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1ª Edição – 2012
Copyright © 2011 – Todos os direitos reservados a:
Heitor Abreu
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ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja ele impresso, digital, áudio ou visual sem a
expressa autorização por escrito da Biblioteca 24 horas sob penas criminais e ações civis.
Dedicatória
Para meus pais, José Heitor e Lia, e minhas irmãs, Carla e Karina.
Agradecimentos
A Deus, pela fé, pela força e pelas lágrimas enxugadas nos momentos mais difíceis na África,
que só Ele e eu testemunhamos.
Aos meus filhos, João, Isabela e Mauro, que souberam entender a grandeza da minha missão
na África. Espero que as experiências narradas nestas páginas os tornem pessoas maduras e
úteis à sociedade, no seu devido tempo.
A Cristiane, que me ensinou que a vida é muito para ser desperdiçada e me disse: “Você vai
publicar esse livro. Essa história merece ser contada e lida”.
O autor
Amyr Klink
Um longo voo
Este livro fala da África sob a ótica de um observador militar
que viveu um ano na Costa do Marfim[ 2], entre outubro de 2005
e outubro de 2006. Antes de qualquer conclusão apressada, não
é, absolutamente, um livro militar ou voltado para a História
Militar. Ao contrário, afasta-se sobremaneira do enfoque
castrense. Trata-se de uma visão humanista e sincera, sem
retoques, e bastante direta que só o convívio diário e a minha
incredulidade diante dos fatos que vivenciei poderiam
proporcionar. Julguei razoável dividir com outras pessoas.
Durante aqueles 12 meses não fiz nada de heroico que
valesse uma medalha, um aumento de salário ou um prêmio. Fiz
apenas o que se esperava de mim: o meu dever. Digo isso sem
nenhum rasgo de falsa modéstia ou de pieguice. Essa é a mais pura
e transparente verdade. Os heróis verdadeiros, eu iria conhecer
por lá.
Aprendi que, quando se está na África, não há como mentir
para si mesmo. No entanto, ao lado do cumprimento das minhas
missões profissionais, procurei conhecer um pouco mais as
pessoas, os ambientes e as peculiaridades culturais a que fui
submetido. Queria, todo o tempo, entender a perspectiva do povo
africano, a forma de olhar o mundo que tanto nos encanta, mas
também nos deixa confusos quando vemos imagens fortes que
retratam o continente sendo espalhadas na mídia a todo o
momento. Talvez, em alguma parte da minha narrativa, haja
traços de etnocentrismo. Mas como não ficar tentado, em alguns
momentos, a comparar a minha visão de mundo com o que vi na
África? Como não reagir ao saber que circuncisão feminina e
estupro marital, dentre outros absurdos, ainda são realidades
naquele continente? Como não se revoltar ao ver que a
poliomielite ainda é endêmica e deforma as pessoas em pleno
século XXI?
Em certos momentos, senti raiva de algumas pessoas –
africanos ou não – por serem fatalistas, inertes, muitas vezes,
diante dos acontecimentos; mas também senti que a distância
que nós, povos de outros continentes, interpomos a eles é
imensamente maior do que a realidade. No fundo, africanos,
americanos, europeus, orientais, enfim, todos buscam os mesmos
valores e objetivos: verdade, honestidade, família, filhos, amigos,
um abraço de agradecimento, um beijo amoroso, um olhar de
compreensão, afeto... A forma dessa busca é que difere.
No momento em que desci do avião que me levou até a
Costa do Marfim, tive a certeza de que não seria o mesmo ao final
da minha missão. A minha dúvida era se voltaria melhor ou pior
do que saíra. Não me preocupava com o aspecto profissional.
Tinha segurança da minha capacidade; de outra forma, o Exército
Brasileiro não teria me selecionado para aquele desafio
sabidamente árduo.
Preocupava-me o resultado puramente humano que aquela
experiência iria impregnar na minha alma. O tempo iria corroborar
minhas premonições. A minha estadia na África provocou
profundas e indeléveis marcas na minha personalidade. A maioria
delas positiva. O meu caráter se reforçou, as minhas convicções
foram lapidadas, muitas das minhas ideias, até então “pétreas”,
foram dissolvidas diante de fatos inquestionáveis. Meu coração
pulsou com mais intensidade, meus olhos inundaram muitas e
muitas vezes. Dei uma nova chance para a minha fé em relação a
Deus...
