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Sumário

I N T R O D U Ç Ã O AO PENTATEUCO.............................................................................2
OS CINCO LIVROS..................................................................................................................2
A LEI E A HISTÓRIA.............................................................................................................3
A UNIDADE DO PENTATEUCO..........................................................................................4
A COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO..................................................................................5
A TEORIA DOS DOCUMENTOS.............................................................................................6
O NASCIMENTO DO PENTATEUCO APÓS O EXÍLIO BABILÔNICO............................9
OS TEXTOS SACERDOTAIS (P).........................................................................................10
OS TEXTOS DEUTERONOMISTAS [D]............................................................................11
OS CÓDIGOS LEGISLATIVOS...............................................................................................13
AS TRADIÇÕES NARRATIVAS ANTIGAS............................................................................13
A SIGNIFICAÇÃO DO PENTATEUCO...................................................................................14
I N T R O D U Ç Ã O A O L I V R O D O G Ê N E S I S .................................................16
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................16
COMPOSIÇÃO E FONTES......................................................................................................17
A HISTÓRIA DAS ORIGENS [GN 1-11]................................................................................18
AS TRADIÇÕES PATRIARCAIS [GN 12—50]......................................................................19
TEMAS E FIGURAS...............................................................................................................21
I N T R O D U Ç Ã O A O L I V R O D O Ê X O D O ......................................................23
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................23
CONTEÚDO DA OBRA..........................................................................................................23
CONSTITUIÇÃO LITERÁRIA.............................................................................................25
TRADIÇÕES...........................................................................................................................25
OS TEXTOS SACERDOTAIS..................................................................................................25
OS TEXTOS NÃO SACERDOTAIS.....................................................................................26
TEMAS TEOLÓGICOS........................................................................................................27
O ÊXODO NA BÍBLIA............................................................................................................29
HISTORICIDADE DO ÊXODO............................................................................................30
I N T R O D U Ç Ã O A O L I V R O D O L E V Í T I C O ............................................32
LUGAR E PAPEL DO LIVRO.................................................................................................32
ORIGEM E CONTEÚDO DO LIVRO.......................................................................................32
PEQUENO LÉXICO DO LEVÍTICO........................................................................................33
ATUALIDADE DO LEVÍTICO.........................................................................................................38
I N T R O D U Ç Ã O A O L I V R O D O S N Ú M E R O S ...........................................40
ESTRUTURA LITERÁRIA DO LIVRO....................................................................................40
O DESERTO COMO QUADRO NARRATIVO DO LIVRO DOS NÚMEROS............................41
TRADIÇÕES E COMPOSIÇÃO DO LIVRO DOS NÚMEROS..................................................42
MOISÉS..................................................................................................................................43
A VISÃO SACERDOTAL DO POVO DE DEUS.......................................................................43
O POVO DE DEUS EM OUTRAS TRADIÇÕES.......................................................................44
ATUALIDADE DOS NÚMEROS............................................................................................44
I N T R O D U Ç Ã O A O L I V R O D O D E U T E R O N Ô M I O ............................46
UM LIVRO DE TRANSIÇÃO..................................................................................................46
SEGUNDA LEI.......................................................................................................................46
A ALIANÇA...........................................................................................................................48
A OBRA ACABADA E SEU PLANO......................................................................................49
A TEOLOGIA DO LIVRO.......................................................................................................50
O DEUS DE ISRAEL...............................................................................................................50
O POVO DE DEUS..................................................................................................................52
O DEUTERONÔMIO NA BÍBLIA...........................................................................................53
O DEUTERONÔMIO HOJE....................................................................................................54
I N T R O D U Ç Ã O AO PENTATEUCO

OS CINCO LIVROS

Na tradição cristã, os primeiros livros da Bíblia formam um conjunto chamado,


Pentateuco. É um termo grego que retoma uma expressão hebraica que designa os
"cinco estojos" que guardavam os cinco primeiros rolos da Bíblia. Para a tradição
judaica, esses cinco livros constituem a Torá, termo traduzido com frequência em
nossas línguas por "Lei", mas que não deve ser entendido em sentido estritamente
jurídico.
Com efeito, a Torá (nosso Pentateuco) forma um conjunto em que se entremeiam
partes narrativas e códigos legislativos. Diferentes coletâneas de leis, cada qual com
origem em contexto histórico e social bem específico, se enquadram em grandes ciclos
narrativos que recordam os feitos de Deus desde a criação do mundo até a chegada do
povo de Israel ao limiar da terra prometida. Conforme a etimologia, pode-se, pois,
preferir o termo "Ensino" a "Lei" para designar a função dos cinco primeiros livros da
Bíblia.
Os títulos dos cinco livros do Pentateuco provêm igualmente da tradição grega.
Empenham-se em resumir o conteúdo de cada livro. O Gênesis descreve as origens do
mundo e do povo he- breu. O Êxodo relata a saída do Egito. O Levítico contém a
legislação sacerdotal que concerne à tribo de Levi. O quarto livro, o dos Números, se
chama assim por causa da dupla contagem do povo em sua estadia no deserto. Enfim, o
Deuteronômio (em grego "Segunda Lei") se apresenta como retomada de textos
legislativos anteriores. A tradição judaica se contenta em designar cada um dos cinco
livros por uma das primeiras palavras que ele contém: Gênesis, "começo"; Êxodo,
"nomes"; Levítico, "ele chamou"; Números, "no deserto"; Deuteronômio, "palavras".
O Pentateuco se abre com relatos sobre a origem do mundo e da humanidade.
Prossegue com a história dos ancestrais do povo de Israel: Abraão, Isaac, Jacó e José. O
livro do Êxodo relata a opressão de Israel no Egito e a libertação por meio de Moisés,
que leva o povo à montanha de Deus para lhe transmitir várias leis e prescrições que
preenchem parte do Êxodo, todo o Levítico e os dez primeiros capítulos dos Números.
Os outros capítulos deste livro contêm relatos sobre a estadia de Israel no deserto,
confluindo na condenação da geração do Êxodo, que deve morrer no deserto. O último
livro do Pentateuco contém o testamento de Moisés, em que relembra a Aliança e a Lei
divinas. Com o Deuteronômio, o Pentateuco termina com a morte de Moisés, que vê o
país prometido sem nele poder entrar.
Malgrado a divisão em cinco livros, o Pentateuco aparece como conjunto unificado.
No fim do livro do Gênesis, a descida da família de Jacó ao Egito prepara o relato de
Israel no Egito do livro do Êxodo. Esse livro começa ademais por uma enumeração da
genealogia do capítulo 46 do Gênesis. O Levítico prolonga a revelação da Lei no Sinai,
começada em Ex 20, que só termina no livro dos Números. Os relatos sobre a estadia no
deserto em Nm 11—25 retomam, aliás, o fio narrativo de Ex 16-18, interrompido pela
proclamação da Lei (Ex 19-Nm 10). O livro do Deuteronômio se localiza nas planuras
de Moab, aonde o povo chegou no fim do livro dos Números.
O recorte atual do Pentateuco em capítulos, datado da Idade Média, é bastante
regular e se destina à comodidade da leitura e do estudo. Em contraponto, a leitura
litúrgica judaica organiza o Pentateuco em diferentes seções, cuja delimitação tem
variado. Essas seções se esforçam igualmente para dividir o texto em unidades de leitura
para o culto sinagogal, mas as divisões lógicas do texto são de extensão muito desigual.
Por exemplo, a história de José - que forma uma só e mesma seção — cobre muitos de
nossos capítulos (Gn 37-50); em compensação, um texto como o dos Dez mandamentos
(Dt 5,1-21) nem preenche um capítulo, mas é igualmente seção inteira à parte.
A diversidade das seções ou das unidades de sentido indica que não cabe procurar
no Pentateuco a composição rigorosa de um código moderno ou de um tratado
teológico. Enfim, mesmo se o Pentateuco está organizado segundo um princípio
cronológico, não é um manual de história.

A LEI E A HISTÓRIA

O Pentateuco contém textos legislativos e narrativos. Os primeiros constituem


inegavelmente seu centro, pois a segunda parte do Êxodo (Ex 19-40), todo o Levítico e
o início dos Números se compõem essencialmente de prescrições jurídicas e rituais.
Além disso, numerosos textos narrativos do Pentateuco têm por objetivo valorizar ou
comentar uma lei: é assim que o episódio do bezerro de ouro (Ex 32-34) se lê como
transgressão do mandamento formulado em Ex 20,23 ("não me tratareis como um deus
de prata nem deus de ouro — não fabricareis deus algum para vós"). Depois do relato da
transgressão, esse mandamento fundamental vai se reafirmar em Ex 34,17. Outros
relatos servem para justificar uma instituição, por exemplo a revolta de Goré, Datan e
Abiram (Nm 16-17) legitima a escolha da família de Aarão para cumprir as funções
sacerdotais. Determinadas leis se inserem em um relato, por exemplo a lei concernente à
circuncisão (Gn 17,9-14), que não se reencontra em nenhum dos diversos códigos. Em
sentido inverso, certas leis se explicam remetendo a tradições narrativas, assim a
prescrição sobre a lepra em Dt 24,8-9 relembra ao leitor a sanção divina contra Miriam
relatada em Nm 12.
A tradição judaica é mais sensível ao aspecto legislativo da Torá, enquanto a
tradição cristã muitas vezes conservou mais o lado narrativo, a ponto de ver nela o
começo de uma "história da salvação" que culmina no Novo Testamento. Certamente a
análise literária permite descobrir aí diferentes "gêneros", que o conhecimento dos
documentos do Oriente Próximo antigo ajuda a caracterizar (relatos de origens, código
penal, genealogias etc.). Vale, no entanto, igual atenção à perspectiva de conjunto do
Pentateuco. A imbricação de textos de gêneros tão diferentes é deliberada; não há
simplesmente leis e relatos, mas "ensinamento". A história está a serviço de uma
compreensão melhor da Lei, e a Lei permite compreender melhor o sentido da história.

A UNIDADE DO PENTATEUCO

A unidade do Pentateuco aparece no meio de grande diversidade: diversidade de


códigos legislativos, de gêneros literários, de lugares geográficos, mas também de
opções teológicas. Por exemplo, a história de José propõe uma visão positiva do Egito,
ao passo que os relatos do Êxodo ressaltam a servidão dos israelitas nesse país. Pode-se
questionar a coerência de tal conjunto. Essa coerência reside primeiramente em cada
livro precisar a relação de Israel com YHWH, 1 seu Deus, no seio da história. O livro do
Gênesis reporta a pré-história de Israel; o Êxodo, a eleição e a outorga de uma Aliança;
o Levítico, a resposta de Israel no culto; o Deuteronômio, a reafirmação da Aliança.
Outro tema que reforça a unidade do Pentateuco é o das promessas divinas: tais
promessas se dirigem aos patriarcas no Gênesis; reaparecem a seguir em todos os livros
do Pentateuco, que se encerra precisamente com a repetição da promessa da terra a
Moisés no momento de sua morte (Dt 34). Assim, o Pentateuco não é história acabada,
mas livro aberto para o porvir.

1
É provável que este nome próprio do Deus de Israel fosse "Yahô", antes que "Yahweh" O judaísmo não
o pronuncia e usa substitutos, nomeadamente "Adonai" (Senhor), termo que será igualmente usado na
TEB (cf. nota sobre Ex 3,14-15).
A unidade do Pentateuco se constrói igualmente ao redor da personagem de Moisés.
Exceto o Gênesis, o resto do Pentateuco é dominado por essa grande figura. Com efeito,
Moisés aparece em múltiplas funções: libertador político, mas igualmente profeta, juiz e
legislador; de todos os pontos de vista, o mediador por excelência entre o Deus de Israel
e seu povo. As leis proclamadas no quadro da revelação divina o são pela boca de
Moisés. A única exceção é a dos Dez Mandamentos, que Deus comunica diretamente ao
povo reunido ao pé da montanha. Portanto, é o ensinamento de Moisés que dá unidade e
coerência ao judaísmo.

A COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO

Fundando-se na proclamação das leis por Moisés, a tradição judaica, seguida nisso
pelo cristianismo, fez de Moisés o autor de todo o Pentateuco. No Novo Testamento,
Jesus fala frequentemente de Moisés quando cita textos do Pentateuco. Os rabinos, por
sua vez, se questionavam se Moisés poderia realmente ter escrito o relato de sua própria
morte. Malgrado tais dúvidas, a atribuição do Pentateuco a Moisés jamais foi seriamente
contestada antes da época do iluminismo.
Tanto o filósofo Spinoza como o exegeta Richard Simon afirmaram ser verossímil
que numerosos textos do Pentateuco tenham sido escritos muito depois da época de
Moisés. Spinoza também chamava a atenção para as rupturas da lógica literária do
Pentateuco e a diversidade de estilos empregados, evidências que tornavam dificilmente
aceitável a hipótese de um único autor.
É assim que se encontram certos textos legislativos de novo em contextos diferentes:
o Decálogo é dado duas vezes (Ex 20 e Dt 5); o calendário das festas, cinco vezes (Ex
23, Ex 34, Lv 23, Nm 28-29 e Dt 16). O mesmo se passa com narrações: encontra-se um
duplo relato da Criação (Gn 1,1-2,3 e Gn 2,4-23), do conflito entre Sara e Hagar (Gn 16
e 21), do selo da aliança com Abraão (Gn 15 e 17) e da vocação de Moisés (Ex 3-4 e
6,2-8). Encontram-se três versões de como o patriarca faz passar a esposa por irmã (Gn
12, 20 e 26). Nem se trata de simples repetições, mas cada texto paralelo comporta
marca original. No interior de certos relatos também se encontram repetidos casos de
tensões. Assim, em Gn 7,15 Noé faz entrar na arca um casal de animais de cada espécie,
mas Gn 7,2 fala de sete casais; Gn 7,17 indica quarenta dias de duração do dilúvio; 7,24,
ao contrário, menciona 150. O comportamento do faraó diante das pragas do Egito se
explica de duas maneiras diversas: conforme alguns textos (Ex 7,3 e nota), Deus mesmo
endurece o coração do rei do Egito, enquanto outros textos insistem em que o faraó tem
livre-arbítrio e se obstina em sua recusa (Ex 8,11). O milagre do mar dos Juncos é
relatado similarmente em duas versões: segundo Ex 14,21 o mar é empurrado por um
vento de leste, enquanto em 14,lb-23 as águas se repartem pelo meio.
A diversidade literária do Pentateuco aparece também no nível do estilo e das
particularidades de vocabulário. A montanha da revelação é denominada tanto Sinai
como Horeb; o sogro de Moisés uma hora se chama Jetro, outra Reuel. O estilo barroco
insistente e repetitivo do Deuteronômio contrasta com a natureza técnica das prescrições
rituais da primeira parte do Levítico. Em alguns relatos há preocupação de ordem
cronológica (indicação de idade dos personagens ao tempo do evento), enquanto outros
são redigidos em estilo menos estereotipado e mais vivaz. Certas narrativas são breves e
sóbrias (a descida de Abraão ao Egito em Gn 12,10-20), outras pitorescas e prolixas (a
procura de uma mulher para Isaac em Gn 24).
Toca imediatamente o leitor o emprego de diferentes nomes para designar o Deus de
Israel. Certos textos usam o nome próprio YHWH (O SENHOR), outros o nome genérico
Elohim (Deus). Assim, o primeiro relato sobre Hagar fala de YHWH, O segundo de Deus.
O romance de José, exceto alguns versículos no capítulo 39, usa exclusivamente
"Deus", e não mais o nome próprio do Deus de Israel. Sobre a base deste emprego dife-
renciado dos nomes divinos se construiu uma primeira teoria sobre a composição do
Pentateuco. Na França foi Jean Astruc, médico de Luís XV, quem postulou em 1753
que o Pentateuco resultava da combinação de duas memórias (uma usando o nome
YHWH, outra o de Elohim). Essa distinção esteve na origem da teoria dita "dos
documentos" (ou "teoria documental"), popularizada no fim do séc. XIX pelo exegeta
alemão Julius Wellhausen.

