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Organizadora

CONCEIÇÃO DE MARIA BELFORT DE CARVALHO

ANAIS DO II CICLO DE DEBATES SOBRE SAÚDE MENTAL NO


ENSINO SUPERIOR DO MARANHÃO: UNIVERSO ACADÊMICO
E QUALIDADE DE VIDA

São Luís

2018

Copyright © 2020 by EDUFMA


ORGANIZADORES
Ana Caroline Amorim Oliveira
Conceição de Maria Belfort de Carvalho
Larissa Lacerda Menendez
Luciano da Silva Façanha
Zilmara de Jesus Viana de Carvalho

ANAIS DO
III SIMPÓSIO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM
CULTURA E SOCIEDADE DO PGCult – III SIICS

ISBN E-BOOK: 978-65-86619-06-5

São Luís

2020
Copyright © 2020 by EDUFMA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
Prof. Dr. Natalino Salgado Filho
Reitor

Prof. Dr. Marcos Fábio Belo Matos


Vice-Reitor

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO


Prof. Dr. Sanatiel de Jesus Pereira
Diretor

CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Esnel José Fagundes
Profa. Dra. Inez Maria Leite da Silva
Prof. Dr. Luciano da Silva Façanha
Profa. Dra. Andréa Dias Neves Lago
Profa. Dra. Francisca das Chagas Silva Lima
Bibliotecária Tatiana Cotrim Serra Freire
Prof. Me. Cristiano Leonardo de Alan Kardec Capovilla Luz
Prof. Dr. Jardel Oliveira Santos
Prof. Dr. Ítalo Domingos Santirocchi

REVISÃO
Profa. Dra. Ana Caroline Amorim Oliveira
Profa. Dra. Conceição de Maria Belfort de Carvalho
Profa. Dra. Larissa Lacerda Menendez
Prof. Dr. Luciano da Silva Façanha
Profa. Dra. Zilmara de Jesus Viana de Carvalho

PROJETO GRÁFICO
Sansão Hortegal Neto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

III Simpósio Internacional Interdisciplinar em Cultura e Sociedade do PGCult (5.:2020: São Luís, MA).

Anais do III Simpósio Internacional Interdisciplinar em Cultura e Sociedade do PGCult; [recurso eletrônico] /
Organizadores: Ana Caroline Amorim Oliveira, Conceição de Maria Belfort de Carvalho, Larissa Lacerda
Menendez, Luciano da Silva Façanha e Zilmara de Jesus Viana de Carvalho. — São Luís: EDUFMA, 2020.

2270 p.

Modo de acesso: Internet


<http://www.3siicsufma.k6.com.br>

ISBN E-BOOK: 978-65-86619-06-5

1. Pesquisa. 2. Internacional. 3. Interdisciplinaridade. 4. Cultura. 5. Sociedade. I. Oliveira, Ana Caroline Amorim


Oliveira. II. Carvalho, Conceição de Maria Belfort de; III. Menendez, Larissa Lacerda; IV. Façanha, Luciano da Silva;
V. Carvalho, Zilmara de Jesus Viana de.

CDU 1.001.1
CDD 100.001

Elaborada por Gracelynne Oliveira Santos - CRB13 / 520


Anais do III Simpósio Internacional Interdisciplinar em Cultura e Sociedade do PGCult

ORGANIZADORES
Ana Caroline Amorim Oliveira
Conceição de Maria Belfort de Carvalho
Larissa Lacerda Menendez
Luciano da Silva Façanha
Zilmara de Jesus Viana de Carvalho

COORDENAÇÃO GERAL
Profa. Dra. Conceição de Maria Belfort de Carvalho – UFMA
Prof. Dr. Luciano da Silva Façanha – UFMA
Profa. Dra. Zilmara de Jesus Viana de Carvalho – UFMA

COMISSÃO ORGANIZADORA
Profa. Dra. Ana Caroline Amorim Oliveira
Prof. Dr. Antonio Cordeiro Feitosa
Prof. Dr. Arkley Marques Bandeira
Profa. Dra. Conceição de Maria Belfort Carvalho
Profa. Dra. Cristiane Navarrete Tolomei
Profa. Dra. Fernanda Areias de Oliveira
Prof. Dr. Flávio Luiz de Castro Freitas
Prof. Dr. João Batista Bottentuit Junior
Prof. Dr. José Ribamar Ferreira Júnior
Profa. Dra. Juciana de Oliveira Sampaio
Profa. Dra. Klautenys Dellene Guedes Cutrim
Profa. Dra. Larissa Lacerda Menendez
Prof. Dr. Luciano da Silva Façanha
Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa
Prof. Dr. Marcelo da Silva
Profa. Dra. Mônica Teresa Costa Sousa
Profa. Dra. Sandra Maria Nascimento Sousa
Profa. Dra. Sannya Fernanda Nunes Rodrigues
Profa. Dra. Thelma Helena Costa Chahini
Profa. Dra. Zilmara de Jesus Viana de Carvalho

COMISSÃO CIENTÍFICA
Profa. Dra. Conceição de Maria Belfort Carvalho
Profa. Dra. Custodia Alexandra Almeida Martins – Universidade do Minho Portugal-
Prof. Dr. João Batista Bottentuit Junior
Prof. Dr. Luciano da Silva Façanha
Profa. Dra. Zilmara de Jesus Viana de Carvalho
Profa. Dra. Klautenys Dellene Guedes Cutrim

MONITORES
Adriana Soares Carvalho
Adriane Castro Silva
Alexandre Moura Lima Neto
Ana Beatriz Silva Rêgo
Ana Laura Caldas Diniz
Ana Luiza Caldas Diniz
Ana Paula Rodrigues do Nascimento
Anael Correa Martins
Andresson Rafhaell de Souza Nunes
Antonio Joao Goncalves Filho
Áurea Simone Costa S Dourado
Bianca Malena do Nascimento Cordeiro
Camila Cutrim Lins de Freitas
Clara Suane de Souza Nogueira
Cláudia da Silva
Daniel Cutrim Mendonça
Daniele Silva Lima
Daphne Jardim Sampaio
Dauriana Cristina dos Santos Pereira
Denise Aroucha Furtado
Eduardo Mohana Silva Ferreira
Elayne de Araújo Pereira
Elisangela Amorim Sa
Enaire de Maria Sousa da Silva
Epha Ellen Nunes Silva
Francisco Alves de Sousa Neto
Gabriel Oliveira Nojosa
Grazielle Caldas Dutra
Habynikawa Adriana
Hudson Vinicius Pereira Silva
Isabele Ferreira da Silva
Ivailson Bentes de Alencar Filho
Jaynara Lima Silva
Jhonathan Derick dos Anjos Viana
João Matheus Nascimento Rodrigues
José Lucas do Nascimento Araújo
Josinete de Fatima Pereira Passos
Karoliny Costa Silva
Keila Helena Garcez Abreu
Klisman Lucas de Sousa Castro
Larissa Cristina Costa Rodrigues
Leonardo Passos Ribeiro.
Lidia Cristina costa nunes
Luciana da Conceição Cunha Diniz
Luciana Sirqueira Viana
Maya Santos Santana
Marcia Regina Pereira Barros
Maria Luiza Girão Ferreira
Mickael dos Santos Costa
Natália Dequeixes Muniz
Nayane de Jesus Carneiro Silva
Naysa Christine Serra
Paloma Coelho Ribeiro
Rayilson da Silva Marques
Rosangela dos Santos Pinheiro
Samary Pinheiro Coelho
Scalithe Sousa Casanova
Solange Marreiros da Silva
Sonayra dos Santos Carneiro
Stephanne Fernanda Silva Conceição
Suellen Souza Pereira
Susanne Caldas Azevedo
Tamara Santos
Taynara Martins Silva
Téssia Luana Castro Guimarães
Thaíse Heilane Freitas Câmara
Thaynara Valessa Louzeiro Carvalho
Valdemir Ferreira Fernandes
Vitória do Lago Nascimento
Vivianne Morais Pacheco
Yasmin Ferreira do Nascimento

PESSOAL TÉCNICO-ADMINISTRATIVO
Roberto Araújo
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Os conteúdos dos Trabalhos completos do III SIICS são de inteira responsabilidade dos autores.

Sumário

EIXO 1: ARTE, TECNOLOGIA E EDUCAÇÃO ..................................................... 17


Organizadora do Eixo: Profa. Dra. Larissa Lacerda Menendez ............................................................................... 17

A CULTURA AFRODESCENDENTE NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA:


REPRESENTAÇÃO OU SILENCIAMENTO? ..................................................................... 18

A DEMOCRATIZACÃO DO PROCESSO DE ESCOLHA DE GESTORES ESCOLARES


NAS ESCOLAS PÚBLICAS BRASILEIRAS: LIMITES E POSSIBILIDADE PARA UMA
GESTÃO DEMOCRÁTICA E UM ENSINO DE QUALIDADE.......................................... 34

A ESCOLA DE MASSA E O ENSINO DA FILOSOFIA: REFLEXÕES ACERCA DA


DIDÁTICA FILOSÓFICA ...................................................................................................... 49

A ESCOLARIZAÇÃO DE SURDOS NO CONTEXTO DO BILINGUISMO ..................... 60

A GEOGRAFIA ESCOLAR E O CONCEITO DE PAISAGEM: UM OLHAR SOBRE AS


METODOLOGIAS DE ENSINO E APRENDIZAGEM ....................................................... 66

A IDENTIDADE NEGRA NO CURRÍCULO ESCOLAR: UMA ANÁLISE DE SUA


CONSTRUÇÃO HISTÓRICA ................................................................................................ 85

A IMPORTÂNCIA DO INTÉRPRETE DE LIBRAS NO PROCESSO ENSINO-


APRENDIZAGEM DE DISCENTES SURDOS .................................................................... 95

A IMPORTÂNCIA DO LÚDICO NA APRENDIZAGEM: UM ESTUDO NA UNIDADE


INTEGRADA RAIMUNDO AQUINO MACEDO .............................................................. 107

A INTERDISCIPLINARIDADE COMO QUESTÃO: REFLEXÕES SOBRE ARTE,


HISTÓRIA DA ARTE E MUSEU ........................................................................................ 131

A INVISIBILIDADE FEMININA NO CURRÍCULO ESCOLAR: UMA ANÁLISE A


PARTIR DO LIVRO DIDÁTICO......................................................................................... 147

A MANIFESTAÇÃO DA DISLEXIA NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM ............... 158

A NETNOGRAFIA COMO MÉTODO DE ESTUDO DE COMPORTAMENTO EM


AMBIENTES DIGITAIS ...................................................................................................... 173

A RAINHA DA SOLIDÃO: CRIAÇÃO ARTÍSTICA E INTERPELAÇÃO PEDAGÓGICA


............................................................................................................................................... 182

A RELEVÂNCIA DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS À INCLUSÃO SOCIAL E


EDUCACIONAL DE PESSOAS SURDAS ......................................................................... 196

ACESSIBILIDADE WEB EM SITES GOVERNAMENTAIS: UM ESTUDO DE CASO DO


SITE DA SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA DO MARANHÃO ..................... 208
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ANÁLISE DA PRÁTICA DOCENTE SOB A ÓTICA DOS PROFESSORES DA


EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE PINHEIRO-MA ........................ 226

ANÁLISE DAS CONDIÇÕES DE OFERTA EDUCACIONAL EM UMA COMUNIDADE


QUILOMBOLA NO INTERIOR DO MARANHÃO .......................................................... 240

ANÁLISE SOBRE A OBRIGATORIEDADE DA DISCIPLINA LIBRAS NO CURRÍCULO


DAS LICENCIATURAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO .............. 251

ANÁLISE SOBRE AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS DOCENTES DA


EDUCAÇÃO BÁSICA EM PINHEIRO-MA ....................................................................... 275

APLICABILIDADE DE RECURSOS DIDÁTICOS NO PROCESSO DE


ALFABETIZAÇÃO .............................................................................................................. 294

APLICAÇÃO DE METODOLOGIAS ATIVAS ATRAVÉS DA EXTENSÃO


UNIVERSITÁRIA: O CASO DO PROJETO COMUNIDADE ATIVA ............................. 306

APP-LEARNING NO ENSINO DE ADMINISTRAÇÃO: PLICKERS COMO


FERRAMENTA DE AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM TEMPO REAL............. 314

APRENDENDO E EMPREENDENDO COM O TURISMO: UM RELATO DE


EXPERIÊNCIA ..................................................................................................................... 325

ARTES E CIÊNCIA: CONTRIBUIÇÕES DA ARTETERAPIA NA SAÚDE ................... 336

ARTES INDÍGENAS E ESTÉTICA: PLUMÁRIA KA’APOR........................................... 349

AS TECNOLOGIAS ASSISTIVAS COMO FERRAMENTAS NO PROCESSO ENSINO-


APREDIZAGEM PARA CRIANÇAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA
(TEA) NA EDUCAÇÃO INFANTIL ................................................................................... 362

BIBLIOMETRIA E PRODUÇÃO CIENTÍFICA INTERDISCIPLINAR NO MARANHÃO:


UMA ANÁLISE DA REVISTA INTERDISCIPLINAR EM CULTURA E SOCIEDADE
(RICS) À LUZ DAS LEIS BIBLIOMÉTRICAS DE LOTKA E ZIPF ................................ 377

CONHECIMENTO “ENTRE OS DEDOS”: ARTESANATO COMO ENSINO,


APRENDIZAGEM E QUALIDADE.................................................................................... 390

CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBESIDADE EM LIVROS DIDÁTICOS DE CIÊNCIAS


DO ENSINO FUNDAMENTAL .......................................................................................... 400

CORRESPONDÊNCIAS ENTRE SABERES: CONSTRUINDO UMA MATERIOTECA


VIRTUAL COM ARTESÃOS MARANHENSES ............................................................... 425

CULTURA INDÍGENA NO CURRÍCULO ESCOLAR: REFLEXÕES A PARTIR DO


LIVRO DIDÁTICO............................................................................................................... 445

DESAFIOS DO PROFESSOR NA SALA DE AULA PARA O DESENVOLVIMENTO DA


LEITURA E A ESCRITA COM ALUNOS DO 1º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL I
............................................................................................................................................... 454
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DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM: UM ESTUDO DE CASO NA ESCOLA


MUNICIPAL OSVALDINO JOSÉ DE SOUSA .................................................................. 468

DISCURSOS SOBRE A TRANSEXUALIDADE NO CENTRO DE ENSINO PAULO VI


EM SÃO LUÍS, MARANHÃO ............................................................................................. 484

EDUCAÇÃO INCLUSIVA: UM ESTUDO SOBRE A INCLUSÃO DE DISCENTES COM


DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NA ESCOLA MUNICIPAL JÚLIA FONSECA
BARBOSA EM MATÕES DO NORTE – MA .................................................................... 506

EDUCAÇÃO PELA ATENÇÃO E PELO DIÁLOGO NO FAZER: PRÁTICAS


COLABORATIVAS ENTRE ARTESÃS E DESIGNERS COM SEMENTES DA APA DO
MARACANÃ. ....................................................................................................................... 523

EMPREGOS NO SETOR CULTURAL MARANHENSE .................................................. 540

ENTRE DESIGN E ARTE: O OBJETO RESSIGNIFICADO ............................................. 562

FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E DOCUMENTO: AS IMAGENS COMO


REPRESENTAÇÃO PRESENTIFICADA. .......................................................................... 577

GÊNERO E TRABALHO DOCENTE NA EDUCAÇÃO BÁSICA DE PINHEIRO-MA: A


ATUAÇÃO FEMININA NAS ESCOLAS PÚBLICAS DO MUNICÍPIO .......................... 595

MANIFESTAÇÕES CULTURAIS DA REGIÃO NORDESTE: UMA ANÁLISE DA SUA


REPRESENTAÇÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS .............................................................. 612

METODOLOGIAS ATIVAS COM TIC: UMA ESTRATÉGIA COLABORATIVA PARA O


ENSINO DE ADMINISTRAÇÃO........................................................................................ 619

METODOLOGIAS ATIVAS DE APRENDIZAGEM: PROBLEM-BASED LEARNING NO


ENSINO DE MARKETING ................................................................................................. 632

NEGROS NA EDUCAÇÃO: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA REALIDADE DE


UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA NO INTERIOR DO MARANHÃO .................... 642

O CURRÍCULO E A CULTURA DO QUILOMBO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS NA


ESCOLA QUILOMBOLA MARAJÁ, BEQUIMÃO/MA ................................................... 653

O DESENVOLVIMENTO NOS ESTÁGIOS PRÉ-OPERACIONAL E OPERACIONAL


CONCRETO SEGUNDO PIAGET ...................................................................................... 663

O JORNALISMO PELA ÓTICA DA INTERDISCIPLINARIDADE ................................. 672

O PROCESSO DE FOLKCOMUNICAÇÃO PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE


CULTURAL MARANHENSE: UMA VISÃO SOBRE O TAMBOR DE CRIOULA DE
SÃO LUÍS ............................................................................................................................. 684

O PROCESSO DE INCLUSÃO DE CRIANÇAS COM O TRANSTORNO DO ESPECTRO


AUTISTA NA EDUCAÇÃO INFANTIL............................................................................. 693
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OS DESAFIOS DA ESCOLARIZAÇÃO DE SURDOS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO


SUPERIOR ............................................................................................................................ 708

PARA DESCOLONIZAR OS CURRÍCULOS DAS ESCOLAS DOS TERRITÓRIOS


QUILOMBOLAS DA BAIXADA MARANHENSE: A EXPERIÊNCIA DE UM PROJETO
EXTENSIONISTA NO IFMA CAMPUS PINHEIRO.......................................................... 715

PERCEPÇÕES DE BIBLIOTECÁRIAS EM RELAÇÃO À DISPONIBILIZAÇÃO DE


TECNOLOGIAS ASSISTIVAS AOS USUÁRIOS COM DEFICIÊNCIA SENSORIAL .. 731

PERFIL DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA DOS DOCENTES DO PROGRAMA DE PÓS-


GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE (PGCULT) ............................................ 745

REFLEXÕES SOBRE POBREZA E EDUCAÇÃO: A DESIGUALDADE SOCIAL E SUAS


MANIFESTAÇÕES NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA ..................................... 765

REVISÃO SISTEMÁTICA DA LITERATURA DE TESES E DISSERTAÇÕES SOBRE O


PROGRAMA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL ........................................ 777

SEM TERRINHA E O DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL: ABORDAGEM


PRELIMINAR A PARTIR DA VIVÊNCIA NO ASSENTAMENTO VILA DIAMANTE 797

SUJEITOS DA EJA E OS ÍNDICES DE EVASÃO ESCOLAR EM ESCOLAS


ESTADUAIS DO MARANHÃO.......................................................................................... 819

SUPERAÇÃO DA FRAGILIDADE DA ESCOLA PARA O ENFRENTAMENTO DE SUA


REALIDADE, POR MEIO DA ANÁLISE DE SUA CONDIÇÃO E DO ENVOLVIMENTO
DA COMUNIDADE ESCOLAR .......................................................................................... 831

TECNOLOGIAS EDUCATIVAS E APPLEARNING NO ENSINO SUPERIOR: UM


RELATO DE EXPERIENCIA DO USO DO GOCONQR NA DISCIPLINA DE
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS............................................................................ 850

THÉATRON: LUGAR PARA VER, MAS VER O QUÊ? .................................................. 865

UNIVERSIDADE INCLUSIVA: A EDUCAÇÃO SUPERIOR AO ALCANCE DE TODOS


............................................................................................................................................... 881

USO DE TECNOLOGIAS ASSISTIVAS PARA SURDOS NO INSTITUTO FEDERAL DO


MARANHÃO, CAMPUS ZÉ DOCA ................................................................................... 895

USO DO SOLO E RECURSOS HÍDRICOS NO MÉDIO CURSO DO RIO MEARIM,


PEDREIRAS - MARANHÃO .............................................................................................. 912

EIXO 2: GÊNERO, LITERATURA E FILOSOFIA ............................................... 931


Organizadores do Eixo: Prof. Dr. Luciano da Silva Façanha e Profa. Dra. Zilmara de Jesus Viana de Carvalho 931

“MISTÉRIO” OU NATURALIZAÇÃO DA HETERONORMATIVIDADE EM UMA


SOMBRA NA PAREDE DE JOSUÉ MONTELLO: APRISIONAMENTO DE CORPOS E
DE DESEJOS ABJETOS ...................................................................................................... 932
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“SEE YOU THERE IN BRAZIL”: A IMAGEM FEMININA NA PUBLICIDADE


TURÍSTICA BRASILEIRA DURANTE A DITADURA MILITAR .................................. 955

A CRÍTICA À MORAL E A TRANSVALORAÇÃO DOS VALORES COMO


SUPERAÇÃO DO CRISTIANISMO ................................................................................... 965

A CRÍTICA DE ROUSSEAU À EXALTAÇÃO SUPREMA DA RAZÃO E DO


PROGRESSO DO CONHECIMENTO HUMANO ............................................................. 987

A LITERATURA LAICA NA IDADE MÉDIA FRANCESA DO SÉCULO XII E SUA


RELAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA VISÃO DE CAVALARIA. ..................................... 996

A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA MÚSICA EM SÃO LUÍS – MA ................. 1013

AS CONFIGURAÇÕES DO ESPAÇO NA OBRA A CIDADE SITIADA, DE CLARICE


LISPECTOR ........................................................................................................................ 1028

AS RÃS DE ARISTÓFANES E OS DIONÍSIOS DE NIETZSCHE: DISFARCE,


CTONISMO E RECONCILIAÇÃO ................................................................................... 1048

BREVE PERCURSO DO CONCEITO DE FILOSOFIA DA PSICANÁLISE NO BRASIL


............................................................................................................................................. 1066

COMO AS PAIXÕES DERIVAM DOS TIPOS DE CONHECIMENTO PARA ESPINOSA


NO LIVRO O BREVE TRATADO DE DEUS, DO HOMEM E DO SEU BEM ESTAR 1073

CONFIGURAÇÕES DO MEDO EM VASTO MUNDO, DE MARIA VALÉRIA REZENDE


............................................................................................................................................. 1081

DA TRAGÉDIA À COMEDIA: O TEATRO PARA O FILÓSOFO JEAN-JACQUES


ROUSSEAU ........................................................................................................................ 1093

DE ESCRAVIZADA A ADVOGADA IMPOSSÍVEL: SENTIDOS EPISTEMOLÓGICOS,


JURÍDICOS E LINGUÍSTICOS NA PETIÇÃO DE ESPERANÇA GARCIA ................. 1102

EDUCAÇÃO E DIGNIDADE SEGUNDO IMMANUEL KANT ..................................... 1111

ELAS (RE)ESCREVEM A LITERATURA DE CORDEL: AUTORIA FEMININA NA


COLEÇÃO CENTENÁRIO (JUAZEIRO DO NORTE-CE) ............................................. 1119

ENTRE O COMEDIANTE E NARCISO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PIEDADE, O SER


E O PARECER, A PARTIR DA CARTA A D’ALEMBERT SOBRE OS ESPETÁCULOS
............................................................................................................................................. 1133

ESTUDOS AFRODECOLONIAIS E SUAS REFLEXÕES SOBRE GÊNERO E RAÇA: O


PROJETO MAFROEDUC .................................................................................................. 1141

ÉTICA E DIGNIDADE HUMANA: UMA PERSPECTIVA KANTIANA ...................... 1156

FILOSOFIA, LINGUAGEM E A CRISE DA VERDADE: DA ORIGEM, SEGUNDO A


PERCEPÇÃO ROUSSEAUNIANA, E OS DIAS ATUAIS .............................................. 1162
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GEOGRAFIA HUMANISTA CULTURAL: EPISTEMOLOGIA DO MUNDO VIVIDO


............................................................................................................................................. 1170

HANS JONAS E O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE: O PROGRESSO TÉCNICO


COMO RAZÃO DA NATUREZA MODIFICADA DO AGIR HUMANO ...................... 1183

HISTÓRIA, POLÍTICA E MORAL EM KANT ................................................................ 1205

IDENTIDADE E MEMÓRIA EM O LARGO .................................................................... 1211

LEITORES E PRÓLOGOS, “PROVOCAÇÕES”: INDUSTRIAS Y ANDANZAS DE


ALFANHUÍ, DE RAFAEL SANCHEZ FERLOSIO – DOIS PARATEXTOS .................. 1223

LINHAGENS ANTROPOLÓGICAS: A PAIXÃO PELA ETNOGRAFIA ...................... 1231

LITERATURA, CENSURA E RESISTÊNCIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DE A FESTA:


ROMANCE, CONTOS, DE IVAN ÂNGELO ..................................................................... 1245

MEMÓRIAS DE PROFESSORAS AFRODESCENDENTES – PRÁTICAS


ENTRECRUZADAS E ENTRELAÇADAS ...................................................................... 1255

MOVIMENTO LGBTQI+: ANALISE DA COMUNIDADE LGBTQI+ DA CIDADE DE


IMPERATRIZ-MA ............................................................................................................. 1268

MULHERES NA CIÊNCIA: A PERCEPÇÃO DOS DISCENTES DO ENSINO MÉDIO DE


ESCOLAS PÚBLICAS DE PINHEIRO – MA SOBRE SUA INSERÇÃO NA CIÊNCIA1281

MULHERES PROFESSORAS: ENFRENTANDO RACISMO E SEXISMO NO


MAGISTÉRIO SUPERIOR? .............................................................................................. 1294

O PROJETO DO FILÓSOFO COMO MÉDICO DA CIVILIZAÇÃO, COM BASE EM


NIETZSCHE ....................................................................................................................... 1305

POLÍTICA E COSMOPOLITISMO: UMA INTRODUÇÃO À IDEIA DE PAZ SEGUNDO


IMMANUEL KANT ........................................................................................................... 1311

POSITIVISMO EM FUNDAÇÃO: A EXPRESSÃO DO PROJETO DE COMTE NA OBRA


DE ASIMOV ....................................................................................................................... 1317

PROTAGONISMO POLÍTICO E SUB-REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES: ÀS


INTERFERÊNCIAS DO PATRIARCADO NAS RELAÇÕES DE GÊNERO ................. 1336

REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS E A PRODUÇÃO DAS (A)NORMALIDADES NO


FILME CORINGA (2019) .................................................................................................. 1356

RESUMOS ACADÊMICOS EM ENGENHARIA: COMO ESCREVEM OS


PESQUISADORES ............................................................................................................. 1368

ROUSSEAU E A APROPRIAÇÃO DO FENÔMENO DA METÁFORA: UMA


PERSPECTIVA A PARTIR DA TEORIA DE PAUL RICOEUR ..................................... 1391
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UMA TEORIA DA DECISÃO: O DIREITO FUNDAMENTAL A UMA RESPOSTA


ADEQUADA À CONSTITUIÇÃO .................................................................................... 1399

VERDADE E POESIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA VERDADE METAFÓRICA A


PARTIR DE RICOEUR NO GUESA DE SOUSÂNDRADE ............................................ 1420

EIXO 3: CIDADES, PATRIMÔNIO CULTURAL E SOCIEDADE................... 1428


Organizadora do Eixo: Profa. Dra. Conceição de Maria Belfort de Carvalho ..................................................... 1428

A DANÇA DAS CADEIRAS: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO DA IGREJA PARÓQUIA


SANTUÁRIO SÃO BERNARDO EM SÃO BERNARDO -MA ...................................... 1429

A INFLUÊNCIA DA DIRECIONALIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NA


INFRAESTRUTURA URBANA: O CASO BRASILEIRO A PARTIR DE 2001 ............ 1442

A MATRIZ AFRO-RELIGIOSA NO MARANHÃO: TURISMO ÉTNICO, CULTURA E


ETNICIDADE ..................................................................................................................... 1454

A MULTICULTURALIDADE NO CURSO DE FÍSICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL


DO MARANHÃO ............................................................................................................... 1467

A RELEVÂNCIA DAS BIBLIOTECAS PARA A EDUCAÇÃO PÚBLICA DO ESTADO


DO MARANHÃO ............................................................................................................... 1477

ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS E A MOVIMENTAÇÃO INTERNACIONAL DE


PESSOAS: UMA ANÁLISE A PARTIR DA TEORIA DA SOCIEDADE DE RISCO ... 1488

AMIZADE, ESPAÇO PÚBLICO E A FORMAÇÃO DE SUBJETIVIDADES: PENSANDO


A INTERSUBJETIVIDADE NO MUNDO CONTEMPORÂNEO ................................... 1505

CIDADE NA EMBLEMÁTICA: TESOURO DIFUSOR DA ERUDIÇÃO ...................... 1513

CRISE DO CAPITALISMO E EMERGÊNCIA DA CULTURA DO


COMPARTILHAMENTO: NOVAS PRÁTICAS SOCIOECONÔMICAS E SEUS
IMPACTOS A PARTIR DE 2008 NO BRASIL ................................................................ 1529

O PAPEL DA ODONTOLOGIA NA EDUCAÇÃO EM SAÚDE BUCAL, UMA


DISCUSSÃO NO CONTEXTO DE UMA UNIDADE DE SAÚDE ................................. 1543

ESCULPINDO MADEIRA, ENTALHANDO MEMÓRIAS: ARTESANATO NO CENTRO


DE CULTURA POPULAR MESTRE NOZA .................................................................... 1551

ESPAÇO E PAISAGEM NA ÁREA DA “PENÍNSULA” DA PONTA D’AREIA, SÃO


LUÍS – MARANHÃO ......................................................................................................... 1567

ESPAÇO MUSEAL E TURISMO CULTURAL: A GESTÃO DE MUSEUS DO CENTRO


HISTÓRICO EM SÃO LUÍS – MA ................................................................................... 1584

EXPANSÃO URBANA: UMA ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS MIGRATÓRIAS NO


MUNICÍPIO DE VARGEM GRANDE – MA DOS ANOS DE 1980 AOS DIAS ATUAIS
............................................................................................................................................. 1598
Página 14 de 2230

FORMAÇÃO DE AGENTES CULTURAIS ..................................................................... 1611

GESTÃO DE CIDADES E FEDERALISMO NO BRASIL: FUNDAMENTOS E


DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIAS ........................................................................... 1620

HISTÓRIAS QUE SE CONTAM: FORMAÇÃO CULTURAL E ECONÔMICA DA


MEMÓRIA DOS POVOADOS ARAÇÁ E BARREIRAS-MA. ....................................... 1645

INOVAÇÃO E SOCIEDADE: OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO


FOMENTO AO DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO DE UMA NAÇÃO ..... 1664

INTERVENÇÃO URBANA: UM CONVITE A REFLEXÃO SOBRE OS PROBLEMAS


AMBIENTAIS NA CIDADE DE SÃO BERNARDO-MA ............................................... 1679

LUGAR MEMÓRIA E TURISMO CULTURAL: O BAIRRO DO DESTERRO EM SÃO


LUÍS DO MARANHÃO ..................................................................................................... 1691

O BUMBA MEU BOI EM IMAGENS: AS NOVAS CONFIGURAÇÕES IMAGÉTICAS E


SUAS FUNÇÕES SOCIAIS ............................................................................................... 1714

O SOL NASCENTE NO MARANHÃO: MEMÓRIAS E IMPACTOS DA EXPERIÊNCIA


IMIGRATÓRIA JAPONESA NA DÉCADA DE 1960. .................................................... 1724

OS PRODUTOS TURÍSTICOS COMERCIALIZADOS NO CENTRO HISTÓRICO DE


SÃO LUÍS E A APLICABILIDADE DO CONCEITO DE TURISMO DE EXPERIÊNCIA
............................................................................................................................................. 1745

PAISAGEM E GEODIVERSIDADE: RELAÇÕES ENTRE A PRODUÇÃO ARTESANAL


DE CERÂMICA NAS BORDAS LESTE E OESTE DO GOLFÃO MARANHENSE ..... 1762

PANORAMA DAS POLÍTICAS DE PATRIMONIALIZAÇÃO NA CIDADE DE SÃO


LUÍS: DO PAC CIDADES HISTÓRICAS AO PROGRAMA NOSSO CENTRO. .......... 1771

SÃO LUÍS E AS DICOTOMIAS DO OLHAR DO PODER PÚBLICO PARA A CIDADE


............................................................................................................................................. 1782

SÃO LUÍS PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE: QUE POSSIBILIDADES


UM CENTRO HISTÓRICO REVITALIZADO PODE OFERECER? .............................. 1795

TRANSFORMAÇÕES PAISAGÍSTICAS NA CIDADE DE SÃO LUÍS/MA: UM OLHAR


SOBRE A PENÍNSULA DO BAIRRO PONTA D’AREIA .............................................. 1805

TRANSFORMAÇÕES SOCIOCULTURAIS E ECONÔMICAS DE UM POVO:


ALCÂNTARA NA ERA ESPACIAL................................................................................. 1816

UMA IMERSÃO NO PASSADO LUDOVICENSE: VISLUMBRANDO O LAZER NA


CIDADE .............................................................................................................................. 1832

EIXO 4: MÍDIAS, LINGUAGENS, MEMÓRIA E SOCIEDADE ...................... 1846


Organizadora do Eixo: Profa. Dra. Ana Caroline Amorim Oliveira ..................................................................... 1846

A CERÂMICA NO MARANHÃO E OS ATRAVESSAMENTOS ARQUEOLÓGICOS 1847


Página 15 de 2230

A COBERTURA POLICIAL NO JORNALISMO IMPRESSO MARANHENSE: ANÁLISE


DO JORNAL ITAQUI-BACANGA ................................................................................... 1855

ADAPTAÇÃO “ELEMENTAR”: O GÊNERO POLICIAL NOS DIÁLOGOS ENTRE


CAMPO LITERÁRIO E CINEMATOGRÁFICO EM ARTHUR CONAN DOYLE. ...... 1875

A EDITORIA DE CULTURA NO JORNALISMO IMPRESSO MARANHENSE:


ANÁLISE DO JORNAL O ESTADO DO MARANHÃO ................................................. 1884

A HANSENÍASE E AS ABORDAGENS DA EDUCAÇÃO EM SAÚDE EM LIVROS


DIDÁTICOS DE BIOLOGIA ............................................................................................. 1897

ANIMAÇÕES DE CURTA DURAÇÃO E A REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADE


CULTURAL ........................................................................................................................ 1904

CASA DE CULTURA JOSUÉ MONTELLO E BIBLIOTECA PÚBLICA BENEDITO


LEITE: ESPAÇOS DE CULTURA, MEMÓRIA E TURISMO NO COMPLEXO
DEODORO EM SÃO LUÍS - MARANHÃO. .................................................................... 1923

COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA? AS POLÍTICAS PÚBLICAS NACIONAIS DE


RADIODIFUSÃO E TELECOMUNICAÇÕES IMPLEMENTADAS DURANTE O
GOVERNO TEMER ........................................................................................................... 1933

DOS MANUSCRITOS LITERÁRIOS ÀS CAPAS CRIATIVAS NA MÍDIA IMPRESSA:


PROCESSO DE CRIAÇÃO COMO METODOLOGIA INTERDISCIPLINAR .............. 1949

DITADURA MILITAR BRASILEIRA: UM PENSAR ANALÍTICO-METODOLÓGICO


SOB A ÓTICA DA TEORIA ANÁLISE DO DISCURSO ................................................ 1957

FORTALEZAS EVANESCENTES: EXPERIÊNCIA DE SUJEITOS NUM PORTO DA


BAIXADA MARANHENSE. ............................................................................................. 1970

FORMAÇÃO HISTÓRICA DO POVOADO CAJUEIRO, MARACAÇUMÉ/MA .......... 1988

HISTÓRIA DA MULHER NO ESPORTE BRASILEIRO: MÍDIA E NORMATIZAÇÃO


DO CORPO FEMININO .................................................................................................... 2000

LEVANTAMENTO DA REALIZAÇÃO DOS FONEMAS /D/ E /T/ NOS MUNICÍPIOS DE


ARARI E SÃO LUÍS .......................................................................................................... 2012

MEMÓRIA COLETIVA E ESPAÇO EM MAURICE HALBWACHS: UMA


INTERDISCIPLINARIDADE COM A GEOGRAFIA HUMANISTA CULTURAL....... 2025

MEMÓRIA COLETIVA, GRUPOS ÉTNICOS, ETNOGÊNESE: PENSANDO UMA


INTERDISCIPLINARIDADE ENTRE MAURICE HALBWACHS E FREDRIK BARTH.
............................................................................................................................................. 2038

MNEMOSINE NAS REDES SOCIAIS: A SOCIEDADE DOS POETAS DE BARBALHA-


CE E OS CORDÉIS COLETIVOS ESCRITOS NO WHATSAPP .................................... 2053

NOVO COMUNISMO? ANÁLISE DISCURSIVA DE ENUNCIADOS DE FLÁVIO DINO


NA COMPOSIÇÃO DOS ARQUIVOS DO DISCURSO POLÍTICO PECEDEBISTA ... 2066
Página 16 de 2230

O APORTE DA MÍDIA À VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NO PLANO DO GOLPE DE 2016


............................................................................................................................................. 2081

OS FEMINISMOS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE TRABALHO: O PROGRAMA PRÓ-


EQUIDADE DE GÊNERO EM SÃO LUÍS-MA ............................................................... 2089

O CONSUMO DA FELICIDADE: A EMOÇÃO COMO MEDIADORA NAS PRÁTICAS


DE CONSUMO ................................................................................................................... 2105

O CORPO FALA: A LINGUAGEM CORPORAL DOS BRINCANTES NO BUMBA-MEU-


BOI DO MARANHÃO ....................................................................................................... 2117

O RECONHECIMENTO POSITIVO DA EXPERIÊNCIA NEGRA NO ROMANCE


“BARÁ NA TRILHA DO VENTO DE MIRIAM ALVES” E NO FILME “ESTRELAS
ALÉM DO TEMPO” ........................................................................................................... 2137

PLANTANDO BATATAS EM MARTE: REPRESENTAÇÕES SOBRE A CIÊNCIA E O


CIENTISTA EM UM FILME DE FICÇÃO CIENTÍFICA ................................................ 2146

REVISÃO INTEGRATIVA DOS ESTIGMAS E PRECONCEITOS VIVIDOS PELAS


PESSOAS QUE VIVEM COM HIV/AIDS NA SOCIEDADE.......................................... 2155

TECENDO A ORDEM: SOCIEDADE, LEIS E MERETRÍCIO EM SÃO LUÍS DO


MARANHÃO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX ........................................... 2173

UM OLHAR SOBRE AS COMPETÊNCIAS DO PROFESSOR DE LE A PARTIR DE


UMA CAMPANHA PUBLICITÁRIA ............................................................................... 2190

UMA ANÁLISE TEXTUAL DO DISCURSO POLÊMICO ............................................. 2202

TECNOLOGIA COMO FERRAMENTA PARA A ACESSIBILIDADE DA PESSOA COM


DEFICIÊNCIA AUDITIVA EM ATRATIVOS TURÍSTICOS DE SÃO LUÍS ............... 2219

CATÁLOGO “AMAZÔNIA E SUAS DIMENSÕES” .......................................... 2230


Organização: Larissa Menendez ............................................................................................................................ 2230
Página 17 de 2230

Os conteúdos dos Trabalhos completos do III SIICS são de inteira responsabilidade dos autores.

Eixo 1: Arte,
Tecnologia e Educação
Organizadora do Eixo: Profa. Dra. Larissa Lacerda
Menendez
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A CULTURA AFRODESCENDENTE NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA:


REPRESENTAÇÃO OU SILENCIAMENTO?

AFRICAN CULTURE IN THE HISTORY’S TEACHING BOOK:


REPRESENTATION OR SILENCE?

Idalina Cristina Chagas Ferreira


Estudante de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Dinalva Pereira Gonçalves
Mestra em Educação
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Eixo 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O presente artigo tem por objetivo discutir a (in) visibilidade da cultura afrodescendente
no currículo escolar, tecendo análises acerca da cultura dos negros em livros didáticos. Para tanto,
situamos a questão em seu contexto histórico, trazendo reflexões sobre a herança cultural deixada
pelos africanos escravizados para a sociedade brasileira. A metodologia empregada foi a pesquisa
bibliográfica, buscando autores que versam sobre a temática, além de análises de livros didáticos
de História, utilizados nas redes pública e privada de ensino. A pesquisa demonstrou que a cultura
afrodescendente, quando apresentada, é apontada de forma superficial, marcada por ocultamentos
e estereótipos, o que foi verificado na maioria dos materiais pesquisados.
Palavras-chave: Cultura Afrodescendente. História. Livro didático.

Abstract: The purpose of this article is to discuss the (in) visibility of Afro-descendant culture in
the school curriculum, making analyzes about the culture of blacks in textbooks. To do so, we
situate the issue in its historical context, bringing reflections on the cultural heritage left by
enslaved Africans to Brazilian society. The methodology used was bibliographic research, looking
for authors who deal with the theme, in addition to analyzes of history textbooks, used in public
and private education networks. The research demonstrated that the Afro-descendant culture,
when presented, is pointed out in a superficial way, marked by concealments and stereotypes,
which was verified in most of the researched materials.
Keywords: Afro-descendant culture. History. Textbook.

INTRODUÇÃO

A Lei nº 10.639/03, dispositivo que versa sobre a obrigatoriedade da inclusão do ensino


da história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares da Educação Básica, representou um
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importante avanço na luta dos negros pela igualdade racial e contra o racismo, na medida em que
colabora para frear o processo de apagamento da cultura afrodescendente no âmbito escolar. Desse
modo, não só os sistemas de ensino são convidados à observância dessa lei, mas também as
editoras incumbidas pela venda e/ou distribuição de livros didáticos para as escolas públicas e
privadas de todo o Brasil.
Diante dessa premissa, inquieta-nos o questionamento se, após quase 20 anos da
promulgação da Lei 10.639/03, os livros didáticos já se encontram adequados às exigências desse
dispositivo e como a cultura afrodescendente está sendo representada (ou silenciada) nesses
materiais.
Para a realização desta pesquisa, fruto de um trabalho acadêmico de uma disciplina do
curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), selecionamos livros
didáticos da área de História, do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental, que foram recentemente ou
estão sendo utilizados em escolas públicas e privadas da cidade de Pinheiro (MA).
O presente trabalho está organizado em duas partes principais. A primeira discute a
formação e diversidade da cultura nacional, com grande influência das matrizes africanas que, a
partir de inúmeras reinvenções, se transformou nas idiossincrasias brasileiras, ou seja, adquiriu
singularidades marcantes que definem a identidade cultural do país. A segunda parte apresenta
análises de livros didáticos de História, de 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental, utilizados em
escolas públicas e privadas da cidade de Pinheiro (MA), sobre as representações ou silenciamentos
das manifestações culturais de origem afrodescendentes nesses materiais. Por fim, tecemos
algumas considerações finais.
O estudo demonstrou que os livros, quase em sua totalidade, acabam por invisibilizar as
questões afrodescendentes, trazendo visões distorcidas sobre o negro ou, simplesmente, não
apresentando qualquer menção às contribuições desses povos à formação da sociedade e cultura
brasileira.

CULTURA AFRODESCENDENTE: DAS RAIZES AFRICANAS ÀS IDIOSSINCRASIAS


BRASILEIRAS

A formação da sociedade brasileira é fortemente marcada pela presença e influência


cultural afrodescendente, resultante do processo de escravização de negros africanos que, mesmo
sendo arrancados de suas origens para serem agregados a um novo país, trouxeram consigo
características muito peculiares as quais foram recriadas quando não preservadas.
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O Brasil, na condição de colônia portuguesa, só foi possível expandir sua ocupação1 a


partir da migração forçada dos africanos, pois conforme salienta Albuquerque e Fraga Filho
(2006), Portugal recorreu ao tráfico humano para ocupar as terras conquistadas e garantir mão de
obra para exploração das riquezas tropicais e minerais aqui existentes.

No século XVI, não havia população suficiente em Portugal para levar à frente a
ocupação da colônia. Foi através da importação maciça de africanos que os lusitanos
conseguiram defender o território da cobiça de outras potências coloniais, que também
tinham planos para ocupar e explorar as riquezas tropicais aqui encontradas.
(Albuquerque e Fraga Filho, 2006, p.42).

Como se vê, sem a participação do negro africano, os lusitanos não teriam condições de
estender a povoação no país. Por essa razão, alguns estudiosos arriscam dizer que o Brasil é uma
extensão do continente africano, um pedaço da África fora dos seus limites territoriais.
Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006, p.39):

Os números não são precisos, mas estima-se que, entre o século XVI e meados do século
XIX, mais de 11 milhões de homens, mulheres e crianças africanos foram transportados
para as Américas. Esse número não inclui os que não conseguiram sobreviver ao processo
violento de captura na África e aos rigores da grande travessia atlântica. A maioria dos
cativos, cerca de 4 milhões, desembarcou em portos do Brasil. Por isso nenhuma outra
região americana esteve tão ligada ao continente africano por meio do tráfico como o
Brasil. O dramático deslocamento forçado, por mais de três séculos, uniu para sempre o
Brasil à África.

Conforme dados históricos disponíveis, é inegável a constatação de que nenhuma nação


americana recebeu um quantitativo tão grande de africanos como o Brasil. Costa (1998) assevera
que a escravidão se constituiu num processo tão marcante que, no século XIX, às vésperas da
independência, o Brasil possuía aproximadamente quatro milhões de negros e mestiços, para uma
população branca de um milhão e trezentos mil habitantes. Ou seja, o número de escravos foi
sempre representativo no conjunto da população, o que se manteve até os dias atuais.
De acordo com informações do último Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2010), o Brasil
possui 15 milhões de pretos (7,6%) e mais 82 milhões de pardos (43,1%), para uma população de
91 milhões de brancos (47,7%). Se observarmos esses números com atenção, constatamos que os
autodeclarados pretos e pardos (que constituem a categoria negro, segundo classificação do IBGE)
somam um total de 50,7% da população brasileira, o que representa a maioria.
Outro aspecto que merece destaque é afirmado por Diegues Júnior (1980) ao observar que
o mercado de escravos selecionava africanos de maneira aleatória, não respeitando seus grupos
étnicos ou familiares, sendo misturados nos navios, portos de embarque e distribuídos em
diferentes pontos do território brasileiro. Desse modo, pessoas de diferentes nações africanas,
diferentes culturas e de diferentes famílias eram obrigadas a formar novos agrupamentos nas

1
Vale ressaltar que essa afirmativa sobre a ocupação das terras brasileiras pelos povos africanos não desconsidera a
presença da população nativa indígena no país.
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fazendas, engenhos e outros locais para onde eram conduzidas e designadas ao trabalho escravo.
“Dali por diante teriam que conviver com o trauma do desenraizamento das terras dos ancestrais
e com a falta de amigos e parentes que deixaram do outro lado do Atlântico” (Albuquerque e Fraga
Filho, 2006, p.65).
Sobreviver virou um dos maiores desafios dos africanos neste país. Mas preservar suas
raízes culturais se tornou uma das maiores formas de resistência. Como afirma Albuquerque e
Fraga Filho (2006, p.46), “o fato de ter vindo de uma mesma região, falar a mesma língua e
pertencer a uma mesma nação foi fundamental para a sobrevivência dos africanos no Brasil. Desse
modo, eles puderam reconstruir redes de amizade, famílias e comunidades”. Ou seja, esses novos
laços de amizade e parentesco, firmados a partir da luta pela sobrevivência após o desenraizamento
de suas origens, possibilitaram a preservação e/ou recriação cultural, fortemente presentes na
identidade nacional, gerando as idiossincrasias brasileiras: “a multiplicidade de povos e etnias
para aqui transportadas por força do tráfico fez do Brasil um espaço privilegiado de convergência
de tradições africanas diversas que ainda hoje continuam, umas mais que outras, a moldar e colorir
culturalmente o país” (Albuquerque e Fraga Filho, 2006, p.46).
Dessa forma, os africanos e seus descendestes moldaram muitos dos aspectos culturais
mais marcantes deste país, a exemplo das religiões de origem afro, palavras agregadas à língua
portuguesa, artes plásticas, músicas e danças, literatura popular, culinária, moda e muito mais.
Em relação à religião, a resistência se fez por meio do sincretismo religioso. Como o
colonizador impôs a sua religião cristã católica, para continuarem praticando seus cultos religiosos
originais e evitarem punições por conta disso (os cultos afros eram estritamente proibidos naquele
período), os africanos encontraram pontos de convergências entre os seus orixás e os santos
católicos. Verger (1997, p.26) apud Romão (2018, p.364) explica algumas dessas aproximações:

Pode parecer estranho, à primeira vista, que Xangô, deus do trovão, violento e viril, tenha
sido comparado a São Jerônimo, representado por um ancião calvo e inclinado sobre
velhos livros, mas que é frequentemente acompanhado, em suas imagens, por um leão
docilmente deitado a seus pés. E como o leão é um dos símbolos de realeza entre os
iorubás, São Jerônimo foi comparado a Xangô, o terceiro soberano dessa nação.

A aproximação entre Obaluaê e São Lázaro é mais evidente, pois o primeiro é o deus da
varíola, e o corpo do segundo é representado coberto de feridas e abscessos.

Iemanjá, mãe de numerosos outros orixás, foi sincretizada com Nossa Senhora da
Conceição, e Nanã Buruku, a mais idosa das divindades das águas, foi comparada a
Sant’Ana, mãe da Virgem Maria.

Oiá-Iansã, primeira mulher de Xangô, ligada às tempestades e aos relâmpagos, foi


identificada com Santa Bárbara. Segundo a lenda, o pai dessa santa sacrificou-a devido
à sua conversão ao cristianismo, sendo ele próprio, logo em seguida, atingido por um raio
e reduzido a cinzas.
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Essas correspondências demonstram perspicácia e sutileza dos negros escravizados nas


formas de resistência cultural. Assim, as religiões de origem afro influenciaram e influenciam
fortemente as crenças e a espiritualidade dos brasileiros. Segundo Silva (2014, p. 28):

[...] para conseguir preservar sua cultura e suas crenças, o negro foi obrigado a buscar
dois caminhos: a “aceitação” do que era imposto pela igreja católica, miscigenando com
o que era compatível com sua cultura, como também, os que conseguiam fugir, através
da manutenção de seus ritos nas sociedades clandestinas por ele formadas, chamadas de
quilombos.

Como se vê, não houve aceitação por parte dos escravizados, o que ocorreu foi um
movimento de adaptações e pequenas concessões para que continuassem a professar e perpetuar
sua fé religiosa. Embora existam muitas religiões de origem afro, as mais conhecidas são o
Candomblé e a Umbanda, com adeptos em praticamente todas as regiões brasileiras.
Outra forma de resistência dos africanos e seus descendentes está relacionada à capoeira,
uma prática de origem angolana que mistura música, luta e dança. Essa arte, segundo a
historiografia, estava relacionada a uma forma de defesa pessoal, uma vez que os escravizados
eram proibidos de usar qualquer tipo de arma ou meio de defesa que pudesse pôr em risco a vida
dos seus senhores. Contudo, “essa prática se dava de maneira clandestina, pois, uma vez que ela
era utilizada como arma de luta, os senhores-de-engenho passaram a coibi-la veementemente,
submetendo a terríveis torturas todos aqueles que a praticassem” (Mello, 1996, p. 32).
Já no período pós-abolição, a capoeira foi oficialmente proibida no Brasil pelo Código
Penal de 1890, dispositivo que legalizou o caráter desordeiro e criminoso para os seus praticantes.
Desse modo, essa prática só foi liberada no governo Vargas, nos anos de 1930, sendo declarada
em 2008 como Patrimônio Cultural Brasileiro e em 2014 como Patrimônio Cultural da
Humanidade. “Após terem perseguido, condenado e deportado seus praticantes – pois os capoeiras
foram considerados como vadios, vagabundos e desordeiros durante mais de um século – a
capoeira tornou-se então um dos ícones da identidade brasileira” (Zonzon, 2011, p.132).
Outro aspecto cultural se refere à linguagem.

Com a miscigenação dos povos, as línguas indígenas e africanas agregaram muitas


influências à língua portuguesa brasileira, centrado nos aspectos lexicais que agregaram
na distinção do Português Brasileiro (PB) para o Português Europeu (PE). Na língua
indígena, generalizando o Tupi como “indigenismos”, e na africana a língua Banto como
a de maior influência de empréstimos lexicais e morfológicos integrados ao português.
(Oliveira, 2017, p.9).

Palavras do nosso cotidiano como farofa, samba, moleque, dengo, neném, quitanda,
bagunça, batucar, carimbo, cachaça, cafuné, fungar, jiló, macumba e muitas outras, são todas de
origem africana, o que tornou o português brasileiro tão distinto do português europeu.
No que se refere às artes, a contribuição africana é bastante expressiva. Segundo Silva
(2014), é possível observar na música brasileira a presença forte dos batuques, das batidas e do
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gingado, sendo o samba a principal influência da música africana no Brasil, dando origem ao
samba enredo, samba de breque, samba canção e à bossa nova.

Explorando um pouco mais, pode-se afirmar que a influência africana na música


brasileira se manifesta na melodia e no ritmo de alguns estilos. A principal influência da
música africana no Brasil é, sem dúvidas, o samba. O estilo hoje é o cartão-postal musical
do país e está envolvido na maioria das ações culturais da atualidade. Gerou também
diversos subgêneros e dita o ritmo da maior festa popular brasileira, o carnaval. (Silva,
2014, 29-30).

O samba e todos os seus desdobramentos, além de caracterizar muitos ritmos da música


popular brasileira, também embala as festas de carnaval, uma prática que já era disseminada entre
os africanos, denominada originalmente de “entrudo”. “Entrudo era a brincadeira com água,
farinha e máscaras que desde o tempo da colônia garantia a diversão dos foliões” (Albuquerque e
Fraga Filho, 2006, p.226).

Primitivo, inconveniente, pernicioso e selvagem eram alguns dos adjetivos usados pela
imprensa, por políticos e intelectuais para defini-lo [o entrudo]. Tal incômodo com o jogo
da molhação se explicava pelo risco de que os “moleques”, a “ralé”, o “zé-povinho”,
termos que designavam negros e pobres, extrapolassem os limites da brincadeira e se
julgassem em pé de igualdade com os senhores, damas e senhoritas brancas.
(Albuquerque e Fraga Filho, 2006, p.226).

O entrudo, muito praticado entre os negros e que acontecia todo mês de fevereiro das
últimas três décadas do século XIX, incomodava a elite branca da época. Por essa razão, passou a
ser reprimido por meio de circulares, decretos e punições, como multas e prisões. Toda essa
mobilização por parte das autoridades, tinha por fim convencer os seus praticantes a abandonar
essa forma de diversão que aos poucos foi sendo sufocada pela introdução de desfiles
carnavalescos nos moldes europeus.
Além do samba e do carnaval (que são mais conhecidos/difundidos no país), na dança
temos o Frevo, Maracatu, Bumba meu boi, Coco, Moçambique, dentre outras manifestações que
se destacam em diferentes regiões do Brasil.
O Frevo “teve origem na capoeira, cujos movimentos foram estilizados para evitar a
repressão policial. O nome vem da ideia de fervura (pronunciada incorretamente como ‘frevura’)”
(Silva, 2014, p.30). O Frevo, tombado como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, é o símbolo
do carnaval pernambucano.
O Maracatu “é propriamente um desfile carnavalesco, remanescente das cerimônias de
coroação dos reis africanos. A tradição teve início pela necessidade dos chefes tribais, vindos do
Congo e de Angola, de expor sua força e seu poder, mesmo com a escravidão”. (Silva, 2014, p.30).
Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006) Os maracatus tradicionais de Recife eram e ainda são
chamados de “nações africanas”, uma referência às tradições trazidas ou inventadas pelos
africanos. Apesar de todas as críticas por parte das autoridades administrativas e religiosas, as
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nações de Maracatu recifenses fazem parte das festividades urbanas e rurais, desde meados do
século XIX.
O Bumba meu boi, folguedo de forte influência africana, é a manifestação máxima da
cultura popular do Maranhão, sendo mais apresentado no período das festas juninas.

[...] a temática constante se desenvolve em torno de um rico fazendeiro (elemento branco)


cujo boi de estimação é roubado por Pai Francisco, negro escravo da fazenda que mata o
animal do seu senhor para satisfazer o desejo de sua esposa grávida, Mãe Catirina, que
quer comer a língua do boi. Quando descobre o sumiço do animal, o fazendeiro manda
os vaqueiros procurarem o boi. Ao descobrir o autor do crime, o dono da fazenda obriga
Pai Chico a trazer o boi de volta, sob pena de ser morto. Pajés e curandeiros (elemento
ameríndio) são convocados para reanimar o animal e, quando o boi ressuscita urrando,
todos os brincantes cantam e dançam em redor do boi, em uma enorme festa para
comemorar o milagre. (Furlanetto, 2010, p.108).

Os instrumentos utilizados na apresentação incluem a zambumba, pandeiros, matracas e,


com o passar do tempo, a partir de reinvenções, foram incorporados alguns instrumentos de sopro.
Em outras regiões brasileiras, ele também recebe denominações diversas como Boi-bumbá, Boi-
de-pano, Boi-de-mamão ou Boi-de-reis.
Outra manifestação de bastante expressividade nessa região é o Tambor de Crioula, uma
dança tipicamente maranhense e de origem africana,

[...] em que os grupos se apresentam por convite dos donos das festas realizadas em
louvor a São Benedito (santo católico, de pele negra, filho de escravos etíopes, viveu na
Itália no século XVII e foi trazido para a América como exemplo de obediência e
representação dos santos negros) como forma de agradecimento a graças alcançadas. As
festas são realizadas em noites de luar onde são brindadas com comidas típicas e bebidas
(refrigerante, cerveja e cachaça). (Pacheco, 2014, p.69).

A brincadeira de Tambor de Crioula elege São Benedito como seu padroeiro, dito santo
dos pretos. Apesar de não haver registros sobre suas origens, fica clara a relação de sincretismo
religioso ao adotar uma divindade católica para justificar e conseguir permissão para sua
existência no período escravocrata.
Em reconhecimento ao valor histórico, cultural e identitário, em novembro de 2007, o
Tambor de Crioula do Maranhão recebeu do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) a titulação de Patrimônio Cultural do Brasil.
A arte material também é muito vasta, incluindo artesanatos, indumentária, técnicas de
fabricação de instrumentos musicais e utensílios de cozinha como panelas de barro, colheres de
pau, etc.
Faz parte da cultura afrodescendente o uso de penteados como os dreadlocks, da cultura
rastafári; o cabelo black power; os trançados, com balangandãs, turbantes, dentre outros.
Originalmente, os penteados africanos

[...] sempre foram carregados de simbologia. Podiam indicar o status da pessoa, estado
civil, identidade étnica, região geográfica, religião, classe social, alguns eram usados para
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atrair pessoas do sexo oposto e contavam até detalhes sobre a vida pessoal do indivíduo.
Ainda hoje é possível ver essa relação em certos clãs tradicionais, onde se pode identificar
o status das pessoas pelo tipo de penteado. (Blum, Emiliano, Cássia, s/a, p.03).

Hoje em dia, esses penteados são muito usuais, principalmente por exercer uma função de
identificação étnica, auto aceitação e de fortalecimento do combate ao racismo.
No tocante à literatura popular de origem africana, esta é rica e vasta, contendo uma série
de contos e lendas que enriquecem o folclore brasileiro e retratam micro histórias cotidianas
marcadas pela identidade étnica afrodescendente: “A literatura dos contos afro-brasileiros, assim
como outros documentos e arquivos, preserva as características de um determinado povo, bem
como seu espaço, dialogando com as várias vertentes e tradições das diásporas” (Cajé, 2017, p.08).
Em relação à culinária, os africanos também deixaram valiosas contribuições para os
hábitos alimentares brasileiros. “Os exemplos básicos partem do acarajé, mungunzá, quibebe,
farofa, vatapá, entre tantos outros. Estes, originalmente eram usados como comidas de santo, ou
seja, comidas que eram oferecidas às divindades religiosas cultuadas pelos negros” (Silva, 2014,
p.31). Outros pratos típicos foram incorporados ao cardápio brasileiro: “o angu, o cuscuz, a pamo-
nha e a feijoada, nascidas nas senzalas e feitas a partir das sobras de carnes das refeições que
alimentavam os senhores” (Silva, 2014, p.31). O uso do azeite de dendê, leite de coco, temperos
e pimentas, também faziam parte da alimentação dos africanos nas senzalas. Além disso, os
traficantes de escravos também trouxeram da África a conhecida banana, um dos maiores produtos
de exportação do Brasil na atualidade.
Além das manifestações apresentadas até aqui, a cultura brasileira carrega consigo muitas
outras reinvenções e ressignificações de artefatos africanos, dadas pelos negros escravizados e
seus descendentes, a exemplo da Dança do coco, Dança do caroço, Dança do lelê, Festa do divino,
Maculelê, Jongo, Congada, Carimbó, Cacuriá, dentre outros.
Diante do exposto, salta-nos a dúvida sobre a visibilidade ou não dessas contribuições
africanas à cultura brasileira nos espaços escolares, em especial, nos seus currículos. Para uma
discussão acerca dessa questão, apresentamos adiante uma análise de como a cultura
afrodescendente tem sido representada nos livros didáticos de História, tomando por base
materiais recentes, utilizados nas redes pública e privada de Ensino Fundamental.

A CULTURA AFRODESCENDENTE NO CURRÍCULO ESCOLAR

Considerando as orientações constantes na Lei 10.639/03, que trata da obrigatoriedade do


ensino da cultura e história afro-brasileira em todos os níveis e modalidades educacionais da
Educação Básica brasileira, é importante e necessário desenvolver pesquisas que demonstrem até
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que ponto esse dispositivo tem sido atendido, tanto nas práticas escolares cotidianas como nos
livros didáticos que refletem a política educacional e, de certo modo, definem parte dos currículos
escolares.
Nesta parte do trabalho, trazemos análises de alguns livros didáticos da rede pública e
privada de Ensino Fundamental, especificados nos quadros que seguem:

Quadro 1 - Lista de livros analisados da rede privada

LIVROS DA REDE PRIVADA


Título do livro Editora Ano de Ano/Etapa de Forma de
publicação educação menção neste
artigo
Estudar história:
das origens do Moderna 2016 7º ano do Ensino Livro A
homem à era Fundamental
digital
Sucesso Sistema Edições
de Ensino: Pedagógicas 2018 7º ano do Ensino Livro B
História 7º ano (Sistema Sucesso) Fundamental

Sucesso Sistema Edições


de Ensino: Pedagógicas 2015 5º ano do Ensino Livro C
História 5º ano (Sistema Sucesso) Fundamental

Fonte: Construído pelas autoras (2019)

Quadro 2 - Lista de livros analisados da rede pública

LIVROS DA REDE PÚBLICA


Título do livro Editora Ano de Ano/Etapa de PNLD Forma de
publicação educação menção neste
artigo
Projeto Araribá: 7º ano do 2014
História Moderna 2010 Ensino 2015 Livro D
Fundamental 2016
História: Sociedade 6º ano do 2017
e Cidadania FTD 2015 Ensino 2018 Livro E
Fundamental 2019
História: Sociedade 8º ano do 2017
e Cidadania FTD 2015 Ensino 2018 Livro F
Fundamental 2019
Fonte: Construído pelas autoras (2019)

Os materiais acima mencionados foram recentemente ou estão sendo utilizados em escolas


do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental na cidade de Pinheiro, estado do Maranhão. Apresentamos
a seguir os resultados das análises realizadas em cada um desses livros.

