus do horizonte", de quem provém. Essa escolha religiosa vê-se confirmada
pelo sucessor de Nebré, Nineter, "aquele que pertence ao deus". Os dois devem ser os
donos das tumbas situadas por baixo da calçada de Unas, em Saqara, onde foram
encontrados cilindros-selos com seus nomes, mas essa imputação é pouco segura, por
falta de outros documentos, escritos. Os selos não ficaram obrigatoriamente ligados ao
rei cujo nome ostentam; encontramos outros semelhantes nos túmulos de diversas
pessoas, súditos e talvez sucessores. Encontrou-se, por exemplo, no túmulo de
Khasekhemui, em Abidos, um cilindro com o nome de Nineter, embora não possa haver
qualquer dúvida quanto à identidade do dono do túmulo.
Documentos de outro tipo podem sofrer deslocamentos afastando-se de contextos
originais. Trata-se dos vasos de pedra cujas inscrições são tão valiosas para o
conhecimento de certos fatos históricos e da organização administrativa do país quanto
eram as inscrições encontradas nas tabuletas de marfim da I dinastia. Encontraram-se
lotes muito importantes, parte deles pertencentes ao reinado de Nineter, nas galerias
subterrâneas da pirâmide de Djoser, segundo soberano da III dinastia. Esta descoberta
confirma a duração desses testemunhos históricos, transmitidos de geração em geração,
quer tenham sido usados ou não. No caso do túmulo de Djoser, permaneceram no
mesmo ambiente, ao passo que os vasos jubilares reais de que já falamos tiveram outro
destino: ofertados aos dignitários e conservados pelas respectivas famílias, acabaram
entre o mobiliário funerário de longínquos descendentes.
Os sucessores de Nineter, Uneg e Senedj são quase desconhecidos. Afora as listas
reais, são mencionados apenas em inscrições nos vasos encontrados na pirâmide de
Djoser. É possível que o poder desses reis tenha ficado restrito à área de Mênfis. Senedj
foi contemporâneo do rei Peribsen, que deveria ter uma estátua na sua tumba, se
acreditarmos que existia na IV dinastia um "superior dos sacerdotes uab de Peribsen na
necrópole de Senedj, no templo e em outras áreas". Desse último, conhecemos, em
Abidos, o túmulo que lhe erigiu seu sucessor local, Sekhemib "o homem de coração
poderoso" e o material ali encontrado, vasos de pedra e objetos de cobre. Também
foram achadas duas lápides com o nome do rei dentro do Serek- uma representação do
palácio em planta, precedida pela fachada, representada em elevação: o nome do
soberano está inscrito no quadro definido pela planta. O conjunto constitui a escrita
normal do nome Hórus dos soberanos. Em geral, encontra-se o falcão Hórus acima
desta "fachada de palácio"; já o nome de Peribsen encontra-se sob invocação de Seth.
Esses vários elementos nos convidam a pensar que as relações entre os dois reinos
deterioraram-se, por volta do fim do reinado de Nineter, talvez em conseqüência da
nova orientação religiosa escolhida por Nebré, que teria privilegiado o Norte em
demasia. O silêncio das listas reais a respeito de Peribsen e do seu sucessor abidesiano,
e a escolha clara de Seth para deus tutelar, sugerem que o Sul havia recuperado sua
autonomia - Peribsen teve, por exemplo, um "chanceler do rei do Alto Egito" - ou, pelo
menos, que não mais reconhecia os soberanos de Mênfis, vistos pela tradição como
legítimos detentores do poder, conforme esquema que se tornou clássico em seguida. O
I
N.t.: Também Ré.
poder de Peribsen estendia-se, pelo menos, até Elefantina, onde foram encontradas, em
1985, marcas de selos com seu nome, e onde sabemos ter existido, mais tarde, um
templo consagrado a Seth. O fato de os cultos funerários de Senedj e de Peribsen terem
sido associados à IV dinastia deixa pensar que durante seu reinado a oposição dos dois
reinos não teria sido violenta.
A situação muda com Khasekhem,"o Poderoso (isto é, Hórus) está coroado".
Originário de Hierakômpolis, ele consagrou no seu templo, quando da coroação,
objetos comemorando uma vitória sobre o Norte: inscrições em vasos de pedra e duas
estátuas, uma de xisto e outra de calcário, representando-o sentado em um assento com
pequeno encosto. Essas estátuas, praticamente as primeiras do tipo, já estabelecem o
cânone das representações reais. O soberano encontra-se revestido do manto envolvente
da festa-sed, e ostenta, nas duas estátuas, a coroa branca do Alto Egito. Isto não
significa obrigatoriamente que Khasekhem tenha escolhido atribuir ao Alto Egito a
origem do seu poder. Considerando o traje exibido, essas estátuas devem ter pertencido
a um conjunto, semelhante a outros encontrados em locais diferentes, representando
alternativamente o soberano, durante as cerimônias de coroação, como rei do Alto e do
Baixo Egito, segundo o mecanismo da festa-sed. O pedestal dessas estátuas está
decorado com prisioneiros, amontoados em uma confusão de corpos desarticulados.
Por ocasião da vitória indicada nos objetos comemorativos, Khasekhem
transforma, sem dúvidas, seu nome em Khasekhemui, "os Dois Poderosos estão
coroados", colocando Hórus e Seth acima do Serek e escolhendo, como nome de rei do
Alto e do Baixo Egito, "através dele, as Duas Senhoras estão em paz". Essa tomada de
controle do Egito, com aparência de reunificação, coincide com uma evolução
arquitetônica, acompanhada por uma vigorosa política de construções. Khasekhemui
executa obras em pedra, em Hierakômpolis, Elkab e Abidos, onde seu túmulo é o maior
entre os de todos os soberanos da II dinastia.
Figura 15 - Estátua de Kasekhem proveniente de Hierakômpolis. Xisto. Museu do
Cairo.

Acompanhando Manethon, encerramos o período Tinita no reinado de Kha-


sekhemui, sem motivo aparente. Esse corte pode até parecer surpreendente, pois esse rei
teve por esposa uma princesa Nimathap, mãe de Djoser, o grande rei que foi seu
sucessor indireto. Percebemos, entretanto, que a própria noção de monarquia "Tinita"
não representa mais a situação política da II dinastia, já muito mais Menfíta do que
Tinita. O reinado de Khasekhemui vê simplesmente o fim dos enfrentamentos entre o
Norte e o Sul e a consolidação definitiva das estruturas econômicas, religiosas e
políticas do país. E o início de uma grande época no decorrer da qual a civilização e a
arte atingem um grau quase definitivo de acabamento e de maestria.

A Monarquia Tinita

Há pouca diferença entre as monarquias Tinita e a da III dinastia. A parte essencial


das instituições já se estabelecera antes de Djoser. O princípio da transmissão do poder
por filiação direta, base da instituição faraônica, já vigora, pois o rei, quando morto, não
é mais qualificado de Hórus. Ele passa, ainda, a usar os três nomes que constituem a
base da titulação: o nome de Hórus, que exprime sua natureza de hipóstase do deus
herdeiro do trono, o nome de rei do Alto e Baixo Egitos (nysout-bity) e, a partir de
Semerkhet, um nome nebti que reflete provavelmente a carreira do príncipe herdeiro
antes da coroação, mas que já a anuncia. Note-se, também o papel da esposa do rei na
transmissão do poder: ela é "aquela que une os dois Senhores", "aquela que vê Hórus e
Seth" tanto quanto "a mãe dos filhos reais".
A organização da casa real já adquiriu, nessa época, a forma que irá conservar nos
séculos seguintes. O palácio - construído provavelmente com tijolos, a julgar pela
arquitetura funerária, suposta a reproduzi-lo - abriga os apartamentos privados (o
harém) e, também, a administração, isto é, a cabeça dos principais serviços que
constituem o prolongamento do rei, a "casa real". Embora detenha teoricamente todo o
poder, o rei é assistido, na prática, por altos funcionários. Nem sempre é fácil distinguir
os títulos puramente áulicos daqueles que correspondem a uma função de fato, mas,
ainda assim, é possível formar, pelo menos, uma idéia aproximada das grandes
engrenagens da administração.
O rei está cercado de conselheiros mais ou menos especializados, como "o
controlador dos Dois Tronos", "Aquele que está posto à testa do rei" ou "chefe dos
segredos dos decretos". Esse último título sugere o dispositivo legislativo. Como
herdeiro dos deuses, o rei detém o poder teocrático, fundamento do seu cargo, mas ele é
apenas o detentor temporário desse poder: ao ser coroado, recebe os títulos de
propriedade do país, entregues, em princípio, pelo próprio deus (Grimal, 1986, p. 441).
Recebe, com isto, o encargo de governar o país, fazendo respeitar suas leis, que são, de
fato, as leis do universo. Para governar, ele promulga decretos. No limite, toda palavra
emanando da sua boca é um decreto com força de lei que pode ser registrada por escrito
ou não, um pouco como ocorre no sistema islâmico do daher. Parece que a
interpretação dos decretos havia sido, com o recurso às leis escritas e a consulta à
jurisprudência, o essencial do Direito.
Na II dinastia, já encontramos, no círculo próximo do rei, um tjatiI que ainda não
detém todos os poderes que essa função - muitas vezes comparada à do vizir otomano -
terá na IV dinastia. Encontramos também a chancelaria, onde evolui todo um corpo de
escribas que constituem o elemento central onipresente da administração. O primeiro
chanceler do rei do Baixo Egito conhecido foi Hemaka, no reinado de Den. No Alto
Egito, a chancelaria surgiu no reinado de Peribsen.

I
N.t.: Principal conselheiro e administrador do rei.
Figura 16 - Mapa dos "nomos" do Baixo Egito.

Esta dupla instituição encarregava-se do recenseamento, da organização da irrigação, e,


portanto, de tudo o que diz respeito ao cadastro. Ela cuidava da coleta dos .mpostos e
da redistribuição dos bens entregues em pagamento aos "tesouros" e "celeiros"
especializados em cereais, em rebanhos e em alimentos em geral, que gerenciavam o
encaminhamento dos bens recebidos para os grandes órgãos a cargo do Estado: a
própria administração e também os templos.
Esses órgãos do poder central tratavam com as engrenagens locais, divididas pelas
províncias, que os gregos denominaram nomos, e os egípcios, spat e, depois, cah, a
partir do século XIV a.C. Na realidade, essas províncias só foram conhecidas como tais
a partir da época de Djoser, mas já vimos que os emblemas :epresentando-as sugerem
uma origem anterior à unificação do país. Foram, sem dúvidas, os domínios dos
antigos dinastas locais que conseguiram conservar suas características e alguma
autonomia, suficiente, pelo menos, para que as listas geográficas tradicionais nunca
tenham questionado suas individualidades. Essas listas, conhecidas desde o reino de
Niuserre, dividem o país em 22 nomos no Alto Egito e 20 no Baixo Egito.
Existiam instâncias federais competentes para cada uma dos dois reinos: co-
nhecemos, por exemplo, o "Conselho dos Dez do Alto Egito" ou o "Preposto em
Nekhen", que devia ter o papel aproximado de um vice-rei do Sul. Essas instâncias
tratavam com os responsáveis locais, os "nomarcas", denominados "administradores"
(adj-mer), que também eram auxiliados por uma assembleia, a djadjat.
Figura 17 - Mapa dos "nomos" do Alto Egito.
Figura 18-Arquitetura Civil e Militar.

