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Gerhard Ebeling

O PENSAMENTO DE LUTERO

Uma introdução

Tradução de Helberto Michel

1988
Traduzido do original alemão "Luther. Einfiihrung in sein Denken", 4. ed.
revista, 1981.
(c) Gerhard Ebeling/J. C. B. Mohr (Paul Siebeck) Tübingen 1964. Uni-
Taschenbücher 1090.

Direitos da versão portuguesa reservados à


Editora Sinodal, 1986
Rua Epifânio Fogaça, 467
93030 - São Leopoldo - RS
Brasil

Revisão: Luís Marcos Sander Série: Estudos


sobre Lutero — 8

Publicado sob coordenação do Fundo de Publicações Teológicas da Escola


Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil,
São Leopoldo.

Capa: Marne

ISBN: 85-233-0165-8 Impressão: Editora

Sinodal
Sumário
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA...................................................................4

PREFÁCIO............................................................................................................6

I.............................................................................................................................9
LUTERO COMO ACONTECIMENTO LINGUÍSTICO..........................................9

II..........................................................................................................................22
A PESSOA DE LUTERO....................................................................................22

III.........................................................................................................................37
A PALAVRA DE LUTERO..................................................................................37

IV.........................................................................................................................53
A AÇÃO DE LUTERO.........................................................................................53

V..........................................................................................................................69
FILOSOFIA E TEOLOGIA..................................................................................69

VI.........................................................................................................................84
LETRA E ESPÍRITO...........................................................................................84

VII......................................................................................................................100
LEI E EVANGELHO..........................................................................................100

VIII.....................................................................................................................112
O DUPLO USO DA LEI.....................................................................................112

IX.......................................................................................................................126
PESSOA E OBRA.............................................................................................126

X........................................................................................................................142
FÉ E AMOR......................................................................................................142

XI.......................................................................................................................158
REINO DE CRISTO E REINO DO MUNDO.....................................................158
XII......................................................................................................................175
PESSOA CRISTÃ E PESSOA DO MUNDO....................................................175

XIII.....................................................................................................................191
LIBERDADE E CATIVEIRO..............................................................................191

XIV....................................................................................................................207
DEUS OCULTO E REVELADO........................................................................207

COMO LUTERO FALA DE DEUS....................................................................223


PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Passados 25 anos desde seu surgimento, existem já versões deste livro


em inglês, italiano, norueguês e francês, além do original alemão. Também uma
tradução para o japonês e uma para o tcheco estão em andamento atualmente. É
com prazer, pois, que, atendendo ao pedido que me foi feito, doto o livro de um
prefácio para seu caminho à América Latina, em língua portuguesa. Afinal, é
pela primeira vez que ele entra no âmbito do assim chamado Terceiro Mundo,
com suas próprias tradições e graves problemas.
No entanto, não é tarefa do autor escrever uma carta de recomendação,
principalmente quando não conhece de primeira mão as condições em que o
livro encontra um novo contexto. O texto do livro tem que falar por si mesmo.
Ele não quer comunicar outra coisa do que a experiência intelectual da qual
nasceu: a penetração no pensamento de Lutero.
Vou abrir mão de considerações genéricas sobre o possível significado
do confronto com o pensamento de Lutero numa situação cultural, religiosa e
social muito distante da Reforma e de seus efeitos, e optar por uma
manifestação pessoal: quando me perguntam o que Lutero significa para mim,
confesso que, em toda a história da Igreja, não conheço outro pensador que
tenha se ocupado tão intensivamente com o tema da Sagrada Escritura e da fé
cristã, esteja tão familiarizado com ele e o torne tão próximo da gente como
Lutero. Seu arrebatamento por esse tema se transmite a quem se envolve com
ele. Como mero preconceito, porém, tal afirmação teria pouco valor. Ela tem
que ser comprovada pelo que acontece quando se lida com Lutero: se daí
resulta algo que ilumina a vida e lhe confere certeza; se, ao invés de vinculação
partidarista a um ser humano, ocorre aí uma libertação que, em nome de Jesus
Cristo, habilite a pessoa a formar juízos e a torne emancipada — a libertação
para uma fé que vence o mundo por estar sustentada pelo amor de Deus ao
mundo.
Tal voltar-se para as coisas elementares, porém, é algo exigente. Nas
palavras de Dietrich Bonhoeffer, é preciso deixar-se jogar até os inícios da
compreensão. Certamente não é fácil experi mentar e sofrer isso na
própria pele. Contudo, faz com que a vida valha a pena ser vivida na
medida em que, graças a tal reflexão sobre as coisas mais necessárias
para a vida, também em benefício de outros, se combatem a crescente
falta de orientação, os elemen tos caóticos existentes na humanidade.
Sob esse ângulo, o passo que leva do mundo em que Lutero viveu
e atuou para o mundo atual, em que este livro pretende contribuir para
um melhor conhecimento de Lutero, não é tão gran de assim. Neste
sentido, destaco apenas três aspectos.
Se nos aflige o grande distanciamento de nosso mundo em relação
a Deus, essa transposição para o elementar é a única manei ra de
corresponder à tarefa que daí se origina.
Se nos afligem o dilaceramento da cristandade, o desejo de
superação ecumênica desse mal, o próprio aprofundamento na verdade
fundamental do cristianismo e a defesa pública dele são o único meio
promissor de se chegar ao entendimento, mesmo que disso resultem mais
tensões ainda.
E se nos aflige a miséria material com todas as suas causas e
consequências políticas, sociais e psíquicas, voltar-se para a liberdade
da pessoa cristã constitui o passo decisivo na luta pela liberdade que nos
falta, para que essa luta seja travada correta mente e a liberdade que nela
se empenha ou se conquista não seja abusada, acarretando a perda da
verdadeira liberdade.
Tenho certeza de que ocupar-se com Lutero é útil em meio a tais
aflições.

Zurique, 10 de agosto de 1988


Gerhard Ebeling
PREFÁCIO

A presente tentativa duma introdução ao pensamento de Lutero não


pressupõe conhecimentos especializados, mas a dis posição de empenhar
o raciocínio. Em vez de popularizar, explo rando para isso, sobretudo, os
marcantes traços biográficos — talvez seja culpa precisamente desta
maneira de retratar Lutero o fato de que entre as pessoas cultas de hoje
ele está esquecido — assumo a tarefa mais difícil, por certo também sob
o aspecto teológico, de perseguir a constante tensão no seu raciocínio,
que parece pender entre decidida confrontação e compromisso
tranquilizante, entre o ou/ou e o tanto/quanto. Com um detalhe: parece-
me que sua exigente atualidade se evidencia não pela compilação de
algumas ideias interessantes ou através duma descrição global da
teologia de Lutero, mas pela concentração no centro deste raciocínio.
O que se segue foi apresentado a ouvintes de todas as faculdades
da Universidade de Zurique, no semestre de inverno de 1962/63 e, em
parte, também como "Public Lectures" na Drew University em Madison,
EUA, no outono de 1963. Foi incluída uma palestra que foi apresentada,
originalmente, em 10.12.62 no decurso dum ciclo de palestras
promovido pela Goethe-Ge- sellschaft em Wiesbaden, versando sobre o
tema "Der Gottesgedanke im Abendland" 3 e também publicada na
coletânea com o mesmo título editada por Kohlhammer, Stuttgart.
Agradeço à editora pela permissão de republicação.
Foi mantido o estilo de preleção. Queira isso explicar ambas as
coisas: que em certos trechos houve muitas citações, mas com vistas ao
todo houve citações de menos. Dispensei por completo abonações
adicionais. As indicações de fontes são feitas de acordo com a edição
crítica das obras completas de Lutero: Kritische Gesamtausgabe der Werke D.
Martin Luthers (Weimar 1883ss.) No caso do corpo dos escritos de Lutero,
a abreviação WA foi omitida, por ser supérflua. Apenas as citações dos
3
N. do T.: " A i dei a de Deus no Oci dent e" .
segmentos correspondência (WA Br), comentários à mesa (WA TR) e
Bíblia Alemã (WA DB) estão devidamente identificadas. O ano de
origem da respectiva manifestação está entre parênteses, e, no caso de
cartas, a data exata. Por causa dos estudantes, as citações foram
indicadas, na medida do possível, também conforme a edição de Bonn
(Luthers Werke in Auswahí, editada por O. Cle- men, abreviação: BoA).
Duma indicação de outras edições de textos selecionados de Lutero, a
que o leitor leigo tem acesso mais fácil, tive que desistir por razões
técnicas, já que, em regra, só o pesqui sador tem mais interesse na
referência de fontes. De resto, chamo a atenção para a útil chave de
referência às edições de Lutero contida em: Kurt Aland, Hilfsbuch zum
Lutherstudium, Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1957.
Enquanto as citações de origem latina são apresentadas em
tradução própria, o alemão de Lutero foi cautelosamente modernizado.
Se em tudo isso me vali, ocasionalmente, de suges tões alheias, isso não
pôde ser mencionado expressamente, como também me abstive quase
que por completo de referências à literatura. Devo deixar que os
conhecedores do assunto consta tem eventuais dependências ou
divergências de outros estudio sos de Lutero; só posso assegurar, de
forma genérica, que devo agradecer a muitos. Quem sentir falta de
referências bibliográ ficas, queira recorrer aos artigos "Luther, Martin, I.
Leben und Schriíten" (de Heinrich Bornkamm) e "II. Theologie" (de
minha autoria), in: Kurt Galling, ed., Die Religion in Geschichte und
Gegenwart; Handwõrterbuch für Theologie und Religionswissenschaft, 3.
ed., Tübigen, J. C. B. Mohr, 1960, v. IV. Quem estiver à procura duma
primeira orientação biográfica e de fontes, pode recorrer a Franz Lau,
Luther, Walter de Gruyter, Berlin, 1959 4 , e Heinrich Fausel, D. Martin
Luther; der Reformator im Kampf um Evangelium und Kirche; sein
Werden und Wirken im Spiegel eigener Zeugnisse, Stuttgart, Calver,
1955.

4
N. do E.: P ubli cado pel a Edit ora S i nodal sob o tí t ul o Lutero, 3a. edi ção, 1982.
Na revisão tive o auxílio dos senhores Dr. Wilfrid Wer- beck,
Tübingen, e assistente Karl-Heinz zur Mühlen — deste, também, na
elaboração dos índices. A ambos meus sinceros agra decimentos.

Zurique, julho de 1964


Gerhard Ebeling
I
LUTERO COMO ACONTECIMENTO LINGUÍSTICO

Preleções para alunos de todas as faculdades constituem um teste


para a Universidade e nossa integração nela. Quer se parta do conteúdo
originalmente pessoal de "universidade", da universitas magistrorum et
scholarium, da comunidade de docentes e discentes sem limitação de
ordem social e nacional no local do studium litterarum5 , quer se endosse a
moderna reinterpretação de universitas litterarum, para a qual a ideia da
totalidade das ciências é determinante — em preleções para alunos de
todas as faculdades reivindica-se, de qualquer forma, a possibilidade de
que se evidencie algo da universitas6 , também sem as limita ções de
Faculdade, e não só em termos de organização ou numa ocasião festiva,
mas nas lides diárias de estudo, graças à identifi cação no que diz
respeito ao objeto.
A pretensão de conseguir interesse generalizado não se baseia no
caráter genérico dum tema que estivesse além da competência de uma
única Faculdade — na realidade, aqui uma determinada Faculdade se
dirige às demais; tampouco baseia-se apenas numa linguagem
formalmente popular e amplamente acessível, ainda que seja necessário
dispensar, o mais possível, a terminologia científica — já esta
necessidade de tradução é um teste salutar da compreensão própria. A
verdadeira justifi cação duma preleção para estudantes de todas as
faculdades consiste, antes, em fazer valer como assunto que diz respeito
a todas as faculdades aquilo que é tratado numa delas. É verdade que,
sob essa ótica, costuma-se procurar por um tema apropria do, mas tão-
somente para nele explicar, de modo exemplar, o trabalho da respectiva
Faculdade como sendo do interesse de todas. Para a Universidade, é um
teste em duplo sentido: se nos deixamos envolver por aquilo que nos diz
5
N. do T.: Est udo das ci ênci as.
6
N. do T.: Uni versal i dade, t ot al i dade, conj unt o.
respeito, apesar de não ser de nossa área; e, sobretudo, se estamos em
condições de defender a tarefa que nos incumbe perante o foro da
Universidade como atividade pertinente a ela.
Ciências há que exigem tamanho conhecimento especiali zado e
intimidade com a terminologia que é difícil propiciar a participação de
quem não é especialista, apesar da inevitável participação deste nos
efeitos da respectiva pesquisa. Com a Teologia, a situação parece ser
inversa. É verdade que também ela tem, em menor ou maior grau, sua
terminologia específica. Mas, no cômputo geral, ao menos no que se
refere ao vocabu lário, ela usa uma linguagem não de todo desconhecida
dos que não são teólogos. O que faz com que a linguagem da teologia,
mesmo assim, pareça difícil ou até incompreensível é a impressão de não
ter acesso ao assunto da teologia, de não poder reconhecer nela, em todo
caso, algo que se imponha a cada um como real. Daí a impressão de que
o caráter científico da teologia é discutí vel e, consequentemente, além
da sua integração na Universidade, também a pretensão duma preleção
teológica para estudantes de todas as faculdades.
A Universidade, como instituição, vem de uma época em que o
primado da Teologia, abrangendo e dominando todas as faculdades, era
postulado indiscutível. Disso ainda resta, hoje em dia, em muitos
lugares, uma primazia honorífica da Faculda de de Teologia, mas sem
consenso quanto ao mérito, apenas por consideração histórica. A ideia de
um sistema científico de abrangência universal é igualmente duvidosa a
nossa época, não importando se a tentativa desta concepção inclua ou
exclua a teologia. O que isso significa para a Universidade como um
todo e para a autocompreensão de uma Faculdade de Teologia em
particular, agora só podemos dizer de forma genérica: a convivência das
diferentes faculdades, inclusive da de Teologia, justifica-se como
desafio para recíproca responsabilidade. Ora, se o impulso mais
profundo da ciência é o raciocínio responsável, então uma preleção para
estudantes de todas as faculdades não significa renúncia à cientificidade,
mas precisamente o propósito de assumir a tarefa da ciência, num
sentido profundo, como disposição para a responsabilidade pública.
Não é por acaso que esta reflexão introdutória sobre o tipo de
preleção tem pontos comuns com o nosso tema. A figura de Martinho
Lutero dá motivo especial de refletir sobre a Univer sidade como lugar
primordial de sua existência. Entre as muitas imagens que se faz da sua
pessoa: do monge que fora, do prega dor, do escritor, do reformador da
Igreja, do líder intelectual dum movimento popular de dimensão
continental, facilmente se esquece que ele não era, além disso ainda,
professor universi tário. Pelo contrário, todas essas outras coisas estavam
intimamente ligadas ao seu mandato na Universidade, mandato esse que
expressava seu caráter compromissivo no título de doutor, raro na época,
e que nem todos os professores acadêmicos obtinham.

Como estudante cheio de esperanças, que havia concluído com


sucesso seus estudos básicos na Faculdade de Artes com o grau de
magister artium7 e que, a pedido do pai, se havia voltado para o estudo da
Jurisprudência, abandonou repentina mente a Universidade. Seu ingresso
no convento, no entanto — isso não fora planejado previamente — só
trouxe uma transitória interrupção de sua carreira universitária. Os
superiores de sua Ordem designaram-no para o estudo da Teologia e,
finalmente, apesar de sua veemente resistência, para assumir a Lectura in
Bibliam8 em Wittenberg, cadeira esta que era provida pela Ordem dos
Agostinianos Eremitas.

Eu (...), Doutor Martinho, fui chamado e forçado a ser doutor


contra minha vontade, por pura obediência; desta maneira tive que
assumir a função de doutor e prometer e jurar que pregaria e
ensinaria as minhas sobremodo estimadas Sagradas Escrituras com
fidelidade e pureza. 9

7
N. do T.: Mestre em Artes.
8
N. do T.: Preleção, aula sobre a Bíblia.
9
30/ 111,386,14-7 (1531).
Este retrospecto, 20 anos depois da investidura na cátedra, difi cilmente
exagerou a circunstância da compulsão, mas certamente esclareceu a
nebulosa noção passada do imprevisível fardo de responsabilidade que,
entrementes, experimentara em abundân cia. "Durante tal atividade
docente", continua ele, "perdi o papa do." 10 Em outras palavras: um
mundo inteiro lhe ruiu.
Ainda não é hora de tentar explorar a profundidade dessa
constatação. Em todo caso, está claro que a docência acadêmica, pelo
caráter da própria causa intimamente ligada ao ministério da pregação,
foi o ponto de partida e continuou sendo a base de sustentação que
forçou e habilitou Lutero para o aconteci mento transformador que, de
forma pouco apropriada, se costu ma chamar de "Reforma". Quando não
se atenta para essa rigo rosa relação com o mandato de professor
universitário, forçosa mente se interpreta mal o verdadeiro cerne e
sentido do aconteci mento da Reforma e se desfigura a imagem do
reformador. Todas as marcantes atividades desse homem, como lutador e
testemunha, como publicista e polemista rude, como homem de Igreja e
educador do povo, só adquirem seus contornos precisos quando nelas
vermos em ação o doutor das Sagradas Escrituras, cuja palavra emana da
mais rigorosa concentração intelectual — pode-se comprovar isso na sua
grafia de erudito — e cuja ação nada mais é do que a permanência na
conscienciosa respon sabilidade por sua palavra. O doutorado, que o
empurrou para um caminho no qual se tornaria o foco da história
universal, tornou-se por isso, ao mesmo tempo, apoio decisivo na
terrível tribulação causada pela pergunta quanto a que o estaria legiti -
mando para uma atividade tão revolucionária e a como poderia justificar
as consequências de seu ensino. Pois, "se Deus não te incumbe duma
tarefa, quem és tu, idiota, para ousar assumi-la? (...) A certeza do
mandato divino faz parte de uma boa obra." 11 Essa certeza de mandato
Lutero hauria do sóbrio fato de sua incumbência acadêmica, que lhe

10
30/ 111,386,17-387,1 (1531).
11
30/ 111,385,17-386,3 (1531).
dava o direito e o dever de falar, mesmo contra seu voto monástico e o
dever de obediên cia perante a hierarquia eclesiástica.

Já disse muitas vezes e o repito: não troco os bens deste mundo


pelo meu doutorado. Pois por fim eu certamente haveria de desani -
mar e desesperar nessa grande e difícil causa que está sobre os
meus ombros, se eu a tivesse iniciado como intrometido, sem
mandato e incumbência. Mas agora Deus e o mundo todo são
testemunhas de que, no meu ofício de doutor e no meu ministério
de pregação, eu iniciei minha atividade publicamente e a conduzi
até aqui com a graça e ajuda de Deus. 4

É preciso deter-se mais um pouco nessa relação de Lutero com a


Universidade. Não é exagero afirmar: nunca, na história das
universidades, o mundo foi tão direta e amplamente atingido e
modificado pela atividade conjugada de escritório e sala de aula. Se a
Universidade quer refletir sobre as suas potencia lidades máximas, ela é
remetida a Lutero. Já nas questões preli minares topa-se com sintomas
dignos de registro, geralmente esquecidos por causa da turbulência dos
acontecimentos da Re forma.
Wittenberg ainda era uma Universidade bem jovem e sem projeção
quando Lutero assumiu a cátedra. O príncipe-eleitor da Saxônia,
Frederico, o Sábio, a criara 10 anos antes, sobretudo por motivos de
rivalidade dinástica, num lugar cujas precárias condições externas não
podiam concorrer com as grandes Uni versidades já ricas em tradição,
como as de Viena, Heidelberg, Colônia, Erfurt, Leipzig e outras. No
entanto, poucos anos após o início da atividade docente de Lutero, o
número de estudantes aumentou vertiginosamente — um acontecimento
dramático, do qual se tem viva impressão pelas manifestações
registradas em cartas 12 . Em 1519 Lutero relata que o número de
12
P ara o que se segue: WA B r 1.404, n°. 179, 15-8 (22.5.1519): 1,407, n° 181, 9s.
(24.5.1519); 1,408, n° 182, l l ss. (30.5.1519); WA B r 2,96, n: 283, 8s. (1.5.1520);
2,98, n? 284, 15s. (5.5.1520). Out ras refe rên ci as: K. ALAND, Di e Theol ogi scbe
estudantes esta va aumentando desmesuradamente, como uma enchente,
excedendo todas as possibilidades de acomodação. Muitos têm que
voltar, lê-se em 1520. Dispomos também de alguns dados numé ricos.
Espalatino, o encarregado do príncipe-eleitor, já constata em fim de
1518 uma frequência de 400 alunos na aula de Melanchthon sobre a
cultura grega; dois anos mais tarde ele os avalia em 500 a 600. A
composição é internacional; além das diversas províncias alemãs, bem
logo já estão representadas a Suíça, a Polônia e a Boêmia, e mais tarde
praticamente todas as nações europeias. Em 1520 Wittenberg superou
em muito todas as ou tras universidades alemãs. Por várias décadas ela
é, de longe, a Universidade mais importante.
Acresce-se a isso uma outra coisa. Os lances iniciais do
movimento iniciado por Lutero foram vivenciados pelos pró prios
envolvidos como uma reforma universitária, como reestruturação do
ensino acadêmico, como o despertar de um novo espírito acadêmico.
Lutero escreve na primavera de 1517, antes, portanto, que a avalanche
dos acontecimentos externos da Re forma fosse desencadeada pela
contenda sobre a indulgência:

Nossa teologia e Sto. Agostinho progridem bem e dominam na


nossa Universidade graças à ação de Deus. Aristóteles aos poucos
está afundando e se encaminha para o seu desaparecimento
próximo e definitivo. As aulas sobre as Sentenças são desprezadas
de forma impressionante; só pode esperar ter alunos quem se
dispõe a tratar dessa teologia, isto é, da Bíblia, de Sto. Agostinho
ou de algum outro mestre comprovado da Igreja. 13

F akult át Wi t t enberg und i hre St cl l ung i m Gesam t zusam m enhang der Leucorea
wãhrend des 16. Jahrhundert s, in: 450 Jahre Martin Luther Vnivcrsitãt Ha/le-Wittenberg 1
(1952), p. 155ss., especi al m ent e 169s.
13
WA B r 1,99, n°. 41, 8- 13 (18.5.1517) = B oA 2 6,5,7-12.
Ao seu antigo professor Jodokus Trutfetter, de Erfurt, Lutero
escreve um ano depois:

Estou decididamente convicto de que não será possível reformar a


Igreja se não forem extirpados, a partir da raiz, os cânones, as
decretais, a teologia escolástica, a filosofia e a lógica como agora
são tratados, e substituídos por outras disciplinas. E nessa
convicção vou tão longe que peço diariamente ao Senhor que o
faça acontecer já, para que se restabeleça o estudo totalmente
purificado da Bíblia e dos santos pais. 14

Todo o transcurso da Reforma, dali em diante, foi acompanhado de


medidas altamente significativas visando a reforma do currí culo e da
Universidade. Evidentemente, é apenas um aspecto parcial mas de muita
relevância, se consideramos a Reforma como uma incisiva guinada na
história da Universidade e, a partir daí, na história da formação em
geral.
Desta maneira certamente não faltam aspectos que justi ficam
interpelar a Universidade como um todo com vistas ao seu interesse em
Lutero, ainda mais que da pesquisa sobre ele participam, além de
teólogos, também historiadores, germanistas, filósofos e estudiosos da
história do direito. Entretanto, não queremos voltar nossa atenção a
essas variadas irradiações, mas ao âmago mais interior que as provocou.
Por mais que o conhecimento de Lutero faça parte, indis -
cutivelmente, da cultura geral, essa noção se restringe, via de regra, a
alguns poucos lugares-comuns, sem que se tenha pene trado nos
verdadeiros nexos do seu pensamento. Quando se considera a mudança
que o mundo sofreu por Lutero e que, talvez, mais do que as notórias, as
consequências ocultas de sua aparição são determinantes para nós, o
número reduzido de pessoas cultas que o conhecem, o estudam e se
ocupam com ele, é vergonhosamente desproporcional. A rigor, poder-se-
14
WA B r 1,170, n°. 74, 33-8 (9.5.1518).
ia falar de um esquecimento de Lutero. O progresso que a pesquisa
sobre Lutero teve nas últimas décadas sequer beneficiou a teolo gia na
medida que seria de esperar. Entre o público geral da Igreja mais se
oculta a incompreensão a respeito de Lutero do que se conserva o
verdadeiro conhecimento dele com alguns cha vões mal compreendidos
como "justificação somente pela fé" ou "sacerdócio geral", e com ideias
padronizadas e român ticas como as "marteladas na porta da igreja do
castelo de Wit tenberg" ou a queima da bula com a ameaça de
excomunhão e coisas semelhantes. O que nos dá o que pensar,
especialmente aqui, diante da comunidade universitária, é o seguinte:
por que nas discussões intelectuais dos nossos dias, como se delineiam
sobretudo no trabalho da filosofia, dentre os pensadores teoló gicos do
passado Agostinho, Tomás de Aquino ou Kierkegaard granjearam bem
mais atenção do que Lutero?
Parece que isso nem sempre foi assim. A constante tentati va duma
assimilação intelectual do fenômeno Lutero atravessa os séculos desde a
Reforma. Temos para isso testemunhos em abundância que, selecionados
e interpretados em diversos traba lhos mais recentes, são acessíveis
hoje 15 . Nessa história da inter pretação de Lutero — inclusive a da
descrição de Lutero paralela àquela — esboça-se a própria história do
intelecto. O século da Reforma, tirante a opinião dos adversários, via em
Lutero um acontecimento excepcional, verdadeiramente histórico-
salvífico, cujo caráter se procurou expressar pela categoria de "profeta".
Foi ninguém menos que Ulrico Zwínglio que, no outo no de 1519, numa
carta ao jurista Ulrico Zasius, de tendência humanista e residente em
Friburgo, na Brisgóvia, inaugurou esta interpretação de Lutero ao
chamá-lo de Elias 1 6 . A época da orto doxia deslocou esta concepção do
15
C f., em especi al , H. S TEP HAN, Luther in den Wandlungen seiner Kirche (1907) 1951 2 ; A.
HER TE, Das katholische Lutherbild im Bann der L utherkommen tare des Cochlãus 1 — I I I , 1943;
E. W. ZEEDEN, Martin Lutlier und die Reformation im Urteil des deutschen Luthertums; S t udi en
zum S el bst verst ãndni s des lut heri schen P rot est ant i sm us von Lut hers Tod bis zum
B egi nn der Goet hez ei t I. 11,1950-1952; H. B OR N- KANTM, Lutlier im Spiegcl der
deutschen Geistesgeschichte; m it ausge- wãhl t en Text en von Lessi ng bi s zur Gegenwa rt ,
1955.
16
A cart a foi perdi da, m as a expressão pode ser reconst i t uí da a part i r dum a cart a de
Ul ri co Zasi us a Zwí ngli o, de 13.11.1519 (CR 93,222,1 l s.) e dum a cart a de Zwí ngli o
seu caráter profético mais para a linha do restabelecimento da doutrina
pura. Um tratado De vocatione Lutlieri17 integra obras da ortodoxia
protestante antiga como verdadeiro capítulo dogmático. O pietismo
também invocava Lutero, mas descobriu diferenças entre o Lutero jovem
e o de mais idade e jogava contra este — supostamente endure cido pelas
lutas antientusiastas e pelas dissensões internas do protestantismo, se é
que não tendente para uma certa recatolização — suas posturas iniciais,
nas quais se supunha ouvir o evangelho da penitência e da graça de
forma ainda pura e muito próxima da tão apreciada literatura edificante
da mística alemã. O iluminismo, por sua vez, viu em Lutero o seu
modelo, acentuando a liberdade de consciência por ele encetada. Este
aspecto, refletido com mais profundidade e conjugado com a descoberta
da genialidade linguística de Lutero na época do jo vem Goethe 18 , foi
determinante para a recepção de Lutero pelo classicismo e idealismo, até
que no romantismo, com o despertar da consciência histórica, se esboçou
a pergunta qual seria a posi ção de Lutero na transição da Idade Média
para a Era Moderna. Para a concepção dominante, que se alimentava de
motivações confessionais e idealistas, Lutero era o iniciador da Era
Moderna. Contrariando isso, E. Troeltsch foi o primeiro a chamar a
atenção para o quanto o pensamento de Lutero ainda estava orientado
pelos problemas da Idade Média e que, na realidade, teve uma função de
retardamento no movimento de secularização da Renascença para a
Modernidade.
Com isso, o caleidoscópio das interpretações de Lutero foi apenas
esboçado de modo rudimentar. Seria precipitado, en tretanto, concluir, a
partir desta constatação, pela arbitrariedade e pelo caráter não-
compromissivo de toda interpretação de Lutero. Ao contrário, através
disso somos lembrados apenas, de forma particularmente incisiva, da
substancial correlação entre compreensão da história e
autocompreensão. Ela se manifesta tanto mais quanto mais aquilo que se
a Osval do Myconi us, de 4.1.1520 (C R 94,250,11).
17
N. do T.: Sobre a vocação de Lut ero.
18
N. do T.: Sturrn und Drang, no ori gi nal . Trat a- se dum a corrent e da poesi a al em ã na
época do j ovem Goet he.
articula na história toca nas questões básicas de nossa existência. Por
isso é perfeita mente normal que cada época torne a soletrar e interpretar
a compreensão de um acontecimento linguístico 1 9 que tanto marcou a
sua época como Lutero e que, de alguma maneira, sempre de novo surja
contenda a esse respeito. Não obstante, não é difícil reconhecer que as
transformações que esboçamos na inter pretação de Lutero em geral não
se apoiavam em penetrantes pesquisas das fontes, mas se baseavam
essencialmente em juízos de valor emitidos de maneira globalizante.
Se a nossa época não faz semelhante juízo sumário de Lutero,
manifesta-se nisso de maneira positiva, além de muitos outros motivos, a
acauteladora percepção do caráter diferen ciado dos fenômenos
históricos. Se a questão da pertença à Idade Média ou à Moderna não for
simplificada e transformada em alternativa e se não se permitir que a sua
discussão seja dominada por ideias padronizadas, ela fornece uma pista
metodológica muito boa para o estudo de Lutero. A pesquisa sobre ele
aprendeu, ainda que não há muito e nem de forma generali zada, que,
para uma interpretação profunda, a cuidadosa consi deração das
tradições, das quais Lutero vem, é indispensável para obter critérios para
poder definir o que, afinal, é o que ganhou expressão através dele. Além
disso, no entanto, esse problema do surgimento duma nova era aponta
para as profun dezas do próprio fenômeno histórico de sua pessoa.
Conrad Ferdinand Meyer expressou isso de forma insuperável em
"Huttens letzte Tage":

Quanto mais difícil for a libertação de um filho da terra, tanto


mais profundamente ele tocará nosso sentimento humano.
Eu, que cedo consegui fugir do cativeiro, horrorizado estou por
quanto tempo Lutero nele teve que lutar.
Oculta trazia ele em seu peito a luta que hoje do mundo abrange a
metade.

19
Quanto a essa expressão cf. abaixo, p. 20ss.
Com risco de vida quebrou as amarras do convento — O
máximo só faz quem não pode diferente.

Sentiu a terrível transição dos tempos e firme à sua Bíblia


se apegou.

Em sua alma luta o que foi e o que será, em duelo duro,


cansativo e emaranhado.

Seu espírito é campo de batalha de duas eras, não me


admiro que até de demônios viu a cara.

Será que essa batalha está decidida para nós, de forma que o
esquecimento de Lutero em nossos dias tivesse sua expli cação na
circunstância de que para uns, decididamente voltados para o novo, o
Lutero ainda na transição pareça superado, en quanto que os que com
tenacidade se apegam ao passado não querem ser arrastados para a luta
que em sua companhia os espera? Não há dúvida de que no esquecimento
de Lutero mani festa-se algo do temor de algo inquietante de que não se
deseja ser lembrado. Contudo, enquanto se compreende as "duas eras", a
antiga e a nova, que estão em luta, como a sucessão, em termos de
história do pensamento, de dois períodos históricos, fica-se na superfície
e não se acha o acesso para o assunto que aqui nos diz propriamente
respeito. Lutero também sabia que estava condicionado pelo embate do
antigo e do novo, pelo confronto de duas eras, mas num sentido bem
diferente, a saber, de acordo com a antítese de ser humano velho e novo,
de "era da lei" e "era da graça" 20 . Esse confronto — levado às últimas
consequências na paradoxal fórmula simul iustus — simul peccator, "justo e
pecador ao mesmo tempo" — constitui a característica fundamental do
pensamento de Lutero. E talvez não seja tão fora de propósito supor uma
profunda e oculta relação entre essa redefinição do campo de batalha de
duas eras no sentido teológico e aquilo de que trata, em última análise, o
embate no campo de batalha das eras.
20
C f. 40/ 1,526,2-527,9 (1531).
Achamos nisso um ponto de referência para o caminho a ser
tomado. Todavia, ele passa bem ao largo dos caminhos usualmente
trilhados e por isso largos e consolidados da inter pretação de Lutero.
Não procederemos, como seria de esperar, a uma narrativa de sequência
biográfica, ainda que de modo algum devamos desprezar o rigor
histórico. Tampouco deseja mos esboçar um quadro da sua personalidade,
seja de cunho mais psicológico ou simbólico, como, por exemplo — para
não omitir essa aberração — qual "eterno alemão", coisa que não
aconteceu só no passado mais recente, mas já na época do idea lismo.
Também não queremos fornecer, ordenada em tópicos principais de
doutrina, uma exposição sistemática de suas prin cipais ideias sobre as
Sagradas Escrituras, a fé, os sacramentos, a Igreja, o governo, etc. Por
um lado, nosso propósito é mais modesto: deverá tratar-se tão-somente
de uma introdução ao pensamento de Lutero. Desistimos, com isso, de
saída de qual quer aspiração de esgotar o assunto. Eu gostaria de
introduzir ao pensamento de Lutero apenas até o ponto em que venha a
acontecer um encontro ao qual se deve confiar o restante. Por outro lado,
nosso propósito é mais exigente do que aquelas outras possibilidades.
Não vamos contentar-nos com fatos ou ideias isoladas, mas tentaremos
atingir a base da qual emanam. É preciso que nos integremos no
pensamento de Lutero, no movi mento que teremos que acompanhar se não
quisermos apenas constatar, mas também compreender suas ideias, se
não preten demos tão-só repetir sua palavra, mas responder por ela.
O caminho para essa proposta ainda tem que ser aberto. Ele me
parece indicado pela observação de que o pensamento de Lute ro se
realiza sempre em tensão antitética, em polaridades muito diversificadas,
mas correlacionadas: filosofia e teologia, letra e Espírito, lei e
evangelho, o duplo uso da lei, pessoa e obra, fé e amor, reino de Cristo e
reino do mundo, pessoa cristã e pessoa ci vil, liberdade e cativeiro, Deus
oculto e Deus revelado — para citar apenas esses principais exemplos.
Nós os tomaremos como guias para incorporar-nos na dinâmica do
pensamento de Lutero.
Isso já mostra que a pergunta pelo seu pensamento não pode ser
respondida formalmente, indicando formas e estruturas genéricas de
pensamento. O ato de pensar e o seu produto só po dem ser entendidos
como unidade em conjunto. Talvez seja por isso que Lutero permaneceu
tão estranho ao pensamento de nos so tempo. Sente-se, como já o fez
Erasmo, o pensamento de Lu tero como excessivamente assertivo,
confessante demais e, por isso, sua maneira de pensar como pouco
humanista e demasiada mente bárbara. Não vamos decidir sobre a
procedência dessas impressões. Ao perguntarmos pelo pensamento de
Lutero, mantemo-nos abertos para um encontro com ele como
acontecimento linguístico. Que é que o interessava, afinal, senão a
correta arti culação da palavra?
Antes, porém, a título de introdução, teremos que dizer algo sobre
a sua pessoa, seus feitos e sua palavra.
II
A PESSOA DE LUTERO

A expressão "Lutero como acontecimento linguístico" in dicou o


rumo para toda a nossa tentativa de um encontro com ele. Estou usando,
com isso, um termo surgido no atual esforço da teologia no campo da
hermenêutica 21 . Ele abrange uma com preensão daquilo a que se deve
atentar essencialmente no trato da história. Não é por acaso que um
acontecimento histórico de tão invulgar dimensão de profundidade e de
tão grande alcan ce, como o que se realizou na figura de Lutero qual
enorme abalo sísmico do Ocidente, convida para uma reflexão sobre a
essência e a adequada pesquisa da história. Agora, porém, não podemos
detalhar essa reflexão e contentamo-nos em expli car, através de algumas
delimitações, a direção indicada pelo termo "acontecimento linguístico".
Parece evidente que com isso, ao contrário duma concen tração na
personalidade de Lutero, se chama a atenção para o mérito da causa que
ganhou expressão através dele. Por conse guinte, a direção do nosso
questionamento não acompanha aque la que, por ocasião do tricentenário
da Reforma, em 1817, Goethe colocava como a única coisa digna de
nota: "Cá entre nós, nessa coisa toda não há nada de interessante a não
ser o caráter de Lutero, e isso também é a única coisa que realmente
impressiona a multidão. Tudo mais é um emaranhado disparate que ainda
nos onera diariamente." 22 Em distinção disso, no entanto, a inten ção do
nosso questionamento não estaria inequivocamente for mulada com "a
doutrina de Lutero", na medida em que se entenda por isso uma doutrina
dogmática a ser simplesmente aceita. Pa rece que "acontecimento
linguístico" abrange mais do que "siste ma doutrinário". Enquanto que
este tem ao menos a tendência para algo conclusivo, "acontecimento

21
E. F UC HS , Ges. Aufs. I (1959), p. 281ss., Ges. Aufs. II (1960), p. 424ss.
22
A Knebel , 22.8.1817 (n° 7848). Goethes Werke (Wei m ar 1887ss.) IV,28: 227,23- 8. V.
t am bém : H. B OR NKAMM, Luther im Spiegel der deutschcn Geistcsgcschichte, 1955, p. 134.
linguístico" dá a ideia do processo duma abertura, duma revelação.
Enquanto que o siste ma doutrinário de outrem, na melhor das hipóteses,
se oferece como morada de tal maneira que nele o forasteiro possa achar
abrigo como hóspede, "acontecimento linguístico" visa propor cionar um
espaço de vida que venha a tornar-se o próprio lar.
Confrontar-se com Lutero como acontecimento linguístico não
significa uma esquiva da problemática teológica em direção àquele
aspecto cultural geral sob o qual, com razão, se costuma enaltecer a sua
obra, independente de um juízo confessional. "Ninguém que sabe o que
é uma língua", escreve Klopstock, "compareça sem reverência diante de
Lutero. Em nenhum povo um homem só formou tanto a sua língua." 23 E
Herder acentua:

Foi ele que acordou e desamarrou a língua alemã, um gigante


adormecido; foi ele que derrubou o mercadejo de palavras da
escolástica, qual aquelas mesas de cambistas; pela sua Reforma,
ele conduziu uma nação inteira para o raciocínio e para a
sensibili dade. Deixem, pois, que o mais requintado pedante que o
mundo quiçá tenha visto, Erasmo, o culpe de desmerecer a
literatura latina — essa acusação não o compromete, e não se
pode negá-la contra as evidências da história. Pois religião latina,
erudição escolástica e língua romana estavam demasiadamente
entrelaça das. 2 4

Friedrich Schlegel, que se converteu para o catolicismo, opinava em


relação à obra de Lutero na tradução da Bíblia:

23
F. G. KLOPS TOC K, Die deutsche Gelehrtenrepublik, 1: part e, 1774, p. 170. V. t am bém :
H. S TEP HAN, Luther in den Wandlungen seiner Kirche, 1951 2 , p. 53.
24
Fragmente; von der neuern rõmischen Literatur, 1767, in: Sãmtl. Werke, ed."por B. Suphan, v. 1, p.
372. V. também H. BORNKAMM, op. cit., p. 123.
Mesmo assim, cabem a ele pessoalmente, no que tange à força da
linguagem e ao espírito próprio, esta grande e poderosa forma de
expressão alemã, inegáveis méritos. Pois também em seus pró -
prios escritos há uma eloquência que no decorrer dos séculos e
entre todos os povos só raramente surge com tanto vigor. É bem
verdade que ela possui também todas as qualidades que temos que
relevar a uma eloquência essencialmente revolucionária. Mas não
é só nesses escritos semipolíticos que atingiram vigorosamente a
vida pública e abalaram-na até os alicerces, como aquele dirigido
à nobreza da nação alemã, que encontramos essa força de
eloquência revolucionária peculiar de Lutero, mas também em
todas as suas demais obras. Pois em quase todas elas sua grande
luta íntima está diante dos nossos olhos com vivacidade. Dois
mundos, por assim dizer, estão em contenda nessa alma ricamente
provida por Deus e pela natureza, e ambos querem dominá-la. Em
toda parte de seus escritos há como que uma batalha entre luz e
escuridão, entre uma fé firme e inabalável e sua igualmente
indomável e descontrolada paixão, entre Deus e ele próprio. 2 5

Estas clássicas referências a Lutero como gênio linguístico


denotam, no entanto, que tal atividade criativa em relação à língua alemã
não pode ser formalizada. Desta maneira, seus méritos para com a língua
alemã são de fato um sintoma alta mente significativo daquilo que
visamos, de forma mais abran gente, como acontecimento linguístico.
Lutero expressou de for ma programática a conexão fundamental de
língua e teologia no escrito "Aos edis de todas as cidades da Alemanha,
para que criem e, mantenham escolas cristãs" 2 6 .

25
F ri edri ch SC HLEGEL, Geschi cht e der alt en und neuen Li t erat ur, 1812, i n: Sãmtl.
Werke, v. 2, p. 178s. V. t am bém : H. BOR NKAMM, op. cit., p. 163s.
26
N. do T.: An die Ratsherrn aller Stãdte deutsches Lands, dafi sie christliche Schulen aufrichten und
halten sollen.
Ainda que o evangelho tenha vindo e ainda venha somente pelo
Espírito Santo, veio por meio das línguas, através delas foi divul -
gado e através delas deve ser conservado. (...) Quanto mais preza -
mos o evangelho, tanto mais temos que ater-nos às línguas. Pois
não é por acaso que Deus fez redigir sua Escritura apenas em duas
línguas, o Antigo Testamento em hebraico, o Novo em grego. (...)
É bom lembrar que não será possível conservar o evangelho
adequadamente sem as línguas. As línguas são as bainhas nas
quais está guardado este cutelo do Espírito. São o cofre no qual se
guarda esta joia. São o recipiente no qual se recolhe esta bebida.
São a despensa em que esta comida está guardada. E, como o
próprio evangelho (Mt 14.20) mostra, são os cestos em que se
conservam esses pães, peixes e sobras. Sim, se não nos
precavermos e (o que Deus não permita) abandonarmos as línguas,
não perderemos apenas o evangelho, mas por fim também chegare -
mos ao ponto em que não saberemos falar ou escrever
corretamente nem o latim nem o alemão. 27

Parece assim que um problema objetivo que diz respeito à


cristandade, ao mundo todo até, está fatalmente ligado à pes soa de um só
indivíduo. Torna-se aflitiva a pergunta se no fenômeno da Reforma não
estamos lidando com as consequências problemáticas duma
personalidade extremamente teimosa, cuja importância não se deveria
reforçar, concedendo-lhe exces siva atenção. Precisamente aquele que se
importa com a causa do evangelho terá que desconfiar da vinculação a
uma pessoa, cuja experiência pessoal e formação individual não devem
tornar* se norma para a fé. Especialmente na interpretação de Lute ro por
parte de católicos tentou-se caracterizar o traço funda mental e dominante
de sua atuação através da acusação de subjetivismo.
Consta, entretanto, que o próprio Lutero se opôs com extrema
veemência — "para que saibamos que a Igreja não foi fundamentada em
27
15,37,4-6.17-20; 38,7- 15 (1524) = BoA 2, 450, 31-4; 451,7-10.25-34.
cima duma poça ou duma estrumeira" 2 8 — a que, em assuntos de fé, a
pessoa se prenda à autoridade dum ser humano e se apegue a ordenações
humanas de escolha pró pria em vez de se ater à palavra libertadora de
Deus. Deixou bem claro que o relacionamento com a sua pessoa deveria
seguir as mesmas normas. "Peço, em primeiro lugar", lemos na "Sincera
admoestação a todos os cristãos para evitar revolta e insurrei ção" 2 9 , de
1522,

que se evite o meu nome e não se intitulem luteranos, mas cristãos.


Que é Lutero? Afinal, o ensinamento não é meu. Tampouco fui
crucificado a favor de alguém. S. Paulo, em 1 Co 3(.4s.), não
admitiu que os cristãos se chamassem paulinos ou pedrinos, mas
cristãos. De que maneira pretenderia eu, um pobre e fedorento saco
de vermes, que se designassem os filhos de Cristo com o meu
infeliz nome? Não seja assim, meus amigos; apaguemos os nomes
partidários e chamemo-nos pelo nome de Cristo, cujo ensinamento
nós temos. Os papistas merecidamente têm um nome partidário, já
que não se contentam com o ensinamento e o nome de Cristo;
querem ser papistas;. pois que sejam do papa, que é o seu mestre.
Não sou e não quero ser mestre de ninguém. Tenho, juntamente
com a comunidade, o único e comum ensina mento de Cristo que,
ele só, é nosso Mestre (Mt 23.8). 30

Mas até uma manifestação de protesto de tal ordem contra a


vinculação a pessoas é, ao mesmo tempo, impressionante prova de como
aqui pessoa e causa se entrelaçam intimamente. No fundo isso é uma
coisa óbvia para toda dinâmica intelectual, que apenas deve ser refletida
adequadamente. É verdade que nem toda área de atividade intelectual
tolera ou exige de igual modo e na mesma medida o envolvimento e a
aparição da incon fundível personalidade histórica do intelectual.
28
10/I1I, 214,15s. (1522).
29
N. do T.: Treue Vennahnung zu allen Christen sich zu hüten vor Aufru.hr und Empõrung.
30
8,685,4-15 (1522) = B oA 2,308,5-17.
Todavia, como em toda parte, também na teologia existe a conexão de
pessoa e obra. E, em função da causa da teologia, ela é especialmente
íntima neste caso. Portanto, a teologia não exige o máximo possí vel de
exclusão da pessoa, e sim o seu mais intensivo empenho, corretamente
compreendido. O que é teologicamente mais signifi cativo não acontece
ali onde a pessoa do teólogo se mantém indiferente e neutra para com a
palavra, mas ali onde responde por ela, de tal forma que a palavra tenha
a inconfundível assi natura intelectual do autor e até a biografia, isto é, a
situação em que se assume responsabilidade pela palavra, seja parte in -
dissociável da assertiva teológica.
Afinal, é simplesmente um fato: o estudo da teologia de Lutero
topa com um grau de entrelaçamento com sua pessoa que dificilmente se
encontraria em algum outro teólogo. A obser vação de Lutero: Sola (...)
experientia facit theologum31, paira como um lema interpretativo sobre a sua
própria vida. Na análi se de sua teologia, não é possível ignorar sua vida,
sua experiência. Já a questão do surgimento de sua teologia nos coloca
ante a difícil tarefa de entender a irrupção da percepção reforma- tória
fundamental, a justificação somente pela fé, no entrelaça mento da
vivência pessoal de aniquiladora tribulação e liberta dora certeza, por um
lado, com determinados problemas teológi cos, por outro. Em
consequência disso, temos aí o estonteante processo de como, passo a
passo, em impressionante associação de corajoso risco e simples falta de
alternativa, surge uma nova teologia — nova não apenas nos parâmetros
usuais — e se ques tiona o poder da tradição de um e meio milênios. A
nova concep ção de palavra de Deus, dos sacramentos, da Igreja, da
postura ética e da autoridade secular não deixa nenhum setor da vida
intocado. Um acontecimento causador de tal reviravolta não é produto de
distanciada especulação teórica. Contudo, tampouco é obra de ação
revolucionária, ao contrário do que implica a imagem vulgar de Lutero
como homem grosseiro, violento e de comportamento patético. Antes, é
o tornar-se efetivo dum raciocínio teológico que está tão envolvido na

31
WA TR 1,16,13, n: 46 (1531). N. do T.: Só a experiência faz o teólogo.
causa que se con cretiza como existência teológica ao suportar lutas de
consciência, ao arriscar e assumir decisões de consequências
imprevisíveis e ao empenhar a própria existência.
Claro que "aqui espreitam perigos de mal-entendidos ou de
fascinação. Lutero é como um instrumento que reúne os regis tros mais
suaves e mais fortes. Só um ouvido treinado será capaz de fazer justiça
a todas as modulações de som. E só quem compreendeu a causa que está
em jogo para Lutero não se deixará derrubar pela constatação de que ele
não era um "santo" e que de vez em quando arremetia com uma
acrimônia e falta de equilíbrio que não seriam suficientemente
compreendidas como manifestação do seu temperamento, sem ponderar
também o peso de suas lutas internas e externas e o excesso de
responsabilidade histórica. De resto, a descoberta de fraque zas em
Lutero previne do perigo de não poder mais distinguir entre pessoa e
causa diante do fato de sua íntima conexão. Lessing formulou isto uma
vez muito bem:

Tenho tanta veneração por Lutero que, pensando bem, gostei de


ter descoberto alguns pequenos defeitos nele, porque na reali dade
eu estava correndo o perigo de endeusá-lo. Os traços de
humanidade que encontro nele me são tão preciosos quanto suas
maiores perfeições. Até me são mais instrutivos do que todas
aquelas juntas e mostrá-los (...) será um mérito meu. 3 2

Se ainda quisermos caracterizar a pessoa de Lutero com algumas


pinceladas, não faríamos justiça a essa tarefa com uma análise
psicológica. Não pretendemos negar o direito desta den tro de certos
limites. Evidentemente, pode-se dizer uma porção de coisas sobre suas
tendências, capacidades e caráter. A conclu são duma análise psicológica
diz: "Lutero aparece como perso nalidade preponderantemente

32
G. E. LESSING, Briefe an den Herrn P. betr. Fali Lemnius, 1753, in: Sãmtl. Schriften, ed. por K.
Lachmann, 31886-1924, v. V, p. 435. V. também: H. BORNKAMM, op. cit., p. 118.
ciclotímica de constituição pícnica, com períodos hipertímicos e
hipotímicos alternados na escala emotiva e com concomitante motivação
por estenia." 33 Mas o que faz com que uma pessoa seja pessoa não é o
que nela jaz e o que dela sai, mas, se me permitem a formulação, o que
a atinge. Por isso, os contornos intelectuais dum ser humano percebem-
se de forma decisiva a partir do acontecimento linguístico das tradições
que o interpelam e da maneira como ele responde a elas, se ocupa com
elas e, através de modificações, eventualmente chega a algo próprio que
lhe cabe proclamar. A pergunta pela pessoa confunde-se então, com
boas razões, com a pergunta pelo ofício, pela profissão e pela missão
dum ser humano.
Com vistas ao papel histórico que coube a Lutero, a per gunta pela
sua pessoa apresenta-se principalmente de duas ma neiras, ou seja —
permitam-me a abreviação: como ele se tornou teólogo católico? E por
outra: como se tornou teólogo evangé lico? Ou então, para lembrar
melhor as implicações históricas: como ele se tornou escolástico da
Idade Média Tardia? E: como se tornou reformador? Além disso, coloca-
se, talvez, uma terceira pergunta: como o Lutero dos primórdios da
Reforma se transformou no assim chamado Lutero "velho"? Enquanto
que nesse último aspecto se trata, na melhor das hipóteses, de uma
paulatina transformação e de um mero deslocamento de ênfase, a
lembrança dos dois primeiros fatos está ligada à ideia de um
acontecimento repentino, uma reviravolta na sua evolu ção, semelhante a
uma conversão.
A brusca mudança que levou o jovem magister artium e estudante de
Jurisprudência ao convento não nos coloca diante de problemas mais
difíceis. Sob todos os aspectos, revela traços típicos da Idade Média
Tardia. Sua educação em ambiente de pequena burguesia, ávida de
progredir, foi rigorosa, mas não exageradamente dura; seu espírito era
movido pela religião, mas também era alegre e social. De maneira
alguma ele era o tipo de pessoa que procuraria a sua satisfação em
33
E. GROSSMAN N , Beiírâge zur psychologischen Ancdyse der Reforma- toren Lutlier und Calvin,
1958, p. 20.
religiosidade exagerada e alienada do mundo. A experiência de
proximidade da morte por ocasião de um temporal em campo aberto
jogou-o, contra sua tendência natural, numa trilha jamais desejada —
evidentemente, não sem preparo. A questão da salvação da alma
aparentemente já o havia angustiado antes. A confrontação dire ta com a
morte e o juízo ameaçador produziu a vontade de tomar radicalmente a
sério a possibilidade, se prazo lhe fosse dado, de se preparar para isso
para, oportunamente, poder en frentar a ineludível realidade de Deus sob
outras condições. Mais tarde ele descreveu, certamente de forma correta,
as circunstâncias com as seguintes palavras: "Eu queria fugir do in ferno
com minha fradaria." 34 "O objetivo era adquirir méritos perante Deus e
conquistar Deus com tais obras para conseguir perdão dos pecados." 35
Ele saldou a promessa feita no momento de perigo depois de duas
semanas de reflexão, em sóbria decisão, ingressando no convento de
Erfurt da Ordem dos Agostinianos Eremitas, uma Ordem mendicante.
Apesar de ter-se sentido coa gido, apegou-se a isso como chamado de
Deus, não obstante, também, as ponderações do desiludido pai, que lhe
perguntou se tudo não seria fantasmagoria do diabo e se o mandamento
de Deus de obedecer aos pais não seria suficiente contrapeso 36 .
Não se trata, portanto, da decisão de mudar de Faculdade e meta
profissional. Evidentemente, o estudo da Teologia estaria a sua
disposição sem que se tornasse monge. Pelo contrário, ele escolheu a
renúncia a qualquer profissão secular e, em tese ao menos, à
continuidade de estudos. Ainda que destinado, de saída, a tornar-se
monge-clérigo em decorrência da formação que trazia, necessitava, para
o estudo de Teologia, de ordem específica dos seus superiores. A
habilitação sacerdotal aconte cia sem estudo de Teologia. Este só
começou para Lutero depois da primeira missa, mas, de acordo com o
regime escolástico de ensino, estava em continuidade com os estudos
antes concluí dos na Faculdade de Artes.