A TEORIA DOS DOCUMENTOS

Essa teoria parte da ideia de que as diferenças estilísticas e a presença de diversas


versões para um mesmo relato ou uma mesma lei devem ser explicadas pela
combinação de fontes diferentes. Por trás do Pentateuco haveria quatro documentos
independentes na origem. Os redatores teriam juntado partes desses documentos para
compor o Pentateuco. Muitos autores pensavam que esses documentos não paravam nos
cinco primeiros livros da Bíblia, mas continuavam no livro de Josué, que segue o
Deuteronômio; a primeira parte da Bíblia teria sido composta inicialmente de seis
livros, formando um Hexateuco.
Com efeito, pode-se entender a conquista e a ocupação do país no livro de Josué
como o cumprimento da promessa da terra formulada desde o livro do Gênesis.
Todavia, parece que a lógica da Torá não é a de relatar o cumprimento dessa promessa,
mas a de agrupar relatos e leis que adquirem valor normativo. Esse princípio dá coe-
rência ao Pentateuco.
Três desses documentos teriam coberto a trama narrativa do conjunto do
Pentateuco, enquanto o quarto teria se limitado à versão primitiva do Deuteronômio.
O documento mais antigo foi chamado "javista" (abreviado pela inicial "J" na grafia
alemã), por empregar quase exclusivamente, desde o relato das origens, o nome próprio
YHWH para designar o Deus de Israel.
O documento javista teria contado a história do povo desde a criação do homem (Gn
2,4b-25) até a morte de Moisés (Dt 34) e mesmo até a conquista do país (Js 19). Datava-
se J do começo da era monárquica, mais precisamente sob o reinado de Salomão (cerca
de 940 a.C.). Frequentemente se considerava a vocação de Abraão em Gn 12,1-3 como
texto-chave de J; teria procurado lembrar Israel de que as promessas formuladas nesse
texto se cumpriram com a fundação da monarquia sob Davi e seu sucessor. Supunha-se
o javista oriundo de Judá, por causa da importância que dá a essa tribo. Não era
considerado um autor no sentido moderno do termo, mas antes um coletor de tradições,
reproduzindo numerosas tradições contadas desde antes da fundação da monarquia nos
santuários ou em certas tribos.
O documento eloísta (abreviado pela inicial "E") ganhou este nome pelo emprego
privilegiado do nome "Elohim" para designar Deus. M uito cedo um redator o teria
combinado com o javista - no "jeovista" (JE). Consequentemente, do eloísta só
subsistiriam fragmentos, notada- mente na história de Abraão (Gn 20-22). A partir do
livro do Êxodo é difícil localizar E; o mais das vezes se renunciou à tentativa de isolar E
de J. Segundo a teoria documental, os textos eloístas insistem amiúde no temor de Deus
e em um comportamento ético ditado por essa atitude. Pensava* se que E seria próximo
dos profetas do reino do Norte, o que tornava plausível uma origem em Israel (no
Norte) para E. Supunha-se que E teria sido recolhido em Judá logo após a destruição do
reino do Norte pelos assírios em 722 a.C.
Chama-se documento "D" à primeira versão do Deuteronômio, usada para justificar
a reforma do rei Josias em 622, destacadamente sua política de centralização em vista
de fazer do Templo de Jerusalém o único santuário legítimo. D liga as múltiplas
prescrições ao mandamento central do amor a Deus e descreve a relação entre Deus e
Israel com as categorias da Aliança e da eleição.
O documento mais recente está marcado pelas preocupações do meio sacerdotal, daí
sua abreviação pela inicial "P" [de Priester, "sacerdote"]. Esse documento começaria
pelo primeiro relato da Criação do mundo em Gênesis 1 para terminar com a morte de
Moisés ou com a entrada na terra prometida. P visa a legitimar as instituições
sacerdotais e rituais, como a circuncisão (Gn 17) ou a Páscoa (Ex 12). Pode ter sido
redigido durante ou após o exílio babilônico, momento em que o povo do Senhor estava
privado de suas instituições e de sua autonomia política. Avalia-se em geral que no
momento da formação do Pentateuco P haveria servido de documento de base e teria
sido completado por outros documentos.
No quadro desse modelo, valorizavam-se geralmente os documentos "antigos" (J,
E), essencialmente narrativos, enquanto D e P eram considerados puramente legalistas.
A teoria documental teve grande sucesso e ainda aparece em muitas obras dedicadas
à Bíblia. No entanto, esse modelo tem sido questionado desde 1975 e por diversas
razões. Antes de tudo, as datas atribuídas aos documentos javista e eloísta colocam
problemas. Parece cada vez menos seguro poder se postular a existência dessa primeira
trama narrativa a partir do séc. X a.C. Certos trechos atribuídos a J ou a E revelam de
fato similaridades admiráveis com a teologia e o estilo do Deuteronômio. Assim, por
exemplo, um texto como Ex 19,5: "se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha
aliança, sereis minha parte pessoal entre todos os povos", encontra paralelos no
Deuteronômio (Dt 7,6 e 28,9). O relato da vocação de Moisés em Ex 3 (atribuído a J e
E) mostra pontos em comum com a vocação de Jeremias e de Ezequiel, e não poderia
por conseguinte ter sido posto por escrito antes do séc. VI a.C. Estas observações
levaram muitos especialistas a aproximar o javista do deuteronomista2, e mesmo a fazer
de J um membro do meio deuteronomista.
Outros pesquisadores se inclinam ao abandono puro e simples da teoria documental.
Insistem na autonomia das grandes tradições narrativas e legislativas do Pentateuco:
estas teriam sido transmitidas inicialmente de forma independente, sem ligação com o
conjunto das tradições do Pentateuco. É possível, com efeito, ler certos conjuntos
literários como obra independente que não pede continuação. É notadamente o caso
2
Por seu caráter bem fragmentário, muitas vezes não se considera os textos eloístas como parte de um
documento independente, mas antes são vistos como acréscimos diversos aos textos mais antigos do
Pentateuco.
para o ciclo das origens na forma antiga não sacerdotal (Gn 2-8), ou ainda para a
história da saída do Egito (Ex 1—15); do mesmo modo, os códigos legislativos vieram à
luz sem enquadramento narrativo. Em tal perspectiva, o elo literário entre as diferentes
unidades maiores do Pentateuco só teria sido feito tardiamente.
Atualmente, nenhum modelo novo se impõe nas pesquisas sobre o Pentateuco. É por
isso que certos autores continuam a usar a teoria documental. Os inúmeros problemas
postos por esta última deveriam convidar a certa cautela. Existe em contraponto um
consenso parcial sobre dois dados fundamentais: a existência de textos sacerdotais na
Torá e a importância da era exílica e da primeira metade da época persa (séc. VI e V)
para a formação do Pentateuco. Estes dois dados devem servir de ponto de partida para
a análise da composição do Pentateuco.

O NASCIMENTO DO PENTATEUCO APÓS O EXÍLIO BABILÔNICO

A destruição de Jerusalém e o desterro de parte da população de Judá para a


Babilônia (597-587) provocaram uma grave crise de identidade no povo. Com efeito,
todos os pilares sobre os quais se fundava o vínculo entre Israel e seu Deus estavam
abalados: o rei exilado, o Templo - símbolo da presença divina — destruído e a terra —
vista como dom divino - sob domínio estrangeiro. Era necessário então encontrar outras
vias que permitissem dizer quem é o Deus de Israel e de que modo Ele intervém em
favor de seu povo. Pôr por escrito as tradições fundacionais (narrativas e jurídicas) foi a
resposta à crise.
Com o Pentateuco, Israel cria de certa forma uma "pátria portátil" que lhe possibilita
fundar sua fé mesmo em situação de exílio ou diáspora, enquanto se encontra longe de
sua terra!
A época persa constitui um momento propício para a redação da Torá, porque o
poder persa deixava certa autonomia religiosa aos povos integrados em seu império e
não parece que tenha sido hostil à codificação das tradições religiosas e jurídicas. A
tradição bíblica reflete ademais essa situação nos livros de Esdras e Neemias, em que
Esdras — escriba e sacerdote - vem a Jerusalém na condição de enviado do rei persa e
apresenta ao povo uma lei que este se compromete a respeitar. Esd 7 e Ne 8 guardam
talvez a lembrança de uma primeira versão do Pentateuco na época persa. Além disso,
os diferentes trechos da Torá refletem igualmente os debates que concernem à organiza-
ção do culto no período do Segundo Templo.
Para a Torá se tornar o documento em cujo seio as diferentes sensibilidades do povo
judeu podiam se exprimir e se reconhecer era preciso nela integrar e fazer coabitar
textos oriundos dos diversos meios intelectuais: além do meio sacerdotal, muito
influente, encontra-se igualmente um meio leigo, próximo das opções teológicas do
Deuteronômio. Existe um exemplo particularmente expressivo dessa convivência na
dupla transmissão do Decálogo. Em Ex 20, o mandamento do Sábado se funda na
recordação do repouso de Deus no sétimo dia da criação, o que remete ao final do
primeiro texto sacerdotal do Pentateuco (Gn 2,1- 3); em contrapartida, em
Deuteronômio 5 o Sábado se motiva pela situação de servidão de Israel no Egito,
insistência tipicamente deuteronomista. No entanto, há igualmente textos que não
provêm nem do meio sacerdotal nem do meio deuteronomista, por exemplo a história de
José, que pleiteia um judaísmo aberto e universal, aproximando-se das ideias da
Sabedoria.
Ao fim desse processo, a elaboração dos livros resultou num Livro, a Torá ou
Pentateuco, que se encerra com a recordação de uma promessa cujo cumprimento já está
a caminho. O livro está ao mesmo tempo fechado e aberto; o povo de Israel nele guarda
sua experiência de Deus.

OS TEXTOS SACERDOTAIS (P)

Os textos mais fáceis de identificar são os provenientes do ambiente sacerdotal. Os


traços mais marcantes do estilo dos textos sacerdotais são: certa sobriedade, gosto pelas
precisões numéricas, presença de genealogias, de listas, prioridade do que importa para
o culto e a liturgia. O interesse de P pelo santuário (Ex 25-31 e 35-40), pelos sacrifícios
(Lv 1-7) e pelo clero constituído por Aarão e seus filhos (Lv 8-10) corresponde ao
cuidado de organizar a comunidade judaica na era persa ao redor do clero e do Templo
reconstruído, sempre levando em conta a fragmentação geográfica do judaísmo. Com
efeito, encontram-se nos escritos sacerdotais ritos e festas que forjarão a identidade
judaica após o exílio babilônico, dados bem antes da revelação do culto no Sinai:
menciona-se o Sábado no momento da Criação (Gn 2,1- 3), os fundamentos das normas
alimentares após o dilúvio, a circuncisão se torna sinal da Aliança com Abraão e sua
descendência (Gn 17) e a celebração da Páscoa tem lugar nos relatos da saída do Egito
(Ex 12—13). Desse modo, esses ritos não se ligam a uma terra determinada, mas podem
ser cumpridos na diáspora; ademais, tornaram-se constitutivos do judaísmo até nossos
dias.
Os textos sacerdotais insistem em que o Deus de Israel é Deus de toda a
humanidade, Senhor de todo o universo; o ser humano, homem e mulher, é criado à sua
imagem e recebe a criação como dom pelo qual é responsável. Deus faz aliança com
toda a humanidade por meio de Noé (Gn 9); depois escolhe Abraão para ser pai de uma
multidão de povos e faz Aliança com ele (Gn 17). No seio da descendência de Abraão,
separa os levitas, e entre eles Aarão e sua linhagem, para que celebrem o culto em nome
de todo o povo. No santuário, no qual repousa a glória divina, realiza-se o encontro
entre Deus e os homens graças à mediação de Moisés e do sacerdote Aarão (cf. Ex 40 e
Lv 9).
Os textos sacerdotais não foram escritos de uma só vez. A redação sacerdotal da era
persa integrou em sua obra prescrições rituais mais antigas oriundas da época da
monarquia. Redigir o documento sacerdotal se estendeu provavelmente por gerações.
Assim, por exemplo, as prescrições sobre a Páscoa em Nm 9 são complemento do texto
sacerdotal de Ex 12-13. Não ter sido possível inserir este complemento no livro do
Êxodo mostra que à época da redação de Nm 9 já existia um texto de origem sacerdotal
em cujo conteúdo os redatores posteriores não mais podiam interferir. Coloca-se então a
pergunta do final do texto sacerdotal primitivo; tradicionalmente via-se este termo em
Dt 34 ou Js 19; o debate atual parece considerar um primeiro documento mais reduzido
que terminaria com a construção do santuário em Ex 40 ou com a inauguração do culto
em Lv 9. Esse debate mostra em todo caso que os textos sacerdotais são complexos e
diversificados.

OS TEXTOS DEUTERONOMISTAS [D]

Tradicionalmente o documento "D" se limitava à parte mais antiga do livro do


Deuteronômio. Todavia, o estilo deuteronomista está igualmente presente em outros
livros que o precedem, notavelmente no Êxodo e parcialmente também em Números. É
o caso do relato da vocação de Moisés, inserido entre Ex 2,23a e 4,19 — dois versículos
que na origem se seguiam. Em Ex 3 Moisés é considerado o primeiro dos profetas
conforme Dt 18,15. Neste relato encontra-se um vocabulário que é o do Deuteronômio e
dos livros que dele dependem (Josué-Reis, o que muitas vezes se chama de "história
deuteronomista"), como, por exemplo, a fórmula "terra que mana leite e mel", a
expressão "Deus dos pais", a lista dos povos habitantes da terra prometida. A versão não
sacerdotal do relato das pragas do Egito (Ex 7-ll) igualmente parece marcada pela
teologia e pelo estilo deuteronomista (cf. Dt 28), assim como o relato da conclusão da
aliança no Sinai (Ex 19-24) ou ainda o episódio do bezerro de ouro (Ex 32—34), que
ademais se encontra de novo em Dt 9—10. O nexo entre esses textos e o Deuteronômio,
e até mesmo a história deuteronomista, pode ser explicado de diversas maneiras. O que
é seguro é haver um nexo entre textos do Êxodo e dos Números3 e o meio dos escribas
deuteronomistas.
A teologia deuteronomista tem seu ponto de partida no livro do Deuteronômio (cf.
Introdução desse livro), construído sob a forma de aliança entre YHWH e Israel e tendo
no centro um código legislativo (Dt 12—26). Esse código se apresenta como o conteúdo
da Aliança entre o SENHOR e Israel. As motivações para as leis que aí se encontram se
referem constantemente aos eventos ligados à saída do Egito (Dt 4,31; 16,3 etc.), cuja
atualidade o Deuteronômio ressalta para "o dia de hoje" (Dt 1,10 e nota). A exigência de
um santuário único (Dt 12) permite colocar essa obra literária em relação com a reforma
política e cultuai feita pelo rei Josias em 622 (cf. 2Rs 22-23), mesmo se o "livro da lei"
que lhe foi base seja apenas uma versão primitiva e breve do Deuteronômio.
O livro desenvolve uma teologia da unicidade do Deus de Israel. À insistência sobre
o lugar único de culto correspondem a exortação à veneração exclusiva do Deus do
Israel (Dt 6,4-5) e o alerta contra o culto dos "outros deuses", praticamente nunca
chamados por seu nome. Essa adoração exclusiva do SENHOR se funda sobre a ideia de
eleição, que implica da parte de Israel separação estrita dos, outros povos e de suas
práticas religiosas (cf. Dt 7).
A atenção prestada no Deuteronômio aos levitas, nele descritos como detentores da
Lei (Dt 33,8-11) e pregadores ao lado de Moisés (Dt 27,9), muitas vezes foi interpretada
como sinal de que o Deuteronômio seria obra do ensinamento dos levitas. Ora, em
numerosos textos os levitas aparecem como desempregados após a centralização do
culto em Jerusalém, o que torna difícil conceber que fossem os autores dos textos
deuteronomistas. De preferência, deve-se buscar esses autores entre os escribas e as
famílias influentes da corte real, tanto mais que o Deuteronômio retoma a terminologia
e o estilo de documentos assírios sem dúvida conhecidos na corte de Jerusalém.

3
A questão de presença de textos deuteronomistas no livro do Gênesis atualmente é muito debatida; não
se encontram nesse livro textos tão claramente marcados pelo estilo "D" como nos livros do Êxodo e dos
Números.
Após a destruição de Jerusalém e do Templo, o Deuteronômio foi relido e
reinterpretado à luz da catástrofe, que se encontra igualmente refletida nos textos
deuteronomistas do Pentateuco em geral. A recusa da palavra divina se torna doravante
nesses textos a chave de explicação para compreender o exílio, interpretado como
sanção divina. Só a escuta da palavra do SENHOR, que se dirige a cada geração de
leitores do Deuteronômio (Dt 5,3), oferece um caminho de salvação. O que pode se
tornar fonte de vida e alegria é colocar em prática as leis, as prescrições, os
mandamentos.

OS CÓDIGOS LEGISLATIVOS

No centro do Deuteronômio se encontra um código (Dt 12-26) cujas partes mais


antigas estavam originalmente ligadas à reforma de Josias. Ao mesmo tempo,
aparentemente esse código deuteronômico foi concebido para atualizar ou até mesmo
substituir o "Código da Aliança" que se encontra em Ex 21-23. (cf. a Introdução ao livro
do Êxodo). O Código da Aliança provém sem dúvida da época monárquica (séc. VIII) e
constitui assim o código mais antigo no seio do Pentateuco. Admite a diversidade de
lugares de culto, divergindo nisto do código deuteronômico.
Se bem que o Código da Aliança seja antigo, sua inserção entre Ex 19 e 24 se deve a
redatores tardios que quiseram conservar esse código apesar da novidade daquele de Dt
12—26.
Os autores sacerdotais integraram igualmente coletâneas contendo rituais ou
prescrições (cf. Introdução ao Levítico), como a lista de sacrifícios (Lv 1-7) e as regras
de pureza (Lv 1-15). A segunda parte do Levítico contém um conjunto chamado
"Código de Santidade" (Lv 17-26), que insiste na santidade da comunidade, o que
implica certo comprometimento de ordem ética. Discute-se a data desse Código de
Santidade: parece hoje em dia estar na encruzilhada das preocupações sacerdotais e
deuteronomistas. Os últimos redatores do Pentateuco cuidaram de fazer conviver esses
diversos códigos. Conservando sucessivos códigos, quiseram mostrar que a lei não é
realidade estática, mas deve ser continuamente interpretada e atualizada, assim como
testemunham ademais tanto as discussões rabínicas que a prolongam como os escritos
do cristianismo nascente.
AS TRADIÇÕES NARRATIVAS ANTIGAS

Os redatores sacerdotais e deuteronomistas tiveram à disposição tradições mais


antigas, bem diversas quanto à origem e à teologia, transmitidas de forma autônoma em
certos santuários e em parte talvez oralmente.
A importância de Hebron no ciclo de Abraão indica que a primeira versão deste
ciclo se processou no santuário de Mamré-Hebron. O ciclo do patriarca Jacó está ligado
ao reino do Norte, como o indicam as localidades que nele entram em jogo. Esta é sem
dúvida a gesta patriarcal mais arcaica.
A tradição da saída do Egito - com a de Jacó - é talvez a mais antiga do Pentateuco,
pois de certa forma é o núcleo ao redor do qual se construiu toda a Torá. A recordação
da saída do Egito retorna sem exceção em todos os textos da Bíblia hebraica que
resumem os eventos marcantes da história de Israel. É difícil determinar quando essa
tradição se fixou pela primeira vez por escrito.
A tradição da estadia de Israel no deserto, que se encontra no livro dos Números, é
testemunhada antes do exílio nos livros de Oseias e de Jeremias, aparentemente sob luz
bem mais positiva.
Embora restem muitas incertezas, pode-se assim mesmo afirmar que numerosas
tradições fundacionais contidas no Pentateuco encontram sua origem na época
monárquica, mas é sobretudo na época persa que as tradições são processadas e reunidas
para dar ao judaísmo nascente seu fundamento teológico e ritual.