A cultura afrodescendente no livro didático de História da rede privada


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O livro A, 7º ano do EF, aborda temáticas que vão da Alta Idade Média com início do
Feudalismo até a Colonização Inglesa, Francesa e Holandesa na América. Os capítulos 12 e 13
dedicam-se a explanar a conquista e exploração portuguesa no Brasil Colônia.
O capitulo 12, intitulado A CONQUISTA E A COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA
PORTUGUESA, aborda o processo de colonização portuguesa, destacando “a aventura europeia
nas terras que viriam a ser chamadas de Brasil” (Livro A, p.227). Trata do poderio do império
português, principalmente em relação aos continentes africanos e asiáticos. Destaca o papel de
Pero Vaz de Caminha na expedição de Pedro Alvares Cabral ao desembarcar em terras brasileiras,
da relação mantida entre colonizadores e os povos nativos (índios), da exploração do pau-brasil e
sua importância para o comércio europeu. Aborda ainda a forma como Portugal dominou política
e ideologicamente o Brasil, dando ênfase aos governos-gerais, capitanias hereditárias, câmaras
municipais e à atuação dos padres jesuítas na propagação da fé católica. Em nenhuma linha desse
capítulo existe qualquer referência aos negros africanos aqui escravizados.
O capítulo 13, intitulado O NORDESTE AÇUCAREIRO, menciona o sucesso da
produção açucareira, a forma de produção e a grande influência dos “Senhores do açúcar”. As
páginas 250 e 251 demonstram o lucrativo comércio de escravos, os maus tratos e as precárias
condições em que eram transportados. As páginas 252 e 253 abordam, de maneira muito sucinta,
como se deu a resistência escrava, destacando estratégias como furtos, assassinatos de feitores,
suicídios, fugas e formação de quilombos.
O Livro A não menciona qualquer tipo de contribuição africana à cultura brasileira.
O Livro B, 7º ano do EF, dedica o capitulo 10 - ESCRAVIDÃO, RESISTÊNCIA E A
DIÁSPORA AFRICANA à exposição das características da escravidão moderna, a escravidão
como modo de produção presente na história desde a antiguidade, bem como as rotas do tráfico
de escravos pelo Atlântico.
As páginas 222 a 224, com o subtítulo ESCRAVIDÃO: OPRESSÃO E RESISTÊNCIAS,
apenas endossa a exploração da mão de obra africana pelos portugueses: “o escravo africano era
importante moeda de troca nas relações comerciais de portugueses com diversos reinos africanos,
como o Congo. Esse escarvo-mercadoria, agora em mãos lusitanas, era trocado mais uma vez por
grandes somas de metais preciosos” (Livro B, p. 222). Cita ainda a formação dos quilombos, com
destaque ao Quilombo dos Palmares, porém, passa uma imagem estereotipada sobre a luta dos
quilombolas, mencionando o seu líder Zumbi como pertencente “a uma elite quilombola” e
causador de conflitos que vieram a vitimá-lo como também todo o seu quilombo.
Mais uma vez não encontramos referência a qualquer tipo de manifestação cultural deixada
pelos africanos e seus descendentes.
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O Livro C, 5º ano do EF, dedica duas páginas à abordagem acerca dos negros no Brasil,
intitulada OS NEGROS E A ESCRAVIDÃO. A primeira menciona o negro como escravo e
condenado a maus tratos, como se não esboçassem qualquer tipo de reação: “Eles vinham em
navios denominados de negreiros [...] sem condições de higiene, maltratados e mal alimentados.
Os que sobreviviam eram vendidos nos mercados como qualquer mercadoria e, de lá, seguiam
para onde os levassem seus senhores” (Livro C, p.63).
A página seguinte (64) cita: “Algumas contribuições dos negros foram”. Logo em seguida,
apresenta o seguinte quadro:

Ilustração 1 - referências à cultura afrodescendente no Livro C

Fonte: Sucesso Sistema de Ensino (2015)

Dos três livros utilizados na rede privada, aqui analisados, apenas o Livro C demonstra,
em um único quadro e de maneira muito resumida, algumas contribuições dos negros para a
cultura brasileira.

A cultura afrodescendente no livro didático de História da rede pública

O Livro D, 7º ano do EF, dedica o tema 3 da Unidade 8 à abordagem da temática


ESCRAVIDÃO, RESISTÊNCIA E TROCAS CULTURAIS. Embora tenha sido publicado pela
mesma editora do Livro A (Moderna), apenas com diferenciação de editor responsável, o Livro
D, mesmo em pouquíssimas linhas, trouxe elementos para uma reflexão acerca da necessidade da
afirmação da identidade étnica, citando nomes de líderes e ativistas negros que lutam contra a
discriminação e o preconceito racial no Brasil. Porém, de maneira muito simplista e sucinta.
Em relação às manifestações afrodescendentes, o Livro D menciona o sincretismo
religioso como uma forma de resistência cultural:
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A religião dos africanos era vista pelos católicos como feitiçaria. Assim, para evitar a
perseguição da Igreja, os escravos negros passaram a associar cada divindade do
Candomblé a um santo católico. O sincretismo, portanto, teria sido uma forma de os
escravos negros preservarem, ao menos em parte, as suas tradições. (Livro D, p.219).

Entretanto, essa é a única citação, outras formas culturais afrodescendentes não são
mencionadas nesse livro.
O Livro E, 6º ano do EF, explora as fontes históricas, cultura e patrimônio dos antepassados
primitivos, das civilizações antigas, intercalando com algumas questões das sociedades atuais.
No capítulo 2, denominado de CULTURA, PATRIMÔNIO E TEMPO, há algumas
referências sobre patrimônios naturais, materiais e imateriais brasileiros. No entanto, ao abordar
exemplos de patrimônios culturais, há uma única menção às contribuições de origem africana, em
um pequeno trecho: “entre os exemplos de bens culturais de matriz africana está o Tambor de
Crioula do Maranhão” (Livro E, p.32). Outra abordagem pode ser encontrada na página 45 ao
apresentar um texto complementar que aborda o frevo como uma expressão artística brasileira,
porém sem mencionar que o mesmo tem origem afrodescendente.
De um modo geral, no Livro E não demonstra as manifestações culturais deixadas pelos
africanos e seus descendentes no Brasil.
O Livro F, 8º ano do EF, trata-se de um material da mesma coleção e mesmo autor do
Livro E. Nessa edição, o autor dedica o primeiro capitulo, intitulado AFRICANOS NO BRASIL:
DOMINAÇÃO E RESISTÊNCIA, à reflexão acerca da escravidão africana anterior aos europeus,
o tráfico de escravos pelo Atlântico, bem como as formas de resistência negra ao sistema
escravocrata.
Além de tratar sobre as mazelas da escravidão, o Livro F avança ao tratar desse assunto,
dando ênfase aos movimentos de resistência negra: “Eles resistiam praticando religiões de origem
africana, jogando capoeira, promovendo festejos, como o congado, o reisado, o jongo e fundando
irmandades” (Livro F, p.21). Aborda ainda outras formas de negação ao sistema como rebeliões,
fugas e formação de quilombos.
Em relação às culturas, a página 21 ilustra uma roda de capoeira (logo abaixo da citação
anterior) e a página 31 traz um texto complementar para interpretação no qual é abordada a
comercialização do acarajé pelas mulheres (em especial as baianas), destacando a origem africana
desse prato típico.
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Ilustração 2 - Representação da roda de capoeira no livro F

Fonte: FTD (2015)

Ilustração 3 - Representação do acarajé e sua comercialização pelas mulheres

Fonte: FTD (2015)

A página 17, no último parágrafo, menciona que os africanos trouxeram consigo a força
de trabalho e a sua cultura: “E, o que é importante dizer, essas culturas africanas marcaram
profundamente nossos modos de viver, pensar e sentir” (Livro F, p.17). No entanto, o assunto
encerra e nada mais é dito, descrito ou ilustrado sobre essas culturas trazidas pelos africanos ao
Brasil.
De maneira geral, o livro F também silencia a maioria das culturas afrodescendentes.
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Algumas reflexões sobre os livros pesquisados

Numa análise geral, tanto dos materiais utilizados em escolas privadas quanto em escolas
públicas, é possível verificar uma ênfase às formas de repressão e obediência do escravizado,
invisibilizando as lutas sociais dos negros e o papel de protagonistas da sua história e da formação
da sociedade brasileira.
Segundo Alberti (2013, p.40), “a escravidão deve ser estudada para que se perceba seu
papel vital na criação do racismo”. Esse autor chama a atenção de educadores para a necessidade
de discorrer sobre a escravidão dos negros em um contexto em que o aluno possa refletir e romper
com a ideia de que os negros são escravos, enfatizando que estes têm os mesmos direitos de
qualquer cidadão. Na sala de aula o preconceito, o racismo e a discriminação podem acontecer
por conta de abordagens errôneas sobre a escravidão, o que pode ocasionar baixo autoestima nos
meninos e meninas negras.
Os livros utilizados na rede privada apresentam maiores problemas, uma vez que
demonstram o caráter desumano da escravidão e enfatizam o poderio europeu sobre as terras e
povos conquistados. De outro modo, os livros usados na rede pública, mesmo de maneira muito
tímida, mencionam alguns exemplos de como os negros foram conquistando espaços na sociedade
por meio de suas lutas.
Contudo, trazendo para o foco maior desta pesquisa, verificamos que as poucas vezes em
que uma cultura de matriz africana é mencionada nos livros pesquisados, isso se deu de forma
estritamente reduzida, simplista, descontextualizada e esporádica. De acordo com Silva (2001, p.
51), “o livro didático apresenta o passado histórico e a cultura do povo negro sob forma reduzida
e conveniente, quando não consegue invisibilizá-los completamente”.
Nesse sentido, é possível inferir que o atendimento à Lei 10.639/03 caminha em passos
lentos, pois os esforços somados, em especial pelas editoras de livros didáticos, para a inclusão da
história e cultura afro-brasileira no ensino básico, ainda se encontram deficientes, ocasionando
ocultamentos e invisibilidades das contribuições afrodescendentes para a sociedade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho objetivou analisar as (in) visibilidades da cultura afrodescendente em livros


didáticos utilizados nas redes pública e privada de ensino. Buscamos apresentar reflexões sobre
as diversas contribuições dos afrodescendentes para a formação da sociedade e cultura brasileira,
além de verificar como as mesmas estão sendo representadas e, portanto, trabalhadas nos
currículos escolares.
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Verificamos, nos livros pesquisados, que existe a predominância de uma visão branca em
relação à escravidão no Brasil e no mundo, deixando de lado o protagonismo negro, bem como a
resistência cultural que é marcante na sociedade brasileira, mas que raramente é apresentada nos
materiais analisados. Dos 6 livros examinados, em apenas 2 foi possível encontrar menções sobre
a presença da cultura afrodescendente, porém, de forma superficial, resumida ou fora de contexto.
Dessa forma, percebemos a maneira como o negro é representado no livro didático e a
invisibilidade das suas formas culturais. Foi possível concluir que há silenciamentos e segregações
das culturas afrodescendentes no livro didático de História, mesmo se tratando de livros
atualizados e que deveriam estar em conformidade com as recomendações da Lei 10.639/03.
Há, portanto, a necessidade urgente de rever certos paradigmas acerca da construção dos
currículos escolares na atualidade. Importa analisar o que as escolas e seus educadores têm feito
para desmistificar determinados posicionamentos, bem como se há observância quanto a
implementação da Lei 10.639/03 em suas práticas. Desse modo, é imperioso refletir e rediscutir
as matrizes curriculares e escolher materiais didáticos que respeitem e contemplem a diversidade,
sem visões limitadas ou preconceituosas sobre os grupos sociais e étnicos que formaram a cultura
e sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

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Afro-Brasileiras e Indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013.
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Brasília, DF: Fundação Cultural Palmares, 2006. 320p.
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Editora, 2016
BLUM, Gabrielly Slompo; ISIS, Silvani Emiliano; CÁSSIA, Danielle de. Cabelo afro e a
estética: a valorização dos traços étnicos. Disponível em
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2015.
CAJÉ, Antonio Marcos dos Santos. Literatura dos contos afro-brasileiros, conhecendo nossas
histórias afrodescendentes. Revista Abralic, 2017. Disponível em file:///D:/Downloads/393-
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COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia/ Emília Viotti da Costa. – 4ª ed. – São Paulo:
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COUTO, Fábio. Sucesso Sistema de Ensino: História: 7º ano. Recife: Edições Pedagógicas,
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DIÉGUES Jr., Manuel. Etnias e culturas no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980.
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A DEMOCRATIZACÃO DO PROCESSO DE ESCOLHA DE GESTORES ESCOLARES


NAS ESCOLAS PÚBLICAS BRASILEIRAS: LIMITES E POSSIBILIDADE PARA UMA
GESTÃO DEMOCRÁTICA E UM ENSINO DE QUALIDADE.

THE DEMOCRATIZATION OF THE CHOICE PROCESS OF SCHOOL MANAGERS


IN BRAZILIAN PUBLIC SCHOOLS: LIMITS AND POSSIBILITY FOR
DEMOCRATIC MANAGEMENT AND QUALITY TEACHING.

Edneyson Reis Soares Amaral


Graduando em Ciências Humanas UFMA
Flávio Luiz de Castro Freitas
Doutor em Filosofia pela UFSCAR
Professor permanente do PPG PGCULT UFMA
Eixo 1 :Arte, Tecnologia e Educação

Resumo:Este trabalho objetiva a análise do modo mais democrático de escolha de gestores


escolares nas escolas públicas brasileiras que seja capaz de possibilitar uma gestão efetivamente
democrática, bem como, que seja capaz de proporcionar um ensino de qualidade. Para tanto,
busca-se em autores, pesquisadores e documentos oficiais, análises e dados que possam
substantivar as afirmações e conclusões aqui feitas. Durante todo o percurso analito fica evidente
que as formas mais comuns de se selecionar gestores escolares no país têm igualmente limites e
possibilidades para proporcionar uma gestão democrática e um consequente ensino de qualidade;
principalmente os processos considerados mais democrático de escolha de diretores de escolas.
Destaca-se, contra toda a previsibilidade e alguns estudos já realizados no país, que a meritocracia
quando associada a eleição direta torna o processo de escolha de gestores mais democrático. Por
isso, acredita-se aqui que o cumprimento da Meta 19 do atual Plano Nacional de Educação possa
ser a forma mais democrática de se escolher o gestor escolar e igualmente possibilite a gestão
democrática e o ensino de qualidade nas escolas públicas brasileiras.
Palavras-chave: Escolha democrática, Gestão democrática, Ensino de qualidade, Educação.

Abstract:This study aims to analyze the most democratic way of choosing school administrators
in Brazilian public schools that is capable of effectively democratic management, as well as being
able to provide quality education. For this purpose, we search authors, researchers and official
documents, analyzes and data that can substantiate the statements and conclusions made here.
Throughout the course of analysis it is evident that the most common ways of selecting school
managers in the country also have limits and possibilities to provide democratic management and
consequent quality education; mainly the processes considered more democratic of choice of
school principals. It stands out, against all predictability and some studies already carried out in
the country, that meritocracy when associated with direct election makes the process of choosing
managers more democratic. Therefore, it is believed that compliance with Goal 19 of the current
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National Education Plan may be the most democratic way to choose the school manager and also
enable democratic management and quality education in Brazilian public schools.
Keywords: Democratic choice, Democratic management, Quality education, Education.

1. INTRODUÇÃO
No Brasil, depois de duas décadas de regime totalitário, a sociedade vem buscando a
democratização das instituições públicas e, dentre elas, destaca-se de modo mais enfático a parir
da década de 80 a democratização da escola. O que é compreensível, dada a sua importância
estratégica para a formação de uma país que se quer cada vez mais próspero e constituído em
bases democráticas.
Onde não parece haver consenso é na forma como se pretende democratizar a escola
pública brasileira. Daí de muitos defenderem que, para que a escola seja democrática basta que o
político escolha o diretor da escola, pois este foi escolhido pela maioria da população. Se esquece,
no entanto, que a democratização da escola não diz respeito apenas a escolha do gestor escolar,
está atrelada também a participação da comunidade escolar no dia a dia da própria gestão da
escola. Valendo frisar que na escolha do diretor de escola pelo executivo não tem nada de
democrático, pelo contrário, é autoritário por não respeitar o desejo da comunidade escolar.
A democratização de uma escola parte da autonomia, de compartilhar o rumo das decisões
tomadas pela equipe pedagógica e, também administrativa, fundamentando-se em regras que dão
representatividade na liderança e na coordenação de supervisão das tarefas no alcance de
resultados positivos. Coisa que a nomeação de gestores não é capaz de promover. Pelo contrário,
é justamente por esta confusão do que seja democracia que se observa muitos dos problemas
enfrentados pelas escolas públicas brasileiras.
Tais problemas, poderiam ser resolvidos se ao invés de se promover práticas clientelistas
o conjunto dos sistemas públicos de ensino levassem em consideração aspectos meritocráticos
associados a eleição direta como critérios de escolha daqueles que coordenam o espaço
pedagógico da escola.
Tal preocupação que se verifica em se resolver os problemas promovidos pela péssima
qualificação dos gestores que são escolhidos para a função por meio da indicação se dá porque se
tem compreendido cada vez mais que um mau gestor, que não tenha legitimidade, influencia
negativamente no processo ensino-aprendizagem.
Sendo assim, a fim de se neutralizar tal influência negativa é que documentos oficiais como
a LDB e o PNE têm proposto uma outra forma de se escolher os indivíduos que gerem e pensam
o espaço escolar, pois percebem que o desempenho e empenho destes influenciam na promoção
ou não da escola de qualidade. Nessa perspectiva Figueiredo e Peres (2017, p. 09) comentam,
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A partir da promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional -


LDBEN 9394/96 a eleição para o cargo de gestor e a implantação da gestão democrática
receberam um enfoque maior e sua efetivação no país passou a estar atrelada a
possibilidade de maior qualidade na educação. O Plano Nacional de Educação - PNE
(2014), publicado 18 anos após a LDBEN surgiu no cenário nacional como uma
ferramenta mais enfática do governo para assegurar em todo território brasileiro a
efetivação da gestão democrática como um dos princípios constitucionais do ensino
público, como um espaço de construção coletiva e de deliberação a fim de alcançar uma
educação com maior autonomia e participação de todos nas tomadas de decisão.

Para que uma escola seja então democrática e autônoma é necessário que possa eleger o
gestor escolar e tenha alguns mecanismos de participação da comunidade no cotidiano da escola.
De nada adianta, pois, ser democrática só a escolha. Como prever a Meta 19 do PNE é preciso
garantir mecanismos de participação efetiva da comunidade na gerência do cotidiano da escola.
Destaca-se a formação do colegiado escolar, a participação em reuniões nas assembleias, a
formação do grêmio estudantil, a associação de pais e mestres, o conselho de classe, o conselho
escolar, o plano de desenvolvimento da escola e o projeto político-pedagógico, como instâncias
significativas para a promoção da gestão democrática nas escolas brasileiras.
É nessa perspectiva de democratização da sociedade em todas as suas instâncias, pois, que
Paro (2003) defende a eleição direta como elemento propiciador de condições para a gestão
democrática e o ensino de qualidade,
[...] defesa da eleição como critério para a escolha de diretores escolares está baseada
em seu caráter democrático [...] À medida que a sociedade se democratiza, e como
condição dessa democratização, é preciso que se democratizem as instituições que
compõem a própria sociedade. Daí a relevância de se considerar a eleição direta, por parte
do pessoal escolar, alunos e comunidade, como um dos critérios para a escolha do diretor
de escola pública (PARO, 2003, p. 26).

Este trabalho tem assim como objetivo analisar os diversos tipos de provimento à função
de diretor escolar, propondo o modo mais democrático de escolha de tais gestores. Verifica-se
ainda, até que ponto o processo de escolha de gestor escolar influencia na qualidade escolar e na
construção da gestão democrática. Tentar-se-á identificar se a Meta 19 do PNE, que está em vigor,
tem os elementos necessário para que se construa uma gestão de fato democrática e uma escola
de qualidade.
A pesquisa aqui realizada classifica-se da seguinte forma, segundo a taxionomia de Vergara
(2014): quanto aos fins, em exploratória por se investigar na literatura clássica e atual elementos
que respondam de forma clara e segura à pergunta feita no problema real; quanto aos meios em
bibliográfica por se fazer uso de livros, revistas, periódicos, hipertextos, dentre outros meios para
compor o estudo do problema. E quanto à abordagem classifica-se em qualitativa por se precisar
analisar o problema de modo crítico e aprofundado.

2. AS PRINCIPAIS FORMAS DE SELEÇÃO DE GESTORES ESCOLARES NO


BRASIL: limites e possibilidades de cada uma.
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De acordo com Dourado (2001 apud Drabach, 2013) há pelo menos cinco formas de se
escolher o gestor escolar no Brasil: por indicação, por carreira, por concurso, por lista tríplice ou
sêxtupla, e por eleição direta. Paro (2003) analisa que as formas mais usais podem ser sintetizadas
em apenas três tipos: a nomeação, o concurso e a eleição.
À livre nomeação por autoridade do estado, sem outros requisitos que não a vontade do
agente que indica, na hierarquia governamental ou burocrática do próprio Estado,
chamarei simplesmente de nomeação. A escolha a partir de um plano de carreira tem
significado quase sempre a exigência de concurso de títulos ou de provas, mas nada
impede que se pense numa carreira que exija também algum processo eletivo entre seus
requisitos para a escolha do diretor. Por isso chamarei o segundo tipo simplesmente de
escolha por concurso, para descriminá-lo do terceiro, que chamarei por escolha por
eleição, em que se incluem todas as variações que preveem a manifestação da vontade
das pessoas envolvidas na vida da unidade escolar [...] seja mediante voto direto, seja por
representação, seja ainda pela escolha uninominal ou pela escolha de listas plurinominais.
(PARO, 2003, p. 13-14)

Neste trabalho comentar-se-á os três tipos sintetizados por Paro, indicando-se os limites e
possibilidades de cada forma de provimento da função de gestor escolar para a partir daí se refletir
sobre o modo mais democrático de acesso a função de diretor que seja capaz de tornar a gestão
mais democrática e o ensino seja de maior qualidade.

2.1 A nomeação.
A primeira e mais difundida forma de provimento de gestor escolar é a nomeação, que
segundo o “Relatório do 1º ciclo de monitoramento das metas do PNE: Biênio 2014-2016”,
corresponde no geral a 45,6% do total das formas de provimento de gestores escolares no Brasil.
Esse dado revela algo preocupante para aqueles que desejam uma gestão democrática e
uma escola de qualidade como preconizam os documentos oficiais, como a Constituição Federal
no seu artigo 206 e a LDB de 1996 no seu artigo 3º.
Os defensores deste tipo de provimento veem ao longo dos anos encontrando cada vez mais
dificuldades de justificar a eficácia deste processo uma vez que os dados educacionais são baixos
e o clima dentro do estabelecimento escolar é de constantes disputas entre gestor e comunidade
escolar. Assim, a alegada facilidade de se ter acesso as estruturas burocráticas do estado e com
isso a teórica facilidade de se trazer benefícios a escola tem esbarrado na própria dinâmica que
esse tipo de provimento impõem à função do gestor que acaba tendo com o executivo não uma
função de parceiro institucional, mas uma relação de submissão por este ter lhe possibilitado o
acesso à função de diretor.
Isso ocorre porque, segundo Paro (2003), a forma como é feito o provimento do gestor ao
posto estar diretamente relacionado ao modo com este irá agir dentro do estabelecimento
educacional. Paro afirma,
[...] a forma como é escolhido o diretor tem papel relevante – ao lado de muitos outros
fatores – seja na maneira como tal personagem se comportará na condução de relações
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mais ou menos democráticas na escola, seja em sua maior ou menor aceitação pelos
demais envolvidos nas relações escolares, seja, ainda, na maior ou menor eficácia com
que promoverá a busca de objetivos, seja, finalmente, nos interesses com os quais estará
comprometido na busca desses objetivos (PARO, 2003, p. 7-8).

A falta de aceitação pela comunidade escolar desses gestores que são nomeados levando-
se em conta apenas aspectos políticos é um dos principais problemas ocasionados por essa forma
de provimento. Aliado a isso, como seu compromisso é com a estrutura política do estado, sua
gestão é marcada por uma postura autoritária que atrapalha principalmente o trabalho dos
professores, que têm enfrentado uma verdadeira guerra contra os desmandos e falta de
qualificação daqueles que são responsáveis, ou pelo menos deveriam ser, pela gerência do espaço
escolar e, também, por ajudá-los (teoricamente) no processo ensino-aprendizagem, dando o apoio
pedagógico e material necessário para que estes possam desenvolver suas atividades com maior
qualidade dentro e fora da sala de aula.
Oliveira e Carvalho (2018, p.13) afirmam, a partir da análise dos dados quantitativos da
Prova Brasil das edições 2007, 2009 e 2011, que a influência da liderança do gestor sobre o
conjunto da comunidade escolar reflete no desempenho escolar. Em suas conclusões “verificou-
se que a escola ter um diretor que foi indicado para o cargo tem uma relação negativa com os
resultados de aprendizagem nos três anos analisados”.
Esse ambiente de perseguição e de falta de qualidade gerencial no espaço escolar e
educacional é fruto de uma cultura de apadrinhamento e de retribuição de favores eleitorais que
acabam colocando pessoas no comando das escolas e nas coordenações pedagógicas sem nenhum
critério técnico só com a intenção de que estes possam “ajudar” seus “padrinhos”, na maioria
políticos. Como aponta Mendonça (2000)
[...] interferência política no ambiente escolar que esse procedimento enseja permitiu que o clientelismo
político tivesse na escola um campo fértil para seu crescimento. [...] A indicação como mecanismo de escolha do
diretor não pode por esses motivos ser compreendida como democratizadora nem como propiciadora de modernização
administrativa e burocrática (MENDONÇA, 2000, p. 130-131).Como fruto dessa cultura generalizada no

país, criticada por Mendonça (2000), cria-se, por um lado, um ambiente hostil entre gestão e
professores, que na maioria das vezes não se vêm representados pela pessoa que está na direção
da escola ou na coordenação pedagógica por esta não ter uma qualificação condizente com o corpo
docente que ela “lidera”, e, por outro lado, cria-se um ambiente desmotivador por não se dá ao
corpo docente a possibilidade de, através de seu empenho, desempenho e qualificação, poderem
acessar os cargos de comando dentro da estrutura administrativa das secretarias de educação.
Em estudo intitulado “gestão escolar, liderança do diretor e resultados educacionais no
Brasil”, Oliveira e Carvalho (2018) analisaram que ainda existe e é grande o número, por exemplo,
de gestores escolares sem formação superior que, obviamente, influência na qualidade pedagógica
da gestão e consequentemente do ensino. Chama a atenção no estudo realizado para o percentual
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de gestores sem curso superior na Bahia que em 2007 era de 40%, enquanto a média nacional era
de 10,6%.
É muito triste, pois, ver que por essa prática politiqueira se tem menosprezado a
experiência e o mérito dos professores em detrimento da manutenção de grupos políticos que
confundem o que é público com o que é privado. É comum vermos por aí, em qualquer município
de qualquer estado, por exemplo, professores com anos de experiência sendo colocados em
funções que os diminuem em quanto profissionais que dedicaram anos de suas vidas a ensinar.
Que triste e degradante para o orgulho profissional de um professor é, após anos de magistério, se
ver colocado para “escanteio” cuidando de uma pequena biblioteca de uma escola, quando este
tem qualificação e experiência para estar no comando, liderando professores inexperientes e/ou
quando este pode pensar as políticas educacionais dentro das secretarias.
Silveira (2016) corroborando com a discussão apresentada aqui, vai mais longe e assevera
que tal prática tem afastado a gestão escolar dos interesses da comunidade.
O diretor elevado ao cargo por livre indicação política – cargo de confiança e
comissionado - executa as funções de acordo com as prioridades encaminhadas pelo
patrono – aristocracia clientelista – e de sua responsabilidade, o que se opõe ao perfil da
gestão democrática. Inibe a participação da comunidade na definição do representante ao
cargo de diretor – sem lhe ter reconhecido a liderança – assim como inibe a legitimação
política do processo. Centraliza o poder e o domínio no dirigente, distanciando-se dos
interesses da comunidade (SILVEIRA, 2016, p. 2).

Embora haja muitos apelos por parte dos docentes para que a seleção dos gestores possa ocorrer
de forma mais burocrática (no sentido weberiano), ou seja, de forma mais racional, primando pelo
mérito em detrimento de conluios políticos partidários, infelizmente, pouco se tem avançado no
Brasil, como aponta o relatório do 1º ciclo de monitoramento das metas do PNE: biênio 2014-
2016, citado anteriormente.

2.2 O concurso
A segunda forma de provimento que se passa a apresentar é o concurso público; ele
representa, segundo o relatório de monitoramento das metas do PNE, 7,6 % dos processos de
escolha de gestores escolares em todo o país. Esta forma de provimento leva em consideração o
mérito do candidato em detrimento da vontade política dos mandatários do poder, e, é igualmente
controversa. Traz ganhos e limitações para a promoção da gestão democrática assim como para
desenvolvimento da educação de qualidade.
Paro é um dos autores críticos a essa proposta que tem agradado cada vez mais a
educadores em grande parte do país; na cidade de São Paulo, por exemplo, “em 1991, em consulta
feita entre os professores e especialistas da rede municipal, [...] cerca de 81% dos docentes
preferiram a escolha pela via do concurso” (PARO, 1996, p. 8).
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A crítica do autor sobre essa forma de provimento se baseia nos mesmos aspectos negativos
do provimento clientelista que tem predominado na seleção de gestores no Brasil com a nomeação
pelo executivo para a função de gestor escolar. Na visão do autor, o compromisso do gestor
concursado continua sendo com o Estado e não com a comunidade, o que gera um clima
desfavorável para a promoção da educação de qualidade (como apontado por Carvalho e Oliveira,
acima citados) uma vez que a lógica da gestão segue um viés autoritário e desarticulado com os
interesses da comunidade. Além disso, Paro aponta um outro aspecto prejudicial do concurso que
não é notado pela nomeação: o aspecto político da gestão fica escamoteado desarticulando a
mobilização da comunidade escolar para a melhoria do gerenciamento dos recursos escolares.
Nos sistemas em que o diretor é nomeado, seu compromisso político é com quem está no
poder, porque foi quem o nomeou; nos sistemas em que ele é concursado, seu
compromisso é também com quem está no poder, pois o concurso isolado não estabelece
nenhum vínculo do diretor com os usuários mas sim com o Estado que é quem o legitima
pela Lei. Mas há uma diferença importante: quando há a nomeação pura e simples, o
aspecto político fica à mostra, provocando, especialmente em períodos de
democratização da sociedade, descontentamento e mobilização dos prejudicados no
sentido de superar a situação; mas, nos casos em que há a ocorrência do concurso como
critério exclusivo de escolha, há o agravante de que o aspecto político fica escamoteado,
com maior tendência de acomodação e de crença na justificativa meramente técnica para
os problemas da escola (PARO, 1996, p. 8.)

A possibilidade de que a gestão seja antidemocrática é igualmente grande. Ao assumir a gestão de


uma escola por meio de concurso a concepção de quem está no comando geralmente é de
superioridade em relação aos demais membros da comunidade escolar. A sua gestão acaba se
tornando por isso muito mais burocrática do que pedagógica, como afirma Drabach (2013, p.3) “a
atuação do diretor fica concentrada em aspectos administrativos, tecnocráticos, em detrimento da
face pedagógica da gestão escolar”.
Com a implantação da BNCC pressiona-se, no entanto, cada vez mais o gestor escolar
“que está mais voltado para questões administrativas [...] assumir com ênfase seu papel de
liderança pedagógica, afinal a Base propõe um modelo de ensino no qual o estudante tem grande
protagonismo e o clima escolar e as relações humanas merecem atenção especial” (FERNANDES,
Nova Escola, p. 8).
Observa-se através das análises feitas que esse modelo de escolha de gestor escolar pode
ser ainda mais prejudicial à consolidação da gestão democrática e a concretização da escola de
qualidade, pois, como aleta Silveira (2016, p. 3), a meritocracia (ou pelo menos os aspectos
meritocráticos apresentados) “assenta o poder nos domínios da autoridade centralizada”.
Dourado e Costa (1998 apud SILVA, 2007) analisam um outro entrave que a escolha por
concurso traz e que impacta diretamente a comunidade escolar que é a dificuldade de se demitir
ou tirar da função o gestor concursado se este não desempenha suas funções de acordo com as
expectativas da escola. A Secretaria da Educação do Estado de São Pulo, que tem uma vasta
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experiência com esse tipo de provimento, reconhece essa problemática ao admitir que é difícil
exonerar ou demitir um diretor inapto e acrescenta outra limitação do concurso que é a sua
incapacidade de avaliar a capacidade de liderar do candidato; de acordo com a Secretaria no “[...]
concurso não se mede a parte prática, o desempenho como diretor, sua liderança, etc”
(DOURADO & COSTA, 1998, apud SILVA, 2007, p. 160).
Até a aparente promoção de uma seleção democrática que esta forma parece representar é
duramente criticada por vários autores, incluindo Vitor Henrique Paro (2003). De acordo com os
críticos, se por um lado essa forma abre a possibilidade para que qualquer professor (ou outro
graduado) possa se candidatar à vaga de gestor de uma determinada escola, por outro lado ela
submete mais uma vez a escola a um papel meramente secundário, cabendo a ela receber o gestor
aprovado em concurso, que não passou pelo crivo clientelista, é verdade, mas igualmente não foi
escolhido pela escola.
Na verdade, o sistema de escolha do diretor por concurso público é democrático apenas
do lado do candidato ao cargo. Este, enquanto aprovado e convocado pela Secretaria de
Educação, escolhe, dentro às várias unidades escolares disponíveis, aquela que mais lhe
interessa. Nesse processo, o diretor escolhe a escola, mas nem a escola nem a comunidade
podem escolher o diretor (PARO, 2003, p. 25).

2.3 A eleição
A eleição é a segunda forma de provimento mais comum no país, segundo análise do
relatório de monitoramento das metas do PNE (biênio 2014-2016), correspondendo a 21% do total
de escolhas feitas nas redes públicas de ensino brasileiras. É considerada por muitos teóricos como
a forma mais democrática para se escolher o gestor escolar, uma vez que, a comunidade escolhe
o gestor que irá comandar o processo administrativo e pedagógico da escola. Esta forma daria
autonomia e protagonismo a comunidade escolar ao passo que possibilitaria um ambiente
favorável a implantação da gestão democrática nas escolas que experimentem esse tipo de seleção.
No entanto, ela igualmente tem seu limites e possibilidades para que se consiga efetuar de
forma harmônica uma escolha democrática de gestores aliada a uma efetiva gestão democrática
desses gestores. E é aqui que alguns críticos encontram argumentos para não se efetivar a eleição
como forma de provimento à função de diretor nas escolas brasileiras, pois, segundo os críticos a
essa proposta, ela não garante a gestão democrática; como salienta Paro (2003, p. 28) “é
interessante observar a persistência de argumentos que tentam desmerecer a eleição sob a alegação
de que ela, sozinha, não garante a democracia na escola”.
Se é verdade que ela sozinha não garante a gestão democrática, como de fato não garante,
esses mesmos críticos não podem por isso desprezar essa forma de provimento e valorizar a
nomeação, o que constantemente ocorre. Principalmente os ideólogos que representam os políticos
mais conservadores tendem a desmerecer a eleição em beneficio da livre indicação, que como
visto só tem dado resultados ruins ao ensino, bem como a gestão democrática. Nem mesmo os que
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defendem o concurso para diretor podem usar esse argumento, uma vez que, como visto, é mais
difícil haver gestão democrática com essa forma do que com a eleição.
Um dos principais argumentos usados por quem defende a eleição, é a de que a eleição
resolveria as limitações do concurso uma vez que esta possibilita aferir a capacidade de liderança
do gestor, coisa que a outra forma não consegue avaliar. Em relação a esse ponto, Paro (2003, p.
32) afirma:
Ao diretor, para exercer suas funções, não bastam as habilidades de um bom professor.
Além delas, é preciso que ele apresente legitimidade diante do pessoal escolar e dos
usuários da escola. E legitimidade não se mede por concurso, mas pela livre manifestação
da maioria.

Além disso, como já apontado, Oliveira e Carvalho (2018, p. 14) destacam a partir dos
dados das provas Brasil que nas gestões democráticas “a liderança do diretor favorece um clima
institucional adequado para um trabalho pedagógico mais eficaz, o que, por sua vez, é propício
para o bom desempenho dos alunos”.
Desse modo, o diretor passa a ter o compromisso de fazer uma gestão para a comunidade
escolar e não para o estado, muito menos para “os padrinhos políticos”, como ocorre na nomeação
e no concurso para diretor. Esse modo de se escolher o gestor escolar de fato possibilita uma
construção muito mais favorável para a gestão democrática do que as duas outras formas aqui
apresentadas.
Outra qualidade apontada por seus defensores e que é um defeito no concurso, é a
possibilidade de a escola ter o controle da permanência ou não de seu diretor. Enquanto o concurso
acomoda o diretor no cargo, na eleição a comunidade tem a possibilidade de tirar o diretor da
função até antes do término do mandato se este não estiver fazendo uma boa gestão, ao mesmo
tempo que blinda-o contra os interesse políticos do executivo que não poderá demiti-lo só porque
este possa não ser alinhado ao seu espectro político-ideológico.
Apesar de todas essas qualidades, a eleição não é capaz de amenizar as tenções políticas
partidárias vistas na sociedade; muitas vezes, pode ela mesma potencializar tal divisão o que pode
ser um problema para a melhoria do ensino bem como a gestão democrática. Isso se deve ao fato
de haver a possibilidade de que os grupos políticos vitoriosos e derrotados nas eleições políticas-
partidárias buscarem na figura do diretor uma forma de promoverem seus projetos de poder. Desse
modo, a estrutura política pode ser usada para eleger este ou aquele gestor. Assim, se o diretor “A”
ganha a eleição e é o preferido do executivo o candidato “B” pode não reconhecer o resultado das
eleições e procurar meios de dificultar a gestão do vitorioso. A esse respeito, Paro (2003, p. 77)
assinala,
Mas a partidarização das eleições não se restringe à dicotomia entre os interesses dos
governantes e os interesses do pessoal escolar, posto que também os usuários podem-se
deixar envolver por características partidárias da luta política, por ocasião da eleição de
diretores. Ao temor de que as eleições podem-se constituir em ocasião para exercício de
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lutas partidárias com grupos ligados a partidos políticos ou entidades sindicais


disputando votos de pais, alunos e pessoal escolar, têm correspondido relatos no mesmo
sentido.

Calaça (1993 apud PARO, 2003, p. 77-78) ilustra igualmente como funciona os problemas
para a democracia e a gestão democrática trazidos pela partidarização das eleições nas escolas ao
mostrar os resultados das eleições realizadas em Goiânia, em que
[...] alguns candidatos patrocinados por vereadores distribuíram santinhos, calendários e
camisetas e prometeram favores em troca de votos. Inserem-se, também, nessa lógica, o
poder do presidente de Associações de moradores ao tentar impor nomes de partidários
na tentativa de legitimá-los através do crivo das urnas.

No entanto, embora reconheçam a possibilidade de se fazer nas eleições escolares uma extensão
das eleições políticas, os defensores da eleição direta alertam que é preciso superar a
partidarização das eleições nas escolas, pois como bem lembra Góes (1992 apud PARO, 2003, p.
78) “uma eleição de diretor de escola não é uma eleição partidária, político-partidária. Uma eleição
de diretor de escola não é uma eleição de entidade, nem uma eleição sindical”. Embora possa
acontecer. É preciso, pois, pensar numa forma de não deixar que a partidarização contamine o
processo de escolha do diretor da escola.
Além da divisão da escola a eleição pode favorecer o aparecimento do corporativismo, que
igualmente é prejudicial para o desenvolvimento do tipo de gestão que se deseja e ganhou força a
partir da constituição de 1988, que é a gestão democrática.
O corporativismo pode ser ruim, dentre outras coisas, por criar uma animosidade
desnecessária entre grupos de servidores e o governo, além de possibilitar a criação de algum tipo
de proteção para grupo de servidores que possam faltar com suas obrigações, prejudicando assim
na qualidade final do produto oferecido a comunidade escolar.
A comunidade, quando elege um indivíduo para ocupar um cargo diretamente ligado aos
seus interesses como profissional ou como usuário dos serviços que lhe são prestados,
coloca nesse mesmo indivíduo uma série de expectativas sobre o seu desempenho. Corre-
se o risco, ao nosso, ver, de um corporativismo pernicioso que não se coaduna com a
ocupação de um cargo público. (MENDONÇA, 1987 apud PARO, 2003, p. 77)

Ao discutir sobre os limites da eleição direta para diretor de escola, Paro (2003) observa
que a prática clientelista não fora superada na sua totalidade, embora tenha diminuído bastante
nos sistemas que experimentam esse modelo de escolha. Criou-se no entanto, um novo tipo de
clientelismo, onde as trocas de favores não são mais propostas em uma relação extramuro da
escola, mas sim, dentro da própria unidade de ensino como mostra Holmesland et al. (1989 apud
Paro, 2003, p. 98) a partir de depoimentos de diretores escolares eleitos através do voto direto:
“[...] os professores que acabam colocando o diretor, muitas vezes, querem vincular o voto que
deram a uma benevolência no trato”.
A fim de superar os vícios da eleição partidária na escola, Paro (2003) propõem algumas
medidas que, dentre outras coisas, visam minimizar a polarização dentro da escola, tornando-se
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assim a eleição para diretor um processo de união entre toda a comunidade escolar e não de
divisão.
Uma dessas providências pode ser o estabelecimento de regras mínimas para o
desenvolvimento da campanha. Assim, além de se exigir que as candidaturas só se façam
a partir da apresentação, por parte dos candidatos, de programas ou plataformas mínimas
de gestão da escola, pode-se estabelecer uma forma de campanha em que seja proibida a
propaganda desordenada, que inclusive costuma conturbar o andamento normal das
atividades didáticas na escola. (PARO, 2003, p. 79)
Embora se concorde com o autor nas medidas apresentadas para que práticas clientelistas
e corporativista possa ser desassociadas da eleição direta, chama-se a atenção para o fato de que,
para que isso ocorra, é preciso que haja um processo burocrático, imparcial e previsível de se
selecionar os professores que poderão concorrer a função de gestor escolar em um determinado
período. Tal processo teria que levar em conta experiência e formação como critério para se
colocar pares ou trios de professores ao escrutino da eleição direta.
Mais do que isso, essa maneira de seleção mista cumpriria a Meta 19 do Plano Nacional
de Educação e tornaria o processo de escolha de gestor mais democrático, bem como, possibilitaria
de fato à gestão democrática na escola pública brasileira.

3. O CUMPRIMENTO DA META 19 DO PNE: modo mais eficiente de se escolher o gestor


escolar
Como visto acima, todos os modos de se escolher gestor escolar têm limites e
possibilidades para se tornar o processo de escolha de gestor mais democrático, bem como,
concretizar a gestão democrática, potencializando-se assim o desenvolvimento de uma educação
de qualidade – principalmente, como visto, através da eleição direta. No entanto, até ela tem seus
limites. Por isso mesmo, é preciso, como visto com Paro, que se busque alternativas que superem
os limites de cada processo.
A Meta 19 do PNE parece trazer respostas capazes de vencer tais limites. A proposta de
escolha defendida pelo plano traz a forma mista como meio eficiente de se escolher o gestor
escolar. Assim, é objetivo da meta,
Assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática
da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública
à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico
da União para tanto. (BRASIL, Lei 13.005/2014)

Embora ainda não cumprida, como visto, a meta entende que princípios meritocráticos
devem ser levados em conta no processo de escolha do gestor escolar associada a consulta pública
a fim de que o processo de escolha se torne mais democrático.
Já as suas estratégias trazem subsídios concretos para que a gestão do diretor escolhido
pela forma mista possa ser de fato democrática e não só uma possibilidade para que ocorra.
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Destacam-se como foco dessa proposta as seguintes estratégias da Meta 19 do PNE (BRASIL, Lei
13.005/2014):
19.1) priorizar o repasse de transferências voluntárias da União na área da educação para
os entes federados que tenham aprovado legislação específica que regulamente a matéria
na área de sua abrangência, respeitando-se a legislação nacional, e que considere,
conjuntamente, para a nomeação dos diretores e diretoras de escola, critérios técnicos de
mérito e desempenho, bem como a participação da comunidade escolar;
19.4) estimular, em todas as redes de educação básica, a constituição e o fortalecimento
de grêmios estudantis e associações de pais, assegurando-se-lhes, inclusive, espaços
adequados e condições de funcionamento nas escolas e fomentando a sua articulação
orgânica com os conselhos escolares, por meio das respectivas representações;
19.5) estimular a constituição e o fortalecimento de conselhos escolares e conselhos
municipais de educação, como instrumentos de participação e fiscalização na gestão
escolar e educacional, inclusive por meio de programas de formação de conselheiros,
assegurando-se condições de funcionamento autônomo;
19.6) estimular a participação e a consulta de profissionais da educação, alunos (as) e
seus familiares na formulação dos projetos político-pedagógicos, currículos escolares,
planos de gestão escolar e regimentos escolares, assegurando a participação dos pais na
avaliação de docentes e gestores escolares;
19.7) favorecer processos de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira
nos estabelecimentos de ensino;

Como visto nas estratégias o plano prever condições para que a participação da
comunidade não seja apenas na escolha do diretor de escola, mas que ela se dê na gestão da própria
escola, como prever também a Constituição Federal e a LDB ao definirem que a forma de gestão
escolar brasileira tem que ser democrática.
Chama-se aqui a tenção para o fato de que os elementos meritocráticos a serem observados
para se escolher o gestor escolar, devam ser observados dentro da própria escola que o candidato
à função de diretor exerça o seu cargo de professor. Pois nada adiantará se os candidatos vierem
de outras localidades e exerçam outros cargos e tenham outra formação que não seja a de professor.
A esse respeito, embora adepto da eleição direta, Paro (2003) dá contribuições importantes ao
enaltecer a experiência no cargo de professor como algo importante para que alguém possa exercer
a função de gestor.
[...] É preciso considerar o papel da experiência docente como pré-requisito para o
exercício da direção de uma escola. [...]. Os diretores, em geral, reconhecem grande
importância na experiência anterior de professor e, embora não se deva absolutizá-la, ela
deva fazer parte, juntamente com uma formação profissional formadora da competência,
como pré-requisito para a candidatura à eleição de diretor. (PARO, 2003, p. 87)

Dessa maneira valoriza-se os profissionais da educação estimulando-os a buscarem uma


maior formação para fazerem um bom trabalho quando ocuparem a função de gestor e dá a
comunidade escolar a possibilidade de escolher alguém para gerir a escola que já tenha um vínculo
anterior com a comunidade. Desta feita, processos seletivos de provas e títulos, não são
condizentes com etapa de um processo misto que queira ser democrático tanto no processo de
escolha do gestor da escola, quanto na gestão da própria escola, uma vez que, mesmo havendo
eleição ainda se estaria impondo profissionais que não conhecem a realidade específica daquela
escola que irá gerir, bem como, impossibilita a comunidade de fazer uma escolha calcada no
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conhecimento prévio do trabalho daquele profissional. A nova formação que deverá compor o
perfil do professor proposta por Paro (2003) em contraposição a ideia de se formar na academia
pessoas especificamente para serem gestoras, reforça o entendimento aqui exposto de que, para se
ser gestor é preciso que se leve em conta elementos meritocráticos como experiência e formação.
[...] todos, [...], devem ter acesso aos conteúdos e aos métodos mais adequados para
utilizar os recursos da escola na busca de seus fins. Esta concepção é compatível com
uma formação do diretor que coincide com a formação do próprio professor, ou seja, todo
professor deve ter acesso a um tipo de formação que o habilite, não apenas a prestar
concurso para professor na rede pública, mas também, após certo período de experiência
no magistério a candidatar-se para o cargo de diretor. (PARO, 2003, p. 86-87)

Diferente da ideia do autor, em que é importante uma formação de professores em que se


tenha no currículo além de disciplinas especificas da área outras que aborde a situação da escola
pública brasileira porque este professor algum dia poderá ser gestor, acredita-se aqui, assim como
prever a meta 19 do PNE, que para se ser diretor escolar é preciso obrigatoriamente que aspectos
meritocráticos como experiência e formação devam ser pré-requisitos. E como já mencionado,
acredita-se que o tempo de serviço do professor em uma determinada escola deva ser também
elemento condicionante para que ele se candidate a função de gestor daquela escola.
Percebe-se que, na configuração aqui proposta, a meta visa superar os resquícios do
clientelismo e do corporativismo que ainda persistem no sistema de escolha puramente eleitoral,
quando coloca como forma de escolha o mérito dos professores. Tal superação poderá ocorre
porque a dinâmica de escolha do gestor fica assim distante do poder executivo. Assim, os
professores que serão candidatos a gestor num determinado período o serão por terem adquirido
requisitos meritocráticos para isso.
A forma prevista pelo PNE é mais democrática também por dar aos professores a
possibilidade de que em algum momento ele será gestor de sua escola; na verdade, como visto na
meta 19, dependerá basicamente dele conseguir desempenhar tal função, pois caberá a ele buscar
qualificação profissional e fazer um bom tralho que agrade o conjunto da comunidade escolar,
tanto para ele entrar como para ele ficar.
Desse modo, soluciona-se o problema da falta de liderança do gestor enfrentada na
nomeação e no concurso, bem como, soluciona o problema da divisão política partidária dentro
da escola vistos ainda na eleição direta.
Esse modo de escolha de gestor potencializa a gestão democrática, por, primeiro, conscientizar o
gestor que ele ocupa uma função e que o seu cargo é de professor, logo, ao término de sua gestão
outro professor assumirá a função de diretor, fazer um bom trabalho deixa assim de ser opção e
passa ser obrigação; e segundo, porque a comunidade escolar é quem manterá ou não o professor
escolhido no cargo.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto em todo percurso crítico-analítico, quanto mais democrático é o processo de
escolha do diretor de escola, tanto mais democrática é a sua gestão. Evidenciou-se assim, que nas
escolas onde se escolhe o diretor por nomeação ou por concurso, a gestão tende a ser mais
autoritária e centralizada em aspectos burocráticos/ administrativos. O que por sua vez prejudica
a qualidade do ensino, pois os aspectos pedagógicos tendem a ser deixados de lado.
Outro fator influenciador do resultado do ensino que não é contemplado nem na nomeação
nem concurso é a liderança. Esta, como visto a partir dos estudos de Oliveira e Carvalho,
influencia positiva ou negativamente no rendimento escolar. Assim nas escolas em que o processo
de escolha do diretor é democrático a tendência é que a liderança que ele exerce sobre o conjunto
da comunidade escolar estimule bons resultados educacionais. Agora, quando devido ao processo
de escolha, ele não consegue exercer uma liderança positiva sobre os demais membros da
comunidade a tendência, como se observou, é que se reproduza resultados educacionais
insatisfatórios.
É por isso que se buscou então apontar durante toda a trajetória deste trabalho possíveis
caminhos que pudessem tornar o processo de escolha de diretor mais democrático e que
igualmente fosse capaz de tornar a sua gestão democrática. Percebeu-se a partir das informações
e dados apresentados, que os elementos meritocráticos como formação, experiência tanto a de
tempo de serviço na área de educação, quanto a experiência docente em uma dada escola em que
se pretenda concorrer a vaga de diretor, é importantíssima para que o processo seja democrático
para os candidatos. Por outro lado, observou-se também que os elementos meritocráticos devem
ser pré-requisitos a candidatura, mas para se concluir o processo é preciso que a comunidade
escolar escolha aquele que ela achar mais bem preparado para desempenhar a função de gestor de
sua escola.
Desse modo, entende-se que se valoriza o professor e se dá a comunidade escolar condições
efetivas de decidirem o melhor programa de gestão para a sua escola. Tira-se também a escola da
divisão político partidária e seus malefícios, coisa que o processo “puro” de eleição direta não é
capaz de resolver. Por fim, a proposta de escolha mista aqui defendida para se escolher o gestor
escolar, está em conformidade com documentos oficiais, principalmente a Meta 19 do PNE.

REFERÊNCIAS
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VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e Relatórios em Administração. 15. ed. São Paulo:
Atlas, 2014.
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A ESCOLA DE MASSA E O ENSINO DA FILOSOFIA: REFLEXÕES ACERCA DA


DIDÁTICA FILOSÓFICA

THE MASS SCHOOL AND THE TEACHING OF PHILOSOPHY: EFLEXCTIONAS


ABOUT PHILOSOPHICAL DIDACTICS

João Ferreira da Páscoa Filho


Mestrando em Gestão de Ensino da Educação Básica - PPGEEB
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
Viviane Moura da Rocha
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em
Gestão de Ensino da Educação Básica – PPGEEB
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
Eixo temático 1: Arte, Tecnologia e Educação
Resumo: A Escola de Massa e o Ensino de Filosofia: reflexões acerca da didática filosófica. O
seguinte empreendimento busca discutir e refletir acerca da problemática da massificação da
escola pública, que veio com o processo de democratização do ensino médio e sua relação, a partir
de agora, com a filosofia. Passando pelo conceito e importância da filosofia e seu ensino. Logo
após, reflete acerca do ensino da filosofia e os desafios que orbitam em seu entorno. Por último,
tecemos as considerações finais sobre a temática.
Palavras-chave: Democratização. Ensino. Filosofia. Didática.

Abstract: The Mass School and the Teaching of Philosophy: reflections about philosophical
didactics. The following venture seeks to discuss and reflect on the problem of the massification
of public school, which came with the process of democratization of high school and its
relationship, from now on, with philosophy. Going through the concept and importance of
philosophy and its teaching. Soon after, he reflects on the teaching of philosophy and the
challenges that orbit in its surroundings. And finally, we have made the final considerations on
the subject.
Keywords: Democratization. Teaching. Philosophy. Teaching.

1 INTRODUÇÃO

Desde a década de 80, a sociedade brasileira vem passando por um processo político-sócio-
cultural que chamamos de redemocratização, no qual parcelas da estrutura social, camadas
populares que antes não eram inseridas no seio da sociedade com direitos garantidos, agora passam
a experimentar tal sensação.
A escola também é afetada por essas mudanças. Até a década de 70, o ensino secundário era
restrito às camadas mais abastadas da sociedade, entre elas, destacam-se a classe média e a elite.
Com o limiar de um novo cenário, classes como a trabalhadora e a popular, passam a ser incluídas
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no ensino secundário. Ocorre um movimento chamado por alguns autores de “massificação”.


Processo pelo qual, camadas da sociedade que antes estavam fora da escola, têm agora a
oportunidade de adentrá-la.
No entanto, não se trata de uma justaposição. Tal mudança requer também reflexões ao nível
educativo e disciplinar, envolvendo diretamente o ensino filosófico, pois o público do ensino
médio agora é outro, carrega consigo desafios e limitações no campo educativo.
Um dos primeiros é que a filosofia passou muito tempo fora do currículo oficial da educação
brasileira, tornando-se, por isso, sua inserção no ensino médio, na opinião de alguns estudiosos,
prejudicada. E mais recentemente teve sua voz silenciada novamente pela mudança de
posicionamento, passando de disciplina obrigatória a fazer parte de áreas, dificultando ainda mais
sua razão de ser no ensino médio. Depois da aprovação da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC).
Outro desafio que se apresenta é o público atendido pela educação básica, em sua grande
maioria, provinda das classes menos favorecidas socialmente, trazendo consigo problemas de teor
educativo e dificuldades de aprendizagem que se traduzem em questões como: dificuldade de
interpretação; problemas na escrita; e dificuldade com leitura.

2 O que é a filosofia?

Grosso modo, podemos dizer que a Filosofia é um ramo do conhecimento responsável por
construir conceitos, que nos ajudam a partir do processo hermenêutico-interpretativo a buscar
entendimento acerca do mundo, da realidade.
Poderíamos inicialmente dizer que a Filosofia é conhecida como “a arte de criar conceitos”,
como propagada em vários escritos de Deleuze como em “Diferença e Repetição”. São eles, os
conceitos criados pela filosofia acerca da realidade que nos ajudam a interpretá-la, a compreender
seus fenômenos.

De acordo com Chauí (2000), a Filosofia epistemologicamente não é considerada uma ciência.
Nem se encaixa dentro de nenhum ramo do conhecimento imposto pelo método científico
moderno. Mas é uma reflexão crítica, sistemática, profunda, radical acerca da realidade. Isso inclui
também reflexões, interpretações sobre os diversos ramos do conhecimento que compartilham da
tentativa de entender a realidade e seus fenômenos.

Para Aranha (1990), a filosofia está presente em todos os cenários epistemológicos, prestando
um grande serviço através da reflexão crítica, colocando em questão os fundamentos e a ação
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provindos daí. Neste sentido, a filosofia é um constante perguntar pelos fundamentos da realidade,
pelos vários ramos do conhecimento que se prestam também a desvelar a realidade.

Segundo o pensamento de Luckesi (1994), a filosofia é uma forma de compreensão que se


apresenta ao ser humano com o objetivo de lhe fazer entender a razão de sua existência, seu
significado, voltado também para um dever-ser, para forma como devemos agir no mundo em
relação com outros seres humanos, rumo a construção de um mundo possível de ser habitável.

3 Importância e função do ensino da filosofia

A Filosofia desde sua origem sempre colaborou com a humanidade, colocando


questionamentos acerca da realidade, da cotidianidade do ser humano, acima de tudo na esfera
social, a partir de suas várias dimensões como: a criticidade, a reflexão, a constante construção e
reconstrução do pensamento, com o objetivo de apresentar pressupostos consistentes para a
formação do sujeito crítico, capaz de refletir sobre sua própria prática, sobre suas ações. Pois como
dizia Sócrates, um dos grandes filósofos do período clássico, “uma vida que não é refletida não
merece ser vivida”.
De acordo com Aranha (1990), a Filosofia exerce na realidade uma importância fundamental,
pois é ela que consegue reunir as várias cosmovisões de mundo, provindas da ciência e que acabam
fragmentando o conhecimento acerca da realidade. É pela filosofia que conseguimos ir além da
cotidianidade do mundo, do senso comum e, alagar o conhecimento sobre o que entendemos como
realidade. A filosofia alimenta a reflexão por meio do constante questionar-se. Ela se propõe a ser
um antídoto contra a estagnação mental. É um constante ir além, ir adiante.
No entendimento de Rodrigo (2014), não há dúvida da importância do ensino de filosofia para
construção de um cidadão e uma sociedade que sejam alicerçados em valores democráticos, pois
ela, a filosofia, carrega em sua estrutura constitutiva os meios adequados que podem formar
cidadãos para a participação, para o espirito crítico e para o debate público. Dimensões sine qua
non para a democracia.
Para Luckesi (1994), entre Filosofia e Educação existe uma relação que beira a naturalidade.
A educação está voltada para a formação de novas gerações que formarão um determinado tipo
de sociedade. Nestes termos, cabe a filosofia, questionar os valores, os pressupostos formativos
que embasarão a formação destes jovens e, que modelo de sociedade queremos, que tipo de
sistema político, econômico serve a esta sociedade.
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Partindo deste ponto de vista, fica subtendido que o ensino de filosofia tem uma importante
colaboração para a construção e reconstrução de valores, construção e reconstrução de conceitos
que podem colaborar com uma sociedade que tenha como princípios fundamentais de
funcionamento a igualdade, a fraternidade e a liberdade.
De acordo com a compreensão de Aspis (2004), O surgimento da filosofia vem como uma
possível saída, uma compreensão acerca da realidade que ajudaria o ser humano a responder suas
inquietações e resolver seus problemas concretos. Neste sentido, as aulas de filosofia têm a
intenção de apresentar processos criteriosos, filosóficos para que assim os estudantes consigam
fazer julgamentos, questionamentos que correspondam com a veracidade da realidade. Não
somente questionar a realidade, mas através do pensamento autônomo e livre propor resoluções a
seus problemas.
Para Cerlleti (2009), o ensino de filosofia é compreendido como o “ensinar a filosofar”. Não
basta apenas o professor de filosofia ter domínio da história da filosofia, mas, é estritamente
necessário para que o ensino de filosofia seja significativo, a provocação, o convite a pensar,
vislumbrar aquilo nos afeta na realidade, tentar compreendê-lo. O ensino de filosofia não se dá
simplesmente como transmissão de conteúdo, mas como um desbravar os meandros do aprender
a pensar por si mesmo, de forma livre e autônoma. O ensino de filosofia, dessa forma, deve ter
como principal missão o ensinar a pensar.

4 O ensino da filosofia: entre desafios

Muitos desafios vêm cercando a Filosofia e seu ensino no decorrer da história. É um cenário
que não permite a Filosofia exercitar e ampliar as reflexões que orbitam em torno da realidade.
Esses desafios se originam, principalmente, a partir do cenário político, econômico, formativo e
curricular, tendo como objetivo principal, emperrar seu exercício.