34
47,90,35 (1538).
35
33,106,26- 30 (1531).
36
8,573,30-574,10 (1521) = B oA 2,189,9-24.
Que a escolha, naquela vez, tenha recaído sobre Erfurt como local
de estudos, teve motivos exteriores, mas consequências de muito
alcance. O ensino universitário na Idade Média Tardia tinha orientação
prescrita, não só na Faculdade de Teolo gia, mas em todas as faculdades.
As diferenças de orientação eram de ordem filosófica e moldavam,
assim, já na Faculdade de Artes, o raciocínio da juventude acadêmica.
Havia os assim chamados dois "caminhos", a via antiqua, a seguir os
pensadores da alta escolástica, em parte Tomás de Aquino, em parte
Duns Escoto, os dois grandes mestres acadêmicos dos dominicanos e
franciscanos. A via moderna foi criada e caracterizada decisiva mente por
Guilherme de Occam no limiar da Idade Média Tardia. Em algumas
universidades só havia uma dessas orientações, em outras ambas estavam
representadas. Se Lutero tivesse ido a Leipzig, teria se tornado tomista,
pois lá imperava a via antiqua de cunho tomístico. Em Erfurt, onde só
havia a via moderna, forçosamente se tornou occamista ou, como também
se dizia, em função do problema ontológico-epistemológico dos univer -
sais, relacionado com essa diferença de escolas: um nominalista. A assim
chamada via moderna de maneira alguma era "moderna" no sentido de que
tivesse dado espaço ao humanismo que então estava penetrando
parcialmente nas universidades. Durante seus estudos artísticos, Lutero,
se muito, teve contato superficial com o humanismo, contrastando com
Zwínglio, por exemplo, para o qual o humanismo desde o início foi
elemento formativo decisivo.
Para Lutero, a formação occamista teve continuidade também nos
estudos teológicos. Por causa disso, no entanto, não se deve ignorar a
influência de outros fatores. Desde o ingresso no convento ele teve
oportunidade de se familiarizar com o texto das Escrituras Sagradas, na
versão da Vulgata lati na, evidentemente. Em breve, sobretudo através
das orações em coro, gravou o texto do Saltério. Mas, além disso, já
naquele tempo Lutero lançou as bases para um estupendo conhecimento
da Bíblia. Ademais, familiarizou-se também com uma quantidade
razoável de obras de Agostinho, bem como com literatura edifi cante
proveniente da mística, só para citar algumas das princi pais correntes da
tradição que o atingiram. Podemos reconstruir, em boa parte, a extensa
lista de livros que Lutero estudou até que viesse assumir a cátedra.
A ideia que comumente se faz das lutas de consciência de Lutero
no convento, não se encaixa bem na intensa atividade intelectual lá
desenvolvida, ao que se acresceram, após alguns anos, ainda durante o
estudo de Teologia, certos afazeres de docência acadêmica e obrigações
para com a Ordem — um progra ma de trabalho acima das possibilidades
de alguém que tivesse deficiências psíquicas. As tribulações, que só se
intensificaram depois de um certo tempo, também não devem ser
atribuídas a motivos superficiais. Não era a disciplina monástica que o
afligia, antes justamente o progresso nela obtido. Quanto mais seu
comportamento aparente tomava caráter de santidade, tanto mais ele
desesperava de si mesmo. Em vez de achar a paz do coração, a incerteza
da salvação o torturava de forma crescente. Nem a habitual poimênica
monástica, nem o intensivo uso dos meios sacramentais da graça
ajudaram-no. Ao pensar no juízo, não descobria em si mesmo razão
nenhuma para não desesperar. Ora, a doutrina teológica e a concepção
eclesiástica dominantes remetiam, justamente na interpretação da graça,
a uma posse da qual o crente se apropriava. Isso o empurrou para um
desespero tanto mais profundo, que, por sua vez, lhe parecia sinal do
juízo divino justo e de sua exclusão da predestinação à sal vação.
Do ano de 1518 temos um relato de tal tribulação que, na forma,
lembra 2 Co 12.2:

Mas também eu conheci uma pessoa que afirmou ter sofrido essas
penas muitas vezes, é verdade que por um brevíssimo espaço de
tempo, porém tão grandes e tão infernais, que nenhuma língua
pode expressá-las, nenhuma pena pode descrevê-las e quem não as
experimentou não pode crer. Elas eram de tal natureza que, se
fossem completadas ou durassem meia hora — sim, um décimo de
hora — ela pereceria de todo, e todos os seus ossos seriam
reduzidos a cinzas. Aqui Deus se mostra horrivelmente irado e,
com ele, também toda a criação. Então não há nenhuma fuga,
nenhum consolo, nem interior nem exterior, mas (unicamente)
acusação por parte de tudo. Então se geme aquele versículo: "Fui
expulso dos teus olhos" (Sl 31.22) e nem ao menos se ousa dizer:
"Senhor, não me repreendas em tua ira." (Sl 6.1.) Nesse momento
(mirabile dictu) a alma não pode crer que alguma vez possa ser
remida; ela só sente que a pena ainda não está completa. Entre -
tanto, ela é eterna e não pode considerá-la temporal; resta apenas
o puro desejo de auxílio e um horrendo gemido, mas ela não sabe
de onde pedir auxílio. Aqui a alma está estendida com Cristo, de
modo que se podem contar todos os seus ossos, e não há nenhum
canto nela que não esteja repleto do mais amargo amargor, horror,
pavor, tristeza, porém de tal maneira, que todas estas coisas são
eternas. E, de todas as maneiras, para dar um exemplo: se uma
esfera passa sobre uma linha reta, cada ponto da linha que é
tocado suporta toda a esfera, mas não a compreende em sua
totalidade. Assim, ao ser tocada por uma inundação eterna que
passa, a alma em seu ponto nada sente e bebe a não ser pena
eterna; entretanto, ela não fica, pois passa adiante de novo.
Portanto, se essa pena dos infernos, isto é, esse pavor insuportável
e inconsolável, atinge os vivos, muito mais a pena das almas no
purgatório parece ser de tal espécie, porém contínua. E é este
aquele fogo interno, muito mais atroz do que o externo. 37

Ao lado disso colocamos, inicialmente, o testemunho pró prio em


que Lutero, pouco antes da sua morte, no ano de 1545, duma distância
cronológica considerável, portanto, relatou a guinada decisiva para a
percepção teológica reformatória básica:

Um desejo intenso e invulgar de entender Paulo na Epístola aos


Romanos havia tomado conta de mim; o obstáculo, até ali, não fora
a insensibilidade mas um único vocábulo que consta no cap. 1: "A
justiça de Deus se revela nele." (Rm 1.17.) Pois eu odiava essa
expressão "justiça de Deus", que, através do uso costumeiro de
todos os professores, eu fora ensinado a interpretar a partir da
filosofia como a assim chamada justiça formal ou ativa, através da
qual Deus é justo e castiga os pecadores e injustos. Mas eu — que,
por mais correta que fosse a minha vida monástica, me sentia
perante Deus como pecador de consciência atormentada e não
podia confiar que estivesse reconciliado pela minha satisfa ção —
não amava, pelo contrário, odiava o Deus justo, que castiga os
pecadores, e, no fundo, ainda que não com blasfêmia, estava
indignado com Deus, com enorme descontentamento. Como se, de
fato, não fosse suficiente que os miseráveis pecadores, eterna -
mente perdidos em consequência do pecado original, são abatidos
com toda a desgraça pela lei do Decálogo; antes, Deus, através do
evangelho, junta mais dor à dor, ameaçando-nos com sua justiça e
ira também através do evangelho. Assim, eu me debatia de
consciência exacerbada e transtornada. Não obstante, eu voltava
constantemente a essa afirmação, com enorme sede, procurando
saber o que Paulo queria dizer. Até que, meditando sobre isso dia e

37
Obras selecionadas, S ão Leopol do, Si nodal ; Port o Al egre, Concórdi a, 1987, v. 1, p.
98-9 (1518).
noite, por misericórdia divina reparei na conexão das pala vras: "A
justiça de Deus se revela nele, como está escrito: O justo vive da
fé." Então comecei a compreender a justiça de Deus como aquela
pela qual o justo vive, por dádiva de Deus, a saber, pela fé, e que o
sentido é este: pelo evangelho é revelada a justiça de Deus, a
justiça passiva, pela qual o misericordioso Deus nos torna justos
pela fé, como está escrito: "O justo vive da fé." Tive então a
sensação de ter nascido de novo, literalmen te, e de ter penetrado,
por portas abertas, no próprio paraíso. De imediato a Escritura
toda passou a me mostrar uma face dife rente. Repassei, em
memória, a Escritura e descobri a analogia a isso em outras
expressões: por exemplo, obra de Deus, quer dizer o que Deus
opera em nós; poder de Deus, através do qual ele nos fortifica;
sabedoria de Deus, pela qual nos torna sábios, poder de Deus,
salvação de Deus, glória de Deus. Pelo que antes eu odiava a
expressão "justiça de Deus", agora a exaltava com o devido
carinho como a palavra mais querida. Assim, essa passa gem de
Paulo tornou-se para mim a porta para o paraíso (...). 38

Por mais impressionante que seja este relato em sua sim -


plicidade, ligam-se a ele problemas difíceis com que a pesquisa sobre
Lutero se debate há décadas. As dificuldades consistem sobretudo no
seguinte: da vivência de tal irrupção da percepção reformatória
fundamental só tomamos conhecimento através de alguns relatos
retrospectivos de Lutero a partir do início da década de 30, de boa
distância, portanto. E o mais detalhado entre eles é o mais tardio. Nas
fontes diretas dos primórdios de Lutero nada há que indique essa
vivência. Isso não exclui a credibilidade das reminiscências
posteriores. Materialmente até podem ser conciliadas, desconsiderando
um certo deslocamento terminológico, com o conteúdo teológico dos
documentos dos primeiros tempos de Lutero. Mas a questão da datação

38
54,1S 5,14-186,16 (1545) = B oA 4,427,14- 428,10.
desta vivência provoca diferenças acentuadas, porque as referências
cronológicas no contexto do retrospecto de 1545 são ambíguas e sua
verificação nos documentos da fase inicial, dependendo dos critérios
adotados, é controvertida. As tentativas de datação oscilam entre os
extremos de 1512 e 1519, se bem que hoje a grande maioria dos
pesquisadores concorde com a fixação em 1514.
Contudo, a importância de toda essa procura pelo mo mento
biográfico da assim chamada vivência da irrupção refor matória parece
questionável. Pois, por mais que tal iluminação possa ter acontecido,
atentando somente a ela, ter-se-á uma imagem bem distorcida da
teologia reformatória. Ela não se baseia num repente isolado, mas
esboçou-se em frente ampla, como podemos constatar cotejando
cuidadosamente os mais an tigos documentos teológicos de Lutero com
a tradição. Somente a partir disso é possível obter informação
confiável de como Lutero se tornou teólogo reformatório e qual o papel
que cabe, nesse processo, à virada que descreve nos retrospectos
posteriores. Para entender realmente o que moldou a pessoa de Lutero
não basta ater-se ao quadro duma espécie de segunda conversão; é
preciso aprofundar-se exaustivamente em suas palavras que nos foram
preservadas em invulgar abundância.
III
A PALAVRA DE LUTERO

A obra de Lutero visava a palavra. Estar ocupado apenas com a


palavra, como professor ou escritor, como jurista ou pregador, pode
parecer atividade cômoda, "trabalho seria caval gar de armadura, sofrer
calor, frio, pó, sede e outros desconfortos". "É verdade", diz Lutero,

que seria difícil para mim cavalgar de armadura, mas eu também


gostaria de ver o cavaleiro que aguentaria sentar um dia inteiro
metido num livro, mesmo que nada tivesse que compor, pensar e
ler, nem se preocupar. Pergunta a um escrevente, pregador ou
orador que trabalho é escrever e falar; pergunta a um professor
que trabalho é ensinar e educar meninos. A pena é leve, de fato
(...), mas, assim mesmo, a melhor parte (a cabeça!), o mais nobre
órgão (a língua!) e a suprema atividade (a fala!) do corpo é que
têm que se envolver e trabalhar ao máximo, enquanto que outros
trabalham apenas com o punho, o pé, as costas ou outro membro,
podendo, ao mesmo tempo, gracejar e cantar alegremente, o que o
homem da pena tem que dispensar. Bastam três dedos para fazer o
trabalho (diz-se dos escritores), mas o corpo e a alma toda estão
engajados. 39

A fala, a palavra — esta é, pois, a mais sublime obra do ser humano e,


ao mesmo tempo, a tarefa que mais o exige: "O corpo e a alma toda estão
engajados" — isso é mais exato do que a nossa expressão "trabalho
intelectual".
No caso de Lutero, esse trabalho se acumulou em propor ções
inimagináveis. Já em 1516, um ano antes da irrupção da turbulenta luta,

39
30/ 11,573,7s.l 0-6; 573,18-574,6 (1530) = B oA 4,171,22s.25-32.34 - 40.
encontramos, numa carta a um confrade amigo, a queixa de que estaria
totalmente sobrecarregado:

Seria quase necessário que eu tivesse dois secretários ou escre -


ventes. O dia todo quase não faço outra coisa do que escrever
cartas. (...) Sou pregador do convento e pregador à mesa; todos os
dias sou chamado para pregar na igreja matriz. Sou coordenador de
curso, vigário da Ordem, isto é, prior de 11 unidades. Sou
administrador da pesca em Leitzkan e procurador dos negócios de
Herzberg em Torgau, dou aulas sobre Paulo e estou reunindo
material para uma preleção sobre Salmos. Acresce-se a isso a
correspondência, que, como disse, exige a maior parte do meu
tempo. É raro ter tempo suficiente para as horas canônicas e
celebrações, para não falar das lutas e tribulações pessoais com a
carne, o mundo e o diabo. Vê que mandrião eu sou! 40

Entretanto, não dependemos destes autotestemunhos. Nosso co -


nhecimento do trabalho efetivamente realizado confirma isso
abundantemente. Dois exemplos, isolados e casuais, podem ilustrá-lo.
Do Domingo de Ramos até a quarta-feira após a Páscoa de 1529 — em
11 dias, portanto — Lutero, além de todas as outras coisas, proferiu 18
prédicas em Wittenberg. Ou então, evoque-se o volume, mas sobretudo o
peso do conteúdo da produção literária dum ano como o de 1520, que
revela uma intensidade ímpar de trabalho intelectual. Para acompanhar o
ritmo, várias gráficas estavam ocupadas ao mesmo tempo.
Em tudo isso, Lutero não visava sua palavra. A certeza de estar
lidando com a palavra de Deus e de estar devendo-a ao mundo, deu-lhe
ânimo para a mais corajosa fala, mas também o sustentou em tempos de
amarga decepção, como em 1530, quan do negou temporariamente seus
serviços de pregação à ingrata comunidade de Wittenberg 41 . Isso ainda

40
WA B r 1,72, n°. 28, 4- 13 (26.10.1516).
41
32,4,16ss. (1530).
ecoa em sua "Advertência aos clérigos reunidos na Dieta de
Augsburgo" 4 2 , do mesmo ano:

Não que tivéssemos tanta vontade de pregar. No que me diz


respeito, não queria notícia melhor do que minha demissão do
ministério da pregação. Estou tão cansado por causa da grande
ingratidão do povo e, muito mais ainda, por causa do insuportável
fardo com que o diabo e o mundo me oneram. Mas as pobres almas
não permitem. Há um homem, também, que se chama Jesus
Cristo, que diz não a isso. A ele eu obedeço com razão, pelo tanto que
fez por mim. 43

Nós, pregadores do evangelho, reza uma drástica formulação numa prédica,


"somos uma estrada pela qual o diabo cavalga" 44 .
Este serviço com e na palavra, que não nasceu da cabeça e do coração
próprios, mas que é palavra provinda do texto da Sagrada Escritura apreendida
em permanente atenção e dedicado estudo, liberta, também, das obras literárias
próprias. Isso já se manifesta no final da postila de Natal de 1522:

Quisera Deus (que) as interpretações minhas e de todos os profes sores


sumissem e que cada cristão se ocupasse somente com a Escritura e a
pura palavra de Deus. Pois do meu palavrório já podes depreender como
a palavra de Deus é incomparavelmente diferente de qualquer palavra
humana e como ser humano nenhum pode abranger e interpretar
suficientemente com todas as suas palavras uma única palavra de Deus.
É palavra imensurável e quer ser entendida e meditada de espírito
tranquilo, como diz o salmo 83 (85,8): "Escutarei o que Deus mesmo
fala em mim." Ninguém a compreende senão tal espírito quieto e
meditativo. Quem pudesse chegar até ali sem comentários e

42
* N . do T .: Vermahnung an die Geistlichen, versammeltauf dem Reichstag zu Augsburg.
43
30/11, 340,13-341,3 (1530) = BoA 4,135,18-24.
44
27,251,16 (1528).
interpretações, não teria necessidade das minhas explicações nem das de
outros, antes lhe seriam um estorvo. Por isso, avante, avante, queridos
cristãos, e deixem que minha interpretação, bem como a de todos os
mestres, sejam apenas andaime para a boa construção, a fim de
apreender a verdadeira e pura palavra de Deus, prová-la e permanecer
com ela. Pois é ali que Deus mora em Sião. 45

Depois de resistir por muito tempo à proposta duma edição de suas obras
completas, cedeu finalmente, mas destacou, em 1539 e 1545, nos respectivos
prefácios do primeiro volume dos escritos em alemão e em latim, que teria
gostado que todos os seus livros tivessem perecido e sido enterrados no
esquecimento duradouro 46 . Aliás, ele espera isso ainda assim: "Consola-me que,
com o tempo, meus livros ficarão esquecidos sob a poeira, especialmente onde
escrevi algo de bom (pela graça de Deus)." 47
Para fazer uma ideia mais concreta da palavra de Lutero é preciso
ter ao menos um quadro sumário dos escritos preser vados e sua
caracterização por tipo e origem. Penetra-se num mar quando se adentra
no estudo de seus escritos. Já se trabalha há mais de 80 anos na
"Weimarer Ausgabe", hoje a edição- padrão das obras de Lutero. Ainda
que nela constem, agora, quase todos os seus escritos, ainda é
praticamente impossível prever o término, já que, além de
complementações, a deficiente qualidade de determinadas partes torna
necessária uma revisão sob a forma de adendos e correções, e sobretudo
a elaboração dos índices coloca diante de enormes dificuldades. A
edição de Weimar abrange até agora 100 volumes com uma média de
aproximadamente 700 páginas.
Apesar de notórias deficiências, esta edição, comparada com
edições anteriores, é da maior importância para o conheci mento de
Lutero, não apenas em questões de forma do texto, de datação e
comentários, mas sobretudo por tornar acessível um volumoso material

45
10/1/1,728,9-21 (1522).
46
50,657,2s. (1539); 54,179,13*. (1545) = BoA 4,421,15s.
47
50,658,2-4 (1539).
que literalmente fora "esquecido debaixo da poeira". Trata-se de dois
grandes blocos: por um lado, trans crições da época da maturidade de
Lutero. De especial impor tância são os muitos volumes de prédicas
estenografadas, que em boa parte revelam material desconhecido
anteriormente, en quanto que transcrições de debates e preleções desta
época posterior completam sobretudo o que já se conhecia e, em parte,
aproximam mais das formulações originais. Muito mais impor tante é, no
entanto, o material referente ao Lutero jovem, sobre o qual séculos
anteriores nada sabiam de autêntico além de al guns poucos dados
biográficos. Levando em conta que a primeira obra editada pelo próprio
Lutero 48 nos leva ao ano de 1517 e que com isso fora estabelecido o
limite além do qual, até a segunda metade do século XIX, praticamente
nada se sabia de sua atividade intelectual, é possível avaliar as
mudanças havi das nas condições da pesquisa pelo fato de, a partir de
1509, ainda que inicialmente em modestas proporções, as glosas de
Lutero em diversos livros de texto 49 nos darem primeiros teste munhos
diretos de seu pensamento intelectual. A partir de 1513, repentinamente
temos enxurrada de manuscritos, em parte de excelente caligrafia: o
farto material (abrangendo cerca de 1.200 páginas da edição de Weimar)
de seus preparativos para sua primeira preleção, sobre Salmos, dos anos
de 1513-15 50 e, em seguida, suas preleções sobre a Epístola aos
Romanos 51 , aos Gálatas e aos Hebreus 5 2 — portanto, em sequência sem
lacunas, os documentos de sua evolução teológica, desde a assunção da
cátedra até a disputa em torno da indulgência, que nunca foram
destinados à publicação e que, na medida em que se tratava de
apontamentos meramente preparatórios, a serviço do esclare cimento
próprio (mas por isso mesmo reveladores do próprio momento de luta
48
1,154- 220: os set e sal m os de peni t ênci a com expl i cação em al em ão.
49
9,1-115 (sobre Agost i nho, Pedro Lombardo, T aul er e out ros). Al ém di sso, at é
agora só em separat a: Luthers Randbemerkungen zu Gabriel Biels Collectorium in quattuor libros
sententiarum und zu desscn Sacri canonis missae expositio, ed. por H. Degeri ng, 1933.
50
3 e 4,1- 536. Da pri m ei ra prel eção sobre S al m os surgi u, a part i r de 1963, em
fascí cul os, um a nova edi ção provi da de dados com pl et os, em 55/ 1 (gl osas) e 55,11
(escól i os).
51
56.
52
57.
intelectual), nem mesmo seus alunos conhece ram completamente. Só
através deste material, nem de longe esgotado até aqui, estamos em
condições de analisar, em deta lhes, a evolução de Lutero da teologia
escolástica para a reformatória, em constante confrontação com as
tradições das quais vinha, da literatura que usava — uma tarefa
minuciosa mas excitante. Não conheço outro caso em toda a história em
que uma reviravolta intelectual de proporções semelhantes fosse
comparavelmente acessível à pesquisa em termos de fontes ori ginais.
Quanto ao legado da palavra de Lutero, cabe destacar ainda três
aspectos de ordem geral.
Primeiro: Já nos referimos ao fato de que as condições de
transmissão do material são bem diversificadas: em parte possuímos,
ainda, seus manuscritos originais, em parte só as edições mais antigas,
em parte temos que contentar-nos com anotações taquigráficas de
alunos, em parte com meras cópias de anotações, em parte com textos
adaptados por terceiros para publicação com ou sem a concordância de
Lutero. Evidentemente, é preciso considerar isso no trato dos textos,
para não se tornar vítima de atenuações da linguagem ou de ênfases
teológicas modificadas por alunos não-congeniais. No cômputo geral, no
entanto, temos à nossa disposição farto material de primeira qualidade, a
partir do qual se pode usar com proveito também o de segunda.
Segundo: Face à importância de Lutero para a língua ale mã,
facilmente se esquece que grande parte de sua obra foi redi gida em
latim: todas as suas preleções, nas quais, só excepcio nalmente e via de
regra de forma temperamental, ocorre uma expressão alemã, como em
1515, numa controvérsia antiescolástica referente a Rm 4.7: O
Sautheologen (Ó teólogos porcos) 53 . Da mesma forma, a língua latina
predomina, evidentemente, em todos os escritos que se dirigem aos
leitores versados em teolo gia, com ocasionais interjeições alemãs, como
Das ist zu viel54, em "O arbítrio cativo"** 5 5 , bem como na grande maioria

53
56,274,14 (1515) = B oA 2 5,242,11.
54
N. do T.: Isto é demais.
55
** N. do T.: De servo arbítrio.
das cartas. Língua eclesiástica, escolástica e humanismo encontra vam-se
nessa invulgar posição do latim, cujo significado para o pensamento de
Lutero dificilmente pode ser exagerado. O ver dadeiro acesso a ele como
pensador teológico tem-se princi palmente através dos seus escritos
latinos.
Terceiro: A obra de Lutero, por razões que adiante deve remos
tratar, está relacionada, em proporções extraordinárias, com a situação.
É preciso considerar sempre a que época pertence uma determinada
manifestação, não só para detectar eventuais mudanças em seu
raciocínio, mas sobretudo para compreendê-la em sua origem e
finalidade concretas, seu motivo e pretensão, suas circunstâncias e
destinatários, sua necessidade e seu acerto comprometedor e libertador
— portanto, para compreendê-la co mo acontecimento linguístico. Por
isso, uma correta edição e interpretação de suas obras há de orientar-se,
antes de tudo, pelos aspectos cronológicos. Uma visão panorâmica do
volume do material, no entanto, obtém-se da melhor maneira
catalogando-o de acordo com as situações básicas e as respectivas
formas principais do acontecimento linguístico em Lutero.
Em primeiro- lugar, temos tudo aquilo que diz respeito,
diretamente, ao trabalho acadêmico, a saber, as preleções e os debates.
As preleções se estendem, com pequenas interrupções motivadas pelas
circunstâncias externas, de 1513 até 1546. São, exclusivamente, de
caráter bíblico-exegético. A isso o obrigava a sucessão de João von
Staupitz na cátedra de Lectura in Bibliam, em fins de 1512. Não era comum,
entretanto, contentar-se, como teólogo escolástico, com a interpretação
de textos bíblicos sem passar para o ensino dogmático, especialmente
sob a forma de comentário das "Sentenças" de Pedro Lombardo. Aqui
aconteceu uma decisão relacionada com a guinada reformatória que só
não pode ser fixada mais precisamente porque Lutero jamais voltou a
discutir a possibilidade de abandonar a exegese bíblica. Isso merece
atenção não só em comparação com a escolástica, mas também com
vistas à forma humanística de ensino utilizada por Melanchthon, com loci
theologici56 ao lado da exegese contí nua. Lutero tratou principalmente de
obras do Antigo Testa mento, ou seja — minha relação segue agora a
sequência do cânone — de Gênesis, Deuteronômio, Salmos, Eclesiastes,
Cantares, Isaías e os profetas menores. Do Novo Testamento só tratou de
epístolas, ou seja: Romanos, Gálatas, 1 Timóteo, Tito, Filemom, 1 João
e Hebreus. A seleção que nisso se revela se deve, em boa parte, a
circunstâncias exteriores. A interpretação dos evangelhos, por exemplo,
era tarefa de outros professores. A da Epístola aos Romanos Lutero
deixou para Melanchthon que, no decorrer dos anos, tratou dela cinco
vezes, enquanto que ele mesmo só o fez uma vez, em sua fase inicial.
Significativo é, no entanto, que Lutero iniciou suas atividades docentes
com a exposição de Salmos (1513-1515), o livro da Bíblia que lhe era
mais familiar devido às horas canônicas no convento e que mais
diretamente o tocava por causa da alta carga afetivo-espiritual, e que em
seguida passou metodicamente a um estudo de Paulo, ou seja, Romanos
(1515-1516), Gálatas (1516-1517) e Hebreus (1517-1518), que, de
acordo com a tradição, era tido como de autoria de Paulo, voltando a
seguir ao Saltério (1518-1519) como que para testar o progresso
teológico. Em 1519 foi publicado então seu (primeiro) comentário à
Epístola aos Gálatas 57 e (até 1521) as Operationes in psalmos** 5 8 — textos
que, mais tarde, o ocupariam repetidamente na cátedra. Característico é
ainda o fato de que a ênfase do seu trabalho cabia ao Antigo
Testamento. Isso tem, entre outras, razões linguísticas. Lutero se sentia
mais competente no hebraico do que no grego, ao lado do grecista
Melanchthon. Digna de nota é, também, a forma do trabalho exegético.
Nas preleções mais antigas, até aquela sobre a Epístola aos Hebreus, ele
se ateve ainda à divisão escolástica em glosas interlineares e marginais
(isto é, explica ções curtas que eram anotadas entre as linhas ou à
margem dos textos bíblicos, que, para esse fim, eram impressos com
amplo espacejamento), bem como em escólios (isto é, interpre tações

56
N. do T.: "Lugares", tópicos, temas teológicos.
57
2,436-618.
58
5,1-673. N. do T.: "Operações", trabalhos, obras sobre Salmos.
mais extensas de textos selecionados, anotadas em folha à parte)!
Quando retornou então ao ponto inicial e começou a revisão dos
comentários a Gálatas e ao Saltério com vistas à sua publicação, havia
conquistado, juntamente com a maturi dade teológica, também a
liberdade do método escolástico, pas sando agora para a exegese contínua
do contexto todo.
Nas atividades universitárias de então, além da preleção,
destacava-se o debate, parecido, de certa maneira, aos nossos
seminários, ainda que de feições metodológicas bem diferentes. Na
formulação de teses precisas — essa tarefa cabia ao professor também
nos debates de exercício ou de doutoramento — Lutero era um mestre;
na correção das deficiências dos estudantes reve lava paciência
pedagógica; nas suas próprias intervenções ele era de argumentação
convincente e arrasadora. A partir de 1535 retomou-se em Wittenberg de
forma modificada a tradição esco lástica do debate, suprimida
anteriormente pela reforma uni versitária. Tornou-se instrumento
importante para a inculcação doutrinária da teologia da Reforma, bem
como para evitar des vios intra-reformatórios, o que atestam, sobretudo,
os grandes debates com os antinomistas 1 8 .
Ao rol do trabalho acadêmico pertencia, também, a tradu ção da
Bíblia, trabalho que, no que concerne ao Antigo Testa mento, se fez em
equipe; a revisão de toda a Sagrada Escritura foi tarefa duma comissão,
cujas atas chegaram até nós 59 . Aqui se pode observar, concretamente, o
que Lutero relata na "Circu lar sobre tradução" 6 0 a esse respeito:

Aconteceu muitas vezes que por duas, três, quatro semanas procu -
ramos e pesquisamos uma única palavra, e assim mesmo nem sem -
pre a achamos. Na tradução de Jó, mestre Filipe, Aurogalo e eu, às
vezes, mal concluíamos três linhas em quatro dias. 6 1

59
Em WA DB 3 e 4.
60
N. do T.: Sendbrief vom Dolmetschen.
61
30/ 11,636,16-20 (1530) = B oA 4,183,24- 8.
Lutero trocava, constantemente, a cátedra pelo púlpito. Em ambos
tratava-se da mesma causa, ainda que de tarefas diferentes,
condicionadas, ao menos em parte, pela diferente pla téia. Mas, a partir
da causa, as duas formas da palavra, a doutri na teológica e a prédica,
eram muito afins. Na linguagem reformatória, doctrina pode significar
ambas as coisas, sem que isso importe, de antemão, em prejuízo para um
dos aspectos. Havia coincidência, também, em que as duas o ocupavam
inteiramente como palavra oral e por isso rigorosamente temporal,
pronunciada aqui e agora, e que ele pouco se preocupava com sua
conservação por escrito. Só a primeira parte do comentário de Salmos
(1-22) e uma versão inicial da interpretação da Epístola aos Gálatas ele
concluiu por redação própria 62 . Da mesma forma, nas postilas e, mais
ainda, nas prédicas (naquelas que foram publicadas), a parte redigida por
Lutero para esse fim só repre senta uma pequena parcela. Deve-se atribuir
isso tanto à sua falta de tempo como à colaboração de auxiliares
solícitos. Entre todos eles merece destaque Jorge Rõrer, que desde 1522
transcreveu, além das preleções, também as prédicas — trabalho de suma
relevância também sob o aspecto linguístico. Trata-se, afinal, das mais
antigas transcrições diretas da língua alemã falada. Temo-las, contudo,
só numa versão codificada, como texto misto de alemão e latim em estilo
telegráfico. Pois para a transcrição se usava um sistema de abreviações
elaborado para o latim e, por isso, fazia-se uma tradução parcial para o
latim, incluindo diretamente expressões da língua alemã. Para se chegar
próximo do original, necessita-se duma retradução com uso de paráfrase.
Mas justamente esta forma de proceder tem a vantagem de pro duzir uma
linguagem mais familiar para nós, ao passo que o alemão arcaico de
Lutero, em função desta pátina de autentici dade histórica, provoca a
errônea impressão de que isso corres pondesse ao seu efeito original.
Bem mais de duas mil prédicas nos foram conservadas. Como, na
maioria, tratam das perícopes de epístolas e evangelhos da Igreja antiga,
repetindo, por isso, os mesmos textos ano após ano, é possível observar

62
* N . do T .: Wider Hans Worst.
mudanças de sua interpretação. E as séries de prédicas, que versavam
principalmente sobre capítulos seguidos dos evangelhos e que soíam ser
proferidas nos dias úteis, complementam de forma oportuna a lacuna
existente, neste sentido, nas preleções exegéticas.
A imagem de Lutero como escritor está caracterizada,
compreensivelmente, pelos seus escritos reformatórios polêmi cos, nos
quais desenvolveu um terrível talento para a combatividade, às vezes até
além do suportável. A grosseirice, objeto de muito comentário, deve ser
entendida, também, como fenôme no do seu tempo. Não há dúvida,
porém, que Lutero, na medida em que a idade avançava, foi bem além do
usual, ainda mais que as explosões de baixa xingação se ligavam sempre
à mais alta seriedade da luta pelas coisas derradeiras e, ao mesmo
tempo, ao espirituoso humor duma superioridade incontestável. Por uma
questão de justiça, é preciso trazer, também para isso, um exemplo
crasso, ainda que não exatamente apresentável em sociedade. Num
escrito contra o duque Henrique de Braunschweig-Wolfenbüttel, com o
título "Contra Hans Worst"*, de 1541, Lutero interferiu numa polêmica
já em andamento e repleta das maiores injúrias, entre o duque de
Braunschweig dum lado e o príncipe-eleitor da Saxônia e o landgrave de
Hessen do outro. A atmosfera, já envenenada, certamente não foi melho -
rada com observações como esta:

Não deverias escrever um livro a não ser que ouvisses um peido


duma porca velha; deverias, então, escancarar a tua boca nesta
direção e dizer: Obrigado, belo rouxinol, estou ouvindo aqui um
texto que é para mim. 63

Evidentemente, tais coisas não devem ser isoladas, sobretudo não da


enorme tensão interna, mas também não duma jovialidade de grau

63
51,561,9- 12 (1541) = BoA 4,373,10-3.
superior que a isso se alia e que se expressa, por exem plo, com
triunfante liberdade, na introdução à mesma publicação:

No que me diz respeito, gosto que se escrevam tais livros contra


mim; pois não só me faz bem ao coração, mas também ao póplite e
ao calcanhar quando noto que através de mim, homem pobre e
miserável, Deus, o Senhor, irrita e provoca a cólera e fúria de
ambos, os príncipes do mundo e do inferno, que de maldade
gostariam de despedaçar e explodir, enquanto eu estou sentado à
sombra da fé e do Pai-Nosso e fico rindo do diabo e seu séquito
com toda a sua grande ira, gritaria e repelões. Nada conse guem
com isso, a não ser que sua causa piora a cada dia que passa e
promovem e melhoram a minha (isto é, a de Deus). (...) Pois estas
coisas me deixam jovem, animado, forte e alegre. 6 4

Antecipei uma observação sobre este aspecto da atividade literária


de Lutero para esclarecer, em contraste com isso, que é em bem outro
lugar do que nestes sintomas extremos que temos que procurar a
verdadeira força motriz que o leva a escrever. Por que Lutero não se
contenta com cátedra e púlpito? Por que se põe a escrever? A razão
principal não é a propensão do estudioso nem tampouco o espírito de
luta de um reformador, mas a sua responsabilidade de cura d'almas por
uma pregação do evangelho que seja pura, clara, compreensível,
comunicadora de certeza e libertadora. O que ele mesmo descobriu na
luta pela compreensão da justiça de Deus, como é revelada no evan -
gelho, no sentido de que o justo vive da fé, isso o urge a dizê-lo
publicamente ao povo na língua que este fala, em alemão, portan to.
Surpreendente não só com vistas ao lutador que Lutero logo mais se
tornou, mas também ao erudito escolástico que ele era, além de
verdadeira chave para a compreensão de sua atividade literária e de sua
teologia toda, é o fato de que sua primeira publicação foi um escrito
64
51,469,17- 26.29s. (1541) = BoA 4,322,14-323,2.5s.
edificante em língua alemã, uma inter pretação dos sete salmos de
penitência, que veio a lume na pri mavera de 1517 65 . Apesar da disputa
sobre a indulgência que pouco depois iniciou e que rapidamente se
transformou na gran de luta da Igreja e não obstante os escritos
polêmicos e tratados teológicos que o caso exigia, seguiram-se, em
sequência constan te e frequente, um escrito poimênico após o outro em
língua alemã, sem polêmica alguma, exclusivamente orientados para
aquilo que faz do cristão um cristão: interpretação dos Dez
Mandamentos ou do Pai-Nosso 66 , sermões concisos e profundos, mas
acessíveis a todos, sobre a contemplação do sofrimento de Cristo 67 , a
preparação para a morte 68 , sobre alguns sacramen tos: Santa Ceia, 6 9
Batismo 70 , Penitência 3 0 , sobre a excomunhão 71 , outros ainda de conteúdo
ético: sobre a vida matrimonial 72 , a agiotagem 7 3 , e, coroando toda essa
literatura, o sermão sobre as boas obras 74 e o tratado sobre a liberdade
do cristão 75 . Já existia antes literatura poimênica alemã em profusão.
Mas, tanto na compreensão subjacente como na forma linguística, aqui
irrompe algo tão admiravelmente novo que o fato deveria ser
considerado marcante para a época, mesmo que as enormes mu danças
externas provocadas pela Reforma não tivessem aconte cido. Mas elas são
tão inseparáveis daquele sereno e despre tensioso trabalho como são
inseparáveis as consequências inevi táveis, por ele assumidas no
acontecimento da Reforma, daquilo que, no recôndito da cela do
convento, Lutero hauriu orans et laborons* das Sagradas Escrituras.

65
V. aci m a, not a 9.
66
1,247-56 (1518); 2,57-65 (1519); 2,74- 130 (1519); 6,11-9 (1519); 6,20-2 (1519);
7,194-229 (1520) = B oA 2,38-59.
*N. do T.: Orando e t rabal hando.
67
2,131-42 (1519) = B oA 1,154-60.
68
2,680-97 (1519) = B oA 1,161-73.
69
2,738- 58 (1519) = BoA 1,196-212; 6,349-78 (1520) = B oA 1,299-322.
70
2,724-37 (1519) = B oA 1,185-95.
71
6,61-75 (1520) = B oA 1,213-26.
72
2,162-71 (1519).
73
6,1- 8 (1519); 6,33-60 (1520).
74
6,196-276 (1520) = B oA 1, 227-98.
75
7,12-38 (1520) = B oA 2,1-27.
O impulso vigente nessas primeiras instruções cristãs, escritas
para o público em geral, não só continua nas obras posteriores do
gênero, estendendo-se até os catecismos 76 e hinos de Igreja 77 - que são
os mais impressionantes exemplos duma linguagem em que a palavra de
Deus, por várias gerações, se tornou alimento nutritivo e abrigo seguro
— mas é ainda a tônica nos diversos escritos polêmicos bem como nos
estritamente teológicos, para os quais Lutero se dispôs pela necessi dade
da luta, não pelo ócio dum erudito com pendor literário.
Como último grupo das manifestações preservadas de Lutero deve
ser lembrado aquele complexo em que sua palavra adquiriu as feições
mais pessoais. Integram-no, sobretudo, as cartas, das quais chegaram até
nós aproximadamente 2.800. Elas contêm a escala toda, desde o
cotidiano até os acontecimentos internacionais, do estritamente
particular ao solenemente oficial; além das discussões teológicas diretas
nelas contidas, são de certa forma um breviário de teologia vivenciada,
que deu a um só e mesmo homem a linguagem correta diante de príncipes
e hierarcas, para com irmãos e irmãs atribulados e, não por último,
também para falar com a própria esposa Catarina e o filho Joãozinho.
Uma mistura peculiar de intimidade e ampla objetivi dade caracteriza
também a assim chamada tradição das falas à mesa, isto é, notas que os
comensais de Lutero fizeram, desde o início da década de trinta, durante
ou após a refeição, sobre os mais diferentes assuntos aí abordados e
onde, em atraente colorido e concreticidade, temos o pensamento e o
juízo de Lute ro em sua forma cotidiana.
O significado desta palavra de Lutero, de cujas diferentes formas e
veículos de tradição oferecemos aqui apenas uma páli da resenha, há de
ocupar-nos em todos os capítulos subsequentes. Mas, para encerrar esse
apanhado, queremos destacar, ainda que em caráter provisório, algumas
de suas características.
Partamos do aspecto exterior: é uma palavra que, quando
proclamada, teve invulgar ressonância. A publicidade que Lutero teve de
76
30/ 1.
77
35.
imediato é, sem dúvida, uma questão muito complexa. Tudo que de
inquietação e de anseios religiosos, de problemas e descalabros
eclesiásticos, de tensões e mudanças políticas, de insatisfação e
fermentação sociais, de transformações na educa ção e na compreensão da
realidade, se misturava desordena damente no crepúsculo da Idade Média
foi subitamente abordado e inserido num movimento comum
(aparentemente comum, ao menos no início) pela palavra de Lutero.
Havia surgido um fenô meno histórico novo: de repente havia algo como
uma opinião pública, com uma intensidade e abrangência inusitadas. Há
uma prova material para essa ressonância ímpar: a penetração das obras
de Lutero, principalmente daquelas de caráter edificante- religioso. Uma
pesquisa a respeito chega aos seguintes resul tados:
Dos aproximadamente 30 escritos deste gênero que Lutero lançou
de março de 1517 até o verão de 1520 podemos comprovar até 1520 cerca
de 370 edições. (...) Bastava que Lutero lançasse um novo escrito em
Wittenberg, para que os impressores de Leip- zig, Nürnberg, Augsburgo,
Estrasburgo, Basiléia e outras cidades se apressassem em reimprimi-lo,
em regra duas, três, até quatro gráficas da mesma cidade
simultaneamente. (...) Ainda podemos verificar que cada escrito popular
de caráter edificante que Lutero publicou até o verão de 1520— até a
publicação da obra endereçada à nobreza, portanto — já tivera então, em
média, 12 edições, algumas menos, outras mais, até 24. 78
Como já foi dito, muitos fatores colaboraram para produ zir esse
efeito. Entretanto, mesmo no mais cauteloso juízo, não há como negar
que aqui está alguém que tem a dizer o que está na hora de ser dito, com
a necessidade do que não pode ser silenciado, com a certeza do que pode
ser dito claramente, com a liberdade de quem está totalmente entregue à
causa e com a objetividade de quem acerta na mosca. E uma palavra que,
a partir das Sagradas Escrituras e vinculada somente a elas, realiza o
avassalador movimento de tradução para a lin guagem da época, por elas
desencadeado, fiel ao seguinte princí pio hermenêutico: "É preciso

78
H. DAN N EN BAUER, Luther ais religiòscr VolksschriftsteUer, 1930, p. 30.
observar a dona de casa, as crian ças na rua, o homem simples no
mercado para apanhar sua linguagem e traduzir de acordo; assim
entenderão e notarão que se está falando alemão com eles." 79 O encontro
de Sagradas Escrituras e do hoje se dá, por assim dizer, num ponto
matemá tico: na consciência que está ouvindo. Para Lutero, este aconteci -
mento da palavra de Deus era o que importava.

79
30/ 11,637,19-22 (1530) = B oA 4,184,25- 8.
IV
A AÇÃO DE LUTERO

Nas congratulações a um cardeal recém nomeado lemos:


(...) Só me entristece que chegaste a isso nessa época, onde parece
que querem derrubar a Sé Apostólica. (...) Parece que ele (o papa)
despreza nossa ação e a explora. (...) Os cargos eclesiásticos não
são mais confiados a quem merece, mas a quem mais oferece por
eles. Para levantar dinheiro, diariamente são liberadas novas
indulgências. (...) Imaginam maneiras mil com que a Sé Romana,
como se bárbaros fôssemos, extorque de nós o ouro com lances
ardilosos. (...) Agora, porém, os melhores entre nós, como que
despertados do sono, começaram a refletir sobre os meios com que
poderiam opor-se a esses desmandos. Querem livrar-se do jugo e
reaver a antiga liberdade. A perda da Cúria Romana não será
pequena se os príncipes concretizarem suas pretensões (...). 80

Esta carta não data dos primórdios da Reforma, mas foi escrita 60 anos
antes, em 1457, por um funcionário do eleitor de Mogúncia a Enea
Silvio Piccolomini, mais tarde papa Pio II. O pequeno documento
dispensa maior descrição da situação antes do apare cimento de Lutero. A
queixa sobre desmandos eclesiásticos ma nifestos é antiga. Durante todo
o século XV, concílios e autores se ocuparam com a causa reformationis81.
Nas dietas, as queixas da nação alemã são tema constante. O anseio por
uma "reforma da cabeça aos membros" é geral. São muitas as propostas
acerca do que deveria acontecer e de quem deveria agir, Mas, como
prova a infindável discussão, praticamente nada acontece, ao menos nada

80
In: Enea Si l vi o P ICC OLOMINI, De ri t u, m ori bus et condi ti one Theut o- ni ae
descri pt i o. C it ado de acordo com a t radução const ant e em : Das Buch der Reformation, ed.
por K. Kaul fuss- Di esch, 1917, p. 21s.
81
* N. do T.: C ausa, quest ão da reform a.
que calasse o clamor por reforma. Fica-se em pala vras, às quais não se
seguem os atos.
Daquilo que iniciou com Lutero não se pode afirmar o mesmo. Foi
esse processo, e nenhum outro, que adquiriu a desig nação de "Reforma"
e a transformou em nome próprio dum acontecimento histórico ímpar.
Do lado católico aconteceu então, ainda que tardiamente, em defesa
contra a Reforma, muita coisa digna de registro para a eliminação dos
males e para a renovação interna e externa da Igreja Romana. Costuma-
se chamar este processo de Contrarreforma. Talvez se cometa injustiça
com essa designação exclusivamente antitética e se devesse falar de
reforma 82 católica. Mas, falar de "Reforma" 83 católica seria algo forçado.
Pois a grande virada histórico-eclesiástica à qual, não por acaso, está
ligado, definitivamente, o termo "Reforma", deu a esse conceito um
caráter que não pode mais ser trocado a bel-prazer. Mesmo que se
considere característica reformatória que a Reforma nunca para —
ecclesia semper reformando84 — a não ser que se seja fanático, há de se
respeitar o que aconteceu no século XVI como a Reforma que
comprometeu e habilitou a Igreja a se entender como semper reformanda..
Por que razões as coisas aqui não ficaram em meras pala vras, mas
passaram à ação reformatória? Teremos que extrapo lar todas as
respostas meramente preliminares e parciais a esta pergunta com uma
resposta radical, aparentemente paradoxal. Não ficou em meras palavras,
mas evoluiu para a ação porque a necessidade e o verdadeiro processo da
Reforma foram apreendidos numa profundidade tal que a Reforma não
mais podia ser compreendida como questão de ação, e sim precisa e
exclusivamente como questão da palavra. Ao final das explica ções das
95 teses sobre a indulgência, a primeira grande publica ção teológica de
Lutero, vinda a lume em 1518, diz ele:

82
N. do T.: Reform, no ori gi nal .
83
N. do T.: Reformation, no ori gi nal .
84
N. do T.: A Igrej a deve ser reform ad a sem pre.
2
Obras selecionadas, v. 1, p. 188 (1518).
A Igreja necessita de uma reforma, o que não é tarefa de uma
única pessoa, do pontífice, nem de muitos cardeais — como o
provou, a ambas as coisas, o último concilio — mas de todo o
mundo, mais ainda: unicamente de Deus. Mas só aquele que criou
os tempos conhece o tempo dessa reforma. 2

Será que cabe a objeção de que Lutero, na época, ainda não havia notado
que cerca de meio ano antes, pelo consenso de hoje datável em dia
preciso, a Reforma já havia começado como obra de uma única pessoa,
não do papa, mas do próprio monge agostiniano e professor de Teologia
Martinho Lutero? Isto sig nificaria não compreender a verdade contida
nessa afirmação de Lutero, cuja intenção específica não é entender a
Reforma como assunto de futuro incerto, mas como algo que é
certamente da vontade e do poder de Deus e que, por isso,
essencialmente, não é ação humana, mas divina. Claro que aqui ainda
não está dito o que antecipamos em nossa resposta paradoxal, ou seja,
que justamente por isso a Reforma seria questão exclusiva da palavra.
Contudo, este é um ponto de vista que Lutero, ao conscientizar-se do
processo da Reforma, passou a enfatizar vigoro samente, e o fato de tê-lo
mantido rigorosamente através de todas as mudanças de situação é —
para dizê-lo mais uma vez em termos paradoxais — sua verdadeira ação
reformatória.
Em seu escrito "À nobreza cristã de nação alemã", de 1520, que
retoma vigorosamente motivos e programas dos esfor ços até então
desenvolvidos a favor da causa reformationis, porém sintetizando,
transformando e aprofundando-os em novo espírito, Lutero não arrogou
para si mesmo a ação reforma tória — nem teria tido a possibilidade para
tanto! - mas apenas exerceu seu ministério da palavra: "Passou-se o
tempo de calar, chegou o tempo de falar" 85 proclama, qual sinos do
campanário, a primeira frase da dedicatória. Aqui, no entanto, como
nunca mais o faria, ele conclamou outros muitos diretamente para a ação
85
Pelo evangelho de Cristo, S ão Leopol do, Si nodal ; Port o Al egre, Concór di a, 1984, p.
76 (1520); cf. Ec 3.7.
reformatória, esperando que "Deus queira ajudar à sua igreja através dos
leigos" 4 . Será que foi apenas piedosa modés tia retórica quando, antes de
tudo, colocou a advertência:

A primeira coisa a fazer, principalmente nesta questão, é nos


precavermos seriamente, e não empreender algo, confiando em
grande poder ou inteligência, ainda que fosse nosso todo poder do
mundo. Pois Deus não pode nem quer tolerar que uma boa obra
seja empreendida na confiança, no poder e entendimento
próprios. 8 6

Com isso, Lutero toca, efetivamente, na raiz de toda ação, a partir


da qual se decide se ela é boa ou má: se a confiança no poder próprio é
maior do que a confiança em Deus. É por isso que somente a fé é a fonte
das boas obras 87 . Custará muito, certamente, até que reconheçamos de
novo este pensamento bási co do escrito de Lutero intitulado "Das boas
obras" 8 8 , do mesmo ano de 1520 — pensamento esse que é nada menos
do que a essência da Reforma — como verdade clara, precisa, concreta e
altamente "prática", livre do bolor da mera fraseomania piedo sa que o
encobria em consequência do uso errado ou então da falta de uso. Mas o
que se expressa na introdução do escrito endereçado à nobreza, pela
colocação desta advertência contra a confiança no poder próprio, não é a
rotineira repetição dum pensamento religioso genérico, e sim sua
aplicação específica ao problema da ação reformatória, vale dizer, não
de quaisquer medidas reformistas, mas de uma reforma da própria Igreja.
Antes de falar do que deve ser feito, é preciso esclarecer se e em que
medida a ação é apropriada nessa questão da reforma da Igreja —
portanto, se e em que medida a ação tem condições de fazer frente
àquilo que ameaça a Igreja e, por isso, torna a reforma necessária, se e
em que medida aquilo que constitui a Igreja e que, por isso, deve
86
Ibid., p. 78 (1520).
87
C f. especi al m ent e 6,204,25- 32 (1520) = BoA 1,229,27-34.
88
N. do T.: Von den guten Werken.
acontecer para sua reforma, é algo factível por medidas, ações, poder e
força. Temos que estar certos, diz Lutero,

que nesta questão não estamos lidando com pessoas humanas, mas
com os príncipes do inferno, que podem encher a terra de guerra e
derramamento de sangue, mas não podem ser vencidos com isso.
Aqui é preciso atacar a questão sob desistência de força física, em
humilde confiança em Deus, e procurar o auxílio de Deus através
de oração séria (...). Se assim não for, pode-se muito bem iniciar o
jogo com grande brilho (isto é, com boas perspectivas). Quando,
porém, se chega a vias de fato, os maus espíritos causarão uma
confusão que fará o mundo nadar em san gue, sem que com isso se
alcance alguma coisa. Por isso proceda mos com temor de Deus e
sabedoria. Quanto maior o poder, tanto maior o infortúnio, se não
se age em temor de Deus e humildade. 89

Aqui já se torna mais claro: o tipo do poder oponente que a ação


reformatória enfrenta faz com que poder e força externos sejam
instrumentos imprestáveis, porque através deles só se consegue resultado
oposto ao desejado e se favorece o inimigo. A percepção de que se trata
dum confronto com o poder do anticristo se associa ao reconhecimento,
destacado com cres cente clareza, de que este poder só pode ser arrostado
pelo aparentemente mais débil: a simples palavra. Dois anos mais tarde,
quando seu apelo às autoridades se revelara infrutífero, e a situação
parecia desesperadora, Lutero escreveu em sua "Sincera admoestação a
todos os cristãos para evitar revolta e insurreição":

Se disseres: "Que faremos se as autoridades não quiserem dar o


início? Vamos continuar tolerando e reforçar seu capricho (sc. do
poder papal)? Resposta: não, nada disso farás. Três coisas deves
fazer a esse respeito. A primeira: deves reconhecer o teu pecado,
89
Pelo evangelho de Cristo, p. 78s. (1520).
que a rigorosa justiça divina castigou com tal regime anticristão.
(..,) A segunda: deves orar humildemente contra o regime papal.
(...) A terceira: deves fazer com que tua boca seja uma boca do
Espírito de Cristo, do qual S. Paulo (...) diz: "Nosso Senhor Jesus
o matará com a boca de seu Espírito." (2 Ts 2.8.) Isto faremos, se
continuarmos confiadamente, como começamos, revelando ao povo
as patifarias e imposturas do papa e de seus adeptos, com fala e
escrita, até que ele esteja desmasca rado, conhecido e coberto de
vergonha no mundo todo. Pois é preciso matá-lo com palavras
primeiro; a boca de Cristo terá que fazê-lo; assim será arrancado
dos corações humanos, e suas mentiras serão reconhecidas e
desprezadas. Uma vez fora dos corações, de sorte que seu apelo
não vingue mais, ele já está destruído. Com isso podemos dar
conta dele melhor do que com cem rebeliões. Com o emprego da
violência não o enfraquecere mos, antes o fortaleceremos, como a
muitos tem acontecido até aqui. Mas com a luz da verdade,
confrontando-o com Cristo e cotizando sua doutrina com o
evangelho, ele cai e se acaba sem qualquer esforço e trabalho.
Vejam a minha postura. Não causei mais prejuízo ao papa, aos
bispos, padres e monges, somente com a boca, sem um só golpe de
espada, do que o fizeram, até aqui, todos os imperadores, reis e
príncipes com todo o seu poder? Por que isso? Porque Daniel
8(.25) diz: Este rei será destruído sem esforço de mãos humanas; e
Paulo: Ele será aniquilado com a boca de Cristo (2 Ts 2.8). Agora
eu e qualquer um que proclama a palavra de Cristo pode
vangloriar-se livremente de que sua boca é boca de Cristo. Pois
estou certo de que minha palavra não é minha, mas a de Cristo. Logo,
minha boca deve ser daquele cuja palavra profere. 90

Essa compreensão de que a ação reformatória acontece unicamente pela


palavra, Lutero praticou, neste ano de 1522, duma maneira decisiva para o

90
8,682,12-6.23s.; 682,31-683,17 (1522) = BoA 2,305,17-21.29; 305,35-306,21.
curso posterior da Reforma. À excomunhão papal seguira-se, em 1521, em
Worms, o banimento do império. Lutero fora subtraído ao público num lance
inteligentemente camuflado do príncipe-eleitor. Ignorava-se o seu paradeiro,
inicialmente nem sequer se sabia se ainda estava vivo. Em Wittenberg, sob a
influência de tendências radicais, as coisas estavam caminhando para uma
situação caótica. Aí Lutero decidiu voltar da Wartburg a Wittenberg,
contrariando a advertência expressa do príncipe-eleitor. No que concerne ao
evangelho, o poder exterior da autoridade não só não pode produzir algo de
positivo, mas nem sequer oferecer proteção. Aqui se processa uma total
inversão do conceito usual, como Lutero, já a caminho, explica na memorável
carta em que comunica sua decisão ao príncipe-eleitor — na linguagem da fé,
que é a linguagem da liberdade:

Escrevo isso a Vossa Alteza no sentido de informá-lo que estou indo a


Wittenberg sob proteção muito maior do que a do Príncipe- Eleitor. Não
é minha intenção também pedir a proteção de Vossa Alteza. Acho até
que posso oferecer mais proteção à Vossa Alteza do que Vossa Alteza
possa dar a mim. Mais ainda: se eu soubesse que Vossa Alteza quisesse e
pudesse proteger-me, eu não viria. A essa causa nenhuma espada pode
nem deve assistir e ajudar; Deus tem que agir sozinho aqui, sem qualquer
cuidado e auxílio humanos. Por isso: quem mais crer, mais proteção
estará oferecendo neste caso. Como sinto, no entanto, que Vossa Alteza
ainda está fraco na fé, de modo algum posso considerar Vossa Alteza o
homem que me poderia proteger ou salvar. Como Vossa Alteza deseja
saber o que deve fazer nessa questão, ainda mais que é sua opinião ter
feito muito pouco, respondo humildemente: Vossa Alteza já fez demais e
não deveria fazer mais nada. Pois Deus não deseja nem suporta cuidados
e ações de Vossa Alteza ou de minha parte. Quer que se entregue a causa
a ele e nada mais. Vossa Alteza pode tomar isso como orientação. Se
Vossa Alteza aceitar isso na fé, estará seguro e em paz. Se não crer,
creio eu, e a falta de fé de Vossa Alteza fará com que se atormente em
preocupações, como convém que todos os incrédulos sofram. 91

Em Wittenberg, entretanto, Lutero foi ao púlpito, dia após dia,


uma semana inteira, e pela palavra abriu o caminho certo para a
Reforma, deixando claro que aquilo que é o conteúdo do evangelho tem
que ser também o parâmetro para a ação reformatória, ou seja, que tudo
tem que se orientar pela palavra e pela fé:

Pois foi a palavra que criou céus e terra e todas as coisas; ela tem
que fazê-lo e não nós pobres pecadores. Em suma: quero pregá-lo,
dizê-lo e escrevê-lo. Mas obrigar, coagir à força, não quero
ninguém, porque a fé deve ser assumida voluntariamente, sem
constrangimento. Tomem-me como exemplo: arrostei a indul gência
e todos os papistas, mas sem violência. Apenas preguei e escrevi,
promovi a palavra de Deus; nada mais fiz. Esta, enquanto eu
dormia ou tomava cerveja em Wittenberg com Filipe e Amsdorf,
fez tanto que o papado ficou tão debilitado como nenhum príncipe
ou imperador o enfraquecera até então. Eu não fiz nada; foi a
palavra que fez e conseguiu tudo. Se eu tivesse querido usar a
violência, teria levado a Alemanha a um grande banho de sangue,
teria manobrado em Worms de maneira que o próprio imperador
não teria estado seguro ali. Mas isso teria sido o quê? Teria sido
uma palhaçada. Não fiz nada, deixei que a palavra agisse. (...) Esta
é toda-poderosa e cativa os corações; quando estes estão cativos, a
ação se segue automaticamente. 9 2

O senso comum faz pouco caso da palavra, achando que necessita


de cumprimento através da ação humana. Palavras se riam vazias e
baratas; só a ação serial real e de valor. Goethe fez com que o Dr.
Fausto, na tradução de Jo 1.1, o dissesse de maneira exemplar: "Não
91
WA Br 2,455s., n: 455, 74-94 (5.3.1522) = BoA 2 6,105,1-20.
92
10/ 111,18,8-19,7.11- 3 (1522) = BoA 7,369,25-370,1.5-7.
posso ter a palavra em tão alto apreço, tenho que achar outra tradução,
se o espírito bem me ilumina (. . .). De fato, ele me assiste: de repente
vejo uma saída e escrevo confiadamente: No princípio era a ação!" 93

algo de correto, evidentemente, nessa superioridade da ação sobre a
palavra, da vida sobre a doutrina, na medida em que se trata da palavra
que clama pela ação. pela obra, da palavra que exige, porém não dá, ou,
no dizer de Lutero, da palavra da lei. O que ele afirma da superioridade
da palavra, da doutrina, não vale para qualquer palavra e doutrina, mas
somente para aquela que cria o que afirma, por ser palavra de promissão
e advento: a palavra da fé, que é a palavra de Deus, na qual se revela, no
entanto, qual é o verdadeiro papel da palavra. Considerando que na
Igreja somente o evangelho vale e que sua reforma só pode consistir em
fazer valer o evangelho, aqui, ao contrário da opinião corrente, a
doutrina deve merecer o máximo cuidado e respeito. Pois a doutrina
pertence a Deus, a vida, porém, a nós, como Lutero diferencia, por
exemplo, na grande preleção sobre a Epístola aos Gálatas, de 1531.
Pervertendo a doutrina, tudo estará estragado; se a doutrina estiver em
vigor, tudo estará bem 1 2 .
É por isso que se deve contar com o fato de que o diabo anda às
soltas, onde o evangelho tiver uma pregação pura. Lute ro conhece as
graves tribulações oriundas das consequências da Reforma, a tal ponto
que, em vista de toda a discórdia e briga, poder-se-ia questionar se o
evangelho vale tanto. Aqui, a própria certeza da fé está em jogo. Lutero
pode afirmar: se por sua pregação do evangelho uma única pessoa fosse
confortada, ele estaria disposto a pagar o preço do abalamento do mundo
inteiro. Seria melhor transtornar tudo que faz parte dessa vida do que
admitir que uma única alma se perca 94 . Por isso, em questões da palavra
de Deus não se deve ceder humildemente, mas arriscar até a suspeita de
arrogância:' "Quero ser aqui o palerma orgulhoso, o cabra duro e me

93
Li nhas 1226- 1228,1236s.
40/ 11,46,5ss.; 51,l ss.8ss. (1531); 40/ I,39,10s.; 48,10ss. (1531). V. abai xo p.
135s.
94
40/ 1,645,4-6 (1531).
alegro que me chamem assim, pois o que vale aqui é não recuar." 95 A
diferenciação de palavra e ação, de doutrina e vida, corresponde a
distinção de fé e amor:

Em questões de amor é preciso ceder, porque ele tudo suporta; em


questões de fé, no entanto, nada. (...) Não deve tolerar nada nem
recuar. Deve ser extremamente orgulhoso e persistente. Con tudo,
em questões de amor, a situação é outra. Pela fé, entretanto, o ser
humano é (por assim dizer) Deus, que não pode ceder. Deus é
imutável, e assim terá que ser a fé. 96

Ao seguirmos os indícios de que, para Lutero, a ação reformatória


se concentrava totalmente na palavra, não abando namos, de modo algum,
o ponto de partida, qual seja, a pergunta por que aqui, à diferença de
todos os discursos anteriores sobre reforma, as coisas não ficaram em
meras palavras, mas se chegou à ação reformatória. A resposta paradoxal
que havíamos dado talvez já tenha ficado mais clara. Dizíamos: não se
ficou em meras palavras, mas se chegou à ação justamente porque a
reforma aqui foi entendida como questão exclusiva da palavra e não da
ação. A aparente contradição se desfaz quando se reconhece que a
pergunta pelo poder da Reforma remete à pergunta pela autoridade da
palavra reformatória. Por isso, a pergunta pelo acontecimento da
Reforma, por aquilo que, em tudo isso, tem caráter de ação, é remetida à
pergunta pela causa do próprio evangelho como foi proclamado na
Reforma. A compreensão da peculiaridade do acontecimento da Reforma
depende da percepção da essência da pregação reformatória. A ação
reformatória não é a realização da palavra reformatória; antes, é a
realidade da própria palavra reformatória e está sujeita, por isso, à
lógica da causa da Reforma, isto é, para formulá-lo uma vez assim, à
lógica do evangelho. O que significa ação reformatória, ou seja, sob que

95
40/ 1,181,8s. (1531).
96
40/ 1,182,1-5 (1531).
condições aqui pode haver ação e como então o modus procedendi97 da
Reforma se estrutura, não é uma questão formal ou tática, mas, por mais
que também esses aspectos tenham sua validade na superfície, se
identifica profundamente com o próprio objeto da mensagem
reformatória. Por isso, o próprio transcurso da Reforma é um comentário
altamente elucidativo à doutrina reformatória, isto é, ao teste munho da
palavra que não precisa tornar-se ação mas que, ela mesma, é palavra de
ação.
Podemos elucidar isso ainda em fases características do processo
da Reforma.
1. Natura verbi est audiri. Esta expressão de Lutero: a natureza da
palavra é que seja ouvida — ou, como poderíamos traduzir também, o
nascimento da palavra, sua vida, história e chegada — constitui como
que um lema para sua assim chamada fase pré-reformatória. Não
encontramos aqui um homem voltado para as coisas externas, que
analisasse os acontecimentos na política e na Igreja, fizesse diagnósticos
e elaborasse programas de reforma. O que se lhe impõe como diagnóstico
de sua época, é o fruto involuntário duma ausculta da palavra das
Escrituras, feita com extrema dedicação, esforço e autocrítica, no
apaixonado interesse de entendê-la, não por curiosidade filosófica ou
histórica, mas porque ele próprio está atingido pela causa de que aqui se
trata. Seu ponto de partida não foi sua irritação por causa dos abusos
existentes na Igreja; ele estava totalmente ocupado com sua própria
desordem, com seu próprio fracasso. Não pretendia aparecer como
reformador e melhorador do mun do, mas ansiava ardentemente uma só
coisa: a palavra salvadora e justificadora e, com isso, receber para si
mesmo e experimentar em si mesmo aquilo que era de seu ofício ensinar
a outros.
Contudo, nesse persistente estudo da Bíblia, do qual suas
primeiras preleções nos dão uma imponente ideia, ele passou a se
escandalizar cada vez mais com o que lhe fora ensinado por Igreja e

97
N. do T.: Modo de proceder. 16
4,9,18s. (1513/ 15).
teologia. No entanto, essas causas periféricas de escândalo, hoje
amplamente descritas também nas obras católi cas sobre o final da Idade
Média, não tinham importância decisi va para aquele que procurava pela
palavra salvadora; era muito mais o desencanto com o que era tido por
pacífico pela doutrina da Igreja e teologia escolástica, a saber, que a
graça, infusa primeiro pelo Batismo e após cada pecado mortal pelo
Sacramento da Penitência, adere ao assim agraciado como nova capa -
citação sobrenatural, que lhe dá condições para uma vida santificada,
embora ainda imperfeita. Assim a graça remete o ser huma no, em última
análise, a si mesmo, ao seu esforço na santificação e, com isso, à
incerteza quanto a si. Pelo que nos é dado conhecer do mistério da
gênese da teologia de Lutero, foi neste ponto, cuja interpretação
escolástica está acompanhada duma porção de problemas sutis, que se
deu, por assim dizer, a secreta fissão atômica cuja reação em cadeia
desencadeou o processo da Refor ma. A graça do Espírito Santo jamais se
torna virtus nossa, mas é e permanece ativa como virtus de Deus98 . Nisto
reside a virada copernicana para uma certeza que se alicerça na relação
de palavra e fé. É preciso saber, pois, o que se está dizendo, quando se
data o início da Reforma em 31 de outubro de 1517. Aqui não começa
propriamente a Reforma no sentido restrito — ela já havia iniciado há
muito, na cela do convento, na cátedra e no púlpito, para aqueles que
estavam envolvidos ainda mais ou menos sem se dar conta do que estava
acontecendo. Agora se manifestavam as consequências desta Reforma de
alcance ainda desconhecido e que apenas hesitantemente passava da
quietude para a publicidade.
2. Não podemos seguir aqui, em detalhes, o transcurso dramático
dos anos de 1517 a 1521, mas tão-somente apontar algumas

98
Virtus (capaci dad e, vi rt ude) era, dent ro da li nha da psi col ogi a e ét i ca ari st ot él i cas,
t erm o bási co da dout ri na da graça da escol ást i ca, desen vol vi da com o dout ri na das
vi rt udes sobrenat ur ai s, t am bém cham adas de "t eol ógi cas" . Já na pri m ei ra prel eção
sobre o S al t éri o, Lut ero, apoi ado na t erm i nol ogi a da Vul gat a usada nos salm os,
recl am ou o t erm o virtus com o ri gorosam ent e concern ent e a Deus, i st o é, com o a força
pel a qual Deus exerc e seu poder na fé, de m anei ra que o ser hum ano possa cham ar
Deus de sua virtus. P or exem pl o: 3,117,6s. (1513/ 15). V. t am bém abai xo p. 71s. e
118ss.
peculiaridades que ilustram o que expusemos acima sobre a relação de
palavra e ação. O aspecto dramático desses anos consistia somente em
segunda linha de todas aquelas cenas impressionantes, carregadas de
máximo suspense, como por exemplo o interrogatório pelo cardeal
Caetano em Augsburgo em 1518, ou o debate com João Eck em Leipzig,
em 1519, ou a queima da bula de excomunhão em 1520, ou quando se
apresentou ao imperador e à Dieta em Worms, em 1521. Em tudo isso
não se desdobrava, simples e automaticamente, um processo certa vez
desencadeado. Antes, a evolução das coisas dependia, passo a passo, em
surpreendente medida da palavra daquele um só homem que, sem o
querer, havia desafiado o mundo de então. Tivesse ele se retratado em
Augsburgo, tivesse usado mais cautela em Leipzig, não tivesse ele se
rebelado contra o veredito do papa, tivesse ele seguido os bem-
intencionados con selhos de muitos amigos e, disposto ao compromisso,
cedido de alguma forma aos estamentos do império, a Reforma teria
tomado curso diferente. Muitos acham que teria transcorrido de modo
mais feliz, sem cisma. Para Lutero, no entanto, estava claro: se
renegasse a palavra que, como doutor das Sagradas Escrituras, tinha a
responsabilidade de interpretar, ele teria de sistido de bem mais do que
da Reforma. Nesses anos, a respon sabilidade pela palavra se decidia
para Lutero numa despre tensiosa identificação com ela — coisa singela
e simples no que diz respeito ao mérito, mas, para a pessoa solitária
testada em sua firmeza, foi uma prova de fogo com tentações e
tribulações sem conta em situações sempre cambiantes.
Da abundância dos testemunhos a esse respeito seleciona mos
alguns trechos de cartas do ano de 1520:

Por que eu, homem miserável, haveria de procurar por honras,


uma vez que não tenho outro desejo do que poder viver bem
sossegado e escondido, longe do público? Meus cargos pode ocu -
par quem quiser; meus livros pode queimar quem quiser. Eu
pergunto: que mais posso fazer? Mas isso declaro ao mesmo
tempo: se eu não for liberado do cargo da docência e do serviço à
palavra, serei livre, ao menos, no exercício deste mandato. Já levo
carga suficiente de pecados; não quero cometer ainda o peca do
mortal de descuidar do ministério de que fui investido, tornando-
me culpado de silêncio ultrajante, de negligência com a verdade e
da perdição de tantos milhares de almas. 99

Não é fácil estar em oposição a todos os bispos e príncipes.


