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Secção III

A impossibilidade superveniente da prestação e o problema do risco nos contratos


bilaterais e nos contratos reais

1. O regime da impossibilidade casual da prestação

A impossibilidade da prestação também pode constituir uma causa de extinção das


obrigações nos termos dos artigos 790º e seguintes, desde que se verifiquem os seguintes
requisitos: superveniente, objectiva (salvo nas prestações de facto infungível), absoluta e
definitiva.

Em primeiro lugar, tem que ser superveniente, ou seja, a impossibilidade tem que
acontecer após a constituição da dívida, porque, se for originária, o negócio considera-se
nulo por impossibilidade do objecto (artigos 401º/1 e 280º/1), razão pela qual a obrigação
não chega sequer a constituir-se.

Em segundo lugar, a impossibilidade tem que ser objectiva, ou seja, dizer respeito à
prestação em si, independentemente da pessoa que a realizar. Se, por exemplo, alguém se
obriga a rebocar um barco e este naufraga, a prestação impossibilita-se, uma vez que nem
o devedor nem qualquer outra pessoa a podem cumprir.

Se, em vez disso, a impossibilidade for subjectiva, porque diz apenas respeito à pessoa
do devedor, que está impossibilitado de a cumprir, então não ocorre, em princípio, a
extinção da obrigação, já que existindo uma legitimidade genérica para o cumprimento
(artigo 767º/1), o devedor tem o dever de se fazer substituir por outrem no seu
cumprimento. Assim, por exemplo, um advogado que adoeça no dia do julgamento, tem
o dever de se fazer substituir por um colega, podendo responder por incumprimento se
não o fizer. Pode porém suceder que o devedor não possa fazer-se substituir por terceiro
no cumprimento ou porque a prestação é infungível (artigo 767º/2) ou porque o facto que
impossibilitou o devedor de cumprir a prestação, o impossibilitou também de
providenciar pela sua substituição (será o caso de uma doença súbita altamente
incapacitante). Neste caso, a impossibilidade relativa à pessoa do devedor, produz
igualmente a extinção da obrigação (artigo 791º).

A impossibilidade da prestação tem igualmente que ser absoluta, não bastando que a sua
realização apenas se tenha tornado mais difícil.

Em quarto lugar, para provocar a extinção da obrigação, a impossibilidade tem que ser
definitiva, porque, sendo temporária, o devedor continua adstrito à realização da
prestação, embora não responda pela mora no cumprimento (artigo 792º/1). Contudo, a
impossibilidade temporária converte-se em definitiva, quando o credor perder o interesse
no cumprimento (artigo 792º/2).

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Se a impossibilidade revestir estas características, verifica-se a extinção da obrigação nos
termos do artigo 790º/1, ficando em consequência o devedor exonerado e sendo o risco
suportado pelo credor, através da perda do seu direito de crédito, em virtude de já não
poder exigir a prestação do devedor. Pode contudo acontecer, no âmbito das obrigações
divisíveis, que a impossibilidade não diga respeito a toda a prestação mas apenas a uma
parte dela. Neste caso, a lei determina que o devedor se exonera mediante a prestação do
que for possível, devendo ser proporcionalmente reduzida a contraprestação a que a outra
parte estiver vinculada (artigo 793º/1; no entanto, se o credor não tiver justificadamente
interesse no cumprimento parcial, pode resolver o negócio (artigo 793º/2).

Se todavia o devedor adquirir, em consequência do facto que tornou impossível a


prestação, um direito sobre certa coisa ou contra terceiro em substituição do objecto da
prestação, o artigo 794º/1 diz que o credor pode exigir que o devedor lhe preste essa coisa
ou então pode substituir-se ao devedor na titularidade do direito que este tiver adquirido
contra o terceiro. É o chamado commodum de representação que se destina a suprimir o
enriquecimento do devedor que ficou exonerado da sua prestação e obteve um benefício,
que assim é atribuído ao credor. Será o caso de perecerem os frutos da colheita que deviam
ser entregues mas o devedor tiver um seguro, que nesse caso reverte a favor do credor
que, por isso, fica vinculado à contraprestação (outro caso será o de a coisa devida ser um
automóvel que se incendiou mas o sinistro estava coberto pelo seguro).