A SIGNIFICAÇÃO DO PENTATEUCO

O Pentateuco nos põe diante de um povo, ou melhor, de uma comunidade religiosa,


e diz como Deus constituiu essa comunidade e como ela pode viver segundo a Aliança
que Ele concluiu com ela. O povo do Pentateuco é um povo santo (cf. especialmente Lv
17—26); "santo" quer dizer inteiramente consagrado a seu Deus, porque tudo lhe vem
desse Deus. Nenhuma instituição, nem mesmo a realeza, tão importante na vida
religiosa do antigo Oriente, tem existência independente. A autoridade suprema cabe à
palavra divina, de que Moisés é mediador, e que o livro da Lei conserva. Lei que não se
reduz a meros preceitos jurídicos, a ritos e regras, por nascer de uma história e nesta se
inserir continuamente.
A Torá é um livro dinâmico que permitiu ao judaísmo manter sua identidade ao
longo da história muitas vezes difícil e dolorosa.
O cristianismo herdou esses livros do judaísmo. Claro, vai lê-los de forma diferente
após a vinda de Jesus de Nazaré, que o Novo Testamento confessa como Messias e
Senhor, de acordo com a diversidade dos testemunhos dos apóstolos e evangelistas.
Cristo não veio para abolir a Lei, mas para lhe dar plenitude (Mt 5,17). E assim que o
Pentateuco continua de atualidade tanto para os judeus como para os cristãos, e todos
reconhecem nos cinco primeiros livros da Bíblia o projeto de salvação de Deus para
toda a humanidade.
INTRODUÇÃOAO LIVRO DO GÊNESIS

INTRODUÇÃO

O Gênesis é o primeiro livro do Pentateuco (cf. a Introdução ao Pentateuco). Como


indica seu nome (genesis em grego: começo; bereshit em hebraico: no começo), narra as
origens do mundo, da humanidade e do povo de Israel. Embora faça parte da Torá.
contém essencialmente relatos, assim como listas de ancestrais. Vale notar que a Bíblia
começa com uma história que engloba toda a humanidade, contando a criação do mundo
e dos homens. Ao fazer isso. partilha questões de outras religiões, a saber, as origens do
universo e o projeto de Deus criador para os homens. Os onze primeiros capítulos do
Gênesis contêm relatos que se contam entre os mais célebres da Bíblia: a criação. Adão
e Eva. Caim e Abel, o Dilúvio, a Torre de Babel. Essa abertura da Bíblia não é apenas
prólogo à história dos patriarcas e das matriarcas encontrada na segunda parte do
Gênesis. Ao contrário. os primeiros capítulos do Gênesis são reflexão profunda sobre o
homem, sua vocação, suas fraquezas e sua relação com Deus.
No Pentateuco o livro do Gênesis constitui o começo de um vasto conjunto que
prossegue nos livros do Êxodo, do Levítico, dos Números e do Deuteronômio, e conta
como Deus escolheu para si do meio das nações um povo a quem vai se revelar e que
será chamado a ser sua testemunha. A história do povo de Israel começa propriamente
no livro do Êxodo quando da libertação dos escravos hebreus da opressão egípcia. Os
patriarcas, por outro lado, se encontram no país de Canaã e aí residem sem maiores
problemas. É a última história do Gênesis, o romance de José, que faz a ponte com os
livros seguintes e conta como os ancestrais deixaram a terra de Canaã para se instalar no
Egito. Se o Gênesis funciona como o prelúdio ao grande relato da libertação e da
condução do povo à terra prometida, que cobre os outros quatro livros do Pentateuco, o
primeiro livro da Bíblia tem certa unidade e características estilísticas que o distinguem
dos livros seguintes. O que importa no Gênesis é a universalidade de Deus. Ele é o
criador de toda a humanidade. A eleição de Abraão não se opõe a essa teologia
universa- lista, porque esse patriarca não é só antepassado dos israelitas, mas também
das tribos árabes e igualmente parente dos moabitas e amonitas, vizinhos de Israel e de
Judá a leste do Jordão. Nada surpreende o papel importante das genealogias no livro do
Gênesis, quase totalmente ausentes dos outros livros da Torá.
Como todos os livros do Pentateuco, o Gênesis não foi composto de uma só vez. Ele
resulta de um trabalho literário continuado por várias gerações. Reflete, pois, as
experiências às vezes doloridas daqueles e daquelas que se consideram oriundos de
Abraão. Supõe assim uma tradição viva, constantemente relida e reinterpretada em
função das vicissitudes da história de Israel. Não se compreende o texto atual caso não
se leve em conta a necessidade de reatualizar o testemunho da intervenção de Deus no
mundo e na história de seu povo. Tem-se eco disso nas redações sucessivas do texto
sagrado, mas estas não anulam os primeiros esboços sobre os quais se fundam. Elas os
enriquecem com dados novos. Um exemplo impressionante disso no livro do Gênesis é
a história do ancestral que faz passar a esposa por sua irmã, um relato em três versões
diferentes, nos capítulos 12, 20 e 26. O leitor é desafiado a comparar as três versões e
atualizá-las.

COMPOSIÇÃO E FONTES

Divide-se geralmente o Gênesis em duas partes: Gn 1—11 tratam dos começos


da humanidade no universo criado por Deus; Gn 12-50 apresentam a vida dos patriarcas
e se subdividem em três ciclos de relatos sobre Abraão (12-25), Isaac e Jacó (26-36) e
José (3 7—50). Os diferentes ciclos narrativos não foram transmitidos juntos desde o
começo: é bastante claro que se deve ter contado no norte a gesta de Jacó (pois lá se
situam os lugares que o relato evoca), enquanto a história de Abraão — instalado em
Hebron - é do sul de Judá. A reunião das diferentes tradições dos Patriarcas e sua
interligação com os ciclos das origens se fizeram sucessivamente por intervenção de
vários redatores. é bastante difícil saber quem reuniu pela primeira vez as tradições
encontradas no livro do Gênesis. Pode-se, no entanto, dizer que a composição
"sacerdotal" do Gênesis (que se designará com a sigla "P"; cf. Introdução ao
Pentateuco) reuniu num vasto conjunto a maioria dos temas contidos no livro. Os
autores oriundos do meio sacerdotal, que redigiram sua obra depois da reconstrução do
Templo de Jerusalém (a partir de 520 a.C.), deram uma unidade às diferentes tradições
do Gênesis ao introduzir os títulos de "geração de" ou "história de", que organizam
assim o Gênesis numa série de sequências que vai da criação do mundo à história de
Jacó. Esses títulos se encontram em Gn 2,4: a criação do céu e da terra; 5,1: a
descendência de Adão; 6,9: a história de Noé; 10,1 e 10,32: a descendência dos filhos de
Noé; 11,10: a descendência de Sem; 11,27: a descendência de Terah (que introduz a
história de Abraão); 25,12-13: a descendência de Ismael; 25,19: a descendência de Isaac
(que introduz a história de Jacó); 36,1-9: a descendência de Esaú; 37,2 : a descendência
de Jacó (que introduz a história de seus filhos). Por esse sistema que alterna listas
genealógicas e relatos os autores sacerdotais sublinham a unidade do Gênesis, que
apresenta assim a história dos Patriarcas como parte da história da humanidade. Ao
mesmo tempo vemos aí um Deus que se manifesta sucessivamente nessa história. O
esforço dos redatores que se empenharam em acentuar a coerência do Gênesis não poliu
as divergências existentes entre suas diversas partes.

A HISTÓRIA DAS ORIGENS [GN 1-11]

Para a história da criação e do dilúvio encontram- se no Gênesis dois relatos


diferentes: o dos sacerdotes e um texto anterior cuja autoria é difícil de identificar com
segurança, mas que, no entanto, parece muito influenciado pela sabedoria israelita. A
diferença entre os dois relatos salta aos olhos. Segundo Gn 1,1-2,3 (sacerdotal), o casal
humano é criado ao mesmo tempo; o homem e a mulher são chamados "imagem de
Deus"; enquanto para 2,4-3,24 Deus cria primeiro Adão, e só depois de ter dado vida
aos animais, por último, forma Eva, utilizando uma costela de Adão. Sem dúvida, o
relato antigo das origens compreendeu três peças: criação do homem e da mulher e
expulsão do paraíso (Gn 2-3); Caim e Abel e o primeiro assassinato da humanidade (Gn
4); o dilúvio e a aliança com Noé (Gn 6-9).
Pode-se qualificar tais relatos de "míticos", no sentido em que se situam fora da
cronologia histórica. Tentam resolver as questões da humanidade: nossas origens, a
sexualidade, a morte, a liberdade, a violência, o fim do mundo. Os autores bíblicos
partilham essas indagações com seus vizinhos do Oriente Próximo antigo, de cujas
tradições, aliás, não hesitaram em haurir. As descobertas arqueológicas do fim do séc.
XIX mostraram, com efeito, muitos pontos comuns entre as primeiras páginas do
Gênesis e textos líricos e sapienciais, nomeadamente da Mesopotâmia. Particularmente
próximas de Gn 2-8 estão a história babilônica da criação pelo deus Marduk, chamada
Enuma Elish, a versão mesopotâmica do dilúvio integrada nas aventuras do herói
Gilgamesh, a epopeia de Athra-hasis (o "Supersábio"), que combina, como o Gênesis,
um relato da criação e um relato do dilúvio. As primeiras tradições bíblicas referentes às
origens podem ter surgido nas proximidades do séc. VII, mas a data exata importa
pouco. A importância do texto reside em sua maneira realista de descrever as di-
ficuldades da existência humana, sem, porém, se perder no pessimismo. Ao contrário, o
autor insiste em que Deus respeita a liberdade do homem e, apesar de suas faltas, não
rompe sua relação com ele. A essa história veio se juntar o relato da Torre de Babel, que
tenta explicar a origem das diversas línguas e culturas. Esse relato se inspira nas grandes
torres construídas pelas cidades mesopotâmicas em honra de suas divindades, mas
igualmente pode se referir aos trabalhos da construção de uma nova capital pelo rei
Sargão em 705 a.C., bruscamente interrompidos por razões desconhecidas.
O relato sacerdotal da criação se inspira também em tradições mesopotâmicas, se
bem que as transformando. A criação aparece no primeiro capítulo da Bíblia não mais
como combate divino contra os monstros do caos, mas como obra soberana do Deus
único.

AS TRADIÇÕES PATRIARCAIS [GN 12—50]

O Gênesis nos conservou os relatos de quatro ancestrais e suas esposas: Abrão e


Sara (Gn 12-25), Isaac e Rebeca (Gn 25-26), Jacó, Lia e Raquel (Gn 27-36), e José, que
desposou Asenat, filha de um sacerdote egípcio (Gn 37-50).
Entre os patriarcas, Isaac é a figura mais apagada. Poucos relatos se referem a ele e
todos têm paralelos na saga de Abraão. Se se abstrai de Isaac, constata-se que o Gênesis
apresenta três tipos de antepassados: Abraão, o antepassado comum por excelência, pois
sua descendência consiste também de numerosas tribos árabes; Jacó, o pai das doze
tribos; e José, o antepassado da diáspora, isto é, do judaísmo da dispersão. No entanto,
as diferenças entre essas figuras aparecem sobretudo no plano literário.
As tradições sobre Abraão verossímilmente se transmitiram em Hebron, pois é aí
que finalmente o patriarca vai se estabelecer, e igualmente aí estão sepultados Sara e
Abraão. O primeiro texto fora do Pentateuco que cita Abraão é Ez 33,24: "Filho de
homem, os habitantes dessas ruínas que se encontram no solo de Israel dizem: Abraão,
que estava sozinho/tomou posse dessa terra; nós somos numerosos e é a nós que a terra
é dada em posse". «Segundo este texto, que reflete a situação da época do exílio
babilônico (597-539 a.C.), a população não deportada justifica assim seu direito à posse
da terra contra a reivindicação dos deportados (cf. também Ez 11,15). Esse texto
pressupõe que Abraão é personagem conhecido, que não precisa se apresentar. O que
significa que as tradições a respeito devem ser anteriores ao séc. VI antes de nossa era.
Relatos orais -(quem sabe também escritos) sobre Abraão e Sara existiam certamente na
época da monarquia judaísta, notadamente no santuário de Hebron.
As tradições sobre Jacó provêm do reino do Norte e sem dúvida são mais antigas
que as tradições sobre Abraão. Um texto do livro de Oseias que data do séc. VIII a.C.
pressupõe em seu público não uma noção vaga do patriarca Jacó, mas antes o
conhecimento dos principais episódios constitutivos da gesta de Jacó, tal como se
encontra hoje no livro do Gênesis: "No seio materno ele suplantou seu irmão e, chegado
à idade madura, lutou contra Deus. Lutou com um Anjo, venceu, ele chorou e suplicou-
o. Em Betei ele o encontrou. .. Jacó fugiu para as planícies de Arâm e Israel serviu por
uma mulher" (Os 12,4-5.13-14). Mais para negativo, este resumo da história do
patriarca alude aos episódios seguintes: as falcatruas de Jacó com seu irmão (Gn 25 e
27); o combate entre Deus e Jacó (Gn 32); a visão de Deus em Betei (Gn 28); os anos de
serviço para poder desposar Raquel (Gn 29). Oseias, pois, e seus ouvintes conhecem a
história de Jacó em suas grandes linhas. O "Israel", cuja origem a gesta de Jacó
descreve, não é o Israel monárquico. Reflete uma organização social em clãs e tribos e
sem poder central. Pode-se, portanto, imaginar para o ciclo de Jacó uma origem oral da
época pré-monárquica (fim do segundo milênio antes de nossa era). A primeira versão
da história de Jacó põe em cena um clã homogêneo que se destaca de um grupo Arameu
(o de seu sogro Labão). Embora difícil de comprovar, é possível que inicialmente a
história de Jacó tenha sido a lenda de um clã autodenominado "filhos de Jacó", antes de
se tornar, pela identificação de Jacó a Israel (Gn 32,39), o relato da origem de todo
Israel.
As tradições sobre José nos levam a um mundo totalmente diverso, o do Egito. Às
vezes se pensou que esse romance teria sido escrito no tempo de Salomão, para instruir
os jovens cortesãos, mas, afora Gn 37-50 e com exceção do SI 105, o restante da Bíblia
ignora a história de José. Essa observação pleiteia por datação mais tardia, o que se
confirma pelo estudo dos nomes Egípcios e pelas alusões aos costumes e instituições do
Egito faraônico. Pode-se, pois, situar a origem do romance de José na comunidade
judaica do Egito na época persa. José se torna exemplo para mostrar aos leitores como
se pode ser verdadeiramente judeu vivendo em meio a pagãos. O livro do Gênesis
termina assim com uma mensagem de esperança para todos os Judeus que vivem na
diáspora. >>
Abraão, Jacó e José compartilham o destino de todos os ancestrais lendários: o de
serem dificilmente captáveis pelo historiador. Ademais, nenhum dos relatos sobre os
patriarcas procurou datar suas aventuras. O modo de vida dos patriarcas é atestado ao
longo de toda a história do Oriente Próximo antigo até nossos dias. Os temas que
aparecem nos relatos dos homens e das mulheres que estão na origem de diversos povos
não cessaram de interpelar crentes e não crentes.