Nada sabemos a respeito da organização militar do país, nem da conscrição, só


atestada mais tarde, mas podemos supor que já estava implantado o sistema vigorando
depois. Podemos ter, no entanto, uma boa idéia da arquitetura pela representação de
fortalezas, pela planta da Chounet ez-Sebib - a parte fortificada de Abidos - ou pela
muralha arcaica de Hierakômpolis.
No que toca à arquitetura civil, ficamos reduzidos essencialmente aos piões de
diversos jogos, que representam casas, e às representações das "fachadas de palácio"
exibidas nas tumbas, principal fonte de conhecimentos da arte tinita. O material
proveniente de alguns grandes túmulos privados, como o de Hemaka, e das sepulturas
reais revela uma arte florescente. Objetos de marfim e de osso ocupam sempre lugar de
destaque, assim com a "faiança egípcia", a cerâmica e os vasos de pedra. As estatuetas
são abundantes mostrando tipos humanos variados: prisioneiros, crianças e figuras
femininas que não apenas "concubinas" do morto, mas, também, evocações de atitudes
da vida corrente. Os animais são freqüentes, em estatuetas de materiais diversos; alguns
temas já estão firmados, tendo certa preferência em seguida, como o da macaca
abraçando seu filhote (comparar Vanadier, 1952, p. 976, e Valloggia, 1986, p. 80). Já as
grandes estátuas, longe de terem a graça das obras do Antigo Império, continuam
rugosas, representando personagens com atitudes enrijecidas, embora existam algumas
belíssimas, como a "Dama de Nápoles", a estátua de Nedjemankh, que se encontra no
Louvre, ou o desconhecido de Berlim.
Figura 19 - Estátua anônima de um homem sentado, encontrada em Abusir (?). Calcário.
H = 0,42m. Berlim, Agyptishes Museum.
PARTE II: A ERA CLÁSSICA
CAPÍTULO IV: O ANTIGO IMPÉRIO

O Advento da III Dinastia

Paradoxalmente, a III dinastia é bem menos conhecida que as duas primeiras, e


nem sempre concordamos a respeito do seu começo, dominado pela personalidade do
rei Djoser. Ele não foi o primeiro soberano. Embora os dados arqueológicos e os das
listas reais prestem-se à interpretação, podemos propor com alguma verossimilhança a
reconstituição a seguir. O primeiro rei da dinastia seria Nebka, citado no Papiro
Westcar. Ele é conhecido através de Manethon e graças à existência de um sacerdote de
seu culto funerário na época do rei Djoser. Nada mais podemos dizer a respeito do seu
reinado, pouco informado pela Pedra de Palermo. Djoser e ele teriam reinado por
períodos aproximadamente iguais. Quais eram seus laços de parentesco? Na realidade,
nada sabemos: talvez Djoser tenha sido irmão ou filho de Nebka. Maior confusão
ocorre ainda com a sucessão de Djoser: o Cânone de Turim atribui-lhe 19 anos de
reinado e cita, depois dele, certo Djoserti ou Djoser(i)teti, do qual não temos outras
referências. Ora, desde a descoberta por Z. Goneim, em Saqara, de uma pirâmide
inacabada construída segundo o mesmo modelo daquela de Djoser, sabemos que o
sucessor denominava-se Sekhemkhet (Lauer, 1988, p. 143 e segs.). Será o mesmo? Não
é fácil ter certeza, na medida em que ocorre, na III dinastia, uma alteração na titulação
real: o "nome próprio", aquele que o príncipe devia receber ao nascer e adotava como
nome de "rei do Alto e Baixo Egito" (nysout-bity) quando da sua coroação, torna-se o
nome do "Hórus de Ouro", enquanto o de nisut-biti tende a confundir-se com o nome de
Hórus propriamente dito. Um terceiro personagem vem complicar ainda mais a questão:
certo rei Sanakht, conhecido por marcas de selos encontrados em Elefantina. Além
disto, escavações recentes do Instituto Arqueológico Alemão do Cairo revelando uma
cidade e uma muralha da época tinita mostraram que a fronteira meridional do Egito
situava-se em Elefantina desde a I dinastia. Encontramos, ainda, vestígios de Sanakht
em um túmulo da necrópole de Beit Khalaf, ao norte de Abidos, mas, ao contrário do
que se pensou por algum tempo, o túmulo não era dele, e sim de um funcionário seu.
Ignoramos o local do seu sepultamento, embora o mais provável seja Saqara, a oeste do
complexo de Djoser, onde encontramos marcas de selos com seu nome. Seja ele o
primeiro ou o segundo rei da dinastia, confundindo-se ou não com Nebka, segundo
Manethon, seu reinado não terá passado de seis anos. Tudo o que podemos dizer é que
seu nome aparece nas minas de turquesas do Uadi Mahara, na parte oeste do Sinai,
assim como o nome de Sekhemkhet. Exceto pelo túmulo, que foi encontrado,
Sekhemkhet não é mais conhecido que Sanakht.

Djoser e Imhotep
Djoser - o Hórus Neteri-khet - é muito mais célebre graças às suas obras e à
própria historiografia egípcia. É uma das grandes figuras da história egípcia, entre
tantas, por ter promovido a arquitetura em pedra, criada pelo seu arquiteto Imhotep, que
passou a ser, ele também, objeto de culto na Época Baixa. Seu tempo permaneceu
ligado a certa imagem da monarquia. É o que mostra um célebre apócrifo, uma esteia
gravada a mando de Ptolomeu V Epifânio por volta de 187 a.C., mais de dois mil anos
depois, nas rochas de Sehel, perto de Elefantina, na Primeira Catarata. Esse texto relata
uma fome que teria ocorrido no reinado de Djoser e que mostra como o rei soube
vencê-la. Nele vemos Djoser queixar-se do estado do país:

"Meu coração estava em grande aflição porque o Nilo não tinha chegado a
tempo, por um período de sete anos. O grão estava escasso, as sementes
ressecadas, todo alimento que tínhamos era pouco, cada qual estava privado
da sua renda. Chegava-se a ponto de não poder caminhar: as crianças
choravam, os jovens estavam abatidos, os velhos, com os corações
entristecidos, ficavam sentados no chão, pernas dobradas, as mãos
entrelaçadas. Até a corte passava necessidades; os templos estavam
fechados, e os santuários, empoeirados. Tudo o que existia estava em
aflição".

O rei consultou os arquivos e ficou conhecendo a origem das enchentes e o papel


desempenhado na subida das águas por Chnum, o carneiro senhor de Elefantina. Fez-
lhe várias oferendas, e o deus apareceu-lhe, em sonho, prometendo:

"Farei subir, por ti, as águas do Nilo; não mais haverá anos com falta de
inundação em qualquer terra: as flores crescerão e vergarão sob o peso do
pólen" (Barguet, 1983, p. 15 e 28).

Se Ptolomeu V Epifânio dissimula-se sob os traços de Djoser para relatar como


conseguiu combater os efeitos perniciosos da revolta dos sucessores de Er- gâmeno
combinados com a fome, é porque vê nele o fundador do poder menfita. Ele se vale,
também, das origens da tradição nacional, usando um recurso muitas vezes ilustrado: o
de um rei letrado e piedoso que não hesita em mergulhar nas fontes da teologia e da
História para reencontrar os fundamentos cosmológicos e os grandes modelos do
passado, tais como Djoser e Imhotep.
Ambos são mais conhecidos por suas lendas que por dados propriamente his-
tóricos. Foi possível identificar o primeiro, Djoser, com Neteri-khet graças às inscri-
ções dos turistas que visitaram sua pirâmide na Antigüidade, ou a fontes como a Es-
tela da Fome, que confirmam a importância política de Mênfis durante seu reinado.
Curiosamente, nessa dupla formada pelo rei e seu servidor, o servidor é o mais co-
nhecido e tornou-se, até, alvo de um culto popular. Achamos que ele viveu até o rei-
nado de Huni, ou seja, quase até o fim da dinastia. Seu papel nunca foi o de político: as
únicas funções que sabemos ter exercido são as de grão-sacerdote de Heliópolis,
sacerdote-leitor e arquiteto chefe. Essa última tornou-o célebre, mas a imagem que
sobreviveu mostra que ele foi considerado desde cedo a figura mais marcante do seu
tempo. No Novo Império a literatura o apresenta como patrono dos escribas, não por
seus dotes de escritor, mas enquanto personificação da sabedoria e, portanto, do ensino
que nela encontra a forma principal. Essa aptidão mais intelectual que literata é
testemunha das funções que devia exercer junto a Djoser. De fato, é pelas suas
qualidades de sábio conselheiro, as mesmas, aliás, que a religião reconhece no deus
criador de Mênfis, que o Cânone de Turim faz dele o filho de Ptah: primeira etapa de
uma heroicização que irá transformá-lo em um deus local de Mênfis, dotado de um
clero e de um mito próprios, caracterizando-o como intermediário dos homens, nas suas
dificuldades da vida quotidiana, especializado em problemas médicos. Os gregos
conservarão essa especialização do Imutes menfita assimilando-o a Asclépios
(Esculápio). Seu culto, difundido no Império, desde Alexandria até Meroe, passando
por Philae, onde um templo lhe foi dedicado, sobreviverá à civilização faraônica,
prolongando-se na tradição árabe, especialmente em Saqara, onde podemos supor que
está seu túmulo. Djoser, ao contrário, não foi divinizado. Sua pirâmide bastou para
assegurar sua imortalidade, lançando uma nova forma arquitetônica adotada por todos
seus sucessores, até o fim do Médio Império.

O Fim da III Dinastia

O fim da dinastia não é mais claro que seu início; temos dificuldades para casar os
dados encontrados nas listas reais aos da arqueologia. Na falta de documentos
explícitos, a arqueologia sugere uma ordem de sucessão baseada na evolução
arquitetônica das sepulturas reais. Descobriram-se, de fato, no sítio de Zauiet el-Ariam,
a meio caminho entre Gizé e Abusir, duas sepulturas piramidais, a mais meridional das
quais, geralmente denominada pirâmide "em camadas" está nitidamente inspirada nas
de Sekhemkhet e de Djoser, em Saqara.
Provavelmente inacabado, este túmulo pode ser atribuído, em face das inscrições
em vasos, ao Hórus Khaba, desconhecido por outras fontes, que foi associado ao rei
Huni citado na lista real de Saqara e pelo Cânone de Turim. Esse Cânone atribui-lhe um
reinado de 24 anos, que deve ser situado no primeiro quarto do século XXVI a.C. Sua
posição de último rei da dinastia é confirmada por um texto literário composto pelo
escriba Kaires, se acreditarmos nas miscelâneas re- missidas. Trata-se de um
Ensinamento destinado ficticiamente a um personagem contemporâneo do rei Teti, de
quem foi o vizir, e na proximidade de cuja pirâmide foi sepultado, em Saqara. Trata-se
de Kagemni que, à semelhança de Imhotep, se tornara lendário desde o fim do Antigo
Império, atribuindo-se a ele uma carreira iniciada já no reinado de Senefru. De fato, o
texto termina assim:

"Então, a Majestade do rei do Alto e do Baixo Egito Huni veio a falecer e a


Majestade do rei do Alto e do Baixo Egito, Senefru, foi alçado à dignidade
de rei benfeitor de todo esse país. Então, Kagemni tornou-se prefeito e vizir"
(P. Prisse, 2,7-9).

Se Huni for realmente o último rei da III dinastia, falta encontrar um lugar para o
outro construtor de Zauiet el-Ariam, que alguns grafitos identificam como o Horas
Nebka(re) ou Neferka(re): a arquitetura da sua pirâmide o situa na III dinastia ou, pelo
menos, a um período com retorno ao estilo daquela época. Será isto, porém, bastante
para vermos nele o Nebkare da lista de Saqara, isto é, o Mesochris de Manethon - de
qualquer modo, um predecessor de Huni?
Como se nota, ainda está longe uma descrição satisfatória da história desta dinastia,
e não é impensável que pesquisas arqueológicas futuras trarão um melhor entendimento
do seu encadeamento. Ignoramos, também, por qual motivo ocorreu uma mudança de
dinastia, cuja marca mais tangível é o deslocamento da necrópo- le real para o sul, de
Zauiet el-Ariam para Meidum e Dachur, antes do retorno ao norte, com Queops.

Senefru

Meresankn, mãe de Senefru, o fundador da nova dinastia, não tinha sangue real;
era, sem dúvida, uma concubina de Huni, mas nada nos permite afirmá-lo. Se assim for,
seu filho terá desposado uma das suas meio-irmãs, Heteferes I, filha de Huni e mãe de
Queops, procurando confirmar, assim, pelo sangue, a legitimidade do seu poder. Essa
filiação ilustra bem a complexidade das genealogias da IV dinastia. Um estudo delas,
ainda que sumário, mostra a implicação profunda da família real no governo do país.
Como seus antecessores da III dinastia, Djoser e Nebka, Senefru permaneceu como
uma figura lendária, lembrada como muito boa na literatura. É até divinizado, no Médio
Império, tornando-se o modelo de rei perfeito, invocado por soberanos como
Amenemhat I, quando buscam legitimar o próprio poder. Essa consideração,
acompanhada da grande popularidade atestada pela onomástica, chegou até à
restauração do seu templo funerário em Dachur. Não faltam fontes para descrever seu
reinado, que deve ter sido longo - uns 40 anos no máximo - e glorioso. A Pedra de
Palermo deixa perceber que ele foi um rei guerreiro: teria di rigido uma expedição
contra a Núbia para abafar uma "revolta" no Dodecasqueno, trazendo de volta 7.000
prisioneiros, quantidade essa enorme, considerando que essa região, correspondendo
aproximadamente à Núbia egípcia, tinha, nos nossos tempos, há cerca de 30 anos,
apenas 50.000 habitantes. Dessa campanha, teria trazido, também, grande número de
cabeças de gado, 200.000 às quais se juntaram, segundo a mesma fonte, 13.000 outras,
que trouxe de uma campanha contra os Líbios, na qual fez, ainda, 11.000 prisioneiros.
Essas campanhas militares eram mais que simples rázias contra populações
insubmissas: desde os primeiros tem- pos da era tinita, a Núbia representava, para o
Egito, um verdadeiro reservatório de mão de obra, seja para trabalhar nas grandes obras,
seja para manter a ordem, pois os povos do deserto oriental - os Medjaus e, mais tarde,
os Blemies - forneciam o essencial das forças policiais do reino. Juntava-se a isto, é
claro, a preocupação em conservar sob controle as rotas das caravanas que traziam
produtos africanos como ébano, marfim, incenso, animais exóticos - girafas e macacos,
cuja moda foi crescendo ao longo do Antigo Império ovos de avestruz, peles de panteras
etc. importava, ainda, o controle dos locais de produção de certos bens importados,
como o ouro, explorado em todo o deserto da Núbia, do sudeste do Uadi Alaqi até o
Nilo, ou o diorito, a oeste de Abu Simbel.
Figura 20 - Genealogia sumária da IV dinastia: gerações 1-6.