Contudo, não há outro caminho para escapar do inferno e da ira
divina. Observa, por isso, se aqueles que se escandalizam com
minha dureza não são daqueles que fazem pouco caso da causa da
palavra e partem para todo tipo de considerações huma nas. Não
seria de admirar que gritasse e se sentisse dilacerado aquele que
se conscientizasse uma vez da magnitude da causa (do
evangelho). 100

De minha parte e no que depender de mim, uma vez convocado,


quero ser levado até doente, se não puder vir com saúde. Pois
disso não pode haver dúvida: Deus está me chamando quando o
imperador me convoca. (...) Aqui não se devem considerar perigos
e bem-estar. Pelo contrário, aqui é mister que não entre guemos o
evangelho, por cuja causa iniciamos tudo isso, ao escár nio dos
ímpios e que não facultemos aos adversários algum triunfo sobre
nós, como se não tivéssemos a coragem de defender o que
ensinamos e tivéssemos medo de derramar nosso sangue pelo
evangelho. Cristo queira preservar-nos em sua misericórdia de
tamanha covardia de nossa parte e de tal bazófia daqueles. 2 0

3. O caráter dramático dos anos de 1517 a 1521 ainda tem, ao que


me parece, além da manifestação da palavra como confissão, um outro
aspecto que nos permite entender, definiti vamente, a engrenagem de
palavra e ação. Em 1517, Lutero não se apresenta com um programa de

99
WA B r 2, 135, n° 309, 22- 9 (9.7.1520).
100
WA B r 2,21 Os., n! 351, 20- 4 (4.11.1520).
reforma. A partir do centro de suas convicções teológicas e em função
dè suas responsabilidades poimênicas, ele se vê forçado a tomar posição
diante duma questão atual da prática eclesiástica, mas em primeira linha
não para atacar os danos evidentes, como acontecera na longa lista de
predecessores na crítica à instituição da indulgên cia, e sim, por assim
dizer, para arrancá-la pelas raízes a partir da correta compreensão da
penitência e da vida cristã em geral.
Se hoje constatamos, num apanhado retrospectivo da evolução dos
acontecimentos, como, passo a passo, um tema após outro emergia do
primeiro — a questão da autoridade dou trinária, a doutrina dos
sacramentos, o conceito de Igreja — é fácil dizer que só faltava tirar as
consequências do princípio fundamental. Mas a maneira como Lutero o
fez nesses anos, é sumamente instrutiva. Por um lado, notamos como
ele, hesitantemente e a contragosto, se deixa compelir a novas
percepções e se deixa forçar a tirar certas consequências; por outro,
como ele se desfaz, repentinamente, de tradições sem que para tanto
fosse provocado expressamente pelos adversários, numa irrup ção de
liberdade espiritual que só de longe podemos avaliar. Um dos fenômenos
mais surpreendentes nesse processo é o seu ataque à doutrina romana
dos sacramentos em sua obra De captivitate babylonica ecclesiae praeludium, de
1520 101 , que, segundo a autocompreensão da Igreja Romana, atingia seus
próprios f u n damentos e era visceralmente herética.
Tanto mais enigmático é o fato de que esse processo, mesmo
assumindo uma intempestividade revolucionária, com Lu tero jamais
correu o risco de descambar para uma revolução; antes, Lutero resistiu,
sem hesitação, às pressões de entusiastas de todos os tipos. A
consciência de estar sustentado pelo evange lho, que lhe deu a liberdade
para uma revisão crítica que atingia até os primórdios do cristianismo,
capacitava-o, também, para a clara preservação do essencial e para um
procedimento cuida doso e conservador na implantação das reformas do
culto, da ordem eclesiástica e da vida pública e cultural intimamente
101
6,484-573 = BoA 1,426- 512; publ i cada em port uguês pel a Edi t ora Si nodal sob o
tí t ul o Do cativeiro babilônico da Igreja; um prel údi o.
ligada àquela. Tudo isso acontecia em rigorosa orientação pela causa do
evangelho, ou seja: introduzir a Reforma não através do estabelecimento
de uma nova lei, mas por uma libertação da consciência que desse
certeza às pessoas.
De acordo com o nosso propósito, não seguiremos as diversas
etapas do desdobramento e das vicissitudes da Refor ma. Tendo esboçado
o contorno pela nossa descrição de pessoa, palavra e ação de Lutero,
procuraremos penetrar mais profunda mente na sua maneira de pensar,
iniciando, para tanto, com a opinião de Lutero sobre a relação de
filosofia e teologia.
V
FILOSOFIA E TEOLOGIA

Numa das cartas mais antigas de Lutero que chegaram até nós,
encontramos uma manifestação sobre seu relacio namento com filosofia e
teologia; está vazada em termos bem pessoais, tendo em vista sua
situação de trabalho de então. Mas, exatamente pela tônica pessoal, é
como que um lema incons ciente, de importância fundamental para toda a
sua caminhada posterior, não só no que diz respeito ao transcurso futuro
de sua ocupação com um problema específico do raciocínio, mas para a
própria orientação básica do seu pensamento. Esta carta foi escrita na
primavera de 1509 — durante seus estudos de Teologia, portanto — de
Wittenberg, para onde fora transferido provisoriamente pela sua Ordem
de Erfurt, meio ano antes, para que, de acordo com os costumes
acadêmicos da época, além dos seus próprios estudos na Faculdade de
Teologia, lecionasse na Faculdade de Artes, na sua qualidade de magister
artium. Os agostinianos eremitas de Wittenberg, de acordo com o estatuto
fundacional da Universidade, respondiam pelo provimento de duas
cadeiras: da cátedra bíblica, que Lutero assumiu em 1512 como sucessor
de Staupitz, por ocasião da sua segunda e defini tiva vinda a Wittenberg,
e a cátedra de Filosofia Moral, na qual o estudante de Teologia de 25
anos tinha que interpretar a Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Ele recém
havia conseguido o grau de baccalaureus biblicus102 , o que adicionalmente o
comprometia com uma interpretação cursora de livros bíblicos. Ao
descrever sua situação, ele diz que, pela graça de Deus, vai bem, só que
o estudo estava muito exigente, especialmente o da filosofia, que desde o
começo (isso se refere a sua atividade em Wittenberg) teria preferido
trocar pela teologia, a saber, por uma teologia que pesquisasse o albume
da noz, o germe do trigo e o tutano dos ossos 1 0 3 .
102
N. do T.: B acharel em Est udos B í bl i cos.
103
WA B r 1,17, n? 5, 40-4 (17.3.1509).
Vemos aqui que Lutero optou decididamente pela teologia contra a
filosofia, não no sentido duma opção de estudos — isso já estava
definido pela designação da Ordem para o estudo de Teologia — mas no
sentido duma decisão quanto à maneira de fazer teologia. Pois, ainda
que a questão da permuta de duas áreas de atividade, de duas disciplinas
científicas, esteja em primeiro plano, a sua manifestação passa de
imediato, não por acaso, para uma definição crítica do que ele de modo
algum espera da filosofia, mas tão-somente da teologia — todavia, não
como produto automático desta, mas duma teologia correta, condizente
com a causa, que não permaneça na superfície e não se contente com
cascas vazias, mas que penetre até o decisivo, onde o próprio coração é
atingido porque o cerne da questão foi apreendido. Sente-se aí o
veemente desejo que já agora não mais se contenta com uma teologia
escolástica mediana, mas, exigente quanto ao objeto e rigoroso consigo
mesmo, busca uma teologia realmente teológica. Em todo caso, ao
desejo aqui expresso não se corresponderia com uma teologia onde
novamente se encontrasse a filosofia como fator dominante, uma
teologia hipertrofiada pela filosofia, como existia ao menos na teologia
sistemática da escolástica e, em parte, até de forma extremada na
escolástica tardia.
Aqui já se ouve a nota modal que determinará todo o futuro
trabalho de Lutero e que ele haveria de formular, alguns anos mais
tarde, de modo programático na sua preleção sobre a Epístola aos
Romanos:

De minha parte creio que devo ao Senhor essa obediência de ladrar


contra a filosofia e conclamar para as Escrituras Sagradas. Pois se
alguém outro, que não tem a experiência própria, o fizesse, não
teria a coragem para tanto ou lhe faltaria credibilidade. Eu, porém,
já me desgastei nisso por muitos anos e sei por experiência
própria, bem como pelo diálogo com muitos, que é um estudo
frívolo e pernicioso. Por isso aconselho a todos vós, tanto quanto
posso, a eliminar rapidamente esse tipo de estudo e a
decididamente não procurar defender e pôr tais coisas em prática;
antes, tratai a questão como habilidades pouco recomendáveis que
aprendemos só para torná-las inócuas, ou como equívocos, que
estudamos só para superá-los. Assim também é nesse caso:
devemos aprender essas coisas para rejeitá-las ou, na melhor das
hipóteses, para apropriar-nos da terminologia daqueles com que
temos que lidar. Pois está na hora de dedicar-nos a outros estudos
e de aprender Jesus Cristo, e este na condição de crucificado. 104

Contudo, pouca coisa teríamos entendido daquilo que Lutero


visava e, com certeza, estaríamos incorrendo em mal-enten didos, se nos
contentássemos com essa constatação genérica de uma antítese de
filosofia e teologia. Lutero sentiu-se em condi ções de assumir tal
postura por ser profundo conhecedor da filosofia; da mesma maneira não
devemos achar que podemos entender suas afirmações sem o
conhecimento do seu background histórico, muito menos que temos o
direito de apossar-nos, sem maior reflexão, de sua polêmica sem a
correspondente expe riência própria e intensiva com a filosofia e sem
levar em conta a diferença entre a nossa situação e a de Lutero.
Evidentemente temos que cuidar também para não desclassificar essas
manifes tações como desprezo leviano da filosofia, sem termos penetra do
no mérito da questão e termos realmente entendido o que Lutero
pensava. Pois ele era um pensador de grande acribologia e profundidade.
O que o inspirava naquele juízo não era a fuga do raciocínio, mas a
disciplina do pensamento teológico apro priado. Aliás, seu interesse em
toda essa questão não visava a opção entre filosofia e teologia duma
maneira geral, mas sim a alternativa de boa ou má teologia, de teologia
teológica ou pseudoteológica, e a importância que, para isso, cabe à
diferenciação de teologia e filosofia.

104
56,371,17-27 (1515/ 16).
Teologia e filosofia representam, de fato, duas correntes de
tradição de origem e natureza bem distintas: a fé cristã, que tem sua
origem histórica no mundo do judaísmo moldado pelo Antigo
Testamento, e o pensamento grego, no qual irrompeu, de forma singular,
a liberdade do espírito humano para questio nar racionalmente o
fundamento do ser. A conjunção das duas correntes, da qual nasceu o
mais poderoso e diferenciado com plexo histórico, jamais pôde negar o
caráter duma dualidade carregada de tensões. A ideia, no entanto, de que
essa ligação a rigor poderia e deveria ser desfeita, não só é uma tola
ilusão diante do real transcurso da história, como se pudéssemos anu lar
o acontecido e fosse possível escapar à influência histórica dessa
aliança de fé cristã e pensamento grego. Ignorar-se-ia, também, que já
na raiz as coisas não são tão simples que se pudesse reduzi-las à
simplória fórmula da mistura de duas con flitantes correntes de tradição,
que se devesse tornar a separar na medida do possível. Por mais que a fé
esteja ligada ao Antigo Testamento, ela não quer ser entendida como
uma modalidade de religião israelita-judaica. Na aceitação da missão
para o mun do, na descoberta de que os pagãos estão chamados para a fé
sem que devessem tornar-se judeus, já nos primórdios do cristianismo se
processou o esclarecimento decisivo da questão da fé cristã.
Consequentemente, Paulo não se vê compelido a adotar uma
alternativa pré-estabelecida, como arauto duma pregação hostil ao
pensamento grego. Antes, entende-se transportado, por assim dizer, a
uma terceira posição, a partir da qual está com promissado com judeus e
gregos, dirigindo-se a ambos na mesma abertura e dedicação, mas
também com igual disposição para contestá-los, na certeza de que na fé
a divisão em judeus e não-judeus ou em gregos e bárbaros está
superada. "Pois", como é dito em 1 Co 1.22s., num contexto de
fundamental importância para a posição de Lutero na questão de
teologia e filosofia, "en quanto os judeus pedem sinais e os gregos
procuram sabedoria, nós pregamos o Cristo crucificado, para os judeus
um escândalo, para os pagãos uma tolice, mas para os chamados, tanto
judeus como gregos, Cristo como poder de Deus e sabedoria de Deus."
A introdução da mensagem cristã no mundo greco-helenístico não é,
portanto, um evento fortuito e problemático para a pureza da fé cristã, e
sim consequência necessária daquilo que constitui a essência da fé
cristã e, por isso mesmo, necessária também para a pureza da fé cristã.
É de profundo significado que o Novo Testamento não foi redigido em
hebraico, como o Antigo, mas em grego. Ora, se esta liberdade e este
poder de encontro missionário com o mundo grego era parte constitu tiva
da fé cristã, então isso incluía, evidentemente, a disposição de
confrontar-se com o que constituía o lado forte da cultura grega: a
filosofia.
Sob a impressão de como esse encontro com a filosofia grega se
deu pela primeira vez e de forma planejada através dos apologetas da
cristandade primitiva e depois pelos alexan drinos Clemente e Orígenes,
que promoveram uma interpene- tração intensiva e decisiva para o
futuro curso da história da teologia, pode compreensivelmente oferecer-
se a conclusão de que aqui se tomou um caminho extremamente perigoso
e que coisas substanciais da fé cristã foram, se não abandonadas, pelo
menos obscurecidas, minimizadas e diminuídas. Sem negar a va lidade
de tal juízo crítico, cuja eventual modificação deveria ser objeto de
detalhada discussão, não se deve ignorar o seguin te: o fato dessa
disposição para o encontro com a filosofia é expressão de que se
entendeu que a fé cristã não é fuga para o gueto, mas missão ao mundo e
que, justamente para resguardar a sua pureza, deve expor-se ao processo
crítico de tal encontro.
O surgimento da teologia cristã é, por isso, inseparável da
disposição para uma responsável prestação de contas, para o que — à
diferença de todas as religiões — a fé cristã habilitava com
impressionante radicalidade. É verdade que o termo "teolo gia" provém
do mundo grego, só que lá designava originalmente a fala mitológico-
cultual a respeito do divino que não se dispu nha ao encontro com a
filosofia. Na conceituação de hoje, no sentido duma reflexão responsável
acerca da fé, "teologia" não é de origem grega, mas só se tornou
possível, cum grano salis, pela própria fé cristã. Desde a Igreja antiga, a
teologia cristã se encontra, por isso, sempre e de fato num diálogo de
variável intensidade com a filosofia. Significativamente, o decidido
apoio a essa postura foi sempre a característica da teologia ortodoxa.
Contudo, sempre havia uma consciência fundamental de que existe
uma diferença impossível de se eliminar. Mas, enquan to a adesão ao
cristianismo importava naturalmente, ao menos em princípio, mesmo que
nem sempre de fato, no abandono e na destruição da religião pagã, de
modo algum implicou, também, na destruição da filosofia. A vitória do
cristianismo tampouco teve como consequência a eliminação da
diferença de Igreja e Estado; pelo contrário, só agora a magnitude dessa
questão se tornou consciente e passou a ter seus efeitos. Da mesma
forma, o cristianismo, que agora alcançara um reconhecimento público
geral e vitimara, junto com os restos de religião pagã, também a
existência duma atividade filosófica não-cristã inde pendente, não podia
desejar que a filosofia como tal findasse ou se fundisse indistintamente
com o que a fé cristã tem a dizer, de modo que a teologia fosse, tão-
somente, uma modalidade cristã de filosofia. Era, antes, do interesse da
própria fé e teolo gia cristãs que a herança da tradição filosófica fosse
cultivada de forma especial e distinta. Durante toda a Idade Média, isso
aconteceu em união pessoal com a teologia, mas na consciência de que
se trata de tarefas distintas. O problema da diferenciação e relação
corretas de filosofia e teologia é essencialmente ineren te ao cristianismo
como a tensão irremovível entre saber e crer, razão e revelação, tensão
essa da qual o cristão não se deve desfazer, mas que lhe é imposta e que
ele deve aguentar.
Esse vasto background do nosso tema tinha que ser deli neado, ainda
que em rápidas pinceladas, para evidenciar a di mensão do problema. Se
em termos gerais o acento foi colocado duma forma que parece
contrariar a intenção de Lutero, isso aconteceu como que por medida
preventiva, para que, sob o impacto da confrontação direta, a partir da
qual Lutero fala e deve ser entendido, não se perca de vista o aspecto
básico da questão. É preciso falar rapidamente, ainda, da situação que
determinava a crítica de Lutero.
Característica básica da escolástica é uma determinada concepção
de ciência que, em princípio, tem igual validade para todos os ramos da
ciência, como, por exemplo, para a matemática e a medicina. Está
erigida sobre dois princípios: a autoridade e a razão. "Autoridade" de
modo algum apenas no sentido da tradição bíblica e eclesiástica; ao
contrário, também as ciências profanas vivem das obras da Antiguidade
que vieram até nós e cujos conhecimentos científicos valem como
autoridade normativa. Até nas ciências naturais, por exemplo, o método
científico consiste na interpretação de textos de reconhecida autoridade
e não na pesquisa empírica independente. Esse peso da autori dade da
tradição tem sua raiz, evidentemente, na mentalidade geral da Idade
Média, na qual a autoridade da ciência da Antiguidade e aquela da
tradição da revelação estão ligadas de tal maneira que, na hipótese de
um conflito, a autoridade da revela ção é decisiva. Por isso a ciência
escolástica, não apenas a teolo gia, é ciência eclesiástica, e os
estabelecimentos de formação, inclusive as universidades surgidas na
Alta Idade Média, são instituições eclesiásticas ou, ao menos, entidades
favorecidas com privilégios da Igreja. Nessa ciência baseada na
autoridade, a razão tem a tarefa de, usando o método silogístico, ou seja,
os recursos da dialética, conciliar contradições, rebater objeções e
desdobrar consequências — um campo de trabalho rigorosa mente
limitado pela autoridade, mas dentro do qual havia amplo espaço para a
atividade intelectual, que, talvez em consequência das mais variadas
restrições impostas à livre e arbitrária divagação, atingiu inéditas
culminâncias em termos de perspicácia e capacidade de visão sistemática
do conjunto.
No começo da Idade Média, o material filosófico da Antiguidade
ao qual se tinha acesso era extremamente exíguo; no limiar da Alta
Idade Média, porém, a descoberta das obras com pletas de Aristóteles
provocou uma monumental virada na his tória do intelecto que, não por
acaso, coincidiu com o ápice da influência e dominação universal do
papado e com o impres sionante ímpeto missionário universal das ordens
mendicantes. Inicialmente, a recepção de Aristóteles enfrentou
considerável resistência, inclusive por parte das autoridades
eclesiásticas. Entretanto, as restrições foram superadas sob a perspectiva
das grandes possibilidades que aqui se abriam justamente para a
teologia: relacionar harmonicamente fé e razão e conceber os horizontes
do natural e do sobrenatural num todo sistemático de abrangência
global. É o grande mérito de Tomás de Aquino ter elaborado esta visão
de conjunto até os mínimos detalhes, fiel ao princípio: "Pois, como a
graça não tolhe, mas aperfeiçoa a natureza, importa que a razão humana
preste serviços à fé, assim como a inclinação natural da vontade está às
ordens da caridade." 105 Por questão de princípio, não pode haver
contradição entre teologia e filosofia. A revelação é suprarracional,
todavia não é antirracional. As verdades da fé não podem ser provadas
de modo concludente, mas também não podem ser refutadas; além disso,
pode-se demonstrar que não contêm contradições em si e possuem uma
analogia com a realidade natural.
Assim, por um lado, a razão — que desta maneira teve um
emprego muito mais abrangente do que antes — estava sob controle: por
outro, fora chamada para conquistas triunfais e, com isto, colocada num
caminho no qual se conscientizaria das possibilidades que nela
dormitavam e, no qual, ao mesmo tempo, seu relacionamento com a
verdade da revelação haveria de mos trar mais autonomia, obstinação e
dificuldade de harmonização. Foi justamente a herança agostiniana, mais
atuante entre os franciscanos, que tornou questionável a ideia do encaixe
perfeito de conhecimento racional do mundo e a doutrina eclesiástica da
fé. O conceito aristotélico de ciência continuou sendo mantido e seus
contornos foram ainda mais elaborados, mas o caráter científico da
teologia podia ser reconhecido, na melhor das hipó teses, num sentido

105
S. t h. I q. 1 a. 8 ad 2.
muito restrito ou então impróprio. No nominalismo da Idade Média
Tardia, liderado por Guilherme de Occam, o raciocínio concentrava-se,
ao contrário de Tomás, em evidenciar o ponto de ruptura entre razão e
fé, apoiado na dife renciação válida em relação a Deus que, na sua
potentia absoluta106 , poderia ter disposto tudo de modo bem diferente, cuja
ação, portanto, não está sujeita a critérios e necessidades superiores a
ele, ainda que, em sua potentia ordinata107 , se tenha compro metido com as
condições de fato existentes, que ele mesmo esta beleceu uma vez.
Filosofia e teologia entram aqui em acentuada tensão, mas numa
peculiar ambiguidade dessa tendência. De um lado está presente aí um
legítimo pathos religioso: o caráter diferente da causa da teologia, sua
antítese à razão, sua funda mentação na fé e na autoridade da revelação
são grandemente valorizados. Por outro, este efeito é obtido justamente
pelo uso intensivo e formalista da razão, que se dedica a demonstrar a
não-evidência, o caráter não-fundamentável, a autoridade de validade
apenas positivista da doutrina eclesiástica, ficando na dúvida se isso
enaltece a fé ou a razão.
Em Erfurt, Lutero se formou no espírito occamista. A tendência de
ver filosofia e teologia numa certa tensão e de submeter até Aristóteles,
vez por outra, à crítica era-lhe bastante familiar, portanto. Disso
achamos sinais característicos em anti gas glosas suas, onde as
observações contra o "filósofo ranço- so" 4 , o "fabulador Aristóteles" 5 e
contra a "deslavada parola de que Aristóteles não estaria em dissonância
com a verdade católica" 6 certamente não podem ser considerados
documentos muito antigos de sua posição reformatória, mas, ponderando
bem todos os aspectos, dificilmente podem ser minimizados co mo jargão
de escola do nominalismo de Erfurt. Manifesta-se aqui sem dúvida um
timbre particular, paralelo àquela obser vação em carta citada no início,
ao menos no que se refere à força e à maneira de acentuar. A discussão

106
N. do T.: Poder absol ut o.
107
N. do T.: Poder ordenado,
4
9,43,5 (1510/ 11). 5 9,23,7 (ca. 1509). 6 9,27,22-4 (ca. 1509).
de Lutero com Jodokus Trutfetter, seu antigo professor de Erfurt, em
1518, documentada por cartas, mostra o quanto se tem que ser cauteloso
na utilização do nominalismo de Erfurt para explicar tudo. Ape sar de
testemunhar ao venerando professor ter aprendido pri meiro dele que só
aos livros canônicos se deve fé, a todos os outros uma análise
judiciosa 108 , Lutero se distancia rigorosamente dele, o princeps
dialecticorum109, para o qual ele próprio ("Lutero) aparenta não ser uma
pessoa versada em lógica — e Lutero acrescenta: "Talvez eu não seja
mesmo" 110 — mas que Lutero conta entre aqueles que se submeteram a
Aristóteles e que por isso não podem entender o sentido de um só
capítulo da Bíblia 111 . A relevância hermenêutica da atitude
antifilosófica manifestada já nas antigas glosas Lutero, em todo caso,
não aprendeu de Trutfetter.
Na disputa de Lutero com a filosofia dominante de sua época,
seu interesse específico está exatamente aí: abrir para a teologia a
genuína compreensão das Escrituras Sagradas, obs truída pela
terminologia e pelo enfoque do pensamento aristotélico. Por isso, desde
o começo, a linha básica de seu trabalho exegético foi a de captar a
peculiaridade da forma de falar e pensar da Bíblia, ao contrário da
linguagem tradicional da teolo gia escolástica, moldada pela filosofia.
Assim ele constata, por exemplo, que intellectus, em discrepância da
compreensão filosó fica como faculdade humana, na Bíblia seria
entendido mais na sua determinação a partir do objeto, de maneira que
a conceituação formal é superada pela orientação na respectiva matéria.
De acordo com isso, verdadeiro intellectus não é qualquer cabedal de
conhecimentos, mas o especificamente bíblico, ou seja, a sabe doria da
cruz de Cristo e com isso a fé, enquanto o assim chama do intelecto
humano, ao contrário, é mera sensualitas**112, que inclui a ratio***113

108
WA B r 1,171, 74, 72s. (9.5.1518).
109
N. do T.: P rí nci pe, o pri m ei ro dos di al ét i cos.
110
WA B r 1,170, n° 74, 3S -40 (9.5.1518).
111
WA B r 1,150, ní 61, 41- 3 (22.2.1518).
112
* ** N. do T.: S ensual i dade, sensit i vi dade.
113
*** N. do T.: R azão.
humana, porque ela, afinal, não é capaz de com preender as coisas
espirituais, as spiritualia114 .
Ou então: na filosofia substantia significa a essência in terna de
algo; na Bíblia, porém, esse termo é usado justamente
no sentido de algo que existe externamente, que dá sustentação a algo,
que dá firmeza, onde se pode firmar os pés, no sentido de víveres, por
exemplo, daquilo de que se obtém a subsistência: o rico da riqueza, o
sadio da saúde, etc. O aspecto comum com o conceito filosófico de
substância é que em ambos se trata da questão de o que faz com que algo
seja o que é. Mas, enquanto a filosofia caminha, num procedimento
lógico, do fenômeno para a essencialidade interna intemporal, para as
quidditates rerum*115 — por exemplo, no sentido de que a essência da
condição de rico está obviamente na riqueza, de modo que a riqueza é a
essentia lógica no conceito de rico — as Escrituras, como Lutero
constata, não se importam com as quidditates rerum mas apenas com as
qualitates, precisamente com as coisas externas, portanto, ou seja, com a
relação de alguma coisa para fora de si mesma, com sua conexão com
outras e, consequentemente, com aquilo que lhe sucede a partir de fora.
Aqui não se trata do interesse na essentia mas na existentia, não da
perspectiva lógico-meta- física mas da histórica. Que a riqueza faz do
opulento um rico implica, nesse raciocínio, os aspectos de tempo e
processo: ele só é rico enquanto sua riqueza durar. Ao mesmo tempo,
interfere a relevância do "relacionar-se com": o rico só é rico na medida
em que ele se entender a partir da riqueza, permitir que ela seja a
substância de sua personalidade e colocar nela sua con fiança, de modo
que depende do ser humano decidir o que deverá ter substância. A
pessoa tem substância de acordo como ela é e se conduz 116 .
Um terceiro exemplo característico, de acento um pouco diferente:
em Rm 8.19 Paulo fala da expectativa da criação. Lutero acha que o
apóstolo desenvolve um raciocínio filosófico sobre as coisas que é

114
3,176,3-14 (1513/ 15) = B oA- 5,107,12- 25.
115
* N. do T.: Qüi di dades das coi sas.
116
3,419,25-420,1 (1513/ 15) = B oA- 5,136,10- 26.
totalmente diferente daquele dos metafísicos. Eles só cravam os olhos na
existência e analisam a essencialidade e as propriedades das coisas. O
apóstolo, pelo contrário, nos convida justamente a desviar os olhos da
contemplação do pre sente e com isso da perspectiva da essentia e dos
acidentes. Faz-nos olhar as coisas na perspectiva de seu futuro. Não ver
o ente simplesmente como o que está aí de modo intemporal, mas, como
o faz o apóstolo, compreendê-lo como a criação expectante, ansiosa e
prenhe de futuro, é uma visão bem diferente; a própria criação está
integrada nesse movimento de desprezar o existente e de estender-se
avidamente para o que ainda não é. Somente nessa sua temporalidade as
criaturas podem ser con sideradas como tais 117 .
O público acadêmico tomou conhecimento do rigor do modo de
pensar antiaristotélico de Lutero através da Disputatio contra scholasticam
theologiam, de setembro de 1517. Impiedosas, ainda que em polidas
formulações, caem aqui as palavras:

E um erro dizer que, sem Aristóteles, ninguém se torna teólogo.


(...) Muito pelo contrário, ninguém se torna teólogo a não ser sem
Aristóteles. Dizer que o teólogo que não é um lógico é um
monstruoso herege, é uma afirmação monstruosa e herética. (...)
Em suma, todo o Aristóteles está para a teologia como as trevas
estão para a luz.

Digna de nota, no entanto, é a observação que logo se segue, dizendo


que é altamente duvidoso que os teólogos ocidentais tenham entendido
Aristóteles corretamente 118 . Este ponto de vis ta de Lutero, externado
também em outras ocasiões, questio nando se o Aristóteles escolástico
seria o autêntico, é um sinal importante, que aponta não só para a
necessidade duma revisão crítica da interpretação escolástica de
Aristóteles, mas sobre tudo para o verdadeiro propósito da crítica de

117
56,371,2- 372,25 (1515/ 16).
118
Debat e sobre a t eol ogi a escol ást i ca, i n: Obras selecionadas, p. 17s. (1517).
Lutero a ele. Para Lutero não se trata — disso ele está plenamente
consciente — de Aristóteles em si, mas do uso que dele se fez na
teologia. É de se perguntar se dessa maneira não se cometeu uma
injustiça tanto para com a teologia como para com o próprio Aristóteles.
Nesse caso a crítica de Lutero a Aristóteles poderia até, no fundo,
implicar uma defesa de Aristóteles. Mas essas perspec tivas não
interessam a Lutero. Sua luta contra Aristóteles é luta a favor do
raciocínio teológico correto. Por isso. o verda deiro acesso às suas ideias
não se dá através de invectivas antiaristotélicas de caráter geral, e sim
pela compreensão dos contextos teológicos concretos em que o uso de
formas aristotélicas de pensamento se torna fatal.
Uma questão decisiva para Lutero é o aproveitamento da
psicologia aristotélica no ponto central da teologia escolástica, na
doutrina da graça, como meio de interpretação do aconte cimento da
graça. Em analogia com as virtudes intelectivas e morais, a graça é
entendida como um habitus que aperfeiçoa o ser humano em suas
capacidades anímicas, como suma das virtudes teológicas fé, amor e
esperança. Quando Lutero, aludin do ao clássico exemplo aristotélico
para um habitus, ou seja, que é tocando citara que a pessoa se torna
tocador de citara, que a capacidade se forma, portanto, através do
exercício, pela repetição do ato, afirma: "Não nos tornamos justos por
realizarmos coisas justas; é tendo sido feitos justos que realizamos
coisas justas" 119 , isso não visa propriamente Aristóteles. Pois Lutero não
quer combater a descrição aristotélica do surgimento daquela habilidade
técnica, nem tampouco sua aplicação no cam po moral, desde que mantida
a distinção daquilo que se visa sob o aspecto teológico. Por que se
deveria negar que também em sentido moral se pode adquirir
determinada virtude pelo exercício? O perigo da ética aristotélica não
está nela própria, mas na sua intromissão na doutrina da graça. É de se
perguntar, por certo, em que medida a abordagem ética de Aristóteles é
incompatível, já por princípio, com aquilo de que trata a teologia. Na

119
Por exem pl o: ibid., p. 17 (1517).
realidade, a polêmica de Lutero contra o esquema aristotélico da
formação dum habitus por repetição do ato, na melhor das hipóteses
atinge a doutrina escolástica da graça apenas nas suas depravações
nominalistas extremas, não na sua versão usual. A escolástica distingue
muito bem entre um habitus acquisitus, um habitus que se adquiriu mesmo, o
que só ocorre no campo das virtudes naturais, e um habitus infusus, um
habitus infundido, dado de graça, do qual se trata, exclusivamente, no
acontecimento da graça. Mesmo assim, a interpretação do acontecimento
da graça com o esquema do conceito aristotélico de virtude — Lutero viu
isso muito bem — é a causa da mescla com a ideia do mérito e da
incapacidade de distinguir rigorosamente entre o aspecto moral e o
teológico.
O ataque de Lutero contra a concepção escolástica da relação de
filosofia e teologia, tanto na versão tomística como na occamista, inclui
tarefas de que ele mesmo, por razões com preensíveis, pouco tratou, mas
que não podem ser ignoradas, devendo ser meditadas como legado de
Lutero à posteridade. Ele próprio contribuiu para isso com considerável
trabalho preliminar. No entanto, são apenas primeiros passos que
carecem de desenvolvimento.
Um primeiro ponto: a crítica de Lutero às formas de pen samento
escolásticas coloca diante de tarefas em que o trabalho da teologia tange
o da filosofia, ou seja, a elaboração de concei tos e questionamentos
adequados para tratar do ser humano em sua historicidade. Não que a
teologia simplesmente tenha que se entregar a uma outra filosofia em
vez da aristotélica. A própria teologia é responsável por sua linguagem.
Desta responsabilidade, porém, faz parte também o diálogo com a filoso -
fia. A teologia não seria teologia responsável se se isolasse em sua
responsabilidade terminológica. Ela até é corresponsável pela linguagem
da filosofia. O que se pode aprender de Lutero para um discurso
adequado sobre o ser humano em sua historici dade foi notado, aliás, sob
vários aspectos, antes na filosofia do que na teologia.
Um segundo ponto: um exemplo expressivo de que Lutero não joga
simplesmente a teologia contra a filosofia, mas analisa a relação
diferenciadamente como uma relação em que se faz necessário distinguir
e onde cada uma recebe sua área específica, é o debate sobre o ser
humano de 1536 120 . Bem compreendida, a razão humana é realmente algo
divino 121 . Se ela ficasse dentro dos seus limites, tratasse do que lhe
compete, fosse realmente racional, não poderíamos enaltecê-la
suficientemente. Por outro lado, a razão que tiraniza a consciência e se
coloca no lugar de Deus deve ser destruída pela fé 122 . A partir da
teologia de Lutero e à luz de suas manifestações extremamente opostas
sobre a razão, coloca-se a tarefa de aprofundar e explicitar o
relacionamento de teologia e filosofia.
E isso leva a um terceiro ponto: a necessidade de estudar mais
acuradamente o conceito de teologia de Lutero no que se refere à
doutrina teológica de compreensão nela implícita, isto é, à hermenêutica
nela implícita. Nos próximos capítulos não se trata de outra coisa do que
de abordar, de diversos ângulos, os problemas fundamentais do
pensamento de Lutero arrolados nessa preleção.

120
39/ 1,174-80 (1536).
121
39/ 1,174,9s. (1536).
122
40/ 1,361,8s. (1531).
VI
LETRA E ESPÍRITO

Para Lutero, teologia era duas coisas ao mesmo tempo: sua


profissão, seu ofício, a área de que entendia e na qual tinha por dever
ter profundo conhecimento; mas simbolizava também aquilo que decide
sobre a condição humana, a verdade que pro porciona certeza, salva e dá
vida. Objeto de conhecimento, da capacidade, da atividade científica,
por um lado; por outro, questão da fé, da graça, da ação divina. Sob o
primeiro aspecto tratava-se das Sagradas Escrituras, do trabalho de sua
interpretação, da doutrina que lhe corresponde; sob o outro, tratava-se
da própria existência, do ser atingido, do Espírito Santo. Portan to, por
um lado a questão era entender e poder dizer algo; por outro, entender-
se a si mesmo com base no que lhe foi dito.
Como pessoas da era moderna, estamos inclinados a acen tuar
fortemente esta diferença de aspectos. O líder da teologia do
iluminismo, Johann Salomo Semler, ajudou a estabelecer o postulado de
que é preciso distinguir entre teologia e religião. Uma seria assunto do
raciocínio, uma determinada habilidade intelectual, um método que pode
ser aprendido; a outra seria coisa do coração, da experiência, do
sentimento. Para ser cristão, não é preciso ser teólogo. E a formação
teológica não torna alguém cristão. Teologia é ciência da religião, esta
por sua vez é vida que se desenvolve e realiza em sentido imediato.
Claro que há ligações. Como entidade pública e comunitária, como
Igreja, portanto, a religião necessita da teologia. E natural mente a
teologia se beneficia de alguma forma quando o próprio teólogo tem
uma relação vivencial com o objeto; ele deveria sobretudo levar a sério
para si mesmo o que ensina e identifi car- se pessoalmente com isso.
Mesmo assim, a diferença dos aspectos de saber e fé, história e vida, da
explanação e exposição objetivas do assunto, da assim chamada
explicatio, e da adesão subjetiva à causa, do posicionamento próprio,
respectivamente do aconselhamento ou do desafio para tanto, da assim
chamada applicatio, é a dominante. Embora não se pretenda negar uma
relação constante, distingue-se claramente entre o que é objeti vamente
constatável, metodologicamente demonstrável e cienti ficamente
defensável por um lado e da convicção subjetiva, do comprometimento
da consciência e do envolvimento pessoal por outro lado, ou, como
também se costuma dizer: entre a verdade histórica e a existencial.
Pensou-se, por isso, que a competência da interpretação de textos do
passado e, consequentemente, tam bém da hermenêutica como reflexão
sobre o compreender, seria só aquele um lado, onde impera o aspecto do
método e da historicidade, enquanto a atualização e a apropriação
pessoal fica riam entregues ao acaso, respectivamente à intuição, e que
constituíam coisas tão pouco discutíveis quanto questões de gosto.
Para a teologia, que por um lado lida com determinados textos
transmitidos, nesse sentido, portanto, com algo historica mente dado, por
outro lado com palavra e fé, e isso em íntima conexão de texto e
pregação, história e fé, o problema da herme nêutica é de importância
fundamental. Sobre isso, a rigor, não pode haver discussão. Discutível
só pode ser a maneira e o grau de radicalidade com que se enfrenta o
problema da herme nêutica na área da teologia. A teologia terá que
perecer quando se separa aquilo que, por suas pretensões, forma uma
unidade: a compreensão da tradição bíblica e a compreensão implícita na
fé. Se a teologia não foge do problema hermenêutico, não pode reduzi-lo
a uma assim chamada compreensão histórica, mas terá que manter e
estender o contexto de compreensão até a atual situação do entender e
até aquilo pelo qual se deve responder na atualidade. No entanto, o
engajamento hermenêu tico especial da teologia nesse sentido não deve
levar à conclusão de que se trata aqui dum caso excepcional. Na teologia
se revela apenas de uma maneira particularmente clara o que vale para
qualquer ocupação responsável com tradição, com textos de im portância
para a atualidade, seja na filosofia, na jurisprudência, na filologia
clássica, na germanística, etc.: a hermenêutica trata dum processo de
compreensão que estaria incompleto, atrofiado por assim dizer, se não se
estendesse até a atualidade.
Essa mudança hodierna na concepção do problema herme nêutico,
como ela se esboça não apenas na teologia mas em toda a vida
intelectual de nosso tempo, aproxima-nos, de novo, da maneira como
Lutero encarava esta questão; tal mudança está determinada também,
direta ou indiretamente, por impulsos que procedem de sua
hermenêutica. Para ele, teologia como obje to de pesquisa e como ponto
de envolvimento pessoal constituía uma unidade inseparável. Lembro,
mais uma vez, a já citada passagem de uma carta sua dos primeiros
tempos 123 : interessa-lhe uma teologia que pesquise o albume da noz, o
miolo do trigo e o tutano dos ossos. É com esse desejo que estuda as
Escrituras Sagradas. Sua opinião posterior, emitida retrospectivamente,
de que, no tempo em que papado e escolástica imperavam, as Sagra das
Escrituras "estavam deitadas debaixo do banco" 124 , referia-se mais aos
efeitos reais do que à valoração teórica da Bíblia. Pois sua autoridade
incomparável era pacífica, evidentemente. A questão da relação de
Escritura e tradição não fora ventilada muito na teologia dominante.
Somente a Reforma obrigou a defi nições claras aqui. Com sua invocação
do princípio de exclusivi dade das Escrituras, ela pôde reportar-se, ao
menos, a uma situação dogmaticamente aberta, em parte até a tendências
que pareciam indicar claramente na direção do posteriormente assim
chamado princípio escriturístico da Reforma. Nesse sentido, Lu tero
sabia-se, com gratidão, comprometido com seu professor Trutfetter, de
Erfurt 125 . Já muito antes da formulação teórica do princípio escriturístico
da Reforma, na verdade desde os mais antigos documentos de seu
trabalho teológico, vemos Lute ro dedicado praticamente só à Bíblia.
Para ele, teologia se resume em ser interpretação das Sagradas
Escrituras. Para ele, esta tarefa se fundia completamente com a questão

123
V, aci m a, p. 61s.
124
P or exem pl o: 30/ 11,300,4-6 (1530).
125
C f. aci m a, p. 68s.
de como estaria ele diante de Deus, que era a pergunta que o
preocupava. Pois estava fora de qualquer dúvida para ele que a vontade
de Deus só atinge o ser humano de forma revelada e compreensível pelas
Escrituras.
Todavia, com isso não estava definido como isso acontece. Um
princípio formal das Escrituras é problemático. Pode trans formá-las
numa lei oprimente. Pelo visto, se apenas a Bíblia é para vigir, tudo
depende de como se entende esta vigência e de como se interpreta a
Bíblia. Ela tem, como um adágio anterior a Lutero caracterizava esta
problemática hermenêutica, "um nariz de cera' 126
, isto é, sua face pode
ser modificada ou desfigu rada desta ou daquela maneira por
interpretações arbitrárias. É preciso dedicação excepcional para não
violentar as Escrituras a partir de aspectos isolados, mas para apreendê-
las em sua única linha básica. Quanto menos se abordar a Bíblia a partir
de posição segura, apenas com questões isoladas referentes a exigências
a cumprir ou ao enriquecimento do saber, quanto mais radicalmente
estiver em jogo a própria existência no confronto com ela e,
concentrando-se na questão central que diz respeito à própria existência
humana e sua consciência, em última análise se esperar uma só coisa das
Escrituras, qual seja, a palavra que dá certeza na vida e na morte, tanto
melhores são as perspec tivas de se obter uma compreensão e
interpretação adequada. Seu tema básico, pelo que se depreende, é esta
única e definitiva palavra, que se chama palavra de Deus justamente
porque é a palavra decisiva sobre o caráter humano da existência do ser
humano.
Nos já citados retrospectos de Lutero referentes ao avan ço até a
percepção básica da Reforma 127 , encontramos, de forma impressionante,
esta luta pela compreensão da Bíblia, presente na preocupação com a
pergunta pelo que confere certeza à cons ciência. Contudo, isso não deve
induzir à errônea suposição de que se tratasse somente da compreensão
correta de uma única passagem bíblica. É verdade que o próprio Lutero
126
Por exem pl o: l ,507,34s.
127
V. aci m a, p. 30ss.
enfatiza que a correta compreensão de Rm 1.17 fez com que a Bíblia
toda adquirisse outra face e que esse versículo lhe propiciou uma
percepção de enorme repercussão hermenêutica. Não obstante, também
assim ainda se corre o perigo de ver aquilo que aconteceu na lida de
Lutero com as Escrituras sob ângulo demasiadamente estreito. Seus
trabalhos preparatórios para o primeiro curso sobre os Salmos são um
documento único do esforço de entender as Escrituras de tal maneira que
não permanecessem mera letra, isto é, algo estranho, distanciado e
externo, mas que se tornas sem Espírito, isto é, que se tornassem vivas
no coração e tomas sem conta do ser humano. Pois a pergunta pela
verdadeira compreensão espiritual das Sagradas Escrituras, uma
compreensão por força da qual o próprio Espírito se apodera do ser
humano, é idêntica à pergunta do atribulado pela realidade da graça,
pela certeza que torna certa a consciência. Pois que é a graça, senão a
presença do Espírito Santo?
Lutero o formula, portanto, como princípio hermenêutico para sua
primeira preleção exegética:

Nas Escrituras Sagradas, o melhor é distinguir o Espírito da letra;


pois é isso que torna alguém verdadeiramente teólogo. E a Igreja
tem isso unicamente do Espírito Santo e não de ideia humana. 1 2 8

Quanto a como se deve ouvir e ler a palavra de Deus, a exegese de Sl 45


explica: não deveríamos empreendê-lo baseados em nossas próprias
forças, nem contentar-nos com a letra e a pala vra ouvidas exteriormente,
mas pretender escutar o próprio Es pírito. A palavra apresentada
externamente não é propriamente aquilo que dá instrução interna. Ela é
apenas ferramenta e instrumento daquele que escreve palavras vivas nos
corações. O que a voz expressa vocaliter129 deve ser compreendido
vitaliter**130 no coração através do Espírito Santo. Desta forma, o Espírito

128
3,12,2-4 (1513/15). Agora também: 55/1/1,4,25-7.
129
* N. do T.: Vocalmente.
130
** N. do T.: Vitalmente, vivencialmente.
tem que proceder da letra. O Espírito está oculto na letra. Mas isso tem
que ser compreendido num sentido muito profundo e teologicamente
substancial. A letra não é boa palavra, antes é lei da ira de Deus. O
Espírito, no entanto, é boa palavra, boa nova, evangelho, por ser palavra
da graça 131 . Ou então, em outra formulação: o que é dito na lei e relatado
como fato, são meros termos e símbolos. As palavras e os
acontecimentos do evangelho, porém, são realidade e constituem o
próprio objeto que designam. 1 3 2
Por isso este esforço pela correta compreensão das Escritu ras
orientado para o Espírito, visa automaticamente atuali dade. Pois o
Espírito Santo é por definição presença atualizante, Espírito vivificante,
em contraste com a letra, que está presa ao passado e, por isso, entrega a
pessoa ao passado. É por esta razão que Lutero, nessa preleção, não
apresenta apenas acerba crítica contra uma interpretação historizante dos
salmos, como o tentou, no século XIV, o franciscano Nicolau de Lira,
seguindo exemplo de exegetas rabínicos. O ponto de partida
hermenêutico na antítese de letra e Espírito leva Lutero à percepção da
inconservabilidade da compreensão. A compreensão é uma tarefa
contínua e infindável, que acompanha a progressão da existência. Pois
uma compreensão já adquirida ameaça de novo converter-se de Espírito
em mera letra, a não ser que seja sempre de novo adquirida e assimilada.
Portanto, na compreensão das Escrituras é preciso progredir
constantemente. O Espírito se torna letra; mas também a letra sempre de
novo tem que transformar-se em Espírito. Um nível de conhecimento
sempre é a letra para o Espírito do próximo nível. Aqui se revela uma
admirável percepção da historicidade do compreen der. Quando o
salmista reza: "Sou teu servo: dá-me entendi mento para que eu conheça
os teus testemunhos" 133 , de acordo com Lutero isso deve ser explicado da
seguinte maneira:

131
3,255,41-256,38 (1513/ 15) = B oA 2 5,112,32-113,37.
132
3,258,8s. (1513/15).
133
Sl 119.125.
O salmista pede por entendimento em contraposição à mera letra,
pois o Espírito é entendimento. Mas, assim como o tempo passa,
também acontece com letra e Espírito. Pois o que bastava para o
entendimento deles naquela época, para nós agora é letra. Como já
dissemos, a letra hoje é bem mais sutil do que outrora, e isso por
causa da progressão do tempo. Pois (...) para todo aquele que está
a caminho, tudo que deixa para trás e relega ao esqueci mento é
letra, e aquilo em busca do qual se volta para a frente é Espírito.
Pois tudo que já se possui é letra em relação àquilo que se
pretende conquistar (...).

E Lutero tem a ousadia de exemplificar isso nos dogmas tradi cionais:


O artigo da Trindade, quando, no tempo de Ário, foi formulado
expressamente era Espírito e só alguns poucos o entendiam; hoje,
no entanto, é letra por tratar de algo óbvio — a não ser que nós
acrescentemos algo diferente, a fé viva nele. Por isso devemos
rezar sempre pelo entendimento, para não petrificar-nos na letra
que mata. 134

Com o uso do binômio "letra e Espírito" Lutero está num amplo


contexto de tradição. A antítese foi forjada por Paulo e exerceu
marcante influência na história do pensamento principalmente através de
2 Co 3.6: "A letra mata, mas o Espírito vivifica." Como diferenciação
entre um entendimento segundo o mero teor externo e um entendimento
segundo o sentido inter no, entre a permanência na letra morta e a
penetração no espírito vivo dum texto, esta palavra de Paulo foi
transformada numa fórmula geral de hermenêutica. Mas com isso houve
um enorme afastamento daquilo que Paulo visava com a antítese. Para
ele, não se tratava dum princípio básico da compreensão de textos, mas
da distinção entre a lei da antiga aliança e o Espírito como fator
determinante da vida no âmbito da nova aliança. O primei ro, sem
134
4,365,5-14 (1513/ 15) = B oA 2 5,204,11-21.
dúvida, se caracteriza essencialmente como "prescrição" transmitida,
com a qual se confronta o acontecimento da conces são do Espírito
através da pregação da fé. Dessa maneira, no entender de Paulo, a
questão do entendimento está ligada, num sentido muito profundo, à
distinção entre letra e Espírito no sentido de lei e evangelho.
Na história da teologia, porém, esta ligação foi logo igno rada.
Orígenes interpretou a antítese de Paulo de forma platonizante no
sentido de que a esfera do sensorial teria que ser supe rada em direção ao
inteligível. Disso surgiu uma justificação da interpretação alegórica, que
progride do sentido literal ao espiritual, figurado. Com essa
interpretação de 2 Co 3.6 Orígenes influenciou decisivamente a história
da hermenêutica e suposta mente legitimou o procedimento alegórico a
partir do centro da teologia paulina. E verdade que, no debate com os
pelagianos a respeito da correta interpretação de Paulo, Agostinho
reconheceu que em 2 Co 3.6 littera e spiritus não são usados como termos
genéricos da hermenêutica, mas para caracterizar a dife rença entre lei e
graça. Ao lado disso, porém, também ele usa o binômio na interpretação
de Orígenes, ainda que restrito ao sentido de que a letra, como sinal, tem
uma função necessária. Por essa razão, na hermenêutica medieval
influenciada por Agostinho, o sentido literal das Escrituras permanece
em vigor como o sentido próprio e como o único que, também em
questões teológicas conflitantes, pode fornecer provas. No entanto, nas
passagens em que a compreensão literal é obscura, ofensiva ou não
imediatamente edificante, ou em que seu caráter edificante pode ser
incrementado mediante a revelação de mistérios mais profundos, o
sentido literal pode e deve ser complementado e sobrelevado por meio de
um sentido espiritual-alegórico, po rém de tal maneira que este último
tem que ser demonstrável, em termos de conteúdo, alhures na Bíblia em
explicação literal.
Procurou-se, desse modo, traçar limites para os perigos da
interpretação alegórica, atrelando sua tendência lúdica ao texto bíblico
em geral e sobretudo à doutrina eclesiástica. Além disso, as
possibilidades de interpretação alegórica foram siste matizadas
dogmaticamente pelo esquema dum quádruplo sentido das Escrituras.
Sobre o literal erguem-se — se bem que não em todos os textos — três
tipos de interpretação espiritual — numa terminologia em parte
arbitrariamente forjada: a interpre tação alegórica com vistas à área da
Igreja e do dogma, a inter pretação tropológica ou moral com vistas ao
indivíduo e a anagógica, visando os mistérios metafísicos e
escatológicos. Com esse método foi possível fazer com que os textos
bíblicos frutificassem, sem perigo e nos mais diferentes sentidos, para o
dogma eclesiástico. Mas justamente com isso encobriu-se o verdadeiro
perigo desse procedimento. A relação com o texto bíblico deixou de ser
séria. A qualquer momento era possível fugir da rigorosa atenção ao
próprio texto. E na iminência de conflito com a dou trina eclesiástica
dominante era preciso usar a arte da interpre tação como velada
reinterpretação.
Surpreendentemente, no início de suas lidas com a Bíblia Lutero
apoiou expressamente esse tradicional quádruplo sentido das Escrituras.
De certa maneira ele até lhe foi útil no caminho para a compreensão
reformatória das Escrituras. Claro que, des de logo, a brincadeira com o
texto, para a qual o método seduzia, estava excluída para Lutero pela
seriedade incondicional da quilo que, para ele pessoalmente, dependia da
interpretação da Bíblia. Por isso mesmo, sua utilização do quádruplo
sentido não se caracterizava pelo prazer no jogo do sentido múltiplo, e
sim pela decidida pergunta pelo sentido inequívoco do texto. Comparada
com a exegese um tanto estéril da Idade Média Tar dia, a do Lutero pré-
reformatório — um teólogo que a essa altura ainda deve ser considerado
adepto da escolástica tardia — constitui um fenômeno invulgar. A nova
atmosfera se caracte riza, além do aspecto existencial, pelo fato de
Lutero não usar a distinção entre letra e espírito apenas no sentido
domesticado que ela havia assumido na teoria hermenêutica da
escolástica. Antes, por um lado ele tende para uma concepção antitética
por princípio, como ela constituía, na qualidade de ideia ontológica, o
pano de fundo do pensamento de Orígenes e de forma seme lhante
também do neoplatonismo. O contraste de letra e espírito está embutido
numa plêiade de antíteses semelhantes: do carnal e do espiritual, do
visível e do invisível, do sensorial e do inte ligível, do aparente e do
oculto, do exterior e do interior, do in ferior e do superior, do humano e
do divino, do terreno e do ce lestial, do temporal e do eterno, do que
existe agora e do que será no futuro, da inverdade e da verdade.
Contudo, apesar de certas correlações e afinidades, não se pode falar de
neoplatonismo no caso do próprio Lutero. Prova disso é que a sua com -
preensão de letra e espírito, de aparente colorido neoplatônico, está tão
rigorosamente orientada pela base bíblica, que nele se anuncia o sentido
paulino original de lei e graça, dando início a um esforço por uma
compreensão espiritual que não pode mais ser confundida com a usual
interpretação alegórica.
É elucidativo como Lutero, em tudo isso, coloca o esque ma do
quádruplo sentido a serviço da verdadeira compreensão das Escrituras.
Não é o sentido literal como tal que é "letra que mata", e as
interpretações alegórica, tropológica e anagógica sobrepostas a ele não
são, por si, "Espírito que vivifica". Pelo contrário, a decisão básica entre
letra que mata e Espírito que vivifica acontece em razão do conteúdo
expresso pelo quádru plo sentido em seu conjunto. Ele pode ser letra que
mata em seu todo, como pode ser em seu todo Espírito que vivifica,
dependendo se o entendimento se orienta por Moisés ou por Cristo. Com
isso, o esquema usual sai dos eixos. O sentido anagógico, mas também o
alegórico, sofrem acentuada perda de interesse. Toda a atenção se
concentra agora na relação de sentido literal e tropológico. O sentido
literal, no entanto, agora não é com preendido como sendo o histórico,
mas como o sentido cristológico do texto. Isto quer dizer: o sentido
básico a que se deve ater a reflexão sobre o Saltério é o próprio Cristo.
Devem-se colocar as preces do Saltério na sua boca e entendê-las como
devem ser entendidas quando não se tem como sujeito, como o eu dos
salmos, um ser humano qualquer mas o próprio Jesus Cristo. Começar
com Jesus Cristo, na qualidade de sentido e pa lavra básica da Bíblia,
torna-se princípio hermenêutico para Lu tero. "Outros", diz ele, "fazem
rodeios e, como se estivessem fugindo conscientemente de Cristo,
deixam dessa maneira de vir a ele com o texto. Eu, porém, sempre que
tenho um texto que é uma noz de casca dura demais para mim, lanço-o
de imediato contra a pedra (Cristo) e descubro então o mais doce
albume." 135
Se, entretanto, Cristo fala através do Saltério, a consequência é
que se destacam na imagem de Cristo os traços do sofrimento, do
carregar o pecado do mundo e do próprio aban dono por parte de Deus
com máxima nitidez. A interpretação cristológica dos salmos por parte
de Lutero vai muito mais longe, neste sentido, do que a tradição e se
constitui, por isso, em preparação para sua teologia da cruz. Mas, se
Cristo é o sentido básico, de modo que nele todas as palavras se tornam
uma só 136 , então a aplicação ao indivíduo, o sentido tropológico das
Escrituras, não pode consistir em alguma aplicação moral, na exigência
de determinadas obras do ser humano, mas visar unicamente a fé que
aceita Cristo. Trata-se aqui das raízes da mais antiga versão da doutrina
da justificação de Lutero. Pode ríamos dizer também: trata-se duma
compreensão do Espírito Santo que está rigorosamente orientada pelo
Cristo crucificado e, por isso mesmo, pela relação de palavra e fé. A
ocultação de Deus na cruz corresponde a estrutura da fé como ocultação
sob o contrário.

