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São Paulo

1ª Edição – 2012
Copyright © 2011 – Todos os direitos reservados a:

Heitor Abreu

1ª Edição Maio 2012

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expressa autorização por escrito da Biblioteca 24 horas sob penas criminais e ações civis.
Dedicatória

Para meus pais, José Heitor e Lia, e minhas irmãs, Carla e Karina.
Agradecimentos

A Deus, pela fé, pela força e pelas lágrimas enxugadas nos momentos mais difíceis na África,
que só Ele e eu testemunhamos.

Aos meus filhos, João, Isabela e Mauro, que souberam entender a grandeza da minha missão
na África. Espero que as experiências narradas nestas páginas os tornem pessoas maduras e
úteis à sociedade, no seu devido tempo.

A Cristiane, que me ensinou que a vida é muito para ser desperdiçada e me disse: “Você vai
publicar esse livro. Essa história merece ser contada e lida”.
O autor

O autor é oficial do Exército Brasileiro, com mais de 28 anos


de serviço. Na área militar, realizou diversos cursos inerentes a
sua profissão. No segmento civil, especializou-se em Supervisão
Escolar, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e concluiu o
MBA de Logística Empresarial na Fundação Getúlio Vargas, dentre
outros. Durante sua permanência na ONU, realizou cursos na área
de Direito Humanitário Internacional e dos Conflitos Armados,
Logística e Operações Humanitárias.
Dedica-se, nas horas vagas, à literatura. Em 2000, publicou o
romance Caleidoscópio. Em 2004, foi agraciado com a menção
honrosa do Prêmio Tasso Fragoso pela obra A Profissão Militar e
a Preparação para a Guerra – Uma visão crítica, promovido pela
Biblioteca do Exército Editora. Recebeu ainda prêmios ligados à
prosa literária com os seguintes contos: “Diet” (primeiro lugar no
Concurso de Contos Trier), “Enterro” (menção honrosa no IV
Concurso de Contos José Cândido de Carvalho) e “Santa Ceia”
(menção honrosa no VII Concurso de Contos de Bragança
Paulista). Tem três filhos e vive no Rio de Janeiro.
Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de
histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus
olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas
próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o
calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem
sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não
conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo
como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que
nos faz professores e doutores do que não vimos, quando
deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.

Amyr Klink
Um longo voo
Este livro fala da África sob a ótica de um observador militar
que viveu um ano na Costa do Marfim[ 2], entre outubro de 2005
e outubro de 2006. Antes de qualquer conclusão apressada, não
é, absolutamente, um livro militar ou voltado para a História
Militar. Ao contrário, afasta-se sobremaneira do enfoque
castrense. Trata-se de uma visão humanista e sincera, sem
retoques, e bastante direta que só o convívio diário e a minha
incredulidade diante dos fatos que vivenciei poderiam
proporcionar. Julguei razoável dividir com outras pessoas.
Durante aqueles 12 meses não fiz nada de heroico que
valesse uma medalha, um aumento de salário ou um prêmio. Fiz
apenas o que se esperava de mim: o meu dever. Digo isso sem
nenhum rasgo de falsa modéstia ou de pieguice. Essa é a mais pura
e transparente verdade. Os heróis verdadeiros, eu iria conhecer
por lá.
Aprendi que, quando se está na África, não há como mentir
para si mesmo. No entanto, ao lado do cumprimento das minhas
missões profissionais, procurei conhecer um pouco mais as
pessoas, os ambientes e as peculiaridades culturais a que fui
submetido. Queria, todo o tempo, entender a perspectiva do povo
africano, a forma de olhar o mundo que tanto nos encanta, mas
também nos deixa confusos quando vemos imagens fortes que
retratam o continente sendo espalhadas na mídia a todo o
momento. Talvez, em alguma parte da minha narrativa, haja
traços de etnocentrismo. Mas como não ficar tentado, em alguns
momentos, a comparar a minha visão de mundo com o que vi na
África? Como não reagir ao saber que circuncisão feminina e
estupro marital, dentre outros absurdos, ainda são realidades
naquele continente? Como não se revoltar ao ver que a
poliomielite ainda é endêmica e deforma as pessoas em pleno
século XXI?
Em certos momentos, senti raiva de algumas pessoas –
africanos ou não – por serem fatalistas, inertes, muitas vezes,
diante dos acontecimentos; mas também senti que a distância
que nós, povos de outros continentes, interpomos a eles é
imensamente maior do que a realidade. No fundo, africanos,
americanos, europeus, orientais, enfim, todos buscam os mesmos
valores e objetivos: verdade, honestidade, família, filhos, amigos,
um abraço de agradecimento, um beijo amoroso, um olhar de
compreensão, afeto... A forma dessa busca é que difere.
No momento em que desci do avião que me levou até a
Costa do Marfim, tive a certeza de que não seria o mesmo ao final
da minha missão. A minha dúvida era se voltaria melhor ou pior
do que saíra. Não me preocupava com o aspecto profissional.
Tinha segurança da minha capacidade; de outra forma, o Exército
Brasileiro não teria me selecionado para aquele desafio
sabidamente árduo.
Preocupava-me o resultado puramente humano que aquela
experiência iria impregnar na minha alma. O tempo iria corroborar
minhas premonições. A minha estadia na África provocou
profundas e indeléveis marcas na minha personalidade. A maioria
delas positiva. O meu caráter se reforçou, as minhas convicções
foram lapidadas, muitas das minhas ideias, até então “pétreas”,
foram dissolvidas diante de fatos inquestionáveis. Meu coração
pulsou com mais intensidade, meus olhos inundaram muitas e
muitas vezes. Dei uma nova chance para a minha fé em relação a
Deus...
Não há como se esquivar diante de fatos tão reais e, muitas
vezes, chocantes. Plagiando um dos meus autores prediletos,
Nelson Rodrigues, a gente vê a “vida como ela é”, não como
gostaríamos que fosse.
Mas, aqui, permita-me uma advertência. Viver algum tempo
na África não significa a cura de todos os males ou a redenção
pessoal. Não se trata de uma experiência sobrenatural ou que vai
conduzir alguém a um paraíso divino, onde os anjos estarão
tocando melodias em harpas. É experiência dura e exaustiva. Vi
muita gente ir até lá, vivenciar a realidade tão diferente e
característica, e não mudar sua forma de pensar um centímetro
sequer. Vi, inclusive, aqueles que se tornaram mais duros, mais
rígidos consigo mesmo e com as pessoas. Fuga de si próprio? Há
que se ter vontade, há que mergulhar, por mais doloroso que seja,
no desafio; para, só então, vir à tona renovado.
Sinceramente, espero que as páginas seguintes sirvam para
ampliar o conhecimento sobre a África daqueles que as lerem e, o
que é mais importante, provocar uma reflexão, mesmo que num
pequeno lampejo, sobre o que é realmente importante na vida e
o que é apenas acessório.
Em algum lugar no voo Abidjan- Dakar – Lisboa – Rio de
Janeiro, outubro de 2006.
Capítulo 1
Coordenadas0508115 N 0030116 W
O sol de abril castigava o meu rosto sem piedade, apesar de
ainda não serem nem 10 horas da manhã. O calor africano, alguns
anos atrás apenas imaginado ao assistir a alguns filmes sobre a
África, como em Uma Aventura na África (The Africa Queen) e
durante as muitas leituras sobre o continente, saía do campo da
imaginação e revelava sua força queimando a minha pele. O ar-
condicionado da nossa Toyota Prado VX havia quebrado na
véspera; então, só nos restava abrir as janelas e sentir o vento
quente que soprava. Coloquei meus óculos escuros para proteger
meus olhos da intensa luz que quase nos cegava. Completamente
suado e com o uniforme camuflado empapado, aceitei a oferta de
lenços umedecidos, desses de bebê, do meu amigo chinês que
dirigia atabalhoadamente. No início ficava nervoso com os
motoristas alucinados que conheci na missão. Mas, naquela
altura, apenas colocava o meu cinto de segurança, certificava-me
de que o air bag estava funcionando e relaxava. As rezas, que eram
muitas e diárias, eu fazia ao acordar...
Bing Zhang era um tenente-coronel da Marinha chinesa que
acabara de chegar. Assim como eu, era um observador militar
designado para trabalhar na Operação das Nações Unidas na
Costa do Marfim. Ele havia chegado em março de 2006. Eu já
estava na “Terra dos Elefantes”, como a Costa do Marfim é
conhecida na África, desde outubro de 2005.
Por alguns míseros minutos, aqueles lencinhos trouxeram
algum alívio. Contudo, após pouco tempo, o calor da África
Subsaariana mostrou que era mais poderoso que simplórios
lenços úmidos. Batalha perdida para o calor. Como estávamos na
época das chuvas, a esperança era a de que mais cedo ou mais
tarde uma dessas tempestades que por lá se formam
repentinamente viesse aliviar nossa situação. Nuvens negras já
apontavam no horizonte.
Sem solução para o calor sufocante, continuamos a nossa
viagem em direção à fronteira com Gana, nosso objetivo final
naquele dia. A estrada de asfalto, sem qualquer pintura, rasgava a
paisagem ladeada ao sul pelo oceano Atlântico, e ao norte por
uma vegetação de palmeiras e, mais ao longe, por árvores de
maior porte, parecendo uma pequena selva.
Tentava prestar atenção no caminho, mas a noite
maldormida deixara minha cabeça entorpecida. Na noite anterior,
o meu comandante, Gerey Oleg, um tenente-coronel russo, havia
ido à minha casa por volta das 23h00 para me entregar uma
ordem de operações que deveria ser executada no dia seguinte,
antes de o sol nascer, nas palavras dele. Bastante chateado pela
situação incomum e desnecessária, que de forma nenhuma era da
responsabilidade dele, tratou de me dar detalhes sobre o que eu
deveria fazer. Nossa reunião foi dentro de uma pick up com ar-
condicionado ligado por causa do calor. Mais uma vez,
confirmava-se minha impressão sobre a desorganização latente
de alguns setores da ONU e a sua falta de previsibilidade. Afinal,
era para inspecionarmos e escoltarmos civis para um projeto
piloto de identificação e naturalização que havia meses estava
planejado. A pergunta que martelou a minha cabeça enquanto lia
a tal ordem de operações era uma só: Ninguém sabia que isso ia
acontecer? Era, mais ou menos, como se nos assustássemos com
a ocorrência do Sete de Setembro no Brasil. Resolvi deixar para lá
e mergulhei na leitura do documento até de madrugada, já
recostado em minha cama, adormecendo com os papéis no meu
colo e ouvindo músicas dos Paralamas do Sucesso.
O balançar da nossa camionete acabou embalando-me
numa mistura de sono e torpor. Sem perceber, divagava sobre a
minha vida e as circunstâncias que me colocaram naquela
situação insólita: eu e um chinês que me lembrava o Stanley, um
personagem do antigo desenho animado chamado Charlie Chan,
viajando pelo litoral da Costa do Marfim. Difícil acreditar; logo eu,
um taurino apegado às coisas tangíveis, aos fatos esperados...
Havia quase oito meses que estava vivendo, vendo e
entendendo – pelo menos tentando – por que um país recém-
saído de uma guerra civil fratricida, que só serviu para ceifar vidas,
separar famílias e revelar ódios fossilizados por séculos de
incompreensão, insistia em recusar-se a dar um fim definitivo a
tanto sofrimento. Parecia-me que o desrespeito, as lutas insanas
e outras formas requintadas de manipulação que só serviram para
aumentar distâncias – fossem elas geográficas, fossem
psicológicas – continuava a dominar o inconsciente coletivo.
Do lado de fora do carro, via a miséria desfilar generosa, sem
fim. Barracos disformes e assimétricos, feitos com madeira velha,
pedaços de ferro e papelão, povoados por jovens mães com filhos
amarrados às costas e crianças sujas vestindo roupas puídas e
negras compunham o cenário. As pessoas caminhavam com
olhares perdidos. Pareciam apenas andar, nada mais que isso; sem
rumo, sem destino certo. Definitivamente, a perspectiva de futuro
não constava na vida daqueles seres. Carros que havia muito já
deveriam ter parado de trafegar insistiam em continuar rodando
pela estrada, dificultando o trânsito, desafiando a lógica e as leis
básicas da mecânica. Era inacreditável ver automóveis sem portas,
vidros, alguns até mesmo sem o capô do motor, apinhados de
gente e de fardos coloridos amarrados no teto e nas laterais,
movendo-se vagarosamente. Dos escapamentos, via-se uma
densa fumaça esbranquiçada saindo e se espalhando por todos os
lados.
De tempos em tempos, encontrávamos alguns desses
“bólidos” quebrados na beira da rodovia. Os passageiros, sem ter
como sair dali, conversavam sentados nos acostamentos já
tomados pelo mato, esperando que alguém aparecesse e
solucionasse o problema. A verdadeira paciência não é chinesa, é
africana! Eles são capazes de permanecer parados, sem fazer
absolutamente nada, durante horas e horas, aguardando uma
solução que nem sabem se virá.
Perguntas recorrentes caíam sobre a minha cabeça como
pedradas que não se podiam desviar: Há solução para esse
continente? Quem são os culpados por tanta desolação, tanto
sofrimento que esse povo é obrigado a vivenciar? Alguém,
realmente, se importa com isso? Eles, os africanos, se importam
com isso? Na verdade, aquele sentimento fatalista, aceitando as
coisas como elas aconteciam, me incomodava...
Os solavancos da estrada de terra que Zhang acabara de
entrar interromperam meus pensamentos pseudofilosóficos e
nada originais, lembrando-me que estávamos próximo do nosso
destino: Tiapoum, uma vila extremamente pobre, na fronteira
com Gana (outro país paupérrimo), debruçada numa das
inúmeras lagunas que permeiam o belíssimo litoral daquela
região. O visor de cristal líquido do meu GPS mostrava as nossas
coordenadas, confirmando que estávamos no lugar correto:
0508115 N 0030116 W. Entrei em contato com a minha base e
informei que estávamos no ponto determinado.
Capítulo 2
Por dentro do Problema
Localizada na porção centro-oeste da África, a Costa do
Marfim era, antes da guerra, um dos países mais desenvolvidos do
continente, sendo considerada a terceira potência econômica
africana ao sul do Saara. Com a luta, a situação econômica e social
se deteriorou rapidamente. Com todo o território no hemisfério
Norte, suas fronteiras são: ao norte, Burkina-Faso e Mali; ao sul, o
oceano Atlântico (golfo da Guiné); a leste, Gana; e a oeste, a
Libéria e a República da Guiné. Com uma superfície de 322.463
km2 (do tamanho do Maranhão, aproximadamente), o país tem
forma compacta, semelhante a um quadrado de 570 km de lado.
O PIB e a renda per capita, em 2010, eram, respectivamente, de
US $ 37,02 bi e US $ 1.716,00.
Seu relevo é relativamente plano, e a vegetação varia de
mangues no litoral, passando por florestas de médio porte até as
savanas mais ao norte. Os rios são rasos e correm de norte para
sul, destacando-se os rios Bandama e Sassandra.
É um país agrícola, com cerca de 60% da população vivendo
fora das cidades mais importantes. É um dos maiores
exportadores de cacau do mundo. Destaca-se ainda a exportação
do óleo de palma e algodão. A madeira também desfruta de
grande importância na pauta de exportação. As indústrias
existentes são, basicamente, da área alimentícia, petroquímica e
elétrica, mostrando-se autossuficiente em energia elétrica.
Antes da guerra, havia excelentes estradas que permitiam
um bom tráfego. No entanto, com a guerra, a malha viária
deteriorou-se, dificultando o trânsito e encarecendo o comércio,
em função das constantes quebras de caminhões que não
resistem à situação rodoviária. Há uma estrada de ferro que corta
o país do norte para o sul que ainda funciona com certa
regularidade. A França ainda detém importantes setores
econômicos no país, como a indústria alimentícia e os serviços de
telefonia celular.
O país possuía uma capital econômica (Abidjan) e uma
político-administrativa (Yamoussoukro). Com o início do conflito,
a parte político-administrativa foi transferida para Abidjan. Após
o cessar-fogo, o país foi dividido em duas porções, uma ao norte,
sob controle das Forces Nouvelles, com capital em Bouaké; e
outra ao sul, sob o governo constituído antes da crise, com sede
em Abidjan. Interpondo-se aos territórios norte e sul, existe a
ZOC[ 3], monitorada por forças militares da ONU e da França.

A história da Costa do Marfim está ligada à França desde


1842, quando esta última estabeleceu uma espécie de
protetorado na região costeira marfinense. Em 1893, de forma
definitiva, tornou-se colônia francesa, da qual herdou o seu
idioma oficial. Em 1904, tornou-se parte da Federação Francesa
do Oeste da África.
Felix Houphouet-Boigny, que se tornaria o primeiro
presidente da Costa do Marfim, fundou, em 1944, a União
Africana de Fazendeiros, sinalizando os primeiros movimentos em
busca da independência. Em 1958, tornou-se República, no
entanto, ainda ligada à Comunidade Francesa. Em 1960, o país
adquiriu sua independência, tendo Boigny como presidente até a
sua morte, em 1993, quando assumiu Henri Konan Bedie. Em
1999, começaram os primeiros problemas graves em relação à
luta pelo poder. Alassane Ouattara, um muçulmano, tentou
concorrer às eleições presidenciais. Mas o fato de ter sido
considerado estrangeiro, haja vista suas ligações parentais com
Burquina Faso, o impediram de concorrer, gerando tensão. Nesse
cenário, houve um golpe de estado protagonizado por Robert
Guei, obrigando Bedie fugir para a França.
Guei se autoproclamou presidente, dizendo ter vencido as
eleições após a deposição de Bedie. Setores importantes não
aceitaram a situação e investiram contra Guei, que se viu também
obrigado a fugir do país. Aproveitando-se da confusa situação
legal sobre quem seria o presidente de fato e de direito, surgiu
Laurent Gbagbo, que acreditava ser o vencedor do pleito.
Ouattara protestou, sem resultados. Havia uma nítida, porém
frágil e, pode-se dizer, artificial divisão religiosa, pois Gbagbo tinha
apoio cristão do sul, e Ouattara era apoiado pelos muçulmanos do
norte, com lutas localizadas e limitadas. A causa de guerra não
seria religiosa, mas pura luta pelo poder, mesclada com corrupção
e interesses econômicos.
Em 2001, tentou-se uma reconciliação, mas esta não teve o
efeito desejado, pois o General Guei não aceitou as condições das
conversações em função da prisão, alegadamente ilegal, de um
auxiliar próximo, chamado Fabien Coulibaly.
No ano de 2002, a crise sofreu nova escalada. Em setembro
daquele ano, houve violentos combates entre militares que
apoiavam Gbagbo e Ouattara. O país viu-se, realmente dividido,
com membros do Movimento Patriótico da Costa do Marfim
ocupando o norte. Mais tarde, esses elementos seriam
conhecidos como Forces Nouvelles[ 4].
Em 2002 houve a primeira intervenção militar externa, no
sentido de proteger os cidadãos franceses que habitavam o país,
protagonizada por tropas francesas na chamada Operação
Unicórnio.
Inicialmente, a mediação do conflito coube a ECOWAS[ 5],
que ocupou o país com tropas pertencentes aos países signatários
daquela organização, em consenso com a França. Em 2003, criou-
se o Governo Nacional de Reconciliação, tendo como resultado
prático a assinatura de um tratado de cessar-fogo em 3 de maio
de 2003.
Dentro desse contexto, a Operação das Nações Unidas na
Costa do Marfim (ONUCI[ 6]) foi estabelecida em 2003, por
intermédio da resolução 1479, com o nome de Missão das Nações
Unidas na Costa do Marfim (MINUCI). Em 2004, teve seu nome
modificado para a designação atual e suas missões ampliadas. O
desdobramento dos meios da ONU no país visou a facilitar o
estabelecimento da paz e a permitir a aplicação efetiva dos
diversos acordos firmados, destacando-se o Linas-Marcoussis,
assinado em 2003. Dessa forma, o contingente militar da
ECOWAS, que operava em precárias condições, foi absorvido pela
ONU, conferindo um perfil mais organizado e com maior peso
político.
A decisão internacional deveu-se ao confuso quadro onde
problemas étnicos, luta pelo poder, divergências econômicas e
muitos outros aspectos negativos se misturavam num perigoso e
instável cadinho. Na época, a população começou a armar-se,
dificultando sobremaneira os esforços que buscavam a paz, além
de recrutar combatentes da Libéria e de Serra Leoa. A ONU
estimava que em 2006 existissem cerca de 48 mil homens e
mulheres pertencentes às Forces Nouvelles e a milícias[ 7] do sul
que deveriam ser desarmados e reintegrados à sociedade.
Em novembro de 2004, em junho de 2005 e em janeiro de
2006, eclodiram revoltas graves que redundaram em diversas
mortes em vários pontos do país. Tal quadro comprovou a
instabilidade regional ainda existente e a necessidade de um
monitoramento constante em ambos os lados por membros da
ONU. Não é à toa que, quando um membro da ONU pergunta
como está a situação, a resposta é sempre a mesma: Calma, mas
imprevisível.
A Costa do Marfim possui uma expressiva quantidade de
estrangeiros e descendentes nascidos em território marfinense
(entre 20% e 27% da população, segundo estimativas não oficiais),
sobretudo vindos de Burquina Faso, Mali, Nigéria e Libéria, dentre
outros. Esse alto percentual populacional não possuía (e ainda não
possui) condições de lutar pelos seus direitos políticos em função
de ser-lhes negado qualquer reconhecimento como cidadãos
costa-marfinenses, inclusive seus descendentes nascidos no
território. A ONU vem tentando, notadamente a partir de maio de
2006, resolver esse problema. No entanto, em função das
dificuldades impostas pela Constituição marfinense, o número de
apátridas é considerável.
Com a sua sede na cidade de Abidjan, o quartel-general da
ONUCI se localiza num antigo hotel (sob controle da ONU e
reformado), conhecido como Sebroko. A gigantesca estrutura é
constituída de diversos setores tradicionalmente existentes na
organização das missões de paz da ONU (representante especial
do secretário geral da ONU, escritórios de DDR[ 8], eleitoral,
engenharia e imprensa, dentre outros). A principal particularidade
da ONUCI reside no fato de que, além da missão propriamente
dita, existe uma missão militar francesa (não subordinada a ONU,
mas que trabalha em conjunto), denominada “Força Licorne”. As
forças militares da ONU e da França são conhecidas como “Forças
Imparciais” e podem transitar em todo o território da Costa do
Marfim.
A ONUCI contava, quando lá estive, com cerca de 7.594
militares, entre homens e mulheres, incluídos 6.702 militares
pertencentes a contingentes (tropa armada e oficiais de estado-
maior), 195 observadores militares (chamados de MILOBS[ 9]),
697 policiais e 988 civis. Contribuíam com pessoal militar, os
seguintes países: Bangladesh, Benin, Bolívia, Brasil, Chade, China,
Croácia, República Dominicana, Equador, El Salvador, França,
Gâmbia, Gana, Guatemala, Guine, Índia, Irlanda, Jordânia, Quênia,
Moldávia, Marrocos, Namíbia, Nepal, Níger, Nigéria, Paquistão,
Paraguai, Peru, Filipinas, Polônia, Romênia, Federação Russa,
Senegal, Sérvia, Montenegro, Togo, Tunísia, Uganda, Uruguai,
Iêmen e Zâmbia. Até o fim de 2006, morreram na missão cerca de
18 pessoas (14 militares, 2 policiais e 2 civis). O orçamento anual
(1 Jul 2005-30 / Jun 2006) foi de 438,17 milhões de dólares[ 10].
Atualmente, são 10.988 militares, 401 funcionários e 265
voluntários da ONU. Até o início de 2012, morreram na missão 59
militares, 15 policiais, 1 observador militar, 4 funcionários da ONU
(internacionais) e 10 civis, totalizando 89 pessoas. O orçamento
em 2011/ 2012 é de, aproximadamente, 645.96 milhões de
dólares.
Os primeiros militares brasileiros a chegarem à região
iniciaram sua missão em outubro de 2003. De lá para cá, outros
diversos oficiais das Forças Armadas participaram como
representantes do governo brasileiro junto à ONU.
Na época em que estava lá, o Brasil se fazia presente na
ONUCI com sete oficiais: dois da Marinha, quatro do Exército e um
da Força Aérea, exercendo funções de estado-maior e de
observadores militares. A missão dos oficiais de estado-maior e
dos observadores militares tem a duração de um ano.
O Brasil possui ainda uma representação diplomática com
um embaixador e outros funcionários, cuja estrutura busca
defender os interesses do País na Costa do Marfim e nos países
próximos. Além disso, existem diversos religiosos baseados na
região, cerca de 40, dentre padres, pastores e freiras. Pude
conhecer, embora em número reduzido, também alguns
brasileiros, notadamente descendentes de libaneses, que
desenvolviam atividade comercial, além de alguns que
trabalhavam na ONU como voluntários civis.
Os MILOBS trabalham em locais chamados team site[ 11](
TS). A organização interna de um team site é a seguinte: um team
leader (comandante, normalmente um tenente-coronel ou
major), um deputy team leader (subcomandante), um operation
officer (oficial de operações), um personnel officer (oficial de
pessoal), um logistic officer (oficial de logística), um information
officer (normalmente um francofônico com a missão de realizar
ligações com autoridades locais constituídas), um transport officer
(oficial de transporte e manutenção), um communication officer
(oficial de comunicações), um information and security officer
(oficial de informações e responsável pelo planejamento de
segurança do TS), um DDR officer (oficial de desarmamento,
desmobilização e reintegração), um humanitarian officer (oficial
de ligação com as ONGs e com órgãos da ONU de direitos
humanos) e um embargo officer (oficial de inspeção de embargo).
Suas missões consistem, genericamente, na verificação do
cumprimento dos tratados de paz firmados, inspeções em
instalações militares de ambas as partes – no intuito de verificar
equipamentos, armamentos e munições de posse autorizada
(embargo) – patrulhas de curto, médio e longo alcance, além de
realizar as ligações determinadas pelos escalões superiores com
organizações não governamentais (ONGs) e representantes de
ambas as partes. Os idiomas utilizados pelos observadores
militares brasileiros são o inglês e o francês[ 12]; e estes executam
suas tarefas desarmados, proporcionando-lhes a necessária
imparcialidade.
Capítulo 3
O Início de Tudo
Soube, de forma inesperada, que havia sido designado
observador militar na Costa do Marfim em agosto de 2005, numa
tarde ensolarada no Rio de Janeiro. Um sargento que trabalhava
em Brasília, junto ao Gabinete do Comandante do Exército
Brasileiro, ligou-me e foi direto ao assunto: – Major Heitor? –
Sim...
– Aqui é do Gabinete do Comandante do Exército. Estou
ligando para informar que o senhor foi designado para uma
missão no exterior, na Costa do Marfim. Parabéns!
Sem saber exatamente o que fazer (se ria, se chorava, se
gritava um enorme “puta-que-pariu” ou coisa parecida), respondi:
– Costa do Marfim? Obrigado! Quando começa, o que devo
fazer agora?
– Não se preocupe, todas as providências serão tomadas, e
o senhor será informado. A sua missão inicia em outubro...
Isso foi praticamente tudo. Ele ainda pediu meu endereço
eletrônico para remeter as ordens iniciais e tirou-me algumas
dúvidas. Era óbvio que ele não queria muita conversa, pois tinha
outros afazeres naquela tarde.
Na minha sala, vários capitães ficaram me observando, em
especial o Capitão Espínola, um amigo competente e dinâmico
que tive o prazer de conhecer durante a minha estada na Escola
de Aperfeiçoamento de Oficiais[ 13]. Ele não se conteve e
perguntou:
– E aí, major? Missão no exterior? Para onde?
Sem querer demonstrar nenhuma emoção, pois ainda
estava confuso com a notícia, disse:
– Costa do Marfim, em outubro desse ano...
Recebi alguns cumprimentos e saí da sala para dar a notícia
para a minha mulher, à época, e filhos por telefone. Sem que
ninguém visse, soltei um Yes!!!! bem grande. Mas acho que o
Espínola viu, pois durante todo o tempo que me restou no Brasil,
antes de embarcar, contou em forma de paródia e com exagero,
é claro, a minha reação aparentemente cética diante da notícia,
brincando acerca da minha frieza diante do fato. Na verdade, era
apenas jogo de cena... Por dentro, tremia de medo! Como
excelente imitador que é, todos riam, inclusive eu, quando
Espínola contava a sua versão da história.
Na realidade, a minha frieza tinha um fundo de racional.
Confesso que no início não consegui concluir se a notícia era boa
ou ruim. Como todo bom militar, coloquei em prática a nossa
famosa linha de pensamento cartesiano, antes de tomar qualquer
decisão ou optar por uma opinião. Isso é muito útil quando
estamos cansados, em dúvida ou, até mesmo, inseguros. Trata-se
simplesmente de relacionar, mesmo que mentalmente, os
aspectos negativos e positivos, atribuindo-lhes valores. Após isso,
pesam-se os dois lados e verifica-se o que fazer. É simples e
eficiente num primeiro momento. Ajuda a diminuir a ansiedade e
a iniciar um passo mais avançado de pensamento ou de decisão
em melhores condições.
De bom, aquela missão me proporcionaria ganhos óbvios:
assinalava um reconhecimento do meu desempenho profissional
nos últimos 15 anos, passaria um ano recebendo um bom salário
em dólares, conheceria outros povos e países, além de
aperfeiçoar-me no inglês e no francês.
De ruim, consegui ver alguns pontos importantes. Outros, só
veria depois de iniciada a missão. A distância da minha família,
principalmente dos meus três filhos, a mudança radical da minha
rotina, já arraigada, o distanciamento por um longo tempo da
minha cultura e do meu País, além do risco de morte que me
rondaria por um ano, já que estaria indo para um continente onde
doenças e guerras fazem parte do cenário cotidiano, figuravam na
minha lista de “aspectos negativos”.
Mesclado com tudo isso, havia componentes nada
cartesianos e difíceis de quantificar, como a minha forte presença
na vida dos meus filhos e as consequências inexoráveis que iriam
advir com a minha falta temporária. Essa repentina e longa
ausência poderia trazer resultados impossíveis de serem
estimados. Aliava-se também a quebra de planejamento que eu
havia feito para cursar a ECEME[ 14] no ano de 2006. Enfim,
falando francamente, estava com um bruta medo do
desconhecido, das consequências das minhas decisões no futuro
próximo e com o receio de não conseguir lidar com tantas
variantes ao mesmo tempo. Ir ou não ir? Essa era a questão que
perturbava minha mente naquelas primeiras horas após receber
a notícia.
Juntei as variáveis cartesianas, temperadas com pitadas de
sentimentos genuinamente emocionais, e resolvi encarar o
“Elefante africano” de frente. Com muito medo, reconheço.
Talvez até por ter, ao contrário de muitos companheiros,
consciência do desafio que iria encarar. Esse medo controlado e
consciente seria, por incrível que pareça, meu aliado durante toda
a missão. Ele evitou, por exemplo, o subdimensionamento dos
desafios e perigos. O que isso ajudou? Eu nunca arrisquei além do
que era necessário, pois sabia que, a partir de um determinado
ponto, as coisas poderiam sair do controle. Foi uma forma de
preparar o corpo e a mente para momentos sabidamente difíceis.
Quando, antecipadamente, se estuda a situação que se vai
enfrentar, sabendo dos riscos e dos reveses que certamente se
irão encontrar, penso que a resposta da mente é mais positiva e
supera em menos tempo os momentos difíceis. O resultado foi
que mantive meu equilíbrio psicológico relativamente saudável,
principalmente nos meses iniciais e mais difíceis. Mas não foi fácil
nem um pouco tranquilo...
O fato é que sempre ficamos temerosos com grandes
novidades. Há, até mesmo, aqueles que temem as pequenas
mudanças de rotina. Acredito que seja natural. No meu caso, o
segredo foi pesar tudo e afastar alguns medos imaginários. Havia
a possibilidade de tudo dar errado? Claro, mas seria um risco que
valia a pena. Medo? Senti mais do que em minha vida toda.
Dúvida? A todo o momento. Recaídas, pensando que havia feito a
coisa errada? Quase todos os dias, principalmente nos primeiros
três meses. A verdade é que tive que vencer – com ajuda de muita
gente e com meu esforço pessoal – a brutal mudança que
vivenciei. Mas o melhor de tudo foi que a cada revés ou obstáculo
vencido, eu me transformava, sem saber, em uma pessoa melhor.
Além do mais, sabia que estava fazendo o meu melhor. Isso me
confortava muito!