2. Situações equiparáveis à impossibilidade da prestação: a frustração do fim da


prestação e a realização do interesse do credor por outra via

Temos agora que examinar uma hipótese diferente, em que a prestação ainda é possível
mas já não serve para satisfazer o interesse do credor, porque a prestação deixou de ser
idónea para esse fim ou o interesse do credor se encontra satisfeito por outra via. Será o
caso, por exemplo, do cirurgião que se compromete a realizar uma operação mas verifica-
se que a doença alastrou de tal forma que a cirurgia já não vai melhorar o estado do doente
ou, na hipótese inversa, o doente já se curou antes da operação. Nestes casos, embora a
prestação ainda seja possível, não se justifica que o devedor a cumpra, uma vez que dela
não pode resultar qualquer utilidade para o credor. Portanto, estas situações devem ser
equiparadas à impossibilidade para efeitos de exoneração do devedor.

3. O risco nos contratos sinalagmáticos obrigacionais e reais quod effectum

3. 1. A distribuição do risco em caso de verificação da impossibilidade da prestação

O regime da impossibilidade da prestação apresenta particularidades no âmbito dos


contratos sinalagmáticos obrigacionais e reais quod effectum. Nestes, vigora o princípio
da interdependência das prestações, o qual impede que uma prestação possa ser realizada
sem que a outra o seja. Por força do sinalagma, a impossibilidade da prestação vai afectar
não apenas o seu credor mas ambas as partes no contrato, o que implica a solução prevista
no artigo 795º para os contratos obrigacionais: o credor fica desobrigado da
contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos
termos previstos para o enriquecimento injustificado, uma vez que desapareceu a causa

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para a recepção da prestação (artigo 473º/2). Será o caso, por exemplo, de alguém
contratar uma empregada para fazer a limpeza da casa e pagar-lhe adiantadamente o
serviço. Se a empregada sofrer um acidente que a impeça de fazer a limpeza, terá que
devolver a remuneração recebida.

Deste modo, nos contratos sinalagmáticos obrigacionais, a impossibilidade de uma das


prestações não é apenas causa de extinção do direito do credor (artigo 790º), mas antes
causa de extinção de todo o contrato, acarretando a caducidade deste, uma vez que se
produz a extinção das obrigações de ambas as partes, em virtude de serem recíprocas.

A extinção do direito do credor à contraprestação só não se verificará no caso em que a


impossibilidade da prestação determine o surgimento do commodum de representação
(artigo 794º) e o credor pretenda exercer esse direito. Neste caso, o credor não fica
desobrigado da contraprestação nem pode exigir a restituição do enriquecimento, na
hipótese de já a ter realizado, dado que se mantém a vinculação do devedor, embora com
um objecto diferente.

Se a impossibilidade da prestação for imputável ao credor, o artigo 795º/2 diz que este
não fica desobrigado da contraprestação mas se o devedor tiver algum benefício com a
exoneração, será o valor do benefício descontado na contraprestação.

3. 2. O problema da frustração do fim da prestação e a realização do interesse do


credor por outra via

Nos contratos sinalagmáticos, também se pode dar a frustração do fim da prestação e a


realização do interesse do credor por outra via. Será o caso de o credor contratar um
empreiteiro para fazer obras em sua casa e esta ruir ou um reboque para transportar o seu
automóvel avariado, que de repente começa a funcionar.

É indubitável que estes eventos provocam a exoneração do devedor mas coloca-se a


questão de saber se ele não terá direito a uma compensação pelas despesas feitas e
trabalho efectuado ao preparar a execução da prestação. Será o caso, por exemplo, dos
materiais de construção comprados pelo empreiteiro para realizar a obra ou as despesas
do reboque. Havendo aqui uma lacuna da lei, a doutrina entende que se deve proceder à
aplicação analógica do artigo 1227º, que obriga o dono da obra a indemnizar o empreiteiro
pelo trabalho executado e despesas realizadas, caso já se tenha iniciado a execução dos
trabalhos.

3. 3. O risco nos contratos reais de alienação

O regime do risco nestes contratos está estabelecido no artigo 796º. Como estes contratos
implicam a constituição ou transmissão de direitos sobre coisas, está agora em causa saber
por conta de quem corre o risco de perecimento ou deterioração da coisa que é objecto da
prestação.

O artigo 796º estabelece no nº 1 que nos contratos que importem a transferência do


domínio sobre certa coisa, como sucede na compra e venda, o seu perecimento ou

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deterioração por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente. Trata-
se da consagração do princípio res perit domino ou casum sentit dominus, segundo o qual
o risco corre por conta do titular do direito sobre a coisa que, por força do artigo 408º, nº
1, é o adquirente, a partir do momento em que foi celebrado o contrato. Deste modo, o
devedor da prestação de entrega da coisa fica exonerado da sua obrigação mas o credor
suporta o risco, pelo que se mantém vinculado à contraprestação. Por consequência, na
compra e venda, esta solução significa que o perecimento da coisa nas mãos do vendedor
após a conclusão do contrato, não exonera o comprador de pagar o preço, podendo o
vendedor retê-lo se já o tiver pago.