Essa última preocupação estava por trás das campanhas que todos os reis rea-
lizaram no Sinai, desde Sanakht. Não tinham por objetivo conter improváveis inva-
sores vindos da Sírio-Palestina, mas o de garantir a exploração das minas situadas a
oeste da península, no Uadi Nash e o Uadi Magara, onde eram extraídos o cobre, a
malaquita e, principalmente, as turquesas. Senefru não fugiu a essa regra. Dirigiu uma
expedição contra os Beduínos que retomavam, a cada vez, a posse dos locais só
exploradas temporariamente pelos egípcios. Ele estabeleceu solidamente a exploração
das minas, a julgar pela sua popularidade sempre vivaz no Sinai durante o Médio
Império. Esse estado de guerra larvada com as populações nômades em nada impedia as
relações comerciais com o Líbano e com a Síria, passando pela costa marítima da
Fenícia. Senefru enviou, até, uma expedição, comportando cerca de 40 navios, para ir lá
buscar madeira de construção, sempre escassa no Egito.
Construtor de navios, de um palácio, de fortalezas, de casas e de templos, Senefru
foi, ainda, o único soberano ao qual se pode atribuir a construção de três pirâmides. Em
um primeiro tempo ele voltou-se, de fato, para o sítio de Meidum, muito ao sul das
necrópoles dos seus predecessores. Lá, fez construir um túmulo com uma técnica ainda
próxima daquela usada no de Djoser: esta pirâmide não devia estar longe da conclusão,
possivelmente no ano 13 de seu reinado, quando a abandonou para iniciar, em Dachur,
a construção de duas novas edificações que deveriam resultar na pirâmide perfeita. É
difícil saber o motivo da transferência da necrópole real para Meidum, seguida de seu
retorno ao Norte. A escolha de Meidum procurava certamente marcar uma diferença em
relação à dinastia anterior, e deve ter correspondido à primeira metade do reinado. A
família real tinha certamente laços com a região, já que o ramo primogênito foi ali
sepultado, em especial, Nefermat, que foi vizir de Senefru. Seu filho, Hemiunu, ocupou
o mesmo cargo no reinado de Queops, que quisemos ver, às vezes, como seu tio.
Retomando a tradição familiar iniciada pelo pai, com Huni, construiu, para seu rei, a
grande pirâmide de Gizé, pelo que recebeu a honra de se beneficiar de um túmulo com
sua estátua, nas proximidades da obra. Outro hóspede ilustre de Meidum foi Rahotep,
cuja estátua, representando-o ao lado da sua esposa Nefret, é uma das obras-primas do
Museu do Cairo (figura 33).
Queops

A necrópole por excelência da IV dinastia continua sendo o planalto de Gizé,


dominado pelas pirâmides de Queops e dos seus sucessores, em torno das quais se
dispuseram as mastabas dos funcionários e dos dignitários que formam o séquito do
senhor no além. Curioso destino o de Queops, em egípcio Kufu, abreviação de Khnum-
kuefui, "Chnum me protege". Desde a Antigüidade, sua pirâmide faz dele o próprio
símbolo do monarca absoluto. Heródoto, no seu relato, compraz-se em sublinhar-lhe a
crueldade:

''Não houve maldade que não fosse praticada por Queops. Primeiro, fechou
todos os templos e proibiu aos egípcios a realização de sacrifícios. Depois,
obrigou-os a trabalhar para ele. Uns foram empregados para explorar as
pedreiras nos montes da Arábia, para arrastar os blocos extraídos de lá até o
Nilo e para atravessá-los, em batéis, até o outro lado do rio; outros recebiam
as pedras e arrastavam-nas até a montanha da Líbia. Cem mil homens eram
empregados, a cada três meses, nesses trabalhos. Quanto ao tempo durante
o qual o povo foi assim atormentado, foram gastos 10 anos só para construir
a calçada por onde eram arrastadas as pedras. (...) Os trabalhos na própria
pirâmide duraram 20 anos. (...) Esgotado por essas despesas, Queops foi até
à infâmia de prostituir sua própria filha, ordenando-lhe que tirasse dos seus
amantes certa importância em dinheiro. Ignoro a quanto montava essa
importância, os sacerdotes não me informaram. Ela não só obedeceu à
ordem do pai, como também quis deixar seu próprio monumento. Pediu a
todos que vinham vê-la que lhe dessem uma pedra. Essas, disseram-me os
sacerdotes, foram as pedras usadas para construir a pirâmide que está no
meio das três, em frente da grande pirâmide, e que tem um fletro I e meio de
cada lado" (Histórias, II, 1124-126).

Os egípcios não guardaram de Queops uma lembrança igual à de Senefru, embora


seu culto seja atestado sempre, na época saíta, e sua popularidade tenha sido grande
quando do domínio romano. E ele o rei que, no Papiro Westcar, se faz contar estórias
maravilhosas a respeito dos reinados de seus antecessores. Ele aparece com o aspecto
tradicional dos soberanos orientais das lendas, como clemente e ávido pelo
maravilhoso, familiar com seus inferiores, mas pouco preocupado com a vida humana.
A construção do seu túmulo permanece uma de suas maiores preocupações: o quarto
conto do papiro mostra-o à procura "das câmaras secretas do santuário de Thot", que
deseja reproduzir no seu templo funerário. Conhece, então, um mágico de Meidum,
certo Djedi, "homem de 110 anos que, ainda, hoje come 500 pães, come a carne de
meio boi e bebe 100 potes de cerveja". O mago revela que ele conhecerá o segredo que
quer conhecer através... do primeiro rei da dinastia seguinte, Userkaf, filho mais velho
de Rá e da esposa de um sacerdote de Heliópolis! Em seguida, o papiro conta o
nascimento maravilhoso dos três primeiros reis da V dinastia. Termina antes do fim do
conto, mas já deixa perceber que Queops não tem um papel dos melhores, entre a
sabedoria dos seus predecessores e a virtude dos seus sucessores. O comportamento do
rei até choca o mago Djedi, que vai repreendê-lo quando vai mandar cortar a cabeça de
um prisioneiro só pelo prazer de ver o mago recolocá-la no lugar. "Não, não a um ser
humano, ó soberano meu senhor! E proibido fazer tal coisa com o rebanho de Deus."
Não é indiferente, aliás, que esse mago, tão respeitador da vontade divina, seja
originário de Meidum, como também o era, provavelmente, Senefru.
Esses textos, que trazem à lembrança os reis da IV dinastia, foram todos es- critos
após o Primeiro Período Intermediário ter questionado a imagem monolítica da realeza
I
1 N.t.: Fletro é uma antiga unidade de medida, valendo cerca de 29,6m.
do Antigo Império: parecem lógicas, portanto, as críticas àqueles reis cujas construções
eram o símbolo mais desmesurado dessa imagem, deformando, assim, a realidade
(Posener, 1969, p. 13). Mas, se assim for, por que Senefru foi poupado, ele que foi,
mais que seus sucessores, um construtor de pirâmides?
Tradição literária à parte, Queops é pouco conhecido. Paradoxalmente, só
possuímos dele - que fez construir o maior monumento do Egito, uma das sete ma-
ravilhas do mundo - uma minúscula estatueta de marfim com 9cm de altura, repre-
sentando-o sentado em um trono cúbico, vestido com um saiote chendjit e cingido com
a coroa vermelha do Baixo Egito. Essa única imagem, que Fl. Petrie achou em pedaços,
em Abidos, em 1903, encontra-se hoje no Museu do Cairo. Poucos documentos
fornecem informações sobre o seu reinado: uma inscrição no Uadi Magara mostra que
ele continuou a obra do pai no Sinai, enquanto uma esteia nas pedreiras de diorito do
deserto núbio, a oeste de Abu Simbel, comprova sua atividade ao sul da Primeira
Catarata. Não sabemos, nem mesmo, por quanto tempo governou o Egito: 23 anos,
segundo o Cânone de Turim, ou 63, segundo Manethon.

Os Herdeiros de Queops

Queops teve dois filhos, nascidos de mães diferentes, que lhe sucederam. O
primeiro foi Djedefre (Didufri), que sobe ao trono na morte do pai. Sua personalidade e
seu reinado permanecem obscuros; nem mesmo podemos dizer se reinou apenas oito
anos, como indica o Cânone de Turim, ou mais (sem chegar, porém, aos 63 de
Manethon). Seu acesso ao poder marca, no entanto, uma mudança indiscutível,
prenunciadora das grandes transformações do fim da dinastia. Ele é o primeiro a incluir
em sua titulação o nome de "filho de Rá" e escolhe trocar Gizé por Abu Roach, uma
dezena de quilômetros mais ao norte, onde faz construir seu túmulo. A escolha desse
local não deve ser indiferente: deve sinalizar, sem dúvida, um retorno aos valores
anteriores a Queops. Essa parte do planalto já fora adotada durante a III dinastia.
Djedefre retoma, ainda, a orientação norte-sul e adota uma planta retangular inspirada,
certamente, nos modelos de Saqara. Esse complexo, com um templo de culto, uma
imensa calçada em rampa ascendente e um templo de acolhida ainda não desenterrado
não foi concluído, o que deixa supor um reinado bastante curto. Além disso, o
complexo foi muito pilhado, o que talvez não seja significativo, já que foi construído
com materiais preciosos, como sienito e quartzito vermelho de Gebel el-Amahr, que
devem ter provocando muitas cobiças. Chassinat encontrou, assim, em 1901, no
entorno da pirâmide, um lote de fragmentos provenientes de um grupo de 20 estátuas de
quartzito que representavam o rei. Os mais belos figuram entre as obras-primas da
plástica real e estão hoje conservados no Museu do Louvre.
Não é clara a posição de Djedefre dentro da família real, em especial no que toca a
seus laços com seu meio-irmão Quefren, que lhe sucedeu. Não conhecemos o nome de
sua mãe, mas sabemos que ele desposou provavelmente sua meio-irmã Heteferes II, que
também foi esposa de Kauab. Este foi o príncipe herdeiro de Queops, de quem foi vizir,
falecendo antes do pai. Conhecemos seu túmulo, um dos primeiros do cemitério
oriental da pirâmide de Queops, e sabemos que sua memória foi preservada, visto que o
príncipe Khaemuaset fez restaurar sua estátua no templo de Mênfis. Da união de Kauab
e de Heteferes II nasceu a princesa Meresankn III, que desposou Quefren, enquanto
Heteferes II teve, com Djedefre, Neferhetepes, uma das "possíveis" mães de Userkaf.
Figura 21 - Genealogia sumária da IV dinastia, gerações 4-6: ramo primogênito.

Tendo desaparecido Kauab, Djedefre teria entrado em competição com seu outro
irmão, Djedefhor, cuja mastaba, inacabada e voluntariamente danificada, foi
encontrada nas proximidades da de Kauab. Seria isto o sinal de uma perseguição? É
difícil dizer. Não é impossível, na medida em que Djedefhor é pai da rainha Khen-
kaus, mãe de Sahure e de Neferirkare, que seria provavelmente a Redjedjet do Papiro
de Westcar, aquela que deveria gerar, por obra de Rá, os primeiros reis da V dinastia,
como anunciou o mago Djedi a Queops. Teria havido, então, uma luta entre dois ramos
rivais; Djedefre teria prevalecido sobre Djedefhor e, depois, o poder teria refinado ao
ramo primogênito, com Quefren. Esta hipótese tem certo peso em vista do julgamento
da posteridade a respeito dos filhos de Queops. Um grafito da XII dinastia, encontrado
no Uadi Hamamat incluiu Djedefhor e seu outro meio-irmão Baefre na sucessão de
Queops, depois de Quefren. Além disto, a tradição legitimista fez dele um personagem
quase igual, em muitos aspectos, a Imhotep. Homem de letras, ele é o autor de um
Ensinamento que os alunos estudavam nas escolas, obra da qual muitas passagens se
tornaram proverbiais e são citadas pelos melhores autores, de Ptahotep até a época
romana. Perito em textos funerários, ele descobriu no santuário de Her- mópolis, "em
um bloco de quartzito do Alto Egito, sob os pés da Majestade do deus", quatro dos mais
importantes capítulos do Livro dos Mortos: a fórmula do capítulo 30 B. que impede o
coração de testemunhar contra seu dono, a do capítulo 64, capital, pois abre a
transfiguração "das quatro tochas" (137A), e, por fim, aquela que confirma a glória do
defunto no reino dos mortos (148). Precursor de Satni Kamois, ele é, também, quem
introduz o mago Djedi no Papiro de Westcar. Sua dimensão quase mítica impede a
avaliação do seu real papel histórico: se confiarmos nos textos, ele já era um sábio
respeitado na época de Queops, e ainda vivia no reinado de Mikerinos.
Com Quefren, volta-se ao ramo primogênito e à tradição de Queops, como
confirmam cerca de 25 anos de reinado glorioso. Ele retorna a Gizé e faz edificar sua
pirâmide ao sul da de seu pai, dotando-a de um templo de acolhida construído em
calcário e granito. A. Mariette descobriu em 1860, no vestíbulo desse templo, entre
vários fragmentos jogados em um poço, uma das mais belas estátuas do Museu do
Cairo, representando Quefren sentado no trono real, protegido pelo deus dinástico
Hórus, envolvendo-lhe a nuca com as asas (figura 28), da qual se descobriu
recentemente uma similar (Vandersleyen, 1988). A ruptura não deve ser tão forte
quanto se diz amiúde. Não há solução de continuidade entre os dois reinados. Muito
pelo contrário, Quefren mantém-se na mesma linha teológica iniciada por seu
predecessor.