Paralelamente às dúvidas “existenciais”, não podia deixar de


lado as providências de cunho prático. Contratei duas professoras
de idiomas. Uma de inglês e outra de francês. Ambas foram
pessoas formidáveis e direcionaram de forma muito objetiva o
meu aperfeiçoamento nessas duas línguas que, obviamente, já
havia estudado, mas necessitava de um “polimento”.
Fui às compras também! Tive que adquirir uma miríade de
materiais e equipamentos para enfrentar os 12 meses mais
difíceis da minha vida, até então. Dentre outras coisas, adquiri um
lap top de última geração (passava DVD, tinha Wi-Fi, tela grande,
caixas de som embutidas e, suspeito, que até servia cafezinho,
mas não consegui descobrir como). Um MP3, um mini-CD player,
uniformes camuflados novos, coturnos, óculos sobressalentes,
óculos escuros, repelentes naturais e artificiais, remédios (uma
quantidade enorme e variada contendo analgésicos, anti-
inflamatórios, anti-histamínicos, antibióticos, complexos
vitamínicos, algodão, gaze, mercúrio cromo, Band-Aid,
esparadrapo e muitos outros), protetor solar, livros, CDs com
músicas brasileiras e outras, meias, camisetas, cuecas e alguma
comida para qualquer eventualidade nos primeiros dias, além de
outros itens menores. Foi uma verdadeira batalha logística para
selecionar o que realmente era necessário e o que eu deveria me
desfazer, pois tinha direito apenas a duas malas de 32 kg cada e
uma de mão com cerca de 5 kg.
Além disso, deixei uma procuração para o caso de alguma
eventualidade (sim, eu tinha medo de morrer na missão), fiz
acertos bancários, realizei uma infinidade de exames médicos
necessários para mandar para o DPKO[ 15], tomei vacinas contra
febre amarela, hepatite A e B, reforcei a de poliomielite e a contra
tétano, dentre outras. Respondi aos vários questionários que a
ONU manda para os que irão para missões de paz, escrevi cartas
para os meus filhos, que só entreguei no dia da partida. Dei, para
cada um deles, uma bandeira do Brasil idêntica a que eu usaria na
minha farda, bem como um símbolo da ONU. Fiz uma lista de
coisas que eles não poderiam deixar de fazer para ajudar a mãe,
alguns recados e imprimi um mapa da Costa do Marfim, bem
detalhado. Coloquei tudo isso no corredor do meu apartamento
para que eles sempre vissem e se lembrassem de que também
tinham responsabilidades naquela missão.
Abaixo, está a cópia exata da carta para os meus filhos.
Julguei importante deixar alguma mensagem mais sólida para eles
naqueles dias de incerteza e de dúvidas que pairava sobre a
cabeça deles. Talvez sirva para explicitar melhor o que se passava
na minha cabeça à época.
Rio, 25 de outubro de 2005.
Meus queridos Filhos, É muito difícil para um pai deixar um
filho por cerca de um ano. No entanto, no nosso caso, acredito que
vocês entendam que faz parte da minha profissão esta missão na
Costa do Marfim. Na vida, muitas vezes, para se conseguir
condições melhores para aqueles que amamos, seja de dinheiro,
seja de bem-estar, precisamos abrir mão de alguma coisa para, no
futuro, podermos desfrutar de outras ainda melhores. Assim
também é nos estudos, quando abrimos mão de algumas horas de
lazer para estudarmos, sempre pensando no nosso futuro, em não
ficar para recuperação e por aí vai... Sei que será um grande, um
enorme desafio esta temporada que passarei longe de vocês. Mas
sei que cada um de vocês conseguirá ultrapassar a distância que
nos separará. Em breve, estaremos juntos novamente na minha
primeira dispensa e poderemos rir e nos abraçarmos novamente.
Procurem ocupar o tempo com coisas boas, afastando-se de
companhias que não nos acrescentam nada. Se chegarmos à
conclusão de que um amigo não serve, é sinal que não era um bom
amigo, na verdade, nem amigo era... A vida é assim mesmo,
ganhamos e perdemos amigos ao longo dela. Saibam escolher
cada um deles, para que sejam eternos.
Peço que vocês ajudem sua mãe. Ela vai precisar mais do que
antes. Como ajudar? Simples: não briguem sem razão, evitem
fazer coisas que sabem que irão deixá-la nervosa, respeitem as
“escalas” que fiz, cheguem no horário, mantenham a casa
arrumada, ESTUDEM MUITO, tirem boas notas, não se metam em
problemas dentro e fora de casa, não mintam, e ajudem muito,
muito e muito a sua mãe. Compreendam que a carga dela vai se
tornar grande. Se vocês ajudarem, será mais fácil para todos.
Entendam que haverá momentos em que ela ficará mais nervosa;
isto é natural. Nessas horas, procurem entender e ajudar. O
segredo para vencer a tempestade é a união. Unam-se nos
momentos difíceis!
Tenham certeza de que o desafio é grande, mas há uma
razão para ele. Vocês ainda são novos para entender, mas, no
futuro, verão que, quando eu voltar, todos nós estaremos mais
maduros, mais preparados para outros desafios e, se Deus quiser,
mais unidos. Nunca se esqueçam de manterem-se unidos e
proteger um ao outro. Não existe nada – mas nada mesmo – mais
importante do que a FAMÍLIA.
Rezem diariamente para que Deus os proteja e guie os seus
caminhos por passagens tranquilas e seguras. Acreditar Nele é
fundamental para que possamos tomar as decisões certas.
Quanto ao pai, não se esqueçam de que estarei bem, que vou
me cuidar bastante e voltarei melhor do que saí. Sem dúvida, será
um grande desafio para mim, mas sei que Deus estará ao meu lado
sempre. Além disso, é uma oportunidade de que me orgulho
muito, pois irei representar o meu País na África e poderei ajudar
pessoas que passam por necessidades com as quais nem
sonhamos em nossas vidas confortáveis. Certamente, retornarei
melhor pai e amigo.
Quando sentirem saudades, olhem as minhas fotos. Quando
sentirem dúvidas, pensem como eu resolveria o problema, quando
errarem, assumam os próprios erros e procurem consertá-los,
quando o coração apertar, orem a Deus. Sempre dá certo...
Por fim, valorizem outras coisas que não o dinheiro ou os
objetos materiais. Abracem sua mãe, almocem, saiam, vejam TV
juntos. Conversem muito entre vocês e vejam que existem coisas
na vida que são muito mais importantes do que ter ou receber um
belo presente. Vivam e valorizem aquilo que for importante.
Normalmente, as coisas importantes são de graça...
Que Deus os ilumine a cada fração de segundo durante a
minha ausência, protegendo-os e guiando-os. O pai sai com o
coração partido de saudades e os olhos inundados de lágrimas.
Mas estou certo de que voltarei em breve para poder abraçá-los
apertada e demoradamente pelo resto de nossas vidas. Amo
vocês.
Um beijo do Pai.
PS: não se esqueçam de escovar os dentes, dar comida para
a tartaruga e para a Happy[ 16], colocar o lixo para fora, desligar
as luzes, não usar o computador depois das refeições etc., etc.,
etc...

Concomitantemente aos intensos preparativos, meu pai


veio me visitar. Passou um dia inteiro comigo, num grande esforço
pessoal, pois a sua viagem foi cansativa para o pouco tempo que
passamos juntos. O mesmo ocorreu com minha mãe, que ficou em
minha casa por mais algum tempo. Tive a impressão de que eles
estavam extremamente ansiosos, talvez com medo de que algo
ruim acontecesse comigo... A visita deles foi extremamente
importante para mim, marcando uma reaproximação entre nós,
haja vista o distanciamento que a rotina a que me submeti desde
cedo provocou. Sem dúvida, o fato de eu ter saído de casa por
volta dos 16 anos, para ir estudar na EsPCEx[ 17] e de eles terem
se divorciado, contribuiu para aquele estado em que a minha
família se encontrava: completamente pulverizada e sem laços
emocionais consistentes que tornassem a nossa convivência algo
natural. A missão já começava a mostrar que ela permitiria algum
tipo de aproximação entre nós; o que era fabuloso e se mostraria
verdadeiro no futuro.
Quando estava realizando meus exames médicos, aliás, uma
miríade de exames, passei por uma situação engraçada. Recebi
ordem para remeter os resultados até uma quinta-feira, junto
com os documentos médicos pertinentes. Somente na quarta-
feira eu terminara todos os exames. O próximo passo era simples.
Precisava de um médico militar, que falasse inglês, para preencher
a parte formal de um documento chamado Entry Medical
Examination. Sabia que existiam dois médicos militares nessas
condições no hospital de guarnição ao lado de onde eu trabalhava.
Fui, logo de manhã cedo, pedir para que um deles me ajudasse.
Para a minha surpresa, ambos não estavam lá naquele dia. Um
tinha ido cumprir missão temporariamente na Amazônia e outro
estava num congresso ou coisa parecida. E agora, José? Pensei um
pouco e não tive dúvida. Fui falar com um major médico amigo
meu que se dispôs a ajudar. O problema era que ele não sabia
absolutamente nada de inglês. A solução foi eu traduzir para ele o
documento a fim de que ele pudesse entender e conferir detalhes
do meu estado de saúde. Para ganhar tempo, sentei-me à mesa
dele e comecei a traduzir os papéis. Num determinado momento,
passou outro oficial e perguntou para um soldado, apontando
para mim, se ele é o novo médico? O pobre soldado, sem entender
muito bem o que se passava, respondeu afirmativamente. Eu,
louco para terminar aquilo, acenei como se confirmasse. Espero
que ele nunca precise dos meus serviços como “médico”. Imagine-
o descobrir durante um exame de próstata que eu não sou
médico, mas um oficial de Cavalaria...
No meio desse furacão que se tornou minha vida, soube que
havia mais dois brasileiros que iriam se juntar a mim naquela
aventura: os capitães Barreto e Januário. No início, fizemos uma
amizade tímida, até mesmo desconfiada; mas, ao longo da missão,
nos tornamos verdadeiros amigos, solidificando nosso
relacionamento baseado na confiança mútua e na certeza de que
um sempre ajudaria o outro nas crises pessoais e profissionais que
cada um vivenciaria durante aqueles 12 meses tão especiais. De
fato, os meses vindouros mostrariam a importância de possuir
boas e francas amizades em situações de tensão ou de solidão.
Aliás, o Major Delgado, do Paraguai, que nos recebeu muito bem
quando chegamos à Costa do Marfim e se tornou um bom amigo,
sempre dizia que o importante é ter um amigo na missão. O resto
você pode viver sem. Ele estava absolutamente correto. Os dias
duros e incertos durante a missão mostrariam a importância de
possuir boas amizades.
Fomos, os três, para Brasília na semana que antecedeu o
nosso embarque a fim de fazer um estágio específico sobre a
missão, bem como receber informações sobre a Costa do Marfim
passadas por ex-integrantes da missão. Naquela oportunidade,
ainda tivemos contato por uma manhã inteira com a embaixadora
da Costa do Marfim no Brasil. Juntando a nossa preparação de
mais de 20 anos adquirida como militares do Exército Brasileiro
com o estágio e as orientações recebidas, julgávamo-nos prontos
para a empreitada. Quando saímos de Brasília, faltavam apenas
cinco dias para o nosso embarque. A adrenalina subia a níveis
jamais alcançados.
Os últimos dias antes do embarque foram terríveis. É um
misto de ansiedade com tristeza e, mais uma vez, medo, muito
medo. Tudo passava pela minha cabeça. Será que meus filhos e
minha esposa irão suportar bem a minha ausência? Será que vou
voltar a vê-los? Deveria mesmo ter aceitado a missão? E por aí iam
as minhas dúvidas, meus questionamentos.
Passei o último fim de semana o tempo todo junto deles. No
domingo, dia 24 de outubro, almoçamos juntos e abri um Chateau
Neuf du Pape para marcarmos a data. Lembro-me que estava
vestido com uma camisa do Brasil. Cozinhar sempre foi um prazer
para mim. Decidi eu mesmo preparar o almoço naquela
oportunidade. Confesso que não estava exatamente feliz, mas
procurava disfarçar para não transmitir para os meus filhos a
minha ansiedade e os meus receios.
Dia 25 de outubro de 2005. Feliz ou infelizmente, chegara o
dia da minha partida. O nosso voo sairia à noite e estaríamos em
Paris no outro dia. Faríamos uma escala de um dia na França e no
dia 27, na parte da tarde, embarcaríamos para Abidjan, capital da
Costa do Marfim. Passar um dia em Paris foi excelente. Além de
conhecermos um pouco da Cidade Luz, tivemos tempo de nos
conhecermos melhor.
Capítulo 4
Em Paris...
A viagem até Paris foi tranquila. Estava cansado e dormi
bastante. Só acordei quando o avião estava sobrevoando a África,
próximo a Casablanca. Naquele momento pude ver as ilhas
Canárias. São lindas vistas do alto, durante a noite. Parecem
enormes e dourados brincos de ouro flutuando no Atlântico
enegrecido pela noite.
Passamos sobre a Espanha e pude ver, de longe, São Tiago
de Compostela. Penso em um dia realizar o tão falado Caminho de
São Tiago. Mas são somente planos... Ainda tenho outros
caminhos a seguir. Quando chegamos a Paris o tempo estava
fechado, mas a temperatura era agradável, cerca de 17º C. Fomos
para um hotel perto do aeroporto. O preço de 109 euros por um
quarto triplo nos pareceu bom. Havia duas camas e um banheiro
muito parecido com o que vira num submarino no Brasil. Uma
cama era de casal, e outra de solteiro. Como era major e os meus
dois amigos capitães, não quis ferir o regulamento. Cedi,
prontamente, a cama de casal para os dois que, durante toda a
noite, mantiveram a distância “regulamentar” de um rosnar
furioso, caso alguém se chegasse mais... Além disso, havia Internet
sem fio, bar, restaurante e máquinas para trocar dinheiro.
Tomamos um banho, pegamos o metrô e fomos para o centro,
cerca de 32 km do hotel. Viagem rápida e fácil, pois o metrô, além
de limpo e policiado, é rápido e bem sinalizado.
Descemos pertinho da torre Eiffel. É linda, cor de bronze,
alta, um sonho... Não imaginava que fosse tão bela. Faz jus à fama.
Sua construção data de 1889, ocasião da Exposição Universal que
comemorou os cem anos da Revolução Francesa. Com 324 metros
de altura, foi construída para ser temporária; todavia, está fincada
até hoje no coração de Paris, aliás, é a alma da Cidade Luz. Velha
conhecida de nosso Santos Dumont, que venceu famosa aposta
circundando-a com um balão, também foi pano de fundo para
alguns malucos se aventurarem, como um obscuro alfaiate
parisiense que achou ser possível saltar da torre e voar usando
apenas capas em forma de asas. Lamentavelmente, o Ícaro de
pano estatelou-se no chão, virando algo próximo a um mingau.
Ah, se você quiser subir ao topo, basta escalar os cerca de 1.665
degraus.
De uma forma geral, os prédios que circundam a torre são
maravilhosamente bege, com cerca de 20 metros de altura, com
janelas cheias de detalhes que tornam o conjunto muito bonito.
Sentei-me durante alguns bons minutos para apreciar a paisagem
que se descortinava à minha frente. Comemos uma baguete (sem
trocadilhos, por favor!). Após o nosso pobre almoço, visitamos a
Escola Militar, onde Napoleão foi aluno em 1784 e graduou-se
oficial de artilharia. A fachada, diretamente voltada para o Campo
de Marte, mereceu atenção especial. Atrás, fica o Palácio da
Unesco, cujo projeto de arquitetura e decoração envolveu nomes
como Picasso, Miró, Jean Arp e Le Corbusier, dentre outros.
Arrumamos tempo, ainda não sei como, para ir aos Inválidos.
Sua finalidade inicial foi a de servir como abrigo para inválidos e
desamparados que combateram pela França. A ideia veio de Luís
XVI. Lá, foram abrigados durante uma época, ao mesmo tempo,
quase 6 mil homens. Funciona até hoje, mas com um número que
não deve chegar a cem soldados. Essa magnífica construção teve
seu início em 1671 e foi terminada em 1676. Como quase tudo em
Paris, tem estilo grandioso, detalhado e equilibrado. Os jardins,
uma marca europeia como veria posteriormente em outros
países, são muito bem cuidados e integram os edifícios desse
complexo arquitetônico que abriga ainda o museu Militar, o de
Plans-Reliefs (com maquetes e plantas de fortalezas francesas
mantidas secretas até o início da década de 60) e o de História
Contemporânea. Ofuscando a vista dos demais prédios, avistamos
o Dome, onde Napoleão está enterrado, bem como o Marechal
Foch. Valeu a pena entrar naqueles belos prédios que compõem
os Inválidos onde o Rei Sol mostrou a capacidade arquitetônica da
França. O lugar foi erguido sob as ordens de Luís XIV, possui uma
beleza que emociona. Como se tentasse protegê-la do tempo, 18
peças de artilharia, que variam entre os séculos XVII e XVIII,
permanecem impassíveis, apontando para o Sena.
Continuamos nossa visita, de pouco mais de um dia, indo ao
rio Sena com seus bateaux permeando-o. Dirigimo-nos, sempre a
pé, para o Arco do Triunfo. Embora idealizado por Napoleão logo
após a vitória francesa na batalha de Austerlitz, esse monumento
só foi concluído em 1836. Com 50 metros de altura, lá se encontra
o famoso Soldado Desconhecido, desde 1921. Buscava
homenagear os mortos da Primeira Guerra Mundial.
Curiosamente, pontualmente às 18h30, organizações de
veteranos acederam a Chama da Memória. Partimos para o
Louvre.
Mas, antes de chegarmos ao famoso museu, tivemos que
atravessar pelos Jardins das Tulherias. Construído para circundar
o Palácio das Tulherias, destruído em 1871 pelas manifestações
das Comunas de Paris, é de beleza contrita. Lá se encontram duas
quadras de tênis que foram construídas em 1851, sob o nome de
Jogo de Palmas. Ao final, nos deparamos com a Praça da
Concórdia. Fincada entre as Tulherias e o Louvre, tem triste
significado histórico, pois é o lugar em que Luís XVI foi
guilhotinado, além de Maria Antonieta, Charlotte Corday,
Robespierre, Danton e muitos outros. Era o período do Terror a
pleno vapor, jorrando sangue indiscriminadamente. Agora, com o
nome de Concórdia, é marcada pelo enorme obelisco Luxor, vindo
do Egito, com mais de 3.500 anos. Com seus 23 metros de altura,
tem entalhado no seu corpo figuras que enaltecem Ramsés II. Em
sua base, podem-se ver desenhos que mostram a dificuldade em
colocar o monumento no atual local.
A nossa visita ao Louvre foi diferente. Aproveitamos que na
época havia um passeio noturno pelo museu e pagamos 8 euros
para conhecer o famoso ponto turístico. Sabia que o museu
datava de priscas eras, mas não tinha ideia de que remontava à
Idade Média. Foi uma grata surpresa ver as bases das torres e as
paredes remanescentes que suportaram, um dia, a ponte levadiça
do que antes fora o Louvre: um forte construído por Filipe Augusto
em 1190, que mais tarde se tornaria a residência de Carlos V, em
1364. Conseguimos ver apenas algumas das principais atrações,
como Coroação da Virgem, de Fra Angélico, a Mona Lisa, de Da
Vinci, a Vênus de Milo e a Vitória de Samotrácia, ambas helênicas
datadas entre os séculos II e III a. C. Fora isso, vimos obras
europeias de El Greco e Goya, dentre outras, pelas quais tenho
carinho especial. Também aprendemos um pouco mais sobre os
egípcios na parte do museu dedicada àquele povo. Havia uma
esfinge linda, embora menor, é claro, do que a existente no Cairo.
Saímos tarde da noite, exaustos, mas com uma sensação
indescritível. As obras de arte, incluindo as minhas preferidas, de
estilo barroco europeu, são um bálsamo para a mente. Pena que
nós, brasileiros, ainda não adquirimos o hábito de visitar nossos
museus com a frequência e a voracidade dos europeus. E olha que
temos coisas boas, como o museu de Belas Artes do Rio de
Janeiro, o MASP...
Na cidade havia muita gente de países diferentes e com
roupas estranhas ao nosso cotidiano. Pude ver muitos negros e
árabes, principalmente no metrô. Os lenços cobrindo o rosto de
muitas mulheres era uma novidade para mim. A cidade
aparentava limpeza, embora existissem muitos e muitos
cachorros passeando com seus donos. Dentre muitas coisas,
chamou-me a atenção o fato de que na maioria dos lugares havia
acesso para os deficientes físicos, possibilitando uma real
integração e livre acesso para os cadeirantes. Não era incomum
ver pessoas em cadeiras de rodas andando no aeroporto, nos
museus, nos palácios e no metrô. Uma interessante lição para o
nosso País, que ainda deve muito aos nossos deficientes físicos.
Depois de visitarmos o Louvre, durante a noite, fomos aos
Campos Elíseos novamente e nos sentamos para descansar e
apreciar o movimento. Tomamos um Bejoloaus e comemos uma
lasanha num café. Ficamos o restante do tempo olhando as
pessoas passarem e procurando aproveitar o momento.
Dormimos bastante do dia 26 para o dia 27. Passado o
excitamento inicial, a diferença de horários nos pegou de jeito.
Ainda estávamos perdidos com o nosso relógio biológico. Paris são
5 horas a mais do que no Brasil. Acordamos e fomos direto para o
Aeroporto Charles de Gaule. Uma navette ou shuttle (tipo de
micro-ônibus) levou-nos do hotel até o aeroporto. Diga-se de
passagem, é um aeroporto muito, mas muito maior que o Antônio
Carlos Jobim no Rio. A infraestrutura é fantástica, e a quantidade
de aviões que pousam e decolam em curtíssimos intervalos é
impressionante.
Após tomarmos café, começaram os meus problemas. Fui
barrado na entrada por estar com uma mochila como mala de
mão. Resumindo: tive que pagar 192 euros de excesso (algo em
torno de 282 dólares). Puto da vida, entrei no free shopping, onde
comprei uma câmara fotográfica digital que se tornaria muito útil
no futuro. Com ela, tirei belíssimas fotos durante toda a minha
missão, acumulando um arquivo de cerca de 1.800 fotografias.
Logo em seguida, embarcamos no avião, que só decolou às 14h14
(a hora prevista era 13h30).
A verdade é que estávamos bastante excitados com tanta
coisa nova ocorrendo. O tempo passava rápido e, em breve,
estaríamos em Abidjan. Seria um voo rápido, de pouco mais de 6
horas, passando pela Espanha, atravessando o Mediterrâneo,
sobrevoando o Saara, Mali e Burquina Faso, sempre em direção
ao sul. Normalmente a uma altitude de 10.500 metros e a uma
velocidade de 850 quilômetros por hora. A temperatura externa
era de – 51º C.
Quando estava sobrevoando Constantine, cidade ao sul de
Alger, já no continente africano, pude ver o terreno montanhoso
e seco característico do norte da África; provavelmente, uma
extensão da Cadeia do Atlas. No meio do nada, havia uma represa
e uma pista de pouso asfaltada. Nada mais.
Cerca de uma hora depois, o terreno começou a ficar plano.
Um deserto rasgado por rios aparentemente rasos começa a
nascer. A cor do solo é ocre, como se fosse tijolo pulverizado, e se
perde no horizonte. Tirei muitas fotografias. Cortando o deserto,
de oeste para leste, havia uma estrada que se desenvolvia no
terreno desértico. Será que alguém usava aquela estrada?
De repente, o planalto mostrou um cânion espetacular. O
terreno era diferente de tudo o eu já vira antes. É como se
montanhas ocres se espraiassem para todos os lados, parando
somente quando encontravam enormes depressões, quase
buracos gigantes vistos de cima.
Estávamos voando entre Oujda e Ghardaia. Era nítido que o
deserto do Saara começara para valer. Nada de estradas, vilas ou
marcas humanas. Somente uma imensidão desértica, agressiva e
dura. Um vazio só!
Dunas, muitas dunas...
Paris, 192 euros. Puta que pariu! Pensei enquanto olhava a
paisagem.
O Saara, visto de cima, nos reduz a nada. Era a primeira vez
que via um deserto, embora estivesse a cerca de 10 mil metros de
altitude. O fato de vê-lo de cima mostrava a sua aterradora
dimensão. Não somos absolutamente nada (grande descoberta!),
pensei naquele momento. Mas é que às vezes a gente se esquece
disso...
Depois de cerca de 2 horas, o deserto acabou. Parecia que
havia uma marca nítida no terreno indicando a mudança de
paisagem. Tinha-se a impressão de que as montanhas impediam
o avanço das dunas, como se fossem gigantes escorando uma
enorme parede.
Fiquei admirando a paisagem que se descortinava pela
pequena janela do avião. Como será que as pessoas vivem por lá?
Como é a cultura, como enxergam o mundo isolados por uma
natureza tão hostil?
Estávamos cada vez mais próximo de Abidjan. O medo
aumentava, as preocupações idem. A malária me preocupava, a
distância me preocupava, a saudade dilacerava meu coração...
Sentia falta das crianças. Gostaria de estar abraçado com eles
naquele momento.
Vi no mapa digital do avião que estávamos passando ao lado
de Timbuctu! Quantas vezes já mandara pessoas para lá? Vai para
Timbuctu e não enche meu saco! Agora, era eu que passava
próximo à Timbuctu. Alguém havia me mandado para lá desta vez.
Ironia da vida...
Havia muitos negros no avião. Todos muito bem vestidos e
riam por qualquer motivo. Falavam alto e gesticulavam bastante.
Seriam negros italianos? Afinal, falar com as mãos... As mulheres
eram uma mistura de moda moderna europeia com adereços
africanos. É uma composição bonita. Ao meu lado tinha um cara
esquisito. Vestia-se como se fosse para um safári. Roupa cáqui,
bermuda comprida e um colete com uma infinidade de bolsos. De
fato, ele parecia um Indiana Jones cansado, indo para a sua
aposentadoria...
Meu francês parecia-me melhor do que eu pensava. O inglês
idem. Mas ainda tinha muito que melhorar. Saber outras línguas
é uma sensação muito boa, abre portas e liberta a mente,
aumentando nossas opções.
Acabávamos de entrar no espaço aéreo da Costa do Marfim.
O frio na barriga era inevitável. O comandante anunciou que
pousaríamos no aeroporto de Abidjan em poucos minutos. Rezei
um pai-nosso, segurei a minha imagem de São Jorge que tenho no
pescoço e pedi proteção naquela difícil jornada. Valei-me, meu
São Jorge! Pensei...
Nous sommes arrivés en Cote D’Ivoire[ 18], disse o
comandante, ao mesmo tempo em que desligava os motores.
Akwaba[ 19]!
Capítulo 5
Abidjan, finalmente!
Chegamos a Abidjan no dia 27 de outubro de 2005, por volta
das 18h30 local[ 20]. Um oficial do Exército Brasileiro e outro da
Força Aérea estavam nos aguardando no Aeroporto de Abidjan,
chamado Félix Houphouet-Boigny. Aliás, quase tudo lá se chama
Félix Houphouet-Boigny, o presidente que ficou “só” 33 anos no
poder! Ponte, posto de gasolina, Centro de Estudos...
No aeroporto tive minha primeira experiência sobre o
African Way of Life[ 21]. Você coloca o pé para fora da porta e
surgem dezenas de “carregadores” pedindo para pegar sua mala.
Somente cinco mil francos, senhor[ 22]. Parecia que seria
impossível eu sair do aeroporto sem pagar alguma coisa a alguém.
A intimidação era grande e o meu receio não era menor. Mas
bastou olhar fixamente para a frente e dizer: Não, não, muito
obrigado. Eu levo!, entrar no carro e ir embora. Caso se renda ao
assédio, você vai deixar uma boa quantia de dinheiro logo no seu
primeiro dia.
Na noite de nossa chegada, jantamos num restaurante
vietnamita chamado Petit Budah. O Major Neyton, oficial
brasileiro que estava terminando a missão, levou-nos até lá. Para
os padrões africanos, era razoável. Comi camarão, lá chamado de
crevette, com gigantes cogumelos pretos, arroz (quase uma papa)
e bebemos refrigerantes. O sabor era forte, mas muito bom. Mas
o preço, quando a conta veio, seria mais forte ainda.
A partir dali, começamos a buscar economizar dinheiro com
as refeições, comendo em lugares mais simples e que
oferecessem segurança quanto à higiene na preparação dos
alimentos. O nosso café da manhã era sempre bastante simples,
resumindo-se a um copo de suco de laranja de caixa, um
polenguinho e algumas torradas.
Comíamos, eu, Barreto e Januário, em pé no meu quarto. O
primeiro almoço foi em um hotel em decadência, chamado
Pergola, que servira de QG para ONUCI até o mês de setembro
daquele ano. Comemos uma galinha com um molho picante,
como tudo por lá. Nem refrigerante tinha, apenas duas garrafas
de água gelada e uma quente. Como eles dizem, Pas de probleme[
23]. Misturamos as três garrafas e ficamos com a água na
temperatura ambiente. Melhor do que tomar quente...

Depois de um dia na África, se tivesse que resumir minhas


primeiras impressões em poucas palavras seriam: cheiro e
contraste. O ar revelou-se pesado, difícil de respirar, talvez em
função da umidade, talvez em função da mistura nem sempre
agradável de aromas fortes. Havia um cheiro de cacau no ar. Mas
os aromas não deixam dúvidas: a África exala um cheiro próprio,
diferente. Lá, o cheiro do cacau mistura-se com o vindo do mar,
da baía da Guiné, dando uma sensação diferente.
Quanto aos contrastes, bastaram algumas horas andando na
cidade para ver que a miséria convivia perigosamente perto da
riqueza, em um nível difícil de entender. Certamente, esse quadro
contribuía para que os conhecidos problemas existentes na África
proliferassem com facilidade. Afinal, como esperar reações
razoáveis se um povo não possui sequer água potável para beber?
Pude ver carros caríssimos dirigidos por negros ricos e, na mesma
calçada, crianças pedindo esmolas e adultos mostrando suas
deformações causadas pela poliomielite ou por outra doença
qualquer. A todo o momento éramos parados por pedintes... Era
uma miséria agressiva para mim, mesmo para alguém que vivia
num país eivado de desigualdade social como o Brasil.
Os táxis da Costa do Marfim são de quatro cores: vermelho,
branco, amarelo e verde. São chamados de wôrô. Como não há
transporte público em quantidade suficiente (ônibus são poucos
e trens não existem, ou você anda de táxi ou a pé). Os de cor verde
só podem andar em determinados bairros, os de cor brancas em
outros. O mesmo acontece com os amarelos. Apenas os de cor
vermelha podem trafegar por toda a cidade. São centenas. Além
disso, duas curiosidades: os brancos, os amarelos e os verdes são
do tipo lotação; ou seja, se você pegá-lo sozinho, o motorista pode
parar mais à frente e pegar outro passageiro que vá pelo mesmo
caminho ou parecido até completar os lugares vagos no carro.
Sempre sem pressa... A outra curiosidade é que somente o
passageiro da frente é obrigado a usar cinto de segurança (e eles
cobram, pois do contrário são multados). O motorista e os
passageiros de trás não usam cinto. Vai entender...
O povo, de uma forma geral, mostra-se alegre, mas com
certa agressividade latente, percebida no modo de gesticular, de
falar. Falam alto, gesticulam bastante e mostram, nas conversas
mais “quentes”, fisionomias tensas, como se fossem brigar entre
eles a qualquer momento. Por onde nós andávamos, tínhamos
que cumprimentar todo mundo, todos desconhecidos. É cultural:
você tem que passar e falar Tudo bem? Bom dia etc. Deixar de
fazê-lo é quase uma ofensa. Além disso, eles adoram apertar a
mão a todo o momento. Sobre isso, como vi que a higiene não era
um ponto forte deles, comprei pequenos tubinhos de álcool
hospitalar em gel e passava na minha mão, discretamente, após
muitos cumprimentos. Com a falta de água e sabão e a fim de
evitar pegar doenças transmitidas por apertos de mão, essa era a
forma de me proteger. Pode parecer bobagem ou outra coisa,
mas, quando se percebe as péssimas condições de higiene a que
eles são obrigados a viver, passa a ser uma necessidade. E, além
do mais, cuidar da minha saúde era fundamental dada a minha
missão e aos parcos recursos médicos que teria disponíveis no
caso de doenças.
Os cumprimentos são uma atração à parte. Alguns são
idênticos aos nossos. No entanto, outros chegam a ser complexos.
Por exemplo, quando você vai se despedir de alguém e julga que
não o verá por longo tempo, deve fazê-lo com a mão esquerda,
além de bater a sua testa contra a dele por três vezes. Pelo menos
foi assim que um africano me ensinou...
Quando chegamos à Costa do Marfim, a ONU tinha várias
bases espalhadas em Abidjan[ 24], o que dificultava sobremaneira
a solução de problemas. Uma delas era conhecida como Annex.
Lá, fomos apresentados ao Personnel Branch[ 25], um tenente-
coronel paraguaio que nos atendeu muito bem. Na mesma sala
trabalhava um tenente-coronel francês, um cabo do Paquistão e
um funcionário civil, chamado Lacina Câmara, cuja competência,
dedicação e o sorriso farto contagiariam a todos no decorrer do
tempo. Falava-se, ao mesmo tempo, francês, inglês e espanhol.
Uma torre de Babel! Haja cérebro para processar perguntas em
tantos idiomas. Em poucos minutos fizemos o ID (identification
Card[ 26]) que seria nosso “passaporte” enquanto trabalhássemos
na ONU.
Outro problema que nos preocupava era a malária, uma
doença potencialmente grave, causada por parasitas
(protozoários do gênero Plasmodium) que são transmitidos de
uma pessoa para outra pela picada de mosquitos do gênero
Anopheles. Cerca de 40% da população mundial vive em áreas
com risco de transmissão de malária, resultando em não menos
que 300 milhões de pessoas infectadas no mundo a cada ano, mais
de 90% em países africanos, com um número de mortes entre 1 e
1,5 milhão[ 27]. Lá, assim como na Amazônia, é uma área
endêmica, e a doença prolifera com facilidade. Além de usarmos
constantemente repelentes que deixavam nosso corpo com um
cheiro horrível, evitávamos sair nos horários em que a
probabilidade de o mosquito transmissor nos picar era maior: ao
amanhecer e ao anoitecer. Concomitantemente, tomávamos
pílula de alho e complexo B, embora ainda não se tenha certeza
de que são eficazes, não custava nada usá-los.
Mas o remédio que realmente se mostrava razoavelmente
eficiente era a mefloquina. Havia prós e contras para o seu uso.
Esse medicamento, muito forte, diminui as chances de contrair a
doença e, caso uma pessoa a contraia, as consequências são
minimizadas. No entanto, apresenta uma série de efeitos
colaterais que podem se tornar difíceis de administrar: vômitos,
dor de cabeça, depressão, perda temporária de visão, enjoos,
sonhos estranhos e confusão mental.
Mas o principal efeito está ligado ao fígado, que se torna
bastante prejudicado, podendo apresentar sintomas similares à
cirrose. No fim da missão descobriria que meu fígado estava com
esteatose (gordura em excesso), muito provavelmente em
decorrência do medicamento.
Decidir se ia ou não tomá-la, a mefloquina, ocupou bastante
o meu tempo no Brasil. Conversei com militares brasileiros que já
haviam estado na África, mais precisamente em Angola e
Moçambique, com médicos e, é claro, com os militares que
estavam na Costa do Marfim. Pode-se dizer que houve um
empate. Uns usaram e outros não. As opiniões eram discrepantes.
Resolvi utilizar por um período de seis meses. No fim desse
período, parei de usar o medicamento. Além de perda de visão,
estava tendo nítidos sinais de depressão na quarta-feira (dia em
que tomava o remédio) e na quinta-feira.
Continuamos os nossos dias em Abidjan realizando o que a
ONU chama de check in. São medidas administrativas que visam
ambientar as pessoas recém-chegadas, além de ministrar
pequenos estágios sobre particularidades da missão. Passávamos
os dias nos quartéis e bases da ONU, e as noites eram despendidas
em leituras, telefonemas e e-mail para os familiares.
No início, ficamos hospedados em um hotel chamado
Residence François. Não preciso dizer que limpeza não era o forte
do lugar. Tive certeza disso quando vi o pessoal da “limpeza”,
entrando no meu quarto e varrendo o chão com galhos secos
amarrados. Além disso, eles limpavam o banheiro (privadas etc.),
com o mesmo pano que haviam utilizado para limpar o chão...
Passamos três dias por lá, até que conseguimos nos mudar
para uma enorme casa administrada por latinos. Deram-nos um
quarto para os três com banheiro. Nada mal para quem estava
dividindo espaço com as baratas do Residence François. A higiene
era razoável, a casa espaçosa. Havia duas mulheres que
preparavam comidas mais parecidas com as quais estávamos
acostumados no Brasil. Chamavam-se Hubertine e Aniésse.
Hubertine, que usava um penteado feito com bonitas
trancinhas, adorou o fato de eu elogiar seus cabelos. Acho que
todas as mulheres, em todo o mundo, gostam que reparemos
nelas e nas mudanças que fazem com o corpo... Ela entrou em
nosso quarto para arrumá-lo. Puxamos papo. Pediu-nos um
minuto, desceu e logo voltou. Trazia na mão a certidão de óbito
do marido. Ela nos contou um pouco sobre a sua vida.
Seu marido era professor em Bouaké quando a guerra
iniciou. Foi morto quase de imediato. Ela repetia: Ele era somente
um professor, por que matá-lo? Não era preciso... Foi obrigada a
sair de Bouaké, tendo suas coisas roubadas e sua casa destruída.
Não conseguia segurar minhas lágrimas enquanto ouvia a triste
história. Saiu, segundo ela, correndo com seus seis filhos daquele
inferno que se transformara a cidade. Eram três mulheres e três
homens. Quando me contou sua história, o mais velho tinha 22
anos e o mais novo apenas 7. Disse-nos que agora, com 44 anos,
porém aparentando mais, trabalhava para sustentá-los. No fim,
cada um de nós pediu se poderíamos tirar uma foto com elas. A
cada espocar de flash, elas riam e batiam palmas... Antes de sair
do nosso quarto, disse que iria rezar por nós e pelos nossos filhos.
Agradeci.
Aniésse teve destino parecido. Mãe de quatro filhos, teve
que fugir de Bouaké por causa dos conflitos. Trabalhava de casa
em casa para sustentá-los. No dia anterior, quando chegamos do
quartel-general da ONU, ela estava agachada, junto ao seu filho
Armand, lavando nossas roupas. Casualmente, Armand lavava
minha camisa. Brinquei com eles e começamos a conversar.
Armand é um garoto alto, com fisionomia leve, muito parecido
com Aniésse. Simpatizei com eles. Contaram sobre a difícil vida
durante e depois da guerra. Triste, muito triste.
Minha profissão é a “profissão da guerra”. Orgulho-me de
ser militar, de ter ido à África representar o meu País, de ter tido
a oportunidade de ajudar as pessoas. Contudo, depois de
vivenciar diariamente o que é um país saindo de uma guerra, com
as cicatrizes ainda abertas, com o ódio pela perda dos entes
queridos ainda latente, entendo que a principal tarefa de
qualquer exército é evitar a guerra a qualquer custo.
Evidentemente, a História muitas vezes coloca fatos cuja solução,
inevitavelmente, conduz à guerra. Muitas vezes, vi pessoas
esclarecidas afirmarem – eu mesmo já disse isso – que só uma
guerra daria jeito nisso. Vendo tudo isso na minha frente, o
sofrimento, as perdas pessoais e materiais, tenho certeza de que
a guerra não soluciona todos os problemas. Pode até solucionar
outros, mas a guerra civil entre irmãos deve ser evitada com todas
as forças, até o limite que a torne a única solução. Dirigentes, em
qualquer nível, deveriam ver o que uma guerra civil faz com um
país lindo como a Costa do Marfim. Tenho absoluta certeza de que
pensariam muitas vezes antes de optar por esse caminho.