TEMAS E FIGURAS

Numerosas intrigas pontuam o livro do Gênesis: mencionar-se-á o tema da


rivalidade entre irmãos, que se abre com o relato dramático de Caim e Abel (Gn 4) e
prossegue com Ismael e Isaac, Esaú e Jacó e finalmente com José e seus irmãos. Trata-
se de motivo recorrente da literatura que os autores do Gênesis retomam para descrever
as relações difíceis no seio de uma comunidade ou família. Esse tema se abre com um
assassínio e termina em Gn 50 com a possibilidade da reconciliação.
O ciclo das matriarcas e dos patriarcas é marcado pela questão da descendência. A
história da família de Abraão se abre com uma notícia sobre a esterilidade de Sara; o
leitor imediatamente se indaga que futuro poderia ter essa família, e quando finalmente
Sara tiver dado à luz o filho da promessa Deus mesmo mandará Abraão sacrificá-lo,
mas intervirá, apesar das evidências, para salvá-lo e assegurar descendência a Abraão.
Esse tema se prolonga no ciclo de Jacó, que apesar de suas trapaças vai se tornar o
antepassado das doze tribos. O romance de José marcará finalmente a passagem dos
doze filhos para o povo de Israel que se expõe no início do livro do Êxodo.
O Gênesis é rico em temas e figuras que se reencontram em outros lugares da
Bíblia e que a tradição tanto judaica como cristã não deixará de meditar. Assim, o
Gênesis se abre com o relato da criação, cantada nos Salmos (SI 8; 104) e evocada pelo
autor na segunda parte do livro de Isaías. O apóstolo Paulo comparará a atitude de Adão
no jardim do Éden com a de Cristo, novo Adão (Rm 5; 1Cor 15). Depois de Moisés,
Abraão é o personagem que o Novo Testamento mais cita e frequentemente chama de
"pai", à maneira dos textos judaicos do séc. I. Para os autores do Novo Testamento (cf.
Rm 4; Jo 8), porém, a paternidade de Abraão não se baseia mais em critérios
genealógicos: Abraão é pai de todos aqueles que seguem suas obras e se reconhecem na
grande descendência que Deus lhe havia prometido. O sacrifício do filho de Abraão (o
"amarramento de Isaac") em Gn 22 marcou fortemente tanto o judaísmo como o cristia-
nismo. Na Igreja dos primeiros séculos esse relato se torna prefiguração da Sexta-feira
Santa, enquanto na hermenêutica judaica com frequência se interpreta o sacrifício de
Isaac como símbolo de todos os sofrimentos que o povo judeu teve de suportar ao longo
dos séculos.
Tanto Judeus como Cristãos releram século após século o primeiro livro da Bíblia
para apreender nele o mistério da origem do mundo e o sentido de seu destino, para
descobrir nele a intervenção de Deus em favor de toda a humanidade e dos ancestrais de
seu povo. Numerosas personagens da Bíblia marcam não somente a teologia, mas
também a filosofia e a literatura; o par Adão e Eva, que representa com sutileza e
realismo a condição humana e no qual somos chamados a nos reconhecer; Noé, que
encontrou graça diante dos olhos do SENHOR e executou suas ordens; e, sobretudo, os
patriarcas e matriarcas: Abraão, o pai dos crentes, a quem igualmente se referem Judeus,
Cristãos e muçulmanos, testemunha uma fé e uma esperança que o comprometem até o
fim; sua mulher Sara, que apesar da esterilidade dará à luz Isaac, e Hagar, antepassada
dos Ismaelitas, expulsa pelo casal patriarcal, mas socorrida por Deus (Gn 16 e 21); Jacó,
enganador e enganado, pronto para tudo para arrancar uma bênção, e que vai ser
transformado até em seu nome pelo encontro com Deus (Gn 32); suas mulheres Lia e
Raquel, que com as próprias escravas estão na origem das doze tribos de Israel (Gn 29-
31); José, traído por seus irmãos e que se torna salvador deles, e cujo casamento com a
filha do grão-sacerdote mostra a possibilidade de integração em outra cultura. Seu
destino será interpretado como obra de Deus, capaz de tudo fazer concorrer para o bem,
malgrado as evidências.
A riqueza do Gênesis em temas e figuras é uma abertura ao mundo da Bíblia, diante
do qual crentes e não crentes jamais cessam de se maravilhar.
INTRODUÇÃOAO LIVRO DO ÊXODO

INTRODUÇÃO

O título do livro do Êxodo provém dos tradutores gregos do Antigo Testamento:


com a palavra "êxodo", que significa "saída" 4, quiseram resumir seu conteúdo. Com
efeito, em seus quinze primeiros capítulos o Êxodo relata a saída dos israelitas do Egito.
O motivo da saída do Egito é central para a fé bíblica; ela constitui o momento fundador
de Israel em relação com um Deus que o liberta.
As vezes o Êxodo foi qualificado como o "Evangelho do Antigo Testamento", tanto
é verdade que, como o Evangelho neotestamentário, esse anúncio de salvação é a boa-
nova que constitui o fundamento da fé de Israel (Ex 13,14 ss.). Para o leitor do Antigo
Testamento, o Êxodo marca uma mudança considerável em relação ao livro que o
precede. Enquanto no Gênesis a relação de Deus se, faz com o indivíduo (Noé, Abraão,
Jacó), no Êxodo é principalmente com um povo que Deus entra em contato. Nesse sen-
tido, pode-se dizer que o Êxodo marca o nascimento do povo de Israel.
O livro do Êxodo faz parte de um grande complexo literário que não corresponde à
separação em livros. Com efeito, entre o livro do Êxodo e o dos Números os episódios
se encadeiam sem maior ruptura em um afresco que narra os eventos que levam os
israelitas do cativeiro no Egito à preparação de sua entrada na terra prometida. 5 Assim,
enquanto o começo do livro do Êxodo claramente se destaca daquele do Gênesis -
depois da chegada do clã de Jacó ao Egito, um longo período se passa até Israel se
tornar um grande povo —, a ruptura com o que se segue é menos nítida. Se a instalação
da nuvem nó santuário marca bem uma cesura (40,34-38), a permanência no Sinai só
termina em Nm 10, e os deslocamentos no deserto, que começam em Ex 15 a 18, conti-
nuam em Nm 10 ss.

CONTEÚDO DA OBRA

No livro do Êxodo os episódios se encadeiam de modo relativamente coerente e


formam um relato articulado em três grandes períodos: a presença de Israel no Egito
(1,1-15,21), a marcha no deserto (15-22) e a estada de Israel no Sinai (19,1-40,38).
4
O título hebraico é shemot, "os nomes", de acordo com as primeiras palavras em Êxodo 1,1.
5
O Deuteronômio constitui uma unidade coerente que se distingue claramente do que o precede.
A primeira seção se abre com a descrição da situação da partida (1-2). Os filhos de
Israel instalados no Egito (1,1-7) sofreram a opressão (1.8- 22). Segue-se, no capítulo 2,
o relato da infância de Moisés e de sua fuga para fora do Egito. O grito dos filhos de
Israel ouvido pelo SENHOR constitui a primeira viragem na obra (2,23-25). Os capítulos
3 e 4 descrevem a vocação de Moisés no deserto e sua volta ao Egito. Terminam com a
afirmação de que o povo creu (4,31), indicação que conclui igualmente o episódio da
passagem do mar (14,31), enquadrando assim o relato da libertação do Egito (5-14).
Após uma primeira missão abortada de Moisés junto ao Faraó (5) e a confirmação de
sua vocação (6), vem o relato das nove primeiras pragas e o anúncio da décima (7,8-
11,10). A instituição da Páscoa (12,1-13,16), que permite que os israelitas escapem da
morte dos primogênitos, é seguida pela passagem do mar, que marca definitivamente a
saída do Egito (13,17-14,31). O cântico de Miriam (15) fecha a primeira parte do livro.
A seção que relata o deslocamento no deserto e relativamente breve (15,22-18,27).
Os episódios da caminhada dos israelitas são marcados pelos problemas de
abastecimento de água (Mara, Massa e Meriba) e de alimento (maná), assim como pela
guerra com os amalecitas. O tema das queixas do povo está bem presente nessa seção. O
capítulo 18 contém um relato à parte, no decurso do qual Moisés reencontra seu sogro e
estabelece chefes e juízes do povo.
O relato de Israel no Sinai está organizado em quatro partes, que se correspondem
duas a duas. À conclusão da Aliança (19-24) corresponde sua ruptura pelo episódio do
bezerro de ouro e sua renovação (32-34). Entre esses dois episódios figura uma série de
instruções do SENHOR que concernem à construção do santuário móvel e à organização
de seu culto (23-31). Essas instruções se cumprem nos capítulos 35-40. Dois conjuntos
legislativos, os Dez Mandamentos (20,1-17) e o Código da Aliança (20,22-23,19), se
inserem no quadro narrativo da conclusão da Aliança.
Os célebres Dez Mandamentos (Decálogo) comportam, de um lado, interditos que se
referem à relação com Deus (recusa da idolatria) e, de outro, interditos que concernem à
relação com os outros. Entre essas séries de interditos, dois mandatos positivos tratam
do sábado e de honrar os pais. Pode-se entender essas prescrições muito gerais como um
comentário que explica os fundamentos do direito israelita. Outra versão dos Dez
Mandamentos figura em Dt 5. A diferença principal entre os dois textos se refere à
fundamentação do sábado. O elemento que no Êxodo legitima o sábado é o repouso
sacerdotal do SENHOR após a Criação, enquanto em Dt 5 a memória do cativeiro dá tal
fundamento.
O Código da Aliança é uma coletânea de leis na qual figuram leis religiosas e
cultuais, assim como leis que visam proteger grupos sociais frágeis (servos, forasteiros,
viúvas etc.). Distinguem-se em seu seio leis casuísticas e leis apodíticas.6

CONSTITUIÇÃO LITERÁRIA

Em razão de um longo e complexo processo, as hipóteses literárias sobre a formação


do Pentateuco são difíceis de elaborar. Essas questões foram abordadas na Introdução
ao Pentateuco. Remetemos o leitor a ela antes de formular algumas observações sobre
os problemas específicos do livro Êxodo.

TRADIÇÕES

O livro do Êxodo comporta três grandes conjuntos de tradições: o da saída do


Egito (1-15), o do deserto (16-18) e o da estada no Sinai (Ex 19- Nm 10). Esses
conjuntos tradicionais se transmitiram primeiro de forma independente antes de serem
anexados no grande quadro historiográfico conhecido. A maior parte dos resumos
históricos que o Antigo Testamento contém não cita a passagem pelo Sinai entre o Egito
e a terra prometida, 7 o que permite pensar que o elo entre as tradições sobre o Êxodo -
culminando com a Páscoa - e as tradições sobre o culto sacrifical sinaítico não seja
original. Quanto às tradições do deserto, desenvolvem-se principalmente no livro dos
Números.

OS TEXTOS SACERDOTAIS

Do ponto de vista da evolução literária da obra converge-se em distinguir no seio do


livro do Êxodo os textos provenientes do meio sacerdotal (P) dos textos oriundos de
outros ambientes.
Admite-se geralmente que a obra de inspiração sacerdotal foi elaborada durante a
época do Exílio e do regresso, e não foi redigida de uma só vez. Um estrato de base se
distingue do material secundário.
6
O direito casuístico se funda na jurisprudência e emprega fórmulas de "quando" e "se" para apresentar
um caso e indica suas consequências jurídicas (Ex 22,28). O direito apodítico, ao contrário, declara-se de
maneira incondicional, legitimado pela autoridade que o proclama (Ex 22,17).
7
Cf. Deuteronômio 6,20-25; 26,5-9; Josué 24; Salmos 78; 105; 135. Em Deuteronômio 1 a passagem no
Horeb não assinala de forma alguma a instituição do culto (Ex l9 ss.), mas uma organização do povo
análoga à que se encontra em Êxodo 18.
No livro do Êxodo os textos sacerdotais formam um relato contínuo e coerente.
Como alhures no Pentateuco, o material sacerdotal aparece em seções inteiras, de que
constitui quase o conjunto, assim como em unidades em que não representa mais que
um dos estratos literários. Entre os principais trechos sacerdotais do Êxodo se en-
contram inicialmente as genealogias de Êxodo 1 e a recordação da Aliança (2,23-25).
Segue-se a vocação mosaica (6,2-7,7), que se distingue do relato não sacerdotal que
figura nos capítulos 3-4,. uma parte do relato das pragas e a maior parte da instituição da
Páscoa (12). O relato da passagem do mar (13-14) é produto de mescla entre um texto
sacerdotal, que apresenta a separação das águas como fenômeno análogo ao de Gênesis
1. e um texto não sacerdotal, que descreve a passagem do mar como combate vitorioso
do SENHOR. O relato da marcha no deserto se estrutura por uma série de notícias
sacerdotais de itinerário.8 No episódio do Sinai os capítulos sobre a elaboração do
santuário e dos rituais (25-31 e 35-40) se distinguem facilmente das passagens não
sacerdotais (19,3-24,14 e 32-34). Os textos sacerdote do Êxodo mesclam material
narrativo (sobretudo em 1—18) c de natureza legislativa (em particular a instituição da
Páscoa e a construção do santuário). Tal diversidade é característica das técnicas
literárias sacerdotais.
Os textos sacerdotais insistem na necessidade dos rituais e do culto para o povo
libertado. Fazem igualmente o elo com a história dos Patriarcas, durante a qual, em sua
concepção, o Deus de Israel ainda não se tinha dado a conhecer sob o nome de "O
SENHOR" (6,22 ss.).

OS TEXTOS NÃO SACERDOTAIS

A redação dos textos não sacerdotais do Êxodo se estende por um período mais
longo que a dos sacerdotais. Se na maior parte são anteriores ou contemporâneos dos
textos sacerdotais, alguns são nitidamente posteriores. E certamente o caso de certo
número de unidades – como do Decálogo e outras9 – muito tardiamente incluídas em
seu contexto atual.
Muitas passagens do livro do Êxodo refletem uma concepção teológica próxima
daquela dos meios deuteronomistas. Particularmente a insistência na fidelidade a um
direito mais ético que cultuai caracteriza esses meios. Isso supõe um importante

8
12,37; 13,20; 14,1-2; 15,22.27; 16,1; 17,1; 19,2.
9
Certos exegetas pensam em Êxodo 3-4 e 19-24.
trabalho literário de retomada e reformulação de tradições ou de textos, realizado
também em ambientes não sacerdotais na época exílica e pós-exílica. Esse trabalho
literário, em parte contemporâneo ao ser realizado pelos meios sacerdotais, não se fez
deforma totalmente independente deles. Com efeito, a análise literária mostra
influências mútuas, assim como existência de vontade editorial de harmonizar as
correntes sacerdotais e deuteronomistas.
Enfim, muitos textos não sacerdotais provêm de materiais relativamente antigos. O
Código da Aliança (20,22-23,19) forma uma coletânea legislativa cuja fixação literária
remonta provavelmente ao fim do século VIII. A não centralização do culto, assim como
a insistência na proteção de categorias sociais frágeis, especialmente de imigrados de
origem israelita, correspondem bem ao contexto da monarquia judaísta posterior à
queda da Samaria. Relatos anteriores ao exílio poderiam estar na base de muitos
episódios. É provável que textos pré-exílicos que narram a "vida de Moisés" tenham
existido. Assinalar-se-á, por exemplo, que o relato do nascimento de Moisés é cons-
truído similarmente à lenda da origem do grande rei Sargão de Akkad; revela talvez o
desejo de colocar em pé de igualdade a figura ancestral a que recorre o Israel
monárquico e o soberano unificador da antiga Mesopotâmia. Quanto ao episódio do
bezerro de ouro, constitui verossimilmente uma reflexão sobre o culto do reino do Norte
(cf. os bezerros de Jeroboão em 1Rs 12,28 ss.), que poderia também remontar à época
real.

TEMAS TEOLÓGICOS

Do ponto de vista teológico, o Êxodo é o momento em que Deus se dá a conhecer a


seu povo. O motivo da revelação se declina de diversas maneiras no relato. Deus é o que
salva, liberta e dá a Lei. Além disso, o tema da revelação do Nome (3,13-15; 6,3), assim
como a impossibilidade de ver Deus (33,18-23; 40,35), levanta questões teológicas
essenciais sobre a identidade e a especificidade divinas.
O Êxodo é o relato da libertação de um povo vítima da opressão e do cativeiro. O
Deus do Êxodo se revela, pois, antes de tudo como Deus que resgata os oprimidos. O
Deus da Bíblia combate o mal sob todas as suas formas e dele liberta os homens. Lendo
o Êxodo em um contexto marcado por desigualdades sociais de consequências
frequentemente muito graves, os teólogos da luta social vêm insistindo no fato de que
no Egito é de uma sociedade injusta que os filhos de Israel são vítimas. Desde então,
esses teólogos encontram no Êxodo fundamento para a luta de suas Igrejas contra a
miséria e a injustiça no mundo contemporâneo.
No livro do Êxodo a intervenção divina se explica pela compaixão do SENHOR e pela
memória de sua Aliança. A queixa dos filhos de Israel no cativeiro (2,23-25) leva o
SENHOR a intervir, mesmo que esse grito não lhe tenha sido dirigido. O Êxodo exprime o
fato de que a salvação oferecida pelo Deus da Bíblia vem antes de todo procedimento
humano e sem mérito algum particular. Esse aspecto central da teologia do livro do
Êxodo se evidencia pela articulação mesma dos episódios. A Lei e a ordenação do culto
israelita são instituídas no Sinai (19-40), depois que o povo foi liberto do cativeiro
egípcio. É por essa razão que o percurso do livro às vezes se resume como caminho que
vai da servidão (no Egito) ao serviço (de Deus).
O motivo da fé e do comprometimento do povo aparece de maneira significativa no
interior da obra. Ele se encontra no começo e no fim do relato da libertação do Egito
(4,31 e 14,31), na adesão do povo à Aliança (24,2), assim como no zelo posto em
construir o santuário (35). Entretanto, a ausência de qualquer mérito particular de Israel
é evidenciada pelo tema recorrente das murmurações e revoltas. Os israelitas se
revoltam contra Moisés após o fracasso de sua primeira intervenção junto ao Faraó
(5,20-21), antes da passagem do mar (14,10-12), durante o percurso do deserto (15,24;
16,2-3; 17,3) e sobretudo quando do episódio do bezerro de ouro (32). Essas múltiplas
revoltas mostram bem que a época fundacional de Israel não deve ser entendida como
idade de ouro da relação entre Deus e seu povo, mas sim como o começo de relações
instáveis feitas de bons e maus momentos.
As revoltas, os questionamentos, as dúvidas do povo não deixam ler ingenuamente
o maravilhoso que caracteriza a intervenção divina no curso do Êxodo (cf. as pragas, a
passagem do mar, o maná, a nuvem etc.), nem compreender a intervenção divina como
evento que necessariamente deslumbra e compele. Mesmo nas condições "ex-
traordinárias" descritas pelo relato, a confiança no SENHOR continua um desafio.
Os textos do Êxodo instituem as práticas rituais da Páscoa (12) e do Sábado (31).
Além disso, encontra-se no livro do Êxodo toda uma reflexão sobre a noção de culto. O
conjunto dos capítulos 25-31 organiza o culto ao ordenar a ereção de um santuário
móvel, as práticas rituais a ele ligadas e a consagração dos sacerdotes. Esse santuário -
que prefigura o templo de Jerusalém e seu culto - só é construído e consagrado (35-40)
após o episódio do bezerro de ouro e a renovação da Aliança. Esses capítulos terminam
(40,34-38) com a nuvem, até aí sem moradia, instalando-se sobre o santuário, para
assim legitimá-lo com a presença divina.10 É assim que a maior parte das práticas
judaicas se liga à gesta do Êxodo.
Ao lado dessa perspectiva essencialmente cultuai, o fato de os capítulos 19 a 24
comportarem toda uma série de regras sobre questões de ética social sugere a
compreensão da Aliança de Deus com seu povo em termos de respeito à Lei (24,3),
mais que em termos rituais. Esse tipo de teologia não deixa de lembrar aquela
encontrada no Deuteronômio.
Convém enfim mencionar a figura onipresente de Moisés, libertador, chefe e
organizador do povo (18), mediador entre Deus e os homens (20,18.21), legislador
(24,3.12) e primeiro; sacerdote (40,16 ss.). No livro do Êxodo, Moisés cumpre todas as
funções de governo em Israel.