Não há como se esquivar diante de fatos tão reais e, muitas
vezes, chocantes. Plagiando um dos meus autores prediletos,
Nelson Rodrigues, a gente vê a “vida como ela é”, não como
gostaríamos que fosse.
Mas, aqui, permita-me uma advertência. Viver algum tempo
na África não significa a cura de todos os males ou a redenção
pessoal. Não se trata de uma experiência sobrenatural ou que vai
conduzir alguém a um paraíso divino, onde os anjos estarão
tocando melodias em harpas. É experiência dura e exaustiva. Vi
muita gente ir até lá, vivenciar a realidade tão diferente e
característica, e não mudar sua forma de pensar um centímetro
sequer. Vi, inclusive, aqueles que se tornaram mais duros, mais
rígidos consigo mesmo e com as pessoas. Fuga de si próprio? Há
que se ter vontade, há que mergulhar, por mais doloroso que seja,
no desafio; para, só então, vir à tona renovado.
Sinceramente, espero que as páginas seguintes sirvam para
ampliar o conhecimento sobre a África daqueles que as lerem e, o
que é mais importante, provocar uma reflexão, mesmo que num
pequeno lampejo, sobre o que é realmente importante na vida e
o que é apenas acessório.
Em algum lugar no voo Abidjan- Dakar – Lisboa – Rio de
Janeiro, outubro de 2006.
Capítulo 1
Coordenadas0508115 N 0030116 W
O sol de abril castigava o meu rosto sem piedade, apesar de
ainda não serem nem 10 horas da manhã. O calor africano, alguns
anos atrás apenas imaginado ao assistir a alguns filmes sobre a
África, como em Uma Aventura na África (The Africa Queen) e
durante as muitas leituras sobre o continente, saía do campo da
imaginação e revelava sua força queimando a minha pele. O ar-
condicionado da nossa Toyota Prado VX havia quebrado na
véspera; então, só nos restava abrir as janelas e sentir o vento
quente que soprava. Coloquei meus óculos escuros para proteger
meus olhos da intensa luz que quase nos cegava. Completamente
suado e com o uniforme camuflado empapado, aceitei a oferta de
lenços umedecidos, desses de bebê, do meu amigo chinês que
dirigia atabalhoadamente. No início ficava nervoso com os
motoristas alucinados que conheci na missão. Mas, naquela
altura, apenas colocava o meu cinto de segurança, certificava-me
de que o air bag estava funcionando e relaxava. As rezas, que eram
muitas e diárias, eu fazia ao acordar...
Bing Zhang era um tenente-coronel da Marinha chinesa que
acabara de chegar. Assim como eu, era um observador militar
designado para trabalhar na Operação das Nações Unidas na
Costa do Marfim. Ele havia chegado em março de 2006. Eu já
estava na “Terra dos Elefantes”, como a Costa do Marfim é
conhecida na África, desde outubro de 2005.
Por alguns míseros minutos, aqueles lencinhos trouxeram
algum alívio. Contudo, após pouco tempo, o calor da África
Subsaariana mostrou que era mais poderoso que simplórios
lenços úmidos. Batalha perdida para o calor. Como estávamos na
época das chuvas, a esperança era a de que mais cedo ou mais
tarde uma dessas tempestades que por lá se formam
repentinamente viesse aliviar nossa situação. Nuvens negras já
apontavam no horizonte.
Sem solução para o calor sufocante, continuamos a nossa
viagem em direção à fronteira com Gana, nosso objetivo final
naquele dia. A estrada de asfalto, sem qualquer pintura, rasgava a
paisagem ladeada ao sul pelo oceano Atlântico, e ao norte por
uma vegetação de palmeiras e, mais ao longe, por árvores de
maior porte, parecendo uma pequena selva.