Ele não só conserva o título de ''filho de Rá" como amplia de forma magistral a
afirmação da importância de Atum frente a Rá, já destacada pelo rei anterior. É da
época de Djedefre, de fato, o primeiro exemplar conhecido de esfinge real, encontrada
em Abu Roach. Entre as estátuas encontradas por E. Chassinat que evocamos acima, a
magnífica cabeça que se encontra no Museu do Louvre pertencia provavelmente a uma
esfinge. Quefren faz revestir e esculpir um bloco monumental deixado por uma
escavação realizada no tempo de Queops no planalto de Gizé, dando-lhe a forma de um
leão cuja cabeça reproduz a sua própria face, coroada com o nemes. Essa esfinge, na
mesma escala da pirâmide que será identificada ao novo império, em Harmaquis,
representa o rei como hipóstase de Atum. A localização da esfinge ao pé da necrópole,
assim como o templo que o rei faz erigir à frente, mostra seu duplo valor: Quefren é a
"imagem viva" - shesep ânkh, que se escreve por meio de um hieróglifo representando
justamente uma esfinge deitada - de Atum, enquanto vivo e quanto no além, após
completar sua transfiguração.
Com sua esposa, Khamerernebti I, ele tem um filho, Menkaure, "Estáveis são os
kau de Rá" ou Mikerinos, retomando a transcrição de Heródoto, que foi seu sucessor
imediato. Entre os dois, Manethon insere Bicheris ou Baefre, "Rá é seu ba", que vemos
mencionado na XII dinastia, ao lado de Djedefhor, e que é provavelmente o mesmo que
Nebka, cuja pirâmide inacabada foi achada em Zauiet el- -Ariam. Mikerinos perde um
filho e é seu outro filho, Chepseskaf, quem, tendo-lhe sucedido, irá concluir seu templo
funerário e, talvez, até sua pirâmide, a terceira do conjunto de Gizé. É a menor das três,
mas a única a ser revestida, com granito na parte inferior e com calcário fino na parte
superior. Em face da dúvida deixada por Manethon, esses elementos falam mais a favor
da idéia de um reinado de 18 anos e não de 28.
Chepseskaf é o último rei da dinastia. No intuito, sem dúvida, de estreitar, os laços
entre os dois ramos da família real, ele desposa Khentkaus, filha de Djedefhor, em cujo
túmulo, situado em Gizé está escrito "mãe de dois reis do Alto e Baixo Egito" - ao que
tudo indica, como vimos, Sahure e Neferirkare - e era considerada pelos egípcios a
ancestral da V dinastia. Parece que não tiveram herdeiros, a não ser que se deva
considerar o efêmero Thanftis (Djedefptah) de Manethon, ao qual a Cânone de Turim
atribui um reinado de dois anos. Chepseskaf adotou uma política religiosa diferente
daquela dos seus antecessores: ainda que faça um edito - o primeiro que conhecemos -
para proteger seus sítios funerários, rompe com a tradição, fazendo construir, para ele,
em Saqara, um túmulo com a forma de um grande sarcófago. Também Khentkaus
parece ter estado dividida: tem dois túmulos, um em Gizé e outro em Abusir, nas
proximidades da pirâmide do seu filho, construído, porém, em um estilo que marca um
nítido retorno à III dinastia. Esse distanciamento em relação às concepções
heliopolitanas aparece, ainda, na escolha por Chepseskaf, do grão-sacerdote de Mênfis,
Ptahchepses, para esposo da sua filha Khamat.
Figura 22 - Genealogia sumária da IV dinastia, gerações 4-6: ramos mais novos.

Userkaf e os Primeiros Tempos da V Dinastia

A ascensão de Userkaf, "Poderoso é o seu ka", ao trono não parece ter pro- vocado
grandes mudanças no país ou na administração (conhecemos exemplos de permanência
nos cargos de funcionários da IV dinastia, como Nikaankh, em Thena, no Médio
Egito). Aliás, só o Papiro Westcar indica ter sido ele filho de Redjedjet, portanto,
talvez, Khentkaus: uma tradição sólida via nele um filho da princesa Neferhetepes da
qual o Museu do Louvre possui um fabuloso busto de calcário (Vandier, 1958, p. 48-
49). Ele seria, então, neto de Djedefre e da rainha Heteferes II: um descendente do
ramo mais novo da família real... Mas tudo depende da identidade do marido de
Heteferes! Não sabemos quem foi: teria sido ele o "sacerdote de Rá, senhor de
Sakhebu" do papiro de Westcar? Com efeito, Userkaf faz construir, em Saqara-Norte, a
certa distância do complexo de Djoser, uma pirâmide com pequenas dimensões, hoje
muito danificada. Ao mesmo tempo, inicia uma tradição, observada por seus
sucessores, fazendo construir um templo solar em Abusir, que deveria ser uma réplica
do de Heliópolis, a cidade mais caracterís- 1 tica da nova dinastia. A cidade de Abusir,
escolhida por Sahure, Neferirkare e Niu- | serre para serem lá sepultados, está
certamente ligada ao próprio local de origem da nova família real, a cidade de Sakhebu
que concordamos geralmente ser Zat el-Qom, a uns 10 quilômetros ao norte de Abu
Roach, mais ou menos no nível do ponto em que o Nilo se separa em dois braços, o de
Roseta e o de Damieta. A nova ordem de coisas transparece, também, no nome de
Hórus escolhido por Userkaf, irimat, "aquele que coloca Maât em prática", o equilíbrio
do universo assegurado pelo criador: quer dizer que ele se considera como aquele que
recoloca a criação em ordem. Seu reinado foi provavelmente curto, mais próximo dos
sete anos que lhe atribuiu o Cânone de Turim que dos 28 de Manethon. Essa duração e
o abandono do seu culto funerário no fim da V dinastia mostram bem a relativa
importância que teve seu reinado. Ele teve, todavia, alguma atividade, especialmente
no Alto Egito, onde desenvolveu o templo de Tod consagrado a Montu, o deus da
Tebaida antes de ser o da guerra. Do seu reino datariam, também, as relações com o
mundo egeu: encontramos no seu templo funerário um vaso proveniente de Citara. É o
| primeiro indício dessas relações, provavelmente comerciais, atestadas na V dinastia
pela presença em Dorak de um assento marcado com o nome de Sahure e de objetos,
nessa região, exibindo os nomes de Menkahuor e de Djedekare-Izezi.
A Supremacia Heliopolitana

A V dinastia parece ter aberto o Egito para o exterior, tanto para o norte quanto
para o sul. Os relevos do templo funerário que Sahure, sucessor de Userkaf, fez
construir em Abusir apresentam, além da representação dos países vencidos - mais um
lugar comum da fraseologia que um testemunho histórico - o retorno de uma expedição
marítima dirigida a Biblos, prolongando-se até o interior sírio, se acreditarmos na
presença de ursos nessas terras. Atribuiu-se igualmente a Sahure uma campanha contra
os Líbios, cuja realidade pode suscitar algumas dúvidas. Parece que as relações
estabelecidas com os outros países teriam tido motivação essencialmente econômica,
como já ocorrera no reinado de Userkaf, quer no caso da exploração das minas do Sinai
e das pedreiras a oeste de Assuã onde voltou a extrair diorito, quer na determinação de
uma expedição à região de Punt, que lhe atribui a Pedra de Palermo, e da qual
encontramos, talvez, algum vestígio nos relevos do seu templo funerário.

Os egípcios situavam Punt no "País do deus", nome pelo qual foram designadas,
desde o Médio Império, as regiões orientais. Achamos que devia situar-se em algum
lugar entre o Sudão e o norte da Eritréia. Trata-se de uma região da qual importavam
essencialmente mirra e, mais tarde, incenso e, também, electrumI, ouro, marfim, ébano,
resinas, gomas, peles de leopardos etc.: produtos exóticos que eram encontrados na
África. As relações comerciais com Punt são atestadas ao longo da V e da VI dinastias,
em especial no Médio Império. As expedições realizadas nesse período por Henenu, por
conta do rei Montuhotep III, e de outros, para Sesostris I e para Amenemhat II,
fornecem indícios preciosos a respeito do caminho percorrido. Partindo da região de
Tebas, as expedições iam até o Uadi Hamamat e embarcavam em Mersa Gauasis, onde
escavações conjuntas recentes da Universidade de Alexandria e da Organização das
Antigüidades Egípcias revelaram, há alguns anos, instalações portuárias do Médio
Império. Deviam desembarcar perto de Porto Sudão, após terem navegado pelo Mar
Vermelho. Encontramos indícios dessa navegação nos relevos do templo que a rainha
Hatshepsout, da XVIII dinastia, mandou gravar nas paredes do seu templo funerário em
Deir-el-Bahari. Em seguida as expedições penetravam nas terras, dirigindo-se para
oeste e para o sul da Quinta Catarata. Tais relações continuaram no Novo Império com
Tutmés III, Amenhotep II, Seth I, Ramsés II e, principalmente, Ramsés III. Em seguida,
elas diminuíram, só voltando a ter importância no fim da época faraônica.
Os reinados dos sucessores de Sahure são mal documentados. Pouco se pode dizer
a respeito da política de Neferirkare-Kakai, seu irmão, segundo o Papiro Wes- tcar,
exceto o fato de ter sido provavelmente gravada a Pedra de Palermo durante seu
reinado. Encontrou-se no seu templo funerário, em Abusir, entre 1893 e 1907, um lote
muito importante de papiros documentários datando do reinado de Izezi ao de Pepi II.
Esse conjunto era o arquivo mais importante do Antigo Império que conhecíamos até a
missão do Instituto Egiptológico da Universidade de Praga encontrar em 1982, em um
depósito do templo funerário de Reneferef,II localizado em um sítio próximo, um lote
ainda mais rico. O estudo das quatro descobertas de Abusir e dos achados mais recentes
de templo de Reneferef completarão nosso conhecimen- to sobre o funcionamento dos
grandes domínios reais do Antigo Império.
Entre Neferirkare e Reneferef, situa-se Chepseskare, soberano efêmero, cujo
reinado não passou de alguns meses, e cujo único vestígio encontrado, sem mencionar
I
N.t.: Electrum é uma liga natural de ouro e prata.
II
3 N.t.: Reneferef é o mesmo rei Neferefre.
Manethon, é a marca de um selo proveniente de Abusir. Já Reneferef é mais conhecido,
principalmente depois que a missão tcheca empenhou-se na escavação do seu templo
funerário. As descobertas feitas entre 1980 e 1986 modificaram ligeiramente a imagem
que tínhamos desse rei cuja pirâmide inacabada parecia indicar como secundário. Além
da grande descoberta dos papiros e das tabuletas inscritas, as barcas de madeira, as
estátuas de prisioneiros e as do rei, reveladas em 1985, são testemunhos da grandeza
desse rei pouco conhecido.
Niuserre reinou cerca de 25 anos. Talvez fosse filho de Neferirkare, cujas
construções inacabadas em Abusir ele reutilizou para erguer seu templo de acolhida. É
conhecido principalmente pelo templo solar que mandou edificar em Abu Gurob, o
único construído inteiramente em pedra que chegou até nós quase completo, e cuja
arquitetura dá uma idéia de como devia ser seu modelo heliopolitano. Deduziu-se daí
que seu reinado marcou o apogeu do culto solar, o que é certamente exagerado. E
preciso constatar, entretanto, que certa mudança ocorre depois dele: seu sucessor
Menkauhor, do qual pouco se sabe, continuou explorando, como Niu- serre, as minas
do Sinai, e não foi sepultado em Abusir.
Hesitamos em localizar sua pirâmide não encontrada entre Dachur e Saqara-Norte,
onde era cultuado durante o Novo Império (Berlandini RdE 31, 3-28). Mas, a atribuição
a Menkahuor da pirâmide em ruínas situada a leste daquela de Teti, em Saqara- -Norte,
esbarra em um problema estratigráfico difícil de superar: a imbricação de uma mastaba
da III dinastia nos vestígios do seu canto sul (Stadelmenn, LA IV, 1219). Tampouco
sabemos se o seu templo solar, igualmente conhecido pelas inscrições, encontrava-se
em Abusir. Nesse caso, ele teria sido o último a usar esse sítio, já que todos os seus
sucessores escolheram Saqara.
Essa é a época na qual os funcionários provinciais e os da Corte aumentam seu
poder e sua autonomia, criando um movimento que vai parar de crescer, solapando
progressivamente o poder central. Podemos avaliar essa ascensão pela riqueza da
mastaba de um deles, Thi, que desposou uma princesa, Neferhetepes, fez carreira sob
Neferirkare-Kakai, morreu durante o reinado de Niuserre e foi sepultado em Saqara (cf.
infra figura 61). Esse "barbeiro chefe da casa real" tinha o comando dos domínios
funerários de Neferirkare e de Neferefre, e era também o controlador dos açudes, das
fazendas e das culturas. O tamanho e as decorações do túmulo que construiu para si e
para sua família ainda estariam fora do alcance de um simples súdito, na dinastia
anterior.