O ÊXODO NA BÍBLIA

O Êxodo teve ressonância considerável dentro da Bíblia.


Na história deuteronomista11 o tema da subida para fora do país do Egito vai se
tornar verdadeiro refrão, recordando a obra divina em prol de seu povo e suscitando a
esperança dos leitores exilados na Babilônia. Evocações ao Êxodo encontram-se nos
grandes discursos deuteronômicos, como o discurso de despedida de Samuel (1Sm 12,6
ss.), o discurso de Salomão quando da dedicação do santuário (1Rs 8,14 ss.) ou a
reflexão sobre a queda do reino do Norte (2Rs 17,7 ss.). Em Deuteronômio 6,21 é bem a
primeira coisa que os pais de família judeus são convidados a ensinar a seus filhos para
explicar a razão de ser das leis: "Tu dirás a teu filho: nós éramos escravos do Faraó no
Egito, mas com mão forte o SENHOR nos fez sair do Egito.
No tempo do exílio na Babilônia, o autor do Segundo Isaías (Is 40—55) também
não deixará de desenvolver a ideia de que chegou o tempo para o novo Êxodo (Is 43,16-
21): a libertação maravilhosa de uma terra de cativeiro (Is 48,20-22; 49) seria
acompanhada da libertação dos pecados (Is 40,2; 44,21-22) e de um apelo a todas as
nações para se voltarem Aquele que, tendo salvado Israel, é capaz de salvá4as todas (Is
45,4-25).

10
O tema da nuvem enquadra a construção do santuário, pois Moisés nela entra antes de receber as
instruções referentes ao santuário em 24,18.
11
O mesmo fenômeno aparece nos textos proféticos de inspiração deuteronomista, com Je remias 7,25.
O Êxodo ocupa lugar central em muitos" textos datados do período do Segundo
Templo. Pense-se especialmente naqueles da liturgia do Saltério (cf. SI 78; 105; 114;
135; 136) ou em Ne 9 e Js 24.
No judaísmo, percebe-se o Êxodo como experiência fundante. A memória desse
evento ocupa lugar considerável na liturgia. Os ritos da Páscoa visam rememorar os
eventos da saída do Egito e torná-los de novo presentes a cada ano nas famílias judaicas.
O cristianismo também utilizou o tema do Êxodo. Os autores do Novo Testamento
consideraram a salvação trazida por Jesus Cristo como realização do Êxodo de Israel. A
última refeição de Jesus, sua morte e sua glorificação foram relacionadas com a Páscoa
(Lc 22,14-20; Jo 13,1-3; 19,36); textos (Jo 6,1; 1Cor 5,7; 10,2-4) usam as expressões
maná, passagem do mar. água do rochedo, Páscoa, pão sem fermento para falar do
Batismo e da Eucaristia. O Apocalipse celebra Cristo como o Cordeiro Pascal (Ap 5.6).
as pragas que atingem a bosta são retomadas das do Egito (Ap 15,5-21) etc. As leituras
cristas do Êxodo foram abundantemente exploradas pelos Padres da Igreja c aparecem
na liturgia crista, A titulo de exemplo, assinalemos a leitura da passagem do mar e o
Cântico de Moisés (14—15) durante a noite pascal, tanto na liturgia bizantina como na
romana, assim como o lugar do Decálogo na catequese das Igrejas.

HISTORICIDADE DO ÊXODO

A questão da historicidade dos eventos do Êxodo tem suscitado e provoca ainda


grande debate. Convém antes de tudo precisar que uma focalização sobre essa pergunta
não faz justiça ao livro do Êxodo. Com efeito, não se trata de um livro de história no
sentido moderno do termo, mas de um relato teológico que visa confessar uma fé e
provocar reflexão.
Como vimos acima, a redação do livro do Êxodo se desenrolou em diversas etapas,
situadas principalmente entre o período dos reis e a época persa. Vários séculos separam
pois os redatores dos eventos narrados. Se essa constatação lança dúvida sobre a
exatidão dos dados históricos fornecidos pelos textos, de forma alguma implica que o
relato não se baseie em um fato histórico. Com efeito, a memória de eventos tão
importantes como os da saída do Egito pode ter perdurado ao longo dos séculos nas
tradições das populações antes de encontrar sua forma escrita definitiva.
A documentação extrabíblica, em particular egípcia, até o momento não forneceu
um documento que permita confirmar o relato bíblico, nem mesmo identificar esse ou
aquele personagem. Contudo, tudo que se sabe do Egito entre os séculos XVI e XI antes
de nossa era apresenta um quadro compatível com a fuga de um grupo de semitas em
direção à Palestina e depois sua instalação nela. Durante esse período o Egito controlava
grande parte da Síria- Palestina, sem cessar de usar mão de obra semita reduzida ao
cativeiro.
Em relação aos eventos que constituem o núcleo histórico do Êxodo pode-se
considerar vários contextos. Cada vez menos os historiadores estão associando o relato
bíblico com a expulsão dos (semitas) hicsos do Egito por volta de 1560 a.C. 1 Rs 6,1
menciona que a saída do Egito precede em 480 anos a ereção do Templo de «Salomão,
o que dataria o Êxodo por volta de 1450 a.C. Ocorre porém que toda evidência é de que
esta cifra de 480 resulta de um cálculo teológico de fundamento histórico duvidoso (12
sacerdotes entre Aarão e Sadoq, multiplicados por 40 anos).
Muitos estudiosos preferem situar o Êxodo no século XIII. Com efeito, durante esse
período a 19a dinastia (a de Ramsés II) instala sua capital no delta do Nilo e procede aí a
grandes trabalhos de construção. As cidades de Pitom e Ramsés (1,11) são atestadas por
documentos egípcios desse período; ademais, essa datação fica compatível com a
menção, sobre a esteia de Merneptah, da vitória desse soberano egípcio sobre um grupo
semita chamado "Israel" instalado em Canaã (~ 1230). Aventou-se época mais tardia
com base em um episódio ocorrido na corte egípcia no fim da 19 a dinastia (~ 1187). Um
semita de nome B Y ocupava o poder graças ao apoio da rainha Tausret e é forçado a
fugir do Egito, cassado do poder por Sethnakté. A identificação de B'y com Moisés se
apoia não somente no episódio da fuga em direção do deserto, mas também no nome
egípcio do personagem.
Pode-se perguntar se convém bater o martelo entre as diversas possibilidades de
datação acima contempladas. Com efeito, as tradições que serviram de base para a
redação do livro do Êxodo foram provavelmente múltiplas, a tal ponto que o Êxodo
bíblico bem que poderia ter tido o traçado de um longo processo, mais que de um
evento preciso.
INTRODUÇÃO AO LIVRO DO LEVÍTICO

LUGAR E PAPEL DO LIVRO

O livro do Êxodo termina com a construção da Tenda do Encontro (40,16-33), que o


Senhor imediatamente legitima vindo se instalar na nuvem sobre ela (40,34-38).
As primeiras palavras do Levítico12 exprimem à sua maneira essa mesma
legitimação. Enquanto no Êxodo o Senhor falava a Moisés no topo do Sinai, agora o faz
"da Tenda da Reunião".13
Em 27 capítulos Deus vai transmitir a seu povo "suas leis e seus costumes", porque
"é colocando- os em prática que o homem tem vida" (18,5). Em suma, vai lhe explicar o
bom uso dessa "Tenda", a fim de que ela seja realmente um lugar de "encontro": um
erro ritual (1—10), uma impureza física (11—16) ou uma infidelidade moral (17-26)
não devem impedir essa comunhão de vida. 14 É por isso que se descreve tudo com
muitos pormenores.
Contudo, o Levítico só apresenta certos aspectos do culto israelita. É talvez no
Saltério que se deve buscar as preces e os cânticos que acompanham os ritos. De sua
parte, os profetas (p. ex. Jr 7,3-11) e os sábios (Sr 34,18-35,10) relembram a Israel que
não basta cumprir os ritos para obter a salvação. No entanto, o que o Levítico quer fazer
penetrar na consciência dos fiéis, e com insistência incansável, é que a comunhão com o
Deus vivo é a verdade última do homem.

ORIGEM E CONTEÚDO DO LIVRO

Em seu estado atual e canônico, o texto foi redigido depois do Exílio, se bem
que reúna um conjunto relativamente coerente de elementos de origens diversas, dos
quais alguns podem remontar ao período antes do Exílio. Na época em que o poder
político do sacerdócio ia aumentando por não haver mais rei e o profetismo estava em
vias de desaparecimento, sacerdotes de Jerusalém reuniram e completaram diversas
coleções de leis e de rituais para as necessidades do Segundo Templo.
Na primeira seção (1—7) apresentam -se diversas categorias de sacrifícios que o
israelita pode. ou deve oferecer a Deus em certas circunstâncias Trata-se sobretudo de
uma codificação de rituais segundo a perspectiva sacerdotal. que lembra tanto as
obrigações do oferente como as do sacerdote. Não se encontrará aí nada sobre a origem
e o significado dos sacrifícios e rituais. Por alusões ou comparações, só se pode

12
Este título designa o livro dos sacerdotes, membros da tribo sacerdotal de Levi. O título hebraico do
livro consiste simplesmente da primeira palavra do texto, wayyiqra = "ele chamou". Em sua totalidade, o
livro faz parte da "tradição sacerdotal" (cf. Introdução geral ao Pentateuco).
13
Em algumas passagens (cf. 25,1; 26.46; 27,34). no entanto. Deus ainda fala do topo do Sinai.
14
Para o Levítico, o culto e o sacerdócio constituem a mediação essencial entre Deus e os homens. Outras
correntes de pensamento no Antigo Testamento buscaram essa mediação na pessoa do rei ou do profeta.
constatar que Israel tomou emprestado o princípio do sacrifício das religiões do Oriente
Antigo e soube preencher esse quadro ritual com conteúdo novo, correspondente à sua
visão do mundo e ao seu conhecimento de Deus.
A segunda seção (8-10) descreve os ritos que se desenvolvem por ocasião da
investidura sacerdotal de Aarão e seus filhos. Esses três capítulos prolongam o que foi
dito no capítulo. do livro do Êxodo a respeito da consagração dos sacerdotes. Estes
aparecem aí com toda a clareza na função de mediadores, o que implica exigência parti-
cular de santidade, uma vez que devem servir de intermediários entre o povo e o Deus
santo.
A terceira seção (11-16) elenca diversos tipos de impurezas que impedem o homem
de entrar em contato com Deus, quer dizer, que. o proíbem de se aproximar do
Santuário; o consumo de alimentos impuros, a impureza da mulher depois do parto, a
lepra, a impureza sexual do homem ou da mulher. O capítulo 16 forma de algum modo
o coração do livro: descreve a grande liturgia do Yom hak-Kippurim, o Dia das
Expiações.
A quarta seção compreende os capítulos 17 a 26, designados habitualmente sob o
título Lei de Santidade, chamada às vezes Código de Santidade. Esse conjunto termina
com as bênçãos e as maldições no capítulo 26, segundo uma forma literária que se
reencontra em Dt 28; é ritmado por um refrão: "Sede santos porque eu sou santo, Eu, o
Senhor vosso Deus" (19,2; cf. 20,26; 21,8). O povo que o Senhor escolheu para ser seu
povo deve se santificar sem cessar para ser santo (20,7). Assim a santificação do povo é
o coração da Lei de Santidade, para além da multiplicidade de prescrições e alertas:
respeito do sangue quando da imo- lação de animais e dos sacrifícios (17); recusa das
relações sexuais fora da união conjugai, dos sacrifícios de crianças, da bestialidade (18);
respeito a Deus, aos pais, ao próximo, que cada um deve amar como a si mesmo (19);
pena de morte prevista para casos particularmente graves (20). Certas disposições
concernem aos sacerdotes (21), aos sacrifícios (22), ao respeito do sábado e das festas
(23), ao santuário e sua manutenção (24), enfim, ao ano sabático e ao jubilar (25).
O capítulo 27, apêndice ao conjunto do livro, trata dos problemas de tarifação de
votos e resgates.

PEQUENO LÉXICO DO LEVÍTICO

A leitura do Levítico não é fácil. O estilo jurídico é muitas vezes monótono e


repetitivo. Encontra-se nele um conjunto de termos técnicos cujo significado é
importante conhecer. Também é necessário ter consciência de certos traços da
mentalidade hebraica e de certas instituições do povo de Israel. Não se deve, por
exemplo, representar os sacerdotes em Israel à imagem dos sacerdotes das Igrejas
cristãs atuais. O mesmo nome não cobre duas realidades idênticas. O pequeno léxico
que se segue quer ajudar à leitura inteligente do livro. Os temas são aí abordados na
ordem das quatro seções do livro: sacrifício; sacerdócio; puro e impuro; santidade. Na
primeira parte, os termos técnicos sacrificais são classificados em ordem alfabética.
Os sacrifícios — Em todas as religiões considera-se o sacrifício um meio de entrar em
relação mais estreita com a divindade. A história das religiões o examina
essencialmente de três pontos de vista: o sacrifício enquanto "dom" oferecido à
divindade; enquanto opera uma "comunhão" com a divindade; no que visa a uma
"expiação" dos pecados e ao perdão da divindade. Os sacrifícios israelitas se dividem
assaz facilmente entre estas três categorias:

• dom: holocausto, oferenda vegetal, primícias.


• comunhão: sacrifício de paz;
• expiação: sacrifício pelo pecado, sacrifício de
reparação.