Em meados da década de 60, o ensino de filosofia não tinha muita dificuldade para ser
compreendido, pois estava voltado para um público seleto, elitizado, com um nível cultural
familiar que o propiciava a alçar altos voos no nível do pensamento, inserido em um ensino
tradicional, especializado, que os preparava para entrar na universidade.
Com a redemocratização do ensino, a escola secundária se abre para acolher um novo público,
provindo das classes trabalhadora e popular com sérias dificuldades. Com este novo cenário à
vista, várias discussões foram postas, principalmente, aos vários contextos que dizem respeito ao
processo educativo.
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No cenário nacional, pouco a respeito de uma didática propriamente filosófica, tem sido foco
de pesquisas e reflexões ao nível da formação de professores em filosofia. E muito menos em
relação às pesquisas voltadas para o conhecimento do ensino da didática que vem sendo praticado
na educação básica durante todo esse tempo.
Diante do cenário exposto, é preciso repensar a formação do professor, o ensino da filosofia,
pois é necessário encontrar formas, maneiras de levar a filosofia ao encontro desse aluno ou esse
aluno ao encontro da filosofia.
Cabe aqui refletir acerca da didática. Mas o que seria a didática? De acordo com o autor:
A didática é uma disciplina que estuda o processo de ensino no seu conjunto, no
qual os objetivos, conteúdos, métodos e formas organizativas da aula se
relacionam entre si de modo a criar as condições e os modos de garantir aos
alunos uma aprendizagem significativa. [...] A didática, portanto, trata dos
objetivos, as condições e meios de realização do processo de ensino, ligando
meios pedagógico-didáticos a objetivos sócio-políticos (LIBANEO, 2002, p. 05).

As questões anteriores nos levam a pensar mais do que em uma didática em seu caráter geral.
É necessário que se pense em uma didática mais pontual, de natureza específica. Que possa tornar
o conhecimento de um determinado campo disciplinar compreensível, ou seja, levar determinado
campo de saber e suas complexidades a ser entendível pela comunidade escolar. A cerca disso,
comenta a autora que,
Mais que em outros tempos, torna-se crucial a criação de estratégias didáticas
que facilitem a superação da distância existente entre as exigências teórico-
epistemológicas do saber filosófico e as deficiências educacionais de boa parte
dos alunos oriundos de segmentos sociais menos favorecidos. Quanto maior a
distância entre o ponto de partida cultural do aluno e as exigências inerentes ao
saber filosófico, maior é a importância das mediações a serem instituídas por
instrumentos didáticos adequados (RODRIGO, 2014, p. 31).

É preciso entender a importância da filosofia neste contexto, o qual traz ao profissional docente
complexos desafios que o fazem refletir sobre seu papel e o papel da filosofia na escola. Sobre
isso comenta a autora que,

È bastante possível que aquele que se dedicar a dar aulas de filosofia para jovens
no Brasil, hoje, sentirá a necessidade de pensar seriamente no que isso significa
antes de sentir-se em condições de decidir o que fazer em suas aulas e como fazê-
lo. O contexto que envolve o ensino de filosofia para jovens, na escola, é
complexo já que há tantos possíveis objetivos educacionais que podemos atribuir
a filosofia, tantos fins filosóficos e as possíveis formas de alcançá-los ( ASPIS,
2004, p. 306).

Acompanhamos em 2008, a reinserção da disciplina filosofia no rol daquelas que passaria


naquele momento, após ser sancionada pelo presidente da república, a caráter de obrigatoriedade
no ensino médio. No entanto, muita coisa havia mudado desde 1971, quando a filosofia e seu
ensino, por força de lei passou a vigorar no nível médio como disciplina optativa. De 2008 a 2020,
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já se passaram 12 anos. O que tem sido feito nesse meio tempo em sala de aula para aproximar o
aluno dos pressupostos filosóficos? Que didática tem sido praticada?
Estas indagações não são fáceis de serem respondidas, mesmo porque existe no país um
número restrito de pesquisas sobre essa temática. Pouco a respeito de uma didática propriamente
filosófica tem sido foco de pesquisas e reflexões ao nível da formação de professores em filosofia.
E muito menos em relação às pesquisas voltadas para o conhecimento da didática que vem sendo
praticada no ensino médio durante esse tempo. Acerca desta problemática o autor diz:
Constatei a escassa produção sobre o ensino de filosofia por parte dos
pesquisadores brasileiros à medida que nem um por cento dos artigos e/ou textos
analisados nos 16 periódicos dedicou-se a discutir a temática em questão. Da
revisão dos mais relevantes periódicos de Filosofia, de Educação e de Educação
e Filosofia em circulação no Brasil, que totalizaram 9242 artigos e/ou textos
revisitados, apenas 64 – 0,69%da produção geral – traziam por tema o ensino de
filosofia com seus diferentes enfoques e deste número geral, apenas 40 – 0,43%
da produção geral – tratavam-no com vistas às problemáticas brasileiras
(PERENCINI, 2017, p. 35).

Mesmo não havendo um número significativo de pesquisas a respeito do ensino da filosofia,


é perceptível a constatação de problemas que se relacionam com ela e seu ensino, pois o estudante
de forma geral tem muita dificuldade em se relacionar com os pressupostos filosóficos. Da mesma
forma, os professores de filosofia também sentem muita dificuldade em realizar seu ofício. O autor
comenta que,
O pequeno número de instâncias de formação continuada, a ausência de suportes
didáticos mais bem definidos e a eventual formação deficiente, somadas á
ausência de instâncias que estimulem um trabalho crítico-reflexivo sobre a
prática, tudo isso conspira para obstaculizar um trabalho efetivamente filosófico
dos professores junto aos estudantes (FAVERO et al., 2004, p. 274).

Sobre tais posições surgem outras indagações: Será que somente o domínio sobre o conteúdo
da disciplina ou matéria é suficiente? E qual o contexto social e político escolar que se apresenta
ao ensino da filosofia? Acerca disso, muitos desafios se mesclam.
Refletindo um pouco mais sobre a possibilidade da auto-suficiência do conhecimento
mediante o processo ensino-aprendizagem, posta na primeira pergunta acima, Pimenta (1997)
comenta que pensar desta maneira seria um erro ou, mais especificamente, no seu dizer, uma
“ilusão”. Pois dominar conteúdos não é garantia de sucesso no que diz respeito ao processo ensino-
aprendizagem, não significa transferência direta ao aluno, mas requer processos de ensino –
mediadores entre o docente e o discente. No caso do conhecimento filosófico não seria diferente.
É necessário também haver mediadores - uma didática de natureza filosófica. Sobre isso, é
comentado que,
Os desafios postos pelo ensino de massa tornaram necessário não apenas romper
com certas práticas pedagógicas tradicionais, mas também aderir a uma Nova
concepção de ensino. [...] Quando os problemas de aprendizagem começaram a
multiplicar-se, especialmente, com a escola de massa, a possibilidade de haver
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contradição entre a lógica de ensino e a lógica de aprendizagem tornou-se


flagrante. A pretensa autonomia da noção de ensino teve de ser revista. Se o aluno
não aprende, o professor não pode dizer que ensina, apesar da competência de
seu discurso “magistral”. Ensino e aprendizagem passaram a ser concebidos
como noções correlatas: só existe ensino se alguém aprende. A educação escolar
deixou, então, de gravitar em torno da sabedoria do mestre que ensina, tendo seu
ponto referencial mais fundamental nas carências do aluno que aprende.
(RODRIGO, 2014, p. 21-22)

Ampliando a discussão sobre a segunda indagação posta acima, o contexto político escolar ao
qual se apresenta à filosofia é de redemocratização da sociedade brasileira, onde a escola não
atende mais somente a públicos como a elite e a classe média. Deixou-se de ser uma escola
secundária elitizada. Agora, se abre para a massa da população menos preparada como nos é
sublinhado que,
Quando a filosofia começou a retornar ao ensino médio em 1980, o processo de
massificação já estava em curso e essa nova conjuntura socioeducacional trouxe
desafios didático-pedagógicos inteiramente novos. A presença da disciplina
filosófica em um ensino médio massificado levanta a questão da sua difusão para
além de um público especializado e, mais que isso, para pessoas que não possuem
as competências mínimas exigidas pela reflexão filosófica, seja do ponto de vista
lingüístico e lógico-conceitual, seja em relação às referências culturais de aspecto
mais amplo ( RODRIGO, 2014, p. 11).

O nível médio juntamente com o ensino filosófico tem agora em suas mãos um grande desafio
de ordem didático-metodológica. Rodrigo (2014) nos assevera que, “do ponto de vista didático,
o grande desafio reside em saber como ensinar ou tornar acessível um saber especializado para
esse público mais vasto e menos qualificado. ”
As universidades ainda têm dificuldades em separar uma formação para o professor de
filosofia que atue no ensino médio e para o pesquisador em filosofia. Em sua grande maioria
formam pesquisadores, especialistas e não profissionais da educação que atue com sucesso no
ensino médio. A esse respeito nos assevera Gallo no prefacio do livro “Filosofia em sala de aula”
de 2014, de Lídia Maria Rodrigo que a formação voltada para o professor de filosofia quando
acontece é graças ao esforço e mérito de professores universitários de disciplinas como
‘metodologia do ensino de filosofia’ e/ou ‘prática de ensino em filosofia/estagio supervisionado’,
de forma isolada nas instituições em que trabalham. Ou então acabam ficando a vontade do próprio
universitário, que, quando se vê em sala de aula, acaba agindo de forma intuitiva, tendo como
modelos a serem imitados e modelos a serem recusados seus professores, sua própria experiência
de ensino universitário. A questão nuclear é que o ensino de filosofia na educação média tem suas
especificidades e não pode ser simplesmente a transposição do ensino universitário simplificado
e/ou diminuído.
Sobre o assunto comenta o autor que,
Não faz sentido formar um professor de filosofia que seja apenas um especialista,
porque, em primeiro lugar, ele será totalmente ineficaz no ensino médio. Em
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segundo lugar, será improdutivo, porque se conseguir ensinar algum aluno, não
conseguirá produzir o intelectual que está preocupado com a inserção da cultura
na sociedade da perspectiva que é própria da filosofia (NOBRE, 2007, p. 69).

Na opinião do autor:
Talvez a formação do docente de EM seja até mais difícil que a formação do
pesquisador. Porque ele precisa ser capaz de realizar esta ponte, digamos, entre
esta tradição, na qual se espera que seja o mais bem formado possível, que ele
tenha condições de continuar se formando, mas fazer a ponte desta tradição com
a experiência, as questões, as ansiedades, as angústias dos adolescentes, que são
o seu público, não é fácil, de fato ( GUIMARÃES, 2010, p. 34).

Em relação ao contexto geral da formação universitária Tardif (2000) enfoca que os


conhecimentos universitários (teóricos) ainda estão muito aquém de condizerem com a realidade
dos saberes profissionais dos professores mobilizados em sala de aula.
Os profissionais que atuam no ensino de filosofia ainda são em sua grande maioria provindos
de outras áreas, como a pedagogia e a história. Sobre isso Chauí (2010), defende a necessidade de
evitar-se a distribuição de aulas de filosofia aos não graduados em filosofia para tentar um
processo autêntico e mais cuidadoso por parte dos graduados na área, junto aos estudantes do
ensino médio.
Existe ainda uma pergunta que ultrapassa todas as outras, no que tange ao ensino de filosofia,
e ao modo como se deve levá-la ao público do nível médio: Por que é necessária a filosofia neste
nível de ensino? Acerca da seguinte indagação nos é comentado que,
A presença de várias disciplinas é, muitas vezes, natural nas escolas, mas a
presença da Filosofia, normalmente, não foge da tão propagada questão: Para que
estudar Filosofia? Qual a utilidade desta disciplina na formação de alunos e
alunas? (GONTIJO; VALADÃO, 2004, p. 288).

Acerca desta assertiva o autor nos indica que,


Estudar filosofia no ensino médio da educação básica comporta dois momentos
distintos, mas relacionados: num primeiro instante, possibilita aos educandos o
acesso a algumas das produções teóricas e culturais elaboradas pela humanidade,
como as ciências, as artes etc.; outro momento é o da crítica a esse cabedal
cultural em seus fundamentos, bem como a crítica a esse momento atual, à
presente realidade: social, econômica, política, cultural, religiosa etc.( ALVES,
2002, p. 120).

Rodrigo (2014) também comenta que o ensino da filosofia no “ensino médio de massa” é
necessário e vale o esforço em busca de “dispositivos facilitadores da aprendizagem dos não
iniciados”, o exercício filosófico de forma geral busca o desenvolvimento da humanidade do
homem, a partir do pensamento racional, levando-o uma relação consigo, com o outro e o mundo,
concretizando-se em uma cidadania democrática.
Partilhando da discussão acerca de uma didática filosófica apropriada ao nível médio, comenta
o autor que,
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Devemos buscar elaborar, então, uma proposta de “ensino” da filosofia


apropriada ao nível da “aprendizagem” dos jovens e adolescentes do ensino
médio, com uma metodologia própria e diferenciada da que é usada nos cursos
de graduação em filosofia nas universidades [...] (ALVES, 2002, p. 125).

Além dos desafios já mencionados, outros se apresentam ao ensino da filosofia no nível médio,
desde a redemocratização da sociedade brasileira na década de 80, e a abertura do ensino médio
para as classes menos favorecidas como a trabalhadora. Com a aprovação da filosofia a disciplina
obrigatória no ensino médio em 2008, há a oportunidade de mostrar a sociedade brasileira a que
veio a filosofia. No entanto, muitos percalços travaram de certa forma esses objetivos, entre eles,
destacam-se a precariedade da formação continuada, a formação especifica para o licenciado
trabalhar no ensino médio, outras áreas de conhecimento ensinando filosofia em sala de aula,
precariedade das pesquisas voltadas para o ensino de filosofia em sala de aula – no ensino médio,
a aprovação da Base Nacional Comum Curricular que silencia o currículo de Filosofia, tornando-
a agora não mais uma disciplina com caráter de obrigatoriedade, mas fazendo parte agora das
optativas que pertencem a uma grande área de conhecimento: as humanas.
Todos esses desafios se somam ao pano de fundo que vem com a redemocratização da
sociedade brasileira e consigo a massificação do ensino médio que carrega diversos problemas
que irão determinar em muitas situações o processo do ensino e da aprendizagem. Para a
construção de uma didática filosófica há a necessidade de compreender esse cenário que em pleno
século 21, ainda insiste e persiste em se presentificar.

 Considerações Finais

É inegável que o ensino de filosofia seja fundamental para o processo educativo e para o
desenvolvimento humano.
A filosofia consegue através da constante indagação sobre a realidade evitar o processo de
estagnação do pensamento e, em contrapartida, constrói, desenvolve o conhecimento através de
processos rigorosos, críticos e reflexivos.
Entretanto, esse papel, essa função da Arte e da Filosofia nunca foi fácil de ser realizada, pois
no decorrer do processo histórico, forças contrárias sempre agiram para impedir que
desempenhassem seus objetivos propostos, por força do contexto político, econômico e formativo.
O atual cenário educativo está a nos mostrar que essas forças, outrora, contrárias ao ensino de
filosofia estão mais vivas do que nunca. Movimentos de desmonte da LDB 9394/96, que deu
possibilidades para disciplinas como a Filosofia exercer seu ofício com maior liberdade, espaço e
eficiência está ameaçada de ficar fora do currículo da educação básica, pois de acordo com o
contexto político presente, não corresponde ao cenário econômico/ financeiro do momento. Além
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disso, de acordo com algumas vozes, ainda está a serviço de uma ideologia de esquerda.
Denominam de badernas e algazarras nos espaços públicos de universidades e escolas, o que
deveriam está chamando de direito à liberdade de expressão, luta por direitos sociais, posturas
críticas e reflexivas por mudanças significativas dentro do espaço sócio-político-cultural,
fertilizadas principalmente pelos pressupostos filosóficos.
O ensino de filosofia precisa ser reconhecido pela sua importância e função. Deve haver, para
isso, uma nova concepção de Currículo, de sociedade fundada em princípios democráticos como
a: liberdade, fraternidade e igualdade.
A Filosofia está com um grande desafio pela frente: provar mais uma vez que seus
conhecimentos, seu ensino, é de fundamental importância para a garantia de direitos, para a
construção de uma sociedade regida pelos fundamentos democráticos, e acima de tudo, para a
construção do conhecimento, fincado no rigor, na crítica e na reflexão.
Não tivemos como intenção aqui, dar conta das discussões que giram em torno da temática,
mas fertilizar outras discussões que possam orbitar em seu entorno. Temos consciência de que é
uma ampla e rica discussão que carece de mais análises e reflexões futuras.

REFERÊNCIAS

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Moderna, 1990.

ALVES, Dalton José. A filosofia no ensino médio: ambigüidades e contradições na LDB.


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ASPIS, Renata Pereira Lima. O professor de Filosofia: o ensino de filosofia no ensino médio
como experiência filosófica. Cad. Cedes, Campinas, v. 24, n. 64, p. 305-320, set./dez.2004.
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> Acesso em 20 jan. 2020.

CHAUÌ, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000.

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EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Básica. Filosofia: Ensino Médio. Brasília, v. 14, 2010, p.
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CERLLETI, Alejandro. O Ensino de filosofia como problema filosófico. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2009 (Coleção Ensino de Filosofia).

LIBÂNIO, José Carlos. Didática: Velhos e novos temas. Edição do autor, maio, 2002, 138 p.

GUIMARÃES, Marcelo Senna. O ensino de filosofia no Brasil: três gerações. In:__ MINISTÈRIO
DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Básica. Filosofia: Ensino Médio. Brasília, v. 14, 2010,
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NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. Ensinar Filosofia: uma conversa sobre aprender a aprender.
Campinas, SP: Papirus, 2007 - (Papirus Debates).

PERECINI, Tiago Brentam. A formação do professor em filosofia no Brasil: restrição de


pensamento e testemunho. Filosofia e Educação [RFE], Campinas, SP, v. 9, n. 2, p. 23-47, jun-
set, 2017 – ISSN 1984-9605.

RODRIGO, Lidia Maria. Filosofia em sala de aula: teoria e prática para o ensino médio.
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ASPIS, Renata Pereira Lima. O professor de Filosofia: o ensino de filosofia no ensino médio
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Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> Acesso em 25 set 2018.

FÁVERO, A. A. et al. O ensino da Filosofia no Brasil: Um mapa das condições atuais. Cad.
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GONTIJO, Pedro; VALADÃO, Erasmo Baltazar. Ensino de Filosofia no ensino médio nas escolas
públicas no Distrito Federal: historia, praticas e sentidos em construção. Cad. Cedes, Campinas,
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PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: saberes da docência e identidade do


professor. Disponível em <http:// revista fct.Unesp.br/índex.
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TARDIF, Maurice. Saberesprofissionais dos professores e conhecimentos universitários:


elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conseqüências
em relação a formação para o magistério. Disponivel em <anped.org.br/rbe/rbedigital/.../RBDE
13 05 MAURICE TARDIF.pdf> Acesso em 20 out 2018. p. 5-24.
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A ESCOLARIZAÇÃO DE SURDOS NO CONTEXTO DO BILINGUISMO

THE SCHOOLING OF THE DEAF PEOPLE IN THE CONTEXT OF


BILINGUALISM

Maria Aparecida de Almeida Araújo


Graduada em Direito - FACAM
Thelma Helena Costa Chahini
Doutora em Educação - UNESP/Marília
Professora do Departamento de Educação e do PGCULT
Naysa Christine Serra Silva
Professora e Assistente Social
Eixo 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Em decorrência da pouca familiaridade com a Língua Portuguesa, muitos discentes


surdos não entendem o que leem e acabam ficando com dificuldades acentuadas na escrita. Nesse
sentido, acabam tendo dificuldades em produzir textos na Língua Portuguesa. No contexto, o
presente artigo objetiva dar visibilidade à problemática do processo ensino-aprendizagem de
discentes surdos no contexto da educação bilingue, pois as dificuldades enfrentadas por discentes
surdos brasileiros em compreender os textos literários e em escrever com coerência e coesão os
fazem estrangeiros em seu país. Nesse sentido foi desenvolvida uma pesquisa do tipo
bibliográfica.

Palavras-chave: Surdez. Libras. Português. Bilinguismo.

Abstract: Due to the lack of familiarity with the Portuguese language, many deaf students do not
understand what they read and end up with marked difficulties in writing. In this sense, they end
up having difficulties producing texts in the Portuguese language. In this context, the present
article aims to give visibility to the problem of the teaching-learning process of deaf students in
the context of bilingual education, since the difficulties faced by deaf Brazilian students in
understanding literary texts and in writing with coherence and cohesion are made by foreigners in
their parents.

Keywords: Deafness. Pounds. Portuguese. Bilingualism.

1 INTRODUÇÃO

Importante registrar que as pessoas surdas ainda vivenciam muitas situações discriminatórias
em relação ao seu potencial humano. Conforme os estudos de Sá (2002), na historicidade da educação de
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pessoas com deficiência auditiva e com surdez, tanto no Brasil quanto no mundo, há muita história de
opressão para contar.
Faz-se necessário enfatizar que os surdos percebem o mundo de forma diferenciada dos
ouvintes, isto é, através de experiências visuais fazem uso de uma linguagem especifica para isso, a
língua de sinais. Sendo assim, a língua brasileira de sinais (LIBRAS) é antes de tudo imagens do
pensamento desses e faz parte da experiência vivida da comunidade a qual eles são pertencentes, logo, a
negativa de acesso aos conhecimentos acadêmicos em sua língua materna os tornam segregados no
decorrer do processo ensino-aprendizagem.

No contexto, conforme os estudos de Pereira (2014) em decorrência das dificuldades de acesso


à língua falada e a pouca familiaridade com a Língua Portuguesa, muitos discentes surdos não entendem o
que leem e acabam ficando com dificuldades acentuadas na escrita. Nesse sentido, acabam tendo
dificuldades em produzir textos na Língua Portuguesa.
Ressalta-se que a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, nº 13.146 de 6 de
julho de 1015 (BRASIL, 2015) estabelece oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e
na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, nas escolas, classes bilíngues e escolas
inclusivas.
Sendo assim, de acordo com Gama (2008), ser bilíngue significa pertencimento social e
possibilita, interação, acesso a maiores conhecimentos e à cultura, assim como aumenta a autoestima e a
mais-valia do surdo. O autor esclarece ainda que, “o uso da língua é feito, pelos bilíngues, em contextos
sociais diferentes, em família, na escola, na comunidade e sempre de forma diferente oralmente ou por
escrito”.
No contexto, objetiva-se com este artigo dar visibilidade à problemática do processo ensino-
aprendizagem de discentes surdos no contexto da educação bilingue, pois as dificuldades enfrentadas por
discentes surdos brasileiros em compreender os textos literários e em escrever com coerência e coesão os
fazem estrangeiros em seu país.

2 O SURDO INSERIDO NA EDUCAÇÃO BILÍNGUE LIBRAS/PORTUGUÊS

Há vários estudiosos que deixam claro a importância da linguagem com sendo um instrumento
mediador da aprendizagem. Logo, para os ouvintes a fala é uma linguagem natural, mas não é para os
surdos. Assim, a L1 é a Língua de Sinais e a L2 é a Língua Portuguesa. Portanto, a língua oral ocorre pela
modalidade oral-auditiva e a Língua de Sinais pela modalidade espaço-visual.

No ensino de línguas para estrangeiros a pessoa precisa conhecer primeiramente sua língua,
no caso específico do surdo, a primeira língua é a língua de sinais e a segunda língua é a portuguesa, daí
ser chamada de bilinguismo. Conforme Andrade (2012, p. 37), “somente em 2005 foi estabelecida a
educação bilíngue para os surdos no Brasil, através do decreto federal 5626/2005 que regulamenta a lei
10.436/2002, lei esta que oficializou a Língua Brasileira de Sinais”.
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Fernandes (apud ALMEIDA, 2013) diz que existem dois tipos de línguas: a oral-auditiva e a
espaço visual, na qual a primeira ocorre por meio de recepção auditiva, e sua forma de reprodução é a
oralização, tal como se pode observar, por exemplo, no caso da língua portuguesa. A segunda língua é feita
por sinais manuais e é percebida por meio da recepção visual, tal como podemos notar nas línguas de sinais,
como a LIBRAS, usada pelas pessoas surdas, no Brasil.
Assim, Almeida (2013, p. 42) esclarece que “para o surdo, o processo de desenvolvimento
envolvendo fala e pensamento é o mesmo do ouvinte, contudo a fala que atua em tal processo se constitui
de elementos gestuais”.
Não é fácil identificar e avaliar como duas línguas existem numa mesma mente, e a qual delas,
o pensamento do indivíduo recorre. Mas a maior dúvida, no caso de multicompetência, é sobre o
desempenho de cada uma dessas línguas quando do aprendizado de uma nova língua.
De acordo com Lodi (2005), na educação bilíngue deve-se considerar, primeiramente, o
desenvolvimento da língua de sinais (L1) nas relações com usuários desta (preferencialmente surdos) e a
partir daí o ensino-aprendizagem da língua portuguesa escrita, como segunda língua (L2).
No caso da educação bilíngue, Fernandez (apud ALMEIDA, 2003) afirma que o surdo, dotado
de um discurso proporcionado pela Libras, pode apreender, compreender e escrever a língua portuguesa,
ou seja, o português como segunda língua, assim, toda a atividade mental do surdo, isto é, o “fundo
perceptivo”, é produzido com a junção de um discurso aprendido do exterior. Como diz Bakhtin (2010), a
palavra vai à palavra.

2.1 O domínio da nomenclatura gramatical L2

Em relação à aquisição da linguagem, Salles et al. (2004, p. 30) relatam que em geral, o ser
humano em convivência comunitária linguística, fala pelo menos uma língua, a língua materna ou nativa,
que é aprendida até os cinco anos de idade e citam que existem “estágios com características idênticas
entre as comunidades linguísticas, independentemente da ampla diversidade da experiência linguística e
das condições sociais em que se desenvolveu o processo de aquisição”.
Os referido autores citam três propriedades que se manifestam na aquisição da língua materna:
a universalidade, ou seja, falam em condições normais, uma língua nativa; a uniformidade, são as
semelhanças no processo de aprendizagem apesar até mesmo das diferenças do ambiente; e finalmente, a
rapidez definida em comparação a outras habilidades como é o caso do raciocínio com números, por
exemplo.
No caso do surdo, este tem de aprender duas línguas: a língua materna e a segunda língua, isto
é, a língua da sociedade que ele pertence e que é, em sua maioria, composta por pessoas ouvintes.

Ainda conforme os estudos de Salles et al. (2004), a criança surda tem que aprender a
fonologia da língua oral, fato que não é viável por causa da perda auditiva, embora por meio da forma
escrita esse aprendizado possa acontecer. É importante, que a criança aprenda as duas línguas ao mesmo
tempo e o mais cedo possível.
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Sacks (2010) esclarece que quando a surdez ocorre antes ou depois do nascimento ou se
ocorrer antes da aquisição normal da linguagem, a criança será mais afetada em todo o processo de
aprendizagem e de interação social. Assim concluímos que a surdez tem grande influência no sentido de o
aluno não adquirir plenamente o conhecimento, no âmbito de uma sociedade majoritariamente ouvinte.
Segundo Goldfeld (2002), a surdez atinge a linguagem em todas as possibilidades de
utilizações. Contudo, ele destaca que os indivíduos surdos têm o canal espaço-visual, para se comunicarem
e nesse caso se refere à qualidade comunicativa do pensamento, através das mãos (e todo o esquema
corporal) que fazem com perfeição o papel do sistema fonador, só que por meio da linguagem de sinais.
Portanto, uma língua, ao contrário de qualquer recurso, vai depender do uso social e esse uso é que
determina o grau de sua revitalização.
No intento de ver como o ensino da língua portuguesa como segunda língua da comunidade
surda, surge uma preocupação com o “domínio” da gramática L2 para usuários da L1, uma vez que vários
estudiosos da linguagem enfatizam que a comunicação é intrínseca à existência humana (BITTES JÚNIOR;
MATHEUS, 2000).
Para Travelbee (apud CASTRO; SILVA, 2001) comunicação significa enviar e receber
mensagens que podem ser palavras faladas, gestos ou meios não verbais. Logo, as relações humanas só
acontecem pela comunicação.
Segundo Peixoto (2006, p. 206) para que haja a condição bilingue do aluno surdo deve-se
“aceitar que ele transita por essas duas línguas e, mais do que isso, que ele se constitui e se forma a partir
delas”.
Fernandes (2011), diz que para a aquisição da língua portuguesa escrita pelos surdos, quase
nada tem sido feito para a inversão da ordem onde ainda predomina a concepção tradicional da escrita
como representação da oralidade, ora, isso concorre para o atraso do aluno surdo que começa na
alfabetização. Impossibilitados de relacionar oralidade com escrita, o aluno surdo se apropria do que ele
vê, ou seja, experiências visuais centradas na leitura.
Silva e Cheffer (2006, p. 77) apontam para o fato de que as conversas em torno da
aprendizagem da leitura e escrita pelo aluno surdo tem sido motivo de preocupação dos professores. Essas
preocupações têm relação aos ritmos da escrita, com ênfase em desenvolver habilidades de codificação e
decodificação, “deixando de lado a dificuldade de o aluno surdo atribuir sentido a essas atividades, na
escola ou fora dela”.
Desse modo, Franco (apud ALMEIDA, 2005) diz que as práticas pedagógicas devem se
emancipar e eliminar “lógicas colonizadoras” a fim de deixar fluir o diálogo sobre as diferenças.

3 CONCLUSÃO

Retornando à temática abordada, recai aos tradutores e interpretes auxiliar na parte linguística
dos surdos para que haja um bom convívio entre a sociedade e a comunidade surda diminuindo os conflitos
comunicacionais através da acessibilidade comunicacional, criando estratégia que favoreça a compreensão
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dos sinais na construção e concretização do ensino e aprendizagem com resultados substancialmente


valorativo no processo ensino-aprendizagem.
Ressalta-se que é importante considerar que como a Língua Portuguesa (oral-auditiva) e a
Língua de Sinais Brasileira (espaço-visual) são de modalidades e estruturas gramaticais distintas, isso
dificulta a tradução por uma pessoa surda, demonstrando o abalamento de um dos pilares da construção
democrática do ensino-aprendizagem, negligenciando o ensinamento integral e de qualidade do ensino do
português para os usuários de língua materna sinalizada.
Importante enfatizar que de acordo com a Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva, é assegurado aos discentes com deficiência auditiva e/ou com surdez,
o acesso, a participação e aprendizagem, com garantia de atendimento educacional especializado em todas
as instituições de ensino; continuidade da escolarização nos níveis mais elevados do ensino; acessibilidade
na comunicação e informação; professores capacitados para o processo ensino-aprendizagem de discentes
com deficiência e/ou com necessidades educacionais específicas; articulação intersetorial na
implementação das políticas públicas.

No contexto da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, está assegurado à pessoa
com deficiência, em condições de igualdade com as demais pessoas sem deficiência, os seus direitos,
liberdades, inclusão social e cidadania. Portanto, as práticas pedagógicas para o ensino da língua portuguesa
para surdos devem ser realizadas por meio de oficinas de Língua Portuguesa, como segunda língua, e as
atividades de leitura e escrita de sinais com a representação L1 e L2 devem ser feitas ao mesmo tempo.
Necessário, também, a eliminação de preconceitos e estigmas em relação ao potencial humano das pessoas
surdas e a construção de atitudes sociais favoráveis à inclusão delas nas instituições de ensino e no mundo
do trabalho competitivo.

REFERÊNCIAS

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ANDRADE, M. M. F. de. Práticas de ensino da língua portuguesa para alunos surdos. 2012. 86 f.
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do romance. 6. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2010.

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A GEOGRAFIA ESCOLAR E O CONCEITO DE PAISAGEM: UM OLHAR SOBRE AS


METODOLOGIAS DE ENSINO E APRENDIZAGEM

SCHOOL GEOGRAPHY AND THE LANDSCAPE CONCEPT:


A look at teaching and learning methodologies

Thiago da Conceição Dias


Graduando do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas (UFMA)
thiago.dias29@yahoo.com.br

Vanessa Reis Barboza


Graduanda do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas (UFMA)
vanessareis.slg3@gmail.com

Orientadora: Profa. Dra. Ceália Cristine dos Santos


Professora do Departamento de Ciências Humanas de Bacabal (UFMA)
cealya@hotmail.com

Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação


RESUMO: O presente estudo busca provocar discussões no sentido de analisar, refletir e
problematizar as diversas maneiras de abordar o conceito de paisagem no ensino de Geografia,
considerando os conhecimentos prévios dos alunos e o uso de metodologias que promovam uma
ressignificação do ensino. Ao longo do trabalho, investigamos os processos de construção e
organização da abordagem do conceito de paisagem em sala de aula com alunos do 6º ano de
escolas públicas do ensino fundamental da cidade de Bacabal – MA. Em conversas informais e
questionários, percebe-se que muitos alunos se interessam pela geografia, identificam o conceito
de paisagem. Essas reflexões são necessárias para evidenciar que o trabalho docente não é definido
apenas pela dominação do conteúdo, mas pela capacidade e habilidade da criação de métodos de
ensino. Nessa perspectiva, surge a necessidade da reflexão sobre como melhor trabalhar o conceito
nas aulas de Geografia para proporcionar maior criticidade. Dessa forma, incentivamos o
aprimoramento e inovação de instrumentos e estratégias de ensino que acompanhe as
transformações na paisagem. Concluímos entendendo que, os resultados sinalizam que as
instituições pesquisadas revelam a necessidade de ajustes no ensino da geografia e várias ações
podem ser empreendidas.

Palavras-chave: Paisagem. Espaço. Geografia. Ensino Fundamental.

ABSTRACT: The present study seeks to provoke discussions in order to analyze, reflect and
problematize the various ways to approach the concept of landscape in the teaching of geography,
considering the students' previous knowledge and the use of methodologies that promote a
resignification of teaching. Throughout the work, we investigated the processes of construction
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and organization of the concept approach in the classroom with students of the 6th grade of public
elementary schools in the city of Bacabal - MA. In informal conversations and questionnaires, it
is clear that many students are interested in geography, identify the concept of landscape. These
reflections are necessary to show that the teaching work is not defined only by the domination of
the content, but by the capacity and skill of the creation of teaching methods. From this
perspective, there is a need for reflection on how to better work the concept in geography classes
to provide greater criticality. Thus, we encourage the improvement and innovation of teaching
tools and strategies that accompany changes in the landscape. We conclude that the results indicate
that the researched institutions reveal the need for adjustments in the teaching of geography and
several actions can be undertaken.

Keywords: Landscape. Space. Geography. Elementary School.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho insere-se no campo de pesquisas sobre práticas pedagógicas no


ensino de Geografia e sua importância na educação básica para formação de cidadãos com
pensamento crítico a cerca da realidade. Apresenta uma proposta de estudo do conceito de
paisagem considerando o espaço de vivência do aluno. A educação deve possibilitar o
desenvolvimento deste tipo de pensamento a partir da compreensão do conceito de Paisagem e
suas transformações ambientais, sociais e multiculturais que historicamente se cria na sociedade.

O respectivo estudo faz parte do projeto de ensino “A construção do conhecimento


geográfico no ensino fundamental através dos conceitos de paisagem, território, lugar e região
em escolas públicas municipais de Bacabal - MA”. Desenvolvemos para tanto uma pesquisa
bibliográfica, observação direta, conversas informais, pois segundo Gil (2008), esse tipo de
pesquisa é apropriado para estes tipos de estudos. É uma pesquisa qualitativa porque envolve o
estudo, a análise, o registro e a interpretação dos fatos do mundo físico, sem a interferência do
pesquisador (BARROS; LEHFELD, 2007).

A Geografia escolar assume um papel renovado na construção e aplicação do seu saber


através da construção do conhecimento geográfico no ensino fundamental e seus principais
conceitos (paisagem, território, lugar e região). Dessa forma, a identificação das dificuldades do
ensino e da aprendizagem gera possibilidades de transformar e melhorar este processo. As relações
que surgem no espaço a partir de sua produção e organização são determinantes na construção do
conhecimento, e na escola devemos fomentar esta análise, pois é pertinente na formação de
saberes. Nesse sentido, o estudo da geografia na escola permite que o conteúdo ensinado não seja
meramente teórico e sim, ligado a vida das pessoas. Segundo Santos (2010),
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O ensino-aprendizagem de geografia na escola deve, então, contemplar seus conceitos-


chave e as representações que os alunos trazem deles e constroem cotidianamente no
mundo contemporâneo utilizando os mesmos meios que eles, de modo a proporcionar-
lhes a possibilidade de refletir para, assim, poderem intervir na realidade que os cerca.
(SANTOS, 2010, p.45).

A conceituação de paisagem é muito antiga na Geografia e obteve variações conforme


as transformações sociais. Dessa forma o presente trabalho analisa o conceito de Paisagem na
geografia escolar, considerando a importância de construir e manter esse olhar mais atento sobre
as transformações da paisagem e suas implicações na sociedade. Os conceitos da geografia assim
como o de paisagem vão variar de acordo com as perspectivas de análise, da abordagem e das
orientações teórico-metodológicas A paisagem nesse momento torna-se o objeto de estudo da
ciência. Alguns autores defendem a preservação da paisagem natural em meio a urbana, buscando
sua importância na construção da identidade social de determinado local. Nesse sentido, o estudo
do meio permite que o conteúdo ensinado não seja meramente teórico e sim ligado ao contexto
social dos estudantes. Dessa forma a geografia ensinada então passa a ter sentido e interesse para
os alunos.

Refletir sobre a metodologia do ensino de geografia é uma tarefa por demais árdua.
Inúmeros são os anseios do mundo moderno, e a educação deve saciar grande parte dessas
necessidades. Não se quer somente cidadãos capazes de ler e escrever, mas também, de pessoas
capazes de interpretar a realidade na sua totalidade, e que também sejam agentes da transformação
do mundo no exercício da cidadania. Na função de “[...]

mediadores entre os alunos e os conhecimentos científicos, os docentes fazem adaptações na


organização e na estrutura dos conhecimentos e até mesmo nos conteúdos de ensino”
(THERRIEN; MAMEDE; LOIOLA, 2004, p. 45).

Partindo do pressuposto da importância do conceito de Paisagem, nas escolas


públicas municipais de Bacabal – MA, o presente trabalho tem como objetivo refletir sobre as
abordagens acerca desde conceito na sala de aula considerando as necessidades de resgatar os
conhecimentos prévios dos alunos e de dinamizar as metodologias de ensino, para que promovam
a ressignificação do ensino e aprendizagem. Neste sentido, a função de ensinar a Geografia é
concebida com o objetivo de proporcionar aos alunos do ensino fundamental um olhar crítico
acerca do mundo e da realidade circundante.

METODOLOGIA
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A pesquisa foi realizada em escolas públicas municipais, possui caráter qualitativo


com as seguintes etapas: revisão bibliográfica, identificação de metodologias de ensino, coleta de
informações por meio de questionários, entrevistas e conversas informais com professores e
estudantes, tabulação e analise dos dados. A revisão de literatura foi baseada nas contribuições de
alguns autores para comprovação das informações levantadas, recurso este muito utilizado nas
pesquisas. Para obter suporte teórico recorremos a alguns estudiosos como Santos (2006), Corrêa
(2005), Cavalcanti (2005), Callai (2003), Risso (2008), Sauer (1998), dentre outros. O ensino da
Geografia assume um importante papel na construção do conhecimento através de seus conceitos
fundamentais de espaço, paisagem, território, lugar e região. As visitas foram previamente
agendadas, explicandos os objetivos da referida pesquisa.

Iniciamos a pesquisa realizando as observações necessárias dentro das instituições.


Quanto às entrevistas e conversas informais, estas aconteceram em horário agendado previamente,
dentro das instituições pesquisadas, levando-se em consideração os procedimentos éticos
envolvendo seres humanos. As entrevistas “são desenvolvidas de forma mais espontânea, sem que
estejam sujeitas a um modelo pré-estabelecido de interrogação”. (GIL, 2008, p. 119). A coleta de
dados iniciou-se primeiramente com a solicitação para pesquisa na instituição. As visitas foram
previamente agendadas, explicados os objetivos da referido estudo, para que tomassem ciência do
que tratava a pesquisa e os procedimentos que seriam realizados.

REFLETINDO SOBRE O CONCEITO DE PAISAGEM

As reflexões conceituais sobre a paisagem são antigas na Geografia. De acordo com


vários estudos a origem do termo paisagem é utilizada há mais de mil anos por meio da palavra
alemã landschaft (paisagem) e desde então vem tendo uma evolução linguística muito significativa
para os estudos científicos (TROLL, 1997). Nessa mesma perspectiva, acredita-se que o conceito
de paisagem aprimorou-se ao longo do tempo, variando de acordo com as perspectivas da
abordagem, da analise e das orientações teórico-metodológicas. Risso (2008) faz algumas
considerações acerca do conceito de paisagem no que diz respeito ao seu desenvolvendo ao longo
dos estudos geográficos quando diz que a noção de paisagem na Geografia nasceu sobre a
observação de áreas visualmente homogêneas. Para Venturi (2004), foi no século XIX que ocorreu
a transformação do conceito de paisagem. Os naturalistas alemães deram um significado
científico, transformando-se em conceito geográfico e derivando-se em paisagem natural e
paisagem cultural. A partir deste período até os anos de 1940, o conceito de paisagem passou a
englobar o conjunto de fatores naturais e humanos.

Dessa forma, três estudiosos alemães foram fundamentais para o conceito de paisagem
em sua origem no século XIX: Humboldt, Ritter e Ratzel. Segundo Alves (1997,) Humboldt
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considerava que a observação da paisagem deveria ser contemplada com sentimento associada a
fatores naturais e humanos. E Schier (2003) diz que, na obra de Carl Ritter, “Geografia
comparada”, a paisagem não se constituía no principal objeto de estudo porque ele considerava
que os “fenômenos nelas existentes, criados pela sistematização, ocorreriam nas diversas regiões,
justificando assim, o título de sua obra”.2 Ritter dedica-se a descrições e análises regionais. Já o
conceito de paisagem apresentado por Friedrich Ratzel inclui a cultura na paisagem. De acordo
com Claval (2001), para Ratzel “as relações que os homens tecem com seu ambiente e os
problemas que nascem de sua mobilidade dependem das técnicas que dominam”.3.

O estudo da paisagem centrado em fatos culturais dominou a geografia alemã no


século XX, porém, para Sauer (1998), a Paisagem deve se pensada “como um somatório de
características gerais”.4 Para ele, a paisagem natural é aquela que reflete as formas e objetos da
Natureza, que existe com ou sem o Homem (Sauer, 1998). Partindo desse pressuposto, Milton
Santos trabalha com a perspectiva de uma paisagem natural e outra artificial, sendo as paisagens
na realidade um conjunto de formas artificiais e naturais. A paisagem é sempre heterogênea
(SANTOS, 2008).

Santos (2008) define paisagem como “tudo o que nós vemos, o que nossa visão
alcança é a paisagem. Esta pode ser definida como domínio do visível, aquilo que a vista abarca.”
Porém, esse tipo de análise é insuficiente para se compreender a realidade. Corrêa (1986, p.28)
afirma que na Geografia vidaliana: “a região geográfica abrange uma paisagem e sua extensão
territorial, onde se entrelaçam de modo harmonioso componente humano e natureza”. O conceito
de região e paisagem em La Blache se confunde, pois

Região e paisagem são conceitos equivalentes ou associados, podendo-se igualar, na


geografia possibilista, geografia regional ao estudo da paisagem. E esta equivalência tem
apoio lingüístico: em francês paysage (paisagem) vem de pays (pequena região
homogênea); em alemão a palavra landschaft tem dois sentidos: paisagem e extensão do
território que se caracteriza por apresentar aspecto mais ou menos homogêneo; em inglês
landscape designa paisagem, e Sauer usou o termo como sinônimo de região. (CORRÊA,
1986, p. 28)

Segundo Santos (2008) a paisagem é a materialização carregada de significados.


Dessa forma para Corrêa (2005, p. 14) “o significado único que se tenta impor por meio da
paisagem material é inevitavelmente alterado, tornado móvel e aberto a leituras alternativas por

2
SAUER, C.O. A morfologia da Paisagem. In: CORRÊA, R.L; ROSENDAHL, Z. (Org.). Paisagem, tempo e cultura.
Rio de Janeiro: EdUERJ, p.82, 1998.
3
CLAVAL, P. A Geografia Cultural. 2.ed. Florianópolis: Editora da UFSC, p.21, 2001.
4
SAUER, p.23, 1998.
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vezes contraditórias”.5 Dessa forma pode-se ser considerados exemplos de paisagem os


monumentos, os memoriais, os templos religiosos, os edifícios históricos de uma forma geral que
não são somente objetos estéticos. Vale lembrar que as transformações na paisagem são frutos das
mudanças nas estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais. Ainda de acordo com Santos
(2008),

A paisagem não se cria de uma só vez, mas por acréscimos, substituições; a lógica pela
qual se fez um objeto no passado era a lógica da produção daquele momento. Uma
paisagem é uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades diferentes,
é uma herança de muitos diferentes momentos. Daí vem a anarquia das cidades
capitalistas. Se juntos se mantêm elementos de idades diferentes, eles responder
diferentemente as demandas sociais. A cidade é essa heterogeneidade de formas, mas
subordinada a um movimento global. O que se chama desordem é apenas a ordem do
possível, já que nada é desordenado. Somente uma parte dos objetos geográficos já não
atende aos fins de quando foi construída. Assim, a paisagem é uma herança de muitos
momentos já passados [...]. (SANTOS, 2008, p. 73)

Assim Paisagem é um conceito chave importantíssimo para compreensão da realidade


e para fornecer identidade à geografia. Refletir e promover um debate teórico conceitual da
paisagem se torna colaboração indispensável ao seu desenvolvimento, bem como significa
avançar no âmbito epistemológico da ciência geográfica. (VERONEZZI, 2015). No entanto,
Cavalcanti (2005) ressalta que a paisagem não é um conceito exclusivo da Geografia, sendo muito
utilizado por outras áreas do saber. Dessa forma, para a construção do conceito de paisagem no
ensino de Geografia, é importante considerar a paisagem no lugar onde vive o aluno. Lugares
esses cheios de simbolismo, lugares que de uma maneira ou de outra, influenciaram ou
influenciam, a efetivação do viver naquela cidade. Isto é, que a paisagem seja um elemento
conceitual que o ajude a compreender a realidade, o contexto do mundo que ele vive.

A ABORDAGEM DE PAISAGEM NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR


(BNCC)
A BNCC é parte da Política Nacional de Educação Básica conduzida pelo MEC tendo
como objetivo ser a referência para a construção e implementação de currículos para a educação
básica bem como para os Projetos Políticos Pedagógicos das escolas (BRASIL, 2017). Desta
forma é possível compreendê-la como um documento que surge para atender a uma demanda, a
saber, a fixação de conteúdos mínimos para a educação básica, o que já estava previsto na
Constituição Federal do Brasil no que se refere ao Ensino Fundamental.

5
, CORRÊA, R. L. Monumentos, política e espaço. In.: ROSENDAHL, Z.; CORRÊA, R.L. (org.). Geografia: temas
sobre cultura e espaço. Rio de Janeiro: Eduerj, p. 14, 2005.
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O tema Paisagem aplicado ao contexto da proposta de uma Base Nacional Comum


Curricular para o sistema de ensino brasileiro caracteriza, no mínimo, a tarefa de clarificar esse
conceito e sua relevância enquanto elemento orientador de práticas pedagógicas de acolhimento e
valorização da diferença individual, participativas e inclusivas para todos. A emergência do
conceito de Paisagem e seu uso crescente e continuado no ensino de geografia constitui um
fenômeno mundial, não apenas circunscrito à realidade brasileira.

O conceito de Paisagem é muito utilizado na Geografia e está presente como um


conceito fundamental dentro dos currículos oficiais que norteiam o ensino da geografia no estado
do Maranhão. A Paisagem tem um caráter específico para a Geografia. De acordo com Santos
(2006), “a paisagem é um conjunto de forma que num dado momento, exprimem as heranças que
representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza”6.

De acordo com os PNCs, a leitura da paisagem pode ocorrer de forma direta (pela
observação da paisagem de um lugar que os alunos visitaram) ou de forma indireta (por meio de
fotografias, da literatura, de vídeos, de relatos). O conceito de Paisagem no recorte analisado
aparece no conjunto das Ciências Humanas e assim como as outras áreas de conhecimento, possui
competências específicas do componente. Neste sentido, segundo Cavalcanti (2013 p.148) “levar
em conta o mundo vivido dos alunos implica apreender seus conhecimentos prévios e sua
experiência em relação ao assunto estudado”, é fundamental para a compreensão do conceito de
paisagem.

Os PCNs também abordam essa questão da historicidade na leitura de paisagens,


quando escrevem que:

a geografia pode trabalhar com recortes temporais e espaciais distintos dos da História,
embora não possa construir interpretações de uma paisagem sem buscar sua
historicidade. Uma abordagem que pretende ler a paisagem local e global, estabelecer
comparações, interpretar as múltiplas relações entre a sociedade e a natureza de um
determinado lugar pressupõe uma inter-relação entre essas áreas (BRASIL, 1998, p. 53).

Seria importante indicar conteúdos cabíveis (ressignificados), pois é impossível que


os alunos consigam realizar tal habilidade sem essa abordagem de múltiplas perspectivas. Para
Schaffer (2003, p. 94):

na leitura de paisagem o trabalho de campo é uma prática importante para a aprendizagem


em geografia. Ele permite, efetivamente, que se possa construir o conhecimento a partir
da realidade observada, analisada e contextualizada (no tempo e no espaço) [...]. É,

6
SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, p. 103-104, 2006.
Página 73 de 2230

sobretudo, uma vivência capaz de oportunizar o confronto concreto e simultâneo da


teoria e da prática. (SCHAFFER, 2003, p. 94)

Os conteúdos sobre o conceito de Paisagem não estão claramente mencionados no


texto da BNCC, uma vez que o documento em tela apresenta expectativas de aprendizagens e não
os conteúdos em si. Porém, Callai (2003) afirma que deve ter um critério de seleção, ou seja,
eleger o que deve ser ensinado, pois no mundo atual, cada vez de modo mais intenso, as
informações e os meios de comunicação nos permitem ter acesso aos lugares mais distantes, isto
inclui diversos tipos de paisagens. Entretanto, o que nos move a discutir o conceito de Paisagem
é a consideração de sua importância no que concorre para a função da escola, a saber, a
transmissão do conhecimento. Visto que o conceito de Paisagem não possui destaque na
efetivação no ensino da Geografia Escolar. Às vezes, o conceito é reproduzido pelos professores
de uma forma tão rígida, que parece em certas circunstâncias, não estar ligado a algo real. Parece
uma coisa inventada para ser parte integrante do currículo escolar. Não sugere a análise da
realidade dos educandos, portanto, não tem trazido os resultados esperados. É preciso adotar
metodologias adequadas, utilizando encaminhamentos que propiciem uma aprendizagem
significativa do aluno.

O ENSINO DE GEOGRAFIA E METODOLOGIAS NA ABORDAGEM DO CONCEITO


DE PAISAGEM
O ensino de geografia capacita os educandos a fazer uma leitura do mundo em sua
complexidade. Segundo Cavalcanti (2005), com a leitura e a interpretação dos fenômenos
geográficos e suas configurações, é possível sustentar a formação de sujeitos conscientes e
participantes das práticas sociais em seus espaços de vida. Os Parâmetros Curriculares Nacionais
ressaltam que os eixos que estruturam o ensino de Geografia na educação básica, no diz respeito
ao ensino fundamental, são os conceitos de espaço geográfico, região, território, lugar, paisagem
em termos mais gerais. No que diz ao conceito de Paisagem, possui um caráter específico.

De acordo com Tricart (1982), “paisagem é uma porção perceptível a um observador


onde se inscreve uma combinação de fatores visíveis e invisíveis e interações as quais, num dado
momento, não percebemos senão o resultado global”7. Seguindo essa linha, para Bertrand (2007)
qualquer paisagem é ao mesmo tempo social e natural, subjetiva e objetiva, espacial e temporal,
produção material e cultural, real e simbólica.

Sendo assim, o ensino do conceito de paisagem não é uma tarefa fácil visto que
representa diferentes momentos de uma sociedade e se alternam continuamente para poder

7
TRICART, J. Paisagem e ecologia. Inter-Facies: escritos e documentos. São José do Rio Preto: Ed. Da UNESP,
p.18, 1982.
Página 74 de 2230

acompanhar suas necessidades. Se todos os professores do Brasil tivessem uma boa formação
inicial e continuada, o que não ocorre na educação (GATTI, 2016), a identificação e seleção dos
conteúdos para alcançar as competências e habilidades propostas pela Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), ocorreriam sem maiores dificuldades e até com certa coerência, posto que
não são necessariamente mal elaboradas. O professor deve está ciente de que o foco da
aprendizagem é o aluno, portanto, deve estar envolvido no processo de ensinar Geografia e seus
conceitos fundamentais. Segundo Moura (2009),

[...] metodologia de ensinagem inclui muito mais do que a simples aplicação de uma
técnica em determinado momento da prática pedagógica. Envolve toda a teia de relações
entre professor e alunos-alunos que possibilita a realização do processo ensino-
aprendizagem. Pressupõe a utilização de métodos, técnica de ensino, atividades e os
diferentes recursos pedagógicos. (MOURA, 2009 p.24).

Dessa maneira, ao analisarmos os livros didáticos da coleção “Geografia nos dias de


Hoje”, e os conceitos geográficos apresentados, utilizados nas escolas pesquisadas, sugerimos que
o conceito de Paisagem abordado no capítulo cinco da unidade dois, poderia ser trabalhado a partir
da diferença dos conceitos de paisagem rural e urbana utilizando textos complementares e
estimulando os educandos a pesquisar imagens que consideram a paisagem local de acordo com
seus conhecimentos prévios, e fazer uma comparação das mudanças ocorridas na paisagem por
meio do uso de fotografias de lagos, plantação, fábrica, aglomeração de pessoas, etc. Pois como
afirma Santos (2006), paisagem “é transtemporal, juntando objetos passados e presentes, uma
construção transversal”. Segundo Somma (2003),

O ensino geográfico tradicional mantem seu valor cultural informativo, mas nós
professores, podemos encaminhar estratégias metodológicas tendentes a que se afirme
seu valor significativo nos processos de aprendizagem. Nessa busca, os métodos e as
técnicas aplicadas em aulas de geografia são permanentemente revisados a fim de
convertê-los em elementos facilitadores da aprendizagem. (SOMMA, 2003 p.164).

O papel do professor é fundamental no processo de ensino-aprendizagem na escola,


dessa forma deve estar capacitado para essa tarefa. Então a boa formação dos professores torna-
se uma etapa essencial para o bom andamento desse processo. Ascenção e Valadão (2013)
ressaltam a importância da solidez de uma formação inicial e continuada. Sua formação deve aliar
os conhecimentos teóricos e a prática. Tratar de forma isolada os pressupostos teóricos e práticos
não contribui para o amadurecimento profissional. A formação do professor de Geografia está
inserida neste contexto. Para Cavalcanti (2005) a formação dos professores de Geografia

[...] deve ser uma formação consistente, contínua, que procure desenvolver uma relação
dialética ensino-pesquisa, teoria-prática. Trata-se de uma formação crítica e aberta à
Página 75 de 2230

possibilidade da discussão sobre o papel da Geografia na formação geral dos cidadãos,


sobre as diferentes concepções da ciência geográfica, sobre o papel pedagógico da
Geografia escolar. (CAVALCANTI, 2005, p.21)

Dessa forma um estudo da paisagem que supere o ensino vazio dos modelos
tradicionais e crie conceitos com significados a ser aplicados na vida deve partir da valorização
dos espaços de vivência dos alunos, passa a ter sentido e interesse para o educando. Ainda de
acordo com a formação de professores de Geografia, Guimarães (2015) pontua que:

A construção de um ensino de geografia qualificado, significativo e criativo é uma meta


que depende fundamentalmente de um processo de formação que seja capaz de
desenvolver o talento, o desenvolvimento e o domínio das diversas dimensões que
abarcam o ofício de professor. Tal tarefa demanda a formação continuada desse
profissional e enfoca principalmente professores que não desistam de sua capacidade de
aprendiz, que problematizem a sua experiência, o seu desenvolvimento
profissional/pessoal e a sua constituição identitária (GUIMARÃES, 2015, p.36).

Callai (2003) ressalta que a geografia como ciência social, necessariamente precisa
considerar o aluno e a sociedade em que vive. Para Santos e Moro (2007)

[...] ensinar Geografia hoje é auxiliar o aluno a compreender o mundo em que vivemos:
enfocar criticamente a questão ambiental e as relações sociedade/natureza, oportunizando
aos alunos a interpretação de textos, fotos, mapas e paisagens. Entende-se que é por esse
caminho que a geografia escolar vai sobrevivendo e, até mesmo, ganhando novos espaços
nos melhores sistemas educacionais. Para isso, o professor necessita criar, ousar,
aprender ensinando. (SANTOS; MORO, 2007 p.132).

Nesse mesmo sentido, o conceito de Paisagem dentro da Geografia escolar, o


procedimento de observação da paisagem deve ser estimulado pelo professor dentro da aula de
campo. Segundo Cavalcanti (2002), a paisagem problematizada dentro do contexto do aluno
através de uma observação direta do lugar de vivência dele ou de uma observação indireta de uma
paisagem representada pode fornecer elementos importantes para a construção de conhecimentos
referentes ao espaço nela expresso. Dessa forma, é fundamental que o professor de geografia de
Bacabal permita aos alunos a apropriação dos conceitos fundamentais da Geografia e
compreensão do processo de produção e transformação do espaço geográfico na cidade. Para isso
os conteúdos de Geografia devem ser trabalhados de forma crítica e dinâmica.

RESULTADOS E DISCUSSOES

Neste tópico, apresentam-se os resultados obtidos por meio dos questionários e de


observações e conversas informais com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental cujas questões
são comuns a todos, bem como as análises e discussões que se fizeram necessárias. Os dados
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analisados são de fundamental importância para compreender as questões que envolvem o ensino
da geografia na educação básica. Através dos nossos questionamentos e da participação ativa dos
alunos, inferimos que a intervenção contribuirá para a tomada de consciência da turma. Uma vez
que, ao questionarmos, por exemplo, sobre o ensino de geografia de um modo geral e do conceito
de paisagem, muitos de início afirmaram que conhecem o conceito, porém, desconhecem os
exemplos existentes. Fonseca (1999) assinala a importância de se observarem estes aspectos na
análise dos dados de uma pesquisa dizendo:

Mas para tirar conclusões das análises foi preciso situar os sujeitos em um contexto
histórico e social. É só ao completar esse movimento interpretativo, indo do particular ao
geral, [...] sem essa contextualização (um tipo de representatividade post ipso facto) o
qualitativo não acrescenta grande coisa à reflexão acadêmica. (FONSECA, 1999, p. 61).

Os dados demonstram que, no geral, os participantes são estudante cuja faixa etária
varia entre 10 a 16 anos. Os alunos (crianças, pré-adolescentes e adolescentes) são moradores da
zona urbana onde se situa a escola e de povoados localizados na zona rural do município. Estão
inseridos em espaços cujas relações sociais se estabelecem, principalmente, por meio da
experiência que ocorre basicamente na escola. Pode-se perceber que não há distorção entre idade
e série nas instituições, pois a maioria dos estudantes está no ano escolar que deveriam frequentar.
É importante que não haja distorções para que o processo de desenvolvimento e aprendizagem
dos estudantes seja de qualidade, o que implica conhecimento e respeito às suas características
etárias, sociais, psicológicas e cognitivas. Segundo Saveli (2008), a inclusão dessas crianças e
jovens na escolaridade obrigatória resgata um direito de cidadania, uma vez que permite a uma
parcela maior da população se beneficiar de um direito que antes era de poucos. (ver Figura 1).

45,8

30,2

10,4
4,2 5,2
2,1 1,0 1,0

10 anos 11 anos 12 anos 13 anos 14 anos 15 anos 16 anos Não


informaram
Figura 1.
Percentual de idades dos estudantes do 6º ano do ensino fundamental de escolas pública municipais de Bacabal – MA.
Página 77 de 2230

Na prática escolar são diversas as realidades e experiências com as quais os


professores de geografia se deparam. Ao serem questionados se consideram o ensino de Geografia
importante, a maior parte dos alunos discorreu sobre a importância do ensino, pois é relevante
para se mantiverem informados acerca da importância de alguns temas podendo relacioná-los com
o contexto atual. A maioria dos alunos afirma de forma positiva que há interesse na disciplina.
Ouvidos os estudantes, muitos reclamam do pouco tempo para realização das atividades e a
fragmentação do tempo. Além disso, geralmente, os professores de geografia utilizam o livro
didático como único recurso didático em sala de aula.
No que dizem respeito às razões pelas quais os estudantes gostam de geografia, as
respostas foram diversificadas. Destacaram a curiosidade para com as descobertas de elementos
da natureza, lugares, mapas etc. Foi esclarecido que conhecer a Geografia e seus conceitos
fundamentais não é somente conhecer os conceitos, é necessário vivenciar, identificar. É
contribuir também com exemplos do cotidiano trazendo relatos pessoais. Dessa forma, a aula
ficaria bem mais agradável e produtiva se o professor variasse os recursos didáticos. Por exemplo,
se propusesse a discussão em uma aula sobre diferentes imagens de paisagem, e assim por diante.
Conforme o relato de um dos alunos,

As aulas de geografia são interessantes porque o professor leva filme (depoimento de um


aluno do 6º ano).

A metodologia que o professor utiliza para trabalhar é sem dúvida a causa da maioria
dos interesses dos alunos em relação ao ensino de geografia. É necessário estabelecer relações
entre o conteúdo e a realidade e não apenas descrever tais conteúdos. O ensino da geografia escolar
está passando por uma mudança muito significativa, pois considera o aluno parte do processo que
está em construção, possibilitando ao mesmo o do domínio de conceitos que contribuam para sua
autonomia e senso crítico. Segundo os dados da pesquisa, os alunos, na sua maioria, reconhecem
a importância da geografia. Dessa maneira, os nossos objetivos podem ser atingidos. (ver Figura
2 e 3).
Página 78 de 2230

82,3

17,7

Sim Não

Figura 2. Percentual da opinião sobre gostar de geografia dos estudantes do 6º ano do ensino fundamental de escolas
públicas municipais de Bacabal-MA.

27,8 29,1

10,1 10,1 10,1


5,1 5,1
2,5

Aprende Acha Estuda Estuda Estuda Estuda Estuda Não


com a importante paisagem elementos Região e território e Lugar e informaram
geografia da natureza mapas países estado

Figura 3. Percentual da opinião dos estudantes do 6º ano do ensino fundamental de escolas públicas municipais de
Bacabal-MA sobre o motivo de gostar de geografia.