Quem reconheceria que aquele que visivelmente é humilhado, ten -


tado, condenado e morto, internamente é, ao mesmo tempo, sobre -
modo enaltecido, consolado, aceito e vivificado, não fosse o Espí -
rito ensiná-lo pela fé? E quem admitiria que aquele que visivel -
mente é enaltecido, honrado, fortificado e vivificado, internamente

135
3,12,32-5 (1513/ 15). Agora t am bém : 55/ 1/ 1,6,30-4 = BoA 2 5,46,27s.;
47,25-8.
136
4,439,20s. (1513/ 15).
é rejeitado, desprezado, enfraquecido e morto de maneira tão
miserável, se a sabedoria do Espírito não lhe ensinasse isto? 137

Está claro agora o que significa "espiritual": tudo, na medida em


que for entendido "diante de Deus", ou seja, à luz da cruz de Cristo e por
isso no sentido da ocultação de Deus sob o contrário. A salvação é
espiritual na medida em que não é compreendida como asseguramento do
ser-no-mundo, como concessão de bens temporais, mas como
crucificação com Cristo para receber a vida na morte. A pessoa que crê é
espiritual na medida em que se entende como oculta em Deus e aceita,
por-isso, sua ocultação perante o mundo para estar abrigada nessa
ocultação sob o oposto. A Igreja é espiritual na medida em que é
compreendida como oculta nessa vida e não deposita sua confiança nos
recursos terrenos de poder, mas sabe que tem que ser perseguida e que a
mais perigosa tentação é não sofrer perseguição e viver em segurança.
Até o pecado é espiri tual na medida em que é reconhecido diante de
Deus como justiça própria, como piedosa autoafirmação diante de Deus,
como fuga do reconhecimento da justiça de Deus para a autojustificação.
"Espiritual" não é um espaço determinado da existência, uma área de
pura espiritualidade, interioridade e invisibilidade. Entender a ocultação
dessa maneira, importaria numa compreen são carnal, não espiritual.
"Espiritual" é a categoria da verda deira compreensão. Quem existe
espiritualmente, tem existência visível, mas não manifesta. Há, porém,
algo para ver, a saber, o oposto, não a vida espiritual como tal. Viver no
Espírito significa, por isso, viver na fé. Espírito e fé são a mesma
coisa 138 .
Da compreensão do Espírito orientada pela cristologia nasce a
concentração na relação de palavra e fé, fundamental para o pensamento
teológico de Lutero.

137
4,82,19- 24 (1513/ 15) = B oA 2 5,181,3- 9.
138
3,150,27 (1513/ 15).
A glória e o poder do reino de Cristo estão tão ocultos que não
podem ser reconhecidos, a não ser que se revelem ao ouvido pela
palavra da pregação; pois diante dos olhos aparece o extremo
oposto, ou seja, ultraje, fraqueza, insignificância e extremo des -
prezo em todos os crentes. 139
Com efeito, a fé é a causa de que só pela palavra podemos apre -
sentar nossos bens. E que ela trata do que não é evidente, do que
pode ser ensinado, mostrado e fomentado apenas pela palavra. 140

Na exegese de Sl 119.148 Lutero externa surpresa pela constante


repetição da prece pela palavra de Deus: "Estranha esta prece de
implorar de Deus só palavras, nada de coisas, apenas os seus sinais.
Onde é que já se implorou tão angustiadamente por palavras?" A
resposta diz: "Uma vez que pela fé as coisas não-evidentes estão ocultas
em palavras, aquele que tem as pa lavras tem tudo pela fé, ainda que de
maneira oculta. 141
Haveria muitas perguntas a fazer em relação a esta pri meira forma
da teologia de Lutero. Para o próprio Lutero foi um estágio de transição,
mas uma primeira caminhada em que, apesar de todas as correções
necessárias, o futuro se prenun ciava. Quanto ao tema "letra e espírito",
registramos agora apenas duas retificações posteriores, que a rigor não
têm caráter de contradição a afirmações anteriores, antes o sentido duma
definição de consequências.
A primeira diz respeito à hermenêutica de Lutero. Do seu primeiro
enfoque hermenêutico decorreu o natural e silencio so abandono do
quádruplo sentido das Escrituras. Como o senti do deste havia se
resumido na relação de Cristo, palavra e fé, o esquema hermenêutico
forçado perdera sua razão de ser, e em seu lugar o tema central das
Escrituras se tornara claro numa interpretação literal. Destarte, Lutero
pode afirmar no início das Operationes in psalmos de 1519: "Primeiro

139
4,450,39-451,27 (1513/ 15).
140
4,272,22-4 (1513/15).
141
4,376,13-6 (1513/15).
cuidaremos do aspecto gramatical; esse é o verdadeiramente
teológico." 142 Está claro agora: o sentido genuíno das Escrituras é um só,
o literal, e como tal ele é espiritual a partir da causa das Escritu ras. A
justificação da alegorese através de 2 Co 3.6 é decidida mente rejeitada
agora. É verdade que, sobretudo nas prédicas, Lutero recorre, ainda que
com decrescente frequência, à alegorese como recurso homilético para
uma aplicação ilustrativa do texto. Em termos hermenêuticos, porém, ela
perdeu seus direitos; com isso iniciou-se um caminho em cuja
continuação não há como desviar dos problemas da exegese histórico-
crítica, ainda que o próprio método histórico-crítico não represente a
superação hermenêutica dos problemas por ele levantados.
O outro ponto em que, no decorrer do tempo, as primeiras
manifestações de Lutero sobre letra e espírito sofrem uma corre ção, diz
respeito à compreensão da palavra no debate com um entusiasmo que se
comportava como a radical superação das ideias da Reforma, jogando a
palavra interna contra a externa e regredindo com isso, na realidade, a
ideias mal interpretadas de Agostinho. Em Karlstadt e outros, Lutero se
vê confrontado com uma concepção de Espírito que, no sentido
ontológico, simplesmente é explorada antiteticamente contra a
corporalidade e que por isso, ao contrário do que poderia indicar uma
impressão superficial, de maneira alguma pode invocar ideias do jovem
Lutero. É verdade que aparentemente a frente dos entusiastas constitui o
extremo oposto da posição romana.

Seu espírito (do papa) fez mais no sentido de tornar o espiritual


corpóreo, como aliás faz da cristandade espiritual uma comunidade
corpórea e exterior. Este espírito faccionário, por sua vez, mais se
preocupa em tornar espiritual o que Deus fez corpóreo e exte rior.
Por isso ficamos entre os dois e não tornamos nada espiritual nem
corpóreo, mas consideramos espiritual o que Deus faz espiri tual e
corpóreo o que ele assim constitui. 1 4 3
142
5,27,8 (1519).
143
18,181,30-6 (1525).
No fundo, entretanto, os dois extremos se identificam numa com preensão
entusiasta do Espírito, contra a qual Lutero só precisa va definir melhor
aquela compreensão do Espírito que já come çara a elaborar no primeiro
curso sobre os salmos.

E nessas partes, que dizem respeito à palavra falada, externa, é


preciso permanecer com firmeza nisso que Deus a ninguém dá o
seu Espírito ou a graça a não ser por intermédio da palavra
exterior precedente ou com ela. Assim nos protegemos dos entu -
siastas, isto é, dos espíritos que se jactam de terem o Espírito sem
a palavra e antes dela, e que depois julgam, interpretam e esticam
a Escritura ou a palavra oral a sua talante. Assim procedeu
Münzer, e em nossos dias ainda o fazem muitos que querem ser
juízes severos na distinção entre espírito e letra, não sabendo,
entretanto, o que dizem ou ensinam. Pois também o papado é puro
entusiasmo, em que o papa se gloria de que "todos os direitos
estão no escrínio de seu coração", e o que ele julga e ordena com
sua igreja é para ser espírito e justo, ainda que esteja acima e
contra a Escritura ou a palavra falada. (...) Em suma: o entusiasmo
está anichado em Adão e seus filhos desde o princípio até o fim do
mundo. É-lhes implantado e inoculado como veneno pelo antigo
dragão, e é a origem, a força e o poder de toda heresia, também do
papado e de Maomé. Por isso devemos e temos de perseverar nisso
que Deus não quer tratar com nós homens de outra maneira senão
mediante a sua palavra externa e pelos sacramentos. Tudo o que se
decanta a respeito do Espírito sem essa palavra e sacramento é o
diabo. 144

144
Livro de concórdia; as confi ssões da Igrej a Evangél i ca Lut erana, 3. ed., S ão
Leopol do, S inodal ; P ort o Al egre, C oncórdi a, 1983, p. 336s. (1538).
VII
LEI E EVANGELHO

A primeira versão da teologia de Lutero, como a conhece mos da


primeira preleção sobre os salmos, caracterizava-se pela compreensão
antitética de letra e Espírito. Essa distinção, um tanto cambiante em
consequência duma história longa e variada da conceituação dos termos,
permitiu a Lutero fundir em uma só duas questões diferentes que o
preocupavam: como a palavra bíblica deveria ser interpretada para que
dissesse respeito ao leitor em sua atualidade, o atingisse e se tornasse
viva em seu coração; e ainda: qual seria a causa específica das
Escrituras, de Cristo, da fé, do Espírito Santo. Lutero usou o binômio
"letra e espírito" como um arado que abriu, por assim dizer, a super fície
encrostada das Escrituras, deixando profundos sulcos. Ele não se
prendeu a essa primeira forma de sua reflexão. Substi tuiu-a pela
distinção nela implícita de lei (aquilo que exige) e evangelho (aquilo que
promete e concede). Por uma questão de clareza teológica, a
diferenciação de lei e evangelho tornou-se expressamente a terminologia
oficial. Essa mudança linguística, que se processou numa transição
gradual, não representa uma ruptura em termos de conteúdo, mas o
amadurecimento e a asseguração daquilo que se havia esboçado já nos
primórdios.
A continuidade já se revela no fato de que nas duas ex pressões se
visava o mesmo, ou seja, definir o verdadeiro nervo do raciocínio
teológico: aquilo que faz com que um teólogo seja teólogo, por ser a
definição básica da causa das Escrituras Sa gradas. "Na Bíblia convém
distinguir o Espírito da letra, pois é isto que torna a gente
verdadeiramente teólogo", diz ele na primeira preleção sobre Salmos 145 .
Em perfeita consonância com isso, Lutero o incute mais tarde em
repetidas e variadas formu lações: "Quase toda a Bíblia e o entendimento
145
3,12,2s. (1513/ 15). V. aci m a p. 78.
de toda a teologia dependem da correta compreensão de lei e
evangelho." 146 "Quem sabe distinguir corretamente o evangelho da lei,
deve agradecer a Deus e pode estar certo de que é um teólogo." 147 Ou
então, numa prédica: "Dessa diferença depende tudo. Por isso Paulo
deseja que na cristandade se distingam bem os dois, lei e evange lho (...)
e que não sejam misturados. Quando isso acontece, perde-se um ou até
os dois; sob o papado, ninguém sabia em que o evangelho seria diferente
da lei, ou a lei do evangelho; pois eles têm uma fé que se reporta
somente à lei.” 1 4 8 Ou ainda no discurso de abertura do primeiro debate
sobre o antinomismo, um evento acadêmico que visava especialmente
incutir a doutrina pura do evangelho: "Já ouvistes muitas vezes que não
há melhor maneira de transmitir e preservar a pura doutrina do que
seguir este método, ou seja, dividir a doutrina cristã em duas partes: lei
e evangelho." 1 4 9
Nessa distinção seca e parecida com uma fórmula, obser vamos
inicialmente o seguinte: já é coisa digna de nota que o nervo
propriamente dito da teologia, aquilo que realmente importa para que se
mantenha a fidelidade à causa, seja indicado como sendo uma distinção.
Não se arrola simplesmente uma de terminada ideia que fosse colocada no
centro e à qual se subordi nasse tudo o mais, como por exemplo a
penitência, o perdão dos pecados, o amor, o reino de Deus ou coisa
semelhante, uma ideia religiosa básica que, colocada no topo duma
escala de valores, se tornasse o princípio normativo dum sistema.
Análises superficiais atribuem também a Lutero tal destaque forçado e
supervalorização unilateral duma ideia predileta: a justificação pela fé,
conquanto essa doutrina, ao menos em sentido literal, apareceria só em
diminutos segmentos das Escrituras, a saber, só numa parte das epístolas
de Paulo e ali ainda condicionada pela disputa com um adversário
específico. Por isso, houve quem acusasse Lutero de transgredir o
princípio escriturístico que ele mesmo proclamara. A Bíblia seria bem
146
7,502,34s. (1521).
147
40/ 1,207,17s. ((1531) 1535).
148
36,9,6-8; 10,2-5 (1532).
149
39/1,36,1-4 (1537).
mais rica do que Lute ro, em sua arbitrária insistência numa ideia
particular, em seu paulinismo, que além do mais importava ainda numa
redução do verdadeiro Paulo, faz supor. Objetou-se que ele não teria
sido um "ouvinte integral" das Escrituras Sagradas, mas que, em seu
subjetivismo desmedido, teria submetido tudo a uma só norma. Ao
princípio escriturístico da Reforma, ao "somente as Escrituras", ao "sola
Scriptura", dever-se-ia, ao contrário do uso que Lutero dele fez, justapor
o princípio da "tola Scriptura", "as Escrituras todas", como princípio de
interpretação.
Entretanto, não faria justiça nenhuma à questão quem aceitasse
sem análise crítica esse nível de discussão. Certamente, deveriam ser
feitas aqui algumas constatações esclarecedoras: é perigoso, de fato,
absolutizar aquilo que é apenas um aspecto parcial dum todo bem maior
e insistir obstinadamente num inte resse particular. Essa é a postura
intelectual básica do sectário: está possesso duma verdade parcial,
defende-a cegamente, sem sensibilidade para uma justiça que pondera e
diferencia, e torna- a assim uma inverdade. Por outro lado, entender que
tudo devesse ser valorizado com o mesmo peso, revelaria uma atitude
completamente errada para com as Escrituras Sagradas. Isso nem sequer
é possível e, defendido como princípio, na prática só serve para
desarmar incômodas percepções bíblicas ou mesmo para legitimar
aspectos selecionados. Como se a essência da fé cristã consistisse em
orientar-se por determinada ideia ou até por uma colorida pluralidade de
pensamentos. Se Lutero coloca, como efetivamente o faz, tanto peso na
doutrina da justi ficação, isso não acontece na intenção de dar a
preferência a um dentre muitos conteúdos doutrinários cristãos, mas para
induzir ao trato correto de todos os conteúdos doutrinários cristãos e,
numa formulação mais radical, de todos os conteúdos doutrinários
imagináveis. Por isso, de acordo com Lutero, a doutrina da justificação,
nessa sua função de doutrina de todas as doutrinas, só é bem entendida
se é idêntica àquilo que pretende a distinção de lei e evangelho como
orientação básica para o raciocínio teológico, isto é, como aspecto
decisivo da capacidade de discernimento teológico.
O que a princípio parece restrito e doutrinário nessa fór mula de
diferenciação de "lei e evangelho", cobra-nos a dispo sição de deixar-nos
introduzir em horizontes inusitadamente amplos do raciocínio e numa
dinâmica de pensamento inusitada mente concreta. Isso implica, porém,
também a exigência de ocu par-se pacientemente com coisas não-usuais,
que se revelam apenas à reflexão mais concentrada. Não há motivo para
logo ver nessa exigência de esforço intelectual um sintoma de defi -
ciência. É próprio de nossa era tecnológica aceitar com naturali dade e ao
mesmo tempo com maravilhosa admiração um máximo de complexidade
no âmbito de tudo que se pode calcular e mani pular; no que se refere ao
intelecto, entretanto, isto é, no que diz respeito à tarefa duma abrangente
responsabilidade pela realidade, incluindo nisso a explicitação
intelectual da fé, consi deram-se naturalmente permitidos e até adequados
a primitividade, despretensão e chavões baratos.
O fato de Lutero indicar o aspecto decisivo na forma duma
distinção, não significa, evidentemente, que em lugar duma única ideia
tenha sido colocado um pensamento duplo como refe rencial, de modo
que o raciocínio, em vez de girar em torno de um centro, agora tenha que
circular em elipse ao redor de dois focos. Também isso não evitaria o
equívoco de que se trata apenas da especial relevância de determinadas
doutrinas e não da execução específica do raciocínio e da avaliação que
correspondem à estrutura material interna de todos os conteúdos
doutrinários cristãos. A própria tentativa de definir o papel da distinção
de lei e evangelho no sentido de que se trataria aqui de estruturas
limitadas a conteúdos doutrinários cristãos, deve ser examinada mais de
perto quanto a sua adequação.
Que significa, afinal, "distinção"? Obviamente não se visa uma
separação, um divórcio. Não se trata simplesmente duma alternativa: ou
lei, ou evangelho. Um não pode ser substituído pelo outro. Em disputas
apaixonadas, Lutero assumiu posição contra o equívoco antinomista que
afirmava que a mensagem cristã, por ser evangelho, nada teria a ver com
a lei. E convém anotar que, pelo visto, ele achou necessário defender a
lei em função da pureza do evangelho. Se o evangelho, qual concor rente,
ocupasse simplesmente o lugar da lei, ele próprio não seria outra coisa
do que um tipo de lei. Assim como não se trata aqui duma relação em
que um exclua o outro por princípio, como luz e trevas, bom e mau,
também a tese da simples adição não é correta: não bastaria a lei, seria
preciso que o evangelho a ela se juntasse; da mesma forma, o evangelho
por si só não bastaria, necessitando da complementação da lei. A
exigência da correta distinção coloca, ao que parece, uma tarefa mais
difícil do que uma simples separação ou uma mera ligação, qual seja, a
de ao mesmo tempo suportar uma oposição que tem caráter de inimizade
mortal, de modo que o evangelho destrói a lei e esta o evangelho, mas
também — eu repito: ao mesmo tempo superar uma inimizade, isto é,
colocar os dois na correta relação, ao fazer com que cada qual permaneça no
seu lugar e dentro dos seus limites: que a lei não tenha a pretensão de ser
evangelho nem que o evangelho queira assumir as funções da lei.
Mesmo que essa reflexão sobre a distinção de lei e evange lho
esteja a clamar agora por uma melhor definição de conteúdo para não
deixar as coisas, como até aqui parece, num jogo abstrato, com relações
meramente formais, e para conhecer a profunda seriedade que isso
implicava para Lutero — reprimi mos esse anseio por um momento ainda
e continuamos a represar a tensão, juntando mais uma observação ao
aspecto da diferen ciação. Só com ela colheremos os benefícios da longa
caminhada. A distinção entre lei e evangelho seria fácil, caso se tratasse
dum conhecimento teórico que, uma vez adquirido, estivesse disponível
como saber. Algo nesse sentido também está em jogo, evidentemente.
Mas isso não é o principal e decisivo. Distinção não significa aqui uma
diferença simplesmente existente, que se devesse apenas constatar,
reconhecer e entender. A seriedade da questão está precisamente em que
esta diferença na prática não existe; nós só a vivenciamos na mistura e
na confusão, e mesmo ali onde ela está esclarecida deve ser esclarecida
sempre de novo, só podendo ser mantida diante da constante ameaça da
confusão. Distinção é aqui em sentido estrito um nomen actionis150 , e não
como mera constatação duma diferença existente — a não ser que se
entenda isso em extrema profundidade — mas como ato da diferenciação
que exige máximo empenho e perma nente dedicação. O modelo da
distinção de lei e evangelho não é a atividade inócua e pacífica duma
operação lógica, um proces so de definição em que se delimitam,
reciprocamente, duas gran dezas ou situações que tenham alguma relação,
como acontece, por exemplo, ao se definir a diferença entre novela e
romance ou entre assassinato e latrocínio. O modelo que aqui deve servir
de orientação é antes uma demanda judicial em que, com vistas a uma
complicadíssima situação de diferentes reivindicações e direitos, é
preciso diferenciar concretamente; ou então, usando uma figura talvez
mais apropriada, o modelo deve ser o desen rolar de uma batalha que é
tão ferrenha e nos parece tão desesperadora porque as frentes se
interpenetram completamente.
Portanto, a distinção de lei e evangelho não pode ser resolvida
com uma definição teológica; na melhor das hipóteses, pode-se com isso
mantê-la em andamento. Aliás, a teologia não é uma atividade que
alcança seu alvo em si mesma. Teologia — no sentido específico de
teologia cristã — só faz sentido em função da pregação. "Pregação", no
caso, deve ser entendida no sentido bem amplo, ou, melhor dito, em
sentido bem preciso e essencial e por isso abrangente: como a palavra
concreta que pode e deve ser dita por causa de Jesus. O trabalho
teológico só faz sentido se temos algo a dizer por causa de Jesus, invo -
cando a ele e em seu nome, quer dizer, numa autoridade recebida dele. E
só por isso a distinção de lei e evangelho é o nervo da teologia: porque
aí está em jogo a palavra cristã correta.
A pregação cristã é o acontecimento da distinção de lei e
evangelho. Para que não haja mal-entendido: a tarefa da prega ção cristã
não é, em primeiro lugar, uma instrução sobre a dife renciação de lei e

150
N. do T.: Term o de ação.
evangelho — ela é isso, também, num plano secundário. A tarefa da
pregação cristã é, antes, a execução da distinção de lei e evangelho, o
processo duma luta na qual, sempre de novo, a distinção de lei e
evangelho está em jogo e se concretiza. Assim sendo, a efetiva
diferenciação de lei e evangelho não é algo secundário e casual no
acontecimento da pregação, mas aquilo que propriamente deve acontecer
nela. Se, no entanto, o acontecimento da pregação é o que pretende ser,
ou seja, acontecimento salvífico, então na efetivação da distinção de lei
e evangelho se realiza a salvação, enquanto que sua mesclagem não
representaria um infortúnio qualquer, um lamentável fracasso, mas seria,
a rigor, a própria perdição.
Para levar essas colocações, por enquanto um tanto estra nhas, às
últimas consequências, acrescentamos o seguinte: falta de distinção,
confusão de lei e evangelho é o normal, o que sempre e em toda parte já
existe, a situação que a pregação cristã sempre já encontra e por causa
da qual ela acontece, na qual, entretanto, ela constantemente é envolvida
e na qual corre o risco de perecer por não cumprir sua incumbência. A
confusão se torna definitivamente irreparável quando a própria pregação,
a quem cabe distinguir lei e evangelho, mistura os dois. Pois a não-
diferenciação de lei e evangelho significa, em todo caso, que o
evangelho foi abandonado e que sobrou apenas a lei. Contudo, quando a
lei não é mais distinguida do evangelho, mas proclamada como sendo o
próprio evangelho, ela não é mais entendida realmente como lei. Por
isso, em última análise, por haver somente lei, também a lei está perdida.
Evangelho, pelo contrário, significa eo ipso distinção de lei e evangelho.
O evangelho, então, não está puro e incólume quando fica a sós e em
perfeita paz, sem que a relação com a lei seja sequer considerada. Em tal
isolamento o evangelho nem poderia ser evangelho. Pois o evangelho só
entra em ação onde, diferencian do-se, entra em ação em contraposição à
lei, fazendo com que, desse modo, se reconheça também a lei como tal.
Mas de que estamos tratando, afinal, sob estes termos "lei" e
"evangelho", a cada página mais enigmáticos? Em todo caso de algo que
é articulado pela palavra e por ela age. Se o nervo vital da teologia é a
diferenciação de lei e evangelho, então o ponto capital da teologia é o
aprendizado da distinção em relação à palavra; isto é, a noção, e
sobretudo a capacidade de usá-la corretamente, de que quem lida com a
palavra em última análise lida com dois tipos de palavra e que é parte
essencial da lide com a palavra ser envolvido nesse caráter litigioso da
palavra e dele participar.
A diferenciação concernente à palavra, que vislumbramos aqui,
abre as portas para aspectos fundamentais. Seria totalmen te insuficiente
analisar a palavra apenas abstratamente, com vis tas a seu diferente
conteúdo de ideias. A palavra como tal só é concretamente entendida
quando se entende a relação entre o que ela diz e o que ela produz, quando
é entendida como palavra que acontece e que age, e por isso não como
palavra desvinculada, mas integrada na situação para dentro da qual é
proclamada e que passa a ser modificada por ela. Só assim pode fazer
sentido falar, em relação à palavra, duma diferenciação que não coloca
uma série de diferenças quaisquer, mas se reporta a uma derradeira
dualidade. Só assim podemos compreender também que da palavra —
como afirma a pregação cristã — depende a salvação, já que pela palavra
também a perdição se torna poderosa, e que a consciência da
responsabilidade pelo que con duz à vida e à morte é parte integrante do
uso correto da palavra.
Lutero caracteriza a dualidade da palavra como sendo a de palavra
de Deus e palavra humana:

Sempre que a palavra de Deus é proclamada, ela cria consciências


alegres, abertas e seguras diante de Deus, pois é a palavra da
graça, do perdão, uma palavra boa e benéfica. Mas sempre que a
palavra humana é anunciada, cria uma consciência triste, acuada
e aflita em si mesma, pois é a palavra da lei, da ira e do pecado,
ao mostrar o que não se fez e o quanto se deveria fazer. 151

151
2,453,2-6 (1519).
Aqui se diz com muita clareza em que medida cabe à palavra o caráter
dum acontecimento de derradeiro poder de decisão: na medida em que
ela é aquilo que atinge o ser humano no seu ponto mais sensível, no seu
nervo vital, ao tocá-loe atingi-lo ali onde se decide como ele está em
última análise, e isto quer dizer, diante de Deus. Lutero chama isso de
"consciência", sem entender com este termo, como a interpretação
idealista da cons ciência, uma voz independente, que torna o ser humano
autônomo em seu próprio íntimo, a base da autonomia humana, portan to.
O que ele quer dizer é que o ser humano, em última análise, é ouvinte,
um ser atingido, requisitado, sujeito a um julgamento e que exatamente
por isso sua existência depende de qual palavra o alcança e o atinge em
seu íntimo: a palavra que só o compro mete consigo mesmo, que o faz
depender só de si mesmo, que o reclama sem restrições como agente e,
por isso, até como quem se faz a si mesmo, apresentando-lhe a conta de
tudo quanto não fez, onde falhou, o que ficou devendo; ou então a
palavra que o liberta dessa prisão em si mesmo, desse estar entregue a si
mesmo, a palavra que lhe abre uma esperança que não tem seu
fundamento no seu próprio ser, que lhe traz ânimo que não é derivado
dele mesmo, que não o interpela como agente que devesse justificar-se a
partir de suas obras, mas como quem não se deve a si mesmo, como
quem se tornou um presente para si mesmo e que doravante pode
entender-se como alguém que vive do presente, da graça, do perdão.
Aquela palavra que prende o ser humano a si mesmo e às suas
próprias possibilidades, que o interpela visando sua atividade e suas
potencialidades e que, por isso mesmo, em última análise o deixa
sozinho, é "palavra humana" em sentido qualificado, pois é uma palavra
através da qual não acontece algo mais do que o ser humano, como
alguém que é prisioneiro de si mesmo, pode fazer ao semelhante. Como é
que tal palavra humana, externamente talvez até uma palavra poderosa,
haveria de ser impotente ali onde a questão é libertar a consciência? Se
analisarmos a palavra humana sob o prisma do que, afinal, acontece
através dela, descobriremos que é uma palavra em que só atuam os
poderes aos quais o ser humano está subjugado.
Por isso, em última instância, nem é palavra humana, mas sim tão certo
como o poder que aprisiona o ser humano é, em última análise, poder de
Deus, a lei que acusa o ser humano, lei de Deus, a ira que aterroriza o
ser humano, ira de Deus de fato é palavra de Deus; mas uma palavra da
lei, da ira, uma palavra em que Deus permanece ausente e oculto, e isso
significa: em que ele está aí como ausente e oculto. Por outro lado,
palavra de Deus em sentido qualificado é aquela em que Deus vem como
Deus presente e revelado, e isto quer dizer a palavra através da qual ele
cria e opera que eu o reconheça como Deus, que o honre como Deus, que
tenha fé nele e por isso a ele me abra, nele confie e a ele me entregue,
para assim me libertar de mim mesmo e de todos os poderes aos quais me
vendi. Palavra de Deus nesse sentido rigoroso só pode ser a palavra da
fé, ou seja, a palavra que sob todos os aspectos interpela o ser humano
com vistas ao fato de que ele é um ser receptivo, presenteado e
agraciado. Pois diante de Deus o ser humano não é agente; só pode
corresponder-lhe, devida mente, pela fé.
A distinção de lei e evangelho mostra, portanto, o que há de
especial na pregação cristã. Seria um completo despropó sito querer
justificar sua pretensão de validade a partir duma pretensão formal de
revelação que de alguma forma todas as religiões apresentam e que em si
nada significa. O que é constitu tivo para a fé cristã não é uma lei nova,
ainda que melhor, mais aperfeiçoada, ou então expurgada de todos os
dispositivos rituais e reduzida aos aspectos puramente morais, mas
assim mesmo apenas uma palavra da mesma espécie e de estrutura igual
à de outras religiões, uma doutrina das obras do ser huma no; ela é,
antes, uma palavra radicalmente diferente, a saber, a palavra da fé, que,
pelo fato de visar apenas a fé, é- tão-somente ela — palavra de Deus
pura, promitente, portadora de graça e plenipotente. A distinção de lei e
evangelho coincide, pois, com a compreensão do evangelho como
justificação somen te pela palavra, somente pela fé, e o abandono da
distinção de lei e evangelho coincide com a perda do puro evangelho.
Acontece que a diferenciação de lei e evangelho coincide com a
distinção em relação àquilo que torna o ser humano verda deiramente
justo e salvo. Claro que existe uma justiça produzida a partir do próprio
ser humano, das suas obras. Mas essa não é a justiça que pode trazer a
paz e a certeza à consciência.
A justiça cristã é exatamente o contrário: não justiça pelas obras,
mas pela fé, não justiça ativa, mas passiva, concedida, não justi ça
própria, mas alheia, adjudicada; por isso mesmo, ainda que presenteada,
não é uma justiça da qual nos apossamos, e sim, em sentido estrito, uma
justiça em que cremos. Assim, o cristão é pecador em si mesmo e a
partir de si; ao mesmo tempo, porém, é justo fora de si, a partir de Deus
e diante de Deus em Cristo.

A justiça que provém de nós não é a justiça cristã, e por ela não
nos tornamos justos. A justiça cristã é bem o contrário, a justiça
passiva, que apenas recebemos, em que não agimos, mas deixamos
um outro agir em nós, Deus. O mundo não com preende isso. (...)
Até os cristãos têm dificuldade para entendê-lo. (...) É preciso
ponderar bem essa distinção. Eu ainda não a domi no. Quem no
momento do perigo e da provação não se apegar à justiça passiva,
não resistirá. (...) O mundo todo acha que é coisa fácil; mas não é
assim, pois isso está fora da lei, fora de nossas forças, mesmo
além da lei de Deus, que se situa num plano muito inferior à
justiça cristã. Na provação, o mal que nos aflige é que nada vemos
senão isso: Ah, se eu fosse piedoso! Caracteriza-nos essa postura:
Ai, como usei mal o meu tempo, que vida desgraçada eu levei! A
natureza não pode libertar-se dessa contemplação da justiça
própria e elevar-se para a contem plação da justiça cristã. (...)
Mesmo assim não há outro remédio: ou se tem a morte eterna pela
frente, ou se abraça a justiça passiva. Deve-se dizer: eu não busco
a justiça ativa. Posso até tê-la e supor que tenha agido de acordo
com ela. Mas não é nela que se deve confiar. Ela não subsistirá.
Preciso tirar os olhos da lei e assumir uma postura receptiva;
quero confessar que sou justificado, quero receber a justiça da
graça, do perdão dos pecados, da misericórdia do Espírito Santo e
de Cristo, a justiça que ele (Deus) dá, enquanto que nós a
recebemos e deixamos que aconteça a nós. Assim a terra recebe a
chuva; ela não a produz por nenhuma obra e por nenhuma obra
própria pode ter água; apenas recebe a chuva. Tanto como a chuva
é "própria" da terra, a justiça cristã é nossa "própria". Isso nós
ouvimos e entendemos facilmente. Mas quando é para valer, não
compreendemos bem essa distinção. Queira Deus que a
reconheçamos ao menos um pouco. A maior arte dos cristãos é
desconhecer toda a justiça ativa e ignorar a lei; assim como fora
do povo de Deus a maior sabedoria é conhecer e contemplar a lei.
Curioso: devo aprender para mim e ensinar as pessoas a não irem
atrás da lei e fazerem de conta que- não existe lei e, em contraste
com isso, no âmbito do mundo insistir na lei e promovê-la como se
não houvesse graça. Pois se eu não tirar os olhos da lei e os voltar
para a graça, como se não houvesse lei e sim tão-somente pura
graça, não poderei ser salvo. 152

Até aqui demos apenas alguns primeiros passos explora tórios em


direção à distinção de lei e evangelho. Mesmo assim, já atingimos o
âmago do pensamento teológico de Lutero, o tema básico, portanto, que
cabe desenvolver daqui em diante.

152
40/ 1,41,2-44,2 (1531).
VIII
O DUPLO USO DA LEI

A diferenciação de lei e evangelho tem como consequência uma


distinção referente à própria lei. Disso trataremos agora, não para
encobrir com novos problemas as questões que até aqui ficaram em
aberto, mas para retornar e penetrar mais a fundo naquilo que a
distinção de lei e evangelho na verdade pretende. A compreensão dum
assunto muitas vezes só acontece a partir de suas consequências,
exatamente porque ele mesmo se explicita nas suas consequências.
Se a distinção de lei e evangelho tem como consequência uma
diferenciação adicional em relação à lei, mas não em relação ao
evangelho, isso quer dizer, evidentemente, que o evangelho é algo
unívoco, ao passo que a lei é algo ambíguo. Esta formu lação pode ser
algo precipitada e carecer de certas correções, ainda. Mas não há dúvida
de que algo de certo está dito com isso: é por causa do evangelho que a
lei, agora, aparece numa outra luz do que antes. Essa relação não é
reversível, como se também o entendimento do evangelho se
modificasse à luz da lei. Pois não é a lei que se junta ao evangelho, mas
o evangelho à lei.
Mesmo essas afirmações podem ser um tanto desguar necidas e
sujeitas a reparos; não obstante, isso vale sem dúvida, se a distinção de
lei e evangelho é válida: o evangelho não seria evangelho se não fosse a
derradeira e decisiva palavra. Pois "boa nova", isto é, proclamação que
alegra, liberta, anima, desperta esperança, suscita a fé, se não for apenas
um intermezzo a conceder um alívio passageiro, uma distração, um pouco
de ilusão, um esquecimento temporário, um pouco de ópio, deve ter
poder sobre o futuro, deve ser capaz de resistir a todas as provações,
acabar com toda confusão e clarear todas as tre vas; deve ser uma
palavra absolutamente clara, verdadeira e certa, na qual não há o que
interpretar ou mudar, uma palavra sem "mas" e "se", uma palavra
confiável e por isso inspiradora de confiança, que ilumina aquele que a
aceita, que o liberta do feitiço da mentira para a verdade, do desespero
para a certeza, da morte e do inferno para a vida e bem-aventurança.
Nesse sentido, se podemos tomar o evangelho ao pé da letra, se cumpre
o que promete, ele não deve ser apenas algo unívoco, mas o unívoco por
excelência, que traz a univocidade a tudo.
Se, por outro lado, usamos a formulação de que a lei seria algo
ambíguo, há, todavia, algumas restrições a fazer, ao menos contra o uso
do vocábulo "ambíguo" no sentido trivial. Pois a lei é, sabidamente, o
contrário de falta de seriedade, de frivolidade e equivocidade. Não é sem
razão que ligamos a "lei" a imagem do rigor, do comprometimento, do
que não pode ser contornado e que, duma ou de outra maneira, se impõe.
Não se brinca com a lei. Isso vale para as duas áreas radical mente
diferentes em que costumamos usar o termo "lei": para a natureza e para
a vida intelectual e moral do ser humano. Todavia, em cada uma delas o
rigor da lei é de tipo bem diferente. Na lei da natureza — esta categoria
básica da ciência moderna e cuja validade não é anulada pela tão falada
crise dos funda mentos das ciências naturais modernas, mas apenas
interpretada e tornada mais precisa - trata-se daquilo que forçosamente e
sem exceção acontece no curso real das coisas. Na lei, entretanto, que de
alguma forma se reporta ao ser humano em sua liberdade de decisão,
trata-se daquilo que deve acontecer, quer dizer, mui tas vezes não
acontece, estando em vigor apenas como exigência, como determinação,
como ideal ou qualquer coisa parecida. À primeira vista, a diferença
parece tão grande que se poderia achar que as duas não têm nada em
comum a não ser o nome. Se em nosso contexto falamos da lei, não
estamos pensando, evidentemente, na assim chamada lei da natureza, que
se impõe automaticamente no seu âmbito sem que haja necessidade de
ordens e proibições; pelo contrário, visamos a assim chamada lei moral,
que apela à vontade do ser humano e cuja realização ou não-realização,
cujo cumprimento ou descumprimento depen de da ação do ser humano.
Sob esse aspecto, a problemática da lei é extremamente oposta em cada
um dos casos.
A lei da natureza afigura-se como símbolo daquilo com que se
pode contar incondicionalmente, em que se pode confiar. A tecnologia é
toda ela prova disso. A fonte do fracasso sempre é apenas o ser humano.
Ele é o fator imprevisível e por isso também aquilo que, numa sociedade
de progressiva tecnicidade, se pretende tornar cada vez mais previsível.
Pois a lei no sentido da lei natural é, ao mesmo tempo, símbolo de poder
irresistível e capacidade de dispor. A lei que rege o universo é a chave
para o poder universal. Não é por acaso que a lei da natureza
açambarcou os tradicionais predicados divinos da imutabilidade,
confiabilidade e onipotência e tomou assim o lugar de Deus.
Em contraste com isso, a lei do dever, que pressupõe a liberdade
de decisão do ser humano, se afigura como símbolo da falta de
confiabilidade e da impotência. Essa lei é constante mente contornada,
transgredida e violada. Tem muitas malhas pelas quais se pode escapar.
Parece que está abandonada ao desprezo, sem condições de reagir. E não
apenas isso. Aparente mente nem sequer é uma grandeza constante. Muda
com o tempo e com os seres humanos. É o ser humano que faz e escolhe
leis, mesmo que as apresente depois como lei de Deus. E como o falar de
Deus costuma estar vinculado a esse tipo de lei, o próprio Deus é
envolvido na problemática e impotência da lei, como ela cada vez mais
se impõe, justamente ao ser humano moderno, sob a forma do
definhamento das coisas que compro metem incondicionalmente, da
crescente falta de orientação inte lectual, da relativização de todas as
normas, da confusão de superior e inferior, de bem e mal, da perda de
amparo, do ser arrastado para um mundo estranho, para o vazio, o nada.
Todavia, essas duas associações tão contrastantes que vinculamos
ao termo "lei", como lei da natureza por um lado, como lei moral, no
mais amplo sentido, por outro, têm interliga ções mais consistentes do
que à primeira vista pode parecer. No que diz respeito ao aspecto do
poder, é verdade que a lei da natureza se impõe com poder infalível e
irresistível. Entre tanto, se levamos em conta, aqui, o ser humano - aliás,
seria uma abstração artificial, insustentável na realidade, não levar em
consideração o ser humano ao tratar de ciência e tecnologia - duas coisas
se revelam. A lei da natureza é precisamente a maneira pela qual a
natureza é sujeita ao ser humano e coloca da ao seu dispor, pela qual o
poder da natureza não fica fora do alcance do ser humano, mas é
entregue, colocado em suas mãos, transformado em seu instrumento de
domínio. O poder da lei da natureza se transforma no poder do ser
humano. Não é preciso exemplificar que problemas surgem com isso.
Pois — esse é o outro aspecto — a lei da natureza é impotente diante
desse poder do ser humano. O que o ser humano, em sua liberda de, faz
com os poderes da natureza ao dispor de suas leis, não está
regulamentado pela lei da natureza, mas clama por uma outra lei de
outra espécie e poder, uma lei que adquira poder sobre a liberdade do ser
humano, que o discipline e mante nha dentro de certos limites. Mesmo
que se imponha a impressão de que a lei do dever é fraca, impotente até,
porque não se realiza automaticamente pela conjunção das forças da
natureza e outro recurso não possui do que a simples palavra, depen -
dendo, por isso, da vontade do ser humano e fracassando por causa da
sua falta de vontade, ela revela seu poder peculiar pelo fato de não
deixar o ser humano em paz, trazendo-se à lembrança como desmancha-
prazeres, ao menos. Justamente co mo lei transgredida ela de forma
alguma está eliminada; antes, vinga-se através das consequências de tal
desrespeito. Claro que não de forma automática e calculável, mas assim
que persegue o ser humano com um poder que pode ser percebido na
compulsão de realizar obras titânicas como também na irrupção do mais
profundo desespero.
No que diz respeito ao aspecto da ambiguidade — que, como
antônimo ao caráter unívoco do evangelho, deu motivo para refletir
inicialmente sobre o fenômeno da lei sem levar em conta o pensamento
de Lutero — revela-se também aqui uma peculiar interligação dos dois
tipos de lei que o ser humano moderno pensa coexistirem sem relação
entre si. A lei da nature za, até por questão de conceito, é, sem dúvida,
rigorosamente inequívoca, claríssima e matematicamente transparente.
Está sob a divisa de que a conta em todo caso tem que dar certo, que
aqui não há trapaça, que sob todos os aspectos há lisura. Mas esse tipo
de univocidade não torna o ser humano inequívoco. Que é de seu dever,
afinal - e essa questão encerra a outra: que é que ele é, afinal — isso
está exposto à ambiguidade em proporções assustadoras. A lei do dever
talvez também possa ser considerada inequívoca na medida em que não
há dúvida de que ela visa o ser humano e lhe faz exigências. Mas o que
isso significa, como isso deve ser interpretado e articulado — sobre isso
as opiniões são tão manifestamente divergentes que se poderia dizer: a
lei sob a qual o ser humano se encontra e à qual está sujeito — como
dizer melhor: como a riqueza ou como a maldição duma tarefa sem
limites? — é a lei da ambiguidade. Ele não sabe o que é, afinal, o seu
dever. Tem que escolher, decidir. Mas como decidir, se tudo é ambíguo?
Como ter certeza a respeito de sua escolha, se esta é fruto de sua
arbitrariedade?
Se tomarmos o aspecto da ambiguidade ao pé da letra como a
coexistência de um duplo significado, então até esta altura de nossa
reflexão não apareceu sinal algum daquele duplo significado da lei que
Lutero tem em mente como consequência da distinção de lei e
evangelho. É evidente que ele não pensa na duplicidade com que
operamos a partir do uso moderno do conceito de lei. Se ele não visava
simplesmente o contraste com a univocidade do evangelho, mas
justamente a sua consequência, já está excluída uma ambiguidade
escorregadia e incerta. Antes, deve ter em mira algo que traga clareza
exatamente em relação à ambiguidade da lei, mas agora, por se tratar da
lei e não do próprio evangelho: uma clareza, uma univocidade que
consiste em fazer valer, em relação à lei, uma distinção que diz respeito
ao trato correto e à correta relação com a lei. O relacionamento com a
lei — essa é, pelo visto, a opinião — só está devidamente esclarecido a
partir do evangelho quando se aprende a distinguir aqui dois aspectos,
um duplo uso da lei, um duplex usus legis, como Lutero diz.
Em relação ao evangelho a questão já é bem diferente da lei, já
que por sua natureza só pode haver um único uso do evangelho, ao passo
que deve haver um duplo uso da lei. Esse tem a ver com uma diferença
dos dois que até uma análise superficial pode constatar. Pelo visto, a lei
é o conceito bem mais complicado e problemático. Quando se diz
"evangelho", a rigor não pode haver dúvidas sobre o que se entende por
isso. Evidentemente não se pensa em um dos livros chamados
evangelhos, dos quais o Novo Testamento contém quatro. Esse gênero de
literatura surgido com a cristandade primitiva é ape nas um fenômeno
secundário. Pois evangelho há um só, a mensa gem de Cristo.

Os que mais e melhor pregam como somente a fé em Cristo


justifica, são os melhores evangelistas. Por isso as epístolas de S.
Paulo são mais evangelho do que Mateus, Marcos e Lucas. Pois
estes não descrevem muito mais do que a história das obras e
milagres de Cristo. Mas a graça que por Cristo temos, ninguém
destaca tão bem como Paulo, especialmente na Epístola aos Roma -
nos. Uma vez que a palavra importa muito mais do que as obras e
feitos de Cristo, e, se tivéssemos que carecer de um dos dois,
melhor seria que nos faltassem as obras e a história do que a
palavra e a doutrina, é justo que se louvem mais aqueles livros
que melhor tratam da doutrina e das palavras do Senhor. Pois
ainda que os milagres de Cristo não existissem e nada
soubéssemos deles, teríamos, mesmo assim, o suficiente na
palavra, sem a qual não poderíamos alcançar a vida. 153

A essa concentração na causa específica do evangelho está dire tamente


ligada a concentração na pregação verbal. Pois

153
12,260,9- 21 (1523).
em si o evangelho não deveria ser documento redigido, mas palavra
falada. (...) Por isso, Cristo mesmo não escreveu nada, mas só
falou e chamou sua doutrina de evangelho, não de escrito, isto é,
uma boa mensagem ou pregação, a ser divulgada pela boca e não
pela pena. 154

No fundo, a fixação escrita do evangelho seria inadequada, no mínimo


resultado duma necessidade. "Que se (...) teve que escre ver livros já é
uma grande perda e fraqueza do espírito, é fruto da necessidade mas não
do caráter do Novo Testamento." 1 5 5 Quando se fala do evangelho, está-se
falando, com rigorosa exclusividade, da proclamação cristã, que, por sua
vez, certamente depende do texto bíblico na qualidade de testemunho
normativo; a partir deste, porém, ela está habilitada para um teste munho
atual, sem o que o evangelho não aconteceria como tal.
Esta clara definição do que se entende por evangelho não exclui,
entretanto, que possa e deva surgir contenda a respei to da correta
compreensão do evangelho e que possa parecer até questionável em que
medida aquilo com que nos defrontamos na tradição sobre Cristo é
realmente evangelho, isto é, pode ser entendido como evangelho também
em nossos dias. Quem porém, professa a pregação de Cristo como sendo
evangelho, não pode fazer isso a não ser confessando que deve a certeza
disso ao próprio evangelho. Pois o evangelho é evangélico justa mente
por evidenciar-se àqueles que creem como "a luz espiritual que é muito
mais clara do que o sol" 1 5 6 . Por isso, a forma de palavra coerente com a
fé é a confissão, a manifestação da inaba lável certeza. Pois "o Espírito
Santo não é um cético e não escreveu coisas duvidosas ou meras opiniões
em nossos cora ções, mas afirmações que são mais certas e seguras do
que a própria vida e toda experiência." 1 5 7 Por causa disso a fé é o único
usus Evangelii*158 adequado.
154
10/ 1/ 1,17,7- 12 (1522).
155
10/1/1,627,1-3 (1522).
156
18,653,30 (1525) = BoA 3,142,13.
157
18,605,32-4 (1525) = B oA 3,100,31-3.
158
* N. do T.: Uso do evangelho.
Se falamos da lei, por outro lado, estamos diante duma situação
bem diferente. É verdade que o uso do termo "lei" por parte de Lutero se
deduz do emprego bíblico, especialmente paulino, do termo e tem algo a
ver, portanto, com a posição especial que a lei mosaica, a Torá, ocupa no
Antigo Testamento. Mas essa conexão terminológica coloca problemas
difíceis, já que, por motivos históricos e de conteúdo, o conceito paulino
de lei não é simplesmente idêntico ao do Antigo Testamento, nem o
conceito de lei de Lutero é simplesmente idêntico ao de Paulo.
Tampouco se deve querer fixar a própria lei de modo biblicista,
identificando, por exemplo, o Antigo Testamento com a lei e o Novo
com o evangelho, porquanto também o Novo Testamento de certa
maneira contém lei e o Antigo já abriga evangelho. O que quer dizer
"lei" também não pode ser delimitado de tal forma que, usando critério
estilístico, todas as palavras bíblicas que contêm exigências fossem
etiquetadas como lei, e todas as promessas, consolos, etc. como
evangelho. Ao que parece, o que venha a ser lei e evangelho, não é só
uma questão de estilo, nem duma definitiva caracterização de deter -
minadas palavras; antes, uma mesma palavra pode atingir al guém como
lei ou ser ouvida como evangelho. A figura de Jesus, também e
justamente a cruz, pode ser contemplada de tal modo que se perceba nela
com extrema severidade a voz da lei. Por outro lado, pode-se entender o
primeiro mandamento de tal ma neira que nele se escute a voz do
evangelho. Se é como acima dizíamos, que o único meio de usar
corretamente o evangelho é a fé, então, nos devidos termos, pode-se
arriscar também a inversão: tudo que aceito na verdadeira fé, na
concordância com Jesus, isto é, cada palavra que me é palavra de Deus
de tal forma que se torna palavra da fé para mim, constitui-se em
testemunho do evangelho para mim — ainda que sejam os pássa ros no ar
ou os lírios do campo. Palavra da lei, por outro lado, seria tudo o que
não ouço na fé.
Todavia, isso parece uma formulação tão abrangente que se tem a
sensação de perder as bases para a compreensão da lei. Não obstante, é
indispensável ser arrastado para horizontes de amplitude quase infinitos,
quando tratamos teologicamente da lei. E isso é assim por causa do
evangelho. Pois na teologia — porque é assim na pregação — tudo tem
que acontecer em função do evangelho. A fórmula da distinção entre lei
e evangelho seria completamente desvirtuada se as duas coisas ficassem
simplesmente lado a lado. É incontestavelmente certo dizer que a
pregação, a teologia só tem interesse no evangelho e não, além e
independentemente dele, também ainda na lei. Mas note-se bem:
exatamente porque se trata tão-somente do evangelho, a lei está
envolvida quando isso acontece corretamente. Pois o evangelho é o
cumprimento da lei. Se não existe a lei, clamando por cumprimento, o
evangelho perde o sentido, sua necessidade. Onde não há pecado, não se
pode proclamar seu perdão. Onde a morte não tem poder, não pode
ressoar a mensagem da ressur reição. Onde a descrença não opera, não
pode acontecer a palavra da fé. Só entre os ímpios a palavra de Deus tem
lugar para revelar seu poder. Pois, como diz Lutero:

É da natureza de Deus que ele crie algo do nada. Por conseguinte,


Deus nada pode fazer de quem ainda não é nada. Os seres
humanos, no entanto, fazem de algo uma coisa diferente. Porém
isso é obra completamente inútil. Por isso Deus só acolhe os
abandonados, só cura os enfermos, só devolve a visão aos cegos,
só vivifica os mortos, só torna piedosos os pecadores, só torna
sábios os néscios, em resumo, não se compadece senão dos
miseráveis e não concede graça a não ser àqueles que estão em
desgraça. Por isso, nenhum vaidoso pode tornar-se santo, sábio ou
justo, (isto é:) tornar-se matéria de Deus e conseguir que Deus
nele opere; pelo contrário, ele permanece na sua própria obra e faz
de si um santo de fantasia, excogitado, aparente, falso e pintado,
ou seja, um hipócrita. 159

159
1,183,39-184,10 (1517).
Temos que falar da lei em tão estranha amplitude de horizontes
porque nisso está em jogo a universalidade e realida de do evangelho.
Mas, se seguirmos essa indicação, será preciso mudar nossa
compreensão da lei e nosso emprego deste vocábulo em mais de um
sentido. Quem quiser conscientizar-se da realida de da lei, deve ater-se
aos Dez Mandamentos, por exemplo. Dificilmente achará em outro lugar
formulação tão elementar, precisa e concreta daquilo que lhe diz respeito
incondicional mente diante de Deus como ser humano em coexistência
com os semelhantes. Todavia, é preciso precaver-se da tola ideia de que
a lei seria uma doutrina que só atingiria o ser humano sob a forma da
pregação, por exemplo, que a lei seria algo a ser acrescentado ao ser
humano, como se o ser humano por si só, como ser humano, não fosse
confrontado com a realidade da lei. A pregação da lei só põe a nu "o que
já existe na natureza humana" 160 . "Pois a lei, efetivamente, já existe
antes." 1 6 1 "Pois a lei, sem que necessite de nós para isso, de fato está aí
também contra a nossa vontade, antes, no começo, no meio, ao final e
após a justificação." 1 6 2
Não que a explicação da lei, a explanação concreta daquilo que é
exigido do ser humano pudesse dispensar a doutrina explí cita. Não que
não se tivesse que dizer sempre de novo ao ser humano, que tão
facilmente converte seu amor em desamor, que tão facilmente transforma
sua razão em irracionalidade e ceguei ra, o que é bom e o que é mau. Não
que para tanto não coubesse justamente à pregação cristã uma função
indispensável. Entre tanto, isso não é sua tarefa específica. E de maneira
alguma é só ela que ensina a lei. Ensinamento da lei acontece na imensa
variedade de legislação e educação, instrução e formação, ciência e
cultura, cosmovisões e religiões. Seria dogmatismo e uma ati tude nada
cristã afirmar que em parte alguma senão na Bíblia se reconheceria algo
verdadeiro, bom, correto e que em nenhum lugar senão na cristandade

160
39/ 1,361,30 (1537).
161
39/ 1,477,7 (1538).
162
39/ 1,353,37s. (1538).
(sem falar de tudo aquilo que de problemático acontece na cristandade!)
aconteceria algo verda deiro, bom e correto.
Tentou-se interpretar o fato de que a lei sempre já está com o ser
humano, reportando-se à expressão bíblica referente à lei escrita no
coração e a tradições estoicas, no sentido do direito natural, como se
cada ser humano, por ideias inatas, soubesse o conteúdo da lei. Essa
concepção, em parte aceita ingenuamente também na teologia
reformatória, foi criticada com razão. A lei que sempre já envolve o ser
humano não é um código de ideias intemporais, mas historicamente
atuante, a ver dadeira essência do acontecimento linguístico. E de modo
algum ela atua no ser humano apenas na forma dum doutrinamento
teórico, mas como poder de sua vida real que o exige, desafia, estimula e
preocupa. Em toda realidade com que se defronta ele se defronta com a
lei. Ela não se apresenta apenas sob a forma de conteúdos do
pensamento. A realidade da lei — poderíamos dizer, também, sua
historicidade viva — só se entende, quando não se para naquilo que a lei
diz, mas se levam em conta seus efeitos, aquilo de que ela é capaz.
De acordo com a opinião corrente, cabe à lei ensinar, esti mular a
prática do bem, ser útil à vida e capacitar para o exercício da justiça.
Isso também é verdade; e isso realmente acontece, desde que se restrinja
a exigência da lei a aspectos parciais. Torna-se completamente errado,
porém, quando enfocamos o ser humano na sua condição de ser
radicalmente exigido, o juízo que é pronunciado em última instância
sobre ele. Se não dividir mos o ser humano em funções e tarefas parciais
sem conta, mas se perguntarmos por ele mesmo como pessoa, não apenas
pelas objetivações parciais de sua personalidade naquilo que realiza em
ações e obras, então haveremos de concluir: a lei ensina menos sobre o
que se deve fazer do que sobre o que de fato não se fez, menos sobre o
bem a realizar do que sobre o mal já praticado, menos sobre as
possibilidades do ser humano do que sobre aquilo que já lhe é impossível
mudar.
Sob esse aspecto derradeiro e radical é pura ilusão pensar que a lei
possa libertar. Antes, ela prende e compromete o ser humano com aquilo
com que ele se definiu de forma irrevogável. Por isso é também uma
ilusão que a lei, nesse sentido radical e derradeiro, possa servir para a
justificação. Pelo contrário, ela acusa, defronta-se com o ser humano
como juiz, como carras co. Em vez de servir à vida, ela mata. Isso só
aparece de forma visível, no entanto, quando ela leva o ser humano ao
desespero. Mas o desespero é somente o reverso da arrogância cega. E
esta não é menos fatal para o ser humano do que aquele. A presunção de
sozinho dar conta de si mesmo e do mundo, do fracasso próprio e da
morte, da lei em toda a sua avassaladora força de questionamento do ser
humano (é isso que quer dizer: poder justificar-se a si mesmo), significa
— não importa se isso acontece como expressa negação ateísta da
existência de Deus ou sob a roupagem piedosa da autojustificação
religiosa— em todo caso, que em última análise não se deseja depender
de Deus.
A verdadeira impiedade não é a negação abstrata da exis tência de
Deus, mas a negação da própria dependência dele, isto é, a negação da
existência própria como criatura de Deus. Por isso, a falta de fé é o
pecado básico do ser humano. A falta de fé é a insistência no princípio
da autojustificação. Por isso, a existência fora da fé, não importando sob
que variações ela venha a concretizar-se, é existência sob a lei no
sentido duma tão irremediável sujeição a ela que aqui o ser humano nem
chega a entender o que na realidade significa a lei. A confian ça na lei,
que é exatamente o contrário da fé no seu verdadeiro sentido, no sentido
do evangelho, é a tônica comum de todas as formas de descrença,
especialmente da descrença piedosa.