Com os séculos e o peso das circunstâncias, desenhou-se uma evolução: refletindo


sobre a ruína de Jerusalém e o Exílio, Israel tomou consciência mais viva da força do
pecado e da necessidade de perdão. Por isso o Levítico acentua o papel reconciliador do
sacrifício, atribuindo grande importância à absolvição pelo sangue e reduzindo as
oferendas vegetais a mero complemento dos sacrifícios cruentos.
[a] Aceitar: o verbo (sempre no passivo no Levítico) e o substantivo
correspondente (sempre em sentido passivo) designam o acolhimento benévolo que
Deus concede a um oferente sincero aceitando e aprovando seu dom quando se con-
forma às regras rituais.
[b] Holocausto: sacrifício de uma vítima totalmente consumida sobre o altar
(exceto a pele: cf. 7,8). É o sacrifício que mais radicalmente exprime o dom: o oferente
nada recebe dele. Encontra-se o equivalente entre os gregos e em Ugarit, mas não entre
outros semitas.
[c] Memorial: termo técnico que designa aparte de uma oferenda vegetal (com ou
sem incenso) consumida sobre o altar. Sobre o significado do nome cf. 2,2 nota.
[d] Oferenda consumida: termo geral que engloba tudo o que é queimado sobre o
altar para Deus e, por extensão, a vítima toda inteira de tais sacrifícios. Parece, porém,
que o termo jamais foi usado explicitamente para as partes queimadas do sacrifício pelo
pecado. A etimologia da palavra é desconhecida, mas evoca por assonância a palavra
hebraica para "fogo", daí a tradução "oferenda consumida".
[e] Oferenda vegetal: a palavra minhá designava originalmente o conjunto dos
sacrifícios da categoria do dom e da comunhão (Gn 4,3-5; 1Sm 2,17). Mais tarde
especializou-se no sentido de oferenda não sangrenta e foi substituída na acepção geral
pelo termo presente (cf. tópico j).
[f] Paz (sacrifício de): por vezes é chamado também de sacrifício "de comunhão"
ou "de aliança Queimam-se as partes gordas da vítima sobre o altar para Deus, uma
parte da carne é reservada aos sacerdotes e o resto é consumido pelo oferente, sua
família e seus amigos. O Levítico distingue três 15 formas específicas desse sacrifício,
correspondentes às disposições interiores do oferente mais que a rituais próprios: o
sacrifício de louvor (7,12-15), o sacrifício votivo (7,16) e o sacrifício espontâneo (7,16).
O sacrifício de paz, como o holocausto, tem seu equivalente em Ugarit e entre os
gregos, mas não entre os demais semitas.
[g] Pecado (sacrifício pelo): esse sacrifício não serve para obter o perdão de um
pecado deliberado, mas visa a restabelecer uma relação com Deus comprometida por
pecados involuntários (cf. 4,2 nota) ou por um estado de impureza (cf. 14,19).
A vítima varia de acordo com a qualidade do oferente (sacerdote, príncipe, homem
do povo) ou os meios de que dispõe. O sangue desempenha o papel mais importante,
pois é o que proporciona a absolvição do oferente: as gorduras se queimam sobre o
altar, como num sacrifício de paz; as carnes são consumidas pelos sacerdotes, exceto se
o oferente é um sacerdote ou o povo em seu conjunto, pois não se pode ao mesmo
tempo oferecer um sacrifício pelo pecado e tirar proveito dele.
[h] Perfume: no interior da Tenda da Reunião e no Lugar Santo do Templo
encontrava-se o altar dos perfumes (4,7), onde se queimava um perfume especialmente
composto para esse efeito (cf. Ex 30,34 nota). A mesma raiz se vincula o verbo
freqüente no Levítico e que se traduz por "fazer fumegar" (1,9 etc.), que designa toda
combustão de sacrifício sobre o altar dos holocaustos. O emprego desse verbo mostra
como se concebia que Deus se beneficiava, sob a forma de "fumaça per- fumosa", da
doação que lhe era feita.
[i] Perfume aplacador: o mais das vezes esta expressão está em estrito paralelo
com "oferenda consumida" (cf. tópico d) e, com a exceção de um caso (4,31,
qualificando o sacrifício pelo pecado), refere-se a um sacrifício que se pode qualificar
de oferenda consumida. Talvez na origem se trate do decalque hebraico de uma
expressão acádia que aparece no relato babilônio do Dilúvio por ocasião do sacrifício
oferecido pelo sobrevivente (cf. Gn 8,21). Exprime o desejo do oferente de manter
relação pacífica com um Deus benévolo.
[j] Presente (cf. tópico e: Oferenda vegetal): No Levítico e nos Números, a palavra
qorban designa toda oferenda feita a Deus (1,2), quer se trate de um sacrifício cruento
ou não. O termo designa literalmente o que se "aproxima" de Deus ou do altar, mas
pode designar todo presente feito a Deus (Nm 7) ou mesmo o que é consagrado a Deus
(Mc 7,11).
[k] Reparação (sacrifício de): raramente mencionado fora do Levítico, esse
sacrifício, é exigido em caso de apropriação involuntária do que pertence a Deus, a fim
de reparar o erro cometido; é acompanhado da restituição ou do ressarcimento, com
valor corrigido de um quinto. O ritual com o sangue da vítima não é idêntico ao do
sacrifício pelo pecado (cf. 7,2). Esses dois sacrifícios parecem ser originalmente de
Israel; não se encontram testemunhos certos de sacrifícios desse tipo entre seus vizinhos
ou contemporâneos.

15
O número provavelmente não é exaustivo.
[l] Santíssimo (ou algo muito santo): em geral a expressão qôdesh qodashim
(literalmente santo dos santos) tem sentido local, designando especialmente o quarto
sagrado do Templo, a parte interior do santuário conhecido sob o nome de debir (cf. 1Rs
6,16); o redator do Levítico só a emprega para designar uma coisa consagrada a Deus e
da qual, por consequência, não se pode fazer nenhum uso profano. Para ele, as coisas ou
oferendas "muito santas" são essencialmente as partes dos sacrifícios "expiatórios" e das
oferendas vegetais, reservadas exclusivamente aos sacerdotes.
[m] Santo: a palavra qôdesh designa ou qualifica uma grande variedade de coisas:
pessoas, lugares, tempos, objetos, oferendas. Cf. abaixo § 4.
O sacerdócio A imagem do sacerdócio que o Levítico oferece resulta de uma evolução
de muitos séculos em que se manifestaram influências diversas, tanto religiosas como
morais e sociopolíticas.
Em época mais antiga, as funções sacerdotais – a saber, assegurar a mediação entre
o homem e Deus pelo cumprimento de ritos e pela comunicação da vontade divina - não
parecem exercidas somente por uma classe de especialistas. Assim, os próprios chefes
de família imolavam o animal quando do sacrifício pascal (Ex 12,3-7).
Entretanto, ao redor dos lugares de culto (p. ex. Shilô: lSm 1-3; Dan: Jz 18,19-
20.27-31) estabelecem-se famílias sacerdotais que asseguram o serviço dos santuários e
conservam as tradições e os ritos. Em Jerusalém, Davi encontrou uma família
sacerdotal, a de Sadoq, que talvez tivesse laços com Melquisedeq o rei sacerdote (Gn
14,7-20). A importância adquirida por Jerusalém atraiu muitos Sacerdotes de outros
lugares de culto; foram aliás obrigados a se reagrupar ali quando o rei Josias decidiu
centralizar todo o culto israelita em Jerusalém; mas esse afluxo de pessoal não foi
adiante sem criar litígios entre o pessoal ali instalado e os recém-chegados (2Rs 24,8-9).
Já sob o reino de Salomão tinha-se assistido a lutas de influência entre duas famílias
sacerdotais, de Abiatar e de Sadoq, cujas origens não são bem conhecidas. Os
sadoquitas acabaram por expulsar seus rivais quase completamente do exercício do
sacerdócio hierosolimita (1Rs 2,26-27). O Exílio pôs fim a essas querelas quando os
dois grupos se associaram genealogicamente a Aarão, fazendo desse membro da tribo
de Levi o primeiro sumo sacerdote, no ponto inicial do sacerdócio (1Cr 24,1-6).
Após o regresso do Exílio (538 a.C.), não sendo restaurada a realeza, é o clero que
toma em mãos os destinos do povo. Aquele que acabará por se chamar "sumo
sacerdote" vai pouco a pouco ocupando função equivalente à do rei: porta insígnias
régias (8,9) e, como o rei antes do Exílio, recebe a unção (8,12). A partir de Aristóbulo
(104-103 a.C.) o que estava implícito se explicita: o sumo sacerdote assume o título de
rei.
O importante é o que permanece imutável ao longo dessa evolução, a saber, o
caráter mediador do sacerdote que, introduzido na esfera do sagrado por sua
consagração, pode desempenhar o papel de intermediário autorizado.
O puro e o impuro — A noção de impureza está muito próxima à de "tabu", tal como os
historiadores das religiões encontram nos povos mais diversos. Supõe que o homem
deseja viver uma vida enquadrada por regras estáveis, protegida da angústia do
desconhecido. A partir daí, tudo que é excepcional, – anormal, insólito, tudo que é mu-
dança, passagem de um estado a outro aparecem como ameaça e manifestação de um
poder que zomba das regras comuns conhecidas, como nódoa contagiosa de que é
preciso se proteger, afastando-se dela, ou se livrar, purificando-se.
A impureza não é um ato culpável. Com efeito, os deveres da vida (maternidade,
toalete dos mortos etc.) necessariamente colocam a pessoa em situações de impureza
que a impedem de entrar em contato com o Deus santo pelo culto e das quais deve se
purificar. O ato culpável acontece quando, estando na impureza, a pessoa age como se
estivesse em estado de pureza (15,31). Ezequiel emprega o vocabulário da impureza
para qualificar os pecados de Jerusalém, neles incluídos aqueles cometidos contra a
moral propriamente dita (cf. Ez 2,7). O pecado, com efeito, é a grande impureza que
compromete a relação entre o homem e Deus.
O fato de as proibições de Lv 11-15 serem codificadas é sinal de que não são mais
vividas espontaneamente. O Levítico as coloca em relação com o Deus da Aliança
(11,44-45), o Senhor da vida, para quem cada um deve se manter puro.
O Novo Testamento testemunha muitos debates sobre o valor de tais proibições (Mc
7,1-23; At 10; ICor 6,12-20).
A santidade — A santidade é uma das noções capitais do livro e de todo o Antigo
Testamento. A noção de pureza - não somente ritual, mas moral - é o acompanhamento
indispensável da parte do homem.
Fundamentalmente, a santidade designa todo o mistério insondável do Deus
transcendente, do Deus absolutamente diferente, incomparável, inapreensível, do Todo-
Outro inacessível ao homem. Dizer que o Senhor é santo é menos dar a Deus uma
qualificação moral que afirmar que Ele é radicalmente dessemelhante de tudo que o
homem conhece ou imagina.
Contudo, e isso é constitutivo de sua santidade, o Deus transcendente permite ao
homem se aproximar dele (23); esse Deus incompreensível se faz conhecer e comunica
sua vontade (19); faz irradiar sua santidade e quer fazer a humanidade participar dela:
"Sede santos, porque eu sou santo..." (19,2). Escolhendo o povo de Israel, Deus o quer
diferente dos outros povos, para que ele possa entrar em comunhão com o Deus santo.
Essa eleição traz consigo uma exigência moral, que não é mais que uma consequência
da santidade do povo escolhido, mas que o conduz a se santificar constantemente para
permanecer nessa comunhão vital e manifestar assim a santidade de seu Deus aos olhos
das outras nações.
Não apenas os homens devem ser chamados santos: tudo que exprime a presença de
Deus pode ser qualificado de santo:
• pessoas (p. ex. os sacerdotes, que penetram mais profundamente no domínio de Deus e
que devem se abster de diversas práticas legítimas mas profanas: 21-22);
• tempos (p. ex. o sábado, dia do Senhor, durante o qual todos devem renunciar às ocupa-
ções profanas para consagrá-lo ao louvor de Deus: Ex 20,8-11);
• lugares (p. ex. o santuário, onde nem os profanos nem os estrangeiros têm o direito de
entrar: Hb 9,7-8; At 21,28);
• objetos (p. ex. o óleo da unção santa, que serve aos ritos de consagração e é proibido a
todo uso profano: Ex 30,23-33).
Em suma, a noção de santidade comporta três ideias-forças: separação de tudo que é
profano, consagração para entrar em comunhão com Deus, comprometimento no
serviço de Deus pata fazer sua vontade.

ATUALIDADE DO LEVÍTICO

O Levítico apareceu tarde demais na história de Israel para poder influir de forma
sensível nos outros livros do Antigo Testamento. De outra parte, o livro apresenta
aspectos demasiado técnicos da vida religiosa (p. ex. os sacrifícios ou a investidor dos
sacerdotes) para ser citado frequentemente no Novo Testamento. As passagens mais
citadas são sobretudo da Lei de Santidade. No entanto, a influência de um livro não se
mede apenas pelo número de citações. Por isso, ainda que indireta, não se pode
desprezar a influência do Levítico.
Com efeito, o culto praticado no Templo de Jerusalém segundo as regras
codificadas no Levítico está no pano de fundo das reflexões do Novo Testamento para
interpretar a morte de Jesus e sua plena significação. Sem o Levítico nos faltariam
muitos elementos para compreender determinada passagem das cartas de Paulo ou a
argumentação da epístola aos Hebreus sobre o Cristo Sumo Sacerdote (cf. Hebreus,
Introdução, § 8).
Hoje, entre os livros do AT, o Levítico é talvez o menos lido pelos cristãos. Sua
abordagem não é fácil e ele parece falar só de práticas tornadas "caducas" pela vinda de
Cristo. Contudo, é preciso ainda se entender sobre essa "caducidade". Tomando gestos
religiosos emprestados de seus vizinhos ou criando novos para elaborar seu ritual, Israel
procurou sintonizar o culto que celebrava com a fé que professava: o culto devia
exprimir e realizar a reconciliação e a comunhão do povo santo com seu Deus santo, em
nome de quem lutavam os profetas e todos aqueles que velavam pela pureza da fé de
Israel. As festas, os ritos e os gestos variam com os tempos e os lugares, segundo o que
se quer expressar e os meios que se têm para fazê-lo. Permanece, porém, o desejo de
exprimir a fé pela festa comunitária e pela linguagem do corpo. Nem as invecti- vas
proféticas contra o culto mal celebrado, nem o abandono dos ritos levíticos pelo
judaísmo, privado de seu Templo, e pelo cristianismo, que reconhece o valor único e
definitivo do sacrifício de Cristo, anulam a presença do Levítico na Bíblia. Sua presença
responde à necessidade humana de exprimir a fé por gestos religiosos, ao mesmo tempo
em que anuncia e prepara a vinda daquele que traz em suas palavras e realiza em sua
vida a reconciliação e a comunhão dos homens com Deus.
INTRODUÇÃOAO LIVRO DOS NÚMEROS

O livro dos Números — bemidbar, "no deserto" em hebraico - foi chamado


assim pelos tradutores gregos em razão dos recenseamentos que são objeto dos
primeiros capítulos. Caracteriza-se por uma estrutura literária complexa. Sem dúvida
muito tardia, a composição final do livro põe em ação um material literário
extremamente diverso e mescla tradições narrativas com textos legislativos.

ESTRUTURA LITERÁRIA DO LIVRO

Considerando-se apenas as grandes linhas e os marcos topográficos de referência


fornecidos pelo texto, descobre-se nele três partes::
A primeira, situada no Sinai (1-10), prolonga e completa o estabelecimento das
instituições descritas no Êxodo e no Levítico: recenseamentos (1-4), dedicação do
santuário (7), consagração dos levitas (8).
Na segunda, Israel deixa o Sinai para atravessar o deserto, por onde deverá vagar
durante quarenta anos por efeito de seu pecado (13—14). Chega finalmente aos limites
do país de Moab, após a travessia da Transjordânia (22,1).
A terceira está situada nas planícies de Moab, nos confins da terra prometida. Lá se
localizam os eventos da bênção de Balaão (22-24) e da apostasia de Bet-Peor (25). Um
novo recenseamento (28) ilustra a morte da primeira geração dos israelitas saídos do
Egito. Enfim, essa última parte contém as medidas dispostas por Moisés para a partilha
das terras conquistadas (32) ou a conquistar (27; 34-36). Aí se encontra também um
relato de uma expedição contra a tribo de Midian (31) e o resumo das etapas da
travessia de Israel desde o Egito até a margem do Jordão (33).
Pode-se encontrar um princípio geral que dê unidade ao livro dos Números? Somos
tentados a ver nele apenas uma compilação de materiais literários muitas vezes bastante
tardios. No entanto, a estrutura do livro posta à luz pelos dados topográficos
corresponde a um projeto teológico: no Sinai, o povo de Israel é mobilizado por Moisés
e Aarão, que executam fielmente as diretrizes do Senhor.
Durante a travessia do deserto, esse ordenamento inicial é reposto em causa por
desobediências sucessivas do povo, de seus líderes e dos levitas, resultando na
condenação da primeira geração que saiu do Egito. É nova a geração que chega às
planuras de Moab. Ela é recenseada, recebe um novo líder, Josué, e um novo sumo
sacerdote, Eleazar, e enfim se organiza para a conquista, guardando a memória dos
eventos do deserto, que tomam sentido paradigmático de alerta para todas as gerações
de Israel contra as faltas voluntárias, cujos autores devem ser excluídos do povo{cf.
26,63-65; 32,6-15). O tema do pecado de Israel, de sua oposição aos planos do Senhor,
aparece pois como um dos temas centrais da composição sacerdotal do livro dos
Números—composição que organiza, de acordo com um plano específico, os materiais
literários diversos herdados por seus autores: relatos antigos e relatos sacerdotais, textos
legislativos.
De fato, o livro reúne relatos e numerosos elementos legislativos. As leis elencadas
na primeira parte determinam a organização religiosa e militar do povo antes da partida.
Na segunda parte, relatos e leis se alternam. Suas temáticas respectivas às vezes
parecem estranhas, mas os relatos servem de base a um único projeto teológico: o alerta
contra as faltas voluntárias. Todos aqueles que se contrapõem ao plano do Senhor
devem ser punidos. Os relatos de 13-14; 16-17; 20,1-13 funcionam segundo esse
princípio, igualmente mencionado nos textos legislativos de 15 e 18-19. As leis
coligidas na parte final do livro tratam essencialmente dos problemas concretos ligados
à vida na terra prometida pelo SENHOR.