Naquele mesmo dia, soubemos que a situação estava tensa


em Abidjan. Pela segunda vez, eles iriam postergar as eleições.
Afinal, o presidente, Sr. Laurent Gbagbo, não tinha muito
interesse em que as tais eleições ocorressem. Recebemos ordem
de permanecer em casa, sem sair para nada, pois houvera uma
manifestação dura em frente ao QG da ONU.
Deixamos nossas coisas mais importantes em condições de
serem carregadas o mais rápido possível. O nosso ponto de
exfiltração era uma companhia de forças especiais jordaniana
próximo à nossa casa. Segundo soubemos, houve briga e feridos.
Nada de incomum por aqueles lados. A sensação de estar numa
situação relativamente arriscada é ruim. Estava começando a
sentir as dificuldades de viver em um país com possibilidade de
confronto imediata. Era complicado, pois pequenas aglomerações
podiam se tornar o estopim de algo pior. A manifestação em
frente ao QG da UNOCI fora um exemplo.
No outro dia, fomos ao tal Cap Sud. É um centro comercial
melhorado, com algumas lojas. A livraria, tipo Fnac, é muita boa,
com grande variedade de itens. Comemos, eu, Barreto e Januário,
um sanduíche de frango com batatas fritas como jantar (3.500
francos africanos, cerca de 7 dólares).
Depois, fomos ao supermercado. A variedade era boa, e os
preços giravam próximos aos do Brasil. A curiosidade foi que
20h00 o mercado fechava. Ao contrário do Brasil, que quem está
dentro pode continuar a comprar despreocupadamente, nós
fomos obrigados a parar de fazer compras, pagarmos o que
tínhamos no carrinho e ir embora. Lá é assim: fechou, fechou!
Quando chegamos ao nosso quarto, ligamos a televisão. Só
existia um canal, pertencente ao governo, é claro. O presidente é
venerado, como se fosse um pop star. O poder militar é mostrado
diversas vezes. As FANCI (Forças Armadas Nacionais da Costa do
Marfim) informavam que realizariam um exercício militar no
outro dia em uma das pontes que liga a ilha em que nos
encontrávamos ao continente. Tratava-se, a priori, de uma
demonstração de força em função da não realização das eleições
no dia 30 de outubro. Outros políticos do governo deram
entrevistas pedindo que não houvesse problemas.
Capítulo 6
Próximo destino: Bouaké!
Soubemos para onde cada um de nós seria transferido após
quase dez dias em Abidjan. Barreto fora designado para a
fronteira norte do país, perto de Mali e Burquina Faso, numa
cidade chamada Korhogo. Januário foi para Duékoué, na fronteira
com a Libéria e com a Guiné. Eu, por minha vez, fui mandado para
Bouaké, onde minhas amigas Hubertine e Aniésse haviam perdido
seus maridos, mortos durante o conflito, e onde agora era o
quartel-general das forças rebeldes. Cada uma das cidades em
que iríamos morar tinha seus problemas.
Korhogo era a mais tranquila de todas em termos de riscos.
No entanto, havia sido palco de inúmeras mortes violentas e
estupros quando o conflito eclodiu. Dentre os problemas de
infraestrutura, havia a falta de água recorrente. De fato,
dificilmente havia água encanada. Barreto passaria um bom
tempo tomando banho de caneca agachado no banheiro.
Duékoué era a mais “quente” em termos de perigo. Facções rivais
viviam se digladiando na região. Um local próximo, chamado
Guitrozon, fora palco, em junho de 2005, de uma chacina terrível.
Pessoas da comunidade local, conhecidas como Guere, foram
brutalmente assassinadas ou feridas. Não foram poupadas sequer
crianças. Tive a oportunidade de ver fotos e filmes feitos naquele
dia fatídico. As mortes haviam sido provocadas por cortes
profundos de machetes, grandes facões tradicionais da região.
Eram cortes nos braços, nas nádegas, nos pescoços, enfim, em
todos os lugares possíveis. Viam-se corpos humanos dilacerados
como se fossem gado e deixados sobre a terra marrom-escura.
Crianças, muito novas, foram covardemente assassinadas e
feridas. Muitas chegaram vivas ao posto de socorro, mas
morreram no corredor em função de hemorragias ocasionadas
pelas armas brancas dos seus algozes. Alguns corpos foram
queimados e deixados incendiando dentro de casas. Estima-se
que morreram entre 50 e 100 pessoas dessa forma, em poucas
horas.
Até hoje há uma troca de acusações de quem teria sido o
autor desse crime hediondo. Alguns dizem que foram pessoas da
etnia Diuola, outros que foram guerrilheiros vindo da Libéria. O
fato é que ninguém nunca vai saber e a dor das perdas continuará
latejando no coração dos que sobreviveram.
Bouaké ficava numa situação intermediária. Não havia
grandes conflitos, exceto os ocorridos durante a guerra, onde
houve muita morte e “justiçamento”[ 28]. Gente leal ao governo
fora morta por outras ligadas às Forces Nouvelles. Pessoas foram
fuziladas sem qualquer possibilidade de defesa. O êxodo foi a
consequência natural desse cenário. O problema de Bouaké era a
constante disputa pelo poder por parte de facções rebeldes e o
fato de ser a capital deles. Isso, sem dúvida alguma, transformava
o local em uma cidade no mínimo instável.

A ONU continuava mostrando-se uma torre de Babel


moderna. O funcionário que fez a minha prova de direção era um
filipino. Na minha viatura estava um tenente-coronel da Tunísia
que também fez o teste. Além disso, havia outros da China, do
Togo e do Paraguai. No final, pediu-me notas brasileiras, pois ele
colecionava dinheiro de todos os países.
O que me impressionou foi o fato de a ONU ser um local
muito, mas muito, burocratizado. Tivemos que pegar inúmeras
assinaturas em numerosos lugares na cidade. Atravessamos
Abidjan de cabo a rabo. De uma forma geral, os funcionários civis
são extremamente ríspidos. Quando sabem que somos
brasileiros, alguns se tornam mais afáveis. Logo querem falar
alguma frase do tipo Bom dia, Como vai etc., além de futebol, é
claro. Tomamos um susto com uma das funcionárias que começou
a falar em português. Ela era de Moçambique e se chamava
Odete. A nossa felicidade foi enorme em ouvir alguém falando
português no meio daquele monte de gringos...
Num dos dias que passamos em Abidjan, fomos deixar um
MILOBS num bairro que não acreditava ser possível existir. Era
cheio de gente, uma bagunça, com carros andando sobre as
calçadas, completamente sem policiamento e sem sinalização,
chamado Treicheville. Os carros buzinavam e buzinavam sem
parar! Só para se ter uma ideia de quão caótico era o local, alguém
se desincumbiu, por iniciativa própria, de ordenar o trânsito. O
guarda de trânsito improvisado calçava luvas brancas imundas e
tentava dar algum sentido naquele trânsito ilógico. As pessoas
iam, na medida em que passavam por ele, dando moedas. No
fundo, era uma reação genuinamente popular em relação a um
problema que o Estado não mais conseguia solucionar. Aliás, aos
supostos responsáveis pelo policiamento, só interessava ganhar
dinheiro nos check points espalhados pelas ruas mais
importantes. Vi um desses “pseudoguardas” controlando o
trânsito ao mesmo tempo em que bebia cerveja. O bairro parecia,
e até demais para o meu gosto, com aquelas cenas de Black Hawk
Down[ 29]... De dar medo! Naquele mês, um MILOBS da Zâmbia
morreria da malária. Mais um motivo para nos decidirmos a tomar
a tal da mefloquina.
Coincidentemente, no mês de outubro, iniciara-se o
Ramadã. Para nós era uma completa novidade que se
descortinava, principalmente quando voltávamos para a casa à
noite. Víamos grupos de pessoas rezando no meio das ruas, de
forma introspectiva e contida. O Ramadã é um período móvel nos
calendários muçulmanos, como a nossa Páscoa. No mês destinado
a esse feriado, as leis muçulmanas tornam-se mais rígidas. Essa
comemoração nasceu fruto da crença de que o Alcorão fora
enviado dos céus ao homem e, para homenagear a data, eles
jejuam o mês inteiro. Não é permitido comer ou beber durante a
luz do dia. Fazer sexo e fumar também é proibido. Além disso, não
é permitido doar sangue ou tomar injeções. Caso isso seja
extremamente necessário, a pessoa deverá se manter recolhida
tantos dias quanto forem necessários para compensar o jejum
quebrado. Ou seja, se tiver uma prescrição médica para tomar
uma injeção por cinco dias, deverá estender o período por mais
cincos dias além do tradicional. Outra curiosidade que me chamou
a atenção foi a de que, se um mulçumano vomitar durante o
período de luz do Ramadã, também deverá compensar esse dia
no futuro, após o término do período. Quando o sol se põe, faz-se
uma oração, muitas vezes, comunitária e come-se. Essa refeição
especial é chamada de iftar. Após isso, era bastante comum ver as
pessoas nas ruas conversando e se visitando.
Aprendi que, dentro do ritual muçulmano, pode-se colocar
tudo a perder caso, durante o Ramadã, uma pessoa conte uma
mentira, uma calúnia, denuncie alguém sem que ela saiba,
demonstre ganância ou jure em falso. É interessante notar que,
além das cinco orações que todo muçulmano deve realizar
diariamente – sempre voltado para Meca –, nesse período há
outra, conhecida como Taraweeh. No 27º dia do Ramadã, eles
celebram a chamada Laylat-al-Qadr (Noite do Poder). Seria
exatamente nessa noite que o Alcorão teria chegado às mãos de
Maomé.
No mês do Ramadã pudemos conhecer a força do islamismo
no país. Embora seja mais forte no norte, em Abidjan há
expressiva parcela de praticantes. Os que são islâmicos andavam
pelas ruas com roupas compridas, multicoloridas e muito bonitas.
As mulheres usam um enorme lenço combinando com o tecido. A
mim, parecia-me tudo muito diferente.

A higiene da casa em Abidjan começava a me incomodar.


Numa certa oportunidade, pedi para a empregada ver se havia
água quente para eu tomar café (solúvel, é claro. Café igual ao
Brasil, nem pensar! Feijão, acho que eles nem conhecem...). Sem
problema: ela enfiou o dedo na garrafa e respondeu
tranquilamente, enquanto despejava a água na minha xícara, Sim
senhor, tem água quente. Está bom? Nem discuti, bebi para não
criar problema. Onde será que ela enfiou aquele dedo? Melhor
não saber...
Antes de sair do Brasil, já no aeroporto, fui presenteado com
um livro sobre vinhos. Uma paixão pessoal antiga, mas que carecia
de fundamentos mais sólidos. Decidi iniciar a minha leitura sobre
o assunto. Inclusive, descobri uma loja de vinhos com preços
razoáveis por lá. Comprei algumas garrafas e levei para Bouaké,
onde as degustaria algumas vezes sozinho, outras com meu amigo
indiano Nair. Podia estar num lugar horrível, mas não perderia
bons hábitos, como apreciar um vinho! Imaginava-me à noite
ouvindo o rugir dos leões, o barulho dos elefantes e os tiros de AK
47 enquanto saboreava a bebida. Isso não tinha preço! O fato foi
que ouvi foi muito tiro de AK 47, quanto ao resto...
Ainda na capital, conheci um policial uruguaio chamado
Pires, que morava em Bouaké. Falava um português excelente,
pois havia morado em Rivera, uma cidade em frente a Livramento,
no Brasil. Foi muito simpático comigo. Soube que ele era
responsável, nas horas vagas, por um programa no rádio da
ONUCI, aos sábados, às 22h00. Chamava-se Impecable. Pediu-me
para ajudá-lo, pois queria fazer um especial sobre música
brasileira. Passei-lhes algumas músicas brasileiras, mas nunca
soube se realmente fez o tal programa. Quem diria, eu ajudando
a fazer programa de rádio com músicas brasileiras na África!
Entre uma cerveja e outra, falou-me dos acontecimentos de
6 de novembro de 2004. Disse que iriam comemorar o
“renascimento” deles, pois em Bouaké a coisa fora feia. Por muito
pouco não morreram.
Uma das coisas mais difíceis de acostumar é com a rotina da
ONU para os MILOBS. De acordo com as regras existentes, nós
devemos trabalhar de domingo a domingo. Isso cria uma semana
que não permite pausas para descanso. Para quem viveu cerca de
38 anos trabalhando cinco dias e descansando dois, isso causa um
impacto terrível. Decidi, então, marcar o fim de semana com a
realização de algum evento, como almoçar fora no domingo,
tomar um vinho, assistir a um filme no meu computador; enfim,
criei ferramentas no sentido de quebrar a rotina esmagadora a
que era submetido. Mantive esse hábito até o fim da missão com
excelentes resultados psicológicos.
Outro fato que servia para me desestabilizar era tentar
entrar em contato com a minha família e não conseguir. Fosse por
falta de linhas disponíveis, fosse por que eles não estavam em
casa. Isso era uma completa decepção, pois o contato com eles
transformara-se em algo fundamental, como respirar.
Infelizmente, diversas vezes isso ocorreu, contribuindo para
deixar-me chateado. Desses fatos, veio a constatação de como é
importante que a família que fica no país tenha sensibilidade e
mantenha constante contato com quem está fora.
A verdade é que, quando alguém se dispõe a passar uma
longa temporada fora do seu país, sozinho, o impacto é muito,
mas muito, grande. O apoio da família e dos amigos torna-se
fundamental, diria vital. Lógico que as pessoas que se deixa
sentem a falta. Mas é interessante notar que, tirando quem
viajou, o resto continua igual. A casa, os amigos, os familiares,
tudo continua...
No entanto, para quem viajou, as coisas são completamente
diferentes. A única coisa familiar que fica é você mesmo. O resto,
todos os seus parâmetros, como mulher, filhos, comidas, músicas,
paisagens, sons, cultura, língua e muitos outros, evaporam-se. A
isso, chama-se “Choque Cultural”. Digam o que quiser, mas é algo
muito complicado de digerir. Precisei de muita força interior e
muitas orações para superar períodos difíceis nesse sentido.
A rotina estava apresentando os primeiros sinais de cansaço
psicológico em nós três. A repetição insidiosa e o ambiente
desolador, quase prisional, a que éramos obrigados a suportar,
mostravam seus efeitos. Era visível que apresentávamos fadiga
psicológica. A falta de um trabalho que mantivesse a mente
ocupada estava se tornando um problema, já que durante o check
in experimenta-se muito tempo de ociosidade. Contudo, a
situação poderia estar pior se não fosse a rígida disciplina de
treinamento físico que nos impusemos. Diariamente, corríamos
cerca de 45 min, realizávamos alguns exercícios e fazíamos
alongamentos. Além disso, conversávamos muito, trocando
experiências, opiniões e buscando palavras de consolo e
conselhos úteis. Tudo isso mesclado com bom humor. Era a
maneira simplória que encontramos para não deixar que a mente
nos pregasse peças e nos envolvesse em algo que não
correspondia à realidade. Com o passar do tempo, descobriria que
a mente pode ser uma inimiga quando nos deixamos levar por
impressões falsas ou criadas sem qualquer ligação com a
realidade. Manter a mente sã foi um desafio.
Um dia, saindo para correr com o Barreto, vi que ele estava
“meio para baixo”, pensativo... Resolvi não perguntar nada. Deixei
rolar. Quando terminamos de correr, ele se abriu. Estava
preocupado, pois seu filho achava que ele estava longe porque
queria... Isto estava atormentando-o, talvez sentimento de culpa.
Para aumentar ainda mais o problema, o aniversário dele havia
sido dia 9 de novembro e ele não falou nada para nós. E eu e o
Januário, infelizmente, não havíamos nos tocado sobre a
importância de saber o aniversário de cada um. No domingo,
durante o almoço, cantamos os parabéns para o nosso amigo
Barreto.
Para mim também era difícil superar essas inseguranças e
incertezas. Mas tinha que ser mais forte do que eles, pois era o
mais antigo dos três e tinha que dar o exemplo, mantendo o bom
humor e escondendo minhas necessidades. Não sei se consegui.
Havia ainda o nosso excelente relacionamento, que ajudava a
espantar os fantasmas da solidão. Nós três, graças a Deus, nos
demos bem, “fizemos sistema”, como o Barreto gostava de falar.
Continuava pensando muito na minha casa. De certa forma,
o apoio da minha família estava sendo aquém do que eu esperava.
Não sabia ainda entender se era por causa do impacto que eles
estavam sofrendo também, ou se era pura invencionice da minha
cabeça. Busquei auxílio na leitura de bons livros, inclusive alguns
de autoajuda que trouxera para “qualquer eventualidade”.
Concomitantemente aos nossos problemas de adaptação,
tínhamos que “correr atrás” de uma quantidade sem fim de
documentos, autorizações e outros trâmites burocráticos. Aliás, a
burocracia da ONU começava a nos afetar. Embora necessária
para um órgão com a capilaridade mundial da ONU, com a
finalidade de controlar seus recursos humanos e físicos, tudo
exigia um esforço cartorial para ser resolvido. Coisas simples,
como uma autorização para viajarmos para os nossos futuros
team sites exigiam várias assinaturas, “cópia da cópia”, carimbos
e tantos faxes que teve uma hora que julguei melhor ir a pé para
Bouaké! Claro que não fui...
No dia 9 de novembro, iniciamos o chamado training. Era um
estágio promovido pela ONU para nivelar conhecimento sobre a
missão. A turma era heterogênea, com uma austríaca, um francês,
uma costarriquenha, um português, muita gente do Djibuti, um de
Gâmbia e um do Egito. O turbante roxo que o egípcio usava e a
longa barba chamavam a nossa atenção.
Falaram-nos das doenças típicas da África, comunicação
rádio, sobre segurança pessoal e coletiva, a história do conflito
etc. Uma psicóloga, com cara de quem precisava de tratamento
urgente, falou que poderíamos contar com ela. Disse, com a
delicadeza de um machado cortando uma árvore, que tudo o que
falássemos seria secreto, exceto se disséssemos que iríamos
matar alguém ou nos matarmos. Direta a moça, hein? Pensei.
Uma ivoariense disse-nos acerca dos hábitos da Costa do Marfim
e que não devíamos “dar mole” com nossas coisas e algumas
outras instruções sobre costumes locais.
O pânico foi o idioma. Era uma loucura, pois tinha hora que
falavam em francês e, sem mais nem menos, mudavam para o
inglês. Muitas vezes, na mesma frase, havia palavras nos dois
idiomas. Pensar em português, falar em francês, escrever em
inglês. Que confusão! Mudar a “chave seletora de idiomas” ainda
era um problema para mim. Acho que a minha era manual, mais
velha. Precisava trocar por uma mais moderna, tipo eletrônica.
Capítulo 7
Juntando-me aos Rebeldes
Desde a noite anterior ao nosso embarque para os novos
destinos, cada um de nós buscava ferramentas psicológicas no
sentido de controlar a ansiedade e – por que não dizer – o medo
acerca do que nos esperava. Acordamos quietos e logo descemos
para tomar café. Aquele seria o nosso último dia em Abidjan.
Em uma manhã quente e excessivamente abafada, partimos
em direção aos nossos novos team sites. Fomos para a base aérea
da ONU em Abidjan, que não passava de um hangar tosco, com
alguns aviões canadenses e helicópteros russos do lado de fora. A
cor branca, com enormes letras UN nas fuselagens, não deixava
dúvida de que eram propriedade das Nações Unidas. Pesamos
nossas malas e ficamos aguardando numa sala de espera que mais
parecia uma igreja de interior, com bancos de madeira com
anteparos retos e nada confortáveis, um chão cinza e nada mais.
Eu e o Januário sentamo-nos um ao lado do outro. Não falávamos
nada, tentando disfarçar a ansiedade. Coloquei meu MP3 para
tocar, fingindo que curtia o momento. Mentira, não conseguia
sequer ouvir a música! Sabíamos que aquela seria a última
oportunidade em que nos veríamos por um longo tempo. Iríamos
nos separar após quase 20 dias de convívio estreito. Parecíamos
crianças que iam pela primeira vez à escola.
Após nos acomodarmos dentro da aeronave, ela rolou pela
pista vagarosamente até descolar do solo. Minutos depois, ela
dava uma guinada brusca em direção ao norte, deixando a linda
vista da Baía da Guiné para trás. Cada um de nós sentou em
poltronas separadas, como se já quiséssemos nos acostumar com
a separação iminente.
Do alto, pude ver a savana que dominava a paisagem.
Pequenas vilas podiam ser vistas com facilidade. No futuro, iria
visitar muitas delas nas intermináveis patrulhas as quais tive que
fazer. As enormes favelas que invadiam as praias com seus
barracos mostravam uma Abidjan decadente, com seus pedintes,
prostitutas e prédios abandonados.
Cerca de 50 minutos após a nossa decolagem, o piloto avisou
que estávamos chegando a Bouaké. Eu seria, dos três, o primeiro
a desembarcar. Coloquei o cinto, rezei e pedi luz naquele novo
momento em minha vida. Agora solitário, muito mais do que eu
podia imaginar...
Evitei olhar pela janela do avião, afinal, teria seis meses para
conhecer a “cidade”. O avião pousou tranquilamente e pouco
tempo depois as hélices pararam de girar. A porta de trás se abriu
e me despedi dos meus dois amigos rapidamente. Quando botei a
cara para fora, não acreditei. A visão desoladora da pista de
concreto, cheia de buracos e ramos de mato brotando entre as
frestas, lembrou aqueles filmes americanos passados no deserto
do México. A “sala de espera”, se é que se pode chamar assim,
resumia-se a algumas mesas em um gramado, logo embaixo da
torre de controle, onde algumas pessoas bebiam cerveja
enquanto esperavam o avião chegar. Só faltava passar o
tradicional tufo de mato que rolava diante dos mocinhos nos
antigos filmes de cowboy antes de um duelo.
Para variar, a desorganização do serviço de transporte foi
“perfeita”. Quando vi, as malas do Januário estavam sendo
deixadas comigo em Bouaké. Literalmente, tivemos que segurar o
avião, pois o piloto já havia fechado o compartimento de carga e
se preparava para decolar, com o motor a todo vapor. Foi aquela
baixaria: faz sinal para o piloto parar o avião, alguém surge na
porta do avião, grita, dá esporro em francês, o outro retruca em
inglês, e eu lá, sem acreditar no que estava vendo. A incredulidade
era muito grande para poder ter certeza de que aquilo não era um
sonho ruim. No fim, abriu-se o compartimento de bagagem com
o avião pronto para decolar, tiraram-se tiraram-se algumas malas,
colocaram-se outras, novos xingamentos e o avião, enfim, partiu.
Da janela, pude ver o Barreto e o Januário me dando tchau. A
partir daquele momento, o “nós” deu lugar ao “eu”. Estava
sozinho na África!
Um major nigeriano de nome Bagna, do tamanho de dois
fuscas colocados lado a lado, dirigiu-se para onde eu estava. Logo,
ele se apresentou, dizendo: Eu sou o Major Bagna e você é o Major
Heitor, o novato. Eu estou correto? Com um cara daquele
tamanho eu ia dizer que não? Se ele dissesse que eu era o Bill
Gates e viera pessoalmente transferir a Microsoft para Bouaké, eu
assinava embaixo. Mas a impressão inicial logo se dissipou. Bagna
foi muito atencioso comigo, pegando a minha mala pesadíssima
como se erguesse uma frasqueira de madame...
Após colocar tudo dentro do carro, dirigimo-nos para o team
site, que ficava na saída sul da cidade. Na entrada ficava o
Comando do Setor Leste da ONU e, logo à direita, o team site e
um hospital de Gana. Havia ainda outros contêineres com
instalações logísticas e civis. Envolvendo tudo, enormes cercas
com arame farpado e soldados protegidos por sacos de areia.
As instalações do meu team site, embora restritas a três
contêineres, eram limpas, bem iluminadas e bem refrigeradas. Os
meus novos companheiros eram da Índia, Nigéria, Jordânia,
Filipinas, Iêmen, Congo, Paquistão, Bangladesh e China. Um grupo
heterogêneo e, o que é pior, sem latinos... Todos foram
extremamente atenciosos comigo. Acho que a minha cara de
assustado deve ter contribuído. Deram-me café, água etc. Falei
rapidamente com o meu novo team líder, um tenente-coronel de
Bangladesh, de nome Aziz. Falava o inglês mais rápido do mundo,
devia ser recorde mundial! Não entendi absolutamente nada do
que ele falou. Confesso que tive até dúvida se ele estava falando
inglês ou outra língua. Como não sou bobo, lembro que fiz cara de
“inteligente” e respondia somente Sim ou Muito obrigado. Graças
a Deus, ele me deixou a sós rapidamente, pois tinha uma reunião
para comparecer. Eu suava frio.
Como eu já esperava, território dominado por guerrilheiros
ou rebeldes é uma bagunça. Naquele dia, para sair do aeroporto
e chegar até o team site, passei por oito barreiras, lá chamadas de
check points, das Forces Nouvelles. O difícil de entender é que
cada rebelde usa o uniforme que quer, o armamento que melhor
se adapta e por aí vai... Mais tarde, veria que o AK 47, chineses e
russos, muito conhecidos nos filmes de ação que se passam na
África, realmente eram os preferidos. É claro que havia outros,
como SIG 540, M 16, T-81 etc. Mas, se você quisesse ser in, tinha
que ter a sua AK.
Os rebeldes dividiram a cidade em quatro setores. Sendo
assim, existiam dezenas de check points demarcando a área de
influência de cada grupo. Eram barreiras feitas de maneira
grotesca, com tonéis, carros destruídos, pedras, galhos e pneus.
Para mim era algo muito, mas muito, estranho mesmo. No futuro,
entenderia que a principal função de alguns deles não era
fiscalizar coisa alguma, mas “coletar” dinheiro de todos os que
passam por eles, segundo relatos verbais ouvidos ao longo da
missão, a título de “contribuição para a causa”.
Acabei indo morar numa casa com o Bagna e um indiano
chamado Nair, que se tornaria o meu melhor amigo em toda a
missão. Vivia rindo de qualquer coisa! Ambos me receberam
muito bem e fomos almoçar num restaurante chamado L’Oriental.
Na realidade, havia sido propriedade de um casal de chineses. No
entanto, após a eclosão da guerra, eles fugiram. Os antigos
empregados, dois marfinenses, simplesmente se apossaram do
lugar e tocaram o que sobrou como podiam. Havia, aqui e acolá,
alguma coisa que lembrava um restaurante chinês. Cortinas de
seda sujas, pequenos arranjos de plástico sobre as mesas e nada
mais. As paredes eram ocres e causavam certo desconforto. A
refeição foi muito boa e o final surpreendente. Quando me dei
conta, após terminar de comer, veio um cidadão com ar resignado
e sério carregando um balde desses de lavar roupa, com água e
um pires com sabão em pó. Pensei que iria começar alguma faxina
ou algo assim. Para minha total surpresa, era para que
pudéssemos lavar as mãos. Por dentro, pensei que estava
chegando ao fim do mundo, mas por fora fingi que aquilo era a
coisa mais normal no Brasil... Inacreditável, no meio do salão, um
balde azul de plástico e todo mundo lavando as mãos. Claro que
lavei as minhas! Ao terminar, o mesmo homem que havia trazido
o balde, segurava toalhas para que secássemos as mãos. O melhor
de tudo isso: não precisei nem me levantar da cadeira!
No fim da tarde, Bagna me convidou para ir ao mercado
comprar algumas coisas. Nem tente imaginar como era o
mercado. Sem problemas. Comprei artigos de primeira
necessidade – para quem está em Bouaké, é claro – como remédio
contra mosquitos, Coca-Cola (fundamental!), biscoitos e outros
artigos. Lá, pude ver muitos homens e mulheres do Exército
francês. Impressionou-me, ao longo da missão, como existiam
mulheres pilotando helicópteros, dentro das bases e em vários
lugares em que o Exército francês está. Levaram a sério o lema
“Igualdade, Fraternidade...”.
Depois, ele e o indiano foram a um clube jogar tênis. Por
incrível que pareça, existia uma quadra de tênis em péssimo
estado de conservação, mas, para os nossos padrões, aproximava-
se de Roland Garros. Coisas da guerra... Antes pedi que me
deixassem no team site para que eu pudesse falar com a minha
família.
Quanto ao idioma, só inglês e francês, nem um
espanholzinho para ajudar. E quem não conhece o inglês do
Paquistão ainda não ouviu nada. Os caras falam a mil por hora.
Coisa de louco! Só como exemplo, muitos deles falam a palavra
west (oeste em português) com a pronúncia /vést/ e hell (inferno
em português) com a pronúncia /réli/, só para citar os exemplos
mais fáceis. Tente pedir para eles falarem milk (leite)... Mas com
o tempo me acostumei. No início buscava entender o contexto do
que eles queriam falar, depois eduquei o ouvido para poder
entendê-los.
O meu humor não era dos melhores, mas fazer o quê? Batia
uma solidão imensa dentro daquele quarto. Minha mala estava lá,
sem ter sido tocada. Não tinha ânimo. Era como se quisesse negar
aquilo tudo. Mantenha-se firme! Pensava eu. Um dia de cada vez,
um dia a menos, um aprendizado a mais. Mantenha-se forte!
Assim foi meu primeiro dia em Bouaké. Haveria dias
melhores e outros muito piores.
Capítulo 8
Começando a Conhecer a “Minha” África
A minha primeira noite em Bouaké foi de sono ruim e sonhos
agitados, quase não consegui dormir. As coisas estavam sendo
muito difíceis e não tinha tempo suficiente para assimilar as
mudanças constantes. A solidão e a saudade continuavam
batendo forte. Mas ia superando. Um hábito que adquiri para
espantar a solidão foi o de ouvir rádio. Normalmente, era possível
ouvir a BBC e a Voice of América. De vez em quando até pintava
uma música brasileira, como Mutantes e Titãs.
Novos problemas se apresentavam. O mais chato era o fato
de eu ter que cozinhar a minha comida todos os dias, já que não
tínhamos empregada na casa. A cozinha era suja e com poucos
utensílios domésticos. Sequer um secador de louças existia. Abu,
o garoto que arrumava a casa, lavava as louças de qualquer jeito
e as colocava no armário molhadas. O cheiro de mofo era
insuportável. O lixo era jogado numa lata que não tinha proteção
de plástico, tornando o ambiente atrativo para as moscas. O vaso
sanitário que usava não tinha tampa, tendo que me sentar
diretamente na louça. Além de pouco higiênico, era totalmente
desconfortável.
Meu quarto se resumia a uma cama e uma cadeira velha. O
armário precisava ser forrado, e o ar-condicionado consertado
(fazia um barulho enorme e não esfriava nada). A casa não via uma
vassoura havia muito tempo.
No meu segundo dia em Bouaké, fui escalado para a minha
primeira patrulha. Estava ansioso. Logo depois do briefing
matinal, iniciamos o nosso movimento. Antes, pegamos mapas,
um GPS[ 30], canetas e papéis para fazer o relatório no retorno. O
nosso destino era a cidade de Raviart, onde deveríamos fazer
contato com o chefe da vila. Iniciava a minha verdadeira senda
dentro do coração da Costa do Marfim!
Penso que, para me testar, o team leader, sem mais nem
menos, mandou-me traduzir o que o intérprete falava. Foi uma
dificuldade enorme, pois, além de não ter os meus ouvidos ainda
familiarizados com o idioma, o francês falado na Costa do Marfim
possui palavras e entonações totalmente diferentes do que eu
havia aprendido. Para complicar ainda mais, eles colocam palavras
no meio da frase que só existem no dialeto deles. Lembrei-me do
conselho de um amigo que integrara a missão em 2004. Mantive
a calma e procurei entender o contexto. Quando não era possível
entender nada, traduzia algo neutro a fim de evitar qualquer
interpretação que pudesse prejudicar a conversa ou ofender os
habitantes locais. Safei-me, mas suando frio. Por fora estava
tranquilo, parecendo ter anos de experiência, mas por dentro...
Imaginei-me provocando uma guerra por causa de uma tradução
malfeita. Nunca desejei tanto ser um diplomata...
Chegamos a Bouaké por volta das 16h00 sem ter comido
nada. Estava morto de fome e cansado. Almocei, aprendi a fazer
o relatório que tínhamos que emitir diariamente e fui para casa.
Naquela noite, dormi um pouco melhor.
Para falar com um chefe de vila, aprendi que eram
necessários alguns passos. De fato, um ritual. Não era
simplesmente chegar e falar com ele. A tradição e a cultura
haviam de ser respeitadas.
Primeiramente, antes de conversar com alguém para saber
alguma coisa, alguma informação, deveríamos pedir autorização
ao chamado “Chefe da Vila”. Trata-se, normalmente, de um
senhor idoso ao qual se reserva grande respeito. Achado o local
onde mora, outra pessoa vem ao nosso encontro e nos apresenta
a ele, já que não podemos nos dirigir diretamente a ele. Esse
“intérprete” será a nossa ponte com o chefe. Via de regra, ele fala
um dialeto específico da sua etnia. Ou seja, nós não podemos
entender nada do que falam. Após isso, o intérprete traduz para o
francês.