Compreendendo a escola como uma das instâncias que promovem o desenvolvimento


humano em sua amplitude, nos propusemos buscar entender as razões dos estudantes não gostar
da Geografia. O sexto ano foi caracterizado como uma turma que apresenta dificuldade de
aprendizagem, pois segundo os professores, muitos alunos ainda não sabem ler, escrever e fazer
cálculos simples. Há ainda os que leem, escrevem, mas não são capazes de interpretar um texto
simples e isso é um grande problema na educação básica. De acordo com Pontuschka, Paganelli
e Cacete (2009), há professores utilizando o livro didático como sua única ferramenta didática,
copia o assunto no quadro com explicações superficiais do conteúdo e às vezes até mesmo sem
explicações. Tais práticas inibem o interesse dos educandos. Conforme o relato abaixo,
Página 79 de 2230

Toda aula é a mesma coisa, só assunto copiado no quadro e livro didático. (depoimento
de um aluno do 6º ano).

Ainda sobre as razões de não gostar de geografia, os alunos afirmam não conseguir
compreender os conteúdos abordados pelo professor e não veem sentido na sua importância. A
forma como esses conteúdos são ensinados em sala de aula não tem trazido os resultados
esperados. Isso nos leva a refletir à importância de se repensar importância de incentivar a prática
pedagógica fundamentada em diferentes metodologias. Segundo Libâneo (1994), não considerar
o conhecimento prévio dos alunos é umas das práticas que levam os alunos a perderem o interesse
e o gosto por estudar. (Veja na figura 4).

58,8

41,2

Tem dificuldade de entender Acha a aula chata

Figura 4. Percentual da opinião dos estudantes do 6º ano do ensino fundamental de escolas públicas municipais de
Bacabal-MA sobre não gostar de geografia.

Nesse sentido, faz-se importante acrescentar que, ainda que seja unânime a opinião
sobre necessidade de qualificação do professor de Geografia a fim de que os estudantes sejam
efetivamente atendidos, principalmente em virtude de suas especificidades, estes aspectos ainda
não têm sido contemplados em sala de aula das escolas públicas municipais, pois boa parte dos
alunos gosta das metodologias dos professores. No campo da atitude, que diz respeito às
disposições afetivas ou orientações positivas ou negativas em relação à metodologia do professor,
os entrevistados em sua maioria apontam como ponto positivo. (Ver figura 5)
Página 80 de 2230

47,9

38,5

9,4
4,2

Ótimo Bom Regular Ruim

Figura 5. Percentual da opinião dos estudantes do 6º ano do ensino fundamental de escolas públicas municipais de
Bacabal-MA sobre a metodologia adotada pelos professores de geografia.

Considerando a importância da leitura de paisagem para a construção de


conhecimentos geográficos significativos no 6º ano escolar, é possível perceber a existência
conceitual de várias paisagens em forma de região, território, lugar, etc. E discutir essa pluralidade
conceitual é, no âmbito da geografia, sem dúvida, um grande desafio. Segundo as autoras Chiapetti
e Santos (2014),

[...] a leitura de paisagem como um conteúdo que, quando trabalhado de forma eficiente,
proporciona oportunidade para que se desenvolva uma série de habilidades nos alunos,
como a observação, o registro, a análise e a comparação. (CHIAPETTI E SANTOS 2014,
p. 68).

No que se refere ao conceito de Paisagem na Geografia Escolar, os dados revelam que


os estudantes conseguem identificar o conceito de paisagem, tem clareza no entendimento do que
é a paisagem. (ver Figura 6)

67,7

32,3

Identificaram o conceito de Não identificaram o conceito


paisagem paisagem

Figura 6. Percentual dos estudantes do 6º ano do ensino fundamental de escolas públicas municipais de Bacabal-MA
que identificaram o conceito de paisagem.
Página 81 de 2230

Em um trabalho semelhante, os autores Silveira e Araújo (2013), ressaltam que a


discussão feita entre a importância da paisagem e sua fundamentação para o conhecimento
geográfico torna-se relevante no contexto da geografia, pois desperta novos olhares para uma
Geografia local. Dessa maneira, diante dos dados obtidos, as questões que envolvem o conceito
de Paisagem na Geografia Escolar merecem maior atenção, pois se observa que apesar dos alunos
compreenderem o conceito de paisagem a maioria deles não consegue distinguir ou identificar a
paisagem. A pesquisa nos mostra um número significativo de alunos que não consegue identificar
os exemplos dos diferentes tipos de paisagem. A este respeito, deve-se destacar a crescente tomada
de consciência por parte de profissionais envolvidos com a questão do ensino de geografia, do
conceito de paisagem e ao planejamento na abordagem no ensino aprendizagem.

62,5

37,5

Identificarm exemplo de paisagem Não identificaram exemplo de


paisagem

Figura 8. Percentual dos estudantes do 6º ano do ensino fundamental de escolas públicas municipais de Bacabal-MA
que identificaram o exemplo do conceito de paisagem.

Desse modo, observamos que utilizar apenas o livro didático como recurso
metodológico para a educação de jovens do 6º ano na escola não pode ser considerado um objetivo
por si só. Aprender utilizar outros métodos e outros instrumentos é algo secundário. O uso de
imagens, fotografias, etc., é uma das formas possíveis para atingir tais objetivos do ensino.
Segundo Travassos (2001), se soubermos explorar corretamente esses instrumentos dentro da sala
de aula, teremos nas mãos um poderoso recurso que, "na impossibilidade de ir a todos os lugares",
até mesmo dentro da própria cidade onde moramos, podemos eternizá-los com apenas um clique,
captando aquela realidade.

CONSIDERAÇÔES FINAIS
Após o estudo feito sobre a temática, é possível afirmar que a meta principal da
educação é a aprendizagem. Os conceitos fundamentais da geografia são imprescindíveis ao êxito
das expectativas de aprendizagem no que se refere à Geografia Escolar. Ao longo da evolução do
pensamento geográfico, os conceitos, as metodologias e as mentalidades foram se modificando e
assumindo novas formas. O estudo da paisagem nos permite fazer diversas abordagens dentro da
sala de aula.
Página 82 de 2230

No presente trabalho, esboçamos um enfoque teórico, buscando esclarecer de forma


objetiva, os principais processos que atuam na estruturação na educação. A discussão feita sobre
a importância do conceito de paisagem e sua fundamentação para o conhecimento geográfico,
torna-se relevante no contexto da geografia escolar, pois desperta novos olhares para a realidade
que estamos inseridos. É uma ferramenta fundamental para este tipo de ensino, pois, mostrar que
a paisagem é resultados de vários elementos sociais, políticos e econômicos, nos torna cidadãos
pensantes e atuantes dentro da sociedade.

Observamos que os estudantes das instituições pesquisadas conhecem o conceito de


Paisagem, porém, não conseguem identificar os exemplos que caracterizam suas particularidades,
o que deixa evidente que o ensino acontece com algumas limitações, as quais podem estar
relacionadas à escassez de um conhecimento mais teórico, ou seja, menos empírico. No ensino da
Geografia é necessário que partamos das paisagens visíveis e não de conceitos, ou seja, os
conceitos não devem anteceder os conteúdos.

Estudos atuais sinalizam que os conceitos geográficos, sobretudo o de Paisagem,


contribuem de forma significativa para o processo de aprendizagem em qualquer segmento
educacional. No que diz respeito ao conhecimento prévio dos alunos, recomenda-se um estudo
mais aprofundado sobre a paisagem, já que a mesma é instável. Apropriar-se desse repertório é
crucial para tornar o aluno capaz de ler a realidade à sua volta, especialmente de modo geográfico.
O trabalho com atividades como a aula de campo e a organização da exposição fotográfica, faz
criar um vínculo maior de amizade e conhecimento entre professor e aluno, que em sala de aula é
dificultado pelo próprio modo que está sistematizado a educação.

Consideramos, finalmente, que a aplicação do ensino dos conceitos fundamentais da


geografia no ensino fundamental da cidade de Bacabal ainda é pouco explorada, carente de mais
pesquisas que respaldem sua prática como um novo método de ensino, com base para um novo
olhar sobre o processo ensino-aprendizagem. Estas iniciativas são só o começo de um projeto que
está em desenvolvimento e que tem por meta implementar novas práticas no ensino de Geografia.
Acredita-se que não só teria como enriquecer as práticas de outros docentes com as possibilidades
que novos métodos irão permitir como proporcionar aos alunos novas formas de aprender e fazer
a leitura do mundo, do cotidiano imediato, proporcionando a estes condições de refleti-lo e ainda
dar visibilidade destas análises e produtos ao mundo acadêmico para além da produção científica.

REFERÊNCIA
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Página 85 de 2230

A IDENTIDADE NEGRA NO CURRÍCULO ESCOLAR: UMA ANÁLISE DE SUA


CONSTRUÇÃO HISTÓRICA

THE BLACK IDENTITY IN THE SCHOOL CURRICULUM: AN ANALYSIS OF ITS


HISTORICAL CONSTRUCTION

Paulo Roberto Amorim


Estudante de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Dinalva Pereira Gonçalves
Mestra em Educação
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Eixo 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O presente artigo é resultado de uma pesquisa que se encontra em estágio inicial e
objetiva analisar a representação da identidade negra no currículo escolar. Apresenta abordagens
históricas sobre o processo de exclusão do negro, resgatando os aspectos determinantes para a sua
consolidação nos dias atuais. Para tal finalidade, este estudo utiliza metodologia baseada em
pesquisas bibliográficas, analisando livros didáticos de História e fundamentando-se nos
posicionamentos teóricos de Bittencourt (2004), Cruz (2008), Gomes (2003), Nascimento (1980),
Ponciano (2011), Silva (2005) e Santomé (1995), alguns dos quais se dedicaram ao estudo desta
temática. Assim, propõem-se reflexões acerca da inclusão e exclusão da história e cultura negra
no currículo escolar, sendo apresentadas ou não nos materiais didáticos utilizados em escolas
brasileiras.
Palavras-chave: Identidade Negra. Currículo Escolar. Processo Histórico.

Abstract: This article is the result of research that is in its initial stage and aims to analyze the
representation of black identity in the school curriculum. It presents historical approaches to the
black exclusion process, rescuing the determinant aspects for its consolidation today. For this
purpose, this study uses a methodology based on bibliographic research, analyzing history
textbooks and based on the theoretical positions of Bittencourt (2004), Cruz (2008), Gomes
(2003), Nascimento (1980), Ponciano (2011) , Silva (2005) and Santomé (1995), some of whom
dedicated themselves to the study of this theme. Thus, reflections on the inclusion and exclusion
of black history and culture in the school curriculum are proposed, whether or not they are
presented in the teaching materials used in Brazilian schools.
Keywords: Black Identity. School Curriculum. Historical Process.

INTRODUÇÃO

A questão da representação da história e cultura negra no currículo escolar trata-se de um


tema necessário para a percepção e consciência acerca da participação do negro como sujeito
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histórico e o reconhecimento das diferenças culturais, necessário para superar os estigmas


perpetuados desde o período da escravidão no Brasil.
Nesta perspectiva, enfatiza-se a necessidade de resgatar, ao longo deste trabalho, os
princípios apresentados na Lei n° 10.639/03, que representa uma das mais notáveis conquistas do
Movimento Negro ao pôr na pauta das políticas educacionais a institucionalização da
obrigatoriedade da inclusão do ensino da história e cultura afro-brasileira nos currículos das
escolas de todo o país.
O presente artigo tem por objetivo promover uma reflexão sobre a imagem do negro no
contexto educacional, enfatizando a forma como este grupo é apresentado no livro didático. Deste
modo, analisa-se a representação da identidade e da cultura negra na escola, possibilitando a
percepção da imagem desta etnia, suas verdadeiras contribuições para a construção da sociedade
brasileira. Para auxiliar na elaboração desta análise, realizou-se uma pesquisa bibliográfica e
expõem-se os pressupostos teóricos defendidos por Bittencourt (2004), Cruz (2008), Gomes
(2003), Nascimento (1980), Ponciano (2011), Silva (2005) e Santomé (1995), que serão
apresentados posteriormente.
Quanto à estrutura, este trabalho está organizado da seguinte forma: o primeiro tópico
apresenta uma análise histórica da representação do negro no âmbito educacional, enfatizando o
modo como era visto no ensino de História, aproximações com o passado necessárias para
compreensão do cenário atual. O segundo tópico apresenta análises sobre a representação da
imagem deste grupo em livros didáticos de História, articulando reflexões de autores que
fundamentaram esta abordagem. Ancorado ao segundo tópico, aborda-se em subtópicos o
silenciamento da identidade negra no currículo escolar, bem como a representação da sua cultura
no livro didático de História, trazendo uma pesquisa sobre a visibilidade e o ocultamento dos
negros nos materiais didáticos. Por fim, apresenta-se as conclusões seguida das referências.

A CULTURA NEGRA E SUA EXCLUSÃO NOS CURRÍCULOS DE HISTÓRIA

Historicamente, os afrodescendentes vivenciaram/vivenciam situações de opressão e


discriminação social, realidade que é retratada também nos livros didáticos, excluindo a
verdadeira história desta etnia, que contribuiu positivamente para o desenvolvimento do país.
Nascimento (1980) verificou que a história da população negra nos livros didáticos tem
sido demasiadamente apresentada a partir dos interesses dos países colonialistas, através do tráfico
de escravos. Os negros são apresentados como vítimas do sistema colonialista e não são
promovidas referências para que os negros possam ser observados como sujeitos históricos.
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Oculta-se a história vivida pelos negros no continente africano antes da chegada das civilizações
europeias, desmerecendo desta forma seus costumes, ressaltando que a história do desses povos
só passaria a ter relevância com a chegada dos europeus. Nessa perspectiva, o ensino de História
acabou alimentando um processo que exalta outros povos, que são elevados à categoria de heróis,
deixando a cultura negra negada e silenciada ao longo de toda sua construção histórica.
De acordo com Bittencourt (2004):

O livro didático é um importante veículo portador de um sistema de valores, de ideologia,


de cultura. Várias pesquisas demonstram como textos e ilustrações de obras didáticas
transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando tema, como
família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca burguesa.
(Bittencourt, 2004, p.72).

É notório que as negações e o ocultamento da cultura negra no ambiente escolar impedem


que os indivíduos tenham aproximações com a história da África e a identidade negra, exercendo
o enfoque no ensino da história de povos europeus. Entretanto, frequentemente, os relatos sobre a
vida e tradições do povo negro estão presentes em escritos de historiadores e cientistas sociais
africanos. Um exemplo, é o historiador guineense Carlos Lopes (1995) que identificou a existência
de três grandes momentos de interpretação histórica da África: a corrente de inferioridade africana,
a corrente de superioridade africana, e os novos estudos africanos. “A corrente de inferioridade
africana, fruto de séculos de dominação e espoliação do continente, teria como importante marco
teórico o paradigma hegeliano, sendo responsável por uma visão marginal da contribuição
africana, [...] de que a África não pode produzir conhecimento ou história por si só” (Lopes, 1995,
p.23).
Carlos Lopes (1995) conseguiu constatar três instantes do auge da narração da história dos
povos africanos, dando ênfase à corrente de minorização, a corrente de valorização, e as recentes
pesquisas deste povo “esquecido” no ensino de história. Essa corrente minoriza o povo da África,
recorrente de anos de opressão e roubo do direito de tornar conhecida a rica história desse
continente, privando os indivíduos de terem o acesso à cultura deste povo (Lopes, 1995). O ideal
modelo de Hegel, citado pelo autor, perpassa um panorama desfavorável da ajuda dos africanos,
reverberando que o país seja incapaz de gerar aprendizado de sua cultura de forma independente.
Na primeira metade do século XVI, com o início da escravidão em terras brasileiras, os
negros foram submetidos a um rigoroso regime que se sustentava por meio de trabalhos forçados,
humilhações, agressões, além da negação do direito de sua inclusão nos espaços escolares, prática
esta que se perpetuou até mesmo após a abolição da escravatura. Na Constituição de 1824, a
primeira consolidada, elaborada pelo conselho de estado e solicitada por D. Pedro I, torna-se
evidente o desfavorecimento e a negação do direito do ensino a esta classe. Os negros não tinham
acesso à educação, em contrapartida, eram expostos às condições de trabalhos humilhantes e
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banidos de qualquer atividade de caráter social, econômico, intelectual ou algo que o promovesse
de uma condição de escravo a homem livre.

Os mecanismos do Estado Brasileiro impediram o acesso à instrução pública dos negros,


durante o Império, ocorrendo em nível legislativo, quando houve proibição do escravo,
e em alguns casos o próprio negro liberto, de frequentar a escola pública e em nível
prático quando mesmo garantido o direito dos livres estudarem não se criou condições
materiais para a realização plena do direito. (Cunha, 1999; Fonseca, 2000, apud Cruz,
2005, p. 29).

Nota-se que o negro é alvo de exclusões sociais, em recorrência a um verdadeiro jogo das
classes políticas, o que tem implicado num distanciamento quando se trata da inserção desta
classe, enquanto indivíduos na sociedade.

O ensino de História sempre ficou restrito às narrativas eurocêntricas, nas quais o


continente africano é citado como exemplo de miséria, primitivismo e violência,
adjetivos pejorativos que se relacionam por falta de uma desconstrução desse imaginário
– aos africanos e afro-descendentes. Essas narrativas, presentes nos livros didáticos e
comentados pelos professores, promovem a continuidade da ideia de que o “branco”
europeu é civilizado, herói e superior; o negro e o africano, inferiores, escravos e
submissos, mantendo ainda o preconceito e racismo, na educação e na sociedade.
(Ponciano, 2011, p.16).

Desta forma, a cultura negra é vítima de preconceitos. O fato da criação de leis para
implementação de uma disciplina no currículo escolar para fomentar o estudo sobre a história e
cultura afro-brasileira e africana, bem como a instituição do Dia da Consciência Negra, evidencia
a dívida que a sociedade brasileira tem com negros. Nesse direcionamento, a Lei n° 10.639/03 8
que visa incluir os estudos sobre a história e cultura deste povo, atua como uma retratação da pátria
brasileira com os africanos, sendo o fruto de uma intensa luta desta classe por seus direitos e
reconhecimento no processo educacional e na sociedade como um todo.

Identificar e corrigir a ideologia, ensinar que a diferença pode ser bela, que a diversidade
é enriquecedora e não é sinônimo de desigualdade, é um dos passos para a reconstrução
da auto-estima, do auto-conceito, da cidadania e da abertura para o acolhimento dos
valores das diversas culturas presentes na sociedade. (Silva, 2005, p.31)

Assim, após mais de 130 anos da abolição da escravatura no Brasil, percebe-se a exclusão
dos negros ao acesso de políticas públicas e até de direitos fundamentais, além da presença de
preconceitos e estereótipos que continuam impressos na sociedade brasileira. A educação tem um
papel fundamental na desconstrução desses tipos de atitudes/posicionamentos, porém, o que

8
Esta Lei institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo escolar, desenvolvendo
conhecimentos e valores, que conscientizem os indivíduos quanto à pluralidade étnico-racial, assegurando o respeito
aos direitos e valorização de identidade cultural brasileira e africana para o país.
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percebemos em algumas literaturas inseridas nos currículos escolares, é o ocultamento ou a


distorção das vozes e dos papéis desses sujeitos no contexto social.

REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA

O processo de apreensão de conhecimentos que ocorre no âmbito escolar é indispensável


para a ampliação de conceitos e o desencadeamento de habilidades essenciais para cada indivíduo.
Desta forma, o livro didático torna-se uma ferramenta imprescindível para auxiliar a prática
pedagógica.

No livro didático a humanidade e a cidadania são representadas, na maioria das


vezes, são representados pelo homem branco e de classe média. A mulher, o negro
os povos indígenas, entre outros, são descritos pela cor da pele ou pelo gênero,
para registrar sua existência. (Silva, 2008, p.17).

Nesse sentido, os recursos didáticos utilizados nos procedimentos de ensino e


aprendizagem devem estar adequados com a realidade de cada criança e promover a compreensão
da pluralidade existente na sociedade, contemplando as singularidades de cada um. Entretanto, é
evidente que este propósito de fato não é alcançado, principalmente no que se refere às abordagens
referentes ao multiculturalismo e às minorias étnicas, que têm seus conceitos adulterados. Nesta
perspectiva, a construção da identidade negra, sua história e papel na sociedade são omitidos,
interferindo diretamente na construção do protagonismo cultural.

O livro didático, de modo geral omite o processo histórico e cultural, o cotidiano


e as experiências dos segmentos subalternos da sociedade, como o negro, o índio,
a mulher, entre outros. Em relação ao segmento negro, sua quase total ausência
nos livros e a sua rara presença de forma estereotipada concorrem, em grande
parte para o recalque de sua identidade e autoestima. (Silva, 2004, p. 51).

Em referência à descrição realizada sobre os negros em materiais didáticos, Silva (2005)


explicita a omissão do processo histórico-cultural das populações africanas, das realidades sociais
dos escravos em seu cotidiano e as poucas aparições em que os negros são representados nos livros
didáticos.
Em uma análise realizada, Costa e Dutra (2009) revelam diversas questões que merecem
destaque sobre a representação do negro. Em relação às imagens, os livros mostram o negro e a
África de uma forma inferiorizada, situando a contribuição do negro à cultura brasileira resumida
à religiosidade e à capoeira, notando-se uma mistificação e folclorização da cultura negra.
Também o continente africano é demonstrado como rico em recursos naturais, mas carente de
organização social, necessitando de ajuda externa para desenvolver-se. Da mesma forma, a
organização social dos países que compõem o hemisfério norte do planeta mostra-se de forma
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complexa e detalhada, enquanto as menções à organização africana são simplistas, organizadas


em aldeias em meio selvagem. Além disso, estão presentes imagens de africanos em situação de
extrema desnutrição e discursos que ligam a África à proliferação de doenças e produtora de ondas
de imigração para outros países.
De acordo com Gomes (2003):

A própria estrutura da escola brasileira, do modo como é pensada e realizada,


exclui o aluno e aluna negros e pobres. Essa exclusão caracteriza-se de maneiras
diversas, por meio da forma como alunos e alunas negros são tratados; pela
ausência ou pela presença superficial da discussão da questão racial no interior da
escola; pela não existência dessa discussão nos cursos e centros de formação de
professores. (Gomes, 2003, p.38).

Nesse sentido, a organização da instituição escolar não oferece os subsídios essenciais para
estruturar um modelo educacional pautado na valorização das diferenças, valorização dos sujeitos
históricos, disseminando apenas a desigualdade, através de um discurso que prega a existência das
diferenças, quando estas são nítidas, representando uma realidade utópica perfeita, sem lutas
sociais, injustiças, problemas sociais e preconceitos.

As negações e o silenciamento da identidade negra no currículo escolar

O currículo escolar representa as disposições de metas, conteúdos, objetivos e apoios


didáticos fundamentais para o êxito no processo de ensino e aprendizagem. De acordo com
Santomé (1995):

Quando se analisa de maneira atenta os conteúdos que são desenvolvidos de forma


explícita na maioria das instituições escolares e aquilo que é enfatizado nas propostas
curriculares, chama a atenção a arrasadora presença das culturas que podemos chamar de
hegemônicas. As culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados
que não dispõem de estruturas importantes de poder costumam ser silenciadas, quando
não estereotipadas e deformadas, para anular suas possibilidades de reação. (Santomé,
1995, p. 161).

Nesse sentido, o modelo educacional estimula a exclusão e a desigualdade das minorias


étnicas, abordando esta temática de forma descontextualizada e em situações convenientes,
utilizando uma espécie de currículo turístico, definido por Santomé (1995) como:

[...] unidades didáticas isoladas, nas quais, esporadicamente, se pretende estudar a


diversidade cultural a partir de perspectivas de distanciamento, como algo estranho,
exótico ou até mesmo problemático, mas nesse último caso, deixando claro que sua
solução não depende de nada em concreto, que está fora de nosso alcance. (Santomé,
1995, p.173).

Nessa perspectiva, segundo Lima (2004, p.85), no espaço educacional a África é vista
apenas como a terra da macumba, da capoeira e do tambor. É necessária a superação dessa imagem
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folclórica do negro no Brasil e dessa concepção escravista criada por antigos historiadores,
considerando a extensa participação africana no processo de formação do país. A invisibilidade
da representatividade dos negros origina um déficit na formação histórica e moral dos indivíduos,
contribuindo para uma geração de cidadãos que desconhecem sua história, seu passado e conserva-
se as desigualdades atemporais contra as minorias étnicas, que são vítimas da repugnância e
obscurantismo.
Assim, a instituição escolar tem um impacto decisivo na construção dos valores presentes
na sociedade e das incompreensões referentes às diferenças individuais. Deste modo, Santomé
(1995) explica que:

Uma educação libertadora exige que se leve a sério os pontos fortes, experiências,
estratégias e valores, dos membros dos grupos oprimidos. Implica também ajudá-los
analisar e compreender as estruturas sociais que os oprimem para elaborar estratégias e
linhas de atuação com probabilidades de êxito. (Santomé, 1995, p. 171).

O ambiente escolar é ideal para a promoção da cidadania e o desenvolvimento de práticas


de respeito e valorização das diferenças culturais. Por essa razão, o currículo multicultural tem
como desafio promover a educação libertadora e o reconhecimento da identidade negra.

A cultura negra no livro didático de história

Em nossas pesquisas, visando o aprimoramento acerca da efetiva compreensão da temática


abordada, realizou-se uma análise em dois livros didáticos de História destinados ao 4° ano do
Ensino Fundamental, disponibilizados na rede pública de ensino.
Deste modo, estipulou-se como critério de análise a verificação de livros com anos
distintos de publicação: um livro de História mais antigo, que será nomeado de LIVRO A e outro
que está sendo utilizado atualmente em escolas no município de Pinheiro, localizado no Maranhão,
intitulado LIVRO B.
Na verificação do LIVRO A, publicado no ano de 2000, foi constatado a forma deturpada
em que a história dos negros é apresentada; as narrações utilizadas só promovem referência à
dominação desses povos, sem abordagem da sua história, lutas e culturas. As ilustrações só
expressam a servidão e escravidão dos negros, tornando-se incomum a representatividade de suas
tradições. Nota-se, neste material, a perpetuação de ideias disseminadas em décadas passadas.
Confirma-se, desse modo, os posicionamentos de Silva (2011) que ao analisar a imagem de negros
nos livros didáticos da década de 1980, afirma que os negros eram referenciados de maneira
animalizada, fazendo comparações ao macaco, não possuindo qualquer contribuição positiva da
cultura africana e da população negra para a formação da sociedade brasileira, além da postura
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subserviente em relação ao brancos e da designação aos negros dos trabalhos de características


que precisam da utilização da força física.
Em contrapartida, o segundo alvo deste estudo foi um livro elaborado em 2018 e está
sendo utilizado atualmente nas escolas. O livro B retrata a diversidade cultural, relatando e
abordando os aspectos da cultura negra, valorizando a construção da identidade negra na
sociedade e apresentando os negros como sujeitos de sua história e do Brasil. Além disso, mostra
a história da África, relatando como este povo foi arrancado de suas terras; em outro
direcionamento, apresenta as contribuições dos negros para a sociedade e economia. Desta forma,
as ilustrações trazem a cultura negra, suas tradições e lutas sociais. Fernandes aponta:

[...] a diversidade cultural é a riqueza da humanidade. Para cumprir sua tarefa


humanista, a escola precisa mostrar aos alunos que existem outras culturas além
da sua. Por isso, a escola tem que ser local, como ponto de partida, mas tem que
ser internacional e intercultural, como ponto de chegada. (...) Escola autônoma
significa escola curiosa, ousada, buscando dialogar com todas as culturas e
concepções de mundo. Pluralismo não significa ecletismo, um conjunto amorfo
de retalhos culturais. Significa sobretudo diálogo com todas as culturas, a partir
de uma cultura que se abre às demais. (Fernandes apud Gadotti, 2001, p. 386).

Torna-se evidente que o processo de escolarização auxilia na manutenção de preconceitos


referentes às minorias étnicas, mas infere-se que com o comprometimento dos indivíduos com a
igualdade social, este rumo pode ser mudado, principalmente com o reconhecimento àqueles que
ajudaram a construir nossa nação e deixaram suas marcas.
Concluiu-se, com esta pesquisa, que o livro A, lançado em 2000, antes da promulgação da
Lei 10.639/2003, enaltece a figura do colonizador europeu, tratando o negro de maneira
estereotipada, vítima do sistema, não o considerando como sujeito histórico. De outro modo, o
livro B, lançado em 2018, já faz uma referência positiva sobre a participação dos negros na
formação da sociedade brasileira e da sua identidade.
Portanto, as análises realizadas nesses dois livros didáticos mostraram que o processo de
inclusão da história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares, mesmo em passos
lentos, já pode ser percebida e decorre, principalmente, em função das lutas sociais e da
obrigatoriedade da Lei 10.639/2003, dispositivo este que representou um divisor de águas na
história da educação deste país, no que se refere à conscientização, por meio do currículo escolar,
sobre o papel dos negros na e para a sociedade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apreende-se que a cultura e a identidade dos negros em seu percurso histórico até os dias
atuais, incessantemente foi silenciada, excluída ou até mesmo transmitida utopicamente nos livros
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didáticos e nas ministrações realizadas pelos docentes, resultando nos preconceitos perpetuados e
na sensação de inferioridade dos negros no contexto social. Apesar dos estigmas disseminados,
relacionando estes povos à miséria, pobreza e passividade no período em que foram escravizados,
ressalta-se o rompimento destas concepções retrógradas com os avanços alcançados através das
lutas sociais e leis que tentam modificar estes direcionamentos.
A cultura e a identidade negra na prática pedagógica e no currículo escolar
instrumentalizam as singularidades individuais e também a pluralidade cultural presente no
território brasileiro, promovendo a reflexão e a criticidade para aceitação das diferenças,
fornecendo um processo de instrução significativo problematizador, estabelecendo vínculos com
a realidade, redirecionando cada indivíduo do estado de passividade e conhecimento fragmentado
a respeito desses povos e oferecendo subsídios necessários para a compreensão do outro.
Diante dessas especificidades, ressalta-se a importância da inclusão desta temática no
espaço escolar. Portanto, a formulação do sistema educacional, materiais didáticos e posturas
profissionais contribuíram e contribuem para o concebimento ideológico acerca das minorias
étnicas. Infere-se que o cumprimento e a prática de novos direcionamentos propostos para o ensino
de História em relação aos povos antes marginalizados, oferecendo a transparência e a visão
realista do seu papel e tradições culturais, é inegável na perspectiva da transformação da sociedade
e principalmente nos ideais referentes ao multiculturalismo existente.
Espera-se que este estudo contribua com outras pesquisas e, principalmente, proporcione
reflexões relacionadas ao silenciamento da identidade negra no currículo escolar. Por se tratar de
um trabalho inicial, numa fase bastante embrionária, torna-se relevante ressaltar que esta
abordagem não se encerra aqui, pois foi apresentado uma pequena amostra do que pode se tornar
um trabalho de maior dimensão e profundidade sobre a representação da história e cultura negra
nos materiais didáticos disponibilizados em escolas públicas brasileiras.

REFERÊNCIAS

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imagens. 9° ed. Ed: Contexto. São Paulo, 2004.
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<http://www.agb.or g.br/XENPEG/artigos/GT/GT3/tc3%20(12).pdf>. Acesso em: 05 de outubro
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PONCIANO, D. D. A História e Cultura Afro- brasileiras no Currículo de História do 6º ao
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Munanga (organizador). Superando o Racismo na escola. 2 ed. Brasília: Ministério da Educação,
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Porque mudou? Salvador: EDUFBA, 2011.
Página 95 de 2230

A IMPORTÂNCIA DO INTÉRPRETE DE LIBRAS NO PROCESSO ENSINO-


APRENDIZAGEM DE DISCENTES SURDOS

THE IMPORTANCE OF THE LIBRAS INTERPRETER IN THE TEACHING-


LEARNING PROCESS OF DEAF LEARNERS

Antonio Jose Araújo Lima9


Mestre em Educação - UFMA
Docente do Instituto Federal do Maranhão – IFMA
Campus São Raimundo das Mangabeiras
Ronaldo Silva Junior10
Bacharel em Direito
Docente em Direito do Instituto Federal do Maranhão - IFMA
Thelma Helena Costa Chahini11
Professora Associada do Departamento de Educação II da
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
Docente no Programa de Pós-Graduação em
Educação e Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFMA
Eixo 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: o objetivo geral deste estudo corresponde a conhecer e descrever as percepções de


docentes do Ensino Médio em relação à relevância do intérprete da Libras no contexto do processo
ensino-aprendizagem. Desenvolveu-se uma pesquisa exploratória, descritiva, com abordagem
qualitativa. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas. Os resultados
sinalizam que para os docentes, os alunos surdos têm potencial para obter bom rendimento escolar,
desde que haja acompanhamento por parte do profissional intérprete, caso contrário, os referidos
alunos podem se prejudicar na compreensão dos assuntos em sala de aula e na interação entre os
professores e os demais colegas. Nesse sentido, a presença do intérprete de Libras na sala de
aula faz toda diferença no processo ensino-aprendizagem do aluno surdo. No entanto, mesmo
sabendo da importância da Libras no cotidiano da escola, até pouco tempo essa formação não
era oferecida nos cursos de formação inicial, fazendo com que boa parte dos docentes, que
hoje estão em sala de aula, não tenham formação mínima em Libras; fato que gera transtornos
à aprendizagem do discente surdo quando o intérprete de Libras se ausenta do referido
processo.
Palavras-chave: Discentes surdos. Ensino-aprendizagem. Intérprete de Libras. Inclusão.

9
E-mail: antonio.jose@ifma.edu.br
10
.Mestrando em Cultura e Sociedade - PGCULT/UFMA. Professor de Direito do IFMA. E-mail:
ronaldo.junior@ifma.edu.br
11
Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus Dom Delgado, São Luís/MA – Brasil.. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-9872-2228. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4061880434989954. E-mail:
thelmachahini@hotmail.com.
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Abstract: The general objective of this study is to know and describe the perceptions of high school
teachers regarding the relevance of the Libras interpreter in the context of the teaching-learning
process. An exploratory, descriptive research was developed with a qualitative approach. Data
were collected through semi-structured interviews. The results signal that for teachers, deaf
students have the potential to achieve good school performance, provided there is monitoring by
the professional interpreter, otherwise these students may be hampered in their understanding of
the issues in the classroom and in the interaction between teachers and other colleagues. In this
sense, the presence of the Libras interpreter in the classroom makes all the difference in the deaf
student's teaching-learning process. However, even knowing the importance of Libras in the daily
life of the school, until recently this training was not offered in the initial training courses, so that
most of the teachers, who are now in the classroom, have no minimum training in Libras; a fact
that creates inconvenience to the learning of the deaf student when the interpreter of Libras is
absent from the process.
Keywords: Deaf students. Teaching-learning. Interpreter of Libras. Inclusion.

Introdução

Em setembro de 1857, no Rio de Janeiro, foi fundado pelo pedagogo francês E. Huet o
Instituto de Meninos Surdos-Mudos, o atual Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). A
iniciativa para a construção da entidade surgiu com a chegada da família real ao Brasil, que vinha
fugindo de Napoleão Bonaparte (MAZZOTTA, 2005).
Percebe-se que ainda no Brasil Império a questão do atendimento ao surdo já era uma
temática em andamento. No entanto, é preciso mostrar que esse atendimento não era para todos
os surdos, mas apenas para os bem-nascidos, que nesse contexto representava as elites da época.
Além disso, mulheres e escravos não tinham acesso à cultura letrada. Assim, ficavam fora da
escola que assistia os surdos.
Destaca-se que o fundador era surdo e, por ter um trabalho reconhecido em toda a Europa,
foi convidado pelo Imperador do Brasil, Dom Pedro II, para se o precursor dessa missão tão
importante para os deficientes auditivos que necessitavam, assim como os demais, ter acesso a
educação (JANNUZZI, 2004).
O início do trabalho de lecionar foi permeado por desafios, em especial os relacionados à
metodologia ser utilizada. Nesse sentido, primariamente, as crianças eram ensinadas pela
linguagem, escrita, e linguagem de sinais; uma característica da língua de sinalizada usada na
França. Com isso, o curso tinha duração média de seis anos para alunos de ambos os sexos, a faixa
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etária estendia-se do final da primeira infância até meados do final da adolescência (MAZZOTTA,
2005).
Ainda sobre a metodologia, era utilizado um modo de leitura com lábios em baixo som,
destinada aos surdos que tinham aptidão ainda que fragilizada para desenvolver a linguagem oral
(QUADROS, 2005). Para aqueles que não mostrassem condições alguma de ser oralizados, eles
recebiam atendimento diferenciado em locais e horários propícios pela escola, algo como uma
monitoria extraescolar, talvez um atendimento especialidade bem rudimentar ao que utilizam hoje
em escolas de classe comum e especial (MAZZOTTA, 2005). Dessa forma, ainda segundo o autor,
deu-se início nas terras brasileiras a primeira instituição para atender nossos surdos, tendo como
mestre um professor francês, o que nos levaria aos primeiros passos rumo a Língua Brasileira de
Sinais-LIBRAS.
Diante do desafio proposto de educar surdos num local longe dos grandes centros de
desenvolvimento, com recursos limitados, surge um problema secundário, relacionado a questão
de como formar professores para atuar nesse segmento educacional.
Dando um salto na história, o profissional Intérprete de Libras passou por uma série
de dificuldades para ter o reconhecimento da categoria. De acordo com Silva e Lessa -de-
Oliveira (2016), legalmente o primeiro passo para o reconhecimento da profissão foi à
promulgação da Lei n° 10.098 de dezembro de 2000, que estabeleceu normas e critérios para
condições de acessibilidade para pessoas com deficiências ou com mobilidade reduzida:
Art. 18. O Poder Público implementará a formação de profissionais intérpretes de
escrita em braile, linguagem de sinais e de guias-intérpretes, para facilitar qualquer
tipo de comunicação direta à pessoa portadora de deficiência sensorial e com
dificuldade de comunicação. (BRASIL, 2000, não paginado, grifo nosso).
Embora de forma bem discreta, esse foi o marco para começar a pensar no relevante
trabalho que o intérprete desenvolve junto ao aluno surdo. É importante destacar que, até
então, tais profissionais atuavam de forma mais assistencial, em suma, no âmbito religioso e
voluntário junto a escolas e demais organizações não geridas pelo poder público.
Art. 17. A formação do tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa deve
efetivar-se por meio de curso superior de Tradução e Interpretação, com habilitação
em Libras - Língua Portuguesa. Art. 18. Nos próximos dez anos, a partir da
publicação deste Decreto, a formação de tradutor e intérprete de Libras - Língua
Portuguesa, em nível médio, deve ser realizada por meio de I - cursos de educação
profissional; II - cursos de extensão universitária; e III - cursos de formação
continuada promovidos por instituições de ensino superior e instituições
credenciadas por secretarias de educação. Parágrafo único. A formação de
tradutor e intérprete de Libras pode ser realizada por organizações da sociedade civil
representativas da comunidade surda, desde que o certificado seja convalidado por
uma das instituições referidas no inciso III. (BRASIL, 2005, não paginado).
No Brasil, o intérprete de Libras foi reconhecido por meio da Lei n° 12. 319 de
2010, que desde sua criação teve sua lotação maciça no âmbito escolar e atuando junto ao
professor em todos os níveis e modalidades da educação, incluindo na disciplina de História.
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Na Prática, a presença do intérprete de Libras, causa na sala de aula uma espécie de tensão
entre o professor, o aluno surdo, quando se coloca em ênfase o local de fato que esse
profissional ocupa na relação ensino aprendizagem. Nesse momento, questionando-se quem
de fato é responsável pelo aluno surdo. Dessa forma, será de suma importância a parceria entre
o professor e o intérprete para que o aluno surdo venha a ter um bom rendimento em sala de
aula.
Diferentemente do professor, o trabalho do intérprete é considerado técnico. Com
a ideia de inclusão já em voga em nossas escolas, os alunos surdos são mantidos juntos com
os demais em uma sala comum. No entanto, é comum os professores não dominarem a Libras,
nesses casos, faz-se necessário e primordial que o intérprete de Libras faça a intermediação
entre o professor e o aluno.
Como já mencionado, sabe-se que, no Brasil, a profissão do intérprete de Libras foi
reconhecida por meio da Lei n° 12.319, de 2010. Desde então a presença desse profissional tornou-
se relevante junto ao professor em todos os níveis e modalidades da educação. Sendo assim, o
problema de pesquisa questiona: quais as percepções de docentes do Ensino Médio em relação à
relevância do intérprete da Libras ao processo ensino-aprendizagem? Para responder ao problema
proposto, o objetivo geral deste estudo correspondeu a conhecer e descrever as percepções de
docentes do Ensino Médio em relação à relevância do intérprete da Libras ao processo ensino-
aprendizagem.

Metodologia

Desenvolveu-se uma pesquisa exploratória, descritiva em uma escola da rede estadual de


educação, em São Luís do Maranhão, pois de acordo com os estudos de Gil (2010) a pesquisa
exploratória tem como essência familiarizar-se com o fenômeno e, assim, descobrir novas
percepções dele ou descobrir novas ideias e a pesquisa descritiva visa mostrar as relações
existentes entre seus elementos componentes.
Nesse sentido e de acordo com Chizzotti (2010, p. 42), “pretende identificar e descrever
as características do objeto, a fim de explicá-lo, segundo a realidade percebida”.
Participaram do estudo 2 professores do Ensino Médio. O critério de seleção da amostra
foi não-probabilística e por acessibilidade. No quadro 1, apresentam-se as caracterizações dos
participantes.
Quadro 1 - Caracterização dos participantes da pesquisa
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ESTADO TEMPO DE
PROFISSIONAL SEXO FORMAÇÃO
CIVIL SERVIÇO
P1 Masculino Casado História 26 anos
P2 Masculino Casado História 05 anos
Fonte: Dados da pesquisa dos autores

Para seleção dos informantes foram utilizados como critérios de inclusão os seguintes
aspectos: não estar afastado de suas atividades profissionais na escola; trabalhar na escola a pelo
menos 3 (três) anos; ser docente do Ensino Médio; estar em exercício em sala de aula durante o
ano de 2018; tempo mínimo 5 (cinco) anos de experiência em atividades profissionais em sala de
aula. Como critério de exclusão foi considerado não estar contido nos critérios mencionados,
anteriormente, bem como se recusar em participar da pesquisa.
Os instrumentos de coleta de dados corresponderam a entrevistas semiestruturadas,
aplicadas por meio de um roteiro contendo questões abordando os seguintes assuntos: o
entendimento por Libras; a comunicação com alunos surdos; o processo ensino-aprendizagem de
alunos surdos; a presença do intérprete em Libras durante as aulas; relacionamento
professor/intérprete de Libras; a relevância do intérprete de Libras ao processo ensino-
aprendizagem.
Sobre a escolha dos instrumentos, Manzini (1991) esclarece que a entrevista
semiestruturada está direcionada a um assunto, sobre o qual é elaborado um roteiro com questões
primárias complementadas por questões secundárias relacionadas à entrevista. Assim, esse tipo de
entrevista faz com que as informações apareçam de forma livre e as respostas não fiquem presas
a um padrão objetivo. Desse modo, as entrevistas semiestruturadas possibilitam descrever e
compreender a totalidade dos fenômenos sociais, permitindo atuação consciente e atuante do
pesquisador durante o processo de coleta de informações (TRIVIÑOS, 1987).
Os procedimentos ocorreram levando-se em consideração os critérios éticos envolvendo
seres humanos. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
concordando com suas participações e cientes de que os resultados seriam divulgados em
Congressos e em revistas científicas.
Diante do contexto, apresentam-se, a seguir, os resultados encontrados, bem como as
análises e discussões que se fizeram necessárias.

Resultados e discussões

Quando refletimos no modo como a Libras é utilizada na Educação Básica no Brasil,


nos deparamos com demandas variadas. Os professores, alunos e intérpretes em suas vivências
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escolares possuem relatos que nos fazem perceber o quanto a lei nem sempre reflete com a mesma
intensidade na vida prática da comunidade escolar; local no qual a educação acontece de modo
pragmático. Uma pergunta foi direcionada aos professores do Ensino Médio sobre o que
entendiam por Libras. A seguir, seus relatos:
Entendo por Libras a linguagem que é usada pela comunidade surda. Historicamente ela
é um ganho, não só mente na questão educacional, mas também na questão educacional
que teve um processo de educação inclusiva, a comunidade surda pode ter acesso, a partir
claro, de um intérprete dentro da sala de aula, para que houvesse então essa interação, da
comunidade surda e não surda. (P1);
É uma linguagem nova para que tem uma deficiência em algum sentido, nesse caso, a
audição. Então essa linguagem ajuda a facilitar bem o atendimento do aluno. (P2).
Corroborando com Paz (2013), o entendimento dos docentes mostra que eles possuem
conhecimento da necessidade do ensino em Libras para os alunos surdos e que acreditam ser
relevante que tenham em sala de aula um profissional para fazer a intermediação entre o conteúdo
e o aluno. É possível identificar como a questão da inclusão é colocada, de modo que se destaca
o de sentimento de pertencimento ao grupo por ambos os públicos de alunos: surdos e ouvintes.
A obrigatoriedade do ensino de Libras nos cursos de formação de professores para atuarem
na Educação Básica representa uma conquista social e humana, que coloca em evidência os surdos
que durante muito tempo passaram pela educação básica, e alguns até pela universidade, sem ter
seus direitos de se comunicar em sua primeira língua garantidos pela legislação brasileira
(CHAHINI, 2010).
Nesse sentido, quando questionados sobre o domínio da Libras, os professores
responderam que não tiveram nenhuma formação na graduação que abrangesse o ensino de Libras.
Conforme seus relatos, a seguir:
Não sei Libras. Na graduação não tive Libras. Posterior a 2010, dentro dos currículos de
formação de professores foi inserido a cadeira de Libras, anteriormente não havia. (P1);
Na graduação não tive Libras, mas eu já tive uma experiência com alguns alunos, e deu
para ter uma noção. Treinamento alguma coisa que direcionar, tanto é que a gente soube
que iria ter três alunos surdos, eu já fiquei logo apreensivo, mas com presença do
intérprete, tudo ficou bem mais fácil, se não tivesse tudo seria bem mais difícil. (P2).
De acordo com os dados, é possível identificar que, pelo fato de o currículo dos docentes
não contemplar a formação em Libras, essa não foi alcançada nem realizada em formações
posteriores. No contexto, Paz (2013) esclarece que quando os cursos que preparam docentes não
ofertam cadeira de Libras, de um modo geral essa complementação não é algo que motiva os
professores, por conta própria, buscarem por essas experiências e outros meios para adquirirem o
saber que usariam nas aulas. Como aparece na fala de um dos professores, o fato de contar como
o intérprete de Libras faz com que o docente não realize o atendimento ao aluno de modo
sistemático, uma vez que caberá ao profissional da Libras intermediar entre o aluno e professor.
Quando foi questionado aos docentes, como vinha ocorrendo o processo ensino-
aprendizagem do aluno surdo. Os relatos, a seguir, sinalizam que:
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Minha experiência é bem satisfatória, geralmente tem o intérprete. Uma vez tive um
aluno, que era de uma turma de proeja, técnico, a noite e um outro professor estava
desenvolvendo uma luva, em que ele poderia fazer os sinais e o sistema de computador
iria fazer a leitura e transcrevendo isso, e esse aluno estava dentro desse projeto. Então,
eu vejo que a aprendizagem, ela não é a mesma, porque infelizmente porque a gente
depende do intérprete também, algumas categorias na história, algumas explicações
ficam mais complicadas, as vezes o aluno ele não compreendia, eu tinha que tentar uma
outra forma de explicação, para que o intérprete aproximasse mais a linguagem. Mas eu
considero satisfatória dentro desse processo, a interação entre o aluno o intérprete e o
professor. (P1);
À medida que a gente ia ministrando as aulas, com o intérprete ia repassando para os
alunos, se comunicando com eles, assim facilitava bastante, eles olhavam basicamente
para o instrutor, faziam essa combinação. Eu tive uma experiência com três alunos, nesse
ano dois alunos se destacaram muito bem e um terceiro teve uma certa dificuldade, mas
gostei bastante. (P2).
Nas falas dos professores fica evidente a parceria que existe entre o intérprete e o professor,
cada um com seus papeis bem definidos de modo que a metodologia na qual o aluno é ensinado
seja a mais adequada para o bom rendimento dele. Para o que foi planejado aconteça é importante
destacar que os professores costumam previamente passar para o intérprete o plano de aula que
será usado na sala. Desse modo favorece a aproximação do aluno/intérprete/professor.
Nesse sentido, Duarte (2013) esclarece que a atuação do intérprete de Libras será melhor
aproveitada na escola, quando tanto o professor quanto o tradutor estiveram com suas habilidades
junto ao aluno surdo alinhadas. Assim, é importante que o conteúdo seja revisado ante das aulas
para que os sinais sejam precisos e o aluno não apresente dificuldades que possam comprometer
o rendimento cognitivo nessa disciplina e, mais que isso, proporcione a aproximação entre o
professor e o intérprete precisa ser a mais amigável possível, afinal, ambos estarão dividindo a
mesma sala, o mesmo aluno, ao mesmo tempo.
Sendo assim, o professor é essencial na sala de aula para que o processo ensino-
aprendizagem ocorra de modo sequencial na vida escolar, e o intérprete de Libras é parte
significativa para que o aluno surdo permaneça numa sala de aula regular e consiga, junto com a
turma de ouvintes, desenvolver um conhecimento tão satisfatório quanto os demais. Nesse sentido,
os professores relataram que:
Sem a presença do intérprete fica muito complicado, até porque quando o intérprete
faltava, aí eu trazia o texto para ele e pedia para que ele fizesse a leitura, ai mesmo assim,
tinham alguns termos que estavam no texto. e que ele tinha dificuldade da compreensão,
embora, ele tenha passado pelo processo de letramento na língua portuguesa, mas a língua
de fato oficial deles é Libras. Infelizmente, isso não respeitado. Então, eu tinha o cuidado
de ver o texto, de ver as palavras, mas em algum momento ficava meio complexo mesmo
para ele compreender, assim, é imprescindível para mim que o intérprete esteja na sala
de aula. Claro que se talvez, eu tivesse uma formação em Libras, e ai para tirar uma
dúvida ou até mesmo tentar dirimir alguma questão para ele seria muito bom, mas como
nós temos trabalhado com a realidade, não com o ideal, o intérprete ele é fundamental,
se não tem o intérprete fica muito complexo essa aprendizagem do aluno, ele vai
aprender, eu nunca tive nenhuma dificuldade com esses alunos, eles sempre tiraram boas
notas, tinham um bom rendimento na disciplina de História, mas algumas terminologias,
algumas explicações, ai já fica mais complexo, uma vez trabalhando a Segunda Guerra
Mundial, o texto tinha alguma palavras em alemão, e que eu, as vezes, tinha que fazer
adequação para poder haver um atendimento, porque o intérprete, as vezes não
encontrava uma aproximação na hora de fazer o sinal. (P1).
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Sim, eu percebi que a própria turma aprendeu um pouco essa linguagem. No segundo
semestre principalmente, já aprendia um pouco, já se comunicavam. Percebi que eles têm
uma aprendizagem muito boa, tirando essa deficiência que a gente diz, entre aspas, eles
desenvolvem muito bem, até melhor do que a gente imagina. (P2).
Conforme os dados, os professores não tiveram dificuldade com alunos surdos, no entanto
atribuem parte desse bom rendimento a presença do intérprete em sala de aula. Nesse momento,
ainda segundo P1, a falta da formação mínima em Libras pesa. Já P2, pontua que com passar do
tempo a comunicação entre professor e aluno surdo melhora e alguns sinais se tornam mais fáceis
e mais compreensíveis, contudo, sem o intérprete nem esse mínimo de interação seria possível.
Senso assim, é possível identificar que na ausência do intérprete de Libras por qualquer
motivo na sala de aula, junto ao professor e ao aluno surdo, o rendimento do discente fica abalado.
Como pontua o P1; às vezes mesmo com o profissional da Libras, alguns sinais em línguas
estrangeiras como alemão e russo não são fáceis de adequar ao vocabulário do surdo. Imagina sem
a presença do intérprete, como fica difícil fazer esse arranjo.
Diante dos fatos, questionou-se qual a relevância desse profissional ao processo ensino-
aprendizagem. Os relatos, a seguir, demonstram que:
Importantíssimo. A atribuição do intérprete é fazer a relação entre o professor e o aluno
funcionar. A relação ensino-aprendizagem, para poder realmente fluir isso. Não que ele
vai ter que ter o conhecimento de História, ter um conhecimento de sua própria opinião
de outros fatos, mas é importante que ele saiba que ele é peça fundamental nesse processo
de ensino aprendizagem. Mas a relação professor-aluno continua sendo minha
responsabilidade enquanto professor. Assim como a responsabilidade pelo ensino e
aprendizagem. Como se nós estivéssemos, por exemplo, o professor de História brasileira
e fosse dar aula para chineses, eu não sei o mandarim, é necessário que haja o intérprete,
ele só vai de fato fazer a tradução simultânea, isso é uma questão linguística, mas no caso
da Libras, adequar sinais eu pouco mais complexo, mas dá para fazer uma relação até
porque há palavras no português que não existe no inglês, no francês ou no alemão. Então
eu acho que a relevância do intérprete é fazer a ponte, professor aluno. (P1).
Atuação do intérprete de Libras é importantíssimo, pois nós não fomos preparados em
nossa graduação, então, a presença do intérprete facilita muito, faz com que a gente se
sinta mais seguro. (P2).
De acordo com Keli e Oliveira (2016), é parte da atribuição do intérprete fazer fluir a
comunicação entre o professor e o aluno. Desse jeito ambos podem trabalhar caminhos que levem
o aluno surdo a compreender o conteúdo ministrado em sala de aula.
Portanto, quando o docente percebe que a responsabilidade pelo aluno surdo não é apenas
dele, mas de a comunidade escolar, e que a escola se preocupa em fomentar meios para que o
ensino e aprendizagem aconteça com significado cognitivo para o aprendiz, o psicológico do
professor fica mais leve e essa sensação é prolongada com a presença do intérprete de Libras na
sala de aula. Assim, o professor percebe que a missão de educar o aluno surdo é algo partilhado,
entendendo que a educação enquanto processo difuso acontece em todos os lugares, da escola à
sociedade.
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Conclusões

Retornando aos objetivos pretendidos, os dados obtidos revelam que a presença do


intérprete de Libras na sala de aula faz toda diferença ao processo ensino -aprendizagem em relação
aos discentes surdos. No entanto, mesmo sabendo da importância da Libras no cotidiano da escola, até
pouco tempo essa formação não era oferecida nos cursos de formação inicial de professores, fazendo
com que parte dos docentes que hoje estão em sala de aula não possuam formação mínima em Libras;
fato que gera transtornos na ausência do intérprete de Libras.
Na percepção dos professores, o aluno surdo tem potencial de ter um bom rendimento
escolar, desde que haja o acompanhamento por parte do profissional intérprete, para que o
aluno não fique prejudicado nas temáticas trabalhadas em sala de aula. Para além disso, os
docentes mostram que quando o aluno surdo não possui o suporte do intérprete na aula,
atividades secundarias são realizadas para que ele não fique ocioso na turma, no entanto,
admitem que o rendimento pode vir a ficar comprometido com esse tipo de método usado
como plano “B”.
Dessa forma, as finalidades das atividades desenvolvidas com a mediação do intérprete
consistem em não deixar o aluno surdo à parte do que ocorre em sala de aula. Entendendo que
a interação do não ouvinte com todo o ambiente que perpassa a aula e adjacências será
significativo para que a cognição do surdo seja valorizado assim como a do aluno ouvinte,
para que ao final de cada aula, no momento de uma avaliação, não ocorra discrepância entre
o aluno que ouve e o com surdez.
Sendo assim, a equipe pedagógica da escola, bem como o professor devem aproximar
o intérprete das vivencia do aluno e do planejamento didático-pedagógico, para que na
regência em sala de aula não venha a ocorrer ruídos que possam atrapalhar o entendimento do
aluno surdo, devido não dominação do conteúdo e por falta de comunicação entre o professor
com o intérprete de Libras.
Nesse sentido, ainda é evidente que a não formação em Libras leva o professor a ficar
inseguro quando tem que interagir diretamente com o aluno surdo. Nesse sentido, se houver
interesse dos órgãos, que fazem a gestão da educação na rede estadual, em oferecer formação
continuada, adequada, que alcance todos os docentes, a lacuna do desconhecimento da Libras
pode ser resolvida a médio e longo prazo.
A percepção dos professores é animadora em relação a inclusão do aluno surdo na sala
de aula regular, ao ponto de afirmarem que em muitos casos o desempenho do aluno surdo é
até maior que a do ouvinte, com isso, fica explicito a importância da aproximação entre os
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diversos, de modo que as aprendizagens possam ser múltiplas, respeitando a cultura de cada
indivíduo envolto na comunidade escolar.
Constatou-se, também, que as atividades desenvolvidas pelo intérprete de Libras na
concepção dos participantes, devem ser fomentadas na escola, imbricada numa política de
acolhimento para que esse profissional possa sentir sua relevância e significação junto ao
aluno surdo. Outro aspecto revelado foi de que a condição da deficiência do discente não é
determinante para classificá-lo como limitado na construção do conhecimento histórico, mas,
que com ajuda do intérprete e com a parceria do professor muitas aprendizagens podem ser
construídas.
Considera-se, finalmente, que as atividades do intérprete de Libras desenvolvidas na
escola junto ao aluno surdo no ensino médio é de extrema relevância, visto que essa etapa da
educação básica busca consolidar todo o conteúdo que o currículo demandou para formar o
cidadão para o convívio social, para o trabalho e prosseguimento nos estudos a níveis mais
elevados de ensino (BRASIL, 1996). Apesar da formação inicial dos professores não
contemplar a cadeira de Libras e esses não disporem de uma formação continuada na área, a
assistência ao aluno continua acontecendo numa parceria entre professor, intérprete de Libras
e gestão escolar. Assegurando, assim, a isonomia nas condições de permanência na sala de
aula.
Espera-se que esse estudo venha a contribuir com maiores esclarecimentos sobre a
relevância da Libras e do intérprete de Libras no âmbito da educação básica, bem como
desperte o interesse em outros pesquisadores para o aprofundamento desse olhar sobre a
realidade que vive o professor e o aluno nas sala de aulas das escolas brasileiras, em especial
as públicas.
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REFERÊNCIAS

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abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098,
de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 2005. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm>. Acesso em: 1º
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gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência
ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20
dez. 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm>. Acesso em:
10 abr. 2019.

______. Lei n° 12.319, de 1º de setembro de 2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e


Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12319.htm. Acesso em: 10 abr.
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A IMPORTÂNCIA DO LÚDICO NA APRENDIZAGEM: UM ESTUDO NA UNIDADE


INTEGRADA RAIMUNDO AQUINO MACEDO

THE IMPORTANCE OF PLAY IN LEARNING:


A STUDY IN THE RAIMUNDO AQUINO MACEDO INTEGRATED UNIT

Antônio de Assis Cruz Nunes (orientador)


Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
Professror do Programa de Pós-Graduação em Gestão ee Ensino da Educação Básica
Luis Félix de Barros Vieira Rocha
Mestre em Educação: Gestão de Ensino da Educação Básica pela Universidade Federal do
Maranhão
Maria Neuraildes Gomes Viana
Especialista em Gestão Pública Municipal pela Universidade Estadual do Maranhão
Cecilna Miranda de Sousa Teixeira
Graduanda em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Maranhão
Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: a ludicidade é um tema que vem ocupando cada vez mais espaço entre as estratégias de
ensino, principalmente nas classes das séries iniciais. Este estudo teve como objetivo geral analisar
o lúdico como importante metodologia na aprendizagem em sala de aula de forma que contribua
com o aprendizado da criança. Será mostrada a importância do lúdico no processo de socialização
das crianças como também sua importância no processo ensino e aprendizagem, através dos jogos,
do brinquedo, das brincadeiras. A pesquisa de campo teve sua atuação realizada na Unidade
Integrada Raimundo Aquino Macedo, com duas professoras do ensino Fundamental, efetuado por
meio de um questionário com questões fechadas, procurou-se conhecer como é aplicado o lúdico
nas atividades escolares, a percepção das professoras sobre o brincar na educação, em que
situações são aplicadas o lúdico, se este é parte do planejamento ou proposta pedagógica da escola
e quais os recursos utilizados para trabalhar o lúdico. Com intuito de fundamentar este TCC
procurou-se desenvolver uma pesquisa bibliográfica para maior respaldo teórico e encontrar as
respostas nas hipóteses. Desta forma, entende-se que esta pesquisa possa estar contribuindo de
maneira positiva para os educadores que se preocupam com o desempenho na Educação das
crianças, auxiliando com conteúdos sobre a atividade lúdica para o desenvolvimento da criança,
tornando suas aulas mais motivadoras e sedutoras. Conclui-se que o lúdico é um recurso valioso
no processo de ensino-aprendizagem, e que deve ser elaborado a partir de atividades planejadas
de maneira consciente visando um aprendizado efetivo e contribuindo para o desenvolvimento
pleno da criança.
Palavras-chave: Lúdico. Educação. Ensino Aprendizagem. Planejamento.
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Abstract:The playfulness is a topic that is occupying more and more space between teaching
strategies, especially in the early grades classes. This study aimed to analyze the playful as an
important methodology in learning in the class room in order to contribute to the child's learning.
The importance of playfulness in the process of socialization of children as well as their
importance in the teaching and learning through games, toy, the games will be shown. The field
survey's operations were carried out in the Integrated Unit Raimundo Aquino Macedo, with two
teachers of elementary education, conducted through a questionnaire with closed questions, we
tried to understand how the playful is applied in school activities, teachers' perception about the
play in education, where situations are applied the playful, if this is part of the planning or school's
educational proposal and the resources used to work the playful. Seeking to support this TCC we
tried to develop a literature search for greater theoretical support and find answers in the events.
Thus, it is understood that this research can be contributing positively to the educators who care
about the performance of children in education, assisting with content on the play activity for the
development of the child, making his most seductive and motivating lessons. It follows that the
playful is a valuable resource in the teaching-learning process, and should be drawn from planned
activities consciously aimed at effective learning and contributing to the full development of the
child.
Keywords: Recreation. Education. Learning Education. Planning.