O DESERTO COMO QUADRO NARRATIVO DO LIVRO DOS NÚMEROS

O deserto aparece, pois, no livro dos Números como o lugar onde a comunidade
dos filhos de Israel comete uma sequência de faltas voluntárias, culminando com a
recusa de subir à terra prometida pelo SENHOR e pondo em causa a autoridade de Moisés
(cf. cap. 14). No quadro de uma leitura sin- crônica do Pentateuco, as faltas enunciadas
pelo relato do capítulo 14 devem ser interpretadas à luz de Ex 14: é o projeto de
salvação do SENHOR em prol de seu povo que é negado e desqualificado, ao mesmo
tempo em que o chefe que o SENHOR deu a Israel também é rejeitado. Aos olhos de todas
as gerações posteriores, os castigos que se seguem adquirem dimensão exemplar:
doravante cada geração dos filhos de Israel deve guardar na memória os eventos do
deserto para evitar toda nova desobediência.
Assim, longe de ser lugar de intimidade entre o Senhor e seu povo, como em Os
2,16-25 ou em Jr 31,2, no livro dos Números o deserto constitui o quadro de uma
experiência difícil pela qual o Senhor mesmo ensina a Israel que não há vida possível
fora do projeto histórico que ele concebeu em seu favor, nem fora das leis que
transmitiu à comunidade. Outros livros do Antigo Testamento também propõem uma
visão negativa do "tempo do deserto": é o caso do livro de Ezequiel, cujo capítulo 20
insiste na infidelidade da comunidade de Israel, e igualmente do Deuteronômio, em que
o capítulo 9 sublinha as feitas de Israel no deserto.

TRADIÇÕES E COMPOSIÇÃO DO LIVRO DOS NÚMEROS

O livro é estruturado por uma série de relatos que continuam os do Êxodo. Como no
Êxodo, podem-se distinguir tradições sacerdotais (P) e tradições antigas pré-exílicas.
Essas tradições foram tardiamente reunidas pelos autores sacerdotais no livro dos
Números que, portanto, em sua versão definitiva constitui um texto compósito.
Distintas pelo vocabulário, as tradições antigas e sacerdotais se diferenciam
igualmente pelas intenções teológicas: os relatos antigos expõem a história, deixando ao
leitor o cuidado de tirar as conclusões para sua época; os relatos sacerdotais, ao
contrário, empregam um vocabulário teológico e fornecem ao leitor os conceitos
necessários à interpretação das tradições narrativas.
Os dois tipos de tradição contêm muitas vezes relatos paralelos referentes a
episódios que marcaram a travessia do deserto. É assim para as múltiplas crises
caracterizadas pelo protesto e pela rebelião dos israelitas (Ex 16 e Nm 11; Ex 17,1-7 e
Nm 20,1-13, dupla tradição de Nm 13-14).
A composição sacerdotal do livro dos Números faz alusão a eventos da época pós-
exílica? Evoca-se às vezes a reticência dos exilados instalados na Babilônia e de seus
líderes em regressar à Judeia na época persa. Os relatos de Nm 13-14, de um lado, e de
Nm 20,1-13, de outro, seriam eco dessa resistência e constituiriam uma crítica radical.
Seja como for, a reflexão teológica sacerdotal, amplamente dominante no livro dos
Números, e a crítica radical das faltas voluntárias que comporta às vezes são expostas
ao debate no interior mesmo do livro: desse modo, a intercessão de Moisés e a resposta
do Senhor em Nm 14,13-20 propõem uma teologia da misericórdia e do perdão que se
distancia da sanção sistemática das faltas voluntárias proposta pelo relato de Nm 14,26
ss., assim como pelas leis de Nm 15,30 ss. O livro dos Números reflete, pois, um debate
teológico que caracteriza o período pós- exílico e em que intervém os autores
sacerdotais e os autores de Nm 14,13-20, texto cujo parentesco com Ex 32,11-14 e Dt
9,7-10,11 permite que seja qualificado de deuteronomista tardio".
MOISÉS

A travessia do deserto seria impossível sem o chefe cuja importância as diferentes


tradições convergem em sublinhar: Moisés. Contudo, é de modo bem diferente que
essas tradições o valorizam. As tradições antigas, bem como as releituras
deuteronomistas, oferecem-nos um retrato particularmente vivo e rico: o Moisés que
apresentam é de grande verdade humana, com suas fraquezas e seus desencorajamentos
(11,11-15). O traço dominante nele é sem dúvida sua fidelidade total à missão complexa
e ingrata.
Completamente diferente é a imagem que os textos sacerdotais apresentam dele. A
maior parte das vezes Moisés não passa de um porta-voz impessoal das vontades do
Senhor. Em último caso, seu nome é apenas um carimbo de autenticação aposto a uma
regulamentação, sobretudo se é tardia. A seu lado, os textos sacerdotais fazem figurar
seu irmão Aarão, o sumo sacerdote, cuja função muitas vezes consiste apenas em estar
ao lado de Moisés quando este comunica a Israel as ordens de seu Deus. O fato de que
se faça questão de colocar o nome de Aarão ao lado de Moisés, às vezes mesmo sem
levar em conta a correção gramatical (9,7; 20,10), indica claramente o objetivo desses
textos: justificar a situação que os relatos mostram estabelecida após a morte de Moisés
- o sumo sacerdote (Eleazar, filho de Aarão) tem o monopólio da revelação divina e
detém a mais alta autoridade sobre o povo.

A VISÃO SACERDOTAL DO POVO DE DEUS

Essa maneira de escrever a história é característica dos textos sacerdotais. Sua


intenção é descrever as instituições do povo de Deus que corresponderão exatamente à
sua teologia. Regulamentações, recenseamentos (1; 4; 26), ordens de caminhada (10,11-
28) ou de acampamento (2), relatos, tudo concorre para esboçar de maneira mais viva o
quadro ideal da comunidade de Israel. O fato de os textos sacerdotais suporem a
organização das instituições pronta e acabada antes da partida do Sinai mostra bem que
não conseguem pensar a existência de Israel fora desse quadro, descrito às vezes com
minúcia impressionante.
A teologia que justifica essas instituições é particularmente rica e dela só se pode
citar aqui alguns elementos: Israel, segundo P, não é povo prestes a combater, mas
comunidade dedicada ao culto do Senhor.
• Nessa sociedade tudo é regulamentado diretamente e nos mínimos detalhes
pelas decisões do Senhor. Israel é literalmente governado pela palavra de Deus.

• E uma comunidade em movimento, ao menos até sua instalação em Canaã;


nenhum texto prevê a fixação do santuário, concebido em vista da vida nômade.
Nenhum lugar sagrado e nenhum Templo fixo seriam capazes de monopolizar a
presença do Senhor. A única localização em que o Deus de Israel consente em morar é
no meio de seu povo, numa tenda situada no centro do acampamento ou no centro da
comunidade em andamento.

• Essa presença permanente é ao mesmo tempo tranquilizadora e temível.


Como o Deus santo poderia morar no meio de uma comunidade de pecadores sem que
eles corressem a cada momento o risco do castigo (17,28)? A instituição de sacerdotes e
levitas permite contornar esse perigo. Esses homens especialmente escolhidos cons-
tituem o filtro entre o povo e a presença divina (1,53; 17,11). Só eles podem obter a
reparação dos pecados que fazem a ameaça da ira divina pesar sobre a comunidade
(8,19; 17,12). Essas duas funções, sem as quais a comunidade não poderia sobreviver,
justificam seus privilégios (18,8-19).

O POVO DE DEUS EM OUTRAS TRADIÇÕES

Seria mais difícil encontrar uma síntese tão acabada nos textos vindos de
tradições antigas. Entre estas, algumas ficam mais atentas aos aspectos "humanos" da
história. Outras insistem no alcance universal do destino do povo (cf. Nm 22 e 24) ou
ainda dão passos importantes para a introdução da monarquia davídica (cf. Nm
24,7.17.19), que será o coroamento da história das origens de Israel. Notamos ainda a
dimensão profética, rara no Pentateuco, dos capítulos 11 e 12.

ATUALIDADE DOS NÚMEROS

O livro dos Números apresenta-se ao mesmo tempo como painel idealizado do povo
santo e relato muito realista da primeira fase de sua existência. Este duplo título lhe
confere um interesse permanente. Na descrição idealizada, o povo de Deus poderá
encontrar sempre um modelo. Não que deva imitar servilmente as instituições que
foram expressão concreta do ideal de Israel, mas pode ler aí alguns dos princípios aos
quais deve conformar sua vida. Assim, a Igreja terá sempre necessidade dos Números
para lembrar-lhe que ela é um povo a caminho, povo regido pela Palavra de Deus e
dedicado ao culto do Senhor.
No relato das revoltas do povo em formação, o povo de Deus encontra uma
advertência permanente. Já é neste sentido que alguns profetas e Salmos apelam para os
eventos do período do deserto (Mq 6,3-5; Ez 16,20; 23; SI 78,17-40; 81,12- 17; 95,8;
106,14-33 etc.) E também o que faz São Paulo quando remete os coríntios aos relatos do
Êxodo e dos Números: “Esses fatos lhes aconteciam para servir de exemplo e foram
postos por escrito para nos instruir” (1Cor 10,11).
É claro que a Igreja de hoje não deve procurar reconhecer sua própria história nos
relatos dos Números. No entanto, as múltiplas crises atravessadas pelo Israel do deserto
são o efeito de leis que bem parecem valer para todas as comunidades de crentes
reunidos pela Palavra de Deus. A reflexão dos Números sobre essas crises poderia
ajudar a Igreja a enfrentar melhor as que ela deve atravessar por sua vez. O sistema de
instituições dos textos sacerdotais baseia-se numa consciência aguda do pecado do povo;
as revoltas vêm ilustrar esse estado de pecado, que é uma realidade permanente, um mal
crônico. Uma das mensagens mais notáveis do livro dos Números é a escolha desse
povo de pecadores, posto à parte para levar a bênção à humanidade inteira e para
permitir a Deus estar presente no meio dos seres humanos. É uma mensagem que a
Igreja precisará sempre voltar a escutar para permanecer fiel à sua vocação de santidade,
sem perder de vista a realidade dos seres humanos que ela congrega.
INTRODUÇÃOAO LIVRO DO
DEUTERONÔMIO

UM LIVRO DE TRANSIÇÃO

O Deuteronômio continua o grande relato da saída do Egito: começa onde tinha


parado o livro dos Números e termina com o evento maior da morte de Moisés.
Todavia, entre a primeira e a última página do livro os eventos históricos não
progridem, os filhos de Israel marcam passo. Desde o início encontram-se no além-Jor-
dão, na terra de Moab (1,5), e será aí que Moisés morrerá (34,5).
A unidade e a coerência do livro vêm do fato de se apresentar como palavras de
Moisés ao povo. Daí o nome hebraico do livro, "as palavras" haddebarim, pronunciadas
no limiar da terra prometida.
O estilo impressiona pela unidade e originalidade. Expressões características
retornam frequentemente, similares em todo o livro, embora jamais absolutamente
idênticas; por exemplo: "entrar na posse da terra que o SENHOR jurou dar a vossos
pais..."; "procurar o SENHOR no lugar que o SENHOR VOSSO Deus tiver escolhido entre
todas as vossas tribos para ali estabelecer o seu Nome..."; "guardar o mandamento, as
leis e os costumes que vos dou para os pordes em prática..."; "amar e servir o SENHOR
teu Deus de todo o teu coração, de todo o teu ser..." etc. Ora, muitas dessas expressões
estilísticas reaparecem nos discursos e nas referências que pontuam os livros de Josué,
de Samuel e dos Reis.
Esse parentesco literário induz a um elo entre o Deuteronômio e os livros que o
seguem em nossa Bíblia e resulta do fato de a escola criadora do Deuteronômio ter
assinalado redacional- mente a elaboração da história de Israel com sua marca: trata-se
da escola deuteronomista. Contudo, a tradição associou o Deuteronômio aos livros que
o precedem (onde também se encontram traços da marca deuteronomista) para formar
um grande conjunto dominado pela pessoa de Moisés que fala "a todo o Israel" antes de
morrer. Por essa atribuição; o conjunto do Deuteronômio (se não o conjunto do
Pentateuco) aparece como o testamento de Moisés.

SEGUNDA LEI
Os capítulos 12—26 contêm prescrições de um código de leis, e isso explica o título
"deuteronômio", isto é, "segunda lei", que lhe deram os autores da Septuaginta (cf.
17,18); segunda em relação àquela dada no Sinai (o código da Aliança, Ex 20,22-
23,18). No coração do discurso pronunciado por Moisés nas planícies de Moab, essa se-
gunda lei fixa as condições sob as quais os filhos de Israel deverão viver na terra em que
entrarão para aí habitar em paz. Essa lei toma ademais um tom de constituição (cf.
16,18-18,22).
Ora, um importante cotejo já entrevisto pelos Padres da Igreja permite precisar a
época em que o Deuteronômio conheceu sua primeira fixação por escrito. O livro dos
Reis narra que no décimo oitavo ano dó reinado de Josias (622) se descobriu no Templo
de Jerusalém "o livro da Lei" (2Rs 22>8.11) ou "livro da Aliança" (2Rs 23,2.21). Pro-
fundamente tocado pela leitura desse livro, o rei reúne todo o povo, renova solenemente
a aliança e proclama uma reforma do culto. Ora, o programa dessa reforma (2Rs 23,4-
20) corresponde à exigência de base do Deuteronômio: a destruição de todos os
santuários de província e a centralização do culto em Jerusalém (Dt 12). O documento
encontrado durante o reinado de Josias parece, pois, ser o Deuteronômio (Dt 12-16),
muito certamente em forma antiga mais curta.
De onde provinha esse livro? Antes de o "promulgar", Josias o faz autentificar
junto a uma profetisa oriunda do reino do Norte que pertencia à população instalada no
quarteirão novo em Jerusalém após a queda da Samaria. O que sugere a influência de
ambientes proféticos (pensar-se-á particularmente na teologia de Oseias). Aliás, a
purificação do culto por Ezequias menos de um século antes, e que também tende a
centralizar o culto em Jerusalém segundo 2Rs 18,4-22, não menciona ainda um
documento escrito. A coletânea primitiva poderia ter sido composta após o fracasso
dessa primeira reforma, quando sob o reinado de Manassés viu-se florescer de novo os
cultos idolátricos (2Rs 21), quer dizer, durante a primeira metade do século VIL Ela
expressa as tendências reformadoras de meios que lutam contra o sincretismo religioso e a
injustiça social, características das tradições proféticas. A qualidade retórica do Deuteronômio
implica grande mestria da escritura» o que fez pensar em meios de "escribas" ou altos
funcionários, cujo pensamento reformador veio ao primeiro plano quando da ascensão de Josias.
Tal é a "ficção" do Deuteronômio: colocar na boca de Moisés, falando ao povo de
Israel precisamente antes da entrada na terra prometida, as condições para viver nessa
terra, condições pensadas como reforma em profundidade de tudo o que tinha sido
vivido durante o período monárquico. tanto no Norte como em Jerusalém. Diante dos
eventos do Exílio, a continuação dessa reflexão no seio da escola deuteronomista acen-
ruara ainda mais o caráter utópico da legislação do Deuteronômio.

A ALIANÇA

O discurso do Deuteronômio se dirige a todo o Israel (1.1; 34.12), isto é, ao mesmo


tempo a cada filho de Israel tomado individualmente e ao povo inteiro interpelado como
parceiro pessoal do SENHOR (cf. p. ex. 6,4-5 ou 9,1). O fato de o discurso de Moisés se
dirigir aos filhos de Israel ora como "tu", ora como "vós" fornece base para diversas
hipóteses da história da redação. Isso pode ser interpretado segundo a dinâmica do
discurso: endereçar-se a cada um em particular ("tu") ou a todos juntos ("vós") varia
segundo os momentos e o conteúdo do discurso. Essa interpelação se fundamenta no
quadro de uma celebração em que efetivamente todo o Israel está reunido para ouvir a
leitura da Lei, como o indica 31,9-13. Outras passagens certamente aludem a esse
gênero de celebração enraizado na história de Israel (por exemplo. 27,11-14); Trata-se
de celebração de renovação da Aliança (como em 2Rs 23,1-3), na qual todo o povo
reunido ouve a proclamação da Lei e se compromete a colocá-la em prática.
Esse traço litúrgico mostra que os autores do Deuteronômio atribuem grande
importância à experiência da Aliança como vivência fundadora e fundamental da
história de "todo o Israel". Contudo, a noção de Aliança provém também de uma
reflexão tanto jurídica e política como teológica sobre a tradição dos grandes tratados de
Aliança no Oriente Próximo antigo. E a razão pela qual as leis do Código, e também
partes referentes ao quadro geral da época mostram contatos importantes com
documentos jurídicos das civilizações circunvizinhas. A disposição de conjunto do
Deuteronômio segue uma ordenação muito semelhante à desses documentos: lembrança
do passado e exortação (1-11); proclama- ção de Lei (12-26); compromisso mútuo
(26,16- 19); promessas e ameaças (27-30,18) comportando bênçãos e maldições (28);
citação das testemunhas (30,19-20).
A experiência da Aliança dá forma ao discurso que Moisés faz nas planuras de
Moab, exatamente antes da entrada na terra prometida: esse momento é o "hoje" da
Aliança. Ela está forte, mente ligada à primeira Aliança, à do Sinai, depois da passagem
do mar, da qual retoma o tema da libertação do cativeiro. A atitude concreta com que
todo filho de Israel se compromete ao ratificar a Aliança se enraíza na memória de ter
sido libertado da servidão e fundamenta seu agir concreto: por exemplo, a motivação do
sábado no Decálogo (5,12-15), a lei sobre a liberação de dívidas e sobre a alforria (15,1-
18), ou ainda as medidas em prol dos pobres (24,17-22). A segunda Aliança se enraíza
na memória da saída do Egito: ela estabelece as condições de uma escolha para a
liberdade e para vida, malgrado o obstáculo de um coração endurecido e esquecido (30).
Diferentemente do livro de Jeremias que entrevê a necessidade de uma "nova Aliança"
(31,31-34), o Deuteronômio institui na vida de Israel a celebração da renovação
periódica da Aliança (31).