Em muitas vilas que visitei, era necessário fazer uma


pequena reverência para ele. Normalmente, olhava-nos, falava
alguma coisa e convidava-nos para sentar. Nisso, perdíamos
tempo em conversas nada objetivas, mas necessárias para que
conseguíssemos a confiança deles e obtivéssemos os dados de
que precisávamos. Isso durava quase 15 minutos de rodeios
diplomáticos, mas extremamente importantes para que a
conversa fluísse. Findo o introito, iniciava-se o diálogo
propriamente dito. Girava em torno dos principais problemas do
lugar; geralmente água e eletricidade, se havia médico e escolas...
Tudo embaixo de uma árvore – nunca em pé – sempre sentados,
sem pressa. Aliás, se você é apressado, comece a mudar de
comportamento se for trabalhar na África. Um amigo meu, o
Major De Armas, do Uruguai, experiente em missões na África
(havia estado um ano no Congo), sempre mostrava a sua cuia de
chimarrão para os novatos que chegavam preocupados e
querendo resolver tudo em um único dia. Nela, podia-se ver um
adesivo plástico de fundo branco e com letras pretas escrito Don't
worry, you are in Africa[ 31]! Não preciso dizer mais nada sobre a
velocidade com que as coisas andam por lá...
Terminada a conversa com o chefe da vila, andávamos pela
cidade, contávamos o número de rebeldes na rua, de armamentos
e a quantidade deles nos check points. Se houvesse alguma
autoridade que nos interessava visitar, íamos até ela. Também nos
ligávamos com tropas da ONU que estavam estacionadas nas
vilas, como os pelotões de Bangladesh ou do Marrocos, por
exemplo. Era um trabalho desgastante, pois às vezes perdíamos
horas e horas para chegar até algumas vilas. Muitas até que não
eram longe, mas as condições das estradas, muitas totalmente
esburacadas e de terra, obrigavam-nos a manter velocidades
pífias. Lembro que uma vez saímos de Seguela, uma vila na parte
noroeste do país, com destino a Bouaké. Éramos quatro MILOBS
em dois veículos. No mapa, medi cerca de 150 km a distância entre
os dois lugares. Levamos 6 horas e 40 minutos para chegar! Pode-
se imaginar o nosso cansaço em função dos riscos da estrada, do
sol e do tempo dirigindo.

Em Bouaké, a vida começava a se tornar mais tranquila para


mim. As patrulhas diárias, a confecção de relatórios e as reuniões
para acertar detalhes das próximas operações tomavam o meu
tempo. O problema ainda continuava a ser a solidão durante as
noites. Mas para isso não havia muitos remédios, a não ser
manter-me forte e ler bastante.
Durante as patrulhas, notei que havia uma infinidade de
pequeníssimas vilas e outras cidades de grande porte com o final
Kro. A terminação Kro, descobriria mais tarde, significa, num dos
dialetos usados na Costa do Marfim, vila, town, village ou,
simplesmente, cidade. Assim, Yamoussoukro quer dizer cidade de
Yamoussu, M’Bahiakro, cidade de Bahia e assim por diante.
Portanto, se você chegar à cidade de Daoukro, talvez seja bom
falar com Daou, o dono do pedaço...
Com o tempo, veria que Krou, que é diferente de Kro, fazia
parte dos mais de 60 grupos étnicos existentes na Costa do
Marfim, distribuídos em quatro grandes grupos: Mande, Akan,
Krou e Voltaic . Esse “nó” étnico é um dos graves problemas que
dificultam uma real integração do país. Muitos preferem respeitar
mais as fronteiras étnicas às geográficas. A existência de máscaras
e roupas diferentes deixa patente essa diferenciação. Há,
inclusive, proibições peremptórias de casamentos entre etnias
diferentes. Por exemplo, pessoas da etnia Keita e Camara são
proibidas de se casarem com pessoas da etnia Doumbia .
Outro aspecto cultural é o fato de que muitos urinam sem a
menor cerimônia no meio da rua. Vi, certa vez, um casal bem
arrumado, andando de mãos dadas. Repentinamente, o senhor
parou, colocou o “instrumento” para fora, aliviou-se, guardou,
deu as mãos para a mulher e continuou a caminhada. Em
Duékoué, vi gente inclusive deixando suas fezes na rua, sem a
menor vergonha. O segredo é agir com naturalidade.
Num dos dias em Bouaké, fui levado pelo Bagna a uma
pequena feira de artesanato local. Havia muita coisa bonita,
principalmente feita em madeira cravejada com pequenos
detalhes em marfim, retratando animais, como elefante, leões
etc. Os tecidos também chamavam a atenção. Coloridos e muito
bonitos, mas de baixa qualidade. Vi algumas joias de prata e de
ouro. Interessantes, mas pouco delicadas. Todavia, o que se
destacava era a miríade de estátuas de madeira, muitas feitas de
ébano. Muito bem talhadas e retratavam a capacidade de
trabalhar a madeira daqueles homens que as vendiam. Uma,
particularmente, chamou-me a atenção. Media cerca de 60 cm e
mostrava, delicadamente, uma mulher carregando o filho
amarrado às costas, à moda tradicional. A madeira, de duas
tonalidades, brilhava sob o sol. Acabaria comprando a peça após
alguns bons minutos de negociação.
Negociar faz parte da cultura local. Não adianta achar que
você vai comprar alguma coisa nos mercados típicos, ou até
mesmo em lugares melhores, simplesmente olhando uma
etiqueta com o preço. Esqueça! É necessário tempo e muito jogo
de cintura para obter um bom preço. Não negociar é uma ofensa.
Quando perguntei o preço da estátua, o artesão não teve dúvida:
– Dezessete mil francos!
Não acreditei no preço, absurdamente caro. Cerca de 37
dólares. Respondi de imediato:
– Muito caro. Obrigado. E continuei andando em direção a
outras barraquinhas que se empoleiravam pelo caminho. O
artesão seguiu-me e tocou as minhas costas:
– Brasileiro, quanto você acha que isso vale?
Fiquei meio atordoado com a pergunta. Ora, na minha
cabeça ele havia me oferecido pelo preço justo. Se eu achara caro,
era problema meu. Mas não era assim que as coisas funcionavam.
Não se tratava de qualquer tentativa de extorsão. Era a forma de
eles barganharem, só isso. Bagna explicou-me o processo e eu pus
em prática, ainda meio incrédulo. Chutei, como Bagna havia me
instruído, um preço ridiculamente baixo:
– Três mil francos, no máximo!
– Meu amigo! É muito pouco. Isso é madeira boa. Que tal
dez mil?
– Não, nada disso. Sou da ONU, mas não sou Kofi Anan! –
Respondi brincando. Cinco mil é o máximo que posso pagar.
– Muito pouco – resmungou ele.
Bagna pegou-me pelos braços e começamos a sair dali.
Disse-me para não me preocupar, pois o cara viria atrás da gente.
Como se ele fosse um profeta, o artesão gritou-nos e, querendo
parecer contrariado, disse:
– Tudo bem, dê-me o dinheiro! – Disse o vendedor, já
embrulhando a pequena estátua e agradecendo por eu ter
comprado dele.
Cinco mil e a estátua tornou-se minha. E assim aprendi a
negociar com os africanos. Depois, isso se transformaria numa
rotina para mim. Era como se houvesse necessidade de um grande
teatro antes de chegar a uma solução boa para ambas as partes.
Tinha vezes que ria de mim mesmo tentando preços melhores e
conseguindo abatimentos inimagináveis no Brasil.
Capítulo 9
Encontrando-me com Vetchio
Aos poucos, sem pressa, fui conhecendo melhor o modus
vivendi daquele povo tão surpreendente para mim. Descobri que
as patrulhas eram a melhor forma de entender genuinamente as
idiossincrasias dos africanos que viviam na Costa do Marfim. Uma,
particularmente, me marcou. Nela, conheci Vetchio, um
combatente experiente e comandante de muitos rebeldes no
norte.
Naquele dia, andava por estradas que pareciam infinitas,
sem início e sem fim. Uma nesga de asfalto, já desbotado, quase
cinza, mostrava-me os caminhos a seguir. Um ou outro buraco me
obrigava a frear bruscamente. A vegetação típica de savana
revelava-se exuberante em ambos os lados. O sol, inclemente,
queimava as plantas e o couro dos pequenos animais silvestres
que atravessam a estrada sem importar-se com o nosso carro.
Ao longo do percurso, grupos de gentios, trajando roupas
típicas da África negra, acenavam para nós, como se fôssemos
mensageiros de alguma boa nova... As roupas me impressionavam
sempre. Panos com lindas estampas, de um colorido agradável
aos olhos, contrastando com a vegetação monótona, coloriam os
caminhos. Brancos sorrisos saídos de generosas bocas negras
mostravam-se desavergonhadamente. Eram só sorrisos, sinceros
sorrisos...
Tentava ouvir meu MP3, mas a bateria acabara. Droga!
Acelerava um pouco mais. Olhei o velocímetro: 90 km/ h. O ar-
condicionado amenizava a temperatura externa. Meus
companheiros naquele dia de patrulha eram Eibissou, um capitão
africano, Morales, um major filipino, e meu amigo Nair. Dormiam
serenamente, esgotados pelo dia de trabalho estafante. Seguia
tranquilo em direção a lugares que nem mesmo o imaginário do
mais criativo brasileiro podia alcançar. Falo de Katiola, de Brobho,
M’Bahiakro, de Allangouassou, de Bonguéra e de outros destinos
surreais para a grande maioria das pessoas, mas incrível e
angustiantemente reais para nós. A falta era a regra. “Possuir” era
um verbo pouco conjugado por lá, como iria ver ao longo do
tempo. “Precisar” seria comum...
Alcançava check points, muitos deles... Cada um com um
grupo de soldados guardando-os. Eram Force Nouvelles do norte,
FANCI[ 32] do sul, destacamentos da Licorne e de batalhões do
Benin, Paquistão, Marrocos e de outros lugares idílicos para nós.
A divisão consequente da guerra tornava-se clara. Ou você está
comigo ou você está contra mim. Puro maniqueísmo. Diminuía a
velocidade, acenava calmamente para cada sentinela e prosseguia
na minha patrulha que permeava o sul e o norte do país, como se
fôssemos uma serpente sem rumo certo.
Enfim, chegamos a Katiola. Dirigimo-nos para uma velha
construção. Era uma escola nos tempos em que a paz reinava.
Transformara-se numa instalação militar dos rebeldes. As salas,
antes provavelmente repletas de carteiras, estavam tomadas por
mesas que tentavam simular um escritório. Em algumas, com as
portas entreabertas, via-se material militar jogado no chão, em
completa desorganização. A pouca luz e as paredes descascando
aumentavam a minha repugnância pelo lugar. Soldados vestidos
com partes de roupas camuflados, mas aparentando experiência
de guerra, receberam-nos de forma amistosa. Tudo bem? Você é
brasileiro? Sim, eu sou... Ronaldinho, grande Ronaldinho! Sorri e
fingi que estava fazendo uma embaixadinha imaginária. Eles
sorriam, eu me sentia mais tranquilo. Conquistara-os...
Entramos numa pequena sala dominada por uma ampla
mesa. Os móveis eram precários, madeira velha, parede
encardida, chão em péssimo estado. Como sempre, trouxeram
cadeiras, algumas rudimentares, para que nós sentássemos.
Sempre gentis e educados, mesmo sem possuírem mais do que o
estritamente necessário. Na sala, além de mim e dos meus
companheiros de team site, três homens sentaram-se à mesa
conosco. No fundo, demonstrando curiosidade, cerca de dois ou
três jovens e, aparentemente, inexperientes guerreiros,
observavam sem esconder a curiosidade. Na mesa, um caderno
simples. Na capa – surpresa! – a foto do Roberto Carlos e o escudo
da seleção brasileira, com cinco estrelas estilizadas. Rimos. Ele me
perguntou como é meu futebol. Respondi: Bem ruim... Não
acreditaram, pois para eles todo brasileiro nasce com uma bola de
futebol nos pés. Devia ter aprendido a jogar futebol na
adolescência...
Iniciamos a nossa conversa. No meu francês lento, fiz a
tradicional introdução. Lá, como já disse, tratava-se de regra
básica de respeito. Disse quem era, que pertencia à ONU, que
estávamos ali com a intenção de ouvir os anseios, os problemas e
auxiliar na busca de soluções. Apresentei meus amigos, disse as
suas funções e países de origem. Depois, foi a vez de eles dizerem
que estavam satisfeitos com a nossa visita, que era uma honra
receber membros da ONU e que a confiança era mútua. Pronto,
estabelecemos contato confiável! Perguntei se existiam escolas,
eletricidade, água, médico, medicamentos e todo o resto da
infraestrutura básica necessária. Traduzi para o inglês para que os
meus companheiros se mantivessem atualizados sobre a
conversa. Outro oficial nosso, que falava francês infinitamente
melhor do que eu, ateve-se especificamente a um comandante
militar dos rebeldes, travando uma conversa paralela. Disseram-
nos que o principal problema eram as doenças. A água – sempre
ela! – era de má qualidade. Havia também muitos casos de febre
tifoide e diarreia. Mostraram-nos as barrigas, estufando-as, como
se quisessem dar ênfase ao problema. Anotamos, conversamos,
anotamos...
Um deles, vestindo um uniforme camuflado
impecavelmente passado e camiseta branca por baixo, ateve-se
mais especificamente comigo. Era Vetchio. Falava devagar, mas
bastante. Eu o interrompi algumas vezes para tirar dúvidas ou
buscar a melhor compreensão do que ele falara. Mantinha a
conversa com alguns Compreendo... Compreendo...
O rosto dele passou a ser meu foco. Tinha uma expressão
forte, mas doce, aparentando cansaço da guerra, das disputas,
dos problemas insolúveis. Seus olhos estavam vermelhos. Será
que tinha problemas para dormir com os pesadelos que a guerra
imprime naqueles que têm de fazer o trabalho sujo? Usava uma
barba bem delineada no rosto. Levou-nos a outra construção,
cerca de 50 metros da que estávamos. Um cubículo em péssimo
estado de conservação. Moscas se batiam dentro do pequeno
espaço. Uma mulher baixinha, trajando calça camuflada e camisa
negra, aparentando ter algo em torno de 40 anos, mostrou-nos as
paredes, repletas de fotos 3 x 4 coladas em papelões rasgados.
Disse-nos que ali estavam as fotos dos guerreiros das Forces
Nouvelles naquele setor. Mais acima, a foto do comandante da
zona de Katiola, os chamados Comzone. Ainda mais acima, como
se estivesse vigiando todos dentro da sala, a foto de Che Guevara.
Senti-me num filme. Quase não acreditei no que estava vendo.
Parecia que retornara aos anos 60, Guerra Fria, Crise dos Mísseis,
Congo, Bolívia...
Gentis, sempre gentis, mostraram-nos tudo com orgulho.
Agradecemos imensamente a atenção, cumprimentamos todos
efusivamente. Sentia-me tranquilo. Estava conseguindo manter-
me imparcial naquele imbróglio. Afinal, aquela guerra não era
minha, eu não a inventara, eu não a produzira. Tiramos algumas
fotos com eles. Ao contrário do que alguns poderiam pensar, não
havia nada de glamouroso naquele encontro. Vi apenas faces
cansadas de morte, destruição e de retrocessos. Queriam apenas
tocar a vida, nada mais.
Voltamos para as nossas potentes Toyota Prado. Quando
estávamos saindo, a mulher de camisa preta ofereceu uma camisa
idêntica a que ela usava e um convite para a formatura dos novos
soldados das Forces Nouvelles dali a alguns dias. Agradecemos a
gentileza e continuamos o nosso caminho. A estrada asfaltada
cedeu terreno para uma de terra. Diminuí a velocidade, pois os
buracos eram incrivelmente grandes. O que salvava era a
qualidade dos nossos dois veículos. Já estávamos rodando havia
cerca de 4 horas. Ainda faltavam 5 horas para retornarmos ao
nosso team site em Bouaké. Continuamos. No rádio, lembro que
tocavam músicas indianas que Nair gravara. Sinceramente, não
aguentava mais músicas indianas. Preferia as músicas religiosas
que Eibissou colocara no início, tipo gospel francês. Tudo bem,
fingi que gostava. Nair parecia amar aqueles sons metálicos e
repetitivos. Além disso, tinha-se mostrado um companheiro
excepcional e cuidadoso comigo. Ele não se cansava de repetir, no
seu inglês ultrarrápido, novatos precisam de bons professores.
Não são músicas ruins, mas duas horas ouvindo-as cansava.
A estrada continuava a piorar. Até quando? Pensava. Vilas,
pequenas vilas desfilavam para nós a cada 20 ou 30 minutos.
Atravessamos a zona de confiança. Estávamos indo para o sul.
Tudo tranquilo, sem violações aparentes. Paramos em um check
point das Forces Nouvelles. Mais uma vez, o ritual recomeçou:
cadeiras, senta-se, apresenta-se e por aí vai. Anotamos e
continuamos a nossa jornada. Paramos na beira da estrada para
nos aliviar. Já fazia 6 horas que estávamos dirigindo.
Mais adiante e sob a desculpa de monitoramos o local – na
realidade queríamos ir ao banheiro – paramos em um
destacamento do Benin. Lugar agradável, com sombra farta.
Iniciamos uma amistosa conversa, colhemos informações
importantes para nós. Um capitão e um tenente foram
extremamente gentis. Mostraram-nos mapas e sugeriram as
melhores estradas para M’Bahiakro, nosso próximo destino.
Partimos novamente. Numa das vilas compramos bananas verdes.
Os africanos amam bananas verdes. O oficial do Paquistão, Major
Paracha, ofereceu-me um pão de forma com queijo e uma espécie
de uvas passas. Não pensei um minuto, aceitei! Eram quase duas
horas da tarde, e a última vez que comi fora por volta da seis horas
da manhã. Uma delícia! Comi ao mesmo tempo em que dirigia...
Paramos mais à frente. Nair assumiu a direção do carro. Ele
dirigiu sem muita segurança, mas devagar. Brinco com ele dizendo
Segurança em primeiro lugar. Ele sorriu e continuou dando suas
freadas bruscas. Não me importei, pelo menos ele não estava
correndo feito os loucos da viatura da frente. Chegamos a Bouaké.
Entramos na base do nosso team site. O guarda da porta
repetiu o mesmo gesto de sempre. Levou a mão esquerda à
fronte, num misto de saudação e continência. Olhou rapidamente
o interior dos nossos veículos e fez um sinal autoritário para o
outro que obstruía a nossa passagem com uma pequena placa
escrita stop. Virou a plaquinha e vimos go. Avançamos. Era o
trabalho deles. Toda vez que chegava ao meu team site e esse
ritual se repetia, ficava pensando que, se tivesse um artefato
nuclear no meu colo, eles nem iam notar. Era uma segurança
inútil, sob todos os pontos de vista.
Estacionamos as viaturas. Estavam cobertas de pó. Entrei no
container do team site e respirei aliviado. Quase me ajoelhei
diante do ar-condicionado. Bagna perguntou: Como foi a
patrulha? Respondi, pegando uma garrafa de água: Aprendi
muitas coisas novas, como atravessar buracos enormes e andar
em péssimas estradas! Bagna riu...
Após chegarmos em casa, convidou-me para jogar tênis.
Recusei gentilmente. Decidi fazer alguns exercícios para aliviar a
mente. Saí para correr pelas ruas de Bouaké por cerca de 45
minutos. Ouvi, no meu fiel MP3, U2, Light House Family, Zélia
Duncan, Aretha Franklin e Legião Urbana, dentre outros. Suei feito
um cachorro, mas foi excelente. Tomei um banho gelado. Fiquei
alguns minutos deixando a água do chuveiro escorrer pelo meu
corpo, aliviando o cansaço do dia. Notei que estava emagrecendo.
Troquei de roupa e fui fazer o meu jantar. Como não tínhamos
cozinheira e estava sem comer direito desde o dia anterior, fiz
arroz e um molho de carne enlatada. Temperei bem e até que
ficou legal. Abri uma lata de Coca-Cola. Quase um orgasmo!
Fui dormir tarde naquele dia, como seria regra durante todo
o meu período por lá. Dificilmente tinha um sono tranquilo.
Encerrara mais um dia proveitoso na África. Muito aprendizado,
muitos paradigmas e preconceitos quebrados e um corpo
completamente moído. Assim eu me sentia ao chegar das
patrulhas mais longas.
Em janeiro comecei a sentir dores de cabeça e outros
sintomas da malária, como febre e dores nas juntas. Fui a um
hospital militar de Gana e fiz o exame. Coisa rápida. Em 20
minutos veio o resultado: negativo. No entanto, o médico que me
atendeu jurou de pé junto, após um exame clínico, que eu estava
com a tal malária. Por via das dúvidas, receitou-me o tratamento
padrão de seis comprimidos a serem tomados em cinco dias. Até
hoje não sei se peguei ou não malária, mas acho que foi a melhor
decisão eu fazer o tratamento. Essa era uma preocupação
constante.
Capítulo 10
Trabalhando com pessoas de culturas diferentes
Um dos maiores desafios que encontrei na África foi o de ter
que dividir pouco espaço com oficiais de outros países.
Normalmente, dividíamos dois contêineres, ligados entre si, com
10 ou 11 pessoas. Como a diversidade cultural e de pontos de vista
eram múltiplos, naturalmente, surgiam desentendimentos a toda
hora. Com o tempo, aprendi a procurar respeitar todos, mas com
o cuidado de não deixar que a minha cultura fosse ignorada.
Nesse sentido, alguns – uma minoria – tornaram-se um
problema para mim. A grande maioria tornou-se grandes amigos,
dos quais sinto saudades. Os mais radicais, sempre em minoria,
queriam a todo custo impor sua maneira de ver as coisas em
tarefas simples. Outros, menos radicais, procuravam explicar-me
alguns fundamentos da sua religião, que para mim eram
completamente novos. Foram verdadeiros professores sobre as
peculiaridades do islamismo, do budismo e outras religiões,
inclusive as pagãs. Contribuíram para que eu quebrasse ideias
formatadas e distorcidas sobre eles, principalmente sobre o
islamismo.
A minha percepção é a de que durante muitos anos fomos
instados a pensar, por uma parcela expressiva da mídia, que o
islamismo é uma forma de ver a vida totalmente incompatível
com a visão ocidental, notadamente após o 11 de setembro. A
conclusão a que cheguei, convivendo por um ano com
muçulmanos, foi a de que, assim como nós temos nossos radicais,
capazes de entrar em cinemas atirando em todo mundo, eles
também os possuem. Mas a maioria esmagadora é constituída de
pessoas comuns, que trabalham e buscam ideais tão nobres
quanto aqueles que buscamos em nosso dia a dia. As nossas
diferenças são muito menores do que realmente imaginamos.
Não podemos permitir que o uso de um véu na cabeça ou o fato
de rezar cinco vezes ao dia sirva de pretexto para um
distanciamento tão grande. Obviamente, as diferenças tornam a
convivência difícil, mas não impossível. Dividir espaço com
católicos, muçulmanos, hindus e animistas ensinou-me – na marra
– que conviver com diferenças é possível, desde que regras gerais
sejam aceitas de comum acordo e que sejam respeitadas. 90% das
vezes isso foi possível.
Um desses pacientes professores que me ensinaram sobre o
islamismo foi Paracha, o major do Paquistão que trabalhava no
meu team site em Bouaké. Conversávamos muito durante as
patrulhas sobre a religião e os costumes islâmicos. Lembro-me,
particularmente, de uma viagem em que fomos juntos até
Abidjan, saindo de Bouaké.
Paracha aproveitou essa viagem para me ensinar alguma
coisa sobre o islamismo, os muçulmanos e assuntos correlatos. Fui
direto ao ponto. Perguntei, Paracha, você pode me explicar um
pouco mais sobre o islamismo? Pois você sabe que a visão
ocidental é a de que todo muçulmano é radical, explode coisas...
Ele sorriu e iniciou uma longa conversa sobre sua religião. Contou-
me que acredita que a essência do cristianismo e do islamismo é
muito parecida. Os valores são praticamente os mesmos, a forma
como preservá-los é que muda. Perguntou-me se a verdade não é
um valor cristão, assim como o é para eles. Respondi: Sim, é claro.
Dessa forma, o inteligente Paracha iniciou sua explanação.
Explicou-me que devem rezar cinco vezes por dia (na alvorada, ao
meio-dia, no meio da tarde, no crepúsculo e no anoitecer).
Perguntei como faziam quando isso não era possível, quando
estávamos em patrulha, por exemplo... Disse-me que era possível
juntar algumas orações em um único horário, segundo o Alcorão.
E como é o relacionamento em casa, com a esposa e os filhos? A
primeira coisa que ele fez questão de deixar claro é que eu devia
entender que eles têm uma concepção de família diferente
daquela dos ocidentais. Como assim? Ele respondeu
pacientemente, dando-me um exemplo. Nós, por exemplo, nunca
vemos a esposa totalmente nua. Você nunca viu sua mulher nua?
Perguntei. Totalmente, nunca! Respondeu rindo, com a
tranquilidade de quem está falando alguma coisa absolutamente
normal... Custei a acreditar. Para eles, era normal... E as relações
sexuais? Como acontecem? Respondeu-me que sob total
escuridão ou entre panos... Mas pergunto a razão disso. Ele
explicou que se deve ao fato de que existem, na cultura dele, duas
pessoas que merecem os mais elevados respeitos: a mãe e as
irmãs. Se ele vir sua mulher nua, ele saberá como sua mãe e suas
irmãs são na intimidade, quebrando um encanto de respeito e
reverência quase sagrada. Mas de imediato, ele fez questão de
enfatizar que existiam vários tipos de “leituras” e de
procedimentos em relação aos temas que tocamos. É
compreensível que as variações, dentro dos limites impostos pelas
leis peculiares do islamismo, sejam uma realidade. Certamente,
aquela explanação era fruto da visão dele, embora os preceitos da
religião fossem únicos. Lembrei-me de católicos mais radicais,
como a Opus Dei e aqueles pertencentes à Tradição, Família e
Propriedade. Tudo dependia muito da criação e do país em que se
vivia. Os que moram no seu país, no Irã, no Iraque e no
Afeganistão levam as regras do Alcorão de forma mais rígida. Já
em outros lugares, como no Dubai, são mais condescendentes,
mas sem perder a essência.
Perguntei sobre a poligamia. Segundo entendi da explicação
dele, cada homem pode ter até quatro mulheres. Mas existem
regras: o homem deve ser capaz de sustentar em boas condições
todas elas; cada uma deve morar em uma casa ou, se não for
possível, em quartos separados numa mesma casa. Amigos do
Brasil, esqueçam as tórridas fantasias com mais de uma mulher!
Cada noite ele deve passar com uma delas, não podendo “dormir”
com duas ou mais ao mesmo tempo. Não perguntei, mas torci
para que os outros três dias da semana fossem de descanso para
o pobre homem! Qual a razão dessa regra que permite até quatro
mulheres? Simples: como desde o início muitos homens morriam
em guerras ou no sustento da casa, muitas mulheres ficavam
viúvas e seus filhos órfãos precocemente. Como na sociedade
deles é difícil uma mulher sustentar filhos sem um homem, isso
acarretava enorme problema social. Um homem com até quatro
mulheres foi uma solução viável e aceita.
Paracha, com a paciência de um beduíno que atravessa um
deserto, continuava a responder às minhas inúmeras dúvidas.
Contou-me sobre a razão da proibição do álcool no islamismo e de
algumas comidas. As comidas e bebidas são divididas em Halal,
Haram e Mashbuh. Halal vem diretamente do Alcorão, significa
“permitido ou lícito”. Haram é o oposto, ou seja, significa
“proibido ou ilícito”. Finalmente, Mashbuh vem do árabe e
significa “duvidoso ou suspeito”. Desses três termos, vem a
classificação dos alimentos islâmicos. Um alimento Halal pode e
deve ser consumido pelos muçulmanos. Leite de vaca, de ovelhas,
de cabras ou de camelas, mel, peixe, plantas, legumes frescos,
frutas frescas ou secas, leguminosas, grãos, animais, desde que
não sejam carnívoros, como bovinos, ovelhas, cabras, galinhas e
outros são Halal. No entanto, devem ter sido abatidos segundo as
leis islâmicas. Para abater um animal e se alimentar dele, ele deve
ser morto por um muçulmano, que deve apoiar o animal no chão
e cortar a garganta de modo a não ficar dúvida de que os vasos
maiores foram rompidos. Nesse momento, ele deve falar Bismiiah
Allah-u-Akbar (algo como em nome de Alá). Contou-me que,
mesmo quando se caçam animais com uma espingarda, ao se
disparar o tiro mortal, deve se dizer: “Em nome de Alah!”, como
forma de respeito às coisas da natureza e dádivas...
Quanto aos alimentos considerados Haram, eles são os
suínos e seus derivados, os animais carnívoros, qualquer tipo de
sangue e derivados, animais que, mesmo sendo Halal, não foram
mortos da forma islâmica, os répteis e os insetos, animais abatidos
em nome de outro que não seja Deus, carcaças de animais mortos
antes do abate normal, álcool e derivados, como vinho, licores,
uísques etc. Os alimentos considerados Mashbuh devem ser
evitados. São, por exemplo, a gelatina, os emulsificantes, gorduras
animais e outros.
Tendo em vista a riqueza de detalhes e a especificidade,
perguntei como aquilo tudo fora determinado. Segundo Paracha,
por meio dos chamados Fatwa. Este termo, proveniente do árabe,
tem um significado amplo. O mais aceito é traduzido como “dar
uma resposta satisfatória em relação a certo assunto”,
esclarecendo a aplicação de uma lei islâmica. Somente alguém
sábio e com grande experiência de vida, além de profundo
conhecimento sobre o Alcorão, pode emitir um Fatwa.
Em outras oportunidades, entenderia por que o islamismo,
que vim a saber que significa “submissão”, ganha cada vez mais
adeptos, notadamente nos países mais pobres. Hoje a Indonésia é
o país que mais tem islâmicos no mundo. Um dos fatores que, em
minha opinião, favorece a expansão dessa religião, é a facilidade
de conversão. Qualquer pessoa que queira se converter deve
apenas dizer: “Testemunho de que não há outra divindade além
de Deus e testemunho que Muhammad é o mensageiro de Deus”.
Além disso, a simplicidade dos templos e facilidade de rezar em
qualquer lugar contribui para isso. Mas, de qualquer modo, ainda
permaneço achando que é uma religião muito complexa para ser
assimilada facilmente por ocidentais. Daí, em última instância, o
choque que ela provoca em nós.
Quanto ao sexo, ainda descobri que existem severas leis na
sua consumação. Sexo anal e com a mulher menstruada é
terminantemente proibido.
No final, ele me disse que também não compreendia bem a
sociedade ocidental, mas a vinda dele para essa missão mostrou-
lhe que não se trata de uma sociedade destruída moralmente.
Disse que, antes de vir para cá, havia aprendido que todo bar ou
casa noturna era um antro de perversão, onde mulheres e bebidas
eram oferecidas aos borbotões. Viu que isso não era verdadeiro.
Inclusive, viu que é possível ir a um bom piano-bar, tomar bebidas
sem álcool, ouvir boa música sem ser importunado por mulheres
ou qualquer outro costume que não seja compatível com as
crenças islâmicas. Disse-me ainda que era uma troca de
conhecimentos muito boa, pois ele quebrara algumas ideias
equivocadas que haviam se formado em sua mente ao longo dos
anos sobre a nossa cultura. Além disso, deixou claro, mais uma
vez, que os padrões de exigência do islamismo mudam de região
para região, embora não devesse ser assim.
Sem dúvida alguma, essa foi uma importante lição que
aprendi por lá. Respeitar as diferenças é fundamental! Não se
trata de abrir mão dos nossos costumes em detrimento de outro
alienígena, mas aprender formas diferentes de ver um mesmo
aspecto da vida. Não que a gente vá mudar, pois esse contato
cultural é transitório; contudo, é uma oportunidade fabulosa de
quebrar paradigmas e meias verdades.