Izezi ou Unas

Izezi adota uma política que, sem romper com o dogma heliopolitano, se distancia
um pouco dele. Escolhe um nome de rei do Alto e Baixo Egito que ainda continua
invocando Rá: Djedekare "estável é o ka de Rá", mas não constrói o templo solar, e é
sepultado em Saqara-Sul, portanto, mais perto de Mênfis, nas proximidades do lugarejo
moderno de Saqara. Seu reinado é longo: Manethon indica uns 40 anos, mas esse
número não é confirmado pelo Cânone de Turim que só lhe dá 28. De qualquer forma,
tempo pelo menos suficiente para uma festa jubilar, atestada por um vaso conservado
no Museu do Louvre. Assim como Sahure, adota uma política externa vigorosa que o
conduz aos mesmos parceiros: ao Sinai, onde são atestadas duas expedições ao Uadi
Magara, com intervalo de 10 anos, às pedreiras de diorito, a oeste de Abu Simbel -
expedição esta lembrada por um grafito encontrado em Tomas - e, muito mais longe, a
Bi- blos e ao reino de Punt. O poder dos funcionários continua aumentando no seu
reinado, quando vemos surgir verdadeiros feudos. Os vizires que se sucederam durante
esse terço de século deixaram em Saqara túmulos que são testemunhos da sua
opulência, como, por exemplo, Reshepses, que foi, ainda, o primeiro go- vernador do
Alto Egito. O mais célebre dentre eles foi Ptahotep, autor, segundo a tradição, de um
Ensinamento ao qual farão referência os textos sábios e reais até a época etíope.
Na realidade, deveríamos falar de vários Ptahotep, dois dos quais têm um túmulo
em Saqara, no setor ao norte da pirâmide de Djoser. O vizir de Djedekare é o que está
enterrado só (PM III 599). Seu neto, Ptahotep Tshefi, que viveu até a época de Unas,
está enterrado perto, em um anexo da mostaba de Akhtihotep, filho do vizir e, ele
também, vizir (PM 1112 599). A ele são atribuídas Máximas que chegaram até nós
através de uma dezena de manuscritos, dos quais um papiro e três ostracasI são
provenientes de uma aldeia de artesãos de Deir el-Medineh, o que confirma a audiência
desse texto na época remissida, quando ainda eram ensinados nas escolas de escribas. A
atribuição dessa obra a Ptahotep não significa obrigatoriamente que ele seja o autor. As
cópias mais antigas datam do Médio Império e não permitem afirmar que o original
remonte ao antigo Império e, mais especificamente, ao fim da V dinastia, embora
sabendo que a obra já era mencionada na XII dinastia. A questão não tem, aliás, grande
importância: essas Máximas, de conteúdo muito conformista, definem regras gerais de
vida e são atribuídas a Ptahotep porque, ao que tudo indica, ele era o símbolo dos altos
funcionários que asseguravam a ordem estabelecida.
O pessoal político e administrativo permanece notavelmente estável, ao contrário
da família reinante que termina com Unas, em quem pensamos ver, sem garantias, o
filho de Djedekare. A divisão dinástica de Manethon faz dele o último soberano da V
dinastia e encerramos geralmente no seu reinado o período clássico de Antigo Império,
considerando a VI dinastia como o início da decadência que englobou todo o Primeiro
Período Intermediário até a reunificação das Duas Terras por Montuhotep II. Esse corte
é duplamente artificial. Primeiro, porque não passa de uma projeção da divisão de
Manethon, mas também porque violenta o curso da história, criando uma ruptura que a
historiografia egípcia não reconheceu como tal. Não conhecermos boa quantidade de
funcionários que serviram sucessivamente a Djedekare, a Unas e a Teti, primeiro rei da
VI dinastia, e, além disso, a era de Unas está longe de ter sentido a decadente! No seu
reinado, ao qual o Cânone de Turim e Manethon atribuem, ambos, cerca de 30 anos, o
Egito pratica uma diplomacia ativa com Biblos e com a Núbia. O rei ficou conhecido
como construtor, em Elefantina e, sobretudo, em Saqara-Norte, onde seu complexo
funerário, restaurado na época de Ramsés II, para o príncipe Khaemuaset, é prova de
uma grandeza que lhe valeu, mais tarde, a posição de divindade local.

Nascimento da VI Dinastia

Embora o Antigo Império esteja no apogeu, e não haja qualquer sinal de violência
visível, é provável que os feudos instalados no país representassem alguma ameaça ao
poder central. A esse problema, juntava-se outro, a falta de um herdeiro masculino.
Parece que a ascensão de Teti ao trono solucionou essa dupla crise. Ele adota o nome de

I
4 N.t.: Fragmentos de vaso, em cerâmica ou pedra.
Hórus, Seheteptaui, "Que pacifica as Duas Terras", já indicando qual vai ser seu
programa político. Esse mesmo nome será adotado no decorrer da história do Egito
pelos reis que precisaram restabelecer a unidade do país após graves perturbações
políticas: Amenemhat I, Apofis, Petubastis II, Pi(ankh)i... Longe de romper com a
dinastia precedente, Teti desposa Iput, filha de Unas, que lhe dará o filho Pepi I. Inscrito
na linhagem legítima, pratica uma política de aliança com a nobreza, dando sua filha
mais velha, Sesheshet, em casamento a Mereruka, que foi seu vizir e, em seguida,
controlador dos sacerdotes da sua pirâmide, nas proximidades da qual foi sepultado, em
uma das mais belas mastabas de Saqara-Norte. A pirâmide que Teti faz construir, a
segunda com textos, após a de Unas, marca o retorno a certas tradições da IV dinastia.
Renova, em especial, com a construção de pirâmides para rainhas, ao passo que Unas
tinha-se contentado em sepultar suas esposas em mastabas. A da rainha Khuit
desapareceu, mas encontramos os restos de Iput em uma pequena pirâmide construída a
uma centena de metros ao norte daquela do seu esposo.
É certo que a política de pacificação de Teti deu frutos. Sua atividade como legislador
em Abidos é atestada por um decreto isentando o templo de impostos; ele é, também, o
primeiro soberano nominalmente relacionado com o culto de Ha- thor em Dendara. Ele
dá continuidade, o que mostra a boa saúde da política interna, às relações internacionais
da V dinastia: sempre com Biblos, talvez com Punt e a Núbia, em todo caso, até Tomas
pelo menos. As várias fontes não concordam quanto à duração do seu reinado: menos de
sete meses segundo o Papiro de Turim, o que não é plausível, ou 33 anos, conforme
Manethon, o que parece demasiado, pois não temos a comprovação de uma festa jubilar.
A data mais baixa conhecida é a do "sexto recenseamento", operação realizada, em
média, a cada dois anos ou a cada ano e meio. Manethon informa que ele morreu
assassinado. Isso reforça a idéia de distúrbios e dá um segundo ponto de aproximação
com Amenemhat I! Esta morte violenta explicaria o curto reinado do seu sucessor,
Userkare, cujo nome - "poderoso é o ka de Rá" - lembra muito a V dinastia, a ponto de
ter sido considerado algumas vezes como um dos chefes da oposição que teria
assassinado Teti, segundo Manethon. Ao contrário da freqüente alegação escrita,
Userkare não é inteiramente desconhecido. É verdade que ele só é citado no Cânone de
Turim e na lista de Abidos, mas possuímos outros documentos com seu nome. Um deles
cita uma equipe de trabalhadores assalariados vindos do nomo Qau el-Kebir, ao sul de
Assiut, para executar grandes trabalhos, sem dúvida a construção do seu túmulo. Como
a transição para Pepi parece ter ocorrido sem choques, talvez se deva ver nele, pelo
contrário, um apoio que teria favorecido a regência da rainha Iput, viúva de Teti,
enquanto seu filho não tinha idade suficiente para subir ao trono.
Figura 23 - Genealogia sumária da VI dinastia: gerações 1-4.

Pepi I

O longo reinado de Pepi I - cerca de 50 anos, segundo Manethon e outros tantos


para o Cânone de Turim, embora falte uma cópia, mas, pelo menos, 40 - nos faz supor
que ele subiu ao trono muito jovem, logo após o fim da regência de sua mãe. Ele adota
como nome de Hórus, meri-taui, "aquele que as duas Terras amam", o que deixa supor,
pelo menos, a vontade de apaziguar. Mas, dois aconte- cimentos fazem pensar que as
dificuldades mencionadas atrás devem ter assumido uma importância cada vez maior. O
primeiro é um fato difícil de situar com precisão no reinado, e do qual só temos um
testemunho direto: uma conspiração contra o rei teria sido tramada no próprio harém,
terminando com a punição da esposa culpada e - podemos pelo menos supor - do filho
que ela procurava favorecer.
O testemunho em questão foi deixado por um oficial denominado Uni, na autobio-
grafia que fez gravar na sua capela funerária em Abidos. A autobiografia é o gênero
literário mais antigo do Egito e, também, aquele com melhor documentação. Na época
que descrevemos, trata-se de relatos escritos exclusivamente nas capelas funerárias,
tendo o mesmo papel das várias representações do defunto: caracterizá-lo, destacando
nas diversas etapas importantes da sua vida, o que o torna digno de merecer a oferenda
funerária. Pode-se dizer, portanto, que esses textos são, na maioria das vezes, peças
justificativas. Mas, ao lado dos panegíricos tradicionais que buscam fazer de cada
beneficiado um modelo de integração na ordem universal, esses textos comportam uma
parte puramente descritiva que reconstitui a carreira do morto. Mais tarde, essas
biografias não ficam restritas às capelas funerárias: são gravadas nos dorsos das estátuas
e em esteias não necessariamente relacionadas às necrópo- les. Elas refletem a evolução
da sociedade: fidelidade "humanista" no Antigo Império, individualismo refletindo o
crescimento dos poderes locais e retorno, no Médio Império, a uma fidelidade mais
atinente à adesão pessoal - o que pode atingir formas muito romanceadas: o conto de
Sinuhe, por exemplo. A partir do Novo Império, essas peças passam a apresentar maior
interesse histórico, na medida em que, embora respeitando as leis do gênero, tendem a
se livrar das limitações da fraseologia, deixando mais espaço ao indivíduo. O
movimento acentua-se no primeiro milênio antes da nossa época, chegando-se a atingir
o nível de composições semelhantes a obras filosóficas que se tornaram tratados
sapienciais, como no caso de Petosiris.
Uni serviu aos três primeiros faraós da VI dinastia. Sua carreira foi um modelo de
currículo dos funcionários, com rodos os estereótipos implicados: passagem da ad-
ministração ao exército e, após uma dotação funerária real, às grandes obras, da
exploração das pedreiras à escavação de um canal na Primeira Catarata. Tudo está
apresentado em forma literária perfeita, tornando às vezes difícil perceber a realidade
dos fatos:

"Houve um processo no harém real, em segredo, contra a esposa do rei que


era a grande favorita. Sua Majestade determinou que eu fosse julgar só, sem
a presença de qualquer vizir de Estado ou de qualquer magistrado, exceto
eu, porque eu era capaz, eu tinha sucesso (?), na estima de Sua Majestade,
porque Sua Majestade tinha confiança em mim. Redigi a ata, estando a sós
com um único assessor do Estado em Hierakômpolis, embora meu cargo
fosse o de diretor do pessoal do grande palácio. Nunca antes alguém do meu
nível ouvira um segredo do harém real, mas Sua Majestade determinou que
eu o ouvisse porque me julgou capaz, na estima de Sua Majestade mais que
qualquer outro dos seus magistrados, dos seus dignitários, dos seus
servidores" (Roccati, 1982, p. 192-193).