Tentava prestar atenção no caminho, mas a noite
maldormida deixara minha cabeça entorpecida. Na noite anterior,
o meu comandante, Gerey Oleg, um tenente-coronel russo, havia
ido à minha casa por volta das 23h00 para me entregar uma
ordem de operações que deveria ser executada no dia seguinte,
antes de o sol nascer, nas palavras dele. Bastante chateado pela
situação incomum e desnecessária, que de forma nenhuma era da
responsabilidade dele, tratou de me dar detalhes sobre o que eu
deveria fazer. Nossa reunião foi dentro de uma pick up com ar-
condicionado ligado por causa do calor. Mais uma vez,
confirmava-se minha impressão sobre a desorganização latente
de alguns setores da ONU e a sua falta de previsibilidade. Afinal,
era para inspecionarmos e escoltarmos civis para um projeto
piloto de identificação e naturalização que havia meses estava
planejado. A pergunta que martelou a minha cabeça enquanto lia
a tal ordem de operações era uma só: Ninguém sabia que isso ia
acontecer? Era, mais ou menos, como se nos assustássemos com
a ocorrência do Sete de Setembro no Brasil. Resolvi deixar para lá
e mergulhei na leitura do documento até de madrugada, já
recostado em minha cama, adormecendo com os papéis no meu
colo e ouvindo músicas dos Paralamas do Sucesso.
O balançar da nossa camionete acabou embalando-me
numa mistura de sono e torpor. Sem perceber, divagava sobre a
minha vida e as circunstâncias que me colocaram naquela
situação insólita: eu e um chinês que me lembrava o Stanley, um
personagem do antigo desenho animado chamado Charlie Chan,
viajando pelo litoral da Costa do Marfim. Difícil acreditar; logo eu,
um taurino apegado às coisas tangíveis, aos fatos esperados...
Havia quase oito meses que estava vivendo, vendo e
entendendo – pelo menos tentando – por que um país recém-
saído de uma guerra civil fratricida, que só serviu para ceifar vidas,
separar famílias e revelar ódios fossilizados por séculos de
incompreensão, insistia em recusar-se a dar um fim definitivo a
tanto sofrimento. Parecia-me que o desrespeito, as lutas insanas
e outras formas requintadas de manipulação que só serviram para
aumentar distâncias – fossem elas geográficas, fossem
psicológicas – continuava a dominar o inconsciente coletivo.
Do lado de fora do carro, via a miséria desfilar generosa, sem
fim. Barracos disformes e assimétricos, feitos com madeira velha,
pedaços de ferro e papelão, povoados por jovens mães com filhos
amarrados às costas e crianças sujas vestindo roupas puídas e
negras compunham o cenário. As pessoas caminhavam com
olhares perdidos. Pareciam apenas andar, nada mais que isso; sem
rumo, sem destino certo. Definitivamente, a perspectiva de futuro
não constava na vida daqueles seres. Carros que havia muito já
deveriam ter parado de trafegar insistiam em continuar rodando
pela estrada, dificultando o trânsito, desafiando a lógica e as leis
básicas da mecânica. Era inacreditável ver automóveis sem portas,
vidros, alguns até mesmo sem o capô do motor, apinhados de
gente e de fardos coloridos amarrados no teto e nas laterais,
movendo-se vagarosamente. Dos escapamentos, via-se uma
densa fumaça esbranquiçada saindo e se espalhando por todos os
lados.
De tempos em tempos, encontrávamos alguns desses
“bólidos” quebrados na beira da rodovia. Os passageiros, sem ter
como sair dali, conversavam sentados nos acostamentos já
tomados pelo mato, esperando que alguém aparecesse e
solucionasse o problema. A verdadeira paciência não é chinesa, é
africana! Eles são capazes de permanecer parados, sem fazer
absolutamente nada, durante horas e horas, aguardando uma
solução que nem sabem se virá.
Perguntas recorrentes caíam sobre a minha cabeça como
pedradas que não se podiam desviar: Há solução para esse
continente? Quem são os culpados por tanta desolação, tanto
sofrimento que esse povo é obrigado a vivenciar? Alguém,
realmente, se importa com isso? Eles, os africanos, se importam
com isso? Na verdade, aquele sentimento fatalista, aceitando as
coisas como elas aconteciam, me incomodava...
Os solavancos da estrada de terra que Zhang acabara de
entrar interromperam meus pensamentos pseudofilosóficos e
nada originais, lembrando-me que estávamos próximo do nosso
destino: Tiapoum, uma vila extremamente pobre, na fronteira
com Gana (outro país paupérrimo), debruçada numa das
inúmeras lagunas que permeiam o belíssimo litoral daquela
região. O visor de cristal líquido do meu GPS mostrava as nossas
coordenadas, confirmando que estávamos no lugar correto:
0508115 N 0030116 W. Entrei em contato com a minha base e
informei que estávamos no ponto determinado.