Esta é a falsa religião, que pode ser assimilada pela razão. (...)
Nisso não há diferença entre judeus, papistas e turcos. Os ritos são
diferentes, mas o coração e o raciocínio são os mesmos (...), ou
seja: se agi de determinada maneira, terei a benevolência de Deus.
É o mesmo sentimento em todos os corações humanos. 163

Por conseguinte, se a lei é usada no sentido do evangelho — e


fazer isso é competência do Espírito Santo — então se revela aquilo que
a lei efetua de fato, ainda que não se reconheça nem se entenda, ou seja,
sua incapacidade de servir-nos para a justificação e, com isso, sua ação
de acusar e matar. Mas, quando isso acontece no contexto da pregação
do evangelho, o acusar opera benéfica renúncia à autojustificação, e o
matar se transforma em guinada para a vida. Entender, ensinar e apli car
a lei dessa maneira constitui o uso apropriado, "o uso teoló gico da lei",
diz Lutero. Pois ele segue ao que é visado pela ação de Deus no ser
humano. Serve à obra própria de Deus pela execução de sua obra
estranha. Porque Deus mata para vivificar.
Estaríamos confundindo tudo, no entanto, se achássemos que
agora o evangelho desempenharia o papel duma nova lei para ordenar a
vida no mundo. No mundo, a lei, distinta do evangelho, conserva sua
necessidade e direito. A questão apenas é reconhecer claramente essa
necessidade e esse direito da lei no mundo em diferenciação do
evangelho. Ela tem sua necessi dade positiva, construtiva, ordenadora e
preservadora de vida, possibilitadora de justiça no "uso civil da lei", no
usus civilis ou politicus, como Lutero o formula. Nessa limitação e modera -
ção, nessa sobriedade e ausência de ilusões, revela-se a salutar função
terrena da lei. A lei exerce então sua função insubstituível e necessária
no mundo tal qual ele é, no mundo pecador, quando não é mal-usada
para a justificação perante Deus, mas nada mais pretende do que a
justiça terrena e civil, isto é, limitar as consequências do pecado e
refrear o ser humano.
Essa distinção do duplo uso da lei, do usus civilis e do usus
theologicus164 , não é uma teoria isolada, mas intimamente ligada ao correto
entendimento do evangelho. Numa primeira e superficial confrontação
163
40/ 1,603,5-11 (1531).
164
Por exem pl o: 40/ 1,519,11-520,10 (1531).
com essa doutrina, dificilmente se tem uma ideia de sua profundidade e
de suas enormes consequências. Nas considerações subsequentes
permaneceremos no seu encalço, e encerramos as reflexões até aqui
desenvolvidas com uma rápida refutação de três mal-entendidos.
Ainda que algumas manifestações possam intimá-lo, é uma
interpretação equivocada distribuir os dois usos a grupos distintos de
pessoas: como se o primeiro, o uso político da lei, fosse só para as
pessoas brutas, que têm que ser coagidas à força a manter a ordem
externa, enquanto que o segundo, o uso espiritual da lei, se aplicaria a
um grupo mais elevado de pessoas, de sensibilidade mais apurada. Pelo
contrário: o cristão, sendo pecador e justo ao mesmo tempo, vive
também concomitantemente sob os dois tipos de uso da lei.
É um mal-entendido ainda achar que se trataria duma dupla lei:
uma profana e outra de caráter religioso que excedesse a primeira. É,
antes, uma única e mesma lei, através da qual Deus age de duas formas
com o ser humano.
É um equívoco, finalmente, pensar que os dois tipos de uso da lei
coexistissem sem recíproca relação. É verdade que o uso político da lei
não se dá propriamente como pregação e existe até, em sentido
fundamental, independentemente da proclamação cristã. Acontece,
porém, que só a partir do evangelho se obtém sua correta compreensão
como uso político da lei. Pois só a fé mantém a justiça civil livre da
ilusão de autojustificação perante Deus. A fé beneficia, assim, a
convivência dos seres humanos até as consequências concretas como a
libertação para percepção e ação políticas sóbrias.
IX
PESSOA E OBRA

As duplas contrastantes que até aqui nos serviram de fio da meada


na tentativa de penetrar no pensamento de Lutero, têm em comum que,
cada qual à sua maneira, representam um contraste em duplo sentido.
Mas, apesar do rigoroso caráter antitético, não pode haver dúvida: a
aceitação de um não é sim plesmente a negação do outro e vice-versa.
Não pode tratar-se de contrastes absolutamente excludentes, de modo
que aqui só valesse uma alternativa, como entre bem e mal, vida e morte.
Por mais crítica que a concepção teológica de Lutero seja em relação à
filosofia, não se resume, de modo algum, à simples negação e destruição
da filosofia. Da mesma forma, o Espírito não elimina a letra ou, então, o
evangelho a lei. No duplo uso da lei acabamos de enfocar, de modo
especial, essa coexistência de dois aspectos que não se excluem
reciprocamente, ainda que devam ser muito bem diferenciados.
O "e" do qual nos valemos na formulação do relaciona mento de
tensão mútua não serve apenas para separar, mas também para unir.
Cabe-lhe acentuar que cada qual, no seu devi do lugar e dentro dos seus
limites, tem seu direito de coexistir. Talvez devêssemos formular com
mais precisão: um não é mera mente tolerado ao lado do outro, mas
adquire seu direito graças a essa coexistência e diferenciação. Em todo
caso, de acordo com Lutero, isso deve valer no seguinte sentido: só a
partir do uso teológico da lei o uso político da lei é entendido em seu
sentido puro. Só a partir do evangelho a lei é corretamente interpretada,
ou seja, entendida como lei. É o Espírito que faz com que se leve a letra
realmente a sério. Da mesma forma, só a causa da teologia abre as portas
para lidar corretamente com a filosofia. Cada uma dessas assertivas
poderia ser confir mada muitas vezes por manifestações de Lutero,
inclusive a última, que parece a mais surpreendente. Consta, por
exemplo, nas teses de Lutero para o Debate de Heidelberg: "Assim como
não faz bom uso do mal da libido quem não estiver casado, da mesma
forma ninguém filosofa bem se não for tolo, isto é, cristão." 1 6 5
Não obstante, de imediato é preciso fazer também restri ções fortes
a esse tipo de interpretação. Como se não estivésse mos obviamente
equivocados quanto ao raciocínio de Lutero, supondo que seu verdadeiro
interesse fosse um harmonizante "tanto quanto", o esforço, portanto, de
nivelar os contrastes e trazê-los para o satisfatório sossego do
equilíbrio, como pola ridades que se condicionassem reciprocamente.
Como se, no caso dele, estivéssemos lidando com um pensador sistêmico
que, mediante diferenciações, pusesse em ordem tudo que é litigioso e
liquidasse as questões, colocando cada coisa no seu lugar. Mas
sobretudo: como se Lutero, na estrutura básica do seu ra ciocínio, fosse
católico. Pois essa interpretação do "e" que aca bou de se oferecer como
característica do pensamento de Lutero, lembra de modo surpreendente a
forma como, na compreensão católica, natureza e graça são colocadas
numa relação equili brada através duma bem estruturada priorização e
subordinação, para ordenar, de modo correspondente, todas as relações
carregadas de tensão, como a de teologia e filosofia, Igreja e Estado, ou
também na área interna da Igreja, a relação entre comunicação da graça
e o rigor judicial, entre a divina obra da graça e o mérito humano. De
acordo com Tomás de Aquino, a graça não suspende a natureza, mas a
completa. Por isso a fé pressupõe o conhecimento natural e a razão
natural está a serviço da fé 1 6 6 .
Pelo que se vê, o pensamento de Lutero não é determinado por
essa estrutura básica de natureza e graça. Não obstante, não se deve
distanciar seu modo de pensar a ponto de ignorar ou fazer desaparecer os
surpreendentes pontos de contato com o pensamento tomístico em
degraus com que acabamos de topar. A diferença que sentimos no
confronto de Lutero e Tomás e que, muito além das características
pessoais desses pensadores, é de relevância confessional, não pode ser
165
Obras selecionadas, v. 1, p. 39 (1518).
166
S . t h. I q. 1 a. 8 ad 2; q. 2 a. 2 ad 1.
reduzida facilmente a uma fórmula. Em todo caso, a mera negação da
relação tomística de natureza e graça em forma de degraus de modo
algum corresponde ao pensamento de Lutero. A diferença que aqui sem
dúvida existe, não pode ser entendida como uma simples diferença na
maneira de definir a relação de natureza e graça, isto é, dentro do mesmo
esquema conceptual. A dificuldade está em que a diferença se estende a
profundezas bem maiores, onde já os conceitos fundamentais ou então,
formulado com mais precaução, as questões básicas são diferentes.
A maneira particular como Lutero opera com as duplas
contrastantes só fica clara quando se reconhece que, além da
concomitância que não leva a uma recíproca eliminação, existe nelas um
confronto hostil de extremo rigor. O problema central que o pensamento
de Lutero nos lega é como esses dois aspectos aparentemente
conflitantes podem ser conciliados. Não há dúvi da que, no estado
inicialmente confuso da questão, domina — especialmente em
comparação com a tradição católico-escolástica — o aspecto do
confronto, que Lutero utiliza com extremo aguçamento, quase estamos
tentados a dizer: com prazer no paradoxo. Ainda que, por um lado, possa
enaltecer a razão como o máximo desta vida, como algo até divino 1 6 7 ,
temos ao lado disso sua dura assertiva de que "a razão é a prostituta do
diabo e nada sabe senão blasfemar e injuriar tudo quanto Deus fala e
faz" 1 6 8 . Destarte, há inimizade mortal entre fé e razão. "A fé destrói a
razão e mata a besta que céus, terra e todas as criaturas não conseguem
eliminar." 169
Da mesma forma — para ouvidos piedosos coisa bem mais
escandalosa — entram em con flito contraditório 1 7 0 lei e Cristo, lei e fé.
"A lei é a negação de Cristo." 171
"Se for preciso abandonar um dos dois,
Cristo ou a lei, deve-se abandonar a lei e não a Cristo." 1 7 2 O que

167
39/ 1,175,9s. (1536).
168
18,164,25- 7 (1525).
169
40/ 1,361,7-9 (1531).
170
" C ont radi t óri o" não é usado aqui e no que se segue no sent i do usual do t erm o (i st o
é, com o cont radi ção que surge pel a afi rm ação e negação de um e m esm o concei t o),
m as no sent i do hi st óri co de poderes e post ul ações confl i t ant es.
171
40/ 11,18,4s. (1531).
172
39/ I,47,23s. (1535).
acontece na fé pode, em termos dramáticos, ser formulado assim: "Se o
pecado e a lei invadirem a consciência, devem-se expulsar ambos os
malandros: Nada sei de lei e pecado", mas apenas de Cristo 1 7 3 .
Sob a impressão de que para Lutero se tratava, em última análise,
de criar antíteses inconciliáveis, na imagem vulgar que se fez de Lutero
estabeleceu-se uma alternativa: ou se suprimiu aquele outro aspecto da
coexistência, tão difícil de harmonizar com essa impressão, ou se
considerou Lutero um homem confu so, que ora falava desta, ora de outra
maneira e que não deveria ser levado a sério nem nos seus exageros das
contrariedades, nem nas suas aparentemente estranhas soluções de
compromis so, conciliações e tentativas de remendo. Entretanto, essa
seria uma maneira muito barata de capitular diante da tarefa, que nos foi
colocada no sentido de entender as coisas. O que importa justamente é
compreender o nexo interno das manifestações apa rentemente tão
conflitantes de Lutero. Só a partir da percepção das definições
contraditórias dos binômios pode-se compreen der aquela outra relação,
não-contraditória, de uma forma que, apesar da desconcertante
semelhança com a doutrina católica de natureza e graça, dela se
distingue profundamente. Para isso, porém, é necessário delinear melhor
o horizonte em que o pensa mento de Lutero se move e que é constitutivo
para a compreen são de seu raciocínio.
O que há de comum entre os binômios contrastantes no pensamento
de Lutero de que tratamos até aqui, naturalmente vai além do mero fato
duma repetitiva analogia estrutural de caráter formal no sentido que
acima descrevemos. Uma correla ção interna se delineia, permitindo
concluir: a igualdade estrutu ral que se repete provém da mesma raiz e é
expressão da causa básica que determina o pensamento de Lutero. É
claro que não se devem colocar precipitadamente todos os binômios
dicotômicos até aqui tratados, bem como os que se seguem, em paralelo.
A diferenciação de lei e evangelho, que se mostrou como funda mental,
evidentemente não coincide sem mais nem menos com aquela de filosofia

173
40/ 1,208,5ss. (1531).
e teologia. Assim também o duplo uso da lei - a própria formulação já
diz isso - não pode ser identificado com a diferenciação de lei e
evangelho. Mesmo as duas duplas de conceitos que estão mais próximas,
letra e espírito, bem como lei e evangelho, representam aspectos
distintos. Portanto, ainda que o estabelecimento de correlações entre as
duplas contras tantes exija cautela interpretativa, não há como ignorar: em
última análise a questão é a mesma em toda parte. Isto é: a partir da
diferenciação de lei e evangelho abre-se uma determinada compreensão da
relação de filosofia e teologia, bem como a percep ção da diferenciação entre o
uso político e teológico da lei, funda mental para a compreensão desta. A isso
se associam outras relevantes irradiações dessa contrariedade básica, das
quais ainda haveremos de falar.
Para compreender essa problemática indiscutivelmente difícil que
está presente nas mais diversas áreas do pensamento de Lutero e que, a
rigor, constitui o aspecto memorável de sua atividade intelectual, ou
seja, como aquela uma antítese funda mental, que tem um sentido
contraditório bem como um não-contraditório, se revela de validade
universal e se desdobra em inúmeras variações — para isso temos que
perguntar pelo hori zonte de experiência, onde aquilo que é de difícil
compreensão para o pensamento reflexivo, aparece como realidade
elementar e onde, por isso, a compreensível suspeita de que se trata de
exageradas extrapolações intelectuais, tem que ceder lugar à im pressão
de que aqui não se trata de outra coisa do que da refle xão conscienciosa
e responsável da única coisa realmente neces sária. Ao perguntarmos assim
pelo horizonte vivencial, segui mos a dois indicadores importantes que
resultam de nossa ocu pação com a matéria até aqui.
O primeiro indicador é esse: a peculiar dupla estrutura
contrastante com que topamos não pode ser equacionada num sistema,
isto é, não pode ser analisada sem considerar a época. Não se pode
pretender solucioná-la qual tarefa matemática. Não se trata de
ressentimento pessoal nem de lampejo espirituoso, mas de percepção que
penetra no âmago da matéria, quando Lutero diz: "A matemática é a
maior inimiga da teologia. Não há outra parte da filosofia (isto é, das
ciências em geral) que tanto se oponha à teologia." 1 7 4 Essa observação
pode não ser de todo pacífica a partir do seu contexto imediato, um
debate sobre a doutrina da Trindade, mas tem suas raízes em contextos
de alcance muito mais amplo, que levam à convicção: a teologia não
trata duma matéria intemporal, mas dum acontecimento que envolve tão
radicalmente o tempo que não estabelece apenas tempo de decisão, mas,
o que vai mais a fundo, leva à decisão dos tempos. Lutero pode
caracterizar a distinção de lei e evange lho como uma diferenciação dos
tempos, não das épocas históri cas e dos subsequentes períodos, mas da
questionabilidade da quilo que realmente concede tempo. "Por isso o
cristão está dividido em dois tempos: na medida em que é carne, está sob
a lei; na medida em que é espírito, está sob o evangelho. (...) O tempo da
lei não é duradouro. 'Cristo é o fim da lei.' (Rm 10.4.) O tempo da graça
deverá ser eterno." 1 7 5 Essa diferença de tempo se experimenta na
consciência: a existência no tempo da lei como medo, a existência no
tempo da graça como fé. "São tempos rigorosamente diferentes; mesmo
assim, são de íntima proximidade, a saber, pecado e graça, lei e
evangelho." 1 7 6
Para elaborar a dupla estrutura antitética por nós obser vada é
preciso envolver-se, portanto, no acontecimento que constitui a causa da
teologia e que quer ser compreendido, ao mesmo tempo, como
acontecimento da história da revelação, como acontecimento da pregação
e como algo que acontece à consciência humana. Só quando não se
tentam equacionar as duplas contrastantes que dão tensão ao pensamento
de Lutero dentro do horizonte duma compreensão formalizada e neutrali -
zada do tempo, como num tabuleiro de xadrez, mas se as colocam em
relação com o tempo histórico e por isso mesmo questionável em última
análise, compreendendo essas próprias contrariedades em sua
historicidade, só então perdem a aparência de confusa contradição.

174
39/ 11,22,l s. (1531).
175
40/ 1,526,2s.8s. (1531).
176
40/ 1,527,7-9 (1531).
Com isso está dada a segunda indicação: para que a estru tura
teológica que orienta o pensamento de Lutero (e sua qualifi cação como
"estrutura" em si não é apropriada a essa relação com "acontecimento",
com história no sentido mais amplo e, ao mesmo tempo, mais concreto)
não sofra a suspeita de ser especulação, mas se torne compreensível
como grandeza que cor responde à realidade histórica e a ela faz justiça,
então isso deve ter um ponto de referência na humanidade do ser
humano. Não se queira trazer aqui a precipitada objeção de que agora
pelo visto se pretende reduzir a causa da teologia a possibili dades
antropológicas genéricas, seja que se considere necessário proteger
Lutero contra tal mal-entendido, seja que se culpe o próprio Lutero de
descambar para o duvidoso plano da antropologização da teologia. Em
hipótese alguma deve-se supor que quiséssemos desvincular-nos agora da
base histórica concreta que é a única que permite diferenciar
teologicamente lei e evange lho: isto é — que outra alternativa séria
poderia haver? — invo cando as Escrituras Sagradas, o que significa por
sua vez a invocação de Jesus Cristo. Por isso não se pode pretender que
estivéssemos querendo ignorar agora o acontecimento linguístico da
pregação na qual se concretiza o evangelho e com isso lei e evangelho
em sua diferenciação. Mas, para que isso não seja um acréscimo
facultativo à vida humana, uma fantasiosa superestrutura religiosa, é
preciso que se demonstre em que medida a distinção de lei e evangelho e
todas as demais diferen ciações a ela associadas na teologia de Lutero se
relacionam com um aspecto contraditório dado com a própria existência
humana, que é inseparável dela, a torna profundamente proble mática, e o
conduzem dos recônditos obscuros e confusos à luz do dia.
Esse aspecto Lutero aborda com a diferenciação de pes soa e
obra. O binômio "pessoa e obra" hoje nos é familiar,
inconscientemente, no sentido da doutrina de percepção do ro -
mantismo. Numa obra - e sob este termo se entende, em sentido
próprio, a obra de arte - a personalidade criadora do artista que nela se
expressa, constitui aquilo que, a rigor, é digno de nota. Por isso, a
reprodução se torna o ideal da interpretação, isto é, o revivenciar e
revivescer da produção original, à qual a obra deve sua existência. A
obra, portanto, é expressão da personalidade e se constitui em
mediador para retornar à pessoa como fator decisivo, mas de tal forma
que faz parte da essência dessa cultura da personalidade que a pessoa
se realize na obra do autorretrato. Poder-se-ia dizer até: a própria
pessoa se torna a obra ideal. Como verdadeiro objetivo das obras
figura a autorrealização da pessoa.
Lutero veio dum ambiente e vivia numa tradição para a qual essa
acepção romântica da obra como obra de arte e da pessoa como artista
e por isso como obra de arte propriamente dita era completamente
estranha. Se naquele tempo se falava de "obra", pensava-se
evidentemente na boa obra. Entretanto, apesar de todas as diferenças
existe algo de comum entre — vamos formu lá-lo com cautela — o
conceito vulgar-medieval de obra como boa obra e o conceito
romântico de obra como obra de arte, na medida em que, em ambos os
casos, a pessoa se expressa e ao mesmo tempo se molda a si mesma na
obra, ainda que a Idade Média de modo algum entendesse isso sob o
prisma da estética mas com vistas a que o ser humano corresponda a
sua vocação e possa subsistir no juízo final. Face a uma com preensão
vulgar da justificação do ser humano e do papel que as obras nela
teriam há, da parte da própria teologia escolástica, sérias ressalvas,
restrições, diferenciações e objeções. Mesmo assim, a opinião básica,
válida na Igreja e defendida pela teolo gia, presente também nas ideias
vulgares, era a seguinte: fosse qual fosse a definição mais precisa da
relação de graça divina e ação humana, o alvo teria que ser um
aperfeiçoamento da pessoa, que capacitasse o ser humano para obras
meritórias.
Desse fundo teológico, caracterizado de forma grosseira e
incompleta, já admiravelmente cedo se destaca em Lutero uma
compreensão da justificação em que esta questão se concentra
rigorosamente na pessoa, sob total desconsideração das obras como
suposta causa, por mais relevantes que sejam como consequência — só
que então, convém lembrar, não mais com vistas à questão da
justificação. A favor dessa tese arrola-se o movi mento irreversível da
pessoa para as obras, em polêmica este reotipada contra Aristóteles. Por
exemplo, já na primeira preleção sobre Salmos:

Sua justiça (a do justo) não procederá das obras, mas as obras de


sua justiça. (...) Isso vale também contra Aristóteles que afirma:
Pela prática da justiça a pessoa se torna justa. Antes é assim:
sendo justo faz-se o que é justo. 177

Ou então, na preleção sobre a Epístola aos Romanos:


Diante de Deus não é assim que alguém se torne justo pela prática
da justiça. (...) mas o justo, ao ser isso, faz o que é justo

Pois Deus não aceita a pessoa por causa das obras, mas as obras
em função da pessoa, isto é, a pessoa antes das obras, como está
escrito: O senhor olhou para Abel (primeiro) e (depois) para suas
ofertas (Gn 4.4). 178

Ou ainda, numa carta do ano de 1516:


Não é, como pensa Aristóteles, que nos tornamos justos pela
prática da justiça — isso, no máximo, de forma hipócrita — mas,
formulando uma vez assim: pelo fato de nos tornarmos e sermos
justos, fazemos o que é justo. É preciso que primeiro mude a
pessoa, então mudarão também as obras. Antes de suas ofertas, o
próprio Abel agradou a Deus. 179

177
4,3,28.32s. (1513/ 15).
178
56,268,4- 7 (1515/ 16).
179
WA B r 1,70, n°. 27, 29- 32 (19.10.1516) = B oA 2 6,2,27-30.
O motivo da referência polêmica a Aristóteles é a doutrina deste
sobre a habilidade (habitus). Essa doutrina adquire impor tância porque
destaca, com vistas à vida anímica, o peculiar fenômeno da aquisição
duma assim chamada segunda natureza (por hábito ou exercício): a
circunstância de que se podem adqui rir capacidades para as quais é
preciso haver certas tendências naturais, mas que em si não são dadas
pela natureza; como adquiridas, porém, assumem caráter de natureza,
das quais ema nam, como que por si, atos correspondentes. Na área da
moral, essa observação confere uma posição central ao conceito de vir -
tude, no qual se unem diversos aspectos dignos de nota: primei ro, o
aspecto da continuidade e confiabilidade do sujeito da ação moral. Os
diversos atos não estão isolados entre si, não são tentos de sorte, por
assim dizer, mas emanam dum estado, duma postura moral com que
normalmente se pode con tar. Segundo, o aspecto da facilidade. Assim
como a habilidade adquirida no domínio dum instrumento, por exemplo,
faz da prática musical uma atividade puramente lúdica e só assim torna
completo o prazer na arte, já que nada mais se nota de esforço, da
mesma forma também a virtude se orienta pelo ideal da evi dência, da
ausência de forçamento, da naturalidade num sentido superior, da
espontaneidade e soberania. E por isso, por fim, a ideia do
aperfeiçoamento é eticamente determinante a partir do conceito de
virtude. Assim como as próprias virtudes são aperfeiçoamentos de
determinadas habilidades em determinado sentido, da mesma forma o ser
humano como um todo se aperfei çoa na medida de sua capacitação
moral.
Se Lutero estivesse interessado apenas no aspecto de que o fazer
procede do ser, a rigor não haveria motivo para polemizar contra
Aristóteles. Pois exatamente isso interessa também a Aristóteles: não só
no sentido genérico de que a condição humana obviamente é a base da
ação do ser humano, mas também e sobretudo no sentido determinado de
que os diversos atos, para terem caráter de virtude, para serem corretos,
pressupõem uma constituição correspondente, uma determinada quali -
ficação do ser humano, algo ôntico 180, portanto. Não se pode considerar
justo, no sentido ético, alguém que por acaso agiu uma vez
corretamente, mas só aquele de quem se pode esperar, graças a sua
qualificação como justo, que sempre venha a agir corretamente.
A crítica de Lutero a Aristóteles de forma alguma visa a
anteposição duma determinação ôntica ao ato isolado, mas se dirige
contra a acepção aristotélica da gênese dessa qualifica ção. Pois, de
acordo com Aristóteles, qualquer habitus, seja ele uma habilidade técnica
ou intelectual ou mesmo uma virtude moral, surge através do exercício e
do costume, isto é, através da repetição do ato. Por mais que no final da
trilha o habitus tenha precedência sobre o actus, para a conquista desse
objetivo vale a ordem inversa, ou seja, a precedência do actus sobre o
habitus. E não há como fazer restrições a isso, ao menos no que diz
respeito às habilidades técnicas e intelectuais. Um tem mais facilidade
que outro; mas sem exercício ninguém se torna mestre. Também na área
da moral não há como negar a função disciplinadora do exercício, do
costume e da expe riência. Quando as afirmações de alguém se restringem
a essas áreas — e Aristóteles faz exatamente isso— dificilmente haverá
o que opor. A não ser que se questione se uma pessoa justa em termos
morais pode valer realmente como justa em sentido radical e se, com
vistas a isso, faz sentido afirmar que pela prática da justiça, isto é, pela
repetição de atos justos, se adquire a qualificação de justo.
Ao iniciar sua crítica a Aristóteles nesse ponto - e só assim ela faz
sentido, uma vez que de maneira alguma ele preten de questionar a
validade da doutrina aristotélica do habitus em sua área de legítima
aplicação — Lutero conta com o consenso de toda a teologia cristã, que,
apesar do relativo respeito à ética aristotélica, evidentemente tem que
negar que o ser humano se torne justo em última instância, isto é,
perante Deus, através da assimilação das virtudes no sentido aristotélico.
Nessa linha é preciso perguntar, ainda: em que sentido Lutero tem
motivo de criticar a doutrina escolástica da justificação? Abstraindo uma

180
N. do T.: Seinshaft, no ori gi nal .
vez do fato de que a tradição nominalista, o ambiente da formação
intelectual de Lutero, realmente continha pontos vul neráveis, que no
tomismo assim não existiam, temos que constatar, limitando-nos aos
traços fundamentais comuns da doutrina da justificação da escolástica:
evidentemente, ninguém defendeu a tese de que o ser humano se tornaria
justo perante Deus atra vés das suas obras justas. Estava fora de
discussão que o ser humano pudesse tornar-se justo perante Deus sem a
graça; a rigor, aliás, era ponto pacífico que ele pode tornar-se justo
somente pela graça, podendo variar apenas a profundidade com que o
papel determinante da graça era refletido.
Em geral, porém, a teologia escolástica usava a psicologia
aristotélica como meio de interpretação da doutrina da graça, incluindo,
portanto, a doutrina do habitus. Por isso, a crítica de Lutero a Aristóteles
nesse ponto é, a rigor, crítica ao aristotelismo escolástico. Que
significa, afinal, o recurso à doutrina do habitus para a interpretação da
doutrina da graça? Se conti nuarmos a nos restringir às linhas básicas e
elementares, temos que dizer: a escolástica usa o conceito de habitus na
doutrina da graça de uma forma nada aristotélica. Pois, à diferença das
habilidades e virtudes que a pessoa adquire por si mesma na esfera
natural, isto é, no âmbito daquilo que o ser humano pode conseguir por
forças e potencialidades próprias, na doutrina da graça se trata de habitus
sobrenaturais. Nessa ênfase no cará ter sobrenatural há dois aspectos:
primeiramente aqui se acrescen ta uma capacitação que abre ao ser
humano possibilidades que aperfeiçoam sua natureza para além dos
limites naturais em direção ao sobrenatural, isto é, em direção ao seu
alvo eterno, a Deus. E depois — o que já está implícito nisso — trata-se
duma capacitação que o ser humano não adquire por caminhos naturais,
por forças próprias; antes, ela só lhe é adjudicada gratuitamente, de
maneira sobrenatural. Afinal, só pela graça o ser humano é agraciado.
Se, portanto, o conceito de habitus passa a ser usado na doutrina da
graça, deve tratar-se dum habitus sobrenatural, de forma alguma
adquirido por força pró pria, mas infuso, como se diz, aludindo a Rm 5.5
("o amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo
que nos foi outorgado").
Por que Lutero não pôde contentar-se com isso? O fato de um
"habitus infuso" não fazer sentido no pensamento aristotélico não
precisava incomodá-lo. Pelo contrário, deveria ter visto nisso uma
resoluta preservação da tese da precedência da pessoa sobre as obras. O
habitus da graça não pode ser conquistado por obra alguma do ser
humano. Só com base no gratuito equipamento com esse habitus como é
concedido pelos sacramentos, o ser humano está em condições de
produzir obras correspondentes, que são realmente boas porque agradam
a Deus. No sentido escolástico, a ideia do mérito só pode ter espaço na
doutrina da graça de tal forma que as obras meritórias do ser humano
nada mais sejam do que consequência da graça, portanto não uma
restrição ao sola gratia181, mas apenas sua inter pretação. Assim parece que
o princípio defendido por Lutero foi mantido na doutrina escolástica da
graça exatamente com o auxílio da figura do habitus, isto é, que primeiro
a pessoa deve ser justa para então praticar também o que é justo, e que,
como Lutero inúmeras vezes afirma, a árvore faz as frutas e não as
frutas a árvore.
Se, mesmo assim, não se pode descartar como sem funda mento a
crítica de Lutero à doutrina escolástica da graça, ou não se quer explicá-
la dizendo que foi provocada por uma ver são deficiente da doutrina da
graça, qual seja, a nominalista, ou não se pode considerar sua crítica à
figura do habitus suficientemente interpretada como desenvolvimento
positivo de es tímulos nominalistas, é preciso penetrar numa camada mais
profunda. Por que a escolástica valorizava tanto a ideia de que o ser
humano receberia a graça sob a forma duma qualificação interna, como
equipamento com um habitus? Certamente que, na linha daquelas
afirmações de Lutero referentes à precedência da pessoa sobre a obra, do
ser sobre o fazer, poder-se-ia dizer: acontece para enfatizar o aspecto da
graça, sem a qual nenhuma obra verdadeiramente boa pode acontecer.

181
N. do T.: S om ent e a graça, ou som ent e pel a graça.
Quem não for justo perante Deus pelo recebimento da graça sacramentai,
não pode produzir obras que valham como justas diante de Deus. Entre -
tanto, por mais que efetivamente exista a intenção de expressar a
precedência absoluta da graça, é preciso acentuar ainda um outro aspecto
para explicar a função especial que a doutrina aristotélica do habitus
exerce aqui. Com isso, abre-se também a possibilidade de compreender a
discordância de Lutero com a doutrina escolástica da graça.
Ao se expressar a precedência da graça sobre a obra hu mana com
o auxílio da ideia da conferição da graça em forma de habitus, surge,
inicialmente, na esteira dessa interpretação psicológica da graça, o
seguinte problema: onde esse habitus da graça teria seu lugar na psique
humana - nas potencialidades psíquicas da capacidade de conhecimento
e esforço, que seriam agora revestidas com as assim chamadas virtudes
teológicas da fé, do amor e da esperança, ou então, como pensava
Tomás, na essentia animae, na essência da alma, subjacente às potencia -
lidades psíquicas e delas distinta. Esse problema só merece ser lembrado
agora porque aqui, não por acaso, se determina algo no ser humano
como o lugar onde ocorreria uma transformação, ao passo que Lutero
usa o conceito de pessoa - antes dele pouco usado e destacado na
doutrina da graça — e lhe dá tanta ênfase porque não se trata de que
algo seja mudado no ser humano pela graça, mas que a situação do ser
humano seja mudada e, com isso, o próprio ser humano naquilo que ele
significa perante Deus, em relação àquilo que ele é considerado a partir
de Deus. Enquanto que a concepção da graça como habitus conduz a
atenção para o interior do ser humano, o acoplamento ao conceito de
pessoa faz com que em Lutero a graça seja entendida exata e
exclusivamente como um acontecimento que determina o ser humano em
seu ser para fora, em seu ser diante de Deus.
Com essa diferenciação, no entanto, só se ofereceu uma pista para
o essencial. Na concepção escolástica, o termo "habitus" exerce a função
de interpretar a graça como capacitação nova e sobrenatural, como
virtude sobrenatural. Aqui a pessoa é justa como pessoa capacitada para
agir de forma justa. Mesmo que não se trate de um habitus conquistado,
mas gratuitamente infuso, a maneira como dele emanam os atos do
justificado segue completamente a concepção moral. Em outras
palavras: a vida do justo foi colocada nele próprio como qualidade nova,
ainda que sobrenatural, mas de qualquer forma como natureza, na
medida em que a nova vida do justo terá que se realizar a partir dessa
capacitação. A tendência básica terá que ser agora a realização. A graça
habitual agora deve ser transformada em atos. Verdadeiramente
justificado só se é na medida em que a graça se efetiva em obras. Pois,
dentro duma compreensão antropológica concebida em analogia à moral,
tudo depende de que o ser humano seja visto como agente, como ser
livre e como ser que se realiza rumo à perfeição. Pois a graça não
elimina mas aperfeiçoa a natureza.
Se Lutero, ao contrário, não compreende a pessoa a partir de suas
potencialidades e atividades, isto é, não de acordo com o esquema moral,
mas — em rigorosa contraposição à atividade humana diante do mundo
— como a passividade que constitui seu ser, como a sua condição de
criatura, como o fato de Deus lhe dizer respeito, como a sua condição de
estar diante de Deus, então se anuncia aqui uma compreensão da
distinção de pessoa e obra que possui traços fundamentalmente
diferentes. Trata-se duma distinção em que, evidentemente, uma não
exclui a outra, mas em função da qual, eventualmente, por causa de uma
deva ser ignorada a outra, para que ambas possam ser preservadas em
sua peculiaridade e pureza. Pois, pelo visto, para Lutero, a diferenciação
do relacionamento do ser humano com Deus e com o mundo está
implicada na distinção de pessoa e obra. Isso permite pressentir por que
a diferenciação de pessoa e obra nos introduziu no horizonte de
experiência do pensamento de Lutero de modo geral. Isso ficará mais
claro ainda quando analisarmos, mais uma vez, a diferenciação de pessoa
e obra sob à luz da distinção de fé e amor.
X
FÉ E AMOR

A distinção de fé e amor corresponde à de pessoa e obra.


Como já dissemos muitas vezes: fé e amor devem ser
diferenciados de tal maneira que a fé esteja orientada para a
pessoa, o amor para as obras. A fé elimina o pecado e torna a
pessoa agradável e justa. Quando, porém, a pessoa se tornou
agradável e justa, lhe são dados o Espírito Santo e o amor, para
que faça o bem com prazer. 182

Ou então, numa formulação concisa e precisa: "Assim, a fé per manece o


agente, o amor a ação." 183
Com isso penetramos no centro daquilo que significa ser cristão e
chegamos com isso, ao mesmo tempo, à compreensão do conteúdo
simplíssimo, mas por isso mesmo de abrangência universal, da
proclamação cristã:

Toda doutrina, obra e vida cristãs estão clara, concisa e sobeja -


mente contidas nos dois conceitos de fé e amor, pelos quais o ser
humano é colocado entre Deus e seu próximo, como instru mento
que recebe de cima e em baixo passa adiante, tornando-se vaso ou
cano, por assim dizer, através do qual a fonte dos bens divinos
deve fluir incessantemente em direção a outras pessoas. Vê, essas
são pessoas realmente conformes com Deus, 'que dele recebem
tudo que ele tem, em Cristo, e se revelam a outros, por sua vez,
com benefícios como se fossem deuses* 1 8 4 deles. Então se realiza
182
17/ 11,97,7-11 (1525).
183
17/ 11,96,25 (1525).
184
* N. do T.: Gotte, no ori gi nal . Trat a- se, cert am ent e não por acaso, dum a form a de
pl ural di ferent e da norm al , que seri a Gõtter.
a palavra de Sl 82.6: "Eu disse: Sois deuses, sois todos filhos do
Altíssimo." Somos filhos de Deus pela fé, que nos faz herdeiros de
todos os bens divinos. Mas deuses somos pelo amor, que nos faz
bondosos para com o nosso próximo; pois natureza divina outra
coisa não é do que pura bondade (...) amabilidade e benevolência,
pois que, como vemos, diariamente derrama abundantemente os
seus bens sobre toda criatura. 185

Que a nossa caminhada ao longo das grandes antíteses do


pensamento de Lutero nos levou à diferenciação de pessoa e obra e,
como sua explicitação, à distinção de fé e amor e, com isso, ao resumo
básico da doutrina cristã, confirma nossa suposição: topamos aqui com o
horizonte vivencial em que toda a diversidade dessas antíteses se torna
compreensível no sentido de que todas emanam de uma só raiz e, por
isso mesmo, visam, em última análise, a mesma coisa.
Contudo, será que com isso não chegamos a uma situação onde
todas as contrariedades parecem conciliar-se e fundir-se numa coisa
única e indivisível? Tão pouco como se pode separar pessoa e obra,
agente e ação, tão pouco também fé e amor. É um único acontecimento,
uma única realidade viva.

Pois assim como a fé te traz a bem-aventurança e a vida eterna, da


mesma forma ela traz consigo também boas obras e é irresistí vel.
Pois tal como um ser humano vivo não pode deixar de se mexer, de
comer, beber e ter ocupação — e não é possível que tais obras não
aconteçam; porquanto ele vive, nem é necessário mandá-lo ou
pressioná-lo a fazer tais obras, pois basta estar vivo que ele as fará
— da mesma forma também não se precisa nada mais para praticar
boas obras do que dizer: "Crê somente, e farás tudo com
naturalidade." Por isso, não há necessidade de cobrar longamente
boas obras daquele que crê. É que a fé lhe ensina tudo, e então

185
10/ 1/ 1,100,8- 101,2 (1522).
tudo quanto fizer estará bem-feito, e serão obras preciosas e boas,
por mais insignificantes que sejam. Pois a fé é tão nobre que torna
bom tudo quanto há no ser humano. 186

Assim como a unidade de pessoa e obra nada mais é do que o próprio ser
humano vivo, da mesma forma, pelo visto, fé e amor também têm sua
unidade no fato de se referirem à verda deira vida da pessoa que chegou à
unidade consigo mesma, da pessoa íntegra.
Entretanto, a impressão de que no caso de fé e amor estamos
lidando com uma unidade e totalidade inquebrantada e que aqui
dificilmente se acharia a chave para a compreensão das colocações
antitéticas que dominam o pensamento de Lutero em muitos sentidos,
não resiste a uma análise mais exata. Já o fato de que essa coisa única
tem que ser expressa como dualidade de fé e amor e que sua unidade
inseparável tem que ser expressa na forma da distinção, é indício duma
tensão até nesse mais profundo e simples cerne da questão.
Será que isso deve surpreender? Se aqui não se trata de situações
estáticas ou de ideais, mas da própria vida, de algo que acontece,
portanto, então é preciso falar da tensão, do desnível, da diferença,
daquilo, enfim, que constitui o movi mento de ponto a ponto, de época a
época. Como o ser humano só é humano nesse movimento, ele só pode
ser definido como "entresser"* 1 8 7 . A orientação por essa dinâmica, por
essa temporalidade do ser humano, caracteriza o pensamento de Lutero
desde o início. Já na primeira preleção sobre Salmos encontramos teste -
munhos significativos disso.

Não basta ter feito e descansar então, mas, como diz a filosofia, o
movimento é um ato inacabado, sempre em parte (já) atingido e
em parte (ainda) por atingir, ficando sempre no meio de opostos e
permanecendo, ao mesmo tempo, no ponto de partida e no alvo. Se

186
12,559,20-31 (1523).
187
* N. do T.: Zwischen-Sein, no ori gi nal , i st o é, um ser que est á ent re doi s pont os.
a gente estivesse apenas num, não seria movimento. Nossa vida
aqui, porém, é um tipo de movimento e passagem, isto é, uma
transição, (...) caminhada deste mundo para o futuro, que é
descanso eterno. 188

A vida ativa (vita activa) "é sempre um progredir de ato para ato, de
capacidade para capacidade, como ali (Lutero se reporta a 2 Co 3.18,
onde se visaria a verdadeira vita contemplativa) de compreensão para
compreensão, de fé para fé, de clareza para clareza e de saber para
saber" 1 8 9 . Porque "progredir outra coisa não é do que começar sempre de
novo; e começar sem progredir é morrer. Cada movimento e cada ato de
toda criatura mostra isso." 1 9 0 Portanto, é preciso "progredir sempre, e
quem acha que já alcançou, não sabe que apenas está começando. Pois
sempre estamos a caminho, e temos que deixar para trás o que sabemos e
temos, e procurar por aquilo que ainda não sabemos nem temos." 191
O que vale, então, para cada vida humana, o que se evi dencia até
em toda criatura, vale também e especialmente para os cristãos. "Sua
vida", lê-se na preleção sobre a Epístola aos Romanos, "não consiste em
descanso mas em movimento do bom para o melhor, como o enfermo da
doença para a saúde." 192 Mais uma vez Lutero explicita isso nas
definições ontológicas: não-ser, tornar-se, ser, atividade e sofrimento:
"O ser humano sempre está no não-ser, no tornar-se, no ser, sempre em
deficiência, em possibilidade, em realidade"-- e interpreta a existên cia
cristã em conformidade com isso:

sempre em pecado, em justificação, em justiça, isto é, sempre


pecador, sempre na penitência, sempre justo. Pois a penitência é o
movimento do não-justo para o justo. Consequentemente,
penitência é o entremeio entre a injustiça e a justiça. E assim ela
188
4,362,35- 363,2 (1513/ 15).
189
4,319,8-10 (1513/15).
190
4,350,15s. (1513/ 15) = BoA 2 5,201,26s.
191
4,342,11- 3 (1513/ 15).
192
56,441,15s. (1515/ 16) = BoA 2 5,280,13- 5.
tem seu ser no pecado como termimis a quo*193 e na justiça como
terminus ad quem**194.
Portanto, se estamos sempre na penitência, sempre somos pecado -
res e, não obstante, por isso mesmo também sempre justos e no
processo de justificação (.. .). 195
Por isso a vida toda do novo povo, do povo que crê, do povo
espiritual, não consiste em outra coisa do que nisso: desejar,
procurar, pedir a justificação com o anseio do coração, com a voz
da boca e com a ação do corpo, e isso constantemente até a morte,
não parar nunca, não ter alcançado nunca, não colocar obra
nenhuma como alvo de justiça alcançada, mas em esperar a justiça
sempre como algo que, por assim dizer, existe fora da própria
pessoa, ao passo que ela mesma sempre ainda está e vive em
pecado. 196

Assim não se manifesta apenas o jovem Lutero; da mesma forma


se fala da existência cristã também nos debates tardios.

Que o ser humano é justificado entendemos assim que ele ainda


não é justo, mas se encontra precisamente no movimento, na
caminhada em direção à justiça. 197
Portanto, nossa justificação ainda não está completada. Ela ainda
está em obra (de Deus, como opus Dei) e devir. Ainda é uma
construção. Mas ela será finalmente concluída na ressurreição dos
mortos. 198

Ou então, numa plasticidade insuperável:

193
* N. do T.: Termo a partir do qual, isto é, ponto de partida.
194
** N. do T.: Termo para o qual, isto é, ponto de chegada, meta.
195
56,442,15- 21 (1515/ 16) = B oA 2 5,281,1- 7.
196
56,264,15- 21 (1515/ 16). Em vez de" gem i t u cordi s, voce operis, opere corpori s" ,
l ei o: " gem i t u cordi s, voce oris, opere corpori s" . Devo essa conj et ura convi ncent e ao
Dr. R . S chwarz, Tübi ngen.
197
39/ I,83,16s. (1536).
198
39/ 1,252,8-12 (1537).
A pessoa que crê em Cristo é justa e santa por imputação divina.
Já se acha e já está no céu, envolta pelo céu da misericórdia. Mas,
enquanto descansamos aqui no colo do Pai, vestidos com a mais
linda indumentária, nossos pés, embaixo, saem do manto e Satanás
os morde como pode. Então a criança se debate, grita e sente que
ainda tem carne e sangue e que o diabo ainda está aí, fustigando
até que a pessoa inteira se torne santa e seja arran cada desse
mundo vão e mau. De maneira que somos santos e filhos (de
Deus), mas no espírito, não na carne, moramos à sombra das asas,
a saber de nossa choca, no seio da graça. Mas os pés ainda têm que
ser lavados e, por não estarem limpos, têm que ser mordidos e
atormentados pelo diabo até que se tornem limpos. Pois terás que
puxar o pezinho para debaixo do manto, senão não terás paz. 199

Parece que o tema se modificou completamente para nós.


Procurávamos compreender a dualidade de fé e amor como ex pressão
duma tensão básica, a partir da qual e em função da qual todas as
antíteses do pensamento de Lutero podem tornar- se inteligíveis como
visando uma coisa só. Já que fé e amor, em analogia a "pessoa" e "obra",
visam a humanidade do ser humano como tal, isto é, no seu movimento
como humanidade temporal histórica e existente, fomos remetidos à
tensão consti tutiva existente na própria essência do movimento, a
existência a caminho entre terminus a quo e terminus ad quem. E, ao seguir -
mos às explicações de Lutero sobre essa constituição básica da
existência humana, encontramo-nos no meio das afirmações sobre
justificação. Mas isso significa, ao que parece: na dualida de, a saber, na
extremamente contrastante dualidade de pecado e justiça, e não na
aparentemente harmônica dualidade de fé e amor. Assim mesmo parece
que em ambos os casos se trata da mesma questão pelo fato de que as
afirmações sobre a justifi cação não visam menos a existência humana
como tal, isto é, como histórica, do que as afirmações sobre fé e amor.

199
39/ 1,521,5-522,3 (1539).
Por isso Lutero pode postular que a teologia conceitua o ser humano de
forma incomparavelmente mais adequada do que a tradicional definição
do ser humano como animal rationale, quando o descre ve com vistas ao fato
de que a humanidade do ser humano é um acontecimento, e que esse
acontecimento, visto dos seus extremos terminus a quo e terminas ad quem, é
justificação 200.
O deslocamento do tema, ou seja, o fato de que durante a reflexão
sobre a dualidade de fé e amor se infiltrou o tema da justificação, não é
acaso e, bem entendido, constitui uma determinação mais precisa do
tema. Pois só com base na doutrina da justificação pode-se compreender
a necessidade daquela dua lidade de fé e amor, mas com isso também a
surpreendente possibilidade duma profunda tensão entre fé e amor. As
diversas formas como a existência do ser humano apareceu como
"entres- ser": entre nascimento e morte, criação e ressurreição, pecado e
justiça, Deus e próximo e por isso também entre Deus e o mundo,
naturalmente não devem ser igualadas, e sim pensadas em conjunto se se
quer realmente entender o "entresser" do ser humano como a tensão
fundamental a que se reportam todas as antíteses do pensamento de
Lutero.
Afinal, não é nada evidente e fora de contestação que a existência
do ser humano seja interpretada pela dualidade de fé e amor. Talvez
possa haver consenso de que a existência humana, com vistas à sua
dinâmica, à sua historicidade, possa ser interpretada, não obstante as
mais variadas modificações, como amor, abrangendo até todas as suas
deformações e priva ções. Mas em que consiste a necessidade de, ao lado
disso, falar ainda da fé? Se seguimos Lutero, está decididamente
excluída a interpretação de que se trata de dois círculos sem relação
recíproca: por um lado, a vida moral e terrena na relação com o
semelhante, por outro, a relação religiosa com Deus, reduzida à
interioridade e só interessada na salvação da alma do indiví duo.
Dificilmente se pode enfatizar mais a inseparável unidade da relação

200
39/ 1,176,5-177,14 (1536).
com Deus e da com o semelhante, de fé e amor, portanto, do que
afirmando que o ser humano, colocado entre Deus e o próximo, é o ponto
de passagem da relação Deus-mundo 201. Mas como deve ser entendida a
necessidade dessa união? Deveria ficar claro que e por que razões a fé se
faz necessária por causa do amor, e o amor por causa da fé. Mas como
interpretar essa vinculação? Mais uma vez se exclui para Lutero desde
logo uma possibilidade, revelando-se, no mínimo, como uma
interpretação totalmente insatisfatória: que a fé fosse a funda mentação
religiosa da obrigatoriedade do mandamento do amor. É claro que a fé
tem consequências para a percepção da exigência e para a verdadeira
compreensão do amor. Mas, como fé na lei, a fé não foi compreendida
em sua essência.
Parece que expressamos o ponto de vista de Lutero quan do
dizemos: a fé dá a força para amar. Há um bom número de manifestações
de Lutero que parecem justificar a interpre tação da fé como "força
motriz da moral". Basta lembrar a figura da árvore e dos frutos, por ele
tantas vezes usada e que demonstra a precedência da pessoa sobre a obra
do amor. Ou então lembremos as numerosas colocações sobre a eficácia
do amor, que não é uma qualidade ociosa na alma, mas força
externamente ativa:

Ah, há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto


de não ser possível que ela cesse de praticar o bem. Ela também
não pergunta se há boas obras a fazer, e sim, antes que surja a
pergunta, ela já as realizou e sempre está a realizar. Quem, porém,
não realiza tais obras, é pessoa sem fé, que anda às apalpadelas à
procura da fé e de boas obras e nem sabe o que é fé nem boas
obras, e ainda fica falando muito e conversando fiado sobre as
mesmas. 202

201
V. aci m a, p. 124s.
202
Pelo evangelho de Cristo, p. 184 (1522).
Entretanto, em relação a tal interpretação da fé como força para
amar deve-se perguntar logo: que necessidade se tem de introduzir aqui
a fé? Não seria mais simples dizer que o próprio amor é a força para as
obras do amor? Será que a questão toda não sofre uma curiosa distorção,
quando Lutero coloca o amor completamente do lado das obras,
entendendo-o como algo produzido, e, em vez de aceitar o próprio amor
como força ativa, introduz agora a fé como autor do amor? Com efeito,
enquanto se raciocina no esquema de força e efeito, de potencialidade e
ato, não faz sentido admitir algo diferente do que o próprio amor com
força motriz para as suas obras. É bem verdade que o ser humano
experimenta a pobreza do amor, a incapacidade para verdadeiro amor, a
impotência de cumprir de forma radical o mandamento do amor.
Sobrevém a pergunta pela libertação para o amor, pela coragem para
amar. Mas essa questão se localiza em outro nível, de modo que não
pode ser compreendida adequadamente no esquema das forças humanas.
Logo antes do último texto citado, pode-se ler:

Fé (...) é uma obra divina em nós, que nos modifica e faz renascer
de Deus (...), além de matar o velho Adão, transformando-nos em
pessoas bem diferentes de coração, sentimento, mentalidade e
todas as forças, trazendo consigo o Espírito Santo. 203

A compreensão usual de fé e Espírito Santo é que o ser humano recebe


forças adicionais das quais se supõe que não tenham sua origem no
próprio ser humano, mas em Deus. Mas o que significa isto, afinal? Será
que significa mais do que o destaque do caráter de milagre, gratuidade,
indisponibilidade, da experiência, portan to, que de forma alguma está
presa exclusivamente àquilo que Lutero entende por "fé", deixando uma
vez em aberto se aqui pode haver tal experiência? Será que a dotação
com forças adicio nais de cima não pode ser achada muito melhor em
experiências como inspiração, iluminação, entusiasmo e por isso mesmo

203
Ibid. (1522).
também no preenchimento com a força do amor do que na inevidência e
abscondidade da fé?
A coisa bem diferente que Lutero visa quando fala da fé evidencia-
se no fato de que, a rigor e em primeiro plano, não se trata de uma
injeção de força adicional para a existência humana, mas duma radical
renovação do ser humano, de renasci mento que implica a morte do velho,
duma mudança que diz respei to ao próprio ser-pessoa. Isso não pode
significar, entretanto, uma modificação na pessoa — isto seria apenas
uma alteração de determi nadas qualidades e capacidades — mas uma
modificação da própria pessoa. Na interpretação de Gl 2.20 ("Já não sou
eu quem vive, mas Cristo vive em mim") lê-se:

Assim fala a justiça cristã. Se quero debater sobre a justiça cristã,


tenho que jogar fora (a minha própria) pessoa. (...) Diante dos
meus olhos só deve ficar Cristo, o crucificado e ressuscitado. 204
A fé faz de ti e de Cristo, por assim dizer, uma só pessoa, de
forma que és inseparável dele, estando apegado a ele como se
Cristo te chamasses, e ele, por sua vez, dirá: Eu sou aquele
pecador, porque está preso a mim. 205

Como devemos entender isso? Até que ponto se abre, a partir daí,
uma compreensão correta da forma e da causa da precedência da fé sobre
o amor? No sermão sobre as boas obras Lutero falou com muita
insistência da fé como única ma neira de cumprir o primeiro mandamento
e por isso da primazia da fé sobre todas as boas obras, da fé como
essência de todas as boas obras. É significativo, no entanto, que não o
fez sob o prisma da força para boas obras — isso aparece em plano
secundário, quando muito - mas sob o aspecto bem mais radical do que,
afinal, faz delas boas obras, isto é, através de que se tornam boas.
Lutero diz: "A primeira, suprema e mais nobre boa obra é a fé em

204
40/ 1,282,3-6 (1531).
205
40/ 1,285,5-7 (1531).
Cristo. (...) Pois nessa todas as obras devem acontecer e dela receber a
infusão de sua bondade como um feudo." 2 1 Consequentemente,
formulando de forma mais precisa: a fé como força para a ação não
produz obras boas, mas a fé como poder do bem torna as obras boas.
Contudo, que seria isso que, parafraseando a opinião de Lutero,
chamamos o poder do bem de tornar bom? Lutero nos dá a seguinte
resposta: a fé como poder do bem que torna tudo bom e, por isso, como
boa obra, a obra de Deus por excelência, é certeza de consciência. Pois
assim como a consciência está em relação a Deus e crê, assim também
são as obras que dela emanam. Onde não houver fé, não haverá
consciência limpa para com Deus. "Por isso falta a cabeça às obras." As
obras que acontecem fora do âmbito da fé não são nada e estão mortas 206.
Portanto, não é das obras que se deve obter boa consciência e, com isso,
certeza - isso não só é impossível, mas até o fim de todas as obras
realmente boas —; pelo contrário, primeiro deve haver certeza, isto é, o
ser humano tem que se saber aceito, apoiado e amado em última
instância, isto é, por Deus, para que tenha liberdade para o amor, para a
obra absolutamente objetiva e verdadeiramente boa.

Um cristão que vive nessa confiança em Deus, sabe todas as


coisas, pode todas as coisas e se atreve a tudo que há por fazer e o
faz com alegria e liberdade, não para acumular muitas boas obras
e méritos, mas por lhe ser um prazer agradar assim a Deus,
servindo a Deus totalmente de graça, satisfeito por agradar-lhe. 2 3

Portanto, fé é boa consciência. É essa fé que torna a cons ciência


certa, quer dizer boa, torna boas as obras porque as liberta, por um lado,
do objetivo inadequado de justificar-se por elas, de assegurar-se através
delas perante Deus ou, como poderíamos dizer também, de fugir da face
de Deus, ao escon der-se atrás de obras. Por outro lado, no entanto - e

206
6,205,6-13 (1520) = B oA 1,230,1-8.
6,207,26- 30 (1520) = BoA 1,232,21-5.
isso está intimamente ligado ao que foi dito — a fé liberta as obras do
esquema duma escala religiosa de valores de acordo com a qual certas
obras são mais meritórias que outras. A fé dá a liberdade de fazer o que
é necessário por causa do próximo, isto é, o que o amor exige.