Essa conspiração encontra ecos no último terço do reinado: no ano do 21°


recenseamento, o rei desposa, sucessivamente, duas filhas de um nobre de Abidos,
Khui. Essas duas rainhas, que recebem ambas o nome Ankkhesenmerire - "Merire vive
para ela" -, no casamento, vão dar-lhe filhos. A primeira é mãe de Merenre e da
princesa Neit, que vai desposar seu meio-irmão Pepi II, fruto da união de Pepi I com
Ankkhesenmerire II. É ainda mais tentador ligar esse segundo casamento à conspiração,
porque dele resultaram os sucessores de Pepi I, e porque é acompanhado por uma clara
mudança na política. A aliança com a família de Khui privilegia a nobreza de Abidos
ainda mais o casamento, pois o filho de Khui, Djau, vai tornar-se, pelo menos em título,
vizir de Merenre e de Pepi II, de quem se supõe que assumiu, no início do reinado, o
papel de tutor. A escolha de uma família de Abidos corresponde, sem dúvida, ao desejo
de estreitar as relações com o Médio e o Alto Egito, cujos laços com o poder central
haviam enfraquecido e tinham um papel preponderante no trânsito das caravanas e na
navegação fluvial entre o Sul e o Norte. Essa posição explica, aliás, em parte, o poder
de províncias como a de Herakleópolis no Primeiro e no Terceiro Período
Intermediário. Pepi I pratica, igualmente, uma política de presença, fazendo executar
grandes obras nos principais santuários do Alto Egito: Dendara, Abidos, Elefantina,
Hierakômpolis, onde F. Green e J. Quinbell descobriram duas estátuas de cobre, hoje
conservadas no Museu do Cairo, representando, a maior, Pepi I em tamanho natural
(figura 30) e a outra, muito menor, Merenre, assim associado a seu pai. Ambos pisam os
Nove Arcos, ou seja, a representação estilizada das nações tradicionalmente submissas
ao Egito e que são, para a cos- mologia faraônica, aproximadamente o mesmo que os
Bárbaros significam para os gregos. Essa afirmação do poder real, igualmente percebida
no Baixo Egito através de obras no templo de Bubastis, acompanha-se de um retorno
evidente aos antigos valores: Pepi I altera seu nome de coroação, Neferzahor, para
Merirê, "o zelador de Rá". Ele edita igualmente, no ano 21, um decreto de regras e
imunidades para a cidade nascida do domínio funerário de Senefru, em Dashur. Sua
própria "cidade de pirâmide", Menefer-Pepi, implantada próximo ao templo de Ptah, na
capital, dará nome à XVIII dinastia e a toda a cidade de Mênfis.
A Expansão para o Sul
Merenre I, "O amado de Rá", filho de Pepi I, reafirma nitidamente seus la- ços com
o Alto Egito, adotando como nome de coroação Antiemzaf, "Anti é sua proteção". Anti
é um deus falcão guerreiro adorado do 10° ao 18° nomo do Alto Egito, especialmente
em Deir el-Gebrawí. O fato de que tenha subido ao trono jo- vem confirma a data tardia
do segundo casamento de Pepi I, que deixava, com suas duas esposas, herdeiros ainda
jovens quando faleceu. Merenre morre rapidamente, talvez após nove anos de reinado,
e seu meio-irmão, Pepi II sucede-lhe com 10 anos apenas. O estado inacabado da
pirâmide que fez construir perto da de seu pai, em Saqara-Sul, confirma que a morte de
Merenre foi prematura, mas é arriscado adian- tar a idade precisa: encontramos, no seu
túmulo, o corpo de um homem jovem, mas trata-se provavelmente de uma reutilização
já que, inacabada, a pirâmide oferecia um acesso fácil a saqueadores e permitia, depois,
o uso por eventuais reutilizadores.
Merenre dá continuidade à política do seu pai: no plano econômico segue ex-
plorando as minas do Sinai e, para construção da sua pirâmide, continua trabalhando
nas pedreiras da Núbia, de Elefantina e de Hatnub, onde um grafito confirma a relação
que Uni apresentou dessas campanhas, na sua autobiografia. Prossegue igualmente a
mesma linha política, ao conservar o controle do Alto Egito, cuja governança confia a
Uni. É principalmente fora do Egito que Merenre desenvolve uma atividade que faz do
seu reinado um ponto alto da VI dinastia. Na Sírio-Pales- tina. beneficia-se das
campanhas realizadas por Uni para seu pai, campanhas essas cujo sucesso valeu a Uni a
nomeação para o cargo de governador do Alto Egito:

"Sua Majestade afugentou os Aamus que-habitam-a-areia, depois que Sua


Majestade reuniu uma expedição muito numerosa de todo o Alto Egito, ao
sul de Elefantina, ao norte do nomo de Afroditópolis, do Baixo Egito, se
suas duas administrações inteiras, (...) Sua Majestade mandou-me, à testa
dessa expedição, enquanto os príncipes, enquanto os tesoureiros do rei,
enquanto os Amigos Únicos da grande residência, enquanto os chefes e os
governadores de residência do Alto e do Baixo Egito (...) estavam à testa
das tropas do Alto e do Baixo Egito, das residências e das cidades que
governavam, dos Núbios dessas regiões. Eu lhes forneci o plano (...). Esse
exército regressou em paz, após ter arrasado a terra dos Habitantes-da- -
areia. Esse exército regressou em paz, após ter derrubado suas cidades
fortificadas. Esse exército regressou em paz, após ter cortado suas figueiras
e suas parreiras. Esse exército regressou em paz, após ter jogado no fogo
todos os seus homens. Esse exército regressou em paz, após ter matado
tropas muito numerosas. Esse exército regressou em paz, [após ter trazido
de lá tropas (?)] muitos prisioneiros. Sua Majestade recompensou-me
generosamente por isto. Cinco vezes Sua Majestade mandou-me reunir a
mesma expedição e esmagar a terra dos Habitantes-da-areia, a cada revolta
contra suas tropas (...). Eu atravessava o mar com essas tropas, em barcos
adequados, e desembarcava atrás da altura da montanha que fica ao norte da
terra dos Habitantes-da-areia, enquanto a metade do corpo da expedição
seguia no caminho terrestre. Eu retrocedia após ter cercado todos, de modo
que todos os inimigos entre eles fossem mortos" (Roccati, 1982, p. 194-
195).
Figura 24-As vias de penetração egípcias em direção ao Sul, segundo J. Vercutter,
MIFAO 104,167.

É principalmente no reinado de Merenre que a política egípcia de expansão na


Núbia dá frutos. Podemos observá-lo através das inscrições deixadas pelas sucessivas
expedições a Tomas, por onde se fazia a passagem entre o Nilo e as rotas de caravanas
que permitiam contornar a Primeira Catarata, passando pelo Oásis de Dunkul, para
chegar à área de Uauat.
Merenre é testemunhado nessas regiões, assim como Pepi I, e encontramos
referências a funcionários que eles enviaram para garantir o domínio do Egito sobre
essa parte da Núbia, do norte ao sul da Terceira Catarata. A região é, sobretudo, uma
área fértil onde se desenvolve a civilização de Kerma e onde nascerá, mais tarde, a de
Kush, região essa capaz de fornecer ao Egito boa parte dos produtos exóticos que ia
buscar, igualmente, a leste do Nilo, no país de Punt. E, também, o ponto de pas- sagem
para a África subequatorial, pelo Darfur e o Kordofan. Se acreditarmos nos três grafitos
encontrados na região de Assuã, Merenre recebeu, no seu décimo ano de reinado, a
submissão dos chefes da Baixa Núbia, inclusive da terra de Uauat.
A conquista da Núbia passava pelo controle das pistas das caravanas e dos oá- sis
do deserto ocidental que elas comandavam. Horkuef, governador de Elefantina
enterrado em Qubbet el-Hawa, fez três viagens com essa finalidade. Ele conta, na
Autobiografia que ilustra a fachada de seu túmulo, como foi duas vezes à terra de Iam
"pela rota de Elefantina". Na terceira vez, porém, seguiu outro caminho:

"Sua Majestade mandou-me ainda, pela terceira vez, ir a Iam. Saí do nomo
tinita pela rota do Oásis e encontrei o governador de Iam em marcha para a
terra de Tje- meh, na direção do oeste. Fui atrás dele até a terra de Tjemeh e
o venci, de modo que ele rogou a todos os deuses pelo Soberano (...) [Desci
em Imaau (?)] que fica ao sul de Irtjet e ao fundo de Zatju, e encontrei o
governador de Irtjet, Zatju e Uauat, todos juntos numa coligação. Mas eu
desci com 300 burros carregados com incenso, ébano, óleo-hekenu, grãos-
sat, peles de panteras, presas de elefantes, bumerangues, todas essas coisas
belas, de valor, pois o governador de Irtjet, Zatju e Uauat via a força
múltipla das tropas de Iam que desciam comigo na Residência, com a
expedição enviada comigo (...)" (Roccati, 1982, p. 205).

A "rota dos Oásis", partindo do nomo tinita, dirige-se para Kharga, e segue depois
pela "pista de 40 dias", o Darb el-Arbain, até Sélima. Ela encontra, também, ao norte de
Kharga, a pista que conduz para o oeste, onde se encontram os Tjemehus. atravessando
Dakhala e Farafra. Escavações recentes do Instituto Francês de Arqueologia Oriental e
do Royal Ontario Museum confirmaram amplamente a colonização do Oásis de
Dakhala desde o início da VI dinastia, ou mesmo antes. Os habitantes do vale
chegavam á região de Balat, na entrada do oásis, perto do Darb el-Tauil, cujo
desemboque situa-se nas proximidades da cidade moderna de Manfalut. Essa coloni-
zação deu-se com a finalidade de explorar os recursos agrícolas da localidade, longe de
desprezíveis, e para controlar, também, a passagem do Sul para o Oeste e para o Norte
(Giddy, 1987, p. 206-212). Uma confirmação da função de fronteira que tinha o oásis
talvez possa ser encontrada em uma boneca rogatória, encontrada na cidade agrícola de
Balat, que lança uma maldição sobre a população de Iam (Grimal, 1985). De qualquer
forma, a abertura do Egito para a África e para o curso superior do Nilo vai continuar
durante o longo reinado de Pepi II, que foi um período brilhante para o Oásis de
Dakhala. O jovem rei, um ano apenas após subir ao trono, sucedendo a seu meio-irmão,
ficou muito impressionado pelas viagens de Harkhuf, mandando-lhe uma carta que o
cortesão não deixou de colocar em destaque na história da sua vida:

"Disseste (...) que trouxeste um pigmeu, da terra dos habitantes do horizonte


a leste, para as danças do deus, semelhante ao anão trazido da terra de Punt
pelo tesoureiro de deus Urdjededba, nos tempos do rei Izezi. Disseste à
Minha Majestade que jamais outro semelhante foi trazido por outra pessoa
que tenha percorrido antes o Iam (...). Vem imediatamente de barca até a
Residência. Deixa os outros e traz contigo vivo, são e salvo, esse anão da
terra dos habitantes do horizonte, para as danças do rei e para alegrar o
coração do rei do Alto e Baixo Egito Neferkare, viva ele eternamente. Se
ele subir contigo na barca, coloca-o cercado de homens capazes dos dois
lados da barca, para evitar que ele caia na água. Se ele dormir à noite, põe
homens capazes a dormir em torno dele, na sua cabine. Faz um controle 10
vezes cada noite. Minha Majestade deseja ver esse anão muito mais que os
produtos das pedreiras de Punt. Se chegares à Residência com esse anão
vivo, são e salvo, Minha Majestade dar-te-á uma recompensa maior que a
do tesoureiro do deus Urdjededba, nos tempos do rei Izezi (...)" (Roccati,
1982, p. 06-207).

O adulto saberá lembrar-se do deslumbre da criança, e Pepi II continuará pa-


cificando a Núbia, no que será auxiliado por um sucessor de Harkhuf, Pepinakht. vulgo
Heqaib - "Aquele que é senhor do (seu) coração" também ele enterrado em Qubbet el-
Hawa. Heqaib dirigiu uma campanha para recuperar o corpo de um funcionário morto
em missão na região de Biblos, onde devia "fazer construir um navio 'de Biblos' [ou
seja, de alto-mar?] para se dirigir a Punt". Dirigiu, ainda, duas expedições à Núbia. São
essas campanhas, tanto quanto sua gestão enérgica, que lhe valeram ser divinizado
pouco tempo após a morte. Recebeu, de fato, na ilha Elefantina um culto que se
prolongou do Primeiro ao segundo Período Intermediário. Essas divinizações, das quais
conhecemos outros exemplos, como o de Izi, em Edfu, são características do
crescimento do poder das autoridades locais que caracteriza o fim da dinastia. Podemos
acompanhá-lo, na própria Elefantina, através da história da família do nobre Mekhu,
cujo filho Sabni e o neto Mekhu II mantiveram o controle da política núbia muito após
o desaparecimento de Pepi II.
Ao Fim do Império

O aumento do poder dos responsáveis locais é um fator importante na desa-


gregação do Estado, na medida em que dá origem a verdadeiros potentados en- quanto
se alonga o reinado de Pepi II. A política externa também se torna mais pesada. Se a
manutenção da ordem na Núbia já era difícil na época de Heqaib, torna-se ainda mais
para seus sucessores, pois cresce ao sul da Terceira Catarata a civilização de Kerma e
começa a formar, com seu vizinho do Norte, o Grupo-C, um. bloco que irá resistir à
colonização egípcia até o início do segundo milênio antes de nossa era (Gracien, 1978,
p. 307-308).
Diz a tradição que Pepi II teria governado o país durante 94 anos. A data mais
antiga da qual temos conhecimento é a do 33° recenseamento, o que indicaria um
reinado assegurado de 50 a 75 anos, aproximadamente. De qualquer modo, é certo que
teve um reinado muito longo, demasiadamente longo, aos olhos do poder cres- cente
dos feudos locais que se tornaram, na maior parte, hereditários, e cujo luxo pode de ser
visto espalhando-se nas necrópoles provinciais, em Cusae, Akmim, Abi- dos, Edfu ou
Elefantina. A longevidade excepcional de Pepi II também provocou, além da esclerose
das engrenagens da administração, uma crise sucessória. A lista real de Abidos
menciona um Merenre II, que também adotou o nome Antiemzaf e que seria filho de
Pepi II e da rainha Neit:

Figura 25 - Genealogia sumária da VI dinastia: gerações 3-5.