A OBRA ACABADA E SEU PLANO

Ao fim de um desenvolvimento bastante longo que tem o ponto de partida em


meados do século VII, o livro atinge sua forma atual, em que a composição é bem clara.
A organização de conjunto, denominada "dos arquivos", divide a obra em quatro
partes. Trata-se de quatro expressões: "Eis as palavras de Moisés" (1,1); "Eis a lei que
Moisés apresentou" (4,44); "Eis as palavras da Aliança" (28,69); "Eis a bênção" (33,1),
que caracterizam o livro essencialmente como "palavras": de Moisés, da Lei, da
Aliança, da bênção.
Os quatro primeiros capítulos contam de novo o fim da peregrinação do povo no
deserto (cf. Números) e servem tanto de prólogo histórico para celebrar a renovação da
Aliança como de começo da história deuteronomista (Dt 1-2Rs 25).
O Código das Leis está situado no centro do livro (12,1-26,16) e é caracterizado
como conjunto de "leis e costumes''. Compreende três partes. A primeira (12,2-16,17),
sem dúvida a mais antiga está posta sob o signo da unidade: um único 1ugar (12), um
único Deus (13), uma relação única com Deus (14), e se conclui com as festas (16). A
segunda (16,18-18,22) trata das instituições (justiça, realeza, sacerdócio, profetismo). A
terceira (19,1-26,16) retoma as prescrições do Código da Aliança e as organiza, sem
dúvida segundo as grandes proibições do Decálogo.
A montante do Código se evoca primeiramente o dom do Decálogo (5), depois se
segue um conjunto de exortações que explicitam o coração da experiência da Aliança:
guardar os mandamentos, servir e amar o Senhor. A jusante do Código vem um
conjunto que sintetiza várias formas de aliança, como: engajamento recíproco (26,17-
19), liturgia antiga (27), tratado que se conclui com bênçãos e maldições (28), exortação
que explicita o sentido da renovação da aliança (29-30).
Após o Cântico de Moisés que celebra o Senhor como o Rochedo de Israel (32), e a
bênção das Doze Tribos de Israel (33; cf. Gn 49 na conjunto do Pentateuco), as
tradições da morte de Moisés (34) concluem o conjunto do livro, bem como o
Pentateuco.

A TEOLOGIA DO LIVRO

Não obstante ter sido elaborado durante um longo período com matérias diversas
(litúrgicas, jurídicas), o Deuteronômio apresenta forte coerência, sinal do trabalho da
escola deuteronomista, síntese do passado e utopia para o porvir. Para além da
diversidade dos elementos que o compõem, é possível indicar algumas grandes linhas
teológicas.
No coração da experiência da Aliança encontra- se uma interpelação fundamental:

"Escuta, Israel! O SENHOR é nosso Deus, o SENHOR é único! Tu amarás o SENHOR teu
Deus com todo o teu coração, com todo o teu ser, com todas as tuas forças" (6,4-5).

Aqui há, por assim dizer, o resumo dos temas centrais do Deuteronômio: mistério de
Deus, eleição de um povo na continuidade de sua história, exigência de ação que
engloba todos os níveis da vida.

O DEUS DE ISRAEL

"Escuta, Israel! O SENHOR É nosso Deus, o SENHOR é único!''(6,4). Aqui está a


referência fundamental para Israel, o ponto de partida e de convergência de todo o seu
pensamento e de toda a sua ação.
Israel pode dizer "nosso Deus". Com efeito, sobretudo nos textos mais tardios,
raramente o SENHOR é apresentado como criador da humanidade (4,32); é reconhecido
antes de tudo como aquele que se manifestou ao longo da história de seu povo. O
Deuteronômio conta apenas poucos episódios dessa história, mas a pregação é
perpetuamente sustentada por uma referência às etapas fundamentais: promessa feita
aos "pais" (4,31), saída do Egito (7,19), dom da Lei sobre o Horeb (5,5), travessia do
deserto (8,2), entrada para uma longa vida de bem-estar (4,40) numa terra boa (1,25)
prometida outrora.
Para o autor, essa última etapa, apresentada como futura no quadro do discurso de
Moisés, faz parte evidentemente das ações de Deus das quais é preciso guardar
incessantemente a lembrança (4,9). Por meio desses eventos, é o poder de seu Deus que
Israel viu com seus próprios olhos, ou melhor, é o SENHOR que lhe deu um olhar capaz
de reconhecê-lo em seus atos (29,3). O credo de Israel, que consiste desde os tempos
mais antigos em recordar os grandes feitos do SENHOR na vida de seu povo, está no
coração do Deuteronômio: às vezes formulado explicitamente (6,21-23; 11,2-6; 26,5-9),
está subentendido em toda parte e fundamenta a crítica à idolatria e a adesão exclusiva
ao SENHOR.
Os eventos do passado são, pois, o grande sinal da fidelidade de Deus a seu povo.
Outro sinal é dado pela presença de porta-vozes do SENHOR. Sob este título, Moisés
desempenhou outrora um papel único (34,10.11) que continua para sempre na Lei que
promulgou; mas ao longo da vida de Israel, os profetas (18,15) e – de outra forma – os
levitas (31,9 ss) são testemunhas e intérpretes do SENHOR, mediadores entre ele e os
homens. Graças a tantos sinais, Israel pode reconhecer que seu Deus é um Deus
próximo (4,7) que.se comprometeu com ele numa Aliança (26,17) por amá-lo (6,5);
Assim, para Israel o SENHOR é único. Essa convicção teológica é pensada pelo
Deuteronômio segundo o impulso da herança profética e de maneira crítica em relação à
ideologia dos tratados de aliança, dos quais no entanto toma emprestada a forma.
Assumindo a teologia de Oseias (cf. Os 1-3), a unicidade do SENHOR deve ser
compreendida no quadro da metáfora conjugai: na Aliança, trata-se antes de tudo de
amar o SENHOR (6,5), porque o SENHOR é ciumento como um amante o pode ser (5,9).
Herdeiro também das tradições de Elias, o Deuteronômio associa a unicidade do
SENHOR à exclusividade da relação a ter com ele: o primeiro e maior mandamento
consiste em render um culto exclusivo ao SENHOR (5,7-10) e não se deixar atrair por
outros deuses. Nessa perspectiva que deve marcar profundamente toda a vida do povo, o
Deuteronômio - por primeiro - introduz o princípio do santuário único (12,5), onde a
assembleia de Israel (5,22) deve se encontrar reunida como no Horeb.
Assim se elimina tudo o que poderia dividir o culto prestado ao SENHOR (6,4).
Também a Lei é sinal de unidade; impressiona constatar que ao apresentar a longa série
de normas e costumes prefere-se falar a Lei, o mandamento (1,5; 5,31; 6,1). A Lei
determina o único caminho em que o povo deve se empenhar. O "monoteísmo" do
Deuteronômio não deve ser entendido segundo nossa compreensão moderna. Significa,
de fato, que Israel está chamado a ser testemunha da uni- cidade de Deus e se articula
com uma concepção unificada da vida toda: um só Deus, um só santuário, uma só Lei,
um só povo.

O POVO DE DEUS

Israel fez a experiência de que o único SENHOR fez dele sua parte pessoal (7,6;
28^10), seu povo santo (7,6); cumulado gratuitamente (9,5) apesar de sua pequenez
(7,8) e tratado como um filho (1,31; 8,5). A teologia da eleição encontra sua fonte na
releitura e na reinterpretação dos eventos do passado e forma a consciência de um amor
de Deus que se renova para cada geração (11,2; 29,14), de forma que de século em
século o povo deve reconhecer, que seu Deus o interpela hoje (1,10; 30,15).
Isso supõe evidentemente uma resposta ativa que compromete o povo inteiro e cada
um dentro dele. Trata-se de circuncidar o coração (10,16 ; 30,6), isto é, entrar na
Aliança desde o mais profundo de seu ser. É necessário rejeitar todo compromisso com
os povos vizinhos e seus deuses (4,19; 17,3) para viver da Palavra (6,8), escutá-la,
guardá-la, ser fiel à Lei em todas as suas: minúcias e em seu conjunto; em suma, é
preciso amar o SENHOR de todo o seu coração, de todo o seu ser, de toda a sua força
(6,5). É assim que se pode sei justo (6,25) e fazer de toda a sua vida um testemunho de
fé.
Mas há mais: por essa fidelidade à Lei, Israel une-se aos eventos da salvação, porque
sua obediência consiste finalmente em tirar as consequências de seus encontros com
Deus (5,15). Em razão de Deus ter conduzido seu povo até a terra de Canaã é que se
deve oferecer as primícias dessa terra (26,5); em recordação do tempo do Êxodo, deve-
se celebrar as festas (16,1.3.12) e o sábado (5,15); por ter sido oprimido no Egito, Israel
deve
hoje respeitar os pobres (10,l&)e evitar de opri- mir quem quer que seja (23,8). Assim, é
na lem- brança do Êxodo que o Deuteronômio encontra ocasião de superar a estreiteza
de vista que o faz habitualmente excluir o estrangeiro do círculo de solidariedade
(14,21; 15,3; 23,21; 28,12). Ao longo da existência, a vida inteira do povo se torna
memorial dos eventos de sua salvação.
O princípio do respeito aos pobres ocupa um lugar capital nesse conjunto. Damo-nos
conta disso, por exemplo, lendo as prescrições relativas ao dízimo trienal (14,28), ao
resgate das dí- vidas (15,1), à libertação dos escravos (15,12-.18); à respiga das
plantações e ao rebusco das vinhas (23,25-26). Na medida do possível, o rei mesmo
deve viver como pobre (17,15). Tal insistência se impunha particularmente ao tempo em
que se redigia a parte mais antiga do livro e resulta diretamente da denúncia profética do
século anterior, pois o futuro do povo estava comprometido pelo desequilíbrio social: a
classe rica, cada vez mais rica e poderosa, contrapunha-se a um povo cada dia mais
miserável; em nome do passado comum, urgia recordar que todos os filhos de Israel
eram irmãos e colocar na ordem do dia a luta em favor dos pobres (15,4). Os primeiros
autores do Deuteronômio, no entanto, eram otimistas, senão utópicos: acreditavam em
um Israel capaz de responder ao apelo de Deus e de realmente fazer de sua vida um
memorial dos eventos da salvação (cf.12,28; 26,16-19).
No entanto, não se poderia deixar de perceber que aí realmente há um drama. Dois
caminhos se abrem: o da fidelidade e da felicidade, o da revolta e da infelicidade
(11,27-28; 2,8); é preciso fazer uma opção, comprometendo assim o futuro (30,15-20).
Mas o que sucede de fato? Desde o tempo do Êxodo, o povo se revoltou sem cessar e
foram necessárias a intercessão sempre renovada de Moisés e a fidelidade infatigável de
Deus para Israel não perecer sob o golpe da cólera merecida (9,7). O que acontecerá nas
subsequentes épocas da história de Israel, nesse hoje em que cada um é chamado a se
decidir? Esse drama é pressentido pelos autores do livro. Chega um tempo em que toda
ilusão desaparece: Israel não se mostra decididamente capaz de escolher o SENHOR e de
chegar à vida; o povo está destinado à catástrofe. Depois do exílio não se poderá deixar
de dizê-lo claramente (28,15; 29,21) e de refletir teologicamente sobre as condições
para “voltar” ao SENHOR (30).
Em face do drama da história e do pecado, o pensamento do Deuteronômio tende a
construir uma esperança. Pois o pecado do homem não pode ser a última palavra: virá um dia em
que Deus fará com que o povo se converta e obtenha o perdão (30,3). É nessa espera e
nessa confiança que a conversão do coração e a escolha da vida de novo são possíveis,
não obstante o drama de uma liberdade falível.

O DEUTERONÔMIO NA BÍBLIA

O Deuteronômio tem um lugar importante na Bíblia. Não apenas porque a tradição


judaica nele encontra seu credo fundamental, o "Shemá, Israel": "Escuta, Israel! O
SENHOR é nosso Deus, o SENHOR é único!" (6,4), nem tampouco porque Jesus dele extrai
o mandamento maior: "Amarás o SENHOR teu Deus com todo o teu coração, com todo o
teu ser, com toda a tua força" (6,4). Pelo espírito particular que a anima e pela força de
seu pensamento histórico e teológico, essa tradição influencia profundamente outras
correntes do Antigo Testamento. Tem-se apontado com freqüência as afinidades de
vocabulário e de temas entre o Deuteronômio e o livro de Jeremias: o esquecimento dos
benefícios do SENHOR (Jr 2,4-7; Dt 6,10- 13), a circuncisão do coração (Jr 4,4; cf. Dt
10,16). São temas tipicamente deuteronômicos que indicam a persistência do
pensamento do livro na escola deuteronomista, bem além dele mesmo.
A convergência de estilo entre o Deuteronômio e os discursos e as reflexões que
marcam as grandes etapas da história através dos livros históricos revela a influência
dessa escola sobre esse vasto panorama historiográfico que se interessa sobretudo pelo
Templo de Jerusalém e pela obediência aos mandamentos da Lei. Com sua articulação
firme da fé e da Lei, a "segunda lei", que é o Deuteronômio, enraizada na experiência da
Aliança, fornece assim a chave de compreensão da história. O tema da escolha a ser
feita entre dois caminhos, um que vai à vida e outro que vai à morte (Dt 30), prolonga-
se amplamente no ensinamento ético do judaísmo mais tardio (como nos Salmos), assim
como no evangelho (Mt 7,13-14). E sabe-se como a solidariedade ativa para com os
irmãos pobres, cuidado constante do Deuteronômio e fermento da vida comunitária
judaica, inscrever-se-á no coração do evangelho. Vale também assinalar como o
evangelho de João parece próximo do Deuteronômio em sua forma, em que domina o
discurso, e no coração de sua teologia, a do amor.

O DEUTERONÔMIO HOJE

O Deuteronômio pode trazer alguma contribuição para um cristão do século


XXI? A maior parte de seus preceitos se referem a um estado social e cultural bem
diferente do nosso. O que torna difícil para as épocas posteriores lidar com algumas de
suas convicções e a forma que ele lhes dá, Hoje em dia, por exemplo, como entender
bem a noção de eleição? A unicidade de Deus? O cuidado do pobre? E, aliás, não se tem
de admitir que a Lei se tornou caduca depois que Cristo instaurou o regime da fé, da
graça e do Espírito (cf. Rm 3,28; 6,14; G13,23; 5,18)?
Vale repetir aqui que, antes de ser coletânea de preceitos, o Deuteronômio é uma
reflexão sobre o que fundamenta nossa obediência a Deus, a saber, sua ação na vida e na
história de seu povo. O que rege a existência dos crentes é então o reconhecimento, no
duplo sentido de descoberta de uma presença e de resposta a um dom.
Além disso, se os próprios preceitos não requerem como tais nossa adesão, são
formulados de maneira que possam nos iluminar. Com efeito, todo esse ensinamento é
dominado pela vontade de encontrar uma fidelidade autêntica no coração de um mundo
que se transforma.
Na hora presente, quando os crentes de todas as confissões se interrogam sobre o
fundamento da moral, o Deuteronômio fornece o exemplo muito significativo de uma
lei que não quer se impor do exterior, mas que procura se enraizar na reflexão e na
decisão do coração. E moral pensada, lúcida, adulta, uma verdadeira sabedoria (4,5-8),
moral que visa à justiça (16,20), por crer no Deus que é justo (10,18). Pois, se é na
história que se encontra Deus, é em função dos eventos da salvação que se deve orientar
a conduta de cada dia.
Este livro ensina também a moral do amor em atos. O amor do SENHOR compromete
todos os âmbitos da vida humana, da política à higiene, da vida social ao encontro
fraterno, até mesmo ao respeito pelo animal (22,7) ou pela árvore (20,19). Cada situação
nos põe diante de uma escolha a favor ou contra o Senhor, na qual se decide nosso
futuro, pois seremos julgados por nossos atos, muito particularmente por nossa atitude
para com os mais pobres.
O Deuteronômio nos fala ainda pela insistência em ressaltar o caráter gratuito e sério
da relação de Aliança fundada sobre a escuta e a prática da Palavra exigidas do Povo de
Deus. Com efeito, a lei indica não somente - e de forma utópica - as condições a
preencher para poder entrar na terra prometida, mas também - e sobretudo - as con-
seqüências que decorrem da eleição gratuita e da herança recebida em Canaã. Ao
mesmo tempo, os autores do livro sublinham a importância da escuta e do pôr em
prática; a enunciação da lei é acompanhada de promessas de felicidade para os que a
cumprem e de ameaças de infelicidade para os que a transgridem, pois a lei da Aliança
põe o povo diante de uma questão de vida ou de morte (30,15-20). O Deuteronômio
mantém equilíbrio entre esses dois traços característicos da relação de Aliança: a
gratuidade e a seriedade. Equilíbrio difícil de salvaguardar e que já no judaísmo, mas
também nas diversas confissões cristãs, frequentemente incorrerá em uma ética do
mérito ou no moralismo.
Entre todos os testemunhos bíblicos, o Deuteronômio representa uma das bases
mais fecundas para a redescoberta de uma moral teológica adulta, equilibrada e
vivencial.

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