Com efeito, após a celebração da compra e venda, o vendedor que fica com a coisa é um
mero depositário, que não retira qualquer benefício da guarda da coisa, pelo que não seria
correcto que suportasse o risco da sua perda ou deterioração. Em contrapartida, o
comprador tornou-se proprietário da coisa logo que celebrou o contrato, conforme
estabelece o artigo 408º/1, pelo que o risco tem que correr por conta dele, em virtude de
ser o titular da vantagem, apesar de a coisa ainda não estar em seu poder.

O artigo 796º/2 introduz uma excepção a esta regra, estabelecendo que no caso de a coisa
continuar em poder do alienante em consequência de termo constituído a seu favor, o
risco só se transfere com o vencimento do termo ou com a entrega da coisa, conforme o
primeiro facto que se verifique. Foi o caso decidido pelo STJ em 2006: havendo a venda
de uma fracção autónoma, que continuou contudo na posse do vendedor para terminar as
obras, o risco corre contra ele até que se verifique a entrega. Nestes casos, o alienante não
é um mero depositário, visto se encontrar a utilizar a coisa em seu proveito, devendo, por
isso, suportar o risco pela sua perda ou deterioração.

Em contrapartida, se não houver transferência de domínio mas a coisa for entregue ao


adquirente no interesse deste como sucede na venda com reserva de propriedade, o risco
corre por conta do comprador desde que a coisa lhe seja entregue.

O prolongamento deste espírito também está presente nas soluções dadas pelo artigo
796º/3: se houver condição resolutiva, o risco na pendência da condição corre por conta
do adquirente se a coisa lhe tiver sido entregue, o que se compreende dado que houve
transferência da propriedade e entrega da coisa, o que faz supor que o adquirente está a
tirar proveito da coisa, justificando-se assim que suporte o risco. Por outro lado, havendo
condição suspensiva, o risco corre pelo alienante na pendência da condição, o que neste
caso também se justifica, dado que não houve transferência da propriedade.

Por fim, o artigo 797º dispõe sobre a promessa de envio. Se A vender a B, em Lisboa,
certa quantidade de mercadorias, que se obrigou a enviar por caminho-de-ferro para Faro.
Nestes casos em que o alienante deva enviar a coisa para um local diferente do
cumprimento, a transferência do risco opera com a entrega ao transportador ou expedidor
da coisa ou à pessoa indicada para a execução do envio.

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Secção IV

A alteração das circunstâncias

1. Regime legal

Uma outra causa de extinção dos negócios jurídicos é a resolução por alteração de
circunstâncias, que está prevista no artigo 437º, o qual também permite a modificação do
contrato segundo juízos de equidade.

Os pressupostos de aplicação deste preceito são os seguintes:

- Uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de


contratar: este pressuposto significa que apenas relevam os factos que foram causais para
a decisão de contratar e que a alteração tinha que ser imprevisível, como sucede com uma
revolução, a deflagração de um estado de guerra ou modificações legislativas totalmente
inesperadas. Foi o caso decidido pelo STJ em 1978, em que se concedeu a resolução de
um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel para reconstrução, em virtude de
em Setembro de 1974 ter sido suspenso o direito de demolição dos prédios; antes, o prédio
valia 5500 contos e depois da alteração legislativa passou a valer 800 contos.

- Em segundo lugar, essa alteração deve provocar um desequilíbrio de tal modo


significativo das prestações contratuais que torne contrária à boa-fé a exigência de
cumprimento do contrato. Este requisito significa que a alteração de circunstâncias não
pode ser aplicada a contratos já executados, uma vez que, nesse caso, o risco se
consolidou definitivamente nas esferas das partes.

- Em terceiro, exige-se que a lesão causada pela alteração das circunstâncias não se
apresente coberta pelos riscos próprios do contrato.

O artigo 438º proíbe a parte lesada de requerer a resolução ou a modificação do contrato


caso se encontrasse em mora no momento em que ocorreu a alteração de circunstâncias.
A solução é perfeitamente compreensível, dado que se a lei permitisse que o devedor
invocasse alterações de circunstâncias ocorridas em mora, isso significaria a concessão
de um benefício ao infractor, uma vez que, se o devedor tivesse cumprido em tempo, o
contrato já estaria executado, estando assim afastada a alteração de circunstâncias.

2. Efeitos da alteração de circunstâncias

Finalmente, a resolução por alteração de circunstâncias pode ser requerida


extrajudicialmente, de acordo com o regime geral da resolução. Declarada a resolução,
produz-se a sua normal eficácia retroactiva.

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