1 INTRODUÇÃO

Atualmente tem-se questionado muito sobre a educação em nosso sistema escolar. Novas
técnicas e métodos são introduzidos a cada dia como objetivo de proporcionar um melhor
desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem, com vistas a atender as exigências desse novo
contexto marcado pela revolução da ciência e tecnologia que está exigindo consequentemente dos
sistemas educativos a formação de pessoas reflexivas, críticas e autônomas para que possam
conviver e contribuir como desenvolvimento da sociedade.
Um dos recursos pedagógicos que o professor pode utilizar para estimular o
desenvolvimento cognitivo dos alunos são as brincadeiras e jogos educativos, pois, brincando,
acriança satisfaz sua curiosidade, os processos mentais rudimentares transformam-se em
processos mentais mais organizados e estruturados, proporcionando atividades desafiantes,
motivadoras, com a participação ativa da criança.
A escolha deste tema foi devido à percepção dos professores com as dificuldades na
utilização do lúdico, o qual propõe mudanças no ambiente pedagógico e que, além de permitir um
ensino dinâmico e eficaz, oferecerá várias oportunidades para que a criança aprenda de forma
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prazerosa, possibilitando dessa forma uma aprendizagem criativa ao utilizar o jogo lúdico. A
pesquisa aqui realizada tem como justificativa a necessidade de mudanças no contexto
educacional, no qual o professor é um dos principais protagonistas. Portanto, sua formação e
prática educativa são motivos de estudo para que haja mudanças as quais o lúdico proporcionará,
tais como estimular a criança a desenvolver a imaginação e a criatividade, visando contribuir para
diminuir os altos índices de fracasso escolar.
Este artigo tem por objetivo analisar o lúdico como importante metodologia na
aprendizagem em sala de aula de forma que contribua com o aprendizado da criança, bem como
conhecer o planejamento que é realizado pelos professores para utilizar lúdico na aprendizagem;
analisar de que maneira o mesmo é utilizado na prática em sala de aula; além de verificar a
contribuição dos jogos lúdicos para o rendimento no aprendizado do aluno.
Entendendo-se que as brincadeiras fazem parte integral da vida da criança, surge este
estudo com a finalidade de conhecer o lúdico no processo de ensino-aprendizagem em uma escola
na cidade de Bacabeira: Unidade Integrada Raimundo Aquino Macedo, através de uma pesquisa
de campo junto a professores do Ensino Fundamental.
Para delinear o estudo este se compõe das seguintes partes: primeiramente, faz-se uma
abordagem sobre a história do lúdico; no segundo momento o texto descreve sobre o lúdico na
aprendizagem; no terceiro momento as contribuições de Vygotsky, Piaget sobre a ludicidade; e no
quarto momento discorre sobre a metodologia utilizada para atingir o objeto de estudo. No quinto
momento traz uma pesquisa de campo realizada na Unidade Integrada Raimundo Aquino Macedo,
em que se procura conhecer a concepção do lúdico pelas professoras e como este é trabalhado no
Ensino Aprendizagem. No sexto momento análise dos dados coletados durante a pesquisa de
campo feita com educadores que atuam no Ensino Fundamental na Escola escolhida. Por fim,
fazem-se as considerações finais.

2 O LÚDICO NA EDUCAÇÃO: considerações históricas


O lúdico faz parte da nossa epistemologia desde a pré-história. Atualmente é uma das
práticas que mais tem alcançado destaque no meio educacional, por seu caráter motivacional e
prazeroso, que poderá resultar em maior interesse, concentração e produtividade.
O jogo e a brincadeira estão presentes em todas as fases da vida dos seres humanos,
tornando especial a sua existência. De alguma forma o lúdico se faz presente e acrescenta um
ingrediente indispensável no relacionamento entre as pessoas, possibilitando que a criatividade
aflore. Ele pode trazer à aula um momento de felicidade, seja qual for a etapa de nossas vidas,
acrescentando leveza à rotina escolar e fazendo com que o aluno registre melhor os ensinamentos
que lhe chegam, de forma mais significativa.
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O lúdico em sala de aula é ingrediente importante para socialização, observação de


comportamentos e valores. No ensino aprendizagem, é importante que o professor possua o perfil
para a prática de uma pedagogia relacional, servindo como mediador ao conhecimento, fazendo a
interação do aluno com o meio, servindo de base para a aprendizagem. Acredita-se que aprender
é construção, ação e tomada de consciência.
Para que a aula se torne significativa, o lúdico é de extrema importância, pois o professor
além de ensinar, aprende o que o seu aluno construiu até o momento, condição necessária para as
próximas aprendizagens. Assim o surgimento dos objetos lúdicos está diretamente relacionado
com alterações históricas. Fundamenta-se também no fato de os instrumentos pedagógicos terem
se modificado e a própria evolução humana passou a exigir para seu domínio capacidades
múltiplas cada vez mais refinadas. O lúdico aparece então como uma alternativa eficaz para o
desenvolvimento da criança passando a fazer parte do processo educacional. Entretanto, urge
entender como esse processo se deu através da história em que o lúdico se tornou presente na
educação.
As primeiras teorias sobre o brincar infantil surgiram no século XVIII e foram
denominadas de “Teorias Clássicas do Brincar”. Segundo Santos (2000, p. 16), “as brincadeiras e
os divertimentos ocupavam lugar de destaque nas sociedades antigas”. Porém, o ato de brincar e,
principalmente jogar, apresentava dois aspectos contraditórios: um em que o jogo era permitido
sem discriminação por uma significativa minoria das pessoas, ou seja, era visto como um
divertimento; o outro aspecto do jogo era que este era visto com grande discriminação por parte
da grande maioria, sendo condenado por imoralidade sem exceção, ligando essa atividade a
valores como a religião, por exemplo, valores esses, que se propagam até hoje em muitos países e
entre muitas pessoas.
Por volta dos séculos XVII e XVIII alguns especialistas passaram a ter concepções
diferentes, mais modernas em relação aos jogos e às brincadeiras, pois, a infância, passou a ser
vista por essas pessoas de outra maneira. A partir daí as brincadeiras foram classificados como
más, portanto, proibidas, e brincadeiras boas, permitidos assim à sociedade, estendendo-se essa
classificação também às crianças.
A partir daí várias instituições infantis desenvolveram nas primeiras décadas deste século
atividades envolvendo jogos e brincadeiras influenciadas por princípios oriundos de Froebel, e de
escola novistas como Chaparede, Dewey e Montessori. É interessante verificar como esses estudos
repercutiram na introdução de jogos, concebidos ora como ação livre da criança ora como
atividade orientada pelo professor na busca de conteúdos escolares.
No Brasil, teve início com a vinda dos Jesuítas para o Brasil, e a construção do instituto
dos mesmos, focado na formação do ser humano, através de jogos de exercícios. No caso do ensino
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de Ratio Studiorum, que ensina o Latim elaborando tabuas murais, da seguinte forma, a gramática
aparece em cinco tabelas: a primeira para o gênero e declinação, a segunda para as conjunções, a
terceira para os pretéritos e as duas últimas respectivamente para uma a sintaxe e a outra a
quantidade.
Compreender a origem e o significado dos jogos tradicionais infantis requer a investigação
das raízes folclóricas responsáveis pelo seu surgimento. No Brasil, diversos estudos clássicos
destacam a determinação das origens brasileiras na mistura de três raças ou na assimilação
progressiva, nos primeiros séculos, das raças vermelhas e negras, pela raça branca, na figura dos
primeiros portugueses colonizadores, que influenciaram na origem dos jogos e brincadeiras das
crianças. Com a mistura das populações veio também seu folclore e com ele, as brincadeiras de
roda, os contos, histórias, lendas, e também os jogos, festas, técnicas e valores.
Wekerlin (2004 p. 61) acredita que a maioria das escolas, hoje, ainda tem o ensino centrado
na figura do professor, tendo este último a exclusiva missão de ser um transmissor de informações
necessárias para que os alunos aprendam. As aulas muitas vezes, tornam-se meras repetições de
exercícios educativos, ficando a aula monótona e como consequência vazia, procura-se a solução
com a utilização dos jogos para despertar na criança o interesse pela descoberta de maneira
prazerosa e com responsabilidade.
O acesso gratuito à escola conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(BRASIL, 2000 p.7) em seu artigo nº 2, diz que: “A educação, dever da família e do Estado [...]”.
É condição indispensável para a garantia dessa premissa e para que se complete na totalidade do
seu sentido, deve estar acompanhada de procedimentos que assegurem condições para sua
concretização. O aprendizado acontece de maneira continuada e progressiva e requer ferramentas
que possibilitem seu desenvolvimento, sabendo-se que a criança precisa de tempo para brincar.
Macedo (2000) é bem claro ao afirmar que:

A proposta de um trabalho com jogos não pode ser entendida como um receituário de
bolo, que deva ser seguido fielmente por quem o utiliza. A ideia seria propor algo de
referencial, podendo ser modificado, adaptado, à prática pedagógica, de acordo com as
necessidades de cada professor, e que os jogos sejam sobretudo transformados em
material de estudo e ensino, bem como aprendizagem e produção de conhecimento.

Dessa forma urge um repensar de todos os envolvidos no processo educativo da educação


infantil no sentido de incluir o brincar em suas atividades, mais precisamente na fase da
alfabetização em que a criança está em contato com leitura, escrita, cálculos de maneira mais
dinamizada cujos conteúdos muitas vezes, tornam-se enfadonhos pela maneira como são levados
às mesmas.
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A educação, para ser efetivamente válida precisa partir de um ambiente agradável, lúdico,
prazeroso, colaborando para uma aprendizagem mais ativa, atraente para o aluno, e que, sobretudo
promova, através de jogos, possibilidades de discussão e troca entre alunos e professores.

3 O LÚDICO NA APRENDIZAGEM

A ludicidade é um tema que vem tendo ênfase nos mais diversos setores da sociedade,
visto que as atividades lúdicas fazem parte da vida do ser humano e, em especial, da vida da
criança.
Santos (2000, p. 57) conceituando a palavra lúdico diz que a mesma “significa brincar”
e, nesse brincar, segundo o autor “estão incluídas as brincadeiras, os jogos e brinquedos
e esse brincar, é relativo também à conduta daquele que joga, que brinca e que se diverte”.
Por sua vez, a função educativa do jogo oportuniza a aprendizagem o indivíduo, seu
saber, seu conhecimento e a sua compreensão de mundo.
Dessa forma, entende-se que os jogos, brincadeiras e brinquedos, são atividades
fundamentais na infância visto que, estas atividades contribuem no desenvolvimento da
imaginação, da confiança e da curiosidade, além de proporcionar a socialização do aluno no
mundo em que ele está inserido.
Observa-se que todas as crianças, em todas as épocas, passam a maior parte do seu tempo
brincando, e sobre essa questão, vários estudiosos no assunto têm concepções semelhantes em
relação à importância desse ato, no desenvolvimento da criança, no que esses estudiosos foram
unânimes em reconhecer que a criança, ao brincar, adquire experiência, ou seja, o brinquedo
proporciona o aprender-fazendo, além de desenvolver o senso de companheirismo e a criatividade.
Para alguns teóricos como Bittencourt & Ferreira (2002, p. 12) o termo jogo e brincadeira
são sinônimos, são empregados em diversos contextos, situações, enquanto que outros diferem
quanto à concepção, identificando suas características particulares, diferenças e situações em que
são utilizados. Entretanto, todos concordam com o papel desempenhado por estes recursos para
estimular o desenvolvimento da criança. È através do jogo, da manipulação de brinquedos e da
participação em brincadeiras que são possibilitadas a vivência de situações do seu cotidiano, a
resolução de problemas, onde a própria criança toma iniciativa para a escolha de soluções
iniciando a construção de sua autonomia.
Nessas características, observa-se o desenvolvimento infantil em todas as áreas, pois, a
brincadeira, é a melhor maneira da criança se comunicar, interagir com outras crianças, aprender
sobre o mundo que a cerca e assim, se integrar a ele. É na atividade lúdica que a criança aprende
a conviver com os diferentes sentimentos que fazem parte de sua realidade interior, inclusive a se
conhecer melhor e a aceitar o outro, organizando assim, segundo Silva (2004, p.10). “Suas
relações emocionais e estabelecendo relações sociais”.
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Dessa forma, pode-se dizer que o lúdico na escola como recurso pedagógico tem um efeito
riquíssimo na educação infantil na busca da valorização do movimento, das relações de
solidariedade. Por isso, segundo Maluf (2000, p.1) “é necessário que desde a pré-escola, as
crianças tenham condições de participarem de atividades que deixem florescer o lúdico”.
Essas habilidades aumentam com a idade da criança, daí ser importante observar e respeitar
as fases por que passa a criança. Essas fases, segundo Piaget, são: Sensório-motor (0 – 2 anos);
Pré-operatório (2 – 7 anos); Operatório-concreto (7– 11 anos); Operatório-formal (11 – 15 anos).
Dessa forma, quando a criança está na fase da educação infantil, entre os 4 e 5 anos de idade,
apresenta características que devem ser observadas pelos educadores pois estas permitem a
aplicação da atividade lúdica de modo que o procedimento de aplicação na metodologia, esteja de
acordo com as necessidades específicas de cada faixa etária.
Nessa fase é importante atentar para as necessidades físicas e psicológicas da criança,
planejando atividades que trabalhem com o intelecto, com o corpo e com o social, onde essas
atividades têm como objetivo ajudar a criança a entrar em contato com o mundo do conhecimento
e da informação e assim, poder desenvolver suas habilidades de criar e relacionar esses
conhecimentos, o que permitirá a essa criança, desenvolver melhor a linguagem, assim como ter
domínio sobre todo tipo de informação, necessárias ao seu crescimento e desenvolvimento como
pessoa.
Daí a importância da inclusão das brincadeiras na vida das crianças em todas as atividades,
como correr, brincadeiras de rua, jogar bola, andar de bicicleta, nadar, pular corda, e outras
atividades responsáveis pelo desenvolvimento da coordenação motora global. Porém, é necessário
também que seja trabalhada a coordenação motora fina o que é conseguido com atividade como
pintura, desenho.
Quando a criança rasga ou amassa papéis, brinca com jogos de montar e encaixar, está
utilizando as mãos e também o raciocínio, a percepção sensorial e a concentração e essas áreas
também podem ser estimuladas como o uso de brinquedos e programas educativos, músicas,
estórias, filmes e livros infantis.
É importante lembrar que toda a atividade gera um estímulo para o cérebro e pesquisas
demonstram que o desempenho da criança na escola, depende, e muito, dessa estimulação, por
isso, é importante que a criança seja estimulada desde cedo, sendo importante que ela frequente a
pré-escola, pois, até chegar ao processo de alfabetização, “ela precisa ter contato como processo
de aprendizagem, e esse contato deverá ser o mais prazeroso possível, pois, essa será a base para
todos os anos que ela passará na escola” (PORTO, 2002 p. 37).
Assim para facilitar a aprendizagem o professor pode utilizar os jogos e brincadeiras em
atividades de leitura (Figura 1), matemática (Figura 2), história, e qualquer outro assunto, porém,
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teóricos e especialistas advertem que é necessário utilizar o lúdico no momento oportuno, visando,
principalmente o desenvolvimento do raciocínio para que assim as crianças possam construir seu
conhecimento de forma descontraída.

Figura 1 – Lúdico nas atividades de português


Fonte: Revista Nova Escola, 2007

Com base em Silva (2004 p. 10) “o lúdico na educação infantil, traz grandes benefícios do
ponto de vista físico, intelectual e social”, a partir da seguinte organização:
Do ponto de vista físico, “a aplicação do lúdico contribui para a satisfação das necessidades
de crescimento e de competitividade, onde os jogos são a base para os exercícios físicos para as
crianças”.
Do ponto de vista intelectual, “o lúdico, através do uso do brinquedo, beneficia a
desinibição, produzindo uma excitação mental, o que também permite que a criança se mostre por
inteira nas brincadeiras e jogos em sala de aula”. (Figura 3).

Figura 3 - Lúdico do ponto de vista intelectual


Fonte: Revista Nova Escola, 2007.

No âmbito social “o lúdico beneficia a criança no sentido de fazê-la relacionar-se de


maneira natural – o real e o seu mundo – em situações vivenciadas através dos símbolos”. Como
benefício didático lúdico na educação infantil transforma os conteúdos em atividades
interessantes, pois, através das brincadeiras e dos jogos, o professor pode repassar com mais
facilidades os assuntos e, assim, a criança também tem mais facilidade para aprender.
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Utilizando o lúdico como recurso didático, o professor pode conseguir com que a criança
mantenha a disciplina durante a aula visto que está ao encontrar prazer no que está fazendo ou
pelo que está sendo apresentado, automaticamente se concentra e assim, a disciplina acontece
automaticamente.
Assim, entende-se que o lúdico no processo de ensino-aprendizagem nas séries da
educação infantil tem grande importância no desenvolvimento da criança, em todas as áreas do
desenvolvimento, além de ser um meio indispensável na promoção da aprendizagem disciplinar o
trabalho do aluno e incutir-lhe comportamentos básicos, necessários à formação de sua
personalidade.
De acordo com Carneiro e Dodge (2007, p.91).

Para que a prática da brincadeira se torne uma realidade na escola é preciso mudar a visão
dos estabelecimentos de ensino a respeito dessa ação e a maneira como entender o
currículo. Isso demanda um corpo docente capacitado para refletir e alterar suas práticas
pedagógicas.

Dessa forma, entende-se que a escola pode e deve reunir todas as condições para que as
crianças em idade de educação infantil, possa se desenvolver no seu todo, plenamente.

3 AS CONCEPÇÕES DE VYGOTSKY, PIAGET SOBRE A LUDICIDADE

A partir da comprovação de que a atividade lúdica está presente na criança desde o seu
nascimento, muitos estudiosos dedicaram-se a estudar sua importância como mediadora da
aprendizagem nas atividades pedagógicas e no desenvolvimento infantil.
Dentre esses estudiosos merecem destaque Vygotsky e Piaget, pois suas concepções sobre
a ludicidade deixaram grandes contribuições para o campo educacional, onde cada um buscou,
através de seus estudos, mostrarem como acontece o desenvolvimento e a aprendizagem da
criança.
Dessa forma, baseados nas ideias de teóricos como Vygotsky e Piaget, uma vez que o brincar
permite á criança uma evolução no desenvolvimento tanto física quanto emocional e social, a
escola, principalmente na fase da pré-escola ou educação infantil deve facilitar a aprendizagem
utilizando-se de atividades lúdicas que criem um ambiente alfabetizador para favorecer o processo
de aquisição de autonomia da aprendizagem. O saber escolar deve ser valorizado socialmente e a
alfabetização deve ser um processo dinâmico e criativo através de jogos, brinquedos, brincadeiras
e musicalidade (Figura 5) (LIMA, BITTENCOURT e FERREIRA, 2002).
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Figura 05 – Musicalidade na escola


Fonte: Revista Nova Escola,

3.1 A perspectiva sócia interacionista sobre o lúdico com Vygotsky

Na perspectiva sócio histórica elaborada por Vygotsky e seus colaboradores, a escola, seus
conteúdos e as relações pedagógicas nela realizadas podem desempenhar uma função de andaime
que impulsiona o desenvolvimento infantil. Dessa forma, é importante propor desafios para todas
as crianças para que possam avançar no seu aprendizado. A apropriação do repertório de
brincadeiras e jogos que constituem o patrimônio cultural, bem como as atividades lúdicas, são
um bom caminho para que as crianças, em interação com pares e utilizando estratégias cognitivas,
desenvolvam as funções mentais superiores associadas ao pensamento e a linguagem.
Vygotsky (apud KISHIMOTO, 2005) indica, ainda, a relevância de brinquedos e
brincadeiras como indispensáveis para a criação de situações imaginárias, e revela que o
imaginário só se desenvolve quando se dispõe de experiências que se reorganizam. Segundo ele,
a criança, por meio da brincadeira, reproduz o discurso externo e o internaliza, construindo seu
próprio pensamento. Ao brincar, ela movimenta-se em busca de parceria e na exploração de
objetos, comunica-se com seus pares, se expressa através de múltiplas linguagens, descobre regras
e toma decisões. Assim desenvolve dimensões que também são importantes no aprendizado dos
conhecimentos escolares.
Corrobora com o autor que explica que o jogo é a atividade principal da criança, através
do qual esta aprende os papéis do adulto e suas relações com o mundo. Isso porque a criança, ao
dominar as regras de um jogo, domina seu próprio comportamento, aprendendo a controlá-lo e
subordiná-lo a um propósito definido.
Para Vygotsky (2003) “a aprendizagem e o desenvolvimento estão estritamente
relacionados sendo que as crianças se inter-relacionam com o meio, o objeto e o social
internalizando o conhecimento advindo de um processo de construção”
Partindo de suas investigações sobre o processo de desenvolvimento infantil, Vygotsky
apresenta estudos sobre o papel psicológico do lúdico e sua importância no avanço desse processo.
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A concepção de Vygotsky (2003 p. 5) sobre:

[...] a ludicidade baseia-se na forma como o indivíduo relaciona-se com o mundo exterior
num contexto sócio-histórico-cultural, dando ênfase ao significado da ação do brincar
para a criança, onde estão envolvidas situações imaginárias essenciais para a formação
do pensamento e da subjetividade.

O desenvolvimento cognitivo é o resultado da relação entre a criança e seus pares, “o que


Vygotsky chamou de Zona de Desenvolvimento Proximal – ZDP, que é a diferença entre o
desenvolvimento da criança e o nível que atinge quando resolve alguma situação com o auxílio de
outrem” (ANTUNES, 2003, p.28). Em sua visão, a brincadeira cria uma Zona de
Desenvolvimento Proximal favorecendo na criança um desenvolvimento real. Para Vygotsky
(2003 p.7) “o parceiro da criança no brinquedo, serve como uma forma indireta de consciência,
até que a criança seja capaz de controlar sua própria ação através de seu próprio controle”.
Faz-se necessário destacar que Vygotsky dedica-se mais especificamente à brincadeira de
faz-de-conta ou jogo simbólico, valorizando muito mais o significado que a criança dá ao objeto
do brinquedo, do que ao seu verdadeiro significado.
Para Vygotsky (2003 p. 8), “a criança quando brinca cria uma situação imaginária, onde
há regras de comportamento, que são representadas na brincadeira e há uma relação entre o jogo
e a aprendizagem”.
Quando desenvolve um jogo simbólico, a criança imita comportamentos dos adultos, como
atitudes, valores, hábitos e situações que a prepara para a vida real. Assim, quando a criança brinca
de médico, busca agir de forma mais parecida possível com o que ela observou nos médicos do
contexto real, ou seja, ela cria e se submete às regras do jogo ao representar diferentes papéis.
Kishimoto (2005, p. 61) diz: “A criança não vê o objeto como ele é, mas lhe confere um
novo significado, quando a criança monta em uma vassoura e finge estar cavalgando um cavalo,
ela está conferindo um novo significado ao objeto”.
Portanto, a brincadeira para a criança caracteriza-se pela situação imaginária na ação do
brincar, visto que o brinquedo tanto pode comportar uma situação imaginária, quanto uma regra
relacionada com o que está sendo representado.
Dessa forma, pode-se dizer que a utilização da imaginação pela criança pode ser
comparada ao contexto social vivenciado pela mesma, ao qual permite que ela vá construindo seus
processos de conhecimento.
Observa-se que as maiores aquisições de aprendizagens são conseguidas através da
participação da criança nas atividades lúdicas que futuramente irão lhe servir de base para a vida
toda. Assim, através das interações com os outros e não individualmente é que a criança aprende
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a regular seu comportamento e a resolver seus problemas, pois segundo Vygotsky é de grande
relevância a influência do brinquedo sobre a criança:
Outro aspecto a ser considerado é o papel da imitação na brincadeira, pois é partindo da
imitação como um ato de repetir simplesmente aquilo que viu o outro fazer para realizar uma
atividade conscientemente, é que a criança cria novas possibilidades e combinações e vai
construindo seu próprio conhecimento.
Entretanto, são nas situações de brincar que são colocados questões e desafios para serem
levantadas hipóteses na tentativa de compreender os problemas que a vida apresenta, podendo vir
a ter satisfação ou frustração.
Segundo Rego (2001 p.81), na concepção Vygotskiana a criança apresenta em seu
processo de desenvolvimento dois níveis assim chamados por ele de: real ou efetivo e potencial.
O primeiro refere-se às conquistas já alcançadas e, o segundo relaciona-se às capacidades em via
de serem construídas, ou seja, quando a criança já sabe fazer alguma atividade sozinha, trata-se
do nível de desenvolvimento real, porém quando ela é capaz de fazer algo mediante a ajuda de
outros, trata-se do nível de desenvolvimento potencial, destacando ainda que o espaço existente
entre aquilo que ela é capaz de fazer sozinha e aquilo que ela realiza com ajuda de outros é
chamada por ele de: zona de desenvolvimento proximal.
Para que se compreenda melhor este posicionamento, faz-se necessário destacar a fala de
Rego (2001, p. 83):

Mesmo havendo uma significativa distância entre o comportamento na vida real e o


comportamento no brinquedo, a atuação no mundo imaginário e o estabelecimento de
regras a serem seguidas criam uma zona de desenvolvimento proximal, na medida em
que impulsionam conceitos e processos em desenvolvimento.

Dessa forma, compreende-se que aprender regras, possibilita à criança um avanço na sua
capacidade de representar situações imaginárias, fazer uso da imaginação para desempenhar com
bastante convicção as atividades dos adultos com quem convive.

3.2 A ludicidade na teoria piagetiana

Jean Piaget (apud ALMEIDA, 2003), por exemplo, se refere ao jogo como uma importante
atividade na educação das crianças, uma vez que lhes permite o desenvolvimento afetivo, motor,
cognitivo, social e moral e também favorece a aprendizagem de conceitos. Em suas palavras: “os
jogos não são apenas uma forma de desafogo ou entretenimento para gastar a energia das crianças,
mas meios que enriquecem o desenvolvimento infantil” (p. 25). Defende, então, que as crianças,
ao jogarem, tanto se esforçam em acomodar o que é novo e desconhecido às suas estruturas
mentais quanto assimilam novas informações e modos de resolver situações. “O jogo faz o
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ambiente natural da criança, ao passo que as referências abstratas e remotas não correspondem ao
interesse da criança” (apud ALMEIDA, 2003. P. 24).
O desafio que se colocava, então, era o de assegurar, no ambiente escolar, condições de
aprendizagem que respeitassem as inclinações naturais da infância, e dentre elas, a necessidade de
brincar. A brincadeira proporciona à criança o envolvimento em situações favoráveis à aquisição
de regras, à expressão de seu imaginário, à apropriação e exploração do meio e esses são aspectos
importantes na aquisição de conhecimentos (ROMERA et AL, 2007).
Todos os jogos, de um modo ou de outro, auxiliam o desenvolvimento social dos alunos,
pois ao jogar é preciso obedecer a regras, respeitar a vez de jogar, saber ganhar e aceitar que se
perdeu.
A teoria piagetiana sobre a ludicidade infantil baseia-se na evolução das estruturas mentais,
onde o desenvolvimento da criança acontece através do lúdico, e à medida que isso acontece, a
criança vai construindo o seu próprio conhecimento. De acordo com Piaget, a origem das
manifestações lúdicas acompanha o desenvolvimento da inteligência vinculando-se aos estágios
do desenvolvimento cognitivo.
Segundo este teórico, a origem do jogo ou brincadeira está no bebê e caracteriza-se pelos
primeiros gestos ou ações que se repetem por puro prazer, por ter apreciado seus efeitos. Para ele,
o jogo constitui-se em expressão e condição para que a criança venha a desenvolver-se, pois
quando esta brinca, assimila e pode transformar a realidade. Nesse sentido, Antunes (2003, p. 69)
nos diz que:
Para Piaget, o jogo representa a predominância da assimilação sobre a acomodação. É
uma transposição simbólica que sujeita as coisas à atividade da criança sem limitações.
Assim como a imitação, o desenho e a linguagem contribuem para a construção da
representação pela criança, constituindo atividade essencial nessa fase.

Portanto, para que se possa compreender melhor a teoria de Piaget, faz-se necessário
conhecer os conceitos de acomodação e assimilação, pois eles aparecem ao longo de todo o
desenvolvimento infantil. A acomodação é o processo pelo qual a criança, a partir da interação
com o ambiente externo e da percepção dos objetos que lhe chamam a atenção, modifica sua
estrutura mental.
A assimilação consiste no processo pelo qual a criança incorpora aos seus esquemas
cognitivos elementos do mundo externo, ou seja, à medida que ela vai repetindo determinados
movimentos, vai assimilando as ações representadas por eles. Por exemplo, no processo de
acomodação a criança pode sugar o dedo, segurar e atirar ao longe os objetos e isso faz parte do
ajuste de movimentos e das percepções em relação a esses objetos. Já no processo de assimilação,
a criança repete suas condutas de forma que ao sugar ou agarrar esses objetos, ela os relaciona às
ações representadas por eles. Nessa perspectiva, Antunes (2003 p.39) destaca que Piaget elaborou,
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em seus estudos, uma classificação dos jogos, adotando como critério classificatório o grau de
complexidade mental que cada jogo proporciona à criança:

O estudo mais completo da evolução do jogo na criança é de autoria de Jean Piaget, que
verificou este impulso lúdico já nos primeiros meses de vida do bebê, na forma do
chamado jogo de exercício sensório-motor; do segundo ao sexto ano de vida predomina
sob a forma de jogo simbólico, para se manifestar, a partir da etapa seguinte, através da
prática do jogo de regras (ANTUNES, 2003, p. 11).

Entretanto, Piaget identifica três grandes grupos de estruturas mentais que surgem
sucessivamente na evolução do brincar infantil: o exercício, o símbolo e a regra. A classificação
dos jogos piagetianos, de acordo com Friedmann (2002) encontra-se abaixo.

3.2.1 Jogos de exercício


O jogo de exercício, também conhecido como jogo funcional, representa a forma inicial
do jogo na criança e caracteriza o período sensório-motor do desenvolvimento cognitivo.
Acontece na fase que vai desde o nascimento até o aparecimento da linguagem, pois nesta fase a
criança começa a explorar o próprio corpo de forma espontânea, além de manusear o mesmo
objeto de várias formas e com objetivos diferentes. Por isso a característica principal do jogo de
exercício é a repetição de movimentos e ações que exercitem na criança as funções de andar, correr
saltar e outras pelo simples prazer funcional. Assim que ela aprende a falar, o jogo de exercício
diminui.
Segundo Friedmann (2002 p.30), Piaget distingue ainda duas categorias desses jogos:
“jogos de exercício simples (repetição de condutas e movimentos) e jogos de exercício do
pensamento (fazer perguntas só para falar “por quê?”, inventar e contar fatos sem nexo)”.

3.2.2. Os jogos simbólicos


O jogo simbólico acontece a partir dos dois anos e caracteriza a fase que vai desde o
aparecimento da linguagem até mais ou menos os seis ou sete anos de idade, caracterizando o
momento em que se inicia o aparecimento da função simbólica onde a criança passa a representar
várias atividades relacionadas ao contexto social em que vive, permitindo que ela use sua
imaginação para operar qualquer situação do mundo dos adultos, pois um dos marcos da função
simbólica é a habilidade de estabelecer a diferença entre alguma coisa usada como símbolo e que
significado ela representa, ou seja, o símbolo serve apenas para evocá-la.
Nesse sentido, Friedmann (2002 p. 31) coloca que: “os esquemas simbólicos marcam a
transição entre o jogo de exercício e o jogo simbólico e são a forma mais primitiva do símbolo
lúdico: reprodução de um esquema sensório-motor fora de seu contexto e na ausência de seu
objetivo habitual”.
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Dessa maneira, entende-se que a imaginação da criança elabora um jogo fazendo-a


reproduzir suas próprias ações para mostrá-la para si mesmas e também para os outros.

3.2.3 Jogos de regras


Referem-se aos jogos do ser socializado e se manifestam por volta dos quatro anos,
caracterizando-se pelo aparecimento da linguagem, quando acontece um declínio nos jogos
simbólicos e a criança começa a se interessar pelas regras. Esses jogos desenvolvem-se por volta
dos sete a onze anos, caracterizando o estágio operatório concreto. Neste momento a criança
começa a abandonar o egocentrismo e passa a se interessar por brincadeiras com outras crianças,
passando a desenvolver a afetividade com os companheiros de brincadeira e a seguir as regras
impostas pelo grupo. A sociabilidade desenvolvida nesses jogos consubstancia-se nas regras
sociais que subsistem durante toda a vida do adulto.
Em relação ao jogo de regras, Friedmann (2002, p. 33) discorre:

Os jogos de regras são, na definição de Piaget, combinações sensório-motoras (corridas,


jogo de bolinhas, de bola, etc.) ou intelectuais (cartas, xadrez) com competição e
cooperação entre os indivíduos, regulamentados por um código transmitido de geração
em geração ou por acordos momentâneos.

É importante destacar que, na visão de Piaget, cada etapa do desenvolvimento está


relacionada a um tipo de atividade lúdica que se sucede da mesma maneira para todos os
indivíduos. Portanto, conclui-se que os jogos podem contribuir bastante no processo de construção
do conhecimento da criança, desde que ela possa manifestar-se de forma espontânea, livre, através
do movimento como forma de transpor da inteligência prática para a inteligência teórica.
Tomando como base o papel ativo da criança na construção do conhecimento, destaca-se
o papel do lúdico e suas implicações nesse processo, pois se entende que a utilização de
metodologia lúdica no espaço escolar, motiva e atrai a criança a interagir melhor, favorecendo o
processo de socialização. Segundo Maluf (2000 p. 16), “Trabalhar com educação infantil exige
que os profissionais tenham conhecimento para entender, interpretar e utilizar o lúdico como
recurso auxiliar na construção do aprendizado da criança”.
Nesse ângulo, o uso do lúdico traz em si um valor educativo, pois todos gostam de
“brincar”, assim, atividades lúcidas têm sido usadas como ferramenta pedagógica, levando os
educadores a utilizá-las para melhorar a motivação e o processo de ensino e aprendizagem.
Para Kishimoto (2005 p. 18), “a criança evolui com os jogos e à medida que se desenvolve
faz adaptações destes. O jogo faz parte da descoberta de que a criança tem de si mesma e da
possibilidade de experimentar e de recriar o mundo”. Pode-se concluir que ao brincar a criança
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tem mais liberdade imaginativa, até mesmo cria regras para a brincadeira, criando um jogo para
esta brincadeira, já que todo jogo pressupõe regras implícitas ou explícitas.
De acordo com Antunes (2003, p.14), “a aprendizagem é tão importante quanto o
desenvolvimento social e o jogo constituí uma ferramenta pedagógica ao mesmo tempo promotora
do desenvolvimento cognitivo e do desenvolvimento social”. Portanto, o lúdico não deve ser usado
como apoio didático somente na pré-escola, ele pode possibilitar a motivação e a facilitação para
o aprendizado em crianças maiores, em adolescentes e até mesmo em adultos ou idosos, já que o
brincar é parte intrínseca do ser humano. As atividades lúdicas, se bem preparadas dentro do
contexto que o professor quer trabalhar, estimularão a vontade do aluno e propiciarão a
aprendizagem.
Nesse ângulo, o jogo é o vínculo que une a vontade e o prazer durante a realização de uma
atividade. O ensino utilizando meios lúdicos cria ambientes gratificantes e atraentes servindo
como estímulo para o desenvolvimento integral do discente. O brincar pode ser visto como um
recurso mediador no processo de ensino- aprendizagem, tornando-o mais fácil. O brincar
enriquece a dinâmica das relações sociais na sala de aula. Possibilita um fortalecimento da relação
entre o ser que ensina e o ser que aprende.
As aulas lúdicas podem ajudar a construir saberes a partir de ações e interações com os
colegas, porque corresponderão sempre a novas descobertas, novas noções. Nas aulas lúdicas, o
professor deve ressaltar que brincadeira não é aspecto predominante da infância, mas sim que é
um fator importante do desenvolvimento humano.
Para constatar a aplicabilidade do lúdico na educação atual, apresenta-se uma pesquisa
com os professores do Ensino Fundamental da Unidade Integrada Raimundo Aquino Macedo com
finalidade de entender a percepção destes sobre o lúdico.

4 METODOLOGIA
Os resultados desta pesquisa foram obtidos através de um questionário com questões
fechadas, com duas professoras que se disponibilizaram a participar da pesquisa não havendo
critérios de exclusão, as quais fazem parte do quadro efetivo de funcionárias, localizada na Rua
das Pitombeiras, s/n, no bairro Cidade Nova – Bacabeira – MA.
Salienta-se que as professoras entrevistadas disseram ter entre 7 e 10 anos de docência nas
escolas, tem nível superior em Pedagogia das séries iniciais, porém, nenhuma apresenta
especialização em ludicidade. Como todo trabalho científico o estudo passou por levantamento
bibliográfico colhido em fontes como livros, revistas, publicações especiais e sites da internet,
com fins de embasamento teórico em atores renomados no assunto.
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O universo do estudo foi a Unidade Integrada Raimundo Aquino Macedo, localizada na


Rua das Pitombeiras, s/n° no bairro Cidade Nova, em Bacabeira-MA. A instituição pertence à
Prefeitura Municipal de Bacabeira e foi criado pela lei nº 6.187, de 10 de novembro de 1994,
desmembrado do município de Rosário, reconhecida pela legislação vigente, funcionando em
prédio próprio.
A escola oferece as modalidades de ensino fundamental do 1º ao 5 º ano; e do 6º ao 9° ano
e Educação de Jovem e Adulto. De posse das respostas dos pesquisados, fez-se análise dos
resultados e posteriormente levantadas às questões evidenciadas nesta pesquisa. Após coletados,
os dados da referida pesquisa foram tabulados, extraindo-se a porcentagem e frequência absoluta
e relativa, fazendo-se depois uma comparação com estudos anteriores sobre o tema. Os resultados
encontram-se dispostos a seguir em tabelas.

5 RESULTADOS E DISCUSSÃO DA PESQUISA DE CAMPO


Com a pretensão de retratar de que maneira os educadores estão utilizando o lúdico na
educação das crianças. E se eles estão preparados para incluir o lúdico em suas atividades diárias.
E qual o conhecimento acerca da aplicação deste jogo. O objetivo das questões foi de reunir
informações que possibilitassem fornecer subsídios práticos e elementos reais para melhor
caracterizar o lúdico no contexto da prática pedagógica das docentes do Ensino Fundamental da
escola escolhida.

5.1 Aplicação do lúdico em sala de aula


Nessa questão, indagaram-se os professores se estes aplicam o lúdico em sala de aula e por
que, ao que estas disseram que sim. E quando se indagou o porquê da aplicação do lúdico,
obtiveram-se as seguintes respostas:
“Sim. O lúdico nas atividades em sala de aula facilita a compreensão dos conteúdos além
da criança ter prazer no aprender”.
“Sim, trabalho com o lúdico [...] faz com que a criança aprenda se divertindo, assim fica
mais fácil explicar o conteúdo”. Observa-se nas falas das entrevistadas que estes utilizam o lúdico
por reconhecerem seus benefícios na aprendizagem das crianças.

Tabela 1 - Demonstrativo relativo à aplicação do lúdico em sala de aula das duas professoras pesquisadas do ensino
fundamental da Unidade Integrada Raimundo Aquino Macedo.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Aplicação do lúdico em sala de aula
Sim 2 100
Não 0 0,0
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Total 2 100

Utilizar a ludicidade na sala de aula é uma estratégia educacional rica e motivadora, pois,
significa que o professor não se limita ao livro didático. De acordo com Castro (2005, p.38) “no
jogo ou brincadeiras dirigidas, a criança aprende a aceitar o outro, regras, espera sua vez,
desenvolve a tolerância e a percepção e a criatividade”.

Figura 6- O lúdico no Cartaz de pregas: janelinha do tempo e história dos três porquinhos.
Fonte: Pesquisa in loco, 2012

Estudos demonstram que através de atividades lúdicas o educando explora muito mais sua
criatividade, melhora sua conduta no processo de ensino-aprendizagem e aumenta sua autoestima
(SILVA, 2004 p. 7).

5.2 Tem curso ou treinamento para exercer o lúdico


Nessa questão as docentes entrevistadas disseram que sim, têm treinamento para trabalhar
o lúdico em sala de aula. O treinamento é oferecido pela parceria com a UFMA e a Prefeitura de
Bacabeira, e as duas entrevistadas também disseram que procuram fazer vários cursos por
iniciativa própria, pois, sentem a necessidade de habilitar-se mais tecnicamente nessa área e, uma
vez que trabalham na área da educação, e entendem que necessitavam familiarizar-se melhor o
trabalho com essa metodologia.
Nas falas das entrevistadas pode-se visualizar melhor essa realidade: “O lúdico requer
conhecimento e habilitação, por isso, é necessário investir na formação, assim, eu mesma, por
iniciativa própria, não esperar pela escola ou órgão governamental”.
“Acho que trabalhar com crianças, exige uma formação que vá além da graduação, por
isso fiz um curso sobre lúdico na escola aproveitando a promoção de uma editora, acho
importante...”

Tabela 2 - Demonstrativo relativo ao treinamento especifica para trabalhar o lúdico pelas duas professoras
pesquisadas do ensino fundamental da Unidade Integrada Raimundo Aquino Macedo.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Página 125 de 2230

Tem curso ou treinamento para exercer o lúdico


Sim 2 100
Não 0 0,0
Total 2 100

Assim, observa-se que as docentes se preocupam com sua formação no que tange ao seu
trabalho como docente, pois, segundo GADOTTI (2003 p.30) “o sentido verdadeiro da educação
lúdica, só estará garantido se o professor estiver preparado para realizá-lo e tiver um profundo
conhecimento sobre os fundamentos da mesma”.
Conclui-se que o papel do professor é de fundamental importância para a difusão e
aplicação de recursos lúdicos. O professor ao se conscientizar das vantagens do lúdico, adequará
a determinadas situações de ensino, utilizando-as de acordo com suas necessidades e estará assim
em busca de ações educativas eficazes.
Isso permite assegurar que as docentes entrevistadas reconhecem que a pedagogia através
do jogo oferece algumas vantagens: a ludicidade, a cooperação, a participação, enfim, promove a
alegria, prazer e motivação.

5.3 Concepção dos docentes sobre o lúdico


Perguntou-se às entrevistadas sobre a concepção que estas têm do lúdico e todas
responderam que veem a ludicidade como uma grande aliada da aprendizagem. Porém, em
conversas informais estas disseram que o lúdico é trabalhado como aliado no sentido de fixar o
conteúdo, e acham que isso deve ser bem planejado e trabalhado, pois, o aluno precisa entender
que isso faz parte do seu aprendizado e não é uma brincadeira somente.
Assim, segundo as falas das entrevistadas: “O lúdico é uma realidade na sala de aula onde
trabalho, acredito que facilita a aprendizagem e desenvolve suas capacidades criadoras e
cognitivas. No contexto educacional procuramos integrar todas as disciplinas com o lúdico”.
“Percebo como um bom complemento... procuro sempre utilizar o lúdico de todas as
formas”

Tabela 3 - Demonstrativo relativo à concepção sobre o lúdico das duas docentes pesquisadas do ensino fundamental
da Unidade Integrada Raimundo Aquino Macedo.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Concepção sobre o lúdico atrapalha
Sim 0 0,0
Não 2 100
Total 2 100
Um grande aliado na aprendizagem da criança
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Sim 2 100
Não 0 0,0
Total 2 100

Observa-se pelos depoimentos que todas as docentes que participaram da pesquisa


admitem que o lúdico seja uma ferramenta indispensável no processo de ensino-aprendizagem do
aluno, principalmente da criança em fase pré-escolar. Pois o jogo, compreendido sob a ótica do
brinquedo e da criatividade, conforme Kramer (2004, p.31) “deverá encontrar maior espaço para
ser entendido como educação, na medida em que os professores compreenderem melhor toda sua
capacidade potencial de contribuir para com o desenvolvimento da criança”.
Nessa linha de raciocínio, ao brincar e ao jogar a criança constrói o conhecimento, não só
o conhecimento acadêmico, mas sim o conhecimento do mundo que a cerca, através dos jogos e
brincadeiras as crianças aprendem a se comunicar melhor com o mundo adulto, facilitando seu
processo de socialização. Conclui-se, portanto, que é de fundamental importância o uso de jogos
e brincadeiras vinculado às atividades desenvolvidas na Educação Infantil como um grande
caminho a favorecer a aprendizagem da criança.

5.4 Situações em que aplica a ludicidade


Nessa questão uma professora respondeu que aplica o lúdico em todas as disciplinas e
outra professora disse que aplica o lúdico em disciplinas específicas como Português, Matemática
e Ciências. Em conversas informais, todas afirmaram que trabalham o lúdico também como
recreação, em projetos culturais e em datas comemorativas.
Nas observações in loco constatou-se que nas aulas de português, as professoras utilizam
palavrinhas cruzadas, jogos de dominó das palavras, fantoches, dramatização como recitar poesias
ou ler escurinhas. Uma professora disse utilizar peças em EVA para formar palavras.
Em matemática uma professora disse que utiliza o jogo da memória para fixar a tabuada e
em Geografia, utiliza mapa e globo.

Tabela 4 - Demonstrativo relativo às situações em que a ludicidade é aplicada pelas duas docentes pesquisadas do
ensino fundamental da Unidade Integrada Raimundo Aquino Macedo.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Situações em que aplica a ludicidade
Em todas as disciplinas 1 50
Disciplinas especificas 1 50
Total 2 100
Assim os recursos utilizados pelas docentes entrevistadas são bem criativos e demonstram
o gosto destas em confeccioná-los e, mais importante, sabem como utilizá-los.
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5.5 Planejamento para trabalhar o lúdico


Quando indagadas se a escola tem um planejamento para trabalhar o lúdico estas disseram
que a escola faz um treinamento no início de cada ano e incluem no planejamento o trabalho com
a ludicidade. Na Educação Infantil, o lúdico é planejado em projetos, datas comemorativas,
recreação.

Tabela 5- Demonstrativo relativo ao planejamento para trabalhar o lúdico pelas duas docentes pesquisadas do ensino
fundamental da Unidade Integrada Raimundo Aquino Macedo.

VARÁVEIS NÚMERO %
Planejamento para trabalhar o lúdico
Sim 2 100
Não 0 0,0
Total 2 100

Os teóricos que embasaram este trabalho afirmam que, apesar de existir uma legislação
que respalde o uso do lúdico na educação infantil, Corrobora Maluf (2000 p. 14) “isso não é
respeitado pela maioria das escolas e assim, o brincar, fica fora das salas de aula, principalmente
nessa fase tão rica de fantasias para as crianças”.
Na maioria das vezes, é o professor que toma a iniciativa de preparar recursos lúdicos para
tornar a aula mais motivada.
5.6 Recursos utilizados para trabalhar o lúdico em sala de aula
Aqui os professores disseram que utilizam vários recursos dentre eles destacaram jogos e
brincadeiras, produção de brinquedos com sucatas, fantoches, oficina de brinquedos, enfim, tudo
o que possibilita uma melhor aprendizagem para a criança.
“Brincamos, dançamos, corremos, chutamos, pulamos, arremessamos, cantamos, enfim...
a gente aplica um pouco de tudo”
“Utilizamos fantoches para explicar um assunto mais complexo como, por exemplo,
quando falamos sobre preconceito...”
Segundo Kishimoto (2005, p. 8) “A brincadeira traduz o real para a realidade infantil”.

Tabela 6- Demonstrativo relativo aos recursos utilizados para trabalhar o lúdico pelas duas docentes pesquisadas do
ensino fundamental da Unidade Integrada Raimundo Aquino Macedo.
VARÁVEIS NÚMERO %
Recursos utilizados para trabalhar o lúdico
Através de jogos e brincadeiras 1 50
Produção de brinquedos com sucata 1 50
Total 2 100
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Assim, a pesquisa com as docentes entrevistadas mostrou que estas entendem e aplicam o
lúdico de forma coerente, apesar de não haver espaço no planejamento para a utilização desse
recurso. Em conversas informais, as docentes entrevistadas disseram que gostariam que as escolas
lhes oferecessem mais recursos para que elas trabalhassem o lúdico, pois, assim, o trabalho delas,
com certeza teriam um resultado mais gratificante.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo permitiu um conhecimento mais profundo acerca do lúdico onde se conclui que
este, é relacionado ao brincar, uma atividade que faz parte da vida de todos os seres humanos,
principalmente, da criança.
Ao investigar a formação dos educadores, constatou-se que os mesmos se capacitam para
trabalhar a ludicidade, buscando-se fundamentar-se através de leituras e cursos, participando de
formação continuada, como por exemplo, PNAIC. A experiência em realizar a pesquisa de campo
foi extremamente valiosa para a formação profissional, pois, através desta, pode-se ter acesso a
importantes teóricos que abordam o jogo, a brincadeira, arte e as práticas educativas desenvolvidas
nas instituições educacionais. Por outro lado, os professores, que participaram do estudo, e que
são parceiros de jornada, possibilitaram a troca e a vivência de experiências ricas e marcantes.
Assim, todo o processo permitiu uma formação mais sólida e uma consciência da complexidade e
da importância do trabalho docente.
Entende-se que um professor que não acredite na ludicidade como método de trabalho
pode se perder no discurso, dificultando o acesso ao conhecimento ao invés de facilitá-lo. Ao
mestre não cabe apenas despertar o aprendente através de brincadeiras, mas ajudá-lo a construir
efetivamente seus conhecimentos. Portanto, o professor deve usar a ludicidade como importante
fator de mediação e integração do aluno com a realidade; o aluno não aprende somente na escola,
ou seja, inicialmente na escola, pois tem a função de promover a construção do conhecimento,
assim como todos os níveis de educação.
Diante da pesquisa e do embasamento teórico utilizado, pode-se concluir que o jogo é uma
ferramenta de trabalho muito proveitoso para o educador, pois através dele o professor pode
introduzir os conteúdos de forma diferenciada e bastante ativa. Com um simples jogo o professor
poderá proporcionar apreensão do conhecimento de maneira agradável e o aluno nem perceberá
que está aprendendo.
Aprendeu-se que o lúdico é um recurso valioso no processo de ensino-aprendizagem, e
que deve ser elaborado a partir de atividades planejadas de maneira consciente visando um
aprendizado efetivo e contribuindo para o desenvolvimento pleno da criança.
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REFERÊNCIAS

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Loyola, 2003.

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Vozes, 2003.

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lúdico na alfabetização. UNAMA. Belém – Pará, 2002.

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em setembro de 2019.

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sugestões criativas para sala de aula. Monografia de pós-graduação apresentada à Universidade
Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, 2005.

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FRIEDMAN, Adriana. O brincar na educação infantil à luz do referencial curricular para a


educação infantil e dos PCNS. São Paulo: Moderna, 2002. Disponível em
www.moderna.com.br. Acesso em setembro de 2019.

WEKERLIN, Duglas Filho (2004). Características da escola do século XXI. Disponível em


<http://www.conteudoescola.com.br/site/content/view/77/42>. Acesso em: 19 /09/2019.

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KRAMER, Sonia. Currículo de Educação Infantil e a Formação dos Profissionais de Creche e Pré-
escola: questões teóricas e polêmicas. In: MEC/SEF/COEDI. Por uma política de formação do
profissional de Educação Infantil. Brasília-DF. 2004.

MACEDO, Lino de. Aprender com Jogos e Situações-Problemas. Porto Alegre: Artmed, 2000.

MALUF, Ângela C. M. Tipos de brincadeiras e como ajudar a criança a brincar. Publicado


em 21.05. 2004. Disponível em www.pedagogiaonline.com. Acesso em setembro de 2019.

MALUF, Ângela. C. M. O brincar na escola. Artigo publicado em 2000. Disponível em


www.pedagogiaonline.com. Acesso em setembro de 2019.

PORTO, Cristina. Laclette. Jogos e brincadeiras: desafios e descobertas. Artigo publicado na


PUC - Rio de Janeiro, 2002. P. 33/47

REGO, Tereza Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 11 ed.


Petrópolis: Vozes, 2001.
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ROMERA, Liana et. al. O lúdico no processo pedagógico da educação infantil: importante, porém
ausente. Movimento. Porto Alegre: v. 13, n. 02, p. 131-152, maio/agosto de 2007.

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VYGOTSKY, Lev Semynovich. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Página 131 de 2230

A INTERDISCIPLINARIDADE COMO QUESTÃO: REFLEXÕES SOBRE ARTE,


HISTÓRIA DA ARTE E MUSEU

INTERDISCIPLINARITY AS ISSUE: REFLECTIONS ON ART, ART HISTORY


AND MUSEUM
Mariana Estellita Lins Silva.
Doutora em História e Crítica de Arte.
Professora Adjunta do Departamento de Artes Visuais – UFMA
Eixo Temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Pretendemos contribuir para o debate sobre a interdisciplinaridade no campo da arte e


suas áreas correlatas – especificamente a história da arte e a museologia. Nesse sentido, em um
primeiro momento, construiremos um panorama teórico sobre a constituição dos campos
disciplinares, dentro do escopo epistêmico do estruturalismo, enfatizando os elementos
contextuais que embasaram as disciplinas acadêmicas, que naquele momento estavam em
ascensão. Em um segundo momento, pretendemos argumentar a partir de dois caminhos possíveis:
o primeiro é a reflexão sobre a interdisciplinaridade entre arte, história da arte e museu, que são
construções teóricas eminentemente próximas visto que têm origens históricas e epistêmicas muito
relacionadas. A segunda possível chave de leitura é pensar como a fragmentação dos campos
disciplinares – e o conseqüente desdobramento para a interdisciplinaridade – impactam essas três
áreas do conhecimento, visto que elas se consolidaram justamente no paradigma da
disciplinaridade.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade, arte, história da arte, museu, estruturalismo

Abstract: We intend to contribute to the debate on interdisciplinarity in the field of art and its
related areas - specifically art history and museology. In this sense, at first we will build a
theoretical panorama on the constitution of disciplinary fields, within the epistemic scope of
structuralism, emphasizing the contextual elements that underpinned the rising academic
disciplines. In a second moment, we intend to argue from two possible paths: the first is the
reflection on the interdisciplinarity between art, art history and museum, which are eminently
close since they have very related historical and epistemic origins. The second possible reading
key is to think about how the fragmentation of disciplinary fields – and the consequent unfolding
for interdisciplinarity – impact these three fields of knowledge, since they are consolidated in the
disciplinarity paradigm.
Key-Words: Interdisciplinarity, art, art history, museum, structuralism
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INTRODUÇÃO
A interdisciplinaridade parece ser uma questão premente de debate – mais especificamente
no contexto deste trabalho, para a área das artes visuais. A relação com a antropologia, com
discussões sobre patrimônio, assim como tangências com a história e a museologia, são conexões
importantes para que a ampla área de conhecimento chamada de artes visuais reconheça seus
contornos, seus focos de atuação, e suas delimitações epistêmicas.
Para pensarmos a questão da interdisciplinaridade, é de grande valia retomar alguns pontos
que lhe são estruturantes, como a construção do pensamento disciplinar, a organização do
conhecimento em categorias, e outros elementos desse arco teórico que possibilita o surgimento e
a consolidação da arte enquanto campo. Mais precisamente retornaremos ao processo de
constituição dos campos disciplinares, para buscar perceber possíveis linhas de atuação que se
desdobram para a interdisciplinaridade.
Em um primeiro momento é relevante pensar o campo no sentido de Bourdieu, como um
campo de tensões políticas, com delimitações externas, e com uma dinâmica de forças interiores,
onde há disputa por um poder simbólico, e que envolve atores sociais desempenhando papéis que
viabilizam sua manutenção. Um aspecto fundamental é perceber que há uma coexistência de
campos, que se tocam e se tangenciam, mas que mantém relativa autonomia em relação aos seus
campos correlatos (BOURDIEU, 1983). Desse modo, a partir do momento em que se
fundamentam as disciplinas acadêmicas enquanto campos do conhecimento, é possível reconhecer
suas intercessões ao mesmo tempo em que se distingue suas características específicas. Essa
coexistência e essa linha tênue entre os limites epistemológicos de cada campo, sugere o quanto
essa delimitação é um resultado da atuação de forças políticas, perpetradas por seus atores. Não é,
nesse sentido, um postulado consolidado, imutável. Ao contrário, esses contornos dos campos
disciplinares são construídos na medida de seu desenvolvimento.

Outra visão que parece contribuir para esse estabelecimento de conceitos é a de Michel
Foucault quando fala sobre os campos disciplinares. O autor destaca que o corpus do
conhecimento – mais do que uma busca pela verdade – procura uma manutenção de sua lógica e
dinâmicas internas, expulsando para o exterior tudo o que seus fundamentos teóricos não se propõe
a processar. Sobre isso, Foucault coloca que, além de buscar comprovar uma verdade teórica
supostamente existente, o estabelecimento dos campos disciplinares é a construção de um escopo
teórico que busca delimitar a pertinência de seu léxico. Uma disciplina é a construção de um
sistema dentro do qual se estabelecem conceitos e se constroem consensos. Segundo o autor:

[...] visto que uma disciplina se define por um domínio de


objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições
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consideradas verdadeiras, um jogo de regras e definições, de técnicas e de


instrumentos [...] No interior de seus limites, cada disciplina reconhece
proposições verdadeiras e falsas; mas repele, para fora de suas
margens, toda uma teratologia do saber. (FOUCAULT, 1970, p. 28-31)

E ainda nesse sentido, o autor coloca que uma disciplina consiste em:

[...] um princípio de controle da produção do discurso. [...]


Geralmente se vê, [...] no desenvolvimento de uma disciplina, como que
recursos infinitos para a criação de discursos. Pode ser, mas não deixam
de ser princípios de coerção; e é provável que não se possa explicar seu
papel positivo e multiplicador, se não se levar e consideração sua função
restritiva e coercitiva. (FOUCAULT, 1970, p. 34)

Pensar os campos disciplinares remete ao contexto epistêmico da modernidade européia


do século XIX, quando as disciplinas buscam se consolidar. É importante colocar que uma chave
possível de leitura desse processo, é uma vertente estruturalista que pensa o próprio conhecimento
como sendo passível de distribuição em categorias estanques, delimitadas a priori e externamente,
como estruturas que podem ser aplicadas a diferentes contextos.

Compreendemos o estruturalismo como uma corrente de pensamento que se desenvolve


na Europa no século XIX e cujas características incluem o emprego de terminologias e conceitos
oriundos das ciências exatas aplicados às ciências humanas. Esse mecanismo possibilitou uma
legitimação do discurso das ciências sociais, que estavam em construção, e buscavam se afirmar
como campo do conhecimento, através de uma cientificização de seus métodos. O pensamento
estruturalista postula que é possível utilizar uma lógica padronizada a diferentes contextos, e
quando aplicado à história, antropologia, etc. busca fundamentalmente reconhecer padrões. Há
uma transposição das estruturas linguísticas para os sistemas sociais, econômicos e para outros
planos de análise das sociedades, associando portanto as relações sociais a mecanismos fechados
de funcionamento.

Esse procedimento de proferir leis, cálculos, etc. que pretendem dar conta de uma situação
universal, é muito característico do pensamento estruturalista. Nas ciências exatas as regras são
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postuladas, aplicadas e verificáveis12. Um experimento científico obtém os mesmos resultados


sempre que se consiga manter as mesmas condições ambientais. A aplicação destes parâmetros
para as ciências humanas faz com os fenômenos sociais sejam concebidos como consequência
imediata de regras pré-estabelecidas, como se elas determinassem seu funcionamento ou suas
características fundamentais.

O estruturalismo é, portanto, uma postura metodológica cuja premissa é de que qualquer


atividade pode ser compreendida como uma estrutura, guiada por leis que operam dentro de certos
princípios regulares. Para as ciências humanas, significa pensar os grupos sociais como
mecanismos delimitados para os quais podem ser aplicadas regras externas.

Tornar científicas áreas do conhecimento que até então eram consideradas mais próximas
da literatura por exemplo, traz legitimidade metodológica no momento em que elas buscavam se
constituir enquanto campo. Neste contexto de delimitação das áreas de atuação da história,
antropologia, etc. há também a construção do domínio teórico específico da história da arte. Para
os autores do livro Art Since 1900 o surgimento da história da arte enquanto disciplina só é possível
no momento em que se pode aplicar uma estrutura para compreender o todo. Ou no texto original:

The role played by art history and avant-garde art practice in the
formation of a structuralist mode of thinking is little known today but it is
important for our purpose, specially with regard to the accusation of
ahistoiricism often thrown at structuralism. In fact one could even say that
the birth of art history as a discipline date from the moment it was able to
structure the vast amount of material it had neglected for purely
ideological and aesthetic reasons. (KRAUSS, 2004. p. 34)13

A partir de um olhar retroativo, podemos construir a reflexão de que os processos sociais


e culturais, assim com a produção, circulação e legitimação do conhecimento não cumprem essa

12
O temo ‘verificáveis’ aqui está relacionado à observação, à visão. A consolidação do método científico através do
‘aparato olho-intelecto’, ou seja, o raciocínio desenvolvido a partir daquilo que se vê, pode ser considerado um
desdobramento do pensamento cartesiano originário no século XVII.

13
O papel desempenhado pela história da arte e as práticas vanguardistas na formação de um modo estruturalista de
pensamento é pouco conhecido hoje em dia mas é importante para a nossa proposta, especialmente no que diz respeito
ao “ahistoiricismo” frequentemente trazido no estruturalismo. De fato, alguém poderia dizer que o nascimento da
história da arte como disciplina, data do momento em que passa a ser possível estruturar uma vasta quantidade de
material que tinha sido negligenciado por razões puramente ideológicas e estéticas [tradução nossa]
Página 135 de 2230

premissa estruturalista necessariamente. Esses processos são naturalmente fluidos, dinâmicos,


pluri-laterais. Nesse sentido, a sistematização da produção epistêmica, é visto como um
procedimento artificial, como uma projeção ou uma representação, que embora se busque
estabelecer paralelos, como é de se supor, as relações de conhecimento não seguem à risca esses
artifícios metodológicos. De outro modo: é possível examinar a produção de conhecimento como
sendo uma instância que envolve uma teia de informações advindas de diferentes contextos. Esse
processo orgânico de construção de um saber pode envolver subjetividade, afeto e relações com
diferentes origens epistêmicas. A divisão da produção de conhecimento em categorias é uma
normativa, válida e pragmaticamente utilizável, mas que não suporta a complexidade de fatores
envolvidos nesse processo.

Mas esse contexto da consolidação dos campos disciplinares – o que poderíamos chamar
de disciplinaridade – anterior à interdisiplinaridade – é fundamentalmente o horizonte epistêmico
do museu, da história da arte e da criação de um estatuto de legitimação da própria arte (não que
não houvesse anteriormente processos artísticos e consequentemente ferramentas de atribuição de
valor à arte, mas o modelo disciplinar de construção do campo da arte é oriundo da modernidade
europeia).