Meus dois amigos mais próximos na época em que estava


em Bouaké, além do Bagna, eram Nair e Paracha. Era uma
amizade curiosa, pois a Índia e o Paquistão vivem em estado de
guerra latente, inclusive com baixas todos os anos, na região da
Caxemira. Contudo, os dois mantinham uma convivência fraterna
e fidalga.
Ambos os países nasceram durante a Guerra Fria, possuem
artefatos nucleares e disputam uma região limítrofe chamada
Caxemira. O motivo da discórdia é uma terra inóspita entre os dois
países, onde 90% do território é tomado por montanhas. O
problema começou em 1947, quando Hari Singh, marajá da
Caxemira, solicitou apoio da Índia para se contrapor a uma
invasão de elementos da tribo Pathans, aproximando-se dos
indianos. Com o passar do tempo, o Paquistão brigou nos
organismos internacionais para que fosse feito um plebiscito
perguntando se a população queria ser indiana ou paquistanesa.
Como cerca de 2/ 3 do gentio que vive na região é muçulmana,
seria muito provável que a Índia perdesse o território na
eventualidade do plebiscito. Sendo assim, a Índia foi contra a
realização do pleito. Esse impasse levou a uma rebelião na região
e a duas guerras entre os dois países. Uma em 1965 e outra em
1971, além de estimular a manutenção de grande número de
tropas nas fronteiras. Nessas lutas, estima-se que até hoje mais de
30 mil pessoas já morreram.
Mas, na desolação da África, diante de tantos problemas
mais urgentes e da necessidade de espírito de corpo no team site,
via os dois rindo, comendo e trabalhando juntos, superando
qualquer diferença... Uma lição para nós que muitas vezes
acabamos com uma amizade, com um casamento, com uma
sociedade ou qualquer outra associação por muito menos do que
uma guerra. Paracha e Nair foram exemplos admiráveis para mim
sobre a possibilidade de convivência entre culturas diferentes.
Por falar em cultura, aprendi muito sobre a multiplicidade
linguística africana por intermédio do Capitão Issa, do Níger.
Estávamos realizando uma patrulha de longo alcance em direção
à Daloa, com duração de mais de um dia, quando ele colocou uma
fita com músicas típicas da região onde vivia. Era um som
diferente de tudo o que já havia escutado. Tratava-se de uma
conversa, longa conversa, musicada, com uma melodia agradável
que, mesmo sem que eu pudesse entender nada, revelava o
estado de ânimo de quem cantava, ora entristecido, ora
esperançoso, muitas vezes apaixonado. Perguntei: Que língua é
essa? Ele riu e disse, bem devagar: Dioula, a língua principal da
região em que estamos baseados. Issa continuou me explicando
que aquela música, na verdade uma história oral de um jovem e
de uma jovem (Fifi, era o nome dela) que pretendiam se casar e
se perguntam sobre as dúvidas naturais que antecedem qualquer
casamento em qualquer parte do mundo, era uma tradição oral
de muitos povos africanos. O Dioula pertence ao mesmo ramo de
outra língua, chamada Bambara, comum no Mali e na Guiné,
fronteira norte da Costa do Marfim. Não confundir com Diola que,
embora tenha som e grafia similar, pertence ao grupo “bak” e é
falado no Senegal a na Gâmbia, assim como em Guiné-Bissau.
Aprendi muito sobre o povo africano com o paciente Issa, o
velho capitão, com seus 56 anos de idade, que vivia apresentando
problemas estomacais. Pessoa muito boa e amiga. Perguntei
sobre as cicatrizes que tinha no seu rosto. Pequenos cortes
horizontais e simétricos na altura da orelha. Disse-me que é
comum na África. Realmente, vira muitas e muitas pessoas com
tais marcas, inclusive em Abidjan, mas nunca havia me atrevido a
perguntar para ele sobre as que ele tinha. Vê isso? Mostrou-me
suas pequenas marcas na face. Sim, é claro... respondi,
aguardando a explicação. E recebi mais uma aula sobre a cultura
africana. Tratava-se de marcas feitas quando se é jovem. Cada
traço, direção, tamanho e desenho representa uma tribo
específica, uma etnia ou local de nascimento. Serve para que um
reconheça o outro como irmão étnico, ultrapassando as fronteiras
políticas. Entre eles, também é muito natural os homens andarem
com as mãos dadas. Volta e meia, um africano me pegava e me
puxava para conversar e não largava minhas mãos. Aos poucos
arrumava um jeito de soltar as mãos, fingindo procurar algo nos
bolsos ou ver as horas.
Seguia no meu aprendizado simplório e produtivo. A cada
dia aprendia um pouco mais e via que era um círculo infinito. Não
me sentia, nem pretendo me sentir, capaz de ensinar nada a
ninguém sobre a vida. Cada um escolhe o seu caminho, a sua
senda. A única coisa que posso dizer é que cada um de nós precisa
sair do seu mundo, algumas vezes limitado por opção, outras nem
tanto, e abrir algumas janelas interessantes, como provar comidas
típicas de um país distante, apreciar e entender a cultura de
outros povos... Não há necessidade de empreender uma longa
viagem, uma escalada ao Everest ou participar do rali Paris-Dakar.
Lógico que essas atividades são muito produtivas e podem mudar
as pessoas de forma indelével. Mas, na sua impossibilidade, há
somente que refletir sobre o que é realmente importante na
nossa vida e o que não tem o menor valor. Evidentemente que
viajar torna a lição mais densa.
A leitura diversificada e a simples observação são bons
começos. Passados os meus 12 meses no continente onde,
presumivelmente, o Homo sapiens surgiu, vejo que mais
importante do que TER alguma coisa é SER alguém útil à família, à
sociedade e ao país. O que realmente importa é fazer a diferença,
independentemente do que você faça.

As despedidas eram outro aspecto que fazia parte da rotina


de um team site. Todos os meses havia gente chegando e indo
embora. Naquelas oportunidades, fazíamos jantares muito
simples de despedida para agradecer o trabalho e desejar sorte
aos que partiam.
Um desses jantares de despedida teve lugar no L’Oriental,
onde almocei quando cheguei a Bouaké e já comentei sobre os
baldes para lavar as mãos. Apresentaríamos as nossas despedidas
aos dois team members que haviam sido transferidos, os Majores
Gady, também conhecido como old man (o velho), do Iêmen, e
Morados, das Filipinas. Daquela vez, prestei mais atenção no,
digamos assim, design do restaurante, pois em novembro estava
muito assustado para isso. O lugar devia ser agradável antes da
guerra. A placa dizia que servia pizza, comida chinesa, japonesa e
outras. Naquele momento, servia apenas um peixe delicioso e
comum na região, chamado Capitaine, e poulet (frango) avec
sauce, acompanhados de arroz e Alocô (a nossa prosaica banana
frita). Depois de finda a guerra, apresentava um ar decadente,
com velhos quadros misturados a um calendário com mulheres
seminuas e uma parede com a pintura rosa ou salmão
descascando. Sentia-me no bar do Rick, do filme Casablanca, só
que bem mais vazio, sem Sam tocando As time goes by e Ingrid
Bergman derramando lágrimas por Humphrey Bogart. Também
seria pedir demais...
O garçom parecia mais entediado do que vendedor de picolé
no inverno do Ártico. De qualquer forma, para nós era uma
ocasião particular toda pequena festa, pois eram raras e tinham
um significado sempre especial para quem vive longe de casa e
em condições incomuns. A luz acabou pouco antes de chegarmos
ao restaurante. Isso não foi visto como um bom sinal, pois falta
generalizada de eletricidade podia significar que algo ruim estava
para acontecer. Via de regra, quando ocorria algum conflito mais
sério, a primeira coisa que acabava era a luz. Tentei ligar para o
Januário e para o Barreto, mas não consegui. Não escondíamos
certa apreensão... Ficamos sabendo que o país todo estava sem
luz, mas a causa foi um mal funcionamento de um equipamento.
Essa imprevisibilidade fazia parte da nossa rotina. A festa
continuou sob a luz de dezenas de velas...
Havia uma tradição entre os MILOBS do nosso team site:
quando um deles ia embora, recebia uma bandeira da ONU com
mensagens dos seus companheiros de missão escritas nas laterais
do símbolo da ONU. Elas foram entregues naquele dia, durante o
jantar. Escrevi para cada um deles o seguinte:

Prezado Gady, o velho,


Existem homens que têm a missão de colaborar com o
mundo tornando-o melhor e mais pacífico. Você pertence a esse
grupo. Foi uma honra tê-lo conhecido. Obrigado pela amizade,
bom humor e boa companhia nesta missão. Boa sorte! Um abraço,
Major Heitor.

Morados,
Para nós, militares, a coisa mais importante é cumprir a
missão. Você cumpriu a sua no team site de Bouaké. Parabéns pelo
profissionalismo demonstrado e obrigado pela amizade. Um forte
abraço, Major Heitor.
Palavras simples, diretas e sinceras. Era assim que nos
despedíamos daqueles que já tinham cumprido a missão no team
site. Não sem um pouco de inveja. Alguns escreveram em árabe e
outros em francês seus desejos de sorte e realização para os
nossos companheiros que se despediam. Eu, obviamente, escrevi
em inglês, afinal, meu árabe estava meio enferrujado... E assim
passei mais alguns dias na África...
Tempos depois, em abril de 2006, seria transferido para
Abidjan, onde ficaria até o fim da minha missão. Receberia
despedida semelhante num restaurante pertencente a um
marroquino que tinha uma linda filha de 6 anos que sempre ficava
nos rodeando. Chamava-se Mahuá.
Capítulo 11
Servilismo, Costumes, Gastronomia e outras coisas
Um dos aspectos que mais salta aos olhos quando se está na
África, falando de comportamento humano, é o servilismo de boa
parte do povo. Muitas pessoas humildes, ao verem alguém com
mais posse – seja branco ou negro –, adotam uma postura servil,
quase humilhante. É o exemplo do cumprimento que alguns deles,
notadamente os mais humildes, faziam quando me encontravam.
Quem me explicou o significado foi um padre. Além de eles
estenderem a mão direita, como nós fazemos normalmente, eles
apoiam a esquerda no antebraço direito. Segundo me ensinaram,
era um sinal de reconhecimento da minha, por assim dizer,
superioridade sobre ele; ou seja, ele se considerava uma espécie
de servo ou coisa parecida. Esse comportamento tornou-se
irritante para mim. Era como se eles já aceitassem, de antemão,
que nós éramos melhores do que eles, que a vida decidira os
nossos destinos de forma diferente, afortunando-nos com algum
dinheiro e a eles simplesmente esquecendo-os. Havia imensa –
bota imensa nisso! – dificuldade para eles entenderem que o fato
de alguém ter mais dinheiro não significava que deviam adular
essas pessoas, servindo-as de maneira quase escrava.
Em Bouaké, assim como aconteceria em Abidjan, tínhamos
dois seguranças contratados pela ONU que tomavam conta da
nossa casa enquanto estávamos fora. Eles eram pagos para
guardar, evidentemente, a casa. Nada mais. É verdade que na
maior parte do tempo, passavam o dia praticando um dos
esportes nacionais: dormindo! Mas, quando chegávamos, sem
culpa ou desculpas, acordavam e vinham celeremente para o
nosso carro. Só faltavam nos carregar até os quartos. Abriam as
portas, pegavam nossas mochilas, acendiam as luzes. Além disso,
lavavam o carro, todos os dias, com sol ou chuva, de forma que,
quando estávamos para sair, ele estava sempre limpo.
Aquilo realmente me incomodava. Decidi acabar com aquele
comportamento, pelo menos na casa em que morava. Tentei
explicar para o nosso guarda-noturno que carregar as minhas
coisas, abrir e fechar portas e outras coisas não era
responsabilidade dele. Ele me ouvia, abaixando a cabeça a cada
frase minha. No final ele me perguntou:
– O patrão não gosta de mim?
Entendera o recado. Recusar a ajuda deles era um sinal de
desaprovação sobre o seu trabalho. Sinal de inimizade. Solução:
deixei-os carregarem minhas coisas todos os dias, mas sempre
pegando um ou outro pacote também. Fingia que estava
assoberbado de coisas e realmente necessitava da ajuda deles.
Mentira, podia carregar tudo sozinho. De qualquer forma, aquela
relação desigual me fazia mal. Sentia-me explorando cada um
deles. Afinal, não os pagava para fazer aquilo. Talvez estivesse,
inconscientemente, carregando a culpa de anos de exploração
desmedida a que foram submetidos. E olha que eu nem era
nascido na época do Congresso de Berlim!
Dormir, como já disse, é quase que uma instituição nacional.
Certo, todos precisam dormir! Mas na Costa do Marfim é alguma
coisa no mínimo surreal. Eu não sei a causa, talvez faltasse uma
boa alimentação, vitaminas e outros componentes necessários à
reposição humana; mas é fato que lá se dorme muito. Há até uma
frase comum e motivo de brincadeira entre os estrangeiros
quando se pergunta por que um marfinense que deveria estar em
algum lugar não compareceu: Il est très fatigué ou il est malade![
33] Mas é uma verdade. Nunca vi lugar para ter tanta gente,
supostamente, cansada ou doente. Aliás, antes de ficar doente,
eles já se sentem doentes. Está no inconsciente deles. Nunca, mas
nunca mesmo, eles estão 100% bem. Tente perguntar a um deles
se está tudo bem. A resposta será, inexoravelmente, Je suis
comme ci comme ça ou Ça va un peau[ 34]. Eu, só para provocar,
perguntava: Por que não totalmente bem? Está se sentindo mal?
Não... respondiam. Então você está três bien! Insistia. Mas não
adiantava, no outro dia ele já estaria comme ci comme ça...
Durante viagens ou patrulhas, descobrimos que era normal
caminhões pararem nas estradas para que os motoristas
pudessem dormir. O problema é que, como não havia
acostamento, eles simplesmente deixavam os enormes veículos,
cheios de carga, na rodovia. Muitos acidentes ocorriam em função
dessa prática. Se você quisesse continuar a viagem, era seu
problema desviar, bem devagar, de cada um que encontrasse pela
frente.

Falando de dança, ela faz parte do riquíssimo leque cultural


daquele povo. Existem as danças tradicionais, que percorreram
séculos intactas e legaram ao povo africano belíssimas
demonstrações culturais. Pude assistir, em algumas aldeias, à
pujança dessa demonstração cultural. Gostei imensamente do
que vi.
Muitas, ao contrário do que pensava, eram compostas por
complicados passos, bem como coreografias elaboradas. Sempre
bem-vestidos, com roupas típicas, e portando, algumas vezes,
galhos de plantas ou folhas presas às vestes, contavam alguma
história ou simplesmente agradeciam a alguma divindade
animista na qual eles acreditavam.
Mas as danças mais modernas já haviam inundado a Costa
do Marfim, competindo com as mais tradicionais. Sem dúvida, a
mais conhecida era o Fouka Fouka. Depois de ver inúmeras
pessoas dançando sob o som de batidas secas e repetitivas, onde
se mudava somente a letra, defini a dança como uma espécie de
Funk africano. Algumas semelhanças me fizeram optar por essa
conclusão. Assim como no Funk, as mulheres que dançam o Fouka
Fouka exibem seus traseiros como chamarizes para não sei bem o
quê. Similarmente ao Funk, o que conta é o volume com que a
música é tocada. Impossível conversar num ambiente em que o
Fouka Fouka é tocado. Além disso, o amontoado de gente faz com
que as cidades indianas pareçam desertos populacionais quando
comparadas a um baile em que o Fouka Fouka esteja sendo
executado, corroboravam minha tese: Fouka Fouka e Funk (note
que ambos começam com “F”) são parentes próximos. Em Abidjan
já existe, acredite, até um desodorante com o nome da tal dança!
Se eu gosto de Funk? Melhor deixar para lá...
Junto dos lugares em que o Fouka Fouka toca, normalmente
há uma vastidão de Maquis. Trata-se de um tipo de bar, mais
conhecido como “pé-sujo” no Brasil, só que construído em
palafitas ou armações de madeira, bastante rudimentares. Lá,
disputando espaço com propagandas de cerveja ultracoloridas e
fixadas nas treliças de madeira, podem-se tomar vários tipos de
bebidas, principalmente as alcoólicas. Uma bebida típica é o
Koutoukou, feito à base de açúcar e que pode deixar alguém
bêbado em poucos copos. Há também outras sem álcool, como a
Gnamankoudji e a Bissap. Esta última, eu provei e achei muito
boa. Dizem que auxilia na prevenção de problemas estomacais.
Além disso, há, por toda parte, o Attéké, comida comum, à base
de mandioca e peixe, bem como uma massa feita de bananas
chamada Foutou. Mais ao norte, encontrei um prato realmente
diferente. É feito de, acredite, uma espécie de ratazana enorme,
vendida à beira das estradas. Tira-se o couro e as vísceras, e
cozinha-se ou se assa, com cabeça e tudo. Quando vi os dentinhos
do pobre rato saindo da boca antes de comer, não me contive e
acabei arrumando uma desculpa para recusar o prato.
Obviamente, a higiene não era o forte, mas as refeições eram uma
excelente oportunidade de conhecer um pouco mais dos
costumes.
Mas a “praticidade” africana em comer de tudo tem uma
razão. A escassez de comida acompanha o povo desde os
primórdios. Consequentemente, comer de tudo e sem
desperdício é regra. Muitas vezes, nem determinados ossos de
peixe são jogados fora. São triturados e comidos. Meu amigo
Bagna, por exemplo, cozinhava na nossa casa de maneira
extremamente pragmática, se é que se pode dizer isso de uma
refeição. Ia jogando tudo numa mesma panela: arroz, peixe
defumado inteiro, banana, cebola, alho, tomate. Esquentava,
colocava um pouco de sal e, voilà, estava pronto!
Em função da imensidão de tropas alienígenas que estão por
lá e das constantes migrações que a África experimenta, foi
possível comer outros pratos típicos de muitos países. No
restaurante marroquino em que comia em Bouaké, experimentei
o famoso cuscuz marroquino. Foi uma experiência gastronômica
agradabilíssima. O prato consiste em uma farinha grossa, mas
surpreendentemente macia ao se mastigar, acompanhada por
uma pequena travessa com carne de ovelha cozida durante horas,
até se tornar macia como manteiga. No molho, há batatas,
cenouras e tomates. Com um leve toque de pimenta, somado a
outros ingredientes que não pude identificar, resultou num gosto
muito especial. Como sobremesa, comi estrelas de menta, feitos
à base de farinha e, obviamente, menta. Por fim e como é tradição
entre eles, chá de menta, é claro. Nesse mesmo restaurante,
conheci um sanduíche muito comum por lá, de origem libanesa,
acho eu. Chama-se chawarma. Trata-se de uma massa de pão bem
fina, que envolve carne bovina ou de frango, com pepino, tomate
e pimentão, bem temperados. Comi muitos chawarma quando
estava de serviço...
O meu amigo do Iêmen, Abdulkarim, optou por algo mais,
digamos, extravagante: miolo de vaca. Quase desmaiei quando vi
o tal prato chegando. Para completar, o formato era de um tampo
de cérebro. Achei melhor deixar para experimentar mais tarde...
Outra comida interessante é a de Bangladesh. Sempre muito
apimentada, é de sabor delicado e intenso. O dia em que provei
foi curioso.
Havia recebido a missão de inspecionar algumas instalações
dos rebeldes na cidade de Katiola, no norte da Costa do Marfim.
Após terminarmos a verificação dos armamentos e equipamentos
militares, iniciamos nossa viagem de volta. No meio do caminho,
o meu comandante na época, Tenente-Coronel Aziz, de
Bangladesh, perguntou-me se conhecia a comida do seu país.
Disse que não. Então, sem maiores explicações, parou numa
cidade próxima e disse-me que tinha um amigo que iria nos
oferecer um almoço. Na realidade, ele já estava com tudo
engrenado. Só eu não sabia...
Encostamos o carro na casa do tal amigo. Casa simples, mas
de gente muito boa e hospitaleira. O dono, de nome Munir, era
paraplégico (sofrera um acidente automobilístico em 2000).
Recebeu-nos muito bem e ofereceu um arroz com canela
maravilhoso, peixe e frango. Mais tarde, descobriria que é uma
tradição do Bangladesh servir carnes variadas, misturando-as.
Além disso, havia uma salada de ervas muito gostosa, mas não
consegui identificar exatamente o que era. O que pegou foi a
pimenta. Nunca bebi tanta água na minha vida, mas depois me
acostumei. É um sabor diferente. Impressionou-me foi a
capacidade de o povo oriental em mesclar salgado com doce, sem
ficar enjoativo, dando um toque especial, quase perfumado às
refeições.
Ao final da refeição, muito bem servida, havia deixado um
pouco de comida no prato, pois a pimenta estava fazendo seus
estragos na minha boca. Ao ver aquilo, Aziz disse-me,
discretamente: Coma tudo, pois, para nós, deixar comida no prato
pode significar uma punição de Alah após a morte. Pergunta se eu
não comi tudo! No final, ganhei uma lata de Ackee, uma fruta
típica da Jamaica que Munir produzia industrialmente.
Durante esse almoço, chamou-me a atenção o
comportamento das mulheres na casa. Havia, além de nós e
Munir, duas mulheres. Uma era sua esposa e outra sua filha.
Desde o momento em que chegamos, elas nos cumprimentaram
formalmente e sumiram. Apenas ouvíamos suas vozes e, vez por
outra, demonstrando a curiosidade por ver um brasileiro,
colocavam os olhinhos no portal da cozinha. Vestiam-se com seus
reluzentes e elegantes Hijab. Lembro-me que a esposa de Munir
usava um amarelo, com estampas muito bonitas. Usavam o
tradicional véu sobre a cabeça. O uso do Hijab, vestimenta
islâmica feminina, é obrigatório para as mulheres quando existem
homens na casa que não o marido ou alguém muito íntimo. Essa
vestimenta, que comporta o lenço sobre a cabeça, deve seguir
alguns detalhes, como cobrir todo o corpo, não ser transparente
ou justo, não delinear as partes do corpo, principalmente as mais
sensuais, e não devem se parecer com aquelas usadas pelos
homens. Alguns adereços, principalmente de ouro, são
permitidos. Os lenços são divididos em dois tipos: os leves,
chamados de duppata, e os mais pesados, grossos, conhecidos
como chadar. Em casos mais extremos, como no noroeste do
Paquistão ou em algumas áreas do Sudão, as mulheres usam a
burqa, que cobre a cabeça totalmente. Nem na praia elas tiram o
Hijab. Vi, inclusive, algumas mulheres correndo e jogando tênis
vestidas com o Hijab.
Atenciosas, preparavam a refeição e a mesa. Tudo com
muito cuidado, com muita delicadeza; mas, na hora de comermos,
a surpresa: elas não poderiam, de forma nenhuma, dividir a mesa
com outros homens que não fossem da família. Para mim, mais
uma situação inusitada. Nós, homens, nos regalando com a farta
comida, e elas, mulheres, escondidas na cozinha, aguardando que
terminássemos para poderem comer!
À parte dessa diversidade gastronômica, havia outro
ingrediente que me surpreendeu. Nas várias vezes em que comi
com pessoas do Bangladesh, da Índia e da Nigéria, notei que havia
certo constrangimento em usar talheres. Vi que não era comum o
seu uso e, em algumas oportunidades, usava-se somente em
respeito a minha presença ou a de outro estrangeiro. O normal
era comer com as mãos, misturando alimentos sólidos com
molhos. Em três oportunidades, comi com as mãos, pois
simplesmente não havia talheres! Não foi uma experiência muito
agradável. Posteriormente, veria muitos marfinenses comendo
em bacias comunitárias com as mãos...
Ah! Sobre o guarda-noturno da casa? Desisti de acordá-lo
quando chegava. Achei que era mais seguro mantê-lo dormindo
durante o dia para que estivesse disposto no caso de alguma
eventualidade!
Capítulo 12
Algumas Histórias Pessoais
Conhecer pessoas também fez parte dos meus dias na África.
Não poderia ter sido diferente, pois o contato humano era intenso
durante a realização das nossas tarefas. E, como pessoas são feitas
de histórias, acabei conhecendo muitas. Algumas triviais, porém
não menos importantes; outras surpreendentes. Muitas,
infelizmente, tristes.
No Natal de 2005, não consegui ir para minha casa. Foi uma
sensação horrível passar aquela data especial longe dos meus
familiares. Mesmo sendo militar, aquela seria a primeira vez que
aquilo ocorreria. Até então, tinha sido um afortunado. Passar
sozinho aquele Natal na África foi uma das piores sensações que
vivenciei. Poucas vezes a tristeza se apossou de mim com tanta
intensidade. No meu team site, à época, o único cristão era eu. Os
demais eram muçulmanos. Contudo, como não havia remédio,
decidi minorar o impacto.
Haveria uma patrulha de longo alcance em direção ao oeste,
mais precisamente para a cidade de Daloa. Como sabia que essa
cidade ficava perto de Duékoué, onde o Januário estava baseado,
voluntariei-me para fazer parte dela. Quando cheguei a Daloa,
falei para o meu comandante que numa dessas coincidências que
só os horóscopos mais avançados poderiam acertar, meu
companheiro Januário estava também na cidade e me convidara
para passar o Natal com ele em Duékoué! Ele, meio a contragosto,
autorizou. Claro que havia combinado tudo antes!
Fomos para a “megalópole” de Duékoué, cerca de 70 km da
fronteira com a Libéria, rezando para que nenhum Jovem Patriota
resolvesse se “animar” e fazer um Natal diferente, sequestrando
uma viatura da ONU. Dentro do veículo, junto com Januário e eu,
estava uma dessas pessoas com histórias que valem a pena
conhecer: o Capitão Petar Mihanovic, da Croácia. Falante em
excesso, rosto queimado pelo sol, cabelos finos e grisalhos, com
rugas prematuras muito profundas, foi o tempo todo conversando
comigo, na curta vigem de pouco mais de uma hora. Combatera
na guerra da Bósnia por cinco longos anos. Para ele, tudo o que
via na África era normal, muitas vezes menos impactante do que
o genocídio que conhecera no seu país nos loucos anos de guerra
fratricida e étnica que vivenciara. De início achei exagero, pois, a
mim, tudo o que via me deixara bastante consternado.
Nossa amizade estreitou-se e, por diversas vezes durante a
missão, nos encontramos e batemos longos papos, sempre sobre
a minha guerra, como ele gostava de dizer. A sua expressão
recorrente, antes de iniciar qualquer assunto, my friend, ficará
gravada na minha memória sempre que me lembrar daquele
croata louco e amigo. Seus olhos revelavam, indiscutivelmente,
sofrimento e tristeza por algo que nem ele mesmo sabia explicar.
Sua fuga contra os horrores vivenciados e gravados tinha um
nome: fotografia. Guardava mais de 3 mil fotos no seu
computador, tiradas durante a missão. É um excelente fotógrafo.
Sua sensibilidade e busca por ângulos e momentos que
revelassem movimento eram obsessivas. Sempre com a máquina
a tiracolo, não perdia uma única oportunidade. Disso, resultaram
belas imagens sobre o povo marfinense. Como também sou um
entusiasta da fotografia e tinha muitas delas em meu
computador, nossa amizade cresceu naturalmente. Mas viam-se,
de tempos em tempos, as marcas que a guerra deixara nele. A
ansiedade era a mais evidente. Contava, como que para expiar
sentimentos represados, as cenas horrendas que vira, como a de
homens queimados vivos em carros de combate, ou de famílias
inteiras mortas em bombardeios. Falava não com o desdém
daqueles que, por terem ido a uma guerra, se acham melhores
que os demais. Falava com a convicção de que aquilo o mudara,
bem como o seu povo, para sempre. Sabia que estava
amaldiçoado a viver aquilo para sempre, toda vez que seus olhos
se fechassem...

Conheci oficiais muito experientes em missões da ONU.


Muitos já mostravam certo descrédito, ceticismo com aquele tipo
de trabalho. Possivelmente, por verem em diversas partes do
mundo pessoas sofrendo e não poderem solucionar o problema.
Esse é um desafio para quem resolve aceitar participar de missões
de paz: a impotência em solucionar os problemas de uma vez por
todas. Muitas vezes, sabíamos que nosso trabalho era somente
um paliativo, pois as demandas e os interesses eram tão grandes
que nem mesmo uma instituição como a ONU, rica e poderosa,
podia solucionar no curto prazo. Em alguns momentos, senti-me
enganando a população. Isso me fazia mal, pois eles depositavam
uma esperança imensa em nós, como se fôssemos algum tipo de
messias trazendo alguma boa nova salvadora. Falavam-nos
excitados dos seus problemas, revelando a dimensão exata do
sofrimento e de suas necessidades a fim de que não perdêssemos
nenhum detalhe em nossos relatórios. Eu anotava tudo, preenchia
as colunas dos relatórios formatados que recebíamos, mas sabia
que pouco poderia fazer e pouco seria feito, pois aquela área em
que estava não era prioridade para a ONU, em função do seu
planejamento estratégico que, inevitavelmente, tinha que
estabelecer prioridades. Difícil de entender no início, mas com o
tempo, cedi à realidade: não era possível fazer tudo por todos. Os
mais experientes, já blindados contra esse tipo de frustração,
pareciam mais tranquilos em relação a esse tipo de sentimento.
Mas, mesmo neles, entrincheirados em camadas e mais
camadas de blindagens psicológicas, encontrei bonitas histórias,
como a de um oficial sul-americano que se tornaria um bom
amigo. Ele falava um português perfeito, o que me fez duvidar se
não era um brasileiro disfarçado, pois a primeira vez que o vi
estava paisano. Morara na fronteira com o Brasil por muitos anos,
o que justificava sua fluência no idioma. Sua experiência e suas
mazelas provocaram em mim grande respeito e admiração.
Veterano de cinco missões de paz, três casamentos e uma filha
com síndrome de down, era uma pessoa que realmente vivera
intensamente os sentimentos mais profundos que um ser humano
pode experimentar. Bons e ruins! Disse-me, em Grand Bassan
(uma praia perto de Abidjan), sempre com a voz tranquila e
serena, que em Ruanda pensou, por quatro vezes, que fosse
morrer. Na realidade tive certeza de que iria morrer nessas quatro
oportunidades. Pensei que a única coisa que podia fazer era rezar
e gravar mensagens para os meus filhos e minha mulher. Você
sabe o que é se despedir por meio de uma fita cassete dos seus
entes queridos e ter certeza de que nas próximas horas vai
morrer? Perguntou-me, sempre tranquilo e olhando para mim...
meu amigo, acostume-se com o risco constante, a cada curva, a
cada movimento... Continuou contando-me a sua saga em
Ruanda, até que chegou ao ponto em que tomou um tiro de
metralhadora .50 nos dedos e teve, ele mesmo, que recolher dois
deles do chão e costurar enquanto ouvia tiros vindo de todas as
direções, pois o ataque contra tropas da ONU era intenso e não
chegaria socorro de imediato. Mostrou-me os dedos que quase
não aparentavam problemas, exceto pelo fato de não se mexerem
com normalidade. Não tive alternativa... Sabia que, se quisesse ter
a mínima chance de manter meus dedos, era costurando o que
era possível ali e deixando para o médico o resto do trabalho...
Continuou a conversa mostrando-me o quanto muitos de
nós somos fúteis diante da vida, exemplificando suas assertivas
com os próprios erros cometidos ao longo da sua vida. Na
verdade, algumas pessoas, como nós, precisam de experiências
desse tipo para entender melhor a vida. Concordo, com
humildade, com a tese do velho e desgastado coronel. Despiu-se
de qualquer capa, simplesmente abriu-se, na tentativa de passar
experiência para outros e evitar a repetição dos erros. Ali estava
um homem que aprendera o sentido da vida da forma mais
difícil... Aceitara aquela missão com o objetivo de poder pagar um
apoio mais adequado para sua filhinha com down. Esperava que
fosse a última e, assim que terminasse, poderia voltar em
definitivo para o seu país, abraçar sua filha e ver a vida seguir o
seu curso.

A avalanche de histórias continuava – humanas e sensíveis


histórias – atravessando os meus dias e chegando até Ismael.
Tratava-se de um garoto de 19 anos que ficava catando as bolas
na precária quadra de tênis em que eu, Casso (um major boliviano)
e Nair (meu grande amigo indiano) tentávamos, uma ou duas
vezes por semana, esquecer da dura rotina que tínhamos em
Bouaké. Chamou-nos a atenção o fato de ele falar um pouco de
inglês e vestir roupas de boa qualidade. Perguntamos se ele
gostaria de jogar dupla conosco. Quando ouviu nossa proposta,
parecia que havia ganhado na loteria! Sorrindo, não sabia se
calçava os tênis ou se agradecia... Disse-nos que não era gandula
do clube, mas sócio e gostaria de aprender a jogar tênis.
Desajeitado como todo adolescente, ficava preocupado com
qualquer bola errada que rebatia. Era um sofrimento pessoal cada
erro! Balançava a cabeça, gesticulava para os céus, pedia
desculpas... Nós ríamos e, ao mesmo tempo, ensinávamos como
segurar a raquete e como se posicionar na quadra... Filho de um
dos poucos médicos civis que ficaram em Bouaké depois do início
da guerra, tinha outros irmãos. Contou-me que teve a sua vida
familiar totalmente modificada com o conflito na Costa do
Marfim. Reclamou que, no Natal ou nas grandes festas, seus
familiares não podiam mais vir a Bouaké, pois agora moravam no
sul e, como o país estava dividido, as coisas ficaram complicadas.
Ia fazer faculdade em Bouaké, mas, como ela foi destruída com a
guerra, ia tentar ir para Dakar, no Senegal, em janeiro. Queria
estudar biologia. Seu irmão mais velho estava estudando na
França e sua mãe cuidava de um salão de beleza no bairro Air
France II, perto de onde morávamos. O jovem Ismael é apenas
uma tênue ilustração das consequências dessa guerra entre
irmãos, que só dividiu famílias e provocou êxodos...
Mas, se Ismael é, ao mesmo tempo, resultado negativo de
um conflito, ele também é esperança de renascimento. Sentia em
cada conversa com ele a vontade de modificar, de retornar as
coisas à normalidade. E o mais importante: a esperança de que
aquilo tudo iria acabar. Durante o tempo antes de ir para Dakar,
ele e outros jovens aprendiam informática – contou-me com
orgulho que já dominava o Office quase completamente – e
praticavam esportes. Via nele um grande futuro, pois, além de ser
um garoto privilegiado, seus pais estavam investindo o pouco que
sobrou de recursos na esperança de que Ismael e seu irmão
consigam superar o trauma da guerra e possam viver felizes no
país deles. Talvez, alguns desses meninos de hoje se tornem
pessoas importantes e influentes por lá no futuro; com uma lição
importante: a guerra não foi a solução para os problemas deles!
Talvez, e somente talvez, tenham aprendido que o uso da força,
em determinadas circunstâncias, nem sempre é a melhor solução.
De qualquer forma, são uma esperança nesse vazio de
perspectivas que muitos deles vivem.
Ainda em Bouaké, eu e Nair fomos convidados para
conhecer seus pais durante um jantar. Fomos muito bem
recebidos e comemos fartamente, como é o costume de lá
quando se recebem visitantes. Era uma casa simples e, anexo,
tinha o salão de beleza da mãe. Orgulhavam-se de cada filho e nos
mostravam fotos envelhecidas que tentavam, aqui e acolá, juntar
os cacos da vida deles numa disforme coleção.
Meses depois, já em Abidjan, encontrei Ismael vestido em
uma lustrosa camisa azul de mangas compridas, usando uma
gravata com listras bege, cinza e marrom, e com cabelos
penteados como se fosse uma espécie de John Travolta africano.
Estava radiante. Conseguira ser matriculado em um curso da ONU
sobre missões de paz. Abandonara a ideia de ir para Dakar e
pretendia, um dia, trabalhar nas Nações Unidas. Certamente, a
ONU ganharia muito com alguém como Ismael, conhecedor das
profundezas dos conflitos, trabalhando para ela. Torço,
sinceramente, para que Ismael trilhe um bom caminho e não seja
seduzido pela corrupção que grassa a África. Duvido que isso
aconteça, pois conheci muito bem a sua família e a educação que
ele recebeu.