Capítulo 2
Por dentro do Problema
Localizada na porção centro-oeste da África, a Costa do
Marfim era, antes da guerra, um dos países mais desenvolvidos do
continente, sendo considerada a terceira potência econômica
africana ao sul do Saara. Com a luta, a situação econômica e social
se deteriorou rapidamente. Com todo o território no hemisfério
Norte, suas fronteiras são: ao norte, Burkina-Faso e Mali; ao sul, o
oceano Atlântico (golfo da Guiné); a leste, Gana; e a oeste, a
Libéria e a República da Guiné. Com uma superfície de 322.463
km2 (do tamanho do Maranhão, aproximadamente), o país tem
forma compacta, semelhante a um quadrado de 570 km de lado.
O PIB e a renda per capita, em 2010, eram, respectivamente, de
US $ 37,02 bi e US $ 1.716,00.
Seu relevo é relativamente plano, e a vegetação varia de
mangues no litoral, passando por florestas de médio porte até as
savanas mais ao norte. Os rios são rasos e correm de norte para
sul, destacando-se os rios Bandama e Sassandra.
É um país agrícola, com cerca de 60% da população vivendo
fora das cidades mais importantes. É um dos maiores
exportadores de cacau do mundo. Destaca-se ainda a exportação
do óleo de palma e algodão. A madeira também desfruta de
grande importância na pauta de exportação. As indústrias
existentes são, basicamente, da área alimentícia, petroquímica e
elétrica, mostrando-se autossuficiente em energia elétrica.
Antes da guerra, havia excelentes estradas que permitiam
um bom tráfego. No entanto, com a guerra, a malha viária
deteriorou-se, dificultando o trânsito e encarecendo o comércio,
em função das constantes quebras de caminhões que não
resistem à situação rodoviária. Há uma estrada de ferro que corta
o país do norte para o sul que ainda funciona com certa
regularidade. A França ainda detém importantes setores
econômicos no país, como a indústria alimentícia e os serviços de
telefonia celular.
O país possuía uma capital econômica (Abidjan) e uma
político-administrativa (Yamoussoukro). Com o início do conflito,
a parte político-administrativa foi transferida para Abidjan. Após
o cessar-fogo, o país foi dividido em duas porções, uma ao norte,
sob controle das Forces Nouvelles, com capital em Bouaké; e
outra ao sul, sob o governo constituído antes da crise, com sede
em Abidjan. Interpondo-se aos territórios norte e sul, existe a
ZOC[ 3], monitorada por forças militares da ONU e da França.
Morados,
Para nós, militares, a coisa mais importante é cumprir a
missão. Você cumpriu a sua no team site de Bouaké. Parabéns pelo
profissionalismo demonstrado e obrigado pela amizade. Um forte
abraço, Major Heitor.
Palavras simples, diretas e sinceras. Era assim que nos
despedíamos daqueles que já tinham cumprido a missão no team
site. Não sem um pouco de inveja. Alguns escreveram em árabe e
outros em francês seus desejos de sorte e realização para os
nossos companheiros que se despediam. Eu, obviamente, escrevi
em inglês, afinal, meu árabe estava meio enferrujado... E assim
passei mais alguns dias na África...
Tempos depois, em abril de 2006, seria transferido para
Abidjan, onde ficaria até o fim da minha missão. Receberia
despedida semelhante num restaurante pertencente a um
marroquino que tinha uma linda filha de 6 anos que sempre ficava
nos rodeando. Chamava-se Mahuá.
Capítulo 11
Servilismo, Costumes, Gastronomia e outras coisas
Um dos aspectos que mais salta aos olhos quando se está na
África, falando de comportamento humano, é o servilismo de boa
parte do povo. Muitas pessoas humildes, ao verem alguém com
mais posse – seja branco ou negro –, adotam uma postura servil,
quase humilhante. É o exemplo do cumprimento que alguns deles,
notadamente os mais humildes, faziam quando me encontravam.
Quem me explicou o significado foi um padre. Além de eles
estenderem a mão direita, como nós fazemos normalmente, eles
apoiam a esquerda no antebraço direito. Segundo me ensinaram,
era um sinal de reconhecimento da minha, por assim dizer,
superioridade sobre ele; ou seja, ele se considerava uma espécie
de servo ou coisa parecida. Esse comportamento tornou-se
irritante para mim. Era como se eles já aceitassem, de antemão,
que nós éramos melhores do que eles, que a vida decidira os
nossos destinos de forma diferente, afortunando-nos com algum
dinheiro e a eles simplesmente esquecendo-os. Havia imensa –
bota imensa nisso! – dificuldade para eles entenderem que o fato
de alguém ter mais dinheiro não significava que deviam adular
essas pessoas, servindo-as de maneira quase escrava.