Esse soberano, muito efêmero, pois reinou apenas um ano, seria o esposo da rainha
Nitocris, que foi, segundo Manethon, a última rainha da VI dinastia, e que o Cânone de
Turim menciona logo em seguida a Merenre II como "rei de Alto e Baixo Egito". Essa
mulher foi transformada em lenda, na época grega, tornando-se Rho- dopis, cortesã e
construtora mítica da terceira pirâmide de Gizé (LA IV 513-514). Ela foi a primeira
rainha que sabemos ter exercido o poder político no Egito (v. Beckerath, 1984, p. 58, n.
11). Infelizmente, não há qualquer testemunho arqueológico do seu reinado, nem
mesmo sabemos onde situar corretamente seu possível sucessor, Neferkare, o filho de
Ankhesen-Pepi e de Pepi II.

2700-2190 ANTIGO IMPÉRIO


2700-2625 III Dinastia
Nebka (= Sanakht ?)
Djoser
Sekhemkhet
Khaba
Neferka(re)?
Huni
2625-2510 IV Dinastia
Snefru
Queops
Djedefre
Quefren
Baefre (?)
Mikerinos
Chepseskaf
2510-2460 V Dinastia
Userkaf
Sahure
Neferirkare-Kakai
Chepseskare
Reneferef
Niuserre
Menkahuor
Djedekare-lzezi
Unas
2460-2200 VI Dinastia
Teti
Userkare
Pepi 1
Merenre 1
Pepi II
Merenre II
Nitocris
Figura 26 - Quadro cronológico das dinastias lll-VI.

A Sociedade e o Poder
Assim termina o Antigo Império: com um período confuso, durante o qual se
acelera a desagregação do poder central enquanto a situação externa torna-se tanto mais
ameaçadora quanto mais enfraquecido o poder. O aumento das particularida- des locais
gera ema competição em torno do trono que vai manifestar-se em forma de
enfrentamentos entre blocos geográficos que pretendem ter, cada qual, a única e mesma
legitimidade. Embora o conceito de poder não tenha mudado, parece menos inacessível
àqueles que, nos primeiros tempos, não poderiam pensar em conquistá-lo. Desde o
início da III dinastia, a monarquia evoluiu no plano teológi- co, acrescentando dois
novos nomes à titulação: o de Hórus de Ouro, que aparece com Djoser, e,
principalmente, o de "Filho de Rá", cujo uso vemos sistematizado desde Neferirkare. O
acesso da V dinastia ao poder mostra que o fundamento teo- crático prevalece sobre
qualquer outro, a ponto de unir estreitamente os novos reis a um clero particular. Essa
dependência, da qual encontraremos vários exemplos na história dos séculos seguintes,
contribui para reforçar a centralização do poder e para constituir uma sociedade muito
hierarquizada, desenvolvendo-se em torno do rei e da família real, cujo modelo
reencontramos na organização das necrópoles em torno da pirâmide do soberano. A
enfeudação das potências provinciais, cujo poder cresce ao longo das gerações, é obtida
com a concessão progressiva de pri- vilégios crescentes que vão reforçar a autoridade
dos poderosos locais, dando-lhes um lugar na hierarquia nacional.
Esta política traduz-se por uma inflação de títulos áulicos cobrindo antigas funções
caídas em desuso, mas conservadas pelo seu valor honorífico. O processo, ilustrado em
alto grau, mais tarde, por Luís XIV na França, é favorecido pelo aumento do volume da
administração, quer em atribuições, quer na quantidade de funcionários, repousando
essencialmente nos escribas, cujas tarefas se multi- plicam no mesmo ritmo dos
escritórios. Desenvolve-se, assim, toda uma série de funções de mando, tornando-se
difícil saber qual parte da realidade elas cobrem de fato. Um exemplo encontra-se no
título "chefe dos segredos": pode ser, sem ordem, "das missões secretas", "de todas as
ordens do rei", "das decisões judiciais", "do palácio", "das coisas que um só homem
vê", "das coisas que um só homem ouve", "da casa da adoração", "das palavras
divinas", "do rei em todos os locais", "da corte de justiça", "dos mistérios do céu" etc.
Os títulos puramente honoríficos são mais fáceis de detectar, na medida em que se
referem a cargos que não correspondem a qualquer coisa, como sabemos. E o caso do
"Amigo Único", outrora conselheiro particular do rei, tendo-se tornado uma indicação
genérica dos corte- sões, do "Chefe dos Dez do Alto Egito", da "Boca de Pe", do
"Preposto a Nekhen": todas funções puramente simbólicas. A esses títulos somam-se
aqueles diretamente ligados à pessoa do rei - os "cabeleireiros", os "porta-sandálias", os
"médicos", os "prepostos às coroas" e "outros tintureiros" - e as funções sacerdotais
ligadas a um deus local ou ao culto funerário...
No total, a imagem que emerge da administração é semelhante a uma pirâmide no
topo da qual reina o soberano que tem, em princípio, o domínio de tudo. mas que só
trata diretamente, na prática dos assuntos militares e religiosos. Para o essencial,
reporta-se ao vizir (tjaty), cujo ancestral já vimos surgir na II dinastia. Essa função é
confiada pela primeira vez no reinado de Senefru, sendo atribuída a príncipes de
sangue: a Nefermat, ao seu filho Hemiunu, em seguida, e, depois, a Kauab e a outros. O
vizir é, de certa forma, o chefe do executivo, e tem poder sobre praticamente todos os
setores: ele é o "chefe de todos trabalhos do rei", "chefe da casa das armas", "chefe das
câmaras dos paramentos do rei", "chanceler do rei do Baixo Egito" etc. Ele também é
juiz, como mostra a intervenção de Uni no caso do harém de Pepi I, mas nem todos os
casos passam obrigatoriamente por ele. Na mesma época, aparece a figura do
"Chanceler do Deus", homem de confiança escolhido diretamente pelo rei para realizar
uma missão específica: expedição às minas ou às pedreiras, viagens comerciais ao
estrangeiro, direção de um determinado monopólio real. Para desempenho da tarefa,
atribui-se ao "Chanceler do Deus", uma tropa da qual será o general ou o almirante, se
for uma frota. Sinal de enfraquecimento do poder central e de maiores necessidades da
administração, o cargo de vizir é duplicado no reinado de Pepi II, ficando um
encarregado do Alto. e o outro, do Baixo Egito.
Dependem do vizir os quatro grandes departamentos da administração, aos quais
deve ser acrescentada a administração provincial com a qual ele se comunica através
dos "chefes de missões". O primeiro departamento é o "Tesouro", ou. retomando a
separação original entre os dois reinos, conservada até o fim da civilização, o "Duplo
Celeiro", dirigido por um "chefe do Duplo Celeiro" comandado pelo vizir. O Tesouro
gerencia o conjunto da economia e, em especial, os impostos provenientes
essencialmente do segundo grande departamento: a agricultura, dividida, por sua vez,
em dois ministérios. O primeiro trata dos rebanhos - criação e engorda -, dividindo-se
novamente em duas "casas" confiadas, cada, a um sub- diretor assistido por escribas. O
segundo encarrega-se das culturas propriamente ditas: o "serviço dos campos",
presidido por um "chefe dos campos" assistido por "escribas dos campos" e o das terras
recuperadas da inundação (khentyu-che). Os títulos de propriedade são guardados pelo
terceiro departamento, o dos arquivos reais, que conserva, ainda, todos os documentos
civis, essencialmente contratos e testamentos, bem como o texto dos decretos reais que
constituem a base regulamentar consultada pelo último departamento, o da justiça,
encarregado de aplicar as leis (hepu). A importância desse último é proporcional ao seu
valor fundamental no sistema teocrático, como mostra o título atribuído, na IV dinastia
a seu titular, "o maior dos Cinco da casa de Thot" e, na V, "sacerdote de Maât"...
O parceiro do governo organizado desta forma é a administração local, que
repousa no desmembramento do país em nomos. Não conhecemos a do Baixo Egito por
ser necessariamente muito pobre a arqueologia do Delta. O essencial da documentação
diz respeito ao Médio e ao Alto Egito, mas o quadro que podemos formar dessas
regiões também vale para a outra. A administração local é, certa- mente, a que
apresenta evolução mais sensível no Antigo Império. A base encon- tra-se na mudança
do estatuto dos nomarcas que quase não são mais deslocados e que transformam, muito
rapidamente, o cargo em hereditário, de fato, quando não de direito. Vemos surgir, nas
capitais provinciais, necrópoles particulares dos príncipes nas quais ocorre com a
mesma regularidade a recondução da função de sacerdote funerário de pai para filho - o
que está conforme com a tradição - e de governador da província - o que está menos!
Na maioria dos casos, essa feudali- dade repousa na exploração econômica da região,
um dos principais encargos do nomarca, que é, antes de tudo, o administrador
encarregado da manutenção da irrigação («âdj-mer) e o conservador dos domínios
(heqa-hut).
Essa transferência de poder era impensável, na origem. Como todo o país per-
tence ao rei, por ser ele hipóstase do criador, o funcionário é devedor, ao soberano, de
um trabalho que deve fornecer em troca da manutenção de sua própria vida. Essa
situação exprime-se, em egípcio, pela palavra "imakhude difícil tradução, que significa
a relação de clientela em face do rei. Ele provê, protege e alimento, na vida como no
além: é ele que dá a seu servidor a concessão funerária e os elementos do túmulo que
esse servidor teria muitas dificuldades para conseguir pelos seus próprios meios, tais
como o sarcófago, a falsa-porta ou o altar de oferendas, e talvez as estátuas que servirão
como suporte da sua alma na existência futura. Acima de tudo, ele garante o serviço da
oferenda por meio de uma dotação funerária confirmada por uma carta de imunidades
liberando de impostos o domínio constituído pelo defunto. Esse princípio, o mesmo que
rege os domínios dos templos, traz no seu âmago um germe de destruição do Estado.
De fato, favorece a pulverização da propriedade, empobrecendo o rei, de forma
irreversível, embora quase imperceptível no início. Os lucros alcançados, graças a esse
sistema, pelos detentores de tais concessões, representam uma perda certa para a
economia, já que escapam ao sistema de redistribuição assegurado pelo Estado, mas,
isto não é o mais importante. De fato, mais grave é o mecanismo criado: esses domínios
tornam-se a base de uma feudalidade, e seus detentores procuram capturar, no seu
próprio benefício, as prerrogativas atinentes às propriedades reais.
Os quadros cujas linhas mestras apresentamos acima não vão mudar ao longo da
civilização faraônica, assim como os fundamentos da sociedade. Isto não significa que
não haverá evolução, as mudanças irão ocorrer essencialmente na relação estabelecida
entre o poder central e a base local: reforço do poder do ou dos vizires, remodelação
das circunscrições administrativas, criação de governadorias etc. A estrutura que eles
impõem à vida do país permanecerá quase inalterada, até os últimos tempos. A
hierarquia social continuará assentada nos mesmos valores, enquanto a vida quotidiana
evoluirá pouco, principalmente entre as camadas me- nos favorecidas da população. Há
muito pouca diferença entre os camponeses do Antigo Império, o suplicante do oásis
que veremos em breve e os felás que culti- vavam o trigo para Roma...
A Plástica Egípcia