Percebemos, portanto, a história da arte, como uma produção da Europa moderna. Ela é
construída a partir dos documentos que subsidiam a elaboração do discurso histórico. Dentre eles
as obras de arte, que incorporadas às coleções dos museus, legitimam essas narrativas. Podemos
afirmar que a prática institucional está alinhada com essas obras de arte ditas tradicionais. Elas
passam por conservação para prolongar sua vida útil, possibilitando que permaneçam ao longo do
tempo, e a sua incorporação às coleções museológicas gera e amplia as possibilidades de produção
de outros documentos sobre elas, fotografias, publicações, citações, descrições, produções críticas,
etc.

Para a documentação museológica, essas obras de arte tradicionais são divididas em


“pinturas”, “esculturas”, “gravuras” etc. Dentro da categoria “pintura”, as obras podem ser
subdivididas pelo suporte (tela, papel, tecido etc) e pelo material (óleo, guache, aquarela, têmpera
etc). O que acabamos de observar é que a documentação museológica é uma espécie de exemplo
modelo, que ilustra com objetos os mesmos movimentos que o estruturalismo propõe com relação
às disciplinas. A documentação age de forma estrutural e a partir da lógica linear que organiza as
linguagens, os estilos e as técnicas. Ou seja, sendo o museu uma instituição que tem seu escopo
técnico e teórico consolidado ao longo do século XIX, a teoria da documentação normatiza a
prática museológica para organizar e sistematizar obras de arte que eram produzidas e
compreendidas dentro de uma lógica hierárquica e linear. É interessante observar como a lógica
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catalográfica do museu é a mesma da delimitação dos campos disciplinares que organiza o


conhecimento em categorias estanques.

Assim, podemos entender a história da arte – enquanto narrativa linear e cronológica de


uma sequência de estilos, determinando o que pode ou não ser considerado arte – como uma
estrutura. Mais do que isso, compreendemos com Hans Belting (2006) que o museu é a instituição
símbolo desta estrutura, quando ele diz que o museu funciona como enquadramento para a história
da arte, ao mesmo tempo em que a constrói, determina, e legitima suas narrativas. Não por acaso
a era da história da arte coincide com a era do museu.14

Na acepção tradicional do termo, museu é um prédio que abriga uma coleção, e que
preserva pesquisa e expõe vestígios materiais produzidos pelo homem. Dominique Poulot –
importante teórico francês pesquisador de museus e museologia – sintetiza seu conceito de museu
a partir de algumas definições, entre elas, destaca-se a seguinte, de 1974 pelo ICOM15:

O museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a


serviço da sociedade e seu desenvolvimento, aberta ao público, e que faz
pesquisas relacionadas com os testemunhos materiais do ser humano e de
seu ambiente, tendo em vista a aquisição, conservação, transmissão e,
principalmente, exposição desse acervo com a finalidade de estudo,
educação e deleite. (POULOT, 2013. p. 18)

Perceber o museu16 como instituição fundamentalmente estruturalista é basilar para


compreendermos a sua relação com a disciplinaridade e esse padrão na formatação da produção e
transmissão de conhecimento.

Ainda no escopo do pensamento do museu enquanto estrutura, é importante trazer


especificamente a questão dos museus de arte. Para tanto, abordadremos discussão de Arthur

14
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naif, 2006

15
International Council of Museums. Em português, Conselho internacional de Museus
16
Utilizamos aqui o conceito de museu tendo como referência apenas a tipologia tradicional. Reconhecemos,
entretanto, que principalmente a partir do século XX surgem novos conceitos, tipologias e formatos de museus.
Página 137 de 2230

Danto e Hans Belting: A história da arte é para ambos, Belting e Danto, uma construção, com
uma lógica própria e um fio condutor que permeia os estilos ao longo do tempo. Enquanto campo,
a história da arte surge no século XIX, e é consequentemente fruto de uma tradição moderna e
europeia, legitimada não apenas por um léxico disciplinar, mas também por um conjunto de
materiais e um vocabulário técnico que, junto com as instituições, pavimentam a construção dessas
narrativas.

Belting coloca que há uma tradição de arte calcada em uma estrutura formal e estilística e
que é corroborada pelas instituições legitimadas como campo da arte. Uma das questões centrais
para o autor é que a história da arte é um enquadramento, que delimita e empresta sentido para a
produção artística. Arte e a história da arte são, portanto, estruturas que se complementam na
produção discursiva. Tal enquadramento é representado pelo museu, o lugar onde se constrói e se
legitima essa narrativa.

Para contribuir com esse argumento, de que a arte e o museu são partes de uma mesma
produção discursiva, é interessante abordar o texto “A Arte da História da Arte” de Donald
Preziosi. De modo geral o autor estabelece uma relação direta entre a museologia e a história da
arte. Mais especificamente ele vai defender que o termo museografia, que poderia ser traduzido
como “museologia aplicada”, nada mais é do que a evidência de seu referencial à produção
artística. Neste caso, a museologia estaria aplicada a quê? À historia da arte, moderna e
hegemônica, e que no contexto da argumentação do autor, é o estabelecimento simbólico dos
Estados Nacionais.

Alguns aspectos da fala de Preziosi nos são particularmente relevantes no contexto deste
trabalho. Ele coloca que o museu, assim como os romances (e aqui é interessante frisar esta
aproximação, no sentido de evidenciar que ambos são histórias fictícias) são artefatos para a
criação da narrativa moderna. Ainda segundo ele, o espaço historicisado da museologia, possibilita
que se lance a luz naquilo que deve ser visto como história da arte, e nesse sentido é em si um
mecanismo de construção do campo discursivo.

Seguindo uma vertente de pensamento bastante afinada com o pós-estruturalismo e


especificamente com o pensamento de Foucault e Derrida, o autor coloca que o museu é um
dispositivo17 ficcional, que atua – de maneira semelhante à religião e ao entretenimento – como

17
A palavra ‘dispositivo’ aqui não se refere ao conceito de Gilles Deleuse. Está sendo utilizada apenas como uma
tradução do inglês ‘device’.
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uma prática ideológica de conformidade social. Para o autor, a exposição é a prática histórica da
arte que constrói gêneros de uma ficção imaginativa.

Para Derrida o arquivo se constitui como construção de uma narrativa artificial,


legitimadora de um discurso hegemônico de um grupo específico. (Importante sublinhar que nós
estendemos ao museu as reflexões que o autor desenvolve em seu livro Mal de Arquivo, por
entender que a além do mesmo escopo técnico, teórico e epistêmico, arquivo e museu possuem a
o mesmo desempenho político e sociológico de que nos fala Derrida). Ao falarmos em impressões
causadas por arquivo ou mesmo em desejo de memória, é necessário que se pense como e por
quem são construídos esses discursos.

Sobre o Mal de Arquivo, vale lembrar esta citação de Derrida:

Pois o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma significação, não
será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior.
Bem ao contrário: o arquivo tem lugar da falta originária e estrutural da chamada
memória (DERRIDA, Jacques, 2001, p. 22)

E ele define arquivo como:

impressão, escritura, prótese ou técnica hipomnésica em geral, não é somente estocagem


e conservação de um conteúdo arquivável passado [...] Não, a estrutura técnica do arquivo
arquivante, determina também a estrutura do conteúdo arquivável, em seu próprio
surgimento e sua relação com o futuro. É também a nossa experiência política do meios
chamados informação (DERRIDA, Jacques, 2001. p. 28-29)

É possível perceber uma relação ainda mais direta com o discurso de Derrida e Foucault,
quando Preziosi diz que o arquivo não é apenas um banco de dados, ou uma acumulação passiva
de objetos ou informações. Pelo contrário, o arquivo é um instrumento crítico em defesa de seu
próprio direito. Nas palavras originais: “This archive, in other words, was itself no passive
storehouse or databank; it was rather a critical instrument in its own right”18 [PREZIOSI, 1998,
p. 1496]

Em outro momento o autor coloca que, se o século XIX é o momento em que o homem
passa a se perceber como um ser histórico, nada mais coerente do que a constituição do museu –
e da história da arte – como uma linha traçada do passado até o presente. Nesse ponto, poderíamos

18
Este arquivo, em outras palavras, não foi propriamente um estoque passivo, ou banco de dados, foi muito mais um
instrumento crítico em defesa do seu prórpio direito [tradução nossa]
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propor uma aproximação entre o pensamento de Preziosi e o argumento trazido por Rosalind
Krauss no livro Art Since 1900. Como já foi visto, o texto estabelece um paralelo entre o
estruturalismo e o surgimento da história da arte, quando coloca que a história da arte precisava
de um ambiente conformado nos moldes estruturalistas – que delimitavam o escopo teórico das
disciplinas acadêmicas – para se constituir como tal19.

A transformação nos campos

A partir do século XX, que no escopo da história da arte coincide com as novas linguagens
que surgem no âmbito da arte contemporânea (mas que é importante que fique clara a dificuldade
de encontrar marcos temporais para processos em desenvolvimento) se intensificam propostas de
abordagens que partem do princípio de fratura dessas fronteiras disciplinares que anteriormente
eram muito rígidas. A interdisciplinaridade traz, nesse sentido, uma possibilidade de – se não
desconstruir, pelo menos fragmentar essa estrutura disciplinar – se pensar na esfera da fronteira,
da borda, do não-lugar, do indiscernimento.

Além da interdisciplinaridade, surgem outras nomenclaturas, relacionadas a movimentos


similares – transdisciplinaridade e multidisciplinaridade são outros exemplos. Não entraremos a
fundo em cada um desses conceitos, mas gostaríamos de destacar que a profusão dessas teorias
epistêmicas que relativizam o rigor das disciplinas acadêmicas, acolhendo teorias que trabalham
a partir de nuances, contaminações, colaborações e co-relações entre as áreas do conhecimento,
são passíveis de uma leitura através do pós estruturalismo.

Apenas a título de contextualização do pós estruturalismo: nos anos 60, a reação à guerra
do Vietnã, os movimentos estudantis, os hippies e outros fatores transformaram o comportamento
e o pensamento dos jovens em todo o mundo. Em Paris, esses movimentos resultaram no que
conhecemos hoje como maio de 1968. Regras cotidianas que eram respeitadas sem grandes
reflexões, começaram a ser questionadas, até que o próprio padrão de produção discursiva é
problematizado. Nesse contexto, a universidade – instância formal de produção do conhecimento

19
FOSTER et al, 2004. p. 34
Página 140 de 2230

– passou a ser vista como parte dessa máquina social, que atua ao lado do governo e da indústria
dentro de uma conformidade da sociedade20.

Houve uma reavaliação das premissas e suposições que embasam um conjunto de


disciplinas acadêmicas reunidas no bojo das ciências sociais. Esse argumento se desdobra em uma
negação da aplicação de metodologias e conceitos das ciências exatas para as ciências humanas.
O pós-estruturalismo quer, portanto explicar o funcionamento do sistema, muito mais do que a
estrutura. (KRAUSS, 2004)

Se a constituição dos campos e das disciplinas acadêmicas seguiu uma lógica estruturalista,
tanto na composição de regras que delineiam seu modo de operação como o seu campo de atuação
(definindo, portanto também valores, crenças, etc.), isso deveria estar vinculado necessariamente
a um contexto social, político, etc, e não poderia ser considerado um padrão universal, como é o
caso das estratificações propostas pelo pensamento moderno que será alvo de críticas pelo pós
estruturalismo.

O pós estruturalismo defende portanto que o estabelecimento de um padrão é apenas uma


escolha de que características serão observadas em detrimento de muitas outras que serão
necessariamente ignoradas. Não são, portanto pré concebidas, ou universais como podem parecer.
A eleição de um padrão é unicamente um desejo de olhar para algo, e por isso é subjetiva, política
e socialmente conduzida. Padrões são apenas anseio por uma percepção, excluindo-se assim
qualquer suposta neutralidade no discurso.

Nesse contexto o conhecimento deixa de ser o conteúdo de uma disciplina autônoma e se


torna disciplinador, marcado por operação de poder. Retomando Foucault:

É que se o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os


gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na

FOSTER, Hal ; KRAUSS, Rosalind ; BOIS, Ive-Alain ; BUCHLOH, Benjamin. Art since 1900.Modernism,
20

antimodernism, postmodernism. Londres: Thames & Hudson, 2004.


Página 141 de 2230

vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que


está em jogo, senão o desejo e o poder? (FOUCAULT, 1970, p. 19)

Podemos observar portanto, que, para o autor, um discurso é, mais do que o ato de proferir
um enunciado ou a comunicação de uma ideia, mas sim uma disputa de poder entre quem fala e
de quem recebe.

Os campos da arte, história da arte e museu

Esse panorama histórico e epistêmico nos leva a duas chaves de argumentação. A primeira
é pensar o quanto o campo da arte está permeado, afetando e sendo afetado pelos campos da
história da arte e do museu. Cada uma dessas áreas possui suas dinâmicas internas próprias, seus
atores sociais específico, um corpus técnico, teórico e metodológico distintos.

Os museus, por exemplo, embora trabalhem também a partir de paradigmas da arte e da


história da arte, se dedicam à estudos que vão desde antropologia, história, e temas que se
relacionam com a constituição específica de seus acervos, até produções teóricas que dialogam
com sua práxis, como a ciência da informação, a documentação e catalogação; a análise do
discurso, comunicação aplicadas às exposições, tecnologia dos materiais, microbiologia e
climatologia associados à preservação, conservação e restauração de acervos; etc..

O que pretendemos evidenciar é que o campo de atuação dos estudos museológicos são
amplos o suficiente para dialogar de modo muito próximo com a arte e ao mesmo tempo seguir
percursos que se aproximam da engenharia, da biologia, da computação, da comunicação, apenas
para citar alguns exemplos.

Do mesmo modo poderíamos elencar aqui uma série de aspectos teóricos do ponto de vista
historiográfico que, embora sejam aplicados à história da arte, se distanciam das questões de
produção técnica e teórica das obras. A prática vivenciada pelos artistas – tanto aqueles que
desenvolvem suas técnicas dentro do escopo material tradicional, como pintura, escultura,
desenho e gravura; ou mesmo os que trabalham pela vertente conceitual – abarca questões que
vão desde temas sobre o desenvolvimento da criatividade e da subjetividade, até os limites de uso
dos materiais, pigmentos, suportes, plasticidades, sobreposições de procedimentos técnicos, etc..
Essas discussões não são penetradas pela história da arte necessariamente.
Página 142 de 2230

Se por um lado buscamos delimitar aqui, brevemente, as fronteiras que distinguem as


especificidades dos campos da arte, da história da arte e do museu, em suas singularidades práticas
e teóricas, por outro lado, concordamos com as correntes teóricas que afirmam que essas áreas se
complementam, se retroalimentam, e se legitimam mutuamente. É o que acontece quando
corroboramos o discurso de Belting, que se debruça sobre esta temática e diz que a obra e a
narrativa sobre ela se completam mutuamente, dando sentido uma à outra. Se tirarmos a imagem
de seu enquadramento, ela perde o sentido. E que esse enquadramento é representado pelo museu,
o lugar onde se constrói e se legitima esse discurso artístico. Importante colocar também que para
o autor o museu também corrobora a lógica da cultura burguesa. Isso se revela na imagem do
homem culto que aprecia uma obra de arte como quem contempla algo divino e distante, que
somente poucos poderiam compreender:

O olhar do amante da arte para uma pintura emoldurada era a metáfora da


postura do homem culto diante da cultura que ele descobria e queria
compreender, na medida em que a examinava, se assim se quiser, em seus
pensamentos, ou seja, quando a contemplava como um ideal (BELTING,
2006, p. 26).

Para finalizar, é interessante pensar os impactos do desenvolvimento de um pensamento


interdisciplinar nessas áreas tão fundamentalmente disciplinares. Para além de pensar as relações
interdisciplinares entre arte, história da arte e museu, gostaríamos de refletir sobre as
transformações que essa mudança basilar na forma como se concebe, se produz e se relaciona com
o conhecimento, impacta nesses campos. Nesse sentido, é interessante retomar a questão do
estruturalismo para evidenciar o quanto esse paradigma moderno do século XIX, que traz como
frutos a consolidação dos campos do museus, da arte (em seu sentido institucional, e legitimado
nesse campos simbólico) e da história da arte.

Estrutura, Meio e Modernidade

A partir da articulação entre os conceitos de Estrutura, Meio e Modernidade, podemos


consolidar um cenário epistêmico a partir do qual sustentaremos nossa análise. Percebemos o
pensamento estruturalista e a condição do meio específico como estando diretamente relacionados
ao pensamento moderno europeu no século XIX. Essa conjuntura funciona como um panorama
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contextual, dentro do qual surge a instituição museológica e a história da arte, e, desse modo,
modela e conduz a constituição de suas práticas. Nesse sentido, essa conjugação entre estrutura,
meio e modernidade, fundamenta a nossa discussão sobre a quebra que a interdisciplinaridade
promove nas áreas da arte, da história da arte e do museu. A problematização do meio atua
simultaneamente como causa e consequência do processo de questionamento do horizonte
epistemológico afirmado ao longo do século XIX.

Visto que nós já nos detemos sobre o estruturalismo, e nesse sentido trabalhamos a partir
do conceito de estrutura, sendo aplicado e desenvolvido na consolidação dos campos disciplinares
no contexto da modernidade européia, cabe agora definir o conceito de meio, que possibilita
desdobrar a reflexão para outros dois conceitos fundamentais na nossa análise: meio específico e
condição pós meio.

Para abordar a arte em sua condição pós-meio, é importante iniciarmos pela noção de meio
específico. Para essa discussão o texto “Rumo a um mais novo Lacoonte” de Clement Greenberg
é relevante, porque o autor parte de um ponto de vista contrário à contaminação entre os meios
artísticos. É justamente por defender a pureza dos meios que o texto nos ajuda a defini-los.
Greenberg coloca que a partir do século XVII, na Europa, a pintura sofre interferência da literatura,
em um movimento que enfatizou o desenvolvimento da narrativa dos temas. E mesmo do ponto
de vista da técnica – para além da construção literária dos assuntos que estão representados nos
quadros – é como se a pintura buscasse ser algo que ela não é. De outro modo: através da
perspectiva, do claro e escuro e outros mecanismos de simulação de volume e profundidade, a
pintura da época se recusa a evidenciar suas características enquanto meio específico, ou seja, uma
superfície plana, bidimensional, sobre a qual se constroem formas e cores. Ele coloca como
“confusão” essa tentativa de um meio se apropriar das particularidades de outro, o que denota uma
valorização das características especificas e um posicionamento contra essa contaminação entre
as artes. O autor atribui às vanguardas a capacidade de trazer a pintura para seu meio específico,
visto que na arte abstrata não há intenção em representar, ou em trazer literariamente nenhum
tema, mas sim, evidenciar os elementos singulares da pintura: a linha, a cor, o plano. Sobre isso
ele coloca:

[...] as artes de vanguarda nos últimos cinquenta anos alcançaram uma


pureza e uma delimitação radical de seus campos de atividade sem
exemplo anterior na história da cultura, as artes encontram-se agora em
segurança, cada uma dentro de suas “legítimas” fronteiras [...].
(GREENBERG, 1940. in: COTRIN, 1997, p. 53)

E continua:
Página 144 de 2230

As artes, portanto, foram tangidas de volta a seus meios, e neles foram


isoladas, concentradas e definidas. É em virtude de seu meio que cada arte
é única e estritamente ela mesma. Para restaurar a identidade de uma arte
a opacidade de seu meio deve ser enfatizada. (GRENBERG, 1940. in:
COTRIN, 1997, p. 54)

O meio específico pode ser definido então por uma combinação entre o suporte da obra e
os materiais utilizados sobre ele, o que possibilita o desenvolvimento de padrões de atuação do
artista sobre esse suporte. Consequentemente passa a ser o conjunto de características
fundamentais que nos permitem enquadrar uma obra de arte em uma determinada categoria. Se a
pintura se constitui por um suporte plano sobre o qual se aplica uma camada de tinta, são as
possibilidades de pigmento (aquarela, guache, óleo, têmpera, etc.) aliadas às diversas qualidades
de suporte (tela, papel, madeira, parede, etc.) que determinarão diferentes formas de manejo,
desencadeando em muitos resultados técnicos. No entanto, em todas as variantes de materiais e
técnicas, considerando que ainda se trata da aplicação de camadas de tinta sobre um suporte plano,
está caracterizada uma pintura. Assim como a escultura – nos atendo às técnicas mais tradicionais
de obras de arte – é definida pela tridimensionalidade, pelas formas construídas com volume.
Ainda nas palavras de Greenberg:

E assim, como na pintura, a planaridade original da tela esticada luta


constantemente para superar todos os demais elementos, na escultura, a
figura de pedra parece estar prestes a recair no monólito original, a peça
fundida parece se reduzir e se homogeneizar numa volta ao magma
original de que brotou, ou tenta lembrar a textura e a plasticidade da argila
em que antes foi trabalhada. (GREENBERG, 1940. in: COTRIN, 1997, p.
57)

O que buscamos evidenciar é que existem relações possíveis entre esses conceitos
(sentimento histórico, estruturalismo, especificidade do meio, modernidade) que nos permite
reunir essas abordagens, e a partir delas estabelecer paralelos entre os diversos enfoques.
Pretendemos estabelecer um paralelo entre a arte moderna e sua determinação enquanto meio
específico, e por outro lado entre a arte contemporânea e a condição pós meio. Em seguida
propomos uma segunda relação entre a especificidade do meio e a corrente de pensamento
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estruturalista, assim como o pós meio como um sintoma de ruptura das estruturas artísticas, e
nesse sentido, afinado com a corrente pós-estruturalista.

Colocando então de modo consolidado: nossa análise sobre este processo de ruptura, estará
baseado na relação estabelecida entre arte moderna / estruturalismo / especificidade do meio; em
oposição à arte contemporânea / pós-estruturalismo / condição pós meio da arte.

Do ponto de vista da produção artística, existem, portanto, tensionamentos das condições


específicas do meio, provocando hibridações e questionamentos sobre a natureza dos objetos. Há
no âmbito da arte moderna e contemporânea, uma problematização do suporte material da obra de
arte que vem acompanhado de uma relativização desses meios. Com iniciativas dos artistas de
interferir no processo artístico tradicional, o meio específico passa a ser requalificado, e essa
dilatação força os limites da linguagem em direção a uma condição pós-médium.

Esse limite do que seja um meio para a arte, acaba sendo definitivamente desconstruído
com as vanguardas do século XX. Os suportes passam a ser também materiais ordinários,
utilitários, lixo, resíduo industrial, etc. As obras podem ser olfativas, perecíveis, performáticas ou
efêmeras, por exemplo, e torna-se cada vez mais incerta a definição de uma obra de arte por seus
elementos materiais. Está posta então a condição pós-médium da arte, onde não há hierarquia de
materiais ou técnicas, nem elementos cuja presença possibilite reconhecer algo como obra de arte.

O que gostaríamos de afirmar é que há uma relação direta entre a condição pós meio da
arte e as rupturas trazidas pelas correntes pós-estruturalistas de pensamento – e consequentemente
pelas relações interdisciplinares de produção de conhecimento. A especificidade do meio se coloca
em alinhamento com o estruturalismo na medida em que se pratica uma lógica legitimada de
produção e circulação artística: de um objeto estético, que utiliza materiais tradicionalmente
identificáveis como suporte de obra, aderindo a um estilo inserido na linha cronológica da história
da arte, que por conseguinte atende a uma demanda de mercado das galerias, etc., mantendo deste
modo todo um sistema em funcionamento.

Assim, em sentido oposto, no momento em que são problematizadas essas estruturas


sociais e institucionais legitimadoras de uma narrativa artística hegemônica é que são
desconstruídos também os meios tradicionais de construção e circulação das obras de arte. O
rompimento com as categorias tradicionais de pintura, escultura, etc., aliado à utilização de novos
materiais, os artistas provocam uma reavaliação do sistema.
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REFERÊNCIAS

BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naif,
2006

BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983

_______________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012

DANTO, Arthur. Após o Fim da Arte. A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo:
Odysseus, Edusp, 2006.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.

DESCARTES, René, 1596 – 1650. Meditações metafísicas / René Descartes ; [tradução Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão]. - São Paulo : Folha de S. Paulo, 2015.

FOSTER, Hal ; KRAUSS, Rosalind ; BOIS, Ive-Alain ; BUCHLOH, Benjamin. Art since
1900.Modernism, antimodernism, postmodernism.Londres: Thames & Hudson, 2014.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em


02 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

GREEMBERG, Clemment. Rumo a um mais novo Lacoonte. In: COTRIM, C.; FERREIRA, G.
Clemente Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Zahar/FUNARTE, 1997.

KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Rio de Janeiro: Arte Ensaios n°17, p.128 –
137. 2005

POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

PREZIOSI, Donald. Epilogue. The Art of Art History. Oxford University Press 1998.Canada.
Página 147 de 2230

A INVISIBILIDADE FEMININA NO CURRÍCULO ESCOLAR: UMA ANÁLISE A


PARTIR DO LIVRO DIDÁTICO

FEMALE INVISIBILITY IN SCHOOL CURRICULUM: AN ANALYSIS FROM THE


TEXTBOOK

Ellen Caroline Da Luz Castro


Estudante de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)

Valdeilson Amaral Moraes


Estudante de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)

Dinalva Pereira Gonçalves


Mestra em Educação
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)

Eixo 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O presente trabalho discute a exclusão das questões femininas no currículo escolar e
tem por objetivo analisar a visão posta sobre a mulher no decorrer da história, trazendo análise de
elementos de livros didáticos. Para efetivação desta pesquisa, nos baseamos em bibliografias que
versam sobre temas correlatos e análises de livros didáticos variados, utilizados em escolas de
Ensino Fundamental. De acordo com o que foi levantado, observarmos que não há tanta
representação da figura feminina nos livros, e quando há, são demonstradas de maneira superficial
e pontual. Outro ponto importante a ser destacado é a clara exclusão, do currículo escolar e dos
livros didáticos, das lutas que as mulheres enfrentaram ao longo dos anos ou que de algum modo
tiveram uma mínima participação, o que denota uma tendência à invisibilidade e silenciamento
das questões femininas no âmbito escolar.

Palavras-chave: Invisibilidade feminina. Currículo escolar. Livro didático

Abstract: This paper discusses the exclusion of female issues in the school curriculum and aims
to analyze the view put on women throughout history, bringing analysis of textbook elements. To
carry out this research, we rely on bibliographies that deal with related topics and analysis of
various textbooks used in elementary schools. According to what was raised, we observe that there
is not so much representation of the female figure in the books, and when there is, they are
demonstrated in a superficial and punctual way. Another important point to be highlighted is the
clear exclusion, from the school curriculum and textbooks, of the struggles that women faced over
the years or that in some way had a minimal participation, which denotes a tendency towards
invisibility and silencing of issues in the school environment.

Keywords: Female invisibility. School curriculum. Textbook

INTRODUÇÃO
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No decorrer da história da humanidade, as sociedades se organizavam de tal forma que,


para o seu bom funcionamento, era necessário definir determinadas funções e comportamentos
para que os indivíduos pudessem viver em grupos. “Essas funções e esses padrões
comportamentais variam conforme diversos fatores, como classe social, posição na divisão social
do trabalho, grau de instrução, credo religioso e, principalmente, segundo o sexo” (Ribeiro, s/a,
online).
No que diz respeito às funções femininas, cada sociedade tratou/trata de uma forma
distinta; no entanto, a maioria delas concebia a mulher como objeto de uso exclusivo masculino,
seja para satisfazer suas vontades sexuais, seja para responsabilizá-la pela educação/cuidados com
os filhos e tarefas do lar.
Felizmente, muitas mudanças ocorreram no decorrer dos séculos. Mulheres conquistaram
e vêm conquistando espaços nunca antes permitidos, a exemplo do direito a frequentar os bancos
escolares, direito ao voto, direito de exercer cargos majoritariamente ocupados por homens, dentre
outros.
Neste trabalho, faremos menção a essas conquistas, além de verificarmos como os livros
didáticos, especialmente da área de História, tratam dessas questões femininas, como as mulheres
estão sendo representadas nesses materiais que foram/são distribuídos nas escolas públicas de todo
o país.

AS HISTÓRICAS CONQUISTAS FEMININAS E SUA INCLUSÃO SOCIAL

Em passos bem lentos as mulheres foram conquistando seus espaços na sociedade. Um


caminho cheio de lutas e inúmeros entraves impostos por uma sociedade culturalmente machista.
Nos séculos passados, a mulher vivia sob os domínios dos homens, sendo privada de certos
direitos e não tendo permissão para fazer suas próprias escolhas. Isso teve início ainda nas
sociedades primitivas, período da história em que a figura feminina era aquela que deveria cuidar
da casa, da criação dos filhos, da alimentação da família e de tudo mais que se fazia necessário:
“A mulher (...) trabalhava a terra, domesticava animais, cuidava das crianças, velhos e doentes,
além de criar vasilhames, utilizar o fogo, preparar ungentos, poções, enquanto o homem ia à caça
de alimentos” (Zuleika Alambert ,2004, p. 27).
Em épocas passadas, não muito distantes, as mulheres eram obrigadas a casar muito
jovens, não possuíam o direito de frequentar a escola e nem tinham oportunidade de escolher em
quem gostariam de eleger politicamente.
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No entanto, a mulher vem ganhando grande espaço na sociedade por sua inteligência,
persistência e dedicação. Atuam em cargos que antes eram destinados apenas para homens, apesar
de ainda existirem grandes diferenças salariais. A autonomia feminina vem crescendo dia após
dia, pois ela consegue tanto manter um lar, cuidar dos filhos, como também sustentar uma vida
profissional estável.
O papel da mulher na sociedade vem sofrendo transformações, fruto de lutas seculares
vencidas e de outras que ainda se encontram nas pautas dos movimentos feministas em todo o
mundo. Se tratando de Brasil, destacaremos, a seguir, algumas das conquistas mais importantes
alcançadas pelas mulheres.
Em relação ao acesso à educação escolar, as primeiras escolas, erguidas por jesuítas,
tinham por objetivo formar a elite masculina da época, excluindo as mulheres desse processo, pois
deveriam se dedicar ao lar e ao casamento, quando muito eram educadas nos conventos para fins
missionários: “no período colonial, as mulheres tiveram acesso restrito ou nulo à escolarização,
podendo em alguns casos estudar em casa, com preceptores, ou em alguns conventos visando a
vida religiosa” (Stamatto, 2002, p.02).
De acordo com Santana (2012), a inclusão das mulheres nos bancos escolares aconteceu
ainda no período colonial, por ocasião das reformas pombalinas, de maneira gradativa e com certas
restrições:

A inclusão restrita das mulheres na escola começou a partir de 1758 e esta situação foi
aos poucos se transformando com a permissão para a frequência às salas de aulas para as
meninas. O ensino era feito separadamente por sexo, ou seja, educadores do gênero
feminino podiam dar aula às meninas e vice-versa. Portanto, jamais as meninas estariam
ao lado dos meninos na mesma sala. Então, quando as meninas puderam sentar-se ao lado
dos meninos? A partir de 1870, quando as escolas protestantes foram fundadas. (Santana,
2012, sp).

Nesse período, arquitetou-se o discurso da “vocação natural” da mulher para o magistério.


Com isso, as mulheres ganharam um certo espaço profissional como professoras por ter “aptidão”
para o ensino de crianças, mas não eram habilitadas para outros tipos de cargos.
Aos poucos, com abertura desses pequenos espaços no magistério, as mulheres foram
alcançando outras possibilidades profissionais como o caso de Ambrosina de Magalhães, a
primeira mulher a frequentar o curso de Medicina, em 1881, da Faculdade de Medicina no Rio de
Janeiro. De acordo com Stamatto (2002), nesse período, 04 mulheres frequentaram esse curso,
porém sempre acompanhadas do pai ou de uma outra mulher com mais idade. Ainda assim, eram
proibidas de acessar as aulas de anatomia e fisiologia.
Um longo caminho estava por ser percorrido. Felizmente, nos dias atuais há uma
quantidade relativamente positiva de mulheres na escola.
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No tocante ao direito ao voto feminino, somente há pouco mais de 80 anos, por volta do
ano de 1932, as mulheres brasileiras conquistaram esse direito, por meio do Decreto nº 21.076,
instituído no Código Eleitoral Brasileiro, e considerado na Constituição de 1934.
Embora o movimento tenha alcançado êxito com a legalização do voto feminino, a luta
não se tratava apenas da possibilidade de voto, mas era uma questão de cidadania. Serem
representadas pela figura masculina, não só por ocasião da escolha dos representantes políticos,
mas em diversas situações da vida social, lhes causava grande insatisfação.
No que se refere à inserção das mulheres no mercado de trabalho, hoje em dia, é algo muito
comum; porém, nem sempre foi assim. Durante muitos anos, seu “cargo” se restringia aos
cuidados com o lar, filhos, sendo submissas aos maridos. Sobretudo, a partir da segunda metade
do século XVIII, esse cenário começou a mudar. Assim que a Industrialização começou a se
manifestar no Brasil, no começo da década de 1940, as mulheres continuavam a função de
administradora do lar enquanto o marido era responsável por sustentar a casa. As únicas mulheres
que não estavam nesse quadro eram as viúvas e as mulheres solteiras (Azambuja, s/a).
Logo que a industrialização foi crescendo no Brasil, o cenário para o público feminino foi
mudando de maneira lenta, mas com um progresso bom para as mulheres, pois elas conquistaram
seu espaço dentro da indústria; entretanto, ainda recebiam um salário inferior em relação aos dos
homens. As verdadeiras mudanças ocorreram em 1970 onde de fato as mulheres puderam exercer
funções fora de casa, graças a movimentos que estavam acontecendo naquela época em busca de
direitos e, assim, conseguiram desempenhar o papel de professoras, costureiras e funcionárias do
comércio (Espindola, s/a).
Atualmente, as mulheres estão ocupando cargos que antes eram designados apenas para os
homens. Hoje, as mulheres podem ser vistas no comando de escolas, universidades, empresas,
cidades e até mesmo países. Contudo, mesmo com essas conquistas alcançadas, ainda não há
igualdade de salários, ainda que desempenhem as mesmas funções profissionais.
Portanto, o papel da mulher tornou-se de extrema importância na sociedade, embora ainda
demandando reconhecimentos. Na visão de Rocha Coutinho (1994):

[...] faz-se necessário remover a posição de obscuridade em que ela se tem mantido por
século dos livros e compêndios tradicionais de história. Afinal sem ela a história mesmo
como tem sido escrita em seu sentido mais amplo e convencional, fica incompleta e,
inevitavelmente, incorreta. Com o tempo, graças a todas as lutas, as mulheres vêm
conseguindo aumentar seu espaço nas estruturas socais, deixando de lado a mera figura
de submissão e assumindo cargos importantes em empresas e na vida pública e política.
(Rocha Coutinho, 1994, p.15).

O feminismo tem crescido na sociedade, apesar de muitas pessoas terem um pensamento


restrito e distorcido sobre sua real definição. Não é uma luta contra os homens ou o antônimo de
machismo, é uma luta pela igualdade entre ambos na sociedade, buscando liberdade individual. É
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preciso, pois, combater a cultura machista, e isso não significa que é um combate contra os
homens.
Os desafios são grandes, mas precisamos trabalhar por uma sociedade cada dia mais justa
e igualitária. Uma das formas mais eficazes para o cumprimento dessa missão é tornar a educação
uma poderosa aliada nesse processo de desconstrução da cultura machista. No entanto, ainda
vemos no âmbito escolar, variadas formas de discriminação contra as mulheres, a exemplo do
próprio currículo que oculta questões importantes como essa.
Nas próximas linhas deste trabalho, demonstraremos como o currículo escolar tem
silenciado as questões femininas, a partir da análise de livros didáticos diversos da área de
História.

REPRESENTAÇÃO DO MUNDO FEMININO NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA

O currículo escolar é um instrumento a serviço da construção de uma sociedade que se


quer e, portanto, a ação pedagógica causa impactos que incidem diretamente na formação social
dos indivíduos. Desse modo, o currículo é seleção cultural e reflete, por meio dos seus conteúdos,
a visão política de quem o organiza e/ou reproduz.
Desse modo, conforme salienta Santomé (2001), o currículo escolar costuma silenciar
conteúdos próprios de determinados grupos sociais como os negros, índios, homossexuais,
crianças, idosos e, dentre outros, as mulheres. O que é facilmente observado em relação a essas
culturas, citadas por Santomé, é que as mesmas costumam ser negligenciadas no currículo escolar,
pois os livros didáticos pouco as representam. No caso das culturas femininas, na maioria das
vezes, o currículo escolar se reporta às mulheres apenas na ocasião das comemorações ao Dia da
Mulher, 08 de março.
Nesse contexto, nos propusemos a analisar alguns livros didáticos da área de História,
especificamente no 6º ao 9º ano, para verificar a existência ou não de referências históricas quanto
ao protagonismo e das lutas femininas, de que forma são abordados esses temas e como as
mulheres estão sendo representadas nesses materiais.

As negações e silenciamentos do mundo feminino no livro didático de história.

Para análises acerca das formas como as mulheres e suas lutas estão sendo representadas
nos currículos, selecionamos alguns livros didáticos da área de História dos anos finais do Ensino
Fundamental, a saber:
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Quadro 1 - Lista de livros utilizados na pesquisa

LIVROS DA REDE PÚBLICA


Título do livro Editora Ano de Ano/Etapa de PNLD Forma de
publicação educação menção neste
artigo
História: Sociedade 6º ano do 2017
e Cidadania FTD 2015 Ensino 2018 Livro A
Fundamental 2019
Projeto Araribá: 7º ano do 2014
História Moderna 2010 Ensino 2015 Livro B
Fundamental 2016
História: Sociedade 8º ano do 2017
e Cidadania FTD 2015 Ensino 2018 Livro C
Fundamental 2019
Fonte: Produzido pelos autores (2019)

Por uma questão didática, nos reportaremos aos materiais analisados, utilizando as
referências Livro A, Livro B e Livro C, conforme discriminado no quadro anterior.
Todos os livros analisados tratam de períodos em que o mundo era dominado por reis e
imperadores, sempre se reportando a homens influentes e poderosos. No Egito antigo, porém,
tivemos uma mulher no mais alto pilar de uma sociedade, a rainha Cleópatra. O Livro A, na página
146, ilustra Cleópatra de 3 formas diferentes, sugerindo que sua aparência real era de uma mulher
negra e não branca como comumente é representada, porém não menciona seus feitos, influência
ou poderio durante seu reinado. Souza et al (2018, p.01), explica essa relação: “o currículo reforça
cada vez mais ideias que tornam o homem como ser central, como o topo da hierarquia social.
Numa perspectiva binária de gênero o currículo educa o homem para ser superior relegado a
mulher a um espaço subalterno”.
Na página 157, o Livro A apresenta um breve texto complementar intitulado “A mulher
no Egito antigo”, pequeno fragmento do livro “As egípcias: retratos de mulheres do Egito
faraônico”, de autoria de Christian Jacq, que relata o papel político e social das mulheres na
formação história do antigo Egito, sociedade na qual desempenhavam importantes funções e
cargos públicos, com exceção do exército.
Em relação às imagens que retratam mulheres na atualidade, encontramos uma ilustração
de um grupo de crianças entrevistando uma médica. O que estava sendo abordado eram as fontes
históricas, destacando a entrevista como estratégia de coleta de relatos orais.
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Ilustração 4- imagem de mulher como profissional representada no livro didático

Fonte: Livro A (2015)

Apesar desta imagem destacar a figura de uma mulher enquanto profissional,


especificamente uma médica (e não um médico como esta profissão costuma ser representada),
não há qualquer tipo de discussão referente à profissão exercida pela entrevistada.
O livro A faz um passeio na “Pré-história brasileira”, discute questões atuais numa relação
entre passado e presente, porém não faz menção a qualquer aspecto que se relacione à história de
luta das mulheres.
O Livro B, 7º ano do EF, organizado pela editora Moderna, publicado em 2010, há uma
certa neutralidade nas imagens que são apresentadas, trazendo obras que retratam homens e
mulheres de maneira “desinteressada”. Também não observamos qualquer referência específica
às questões femininas. Aqui fica clara a forma de silenciamento da cultura feminina, conforme
discute Santomé (2001, p.161): “As culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários e/ou
marginalizados que não dispõe de estruturas importantes de poder costumam ser silenciadas,
quando não estereotipadas e deformadas, para anular suas possibilidades de reação”.
No Livro C, 8º ano do EF, editora FTD, publicado em 2015, encontramos um texto para
interpretação intitulado “O casamento e a família”, da historiadora Claudia Beltrão, que discorre
sobre os casamentos precoces no Império Bizantino. O escrito fala sobre a divisão do trabalho em
que o homem era o chefe e protetor da família e as mulheres as cuidadoras do lar. Contudo, nas
últimas linhas, encontramos uma importante ressalva: “As mulheres das camadas populares não
viviam tão reclusas. Algumas trabalhavam fora e havia muitas atrizes, bailarinas, cantoras e
flautistas. A mais famosa dessas “artistas” bizantinas foi Teodora, que se tornou imperatriz ao se
casar com Justiniano” (Livro C, p.311).
Observamos aqui que vez ou outra uma questão feminina é mencionada, porém de maneira
superficial, sem maiores discussões ou detalhamentos. Santomé (2001) discorre sobre essa
problemática ao destacar que as mulheres e outros grupos sociais sentem-se mal representados na
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escola por suas culturas serem frequentemente negadas ou desvirtuadas no currículo escolar; ou
seja, determinadas questões não são discutidas ou podem assumir um outro sentido ao serem
abordadas.
Apesar do Livro C conter um número considerável de páginas que tratam sobre aspectos
da história do Brasil, apenas no capítulo 2 – A luta pela cidadania, na página 71, o autor traz
imagens de situações em que a cidadania foi reivindicada ou exercida, destacando movimentos
sociais pelo combate e pela criminalização da violência contra a mulher, situando a Lei Maria da
penha como referência.

Ilustração 5 - representação de luta das mulheres no Livro C

Fonte: Livro C (2015)

Essa parte do livro, traz um trecho da lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria Penha,
porém não trata da história de vida da mulher que deu nome a esse dispositivo, nem discute outras
questões relacionadas; a imagem parece de maneira meio descontextualizada. De modo
contraditório, nas páginas 262 e 263 o autor dedica uma seção à biografia de abolicionistas
brasileiros, intitulando de “Homens de luta”.
Em algumas pinturas retratadas nos livros, especialmente quando o tema é sobre os
impérios antigos, é possível ver imagens de mulheres ao fundo, como servas ou esposas submissas
ao rei ou homem de alguma influência naquele contexto.
Encontramos ainda uma imagem que retrata a educação de jovens na era napoleônica. Na
ilustração, há meninas aprendendo sobre culinária, uma das disciplinas destinadas a elas. Um
modelo de ensino que, segundo o texto-base, inspirou vários países do mundo, inclusive o Brasil.
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Ilustração 6 - imagem encontrada no Livro C sobre educação


de meninas durante o império napoleônico

Fonte: Livro C (2015)

O texto destaca que um dos objetivos desse modelo era manter as mulheres submissas aos
seus maridos. Contudo, não faz outros comentários ou qualquer questionamento que direcione a
uma discussão sobre a temática.
De um modo geral, apesar dos livros mais recentes parecerem mais sensíveis à causa
feminina, esses materiais utilizados entre os anos de 2017 a 2019 em escolas públicas brasileiras,
representam as mulheres ainda de maneira muito tímida, pois as poucas vezes em que aparecem é
de maneira muito superficial, sem detalhes ou maiores reflexões. Em todos os livros há
demonstração de homens a frente do governo, da família, do trabalho, enquanto as mulheres
aparecem poucas vezes e sempre com papeis de coadjuvantes. As imagens que fazem referência
às civilizações antigas e medievais trazem ilustrações de homens para representar um governo
forte e implacável. De acordo com Souza et al (2018, p. 02) “é evidente que para que o sistema
dominante prevaleça soberano, o currículo precisa se manter essencialmente masculinizado. Esse
fator impede que novos questionamentos sobre a superação das desigualdades sociais nas relações
de gênero aconteçam”.
Em nenhum dos livros analisados há qualquer menção sobre as lutas das mulheres pela
conquista de seus direitos. Parece que essa parte da história permanece esquecida ou invisível nos
materiais didáticos, pois embora as mulheres tenham participação importante na construção
histórica e social de toda a humanidade, isso pouco é mencionado. As suas lutas não são
evidenciadas em livros mais antigos nem atuais.
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Embora o movimento feminista tenha alcançado êxito em vários âmbitos, ainda há


necessidade de investir maciçamente na educação. “A inclusão das questões de gênero nos
currículos deve ser vista como um compromisso sério e responsável, considerando que a
emergência da temática sugere uma tomada de posição daqueles que estão à frente dos projetos
educacionais das sociedades atuais” (Bezerra et al, 2011, p.09). A questão feminina precisa ser
mais discutida nas escolas e fazer parte permanente dos seus currículos, pois temáticas como as
lutas femininas contribuem para uma educação para o respeito entre homens e mulheres e para a
construção de uma sociedade igualitária e livre do cultural machismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde as primeiras e mais antigas civilizações, homens e mulheres desempenham papéis


diferentes na sociedade. Os homens eram encarregados de prover a família e detinham grande
influência social e política; enquanto as mulheres tinham o dever de cuidar do lar, eram obrigadas
a casarem cedo e não podiam frequentar à escola e nem escolher seus representantes políticos.
Com o passar dos anos, muitas coisas mudaram. Depois de muitas lutas, as mulheres
conquistaram espaços. No entanto, o que vemos é que suas lutas são ocultadas nos currículos
escolares que escondem a verdadeira força e resistência que as mulheres possuem. Os livros
utilizados nesta pesquisa sugerem que as conquistas que as mulheres obtiveram ao longo dos anos
são invisibilizadas no âmbito escolar, pois a forma como as mulheres são (ou não são)
representadas nesses materiais, deixa claro que o protagonismo feminino, como conteúdo didático,
ainda precisa ser melhor discutido pelos atores que constroem os currículos escolares e que
pensam as políticas educacionais que norteiam a elaboração dos materiais de ensino.

REFERÊNCIAS

ALAMBERT, Zuleika. A mulher na história. A história da mulher. Fundação Astrogildo


Pereira/FAP; Abaré. 2004.
AZAMBUJA, Cristina Spengler. O papel social da mulher brasileira nas décadas de 30 a 60,
retratada através das propagandas veiculadas na revista O Cruzeiro. Disponível em
file:///D:/Downloads/834-2323-1-PB.pdf . Acesso em 20 dez 2019
BEZERRA, Jolene Rocha et al. CURRÍCULO E AS RELAÇÕES DE GÊNERO: o olhar de
pedagogas de uma escola pública da Paraíba. ESPAÇO DO CURRÍCULO, v.4, n.1, pp.66-77,
Março a Setembro de 2011. Disponível em file:///D:/Downloads/10544-Texto%20do%20artigo-
14470-3-10-20110821.pdf. Aesso em 03 dez 2019.
BOULOS JUNIOR, Alfredo. História Sociedade e Cidadania, 6º ano. 3ª ed. – São Paulo: FTD,
2015.
Página 157 de 2230

BOULOS JUNIOR, Alfredo. História Sociedade e Cidadania, 8º ano. 3ª ed. – São Paulo: FTD,
2015.
COUTINHO Rocha. “Mulher, família, carreira e relacionamentos no Brasil”. Trabalho
apresentado na XXX Reunião Anual de Psicologia. Brasília. 26- 29 de Outubro 2000.
ESPINDOLA, Gabriela. A trajetória do poder da mulher: do lar ao mercado de trabalho.
Disponível em https://pt.slideshare.net/eudelucy/a-trajetria-do-poder-da-mulher-do-lar-ao-
mercado-de-trabalho. Acesso em 30 nov 2019.
PROJETO ARARIBÁ: HISTÓRIA/Organizadora Editora Moderna. Editora responsável Maria
Raquel Apolinário. – 3 ª ed. São Paulo: Moderna, 2010.
RIBEIRO, Paulo Silvino. "O papel da mulher na sociedade"; Brasil Escola. Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/o-papel-mulher-na-sociedade.htm. Acesso em 13 de
janeiro de 2020.
SANTANA, Elizabeth de Jesus. A questão histórica da mulher na escola e na sociedade.
Publicado em 07 de março de 2012. Disponível em https://www.webartigos.com/artigos/a-
questao-historica-da-mulher-na-escola-e-na-sociedade/85301. Acesso em 30 out. 2019.
SANTOMÉ, Jurjo Torres. As Culturas Negadas e Silenciadas no Currículo. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da (Org.). Alienígenas na Sala de Aula: Uma introdução aos estudos culturais em
educação. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
SOUZA, Carliane de Jesus et al. Feminismo e currículo escolar: por uma prática educativa
transformadora. V CONEDU, 2018. Disponível em:
http://www.editorarealize.com.br/revistas/conedu/trabalhos/TRABALHO_EV117_MD1_SA5_I
D650_17092018133717.pdf. Acesso em 20 dez. 2019
STAMATTO, Maria Inês Sucupira. Um olhar na história: a mulher na escola (Brasil:1549- 1910).
Disponível em:. http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe2/pdfs/Tema5/0539.pdf. Acesso
em 10 dez 2019
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A MANIFESTAÇÃO DA DISLEXIA NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

THE MANIFESTATION OF DYSLEIA IN THE LEARNING PROCESS


Luís Félix de Barros Vieira Rocha
Mestre em Educação: Gestão de Ensino da Educação Básica pela UFMA
Maria Neuraildes Gomes Viana
Especialista em Gestão Pública Municipal pela Universidade Estadual do Maranhão
Cecilna Miranda de Sousa Teixeira
Graduanda em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Maranhão
Orientador: Antônio de Assis Cruz Nunes
Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
Professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão De Ensino Da Educação Básica
Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Atualmente existe uma taxa elevada de evasão escolar e muitos são os fatores que
contribuem para essa situação. O objetivo deste trabalho é tornar conhecido entre os educadores
o que é realmente dislexia, proporcionando igualdade, a partir de técnicas e métodos, durante o
processo de aprendizagem, no ambiente escolar. Partia-se da ideia de que o professor que atua
com discentes com dificuldade de aprendizagem, ele precisa ter conhecimento acerca dos
disléxicos, seus diagnósticos e prognósticos, para a concretização de um processo de ensino e
aprendizagem eficiente. O artigo visa descrever essa dificuldade de aprendizagem que nem sempre
é percebida a diferença em relação de causa e efeito entre a dislexia e o baixo rendimento dos
alunos. Pretende-se buscar estratégias que minimizem os efeitos da dislexia no processo ensino-
aprendizagem. Utilizamos como referencial teórico os seguintes autores: Alioto e Prado (2011);
Capovilla (2004); Ciasca (2003); Davis (2004); Fernandes e Penha (2008); Figueredo (2009)
dentre outros. Essa temática é relevante para os educadores e a sociedade de modo geral, pois
contribui para conscientização de que o aluno com dificuldade de aprendizagem não deve ser
rotulado como um indivíduo incapaz de aprender. Com intuito de fundamentar este artigo
procurou-se desenvolver uma pesquisa bibliográfica colhida em fontes como livros, revistas, e
sites, com fins de embasamento teórico em atores renomados no assunto. Acredita-se que a
pesquisa é de grande relevância para campo da educação especial/inclusiva e para o entendimento
da manifestação da dislexia que dificulta o processo de ensino e aprendizagem dos educandos no
espaço escolar.
Palavras chave: Escola. Dificuldades. Ensino aprendizagem. Dislexia.

Abstract: There is currently a high dropout rate and many factors contribute to this situation. The
aim of this paper is to make known among educators what is really dyslexia, providing equality,
from techniques and methods, during the learning process, in the school environment. It was based
on the idea that the teacher who works with students with learning disabilities, he needs to have
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knowledge about dyslexics, their diagnoses and prognoses, for the implementation of an efficient
teaching and learning process. The article aims to describe this learning disability that is not
always perceived the difference in cause and effect relationship between dyslexia and low
performance of students. It is intended to seek strategies that minimize the effects of dyslexia in
the teaching-learning process. We use as theoretical reference the following authors: Alioto and
Prado (2011); Capovilla (2004); Ciasca (2003); Davis (2004); Fernandes and Penha (2008);
Figueredo (2009) among others. This theme is relevant for educators and society in general, as it
contributes to the awareness that students with learning difficulties should not be labeled as an
individual unable to learn. In order to substantiate this article we sought to develop a bibliographic
research collected from sources such as books, magazines, and websites, with the purpose of
theoretical grounding in renowned actors in the subject. It is believed that the research is of great
relevance to the field of special / inclusive education and to the understanding of the manifestation
of dyslexia that hinders the process of teaching and learning of students in the school space.
Keywords: School. Difficulties. Teaching Learning. Dyslexia.

1 INTRODUÇÃO

A escola é uma instituição formada por pessoas com diferentes interesses e funções, ela
tem uma função social que no caso é proporcionar um ensino-aprendizagem de qualidade para os
seus alunos se tornarem cidadãos críticos.
Nesse contexto que se encontram os alunos que apresentam certas dificuldades para
aprender que são as chamadas dificuldades de aprendizagem e/ou transtornos de aprendizagem
que causam alterações nos aspectos: biológico, psicológico e social e são causadas por vários
motivos como: falha no cérebro, herança genética, abuso de drogas e etc.
A dislexia é uma dificuldade de aprendizagem que precisa cada vez mais ser abordada
dentro das discussões educacionais, que os professores têm que estarem conscientes de que ela
existe e que infelizmente por não ser fácil de ser diagnosticada nos alunos, os quais são
massacrados com estratégias de ensino inapropriadas para o seu ritmo de aprendizagem e
consequentemente são fadados ao insucesso escolar.
O presente artigo centra-se numa problemática real nas escolas brasileiras, mormente, a
dislexia e a atitude dos docentes face à inclusão destes alunos. Será que os educadores sabem
diagnosticar quando o aluno apresenta dificuldade de aprendizagem e se o mesmo apresenta
dislexia ou não?
Partia-se da ideia de que o professor que atua com alunos com dificuldade de
aprendizagem, ele precisa ter conhecimento acerca dos disléxicos, seus diagnósticos e
prognósticos, para a concretização de um processo de ensino e aprendizagem eficiente.
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O artigo visa descrever essa dificuldade de aprendizagem que nem sempre é percebida a
diferença em relação de causa e efeito entre a dislexia e o baixo rendimento dos alunos. Pretende-
se buscar estratégias que minimizem os efeitos da dislexia no processo ensino-aprendizagem.
Utilizamos como referencial teórico os seguintes autores: Alioto e Prado (2011); Capovilla (2004);
Ciasca (2003); Davis (2004); Fernandes e Penha (2008); Figueredo (2009) dentre outros.
Esse artigo estará estruturado da seguinte forma: Inicialmente faz-se uma abordagem sobre
o que é dislexia e também o texto descreve sobre a classificação e etapas da dislexia; no segundo
momento discorre sobre a criança disléxica; no terceiro momento fala das dificuldades
apresentadas na escola e o papel do professor como mediador na vida do disléxico; no quarto
momento as perspectivas e as possibilidades para a ação docente. Por fim, fazem-se as
considerações finais.

2 O QUE É DISLEXIA?

Em relação às dificuldades encontradas pelo aluno no processo de leitura, escrita e


soletração. A dislexia costuma ser identificada nas salas de aula durante a alfabetização, sendo
comum provocar uma defasagem inicial de aprendizado.
O termo “dislexia” de forma simplista deriva-se do prefixo grego “dis” que quer dizer
“dificuldade, perturbação” e do elemento grego “lexia” que significa “ler”, sendo assim, é a
“dificuldade em ler” (OLIVEIRA; RODRIGUES, 2010, p.1).
Atualmente, foi desenvolvida uma série de novas técnicas que ajudaram os pesquisadores
a aprofundar os processos neurofuncionais. De acordo com as novas pesquisas da neurociência
descobriu-se que a aprendizagem modifica a estrutura física do cérebro. O cérebro humano realiza
novas conexões de acordo com as necessidades que enfrenta. Isto leva o cérebro a estar
continuamente reorganizando-se.
Os primeiros indícios da existência da especialização cerebral surgiram durante estudos
com pacientes epiléticos nos anos 60. Esta pesquisa conclui que os hemisférios direito e esquerdo
têm funções muitas claras e diferenciadas e que o corpo caloso permite aos dois hemisférios
compartilharem a aprendizagem e a memória.
Portanto, os estudos realizados posteriormente permitiram estabelecer a especialização de
cada hemisfério:

Hemisfério esquerdo é o hemisfério da lógica, monitora as áreas da linguagem, é analítico


e avalia os dados de uma forma racional. Compreende a interpretação literal das palavras
e detecta o tempo e a sequência. Também reconhece letras, palavras e números escritos
em palavras. Conecta-se com o lado direito do corpo. Hemisfério direito é o hemisfério
intuitivo, recolhe a informação de imagens, mais do que as palavras. Interpreta a
linguagem através do contexto, ou seja, a linguagem corporal, conteúdo emocional e o
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tom de voz. É especializado na percepção espacial. Reconhece lugares, rostos e objetos.


Conecta-se com o lado esquerdo do corpo (MUSZKAT, et.al. 2012 p.73 e 74).

Não se sabe por que o cérebro se especializou. A única coisa certa é que esta especialização
é que parece permitir que ele possa manusear a enorme quantidade de informação sensorial que
recebe.
O fato dos hemisférios serem fisicamente diferentes também poderia explicar a
especialização particular de cada um deles. Os hemisférios são compostos por matéria cinzenta e
matéria branca. O hemisfério esquerdo tem mais matéria cinzenta, enquanto o direito possui mais
matéria branca.

Os neurônios do hemisfério esquerdo estão mais concentrados e manipulam melhor o


trabalho intenso e detalhado. A matéria branca do hemisfério direito contém neurônios
com axônios mais longos que podem conectar com módulos que se encontram a maiores
distâncias. Estas conexões de maior alcance permitem ao hemisfério direito alcançar
conceitos mais amplos, porém mais imprecisos. (MUSZKAT et. al. 2012 p. 35).

Quando se trabalha tarefas mais complexas o hemisfério especializado assumirá o controle,


porém o outro hemisfério não deixará de participar. Os dois hemisférios se complementam em
quase todas as atividades, oferecendo a possibilidade de beneficiar-se da integração do
processamento realizado pelos dois hemisférios.
Durante a aprendizagem os dois hemisférios estão envolvidos, processando a informação
ou destreza de acordo com a sua especialização e intercambiando os resultados com os hemisférios
oposto através do corpo caloso. Ao conhecer as diferenças do processamento de informação entre
o hemisfério direito e o esquerdo pode-se entender tarefas e em outras não, especialmente quando
se trabalha de fazê-las simultaneamente.
É inegável a influência que a preferência hemisférica tem sobre a aprendizagem e na forma
de aprender. Cada um de nós tem um hemisfério dominante e este, de alguma maneira marca a
forma na qual se processa a informação. Não existe exclusividade no uso dos hemisférios,
simplesmente o dominante é que predomina na forma de processar a informação e influi na
personalidade, nas habilidades e no estilo de aprender.

2.1 Classificação e Etapas da Dislexia

A dislexia pode ser classificada de várias formas, dependendo da abordagem profissional


e dos testes usados no seu diagnóstico, tais como: testes fonoaudiólogos, pedagógicos,
psicológicos, neurológicos e outros. Geralmente o diagnóstico é feito por equipe multiprofissional.
A dislexia é classificada em 5 tipos:
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1- Dislexia disfonética: Dificuldades de percepção auditiva na análise e síntese de fonemas,


dificuldades no reconhecimento e na leitura de palavras que não têm significado, alterações na
ordem das letras e sílabas, omissões e acréscimos, maior dificuldade na escrita do que na leitura,
substituição de palavras por sinônimos;
2- Dislexia diseidética: dificuldade na percepção do todo (como maior que a soma das
partes), na análise e síntese de fonemas (ler sílaba por sílaba sem conseguir a síntese das palavras),
misturando e fragmentando as palavras, fazendo troca por fonemas similares, maior dificuldade
para a leitura do que para escrita.
3- Dislexia visual: deficiência na percepção visual e na coordenação viso motora
(dificuldade no processamento cognitivo das imagens);
4- Dislexia auditiva: deficiência na percepção auditiva, na memória auditiva e fonética
(dificuldade no processamento cognitivo do som das sílabas);
5- Dislexia mista: que seria a combinação de mais de um tipo de dislexia.
A dislexia foi dividida em 6 diagnósticos distintos e específicos:
 Desordem na leitura de palavras;
 Desordem na fluência de leitura;
 Desordem na compreensão da leitura;
 Desordem na expressão escrita;
 Desordem no cálculo matemático;
 Desordem na resolução de problemas de matemática

A dislexia é uma dificuldade de aprendizagem que atinge diretamente o processo de leitura


e escrita que leva em conta as três etapas em que a criança passa, como bem afirma Capovilla et
al. (2004), Fernandes e Penna (2008) e Mousinho (2004). As etapas são as seguintes:
- Logográfica: leitura da palavra, associando-a com o seu contexto e forma; não há uma
análise da palavra. A criança lê algumas palavras ao reconhecê-las como se fosse um desenho.
Essas leituras geralmente são de palavras que aparecem repetidamente. Ao associar essas leituras
com a escrita, a criança passa para a segunda etapa.
- Fonológica: a criança analisa a palavra, utilizando as letras e os fonemas para codificação
e decodificação; há um fortalecimento entre o texto e a fala; a escrita passa a ficar sob controle
dos sons da fala; e a leitura, sob controle dos grafemas do texto.
- Lexical: fase ortográfica, em que há uma experiência maior com a leitura; o acesso visual
direto da palavra torna a leitura mais ágil e a criança aprende a memorizar e compreender as
irregularidades entre as palavras.
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Mesmo quando uma nova etapa é concluída, ela não descarta a anterior, pois todas as etapas
se referem a estratégias de leitura e não seguem uma sequência.
Além das três estratégias apresentadas ainda existem dois processos, que são:
- Processo indireto ou fonológico: na rota fonológica, a pronúncia da palavra é construída
por meio de fonemas, em que a criança ouve para compreender e, conforme se torna mais
competente, desenvolve a capacidade de processar mais letras como unidade.
- Processo direto, ideovisual ou lexical: na rota lexical, a pronúncia é identificada como
um todo. A criança reconhece o significado da palavra, antes de pronunciá-la, ativando
informações ortográficas, semânticas e fonológicas.
As crianças ditas “normais” utilizam na construção da linguagem tanto o modo verbal
como o não verbal com assinala Fernandes e Penna (2008), as pessoas usam tanto o modo verbal,
pensando com o som da linguagem, quanto o modo não verbal, pensando com o significado da
linguagem por meio da construção de imagens mentais, de seus conceitos e ideias.
De acordo com Teles (2004 p. 192):

As dificuldades na aprendizagem da leitura acontecem devido a um déficit fonológico e


isso fica bem explícito nas crianças disléxica, que são aquelas que não têm consciência
das unidades linguísticas, mesmo falando e utilizando palavras, sílabas e fonemas.