Quando já estava trabalhando em Abidjan, conheci um


padre italiano que era a antítese de todos os que havia conhecido
na África. Ex-militar italiano, fumava o tempo todo. Usava sempre
camisas de botões, para fora da calça, parecendo um missionário
de causas perdidas. Com fisionomia cansada, marcas profundas
no rosto, cabelos escassos e barba por fazer, aparentava certa
desesperança com o mundo e com as coisas. Chamava-se Luciano.
Uma vez por semana aperfeiçoava nosso francês, entre uma e
outra história, entre um e outro cigarro...
Por intermédio dele, que se mostraria uma pessoa agradável
e de personalidade afável, conheci muito do povo africano. Foi por
meio dele que conseguimos andar por uma enorme favela em
Abidjan conhecida como Vridi.
Entretanto, antes de nos aventurarmos pelas vielas imundas
de Vridi, assistimos a uma belíssima missa católica realizada pelo
nosso padre Luciano. O templo, com enormes aberturas laterais,
como se fosse um ginásio de esportes, tinha bancos longos e
colocados organizadamente no espaço. No fundo e ao centro,
uma enorme cruz de madeira e um púlpito, também muito
simples. Havia numerosas crianças, controladas por uma mulher
extremamente rígida. Se alguma chorasse, era imediatamente
colocada para fora da igreja. Logo a apelidamos de sargentona. A
missa, rezada em francês, foi muito bonita. O coral, acompanhado
por tambores com batidas ritmadas, produzia uma música
agradável, que me dava uma sensação de tranquilidade muito
grande. As mulheres cantavam e batiam palmas, exibindo seus
boubou (roupa típica) de domingo. Cores e brilhos disputavam
lugar na minha retina. Padre Luciano, sempre em tom
monocórdio, falava para o público. Terminada a missa, tiramos
fotos com as crianças e iniciamos a nossa visita ao bairro.
Sempre atencioso, padre Luciano colocou dois “locais”
conosco e começamos o nosso passeio. Como era de se esperar,
o que mais vimos foi pobreza. Pobreza sufocante, pobreza imoral,
pobreza de fazer os meus olhos inundarem, mesmo que
secretamente. Aliás, chorar escondido foi meu “esporte” mais
praticado por lá. Mas, como sempre acontece nessas
circunstâncias, havia gente rindo, havia gente feliz, havia
esperança. Andamos horas, sob sol quente. Vi cenas curiosas,
como uma linda mãe carregando o filho e que pintara os olhos
dele, com uma espécie de rímel, realçando os olhos
arredondados, em formas de perfeitas amêndoas. Fotografei-os.
Mais para o interior da favela, paramos em um bar para nos
refrescarmos. Tomei uma cerveja compulsado pelo gentio e
sentei, muito rapidamente, numa mesa com o pessoal que estava
no interior do maquis. Perguntei de onde eram e, rapidamente,
responderam-me que tinham nascido em Burquina Faso.
Perguntaram-me, como sempre, se o Brasil iria ganhar a Copa do
Mundo. Respondi que não sabia, mas talvez a final fosse Costa do
Marfim contra o Brasil. Eles riram muito. Perguntei se 1 x 0 para o
Brasil estaria bom. Ao que eles, ainda rindo, disseram que não.
Melhor se for 2 x 0 para a Costa do Marfim. Terminei minha
cerveja e continuei a caminhada, acompanhado por amigos do
Brasil e um do Uruguai. O calor e o cheiro estavam me matando!
Chegamos à casa de um dos nossos guias. Até então, apenas
conhecêramos as ruas, os bares, o pequeno porto com seus peixes
sendo defumados, as ruas cheias de poças de água que
enlameavam tudo. As carnes de animais mortos para consumo
eram penduradas ao ar livre, sem nenhum cuidado mais especial
do que a tentativa inglória de alguns comerciantes em espantar as
moscas, milhares delas, com galhos de árvores. O cheiro de carne
e de animais mortos tornava a respiração difícil.
Na casa do guia, vi a dura vida de quem não tem quase nada.
A hospitalidade equilibrou a falta de conforto no interior. Fez
questão de mostrar o seu filho, deitado em um colchão roto,
esfarrapado e cheio de enormes manchas; possivelmente
produzidas pela urina da criança que, sem fraldas descartáveis,
escapava de tempo em tempo das fraldas de pano.
Pegou com orgulho o filho e nos mostrou por uma janela. A
casa era tão pequena que a nossa reduzida comitiva teve que se
revezar para conhecer o bebê. As paredes eram marcadas pela
umidade das chuvas de inverno. O azul desbotado da pintura
tornava o ambiente ainda mais lúgubre. Não vi sinal de comida.
Um fogão à lenha no chão, uma mesa rústica de madeira e nada
mais. Continuamos nossa “excursão”.

No início de 2006, eu e Nair fomos designados para realizar


uma patrulha até uma cidade a oeste de Brobho. Em condições
normais, não haveria problema algum com esse tipo de missão.
No entanto, dias antes, um jovem marfinense havia ingerido
grande quantidade de bebida alcoólica e, após algumas horas,
morrera. Seu corpo estava próximo a uma linha férrea e não
apresentava nenhuma agressão aparente. Segundo a população,
fora por influência de um soldado francês que apostara com ele
quem bebia mais. Mas nada comprovado, apenas boato. Todavia,
a morte do jovem acabara provocando manifestações públicas,
notadamente de estudantes, contra a presença de tropas
francesas. Com o tempo acabaria me acostumando com uma
prática muito comum entre eles: se havia um problema, qualquer
que fosse, a ONU deveria ter alguma culpa. E isso era motivo mais
do que suficiente para um distúrbio, uma troca de insultos ou
coisa do gênero.
O problema que tínhamos pela frente era exatamente em
relação a Brobho. Para cumprirmos a nossa tarefa, teríamos que
passar por dentro da cidade, algo que não nos apetecia, claro.
Estudamos o mapa em busca de uma estrada ou caminho
alternativo que pudéssemos usar, mas foi impossível achar
qualquer desvio. Sem solução, nós nos deslocamos para lá. Antes
de entrar nos limites da cidade, paramos em um destacamento
marroquino e pedimos escolta armada, pois MILOBS não podem
usar, sob nenhuma alegação, armas.
O comandante era um tenente de nome Nordire Rafik. Sua
atenção e disposição em nos ajudar deixou-me vivamente
impressionado. Mostrou-se um profissional consciente de suas
obrigações, independentemente de termos chegado de surpresa.
Mas, antes de continuarmos nossa patrulha, emendamos numa
conversa animada sobre filmes indianos. Ele era aficionado pelos
filmes feitos na Índia. Entre um comentário e outro, bebemos um
delicioso chá marroquino, fruto da sua fidalguia. Aliás, se tem uma
coisa que eles sabem fazer bem é chá!
Eu tinha conhecimento de que a Índia tem uma próspera
indústria cinematográfica, mas não sabia que tinha esse alcance.
Na conversa, embaixo de uma acanhada barraca de campanha,
fiquei sabendo de algumas curiosidades sobre os filmes indianos.
A indústria é chamada de Boliwood, pois fica em Bombaim, o
centro nervoso da produção dos filmes. A alusão aos EUA é
evidente demais para se explicar. O ator mais famoso – e bota
famoso nisso, pois vi inúmeros DVD com a foto dele estampada
na capa – chama-se Shahrukh Khan. Uma espécie de Tom Cruise
indiano... Poses estudadas, braços cruzados e ar de autoconfiança.
Rafik, cada vez mais entusiasmado, disse-me que foi preso
na academia militar quando era cadete por fugir para ver filmes
indianos. Eu brinquei com ele: Você gosta mesmo de filmes
indianos... Disse ainda, para as nossas gargalhadas, que hoje em
dia procura assemelhar-se fisicamente com Shahrukh Khan para
impressionar a namorada! Nair, outro entusiasta dos filmes
indianos, explicou-me a filosofia dos filmes feitos em seu país. É
uma visão um pouco diferente da dos EUA. Segundo ele, os filmes
mais apreciados são de duas vertentes: uma fala sobre histórias
de amor, e outra sobre comédias envolvendo situações familiares.
Mostrou-me a capa de um deles, chamado Veer-Zaara. Segundo
ele, um dos mais bonitos que vira. Trata-se de um piloto militar
indiano (Veer) que se apaixona por uma paquistanesa (Zaara).
Como os dois países se encontram em guerra, o amor deles se
torna impossível. Assim, o enredo continua, com situações e
pontos de virada interessantes, como quando Veer é preso no
Paquistão e o único cara que pode ajudá-lo é justamente um
oficial que naquele momento namora Zaara...
Depois me contou que as comédias também tocam em
problemas considerados tabus por eles, como casamento entre
hindus e cristãos, entre cristãos e muçulmanos, e os problemas
que advêm dessas uniões, sempre com muito humor e
sensibilidade. Definitivamente, disse-me Nair, o que interessa não
é a ação nos filmes da Índia, mas os relacionamentos. Uma boa
notícia para as mulheres (e para nós, homens, que escondemos
nossas emoções e não podemos deixar que as mulheres saibam
que nos emocionamos com os filmes – no máximo um cisco caiu
no meu olho!). Ele me disse que, via de regra, os finais são felizes
e se chora muito.
Por falar em Nair, um indiano baixinho, com um bigode
engraçado, que nunca crescia mais do que alguns centímetros
sobre os lábios, mostrava-se um amigo na verdadeira acepção da
palavra. Sabedor das dificuldades que todo novato passava, ele
minimizava ao máximo as minhas. Sempre atento, não deixava
que eu fizesse nada que pudesse me prejudicar, sempre se
antecipando e me ensinando as tarefas que tinha que realizar em
cada missão, bem como os cuidados básicos para não ocorrerem
problemas. Além disso, nós nos tornamos bons amigos em função
das nossas conversas diárias sobre diferenças culturais e
experiências de vida.
Como já disse, criei alguns eventos para “quebrar” a nossa
estafante semana de sete dias de trabalho. Um desses momentos,
o qual mantive até o fim da missão, foi o de jantar fora toda sexta-
feira ou sábado, sozinho ou acompanhado de algum membro da
minha equipe. Normalmente, em Bouaké, íamos eu, Nair, Casso e
Lazar. Às vezes, Karim aparecia repentinamente, fumando seu
cigarro preso à cigarrilha. Em Abidjan, normalmente ia com
Barreto e algum outro convidado eventual que se encontrava por
lá, como Bagna. Elegêramos como nosso ponto de encontro
semanal em Bouaké um restaurante com teto de palha, mas muito
bem arrumado e limpo. Os garçons eram sorridentes e logo se
tornaram amigos, como Sabine, François e Pascal. O local tinha o
nome de Black and White, pouco depois abreviado por nós para B
& W, em razão de o dono ser um senhor francês, que adorava
marcenaria, e sua esposa, uma senhora negra marfinense,
animadíssima e que sempre nos brindava com quatro beijinhos na
face ao chegarmos. Educados ao extremo, mantinham-nos
sempre bem atendidos e confortáveis. Aqueles jantares se
transformariam na razão da nossa semana. Contávamos os dias
para poder nos reunir no aprazível B & W, tomar algumas cervejas
e conversar até dez e meia da noite, que era o horário limite da
ONU para permanecer com as viaturas na rua quando não
estávamos monitorando algum lugar.
Numa dessas sextas-feiras, estávamos no B & W e Nair me
lança a pergunta, entre uma garfada e outra, Seu casamento foi
arranjado ou foi por amor? Pensei ter entendido errado e pedi que
ele refizesse a pergunta. Era aquilo mesmo que havia entendido!
Claro que foi por amor... Fez uma cara estranha e me disse que o
dele fora arranjado. Quase me engasguei com a comida. Como
assim? Perguntei, sem tentar esconder nem um pouco a minha
surpresa. No meu país isso é perfeitamente normal, revelou-me.
Meu pai me perguntou como era a mulher com quem eu queria
me casar e eu disse que devia saber falar inglês, ser razoavelmente
bonita, contudo o que mais importava era o caráter dela, e que
tivesse a mesma condição social que a minha. Julgo que não é bom
casar-se com alguém mais rico ou muito mais pobre do que a
gente. Eu deixei a conversa fluir, pois para mim era uma grande
novidade isso acontecer em pleno século XXI. Depois de duas
semanas, ele me disse que havia achado alguém que talvez fosse
interessante. Mostrou-me a foto dela e eu gostei. Disse que
poderia mostrar uma foto minha para o pai dela mostrar para ela
–ufa! – e, se ela também concordasse, poderíamos iniciar o
namoro. Depois, conforme ele foi me explicando, “namoro” para
eles é algo um pouquinho diferente do que é para nós. Após
ambos aceitarem iniciar um relacionamento, uma pessoa da
família dele, escolhida por ele – no caso dele um tio –, foi até a
casa da possível noiva e passou algumas horas lá, conhecendo os
pais, os parentes, a menina, o ambiente etc. Um verdadeiro 007,
brinquei com ele. Ele riu bastante quando disse isso. Mas a noiva
tem o direito de fazer o mesmo. Ela mandou alguém de confiança
para a casa dele e soube mais detalhes sobre a sua vida familiar.
Nesse vai e vem de informações, encontros vigiados e de
“espionagem”, passaram-se sete meses até o dia em que eles se
casaram. E o amor? Perguntei. Ele respondeu que se a mulher e o
homem são bem-intencionados, o amor aconteceria aos poucos.
Disse-me que hoje ama profunda e respeitosamente a mulher.
Acredito nisso, pois ela ligava para ele todos os dias e ele para ela.
Estavam sempre rindo ao telefone...

Quando a minha missão estava para terminar, se não me


engano faltava pouco mais de dois meses, recebemos um oficial
sul-americano no team site. Sujeito bom de papo, logo nos
tornamos amigos. No entanto, não conseguia disfarçar minha
desaprovação por uma atitude recorrente da parte dele: tudo
estava sempre bom! Puta que pariu, nada era ruim! Ia para uma
inspeção em que os caras das Forças Armadas Nacionais da Costa
do Marfim nos tratavam como lixo e ele voltava dizendo ¡La
inspección fue impecable!, ou quando a gente, sabidamente e
sem a necessidade de ser meteorologista, via que em poucos
minutos o mundo ia despencar sobre nossas cabeças e ele
emendava: ¡Esta tarde será muy buena!, ou, para nos irritar ainda
mais do que os Jovens Patriotas, ele lançava que El comandante
era muy cortés..., sobre um desses militares marfinenses que
acham que o mundo gira em torno deles nem se dando conta de
que estávamos lá para tentar ajudar. Confesso, sou réu culpado:
aquilo me deixava maluco!
Com o tempo, vi que aquele comportamento era genuíno e
não um jogo de cena – lá havia muito jogo de cena! Ele realmente
queria dar perspectiva otimista em tudo. Sendo assim, deixava
para lá e até brincava com ele, Los caras no quisieram nem falar
com a gente, mas são muy hospitaleiros! Que buena gente!
Um dia, jantando sozinhos na casa em que morávamos,
começamos a falar da vida, jogando conversa fora. De repente, ele
começou a falar porque agia daquela maneira. Houve um tempo
na minha vida, dizia-me ele, que eu simplesmente estava perdido,
sem rumo. Só fazia três coisas: trabalhar, beber e ir a prostíbulos.
Um dia, atingi o meu limite me envolvendo em um acidente de
trânsito no qual uma pessoa quase morreu. Estava com três
prostitutas no carro. Sofri muito com isso. Tirando as
consequências legais, o que realmente me atingiu foi que, a partir
dali, ninguém, nem minha mulher, confiava mais em mim. Era um
cara que vivia reclamando, que tudo estava ruim e sendo levado,
por amigos, pela bebida e por outras companhias para caminhos
errantes. Ali decidi mudar tudo. Foi difícil, muito difícil. Continuou
me contando os reveses que teve de enfrentar na sua solitária luta
para se tornar um homem melhor. Reclamou que muitas vezes as
pessoas não entenderam que ele precisava de uma chance. Mas,
de qualquer modo, venceu e hoje era um homem de bem com a
vida, de bem com a família. Ser otimista, ajudar os outros, é uma
forma de eu me lembrar sempre que há uma razão para estarmos
aqui. É só isso. Vi que seus olhos se encheram de lágrimas, mas
disfarçou contando uma piada sem graça. Ri, para ajudar a
quebrar o clima pesado. Falando assim talvez pareça piegas, meio
bobo e óbvio. Mas vi muitos homens na missão, pretensamente
fortes física e psicologicamente, caírem como galhos de árvores
atingidos por um raio quando se defrontavam com a brutal
pressão de estarem isolados. Eu mesmo “caí” diversas vezes.
Parece que, quando estava na África, Deus nos enviava todas as
contas do passado, numa fatura só!
As palavras dele não tinham nada de autocomiseração,
pieguice ou qualquer outro nome que alguém queira dar. Eram
palavras sinceras e definitivas, pelo menos para o meu amigo.
Continuei a ouvi-lo e pensando como situações limites mostram-
nos como realmente somos, não como gostaríamos de ser. É
doloroso aceitar isso. Nós não fomos educados para apontar
nossos erros, mas os dos outros. Mas, ao final do processo, seja lá
o que for isso, podemos nos tornar melhores. O difícil é ter a
coragem de se lançar no vazio sem ter certeza de que haverá um
paraquedas para tornar a aterragem mais suave! Mas, acreditem,
sempre há! Embora não estivéssemos em uma guerra, naquela
noite lembrei-me das palavras de Castello Branco, que dizia: A
guerra é um empreendimento muito difícil e brutal. Por isso,
vemos os homens como eles são, e não como desejam ser.
Aparecem como numa radiografia. Os homens, então, mostram
sentimentos inigualáveis, inclusive o desprendimento e o
sacrifício da vida. Mas outros ficam verdadeiramente em trajes
menores: abaixam-se, desfalecem, precipitam-se, ou se tornam
inúteis. Ah! Os homens... como eu os conheço. Quanta qualidade,
quanta fraqueza!...
Capítulo 13
O Inconsciente Africano
Para entender a África – ou procurar entender –, é preciso
estar atento aos sinais que as pessoas, no seu contato diário e na
sua interação humana, revelam. Vale aquela máxima de que não
se pode ficar sentado na sala com ar-condicionado tomando
decisões sobre o que não se conhece. O verdadeiro conhecimento
daquele povo – como de qualquer povo – se dá pelas nuances,
pelas pequenas demonstrações no dia a dia. De fato, em função
das enormes diferenças tribais, culturais e muitas outras,
misturadas num cadinho sempre explosivo, surge um modo de
vida diferente do nosso. Melhor ou pior? Não sei...
Uma vez, não me lembro onde, li uma entrevista de um
africano que dizia que o maior problema da África era a ajuda mal
direcionada que os países ricos forneciam para o continente,
causando um dos maiores, senão o maior problema que se
defrontava o continente: a corrupção e o assistencialismo! Fiquei
estarrecido com o que li na oportunidade. Ele dizia, entre outras
coisas, que o dinheiro remetido causava mais mal do que bem.
Infelizmente, ao trabalhar na Costa do Marfim e estabelecer
contatos com oficiais de outros países africanos, verifiquei que a
tese era correta, pelo menos a priori.
Alguém pode dizer que em todos os lugares existe a
corrupção. Concordo. Mas lá é diferente. Ela está, de alguma
forma, entranhada em muitas camadas. É como se você tivesse
que pagar uma “taxa” implícita para cada movimento que fizesse.
Essa visão de mundo é incentivada desde a tenra idade. Lembro
que, quando ia ao pequeno mercado em Bouaké ou em qualquer
outro lugar, ao terminar minhas compras, tinha sempre um monte
de crianças pedindo Un petit cadeau[ 35]! como se fosse
obrigação dar algo por nada. Com o tempo me surpreendi mais
ainda. Certa vez, num cruzamento em Abidjan, vi um senhor
pedindo esmolas. Como não tinha dinheiro na hora, dei algumas
garrafas de água mineral para ele. No outro dia, passei pelo
mesmo cruzamento e fui parado pelo mesmo senhor. Ele, risonho,
pediu-me mais água. Disse que aquele dia não tinha. Para a minha
surpresa, ele se transmutou e reagiu aos gritos dizendo que eu
tinha obrigação de lhe dar água sempre que precisasse. Fingi não
entender o que ele falou e fui embora. Mas era prova do
assistencialismo mal-entendido por parte de muitos. O
assistencialismo que vicia, que destrói a força de vontade de se
superar e melhorar, por si só, a condição de vida. Era o tal
fatalismo misturado com o assistencialismo, gerando inércia e
mais pobreza.
Mas isso não se resumia às classes menos favorecidas.
Durante as provas a que foram, finalmente, submetidos os
estudantes do norte do país, verifiquei in loco essa tendência ao
assistencialismo externo. Ao ir inspecionar algumas escolas para
ver se estava tudo sendo feito dentro das determinações da ONU,
fui chamado por um professor. De forma deselegante, ele me
perguntou sobre o almoço dele. Eu, mais que rapidamente, disse
que não era responsabilidade da ONU fornecer o almoço aos
aplicadores dos testes. Ao que ele, rapidamente, replicou: Mas
não estou pedindo à ONU, e sim ao senhor. Por que você não paga
um almoço para a gente? Achei aquilo um ultraje e reagi com o
semblante duro e virei as costas. Coisa muito parecida aconteceu
com militares das Forces Nouvelles. Trata-se, em minha opinião,
de um problema cultural, pois é feito à luz do dia e não se sente a
vergonha que, normalmente, envolve quem sabidamente está
fazendo algo ilícito. Vi muitos check points que, teoricamente,
tinham como missão controlar o trânsito pessoal, com recibos de
“coleta obrigatória” de dinheiro.