Em Bouaké, assim como aconteceria em Abidjan, tínhamos
dois seguranças contratados pela ONU que tomavam conta da
nossa casa enquanto estávamos fora. Eles eram pagos para
guardar, evidentemente, a casa. Nada mais. É verdade que na
maior parte do tempo, passavam o dia praticando um dos
esportes nacionais: dormindo! Mas, quando chegávamos, sem
culpa ou desculpas, acordavam e vinham celeremente para o
nosso carro. Só faltavam nos carregar até os quartos. Abriam as
portas, pegavam nossas mochilas, acendiam as luzes. Além disso,
lavavam o carro, todos os dias, com sol ou chuva, de forma que,
quando estávamos para sair, ele estava sempre limpo.
Aquilo realmente me incomodava. Decidi acabar com aquele
comportamento, pelo menos na casa em que morava. Tentei
explicar para o nosso guarda-noturno que carregar as minhas
coisas, abrir e fechar portas e outras coisas não era
responsabilidade dele. Ele me ouvia, abaixando a cabeça a cada
frase minha. No final ele me perguntou:
– O patrão não gosta de mim?
Entendera o recado. Recusar a ajuda deles era um sinal de
desaprovação sobre o seu trabalho. Sinal de inimizade. Solução:
deixei-os carregarem minhas coisas todos os dias, mas sempre
pegando um ou outro pacote também. Fingia que estava
assoberbado de coisas e realmente necessitava da ajuda deles.
Mentira, podia carregar tudo sozinho. De qualquer forma, aquela
relação desigual me fazia mal. Sentia-me explorando cada um
deles. Afinal, não os pagava para fazer aquilo. Talvez estivesse,
inconscientemente, carregando a culpa de anos de exploração
desmedida a que foram submetidos. E olha que eu nem era
nascido na época do Congresso de Berlim!
Dormir, como já disse, é quase que uma instituição nacional.
Certo, todos precisam dormir! Mas na Costa do Marfim é alguma
coisa no mínimo surreal. Eu não sei a causa, talvez faltasse uma
boa alimentação, vitaminas e outros componentes necessários à
reposição humana; mas é fato que lá se dorme muito. Há até uma
frase comum e motivo de brincadeira entre os estrangeiros
quando se pergunta por que um marfinense que deveria estar em
algum lugar não compareceu: Il est très fatigué ou il est malade![
33] Mas é uma verdade. Nunca vi lugar para ter tanta gente,
supostamente, cansada ou doente. Aliás, antes de ficar doente,
eles já se sentem doentes. Está no inconsciente deles. Nunca, mas
nunca mesmo, eles estão 100% bem. Tente perguntar a um deles
se está tudo bem. A resposta será, inexoravelmente, Je suis
comme ci comme ça ou Ça va un peau[ 34]. Eu, só para provocar,
perguntava: Por que não totalmente bem? Está se sentindo mal?
Não... respondiam. Então você está três bien! Insistia. Mas não
adiantava, no outro dia ele já estaria comme ci comme ça...
Durante viagens ou patrulhas, descobrimos que era normal
caminhões pararem nas estradas para que os motoristas
pudessem dormir. O problema é que, como não havia
acostamento, eles simplesmente deixavam os enormes veículos,
cheios de carga, na rodovia. Muitos acidentes ocorriam em função
dessa prática. Se você quisesse continuar a viagem, era seu
problema desviar, bem devagar, de cada um que encontrasse pela
frente.
Fim
As times goes by[ 43]
Este livro foi terminado em 2006. Ele é fruto de um diário
que iniciei no primeiro dia de missão e só encerrei quando estava
retornando para o Brasil definitivamente. Além de registrar
minhas impressões por escrito, tirei mais de 800 fotografias
durante aquele ano; daí a quantidade de detalhes que fui capaz
de transcrever. A fim de preservar algumas pessoas, omiti
propositadamente certos nomes e nacionalidades. Em certas
passagens, o que importava era o fato, a história, não os nomes...