Ler uma palavra compreende conhecer o nome das letras, o som dos fonemas, relacionar
os fonemas e os grafemas e encontrar a pronúncia certa ao significado. Esses processos são
naturalmente automáticos, tornando a leitura fluente e compreensiva, porém devem ser ensinados
e praticados.
Enquanto os disléxicos por não possuírem monólogo interno, só ouvem quando outras
pessoas leem em voz alta, fazendo relação entre o significado ou a imagem do significado a cada
palavra que leem. Além disso, é fundamental que os disléxicos tenham contato com a leitura de
variados textos, e isso só será possível se eles participarem de práticas de leitura feitas pelo
professor para eles em sala de aula.

3 A CRIANÇA DISLÉXICA

Em uma visão geral, não se deve tratar as crianças disléxicas como se fossem problemas
impossíveis de resolver, mas sim, como desafios que fazem parte do próprio processo de ensino e
aprendizagem. Essa dificuldade tem que ser diagnosticadas o mais precocemente possível, de
preferência ainda na pré-escola, para assim não prejudicar nem seu tratamento e nem a
continuação dos estudos.
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As dificuldades de aprendizagem atingem várias áreas de percepção como: discriminação


visual ou auditiva, discriminação figura fundo visual ou auditiva, memória visual ou auditiva nem
a curto nem em longo prazo, sequenciamento visual ou auditivo, percepção temporal,
incapacidade de aprendizado não verbal e outras.
Mas não é por apresentarem essas dificuldades que os esses alunos têm que ser excluídos
do ambiente escolar regular seguindo para classes e/ou escolas especiais, pois se tratam de pessoas
iguais a qualquer outra só que precisa de uma ajuda especial para progredirem nos estudos.
Os disléxicos têm baixo desempenho escolar não por ser uma criança desinteressada e sim
porque não compreende a nomeação das letras e sua aprendizagem torna-se lenta.
Todo disléxico é verdadeiramente um mau leitor, mas nem todo mal leitor é um disléxico.
As crianças disléxicas são comumente tristes e/ ou agressivas, devido o fato de seu empenho não
conseguir superar as dificuldades e não cumprirem em regra os resultados desejáveis.
Algumas crianças disléxicas podem apresentar dificuldades na postura corporal, dores
abdominais, fraca coordenação motora, ritmo lento sendo sugerido a elas aulas de
psicomotricidade.
Apesar da sua dificuldade de leitura e escrita não se descarta a possibilidade de que o
disléxico seja um indivíduo superdotado, com uma capacidade mental especial, inventivo e
produtivo, porque sua criatividade, ideias, talentos e aspirações não são afetados por tal problema.
Sendo a linguagem fundamental para o sucesso escolar, os disléxicos lidam quase sempre
com a dificuldade de calcular, porque não conseguem entender os enunciados dos cálculos
matemáticos.
Quando se é confirmado o diagnóstico, é recomendável que pais, professores e
profissionais envolvidos sejam informados para que se tomem medidas cabíveis no
tratamento e na reeducação da criança. É importante observar, na criança com dislexia, o
comportamento emocional, a prática em algumas funções corporais, avaliar a
inteligência, expressão oral, antes de se examinar a leitura e escrita. O desenho livre
também pode ser um instrumento para fornecer informações de dificuldades espaciais,
nível de inteligência e o estado emocional da criança (ALIOTO, PRADO, 2011, p. 2).

A criança disléxica tem desorientações que alteram seus sentidos, fazendo com que ela seja
capaz de experimentar múltiplas visões do mundo, podendo perceber objetos e a partir dessas
percepções, adquirir mais informações do que outras pessoas.
Umas dessas desorientações é o problema com a grafia. De acordo com Braun e Davis
(2004), quando uma desorientação ocorre, a criança ou adulto notam múltiplas imagens da
palavra. Ela é vista de várias formas, de frente para trás, de cabeça para baixo, podendo ser
desmembrada e reagrupada em todas as combinações possíveis.
Para os estudiosos o tratamento adequado para crianças disléxicas é baseado no em ensino
multissensorial, o fônico, algumas estratégias e doses maciças de apoio humano, para criar um
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ambiente que ajudará o aluno a controlar sua ansiedade, a encarar riscos, a enfrentar seus medos
e a não sentir vergonha da sua dificuldade de aprendizagem.

4 AS DIFICULDADES APRESENTADAS NA ESCOLA

Entende-se que a aprendizagem e a construção do conhecimento são processos naturais e


espontâneos do ser humano que desde muito cedo aprende a mamar, falar, andar, pensar,
garantindo assim, a sua sobrevivência.
Ao aprender o cérebro entra em atividade e ocorre uma série de mudanças físicas e
químicas. Para compreender seu funcionamento é importante conhecer sua estrutura e alguns
fatores ambientais que influenciam o seu desenvolvimento.
Nesse sentido, diz-se que uma criança apresenta dificuldades de aprendizagem quando ela
não consegue acompanhar o ritmo normal de desenvolvimento de crianças de sua idade.
O ato de aprender ou o processo de aprendizagem depende de alguns sinais chamados
integridades básicas, que devem estar presentes, quando a criança entra em contato com a escola
e lhe são oferecidas oportunidades para a realização da aprendizagem Ciasca (2003 p. 27)
esclarece que:

Essas integridades são caracterizadas por três níveis: as funções pseudodinamicas onde
à medida que o organismo internaliza o que foi observado ou experienciado, começa a
assimilar o que está aprendendo; as funções do Sistema Nervoso Periférico, responsáveis
pelos receptores sensoriais, que são canais para a aprendizagem; as funções do Sistema
Nervoso Central, responsável pelo armazenamento, elaboração e processamento da
informação. É dessa forma que a criança está pronta para aprender.

Algumas características apresentadas por pessoas disléxicas são semelhantes com os


sintomas de outras dificuldades de aprendizagem, tais como transtorno do déficit de atenção e
hiperatividade. Logo o diagnóstico não pode ser feito de forma rápida e sim num processo que
requer tempo e muita observação, para que ao ser detectada a dificuldade, o aluno seja
encaminhado algum tipo de tratamento, na expectativa de um resultado satisfatório.
Os alunos com dificuldades de aprendizagem geralmente reprovam de forma frequente,
despertando um sentimento de inferioridade neles, pois trabalhar com eles não é tarefa fácil e
quando não são reprovados os mesmos são colocados em programas especiais de ensino como o
proposto para as salas de reforço ou de recuperação paralela, destinadas a alunos com dificuldades
não superadas no cotidiano escolar.

Os aspectos emocionais e cognitivos de um disléxico estão sempre entrelaçados. Os pais


podem ser grandes aliados dos filhos quando ajudam o filho a dar o melhor de si, sem
ficarem se comparando a outras pessoas. “Encorajar o filho a alcançar seu próprio
potencial vai ajudá-lo a se concentrar mais em suas forças e menos em sua comparação
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com os outros” (FRANK, 2003, p. 33). É importante mostrar a ele que todas as pessoas
têm facilidades para algumas coisas e dificuldades em outras. (MENEZES, 2007, p. 51).

A escola e os pais devem estar preparados para dar o apoio necessário à criança disléxica
para que ela não desanime e desista de aprender a ler e a escrever. As dificuldades de aprendizagem
são complexas, não são fáceis de serem diagnosticadas e muitas vezes são confundidos com outras
deficiências por isso os professores tem que tomar muito cuidado ao elaborar suas metodologias
de ensino e devem atentar para os seguintes aspectos em relação às crianças com dificuldades de
aprendizagem: apresentam um quociente intelectual(QI) normal, suas dificuldades não tem
relação com o ambiente, não tem relação com suas emoções ou atraso intelectual e o seu
rendimento é baixo em relação a algumas áreas da aprendizagem nem sempre se estendendo a
todas.

4.1 O Papel do Professor como Mediador na Vida do Disléxico

O professor é o profissional responsável pelo ensino da escrita e da leitura, normalmente


é o primeiro a perceber as dificuldades em crianças com dislexia. O seu papel é detectar essas
dificuldades, encaminhar para os profissionais da área e em seguida realizar intervenção
pedagógica junto ao aluno disléxico.
Muitos professores sentem-se inseguros ao receber uma criança com necessidades
educativas especiais, pois dizem que há poucas oportunidades de capacitação.

Essa falta de capacitação se dá porque no Brasil, de acordo com Siems (2010), a


preocupação com a formação dos professores voltada para a educação inclusiva é muito
recente. De acordo com a autora, é necessário mais investimento nos processos de
formação para reconstruir as práticas educacionais, reorientando, assim, os processos
exercidos na Formação de Professores. (BOMFIM; OLIVEIRA, 2012, p.1)

Os professores que ensinam nas primeiras séries sentem seus alunos tolhidos e sem
ambiente para desenvolverem seus raciocínios, devido à comparação da prática na escola com a
vivência fora dela. Recursos diversificados para se obter tais respostas e poder cumprir o
programa, devem estar sempre sendo focalizados avivando a iniciativa e a espontaneidade dos
alunos, para se tornarem mais alertas e participativos.
O profissional deve reconhecer frustração sentida pelo aluno com dislexia; reconhecer que
o desempenho de um disléxico pode estar muito aquém do seu potencial; reconhecer possíveis
problemas de comportamento ou autoestima; demonstrar simpatia, atenção e compreensão;
construir uma boa relação professor aluno (CAMEIRÃO; LIMA, 2005, apud COGAN, 2002, p.
8).
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A dislexia não é fácil de ser diagnosticada e muitas vezes são confundidas com outras
dificuldades ou deficiências, o que faz com que esses alunos apresentem um baixo desempenho
escolar, reprovem e até mesmo evadam da escola.

Afirmam que, quando confirmado o diagnóstico de dislexia, é imprescindível que o


professor seja informado para que mude sua prática docente e invista em técnicas e
estratégias adequadas a fim de favorecer o desenvolvimento da linguagem escrita do
aluno. O professor deve saber observar na criança diferentes comportamentos, tais como:
emocional, corporal, inteligência, leitura, escrita, desenho, noção espacial, entre outros.
Esses aspectos facilitam o desenrolar de atividades e metodologias que direcionarão para
um aprendizado efetivo (ALIOTO E PRADO, 2011 p. 03).

Dessa forma, é aconselhável que professores e demais envolvidos compreendam as


dificuldades dessa criança, entendam os processos de leitura, métodos e estratégias para que se
providenciem intervenções adequadas.
Portanto, desenvolver-se no aluno a habilidade de elaborar raciocínio lógico, fazendo uso
dos recursos disponíveis e enfrentar situações novas. E, para isso, é primordial desenvolver a
iniciativa, espírito explorador, criativo e independente, onde os alunos, incentivados e orientados
pelos professores, trabalhem de modo ativo individualmente ou em grupos para buscar a solução
das dificuldades na aprendizagem.
Nesta luta, onde professores e alunos se engajam no intuito de encontrar soluções, a escola
tem sua parte a cumprir, atendendo os interesses da família, com reformulações nos currículos,
proporcionando etapas de reciclagem didáticas aos professores, além de adequar calendários,
sistema de avaliações junto aos alunos no critério de seleção e localização.
As famílias de crianças com dificuldades de aprendizagem, sempre deve estar procurando
maneiras de ajudá-las a potencializar suas habilidades, as quais podem de alguma forma
compensar suas dificuldades.
Neste sentido, as famílias devem ser um verdadeiro apoio emocional para a pessoa com
dificuldades. Essas crianças enfrentam frustrações frequentes, sobre tudo na escola; a família deve
ser um apoio constante que a ajude a manejar e superar suas crises.
Percebe-se com frequência a circulação de diagnósticos que reduzem os chamados
problemas educacionais a um processo de escolha única, sem alternativas integradoras.
No que tange aos chamados problemas educacionais, na maioria das vezes as opções
formativas ou são devedoras de argumentos socioeconômicos, mas predominantemente esses
universos são apresentados como realidades e não devem se comunicar tornando a opção por uma
imediata exclusão do outro.
Para Figueiredo (2009), os disléxicos apresentam dificuldades na nomeação de letras e não
na cópia delas, consequentemente mesmo que aprendam a ler, será de maneira lenta. Dessa forma,
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conforme afirmam Fernandes e Penna (2008), a criança, por não compreender o que lê e apresentar
escrita incompreensível, perde o interesse pelas práticas educativas. Assim sendo:

[...] é necessário que o educador reconheça na criança características dos chamados


distúrbios de aprendizagem, assumindo desafios de criar metodologias eficientes, no
sentido de acolher cada uma delas, respeitando e entendendo sua individualidade; sendo
necessário que se investigue, compreenda e se discuta como esta criança pode aprender
adequadamente (FIGUEIREDO, 2009 p. 06).

Quando diagnosticada a dislexia na criança, se a identificação e intervenção forem


realizadas antes do início da escolaridade, o problema poderá ser prevenido ou minimizado.
O ensino multissensorial consiste em atividades multissensoriais de leitura e escrita, em
que as crianças têm que olhar para as letras impressas, pronunciar os sons, fazer os movimentos
necessários à escrita e usar os conhecimentos linguísticos para aderir ao sentido das palavras.
Nesse sentido, as intervenções na dislexia se utilizam de métodos multissensoriais ou
fônicos que estudiosos comprovaram como eficazes para facilitar a habilidade de ler e escrever
com facilidade.

5 AS PERSPECTIVAS E AS POSSIBILIDADES PARA A AÇÃO DOCENTE

A técnica da soletração oral e simultânea nesse método tem se mostrado eficaz porque
fortalece a conexão entre a leitura e escrita. Como bem afirma Capovilla (2004) “Nesse método,
a criança vê a palavra, repete a pronúncia e escreve dizendo o nome de cada letra e depois lê
novamente o que escreveu”.
O método fônico é recomendado para todas as crianças. As atividades fônicas e
metafonológicas podem ser incorporadas em sala de aula, visando à prevenção e intervenção em
dificuldades de aquisição da linguagem escrita.
Esse método tem como característica o ensino das correspondências entre os sons e as
letras e utiliza-se de atividades que desenvolvem rima, discriminação de sons, segmentação fônica
e relações entre os fonemas e os grafemas, dificuldades estas que o disléxico sente em sala de aula.
Toda letra deverá ser apresentada nas formas maiúscula, minúscula, bastão, imprensa e
cursiva. As atividades devem ser planejadas de forma dinâmica, de maneira que se torne
interessante e prazerosa para que haja melhor participação individual e/ou coletiva da criança.
As estratégias para trabalhar com alunos que apresentam essa dificuldade são as seguintes:
Na produção e interpretação de texto, a criança deve ser capaz de aprimorar a compreensão
do sistema de escrita em diferentes estilos.
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Para produção de texto, é importante apresentar uma diversidade de textos baseados a


partir de figuras, sequência de figuras, texto iniciado, carta ou poesia que vão ser trabalhados com
eles.
Na interpretação de texto, é sugerido que a professora estimule a criança discutir e refletir
sobre o que foi lido e posteriormente represente por meio de desenhos, recorte e colagem o que
foi abordado.
Outra excelente estratégia é trabalhar a autoestima deles que geralmente é muito baixa,
levando-o a restabelecer a confiança em si mesmo, apreciando e estimulando a desenvolver as
atividades que ele tem prazer em fazer e faz com qualidade. Nas atividades realizadas por eles
deve-se enfatizar os acertos e não ressaltar os erros, pois dessa forma sua autoestima não fica
abalada.
Para Mousinho (2004), a educação deve reconhecer as dificuldades específicas desses
alunos para poder contribuir com seu desenvolvimento. Deve estar associada a um tratamento
interdisciplinar, à escola e à família, que também:
[...] exercem um papel fundamental para que a dislexia não se torne mais um fator de
impedimento no crescimento acadêmico. O professor é indispensável neste caminho,
identificando, em um primeiro momento, e podendo compreender e auxiliar essas
crianças e jovens em seu processo educativo. (p.33).

As intervenções devem compreender o envolvimento de vários profissionais, como


também de toda comunidade escolar. Dessa forma, sugere-se algumas orientações para o
professor:

 Manter contato com os responsáveis da criança regularmente, evitar se reunir com os pais
somente nos momentos de crise ou de problemas;
 Orientar o aluno previamente sobre o que é esperado dele, em termos de comportamento
e aprendizagem. Assim, pode se sentir mais seguro quanto ao que é esperado dele.
 Ser flexível para lançar mão de uma série de recursos e estratégias de ensino até descobrir
o estilo de aprendizagem, como a criança tem um apelo intrínseco a novidades, todos os
recursos disponíveis podem ajudar na manutenção da atenção e, consequentemente, no
processo de aprendizagem.
 Incentivar e recompensar todo bom comportamento e o bom desempenho. A aprendizagem
funciona melhor por meio de elogios, firmeza, aprovação e encorajamento, pois esses
incentivos são suprimentos de sentimentos positivos;
 Estimular o interesse do aluno para aprender. Tentar envolver e motivar s criança para o
processo de aprendizagem;
 Dar conteúdo passo a passo, verificando se houve aprendizagem a cada etapa;
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 Apresentar tarefas em pequena quantidade para não assustar e desanimar a criança. Uma
grande quantidade de tarefas faz com que a criança sinta que não conseguirá dar conta de
terminá-las, e com isso ela desiste, antes mesmo de começá-las;
 Manter a sala de aula organizada e bem estruturada. Isso pode ajudar a criança a se
organizar internamente e no ambiente e, dessa forma, corresponder melhor ao processo de
aprendizagem;
 Estabelecer limite e fronteiras, devagar e com calma, não de modo punitivo. Ser firme e
direto.
 Dar retorno constante e imediato. Isto ajuda a criança a ter uma noção de como está se
saindo e a desenvolver a auto-observação. Deve-se informá-la de modo positivo e
construtivo;
 Estar atento ao talento da criança, à criatividade, à alegria, à espontaneidade e ao bom
humor que ele manifesta. Geralmente ela é também generosa e apresenta algo especial que
enriquece o ambiente onde está inserida.

6 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

Com o intuito de fundamentar este artigo procurou-se desenvolver uma pesquisa


bibliografia colhida em fontes como livros, revistas site, com fins de embasamento teórico em
atores renomados no assunto como: Alioto e Prado (2011); Capovlla (2004); Ciasca (2003); Davis
(2004); Fernandes e Penha (2008); Figueredo (2009; etc.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na realidade escolar atual, cada vez mais crianças que apresentam dificuldades de
aprendizagem que precisam ser consideradas pelos professores no momento de suas aulas, para
que não fiquem excluídos do resto da classe.
O objetivo do trabalho é analisar a Prática Pedagógica indicada aos alunos com dificuldade
de aprendizagem, reconhecendo o papel dos professores neste processo. Parte-se da ideia de que
o professor que atua com alunos com dificuldade de aprendizagem, ele precisa ter conhecimento
acerca dos disléxicos, seus diagnósticos e prognósticos, para a concretização de um processo de
ensino e aprendizagem eficiente.
Percebeu-se que poucos são os profissionais capacitados para trabalharem com esses
alunos, pois tiveram uma formação inicial básica e apesar de alguns participarem de formação
continuada, elas não abordam esses temas e quando o fazem é de forma superficial.
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É necessário oferecer aos professores um conhecimento específico e adequado às


necessidades de alunos com dislexia, de forma a evitar a angústia desses professores em relação
às dificuldades apresentadas pelos alunos, levando-os a não se alimentar de falsas expectativas
quanto ao rendimento acadêmico.
Constatou-se que devido à incompreensão do problema, a criança pode ser considerada
como problemática e não como uma criança com dificuldade que necessita de auxílio para superar
o obstáculo, pois por não conseguir ler e escrever, seu comportamento pode ser contrário ao
esperado. Ela se sente excluída dos demais colegas.
É preciso que cada vez mais os profissionais da educação se dediquem ao estudo, não
somente deste distúrbio, mas também de todas as dificuldades de aprendizagem, e se empenhem
na busca de formação especializada para a intervenção apropriada dentro da escola e da sala de
aula, visando a inclusão destes alunos no ambiente escolar e social. Visto que é dever da escola
atuar como suporte, promovendo o desenvolvimento potencial, social e formativo dos alunos.
Diante de tudo que foi abordado sobre a dislexia, percebeu-se que esses alunos disléxicos
são pessoas que merecem atenção e respeito, pois eles apresentam uma dificuldade que se for
trabalhada de forma correta não prejudicará o desempenho escolar dos mesmos e ainda favorecerá
uma melhor prática docente.

REFERÊNCIAS

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professores preparados ou não? Curso de Licenciatura Plena em Ciências Biológicas da
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CAMEIRÃO, Manuela L. Dislexia no 1º ciclo: Da atualidade científica às concepções dos


professores. Vila Nova de Gaia Portugal, 2005. 28p

CAPOVILLA, Alessandra Gotuso Seabra. Compreendendo a dislexia: definição, avaliação e


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disléxicos. Revista Terceiro Setor, v. 2, n. 1, 2008.

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visual computadorizado em escolares com dislexia. Pró-Fono Revista de Atualização Científica.
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Página 173 de 2230

A NETNOGRAFIA COMO MÉTODO DE ESTUDO DE COMPORTAMENTO EM


AMBIENTES DIGITAIS

NETNOGRAPHY AS A RESEARCH METHOD BEHAVIOR


IN DIGITAL NETWORKS

Alexandre André Santos Pereira


Jornalista
Pós-Graduando em Marketing e Mídias Digitais - Faculdade Edufor
Jean Carlos da Silva Monteiro
Mestre em Cultura e Sociedade
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
Eixo Temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: A netnografia é um método de pesquisa, baseado na observação participante e no


trabalho de campo online, que utiliza as diferentes formas de comunicação mediada por
computador como fonte de dados para a compreensão e a representação etnográfica dos
fenômenos culturais e comunais. O método netnográfico começou a ser desenvolvido nos anos 90
no campo da pesquisa de marketing e de consumo, uma área interdisciplinar que se caracteriza
por incorporar pontos de vista de diversos campos, como a antropologia, a sociologia e os estudos
culturais. De certo modo, a netnografia não se trata de proposta metodológica inteiramente nova,
mas de uma ampliação das potencialidades do método etnográfico tradicional para contemplar as
especificidades do ambiente digital. Este artigo aborda a netnografia como método de estudo do
comportamento em ambientes digitais. Tem como objetivo compreender a importância da
netnografia para a pesquisa científica realizada na web. Utiliza do levantamento bibliográfico e
traz reflexões teóricas sobre a netnografia, suas características e aplicabilidade. Verificou-se que
ao utilizar a netnografia, enquanto novo método de estudo no ciberespaço, o pesquisador tem mais
facilidade na busca e coleta de dados acerca dos hábitos de grupos de usuários do ambiente web,
assim como na ampliação das análises sem maiores complicações. Isso ocorre porque o
pesquisador pode navegar com mais liberdade, interagir e se relacionar por meio das comunidades
virtuais, fóruns na internet, redes e mídias sociais, o que favorece maior diálogo com seu objeto
de estudo.
Palavras-chave: Netnografia. Método de Estudo. Ambientes Digitais. Pesquisa Científica.

Abstract: Netnography is a research method, based in participant observation and in works on


digital contexts. It uses the different forms of computer-mediated communication as a data source
for understanding and as a source of data for the understanding and ethnographic representation
of cultural and communal phenomena. The netnographic method began to be developed in the
1990s in the field of marketing and consumer research. It is an interdisciplinary area that is
characterized by incorporating points of view from different fields, such as anthropology,
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sociology and cultural studies. In a way, netnography is not an entirely new methodological
proposal, but an expansion of the potential of the traditional ethnographic method to contemplate
the specifics of the digital environment. This papper explains netnography as a method of studying
behavior in digital environments. It intends to understand the importance of netnography for
scientific research on the web and it uses the bibliographic survey and brings theoretical
reflections on netnography, its characteristics and applicability. As a new study method in
cyberspace, netnography makes it easier for researchers to search and collect data about the habits
of groups of users in the web environment. Another benefit in research is the expansion of analyzes
without major complications. This result is achieved because the researcher can browse more
freely, interact and relate through virtual communities, internet forums, networks and social
media, which favors greater dialogue with his object of study.
Keywords: Netnography. Study method. Digital environments. Scientific research.

INTRODUÇÃO

O advento das emergentes tecnologias de comunicação e informação permitiu a imersão


da sociedade em um novo espaço de interação e compartilhamento de informações. Neste novo
ambiente, chamado de ciberespaço, os indivíduos começaram a desenvolver comportamentos
totalmente ligados ao ambiente digital, fomentando o nascimento de uma nova cultura, conhecida
como cibercultura (LÉVY, 2010).

Diante desta nova realidade, a produção de conhecimento científico, antes restrito ao


espaço físico, começa a ser produzido, transmitido e consumido no ambiente digital. As
comunidades virtuais tornam-se fonte de dados para a sociedade e pesquisadores que buscam no
ambiente web respostas para os novos comportamentos das novas gerações de usuários da internet.

Criada na década de 90 pelo doutor Robert Kovinetz, a netnografia surge para suprir a
carência de uma metodologia voltada para o ambiente web, correspondendo assim aos anseios dos
pesquisadores, que até então utilizavam métodos de pesquisa desenvolvidos para o ambiente
offline, mesmo em meios online.

Embora a sua finalidade inicial tenha sido apenas para as pesquisas voltadas para os
profissionais de marketing, na expectativa de proporcionar uma melhor compreensão dos
comportamentos dos clientes nas comunidades da web, a netnografia surge como proposta
metodológica para pesquisas que envolvam o ambiente digital, atendendo assim a demanda de
pesquisadores hiperconectados.
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Por se tratar de uma metodologia em ascensão, visto que vivemos em uma sociedade
envolta em tecnologias, faz-se necessário a compreensão dos conceitos e características da
netnografia para a realização de pesquisas nas comunidades virtuais.

Este artigo aborda a netnografia como metodologia de pesquisa de comportamento em


ambientes digitais. Tem como objetivo compreender a importância do método netnográfico para
a realização de pesquisas no ambiente web. Utiliza o levantamento bibliográfico sobre conceitos,
características e aplicabilidade da netnografia como método de pesquisa na web.

NETNOGRAFIA

A Netnografia é uma metodologia de pesquisa adaptada da etnografia com foco na


realização de pesquisas em ambientes virtuais. Ela permite a compreensão dos aspectos culturais,
características, práticas e comportamentos das comunidades web (KOZINETS, 2014).

Segundo Fragoso, Recuero e Amaral (2011), a netnografia também é chamada de


etnografia digital, etnografia virtual, webnografia e ciberantropologia, visto que adapta o método
de pesquisa utilizado na antropologia para compreender os comportamentos nas comunidades
virtuais.

O método foi criado em 1995 e seu objetivo era o estudo do comportamento dos
consumidores para o desenvolvimento de estratégias de marketing que conversassem com estes
públicos (KOZINETS, 2014). O método netnográfico é, portanto, uma “pesquisa com foco
quantitativo, interpretativo, adaptados das técnicas de pesquisa antropológicas etnográficas para
os estudos das culturas e comunidades online” (COELHO, 2017, p. 6).

A técnica para recolha de dados utilizada pela netnografia é a observação participante,


inserindo o pesquisador diretamente na comunidade a ser estudada, o que favorece a compreensão
dos comportamentos dos usuários das comunidades virtuais (COELHO, 2017). A netnografia é
ainda uma metodologia interdisciplinar, o que lhe permite estar presente em estudos de áreas como
antropologia, sociologia e estudos culturais (KOZINETS, 2014).

Apesar do seu principal foco ser o estudo para o fomento de estratégias de marketing, a
netnografia ganhou força em meio aos pesquisadores nos anos 90, visto que estes entendiam que
o ciberespaço tornou-se mais que um ambiente de compartilhamento dados por meio da rede
mundial de computadores, agora este espaço também permitia a produção de culturas digitais
diversas (SILVIA; STALIBE, 2016).
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Esta Etnografia aplicada ao universo online tem ganhado destaque em diferentes


ambientes: sejam nas Universidades, com pesquisadores acadêmicos utilizando a enorme
quantidade de dados não estruturados que o ciberespaço possui (facilitando e agilizando
a coleta de dados), seja no Mercado, com profissionais de Marketing e/ou Publicidade e
Propaganda percebendo quão importante é para uma instituição ou uma marca entender
a fundo seu público-alvo e, assim, comunicar-se de forma mais efetiva com ele. (SILVIA;
STABILE, 2016. p. 170)

Compreende-se então que, ao utilizar a netnografia como instrumento metodológico, é


possível observar, interpretar e descrever os comportamentos dos usuários do ciberespaço nas
comunidades em que estão inseridos dentro do ambiente virtual por meio da interação direta do
pesquisador com os usuários das comunidades da web.

CARACTERÍSTICAS DA NETNOGRAFIA

A netnografia possui características próprias, mesmo sendo uma adaptação da etnografia.


Embora possua semelhanças com o método utilizado pela antropologia, o método netnográfico se
diferencia justamente por conta do ambiente em que realiza a pesquisa, que é o ciberespaço. Como
afirmam Ayes, Cerqueira e Silva (2010, p. 36) “a Etnografia Digital exige procedimentos
específicos, a depender dos objetivos e dos campos que estejam diante do pesquisador”.

A primeira característica da netnografia é o seu objetivo final: o estudo da cultura no


ambiente online (SILVIA; STABILE, 2016). Sendo assim, o método netnográfico caracteriza-se
como um método naturalista, pois “possibilita o estudo das manifestações sociais que surgem
espontaneamente no ambiente virtual” (CORRÊA; ROZADOS, 2017, p. 4).

Outra característica do método netnográfico está na forma como conduz a observação,


sendo esta totalmente imersiva. Assim como na etnografia, no método de pesquisa netnográfico o
pesquisador precisa estar inserido na comunidade estudada, sendo um participante desta
comunidade, afinal, “a netnografia é pesquisa observacional participante baseada em trabalho de
campo online” (KOZINETS, 2014, p. 61).

A netnografia tem ainda como característica ser um método de estudo descritivo, o que
implica dizer que o pesquisador realizará a descrição exata dos comportamentos oriundos dos
indivíduos presentes na comunidade virtual estudada, suas linguagens, simbologias, interações e
demais atividades relevantes para o objetivo da pesquisa (CORRÊA; ROZADOS, 2017).

A netnografia é também multimétodos, podendo fazer uso de diferentes técnicas e


instrumentos para a realização da coleta de dados durante o processo de campo. “Neste sentido,
ela também solicita por vezes uma aproximação com outras metodologias, a exemplo dos aparatos
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fornecidos pela Análise de Conteúdo, Análise de Discurso, etc. Tudo isso será avaliado de acordo
com os casos em que a Netnografia será empregada” (AYRES; CERQUEIRA; DOURADO;
SILVA, 2010, p. 36).

Por fim, o método netnográfico se caracteriza como uma metodologia adaptável, visto que
tem a capacidade de ser utilizada em diferentes plataformas de comunicação mediadas por
computadores, como blogs, fóruns, wikis, sites de redes sociais, bate-papos, grupos de notícias,
podcasts, entre outras (CORRÊA; ROZADOS, 2017).

APLICABILIDADE DA NETNOGRAFIA

Por se tratar de uma metodologia de pesquisa focada em interações mediadas por


tecnologias de comunicação e informação, a netnografia pode ser aplicada para o estudo de
comunidades virtuais puras, onde a mediação acontece somente por tecnologias, de comunidades
virtuais derivadas, que não dependem somente das tecnologias para a interação, e para o estudo
de assuntos diversos (AYRES; CERQUEIRA; DOURADO; SILVA, 2010).

A aplicação do método netnográfico considera o tipo de análise a ser realizada e os tipos


de dados coletados. Sendo assim a análise pode ser temática ou individual e os dados coletados
diferem entre dado arquivados, dados extraídos e dados de notas de campo (KOZINETS, 2014).

Para aplicar o método netnográfico, o pesquisador deve levar em consideração cinco etapas
apontadas por Kozinets (2014), sendo elas: definição das questões da pesquisa, identificação e
seleção da comunidade, observação participante e coleta de dados, análise dos dados e
interpretação dos resultados e, por último, redação, apresentação e relato de pesquisa.

A primeira etapa é a definição das questões da pesquisa. Os objetivos precisam estar claros
ao iniciar a investigação científica. “Onde”, “quem”, “como” e “porque” são perguntas que
precisam estar devidamente definidas. “É importante, antes de tudo, ter um objetivo focado
(SILVIA; STABILE, 2016, p. 176).

A identificação e seleção da comunidade, que será alvo da pesquisa, é o segundo passo


para a aplicação da netnografia. Para a pesquisa netnográfica é necessário o processo de
identificação, visto que cada comunidade possui um modo de operação, bem como a escolha de
uma comunidade, entre tantas que coexistem na internet. Esta etapa da netnografia garante ao
pesquisador foco para atender às questões do primeiro passo.

A observação participante, característica do método netnográfico, é a terceira etapa da


pesquisa. Ela acontece após a identificação e escolha da comunidade. É nesta etapa da pesquisa
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que o netnógrafo pode se inserir na comunidade e participar das interações entre seus membros
(COELHO, 2017). Ainda nesta fase, o pesquisador realiza a coleta de dados, podendo anotá-los
diariamente, extrair de arquivos de memória da comunidade ou ambas as formas se necessárias.

A quarta etapa da pesquisa netnográfica é a análise e interpretação dos dados coletados. A


partir dos dados coletados, o pesquisador reflete como se comportam os membros da comunidade,
levando em consideração aspectos sociais e culturais (COELHO, 2017), além das percepções
obtidas durante a observação participante. Para Silvia e Stabile (2016), a análise e a interpretação
dos dados estão associadas, mesmo sendo instrumentos didaticamente diferentes.

O último passo da netnografia é a redação, apresentação e relato da pesquisa. Como o


próprio termo especifica, neste momento o netnógrafo apresentará os resultados obtidos por meio
de todo processo ocorrido através do método netnográfico, relatando sua experiência e percepções
sobre a comunidade em que esteve inserido. A apresentação dos dados irá corroborar para a
confirmação ou refutação das hipóteses levantadas acerca do comportamento dos membros da
comunidade.

A aplicação da netnografia para pesquisas em sites de redes e mídias sociais, por exemplo,
será realizada de acordo com as regras pré-estabelecidas nestes ambientes. Como afirma Silvia e
Stabile (2016, p. 175), “não podemos colocar todas as mídias sociais com o mesmo peso: cada
tipo e formato de mídia social propicia em menor ou maior grau este sentimento de pertencimento,
as trocas pessoais e a relação entre os membros”.

No Facebook, a aplicação da netnografia poderá considerar a análise de comportamento


dos usuários, páginas comerciais e grupos, podendo estes ser fechados ou abertos. Em casos de
grupos fechados, é necessária a prévia autorização do moderador do grupo para a entrada do
pesquisador.

O segundo passo será a definição do tipo de análise a ser aplicada, podendo ser temática
ou individual. Sendo assim, o pesquisador poderá analisar os conteúdos publicados pelos perfis e
páginas, conversações e interações procedentes dos grupos. O terceiro momento da pesquisa será
a observação e coleta dos dados no período determinado para a pesquisa.

Considerando o tipo de análise escolhida pelo pesquisador, os dados coletados podem


conter: quantidade de postagens realizadas no período da pesquisa, horários das postagens,
engajamento quanto às postagens realizadas (curtidas e comentários), tipos de linguagens
utilizadas nas postagens (textos, vídeos, links, imagens, etc.), temas mais postados, etc.
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A análise e interpretação dos dados mostrará como os perfis, páginas e grupos se


comportam no ambiente da rede social ao apresentar a frequência, como se relacionam (aceitação
ou rejeição pelos usuários da rede), como ele se comunicam ao selecionar as linguagens e quais
os temas mais relevantes entre o grupo.

Uma pesquisa netnográfica realizada no Twitter, por sua vez, vai considerar as linguagens
utilizadas na mídia social. Uso de hashtags, memes, técnicas de escrita para o espaço de 280
caracteres, hiperlinks, vídeos entre outras.

Ao utilizar a netnografia no Twitter, o pesquisador tem a possibilidade de compreender


como os perfis das empresas interagem com o seu público e este entre si, visto que, na mídia
social, a comunicação é de todos para todos (PEREIRA, 2019). Em uma pesquisa acadêmica, o
netnógrafo pode comprovar ou refutar hipóteses levantadas previamente sobre os perfis
pesquisados.

Pesquisas temáticas realizadas no Twitter tem nos trend topics, que é a lista de assuntos
mais comentados pelos membros do Twitter, uma fonte para sua modalidade de estudo
netnográfico. Utilizando esta lista de assuntos o netnógrafo encontrará temas comuns e temas
inusitados, visto que são os usuários da rede que produzem as hashtags e alimentam a lista. Como
afirma Pereira (2019, p. 9) “Basta que um dado assunto ganhe proporções na rede e um primeiro
usuário inicie a propagação de uma hashtag sobre ele, que logo aparecerá na lista dos assuntos
mais comentados”.

Em se tratando de mídias sociais, o Twitter faz uso da linguagem escrita e hipertextual


(MONTEIRO, 2019), com narrativas não-lineares e em formatos midiáticos diversificados, mais
frequentemente, portanto, em uma pesquisa netnográfica, compreender tais linguagens e como
elas são empregadas pelos membros da rede social levará o pesquisador à maior percepção a
respeito das interações que ali acontecem.

As redes sociais citadas acima são apenas alguns exemplos de ambientes digitais onde a
netnografia pode ser aplicada como metodologia para compreensão de comportamento. Como
afirma Coelho (2017, p. 7), “a netnografia nos ajuda a compreender os códigos comportamentais
descritos nas histórias compartilhadas no ambiente virtual”. Aliás, além destas, outras redes e/ou
mídias sociais digitais, tais como Instagram, LinkedIn, Youtube, Pinterest, podem ser amplamente
estudadas por meio desta metodologia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Este artigo abordou a utilização da netnografia como metodologia para estudos dos
comportamentos em ambientes virtuais. Notou-se que o método netnográfico permite ao
pesquisador analisar e interpretar o comportamento dos membros das comunidades presentes na
web.

Percebe-se que diante de um cenário com pessoas hiperconectadas, é nítido o


desenvolvimento de comportamentos distintos dos usuários das redes e mídias sociais digitais,
sendo este, portanto, o desenvolvimento de uma cibercultura mais significativa.

Neste contexto, novas linguagens, signos e códigos são concebidos e compartilhados com
os membros das comunidades virtuais, expressando seus modos de pensar e compreender o
ambiente em que estão inseridos.

Após o levantamento bibliográfico para a discussão presente neste artigo, compreende-


se que a netnografia agrega contribuições relevantes para a pesquisa e estudos que envolvem
ambientes web, visto que sua metodologia, desenvolvida com foco nesses ambientes, possui
características que suprem as lacunas deixadas por outras metodologias criadas e utilizadas antes
mesmo da discussão sobre o ciberespaço.

Por fim, este trabalho chama a atenção para a compreensão da importância deste método
de pesquisa, visto que estamos envoltos em tecnologias de comunicação e informação e imersos
no ambiente web, fazendo uso dos seus atributos para fins de pesquisas em diversas áreas do saber,
podendo fazer uso da netnografia para a melhor compreensão desta e das próximas gerações
conectadas por dispositivos.

REFERÊNCIAS

AYRES, M; CERQUEIRA, R; DOURADO, D; SILVA, T (Org.). #Mídias Sociais: Perspectivas,


Tendências e Reflexões. 2010.

COELHO, F. M. T. S. Netnografia: como compreender o consumidor por meio do seu


comportamento digital. 1. ed., 2017.

CORRÊA, M. V; ROZADOS, H. B. F. A netnografia como método de pesquisa em ciência da


informação. 2017. Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da
informação, v. 22, n.49, p. 1-18, maio/ago., 2017.

FRAGOSO, S; RECUERO, R; AMARAL, A. Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre:


Sulina, 2011.

KOZINETS, R. V. Netnografia: realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso,


2014.
Página 181 de 2230

LÉVY, P. Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.

MONTEIRO, J. C. S. Narrativas Hipertextuais na Educação Superior: uma proposta didática


para o ensino de Jornalismo Multimídia. 2019. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) –
Universidade Federal do Maranhão, Brasil.

PEREIRA, A. A. S. O Twitter no webjornalismo: os impactos da cibercultura e da mobilidade


digital na narrativa jornalística. 2019. 15f. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação. XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região
Nordeste, São Luís.

SILVA, T; STABILE, M (Org.). Monitoramento e pesquisa em mídias sociais: metodologias,


aplicações e inovações. São Paulo: Uva Limão, 2016.
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A RAINHA DA SOLIDÃO: CRIAÇÃO ARTÍSTICA E INTERPELAÇÃO


PEDAGÓGICA

THE QUEEN OF SOLITUDE: ARTISTIC CREATION AND PEDAGOGICAL


INTERPELLATION
Cássia Pires21
Doutora em Artes pela Universidade de Lisboa -UL (Portugal)
Professora Departamento de Artes Cênicas Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Eixo Temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: a Performance é tema recorrente para discutir a contemporaneidade e suas implicações no


ambiente cênico acadêmico, esse trabalho traz reflexões pertinentes a essa linguagem artística, bem como
nos leva a imergir no espaço cênico e transita no espaço do Não Lugar, assim chamado por Marc Augé aos
lugares de passagem, sem identidade ou memória. É o experimento artístico performativo intitulado “A
Rainha da Solidão” que nos lança o olhar no espaço do não lugar e que se pretende estabelecer um diálogo
com os transeuntes, levantando reflexões frente a supermodernidade, a era tecnológica, alargando assim o
diálogo entre a arte e a contemporaneidade a partir de um desenho poético na cena urbana. Nesse processo
penso que “Investigar a partir da prática artística, pode constituir-se como uma forma original, robusta,
esteticamente desejada” (Quaresma, 2015:206).
Palavras-chave: Performance, Espaço Urbano, Alteridade, Tecnologia, Educação.

Abstract: Performance is a recurring theme to discuss contemporaneity and its implications in the
academic scenic environment, this work brings reflections pertinent to this artistic language, as well as
leads us to immerse ourselves in the scenic space and also transits in the No Place space, so called by Marc
Augé to places of passage, without identity or memory. It is the performative artistic experiment entitled
“The Queen of Solitude” that looks at the space of the non-place and aims to establish a dialogue with
passers-by, raising reflections in the face of supermodernity, the technological era, thus broadening the
dialogue between art and contemporaneity based on a poetic design in the urban scene. In this process, I
think that “Investigating from artistic practice, can constitute itself as an original, robust, aesthetically
desired form” (Quaresma, 2015, p. 206).
Keywords: performance, Urban Space, Otherness, technology, Education.

INTRODUÇÃO

O espaço teatral é o lugar da ação, é onde acontece a atividade teatral. Esse espaço está
imbuído de significados reunindo signos especializados que o determinam enquanto lugar de cena,
de jogo, de espetáculo, é o espaço onde se manifesta a relação entre cena e espectador. Contudo,

21
Mestre em Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduada em Educação Artistica com
Habilitação em Artes Cênicas (UFMA). Atriz, performer, diretora teatral e pesquisadora. Sócia fundadora da Abluir Produções
Artísticas.
cassiapires.ufma@yahoo.com.br
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além dos edifícios construídos para apresentação de espetáculos, qualquer lugar pode servir para
esse fim desde que lhe sejam atribuídos sentido e intenção de teatralidade.

Através do experimento performático “A Rainha da Solidão” buscamos essencialmente a


diversidade dos espaços urbanos (lugares e não lugares para explorar, vivenciar e questionar os
elos contemporâneos de harmonia e conflitualidade entre pessoas, sintetizados em olhares intensos
e silenciosos.

A relação das pessoas com o espaço público tem gradativamente diminuído, assinalando
assim maior ênfase nas relações com os espaços privados, diminuindo os vínculos estabelecidos
nas relações sociais. O indivíduo contemporâneo é resultado de uma sociedade instável e incerta,
“bombardeada” por imagens, uma sociedade acelerada e multi-codificada, assumindo um
consumismo desenfreado, evidenciando vazios e isolamento social. As relações interpessoais vão
se anulando, cedendo lugar a relações induzidas e outras “robotizadas”. A velocidade frenética
que se estabelece causa a percepção de que o tempo diminuiu e a nossa demanda social e
profissional não cabe nos fluxos dos próprios dias. Fazendo referência à contemporaneidade, Marc
Augé nos diz que “essa necessidade de dar um sentido ao presente é o resgate da superabundância
factual que corresponde a uma situação que poderíamos dizer de ´Supermodernidade´ para dar
conta de sua modalidade essencial: o excesso” (Augé, 2005, p.32) É essa figura do excesso que se
define na “Supermodernidade”, excesso de tempo, superabundância do presente, de espaço, da
figura do indivíduo, do encurtamento das distâncias através dos satélites, das imagens, meios de
transportes superacelerados, bem como comunicações que transmitem os acontecimentos a
lugares distantes. Na superabundância do espaço, Augé nos diz que:
Resulta, concretamente, em consideráveis modificações físicas:
concentrações urbanas, transferências de população e multiplicação
daquilo que chamaremos “Não lugares”, por oposição à noção sociológica
de lugar, associada por Mauss e por toda uma tradição etnológica àquela
de cultura localizada no tempo e no espaço. Os não lugares são tanto as
instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias
expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de
transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda campos de trânsito
prolongado onde são alojados os refugiados do planeta. (Augé, 200, p.36.)

O “não lugar” aqui apresentado por Augé é o espaço em que não se pode identificar história
ou identidades. Esses são “os lugares” frutos da “supermodernidade”. Nesse sentido não podem
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ser vistos como lugares antropológicos, não podem ser neles percebidas e encontradas memórias.
O que vemos são inúmeros passantes que cotidianamente e de forma frenética circulam por esses
espaços. Desta forma, vê-se “...um mundo assim prometido à individualidade solitária, à
passagem, ao provisório e ao efêmero.” (Augé, 2005, p.74.)
É imperioso refletir que essa condição do indivíduo fadado à solidão e ao individualismo
é fruto da modernidade e de todos os atributos vividos por ela, o espaço urbano também reflete o
cotidiano acelerado do ser humano que transita nesses espaços, revelando uma certa
“invisibilidade” por parte dos passantes, esse trânsito vertiginoso faz com que os espaços sejam
apenas uma passagem frenética para outro lugar, impossibilitando que possamos “ver” ou “sentir”
esse viajante. Nesse sentido “o espaço do viajante seria, assim, o arquétipo do não lugar” (Augé,
2005, p.81). Augé afirma ainda que:

Vê-se bem que por “Não Lugar” designamos duas realidades


complementares, porém, distintas: espaços constituídos em relação a
certos fins (transportes, trânsito comércio, lazer) e a relação que os
indivíduos mantêm com esses espaços. Se as duas relações se
correspondem de maneira bastante ampla e, em todo caso, oficialmente
(os indivíduos viajam, compram, repousam), não se confundem, no
entanto, pois os não lugares medeiam todo um conjunto de relações
consigo e com os outros que só dizem respeito indiretamente a seus fins:
assim como os lugares antropológicos criam um social orgânico, os não
lugares criam tensão solitária. (Augé, 2005, p.87.)

É bom que se entenda que esse passante do “não lugar” de alguma forma sempre tem que
comprovar sua identidade para depois se tornar anônimo. É no controle, seja do check-in num
aeroporto, no ato de pagamento de uma compra através do seu cartão de crédito, seja através de
um número de bilhete de passagem, que ele tem que obedecer às regras comuns, responder de
forma padrão para poder ter acesso a esses espaços. Nesse ponto “o espaço do não lugar não cria
nem identidade singular, nem relação, mas sim solidão e similitude” (Augé, 2005, p.95.)
É na apropriação do “Não Lugar” que a performance encontra espaço para refletir a
contemporaneidade, tentar comunicar sentidos para esse homem solitário, por intermédio das artes
e da reconfiguração poética desses espaços, visando estabelecer um diálogo com o espectador
contemporâneo.
Seja a Performance uma linguagem artística que venha romper com o tradicional teatro,
seja ela uma expressão comungada por várias outras para existir, sua forma de apresentação se dá
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dentro do que se pode conceituar como teatro. Ao discorrer sobre teatro, Erika Fischer Lichte, em
entrevista concedida a Matteo Bonfito, afirma que “Na Alemanha, falamos em teatro quando há
performances, sejam elas provindas da dramaturgia, do teatro não dramático, da dança ou ópera
etc.(...) Para nós tudo é teatro. “(Lichte, 2013, p.131.)

Por outro lado, Josette Féral, em seu artigo intitulado “Por uma poética da
performatividade: o teatro performativo” afirma que o Teatro Performativo existe em todos os
palcos e que foi conceituado por Hans-Thies Lehmann como teatro pós-dramático. Esse teatro se
beneficiou da Performance, assumindo transformações quanto à sua forma, propondo uma nova
estética, apresentando novas características no fazer teatral, propondo novas reflexões em torno
da cena contemporânea. Para Féral o teatro pós-dramático é melhor definido por Teatro
Performativo, pois a performatividade é o cerne desse teatro.

Outro ponto importante abordado por Féral é que a Performance se apresenta sob dois
olhares ou dois caminhos. O primeiro é a Performance art, que possui uma visão artística e que é
uma obra estética. Ela é herança das vanguardas, ela é herança da arte da performance. A
Performance Art é uma expressão artística híbrida. Em sua própria razão de ser, ela tenta escapar
de definições em face de seu caráter amplo em possibilidades de criação, envolvendo elementos
das artes visuais, do teatro, da dança, da música, do vídeo, da poesia, do cinema, entre outras. Ela
é um mix mídia.

O segundo olhar é através da ótica de Schechner. Através dos seus Estudos da


Performance, amplia os domínios artísticos e inclui a dimensão cultural. A performance, na
concepção de Schechner, traz consigo reflexões sobre o teatro, rituais, divertimentos e cotidianos.
Ela se apresenta sob uma visão antropológica, ela é herança da antropologia e que sem dúvida
vem contribuindo para se repensar o teatro e as artes da atualidade. Ela não está ligada somente à
arte, não busca apenas valores estéticos. Como nos diz Schechner, a performance nunca é um
objeto ou uma obra de arte acabada, sempre está ligada ao domínio do fazer e ao princípio da ação.
Ela está mais conotada com um processo do que a um resultado. Na atualidade, os estudos sobre
performance apresentam uma abrangência maior. Segundo Schechner,

(...) performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e


adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou
cotidianas – são todas feitas de comportamentos duplamente exercidos,
comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam
para desempenhar, que tem que repetir e ensaiar. (Schechner, 2003, p. 27).
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E é através da interceptação desses dois “conceitos” e/ou lhares que grande parte do teatro
contemporâneo se manifesta. Nesse sentido o teatro performativo é o fruto das influências vividas
pelo teatro frente à performance.

Como experimento artístico foi criada a performance “A Rainha da Solidão”, que nasce
enquanto personificação de um dos sentimentos mais vividos na contemporaneidade, trazendo
consigo a imagem reconhecida a partir do outro enquanto solidão, seja solidão solitário, seja
solidão na multidão etc. Esse sentimento ou estado social se manifesta sem dúvida como um meio
para se pensar o homem contemporâneo e seus entrelaçamentos nesse cenário atual. A escolha
pela personagem de uma Rainha vem por influência da cultura portuguesa e luso-brasileira.
Portugal gira em torno da monarquia, suas ruas, seus castelos, palácios, trazem uma significante
e marcante presença das rainhas. No Brasil também não podemos deixar de mencionar que esse
personagem está presente culturalmente, no imaginário popular, nas danças folclóricas, entre
outros. Além disso esse personagem carrega consigo a ideia da imponência, da realeza, da
majestade, o que culmina com a ideia de algo grandioso e marcante para emblemar a ideia da
Solidão. A Rainha vai sendo concebida trazendo em sua própria imagem o reflexo da solidão.
Todo seu figurino, acessórios foi detalhadamente pensado a fim de que por si só a presença dessa
“Solidão” dialogasse com o espectador. Ela é uma imagem em movimento, uma obra viva.
Durante o processo criativo para conceber a performance, quatro foram os pontos de partida que
inspiraram a criação. Era indispensável que ela pudesse apresentar aspectos da
contemporaneidade, bem como suntuosidade de uma rainha, sedução, pensando a solidão
enquanto um sistema social que seduz e a própria solidão em si. Para atingir esses propósitos, foi
realizada minuciosa pesquisa em função desses quatro pontos norteadores: Contemporaneidade,
Suntuosidade, Sedução e Solidão, e foi através deles que se chegou ao resultado apresentado. A
cor do figurino, o modelo do vestido, a opção de estar descalça, a coroa enquanto símbolo de
imponência da rainha, trazendo em si o poder, a opção por pregos, metal, ferro, imbui a ideia de
ferir, perfurar, agredir, elucidando a solidão enquanto um estágio doloroso.

No dia 19 de janeiro de 2016, nasce oficialmente A Rainha da Solidão, transitando por vários
espaços na cidade de São Luís Maranhão - Brasil. Aqui a performance se apresenta como uma
obra artística inacabada, que está sendo construída, priorizando um processo e uma
experimentação e não visando uma obra final, se distanciando assim das tradicionais formas de
fazer teatro, desenvolvendo no espaço uma obra em processo. Essa aparição da Rainha se deu
nesse primeiro dia no aeroporto internacional Marechal Cunha Machado, na rua Grande, principal
rua do cemércio no centro da cidade e no bairro da Praia Grande, centro histórico e artístico na
cidade de São Luís. A Rainha também fez aparições em Paris na, Maison André Gouveia e na
Sorbonne, em março de 2016, participando do evendo Chiado, Carmo, metropolis e u-topia: Artes
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na Esfera Pública. Ainda pelo mesmo evento a Rainha da Solidão se fez presente no Museu do
Carmo em Lisboa em maio de 2016.

É convém declarar que construir uma performance a fim de embasar uma Tese de
doutoramento é uma tarefa bastante instigante, visto que, para a realização dessa pesquisa, me
coloco enquanto investigadora, autora da obra artística e a própria obra de arte. Imergir nessa
caminhada foi desafiador e posso afirmar que de cada passo percorrido foi sentida uma experiência
única que foi pensada e discutida à luz de teóricos que discutem os assuntos aqui propostos. Sobre
ser artista e investigador, José Quaresma nos lança uma pertinente reflexão:

Daí a suprema ironia de se chamar investigador a um artista, para efeitos


de tese de PhD no âmbito da ABR (repetimos, sobretudo nesse domínio),
pois, na verdade, desta maneira e neste contexto de produção, um artista
não é investigador. Sê-lo-á se realizar uma tese que tenha relação com a
ABR, mas que não seja exclusivamente ABR; sê-lo-á, também, se tiver
particulares condições de caráter polímata, sê-lo-á, ainda, se realizar as
duas tarefas em tempos muitos diferentes, ou tempos interpolados do seu
percurso individual. Sendo de outra maneira, optando-se por outro
percurso, só ironicamente poderemos chamar a um artista investigador
como, aliás, prosaicamente se ouve afirmar sobre a aberração da
acumulação dos dois estatutos artista/investigador, ou então,
artista/doutor”. (Quaresma, 2015, p.203)

É nesse lugar de artista e pesquisadora que procurei através da, “A Rainha da solidão”,
refletir sobre um dos sentimentos mais presentes na contemporaneidade que é o da solidão, fruto
dessa sociedade tecnológica, criando um possível diálogo com os transeuntes dos lugares e do
“Não Lugar” acerca dessa condição de se “ser” só. Considero essencial ponderar sobre a condição
do homem contemporâneo diante da solidão:

Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que
estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a
liberdade: apenas quando se está só é que se está livre. A coerção é a
companheira inseparável de toda sociedade que ainda exige sacrifícios tão
mais difíceis, quanto mais significativa for a própria individualidade.
Dessa forma, cada um fingirá, suportará ou amará a solidão na proporção
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exata do valor de sua personalidade. Pois, na solidão, o individuo


mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito toda a sua
grandeza, numa palavra: cada um sente o que é. (Shopenhauer, 2002, p.
161/162.)

A Rainha por vezes parece ser a figura radical da alteridade, a figura que aparece como
Epifania como Corpo e como Rosto Inalcansável: A “alteridade é, desde logo, um conceito
relacional. Ela não é um predicado real, como se diz na tradição, isto é, uma determinação positiva
de algo tomado em si mesmo ou na sua formalidade” (Alves, 2009, p.174). Nesse contexto
podemos pensar na performance A Rainha da Solidão, enquanto o outro que revela e desperta o
eu. É a partir da imagem que ela representa que me leva a refletir sobre eu (obra) e o eu espectador
(outro). É a presença do outro que me abre possibilidades para pensar em mim, eu me conheço a
partir dessa existência do outro. A saber sobre essa imagem da personagem:

Olhemos o rosto no qual outrem se anuncia – não procuramos aí um algo,


mas quem, não um isso, mas um Ele. E esta presença de um “ele” é
suspensão da minha própria liberdade e esforço para compreender aquele
que, no rosto, a partir de si mesmo se anuncia, um esforço que combina,
sem paradoxo, máxima proximidade e máxima distância. É nessa
proximidade primeira que se produz o fenómeno primitivo da
comunicação, a qual, (…) não pode ser descrita como a duplicação de
pensamentos num emissor e num auditor a partir da tese da idealidade da
significação. (Alves, 2009, p.181).

A performance está em processo, e a cada nova aparição pretende-se ir conhecendo e


percebendo a familiaridade ou diferenças que ela representa em contato com o outro. O que
desperta no outro esse rosto na multidão? Ou que desperta esse rosto nesse cenário artístico? Nesse
espaço habitado poeticamente? Nesse sentido, sujeito o meu olhar enquanto pesquisadora ao olhar
do Sartre quando afirma que:

Bien au contraire, loin de percevoir le regard sur les objets qui le


manifestent, mon appréhension d’un regard tourné vers moi paraît sur
fond de destruction des yeux qui ‘me regardent’; si j’appréhende le regard,
je cesse de percevoir les yeux: ils sont là, ils demeurent dans le champ de
ma perception, comme de pures présentations, mais je n’en fais pas usage,
ils sont neutralizes, hors jeu […]. Ce n’est jamais quand des yeux vous
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regardent qu’on peut les trouver beaux ou laids, qu’on peut remarquer leur
couleur. Le regard d’autrui masque ses yeux, il semble aller devant eux.
Cette illusion provident de ce que les yeux, comme objets de ma
perception, demeurent à une distance précise qui se déplie de moi à eux
— en un mot, je suis présent aux yeux sans distance, mais eux sont distants
du lieu où je ‘me trouve’ — tandis que le regard, à la fois, est sur moi sans
distance et me tient à distance, c’est-à-dire que sa présence immediate à
moi déploie une distance qui m’écarte de lui. Je ne puis donc diriger mon
attention sur le regard sans, du même coup, que ma perception se
décompose et passe à l’arrière-plan. (Jean Paul Sartre, L’Être et le Néant,
Paris, Gallimard, 1943, p. 297)

Não tendo a pretensão de submeter o meu projeto de investigação à filosofia de Jean Paul
Sartre, mas realizando uma mediação estética desta afirmação do autor com o projeto da Rainha
da Solidão, podemos inferir que, no momento em que o olhar da “Rainha” interpela o olhar do
“Outro” e vice-versa, surge em cada um dos participantes na Performance (performer e transeunte
singular) um desconforto interno devido a este desfasamento entre a percepção física das
características do orgão da visão de outrém — que tende a desmanchar-se — e a intuição da
diferença instaurada pelo “Outro”.

A distância entre o meu olhar e o dele, ou seja, um dos fatores decisivos do estranhamento
sentido por mim aquando da apreensão do “Outro” vai também produzir uma distância interna de
“mim a mim” e um vazio entre a minha percepção de um fenómeno externo (neste caso o rosto de
outrém) e a minha intuição de alguém que transcende a minha esfera subjetiva. Está aqui
estabelecido um “jogo” a partir do olhar, não um olhar físico que observa as formas, cor dos olhos,
formato e outros detalhes estéticos do personagem e/ou atriz, mas, sobretudo, um olhar para além
de uma existência física, um olhar sujeito à rejeição, à fuga ou mesmo à empatia com a
performance. É como se os olhos físicos se “destruíssem”, cedendo lugar a uma total intensidade
e troca, é um olhar que possibilita uma perturbação e que cria um desconforto e/ou identificação,
levando o espectador a experienciar diferentes emoções estéticas e subjetivas.

É através de um desenho poético criado no espaço, bem como uma ampliação das
possibilidades de relacionamentos da rainha com os transeuntes e o público de que ela dispõe, que
haverá essa identificação a partir do outro e isso somente será inscrito a partir da prática, da
habitação do lugar pela presença da rainha, através da poesia efêmera que dela brota ao perambular
nos diferentes espaços. Nesse processo penso que “Investigar a partir da prática artística, pode
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constituir-se como uma forma original, robusta, esteticamente desejada” (Quaresma, 2015, p.206).
E foi por esse percurso que visei incluir a Performance “A Rainha da solidão” num processo que
a levou ao movimento, ao inusitado, ao desconhecido, desconhecido até mesmo para a própria
artista, a fim de descobrir diversas possibilidades de respostas frente às minhas inquietações que
surgiram no decorrer da pesquisa. A rainha, enquanto imagem em movimento, já “Há detalhes
suficientes para que se compreenda. Explicitar seria estragar a poesia da coisa” (Artaud,1984)

BIBLIOGRAFIA

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Lisboa. FLUL.
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Performance A Rainha da Solidão de Cássia Pires. Aeroporto Marechal Castelo Branco, São Luís-MA-
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Performance A Rainha da Solidão de Cássia Pires. Maison André Gouveia, Paris-FR. Fonte : Leandro
Guterres.
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Performance A Rainha da Solidão de Cássia Pires.Universitaire Sorbone, Paris-FR. Fonte: Leandro


Guterres

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Performance A Rainha da Solidão de Cássia Pires. Museu do Carmo, Lisboa-PT. Fonte: José Arnaud.
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A RELEVÂNCIA DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS À INCLUSÃO SOCIAL E


EDUCACIONAL DE PESSOAS SURDAS

THE RELEVANCE OF THE BRAZILIAN SIGN LANGUAGE TO THE SOCIAL AND


EDUCATIONAL INCLUSION OF DEAF PEOPLE
Ana Karina Verde Sampaio Mendes22
Pedagoga
Mestre em Educação- Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Thelma Helena Costa Chahini23
Doutora em Educação
da Universidade Estadual Paulista -UNESP/Marília
Professora do Departamento de Educação e Professora Permanente do Programa em
Pós-Graduação em Cultura e Sociedade/UFMA
Eixo 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O objetivo primário deste estudo foi compreender, tendo em conta a percepção dos
discentes do Centro de Ensino e de Apoio à Pessoa com Surdez - CAS, em São Luís/MA, a
relevância atribuída ao aprendizado da Libras à inclusão social e educacional de pessoas com
surdez. Sendo assim, desenvolveu-se uma pesquisa exploratória, descritiva com 10 pessoas surdas
que se encontravam aprendendo Libras no CAS. Os resultados sinalizam que os alunos surdos
aprendem Libras para se comunicarem com pessoas ouvintes; para conseguirem estudar e
trabalhar; para terem autonomia; conseguirem sair de casa; fazerem amigos e conviverem com as
demais pessoas. No contexto, o intérprete da Libras é de grande relevância à inclusão social,
educacional e profissional das pessoas com surdez e na mediação da comunicação entre surdos e
ouvintes. Porém, o processo ensino-aprendizagem da Libras ainda precisa ser mais socializado
e/ou operacionalizado de maneira eficaz, visando alcançar a sociedade de forma geral e a garantia
da inclusão plena às pessoas surdas.
Palavras-chave: Surdez. Libras. Ensino. Aprendizado. Inclusão.