A arte é o reflexo fiel dessa evolução da sociedade. Seguimos, ao longo do meio


milênio que separa Djoser de Nitocris, a adoção, pelos funcionários, de certos atributos
e modos de representação antes reservados para o rei e demais membros da família real.
É a primeira etapa de uma lenta transição que não é propriamente uma democratização,
mas uma inflação progressiva dos valores políticos. Essa passagem pode ser explicada
pelo mesmo mecanismo que deu acesso à propriedade. Os meios de produção das obras
de arte estão fora de alcance do homem comum. É impensável, no Antigo Império, que
um Senhor, por mais poderoso, possa organizar, por conta própria, uma expedição às
pedreiras para extrair e fazer entalhar o sarcófago, as ombreiras de portas ou as estátuas
necessárias para seu túmulo. Esse papel cabe ao Estado, e as oficinas onde são
esculpidas as estátuas ou gravados os baixos relevos são subordinadas ao poder central:
a arte é assunto para funcionários. Este princípio exclui, praticamente, toda pesquisa
não utilitária, e não encontramos "a arte pela arte". A imagem em relevo destacado, em
desenho ou em alto relevo, só pode ter duas finalidades, político-religiosa ou funerária.
A primeira destina-se exclusivamente ao rei; a segunda foi sendo progressivamente
conquistada pelos súditos. Desta forma os súditos tenderão a copiar a moda definida
pelo rei, apagando os traços que não podem ser transpostos. O todo permanece dentro
de um quadro preciso: a representação mais explícita possível de um indivíduo ou de
uma função. Resultam, muitas vezes, estereótipos e, de tempo em tempo, uma
surpreendente harmonia entre o realismo "à egípcia" e a sensibilidade própria do artista.
A preocupação em reproduzir a realidade em sua verdade mais profunda tende a
destruir toda subjetividade. Isto é ainda mais verdadeiro, visto que os egípcios
souberam escapar das armadilhas da percepção, decompondo, na escrita, assim como
nos relevos e nas pinturas, os seres e os objetos em seus elementos mais característicos.
Esse princípio da "combinação dos pontos de vista" tem resultados por vezes curiosos.
Na base, está a idéia de que deve ser possível identificar cada elemento sem qualquer
ambigüidade. No caso do corpo humano, por exemplo, o olho só pode ser realmente
reconhecido de frente, o nariz de perfil, assim como as orelhas, o queixo ou o crânio; os
ombros também são vistos de frente, como as mãos, os braços de perfil a bacia de três
quartos,... O corpo sofre, assim, estranhas torções que surpreendem à primeira vista. A
perspectiva também não é usada, embora certas representações bem toscas, mostrem
que era conhecida: representa-se um exército em marcha, deslocando cada fileira de
soldados em relação à outra, mostram-se duas cenas contemporâneas, dispondo-as em
dois registros superpostos. Representa-se uma casa ou um jardim em elevação e em
planta, ao mesmo tempo, ainda que seja preciso rebater para os lados os panos de muros
ou, então, as árvores que margeiam um espelho d'água. Ocorre o mesmo com a
estatuária. Já que se deseja fornecer um "corpo" habitável por toda a eternidade, é
preciso representá-lo da forma mais perfeita possível. Isto não significa que o artista se
recuse a mostrar um defeito físico. Mas, na maioria dos casos, o corpo é tratado de
forma mais idealizada do que a face, pois ela deve caracterizar o indivíduo. Dá-se o
mesmo com as atitudes. Elas representam uma função ou um estado e, em
conseqüência, são estereotipadas. O conjunto resul- ta em uma produção bastante
uniforme, caracterizada por uma grande preocupação com o detalhe e por variações de
estilo tão ínfimas que seria muito difícil distinguir a personalidade de artistas. Estes
absolutamente não procuravam se singularizar, pois suas obras eram anônimas por
definição. Essa criação coletiva continuará sen- so a regra durante toda a civilização,
tanto nas artes plásticas quanto na literatura, com o indivíduo buscando fundir-se,
sempre, na comunidade universal.
A Estatuária

A técnica da escultura é conhecida graças às cenas que decoram os muros das


mastabas e, também, pela descoberta, por G. Reisner, no conjunto funerário de Mi-
kerinos, de um ateliê onde foram encontradas obras que iam de simples esboços até um
acabamento quase completo, permitindo reconstituir as etapas da criação e os meios
empregados. Primeiro, o bloco é destacado, na pedreira, aplicando-se uma técnica que
depende da dureza da pedra: corte direto com cinzel, no caso de rochas mais brandas,
ou, no caso de rochas duras, usando-se cunhas de madeira inseridas aos poucos em
ranhuras e molhadas para causarem, ao inchar, a fratura regular do bloco. Uma vez
extraído, o bloco é desbastado no próprio local e transportado para o ateliè, onde recebe
uma primeira configuração com os limites da futura estátua. Em seguida, os contornos
vão sendo acertados progressivamente, principalmente os da cabeça. Começa, em
seguida, uma lenta afinação, até ser obtido o modelo definitivo Destacam-se depois do
corpo, o máximo possível, os braços e as pernas. Por fim, a estátua é polida e gravada.
O ferramental usado pelos artistas é basicamente lítico.
Compõe-se de formões de sílex, polidores, perfuradores, pastas abrasivas, martelos e
cinzéis. Também se encontram serras de cobre, mais raras. As estátuas são esculpidas
quer em calcário ou em arenito - e, nesse caso, são pintadas na maioria dos casos - quer
em sienito, em quartzitos ou em xistos; o alabastro é menos usado na estatuária que na
confecção de vasos. Vemos surgir, ainda, estátuas de madeira, que só se tornarão
freqüentes mais tarde, e também de cobre, cujos exemplares mais célebres,
representando Pepsi I e Merenre estão conservados no Museu do Cairo (figura 30).
As atitudes são determinadas pela função. Desde os primeiros tempos. O rei é
reapresentado sentado em um torno cúbico bem maciço cujos lados são ornamentos
com o sema-taui, um entrelaçamento de plantas emblemáticas do Alto e do Baixo Egito
ligadas de cada lado de um vaso arterial. Ele está vestido com um saiote chendjit e
ostenta, na sua cabeça, as insígnias do poder: coroas ou nemes e barba postiça. Nessa
atitude, o rei é representado geralmente só; quando acompanhado de sua esposa, ela
fica sentada a seus pés, como Heteferes II (?) aos pés de Djedefre, no fragmento do
Louvre proveniente de Abu Roach (E 12627 = Vandier: 1958. PL II, 1). Grupos são
mais raros: conhecemos principalmente os de Mike rinos na companhia de sua esposa
(Boston 11.738) ou nas tríades provenientes de Gizé (Vandier, 1958, pl. IV-V).
Observa-se uma evolução nas atitudes, após a IV dinastia. Será ela devida à nova
relação criada entre a ideologia teocrática e a realidade do poder político? É um pouco
arriscada essa afirmação, mas devemos constatar que o rei pode ser mostrado
celebrando o culto. O Museu do Brooklyn possui uma estátua em xisto de Pepi I
sentado sobre seus calcanhares e ofertando dois vasos de vinho (figura 32). Outra
novidade, trazida pela VI dinastia, são as estátuas representando o rei ainda criança
como, por exemplo, o Pepi II de alabastro do Museu do Cairo (JE 50616). Esta
inovação deve ser atribuída, provavelmente, à baixa idade do rei ao ascender ao trono.
Significativa da adaptação da fraseologia à realidade política, essa novidade pode ser
vista nos grupos que mostram Pepi II sentado no colo da sua mãe, dos quais o Museu
do Brooklyn possui um exemplar. Esses grupos são geralmente esculpidos em
alabastro, talvez por causa do tema ligado à primeira infância e ao aleitamento
lembrado pelo aspecto leitoso dessa pedra. A associação de Ankhesenmerire II e do seu
filho - representado não com os traços de uma criança, mas como um faraó adulto em
tamanho reduzido - afirma a transmissão do poder de Pepi I a Pepi II através da
regente.

Figura 27 - Estátua de Djoser proveniente do serdab do seu templo funerário em


Saqara.
Calcário pintado. H = l,35m, Cairo, Museu Egípcio.
Figura 28 - Quefren protegido por Hórus. Estátua proveniente de um
templo de acolhimento do seu complexo funerário em Gizé.
Diorito. H = 1,68171. CGC 14.
Figura 29 - Mikerinos, Hathor e o nomo de Dióspolis. Tríade proveniente do templo de
acolhimento de Mikerinos em Gizé. Xisto, H = 0,97m. Cairo JE46499.
Figura 30 - Pepi I e Merenre de pé. Cobre (detalhe: Pepi I). H = 1,77171 e 0,70m.
Cairo JE 33034 e 33035.
Figura 31 - Pepi II no colo de Ankhesenmerire II. Grupo proveniente provavelmente de
Saqara. Alabastro. H = 0,39m. Museu do Brooklyn 39.119.

Figura 32 - Pepi I ajoelhado, ofertando vasos de vinho. Xisto, H = 0,15m. Museu do


Brooklyn 39.121.
Figura 33 - Rahotep e Nefret sentados. Estátuas provenientes do seu túmulo em
Meidum. Calcário pintado. H = l,20m. CGC 3 e 4.
Figura 34 - Hemiunu sentado. Estátua proveniente do seu túmulo em Gizé. H =
1,57171. Pelizaeus Museum, Hildesheim.
Figura 35 - (a) Escriba agachado proveniente de Saqara. Calcário pintado. H = 0,53m.
Louvre N 2290. (b) detalhe do rosto.
As atitudes novas, em particular a sugestão dos laços familiares, aproximam-se de
temas já representados na estatuária privada que, distanciando-se das atitudes reais
oficiais, usa seus próprios registros. Também ela passa por uma evolução, por volta do
fim da IV dinastia: o estilo afasta-se um pouco da perfeição encontrada no grupo de
Rahotep e de Nefret ou em Hemiunu. As obras civis, que já eram mais numerosas que
as estátuas reais, multiplicam-se nas V e VI dinastias e tendem a fugir dos cânones
clássicos, o que não significa menor qualidade, como atesta o es- críba do Louvre. Elas
não abandonam, tampouco, as atitudes convencionais: per- sonagens de pé ou sentados,
representados com seus atributos funcionais, grupos familiares etc. Há, porém, maior
liberdade de tom e certa preocupação de realismo que se aproxima da estatuária real
contemporânea: as obras da VI dinastia desen- volvem uma sensibilidade que já se
percebia na V, dando importância maior ao realismo. Podemos pensar, aqui, no anão
Seneb ou na bela estátua de Niankhre.
Desde a IV dinastia, existiu, a par da estatuária em pedra, uma tradição de trabalho
em madeira que produziu algumas das maiores obras-primas do Antigo Império: a
estátua de Kaâper tem um ar tão real que os operários de A. Mariette, achando-lhe uma
notável semelhante com o chefe de sua aldeia, apelidaram-na de sheik el-beled, ou
ainda, o grupo formado por um funcionário menfita e sua esposa, conservado no
Louvre. Essa corrente abre caminho para uma forma nova que se desenvolverá no
Primeiro Período Intermediário: os "modelos" que são uma representação em volumes
das cenas exibidas nos baixos-relevos, cujos primeiros exemplares, em argila ou em
pedra pintada, têm um realismo surpreendente.
Relevos e Pinturas

A realização de relevos e de pinturas vale-se de um processo semelhante ao que foi


usado nas estátuas. Nas mastabas, o relevo é executado diretamente na parede de
calcário fino, rebocada e alisada. Uma primeira equipe faz o quadriculado da parede,
que servirá para localizar as cenas que se quer representar. Os contornos das cenas são
marcados, nos mínimos detalhes, sem esquecer os hieróglifos das legendas que devem
acompanhá-las. Por fim, vem o baixo-relevo propriamente dito. As imagens não são
escavadas, enquanto o fundo é inteiramente rebaixado. Essa técnica evolui a partir de
Queops, na direção lógica: no lugar do fundo rebaixado, traça-se apenas o contorno das
figuras, fazendo-se uma incisão com profundidade suficiente para criar uma ilusão de
"relevo em fundo". Em seguida, são cavados os detalhes das figuras e do fundo. O
verdadeiro relevo em fundo que consiste em gravar no interior de um contorno
rebaixado é usado quase só para as inscrições hieroglíficas, quer nos monumentos, quer
nas estátuas ou nas esteias. Uma nova técnica surge da modificação do próprio túmulo:
com os hipogeus - túmulos escavados no solo - muda a natureza da parede que serve de
suporte para a representação, é preciso levar em conta a irregularidade do material de
base, menos homogêneo que o calcário fino. A superfície da parede deve ser
regularizada por meio de gesso ou. de forma mais simples, com uma camada de mouna
- uma mistura de argila com palha ou areia, usada até hoje tanto pelos oleiros quanto
pelos pedreiros - sobre a qual a pintura é feita diretamente "a tempera", usando-se
matérias animais calcinadas para o preto, ocra para o vermelho ou amarelo, azurita e
malaquita misturadas e moídas para o azul e o verde. Os temas reúnem todas as cenas
capazes de relembrar a vida terrestre ou os funerais do morto.
Figura 36-0 anão Seneb, sua esposa e seus filhos. Grupo proveniente de Gizé.
Calcário pintado. H = 0;33m. Cairo JE 51281.
Figura 37 - Niankhre sentado. Estátua proveniente de Gizé. Calcário pintado. H =
0,70171. Cairo, Museu Egípcio.
Figura 38- Kaper. Estátua proveniente de Saqara (Detalhe da cabeça). Madeira. H =
l,09m. CGC 34.
Figura 39 - Funcionário menfita e sua esposa (Detalhe). Madeira. H = 0,69m. Louvre
2293.
Figura 40 - Mulher fazendo brassagem. Estatueta proveniente de Gizé. Calcário pintado.
H = 0,26m. Cairo, Museu Egípcio.

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