É possível existirem alguns dados inexatos ou trocados em função
da grafia dos nomes, da dificuldade em traduzir conversas rápidas
em vários idiomas e à própria dinâmica da missão. De lá para cá,
muitas coisas aconteceram com os estrangeiros que fizeram parte
dessa história. Mantenho contato por e-mail ou por intermédio de
redes sociais ou até mesmo por telefonemas com a maioria. O
tempo passou e cada um seguiu rumos diferentes.
Ao terminar a missão na Costa do Marfim,
que ele chamava de "mission possible" e
onde trabalhou entre 2005 e 2007, o meu
amigo russo retornou para o seu país. Entre
2009 e 2010 foi designado observador militar
na República Democrática do Congo. Em
Eduard Nikitin 2011, após 21 anos de serviço, pediu sua
reserva do Exército da Rússia e foi trabalhar
na iniciativa privada. Inicialmente, em um
projeto internacional para ligar, por meio de
estrada de ferro, as cidades de Sirt e Bengazi
na Líbia. Atualmente, trabalha em Moscou
como intérprete de inglês e árabe na área
técnica de uma empresa de radares. É casado
e tem dois filhos (de 15 e 2 anos).
Kourouma Ismael O jovem Ismael resolveu apostar em si
mesmo. Trabalhou como voluntário na Cruz
Vermelha Internacional, em Bouaké, depois
que deixei a missão. Estudou em Gana e na
Suécia, em 2008, aperfeiçoando-se na área
de tecnologia da informação (TI). Hoje
trabalha em uma empresa multinacional de
TI em Madri, Espanha, e estuda Direito
Internacional Humanitário. Planeja, em
breve, iniciar um mestrado ou MBA. Sua
família continua vivendo em Bouaké. Tem 26
anos e fala francês, inglês e espanhol
fluentemente.
O meu amigo nigeriano do “tamanho de um
fusca” concluiu sua missão na Costa do
Marfim em 2006. Antes, esteve em Serra
Leoa como membro da ONU. Serviu seu país
Iliyasu Bagna por 18 anos e, em 2007, foi para a reserva do
Exército da Nigéria, como major. Atualmente,
mora em Lagos, onde trabalha para uma
empresa petrolífera multinacional como
gerente de segurança de águas profundas. É
casado e tem três filhos, Ishaku, Alheri e
Albarka.
O meu grande amigo e excelente fotógrafo
Croata mora com a família na cidade de Split.
Saiu do Exército da Croácia em 2011 e
Petar Mihanovic gerencia projetos esportivos em um centro
de recreação enquanto, segundo suas
palavras, tem o prazer de ver as oliveiras do
seu quintal crescerem, aproveitando a vida
civil na sua plenitude.
Lazar, um amigo sempre disponível a ajudar,
foi para a reserva do Exército da Romênia em
2008. Atualmente, é proprietário de dois
negócios: um em que comercializa produtos
Sorin Lazar elétricos; e outro, uma pizzaria, que gerencia
com a ajuda de sua esposa. Outro dia me
pediu que eu mandasse uma receita típica de
pizza brasileira. Prezo muito os meus amigos
italianos para cometer uma afronta desse
tipo.
[36] Como?
[37] Quantas?
[38] Lavar o carro? Agora? Por quê? Disse isso porque havia
mandado lavar os carros do team site na véspera.
[39] Desculpe-me… Perdão…
[40] Livro de Stephen E. Ambrose que conta a história dos
soldados norte-americanos que desembarcaram na Normandia
até a sua chegada à Alemanha, sob o ponto de vista dos homens
e mulheres que participaram daquela epopeia.
[41] A conferência de abril de 1945, em São Francisco, nos
EUA, marca, historicamente, o surgimento da ONU. Entre agosto
e outubro de 1944, em Dumbarton Oaks, nos EUA, houve uma
reunião preliminar entre a China, a ex-URSS, o Reino Unido e os
EUA. A Carta das Nações Unidas, principal instrumento jurídico da
ONU, foi ratificada em 26 de junho de 1945. Consta de 111 artigos
e 19 capítulos. A ONU foi estabelecida com 50 países membros,
dentre eles, o Brasil. Atualmente, o número ultrapassa 190
membros.
[42] Vamos lá, elefantes! Frase muito utilizada na Costa do
Marfim para incentivar os marfinenses a se superarem.
[43] E o tempo passa...