Aqui cada qual pode notar e sentir se está agindo bem ou não.
Pois, se o seu coração tiver confiança de que agrada a Deus, a
obra será boa, ainda que seja tão insignificante como recolher uma
palha; se não houver essa confiança ou se tiver dúvida, a obra não
será boa, ainda que ressuscitasse todos os mortos e a pessoa
enfrentasse a fogueira. 207
Nessa fé todas as obras tornam-se iguais e uma é como a outra;
toda diferença entre as obras cai (por mais que no horizonte das
obras haja diferenças a considerar 208), sejam elas grandes,
pequenas, curtas, extensas, muitas ou poucas. Pois as obras não
são agradáveis por elas mesmas, mas por causa da fé (...). 209

A diferenciação de fé e amor se faz necessária, portanto, porque o


ser humano é visado, exigido e questionado sob ângulo radicalmente
diferente: como ele mesmo, que não está em seu próprio poder, e em
relação àquilo sobre o que ele tem poder e que, consequentemente, é
objeto de sua ação. Precisamente o fato de as duas coisas estarem tão
intimamente ligadas é de extrema gravidade quando não se distingue
entre fé e amor, entre o que é questão de Deus e o que é questão do ser
humano, levando com isso a consciência juntamente com as obras, toda a
realidade humana, portanto, a irremediável confusão. O amor precisa da
fé, porque só ali onde o ser humano, por força de derradeira certeza,
perdeu as preocupações consigo mesmo, o amor é puro amor. E a fé não
necessita do amor, mas, mesmo que não exigida, ela o traz consigo por

207
6,206,8-13 (1520) = B oA 1,231,3-8.
208
6,217,12- 5 (1520) = BoA 1,242,7-11.
209
6,206,33-6 (1520) = B oA 1,231,29-32.
necessidade interna, porque a fé como obra vivificadora de Deus no ser
humano não pode existir sem que disso emane vida humana produtiva.
A diferenciação de fé e amor evita, por isso, uma confusão fatal
para a vida humana no que diz respeito ao lugar da existên cia: o ser
humano só está no lugar certo, e isto quer dizer, só é verdadeiramente
ser humano, quando não presume ser algo por si mesmo e em autonomia,
mas quando suporta, no "entres- ser" entre Deus e o próximo, seu
"entresser" entre nascimento e morte, entre pecado e justiça. Nesse
caso, a inseparável conju gação de fé e amor descortina uma
compreensão da existência humana carregada de enormes tensões, como
Lutero o expressa com as duas teses no início do seu livro sobre a
liberdade do cristão: "Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e
não está sujeito a ninguém. Um cristão é servidor de todas as coisas e
sujeito a todos." 210 Fé e amor — isso é a simultaneidade de liberdade
radical e radical serviçalidade. Ainda que isso, de for ma alguma, seja
um paradoxo sem nexo, mas, pelo contrário, bem compreendido, um
conjunto único e objetivamente necessá rio, a formulação paradoxal não
visa aparências. Ela indica que a junção de ambos, da liberdade radical
e da radical serviçalidade do ser humano, e isso significa, ao mesmo
tempo, a manutenção da pureza de ambos — como só pode acontecer
através da coexistência e interpenetração de liberdade e serviçalidade —
é um processo de luta carregado de conflitos e cheio de tenta ções, que
não se dá em pensamentos mas na própria vida e, por isso, como
sustentação das mais duras contrariedades.
Por isso há situações de tentação em que se experimenta a
diferença de fé e amor de forma chocante 211. Ceder em questões de fé
sob pretexto do amor significa abandonar a verdade do evangelho,
implica renegar a Deus. "Se é preciso abandonar um amigo, então é
preferível que seja o amigo e irmão humano do que Deus o Pai: desista-

210
Da liberdade cristã, 3. ed., S ão Leopol do, Si nodal , 1979, p. 9 (1520). C f. abai xo p.
167s.
211
V. aci m a, p. 54s.
se, então, do amor, para que a fé permaneça." 212 Mas essa colocação
antitética só se pode com preender quando se sabe o que está em jogo,
justamente para o semelhante, quando a fé é abalada. Pois quando se
trata da preservação correta da fé, trata-se da doutrina da fé. A impor -
tância da fé, porém, só entendeu aquele que, justamente em fun ção da
vida, coloca a doutrina acima da vida:

É preciso distinguir vida e doutrina. A doutrina pertence ao lado


de Deus, a vida, ao nosso. A doutrina não nos pertence, a vida é
nossa. (..,) Da doutrina não posso dispensar nada, em relação à
vida, tudo. 213
A doutrina tem que ser pura de ponta a ponta, e isso com a mais
rigorosa necessidade. Pois ela é a nossa luz, que nos ilumina para
o céu. (...) Essa distinção de doutrina e vida (na qual aparece,
apenas sob outra forma, a diferenciação de fé e amor) é muito
necessária: a doutrina é o céu, a vida é a terra. (...) Em relação à
doutrina não há perdão dos pecados, pois com isso seria suspensa
a palavra de Deus que traz perdão de pecados. 3 1

A aplicação de perdão dos pecados no lugar errado destruiria a própria


fonte do perdão de pecados.
No horizonte dessas reflexões sobre a relação de fé e amor, mais
uma vez se evidencia a profunda diferença entre a concepção
reformatória do evangelho como justificação so mente pela fé e a
compreensão católico-escolástica da justifi cação pela graça comunicada
em forma de habitus. Fé e amor — isso é pacífico em ambos os lados.
Pois a fórmula "somente pela fé", por mais que exclua o amor como
fundamento da justi ficação, de maneira alguma exclui o amor como
consequência da justificação, a ponto do sola fide se constituírem
verdadeira luta pelo puro amor. Por outro lado, a interpretação católico-

212
40/ 1,200,10-201,2 (1531).
213
40/ 11,46,5-8 (1531).
escolástica visa realmente a fé, enfatizando expressamente que a fé
correta e viva é o que importa. A mera fé seria fé morta; tornar-se-ia fé
viva e real só na prática do amor, como fé molda da pelo amor. Claro que
a fé justifica; entretanto — assim se diz aqui — não somente a fé, mas a.
fides caritate formata*214.
Parece uma aguçadura pouco compreensível do conflito
confessional surgido na Reforma, quando se diz: a questão é, em última
análise, se a fé vivifica o amor, ou o amor a fé. As diferenças se
manifestam na interpretação de Gl 5.6, onde se afirma em relação à fé
que ela atua através do amor. Lutero nega que isso signifique: a fé
justifica através do amor; na reali dade, quer dizer: a fé age através do
amor, de modo que o amor se constitui em instrumento da fé e que o
amor não pode alguma vez aparecer independentemente como causa das
obras.
Essa extrema aguçadura das diferenças confessionais na definição
da relação de fé e amor pode ser experimentada concretamente em duas
coisas.
Uma vez, ao encarar a pergunta: que acontecimento é constitutivo
para a pessoa? O ser humano, na medida em que o consideramos no seu
próprio ser, como pessoa, se faz, se constrói mesmo? O ser humano, em
última análise, é agente? Ou será que essa opinião não passaria de uma
variante daquela definição do ser humano como animal rationale que não
atinge a essência do ser humano? Mas, se o ser humano como pessoa em
última análise é feito, é um ser que recebe a si mesmo, que significa e
como acontece isso? Será que acontece de outra maneira do que pelo
chamado à existência? Sua existência como pessoa se fundamenta em
outra coisa do que na palavra? O ser humano recebe a si mesmo em seu
próprio ser de outra forma do que pelo ouvir, de outra forma do que pela
aceitação do sim que lhe foi anunciado, isso é, doutra maneira do que na
fé? Não vale, de fato, o dito: Fides facit personam — a fé faz a pessoa? 215

214
* N. do T.: Fé plasmada pelo amor.
215
39/ 1,282,16 (1537).
Isso conduz àquela outra forma de concretização da per cepção
extremamente aguçada que diz respeito à relação de fé e amor: à
situação de tribulação. Que é que, em última instância, dá certeza à
consciência do ser humano? Seria o amor praticado por ele mesmo,
ainda que nascido da graça recebida? Ou é o amor prometido, que é,
rigorosamente, extra nos216, mas coloca extra se217 aquele que na fé se apega
a essa promessa, concedendo-lhe somente assim, na fé, a certeza? Pois o
ser humano, também aquele que recebeu a graça, não acha certeza em si
mesmo. Certeza só há na presença de Deus junto ao ser humano através
da palavra e por isso na presença do ser humano junto a Deus através da
fé. "Nossa teologia tem certeza", diz Lutero, "porque nos coloca fora de
nós mesmos." 2 1 8
XI
REINO DE CRISTO E REINO DO MUNDO

Acusar Lutero duma retirada para a interioridade e para um


individualismo religioso, não só é um absurdo, uma vez que sua
trajetória teve consequências que transformaram o mun do; conflita
também com a responsabilidade por vastas áreas e acontecimentos da
vida pública que ele assumiu expressamente através da palavra: pela
Igreja e pela autoridade civil, matrimô nio e problemas econômicos,
escolas e universidades, as ques tões da revolta dos camponeses e da
guerra contra os turcos, enfim, pelo mundo em sua atualidade histórica.
O que, ainda assim, dá ocasião àquela suspeita por parte de quem não
entende das coisas, é a impressionante concentração de todas as suas
manifestações sobre a consciência, coisa que, nessa intensi dade,
dificilmente encontra paralelo. Mas essa orientação em função da

216
N. do T.: Fora de nós.
217
N. do T.: Fora de si .
218
40/ 1,589,8 (1531).
consciência é, bem entendida, justamente a causa da enorme abrangência
da responsabilidade aqui assumida.
Num sentido diferente do acima indicado, não com vistas às
consequências históricas, mas ao efeito escatológico uni versal daquilo
que por Cristo acontece na consciência, Lutero, referindo-se a Gl 4.7,
falou da inimaginável grandeza da herança ali assegurada:

(...) de modo que, com certeza, sois filhos, não escravos, portanto
sem lei, também sem pecado, também sem morte, portanto aí há
salvação, sem nenhum tipo de mal; portanto, a filiação traz
consigo um reino de abrangência universal e eterno, com toda a
salvação, etc. Ninguém pode descrever isso suficientemente.
(Agora) só tenho o centro (do círculo); após a morte veremos
também os arredores. Mesmo assim, quem o compreende na fé,
nada mais tem do que a voz da promissão, mas precisamente nisso
tenho algo que é maior do que céus e terra. Tão grande e ilimitada
é, em si, a causa dos cristãos, mas extremamente limita da para
visão e sentimento, restringindo-se, por assim dizer, ao centro (a
um só ponto). Por isso não se deve avaliar pelas aparên cias aquele
que, com coração e ouvidos, se apega à paternidade (de Deus);
antes, convém medi-lo com o maior compasso, e este é Deus, que é
infinito. Da mesma forma também a promessa é infinita, ainda que
restrita ao verbum centrale*.219

Essa dimensão escatológica daquilo que foi prometido à fé,


dimensão essa determinada pela infinidade de Deus, e aque la amplidão
do campo de ação histórica em torno da consciência como centro, se
relacionam mutuamente. Que à fé pertence um reino maior que céus e
terra, tornar-se-ia palavra vazia se o crente, justamente com isso, não
fosse colocado num relaciona mento carregado de tensões com o reino do
mundo. A esperança escatológica seria mero palavrório se fosse

219
40/1,596,1-11 (1531). * N. do T.: P al avra cent ral .
apreendida abstraindo-se da história e não suportando a história. O reino
de Cristo perderia seu caráter de reino que não é deste mundo, se não
fosse entendido e testemunhado neste mundo e em confrontação com o
reino do mundo.
Se, depois de haver tratado da relação de pessoa e obra, de fé e
amor, portanto, ao que parece, depois duma redução de nossa temática
geral a um ponto matemático, à questão da consciência do indivíduo,
voltamo-nos agora ao horizonte histó rico dos acontecimentos mundiais e
até ao horizonte escatológico da ação divina, perguntando pela relação
de reino de Cristo e reino do mundo, então essa guinada para a dimensão
universal só delineia os dois círculos que, iniciados naquele ponto
matemá tico e tendo como respectivos raios o mundo e Deus, abrangem
simplesmente tudo. Entretanto, essa linguagem figurada não nos deve
levar a já derivar disso uma solução para o problemático relacionamento
dos dois reinos, como se fossem dois âmbitos da realidade que, feito
círculos concêntricos, cercassem a exis tência humana. A doutrina dos
dois reinos não pode ser exposta num diagrama, pois aqui tudo é
movimento, acontecimento, luta. A realidade objetiva é a mistura dos
dois reinos. E proceder à diferenciação dos dois reinos não é questão de
uma única explicação, mas de constante pregação.

Preciso inculcar, pregar, cravar e fazer engolir sempre essa dife -


rença dos dois reinos, ainda que seja dito e escrito tantas vezes
que se torne enfadonho. Porque o desgraçado do diabo também não
pára de misturar os dois reinos na mesma panela e no mesmo
barril. As autoridades mundanas sempre querem, em nome do
diabo, ensinar a Cristo e prescrever-lhe como deve conduzir sua
Igreja e exercer o seu regime espiritual. Assim, os falsos clérigos e
espíritos sectários querem ensinar e prescrever sempre, não em
nome de Deus, como se deve organizar o regime secular. De
maneira que o diabo, em ambos os lados, é imoderado e tem muito
que fazer. Deus queira contê-lo, amém, se merecermos isso. 220

A expressão "doutrina dos dois reinos" ficou tão ligada ao


pensamento de Lutero, que surgiu a errônea opinião de que o fato duma
doutrina dos dois reinos fosse peculiaridade de Lutero. Por isso também
se atribuem levianamente as mais di versas associações que a expressão
"doutrina dos dois reinos" evoca, à opinião de Lutero, sem maior exame,
geralmente no sentido duma separação pacífica. A moderna separação de
Igreja e Estado, no entanto, que geralmente serve de parâmetro, é um
péssimo modelo para esclarecer o escopo da doutrina de Lutero acerca
dos dois reinos. Não importa, portanto, se se dá a essa reinterpretação
no sentido duma separação em duas esferas um acento religioso ou um
acento secularista para assim legitimar, através duma doutrina dos dois
reinos de coloração religiosa ou secularista, a fuga do mundo por parte
da vida piedosa ou então a fuga da face de Deus por parte da vida
mundana. A partir da posição de Lutero, ambas as versões da doutrina
dos dois reinos com sentido separatista são descaminhos, e até nada
mais são do que modulações do mesmo erro básico, da mesclagem dos
dois reinos. Pois só se pode sucumbir à ilusão de tal separação, quando
não se sabe distinguir realmente entre Deus e o mundo e por isso se
desconhece o seu inseparável relacionamento recíproco.
Não o fato em si duma doutrina dos dois reinos, mas a forma de
diferenciação é o que há de notável desta doutrina tão controvertida, mal
interpretada e abusada de Lutero. Se quiséssemos comparar sua
problemática com fenômenos histori camente mais distantes, mas que são
sintomáticos para o proble ma básico da radical dualidade que se
manifesta na existência humana, seria preciso incluir na reflexão o
fenômeno da tensão entre "sagrado" e "profano" em sua genuína acepção
cultual, ou então a sequência apocalíptica deste e do vindouro "éon". Só
podemos lembrar isso, bem como a concepção agostiniana, com a qual o

220
51,239,22-30 (1534/ 35).
pensamento de Lutero tinha contato imediato, das duas cidades, a civitas
Dei221 de um lado e, tremeluzindo de forma peculiar, a civitas terrena222 ou
civitas diaboli*223 do outro. A partir daí o pensamento histórico da Idade
Média estava familiarizado com as duas coisas: por um lado todo o curso
da história é marcado pela coexistência, confrontação e até certo ponto
mesclagem de dois povos cujas raízes retrocedem até Abel e Caim. Tal
qual Deus, seu antagonista também tem um povo que lhe pertence. Como
a Igreja é o corpo de Cristo, assim também o diabo possui uma
corporação humano-histórica. Por outro lado, usava- se o raciocínio
dicotômico para explicar a estrutura interna do corpus christianum* 2 2 4 e
mantê-lo nos respectivos de graus da ordem, o sacerdotium*225 e o
regnum*226, o poder espiritual e o poder civil, que, como as duas espadas,
ou então como as duas luzes, sol e lua, existem um com o outro, um para
o outro e se entremisturam de muitas maneiras, mas em hierar quia
claramente definida, tal como o regnum gratiae*227 tem posição superior ao
regnum naturae*228. O mundo da Idade Média está caracterizado por essa
dupla estrutura espiritual-mundana da cristandade, harmônica em teoria,
cuja configuração concreta, entretanto, se revelou fonte dos mais graves
conflitos. A Idade Média ocidental é a tentativa finalmente fracassada
duma ordem mundial baseada numa doutrina dos dois reinos projetada
para dentro do próprio reino de Cristo. Com isso, ela se transformou em
doutrina de dois regimes, respectivamente de dois poderes, conquanto,
em termos pessoais, tenha evoluído para uma doutri na de dois
estamentos.
Por mais que, a partir da doutrina dos dois reinos de Lutero,
recaia sobre a concepção católica medieval a acusação da mesclagem —
basta lembrar a instituição dos principados clericais, ou do Estado

221
N. do T.: Cidade de Deus.
222
N. do T.: Cidade terrena.
223
N. do T.: Cidade do diabo.
224
N. do T.: Corpo cristão, isto é, os cristãos, a cristandade.
225
N. do T.: Sacerdócio.
226
N. do T.: Realeza, reino.
227
N. do T.: Reino da graça.
228
N. do T.: Reino da natureza.
eclesiástico, ou as pretensões de governo mundial do papado — não é
nada fácil determinar o ponto da discordância. Pois, apesar de toda a
mistura de poderes de fato existente na Idade Média, a ideia da
diferenciação não é questio nada em princípio. E, apesar do acento na
distinção, Lutero não tem interesse numa separação que consistisse
numa simultaneidade sem recíproca relação. Também não atinge o miolo
da questão o fato de Lutero, dentro da cristandade, rejeitar a dife -
renciação de clero e leigos a partir de sua concepção de palavra e fé e,
consequentemente, a partir de sua nova concepção dos sacramentos, e
submeter assim a tradicional estrutura social da cristandade que nela se
apoiava a uma revisão radical, como isso aconteceu programaticamente
no escrito "A nobreza cristã de nação alemã":

Inventou-se que o papa, os bispos, os sacerdotes e o pessoal dos


conventos sejam chamados de estado clerical; príncipes, se nhores,
artesãos e agricultores, de estado secular. Isso é uma invenção e
fraude muito refinadas. Mas que ninguém se intimide por causa
disso, e pela seguinte razão: todos os cristãos são verda -
deiramente de estado "clerical", isto é, espiritual, e não há qual -
quer diferença entre eles, a não ser, exclusivamente, por força do
seu ofício (...). Tudo isso faz com que tenhamos um batismo, um
evangelho, uma fé e sejamos cristãos iguais, porque batismo,
evangelho e fé é que exclusivamente tornam as pessoas espirituais
e cristãs. (...) Assim, pois, todos nós somos ordenados sacerdotes
através do batismo (...) Como, pois, o poder secular é batizado
como nós, tem a mesma fé e evangelho, temos que deixá-lo ser
sacerdote e bispo, e considerar seu ofício como ofício que
pertence à comunidade cristã e lhe é útil. 229

Pelo evangelho de Cristo, p. 80- 1 (1520).


229

6,408,17-25 (1521) = B oA 1,367,39-368,8.


Isso não implica uma mistura das diferentes funções e tarefas. Mas a
diferenciação a ser observada aqui não deve ser derivada duma
qualificação diferente das pessoas, e sim duma tarefa diferen te, porém
de tal forma que a igualdade em relação à pessoa não fundamente o
domínio de uns sobre outros, e sim recíproco serviço, que não pode ser
repartido em privilégios de classe. Tal como um sacerdote demitido
volta a ser um agricultor ou cidadão como os outros 4 , assim pessoas do
assim chamado estamento secular po dem e devem assumir, quando
necessário, tarefas eclesiásticas.
Essa investida crítica de Lutero, dirigida menos contra a ordem
sociológica existente do que contra sua fundamentação e interpretação,
teve como consequência necessária uma reava liação da essência do
ministério eclesiástico bem como da função da autoridade civil. De
início, no entanto, podia parecer que se tratasse apenas duma certa
reforma dentro do tradicional quadro medieval. É verdade que havia
caído a ideia dos dois estamentos, mas permanecia a duplicidade de
funções e poderes na cristandade, a espiritual e a secular.
Na realidade, Lutero não elaborou sua verdadeira doutri na dos dois
reinos em confronto direto com a doutrina social do catolicismo
medieval, mas só quando provocado pela postura radical do entusiasmo.
Não importa se esse radicalismo entu siasta assumia forma pacífica,
invocando o sermão da montanha para declarar impossível a participação
nas tarefas da autori dade civil, uma vez que, para o cristão, a proibição
de jurar, de matar e resistir ao mal valeria incondicionalmente, ou se
assumia a forma revolucionário-militante de abrir caminho com a espada
para o reino de Deus e sua justiça, impondo à força a lei de Cristo — em
todo caso aqui se questionava direito e necessidade de autoridade
secular. Enquanto diante da tradição católica inicialmente só se fazia
necessária a eliminação duma interpretação errônea — a de caráter
personalista e classista — da duplicidade existente no seio da
cristandade, para reafirmar então a dualidade, pacificamente aceita, do
ministério espiritual e secular como duas funções e serviços distintos
dentro da mesma cristandade, diante do entusiasmo se impunha agora
uma fundamentação e justificação dessa própria duplicidade funda -
mental.
Mesmo pactuando, aparentemente, com as autoridades constituídas
contra o entusiasmo, Lutero, em última análise, via algo em comum entre
a tradicional concepção católica e a dos entusiastas no fato de que em
ambos os casos não havia sido bem assimilada a compreensão teológica
da realidade secular nem a necessidade de importar-se com ela. Enquanto
aqui para o juízo dos entusiastas se configurava simplesmente um
contraste, para a tradicional opinião católica havia uma escala, isto
tanto com vistas à lei como em relação aos cristãos: o sermão da
montanha, nas suas exigências radicais — assim reza em todo ca so a
explicação trivial- valeria apenas como conselhos adicio nais aos
perfeitos, não como lei incondicional para cada cristão. Por isso, nessa
linha só era possível uma fundamentação da au toridade secular que na
realidade não dava ao cristão uma cons ciência realmente boa para a
função secular e que, por isso, no fundo fornecia ao entusiasta o direito
de tirar as consequências. A formulação da doutrina dos dois reinos em
confronto direto com o entusiasmo não significa, por isso, uma guinada
de Lutero para o campo reacionário, como se afirmou especialmente
diante das suas manifestações em relação à revolta dos camponeses, mas
conduziu a um aprofundamento e aguçamento de sua rejei ção da
tradicional concepção do poder espiritual e secular.
Quão profunda é a mudança, e como Lutero procurou por uma
reconstrução completamente nova, ainda que em parte com material
tradicional, podemos verificar em três sintomas.
Primeiro é de se notar que não foi acaso que as duas idéias
coexistentes na Idade Média, a visão histórico-salvífica apoca líptica dos
dois reinos e a diferenciação sociológica de dois po- deres, baseada na
relação de natureza e graça, se misturaram no desenvolvimento da
doutrina dos dois reinos por parte de Lutero no confronto com o
entusiasmo; com isso, porém, ambas as partes sofreram uma
reinterpretação. Enquanto no escrito "A nobreza cristã" Lutero ainda
argumentava completamente nos limites do corpus christianum, rechaçando,
com isso, uma divisão pessoal em dois estamentos, por assim dizer dois
povos, sacerdotes e leigos, postulando tão-somente os dois ministérios
distintos dentro da una cristandade, na qual todos são do estamento
espiritual, três anos mais tarde, no escrito "Da autoridade secular; a
obediência que lhe é devida", ele inicia justamente com a distinção
pessoal de dois povos, agora, porém, de cristãos e não-cristãos:

Aqui temos que dividir os filhos de Adão, isto é, todos os homens, em dois
grupos: uns pertencendo ao Reino de Deus, os outros, ao reino do mundo. Os
que pertencem ao Reino de Deus são todos os que, como verdadeiros crentes,
estão em Cristo e sob Cristo. Pois Cristo é o Rei e Senhor do Reino de Deus (...)
e (...) designa o Evangelho de Evangelho do Reino de Deus (...) (porque ele) en-
sina, rege e mantém o Reino de Deus.230

Por outro lado: "Ao reino do mundo ou ao jugo da lei pertencem todos
os não-cristãos." 231
A partir daí parece resultar uma correspondente divisão de
poderes. Os que pertencem ao reino de Cristo

não precisam de espada ou direito secular, e, se todo o mundo


fosse formado por cristãos autênticos, isto é, por verdadeiros
crentes, não haveria necessidade de príncipe, rei ou senhor, nem
espada, nem lei, Pois para que lhes serviria? Eles têm o Espírito
Santo no coração; este os ensina e efetua que não façam mal a
ninguém, que amem a todos e que sofram, de bom grado e
alegremente, injustiças, sim, inclusive a morte da parte de
qualquer pessoa, Onde há apenas sofrer injustiça e apenas fazer
230
Da autoridade secular, São Leopoldo, Sinodal, 1979, p. 17s. (com uma modificação entre parênteses
— N. do T.) (1523).
231
Ibid., p. 20 (1523).
Ibid., p. 22 (1523).
justiça, aí não há necessidade de briga, discórdia, juízo, juiz,
castigo, lei ou espada. Por isso é impossível que a espada e a lei
temporal encontrassem algo a fazer entre os cristãos (...). 2 3 2

Por outro lado, no entanto, tudo isso é preciso por causa daqueles
que não são cristãos:

Pois são poucos os crentes e somente a menor parte age como


cristãos, não resistindo ao mal, ou até — fazendo ela mesma o
mal. Por isso Deus criou para estes não-cristãos, ao lado do
estamento cristão e do Reino de Deus, outro domínio, e subme teu-
os à espada. Eles não devem poder fazer o que corresponde a sua
má índole, mesmo se o bem quisessem, e, caso o fizerem mesmo
assim, não o devem poder fazer sem temor e em paz e felicidade. É
como quando se ata à corrente um animal selvagem e mau para não
morder e rasgar, como é próprio de sua raça, mesmo que o
quisesse; um animal manso e dócil, ao contrário, não precisa
disso. É inofensivo mesmo sem correntes e peias. Pois, se assim
não fosse, pois que todo o mundo é mau e entre mil é difícil
encontrar um verdadeiro cristão, um devoraria o outro, de maneira
que ninguém estaria em condições de constituir família, trabalhar
pelo sustento e servir a Deus; o mundo seria devastado. Por isso
Deus instituiu os dois domínios: o espiritual que cria cristãos e
pessoas justas através do Espírito Santo, e o temporal que combate
os acristãos e maus, para que mantenham paz externa e tenham que
ser cordatos contra a sua vontade. 2 3 3

A doutrina dos dois reinos, partindo do postulado antitético e de


caráter escatológico de dois povos, dos cristãos e não-cristãos,
expressa, ao contrário da tradição, com a máxima clareza para que
servem os dois regimes e poderes. Trata-se das duas maneiras distintas

232
Ibid., p. 18 (1523).
233
Ibid., p. 20s. (1523).
com que Deus lida com o mundo pecador: por um lado com o evangelho
que dá o Espírito Santo, por outro com a lei que externamente reprime
as consequências do pecado. Contudo, certamente seria errado
desenvolver esse aspecto pessoal da doutrina dos dois reinos de forma
organizacional e institucional no sentido de dois grupos de pessoas e
áreas de vida completamente separados. Pois é evidente que se deve
distinguir entre cristãos e cristãos de aparência.

Pois o mundo e a massa são e permanecerão acristãos, mesmo que


todos tenham sido batizados e sejam chamados cristãos. Os
cristãos, porém, como se costuma dizer, moram distantes uns dos
outros. Por isso é insuportável para o mundo erigir um único
regime cristão sobre todo o mundo, sim até mesmo sobre um só
país ou um grupo maior de pessoas. Pois os maus sempre superam
em número os justos. 2 3 4

Todavia, será preciso dar mais um passo e afirmar: não é só a existência


dos cristãos sob forma de diáspora no mundo que não permite uma
separação em termos de pessoas. O próprio cristão é, enquanto estiver
no mundo, ao mesmo tempo justo e pecador, necessitando, por isso,
fundamentalmente dos dois regimes. Claro que há expressivas diferenças
de grau na maneira como cada qual demonstra a necessidade do regime
civil, se não por praticar a injustiça, ao menos pela ameaça de sofrer
injustiça da parte de outros, e se, disposto a sofrer o mal, pela
motivação do amor no sentido de ajudar ao semelhante naquilo que é
preciso por causa da convivência.
Com esse primeiro sintoma da nova abordagem de Lutero — que
faz com que pela ligação com a doutrina dos dois reinos, de caráter
escatológico, a doutrina dos dois regimes adquira clareza e profundidade
teológica — aparece um segundo, digno de nota tanto em comparação
com a tradição católica medieval como também com o entusiasmo. A

234
Ibid., p. 22 (1523).
doutrina dos dois reinos de Lutero pressupõe que o reino secular
basicamente não depen de de cristãos, tanto na qualidade de autoridades
como de súdi tos. Numa prédica se lê:

O mundo está contido nesses dois reinos: o primeiro pertence às


consciências atribuladas, o segundo às cabeças duras e
empedernidas. Não se necessita de cristãos para constituírem a autoridade. Da
mesma forma, não é preciso que o imperador seja um santo. Para o exercício de
sua função, não é preciso que ele seja cristão. Para ele basta que tenha juízo.235

Portanto, autoridade secular não existe apenas no seio da cristandade. Não é o caráter
cristão que dá à autoridade secular a legitimidade que lhe é própria. É por isso que
Lutero pode tomar justamente a autoridade pagã como exemplo para mostrar qual é o
dever da autoridade.

Pois assim Deus entregou e subordinou o regime secular à razão, porque não lhe
cabe administrar a salvação das almas, nem bens eternos, mas tão-somente bens
materiais e temporais que Deus pôs à disposição do ser humano (...). É por isso
que no evangelho nada se ensina a respeito de como considerá-lo e exercê-lo, a
não ser a exigência de respeitá-lo e de não rebelar-se contra ele. Assim, os
pagãos podem falar e ensinar a esse respeito (como, aliás, o fizeram). Para dizer
a verdade, nessas coisas eles são bem mais entendidos do que os cristãos (...).
Pois Deus é um senhor bondoso e rico que distribui muito ouro, prata, riqueza,
poder e reinos entre os ímpios, como se fosse palha ou areia. Da mesma forma
derrama entre eles grande inteligência, sabedoria, línguas e eloquência, a ponto
de seus queridos cristãos, em comparação com eles, parecerem meras crianças,
bobos e mendigos.236

Em consequência, assim como por um lado a organização do Estado turco pode


receber os elogios de Lutero — ainda que não em tudo — ele, que foi xingado de

235
27,417,13-418,4 (1528).
236
51,242,1-8.15-9 (1534/35).
serviçal dos potentados, submeteu, com inusitada franqueza, justamente a assim cha-
mada autoridade cristã à crítica. Por exemplo:

(...) desde o início do mundo um príncipe sábio é ave rara, e um príncipe


honesto mais raro ainda. Em geral são os maiores e os piores patifes da terra;
por isso sempre tem que se esperar o pior deles e pouco de bom, especialmente
em relação às coisas divinas que dizem respeito à salvação da alma. Pois são
alcaides e carrascos de Deus e sua ira divina usa-os para castigar os maus e
manter a paz externa. É um grande senhor o nosso Deus. Por isso necessita de
tais carrascos e algozes nobres, ilustríssimos e ricos, e quer que tenham em
grande abundância riqueza, honra e temor da parte de todos. É sua vontade que
chamemos a seus carrascos de clementíssimos senhores, caiamos a
seus pés e lhes sejamos submissos enquanto não excederem em seu
cargo, querendo transformar-se de carrascos em pastores (isto é,
queiram inter ferir no ministério espiritual). Se alguma vez
acontece que um príncipe é sábio, honesto e cristão, estamos
diante de uma grande maravilha e do sinal mais precioso da graça
divina sobre esse país. 237

Mesmo que a autoridade secular tenha legitimidade inde -


pendentemente da hipótese de os detentores do poder secular serem ou
não serem cristãos, porque Deus promove a sua obra da lei no "primeiro
uso da lei" também através de não-cristãos e, às vezes, melhor do que
através de cristãos, em última análise não é nada irrelevante se os
detentores do poder secular são verdadeiros cristãos ou não — não só
em relação a eles próprios, mas justamente também em relação ao seu
mandato. É que preci samente a capacidade e o sucesso se transformam
em particular perigo para eles. "Todos os reis e príncipes, se seguirem a
natureza e a mais alta sabedoria, têm que tornar-se inimigos de Deus e
237
Da autoridade secular, p. 55 (acr ésci m o ent re parênt eses é com ent ári o expl i cat i vo de
Ebel i ng — N. do T.) (1523).
perseguir a sua palavra (....)" 1 3 , porque como "superio res" esquecem que
diante de Deus são "inferiores" 238, como diz Lutero num jogo de
palavras* 2 3 9 . "Portanto, quem quiser ser um príncipe cristão, tem que
largar da ideia de dominar e proceder com violência. Pois maldita e
condenada é toda vida que é procu rada e vivida em proveito próprio,
malditas são todas as obras que não são realizadas no amor." 1 5
Assim, em aparente contradição aos seus ocasionais elo gios da
autoridade pagã e em efetiva contradição com o desprezo da autoridade
secular por parte dos entusiastas, Lutero pode estimular os cristãos a
assumir essa função de boa consciência:

(...) não sejas tão atrevido a ponto de dizeres que um cristão não
pode desempenhar a obra, ordem e criação próprias de Deus.
Neste caso também terias que dizer que um cristão também não
pode comer e beber e se casar; pois estas também são obras e
ordens de Deus. (...) Seria contrário à fé afirmar que há serviços
para Deus que um cristão não pode ou deve fazer; pois servir a
Deus não compete a ninguém mais do que ao cristão. E, certa -
mente, também seria bom e necessário que todos os príncipes
fossem retos e bons cristãos. Pois como serviço especial feito para
Deus, a espada e a autoridade estão reservadas aos cristãos mais do
que a qualquer outro sobre a terra. 240

Um terceiro sintoma, afinal, para a reorientação funda mental dada


por Lutero à doutrina dos dois reinos é o seguinte: não se faz justiça a
ela se, como soe acontecer — e a isso também induz a maior parte das
explicações de sua concretização plástica — se a toma como mera teoria
ética que se ocupa do problema da colisão entre os mandamentos divinos
em sua acepção radical e as necessidades da vida terrena, uma colisão

238
51,239,39ss. (1534/ 35).
239
N. do T.: Os t erm os Oberkeit (" superi ores" ) e Unterkeit (" i nferi ores" ) são cri ação
li nguí sti ca de Lut ero para dar m ai or pl ast i ci dade ao seu raci ocí ni o.
240
Da autoridade secular, p. 34s. (1523).
que, ao que pare ce, obriga a compromissos e descontos. Dessa maneira,
a doutrina dos dois reinos muitas vezes é tida como uma legitimação da
incoerência da existência cristã. Bem, depende de como se entende isso.
Talvez possa haver nisso uma verdade mais pro funda do que essa
maldosa crítica imagina. Nesse caso, tal per cepção só confirma que a
doutrina dos dois reinos põe a nu a estrutura básica da pregação cristã,
posto que ela não opõe um ideal à realidade terrena, mas responde pela
realidade da palavra de Deus na realidade do mundo. Por isso, não atina
com o evangelho quem não atina com a doutrina dos dois reinos. E só a
partir do evangelho é possível fazer juízo sobre a distin ção dos dois
reinos. Transpondo isso uma vez para a nossa nomenclatura de
disciplinas teológicas, ainda que ela não seja de todo apropriada, aqui
não se trata dum problema específico da ética, quem sabe até limitado à
questão da doutrina correta do Estado, mas do problema básico da
própria dogmática, isto é, da questão teológica fundamental por
excelência.
A partir daí podemos traçar ainda algumas linhas mestras para a
compreensão da doutrina dos dois reinos de Lutero.
Primeiro: os dois reinos estão relacionados um com o outro e
pertencem um ao outro pelo fato de, em ambos, Deus ser o Senhor. Pois

o regime secular também pode ser chamado de reino de Deus. Pois


ele quer que subsista e que nele nos portemos com obediência. Mas
só é o reino da mão esquerda. O reino da direita, que ele mesmo
governa, onde não coloca de preposto pai e mãe, imperador e rei,
verdugo e carrasco, mas onde ele mesmo está, é aquele onde aos
pobres é anunciado o evangelho. 241

Isso não exclui que o reino do mundo continua sendo mundo e,


comparado com o reino de Cristo, seja "um reino pobre, mise rável, e

241
52,26,21-7 (1544).
mais: um reino podre e fedorento" 2 4 2 . "Pois se céus e terra fossem
propriedade só minha, que teria eu em comparação com Deus? Nem tanto
quanto um grãozinho de pó ou uma gota d'água diante do oceano
todo." 2 4 3 Por isso, onde houver necessi dade de optar, não pode haver
dúvida quanto à precedência: "Deveria eu jogar fora e largar
vergonhosamente Deus e seu reino, para abraçar esse sujo e mortal reino
da barriga, em vez daquele divino e imperecível reino que me dá vida
eterna, justiça, paz, alegria e bem-aventurança (...)?" 2 4 4 Sim, o reino do
mundo também pode transformar-se em reino do diabo, o que acontece
quando a distinção dos dois reinos se torna comple tamente confusa e
Deus e mundo não são mais distinguidos. Esta confusão dos dois reinos,
uma obra satânica, por natureza só pode acontecer no reino do mundo, e
de tal forma que também este pereça por causa dela. Contudo, enquanto
a vida, por mais violentada e desvirtuada que for, nele subsistir, Deus
promove ocultamente, mesmo através de toda destruição, sua obra da lei,
a cujo serviço, em última análise, o próprio Satã tem que se colocar.
Segundo: os dois reinos não se diferenciam à maneira de duas leis
conflitantes e concorrentes, mas pelo fato de serem constituídos pela lei
e pelo evangelho. Conhecendo a distinção de lei e evangelho de Lutero,
não se pode mais incorrer no erro de achar que o reino de Cristo, no qual
o evangelho rege, nada tenha a ver com a lei e que aquilo que no reino
do mundo se faz passar por lei já fosse, como tal, lei de Deus. Pelo
contrário, daqui em diante a reflexão sobre a doutrina dos dois reinos
terá que ser um aprendizado concreto da distinção de lei e evan gelho.

Finalmente: em consequência do que foi dito, a doutrina dos dois


reinos reflui para a concentração na consciência. Aqui, curiosamente,
valem as duas coisas: por causa da consciência é preciso distinguir os
dois reinos. Mas precisamente por causa da consciência vale, sob certo

242
32,467,15 (1530/32).
243
32,467,18-20 (1530/32).
244
32,467,22-5 (1530/32).
aspecto, necessariamente também sua junção, até mesmo sua
entredevoração:

Diante de Deus e no serviço de sua autoridade tudo deve ser


igual e misturado, seja espiritual ou secular, tanto o papa como o
imperador, o senhor como o servo, não valendo aqui diferença e
prestígio de pessoas. Diante de Deus, um é tão bom como o
outro. Pois ele é um só Deus, de todos igualmente senhor, de um
como de outro. Por isso todos devem estar na mesma obediência,
misturados como que num bolo, ajudando um ao outro a ser
obediente. De modo que no serviço ou submissão a Deus não
pode haver rebeldia no regime espiritual ou no secular. Pois de
obediência ou serviço nem no mundo nasce rebelião, e sim de
querer dominar e mandar. 245

Como os dois reinos se encontram na pessoa humana e mesmo


assim continuam distintos, é uma questão que tratare mos sob o tema
"Pessoa cristã e pessoa do mundo".

245
51,240,17-26 (1534/ 35).
XII
PESSOA CRISTÃ E PESSOA DO MUNDO

Se passamos a refletir, mais uma vez, sobre os problemas da


doutrina dos dois reinos, agora concentrados na existência duma mesma
pessoa nos dois reinos, é preciso que, para não acabar em esquizofrenia,
finalmente predomine o aspecto da uni dade sobre o da dualidade, e as
altas reflexões têm que compro var seu valor nas consequências para a
vida prática que todos podem entender e que a todos dizem respeito. Não
pode haver dúvida quanto à procedência dessa expectativa se, de fato,
Deus é o Senhor em ambos os reinos e fé e amor estão inseparavelmente
unidos como agente e ação.
Se não quisermos minimizar ou até desdizer, no fim, a temática
até aqui seguida, e sim mantê-la até ao extremo, ou seja, até a
responsabilidade concreta na vida e na morte, então também aqui, onde
parece que a unidade da pessoa é um dado pacífico e resiste à
dicotomização, temos que descobrir a verda deira unidade, incluindo, de
forma provocativa até o conceito de pessoa nessa tensão e analisando o
mesmo ser humano como pessoa cristã e pessoa mundana. E, para que o
levar a sério a doutrina, o qual encontramos no pensamento de Lutero e
procuramos seguir em nossas reflexões, não vire bagatelização e o passo
para a prática não venha a significar uma esquiva, uma fuga da doutrina,
não devemos ter medo de, no limiar das decisões materiais da ética,
elaborar e resumir mais uma vez alguns aspectos que dizem respeito ao
modo de pensar de Lutero e a sua concepção da realidade, que indicam,
portanto, para a problemática ontológica, para que fique bem claro que e
como a doutrina está relacionada com a vida.
Se procurarmos por um termo que possa caracterizar a maneira de
pensar de Lutero a partir da raiz, a escolha não me parece difícil. Trata-
se duma preposição que pode ser consi derada até palavra-chave para a
concepção do ser de Lutero; trata-se da palavra coram, normalmente
traduzida com "diante de". Para precisar mais o significado desse
"diante de" podería mos dizer: tem sentido espacial, não temporal. Mas, a
rigor, isso não seria apenas insuficiente mas também enganoso. Pois,
curiosamente, o que se visa é uma determinação de lugar que, como tal,
é determinação de tempo. O significado exato, que se oferece também a
partir da etimologia, é "face a". Aliás, tanto o grego como o hebraico
têm termos equivalentes de estru turas etimológicas iguais. Só que no
hebraico não apenas a situa ção pressuposta de "existir face a" está mais
viva na consciência da linguagem, mas a expressão em apreço também é
muito mais usada do que no latim e no grego. No significado básico da
palavra latina coram para a maneira de pensar de Lutero se expressa,
portanto, a concepção bíblica — mais precisamente veterotestamentária
— da realidade.
Que aqui uma definição de local seja, como tal, uma defi nição de
tempo torna-se evidente a partir da constatação de que "face a" significa
o mesmo que "na presença de". Por mais elementar que seja o assunto
aqui abordado, é extremamente difícil apreendê-lo de forma reflexiva.
Em todo caso, o aspecto constitutivo é o seguinte: aqui algo é definido
como tal não em si, mas na sua relação para fora, para com um outro, ou
melhor: a partir de um outro. Portanto, não como coisas coexistentes no
espaço e que se delimitam, se distanciam, devem ser relacionadas
mutuamente ou têm efeitos físicos recíprocos. An tes, o decisivo é que há
uma face que olha algo como tal, o avista, nota e faz com que exista
como tal. O que está diante de mim, está presente, está aí para mim.
Todavia, aqui se trata de algo mais do que da mera constatação
epistemológica de que o ser humano só conhece as coisas na sua
aparência, como ele as vê, não a coisa como tal.
Há algo de curioso em relação aquilo que chamamos de "face".
Com isso não se pensa apenas no aspecto* 246, mas também e sobretudo no
olhar** 247. Para descrever o aspecto duma pessoa pode-se falar de muitas
246
N. do T.: Aussehen, no ori gi nal .
247
N. do T.: Ansehen, no ori gi nal .
coisas: de tamanho e figura, tez e roupa, etc. O mais difícil de escrever
no ser humano, porém, é aquilo que no seu aspecto é o mais importante:
sua face. É a coisa mais importante porque aqui o ser humano de certa
forma olha literalmente para fora de si, quer dizer, aparece algo daquilo
que vai em seu íntimo. Que exatamente essa parte mais impor tante no
aspecto duma pessoa seja o mais difícil de descrever, tem sua razão de
ser, em última análise, na circunstância de que, a rigor, ela se subtrai a
qualquer descrição. Pois descrição precisa de distância, não apenas em
termos de espaço mas tam bém de tempo. A face do ser humano, ao
menos quando está voltada para mim, não me dá espaço e tempo para
observação e descrição. E que nessa situação eu mesmo me descubro
como olhado, como observado, o que tem como consequência que de
minha parte eu desvie o olhar ou esteja totalmente ocupado em resistir
ao olhar que me é dirigido. Minha presença está determinada agora pela
presença de alguém outro. É verdade que diante dum outro posso desviar
o olhar 248, mas não simples mente ignorá-lo** 249, ou seja, esse "ignorar"
seria apenas uma modificação do "ser olhado por" 250. Na presença dum
outro, de alguma forma estou sendo exigido por ele, mas ele também o
está por mim. Valem as duas coisas: ele está na minha presença e eu na
dele.
Isso dá ao fenômeno "face" uma peculiar ambivalência. O aspecto,
que tem o caráter dum olhar ativo, inclui o momento passivo do ser
olhado. Isso vale rigorosamente no que se refere ao confronto de
pessoas, face a face, mas extrapola a partir dali para a relação com
qualquer coisa olhada como presente. Em face do ser humano também as
coisas têm sua face. O ser humano não só as olha, mas sente-se também
olhado por elas, isso porque, de certa maneira, reconhece sua
dependência delas, mas de tal modo que a maneira das coisas ©
encararem não possa ser dissociada do modo como ele as vê. Facies rerum
est ommia in omnibus, diz Lutero: a face das coisas é tudo, afinal. E ele faz

248
N. do T.: Wegsehen, no ori gi nal .
249
N. do T.: Absehen, no ori gi nal .
250
N. do T.: Angesehensein von, no ori gi nal .
disso imediata aplicação teológica: "tal como a palavra de Deus é
terrível para os que têm medo, um fogo para os que ardem, um unguento
para os mansos (...) e de modo geral: como estás disposto, assim ela te
será." 251 "Assim como alguém é, assim lhe serão Deus, a Escritura, a
criação." 252 O "olhar" no sentido ativo, isto é, como alguém olha as
coisas, se transfor ma no ser olhado e aponta para a dependência do ser
humano do modo como ele é visto, da "aparência" 253 no sentido passivo,
do que alguém aparenta, o que já traz consigo um juízo de valor: fala-se
do que alguém aparenta no sentido do prestígio 254 de que alguém goza,
em diferenciação da falta de consi deração que alguém sofre, do desprezo
que colhe. Por isso também o termo "cara" assume um significado
passivo, por exem plo na expressão "perder a cara".
A profundidade da questão para a qual conduz a relação coram
evidentemente só se revela no encontro de pessoa com pessoa. Não é o
fato de que ou a maneira como outras coisas existem diante de mim,
diante dos meus olhos, que é o mais importante nessa questão
explicada pela preposição coram, mas sim o fato de que eu mesmo me
encontro diante dum outro, existo face a um outro e que sou atingido
com isso na minha existência. Isso podemos explicitar com simples
experiências básicas: do quanto dependo da cara que o outro faz para
mim, se me olha com amabilidade ou com raiva, interessado ou
entediado, ou então se me olha ou me ignora, ou ainda com outro
acento: se volta a sua face para mim ou a vira, dando-me as costas.
Nesse relacionamento definido por coram, em que o ser humano sempre
já está, no qual descobre, por assim dizer, a si mesmo, de modo que
sem ele nem seria humano, confundem-se as maneiras como ele se
encontra com os outros, como os outros se encontram com ele e como
ele se encontra consigo mesmo.

251
4,511,11-3 (1513/15).
252
4,483,7s. (1513/15).
253
N. do T.: Ansehen.no ori gi nal .
254
N. do T.: Idem .
N. do T.: Personsein, no ori gi nal .
Topamos aqui com o complexo processo de experiências e
sucedimentos do qual, à primeira vista, se poderia dizer: trata- se tão-
somente duma questão de ângulo, de consciência, de com preensão, de
critério. Mas, analisado a fundo, isso toca em ques tões a partir das
quais se decide sobre o caráter humano da existência, sobre a
realidade. No processo de ver e ser visto, no qual acontece presença, a
existência humana acontece como um estar exposto ao julgamento. A
relação coram revela como situação básica do ser humano o fato de que
ele está diante de um foro. O fato de que ele depende de julgamento,
que ele tanto deseja quanto teme, mostra que ele traz, em si mesmo,
estrutura forense, de tal ordem, no entanto, que na maneira de se ver e
entender a si mesmo ele está condicionado pelo que lhe sucede em
termos de julgamento e que se sente tão atingido pelo que lhe sucede
em termos de julgamento porque isto o afeta como alguém
questionável perante seu próprio foro íntimo. As muitas relações
tocadas com isso não podem ser esgotadas aqui nem de perto.
Contentemo-nos com duas indicações.
O relacionamento coram é a razão de que é o ser como ser
reconhecido que constitui o acontecimento de sua verdade. Para a
compreensão da relevância dessa questão, a seguinte for mulação é bem
característica: "Enquanto algo não estiver reco nhecido como acontecido,
ainda não aconteceu para ele (para o ser humano) ou nele; acontece,
porém, quando se reconhece que aconteceu." 255 Ou então deveríamos
lembrar que Lutero fala de um "tornar-se pecador" de forma qualificada,
portanto, não simplesmente como o cair em pecado de quem não tinha
pecado, mas como o reconhecer-se como pecador daquele que o é, e é só
por meio disso que, a rigor, ele se torna pecador 256. Ou então, para citar
mais um exemplo ilustrativo da relevância do compreender — relevância
esta que transforma a realidade — extraído do contexto da própria
doutrina dos dois reinos:

255
3,435,37- 9 (1513/ 15).
256
56,232,34- 233,19 (1515/ 16).
Estar casado e reconhecer a vida matrimonial são duas coisas bem
diferentes. Quem estiver casado e não reconhecer a vida
matrimonial, jamais pode viver nisso sem mau humor, incômodo e
lamentação. (...) Os que a reconhecem, porém, são os que crêem
firmemente que Deus mesmo instituiu o matrimônio, uniu homem
e mulher e mandou gerar e criar filhos. Pois eles têm a palavra de
Deus a respeito (...). 257

Com isso está dada a outra indicação: na relação coram está


fundamentado o caráter linguístico da realidade, ou melhor: a relação
coram constitui o caráter linguístico. Para Lutero, isso significa
concretamente: a realidade só é compreendida como aquilo que ela é, se
foi ouvida a palavra de Deus pela qual ela tem seu ser e que nela
constitui o que há de realmente real. Para a compreensão dessa
vinculação essencial da realidade com a palavra pode-se aprender coisas
importantíssimas da doutrina dos sacramentos de Lutero. Basta lembrar
a frase do Catecismo Menor: "O batismo não é apenas água simples, mas
é a água compreendida no mandamento divino e ligada à palavra de
Deus." 258 O mesmo vale para o trato de todas as criaturas: "A criação
toda é sua (de Deus) máscara." 259 Isso contém um duplo sentido: ela só é
máscara, ou seja, nada é por si e para si, mas é apenas o invólucro
ocultador do Criador que nos fala a partir dela e através dela. Por isso
faz parte do correto conhe cimento da realidade saber distinguir entre a
criação como simples máscara e a palavra de Deus nela oculta, não
confundir a casa com o dono, nem a criatura com o criador, prestar
honra e fé a Deus e não à criação 260. Não obstante, por isso mesmo vale
também o outro lado: em decorrência dessa distinção entre Deus e a
criação, entre a palavra e o mero invólucro, somos chamados a

257
10/ 11,294,21-3.27-9 (1522) = B oA 3, 351,18- 21.26-8.
258
Livro de concórdia, p. 375 (1529).
259
40/ 1,174,3 (1531).
260
40/ 1,176,1-8 (1531).
reconhecer e respeitar a criação justamente nesse seu caráter de
máscara, desejado por Deus.

A realeza, o império, a autoridade, o professor, o estudante, o pai,


a mãe, o senhor e a senhora, o peão e a doméstica — todos são
máscaras, pessoas que Deus deseja que sejam tratadas com respeito
e reconhecidas como criação sua. E preciso que existam nessa
vida, mas ele não quer que se lhes confira caráter divino. 261

Já está claro: o peso que a relação coram tem para o pensamento de


Lutero não decorre simplesmente do fenômeno da co-humanidade, por
menos que se possa excluir o encontro de pessoa com pessoa daquilo que
Lutero pretende nessa relação coram, nesse raciocínio voltado para o
presente em sentido estri to como presença que torna presente. Pois
presença que torna presente é somente Deus. Por isso, o ser coram Deo, o
ser diante da sua face, na sua presença, sob os seus olhos, sob o seu
juízo e na sua palavra é o aspecto fundamental da relação coram.
Estaria tudo distorcido, no entanto, se essa existência diante de
Deus fosse isolada das mais diversas formas em que o ser humano se
encontra numa existência coram. Na linguagem de Lutero, três dessas
outras relações coram sempre de novo aparecem: a existência diante de
mim mesmo (coram meipso), a existência diante dos seres humanos (coram
hominibus) e a existência diante do mundo (coram mundo). As duas últimas
quase que se fundem em uma só, ainda que valha a pena refletir também
sobre sua diferença. Frente à existência diante de Deus, até o "diante de
mim mesmo" se funde de certa maneira com a existên cia coram em
relação aos semelhantes e ao mundo. Por outro lado, a existência "diante
de mim mesmo" é incorporada àquela diante de Deus, quando o ser
humano se percebe a si mesmo nessa sua existência diante de Deus. Com
isso, porém, ele não está entregue a seu foro e julgamento próprios;

261
40/ 1,175,3-6 (1531).
antes, é transfe rido para fora de si mesmo e, assim, tem sua existência
fora de si mesmo, extra se, porque a tem diante de Deus.
A vivacidade sempre de novo imponente que caracteriza o
pensamento de Lutero, ou seja, que mesmo na mais sublime reflexão
tudo fica tão concreto, tão próximo, tão presente, tão palpável, tem algo
a ver com a segurança com que ele se movi menta na estrutura das
relações coram. Essa formulação, contu do, é enganosa a partir do
momento em que se tiver a impressão de que se trataria dum método
formal, duma sofisticada técnica intelectual. Essa impressão até que é
possível quando, como o esboçamos aqui, se analisa a estrutura dessas
relações coram como a estrutura característica do pensamento e da
linguagem de Lutero. A impressão de coisa complicada, porém, de forma
alguma corresponde à matéria como ela se apresenta para aquele que
está envolvido com a causa, como acontecia com Lutero num grau para
nós estranho. Não que a intensidade do envolvimento com a causa
conferisse ao teólogo a facilidade dum virtuoso domínio de estruturas de
pensamento. Mas a dificuldade da qual ninguém escapa quando se
envolve com a teologia, o esforço e trabalho que aqui se faz necessário,
o sofrimento sem o qual não surge verdadeiro conhecimento e palavra
autorizada, são de outra ordem, não podendo ser resolvidos
metodologicamente pelo aprendizado duma técnica, pois, por causa do
objeto da teologia, vale a seguinte afirmação: "Teólogo a gente se torna
pelo viver, e mais: pelo morrer e pela experiência de condenação, não
pelo compreender, ler ou especular." 262
Posto isso, fazemos agora algumas últimas observações quanto à
orientação de Lutero nas relações coram. A existência diante de Deus e
aquela diante do mundo não representam opções possíveis ou realidades
separadas, mas estão em rigorosa simultaneidade e reciprocidade. Quem
tem sua existência diante de Deus, não deixa de existir diante do mundo.
E quem tem sua existência diante do mundo, não perdeu com isso sua
existência diante de Deus. Entretanto, a existência diante de um foro se
262
5,163,28s. (1519).
* N. do T.: Nom e de bat i sm o, prenom e, l it eral m ent e: " nom e cri st ão" .
torna contraste da existência no outro, uma vez que, na discutibilidade
dos dois, é discutível donde o ser humano recebe a si mesmo, de que
juízo, de que palavra ele vive, a partir de que foro ele se entende, qual a
face que o reivindica em última análi se, para onde ele volta, em última
análise, sua face e a quem dá as costas, em que, afinal, consiste o seu
presente e o que o determina. Se estiver sob o fascínio do mundo, nada
será perante Deus, exatamente por achar que é algo também perante
Deus, seja na sua religiosidade, seja na sua rebelião pública contra
Deus, seja no seu esquecimento de Deus. Se, no entanto, ouvir a palavra
de Deus e concordar com ela como obra de Deus que, através de juízo e
graça, mata e vivifica, ele sofrerá no foro do mundo a contestação da
qual são vítimas justamente aqueles que por amor a Deus tentam fazer
justiça ao mundo como criação de Deus. Portanto, a existência diante do
mundo não perde seu direito por causa da existência diante de Deus,
pelo contrário, só assim a conquista de verdade, ou seja, só agora se
distingue realmente entre essas duas relações coram e assim se as coloca
nos devidos termos de seu relacionamento. Pois quem faz justiça a Deus
pela fé, também pode, agora, fazer justiça ao mundo através do amor.
A partir da compreensão da fundamental importância das relações
coram é possível entender também até que ponto, em relação à própria
existência pessoal, pode-se falar duma duali dade sem que isso implique
uma dissolução da existência pessoal ou uma consciência esquizofrênica.
Lutero usa o termo "pessoa" de modo aparentemente desajustado, quando
não até contradi tório. Até aqui topamos com ele na distinção da obra do
ser humano. "Pessoa" significa, então, a unidade e totalidade do ser
humano na sua existência diante de Deus. Para Lutero, "pes soa" nesse
sentido é quase idêntico com "consciência". Ao lado disso, porém,
encontramos um emprego do termo "pessoa" no sentido de face,
aparência, respectivamente imagem, uma refe rência ao provável
significado original de persona como máscara de ator, e com isso ao papel
que alguém desempenha, ao cargo que ocupa. É verdade que também
aqui o ser humano é conside rado na totalidade de sua imagem, aspecto e
aparição, mas não como aquele que é na abscondidade de sua existência
nua e crua no coração, quer dizer, não como é diante de si mesmo, mas
diante da face de Deus. Pois o ser humano vê o que está diante dos
olhos, incluindo a si mesmo, enquanto só Deus perscruta o coração. O
ser humano é pessoa no sentido de máscara e de papel como aquele que
ele é diante do mundo, graças às suas obras, de acordo com a função que
exerce e atrás da qual sua existência nua e crua, num conceito radical,
está oculta, com a qual se reveste perante o mundo.
Este conceito de pessoa visa a expressão bíblica "aceitar a
aparência do ser humano" 1 1 , isto é, julgar com parcialidade, de acordo
com aquilo que alguém é diante do mundo, não tomá-lo na sua
existência, como ele mesmo é, mas na roupagem, por assim dizer, em
que se apresenta e talvez até impressione. E por isso que se diz de Deus:
ele não aceita a aparência do ser humano. Nós, seres humanos, pelo
contrário, tendemos para a prosopolepsia, parcialidade e
corruptibilidade; deixamos que as aparências nos enganem. Contudo, é
de se ponderar também: não devemos ter a presunção de poder fazê-lo
como Deus. Certa mente que não devemos nos tornar presas da aparência.
Mas isso não significa que se deva desprezar essa maneira do ser-
pessoa* 263 do ser humano, o ser humano em sues funções e cargos, não
deixá-lo valer como tal, esquivar-se de sua reivindicação, imaginando-o,
por assim dizer, na fraqueza e nudez do seu négligé interior e tentando
farejar e arrastar à luz as coisas ocultas. Antes, o termo "pessoa" no
sentido de máscara, papel, indica um aspecto indeclinável da existência
no mundo, cuja perversão no sentido de parcialidade e dependência de
falsas aparências não justifica a eliminação do uso correto. Pelo
contrário, é mister reconhecer a função correta e necessária dessa
maneira de ser-pessoa** 264. Isso, no entanto, não acontece através da
perquirição da aparência até as profundezas ocultas do coração, mas
através da atenção dispensada à palavra de Deus que nos atinge, nesse
tipo de existência pessoal, nesses cargos e funções, à dádiva que em
263
N. do T.: Personsein, no ori gi nal .
264
N. do T.: Personhaftigkeit, no ori gi nal .
tudo isso nos é oferecida da parte de Deus, à incumbência, divina que
nisso deve ser respeitada, à vontade de Deus que nisso nos coloca suas
exigências.
Já havíamos encontrado acima essa compreensão dos ele mentos
criacionais no sentido do seu caráter de máscara. De máscara não se
trata agora em primeiro lugar porque atrás disso estaria oculta a
existência própria do ser humano — isso também é válido, mas é um
aspecto secundário que, em última análise, não nos importa; trata-se de
máscara com vistas à palavra de Deus que está atrás disso. Ser-pessoa,
nessa linha de raciocínio, significa assumir a incumbência que Deus nos
conferiu frente ao mundo, executar o serviço que nos coube, realizar,
como instrumento de Deus, a obra de Deus para a qual fomos destina dos
nesse mundo, e mais: por incumbência e em representação de Deus, usar
a autoridade, valer-nos da competência, dizer o que nos foi confiado.
Bem analisado, portanto, não há contradição entre os dois
conceitos de pessoa, pois ambos têm a ver com as diferentes maneiras
em que o ser humano participa do caráter da realidade como palavra e, a
rigor, quando consegue localizar-se devida mente, do acontecimento da
palavra de Deus no mundo. Pessoa como existência do ser humano
perante Deus é constituída pelo estar atingido pela palavra de Deus que
julga e liberta o ser humano em sua consciência. Pessoa como existência
do ser humano perante o mundo é constituída pelo estar sustentado e
estar incumbido pela palavra de Deus que põe o ser humano a seu
serviço em suas obras.
Contudo, a clareza dessa distinção sofre limitações por causa de
duas coisas: uma vez por causa de variações na lingua gem de Lutero que
facilmente confundem; além disso, pela pró pria complexidade do assunto
que apesar de tudo persiste e que não se pretende negar pelo
estabelecimento dessa diferencia ção, mas por causa da qual ela existe,
porém não como uma solução que nos livrasse, uma vez por todas, dos
problemas, e sim como uma orientação às consciências sobre como
superar as dificuldades de caso em caso.
A variação na terminologia de Lutero abrange as alterna tivas de
caracterizar aquilo que elaboramos com base nos dois conceitos de
pessoa como diferenciação de pessoa e função — creio que isso ficou
compreensível pelo supradito — ou como distinção de duas pessoas, ou
então como diferenciação de dois cargos, neste caso no sentido de que
também a vida cristã como tal, como testemunho com a palavra da fé, é
um cargo e uma incumbência.
Ilustremos isso com alguns textos retirados da interpre tação do
sermão da montanha. Assim, com referência a Mt 5.5:
"Bem-aventurados os mansos":

Aqui é preciso que saibas novamente que Cristo nada fala da


autoridade em sua função (...), mas fala tão-somente como cada
pessoa individualmente deve viver a seu modo em relação a
outros, fora de função e regime como pai e mãe, onde não vive
como pai e mãe em relação a seus filhos nem exerce sua função de
pai e mãe, e sim em relação àqueles que não a chamam de pai e
mãe, tais como vizinhos e outros. Pois eu já disse muitas vezes
que é preciso distinguir claramente entre função e pessoa. O
homem que se chama Hans ou Martin (convém lembrar aqui a
expressão inglesa Christian name*265) é bem diferente daquele que se
chama príncipe-eleitor ou doutor e pregador. Pois aqui apare cem,
por assim dizer, duas pessoas distintas num único ser humano:
uma na qual nascemos e fomos criados e pela qual somos todos
iguais entre nós, homem, mulher, criança, jovem, ancião, etc. (...)
Mas, depois de nascidos, Deus te veste e enfeita para seres uma
outra pessoa, faz de ti uma criança, de mim um pai, deste um
patrão, daquele um peão, dum um príncipe, doutro um cidadão, e
assim por diante. Isso se chama então uma pessoa divina, que
exerce um ministério divino e está ornamentada com sua glória, e
não se chama apenas Hans ou Klaus, mas príncipe da Saxônía, pai
ou senhor. Desta ele não diz nada aqui, mas deixa que atuem em

265
N. do T.: Nom e de bat i sm o, prenom e, l it eral m ent e: " nom e cri st ão" .
seu ministério e regime, como o estabeleceu; fala apenas da pessoa
individual e natural, o que cada qual por si deve fazer, como ser
humano, em relação ao semelhante. 266

Ou, com referência a Mt 5.38ss. (a proibição de resistir ao mal):


À pergunta, se um cristão deve procurar seus direitos, defender-
se, etc., respondo com simplicidade e digo que não. Pois um
cristão é um tipo de pessoa ou ser humano que nada tem a ver com
tal direito e comportamento mundano. (...) Uma outra per gunta é
se um cristão pode ser um homem do mundo e exercer o cargo e
executar a obra do regime ou do direito, de modo que as duas
pessoas ou cargos recaiam sobre o mesmo ser humano e ele seja,
ao mesmo tempo, um cristão e um príncipe, juiz, patrão, peão ou
empregada, que são pessoas inteiramente munda nas, pois fazem
parte do regime mundano. Quanto a isso dizemos: sim, pois Deus
mesmo instituiu e ordenou tal regime e diferença no mundo e o
confirmou e elogiou pela sua palavra. É que, sem isso, essa vida
não seria viável, e todos estão incluídos, até nascidos nisso antes
de nos tornarmos cristãos; por isso temos que perma necer nisso
enquanto estivermos no mundo, mas só quanto à vida e realidade
externas. (...) Vê, desta maneira falamos agora dum cristão in
relatione*267 não como de um cristão, mas como de alguém
vinculado nessa vida a outra pessoa abaixo, acima ou a seu lado,
como patrão, patroa, esposa, filho, vizinho, etc. Aí um deve defen -
der, proteger e resguardar ao outro o quanto puder. Por isso não
seria justo que aqui se ensinasse a oferecer a outra face e a
entregar, além da capa, também o casaco. 268

No que se refere ao aspecto linguístico dessa explicação há,


sobretudo, três observações a fazer que esclarecem o con teúdo.
266
32,316,6-7.10-29 (1530/ 32).
267
* N. do T.: Em rel ação.
268
32,389,36-390,1; 390,8-18.33- 8 (1530/ 32).
Por um lado, sublinha a origem dessa concepção naquilo que
mostramos como orientação nas relações coram o fato de Lutero
caracterizar a diferença das duas pessoas como diferença de tratamento,
dos nomes com que se designa o mesmo ser hu mano.
Além disso, o grosseiro mal-entendido de acordo com o qual a
distinção de pessoa cristã e pessoa do mundo dividiria o ser humano em
dois espaços vivenciais, um em que ele se orienta pela lei de Deus, outro
em que se submete às leis próprias do mundo, é refutado já pelo fato de
que Lutero pode fazer uma curiosa troca cruzada dos atributos:
precisamente a pessoa do mundo é, em função do cargo que exerce,
"pessoa divina"; por outro, a pessoa cristã é, em vista de sua nudez
perante Deus, caracterizada especialmente pelo nascimento e a morte,
"pessoa natural".
Finalmente: a impressão de que aqui se distinguiria entre uma
esfera particular, à qual ficaria confinado o cristianismo, e uma esfera
pública, na qual o ser-cristão não seria praticável, tem contra si o fato de
que aqui em ambos os aspectos se fala claramente do cristão e em ambos
os casos com vistas a sua postura em relação ao semelhante: uma vez do
cristão no minis tério do evangelho, como testemunha da fé, que,
libertado de si mesmo, leva a sério para si mesmo sua própria dedicação
ao próximo, para o que o sermão do monte, como documento de fé,
clama; por outra, no entanto, do cristão no ministério da lei, como
alguém que de certa forma está preso ao semelhante, não devendo agir
em função própria mas tão-só dos outros, numa determinada função de
preservação do mundo em sua provisoriedade.
Com isso, porém, chegamos às dificuldades materiais. Às vezes
parece que Lutero as considera eliminadas, quando escre ve, por
exemplo:

As duas coisas combinam muito bem, de maneira que


correspondes, ao mesmo tempo, ao reino de Deus e ao do mundo,
externa e internamente, sofrendo mal e injustiça e, ao mesmo
tempo, punin do-os, não resistindo ao mal e, ao mesmo tempo,
resistindo a ele. Pois num caso olhas para ti mesmo e o que é teu,
no outro, para o próximo e o que é dele. Quanto a ti mesmo e ao
que é teu, tu te portas de acordo com o evangelho e, como bom
cristão, sofres injustiça para contigo; quanto ao outro e ao que é
dele, tu te portas de acordo com o amor e não toleras injustiça
para com o próximo, coisa que o evangelho não proíbe, antes
ordena em outras passagens. 269

Face às múltiplas situações de conflito que aqui sem dúvi da se


apresentam, convém ater-se às seguintes linhas mestras: Primeiro: os
problemas devem ser remontados sempre de novo à diferenciação básica
de evangelho e lei, justiça da fé e justiça das obras. Por isso é imperioso
evitar o equívo co de que aqui se possa tratar de algo parecido com uma
dupla moral. Pessoa cristã e pessoa do mundo devem agir a partir da
mesma raiz: o amor. A diferença com que aqui e acolá o amor se
manifesta é uma diferença de situação, daquilo que deve ser feito por
causa do próximo.
Segundo: para a pessoa do mundo, o significado da fé consiste
justamente em que ela é pessoa do mundo em certeza e verdade, o que é
impossível sem a fé. Essa certeza concede a liberdade para um serviço
ao próximo sem piedosos cálculos. É assim que os frutos do Espírito
Santo nascem na discreta ação mundana a serviço do próximo.
Terceiro: se a distinção das duas pessoas não for perver tida para uma
separação de áreas, mas permanecer em uso cons tante como orientação
para as consciências, então servirá para que o ser humano trate
conscienciosamente de não procurar a resposta pelo que deve ser feito
nos preconceitos e costumes que dominam a vida social, mas de
permanecer aberto para a prática do inusitado, do excepcional, sempre
que isso se imponha como o verdadeiramente razoável e, ao mesmo
tempo, como o verdadeiro mandamento do amor nascido da fé.