A exploração econômica é um corolário quando se fala em


África. Todos vemos, ouvimos e lemos sobre como a África vem
sendo exaurida desde tempos imemoriais. As coisas não mudaram
muito. Obviamente, a situação é diferente daqueles trágicos
tempos do tráfico de escravos, de diamante e de ouro, dentre
outras muitas riquezas.
Quando se sobrevoa a Costa do Marfim de avião ou de
helicóptero, ou quando se realizam deslocamentos longos pelas
suas estradas, pode-se ver com mais propriedade e realismo a
intensidade com que se está destruindo o meio ambiente. O que
mais me chamou a atenção foi a extração de madeira. Não havia
lugar que eu passasse e não visse o corte raivoso de recursos da
flora. Nunca consegui saber se era legal ou ilegal, mas os fatos
estavam lá: árvores e mais árvores cortadas e sendo embarcadas
em caminhões. Não acredito que exista um controle confiável, de
acordo com o que vi. Além disso, nunca vi nenhum projeto de
reflorestamento em andamento. O resultado é a lenta progressão
do deserto, particularmente no norte do país. O que talvez eles
não se deem conta é que a riqueza imediata do desmatamento
significará, em muito pouco tempo, agonia econômica e
ambiental.
Na Costa do Marfim, o desmatamento tem causas
diversificadas e complexas. Lá, não visa ao aumento da área a ser
plantada porque a agricultura é incipiente, excetuando-se a
cultura extensiva de cacau, cana-de-açúcar, coco, algodão e de
café em regiões muito específicas e, segundo soube, não são
ampliadas há muito em face da situação do país, esfacelado
economicamente e sem investimentos de vulto. Quanto à
expansão das cidades, vi o contrário: cidades mirrando, dando a
impressão de estarem diminuindo, é a regra no interior,
notadamente no norte, abandonado, à época, pelo governo do
sul. Uma das causas mais evidentes é a venda de madeira para o
exterior, em face da qualidade de algumas árvores de grande
porte e diâmetro considerável. Outra é que uma expressiva
parcela do povo marfinense usa a madeira para tudo, retirando-a
diretamente das savanas e florestas. Casas são feitas de barro e
madeira. A comida é cozinhada em fogões à lenha ou,
simplesmente, em fogueiras improvisadas na parte externa das
cabanas. Uma parte expressiva da população não tem fogão a gás.
Além disso, há uma tradição cultural no uso da madeira para fazer
estátuas, réplicas, máscaras e outros adornos que são vendidos e
servem de subsistência para famílias inteiras. Basta ir à região de
Bassan e Grand-Bassan para ver a quantidade de belíssimas peças
de madeira que podem ser compradas por preços bem baixos,
girando em torno de 10 a 90 dólares. Algumas vezes me
perguntava, como fazer esse povo entender que a depredação do
meio ambiente de forma descontrolada, inclusive dos mangues
que circundam as lindas lagunas, pode se transformar em um
problema maior ainda no futuro? Mas como sobreviver sem usar
a madeira ao alcance das mãos e fonte de subsistência para uma
massa imensa? Dilemas africanos...
Nos últimos meses da minha temporada na África, deparei-
me, durante uma missão muito específica, com outra realidade
econômica muito cruel. Fui inspecionar uma mina de diamantes
no centro-norte da Costa do Marfim. Embora fosse um percurso
relativamente curto da cidade onde me encontrava (uma hora e
meia), a estrada estava terrível. Os nossos carros foram bastante
desgastados durante a viajem. Havia chovido muito nos dias
anteriores e fomos obrigados a pegar um atalho. Se as estradas,
muitas vezes, já são ruins, imagine o atalho! De qualquer forma,
chegamos a uma das minas de que tínhamos conhecimento. A
visão era impressionante. Após subirmos uma pequena colina, o
que se descortinou era inacreditável. Entre o “nada e coisa
nenhuma”, montes de terra revolvida escondiam um poço largo
com cerca de 40 metros de profundidade, cheio de água insalubre
e barrenta no fundo, dando um tom meio lunar à paisagem. Os
homens – cerca de 50 – cavavam a terra de maneira sistemática e
sem muita pressa, formando degraus simétricos que terminavam
na água. A pele negra contrastava com o barro branco que
salpicava em suas faces. Os pés, ressecados pelo barro e sujos,
enterravam-se no solo mole e compunham uma visão
deprimente.
Nossa equipe atravessou a mina e logo fomos recebidos por
um senhor, já bem idoso, com pele queimada e grossas cicatrizes
no peito, mas com disposição para nos dar uma calorosa acolhida.
Vestia apenas uma calça e um chapéu em forma de cone para se
proteger do sol. Como é costume, convidou-nos para sentar.
Óbvio que não havia bancos. Sentamos no chão barrento e os
trabalhadores foram se aproximando meio desconfiados. Um
coronel francês que estava comigo começou a falar com o ancião.
Mais uma vez, o fato de ser brasileiro ajudou-me na aproximação,
eliminando desconfianças. Um deles ficou ao meu lado com um
cigarro apagado na mão. Tomei a iniciativa de acender para ele e
um sorriso largo foi consequência imediata.
Durante o nosso tempo por lá, não foi difícil saber que as
condições de trabalho eram duras, senão desumanas. Por mês,
morriam três ou quatro homens em razão de acidentes e de
doenças. Não havia água potável, não havia maquinários e, muito
menos, apoio de saúde. No caso de doenças era esperar e rezar.
A comida se resumia a dois itens: arroz e mandioca, nada, mas
nada mais mesmo. Viviam em espécies de tapiris de palha sem
parede, apenas com uma tosca cobertura. Perguntamos quanto
tempo eles ficavam por lá, sem sair. A resposta foi direta: de seis
a sete meses naquelas condições. Após isso, o período de chuvas
dificultava o trabalho e não valia a pena. Sentei-me alguns
minutos num pequeno monte de terra para olhar aquilo tudo.
Tirei fotos e pensei como alguns processos econômicos podiam
ser tão cruéis. O mais interessante é que, durante todo o período
em que lá ficamos, eles riam sempre, como se já soubessem que
aquilo era a sina deles e, portanto, somente o riso poderia
amenizar tanto sofrimento. Da próxima vez que eu olhar um
diamante numa loja chique, minha visão vai ser um pouco menos
glamourosa...
Um ícone africano, símbolo de poder, de força e de rebeldia
contra sei-lá-o-quê, chama-se AK 47. Esse fuzil russo, cujo nome
completo é Avtomat Kalashnikova, foi criado em 1947. Seu
carregador curvo e anteparos para as mãos feitos de madeira de
boa qualidade, característicos, torna-o inconfundível. Além disso,
sua rusticidade o transforma em arma segura e que necessita de
pouca manutenção. Possuir um AK 47 é símbolo de status,
significa que você pode alguma coisa, que você detém algum
poder. No início, estranhei bastante a quantidade de pessoas
(homens e mulheres), principalmente no norte, que andava com
seu AK a tiracolo. Havia até aqueles que andavam com os famosos
RPG 7, lança-foguetes russos com pontas triangulares, muito
vistos em filmes de ação que se passam na África e no Oriente
Médio. Essa visão foi surpreendente para mim, pois, como andava
desarmado, mesmo sendo militar, vi que não há a menor
possibilidade de relação de poder entre quem tem uma arma e
quem não tem. Era uma sensação esquisita, pois na maior parte
do tempo eu estava rodeado de gente com a tal AK. Bastava um
movimento errado, uma palavra mais dura para que alguém mais
exaltado pudesse simplesmente acabar com a minha existência,
sem chance nenhuma de reação da minha parte.
Mesmo os policiais durante atividades rotineiras, quando
deveriam usar revólveres ou pistolas, recusavam-se
veementemente a largar suas AKs. Diziam que o que impunha
respeito era uma AK... O senso de autoridade advinha de um
armamento, não de forma natural. Autoridade imposta à força.
Um aspecto que me chamou a atenção foi a tendência ou, se
preferirem, gosto dos africanos por esportes, mais
especificamente por corridas. Vi, diversas vezes, pessoas
praticando corridas e lutas marciais em lugares públicos, muitas
vezes de maneira até desordenada e sem bons tênis, claro.
Para a esmagadora maioria da população, um tênis é um
bem de consumo inatingível, muito longe... A solução – eles
sempre têm uma solução! – é correr de melissa com meias. Lá, ao
contrário do Brasil, esse calçado de plástico é unissex! Calma,
pessoal, não cheguei a usar melissa, pois tinha meus próprios tênis
para correr. Mas, em uma situação de emergência, já sei como me
virar...
Aliás, as corridas eram para mim um relaxamento físico e
psicológico agradável. Alongava-me vagarosamente enquanto
conversava com Monsieur Patrick, nosso sonolento e “audaz
segurança” da casa, que, além de estar desarmado, era mais
franzino do que o Pateta das histórias em quadrinhos. Mas,
segundo ele, eu deveria ficar despreocupado, pois ele estava
aprendendo karatê!
Depois saia para correr. Ver as crianças me olhando e
esperando um aceno meu era algo maravilhoso. Ficavam a minha
espreita, com os olhinhos arregalados. Bastava um aceno ou um
sorriso e elas retribuíam com vigor, como se estivessem só
esperando que eu as visse. Algumas, já acostumadas com a minha
passagem diária pela rua em que moravam, ficavam estendendo
as mãozinhas e gritando Le blanc, le blanc... para que eu as
tocasse. Penso que se tratava de uma troca, pois me sentia bem
em fazer isso, como se mandasse uma mensagem para elas do
tipo: olha, eu te vi, você é importante para mim! e elas, por sua
vez, ao exibirem aqueles maravilhosos e espontâneos sorrisos,
renovavam minhas energias e me faziam mais feliz, mesmo sem
saberem. Às vezes, perguntava-me quem era mais útil: eu,
trabalhando na ONU, ou o povo africano, ensinando-me sobre a
vida...
Capítulo 14
Passando Aperto
Por mais que se queira, não se consegue viver num país
como a Costa do Marfim, por um ano, sem vivenciar situações de
risco. Isso se torna mais verdadeiro quando se é um observador
militar. De certa forma, elas acabam fazendo parte do cotidiano,
em maior ou menor grau, dependendo de onde você está. Comigo
não foi diferente.
A primeira vez que senti medo de que algo ruim pudesse
acontecer comigo foi em janeiro de 2006. Em meados daquele
mês eclodiu uma série de manifestações duras contra a ONUCI e
a França. Elas explodiram no sul do país, mais precisamente nas
cidades de Abidjan, Guiglo e San Pedro. Até então, não estava
muito preocupado com o problema, já que havia a proteção
segura da Zone of Confidence (ZOC) e as Forces Nouvelles estavam
alheias à crise envolvendo os Jovens Patriotas e a sua trupe. Eu,
felizmente, estava baseado no norte. Contudo, com a escalada das
manifestações, inclusive com mortos e feridos em Guiglo, as
forças do norte começaram a se mobilizar, temendo um ataque
surpresa contra eles.
Naqueles dias, milhares de pessoas, simpatizantes do
presidente Gbagbo, capitaneados por líderes dos Jovens Patriotas,
invadiram um batalhão do Bangladesh, provocando mortes e
ferimentos em muitos manifestantes. As tropas do Bangladesh
evacuaram o local, indo para o norte, mais seguro. Com a saída
das forças militares, as instalações da ONU foram destruídas. As
fotos de como ficou o lugar são impressionantes. Nada
permaneceu de pé ante a fúria da multidão.
Januário, que se encontrava a 30 km de Guiglo, numa região
realmente perigosa e tensa, teve que se evadir para o norte, além
da ZOC, durante a madrugada. Mantive ligação telefônica com ele
durante todo o tempo e pude sentir o clima de tensão e de
indecisão que marcou aquela noite. De madrugada ele me ligou,
informando que já estava ao norte da ZOC e em segurança.
Diante desse quadro, as Forces Nouvelles se mobilizaram.
Era noite e voltava do meu team site, quando pude ver uma
enorme quantidade de pick up, o tradicional meio de transporte
dos rebeldes, vindo do norte e indo para o sul, estabelecendo-se
nos limites da ZOC. Presenciei também uma demonstração de
força em Bouaké. Mais de 50 homens, distribuídos em dezenas de
carros, deram uma volta na cidade, proclamando o povo a ficar
alerta com os acontecimentos.
Não havia dúvida de que estava diante de um quadro
delicado, pois, caso as manifestações no sul tomassem fôlego e
algum “maluco” tentasse romper a trégua entre norte e sul,
estaria numa situação complicada, pois eu, sinceramente, não
sabia qual seria o posicionamento dos rebeldes em face dos
efetivos da ONU presentes naquela parte do país. Nunca é demais
lembrar que não usávamos armas. Não dormi aquela noite.
Qualquer barulho, qualquer coisa diferente, interrompia minha
tentativa de dormir. Passei aperto de verdade. Meu medo tinha
razão de existir. Estava sozinho na casa, pois os outros moradores
estavam em dispensa nos seus respectivos países. Resolvi então ir
para debaixo da cama, por via das dúvidas.
Paralelamente, havia outro problema; este de cunho
pessoal. Eu e o Januário iríamos viajar para o Brasil naquela
semana, depois de três meses de missão. Era a nossa primeira
dispensa. Tínhamos comprado passagens para São Paulo,
passando por Johannesburgo, na África do Sul. A ansiedade
acalentada havia tempo estava no limite máximo. Só nos
esquecemos de combinar com os Jovens Patriotas que queríamos
viajar. Eles continuavam fazendo barricadas por toda a Abidjan.
Para evitar confrontos, a ONU decidiu que não haveria mais
movimento terrestre entre as cidades. O movimento aéreo da
ONU (o único existente em Bouaké), por segurança, fora
igualmente interrompido. Era tudo o que não podia acontecer,
pois o único aeroporto com voos civis na Costa do Marfim era em
Abidjan. Ou seja, tínhamos que chegar até a capital de qualquer
jeito para apanhar o nosso avião na sexta-feira por volta das
19h00. Já era quinta-feira de manhã.
Começou uma guerra de nervos, envolvendo a mim e
Januário. Ele em Man e eu em Bouaké; ambos precisando pegar
um avião em Abidjan! Embora o meu comandante e o dele
tivessem autorizado que tentássemos pegar o tal avião, não havia,
tecnicamente, essa possibilidade, pois os movimentos
intercidades estavam proibidos. Uma pontinha de esperança
surgiu quando um coronel polonês que servia em Yamoussoukro,
na sexta de manhã, me ligou e disse que havia conseguido uma
permissão especial para ir até Abidjan pegar o mesmo avião para
o qual eu tinha comprado passagens. Para o Januário seria
impossível, mas para mim havia possibilidade. A questão era: eu
devia estar em Yamoussoukro em 30 minutos! Se fosse a uns 120
km por hora era possível. Como a estrada era boa, resolvi tentar.
Mais uma vez, Nair se dispôs a me ajudar. Disse-me para ir a casa
em que morávamos, colocar tudo dentro da mala, de qualquer
jeito. Só não se esqueça das passagens e o passaporte. O resto, se
faltar, você compra no Brasil. Ele iria me levar a tempo até o
coronel polonês. Acreditei, pois se tinha uma coisa que ele
gostava era de correr na estrada. Como a rodovia era boa,
tínhamos chance. Eu arrumava a mala e chorava de felicidade,
pois já havia perdido as esperanças de pegar o avião. Consegui
uma autorização meio fajuta e iniciamos o deslocamento. Vibrava
dentro do carro! Aí o imponderável aconteceu. Alguém soube que
eu estava indo e disse que a autorização não tinha valor legal.
Quando estávamos nos limites da cidade, recebi ordem de voltar
por telefone. Arrependi-me muito de ter atendido aquela
ligação... Pensei, pensei e resolvi não ignorar a determinação.
Meu lado disciplinado falou mais alto. Perdi o meu voo para o
Brasil. E o pior, só haveria novo voo pela empresa que comprara o
bilhete, dali a onze dias.
Retornei para o team site chorando de raiva ou de decepção,
até hoje não sei bem. Precisei de muita disciplina e equilíbrio para
não desabar. A sensação era horrível. Raiva, muita raiva, atravessa
a nossa mente em momentos como esses. Todos me olhavam com
certa pena, pois para nós uma dispensa tinha um valor
inestimável, que só quem esteve lá pode aquilatar.
Mas a sorte não me abandonara por completo. No outro dia,
um sábado, o Januário me ligou. Perguntou-me se não topava
comprar outra passagem e arriscarmos perder os 2 mil dólares da
outra, e ir por outra companhia aérea. Haveria voo na segunda-
feira. Além disso, a situação, como é comum na África, mudara
completamente. As barreiras haviam sido levantadas e a
normalidade começava a retornar no sul. Por telefone, falamos
com o Barreto, que estava em Abidjan, e soubemos que era
possível chegar ao aeroporto em relativa segurança.
Sem pestanejar, topei. Mas ainda havia um problema
técnico. Tínhamos permissão para viajar, mas as ordens proibindo
o movimento intercidades ainda estavam em vigor. O que fazer?
Nada como ter bons amigos...
Eu e Januário montamos uma verdadeira rede de evasão. A
proibição da ONU deixava uma lacuna: não pode haver
deslocamento entre cidades, mas podia haver deslocamentos até
os limites físicos de cada team site. Sendo assim, montamos,
apoiados por inúmeros amigos, um jeito de chegar até o
aeroporto. Começou no sábado à noite e só terminaria na
segunda-feira, horas antes de o avião decolar.
Petar Mihanovic, que à época trabalhava com o Januário e o
Capitão Pragana, um fuzileiro naval brasileiro que também estava
em Man, começaram uma longa viagem, passando por Seguela e
chegando até as margens do rio Bandama. Sempre em estradas
de terra, para evitar problemas com os rebeldes, e em péssimas
condições de transitabilidade. Um percurso de 150 km, entre Man
e Seguela, durou 5 horas e alguns minutos. Como eles não podiam
ultrapassar os limites entre os team sites, eu e meu amigo Lazar –
um romeno muito tranquilo – saímos de Bouaké em direção ao
oeste a fim de nos encontrarmos próximo ao rio Bandama. Na
realidade, no meio do nada com o lugar nenhum. A nossa
preocupação era não quebrar nenhuma norma da ONU.
Mantivemos os rádios ligados e, como se tivéssemos combinado
tudo com exatidão, ouvimos o Petar no rádio Bouaké, Bouaké,
aqui Duékoué team site. Prontos para trocar a bagagem? Já vejo
a poeira de vocês no horizonte! Rimos, pois até ali estava dando
tudo certo. Após uma viagem de quase 9 horas, eles nos
encontraram e ainda tinham que voltar. Pragana, Lazar e Petar
haviam se arriscado por nós dois; e isso não se esquece
facilmente. Tiramos fotos da gente no meio do nada. Antes de
cada grupo seguir viagem...
Despedimo-nos e iniciamos a próxima fase, que era retornar
até Bouaké, comer alguma coisa e pegar o Issa que, junto com
Lazar, iria nos deixar em Yamoussoukro, já ao sul da ZOC. No
domingo à noite chegamos a Yamoussoukro. Issa e Lazar estavam
exaustos. Deixaram-nos no melhor hotel da cidade, o Presidente,
e retornaram para Bouaké, chegando tarde da noite. Eu e Januário
estávamos felizes. Metade do caminho estava feito.
O hotel era um “desbunde” (os mais novos não vão entender
o que significa essa palavra...), dessas coisas que só se veem por
lá. No meio da pobreza africana, havia piscinas, campo de golfe,
boate, vários restaurantes (inclusive um panorâmico), música ao
vivo e por aí vai. De lá, podíamos ver a enorme catedral da cidade,
que imitava a de San Pedro, existente no Vaticano, nos mínimos
detalhes. Mais ao norte, havia o inacreditável palácio que
pertencera ao presidente Boigny. Por mais que eu tente, não
conseguiria descrever o tamanho e a suntuosidade dele. Mármore
branco, muros com mais de seis metros de altura, portões em
ferro trabalhado e, para dar um toque cinematográfico, um lago
enorme na frente, cheio de crocodilos! Em volta, a pobreza e o lixo
coabitando. Mais África, impossível!
Estávamos moídos. Tomei um banho de banheira
inesquecível. Na manhã seguinte, continuamos. Contando com a
nossa rede de amigos, um russo chamado Eduard Nikitin, que mais
tarde trabalharia comigo em Abidjan, se dispôs a nos levar mais à
frente. Disse que soubera da nossa história e faria com a gente o
que gostaria que fizessem com ele. Arriscando-se sem nunca nos
ter visto, levou-nos até a entrada norte de Abidjan. Lá, meu fiel
amigo Bagna já estava esperando. Trocamos de carro. Era
segunda-feira, por volta do meio-dia. Conduziu-nos direto ao
aeroporto. Cerca de 31 horas depois de começarmos nossa “fuga”
do norte, chegávamos inteiros ao aeroporto. Uma rede de amigos,
muitos dos quais nunca tinham nos visto, ajudou-nos. Trocando
de carro a cada limite entre team site e solicitando apoio por onde
passávamos, conseguimos pegar aquele maravilhoso avião na
noite de segunda-feira!
Mas isso só foi possível graças aos amigos. Não foi mérito
nosso. Lembrei-me do conselho do Major Delgado: O importante
aqui é ter amigos... O resto é acessório. Ele tinha absoluta razão.
Ao Issa, Lazar, Petar, Bagna, Eduard, Pragana e outros que nos
ajudaram nessa loucura para sair do país, ficamos devendo mais
do que um simples favor. Do esforço deles, pude sentir o abraço
apertado, quase doído, do meu filho Mauro, o mais novo, na
terça-feira pela manhã e o beijo carinhoso do João e da Isabela, os
outros filhos.
Em dezembro de 2005, eu e Nair fomos designados para
uma patrulha de rotina na parte norte de Bouaké. Não havia,
realmente, novidades naquela missão. Seria mais uma patrulha
enfadonha e desinteressante. Tínhamos que ir até uma cidade
chamada Dahala, que fica a oeste de Katiola. Aparentemente,
nunca ninguém da ONU havia ido lá. O que também não era
novidade, pois há uma quantidade impressionante de vilas na
Costa do Marfim, o que torna quase impossível visitar todas.
Ao chegarmos aos arredores de Katiola, fomos parados num
dos check points do chamado Batalhão Místico, cujo símbolo é
uma silhueta de ninguém menos que ele, Che Guevara... O
soldado que estava guarnecendo o posto, vestido com as exóticas
roupas que os rebeldes parecem adorar, perguntou-nos para
onde íamos. O restante permanecia sonolento, abrindo um ou
outro olho para ver do que se tratava. Coisa de rotina, já
estávamos acostumados. Quando disse o nome Dahala, ele
mudou e os demais acordaram. Garoto novo, o jovem soldado não
conseguiu esconder a surpresa. De imediato, disse que não
poderíamos entrar na cidade e nos dirigirmos a vila de Dahala.
Naquele dia seria impossível. Insisti, dizendo que era da ONU e
tinha o direito de andar por todo o território. Ele disse que, se
realmente desejássemos continuar, deveríamos falar com o
comandante de setor. Nosso tempo era escasso e não queríamos
voltar à noite para a base. Tentei mais uma vez. Nada feito!
Embora contrariado, mas vendo que as minhas tentativas de
persuadir o jovem guerreiro dariam em coisa nenhuma, deixei um
soldado entrar no carro e nos dirigimos ao posto de comando.
Como o comandante não estava lá, resolvemos tentar ir embora
assim mesmo. Driblei o soldado e disse que tínhamos que ir, coisa
e tal... Quando estávamos saindo da cidade, já achando que logo
estaríamos em Dahala, fomos interceptados por uma pick up das
Forces Nouvelles e recebemos ordem de parar imediatamente. O
tratamento cordial, sempre característico dos rebeldes, não foi
visto daquela vez. Fecharam a nossa Prado e desceram do carro
com grande agressividade. Havia algo de muito errado no ar.
Aquilo não era comum. Daquele ponto, não tivemos mais chance
de falar. Simplesmente nos ordenaram que os acompanhassem.
Uma coisa me preocupava muito. Havia duas viaturas com
eles. A primeira estava à nossa frente, com um toldo tampando a
carroceria, parecendo esconder uma metralhadora pesada, haja
vista o formato piramidal. Não deixaram a gente se aproximar do
tal toldo. E outra logo atrás, impedindo qualquer tentativa de eu
desfazer o comboio e sair com o carro daquela formação. Sem
opção, fui acompanhando a viatura da frente pelas ruelas que
desconhecia. Diante do inevitável, Nair brincou comigo, Sabe lutar
karatê? Soltei um muxoxo e continuei dirigindo. Chegamos a uma
casa com muro alto, cheia de rebeldes. Nenhum com olhar amigo.
Fui ficando mais tenso. O comandante de setor, já conhecido
nosso, recebeu-nos na sala da casa, imunda. Lembro-me de que
havia alguns ossos de galinha espalhados no sofá, cheios de
gordura. Ele os jogou no chão e nos convidou a sentar. Fazer o
quê? A pressão era sentida no ar. Não ficou dando voltas; foi
direto como um tiro. Disse que deixaria que fôssemos à vila, mas
com um militar dele dentro da viatura. Falei que isso era
impossível segundo as normas da ONU, que nos garantia salvo-
conduto. Não poderia permitir aquilo... Depois de negociar
bastante, ele aceitou que fôssemos sozinhos.
Saímos da casa com todo o cuidado. Eu e Nair realmente
pensamos que poderia acontecer alguma coisa naquele
momento. É muito difícil saber o que eles pensam, ainda mais
porque são divididos em facções que vivem disputando poder.
Não queríamos ser vítimas daquilo. Quando já estávamos dentro
do carro, um soldado nos chamou. Pronto, pensei. Agora os caras
vão fazer a festa com a gente! Descemos, com sorrisos amarelos,
tentando manter a tranquilidade que os manuais da ONU tanto
recomendam aos observadores diante de situações como essa.
Mais uma vez, o estilo direto do comandante da área foi
exercitado. Disse que ele e o pessoal que o apoiava estavam
perdendo a paciência com o novo primeiro-ministro e com a falta
de ação para a realização de eleições. Que nós levássemos a
mensagem para os nossos chefes. Interpretei aquele tratamento
ríspido como um recado sério e duro. No caminho para Dahala,
nova interceptação. Falei que já tínhamos permissão para nos
dirigirmos à vila, e os soldados nos deixaram prosseguir. Uma pick
up com rebeldes nos acompanhava de longe. Chegando a Dahala,
fizemos o nosso trabalho rapidamente e começamos o retorno
para Bouaké. Nada demais aconteceu. A tensão nos perseguiu até
chegarmos sãos à casa em que morávamos. Abrimos uma cerveja
e tentamos relaxar. Muita coisa se passou na minha cabeça
naqueles momentos. Esse tipo de tensão limite, em que tudo
pode acontecer, exaure o corpo e a mente. Não sei o que eles
tentavam esconder, mas o tempo que perdemos em Katiola foi
suficiente para sumirem com qualquer vestígio. Armas, munição,
treinamento? Não sei. Mas que era importante, disso não tenho
dúvidas!

Aparentemente, muitas vezes, não há razão para que haja


uma escalada na tensão durante a maioria das operações.
Todavia, parecia-me que em alguns momentos existia uma
provocação deliberada, um choque de forças, para ver quem vai
mais longe. Em uma oportunidade em que estava no norte, fui
chamado, junto com o Major Friday, da Nigéria, para escoltar uma
comitiva de membros das Forces Nouvelles que tinham que ir a
uma cidade no sul da ZOC. Sim, o nigeriano se chama sexta-feira!
Ou seja, teríamos de levar rebeldes em segurança até a tal cidade
que ficava na área de domínio do pessoal do sul. Não seria a
primeira vez, mas era sempre um trabalho delicado.
Cheguei na hora marcada em frente a um hotel em Bouaké,
de onde sairia o comboio. Recebi como apoio e segurança um
pelotão mecanizado marroquino, armado e comandado por um
tenente. Organizei o comboio e perguntei para o pessoal das
Forces Nouvelles quantos veículos eles tinham. Soube que eram
três. Coloquei-os no meio das nossas viaturas e perguntei por que
a Mercedes que estava entre os três não abria as janelas.
Disseram-me que não poderíamos saber quem estava lá dentro.
Não gostei muito, mas não queria criar caso. Além do mais, já
estávamos atrasados em 40 minutos. Perguntei ainda se eles
estavam armados, pois isso sempre acarretava problema quando
entrávamos na região sob domínio dos militares fiéis ao
presidente Gbagbo. Não tinham armas, responderam. Iniciamos a
nossa viagem.
Atravessamos toda a região sob domínio das Forces
Nouvelles, passamos pela ZOC e, quando chegamos aos check
points do sul, os problemas começaram. O sargento das Forças
Armadas Nacionais da Costa do Marfim disse que não sabia nada
sobre aquilo e que não autorizaria ninguém do norte a passar por
ali. Pedi que entrasse em contato com seu chefe. Apareceu um
capitão muito nervoso, como sempre eram os militares do sul.
Expliquei a ele a situação e ele disse que não passaríamos e
deveríamos voltar. Seguindo instruções recebidas, liguei para o
meu comandante e ele pediu para esperar.
Fazia um calor infernal! Um dos homens das Forces
Nouvelles que estava num dos carros saiu para se refrescar.
Quando o capitão o viu, começou a gritar raivosamente. Não
entendemos nada. Friday pediu calma, mas ele gritava mais ainda.
Nisso, os outros ocupantes do carro saíram e, para o meu
desespero, estavam armados. Confirmando aquele ditado
“violência gera violência”, os homens do sul apontaram seus fuzis,
AK 47 naturalmente, em direção ao pessoal que eu estava
escoltando. Pronto, e agora? Eu e Friday no meio dessa situação
ridícula e perigosa. Corri para o carro e mandei que todos
entrassem e guardassem as armas. Nisso, já chamei a atenção do
militar que dissera que estavam desarmados. Ele respondeu
calmamente que só tinham pistolas. Parece que, para eles, arma
mesmo é só de fuzil para cima. Pistolas devem ser adereços! Ao
mesmo tempo, Friday tentava convencer os outros, do sul, a se
acalmarem. Obteve êxito. Depois de muita conversa, tivemos que
voltar para Bouaké, sem ultrapassar a barreira. Durante o
caminho de volta, descobri que havia um assunto pessoal entre o
capitão e o militar que saltara primeiro da viatura. Ele fora
sargento na mesma companhia do capitão. Quando estourou a
guerra, o sargento se bandeou para o norte, traindo, segundo o
pessoal do sul, a unidade em que eles serviam. Enfim, existiam
contas a serem ajustadas. Quanto a Mercedes que estava fechada,
descobri que só tinha o motorista. A “autoridade” tinha ido de
avião. Aquilo tudo era só para disfarçar. Não preciso dizer como
fiquei chateado por não ter sido informado. Alguém poderia ter
se ferido por causa de um carro vazio.

No fim do primeiro semestre de 2006, já trabalhando em


Abidjan, tive uma experiência totalmente nova para mim. Meu
comandante iria sair em dispensa para Bangladesh, e eu deveria
assumir o comando interinamente. Durante aqueles dias, as
demonstrações contra a ONU estavam um pouco mais fortes do
que o normal. Numa manhã, recebi o telefonema de um oficial da
Seção de Operações Conjuntas (Joint Operation Center – JOC)
solicitando informações sobre uma possível manifestação em um
bairro nos arredores de Abidjan. Disse que não sabia nada sobre
o assunto. Ele então solicitou-me que mandasse uma patrulha até
o lugar para confirmar o informe que ele recebera.
Após alguns minutos pensando como faria aquilo, decidi
mandar dois oficiais – um russo e um paquistanês – até o local.
Chamei-os, expliquei a situação e determinei que eles fossem até
lá. Foi a primeira vez que tive sobre os meus ombros a decisão
solitária de mandar alguém para um lugar onde havia risco
potencial. Meu primeiro pensamento foi o de ir junto, para não
me sentir culpado caso algo de errado ocorresse. Mas eu era o
comandante e deveria ficar lá para coordenar aquela pequena
operação. Senti-me mal, pois, embora tivesse aprendido a dar
ordens durante a minha vida militar, elas eram sempre em
exercícios, e o risco, na maioria das vezes, muito pequeno. Mas ali
era diferente. Mandava homens que tinham família para um lugar
onde provavelmente estava havendo problemas. Era algo muito
perigoso? Não, mas, nesse tipo de missão, coisas pouco perigosas
podem se transformar em tragédia num piscar de olhos.
Enfim, a equipe saiu, e eu fiquei na base do time. Cerca de
40 minutos depois, eles entraram em contato comigo. O russo
estava muito nervoso. Relatou-me que estavam retornando, pois
haviam sido atacados com pedras e frutas, além de tentarem abrir
as portas do carro. Horas depois, eles chegaram sem ferimentos
graves (apenas uma pedra havia acertado o russo, cortando-lhe o
couro cabeludo), e o carro todo sujo de restos de frutas e alguns
arranhões e amassados na lataria, além de um vidro estilhaçado.
Nada grave. Para mim a lição havia sido clara: mandar pessoas
para situações de risco não é uma tarefa fácil. É preciso muito
autocontrole e certeza de estar fazendo a coisa certa. Graças a
Deus deu tudo certo e ninguém se machucou seriamente.
Minutos depois, liguei para o coronel que me solicitara a
informação e confirmei que havia um manifestação no local que
ele suspeitava. Fiquei dias pensando: e se algo tivesse acontecido
com eles? Até hoje penso se tomei a decisão correta, mandando
os dois para aquela zona “quente”. Mais tarde, vi que isso faz
parte do risco e do processo decisório. Parei de me incomodar e
continuei minha vida. Dias depois, as frutas que haviam sido
lançadas contra o carro viraram brincadeira entre nós. O chinês
do meu time dizia: da próxima vez, abram as janelas, pois
precisamos de mais frutas frescas!

Com o tempo aprendi a lidar com essas e outras situações


limites. Graças a Deus, nunca ultrapassaram os perigosos limites
que poderiam ter consequências funestas. Mas que era difícil, era.
Normalmente, sentia-me muito mal depois de terminado o risco.
Dor de cabeça, estômago e insônia se transformaram em
companheiras fiéis naquele ano...
Capítulo 15
Conhecendo um Pouco das Mazelas da Guerra
Quando se fala em guerra, logo pensamos em mortos,
feridos, bombas explodindo, pessoas gritando e coisas assim.
Claro que isso faz parte do problema, e os filmes nos acostumaram
com essa visão. Assim como nos dão a entender que, encerrados
o espocar dos fuzis e o sibilar dos estilhaços, os problemas
acabam, como que por encanto. O assunto vai saindo da mídia
devagarzinho, até que... a gente esquece! Alguém se lembra de
Ruanda em 1994 e o genocídio protagonizado pelos hutus contra
os tutsis? Alguém se lembra de que morreram 800 mil pessoas e
cerca de 240 mil mulheres foram estupradas? Duvido muito...
Na minha estada na África, confirmei uma suspeita interior,
como estudioso da guerra que sempre procurei ser. A pior parte
não é o combate propriamente dito. Os problemas mais
profundos vêm depois, junto com o fim do conflito. Aí aparece o
“banqueiro” com a conta a ser paga, com juros, muita correção
monetária e, na maioria das vezes, com algum ágio. A cobrança
aparece em forma de doenças, fome, êxodo populacional, ex-
combatentes sem “emprego” e com sérios problemas emocionais,
famílias desfeitas, infraestrutura destruída, falta de água potável,
de luz, de solo fértil, de policiamento, de médicos, de imprensa
livre, de leis. O caos, com uma força desconcertante, toma lugar.
Inicia-se a dura busca de colocar as coisas no lugar, de normalizar
a vida. Mas as feridas são profundas e difíceis de cicatrizar.
Cismam, como que possuídas de uma força maior, de continuar a
jorrar sangue, como se dissessem: Não será uma ajudazinha
internacional que vai me fazer esquecer tudo! O corte que veem
é apenas uma exteriorização de algo maior, mais dolorido... Os
olhos, o tom de voz, os gestos das pessoas revelam que ainda há
saldo devedor e alguém vai ter que pagar. Os norte-americanos
no Iraque sabem bem do que falo. Derrubar alguém do poder,
acabar com um conflito, é apenas parte do problema. Talvez o
mais fácil, pois exige atitudes pragmáticas. Cessada a luta, existem
feridas a serem lambidas. São as mazelas da guerra. É aquela
sensação incômoda de que ainda tem algo errado a ser revolvido
por entre os destroços antes de varrermos o lixo e a poeira. Não
se vê. Sente-se.
A revolta ante a incredulidade dos fatos talvez seja o aspecto
mais difícil de resolver quando se encerra um conflito civil. Uma
coisa que me incomodava, principalmente quando estava no
norte, onde as Forces Nouvelles mandavam e desmandavam,
eram os prédios bombardeados que continuavam do mesmo jeito
que foram deixados após os ataques. Ninguém mexia em nada,
absolutamente nada! Eram construções fantasmagóricas,
lembrando a todos que havia uma dívida a ser saldada pelos
atacantes.
Numa patrulha para além de M’Bahiakro, o nosso objetivo
final era a vila de Bonguera. Cerca de 400 km de péssimas estradas
percorrendo o norte do país. Na realidade não passava de um
vilarejo com cerca de 3 mil habitantes, se tanto. Água, só com
bomba manual. A cor dela? A terra em que pisava era mais clara!
Uma mesquita cor de barro, com pequenos minaretes de pontas
brancas, encimados por pequenas luas e estrelas, dominava a
paisagem. Ao fundo, uma mata agonizante em face do
desmatamento ainda servia de pano de fundo para o lugarejo.
Casas feitas de barro e com janelas azuis circundavam a mesquita.
Fora isso, desolação. Nem um riacho para quebrar a aridez da
paisagem.
Como sempre, nos dirigimos ao chefe da vila. Antes, porém,
encontramos o mandachuva local dos rebeldes. O homem com
cerca de 40 anos, barba espessa e curta, palito de dente à boca,
estava deitado em uma rede sob uma meia-água de palha. Ao seu
lado, uma mulher com cerca de 30 anos, vestindo uma camiseta
branca e uma saia típica da região. Rosto bonito. Seios fartos e
caídos revelavam-se sob a camiseta semitransparente. O homem,
aparentemente um experiente ex-guerrilheiro, levantou-se e com
um jeito desleixado nos cumprimentou. Desconfiado, fiquei
receoso da sua conduta. Parece que se chamava Diomande, ou
algo assim. Não entendi direito. Logo, três outros homens, um
deles com um rádio na mão, espreitavam-nos e observavam-nos
a certa distância. Percebi que faziam a segurança do nosso
interlocutor. Começamos a conversa. Enquanto falava e ainda
sentado na rede, ele colocava o seu tênis, calmamente. Vi que
tinha uma pistola escondida na parte de trás da camisa. Sua
“farda” era insólita: tênis da Nike, meias verdes, calça camuflada,
camiseta branca com a foto de um guerrilheiro negro e, na parte
de baixo, a inscrição “Vecchio”, meu conhecido de Katiola...
Conversa mansa para lá, conversa mansa para cá, colhemos
tudo que nos interessava. Pedi para tirar uma foto com ele. Foto?
Sem problema. Espere um minuto! E o cara some para dentro de
uma casa de barro. Volta vestindo a parte de cima do uniforme,
com orgulho de quem representa algo em que definitivamente
acredita. Coloca uma boina verde, ajeita um distintivo torto e diz
estar pronto para a tal foto. Não há dúvida de que quer se parecer
com Che Guevara. Rimos, ele relaxa, abraça-nos e tiramos mais
fotos. Leva-nos ao chefe da vila. Para mostrar poder, uma pick up
verde, típica das Forces Nouvelles, aparece para transportá-lo.
Afinal, se nós temos as nossas vistosas Prado da ONU, ele também
tem sua viatura, inclusive com motorista! Papo rápido. O sol
queima e o chefe da vila é idoso... Bonguera, abandonada, sem
água, sem eletricidade, retrata, um pouco, as mazelas a que me
referi. Parada no tempo, perdida nos espaços das savanas, muitas
pessoas, em função da guerra, vivem como se estivessem no
século XVIII. Nada de encanamentos, nada de fios elétricos, nada
de televisão. Planta-se e cuida-se daquilo que se vai comer:
mandioca, arroz, galinhas, bodes e, se tiverem sorte, uma ou outra
especiaria. Não existem vacinas, pois não há eletricidade,
consequentemente não há geladeira, consequentemente não há
médico, consequentemente todo mundo fica doente,
consequentemente as pessoas simplesmente morrem,
consequentemente o ciclo se iniciava novamente, renascendo o
círculo funesto tão conhecido de algumas partes da África. Lugar
farto para a tuberculose, Aids, malária, poliomielite, febre tifoide,
hepatite, febre amarela e tudo o mais que se possa imaginar.
Nosso novo amigo insistiu em nos levar até a escola para ver
se podíamos ajudar a solucionar o problema da falta de aulas na
vila. A “novidade” foi o fato de ver uma escola que foi
bombardeada em 2004. Assim, fui a um lugar em que houvera
combate, cujas marcas de destruição ainda estavam regurgitando
aqui e ali... O sol penetrava pelo teto de um dos pavilhões da
escola, arrombado pelos impactos de estilhaços... Incrivelmente,
ela ainda se encontrava do mesmo jeito que ficara no dia em que
fora atacada. Ninguém tocara, talvez para que os incrédulos
burocratas acreditassem que realmente ocorrera uma guerra por
ali. Os livros e os cadernos espalhados pelo chão, as carteiras que
sobreviveram à destruição estavam jogadas pelos cantos, e o sol
iluminando o seu interior lúgubre. No quadro-negro, como que
para lembrar o passado, a última lição passada por algum
professor ainda podia ser vista escrita com giz.
Os intensos raios solares das 15h00 revelavam a poeira que
brincava no ar, brilhante. O silêncio ensurdecedor, rompido pelos
meus passos ao pisar em folhas secas espalhadas por todos os
lados, me traziam sentimentos ruins. Será que alguma criança
morrera ali? O que será que as pessoas sentiram quando os
helicópteros começaram o ataque? Pânico, muito pânico.
Pensei... Os móveis derrubados, os cadernos caídos durante a
fuga, não deixavam dúvidas. Tirei algumas fotos e saí lentamente.
Queria ficar sozinho por um tempo, mas um moleque, com pouco
mais de 16 anos, seguia-me. Começou a falar que trabalhava para
o chefe rebelde da vila. Era o seu motorista, disse-me com
orgulho. Respondo-lhe dizendo: Isso é bom, mas sem demonstrar
muito entusiasmo. Ele fala do tal bombardeio, mostrando que a
área do entorno também foi atingida. Um garoto que já viu mais
coisas do que eu possivelmente irei ver ao longo de toda a minha
vida. Pensei na hora. Mas ele sorria, como se tudo aquilo fosse
normal e inerente à existência deles. Ao conversar com eles sobre
a guerra, tinha a impressão de que eles já esperam pela próxima.
Quando, por quê, contra quem? Nem eles sabem. Apenas
esperam aquilo que tem sido a rotina desse povo por décadas
atrás de décadas... Quando será o próximo massacre? O último foi
em Duékoué, este ano...
O hospital da cidade também foi bombardeado. O resultado
é que a cidade não tinha escola fazia três anos; ou seja, uma
geração de analfabetos estava sendo regiamente formada! Além
disso, o hospital, ou o que sobrou dele, estava em estado de
penúria. Conheceria muitas bongueras durante o meu tempo lá...
Assim como aquela escola, ao longo das minhas patrulhas e
viagens, vi muitos outros prédios destruídos que se mantinham lá,
do mesmo jeito, com escombros por toda parte. Até as janelas de
vidros, com seus estilhaços, permaneciam no chão, estalando sob
o peso do nosso corpo. O interessante é que isso se dava,
prioritariamente, no norte. Eles faziam questão de nos mostrar o
que sofreram. Apontavam buracos de bala, rombos enormes nas
paredes feitos por estilhaços de artilharia ou de bombas de
aviação e coisas similares. Teve até um dia que fui “convidado” a
tirar fotos dentro de uma cratera feita por uma bomba de aviação.
Sem remédio, pulei dentro do buraco, fiz pose de herói de filme
de guerra e deixei-me fotografar. Braços cruzados, óculos escuros,
feição carrancuda... Enquanto isso, explicavam-me de onde o
avião viera, a hora do ataque, onde todos estavam, essas coisas.
Além dos escombros físicos, vi o escombro moral que adveio
daquilo tudo. Muitas e muitas pessoas sem autoestima, sem fé no
futuro. Homens que já não acreditavam no porvir, jovens
desconfiados de tudo e de todos, mulheres que simplesmente
tentavam sobreviver, levar a vida adiante, em direção a tempos
pretensamente melhores. Vi a prostituição por um prato de
comida, por um punhado de francos africanos, sabe-se lá para
comprar o quê!
Vivenciei no norte, em função da divergência com o sul e
pelo êxodo ou assassinato de professores no auge da crise
(disseram-me que muitos professores foram mortos no norte.
Não pude confirmar, a não ser pelos maridos de Aniésse e
Hubertine), o brutal atraso que as crianças sofriam no seu período
escolar, colaborando para “incrementar” a população de
analfabetos e de não cidadãos.