269
11,255,12-21 (1523) = B oA 2,370,16-25.
XIII
LIBERDADE E CATIVEIRO

Diz Lutero que o objeto da teologia é o ser humano culpa do e


perdido e o Deus justificador e salvador, isto é, conheci mento de Deus e
do ser humano em estrita relação com o que acontece entre ambos. O que
não se enquadra na disciplina deste único tema, é equívoco e veneno na
teologia. Nisso se decide não só se se fala teologicamente a respeito do
ser humano, mas também se se fala teologicamente a respeito de Deus,
coisa que o simples discurso sobre ele não garante automaticamente 270. A
teologia trata, portanto, da correta distinção de Deus e ser humano em
termos duma concepção responsável da correlação de Deus e ser humano.
Esse objeto único da teologia manteve o pensamento de Lutero na
tensão de definições contraditórias, como até aqui foram analisadas sob
diversos aspectos. Estamos levando em conta essa temática teológica
básica que a tudo domina, se faze mos desembocar a introdução ao
pensamento de Lutero na explí cita exposição dela, falando agora ainda
da liberdade e do cati veiro do ser humano e finalmente do Deus oculto e
revelado.
Não permaneceríamos na disciplina do discurso teológico em que
Lutero insistia, se no final acabássemos dividindo o objeto da teologia,
falando inicialmente só do ser humano e, por fim, só de Deus. Que em
ambos os temas reaparece, até ao final, o aspecto antitético, já deve ser
tomado por sinal de como também aqui o único objeto da teologia se
impõe. Pois, mesmo que a análise se concentre, mais uma vez, primeiro
no ser humano e só depois em Deus, isso acontece de tal maneira que se
fala do ser humano diante de Deus, e de Deus com vistas ao ser humano. Por
causa deste "diante de Deus" o ser humano é enfocado sob o aspecto de

270
40/ 11,327,11-329,2 (1532), m ai s a revi são para a i m pressão: 327,17-328,35
(1538).
liberdade e cativeiro, e por causa do "com vistas ao ser humano" se trata
de Deus sob o aspecto de sua ocultação e revelação.
Em todas as duplas contrastantes anteriores se manifes tava uma
relação de recíproco confronto, de inimizade mortal, e apesar disso
vigorava a conjugação distintiva; assim também é nesses dois últimos
casos. Aqui, porém, e talvez isso não seja mero acaso, é extremamente
difícil compreender que liberda de e cativeiro, bem como ocultação e
revelação, não se excluem ou alternam simplesmente, mas, apesar do
aspecto excludente também estar presente, devem ser conjugados de
certa maneira. Isso implicaria que nem o cativeiro do ser humano
significa apenas o fim de sua liberdade, nem a liberdade do ser humano
significa apenas o término de seu cativeiro, nem a relação se dilui na
concomitância de liberdade e cativeiro parciais, mas que, num sentido a
ser delineado mais precisamente — talvez até em mais de um — sua
liberdade é seu cativeiro e seu cativeiro sua liberdade. Algo semelhante
poderia ocorrer com a revelação de Deus, de modo que ela não seria nem
a suspensão parcial, nem a suspensão total da ocultação de Deus; antes,
seria, na qualidade de revelação, revelação na ocultação.
No que diz respeito ao tema específico a ser tratado aqui,
certamente poder-se-á dizer: nenhum teólogo — talvez se possa ir mais
longe e dizer: nenhum outro pensador — falou em termos tão
impressionantes da liberdade por um lado, e de maneira tão aterradora do
cativeiro por outro, como Lutero. Convém lembrar que as duas únicas
obras de Lutero que têm um certo caráter de apresentação sistemática da
sua teologia, o tratado "Da liberdade cristã" 271, de 1520, e cinco anos
mais tarde, "O arbítrio cativo" 272, a grande obra polêmica contra Erasmo,
tratam desse tema.
Liberdade — isso é a essência da salvação: "Um cristão é senhor
livre sobre todas as coisas e não está sujeito a nin guém." 4 Por Cristo ele
é o mais livre dos reis e, o que é muito mais, sacerdote que tem direito e

271
Em duas versões: a al em ã 7,12-38 = BoA 2,1-27; a l at i na (revi sada e am pl i ada)
7,39-73.
272
18,551- 787 = B oA 3,94-293.
mandato para comparecer dian te da face de Deus 273. "Por seu reinado ou
soberania dispõe ele de todas as coisas; por seu sacerdócio, dispõe de
Deus." 6 Se Lutero, ao mesmo tempo, afirma o aparente oposto: "Um
cristão é um servidor de todas as coisas e sujeito a todos" 274, não quer
dizer que com isso se tenha expressado a problemática de liber dade e
cativeiro do ser humano em sua extrema paradoxalidade. Pois o conflito
de liberdade e serviçalidade, sobre o qual Lutero alicerça sua obra "Da
liberdade cristã", apenas interpreta, em formulações paradoxais, a
unidade das duas e, com isso, a essên cia da liberdade. A liberdade que o
cristão tem através da fé é, precisamente, liberdade para a serviçalidade
do amor. E servi çalidade do amor só existe na medida em que acontece
em liberdade. "Vede como da fé fluem o amor e o gozo em Deus, e do
amor emana, por sua vez, uma vida livre, disposta, alegre, para servir ao
próximo sem olhar para a recompensa." 275
Eis o que distingue o tempo da lei do tempo da graça:
Porquanto os seres humanos não guardavam os mandamentos de
Deus espontaneamente e por amor, mas por temor servil ou amor
infantil, o mandamento lhes era um peso e fardo insuportável,
impossível de ser cumprido, pois o mandamento de Deus tem que
ser cumprido com espontaneidade. A natureza não é capaz disso;
por isso ela adoeceu sob a lei, sucumbiu e ficou impotente para
cumprir a leu (...) A outra era é aquela da graça e do socorro, pela
qual o ser humano é fortificado para cumprir espon taneamente a
vontade e o mandamento de Deus por puro amor a ele, não para
cumpri-los por causa do proveito ou da recompensa nem tampouco
deixar de fazê-lo por causa de sofrimento ou morte. Isso não é
obra da natureza, mas da graça. 2 7 6

273
7,57,24-6 (1520).
274
Ibid., p. 9 (1520).
275
Ibid., p. 42s. (1520).
276
1,699,5-10.18-22 (1518).
Essa espontaneidade do amor é o fruto da liberdade pro porcionada
pelo evangelho, e tal liberdade é a essência da fé. Entretanto, se o
evangelho, entendido em sua profundidade, é o dom da liberdade da
coação e da maldição da lei, de tal modo que a fé coloca o ser humano
que está sob a lei acima e fora da lei (supra legem e extra legem277),
transformando-o de escravo em senhor da lei, e se isso, bem
compreendido, vale a respeito da lei de Deus em seu poder acusador e
aniquilador, a liberdade do cristão deverá ser entendida, com mais razão
ainda, como liberdade de todas as ordenações humanas. "Por esse motivo
postulamos, e não admitimos impedimento, que somos senhores sobre
toda doutrina e mandamento papal e humano, e que ficará a nosso
critério se queremos cumpri-los ou não." 1 1 "Por sermos cristãos, somos
senhores sobre tais mandamentos humanos, no que diz respeito à
consciência. Por isso é de nosso dever arriscar até o pescoço por causa
de tal liberdade e não abandoná-la, pois isso significaria negar e
condenar a Cristo, que ordenou essa liberdade tão rigorosa e
severamente, e não está em nosso poder transformá-la ou alienar-nos
dela." 278 Contudo: "Esse nosso senhorio, liberdade e poder cristãos
devem ser entendidos exclusivamente de maneira espiritual. (...) Ora, é
isso que signi fica a liberdade espiritual: quando as consciências
permanecem livres." 1 3
O decurso do movimento reformatório foi uma sequência de
oportunidades de lutar contra a má interpretação e o abuso da liberdade
evangélica: contra a imposição de novas ordenações em nome da
liberdade evangélica, na hora de passar para a ação reformatória, pelo
que, de forma nada evangélica, se trouxe confusão às consciências:

Já que (...) não posso infundir a fé no coração de ninguém, não


posso nem devo obrigar ou coagir ninguém a isso; pois Deus opera
isso sozinho e vem a habitar anteriormente no coração. Por isso se
deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela:
277
Por exem pl o 40/ 1,42,11; 47,1; 204,6 e passim (1531).
278
10/ 11,18,15-20 (1522) = B oA 2,317,8- 13.
nós certamente temos o ius verbi*279 mas não a executionem**280. Cabe-
nos pregar a palavra, mas as consequências perten cem unicamente
ao agrado de Deus. 281
A fé quer ser assumida espontaneamente, sem pressões. 282

Ou então, contra a dedução direta de dispositivos de direito político, como a


abolição da servidão, a partir da fé para a qual Cristo nos libertou:

Isso significa transformar a liberdade cristã em algo bem carnal (...)


pois um servo pode muito bem ser cristão e possuir liberdade cristã. 283

Ou, contra a invocação das meras consequências da liberdade evangélica por


aqueles que não querem pagar o preço da sua condição de cristãos:

A gente desse tipo nada queremos ter pregado, nem ceder-lhes


voluntariamente algo de nossa liberdade ou deixar que a gozem; antes,
queremos submetê-los de novo ao papa ou alguém parecido que os
subjugue como perfeito tirano. Ao populacho que não quer obedecer ao
evangelho, nada mais cabe do que um carcereiro desses, que seja o
diabo e carrasco mandado por Deus. 284

A esse discurso sobre a liberdade como essência do evange lho se junta


agora, em contraponto, a mais enfática afirmação do cativeiro da vontade
humana. Não foi apenas por provocação da maneira como Erasmo se fez
defensor da livre vontade, mas foi juntamente com a compreensão do puro
evangelho que se abriu para Lutero também a noção do radical cativeiro da
vontade. Já num debate do ano de 1516 podemos ler: "A vontade do ser
humano fora da graça não é livre, mas escravizada." 18 E, um ano mais tarde,
no "Debate sobre a teologia escolástica":
279
* N. do T.: Di rei t o da pal avra.
280
** N. do T.: Execução.
281
10/ 111,15,6-12 (1522) = B oA 7,368,14- 20.
282
10/111,18,lis. (1522) = BoA 7,369,28s.
283
18,326,15; 327,2s. (1525) = BoA 3,64,35; 65,5s.
284
30/1,234,21-6 (1529).
Está errado que o desejo é livre para optar por qualquer uma de duas
alternativas opostas; pelo contrário: ele não é livre, e sim cativo. (...)
Está errado que, por natureza, a vontade possa conformar-se ao ditame
correto. 19
Por natureza, o ser humano não consegue querer que Deus seja Deus;
pelo contrário, quer que ele mesmo seja Deus e que Deus não seja
Deus. 285
A melhor e infalível preparação e a única disposição para a graça é
a eleição e predestinação eterna de Deus. 286

Ou, um ano mais tarde, no Debate de Heidelberg:


Após a queda, o livre arbítrio é um mero título; enquanto faz o que
está em si, peca mortalmente. 287

Essa tese, que na bula papal de ameaça de excomunhão fora


incriminada de herética, ao lado de outras, Lutero não só confirmou em
sua réplica, como ainda a radicalizou. Teria proce dido mal, diz ele, em
colocar sua afirmação sobre a livre vontade sob a reserva da graça ainda
por vir. Deve-se dizer, sem res trições:

A livre vontade, de fato, é uma fantasia ou uma mera designação


sem realidade. (...) Pois ninguém tem em seu poder (sequer)
pensar algo de bom ou mau; antes, tudo (...) emana de necessidade
absoluta. 2 8 8
O que engana os pobres seres humanos é a instabilidade ou, como
se diz, a contingência dos problemas humanos; é que eles fixam
seus olhos insensatos nas próprias coisas e na ação (no âmbito)
das coisas e não erguem uma vez sequer seu olhar para Deus, a fim
de reconhecer as coisas acima das coisas, em Deus. Para nós que
olhamos para baixo e para as profundezas, as coisas parecem
285
Ibid., p. 16 (1517).
286
Ibid. (1517).
287
Ibid., p. 38 (1518).
288
7,146,4-8 (1520).
arbitrárias e casuais, mas para aqueles que olham para cima tudo é
necessário. Pois não como nós queremos, mas como ele quer é que
nós todos vivemos, agimos, sofremos e tudo (acontece). Diante de
Deus some a livre vontade, que só se mani festa a nós e diante do
que é temporal. 2 8 9

Colocações como essas motivaram os protestos de Erasmo quando, após


longa hesitação, sentiu-se forçado a atacar Lutero. Na questão da livre
vontade este humanista comungava com a tradição escolástica que, em
outros aspectos, também ele criti cava.
Para que essas duas linhas de raciocínio teológico de Lu tero, sobre
a liberdade por um lado, sobre a servidão por outro, não permaneçam em
contradição ou sem relação íntima, mas — como é de se supor no caso de
um pensador como Lutero, tão concentrado em uma só coisa —
constituam um conjunto inseparável, pelo que parece, é preciso falar
dessa maneira da servidão em função do discurso correto sobre a
liberdade. E de maneira alguma deve-se fazê-lo só assim que o discurso
sobre a servidão da vontade humana como estado de cativeiro e perdição
fosse a página escura da qual se destacasse com maior brilho o discurso
sobre a salvação como a transposição para a liberdade. Pelo contrário,
ambos têm que valer simulta neamente, ao menos sob certo aspecto, de
forma que a declaração de nulidade do liberum arbitrium*290 seja o
comentário necessário daquilo que é verdadeira liberdade. Nesse caso, o
discurso sobre a condição servil da vontade outra coisa não visa do que o
correto discurso sobre a liberdade. Para compreender essas com plicadas
e, para ouvidos superficiais e impacientes, tão escanda losas e absurdas
assertivas de Lutero sobre servidão da vonta de, é decisivo que se tenha
sempre presente essa relação. O testemunho de que a livre vontade nada
é, em última análise visa ser evangelho — o testemunho, portanto, da
maravilhosa liberdade dos filhos de Deus. Até se poderia tentar mostrar
a saída da aparente contradição através duma nuança terminológica:
289
7,146,27-33 (1520).
290
N. do T.: Arbí t ri o ou vont ade li vre.
Lutero estaria afirmando a servidão da vontade em função da liberdade da
consciência.
As seguintes observações preliminares mostram, entre tanto, que
apesar disso estamos lidando aqui com um conjunto de problemas de
muitas facetas e que ainda carece de aclaração: a tese de que a vontade
humana não é livre é, sem dúvida, em primeiro lugar uma afirmação
sobre a vontade do ser humano pecador, conforme Jo 8.34: "Quem
comete pecado é escravo do pecado." Mas Lutero não para nessa
afirmação de que a vontade humana estaria sob o domínio do pecado e,
nesse sentido, estaria escravizada. Ele progride para colocações
genéricas sobre a ne cessidade de tudo que acontece e, com vistas à livre
onipotência da vontade de Deus, afirma a impotência e servidão da
vontade humana. Pois '"livre vontade'", diz Lutero, é "um termo divino e
não cabe a ninguém a não ser unicamente à majestade divina, pois ela
pode e faz (...) tudo que quiser, nos céus e na terra." 291 Conceder ao ser
humano o atributo "livre vontade" significaria nada menos do que
atribuir-lhe a própria divindade: Por isso se deveria ter reservado esse
termo a Deus e ter usado um outro vocábulo em relação ao ser
humano 2 9 2 .
Essa coexistência de duas formas de defender a servidão da
vontade que, como parece, são radicalmente divergentes, cria a primeira
grande dificuldade na tentativa de compreender Lute ro. Poder-se-ia
achar — e houve quem o fizesse — que ele, no primeiro aspecto, de
acordo com a tendência específica da sua teologia, se tenha apegado ao
aspecto soteriológico, à questão da salvação do ser humano, situando-se
dentro do horizonte de pecado e graça, portanto, enquanto a inclusão do
outro aspecto seria um deslize para a especulação metafísica,
contrariando, portanto, a verdadeira intenção de Lutero. Só assim teria
nascido o problema principal em que ele se teria emaranhado; ou, ao
menos, só assim o problema principal tomaria uma forma sem esperança
291
18,636,28-30 (1525) = B oA 3,127,30-2.
18,636,30-637,4 (1525) = B oA 3,127,32-40.
18,781,6- 13 (1525) = BoA 3,285,25-33.
292
18,636,30-637,4 (1525) = B oA 3,127,32-40.
de solução, qual seja, como conciliar esse discurso a respeito da vontade
cativa com a necessidade de apelar à responsabilidade, à imputabilidade
e, com isso, à livre vontade do ser humano. E mais: Lutero parece
enredar-se numa contra dição ao aspecto fatual da liberdade de decisão,
que é, indiscuti velmente, objeto de nossa experiência.
Para orientar-nos naquilo que à primeira vista dá a im pressão de
incorrigível confusão, começamos com esta última observação,
indiscutivelmente sensata, que representa o baluarte e a ênfase moral de
toda defesa da livre vontade. O próprio Lutero não pretende negar os
fatos que são descritos com a experiência de liberdade psicológica da
vontade, ou seja, que eu me decida entre várias opções possíveis de
ação. Muito menos quer negar a responsabilidade moral do ser humano
por seus atos. Sem objeções, ele pode dar espaço a essas óbvias
manifestações da livre vontade, porque se localizam fora daquele hori -
zonte de discussão em que ele trata a questão da livre vontade.

Não estamos debatendo sobre a natureza, mas sobre a graça, e não


analisamos nossa constituição aqui na terra, mas como somos no
céu, diante de Deus. Sabemos muito bem que o ser humano foi
colocado como senhor sobre aquilo que está abaixo dele e sobre o
que ele tem o direito de dispor em livre vontade, de modo que
essas coisas lhe obedeçam e façam o que ele quer e pensa.
Contudo, nós perguntamos se diante de Deus ele tem livre
vontade, de modo que ele, Deus, obedeça e faça o que o ser
humano deseja, ou se, antes, não é Deus que tem livre vontade em
relação ao ser humano, de modo que este queira e faça o que Deus
quer e não possa outra coisa do que aquilo que aquele quis e
fez. 2 9 3

293
18,781,6-13 (1525) = B oA 3,285,25-33.
É bom notar: aqui não se faz uma separação perfeita entre duas
áreas. Na realidade é mais ou menos assim: no mundo, em relação às
coisas que estão subordinadas ao ser humano — e a isso, com alguma
restrição, pertence também a área da moral — em outras palavras: no
espaço de atividade da justiça civil, no horizonte das obras, o ser
humano pode exercer o poder da vontade. Tão logo, no entanto, o ser
humano for analisado em relação a Deus, torna-se absurdo falar de livre
vontade. É impossível que, diante de Deus, o ser humano possa
constituir-se em agente; aqui ele só pode ser considerado como quem
recebe, como quem é feito, como exposto ao juízo, como aceito ou
rejeitado. Mas essa existência do ser humano diante de Deus não é algo
ao lado e adicional a sua existência diante e dentro do mundo, e sim
aquilo que caracteriza sua existência no mundo, queira ou não. Se
colocarmos, portanto, as restrições de tal modo que digamos: vontade
livre o ser humano não teria com vistas ao que está acima dele, mas
apenas com vistas ao que está abaixo dele — e aqui como o direito de
usá-lo de acordo com sua livre decisão no âmbito de suas possibilidades
e posses, no fazer e deixar de fazer — ainda assim teremos que
acrescentar: "Apesar de que também isso é dirigido tão-somente pela
livre vontade de Deus, para onde for de seu agrado." 294
Que aquilo que fazemos e tudo que acontece seja, aos nossos
olhos, algo que também poderia ser diferente, acidental, portanto, e
livremente escolhido, só é a perspectiva que se nos oferece enquanto
Deus não for levado em consideração 295. É mera ilusão, que só existe
enquanto as coisas não forem refletidas diante de Deus. Todavia, essa
ilusão tem sua razão de ser na medida em que, dentro de certos limites,
se justifica e até pode ser necessário deixar a pergunta por Deus de lado,
por assim dizer, e voltar-se às próprias coisas, tais como as
encontramos. "Dentro de certos limites" significa aqui: na medida em
que se tratar de meras obras e não da existência pessoal do ser humano,
na medida em que a consciência abonada pela fé conce der direito e
294
18,638,8s. (1525) = B oA 3,129,4s.
295
18,615,31-3 (1525) = B oA 3,108,30-3.
liberdade para tanto. De fato, assim é, ainda que pareça estranho:
precisamente a fé, que reconhece a nulidade da livre vontade, libertando
assim a consciência, torna-a livre também para reconhecer a validade da
ilusão da livre vontade dentro dos limites que lhe são impostos. E é
precisamente a fé, que reconhece a Deus, que dá a liberdade de ignorar a
Deus duma maneira que corresponda a sua vontade e dentro de limites
por ele estabelecidos.
Não se deve pensar, entretanto, que a ilusão da livre vontade
esteja acima de quaisquer dúvidas. Já que se recorre à experiência, não
há como ignorar os muitos testemunhos e expressões da linguagem
cotidiana nos quais transparece a noção de predestinação e divina
presciência 296. De resto, dever-se-ia ponderar o caráter questionável do
termo "livre vontade". Por um lado, ele representa uma tautologia, na
medida em que não se visa nada mais que "vontade". Vontade, no
entanto, sempre é engajada, determinada por algo. Por isso a expressão
"livre vontade" é, por outro lado, uma contradição em si mesma, na
medida em que visa uma vontade ainda não decidida, ainda em processo
de decisão, de certa forma uma vontade que ainda não é vontade. Lutero
considera ser um raciocínio completamente abstrato falar duma vontade
"absoluta", isto é, desvinculada de qualquer determinação 297. Vontade
sempre já está decidida, engajada, comprometida, não uma vontade
neutra na condição de absoluta liberdade de escolha, urna concepção de
vontade completamente a-histórica. Em consequência — isso é extrema -
mente característico para o pensamento de Lutero — a pergunta pela
liberdade da vontade no fundo é a pergunta pelo poder da vontade. A
vontade só é livre na medida em que pode o que quer. "Não é possível
que saibas o que é livre vontade se não sabes do que a vontade humana é
capaz." 298 Por isso mesmo livre vontade é predicado de Deus, porque a

296
C f. 18,617,24- 618,18 (1525) = BoA 3,110,1-24.
297
C f. 18,669,20-6 (1525) = B oA 3,159,4-11.
298
18,614,39s. (1525) = BoA 3,107,31s.
vontade de Deus é eficiente e por nada obstruída, uma vez que é poder
essencialmente específico do próprio Deus 2 9 9 .
Isso esclarece em que medida a pergunta pela livre vonta de do ser
humano não é uma questão qualquer, mas a questão teológica por
excelência. A discordância de Erasmo e Lutero não está apenas na
avaliação da livre vontade, mas já na avalia ção da pergunta por ela.
Para Erasmo no fundo ela não passa duma pergunta supérflua,
especulativa, pouco piedosa. Ele não só acusa Lutero por causa do
conteúdo daquilo que este diz a respeito, mas também por causa do
próprio fato de assumir posição tão decidida frente ao assunto, uma vez
que, para Eras mo, se trataria de algo que não fica bem claro nas
Escrituras Sagradas e por isso não deveria ser pesquisado mais a fundo.
Supondo, evidentemente, a livre vontade, bastaria empenhar-se com
todas as forças e de resto confiar em Deus, cuja essência é a bondade.
Em formulações de extrema precisão Lutero retrucou:

Não é falta de piedade, curiosidade, nem supérfluo, mas a coisa


mais benfazeja e necessária para um cristão saber se a vontade
produz algo ou nada naquilo que diz respeito à salvação. Para que
saibas: aqui está o ponto crucial da nossa discussão, é disso que
trata essa contenda. Pois visamos examinar o que a livre vontade
pode, em que ela se porta de maneira passiva e como se relaciona
com a graça de Deus. Se não soubermos isso, não fazemos ideia
alguma das coisas cristãs e somos piores que todos os pagãos.
Quem não tem sensibilidade para isso, deveria admitir que não é
cristão. Mas quem desaprova ou despreza isso, saiba que é o pior
inimigo dós cristãos. Pois, se eu não souber qual, até onde e
quanto poder eu tenho e o que posso fazer em relação a Deus,
estarei igualmente às escuras e incerto quanto ao que, até onde e
quanto Deus pode fazer em relação a mim, sabendo que Deus tudo
faz em tudo. Ora, se desconheço as obras e o poder de Deus, não

299
18,615,33s. (1525) = BoA 3,108,33s.
conheço o próprio Deus. Entretanto, se não conheço Deus, não
posso honrá-lo, agradecer-lhe e servir-lhe, uma vez que não sei
quanto devo atribuir a mim e quanto a ele. E por isso que
precisamos duma distinção absolutamente con fiável entre o poder
de Deus e o nosso, entre a obra de Deus e a nossa, se quisermos
viver piedosamente. 300

A pergunta pelo que a vontade humana pode — que só está


formulada duma maneira radical se for perguntado o que a vontade pode
diante de Deus, e isso significa, diante da situa ção de fato do ser
humano: que pode a vontade do ser humano em prol de sua salvação —
acerta em cheio, é absolutamente necessária para a salvação, de modo
que se nega o evangelho, a fé cristã e até a Deus através da afirmação
da livre vontade no sentido do poder do ser humano de autodeterminar-
se para a salvação, em vez de deixar que Deus seja Deus, justamente
também com vistas ao motivo da perdição do ser humano, qual seja, sua
impotência em modificar a direção básica de sua vonta de. Que Deus,
imutavelmente, tudo faz e que não se pode resistir à sua vontade —
aceitar e apegar-se a isso é o único e maior consolo do cristão. Isso é fé.
O fato de que aqui não sobra espaço para uma livre vonta de
humana ainda neutra, mas que sempre, deste ou daquele mo do,
determinou-se a vontade humana, sendo a vontade humana vontade
dirigida desta ou daquela maneira— isso Lutero expres sou com extrema
precisão comparando a vontade humana com um animal de montaria:

Se Deus estiver montado, ele quer e vai para onde Deus quer (...).
Se o diabo estiver montado, ele quer e vai para onde o diabo quer,
e não está em seu poder decidir a qual cavaleiro quer dirigir-se ou
procurar, mas são os próprios cavaleiros que lutam para apoderar-
se dele. 301
300
18,614,1-16 (1525) = B oA 3,106,25-107,3.
301
18,635,18-22 (1525) = B oA 3,126,23-8.
V. aci m a, p. 153ss.
Já na escolástica se usava a comparação com cavalo e cavaleiro para
esclarecer o problema da livre vontade, mas aqui de tal maneira que se
analisava a cooperação da força natural da von tade e do poder orientador
e sobrenatural da graça que se asso ciava, de modo que o animal de
montaria, eventualmente, era considerado em sua ação independente em
relação ao cavaleiro ou até como agente livre, dependente apenas de si
mesmo.
Não entenderam nem um pouco a opinião de Lutero os que aqui o
acusaram de cair num dualismo e determinismo meta físico. A impressão
de dualismo, que nasce da justaposição e confrontação de Deus e Satã,
desaparece — ainda que a questão propriamente dita se torne tanto mais
palpitante e angustiante — se nos damos conta de que Satã nada mais é
do que a máscara da ausência de Deus e que, desta forma, em relação ao
próprio Deus, descortina-se o mistério da alternativa de sua ausência ou
presença; ou então, de forma mais incisiva ainda, para fazer justiça à
onipotência de Deus: que Deus está presente ou como ausente ou como
presente. Mesmo pospondo por ora as questões tocadas com isso, está
claro que as afirmações de Lutero só são passíveis duma interpretação
no sentido dum determinismo metafísico quando interpretadas no
esquema causai, que Lutero desconhece, e não com vistas à relação coram
que domina seu pensamento 3 6 . Nesse caso a onipotência de Deus não se
constitui em destruidor da vontade do ser humano em geral, mas naquilo
que, em última instância, determina desta ou daquela maneira a vontade
humana, permitindo, portanto, que seja vontade con creta. Concluir disso,
no entanto, que então tudo se tornaria indiferente, porque estaria
entregue à arbitrariedade divina, sig nificaria fugir da existência diante
da face de Deus, dada pela palavra da pregação, e contemplar a relação
de Deus e ser huma no da distância do espectador analista que assume
atitude julga dora. A afirmação de que, com vistas à vontade de Deus,
tudo que acontece, acontece imutável e necessariamente, não se pode
defender como afirmação teórica, mas só como confissão, isto é, na fé
como louvor a Deus, como afirmação de quem confessa que não tem
poder sobre si mesmo, mas deve a si e sua vontade à vontade de Deus.
Aqui se abrem profundas percepções da diferença entre a maneira
como Lutero fala do ser humano e de Deus e a maneira como a tradição
escolástica o faz. A escolástica — e com isso ela só representa uma
teologia que não se atém rigorosamente ao seu tema, o ser humano
culpado e perdido e Deus que justifica e salva, ao acontecimento assim
caracterizado entre Deus e o ser humano — baseia as colocações
teológicas, no que diz respei to ao ser humano, numa definição do ser
humano já pressuposta e não elaborada a partir do acontecimento entre
Deus e ser huma no 302. Ela afirma, em sua forma tradicional, que o ser
humano é o ser racional, e isso inclui, automaticamente, que ele é o ser
que tem livre vontade. A teologia escolástica está estrutu rada de tal
forma que não se pode mexer nesse pressuposto acima de qualquer
discussão. Só é possível partir dele, de modo que todas as afirmações
teológicas têm que orientar-se de acor do. Com isso, apesar da doutrina
da criação que é então obvia mente acrescentada, o ser humano é
colocado como, em princípio, independente diante de Deus e por isso
como alguém considerado como agente, como alguém que se decide
livremente diante de Deus. A relação Deus-ser humano se torna assim
uma equação de forças calculáveis, e a graça uma arrumação
sobrenatural e sobrelevação da natureza do ser humano. A doutrina da
graça é, consequentemente, uma doutrina do ser humano que — natural -
mente não sem graça, bem entendido até somente pela graça — pelos
seus atos vai se realizando em direção ao seu alvo definitivo, à bern-
aventurança. É uma forma muito razoável de pensar Deus e o ser humano
em conjunto, mas que só consegue ser convincente enquanto Deus e o
ser humano podem, cada um por si, ser considerados inquestionáveis e
enquanto sua rela ção mútua é definida a partir disso.
Mas como é que fica se o ser humano só consegue falar de Deus
quando e de tal maneira que ele, o ser humano, deixa de ser o

302
Sobre o que se segue, cf. 39/ 1,175,1-177,14 (1536).
pressuposto natural e indiscutível da teologia, pressu posto que não deve
ser questionado em sua liberdade? Quem é Deus então, quando o ser
humano não se pode contentar com a maneira como deve ser definido em
comparação com os ani mais, quando admite que Deus é quem o
determina e o define em todos os sentidos?
XIV
DEUS OCULTO E REVELADO

Tão pouco como a teologia pode ceder o ser humano como tema à
filosofia, para restringir-se a Deus como seu objeto, tão pouco pode
esperar que a filosofia desista de falar de Deus. Assim como ela tem que
prestar contas do que é o ser humano sob o prisma teológico, o homo
theologicus303, da mesma forma ela também não pode limitar-se a falar
genericamente de Deus, mas tem que refletir de maneira crítica sobre o
conhecimento teológico de Deus, por assim dizer sobre o Deus
theologicus304.
Lutero classificou a teologia que fala teologicamente de Deus e,
com isso, discorre teologicamente também sobre o ser humano, como
teologia da cruz, em distinção da teologia da glória, na qual se trata de
Deus e do ser humano de maneira pseudoteológica. Esses termos
theologia, respectivamente theologus crucis e gloriae, Lutero criou no ano de
1518, na discussão da indulgên cia 305. Ainda que não as tenha usado
constantemente como expres sões balizadoras, só recorrendo a elas
raramente 306, ele expressou nelas com precisão sua compreensão de
teologia. Pois, assim como afirma caracterizar com theologia gloriae a
intenção fundamental da teologia escolástica baseada na filosofia, ele
entende por theologia crucis não um tema parcial ou um tipo especial de
teologia, mas aquilo que é o critério e o lugar de verdadeira teologia:
"No Cristo crucificado é que estão a verdadeira teolo gia e o verdadeiro
conhecimento de Deus." 307 É verdade que a expressão "teologia da cruz"
faz pensar numa certa proximidade com a mística do sofrimento. E a

303
39/ 1,176,24 (1536).
304
40/ 11,327,11 (1532); 327,37 (1538).
305
1,354,17ss. (1518) = BoA 2 5,379,ls.; l ,361,31ss. (1518) = B oA 2 5,388,4ss.;
l ,613,21ss. (1518) = B oA 1,128,29ss.
306
Por exem pl o 40/ III,193,6s. (1532/ 33).
307
Obras selecionadas, v. 1, p. 50 (1518).
polêmica contra a desastrosa, nada espiritual concentração do interesse
na suspensão de casti go nos negócios da indulgência sugeriu a
lembrança da cruz como muito apropriada, quando ele tentou levar a
discussão para as questões fundamentais. Mesmo assim, theologia crucis
exprime mais do que um interesse momentâneo ou uma peculiari dade
exclusiva do jovem Lutero. Essa senha se torna indicação daquilo que se
lhe revelou como orientação básica permanente do raciocínio teológico.
O teólogo da cruz, diz ele, fala do Deus crucificado e oculto. Essa
seria então a caracterização de Deus como Deus theologicus: ele é o Deus
crucifixus e absconditus. Assim Lutero o formula, referindo-se à ideia e à
linguagem de 1 Co 1.18ss., onde Paulo qualifica suas próprias palavras
como discurso sobre o Cristo crucificado, sobre a oculta sabedoria de
Deus. Essa theologia crucis está em contradição ao conhecimento de Deus
dos pagãos — também caracterizado mediante recurso a Paulo (Rm 1.20)
— que tentam perceber a invisível essência de Deus, através da razão, a
partir das obras da criação. Aqui, onde se progride do visível para o
invisível, só se conhece o Deus gloriosus nas suas qualidades metafísicas
como o onipresente e onipotente, como o sumo bem e supremo objeto do
eros. A invisibilidade desse glorioso Deus, a qual eleva para esfera pu -
ramente espiritual, não deve ser confundida com a ocultação do Deus
vergonhosamente crucificado, que se aventurou à visi bilidade, à carne, à
história, ao sofrimento. Pois a invisibilidade do Deus gloriosus, evidente à
razão, é a glorificação do mundo. Seu conhecimento é sabedoria
presunçosa e obcecante, confir mação da pretensão humana de auto-
realizar-se em suas obras, em analogia ao princípio divino do mundo. A
ocultação do Deus crucificado, no entanto, tão escandalosa para a razão,
constitui- se, para aquele que crê, em fim de toda sabedoria e justiça
próprias, para que Deus possa agir. 308
O conhecimento de Deus em sua glória mundana-supra- mundana
sintoniza Deus e mundo, está praticamente determi nado pelo princípio
da conformação, da correspondência. O co nhecimento de Deus na cruz,
308
l ,613,23s. (1518) = BoA l ,128,32s.
porém, está sob o signo da contra dição. Apesar disso, não, precisamente
por causa disso não é aquele, mas apenas este último conhecimento que
corresponde à realidade. "O teólogo da glória" — assim Lutero o
formula, aludindo a Is 5.20 — "afirma ser bom o que é mau, e mau o que
é bom; o teólogo da cruz diz as coisas como elas são" 309, isto é, ele
tematiza verdadeiramente a realidade. Ele até traz à luz da verdade o
que, apesar de tudo, existe de verdadeiro naquele conhecimento de Deus
em sua glória e majestade. Aquela sabedoria não deve, tão pouco como a
lei, ser evitada como algo de mau. Como, afinal, não são as coisas em si
que são fúteis; elas se tornam fúteis e vãs pelo ser humano frívolo, que
delas faz uso fútil. "Sem a teologia da cruz (...) o ser humano faz
péssimo uso daquilo que há de melhor." 310 A teologia da cruz visa,
eminentemente, as "coisas práticas", a maneira correta de lidar com a
realidade 311. Ela leva para a experiência, é teologia existencial.

A afirmação de que a verdadeira teologia é "prática", enquanto a


teologia especulativa é coisa do diabo e do inferno 312, de maneira alguma
visa uma teologia das obras e da sobrelevação religiosa do ser humano,
mas a teologia da fé, porque da obra e da palavra de Deus, uma teologia
cuja "prática" é provação e que apenas assim e por isso é teologia da
certeza, na mais veemente contraposição à moderada theologia sceptica*313
de Erasmo 314. No caso de viver mais tempo, comentou Lutero uma vez à
mesa, ele gostaria de escrever um livro sobre as provações, pois sem
elas o ser humano não poderia entender nem as Escrituras Sagradas, nem
fé, temor e amor a Deus 315. Pois compreensão correta só é aquela que
resiste ao embate, como Lutero acentuou em inúmeras formulações
parecidas:

309
Obras selecionadas, v. 1, p. 39 (1518).
310
Ibid. (1518).
311
C f. 40/ III,193,6ss (1532/ 33).
312
WA TR 1,72,16- 21, n° 153 (1531/ 32) = B oA 8,25,14- 20.
313
N. do T.: Teol ogi a cét i ca.
314
C f. 18,613,24 (1525) = B oA 3,106,24.
315
WA TR 4,490,24- 6, n? 4777 (1530ss.).
Pela letra e pela história essas palavras são (...) de fácil com -
preensão (...) mas elas provocam tonturas quando for para experi -
mentar, degustar e trazê-las para a vida ou experiência; aí a
compreensão é muito elevada e se torna difícil. 316

Existe então, de fato, um conhecimento de Deus pela ra zão. Como


poderia o falar de Deus dizer respeito a todos os seres humanos e ter
caráter de rigoroso comprometimento, se não tratasse de algo que sempre
já está presente na humanidade do ser humano como aquilo que o
preocupa, que lhe dá o que fazer, que o questiona. Mas agora não pode
tratar-se duma adicional sobrelevação e consumação do conhecimento
natural de Deus, para transformá-lo em sobrenatural através da revela -
ção. Antes, a fé contradiz o raciocínio inspirado pelo desejo da razão,
cujo conhecimento de Deus significa ser desafiado a procurar por Deus
na escuridão.

(...) a razão não pode dar e atribuir o caráter divino a quem cabe
exclusivamente. Ela sabe que há Deus. Mas quem ou qual seria
esse que se chama apropriadamente Deus, ela não sabe. (. . .)
Desta maneira, a razão brinca de cabra cega com Deus e só erra e
nunca o agarra, ao chamar de Deus o que não é Deus, e não chamar
de Deus o que é Deus, coisa que ela não faria se não soubesse que
há Deus, ou então soubesse quem ou que é Deus. Por isso, ela leva
tantos tombos, concede nome e honra divinos e chama de Deus o
que lhe parece que o seja, mas não acerta nunca o verdadeiro Deus,
e sim sempre o diabo ou sua própria presunção, governada pelo
diabo. Por isso há uma grande diferença entre saber que há Deus e
saber que e quem é Deus. A primeira coisa a natureza sabe e está
escrita em todos os corações. A outra, só o Espírito Santo
ensina. 317

316
49,257,39s.,258,17-9 (1542).
317
19,206,31-3; 207,3-13 (1526).
Um tal conhecimento de Deus pela razão é a teologia mística e
especulativa do neoplatonismo, que ensina a penetrar nas trevas
interiores, ouvir a palavra incriada e nela se aprofun dar 318. Aqui,
portanto, se pretende encontrar Deus em sua própria divindade, Deus em
sua majestade, em total imediatez, como ser humano nu diante do Deus
nu 319. Mas Lutero sabe de expe riência própria o que isso na realidade
significa, se não ficar restrito à mera especulação: essa experiência de
Deus é o inferno 320.
Contudo, conhecimento de Deus pela razão não são ape nas essas
especulações altamente intelectuais sobre Deus em sua superior
majestade, mas, sem distinção, todas as formas de religião e sabedoria
do mundo. Em todas, Deus é o Deus da lei 321. Pois, por natureza, a
postura básica do ser humano em relação a Deus é esta: tornar Deus
previsível e disponível, prevenir-se ativamente frente ao perigo que ele
representa e forçar Deus a assumir o papel daquele que aprova tudo que
o ser humano faz 322.

Este é o supremo princípio do diabo e do mundo desde o começo:


não queremos aparecer como malfeitores, e o que fazemos Deus
tem que aprovar e todos os seus profetas devem abonar. Se não o
fizerem, que morram. Que pereça Abel e que viva Caim! Que isso
seja a nossa lei. E assim realmente acontece. 323

Por isso, era extrema coerência, o conhecimento de Deus pela


razão é exatamente ateísmo. Pois a razão não pode resistir à tentação do
poder e do absurdo do mal no mundo. "Vê, Deus guia esse mundo

318
C f. 56,299,27ss. (1515/ 16) = B oA 2 5,248,8ss.; 6,562,8ss. (1520) = B oA
1,499,17ss.
319
C f. 40/ 11,330,l s. (1532).
320
C f. l ,557,33ss. (1518) = B oA l ,57,5ss. V. aci m a, p. 29ss.
321
C f. 40/ 1,603,5ss. (1531).
322
C f. 40/ I,34,ll ss. (1531).
323
40/ 1,34,22-6 (1531).
material nas coisas externas de tal maneira que, considerando e
seguindo o juízo da razão humana, somos obrigados a dizer: ou não há
Deus, ou ele é injusto", quer dizer, ele mesmo é o mal. Essa impressão
da maldade de Deus, argu menta Lutero, tem o poder de tão terrível
evidência, há tantas provas para isso, que não há razão ou luz da
natureza que lhe possa resistir 324. Por isso também a concepção
pusilânime, irrealista do "querido Deus", cujo perdão é indiscutível 325,
dá no mesmo. A religiosidade racional e humanista de Erasmo chei ra a
epicurismo e ateísmo 326.
Na opinião de Lutero, o conhecimento de Deus pela razão domina
também o raciocínio teológico da escolástica, situação essa que teria
surgido através da penetração de vocábulos da física na teologia 327. "A
física, por natureza, lisonjeia a razão; a teologia, porém, tem seu lugar
muito acima da compreensão humana." 328 Sob o termo "física"
evidentemente não se deve en tender uma ciência natural na acepção
moderna, apesar de que, mutatis mutandis, podemos esclarecer o assunto
que Lutero visa aqui, abordando o problema da alienação da teologia e
das ciências morais em geral através de formas de raciocínio das
ciências naturais e sua subjacente concepção de realidade e verdade. Lu -
tero tem em mira a física aristotélica e a terminologia ontológica por ela
formada, com que a escolástica opera também na teolo gia. Disso faz
parte, e não por último, o próprio conceito de natureza, que se refere ao
que é real e ativo a partir de sua essência como seu princípio interior.

Quando na teologia se parte desse conceito de natureza para


formular o que temos a dizer da natureza de Deus e da natureza do ser
humano, resulta a seguinte estrutura de raciocí nio: em relação e em
distinção de tudo que existe, Deus deve ser considerado a causa original
por excelência, como causa sui329 e como causa prima330, e isto de tal forma
324
18,784,36-9; 785,12-4 (1525) = B oA 3,290,7- 10.27-9.
325
18,611,4 (1525) = B oA 3,104,26s.
326
18,605,27ss.; 611,7 (1525) = B oA 3,100,25ss.; 104,31.
327
39/ 1,229,22-4 (1537).
328
39/ 1,229,2-5 (1537).
329
N. do T.: C ausa de si m esm o.
330
N. do T.: C ausa pri m ei ra.
que Deus, em conso nância com o concomitante sentido teleológico do
conceito de causa aristotélico, venha a ser principium e finis, origem e
objetivo de sua atividade e de suas obras. O ser humano, como criatura
de Deus, naturalmente não é causa de si mesmo, mas causado; com
vistas à sua natureza, porém, ele é origem de suas obras. Nisso se
expressa o fato de ele ser imagem de Deus: assim como Deus, também o
ser humano, ainda que sob o signo de sua condição de criatura, é origem
de suas obras, fonte de ação contingente. De acordo com isso, três
coisas, inseparavelmente ligadas, são determinantes para a natureza do
ser humano: que ele dispõe de racionalidade, que possui livre vontade e
que ele é agente e se move e realiza, como agente, em direção ao seu
alvo.
Baseado nessa concepção da natureza humana, torna-se necessário
interpretar as colocações teológicas de tal forma que se encaixem nesse
conceito de natureza. Isso acontece de modo decisivo na doutrina da
graça, de tal forma que se preserva, como norma suprema, a livre
vontade do ser humano, bem como uma concepção da graça, ainda que
não como natureza, ao menos como sobrenatural, isto é, como um
equipamento superior visando o alvo sobrenatural do ser humano, como
algo que o habilita — numa forma análoga e aperfeiçoadora de sua
natureza — a existir em graça, a realizar graça, a produzir, em
decorrência da graça adquirida de modo habitual, obras meritórias que
correspondam ao alvo sobrenatural em direção ao qual o ser huma no se
move. E evidente que esse esquema sofre inúmeras diferen ciações e é
sutilmente refletido e protegido por todos os lados. Mas a estrutura
básica é que a doutrina da graça é embutida no quadro fornecido pela
compreensão do ser humano como natureza.
Como o próprio Deus, assim também o ser humano ini cialmente é
concebido pelo que é em si mesmo. Claro que está implícita nisso, desde
logo, a relação de Deus com o mundo e do ser humano com Deus, na
medida em que Deus é considerado ser não-criado e a pessoa humana ser
criado. No entanto, o que constitui a relação de Deus e ser humano além
daquela interpretada no esquema causai e o que Lutero classificava de
objeto único da teologia, ou seja, que se trata do ser humano culpado e
perdido e do Deus que justifica e salva, isto, no esque ma da escolástica,
só é tratado como segundo tema a partir da base anteriormente criada, na
qual Deus e ser humano estão definidos e classificados tanto no seu ser-
em-si— diferenciados, evidentemente, no sentido de ser absoluto e
relativo — como na sua relação causai, fundamentalmente isenta de
contradição. Não que não haja nada de certo nisso. Mas essa constatação
do aspecto fundamental acontece na ilusão duma verificação neutra,
como se o raciocínio teológico pudesse ignorar, inicial mente, a situação
de fato do ser humano perante Deus. E tudo que se segue está onerado
pela funesta hipoteca de que o que acontece entre Deus e ser humano tem
que se encaixar por um lado no esquema causai e, por outro, na
concepção da natureza do ser humano.
Os termos causa e natura, pertinentes dentro do seu hori zonte, se
tornam impertinentes como termos referenciais na teo logia, onde se trata
da responsabilidade do ser humano diante de Deus e da palavra de Deus
ao ser humano. Por isso, Lutero acha que, na escolástica, a teologia
perdeu a sua seriedade essen cial, tornando-se theologia illusoria, na qual ela
deixou de ser theologia crucis331. Pois Deus como causa sui, afinal, pode-se
deixar como está, desde que se consiga interpretar sua onipotência e
ação universal de tal modo que não se ameacem nem a bondade de Deus,
nem a livre vontade do ser humano e sua capacidade para atos
meritórios. É de se perguntar apenas se essa tendên cia básica da
escolástica não favorece uma errônea segurança religiosa, em vez de dar
a certeza que permita resistir na prova ção. A conclusão das 95 teses
referentes à questão da indulgência expressa, em relação a esse tema
especial, o que mais escanda lizou Lutero na teologia escolástica em
geral:

331
1,613,21-3 (1518) = B oA 1,128,29-32.
Obras selecionadas, v. 1, p. 29 (1517).
Fora, pois, com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo:
"Paz, paz!" sem que haja paz! (...) Que prosperem todos os
profetas que dizem ao povo de Cristo: "Cruz! cruz!" sem que haja
cruz! (...) Devem-se exortar os cristãos a que se esforcem por
seguir a Cristo, seu cabeça, através de penas, da morte e do
inferno; (...) e, assim, a que confiem que entrarão no céu antes
através de muitas tribulações do que pela segurança da (falsa)
paz. 2 7

O conhecimento de Deus revelado em Jesus Cristo, por tanto, não


diz respeito a um artigo doutrinário adicional ao conhecimento geral de
Deus, mas é a verdadeira chave para o autêntico conhecimento de Deus e
do ser humano. Está em rigorosa contradição às especulações sobre o
Deus nu, o Deus em sua majestade e nos remete ao Deus encarnado,
revestido de promissões, que se aproximou de nós, se comunicou a nós,
ao Deus revelado, não ao Deus do silêncio e que por isso nos emudece
na provação, mas à palavra de Deus, ao Deus procla mado, que concede
fé e dá certeza.

Vocês ouviram muitas vezes que nas Escrituras Sagradas é preciso


observar a norma de que nos abstenhamos das especulações sobre
a majestade de Deus. Para o corpo humano, mais ainda para o
espírito, tais especulações são insuportáveis. Assim, o papa, os
turcos e os entusiastas afastam Cristo dos olhos e colocam Deus
Pai no seu lugar, e falam com ele, rezam e louvam assim como
pensam os monges: assim vou agir, então ele o verá e, por causa
do meu voto, (será gracioso). Da mesma forma os turcos: se eu
cumprir isso, ele me verá (de modo gracioso). Os judeus também:
se cumprirmos \ lei de Moisés, Deus nos protege rá. De igual modo
o espírito sectário, cuja fé vai na mesma direção e que assim
carrega sua cruz. Todos eles eliminam o mediador. A teologia
cristã, porém, é do tipo que ensina a excluir o próprio Deus que os
entusiastas, os. turcos e o papa destacam — nós o eliminamos e
em seu lugar colocamos o mediador: não deves subir a Deus, mas
tens que começar onde ele começou — no ventre da mãe ele se
tornou ser humano — e não admitas o espírito de especulação. Se
queres estar seguro, sem que a tua consciência e o diabo te
coloquem em perigo, então simplesmente não deves conhecer
algum Deus fora deste ser humano e deves ater-te a sua
humanidade. (...) Nessa questão, ou seja, como lidar corn Deus e
em relação a ele, larga da especulação da majesta de. E na ação
contra pecado e morte larga de Deus porque aqui ele é
insuportável. (...) Larga-o e diz: Já estamos em outra, estamos
tratando da justificação e de como achar o Deus que justifica e
(nos) aceita. (...) Portanto, é isso que temos que visar, quando se
trata do tema da justiça e da graça, tão logo se tenha a ver, como é
o caso do cristão, com morte, pecado e lei: não se deve tomar
conhecimento de Deus algum, mas abraçar tão-so- mente o Deus
encarnado e humano (o deus incarnatus, o deus humanus). Paulo (...)
quer ensinar uma teologia cristã que não comece lá em cima, nas
máximas alturas, como todas as outras religiões, mas lá embaixo,
na maior profundeza. (...) Se te impor tas com tua salvação, então
larga de todas as ideias de lei, de todas as doutrinas filosóficas e
corre à manjedoura e ao colo da mãe e olha-o, o recém-nascido, o
adolescente, o moribundo. Então poderás fugir de todos os
horrores e equívocos. Esta visão te manterá no caminho certo. 332

E o mesmo, mais uma vez, na mais concisa formulação: "É coisa do


diabo procurar Deus fora de Jesus." 333
Mas esse mesmo Deus revelado e proclamado é, como diz a
theologia crucis, o Deus oculto, encoberto sob o contrário. A compreensão
da revelação como revelação sob o contrário caracteriza o pensamento

332
40/ 1,75,9-77,9; 78,3-6; 79,7-80,1 (1531). C f. 40/ 11,392,3ss. (1532).
333
40/ 111,337,11 (1532/ 33).
teológico de Lutero já na primeira preleção sobre Salmos e se mantém
até o fim. Um único exemplo de sua fase inicial:

Se Deus desse, sob a glória da carne, ao mesmo tempo glória do


espírito, sob a riqueza da carne, riqueza do espírito, sob bene -
volência e honra da carne ao mesmo tempo graça e honra do
espírito, então isso seria chamado, com toda a razão, de profunda -
mente oculto. Agora, porém, como ele o dá sob o contrário e o
símbolo contradiz o objeto designado, não só está profundamente
oculto, mas por demais profundamente. Pois quem reconheceria
que aquele que é visivelmente humilhado, tribulado, rejeitado e
morto, internamente é exaltado, consolado, aceito e vivificado ao
máximo, a não ser que seja ensinado pelo Espírito através da fé? 334

Mesmo que aqui, comparado com a teologia do Lutero amadure cido,


ruídos estranhos ainda se façam ouvir, o aspecto decisivo está claro:
pelo fato da revelação de Deus acontecer na cruz, tudo aqui depende da
palavra e da fé. Palavra e fé — esta é a característica da revelação
oculta sob o contrário.
No mesmo sentido, só que bem mais refletido, lê-se em "O arbítrio
cativo":

A fé trata (conforme Hb 11.1) de coisas que não se veem.


Portanto, para que haja espaço para a fé, tudo que é objeto da fé,
tem que ser ocultado. No entanto, não é ocultado mais do que sob
o aspecto, sentimento e experiência contrários. Assim, quando
Deus vivifica, ele o faz matando; quando justifica, fá-lo tornando
culpado; quando ergue para o céu, fá-lo conduzindo para o infer -
no. (...) Assim, Deus esconde sua eterna bondade e misericórdia
sob eterna ira, sua justiça sob injustiça. 335

334
4,82,14- 21 (1513/ 15).
335
1S ,633,7- 15 (1525) = BoA 3,124,16-26.
31/ 1,249,16-250,1 (1530).
Ou então, a mesma coisa mais uma vez na formulação prova velmente
mais emocionante:

Externamente, a graça parece ser pura ira, tão profundamente está


oculta, coberta com as duas grossas peles, quais sejam, que o
nosso adversário e o mundo a condenam e fogem dela como de
uma praga e ira de Deus, e que nós mesmos não sentimos outra
coisa em nós, de sorte que Pedro (2 Pe 1.19) diz com razão que só
a palavra nos reluz como que num lugar escuro. Isso mesmo, um
lugar escuro. Assim a fidelidade e verdade de Deus sempre tem
que tornar-se primeiro uma grande mentira, antes que se torne
verdade. Pois à vista do mundo ela se chama heresia. Da mesma
maneira a nós sempre parece que Deus nos quer abandonar e que
não manterá sua palavra, começando a tornar-se um mentiroso em
nosso coração. Em resumo: Deus não pode ser Deus sem primeiro
tornar-se diabo, e nós não podemos chegar ao céu sem primeiro ir
ao inferno, não podemos tornar-nos filhos de Deus sem primeiro
tornar-nos filhos do diabo. (...) Por outro lado, a mentira do
mundo não pode tornar-se mentira antes que se tenha tornado
verdade, os ímpios não vão ao inferno antes que tenham subido até
o céu e não se tornam filhos do diabo antes que tenham sido filhos
de Deus. 336
Em resumo, o diabo não se torna nem é diabo antes que tenha sido
Deus. (...) Por isso é usar termos elevados e é preciso muito
entendimento para dizer que a graça e a verdade de Deus ou então
sua bondade e fidelidade estão sobre nós e a cuidar de nós. (...)
Por um momento tenho que conceder divindade ao diabo e fazer
com que se atribua ao nosso Deus o caráter de diabo. Só que essa
não é a última palavra. No fim valerá: sua bondade e fidelidade
estão sobre nós (Sl 117.2). 337

336
31/ 1,249,16-250,1 (1530).
337
3I/ I,250,24s.28s.35-7 (1530).
Sob o signo dessa ocultação da revelação sob o contrário está tudo
o que Lutero diz sobre palavra e fé, justificação e nova vida, Espírito
Santo e Igreja. Mas é preciso precaver-se para não sucumbir ao impacto
emocional de tais afirmações ou rebelar-se contra elas sem entender a
verdadeira razão dessa maneira de falar, que de modo algum só admite
tais formulações paradoxais e à qual não se faz justiça nenhuma através
da êxtase do paradoxo.
Se quisermos caracterizar o raciocínio teológico de Lutero em
confronto com as peculiaridades do pensamento escolástico acima
esquematizadas, poderíamos afirmar, reportando-nos ao que foi dito
anteriormente: a determinante básica da sua reflexão teológica não é a
relação causai, que está sob o prisma da corres pondência, de modo que
se deve cuidar muito para que Deus, como prima causa, não se torne mero
princípio do mundo e para que a graça, como habitus sobrenatural
infundido, não se trans forme num princípio de ação humana. Pelo
contrário, a determi nante básica do pensamento teológico de Lutero é a
relação de foro da existência diante de Deus, em função da qual valem
ambas as coisas: que não se pode falar de Deus sem que se fale de sua
palavra, e que não se pode falar sobre Deus sem que isso aconteça diante
dele. Essa relação de foro está sob o signo da contradição e do contrário,
não numa antítese inflexí vel, mas na dinâmica da revelação sob o
contrário, que visa justamente a criação de verdadeira correspondência,
de modo que à palavra de Deus corresponda a fé, que atribui a Deus a
divindade.
Contudo, não se leva a sério a palavra de Deus como tal se ela não
vier a nós como nosso "adversário", não só como lei, mas
verdadeiramente como evangelho, isto é, como palavra que efetua em
nós o contrário do que somos. Como palavra do Criador, cria do nada.
Como palavra da lei, destrói a justiça própria e a autoafirmação diante
de Deus. Como palavra do evangelho, declara justo o pecador. "Quando a
palavra de Deus vem, ela colide com nossa maneira de pensar e com os
nossos desejos." 338 Quer dizer: Deus só é Deus onde ele chega a operar
como Deus; onde Deus faz o que somente Deus pode fazer. Onde Deus
promove a sua obra em sua necessidade e, por isso mesmo, em sua
liberdade.
Se desse modo o Deus theologicus é o Deus que faz mila gres não
apenas aqui ou ali, mas em tudo que faz, então o ser humano na teologia,
o homo theologicus, só está bem definido se é compreendido como a obra
maravilhosa de Deus, como a criatura de Deus que ele não abandona
apesar de sua impiedade. "Em Rm 3.28: 'Concluímos, pois, que o ser
humano é justifi cado pela fé, sem obras', Paulo resume a definição do
ser humano, ou seja, que o ser humano é justificado pela fé." 339 Não a sua
differentia specifica — que o distingue dos outros seres — mas a ação de
Deus — que no processo da justificação distingue o ser humano do
próprio ser humano e que faz com que o ser humano desta vida seja a
matéria para a sua própria existência futura 340 — é que define o ser
humano. Sua definição não consiste numa tese doutrinária mas num
acontecimento que perdura en quanto durar essa vida e perdurar,
portanto, o acontecimento da justificação do pecador.
Entretanto, o aspecto mais assombroso no pensamento teológico de
Lutero provavelmente seja o seguinte: a diferen ciação entre o Deus da
majestade e o Deus crucificado, entre o Deus nu e o Deus encarnado,
entre o próprio Deus, que perma nece oculto para nós, e a palavra de
Deus, à qual temos que nos apegar, não o seduziu no sentido de se
dedicar a um, sem saber do outro, de abraçar um, sem se saber atingido
pelo outro. Em outras palavras: Lutero não bateu em retirada para uma
religiosidade que venera Deus num cantinho, fazendo dele um ídolo da
casa e do coração, sem ousar confessá-lo como Senhor do mundo. Teria
sido tão fácil deixar que a teologia da cruz se transformasse numa
silenciosa religiosidade reservada, que venerasse Jesus e vivesse em seu
espírito, sem ligá-lo, no entan to, ao Deus que nos está totalmente

338
56,423,19s. (1515/ 16).
339
39/ 1,176,33-5 (1536).
340
39/ 1,177,3s. (1536).
subtraído, que nos é total mente incompreensível, que com sua
onipotência opera tudo em tudo e que na sua presciência, como aquele
que é pura vontade, tudo preestabelece.
Em sua obra "O arbítrio cativo", Lutero compreensivelmente
chama este Deus da onipotência que nos está subtraído, sem o qual não
acontece nada do que acontece e através do qual tudo acontece de acordo
com a sua vontade, de Deus absconditus, de Deus oculto, em distinção do
Deus revelado e pregado. E ele o faz em aparente contradição à
terminologia da teologia da cruz, para a qual precisamente o Deus
revelado e crucificado está oculto sob o contrário. Haveria contradição
aqui? Não quando se reconhece como correto que a ocultação em que o
Crucificado é o Deus revelado, é ocultação desejada por Deus e causada
por ele, de maneira que a própria ocultação é Deus e que o Deus
revelado só pode ser crido contra o Deus oculto, que só se pode crer em
Deus contra Deus, e que, por isso, Deus tem que ser crido, no sentido
mais rigoroso, como Deus. A contra dição entre as duas linhas de
raciocínio: que, por um lado, o próprio Deus revelado é o oculto e que,
por outro, o Deus revela do é distinguido do oculto — essa contradição
se resolve no fato de que Lutero, por causa da divindade de Deus,
sustenta e mantém essa contradição entre o Deus em Jesus Cristo e o
Deus da onipotência e onisciência, entre a fé e a experiência no mundo,
até o extremo. Se Deus não fosse entendido como aquele que, na
qualidade de todo-poderoso, em última análise age até nos ímpios e no
diabo 341, não teria sido levado a sério como Deus, seria um Deus
ridículo 342.
Será que só resta a alternativa entre um Deus ridículo e um Deus
terrível, entre um Deus impotente e um Deus de incompreensível
onipotência? Jesus, o Crucificado, nos revela Deus como o onipotente na
impotência para que creiamos e só assim faz com que Deus seja
realmente Deus para nós. Pois fé e Deus são inseparáveis. Quem poderia
dizer: Agora entendi tudo? O último apon tamento de Lutero, anotado
341
18,710,l ss. (1525) = B oA 3,204,32ss.
342
18,718,15-20 (1525) = B oA 3,213,35-41.
dois dias antes de sua morte, diz: "Ninguém pode entender Virgílio em
suas Bucólicas e Geórgicas, a não ser que tenha sido pastor ou agricultor
por cinco anos.
Ninguém vai entender Cícero em suas cartas — eu ao me nos sinto
assim — a não ser que tenha passado 40 anos num Estado insigne.
Ninguém pense ter entendido sequer de longe os autores das Escrituras
Sagradas, a não ser que por um século tenha, em companhia dos profetas,
presidido as comunidades. Por isso João Batista, Cristo e os apóstolos
representam um enorme mila gre." Aí segue-se uma citação do poeta
latino Estácio: "Não atentes contra essa divina Eneida, mas curva-te e
venera os rastros." Então o apontamento encerra com aquela palavra de
Lutero que conhecemos como sua última, por assim dizer o lega do do
antigo monge mendicante, que compreendeu mais das coi sas da teologia
do que nós e assim mesmo confessa: "Somos mendigos; essa é a
verdade." 343

343
48,241,2ss. (16.2.1546).
COMO LUTERO FALA DE DEUS

Há algo de provocativo na maneira de Lutero falar de Deus. Não é


possível analisá-la sem que sejamos questionados em nosso próprio
modo de falar, de balbuciar ou de silenciar a respeito de Deus. Isso
indica que seu discurso sobre Deus é extraordinariamente pertinente e
permite-nos um envolvimento semelhante. Assim como toda reflexão
sobre fatos históricos de alguma forma inclui o envolvimento próprio,
não podendo nem devendo ser "puramente histórica" — da mesma forma
as afirmações sobre Deus transmitidas até nós, quanto mais perti nentes
forem, tanto menos podem ser reduzidas à "análise mera mente histórica".
Pois falar de Deus visa essencialmente atuali dade, mesmo a mensagem
"Deus está morto", termos em que Nietzsche proclama a presença do
Deus morto: "Não cheiramos nada ainda da divina decomposição?" 344
Numa época em que ficou extremamente problemático fa lar de
Deus de forma responsável, tem que ter um efeito desafia dor a maneira
decisiva como Lutero falou de Deus — decisiva porém não leviana, mas
com a máxima disposição de assumir responsabilidade, e mesmo assim
com uma certeza para a qual o nosso problema, o de como falar
responsavelmente de Deus, parece totalmente estranho.
Poderíamos tentar explicar isso a partir das transfor mações
históricas que as questões pacíficas de antanho sofre ram. Lutero viveu
numa época — assim haveria de se argumentar — para a qual a palavra
"Deus" era perfeitamente compreensível e para a qual a pretensão a ela
inerente e com isso o direito de falar de Deus era pacífico. Apesar disso
— a rigor só por causa disso — o falar de Deus pôde tornar-se tão
controvertido, que praticamente todas as outras controvérsias da época
foram atraídas e envolvidas nessa disputa que dizia respeito a Deus,
como aconteceu nas contendas confessionais. O pressuposto co mum era a
existência pacífica de Deus e, além disso, a aceitação praticamente
344
Frõliliche Wissenscliaft, p. 125.
inquestionada do Deus triúno, bem como da encarnação do Filho de Deus
de acordo com o testemunho das Sagra das Escrituras e da Igreja. No
entanto, baseado nisso nasceu um conflito que a cristandade ocidental
ainda hoje não pode considerar resolvido. Mesmo assim, a situação se
modificou substancialmente na medida em que a aceitação pacífica da
validade do conceito de Deus — não só do cristianismo, mas do conceito
em geral — está definitiva e irreversivelmente perdida.
Claro que se fariam necessárias algumas diferenciações, para não
argumentar de maneira excessivamente grosseira com o caráter pacífico
do conceito de Deus naqueles tempos e a perda disso hoje. Mas isso nada
mudaria no que vem ao caso: naquela época não só a opinião pública,
mas também a teologia partia deste consenso, "contava" de certa maneira
com isso. A escolástica arrolava a aceitação da existência de Deus entre
os chamados praeambula fidei345, coisas que, ao menos em sentido estri to,
não são objeto da fé porque são acessíveis já ao conhecimento natural da
razão. Até Lutero podia, se bem que não com essa classificação
dogmática de praeambulum fidei, atribuir a todos os seres humanos por
natureza, respectivamente com base numa tradição geral dificilmente
distinguível disso, conhecimento de Deus, isto é, noção de sua
experiência, mas não de sua vontade. A moderna teologia evangélica, de
Schleiermacher a Karl Barth, tentou, com crescente radicalidade,
paralelamente ao desapareci mento fatual daquela concepção pacífica,
eliminar apropria ideia duma teologia natural, sem que as consequências
daí resultantes já estivessem suficientemente meditadas.
Contudo, não é possível equiparar ou mesmo confundir as duas
coisas: a pacífica aceitação da existência de Deus, mesmo com as
eventuais restrições a fazer, e a maneira decidida de Lutero falar de
Deus, que não só constitui um desafio para os seres humanos de hoje,
mas já o foi para Erasmo, e se destaca diante da tradição escolástica.
Esta posição decidida visa justa mente o que não é natural, na medida em
que se toma a palavra "natural" no sentido trivial de algo que por si se

345
N. do T.: P reâm bul os da fé.
impõe à razão, algo, portanto, sobre o que é supérfluo falar, por ser mero
desperdício de palavras. O não-natural visado pela decidida manifestação de Lutero
sobre Deus não é qualquer coisa, mas tão- somente aquilo que pode ser dito de Deus e,
por isso, tão-somente a partir de Deus, aquilo que só através dele pode ser tornado
compreensível e só assim, num sentido profundo, é algo natural, que se explica por si
mesmo. Mas isso tem que ser externado, confessado e afirmado com palavras. É algo
que fica na dependência de ser dito e por isso está sob um prisma duplo: é preciso que
seja dito de maneira decidida, porque só pode ser dito; e pode ser dito de maneira
decidida.
E decorrência do próprio objeto o fato de que aqui a atenção se volta
tanto para a maneira de falar e com isso para a situação do falar. Não
podemos atribuir isso ao temperamento ou carisma de Lutero. Só não
podemos ignorar a sua pessoa na medida em que coube a ele afirmar essa
percepção básica com a devida ênfase: de Deus só se pode falar em termos
de decidida afirmação. Erasmo havia se chocado com o estilo assertório de
Lutero. Lutero o repreende:

Não faz o gênero dum coração cristão não ter prazer em afirmações decididas;
pelo contrário: é preciso que se tenha prazer nisso, ou não se é cristão. (...) Que
fiquem longe de nós, cristãos, os céticos e acadêmicos; que sejam bem-vindos,
no entanto, aqueles que, com o dobro da obstinação dos estoicos, defendem sua
causa com decisão. Por favor, quantas vezes o apóstolo Paulo insiste nesse
pleroforia, isto é, na afirmação mais certa e inabalável para a consciência? (...)
Entre os cristãos, não há nada mais conhecido e familiar do que a afirmação
categórica. Elimina as afirmações categóricas e terás eliminado o cristianismo.
(...) O Espírito Santo não é um cético e não escreveu algo de duvidoso ou
(meras) opiniões em nossos corações, mas afirmações categóricas que são mais
convincentes e certas do que a própria vida e toda experiência.346

Essas colocações sobre o modo adequado de falar de Deus


evidentemente extrapolam em muito a mera afirmação da existência de Deus.

346
18,603,10-2.22-4.28s.; 605,32-4 (1525) = BoA 3,97,31-3; 98,6-9.13-5,100,31-3.
Por um lado se estendem ao todo da doutrina cristã, por outro deixam
transparecer como a existência do ser humano está incluída e envolvida nisso.
Contudo, não se faria justiça a Lutero afirmando: é nessas duas direções que
ele complementa a afirmação básica da existência de Deus. Pelo contrá -
rio, aquilo que, como diversidade, parece encontrar-se aqui, é uma coisa
só. Não se estaria falando de Deus se não estivessem incluídos o todo da
doutrina cristã e o próprio ser humano, no sentido de que tanto na
doutrina cristã como na existência do ser humano não se trata de outra
coisa do que da afirmação básica da existência de Deus.
O modo de Lutero falar de Deus — isso explica aquele caráter
decidido — tem tanto uma tendência de abrangente inclu são como uma
de radical exclusão. A última sabidamente está fixada, qual fórmula, na
chamada partícula exclusiva, na palavri nha "somente", que reaparece nos
principais pontos das questões teológicas sempre com o mesmo objetivo
de especificar a correta compreensão teológica: "Somente Deus,
"somente Cristo", "so mente a Escritura", "somente a palavra", "somente
a fé". É bem verdade que em cada caso de aplicação o sentido exato da
partícula exclusiva carece de explicação especial. Um fervor
confessional irrefletido, obstinadas afirmações carentes de com preensão
seriam completamente inadequados a essa orientação de raciocínio
teológico. Há de se reconhecer, no entanto: apesar e mesmo dentro da
diversidade de aplicações, este "somente", sempre de novo acrescentado,
revela a posição teológica básica: que em todo falar de Deus se destaque
que se está falando de Deus. Se é para falar de Deus, então, por amor de
Deus, devemos ater-nos somente a Deus, somente a Cristo, somente à
Escritura, somente à palavra, somente à fé, isto é: então ex cluamos tudo
que não deixa que Deus seja Deus e que por isso dá oportunidade de
falar de questões teológicas em termos não- teológicos,
pseudoteológicos.
Esta tendência exclusivista, que concentra tudo num ponto só, não
deve ser limitada e compensada — isso seria absurdo por uma tendência
oposta de abrangente inclusão. Pelo contrá rio, o sentido da partícula
excludente é justamente: em vez de isolar um aspecto, visar o todo.
Junto com a senha "somente" não é menos característica para o
pensamento teológico de Lute ro a outra senha — que aparentemente
contradiz a primeira, mas, numa análise melhor, está rigorosamente
associada a ela – o "ao mesmo tempo", que igualmente é usado nos mais
diversos sentidos, o mais conhecido dos quais é a fórmula "justo e
pecador ao mesmo tempo". Consequentemente, poderíamos chamá-la de
partícula inclusiva, que não abranda o sentido da partícula exclusiva, mas a
torna mais precisa através de esclarecimento.
Dificilmente se poderá contestar que no uso da palavrinha
"somente" se manifesta a peculiaridade e com isso também o caráter
peremptório do discurso de Lutero sobre Deus. A partir daí, a
capacidade de conjugar tudo numa coisa só revela outra particularidade
de seu discurso de Deus. Em vez de provocar o esfacelamento do
conteúdo da doutrina cristã numa plurali dade cuja unidade é mantida
apenas positivisticamente, Lutero revela o vigor do pensamento
sistemático — que tantas vezes e tão bobamente não lhe foi reconhecido
— não na arquitetura somatória e harmonizadora dum esquema
doutrinário, também não no desenvolvimento especulativo de certos
pensamentos a partir dum princípio, mas na circunstância de reafirmar a
divindade de Deus nos textos bíblicos de maneira crítica e libertadora. E
total equívoco ver na concentração do pensamento teológico de Lutero
na doutrina da justificação uma arbitrária opção por um aspecto
doutrinário, com a agravante duma suposta acentua ção obstinada. De
acordo com Lutero, ela é a baliza que indica como no todo da doutrina
cristã a divindade de Deus deve preva lecer. Pois no conjunto da doutrina
cristã não se trata de muitas coisas acrescidas à mera doutrina de Deus,
mas de doutrina de Deus e nada mais. A doutrina cristã é instrução para
se falar corretamente de Deus.
Isso já esclarece então que, e em que medida, quando se fala de
Deus, o ser humano está implicado e não tem que ser acrescentado ainda,
e que tampouco o discurso de Deus pri meiro tem que ser aplicado ao ser
humano. Falar de Deus signifi ca, como tal, interpelar o ser humano. Pois
como se poderia falar de Deus sem que ele dissesse respeito ao ser
humano radicalmente? Mas, se a certeza faz parte do discurso sobre
Deus, então esse discurso é, como interpelação, certeza que torna certas
as pessoas. Isso não é um aspecto formal, além do conteúdo do discurso
sobre Deus, nem tampouco um aspecto parcial da questão de em que
medida Deus diz respeito ao ser humano. Para Lutero, pelo contrário,
certeza é a essência da presença de Deus junto ao ser humano e por isso
da do ser humano junto a Deus. Na presença de Deus, e tão-somente ali,
não há incerteza. Incerteza, porém, é o pecado do ser humano, certeza a
sua salvação.
Partimos da constatação do caráter peremptório do dis curso de
Lutero referente a Deus; a partir daí clareou- se o amplo horizonte desse
discurso, ao mesmo tempo que tudo se revelava concentrado numa coisa
só. Isso justifica a expectativa de encon trar no discurso referente a Deus
o todo da teologia de Lu tero. Mais ainda: possibilita compreender seu
discurso refe rente a Deus a partir de um único aspecto. E finalmente até:
ao penetrar assim no centro de sua fala de Deus, poderíamos, apesar da
situação modificada, esperar de Lutero auxílio para o nosso problema:
como falar responsavelmente de Deus. Já como estudante de Teologia de
25 anos, Lutero só admitia como teologia legítima aquela que
pesquisasse o albume da noz, o miolo do trigo e o tutano dos ossos 3 4 7 .
O fato de termos partido do caráter decidido do discurso de Deus
de Lutero em si já nos levou ao albume da noz. Falta apenas uma
conceituação mais precisa e penetrante para obter a fórmula básica, por
assim dizer, a partir da qual se pode compreender e desenvolver o falar
de Deus como um falar res ponsável. A fórmula básica é: Deus e fé são
inseparáveis. Ela decorre da tendência global da teologia de Lutero e
dispensaria uma demonstração pormenorizada. Mesmo assim, vamos
exemplificá-la num determinado texto que, pela sua destinação, tem peso
muito especial e deve ter sido formulado com extremo cuidado. Ele pode

347
WA Br 1,17, n: 5, 43s. (17.3.1509). V. acima, p. 61s.
desencadear nosso desenvolvimento daquela fórmula básica. Pois nosso
interesse, daqui em diante, no discur so de Deus de Lutero não consistirá
em nada mais do que na reflexão sobre esta fórmula básica: em que
sentido a conjugação de Deus e fé nos revela o que significa Deus.
O texto é do Catecismo Maior e se encontra no início da
explicação do primeiro mandamento:

"Não terás outros deuses." Isto é: considerarás somente a mim


como teu Deus. Que significa isso e como se deve entendê-lo? Que
significa ter um Deus, ou, que é Deus? Resposta: Deus designa
aquilo de que se deve esperar todo o bem e em que devemos
refugiar-nos em toda apertura. Portanto, ter um Deus outra coisa
não é senão confiar e crer nele de coração. Repetidas vezes já
disse que apenas o confiar e crer de coração faz tanto Deus como
ídolo. Se é verdadeira a fé e a confiança, verdadeiro também é o
teu Deus. Inversamente, onde a confiança é falsa e errônea, aí
também não está o Deus verdadeiro. Fé e Deus não se podem
divorciar. Aquilo, pois, a que prendes o coração e te confias, isso,
digo, é propriamente o teu Deus. 348

Vamos admitir logo quão perigoso é este texto. Se inicial mente,


diante do caráter categórico do discurso de Lutero sobre Deus, tínhamos
a impressão duma enorme distância em relação ao espírito da era
moderna, aqui Lutero parece estar inquietantemente próximo dele.
Poder-se-ia pensar, quase, estar ouvindo Ludwig Feuerbach: Deus como
projeção e produto do ser huma no, enfim, como a essência do ser
humano; transformação e dissolução da teologia em antropologia! Essa
referência é confirmada por fatos comprováveis. Feuerbach, inicialmente
também teólogo, conhecia bem os escritos de Lutero e, para tornar mais
compreensível sua obra Wesen des Christentums*349, publicou uma pesquisa

348
30/ 1,132,32-133,8 (1529) = B oA 4,4,21- 32.
349
N. do T.: Essênci a do cri st i ani sm o.
intitulada Das Wesen des Claubens im Sinn Lutliers**350 (1844). Não que
tivesse omitido, simplesmente, a discre pância:

Nenhuma doutrina religiosa afronta mais, de plena consciência e


vontade, a razão, maneira de pensar e o sentimento do ser humano
do que a luterana. Portanto, nenhuma parece refutar me lhor do que
ela a ideia básica de Wesen des Christentums, nenhuma parece provar
melhor a origem extra e sobre-humana de seu con teúdo; pois,
como é que o ser humano, por si, poderia chegar a uma doutrina
que o degrada e avilta profundamente, que lhe nega radicalmente
— ao menos diante de Deus, isto é, na instância máxima, mas por
isso mesmo a única realmente decisiva — qualquer honra, mérito,
virtude, força de vontade, validade e credibilidade, razão e
compreensão? Assim parece; mas a aparência ainda não é a
essência. 351

Feuerbach acha que, precisamente em sua contradição a Lutero, pode


invocar o próprio Lutero, ou seja, as verdadeiras consequências de suas
ideias básicas.
O susto sobre a tese de Feuerbach de que o segredo da teologia
seria a antropologia, penetrou fundo nos teólogos. Por isso, sua
autoavaliação em defesa contra as tendências desagregadoras do
psicologismo e historicismo da era moderna aconte ceu sob o signo da
guinada duma teologia antropocêntrica para uma teocêntrica.
Especialmente Karl Barth lutou contra qual quer, mesmo a mais
abscôndita, autotransformação da teologia em antropologia — com toda
a razão, enquanto o adver sário implicava realmente o abandono do tema
teológico no sen tido da partícula exclusiva "somente", característica da
Reforma. Ao menos em parte sob o impacto da interpretação dos textos

350
N. do T.: A essênci a da fé de acordo com Lut ero.
351
Sâmtliche Werke.ed. por W. B ol i n e F ri Jodl , VII (1903), p. 311.
de Lutero por Feuerbach, Barth começou a desconfiar de Lutero 352 e, em
todo caso, viu-se forçado a buscar o embasa mento metodológico de sua
dogmática não em Lutero, mas em Anselmo de Cantuária, a fim de
recuperar as bases da objetivi dade para a teologia.
É preciso indicar, ao menos, que disputadíssimo chão nós pisamos
quando, guiados pela sentença de Lutero: "fé e Deus são inseparáveis",
tentamos penetrar mais profundamente no senti do de seu discurso
referente a Deus. Não podemos transformar em tema nosso o diálogo
com Feuerbach e Barth. Temos que contentar-nos com um mero esboço
daquilo que este insepa rável relacionamento de Deus e fé implica,
atendo-nos a três tópicos. Que Deus é, fica explicitado por aquela
fórmula básica no sentido de "Deus somente", "somente pela fé",
"somente pela palavra".
1. Exatamente ali onde Lutero insiste com máximo rigor no "Deus
somente", na explicação do primeiro mandamento, apa rece essa
conjugação suspeita de Deus e fé. E ali onde tudo deveria estar voltado
exclusivamente para o aspecto da autori dade e da obediência
incondicional, Lutero, despreocupado com o suposto caráter evidente do
termo "Deus", insiste na questão da compreensão: "Que significa isso e
como se deve entendê-lo? Que significa ter um Deus, ou, que é Deus?"
De imediato, pode parecer estranho que aqui ele misture as perguntas
pelo ter Deus e pelo ser de Deus, procurando respondê-las em conjun to.
Será que não é. preciso esclarecer primeiro o que Deus é, antes que se
possa tratar do que significa ter Deus? A existência de Deus não teria que
ser pacífica e estar esclarecida antes do "deixar ser Deus"? Não é a
definição básica da essência de Deus que nada o precede, que ele não
está condicionado por nada, que só ele é a origem de todas as coisas, que
ele, como o expressa o termo técnico "aseidade", é o ser que existe por
si mesmo?
Seria absurdo atribuir a Lutero a revogação ou um abran damento
desse pensamento, ou seja, interpretar a sentença "que apenas o confiar e
352
K. B AR TH, Ludwi g F euerbach (1926), i n: Die Theologie und die Kirche, 1928, p. 212-
39, especi al m ent e p. 230s.
crer de coração faz tanto Deus como ídolo" de tal modo que o ser
humano se torne criador e Deus criatura. Mas, para sustentar com todo o
rigor que ser Deus e ser Criador, ser ser humano e ser criatura são
idênticos, não basta a mera ideia da aseidade de Deus. Ela não está
suficientemente refletida enquanto se ignorar que o ser humano está
envolvido, ao pensar e formulá-la. Não que isso justificasse a
precipitada conclusão de que isso implicaria uma dependência de Deus
em relação ao ser humano e que com isso a afirmação da divina aseidade
seria uma contradição lógica. Entretanto, a própria ideia da asei dade de
Deus visa expressar o que é realmente a criatura e o que, de fato, é o ser
humano. Sem essa intenção simplesmente não restaria nada da ideia da
aseidade. Justamente a ênfase na independência de Deus em relação ao
ser humano tem o ser humano como destinatário.
As ressalvas contra tais colocações metafísicas sobre a essência de
Deus não visam tanto o que elas dizem, mas sobre tudo aquilo que, em
decorrência duma deficiente doutrina da compreensão, duma má
hermenêutica, elas ocultam, ou seja, o que implica para aquilo que se diz o
fato de ser dito. Não se leva em conta que o pensador metafísico não está
flutuando numa terra de ninguém entre Deus e o mundo. Como pessoa
atingida por aquilo que pensa e considerando que está falando aos
semelhantes, ele deveria refletir sobre o sentido da afirma ção sobre a
aseidade de Deus concretamente com vistas a esse processo de falar. A
ideia abstrata da aseidade de Deus de fato é uma contradição em si
mesma, porque depende da abstrata independência do ser humano que
procede à abstração. Não cabe analisar aqui se a metafísica padece
essencialmente dessa herme nêutica míope. Deveria estar claro, em todo
caso, que a pergunta "Que é Deus?" não está mal direcionada, mas
dirigida na única direção correta quando Deus é tematizado e
compreendido como aquilo que diz respeito em termos absolutos ao ser
humano e por isso também com vistas à maneira como ele diz respeito
em termos absolutos ao ser humano.
Não se trata, portanto, duma prova da existência de Deus que, ao
menos nos termos usuais, contradiz de modo extremo a divindade de
Deus, mas duma indicação daquilo em relação a que o ser humano é
interpelado quando se fala de Deus. Não se pretende derivar o ser de Deus
do ser da pessoa humana, mas levar o ser humano à situação de poder
entender o discurso a respeito de Deus: não para uma situação que lhe
fosse essencialmente estranha — o discurso de Deus, nesse caso, seria
fantasia sem nexo — mas para uma situação que lhe diz respeito de
forma decisiva e na qual ele já se encontra desde sempre.
A palavra "fé" aponta para essa situação básica do ser humano. A
afirmação de que fé e Deus são inseparáveis estaria explicada de modo
pelo menos insuficiente, se não até errôneo, se quiséssemos dizer que o
fato de Deus não poder ser visto e experimentado constitui a razão pela
qual teríamos que recor rer à fé como uma espécie de substitutivo. Nesse
caso não ficaria esclarecido por que, afinal, se deveria e poderia fazer
isso e onde esta fé, entendida como substitutivo do conhecimento, se
enquadraria necessariamente.
Analisando isso, constata-se: só se pode entender em que medida a
fé implica conhecimento — não naquele sentido pejora tivo de incertas
suposições, de conjeturas de probabilidade, mas de certeza inabalável —
a partir da situação em que o ser humano depende de certeza. Lutero diz,
com simplicidade: "em todas as aflições". De acordo com isso, fé tem o
caráter dum conhecimento que ajuda, salva, anima, concede esperança,
afasta a aflição. Em consequência, o discurso sobre Deus interpela o ser
humano no sentido de que lhe cabe esperar, que lhe diz respeito o que é
vindouro como algo que não está sob seu controle, de modo que o ser
humano sempre se adianta a si mesmo e não dispõe de si. Ele não pode
deixar de efetuar essa arrancada para a frente, essa certificação do
incerto, ou seja, como Lutero o formula, de prender o coração nalguma
coisa, fixar-se em algo, confiar e acreditar. Esta situação sempre existe.
Por isso, é a situação básica do ser humano, ainda que ocorra nos mais
diversos graus de evidência e tangibilidade. Não vamos entrar em
análises detalhadas. Não obstante é preciso alertar rapida mente contra
alguns equívocos que poderiam surgir facilmente.
Tem-se a impressão de que Deus se torna, agora, o suce dâneo do
nosso poder, como acima a fé poderia parecer o suce dâneo do nosso
conhecimento. Note-se bem, no entanto, que a ênfase não está na fuga
das aflições, mas no refúgio nas aflições, não na mudança da situação,
mas na mudança do relaciona mento com a situação, não na constatação
do efeito salvador, mas na certeza frente a um efeito ainda pendente e
ausente. Mesmo assim poderia surgir ainda a suspeita de que se trata
duma teologia baseada nas necessidades. Contudo, seria bom ter cautela
com tal acusação. Seria uma teologia fatal a que não se orientasse pelas
carências do ser humano e por isso pelo aspecto da necessidade.
Tudo depende, evidentemente, da correta compreensão do que é
absolutamente necessário e com isso da percepção daquilo que é
verdadeira fé e confiança. Só um raciocínio superficial pode pensar que
poderá fugir da questão da verdade através do aspecto da carência. Se
Lutero inverte, aparentemente, a rela ção de fé e Deus de forma até
escandalizadora: "Se é verdadeira a fé e a confiança, verdadeiro também
é o teu Deus. Inversa mente, onde a confiança é falsa e errônea, aí
também não está o Deus verdadeiro", cabe dizer: de fato é na pureza da
fé, isto é, na radicalidade com que a situação da fé é sustentada, que se
evidencia se Deus é levado a sério como tal ou se a gente se esquiva
para junto dos ídolos de fabricação própria. Em sua preleção sobre a
Epístola aos Romanos, Lutero diz do amor a Deus que ele visa somente o
próprio Deus, não as suas dádivas. Portanto, esse amor tem seu lugar ali
onde não há nada de visível ou experimentável, nem dentro nem fora, em
que se pudesse confiar, que se pudesse amar ou temer; antes, ultrapas -
sando tudo isso, ele é atraído ao Deus invisível, inexperimentável,
incompreensível, para dentro das trevas mais interiores 353. Aqui se coloca
claramente, ainda emprestando terminologia mís tica, o sentido da junção
de fé e Deus. Não é por acaso que o falar de Deus tem seu lugar ali onde

353
56,306,26- 307,15 (1515/ 16) = B oA 5,250,10- 30.
se choca frontalmente com todos os tipos de idolatria. Deixar que Deus
seja Deus, ter fé verdadeira, portanto, significa não fazer ídolos de tipo
algum, também e sobretudo sofrer a própria desdivinização e aniquilação
e, ao despencar para o nada, fora de si mesmo e de toda criação, ter
certeza de que se cairá na mão de Deus 354. Junção de fé e Deus, isto é
teologia da cruz, que não é uma teologia dos desejos humanos, mas da
vontade de Deus.
2. Inicialmente, refletindo sobre o texto do Catecismo Maior, nos
demoramos no primeiro marco, no "Deus somente".
A conjugação de Deus e fé contradiz tão pouco ao "Deus somente" que, pelo
contrário, só ela o torna possível. Pois só a fé reconhece apenas a Deus, e
Deus manifesta sua divindade no fato de não querer outra coisa do que fé.
Dessa maneira o segundo marco, "somente pela fé", já está posto com o
primeiro, mas precisa agora de reflexão específica para o aprofundamento da
questão "Que é Deus?". Pois até aqui a resposta foi sobretudo negativa: Deus
é a destituição dos ídolos, como a fé é a destituição da superstição. E, assim
como a fé é confiança para dentro da escuridão, da mesma forma Deus é a
presença afirmada, contra toda experiência de sua ausência, do único que
merece fé, não decepciona, não fracassa, que justifica total confiança. Mas que
conhecimento de Deus implica a fé entendida de modo rigoroso?
Na grande preleção de Lutero sobre a Epístola aos Gálatas consta:

Vê o que é a fé — algo incomparável e de poder imensurável, ou


seja, dar honra a Deus. Ela não faz algo por Deus, mas, porque
crê, ela atribui a Deus sabedoria, bondade, onipotência e lhe
confere todos os atributos divinos. A fé é criadora da divindade,
não em pessoa, mas em nós. Fora da fé Deus perde sua justiça,
glória, riqueza, etc., e não há nada de majestade e divindade onde
não há fé. (...) Deus só exige que eu o faça Deus. Se tiver sua
divindade pura, incólume, então tem tudo que lhe posso oferecer.
Esta é a sabedoria de toda sabedoria, a religião acima de todas as
religiões. Isto faz a maior majestade, que a fé atribui a Deus. Por

354
* N. do T.: C ri adora da di vi ndade.
isso a fé justifica; pois ela devolve o que deve. Quem faz isso, é
justo. 3 5 5

De novo extremamente audacioso, até paradoxal na formulação. Mas, afinal,


não é realmente um paradoxo que seja atribuição do ser humano dar a honra a
Deus, dar-lhe o que Deus tem exclusivamente e por si, dar coisas divinas a
Deus? Mas a fé é isso; produz no ser humano as coisas divinas que o ser
humano então devolve a Deus. O poder criativo da fé — diz Lutero, com
insuperável audácia: creatrix divinitatis*356 — outra coisa não quer dizer senão
que a fé não é obra do ser humano, mas de Deus, ou, como Lutero diz em
trocadilho, não um facere deo (fazer para Deus), mas facere deum (fazer
Deus); no entanto, isso só pode significar: deixar que Deus aja, deixar
que Deus seja Deus, corresponder a Deus através da fé somente. Quando
se leva Deus a sério, não se pode corresponder a ele através da ação, mas
somente através da fé, podemos dizer também: através da alegria por
causa de Deus. Só o louvor a Deus é discurso adequado a seu respeito,
não no sentido duma forma literária especial, mas como tônica básica de
todo falar correto a respeito de Deus.
Mas por que será que Lutero recorre a formulações tão
paradoxais? Certamente não porque estivesse confundindo a alegria por
causa de Deus com o prazer no paradoxo, e sim porque falar de Deus
significa falar dum acontecimento, a saber, como Deus se impõe como
Deus, como ele encontra fé. Afinal, não se pode falar primeiro de Deus
em si, ignorando a situação de fato da desonra infligida a Deus,
justamente também nas religiões, excluindo a questão de como Deus
conseguirá o seu direito. Neste mundo Deus é, de fato, aquele que é o
humilhado e ofendido, que procura sua honra unicamente chamando para
a fé e que deseja ser honrado somente pela fé. Não se trata de estado de
coisas a ser descrito: o que Deus seria em si, o ser humano em si e como
essas duas grandezas se relaciona riam; antes, o falar de Deus tem a ver
com um acontecimento do qual esse próprio falar participa — esta é
355
40/1,360,2-361,1 (1531).
356
N. do T.: C ri adora da di vi ndade.
também a chave para a compreensão do escrito De servo arbítrio (A
respeito da vontade escravizada) de Lutero, que, com o mesmo direito,
poderia trazer o título De Deo*357. Como nele se trata de Deus, também
tem que se tratar do ser humano. Pois autoconhecimento e conhe cimento
de Deus formam uma unidade e isto pelo fato de se reportarem a um
nexo indissociável que consiste num acontecimento. Conhecer Deus
significa reconhecer o que Deus pode e faz, não as possibilidades de seu
poder, mas seu poder como efetivo agente de tudo em tudo, portanto,
onipotência que se faz acontecimento 358. Se o ser humano, por causa da
sua salvação e de sua certeza, precisa saber do que é capaz para sua
salvação, então, evidentemente, não sabe nem isso, nem o que significa
Deus, a não ser que saiba com certeza que nada é capaz de fazer para a
salvação e que pode haurir justamente disso a certeza da salvação
fundamentada tão-somente na ação de Deus. Não se faz ideia de Deus, se
não houver uma percepção clara na questão do servum arbitrium no que diz
respeito à salvação. Falar de livre vontade diante de Deus é impiedade.
Por isso é necessário para a salvação saber distinguir entre a ação de
Deus e a do ser humano, não para ponderar a relação mútua de forças
que cooperam, mas para diferenciar por princípio que Deus, em relação
ao ser humano, é ação ilimitada. O ser humano, por sua vez, não conta
como agente diante de Deus, por mais que, diante de Deus, seja chamado
a assumir o papel de agente em relação ao mundo. O ser humano só se
compreenderá em relação a Deus de modo adequado a Deus, quando se
entender como produzido, desejado, doado, como criatura, portanto, co -
mo justo não pelas obras, mas somente pela fé 359. É através da invocação
de liberdade de ação diante de Deus que o ser humano se torna
radicalmente servil. É através da autocompreensão como obra de Deus,
isto é, através da fé, que ele é livre e participa, como propriedade de
Deus, da liberdade divina.

357
N. do T.: A respeito de Deus.
358
18,718,28-31 (1525) = B oA 3,214,11-4.
359
18,614,1-26 (1525) = B oA 3,106,25-107,15.
3. Se perguntarmos agora: que é esse acontecimento que envolve
Deus e fé? Como obtém Deus sua honra? Como surge a fé? Lutero nos
responderá: somente pela palavra. Esta resposta provoca uma série de
perguntas. Nós as reduzimos a três objeções elementares ao discurso de
Lutero referente a Deus que, por fim, ainda precisam ser citadas e
meditadas. A palavra não é muito pouco? Que dizer da história do
mundo? Onde fica o semelhante?
Em relação à primeira: a palavra não é muito pouco? O "somente pela
palavra" corresponde rigorosamente ao "somente pela fé" 360. Com ambos
Lutero diverge frontalmente da teologia escolástica e da doutrina
católica romaria, que de fato constatam aqui um "muito pouco", mera
"revelação pela palavra" em vez de "revelação da realidade", como
rezam os chavões da hodierna teologia de controvérsia 3 6 1 , somente fé em
vez de aperfeiçoa mento na transformação real do ser humano. Em
relação às ditas virtudes teológicas — fé, amor e esperança — Tomás de
Aquino justificou a primazia do amor, dizendo que, tal como a
esperança, também a fé ainda implica uma distância para com o objeto,
Deus, enquanto o amor une com o amado 362. Isso revela a enorme
profundidade das diferenças confessionais. Diferindo duma concepção de
Deus que visa o aperfeiçoamento da natureza em direção ao sobrenatural,
Lutero realmente é da opinião de que só há correspondência a Deus e à
fé quando o evento aqui referido acontece a partir de Deus somente pela
palavra, de modo que o fundamento da salvação está rigorosamente fora
do ser humano como promissão crida, e mais: de modo que o próprio ser
humano é colocado fora de si mesmo na palavra da promissão. Este extra
nos da fé preservado pela palavra é essencial para a certeza do falar de
Deus. Diz Lutero: "Nossa teologia tem certeza, porque nos coloca fora

360
Por exem pl o 6,516,30-2 (1520) = B oA 1,448,8- 11.
361
W. H. VAN DE POL, Das reformatorische Christentum in phãnomeno- logischer Betrachtung,
1956, p. 259ss. C f. quant o a i st o m eu art i go: " Wort haft e und sakram ent al e Exi st enz;
ei n B ei t rag zum Unt erschi ed der Konfessi onen" i n: Im Lichte der Reformation. Jahrbuch des
Evan- gelischen Bundes VI,1963, p. 5-29, especi al m ent e p. 13ss. R ei m presso em m eu
li vro Wort Got t es und Tradi t i on; St udi en zu ei ner Hermeneut i k der K onf essi onen ,
1964, p. 197-216.
362
S . t h. 1, n q. 66 a. 6.
de nós mesmos." 363A palavra habilita a distinguir entre Deus e o ser
humano e resguardar esta diferença. Querer mais do que a palavra acaba -
ria em menos. Pois o que Deus dá ao ser humano para a salvação, por
natureza e de forma eficiente só pode ser comunicado pela palavra:

Só é preciso uma única coisa para a vida, a justiça e a liberdade


cristã. É a sagrada palavra de Deus, o evangelho de Cristo. (...)
Importa que tenhamos como certeza inabalável: a alma pode dis -
pensar tudo, menos a palavra de Deus, sem a qual nada lhe apro -
veita. Quem tem a palavra, no entanto, é rico e não carece de nada,
pois é palavra da vida, da verdade, da luz, da paz, da justiça, da
salvação, da alegria, da liberdade, da sabedoria, da força, da graça,
da glória e de tudo que é bom de forma imensu rável. (...) Como,
porém, essas promissões de Deus são palavras santas, verdadeiras,
justas, livres, pacíficas e repletas da mais pura bondade, acontece
que a alma, apegada a elas em firme fé, é tão unida a elas e até
absorvida por elas, que não só participa delas, mas fica saciada e
ébria de suas forças. (...) Tal como é a palavra, assim fica a
alma. 364

Quanto à segunda objeção: que dizer da história do mundo? A maneira


como Lutero fala de Deus é suspeita de ser uma radical interiorização e
espiritualização, que, se não ignora, ao menos não considera
adequadamente a relação de Deus e mundo, Deus e história, Deus e
realidade física. Não se deve querer minimizar precipitadamente esta
impressão, nascida do fato de o discurso de Deus de Lutero estar
invulgarmente concentrado na consciência. "Consciência", contudo, não
significa aqui, como na dominante mas problemática interpretação da
consciência, a essência dos conteúdos normativos da mente e funções
autônomas de juízo, ou seja, a presença da norma e instância decisivas

363
40/ 1,589,8 (1531). V. aci m a, p. 123.
364
7,50,33- 51,3; 53,15- 8.26s. (1520).
18,635,17-22 (1525) = B oA 3,126,23-8. V. aci m a, p. 177.
dentro do próprio ser humano. Antes, Lutero entende por "cons ciência" a
relação essencial do ser humano com a palavra, isto é, o fato de estar
sempre — não só neste ou naquele sentido, mas em seu próprio ser-
pessoa — requisitado, exigido, questio nado, exposto a juízo, sendo desta
ou daquela maneira consciên cia definida, desta ou daquela maneira
consciência dependente: desesperada ou arrogante, em presunç.osa
liberdade, que na rea lidade é servilismo sob os poderes do mundo; ou
certa e confor tada na dependência de Deus, que na realidade é liberdade
diante do mundo. Esta compreensão de consciência é decisiva para en -
tender o que Lutero diz a respeito de Deus. A partir daí fica claro que a
aparente interiorização e espiritualização só visa localizar o discurso
sobre Deus ali onde se trata de aconteci mento universal no mais rigoroso
sentido, onde Deus e mundo, Deus e Satanás lutam um com o outro,
como dois cavaleiros pela posse da montaria 1 7 . Apontar para a
consciência, portanto, significa apontar para o acontecimento em que as
mais poderosas e mais contraditórias forças estão em ação, um
acontecimento que, justamente por estar centrado no mais oculto, produz
as maiores consequências para dentro do mundo visível e da exis tência
corporal.
Para o discurso de Lutero sobre Deus nessa concentração na fé
somente, na palavra somente, é essencial que não se entenda Deus como
algo que se encontra em lugar distante, fora e além do mundo, e que
nada tem a ver com o mundo como o experimen tamos no dia-a-dia. Pelo
contrário: em função da credibilidade da palavra e da vinculação
essencial da fé à palavra, Deus e mundo devem ser pensados em conjunto
de tal maneira que vez por outra poderia surgir a suspeita de que se está
incorrendo em formulações panteístas ou até ateístas. Com uma liberdade
surpreendente, Lutero submeteu a argumentação teológica com ingênuas
ideias teístas a uma crítica impiedosa, tachando-a de racionalismo sob o
manto da piedade. A ideia do céu, por exemplo:
A divindade não desce do céu como alguém (desce) da montanha;
ela está no céu e fica no céu, mas, ao mesmo tempo, está na terra e
fica na terra. (...) Que necessidade há de muitas palavras? Afinal,
o reino do céu está na terra. Os anjos estão, ao mesmo tempo, no
céu e na terra; os cristãos estão, ao mesmo tempo, no reino de
Deus e na terra, se quisermos entender "terra" como dela falam na
matemática ou na geografia. (...) Ora, falam do céu em termos
infantis e bobos, querendo fazer um lugar para Cristo lá em cima
no céu, como a cegonha faz seu ninho numa árvore, e nem eles
mesmos sabem como e que estão falando. 365

Ou então, a ideia da onipresença de Deus: "Como se Deus fosse um ser


enorme e vasto que enche o mundo sem caber nele, como um colchão
cheio de palha, onde as sobras de palha aparecem em cima e em
baixo." 366 Lutero expressou a ideia da onipresença e onipotência de Deus
de forma tão rigorosa que, quando se fala de Deus, é impossível ignorar
a realidade do mundo.

Por isso ele mesmo (Deus) tem que estar no mais íntimo de toda
criatura, por fora, por todos os lados, permeando tudo, embaixo e
em cima, na frente e atrás, de modo que não possa haver nada mais
presente ou mais íntimo em todas as criaturas do que o próprio
Deus com seu poder. (...) Então, será que alguém sabe o que
significa Deus? Ele está acima de corpo, espírito e de tudo que se
possa dizer, ouvir e pensar: como pode estar, ao mesmo tempo,
totalmente em todo corpo, criatura e ser em qual quer parte, e, por
outro lado, estar fora e acima de todas as criaturas e seres, não
tendo que estar nem podendo estar em parte alguma, como nossa
fé e as Escrituras testemunham a respei to de Deus? Aqui a razão

365
26,421,16- 422,10 (1528) = BoA 3,445,32-446,5.
366
26,339,27-9 (1528) = B oA 3,404,20-2.
fatalmente tem que concluir: ah, isso não existe e nem pode
existir! 367
Deus não é um ser estendido, comprido, largo, corpudo, alto,
fundo (...), mas um ser sobrenatural e inescrutável, que está
totalmente em cada grãozinho e, ao mesmo tempo, está em, sobre e
fora de todas as criaturas. Por isso não há necessidade de cerca
aqui (...), pois um corpo é muito, muito grande para a divindade,
de modo que poderiam estar nele milhares de divinda des; por
outro lado, muito, muito acanhado também, de modo que nem uma
única divindade caberia nele. Nada é tão pequeno que Deus não
fosse menor; nada é tão grande que Deus não fosse maior; nada é
tão curto que Deus não fosse mais curto; nada é tão comprido que
Deus não fosse mais comprido; nada é tão largo que Deus não
fosse mais largo; nada é tão estreito que Deus não fosse mais
estreito ainda, etc.; é um ser indizível acima e além de tudo que se
possa dizer ou pensar. 368

Essa presença de Deus no mundo, que deixa atrás de si a usual


alternativa de transcendência e imanência como coloca ção
completamente errada, vale também para a história. A onipo tência de
Deus está agindo em tudo como o poder sem o qual nada seria e nada
aconteceria. O rigor com que Lutero sustenta essa ideia às vezes causa a
horrível impressão de que Deus seria o motor duma máquina gigantesca
que não se pode desligar nem mesmo quando os seres humanos são
atingidos por ela e arrastados até a morte, a menos que se tivesse o
blasfemo desejo de que Deus deixe de ser Deus 369. O interesse de Lutero
não é acabar com a gravidade dos problemas que surgem aqui. Por amor
de Deus e da fé ele não quer ocultá-los nem deixar que os blasfemadores
os tragam à luz.

367
23,135,3- 6; 137,25- 31 (1527).
368
26,339,33-340,2 (1528) = B oA 3,404,26-8.
369
18,712,19-24 (1525) = B oA 3,207,26-32.
De fato, quando topamos com Deus em sua nua majestade ou, o
que é a mesma coisa, no seu ocultamento, e procuramos entendê-lo como
Deus, ele tem a mesma terrível face que, em última análise, nos mostra a
realidade se nos defrontamos com ela e procuramos pensá-la sem a
palavra de Deus e a fé. Se disso resulta desespero nu e cru, ou um ídolo,
ou ateísmo, não se trata de alternativas substancialmente diferentes. Só
podemos alertar contra especulações sobre Deus em sua majestade e
ocultamento 370. Importa falar de Deus a partir de baixo, come çando nas
profundezas, a partir do fato de que a palavra de Deus se fez carne e
história e autorizou o acontecimento da pregação, portanto, a partir de
Jesus, o Crucificado 371. Contudo, o abandonar o Deus oculto e o voltar-se
para o Deus revelado não significam que o ocultamento de Deus não
tenha mais nada a ver com a fé. A própria revelação está oculta sob o
contrário, sob a cruz 372. A fé não existe senão exposta aos poderes da
tentação. Por tudo isso é preciso falar do Deus absconditus, para que o
Deus revelado seja levado a sério como Deus em sua revelação 373.
A última pergunta, onde fica o semelhante em todo esse discurso sobre
Deus, nasce da suposição de que aqui se racioci naria nos limites dum
individualismo religioso que só tem inte resse na salvação do indivíduo.
A isto se deveria também a posição central da doutrina da justificação
pela fé na teologia de Lutero. Para rebater essa objeção, teríamos que
incluir em nossas ponderações a ética e a eclesiologia de Lutero. Limita-
mo-nos a uma referência genérica. A ética e a eclesiologia de Lutero —
se é que podemos usar aqui essas classificações acadê micas, já que, em
Lutero, todos os aspectos são visados sempre em seu entrelaçamento —
não constituem um complemento de seu discurso sobre Deus, mas só
podem ser entendidas em seu verdadeiro significado como maneiras de
falar de Deus. Nesse caso, porém, deveria ficar claro, em ambos os
sentidos, como a concentração na palavra e na fé, aparentemente só

370
Por exem pl o 40/ 1,75,9-80,2 (1531).
371
18,689,18-25 (1525) = B oA 3,182,8-17.
372
Por exem pl o 18,633,7-23 (1525) = B oA 3,124,16- 37.
373
18,685,3-686,13 (1525) = B oA 3,177,12-178,25.
voltada ao indivíduo, visa a co-humanidade. Se a palavra que produz fé
se refere, como palavra do evangelho, à lei que acusa e mata, então se
refere ao ser humano sob a pressão da sua existência no mundo,
caracterizada de forma decisiva pela coexistência humana. Se o estar-
sempre-sob-a-exigência e o ter-sempre-fa lhado constituem a experiência
básica do ser humano com refe rência à qual, como voz da lei, o
evangelho o interpela, então aquela expressão "em todas as aflições", do
Catecismo Maior, se concretiza sobretudo como a aflição do fracasso na
co-humanidade, das decepções sofridas e provocadas, da impotência de
superar ódio, despertar confiança, amar criativamente, como aflição do
fracasso em relação àquilo que, como criaturas de Deus, a rigor
deveríamos ser: a imagem do Deus que compartilha nossa humanidade.
Se a suma do evangelho é a co-humanidade de Deus, então a fé não pode
senão agir através do amor. Na realidade, a fé outra coisa não é do que a
coragem de amar com base em amor crido, a liberdade para amar com
base na libertadora promessa de amor. 3 7 4
Entretanto, a distinção de fé e amor contida nisso de modo algum
deve ser relaxada. Como a fé é o autor, no dizer de Lutero, e o amor a
ação, tudo depende do que vive o autor. Por isso, à relação de fé e amor
corresponde a relação de doutri na e vida. Contrariando a costumeira
primazia da vida sobre a doutrina, Lutero coloca a doutrina em primeiro
lugar, justamente em função da vida criada e desejada por Deus. A
doutrina é o céu, a vida é a terra 375. Pois a doutrina, a palavra de Deus, é,
em palavras simples, o pão da vida. 3 7 6
Por isso, em relação à Igreja, a co-humanidade não se manifesta
apenas nas formas de organização da vida comuni tária, mas já no
acontecimento fundamental que faz com que a Igreja seja Igreja, na
palavra da fé, que acontece de pessoa para pessoa e que revela sua
divindade ao tornar humanos os seres humanos. A comunhão da Igreja,
baseada no acontecimento da palavra, é indício de que, em última

374
17/11,98,25 (1525). V. acima, p. 124.
375
40/ 11,5 l,8s. (1531). V. aci m a, p. 135.
376
18,611,5 (1525) = BoA 3,104,27s.
análise, toda verdadeira comunhão vive da palavra e da fé. Pois a palavra
certa é um acontecimento de amor. E por isso que a palavra de Deus, na
qualidade de habilitação para a fé, é também habilitação para o amor.
Pois — daí nasce e para aí desemboca todo falar de Deus — Deus é
amor, ou, como Lutero, horrorizado pela maneira seca e gélida de
Erasmo falar de Deus, diz em sua linguagem plerofórica e eivada de
derradeira certeza: "um forno em brasa repleto de amor". 377

377
36,425,13 (1532).

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