No entanto, assim como diz o batido e verdadeiro adágio,


“depois da chuva vem o sol para nos animar a continuar a nossa
caminhada”, vi gente levantando a poeira, costurando suas
feridas e simplesmente caminhando.
Nesse sentido, destaco a força das mulheres africanas.
Maravilhosas e bravas mulheres africanas... É impressionante a
capacidade de trabalho – trabalho pesado, muito pesado – que
elas possuem. Parece-me que os homens, de uma maneira geral e
por força da cultura, não se encarregam do trabalho mais árduo.
Observava continuamente essa característica. Uma visão comum,
impressionante mesmo, era, à beira da estrada, ver mulheres
carregando filho, lenha, comida, trouxa de roupa e o marido
andando na frente, com um radinho de pilha no ouvido e o
tradicional machete em uma das mãos. Lépido, fagueiro,
contente. Via, nas estradas, nas vilas e nos mercados, dezenas,
muitas vezes centenas, de mulheres, ao longo do caminho
carregando enormes bacias, cestas e objetos de toda ordem.
Atrás, amarrados magistralmente em panos coloridíssimos que
envolviam os dois, como se fossem cangurus ao contrário,
pequeninos dormindo. Conheci, em uma das vilas, um grupo de
mulheres que caminhava 27 quilômetros para conseguir água
quase todos os dias! Impressionante a força física e a
determinação mental dessas mulheres. Definitivamente, ser
mulher na África é algo muito difícil e especial. Passei a respeitá-
las ainda mais. Para mim, são os sinais mais vívidos de que as
mazelas africanas podem ter um fim. Elas possuem a força
necessária para aguentar as cheias e as vazantes de esperança
pelas quais a África ainda estará suscetível nos anos vindouros,
mantendo a postura ereta diante do caos.
Capítulo 16
Rindo na África
Chorar na África é mole. Quero ver rir de vez em quando! Os
meus primeiros meses foram terríveis nesse sentido. Só conseguia
enxergar coisas ruins, gente doente, ruas emporcalhadas, prédios
destruídos, falta de luz, falta de água, falta de tudo! Animais
disputando espaço com gente, água empoçada e malcheirosa,
pedaços de animais mortos expostos para vender, gente
nervosa... Rir? Ficava meio difícil naquelas circunstâncias...
Lembro que minhas mandíbulas, mesmo dormindo, estavam
sempre premidas. Às vezes, durante a noite, praticamente tinha
que dar uma ordem verbal do tipo: Mandíbulas, relaxem!, pois
estavam doendo de verdade. Era tensão, estado de alerta, sei lá o
quê.
No entanto, não gostaria de terminar este livro com uma
visão triste, baixo-astral. A África não é só tristeza. Há, e muita,
gente feliz, que dança e ri o tempo todo. Assim, não seria justo
deixar uma falsa impressão de que os sorrisos são proibidos. Ao
contrário, são fartos e sinceros. Assim, deixei algumas histórias e
situações engraçadas para o final.
Um episódio bastante engraçado ocorreu quando era G1, ou
seja, oficial de pessoal do team site de Bouaké. Dentre outras, a
minha missão era a de preparar um breve currículo dos recém-
chegados e apresentar ao comandante. Era uma forma de a gente
conhecer melhor o novato. Para facilitar a minha vida, fiz um
formulário no computador e, sempre que chegava alguém, eu
imprimia, fazia cara de inteligente e entregava para ele preencher,
sem dar muita conversa. Dava um prazo de dois ou três dias, sem
maiores estresses.
Um dia, chegou um oficial chinês e eu, pronta e
burocraticamente, imprimi o tal formulário. Com gentileza,
entreguei e pedi que ele me devolvesse em dois dias. Voltei ao
meu trabalho – lembro que estava terminando um relatório de
uma inspeção de armamento que fizéramos nas Forces Nouvelles,
com muitos números de armamentos para transcrever e não
queria perder tempo com conversas inúteis, pois meu prazo era
curto. Minutos depois, o chinês começou a me rodear. Eu dizia,
sem parar de digitar: Não tem pressa, pode me entregar amanhã...
e nada de o cara ir embora. Num dado momento, parei o que
estava fazendo e ele se aproximou, dizendo meio sem jeito:
Heitor, estou com dúvida neste campo. Não entendi direito o que
você quer dizer com “How?”[ 36]. Acho que fazemos da mesma
forma que vocês... Desatei a rir e a pedir desculpas para o oficial.
Eu havia imprimido o documento e não havia checado. Existia uma
coluna escrita Children? E ele deveria responder sim ou não. Na
outra, logo abaixo, How Many[ 37]? E deveria ser escrito a
quantidade de filhos. Mas, para a minha vergonha, só saíra a
palavra How. Lá estava a causa do constrangimento do discreto
chinês. Imagine-o ter que escrever, com detalhes, como ele havia
feito a filha?

Ainda em relação à minha malfadada ficha, ocorreu outra


situação cômica. Da mesma forma que fiz com o chinês, quando
chegou um oficial do Iêmen, entreguei o impresso (desta vez
conferi!). Tudo OK. Karim, como o chamávamos, veio falar comigo
fumando o seu tradicional cigarro preso a uma cigarrilha e com
cara de bravo. Foi direto: Meu amigo, essa ficha está errada. Falta
espaço. Já me levantei nervoso. Afinal, quem era aquele baixinho,
com cara de vilão do filme do Batman, para falar assim comigo?
Mostre-me o que está errado! Falei rigidamente. É o espaço para
esposa... O que tem de errado?, repliquei vendo que havia espaço
suficiente para colocar o nome da esposa. Meu amigo, sou
muçulmano, tenho mais de uma... Caí na real. Havia me esquecido
desse “detalhe” cultural. Refiz a ficha, daquela vez com espaço
para o número máximo de esposas que um muçulmano pode ter:
quatro! Mas era estranho ouvir durante as apresentações
individuais que cada um fazia, o recém-chegado dizer: Sou fulano
de tal, casado, tenho três esposas...
Houve um tempo que pensei até em me converter ao
islamismo e voltar para casa com mais três esposas. Mas depois,
imaginando o que aconteceria comigo quando a minha “primeira”
esposa me visse chegando ao aeroporto com roupas de beduíno,
barba até os pés e com três risonhas marroquinas a tiracolo,
desisti. Além do mais, havia o problema das sogras. Seriam
quatro!

O mau humor dos militares das Forças Armadas da Costa do


Marfim contrasta, qual água e óleo no mesmo copo, com a
hospitalidade do pessoal das Forces Nouvelles. Obviamente, há
uma razão. Por um lado, as Forces Nouvelles dependiam do apoio
do pessoal da ONU para não serem, eventualmente, atacadas
pelos exércitos do sul. A existência de uma ZOC protegida por
tropas da ONU era o seguro em que eles depositavam suas fichas.
Por outro lado, isso também explicava a forma pouco amistosa
que militares de Abidjan dispensavam ao pessoal da ONU. Numa
inspeção que fui designado a fazer, sobre as condições de lugares
para as operações de desarmamento, desmobilização e
reintegração, ao ver o local no documento, já sabia que iria perder
meu tempo. De qualquer forma, para cumprir nossa parte na coisa
toda, eu e o capitão Bilal (é sério, o nome dele é Bilal!), entramos
no carro e fomos para o tal lugar. Ao chegar, vimos que todo
mundo entrava facilmente, pelos portões, exceto a gente. Passava
táxi e entrava. Parava carro cheio de malas e bugigangas e
entrava. Chegavam carros com gente esquisita, e o guarda deixava
entrar. Mas, quando nós nos aproximamos, o portão foi fechado
peremptoriamente. Tudo bem, pensei. É só para fazer valer a
autoridade. Com o seu tradicional AK, aproximou-se um soldado,
que, de tão franzino, pensei que iria pedir comida. Mas me
enganara. Demonstrando boa marcialidade e seriedade,
perguntou-nos o que queríamos. Expliquei a ele que tínhamos
uma inspeção marcada, que era de conhecimento do seu
comandante e gostaríamos de falar com ele. Ele olhou o carro, viu
o bagageiro interno e pediu, educadamente, que aguardássemos
dentro do veículo e sem entrarmos nas instalações do quartel.
Tempos depois (já aprendera que sempre nos faziam esperar, por
isso, carregava um livro na mochila. No começo me estressava,
depois achei que eles queriam contribuir para que eu lesse cada
vez mais), apareceu um sargento com cara de não ter nenhum
amigo na face da terra. Expliquei tudo novamente e ele disse que
o comandante não estava. Sem problemas, poderia falar com o
subcomandante? Ele também não está! Respondeu-me. Tudo
bem, podemos falar com o oficial-de-dia? Também não está! Não
tem nenhum oficial aí dentro? Não, todos saíram! Já perdendo a
minha paciência, mas me lembrando do manual dos MILOBS, que
dizia para manter sempre a calma e atitude amistosa, respirei
fundo, sorri – muito que contrariamente – e perguntei, como se
fosse um lorde inglês: Qual o nome do comandante, só para eu
pôr no relatório? Não sei! Pensei: Esse cara está de sacanagem!
Nova investida. Qual o telefone que posso, mais tarde, tentar
marcar outra visita? Não sei! Exclamou o meu companheiro de
profissão. Mantinha-se o inabalável sargento. Aí, pensei comigo,
enquanto Bilal ria, Ele vai ganhar, mas vou ter que dar a minha
sacaneada também. Qual é o seu nome? Não é que respondeu,
sem se dar conta, Não sei! Aí não teve jeito, ele desarmou a cara
séria e sorriu, muito discretamente. Liguei o carro novamente,
agradeci e ele acenou. Mas não é que o sargento não disse o nome
de jeito nenhum! Como militar, entendi que ele cumpria ordens.
Não iria colocá-lo em situação mais constrangedora, além do
mais, ele era disciplinado, isso era...

As diferenças de idiomas também proporcionavam


situações inusitadas. Como já disse, para mim foi um suplício –
bota suplício nisso! – entender o que os oficiais de países como
Bangladesh falavam, pois o inglês deles é gutural e rápido. Dessa
forma, ia me virando. Mas tinha um problema sério. Meu
comandante era de Bangladesh e, acho eu, estava treinando para
o próximo campeonato mundial de quem fala mais palavras em
inglês no menor tempo, se é que isso existe. Conversar com ele
era um desafio mental. Era uma verdadeira prova de enigmas e de
charadas. Um dia, já meio chateado com aquela situação, pois
vivia pedindo para ele falar mais devagar, e ele me ignorava
solenemente, fui chamado por ele. Juntos, estavam outros
oficiais, inclusive Nair, que sempre me ajudava a “decifrar” as
ordens do tal comandante. Mas aquele dia, especialmente, minha
paciência estava muito limitada. De uma hora para outra, o
coronel começou, como uma ventania, a falar. Só entendi a
introdução... Heitor, você deverá ir até... Parei de tentar
compreender o resto a partir dali. Deixei-o falar, sempre com a
cara de sapiência que meus óculos de grau ajudam a aparentar.
No final, veio a minha desforra. Alguma pergunta? (ele sempre
terminava assim!). Eu não tive dúvidas: Car wash? Now? Why?[
38] Todos caíram na gargalhada, menos ele. Virou-se de costas e
saiu, pau da vida. A partir daquele dia, ele passou a falar bem mais
devagar. Mas também a partir daquele dia, sempre que alguém
queria dizer que não entendeu alguma coisa dentro do team site,
em vez de dizer: Excuse me... Sorry... I beg your pardon...[ 39]
Dizia, simplesmente: Car Wash?
Capítulo 17
Fim de Papo
Quando comecei a escrever sobre a África, queria contar
uma boa história, como acredito que todo bom livro deva fazer. E,
é claro, levar alguma emoção, comover. Procurei transportar o
leitor para lugares distantes, escondidos no imaginário de cada
um de nós sem a rigidez cronológica ou com dados enfadonhos.
Espero ter conseguido. Coloquei em cada palavra sinceridade,
muitas vezes cortante; contudo, necessária para descortinar um
novo mundo para algumas pessoas: o mundo africano.
Fugi da escrita empolada, difícil e das análises técnicas,
profundas, que beirassem os devaneios psicológicos. Já existem
excelentes livros nesse sentido. Usei as expressões fáceis,
coloquiais e diretas, entremeadas por algum humor, pois o que
queria comunicar exigia fluidez, simplicidade nas palavras e
objetividade. Cheguei ao fim. Espero que tenha sido mais do que
uma leitura agradável; espero, sinceramente, que tenha sido um
gostoso bate-papo de fim de tarde, daqueles que a gente fica
ouvindo e olhando o sol se pôr, sem pressa...
Apaixonar-se pela África é muito fácil. Lá estão todos os
ingredientes que fazem uma paixão nascer: mistério, beleza,
medo do desconhecido, novidade, desafios e esperança no porvir.
A África seduz e envolve num misto de raiva e amor, como as
grandes paixões da literatura. Perguntem a Hamlet...
Mas não se enganem. A África não é puro romantismo,
aventura sempre com final feliz. Não é um amor feito só de
ternura. Há coisas abjetas que não devem ser relevadas se o que
se busca é algo próximo da verdade. Vi gente de todo tipo. Vi
negro explorando negro, assim como temos brancos explorando
brancos. Vi injustiça cometida pelo próprio povo à guisa de uma
falsa “reordenação histórica e étnica”. Vi racismo do branco
contra o negro, mas também vi racismo do negro contra o branco.
Tudo isso me confirmou uma antiga convicção de quem nunca se
preocupou com a coloração da pele das pessoas: o que diferencia
um bom de um mau homem não é, definitivamente, a cor da pele,
mas o caráter. Negro, azul, amarelo, roxo, laranja, branco...
Quanta bobagem! Quanta perda de tempo!
O contraste africano atrai as pessoas que não são do
continente, dando-lhes, muitas vezes, motivo para sentirem-se
úteis em face da superficialidade que o mundo moderno tenta
impor. Alguma coisa meio parecida com as Cruzadas iniciadas no
século XI, motivando milhares de pessoas a defenderem uma
causa, embora a maioria não se desse conta por qual causa estava
morrendo.
Creio que não seria falta de discrição de minha parte
confessar que, quando um forasteiro aporta naquele continente,
ele sabe, no fundo, que está indo para receber mais do que vai
poder dar. Há um toque de egoísmo nisso, eu sei. De certa forma,
seja por obra de Deus, do acaso ou da própria vontade pessoal, as
pessoas que conheci, assim como eu, tinham dívidas pendentes
consigo mesmas. Mas quem de nós não as têm? Para quem soube
aproveitar a oportunidade, elas foram pagas ou, no mínimo,
amortizadas. Alguns até saíram de lá com crédito, penso. Espero
ter aproveitado a minha oportunidade. Para mim, pessoalmente,
foi uma experiência ampla e intensa. Sinto-me esgotado ao seu
término. Contudo, com aquela balsâmica sensação de dever
cumprido.
Naquela “eternidade” de tempo despendido lá, cheguei
mais próximo de “meu” Deus, por meio da reflexão, das inúmeras
e desordenadas orações pedindo proteção e luz nas minhas
decisões e nos meus medos. Agi ao invés de filosofar; afinal, não
havia muita saída mesmo. Vi que cheguei excessivamente cético
em relação às coisas e às pessoas. Talvez fruto de uma infância
cujo pai mostrava-se – ou pretendia mostrar-se – um ateu puro-
sangue, além de outros reveses que a vida me brindou, como o
divórcio dos meus pais e tantas outras realidades dolorosas. É
assim com todo mundo. Resolvi me dar uma nova chance e me
sinto satisfeito, tranquilo comigo mesmo.
Religião? Não tenho, mas respeito todas, não para ser
“politicamente correto” – expressão tão ridicularmente na moda
nos dias de hoje, formando uma manada perigosa de incultos e
unânimes –, mas por convicção e formação. Talvez um dia
encontre a minha, embora não sinta falta nenhuma. A minha
forma de me relacionar com Ele me basta; não preciso de
intermediários. Mas algo mudou. Minha crença num Ser maior,
muitas vezes abalada, fortificou-se e consolidou-se. Acredito em
Deus, ao meu modo, e faço o que posso para ajudá-Lo aqui na
Terra. Sem fanatismo, sem pregação, sem impor nada a ninguém.
Apenas tento fazer a minha parte.
O lado familiar talvez tenha sido o mais atingido. Acabaria
me separando em 2011; não pela missão ou pela distância, mas
por uma série de aspectos que o somatório das minhas
experiências – dentro e fora do Brasil – trouxe-me. Hoje sou uma
pessoa verdadeiramente feliz e acredito estar passando bons
valores aos meus filhos. A distância, o sentimento de urgência, o
medo de morrer a qualquer momento e não mais vê-los e deixar
de falar o que sentia favoreceram-nos. Nunca havia falado tanto
para eles a frase simplória: eu amo vocês. Falei muito e não cansei.
Na verdade, ainda quero falar por muito tempo.
Lembro que, quando ia ao Brasil, nas minhas curtas
dispensas, tínhamos, todos, uma sede de ficar juntos,
conversando, nos vendo. Foi aí que senti que algo mudara. E para
melhor. Ao passar minhas experiências para os meus filhos por e-
mail, por fotos ou por telefonemas, eu sentia que estava
colaborando para torná-los pessoas melhores no futuro.
Verdadeiros cidadãos, comprometidos com sua gente, com sua
espécie. Espero ter contribuído para que, no futuro,
independentemente do que eles sejam, façam a diferença onde
estiverem.
Reaproximei-me da minha mãe e do meu pai, atravessando
um rio de franco desinteresse e distanciamento sem sentido.
Senti-os mais perto e isso me fez bem. Espero fazer o mesmo por
eles. Antes da minha viagem, beijei meu pai e disse que amava
minha mãe. Não fazia isso há pelo menos uma década, talvez mais.
Reaqueci também o meu relacionamento com minhas duas irmãs.
Espalhadas geograficamente pela ação da vida, só nos restava um
fio de contato. Hoje estamos mais juntos. Não sem razão: uma
delas, a mais velha, estava com um tumor no intestino e foi
submetida a uma cirurgia e tudo deu certo no final. Soube da
doença dela quando minha missão estava terminando. Além
disso, reaproximei-me da minha irmã mais nova. Os e-mails
trocados atestam isso. Não foi por acaso que tudo isso aconteceu.
A África me proporcionou essa nova chance.
Profissionalmente, cresci. Tive tempo para pensar sobre o
Exército e sobre a sua importância. O contato com militares de
mais de 25 países não podia ser desperdiçado. Ao contrário do que
alguns possam ser levados a deduzir deste livro, minha crença na
minha profissão fortaleceu-se. Mantenho ainda mais forte a
certeza de que toda Nação deve possuir um Exército digno desse
nome. O aspecto a ser analisado é a qualidade e as convicções
desse Exército. Precisamos de homens em armas, ou como
prefiro, copiando um dos títulos da obra de Ambrose, de Soldados
Cidadãos[ 40]. Todos com a exata noção de que a qualquer força
armada cabe defender os interesses maiores do Estado.
Forças Armadas não podem ser joguetes nas mãos de
políticos, ditadores, barões da economia ou de minorias de
ocasião. Não podem banhar-se nos regimes pluviais da má
política. Militares de verdade são homens e mulheres idealistas,
que abrem mão de muito para trabalhar pela segurança – muitas
vezes de forma absolutamente anônima, não reconhecida e
diligente – de uma grande maioria chamada povo. Nada mais. Não
são melhores, não são piores, mas o povo em armas. Muito
simples. Dessa forma, terminei a minha missão orgulhando-me
ainda mais de pertencer ao Exército Brasileiro.
Quanto à guerra, ela continuará a existir. Fazendo ou não
parte da natureza humana, ela é um fenômeno social que nos
acompanha desde que nascemos como espécie. Gostemos ou
não, o mundo foi construído em cima de conflitos humanos, que
algumas vezes se tornaram guerras. Uma análise isenta mostra
que os países se prepararam e continuam se preparando para a
eventualidade de um conflito bélico. Os diversos aspectos que
podem deflagrar uma guerra estão intimamente ligados ao fator
econômico e à necessidade de desenvolvimento dos países. Como
esse desenvolvimento implica, na maioria das vezes, tensões com
outras nações, tudo leva a crer que a guerra continuará a
acompanhar a humanidade por muitos anos, inclusive na África.
Portanto, nada de pacifismo pueril! A realidade do mundo é outra.
Vi, na minha faina diária, a gama quase infindável de
interesses nacionais e internacionais na África. Lá não é lugar para
amador. Muitas conclusões podem ser tiradas por um observador
atento... Não se trata de brincadeira. Há, sim, muito dinheiro e
interesse envolvido. É jogo duro e bruto.
Quanto à ONU, minha percepção é a de que se trata, sem
dúvida alguma, de uma instituição séria, com uma missão
complexa demais para ser levada a cabo da forma como o mundo
desejaria, ou como alguns críticos encastelados em estruturas
modernas ou antigas acreditam ser possível. As variantes são
tantas que fica impossível atingir determinados resultados. Diante
da organização, dos quadros, do formidável aporte financeiro e da
estrutura existente nessa instituição, colidem interesses, países
com enorme influência econômica e estratégica, imponderáveis
sociais e econômicos, como doenças endêmicas e falta de cultura
democrática expressiva, além de um complexo jogo envolvendo
nações, grandes empresas e interesses pessoais que não
permitem que ela obtenha o êxito espetacular que muitos
sonham. Não acredito que seja uma instituição falida ou
decadente; ao contrário, é uma instituição exitosa quando
entendido o complexo de forças que atuam sobre ela.
É fundamental entender que existe uma distância enorme
entre o que se idealiza para uma operação como a que trabalhei
e o que é realmente possível fazer. Ao vivenciar a realidade,
despido de idealismo pueril, fantasioso ou ideológico, próprio dos
teóricos de gabinete, cheguei à conclusão de que é muito fácil
criticar e apontar erros em um gigante desses, mas não seria justo.
A ONU não tornou o mundo tão pacífico como se esperava quando
foi criada em 1945[ 41]; mas, se ela não existisse, hoje estaríamos
em um caos geopolítico infinitamente maior. Penso que se deve
apenas cuidar para que ela não tenha, com o passar dos anos, o
mesmo fim da Liga das Nações. Para isso, é preciso senso de
realidade, mudanças constantes na forma de agir, modernizar a
sua organização, levando em conta os novos players mundiais e
pessoas realmente preparadas para o trabalho desafiante que ela
tomou para si: a paz mundial. Orgulho-me de ter trabalhado na
ONU sem qualquer traço de pieguice ou imparcialidade. Conheci,
com certa propriedade, o que ela tem de bom e de ruim, e penso
que o saldo é extremamente benéfico para a organização.
Mas quanto à África? É um caso perdido? Claro que não! Há
trabalho estafante a fazer. E a boa notícia é que existe gente –
militares e civis – fazendo esse trabalho. Lógico que precisam de
mais e mais pessoas engrossando essa legião anônima e invisível,
que labuta quase que insanamente, contrapondo-se à lógica dos
fatos. Aí está a sua beleza, aí está o valor dessa gente. São os
“santos” modernos vestidos com calças jeans puídas, coletes
cheios de bolsos, camisa de malha lisa, cabelos sujos de poeira,
pele vermelha tostada pelo sol, olhos que tentam se equilibrar
entre a incredulidade e a esperança, mas sempre com um sorriso
farto na boca, que faz esquecer o submundo em que estão
imersas.
São os “capacetes azuis”, distribuindo água e comida para os
esfarrapados pela vida, dando um breve, mas caloroso, abraço na
criança órfã, doando sua própria ração diária para enganar, nem
que seja por um dia, a fome covarde.
Contudo, não é só na África que podemos aprender mais
sobre nós mesmos e, simultaneamente, ajudar uma sociedade a
suplantar seus óbices. Não é só por meio de grandes e
bombásticas viagens através do mundo que temos esse tipo de
possibilidade. No Brasil, temos nossos desalentos e misérias. O
campo é farto, infelizmente. Favelas, falta de saneamento, falta
de educação, falta de carinho, falta... Há em nosso País campo
fértil para vivenciar experiências engrandecedoras, sob todos os
aspectos, simultaneamente ajudando aqueles que precisam. A
responsabilidade social pode – e deve – ser exercida nos bairros,
nas cidades, nos estados... Se pararmos e olharmos para os lados,
não muito longe de onde estamos sentados lendo estas páginas,
tenho certeza de que encontraremos algo a ser feito. Algo em que
possamos fazer a diferença!
O cabedal de aprendizado nessa minha experiência foi
infinito. Não houve um dia igual ao outro. As dificuldades foram
imensas, muitas vezes parecendo abissais; mas empurraram-me
para a frente. Lá não se matava um leão por dia, mas um por hora!
Os momentos de pressão eram constantes em função das
dificuldades de idiomas e culturas que se misturavam e se
colidiam, da possibilidade de algo grave ocorrer, seja em função
de uma doença, de um acidente ou de um incidente. Mas o ser
humano, esta máquina espetacular, acostuma-se a tudo. Sem
saber, criei ferramentas emocionais que transformavam
momentos de pressão em algo suportável e, muitas vezes,
encarado de maneira natural.
A visão mágica de ver o povo africano, percorrendo as
estradas a pé, exibindo suas roupas coloridas que se batiam com
o vento, suas faces negras e brilhantes revelando fé contida e
estoica esperança, será eterna. São essas as imagens que levo
comigo cada vez que retorno meus pensamentos para o
continente dos mistérios. Espero ter retribuído o muito que
aprendi com a África e com o seu povo. Espero ter me tornado
uma pessoa melhor e mais útil à sociedade.
Ah! Quase ia me esquecendo sobre os elefantes... Busquei
por várias partes da Costa do Marfim encontrar alguns, andando
livres pelas savanas. Infelizmente, nunca tive a ventura de
encontrar unzinho sequer... Lazar, meu amigo romeno, indicou-
me o canal pago Animal Planet como opção... Na verdade, eles
foram mortos ou levados para outras paragens. Não importa. Sei
que o simbolismo que eles representam está impregnado nos
corações e nas mentes do povo africano. Allez les éléphants![ 42]

Fim
As times goes by[ 43]
Este livro foi terminado em 2006. Ele é fruto de um diário
que iniciei no primeiro dia de missão e só encerrei quando estava
retornando para o Brasil definitivamente. Além de registrar
minhas impressões por escrito, tirei mais de 800 fotografias
durante aquele ano; daí a quantidade de detalhes que fui capaz
de transcrever. A fim de preservar algumas pessoas, omiti
propositadamente certos nomes e nacionalidades. Em certas
passagens, o que importava era o fato, a história, não os nomes...
É possível existirem alguns dados inexatos ou trocados em função
da grafia dos nomes, da dificuldade em traduzir conversas rápidas
em vários idiomas e à própria dinâmica da missão. De lá para cá,
muitas coisas aconteceram com os estrangeiros que fizeram parte
dessa história. Mantenho contato por e-mail ou por intermédio de
redes sociais ou até mesmo por telefonemas com a maioria. O
tempo passou e cada um seguiu rumos diferentes.
Ao terminar a missão na Costa do Marfim,
que ele chamava de "mission possible" e
onde trabalhou entre 2005 e 2007, o meu
amigo russo retornou para o seu país. Entre
2009 e 2010 foi designado observador militar
na República Democrática do Congo. Em
Eduard Nikitin 2011, após 21 anos de serviço, pediu sua
reserva do Exército da Rússia e foi trabalhar
na iniciativa privada. Inicialmente, em um
projeto internacional para ligar, por meio de
estrada de ferro, as cidades de Sirt e Bengazi
na Líbia. Atualmente, trabalha em Moscou
como intérprete de inglês e árabe na área
técnica de uma empresa de radares. É casado
e tem dois filhos (de 15 e 2 anos).
Kourouma Ismael O jovem Ismael resolveu apostar em si
mesmo. Trabalhou como voluntário na Cruz
Vermelha Internacional, em Bouaké, depois
que deixei a missão. Estudou em Gana e na
Suécia, em 2008, aperfeiçoando-se na área
de tecnologia da informação (TI). Hoje
trabalha em uma empresa multinacional de
TI em Madri, Espanha, e estuda Direito
Internacional Humanitário. Planeja, em
breve, iniciar um mestrado ou MBA. Sua
família continua vivendo em Bouaké. Tem 26
anos e fala francês, inglês e espanhol
fluentemente.
O meu amigo nigeriano do “tamanho de um
fusca” concluiu sua missão na Costa do
Marfim em 2006. Antes, esteve em Serra
Leoa como membro da ONU. Serviu seu país
Iliyasu Bagna por 18 anos e, em 2007, foi para a reserva do
Exército da Nigéria, como major. Atualmente,
mora em Lagos, onde trabalha para uma
empresa petrolífera multinacional como
gerente de segurança de águas profundas. É
casado e tem três filhos, Ishaku, Alheri e
Albarka.
O meu grande amigo e excelente fotógrafo
Croata mora com a família na cidade de Split.
Saiu do Exército da Croácia em 2011 e
Petar Mihanovic gerencia projetos esportivos em um centro
de recreação enquanto, segundo suas
palavras, tem o prazer de ver as oliveiras do
seu quintal crescerem, aproveitando a vida
civil na sua plenitude.
Lazar, um amigo sempre disponível a ajudar,
foi para a reserva do Exército da Romênia em
2008. Atualmente, é proprietário de dois
negócios: um em que comercializa produtos
Sorin Lazar elétricos; e outro, uma pizzaria, que gerencia
com a ajuda de sua esposa. Outro dia me
pediu que eu mandasse uma receita típica de
pizza brasileira. Prezo muito os meus amigos
italianos para cometer uma afronta desse
tipo.

Eu, como meus bons e queridos amigos que conheci na


missão, também sofri a ação do tempo e tive que tomar decisões.
Ao chegar da África, fui para a Escola de Comando e Estado-Maior
do Exército, onde estudei por dois anos e iniciei o meu doutorado
em Ciências Militares na área de Logística Militar Terrestre – que
terminaria depois de três anos – e um MBA na Fundação Getúlio
Vargas em Logística Empresarial.
Em 2010, de maneira completamente inesperada e com um
curtíssimo prazo entre a notícia e o meu embarque (três
semanas), fui designado para trabalhar novamente na ONU, por
um período de um ano. Dessa vez, na Missão das Nações Unidas
para Estabilização do Haiti (MINUSTAH), logo após o terremoto
que destruiu a cidade de Porto Príncipe e matou militares e civis
brasileiros, dentre outros. Mas essa é outra história...
Ao retornar, em 2011, divorciei-me e vivo com dois dos meus
três filhos no Rio de Janeiro, onde sou tenente-coronel e comando
uma escola militar voltada para a especialização de oficiais e
sargentos.
Tenho muitos sonhos e poucos planos para o futuro, pois os
anos me ensinaram que ter planos demais é perda de tempo. A
vida e as pessoas mudam rapidamente, dissolvendo a maior parte
dos nossos planejamentos, mas não os sonhos.
Atualmente, com 44 anos, só quero ser feliz (quem não
quer?) e talvez comprar uma prancha de surfe, dessas de velho
mesmo, enormes e pesadonas, e voltar a surfar, quem sabe na
companhia dos meus três filhos, se eles quiserem, bem cedinho
para ninguém me ver passar vergonha tomando caldos. Assim
fazia quando tinha 16 anos e era o feliz proprietário de uma
prancha biquilha azul degradê (sim, hoje essas cores soam
cafonas, mas à época eram “radicais”). Infelizmente, tive que
parar de surfar e vendê-la para seguir a minha profissão. Acho que
eu mereço tentar de novo...
Rio de Janeiro, maio de 2012.

[1] Fonte: http:// www.apolo11. com/ paises.php? ban = iv


[2] Em português se usa Costa do Marfim (Ivory Coast em
inglês, Elfenbeinküste em alemão), o governo marfinês solicitou à
comunidade internacional, em outubro de 1985, que o país seja
designado apenas por Côte d'Ivoire.
[3] Zone of confidence, em inglês. Zona de Confiança, em
Português. Alguns chamam também de Buffer Zone. Trata-se de
uma faixa no terreno, dividindo o país em duas partes, com uma
profundidade de 40 km. Nesse terreno, é proibida a presença de
elementos das Forces Nouvelles e do governo marfinense.
Somente tropas da ONU e da França podem passar por lá.
[4] Forças Novas. São forças militares que se rebelaram
contra o governo do presidente Gbagbo. Refugiaram-se no norte,
dominando importantes áreas.
[5] Economic Community of West African States
(Comunidade Econômica dos Estados do Oeste Africano).
[6] Opération des Nations Unies en Côte d’Ivoire (francês) e
United Nations Operation in Côte d’Ivoire (inglês). Ambos são os
nomes oficiais para se referir à missão.
[7] Existem diversas milícias no sul, que apoiam o atual
presidente. A mais conhecida se chama “Jovens Patriotas”. É
também a mais violenta e numerosa. Recebem ordem direta da
mulher do presidente, Simone Gbagbo.
[8] Desarmamento, Desmobilização e Reintegração. Busca
resolver o problema do que se fazer com ex-combatentes que
precisam de novas perspectivas após o fim dos conflitos, bem
como os milhares de armamentos devolvidos.
[9] Military Observers, em inglês (observador militar).
[10] Fonte: http:// onuci-in30. dpko.un.org.
[11] Espécie de base semiautônoma, onde os MILOBS
trabalham. Fisicamente, correspondem a dois ou três contêineres,
com computadores, telefones via satélite, ração e água de
emergência para cerca de uma semana, viaturas etc.
[12] O idioma oficial da Costa do Marfim é o francês. Mas
usam-se dialetos específicos para cada etnia. O inglês é usado
para a comunicação entre membros da ONU e na redação de
alguns documentos oficiais.
[13] Escola destinada a realizar o curso de aperfeiçoamento
dos capitães do Exército Brasileiro. Equivale ao curso de mestrado
civil.
[14] Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
Brasileiro. Trata-se de um estabelecimento de ensino militar de
nível doutorado responsável por formar assessores de alto nível.
[15] Department of Peacekeeping Operations
(Departamento de Operações de Paz). Sediado na ONU, em Nova
York, tem por finalidade selecionar e coordenar os militares que
trabalham em missões de paz no mundo inteiro.
[16] Nossa cadelinha do tipo “salsicha”.
[17] Escola Preparatória de Cadetes do Exército. Localizada
em Campinas, SP. Na época, consistia em um curso de três anos
de regime de internato, preparando os futuros cadetes do
Exército Brasileiro.
[18] Chegamos à Costa do Marfim.
[19] Bem-vindo, no dialeto local. Pronuncia-se acaubá.
[20] No Brasil são 3 horas a menos durante o ano, exceto
quando estamos em horário de verão, que são 2 horas a menos.
[21] Estilo de vida africano.
[22] Cerca de 10 dólares.
[23] Sem problemas.
[24] Atualmente, há somente duas bases: uma chamada
Sebroko e outra Koumassi.
[25] Chefe de pessoal. No linguajar civil, equivale aos
Recursos Humanos.
[26] Carteira de identidade da ONU, de uso obrigatório por
militares e civis que lá trabalham.
[27] Fonte: Centro de Informações para Viajantes – Brasil.
[28] Termo típico de forças de guerrilha. Significa, via de
regra, julgamentos sumários de algum preso.
[29] Título em inglês do filme Falcão Negro em Perigo,
exibido no Brasil. Fala sobre uma fracassada tentativa de tropas
da ONU, lideradas pelos EUA, em capturar um líder guerrilheiro na
Somália, na cidade de Mogadíscio.
[30] Sigla de Global Position System. Possibilita saber as
coordenadas de um ponto por meio da interseção de satélites
estacionados no espaço.
[31] Não se preocupe, você está na África!
[32] Forças Armadas da Costa do Marfim.
[33] Ele está muito cansado ou muito doente.
[34] Mais ou menos ou vai tudo mais ou menos.
[35] Um presentinho!

[36] Como?
[37] Quantas?
[38] Lavar o carro? Agora? Por quê? Disse isso porque havia
mandado lavar os carros do team site na véspera.
[39] Desculpe-me… Perdão…
[40] Livro de Stephen E. Ambrose que conta a história dos
soldados norte-americanos que desembarcaram na Normandia
até a sua chegada à Alemanha, sob o ponto de vista dos homens
e mulheres que participaram daquela epopeia.
[41] A conferência de abril de 1945, em São Francisco, nos
EUA, marca, historicamente, o surgimento da ONU. Entre agosto
e outubro de 1944, em Dumbarton Oaks, nos EUA, houve uma
reunião preliminar entre a China, a ex-URSS, o Reino Unido e os
EUA. A Carta das Nações Unidas, principal instrumento jurídico da
ONU, foi ratificada em 26 de junho de 1945. Consta de 111 artigos
e 19 capítulos. A ONU foi estabelecida com 50 países membros,
dentre eles, o Brasil. Atualmente, o número ultrapassa 190
membros.
[42] Vamos lá, elefantes! Frase muito utilizada na Costa do
Marfim para incentivar os marfinenses a se superarem.
[43] E o tempo passa...

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