Abstract: The basic objective of this study was understand, taking into consideration the
perceptions of students of Centro de Ensino e de Apoio à Pessoa com Surdez (CAS), in São
Luís/MA, the relevance of learning Libras to the social and educational inclusion of people with
deafness. Thus, an exploratory, descriptive research was developed with 10 deaf people who were
learning Libras at the CAS). The results signal that deaf students learn Libras in order to
communicate with listening people; to be able to study and work; to have autonomy; to be able to
leave home; to make friends and live with other people. In the context, the interpreter of Libras is

22
E-mail: anakarinasampaio2008@hotmail.com
23
Pedagoga. Mestre em Educação (UFMA).. Pós-Doutora em Educação Especial (UFSCar). E-mail:
thelmachahini@hotmail.com.
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of great relevance to the social, educational and professional inclusion of people with deafness
and mediating communication between deaf and hearing. However, the teaching-learning process
of Libras still needs to be more socialized and/or operationalized in an effective way, aiming to
reaching the society in general and ensuring full inclusion for deaf people.
Keywords: Deafness. Libras. Teaching. Learning. Inclusion.

INTRODUÇÃO

A língua de sinais é o canal de comunicação utilizado pelas comunidades surdas em todo


o mundo, porém, não é universal, cada país tem a sua própria língua.
Em 1857, a convite do Imperador D. Pedro I, o professor Ernet Hwet, fundou o Instituto
Nacional de Educação de Surdos (Ines), o que contribuiu para a criação da Língua Brasileira de
Sinais (Libras). Porém, o seu reconhecimento na qualidade de língua da comunidade surda
brasileira, e, por conseguinte, o segundo idioma do país, só foi reconhecido oficialmente quatro
décadas e meia depois da sua criação (INSTITUTO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DE SURDOS,
2014).
De acordo com os estudos de Silva e Treml (2009), a comunicação é a maior dificuldade
enfrentada pelos surdos. Para facilitar esse processo, eles se utilizam da Libras, que é considerada
uma língua própria da comunidade surda. Portanto, quando as pessoas ouvintes aprendem Libras,
estão possibilitando a inclusão social das pessoas com surdez, visto que essas pessoas têm direitos
de estarem inseridas na sociedade por meio da linguagem.
No contexto, foi questionado quais as percepções dos discentes surdos do Centro de Ensino
e de Apoio à Pessoa com Surdez (CAS), em relação à importância do aprendizado de Libras à
inclusão social e educacional de pessoas com surdez? O objetivo primário deste estudo foi
compreender, tendo em conta a percepção dos discentes do CAS, em São Luís/MA, a relevância
atribuída ao aprendizado da Libras à inclusão social e educacional de pessoas com surdez.

Metodologia

Desenvolveu-se uma pesquisa exploratória, descritiva, primando pela abordagem


qualitativa, pois, de acordo com Gil (2010) esse tipo de pesquisa é apropriado nos casos pouco
conhecidos e/ou pouco explorados, bem como possibilita descrever o fenômeno pesquisado.
Fizeram parte do estudo 10 alunos surdos do CAS, em São Luís/MA, que se encontravam
aprendendo Libras. Sendo 7 do gênero masculino e 3 do feminino com faixa etária entre 17 e 36
anos de idade. Em relação ao nível de escolaridade, 1 cursava o ensino superior, 4 possuíam apenas
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o ensino médio completo e 2 possuíam apenas o ensino fundamental. As 3 mulheres tinham ensino
médio completo. A ocupação dos alunos era de empacotador, vigia e serviços gerais. As alunas
trabalhavam como caixa de supermercado e serviços gerais.
Visando preservar suas identidades, os participantes encontram-se identificados neste
estudo por: S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7, S8, S9 e S10.
Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, pois de acordo com
Triviños (2008, p. 152) essa técnica “[...] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas
também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...] além de manter a presença
consciente e atuante do pesquisador no processo de coleta de informações”, bem como por ter
maior flexibilidade e por permitir que o entrevistador possa reformular a pergunta visando uma
melhor compreensão por parte do entrevistado. As entrevistas foram realizadas com a mediação
de dois intérpretes de Libras.
Os procedimentos ocorreram levando-se em consideração os critérios éticos envolvendo
seres humanos. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
concordando com suas participações e cientes de que os resultados seriam divulgados em
Congressos e em revistas científicas.

Resultados e discussões

Em relação às entrevistas realizadas, ao serem questionados qual o motivo que os faziam


estar aprendendo a Libras, no CAS, os dados revelam que os alunos (S1 e S8) querem sair da
rotina, serem incluídos socialmente, pois, ter uma necessidade especial não os fazem incapazes,
apesar das limitações impostas socialmente; já os participantes (S2, S3, S4, S5, S6 e S9) buscam
sua autonomia, querem ser independentes financeiramente, estudar, construir laços de amizade;
os alunos (S7 e S10) informaram que querem ir além, incluir-se verdadeiramente, sentirem-se com
os mesmos direitos e oportunidades das demais pessoas sem deficiência, desejam aprender Libras
para melhorar sua autoestima, para sentirem-se participantes no contexto social, como as demais
pessoas, e a aprendizagem da nova língua contribui para isso.
Diante dos fatos, faz-se importante citar Magalhães Junior (2007) por enfatizar a relevância
do processo ensino-aprendizagem da Libras no contexto social e educacional. No mesmo sentido,
Fernandes (2008) esclarece que dominar uma língua não é apenas conhecer algumas palavras,
mas, ser capaz de um diálogo e estabelecer uma boa comunicação. Portanto, percebe-se que os
dados convergem com esse princípio, visto que os referidos participantes buscam o aprendizado
da Libras para estabelecerem uma comunicação com outras pessoas surdas, no contexto social,
educacional e profissional.
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Assim, Pinto (2010) informa que é por meio dos significados criados de forma consciente
entre grupos de uma sociedade que acontece a interação e a interatividade, visto que as pessoas
que procuram aprender a Libras estão conscientes da relevância da comunicação no contexto
social, educacional e profissional.
Quando foi indagado se precisavam de intérpretes de Libras e, caso afirmativo, em qual
situação costumavam precisar mais desse profissional, os participantes foram unânimes ao dizer
que o intérprete da Libras é de fundamental importância no contexto das instituições de ensino,
pois, fazem a mediação entre eles e as demais pessoas ouvintes, possibilitando a comunicação e,
consequentemente, o acesso ao conhecimento formal.
Sabe-se, também, que a relevância do referido profissional se estende ao contexto social e
profissional, pois, como enfatizado por Gesser (2000, p. 47), “o interprete tem grande importância
no que se refere a interação entre surdos e ouvintes”, visto que, apesar de os surdos se
comunicarem, na maioria das vezes, com seus familiares e com outras pessoas surdas, por meio
do intérprete da Libras essa comunicação se estende à sociedade em geral.
No contexto, ressalta-se que a Libras possui sinais com significados contextualizados, por
isso a importância do intérprete na mediação da comunicação entre surdos e ouvintes. Nesse
sentido, se faz necessário citar a Lei nº 12.319, de 1º de setembro de 2010, que regulamenta a
profissão de tradutor e intérprete da Libras, na qual esclarece que esse profissional tem
competência para realizar interpretação das duas línguas de maneira simultânea ou consecutiva e
proficiência em tradução e interpretação da Libras e da Língua Portuguesa (BRASIL, 2010).
A referida Lei, no Art. 6º, atribui ao tradutor e intérprete da Libras, no exercício de suas
competências: efetuar comunicação entre surdos e ouvintes, surdos e surdos, surdos e surdos-
cegos, surdos-cegos e ouvintes, por meio da Libras para a língua oral e vice-versa; interpretar, em
Língua Brasileira de Sinais - Língua Portuguesa, as atividades didático-pedagógicas e culturais
desenvolvidas nas instituições de ensino nos níveis fundamental, médio e superior, de forma a
viabilizar o acesso aos conteúdos curriculares; atuar nos processos seletivos para cursos na
instituição de ensino e nos concursos públicos; atuar no apoio à acessibilidade aos serviços e às
atividades-fim das instituições de ensino e repartições públicas; e prestar seus serviços em
depoimentos em juízo, em órgãos administrativos ou policiais (BRASIL, 2010).
No mesmo sentido, a Lei citada enfatiza, no Art. 7º, que esse profissional deve exercer sua
profissão com rigor técnico, zelando pelos valores éticos a ela inerentes, pelo respeito à pessoa
humana e à cultura do surdo, bem como: pela honestidade e discrição, protegendo o direito de
sigilo da informação recebida; pela atuação livre de preconceito de origem, raça, credo religioso,
idade, sexo ou orientação sexual ou gênero; pela imparcialidade e fidelidade aos conteúdos que
lhe couber traduzir; pelas postura e conduta adequadas aos ambientes que frequentar por causa do
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exercício profissional; pela solidariedade e consciência de que o direito de expressão é um direito


social, independentemente da condição social e econômica daqueles que dele necessitem; pelo
conhecimento das especificidades da comunidade surda (BRASIL, 2010).
Como percebido, o referido profissional tem grade relevância no processo de inclusão da
pessoa surda nos contextos social, educacional e profissional. Portanto, se faz necessário investir
nesses profissionais para que consigam mediar a comunicação entre surdos e ouvintes, bem como
garantir o direito ao exercício da cidadania às referidas pessoas.
Ao serem indagados se havia alguém, entre seus familiares, que sabia Libras, os dados
revelam que no contexto familiar de 50% dos alunos surdos (S1, S2, S3, S4, S5) apenas um
familiar sabia Libras, e para os outros 50% (S6, S7, S8, S9, S10), nenhum familiar que residia
com eles sabia a Língua Brasileira de Sinais.
Como verificado, pode-se deduzir que para a maioria dos alunos surdos não há, dentro de
suas famílias, pessoas que saibam se comunicar com eles, adequadamente, por meio da Libras,
dificultando como isso, a interação e interatividade entre eles.
Sendo assim, enfatiza-se que a comunicação entre surdos e ouvintes precisa ser vista como
umas das prioridades de convivência, principalmente na socialização primária, visto que de acordo
com Stelling (1996) a base de todo o conhecimento que temos vem da família, e é nela que se
iniciam os ensinamentos de atitudes, princípios e valores que irão conduzir nossas vidas,
portanto, a comunicação de pessoas surdas e seus familiares deve ser iniciada na própr ia
família e estendida ao contexto social, educacional e profissional, pois, é assim que a inclusão
deve se estabelecer.
Ainda no contexto da comunicação entre surdos e ouvintes, os estudos de Negrelli e
Marcon (2006, p. 103) enfatizam que “a participação da família na comunicação do surdo, por
meio dos sinais, possibilitará a esse indivíduo a interação com o mundo e tornará o convívio mais
agradável e feliz”.
Em relação à questão sobre qual a importância do aprendizado da Libras, os dados
sinalizam que para a maioria dos alunos surdos, o aprendizado da Libras é para frequentar a
escola e poder estudar, bem como para trabalhar, fazer cursos, ter amigos, ser compreendido,
sair de casa e frequentar lugares.
Sendo assim, percebe-se que os referidos alunos buscam o aprendizado da Libras para
conseguirem se comunicar no contexto social, educacional e profissional, bem como se
sentirem incluídos em todos os setores da sociedade.
Sobre a temática, Skliar (1998) ressalta que por meio da língua de sinais o surdo pode
e deve ser inserido na sociedade, levando-se em consideração sua potencialidade e seus
direitos de cidadão.
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Nesse sentido, Laraia (2001) ressalta que o homem é fruto do meio a que pertence, sua
história pode ser escrita de forma diferente e a interação das pessoas pode favorecer a aceitação
do que apresenta necessidades diferenciadas e o desenvolvimento de suas potencialidades.
No contexto, a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, esclarece que a Libras é a forma de
comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura
gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de
comunidades de pessoas surdas do Brasil (BRASIL, 2002).
O Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, Cap. IV, Art. 14, §1º II, enfatiza que é
obrigatório ofertar o ensino da Libras desde a Educação Infantil e o ensino da Língua Portuguesa
como segunda língua às pessoas surdas (BRASIL, 2005).
Ainda sobre a mesma questão, Damázio (2005, p. 61) ressalta que a Libras possibilita “o
desenvolvimento linguístico, social e intelectual daquele que a utiliza enquanto instrumento
comunicativo, favorecendo seu acesso ao conhecimento cultural-científico, bem como a
integração no grupo social ao qual pertence”.
No mesmo contexto, os estudos de Carvalho (2007, p. 33), constataram que “[...] a Libras
é o recurso inicial necessário para a verdadeira emancipação dos surdos e sua inclusão tanto
escolar quanto social”.
Ao serem questionados se o aprendizado da Libras é fácil, os dados demonstram que
para os participantes, aprender a Libras é fácil, mas precisa prestar bem atenção aos sinais,
pois, leva um tempo para aprender e tem que ter paciência e persistência. Percebe-se, também
que a facilidade em aprender e/ou o desejo de aprender está diretamente ligado à necessidade
de comunicação nos contextos social, educacional e profissional em que fazem ou precisam
fazer parte.
No contexto, os dados convergem com o que é colocado por Lacerda (2000) ao sinalizar
que o surdo deve aprender o quanto antes sua língua, para que seja mais fácil o processo de
adaptação, não esperando que ocorram situações especiais para, então, buscar por esse
aprendizado.
No mesmo sentido, Quadros (1997) informa que o processo de aquisição da Libras é
parecido com o processo de aprendizagem do Português, pois, também precisa de muita atenção
e prática, contudo, a facilidade está no contexto da pessoa que quer aprender, seus interesses e/ou
objetivos, mesmo diante da complexidade das duas Línguas.
Sendo assim, cita-se Sacks (2010, p. 82) por esclarecer que “além de representar uma
conquista para os surdos, a Libras é um estímulo para novas conquistas e ampliação dos horizontes
para surdos e ouvintes”.
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Em relação ao questionamento sobre qual seria o motivo de a maioria das pessoas ouvintes
não saberem a Libras, os dados demonstraram, de acordo com as percepções dos participantes,
que isso ocorre por vários motivos, dentre esses: por não precisarem da Língua para se comunicar;
por não gostarem da Libras; por acharem difícil e/ou por não querem aprender.
No mesmo contexto, para a maioria dos participantes, as pessoas ouvintes não buscam o
aprendizado da Libras por não precisarem dela para se comunicar, justamente por poderem falar
e escutar, normalmente.
Quanto a importância da Libras à interação entre surdos e ouvintes, sabe-se da grande
necessidade de esta Língua ser inserida nos currículos de todas as instituições de ensino, haja vista
que o número de surdos no Estado do Maranhão tem aumentado, assim, se faz necessário o seu
aprendizado visando a inclusão social, educacional e profissional da pessoa com surdez.
Sobre o assunto, Sá (2002) informa que ainda existem situações de grande desvantagem
para os surdos, portanto, é preciso de mais suporte para que eles possam interagir com tudo o que
há em seu entorno.
Em relação à questão se a pessoa surda consegue se comunicar com quem não sabe a
Libras, os dados revelam que apesar de 3 alunos surdos (S4, S5 e S6) terem respondido que sim,
dois desses informam que a comunicação não é compreensível, é confusa; para 7 alunos surdos
(S1, S2, S3, S7, S8, S9, S10), pouco e/ou muito pouco conseguem se comunicar com quem não
sabe a Língua de Sinais.
Sendo assim, os fatos nos permitem deduzir que a maioria dos alunos surdos não possuem
comunicação, compreensível, com quem não sabe a Libras.
Por tanto, vale citar Skliar (1998, p. 37) ao enfatizar que “quando um surdo é tratado da
mesma maneira que um ouvinte, ele fica em desvantagem”. Para a referida autora, aprender a
Língua de Sinais é tão importante quanto aprender inglês para que o indivíduo se sinta incluído
ao visitar um país de língua inglesa. Se é inclusão, e se incluir é democracia, é importante que
todos, tanto surdos quanto ouvintes, aprendam Libras, aí sim, estaremos tratando a todos de igual
para igual, estaremos realmente incluindo a pessoa surda em diversos contextos.
Ainda sobre o mesmo contexto, Honora e Frizanco (2009) esclarecem que a língua de
sinais é viva como outra qualquer e vive em constante transformação, sempre se adaptando às
condições de inclusão para o entendimento. No caso específico dos surdos, a Libras precisa ser
encarada como uma necessidade deles, por isso a sociedade precisa se conscientizar da relevância
do aprendizado, por todos, dessa língua, em respeito à inclusão das pessoas com surdez em sua
própria pátria.
Assim, de acordo com Goldfel (2000), a sociedade, em sua maioria, ainda possui uma
visão negativa dos surdos e muitos de seus direitos não estão sendo respeitados. Portanto, a
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questão da inclusão precisa ser enfrentada com seriedade, pois todas as pessoas tem que se
entender dentro de suas possibilidades de aprender, e aceitar o diferente como parte integrante de
um grande grupo com diversidades.
Ao serem questionados sobre como se sentiam ao falarem com quem não sabe a Libras, os
dados evidenciaram muita insatisfação por parte dos alunos surdos em relação ao ouvinte que não
consegue entender a Libras e dificulta muito a vida deles, pois a maioria deles fica perdida nas
conversas, se sentindo chateados por não se sentirem inseridos socialmente.
Quando foram indagados se já ouve situação em que se sentiram excluídos socialmente
devido à falta de comunicação com os ouvintes, os participantes foram unânimes ao informar que
já houve várias situações em que precisaram se comunicar com os ouvintes, mas que devido esses
não saberem a Libras, não foi possível uma compreensão entre ambos, ocasionando com isso, uma
exclusão do surdo no contexto social e educacional.
Sobre a referida questão, Lacerda (1996) enfatiza que o surdo é usuário de uma língua
ainda desconhecida por muitas pessoas, e dessa forma, ficam isolados mesmo tendo bons
relacionamentos entre pessoas que estão a sua volta.
Quando foi perguntado se o intérprete da Libras era indispensável nas instituições de
ensino, os resultados revelam que o intérprete da Libras é de extrema relevância, visto que sem a
mediação desse profissional, a maioria das pessoas com surdez fica à margem das informações
e/ou conhecimentos socializados nos espaços sociais, educacionais e profissionais.
Nesse sentido, foi verificado que a ausência do intérprete da Libras no contexto
educacional, para a maioria dos surdos, inviabiliza a aprendizagem. Assim, percebe-se que esses
profissionais são de grande importância no processo ensino-aprendizagem dos referidos alunos e
no decorrer da socialização deles com o mundo no qual se encontram inseridos.
Sendo assim, cita-se os esclarecimentos obtidos por meio do Portal Educação (2017) ao
enfatizar que a importância do intérprete de Libras é devida esse profissional ter
[...] a função de ser o canal comunicativo entre o aluno surdo, o professor, colegas
e equipe escolar, bem como por servir como tradutor entre pessoas que
compartilham línguas e culturas diferentes, [...] mas, seu contato com os alunos
surdos não poderá ser maior que o do professor de sala.
Porém, se faz importante informar, de acordo com Quadros (1997, p. 12), que
[...] o processo de aquisição dos surdos no Brasil é totalmente atípico, pois,
aprendem tardiamente a Libras, com a sua privação acabam dificultando o seu
aprendizado no português escrito, requerendo uma prática pedagógica de forma
mais repensada e significativa.
No mesmo contexto, Silva (2007, p. 21) chama à atenção para o fato de que “as práticas
pedagógicas constituem o maior problema na escolarização das pessoas com surdez”. A autora
também enfatiza que se faz necessário repensar essas práticas para que os alunos com surdez, não
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pensem que suas dificuldades para o domínio da leitura e da escrita sejam unicamente derivadas
da deficiência, mas, sim das metodologias utilizadas no processo ensino-aprendizagem.
Assim, em relação ao processo ensino-aprendizagem de pessoas surdas, Perlin e Miranda
(2011), esclarecem que nesse processo tem que haver proximidade linguística e cultural, para que
haja aprendizagem de maneira eficaz, bem como significativa, isto é, com respeito à pessoa
humana e à cultura do surdo.
Em relação à pergunta sobre o que está faltando para que um maior número de pessoas
aprenda a Libras, os dados revelam, de forma geral, compreender que esse aprendizado é muito
importante para a comunicação com eles, bem como se importar com o processo de socialização
do surdo; respeitar a cultura deles; serem solidários para com suas necessidades de comunicação
específicas; quererem aprender e otimizarem seus tempos para o aprendizado.
Nesse sentido, cita-se Stumpf (2009) por esclarecer que as pessoas pertencem a grupos
organizados e tem sua forma própria de comunicação, assim, precisa existir interesse para
aprender a Libras, pois os surdos precisam compreender o que os ouvintes falam e se comunicar
com eles, visto que por meio da interação todos podem conviver e conversarem com compreensão,
portanto, o aprendizado da Libras precisa ser uma busca consciente de todos em prol da inclusão.

Conclusões

Retornando aos objetivos pretendidos que foram os de compreender a relevância atribuída


ao aprendizado da Libras, tendo em conta a percepção dos discentes do CAS, em São Luís/MA,
conclui-se que há um público diversificado que busca aprender Libras no CAS, variando de
pessoas surdas, familiares de pessoas surdas, diversos profissionais e pessoas da comunidade, no
geral.
Nesse sentido, os alunos surdos que aprendem Libras no CAS, o fazem pelos motivos
variados, como no caso específico, para se comunicarem com as pessoas ouvintes, para
conseguirem estudar e trabalhar, para terem autonomia, conseguirem sair de casa, fazerem amigos
e conviverem com as demais pessoas.
O intérprete da Libras é de grande relevância à inclusão social, educacional e profissional
das pessoas com surdez, bem como na mediação da comunicação entre ouvintes e surdos, e o CAS
tem grande relevância nesse processo.
A maioria dos familiares dos discentes surdos, não sabem Libras, sinalizando com isso, o
quanto a pessoa surda fica à margem da interação e da interatividade durante a socialização
primária, bem como na sociedade, no geral.
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O aprendizado da Libras para a maioria dos alunos surdos do CAS é fácil, mas, necessita
de muito estudo, muita atenção e muita prática, pois, é uma língua que possui muitos sinais e
dentre esses, muitos são parecidos, há muitas variações, precisa de muita atenção e muita prática.
De acordo com os alunos surdos, a maioria das pessoas ouvintes não sabem a Libras porque
não necessitam dela para se comunicar e/ou porque não querem aprendê-la; por não terem
familiares surdos; por desinteresse e pela própria dificuldade de aprender, de algumas pessoas.
Sem a Libras a comunicação entre surdos e ouvintes fica prejudicada. No contexto, todos
ressaltam a importância da Libras à inclusão social, educacional e profissional das pessoas surdas.
Os alunos surdos se sentem perdidos e excluídos ao tentarem se comunicar com quem não
sabe Libras, bem como se sentem, em casos específicos, com raiva, chateados, tristes e com a
sensação de que ninguém os compreende.
Todos os alunos surdos já se sentiram e ainda se sentem excluídos socialmente devido à
falta de comunicação e compreensão entre eles e a maioria das pessoas ouvintes, no caso
específico, em situações de descrédito de suas capacidades e/ou potencial humano; pelo
desinteresse das pessoas ouvintes em quererem se comunicar com eles; pelos estigmas e
preconceitos em relação à deficiência auditiva e/ou surdez; pelos sentimentos de dó para com eles;
pelo descaso e pelas limitações impostas socialmente.
Concluindo os achados da pesquisa, de acordo com os alunos surdos do CAS, o que está
faltando para que as pessoas aprendam a Libras, em primeiro lugar, é quererem aprender, bem
como: sentirem a necessidade de se comunicar com as pessoas surdas; se sensibilizarem com a
condição de exclusão em que os surdos se encontram.
Nesse sentido, se faz necessário a inclusão da Libras, tanto durante a formação inicial
quanto nas formações continuadas, para que a comunicação e/ou interação e interatividade entre
as pessoas surdas e as ouvintes se estabeleça de maneira eficaz nos contextos social, educacional
e profissional.
Portanto, diante dos fatos, é inegável a relevância da Libras no processo de inclusão das
pessoas com deficiência auditiva e/ou com surdez na sociedade em que se encontram inseridos,
assim como se faz urgente a desconstrução de mitos, estigmas, preconceitos e atitudes sociais
desfavoráveis em relação à deficiência e ao potencial humano das referidas pessoas.
Espera-se que este estudo desperte nas autoridades competentes e nas demais
pessoas o olhar e a escuta sensível para a situação de exclusão em que muitas pessoas surdas
estão sendo colocadas, justamente por ser negado a elas o direito ao exercício de suas
cidadanias, o respeito à pessoa humana e à cultura do surdo.
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REFERÊNCIAS

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Página 208 de 2230

ACESSIBILIDADE WEB EM SITES GOVERNAMENTAIS: UM ESTUDO DE CASO


DO SITE DA SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA DO MARANHÃO

WEB ACCESSIBILITY IN GOVERNMENT SITES: A CASE STUDY OF THE


MARANHÃO STATE DEPARTMENT OF CULTURE'S WEBSITE
Wesley Soares da Silva
Graduando em Biblioteconomia - UFMA
Orientadora: Prof.ª Maria Raimunda Ramos Marinho
Mestre em Ciência da Informação – PUCCAMP
Professora do Departamento de Biblioteconomia da
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O artigo tem como tema principal a acessibilidade na web, entendida como fator
propulsor do fenômeno da inclusão social e digital, permitindo ao cidadão, independente de
possuir ou não deficiência ou quaisquer limitações, exercer seu direito de acesso à informação
inclusive no contexto dos ambientes web. Objetiva avaliar a acessibilidade do website da
Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (SECMA) com base no Modelo de Acessibilidade
em Governo Eletrônico (eMAG 3.1) sob a perspectiva de usuários com deficiência visual. O
estudo tem natureza exploratória e descritiva com abordagem quali-quantitativa, classificando-se
como estudo de caso, cujo o universo da pesquisa é constituído pelos sítios de internet das 34
Secretarias e Agências de Estado do Maranhão, em que foi selecionada como amostra um site – o
site da SECMA. Configura como projeto de pesquisa em andamento, tendo como método de
análise três perspectivas: avaliação de acessibilidade automática, avaliação de acessibilidade por
inspeção e avaliação de acessibilidade realizada por usuários com deficiência visual. Apresenta os
resultados preliminares da pesquisa obtidos na etapa de avaliação automática. Conclui que há uma
necessidade de reorganização dos sites do poder público estadual do Maranhão e que a
acessibilidade na web desempenha papel chave na construção de uma sociedade mais humana e
igualitária.
Palavras-chave: Acessibilidade. Acessibilidade na web. Inclusão digital. Inclusão social. Acesso
à informação.

Abstract: The main theme of this article is web accessibility, understood as a driving force of the
phenomenon of social and digital inclusion, allowing citizens, regardless of their disability or any
limitations, to exercise their right of access to information even in the context of web
environments. It aims to evaluate the accessibility of the website of the Secretary of State of
Culture of Maranhão (SECMA) based on the e-Government Accessibility Model (eMAG 3.1)
from the perspective of people with visual disabilities. The study has an exploratory and
descriptive nature with a qualitative and quantitative approach, being classified as a case study,
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whose research universe is made up of the websites of the 34 Secretaries and Agencies of the State
of Maranhão, in which a site was selected as a sample. - the SECMA website. It configures as an
ongoing research project, having as its analysis method three perspectives: automatic accessibility
evaluation, inspection accessibility evaluation and accessibility evaluation performed by vision
impaired users. Presents preliminary research results obtained in the automatic evaluation step. It
concludes that there is a need for reorganization of the Maranhão state government websites and
that web accessibility plays a key role in building a more humane and egalitarian society.
Keywords: Accessibility. Web accessibility. Digital inclusion. Social inclusion. Information
Access.

1 INTRODUÇÃO
Atualmente, para a maioria das pessoas, o uso da internet passou a ser algo rotineiro e
contínuo. No trabalho, na escola, assim como nos momentos de lazer, a internet vem
proporcionando a comodidade de serviços, interação social, e acesso amplo e rápido à informação.
No entanto, ainda existem muitas barreiras que impedem as pessoas de desfrutarem das várias
vantagens que essa rede proporciona. Uma dessas barreiras é a criação de interfaces gráficas sem
a utilização de padrões e normas que garantam a acessibilidade a todos, inclusive das pessoas com
deficiência ou limitações temporárias.
O componente Web, por sua vez, desempenha um papel fundamental no avanço que a
Internet representa no cotidiano de pessoas com deficiência ou limitações, facilitando a vida
dessas pessoas, possibilitando a elas novas formas de relacionamento com o mundo,
desempenhando atividades antes inviáveis. Desse modo, a acessibilidade na Web deve ser pensada
como um elemento fundamental para a garantia do direito ao acesso à informação, pois ela
pressupõe que websites devam ser concebidos, projetados e desenvolvidos de forma a permitir
que qualquer pessoa, independentemente de suas capacidades físicas, cognitivas, auditiva, visual,
de fala, etc., possam navegar e interagir tendo igual acesso à informação, às funcionalidades, aos
serviços e produtos disponíveis em rede.
Contudo, o desenho universal visado pelos sites governamentais, por vezes, cria ambientes
informacionais demasiadamente simples e, consequentemente, geram lacunas quanto ao
atendimento das necessidades de determinados perfis de usuários, como por exemplo, usuários
com deficiência visual, os quais não podem ter suas necessidades especiais agrupadas ou
generalizadas. Estes e outros usuários com diferentes tipos de deficiência são mais prejudicados
ao percebermos: a quantidade excessiva de informações presentes em sites de órgãos
governamentais; a desorganização destas informações nas páginas desses sites – o que prejudica
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o desempenho de usuários com deficiência ao buscar informações nesses ambientes (falta de


usabilidade); bem como a inacessibilidade destas informações em variados casos.
Neste sentido, indaga-se o seguinte: As interfaces de websites de órgãos do poder púbico
estadual do Maranhão, especificamente o site da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão
(SECMA), apresenta uma qualidade quanto à acessibilidade para o pleno uso de deficientes
visuais, ou há uma transferência à web dos problemas de acesso e manuseio dos suportes
informacionais tradicionais?
Diante de tais constatações e questionamentos, a acessibilidade na web e a garantia do
direito do cidadão ao acesso à informação foram temas de estudo no presente trabalho, que se trata
de projeto de pesquisa em andamento, cujo objetivo principal é avaliar a acessibilidade do website
da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (SECMA) com base no eMAG 3.1, sob a
perspectiva de usuários com deficiência visual, de modo a identificar os problemas de
acessibilidade (barreiras) presentes no website.
Desta forma, apresenta-se os resultados parciais da pesquisa obtidos na etapa de avaliação
automática feita pelo software Avaliador e Simulador de Acessibilidade em Sítios (ASES) em sua
versão Web, visando contribuir para o resultado final da pesquisa sobre acessibilidade web em
sites governamentais.

2 METODOLOGIA
O estudo caracteriza-se como pesquisa científica teórica-empírica, que busca investigar
sobre o processo de interação e usabilidade do website da Secretaria de Estado da Cultura do
Maranhão (SECMA) por usuários com deficiência visual. Quanto aos objetivos, a pesquisa é do
tipo exploratória e descritiva, uma vez que será explorada a realidade empiricamente em busca de
maior conhecimento para posterior descrição. A abordagem é qualitativa e conta com uma
pesquisa bibliográfica, uma vez que se busca mapear e compreender a produção cientifica em
livros, artigos, bancos de teses e dissertações etc., a base conceitual para intermediar a discussão
dos resultados.
Possui natureza avaliativa, no contexto das interfaces de usuários, uma vez que será
realizado um ensaio de interação com usuários deficientes visuais, com o objetivo de avaliar a
acessibilidade do site em questão.
Segundo Prates e Barbosa (2003), a avaliação de interfaces de usuário visa analisar a
qualidade de uso de um sistema, entendendo-se por qualidade de uso a facilidade e a eficiência de
aprendizado e de uso de um sistema, assim como a satisfação do usuário com relação a este
aprendizado/uso.
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Ainda quanto a avaliação, vale destacar, esta teve caráter somativo, considerando avaliação
somativa como sendo a avaliação que ocorre sob um produto já finalizado, diferenciando-se da
avaliação formativa, como explicam Prates e Barbosa (2003, não paginado):
Normalmente, enquanto as avaliações formativas têm por objetivo melhorar a
qualidade do sistema, tornando-o mais usável para o usuário, as avaliações
somativas buscam verificar a existência de determinados aspectos no sistema
desenvolvido, como por exemplo a sua conformidade com um padrão
estabelecido.
Atualmente, o site da SECMA possui 504 páginas, portanto, foram selecionadas 3 páginas
para a avaliação, conforme as recomendações do W3C/WAI, que sugere que sejam analisadas as
páginas iniciais dos sites, páginas que contenham formulários, tabelas, com imagens informativas,
páginas que contenham alguma funcionalidade, bem como páginas que gerem resultados de forma
dinâmica.
Assim, foram escolhidas as seguintes páginas: página principal (página inicial) da
Secretaria de Estado da Cultura, pois é através desta que seus usuários são remetidos a outras
páginas; página de cadastro do e-OUV, pois é através desta ferramenta que o cidadão maranhense
tem a possibilidade de tirar dúvidas, exprimir críticas e se informar, de maneira geral, sobre
eventos culturais promovidos pela Secretaria; página da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, pois
traz informações gerais sobre como produtores culturais podem conseguir patrocínio, orientando
estes a submeter projetos culturais.
Diversos autores recomendam a utilização de mais de um método na avaliação de
acessibilidade (BRAJNIK, 2006); (EMAG, 2014); (WCAG, 2018); (BREWER, 2002). É também
reconhecida a eficiência da combinação desses métodos, em especial métodos de inspeção (em
que se tem o olhar do especialista) com testes com usuários:

Muitos estudos demonstram que muitos problemas encontrados por métodos de


inspeção não são detectados com testes de usuários e vice-versa. Esses estudos
sugerem que os melhores resultados são obtidos combinando testes com usuários
e inspeções. (ROCHA; BARANAUSKAS, 2003, p. 165).
Desta forma, os métodos considerados para a execução da avaliação no presente estudo
foram 3: 1) avaliação de acessibilidade utilizando de ferramenta automática de avaliação
(Avaliador e Simulador de Acessibilidade em Sítios – ASES); 2) avaliação de acessibilidade feita
por 2 especialistas (avaliação por inspeção); 3) avaliação de acessibilidade realizada por 3
usuários24 com deficiência visual, buscando aproximar-se da real interação usuário-computador.

3 ACESSIBILIDADE

24
De acordo com Nielsen (2000), para se identificar problemas reais em uma interface, um experimento onde constam
de 3 a 5 usuários participantes é suficiente para a avaliação desta.
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Acessibilidade, de acordo com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(2006), significa dizer que pessoas com deficiência terão seus direitos assegurados assim como as
demais pessoas, abrangendo os direitos de acesso ao meio físico, ao transporte, à informação e
comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, bem como a
outros serviços e instalações.
Mas o que significa, em seu contexto amplo, a palavra “deficiência”? À nível internacional,
o conceito de deficiência amplamente aceito é o da Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde (CIF, 2004), que substituiu o enfoque negativo do conceito de deficiência
recaído em sua edição anterior (Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e
Desvantagens - CIDID), ambos os documentos fazendo parte da “família” de classificações
desenvolvida pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Por deficiência, a CIF (2004) entende como problemas nas funções ou estruturas do
corpo25. Também se classifica deficiência em 3 grandes grupos: temporária ou permanente;
progressiva, regressiva ou estável; intermitente ou contínua.
A incapacidade, por sua vez, é o resultado de uma complexa relação entre condição de
saúde – fatores pessoais – fatores externos do/ao indivíduo, determinando a funcionalidade deste
indivíduo em determinado domínio de sua vida (ver figura 1).
Figura 1 - Interação entre os componentes da CIF

Fonte: CIF (2004)


Desta forma, contextos diferentes impactam de maneira distinta (positiva ou negativa)
nestes indivíduos, como exemplo, podemos dizer que determinada sociedade que contém barreiras
limitará o desempenho ou a participação do indivíduo nela (por exemplo websites governamentais
inacessíveis) ou não fornecendo facilitadores (indisponibilidade de tecnologias assistivas).
Como visto, o conceito de deficiência está imbricado ao contexto no qual o indivíduo está
inserido, entendendo-se este contexto dividido em fatores pessoais e ambientais. Assim,
deficiência e incapacidade passam a ser vistas sob um olhar mais social, mais humano..., que não
somente ligados à saúde:

25
O corpo é entendido como organismo humano no seu todo, incluindo assim as funções mentais (ou psicológicas).
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[...] elas não são apenas uma consequência das condições de saúde/doença, mas
são determinadas também pelo contexto do meio ambiente físico e social, pelas
diferentes percepções culturais e atitudes em relação à deficiência, pela
disponibilidade de serviços e de legislação. (FARIAS; BUCHALLA, 2005, p.
190).
3.1 Inclusão social através da acessibilidade
Tendo em vista a diversidade de pessoas na sociedade contemporânea, torna-se
imprescindível discutir-se sobre aspectos que compõe o conceito de inclusão social. Partindo do
conceito de Sposati (1996), Passerino e Montardo (2007, p. 5) entendem inclusão social como
sendo:
[...] o processo estabelecido dentro de uma sociedade mais ampla que busca
satisfazer necessidades relacionadas com qualidade de vida, desenvolvimento
humano, autonomia de renda e equidade de oportunidades e direitos para os
indivíduos e grupos sociais que em alguma etapa da sua vida encontram-se em
situação de desvantagem com relação a outros membros da sociedade.
Numa vertente mais específica e mais atual da inclusão social encontramos a inclusão
digital, onde o cidadão do século XXI possui um direito a mais, o direito de ser incluído
digitalmente. Assim, “[...] inclusão digital é um processo que deve levar o indivíduo à
aprendizagem no uso das TICs e ao acesso à informação disponíveis nas redes, especialmente
aquela que fará diferença para a sua vida e para a comunidade na qual está inserido.” (SILVA et
al., 2005, p. 32).
Desta forma, o conceito de acessibilidade torna-se parte dessa complexa problemática que
é a inclusão social/digital, merecendo especial atenção, uma vez que envolvem questões de suma
importância para o pleno exercício da cidadania, como a própria formação intelectual, cultural e
política dos cidadãos.
Podemos entender, portanto, que a acessibilidade relaciona-se com o conceito de inclusão
social na medida em que vislumbramos a inclusão social como um paradigma de sociedade, onde
os sistemas da sociedade respeitam as diversidades humanas – etnia, raça, língua, nacionalidade,
gênero, orientação sexual, deficiência, etc. – oferecendo-lhes condições equitativas de atuarem
nos mais diversos contextos da vida. (SASSAKI, 2009, p. 1).
Inclusão social, como visto, irrecusavelmente liga-se ao conceito de cidadania, haja vista
que cidadania, resumidamente, significa o pleno exercício dos direitos e deveres civis, políticos,
sociais, etc., previstos na Constituição de um país, por parte dos indivíduos nascidos ou
naturalizados neste país (seus cidadãos), o que, obviamente, inclui o direito do acesso à
informação. Assim, em meio a dita “sociedade da informação”, a questão da cidadania tem
importante função a desempenhar nesse processo, conscientizando seus indivíduos, através do
acesso à informação, ao conhecimento e educação, pelas quais a formação e o exercício da
cidadania são operacionalizados. (ROCHA, 2000).
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Lançando um olhar crítico sobre as novas Tecnologias de Informação e Comunicação


(TIC) e o modo de como estas são encaradas, Dyson (2001), citado por Ronca e Costa (2002),
define três formas de se garantir justiça social no mundo, as quais se remetem à necessidade de se
colocar as tecnologias à serviço da ética, à responsabilidade da política nas aplicações das
ferramentas desenvolvidas pela ciência e às dificuldades e soluções para unir tecnologias e seres
humanos em prol de uma vida mais digna para todos.
Reforçando a ideia citada acima, Albagli (2006, não paginado) demonstra o papel que a
informação e o conhecimento desempenham na atualidade (dependendo de como são utilizados),
tanto de inclusão quanto de exclusão social:
Informação e conhecimento são socialmente moldados e constituem elementos
importantes no binômio inclusão-exclusão social [...] Ao mesmo tempo em que
novos meios técnicos, a partir das modernas tecnologias de informação e
comunicação, permitem um maior e mais ágil intercâmbio de informações,
também se impõem novas barreiras políticas, econômicas e institucionais à
integração de segmentos sociais e regiões marginalizados, no novo padrão.
No contexto informacional, podemos dizer que acessibilidade na web reforça a ideia de
inclusão social, pois, como afirma Cusin e Vidotti (2009, p. 46): “A Acessibilidade Web é um
fator propulsor das Inclusões Informacional e Digital na medida em que proporciona igualdade de
acesso aos usuários, incluindo assim os usuários com necessidades especiais.”

3.2 Acessibilidade e o direito ao acesso à informação


No Brasil, até meados de 1985, viveu-se uma época marcada pela cultura do silêncio e
sigilo – a censura, isso só foi mudado após o fim do Regime Militar, com a promulgação da
Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988. Só então, a sociedade brasileira pôde
dar o primeiro passo na caminhada para o alcance do acesso à informação como direito e garantia
fundamental do cidadão brasileiro, quando em seu Art. 5º expressa o seguinte: “XIV – é
assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao
exercício profissional;”.
O impacto que o parágrafo da Constituição Federal anteriormente citado causa nos direitos
e deveres do cidadão pode ser entendido na medida em que tem-se o direito ao acesso à informação
como garantia dos demais direitos tidos como fundamentais, como o direito à propriedade,
liberdade de opinião, segurança social, ao trabalho, à saúde, etc., conforme explica Tarapanoft
(1987, p. 148):
Ele [o cidadão] necessita de ter informação jurídica para conhecer os seus direitos
à propriedade, ele necessita de informação para expressar e exercer a sua
liberdade de opinião, ele necessita de informação para conhecer os benefícios em
relação à segurança pessoal, os benefícios e deveres em relação ao trabalho, ao
repouso e lazer, a um padrão de vida, ele necessita de informação educativa para
exercer o seu direito à instrução e para exercer e participar de uma vida cultural
etc.
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Segundo a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 - Lei de Acesso à Informação (LAI)


– toda informação produzida e/ou sob guarda do poder público são de caráter público, logo,
acessíveis a todos os cidadãos, exceto as informações de cunho pessoal e em casos de informações
sigilosas que possam comprometer o Estado. Isso quer dizer que toda instituição pública é
obrigada, por lei, a disponibilizar as informações referentes às suas atividades para todo e qualquer
cidadão que desejar obtê-las.
A lei já citada diz ainda que órgãos e entidades públicos devem divulgar em sites oficiais
da internet as informações por elas produzidas ou tuteladas26, visando uma disseminação mais
rápida e fácil para todos. Preocupando-se também com a questão da acessibilidade na web, no Art.
8º da referida lei, § 3º, atribui a estas instituições a seguinte responsabilidade: “VIII - adotar as
medidas necessárias para garantir a acessibilidade de conteúdo para pessoas com deficiência [...]”.
Enfatizando a importância da acessibilidade para o acesso à informação no espaço digital,
Torres, Mazzoni e Alves (2002) afirmam que acessibilidade nesse espaço se efetua quando se
toma medidas para tornar disponível ao usuário, de maneira autônoma, toda e qualquer informação
que este possa acessar, independendo de sua condição física, mantendo-se o valor simbólico do
conteúdo da informação.
Como veremos na sessão seguinte, a acessibilidade no contexto da web prevê que o
conteúdo disponível nesse contexto, seja em forma de informações naturais (texto, imagens e
sons), seja em sua forma codificada (estrutura e apresentação da página), deve estar acessível a
toda e qualquer pessoa. Logo, podemos perceber a relação entre acessibilidade web e
democratização da informação, na medida em que se pensam formas diferentes de elaboração das
informações, de modo que todos possam assimilá-la e transformá-la em conhecimento, daí o termo
competência informacional.27
Por fim, parafraseando Cusin (2010), podemos afirmar que os ambientes web que almejam
a inclusão de usuários com diferentes necessidades e preferências, buscam melhorar a autonomia,
independência e a qualidade de vida desses indivíduos na democratização do conhecimento.

4 ACESSIBILIDADE À WEB
O conceito de acessibilidade na web se relaciona com o conceito de usabilidade e visa
assegurar que todo o usuário tenha o direito de acessar as informações, os recursos e os serviços
que desejar, como explica Melo (2006, p. 33): “A acessibilidade na web, ou rede mundial de

26
Essas informações vão desde informações a título de identificação, como estrutura organizacional, telefone,
endereço, a informações mais específicas ligadas as atividades destes órgãos e entidades, como: recurso financeiro,
registro de despesas; dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras e; respostas a
perguntas frequentes da sociedade.
27
Competência informacional ou literacia em informação, originalmente information literacy, é um termo cunhado
nos Estados Unidos, na literatura de Biblioteconomia, na década de 70, que significa a capacidade de acessar, buscar,
usar e recriar a informação.
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computadores, diz respeito a viabilizar que qualquer pessoa, usando qualquer tecnologia adequada
à navegação web esteja apta a visitar qualquer site, obtenha a informação oferecida e interaja com
o site.”
Usabilidade e Acessibilidade apesar de serem termos parecidos, não devem ser
confundidos. Como vimos, usabilidade está relacionada com a facilidade e satisfação do usuário
em navegar em um site, enquanto que acessibilidade na web diz respeito à superação de barreiras
de acesso e adaptação dos sites de modo que aumentem as possibilidades já existentes nos
navegadores.
Podemos afirmar, portanto, neste contexto, que usabilidade se relaciona com o conceito de
acessibilidade na medida em que ambos os termos se preocupam em como tornar o conteúdo
informacional disponível ao usuário, da melhor forma possível.
Buscando aporte teórico na literatura técnico-científica a respeito da acessibilidade em seu
contexto teórico e aplicável, Hogetop e Santarosa (2002, p. 2) ressaltam a relevância das ajudas
técnicas para o alcance da independência do usuário no contexto da educação, quanto à utilização
e interação com as TIC, caracterizando-as como:
[...] conjunto de recursos que, de alguma maneira, contribuem para proporcionar
às Pessoas com Necessidades Educacionais Especiais (PNEEs) maior
independência, qualidade de vida e inclusão na vida social através do
suplemento (prótese), manutenção ou devolução de suas capacidades
funcionais: desde uma simples bengala, um par de óculos, cadeiras de roda, até
complexos sistemas computadorizados que permitem o controle do ambiente ou
a própria expressão e comunicação do indivíduo.
Dentre estas ajudas técnicas ou próteses, destacam-se as chamadas tecnologias assistivas28,
definidas como “os equipamentos (hardware) e os programas (software) que têm como função
mediar a interação homem-computador, possibilitando às PNE a realização de atividades motoras,
perceptivas e cognitivas.” (PASSERINO; MONTARDO, 2007, p. 14).
Contudo, as tecnologias assistivas por si só não promovem a acessibilidade para pessoas
com deficiência, não garantindo, de maneira integral, o acesso ao conteúdo de uma página da
Web. Assim “[...] é necessário que a página tenha sido desenvolvida de acordo com os padrões
Web (Web Standards) e as recomendações de acessibilidade [...]” (eMAG, 2014, p. 8), como
veremos nas subseções 4.1 e 4.2.

4.1 World Wide Web Consortium / Web Acessibility Iniciative (W3C/WAI): padrões
internacionais

28
As tecnologias assistivas abrangem uma gama de ferramentas, tais como: sintetizadores de voz, softwares de
reconhecimento de voz, softwares de ampliação de tela, display braile, teclados e mouses adaptados ou alternativos,
leitores de tela, lupa eletrônica, navegadores alternativos como o Zac Browser para autistas ou Lynx para pessoas
com deficiência visual, etc.
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A nível internacional, temos como principal referência pela criação e divulgação de


padrões e diretrizes para que páginas da web possam ser acessadas por todos, a World Wide Web
Consortium (W3C), atuando em parceria com sua subordinada – Web Accessibility Initiative
(WAI).
Em seu site, a referida iniciativa ainda diz: “Acessibilidade na Web significa que sites,
ferramentas e tecnologias são projetados e desenvolvidos para que pessoas com deficiência
possam usá-los” (HENRY, 2019, não paginado). Mais especificamente, significa dizer que essas
pessoas podem:
 Perceber, entender, navegar e interagir com a Web;
 Contribuir para a web.
O grupo WAI ainda elenca diferentes componentes de interação e desenvolvimento da web
que devem trabalhar em conjunto para que a web seja acessível a pessoas com deficiência, tais
como:

a) Especificação técnica: incluem especificações de codificação (exemplo: em HTML, para


incluir-se texto alternativo a imagens (img) utiliza-se o atributo de texto alternativo (alt);
b) Diretrizes de Acessibilidade (WCAG, ATAG, UAAG): define como a especificação
técnica será aplicada, de modo a ser acessível;
c) Conteúdo: trata-se da informação, que se encontra disponível na página ou no aplicativo
da web, podem ser informações naturais como texto, imagens e sons ou códigos que
demarcam a estrutura, apresentação, etc. da página;
d) Agentes de usuário: incluem browsers, extensões de browsers, media players, leitores,
etc., e outros aplicativos que renderizam conteúdos web;
e) Tecnologia assistiva: recursos utilizados por pessoas com deficiência que facilitam o
acesso à informação do computador, como os leitores de tela, teclados alternativos,
software de digitalização, etc.;
f) Usuários, onde seu conhecimento e experiências são considerados;
g) Desenvolvedores: são os designers, codificadores, autores, etc., incluindo
desenvolvedores com deficiência e usuários que possam contribuir para a criação de
conteúdo;
h) Ferramentas de criação: são softwares e serviços que “autores” (desenvolvedores web,
designers, etc.) usam para produzir conteúdo web (websites que promovem conteúdos de
forma colaborativa com seus usuários – wikis, blogs, fóruns, etc. –; aplicativos em sua
versão web; páginas web estáticas, etc.);
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i) Ferramentas de avaliação: possibilitam principalmente avaliar a acessibilidade web,


como ferramentas automáticas de avaliação de sites, validadores HTML e validadores
CSS.
O grupo WAI auxilia no desenvolvimento e avaliação quanto à acessibilidade de sistemas
computadorizados como softwares, websites e browsers, tendo, respectivamente, os seguintes
padrões: as Diretrizes de Acessibilidade para Ferramentas de Criação (ATAG - Authoring Tool
Accessibility Guidelines); as Diretrizes de Acessibilidade de Conteúdo Web (WCAG - Web
Content Accessibility Guidelines) e as Diretrizes de Acessibilidade de Agentes do Usuário (UAAG
- User Agent Accessibility Guidelines).
Dentre estes documentos, o mais conhecido é o WCAG, aceito internacionalmente como
um guia de recomendações para a acessibilidade do conteúdo web.
Criado em 1999, o WCAG tem sua primeira publicação (versão 1.0). Em fevereiro de 2008,
um grupo independente de desenvolvedores lançam correções e extensões ao WCAG 1.0,
culminando no documento WCAG Samurai. Ainda no final de 2008, o WCAG 1.0 sofre uma
atualização, devido à um longo processo de revisão feita pelo Grupo de Trabalho para as Diretrizes
de Acessibilidade (AG WG – Accessibility Guidelines Working Group)29, bem como pela análise
de comentários e propostas recebidas de web designers, programadores, e demais envolvidos na
construção de uma web mais acessível, o que ocasiona o surgimento da versão 2.0.
Após quase 10 anos, em 5 de junho de 2018, o grupo de trabalho da WAI lança uma nova
e atual versão ao WCAG (WCAG 2.1), com o objetivo de melhorar as diretrizes de acessibilidade
para 3 grupos específicos: usuários com deficiência cognitiva ou de aprendizagem, usuários com
baixa visão e usuários que utilizam dispositivos móveis para acessar a internet.
Contudo, não se pretendeu tornar obsoleto ou substituir sua versão anterior: “Enquanto as
WCAG 2.0 continuam sendo uma recomendação do W3C, o W3C recomenda o uso das WCAG
2.1 para maximizar a aplicabilidade de futuros esforços em acessibilidade.” (W3C, 2018, não
paginado). Ressaltando ainda a importância em seguir essas diretrizes, o W3C afirma:
Seguir estas diretrizes irá tornar o conteúdo acessível a um maior número de
pessoas com deficiência, incluindo adaptações para cegueira e baixa visão,
surdez e baixa audição, dificuldades de aprendizagem, limitações cognitivas,
limitações de movimentos, incapacidade de fala, fotossensibilidade, e
combinação destas características, e algumas adaptações para dificuldades de
aprendizagem e limitações cognitivas. Essas diretrizes abordam a acessibilidade
do conteúdo da Web em computadores, laptops, tablets e demais dispositivos
móveis. Seguir estas diretrizes fará também com que o conteúdo Web se torne
mais usável aos usuários em geral. (W3C, 2018, não paginado).

29
A missão do Grupo de Trabalho das Diretrizes de Acessibilidade é desenvolver diretrizes para tornar o conteúdo
da Web acessível para pessoas com deficiência, bem como desenvolver e manter materiais de suporte à
implementação das Diretrizes de Acessibilidade para Conteúdo da Web, como WCAG 2.1, Understanding WCAG
2.0, WCAG 2.0 Techniques, entre outros.
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4.2 Diretrizes de acessibilidade do Governo Eletrônico Brasileiro: padrão nacional


Entendendo a importância de se promover a inclusão digital, o Governo Federal do Brasil
tratou de desenvolver as diretrizes de acessibilidade do governo eletrônico, baseadas em 14
padrões e normas internacionais, especialmente com base nas diretrizes do WCAG.
Assim, surge o Modelo de Acessibilidade em Governo Eletrônico (eMAG), tendo sua
primeira versão 1.4 disponibilizada em 2005 para consulta pública, quando, no mesmo ano, recebe
atualizações culminando em sua versão 2.0, sendo institucionalizada pela Portaria nº 3, de 7 de
maio de 2007.
Até sua versão 2.0, o eMAG era dividido em dois documentos, que buscavam abranger
tanto a visão do cidadão brasileiro quanto a visão dos desenvolvedores de sites:
 Visão do cidadão: voltada aos cidadãos brasileiros e gestores, apresentava o modelo de
acessibilidade de forma simples e tinha cerca de 16 páginas.
 Cartilha técnica: voltada a desenvolvedores de sites, apresentava detalhadamente a
proposta de implementação das recomendações de acessibilidade em sítios do governo,
continha 57 recomendações de boas práticas e era voltada a área técnica. As
recomendações estavam divididas em três níveis de prioridade (A, AA, AAA) de acordo
com o WCAG 1.0.
Em 2008, devido a dificuldades advindas dessa divisão, como o não entendimento da visão
do cidadão e sua relação com a aplicação da acessibilidade de modo efetivo, o eMAG recebe
atualização significativa, migrando para a versão 3.0, onde abandona também os níveis de
prioridade adotados no padrão internacional30.
Atualmente, a versão do eMAG é a 3.1, versão atualizada em 2014, que sofreu poucas
modificações, resumindo-se a mudanças na redação do texto bem como adequações na
estruturação dos tópicos, de modo a facilitar sua compreensão tanto por cidadãos quanto por
especialistas.
Assim, o eMAG (2014, p. 7) “[...] tem o compromisso de ser o norteador no
desenvolvimento e a adaptação de conteúdos digitais do governo federal, garantindo o acesso a
todos.”, sendo uma versão especializada do já mencionado WCAG, adaptado para a realidade
brasileira.
As recomendações do eMAG (2014) se dividem em 6 áreas, recomendações estas que
permitem que a implementação da acessibilidade digital seja conduzida de forma padronizada, de
fácil implementação, coerente com as necessidades brasileiras e em conformidade com os padrões

30
Os níveis de prioridade A, AA e AAA adotados pelo WCAG até hoje, foram abandonados por entender-se que, por
se tratar de sites do governo eletrônico brasileiro, não seriam permitidas exceções quanto ao cumprimento de alguma
recomendação.
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internacionais, conforme a seguir: 1) Marcação; 2) Comportamento (Document Object Model –


DOM); 3) Conteúdo / Informação; 4) Apresentação / Design; 5) Multimídias; 6) Formulários.

5 RESULTADOS PARCIAIS
Nesta sessão, apresentamos os problemas de acessibilidade identificados na etapa de
avaliação automática através da análise dos relatórios de avaliação emitidos pelo software,
indicando: quais recomendações do eMAG (2014) não foram seguidas; a justificativa
(necessidade) em se seguir cada recomendação; bem como os locais (páginas) onde os problemas
foram identificados. Desta forma, observou-se que as seguintes recomendações não foram
seguidas:
Recomendação 1.3 - Utilizar corretamente os níveis de cabeçalho: os níveis de cabeçalho
(elementos HTML H1 a H6) devem ser utilizados de forma hierárquica, pois organizam a ordem
de importância e subordinação dos conteúdos, facilitando a leitura e compreensão.
Local: Página inicial do site da SECMA e Página de cadastro do e-OUV.
Justificativa: Muitos leitores de tela utilizam a hierarquia de cabeçalhos como uma forma de
navegação na página, pulando de um para outro, agilizando e facilitando assim, a navegação e
compreensão do conteúdo.
Recomendação 1.5 - Fornecer âncoras para ir direto a um bloco de conteúdo: devem ser
fornecidas âncoras, disponíveis na barra de acessibilidade, que apontem para links relevantes
presentes na mesma página. Assim, é possível ir ao bloco de conteúdo desejado. Os links devem
ser colocados em lugares estratégicos da página, como no início e fim do conteúdo e início e fim
do menu.
Local: em todas as páginas inspecionadas.
Justificativa: é importante que o site utilize de âncoras uma vez que o “salto por âncoras” é o
salto mais universal de todos e comumente utilizado por navegadores textuais (bastante utilizados
por usuários deficientes visuais) bem como por todos os leitores de tela. Agiliza também o
caminho a ser percorrido pelo usuário até chegar ao conteúdo principal do site, uma vez que este
tipo de salto permite ao usuário ir direto ao bloco de conteúdo da página através de atalhos, como
Alt + 1.
Recomendação 1.9 - Não abrir novas instâncias sem a solicitação do usuário: a decisão de
utilizar-se de novas instâncias – por exemplo abas ou janelas - para acesso a páginas e serviços ou
qualquer informação deve ser de escolha do usuário. Assim, não devem ser utilizados:
 Pop-ups;
 A abertura de novas abas ou janelas;
 O uso do atributo target=“_blank”;
 Mudanças no controle do foco do teclado;
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 Entre outros elementos, que não tenham sido solicitados pelo usuário.
Local: em todas as páginas inspecionadas, especialmente a Página inicial.
Justificativa: é muito importante que os links abram na guia ou janela atual de navegação, pois
os usuários com deficiência visual podem ter dificuldade em identificar que uma nova janela foi
aberta. Além disso, estando em uma nova janela, não conseguirão retornar à página anterior
utilizando a opção voltar do navegador. Quando for realmente necessária a abertura de um link
em nova janela, é recomendado que tal ação seja informada ao usuário no próprio texto do link.
Isso permite ao usuário decidir se quer ou não sair da janela ou aba em que se encontra e, caso
decida acessar o link, ele saberá que se trata de uma nova aba ou janela.
Recomendação 3.5 - Descrever links clara e sucintamente: deve-se identificar claramente o
destino de cada link, informando, inclusive, se o link remete a outro sítio. Não se deve utilizar o
atributo title - para descrições adicionais ao link, faça no próprio texto do link.
Local: em todas as páginas inspecionadas, especialmente a Página inicial.
Justificativa: é preciso que o texto do link faça sentido mesmo quando isolado do contexto da
página, de forma a permitir que um usuário com deficiência visual entenda qual o conteúdo do
link bem como para onde será redirecionado. Quanto ao atributo title, este não deve ser utilizado
uma vez que não é bem suportado por leitores de tela, além de não ser bem utilizado para quem
navega utilizando apenas o teclado.
Recomendação 3.6 - Fornecer alternativa em texto para as imagens do sítio: deve ser
fornecida uma descrição para as imagens da página, utilizando-se para tanto o atributo alt, por
exemplo:
Figura 2 – Exemplo de descrição de imagem

Fonte: eMAG (2014)


No código:
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<img src="foto-porto-alegre.jpg"31 alt="Foto de uma bicicleta de carga verde com caixas


laranjas encostada numa parede"32 />

Local: Página da Lei Estadual de Incentivo à Cultura e Página Inicial.


Justificativa: a falta de alternativa em texto para imagens é um problema de acessibilidade
gravíssimo, uma vez que é impossível a um usuário com deficiência visual (especialmente para
aqueles que possuem perda total da visão) conhecer o conteúdo da imagem sem uma descrição a
ser lida pelo software leitor de tela. Este problema se agrava quando a imagem possui alguma
funcionalidade, como por exemplo um serviço que está disponível em um link em forma de
imagem.
Recomendação 6.2 - Associar etiquetas aos seus campos: as etiquetas de texto (elemento
LABEL) devem estar associadas aos seus campos (elementos INPUT, SELECT e TEXTAREA,
à exceção do elemento BUTTON) correspondentes no formulário, através dos atributos “for” do
“label” e “id” do “input”, os quais deverão ter o mesmo valor.
Local: Página de cadastro do e-OUV.
Justificativa: uma das maneiras mais comuns de navegação entre os campos de formulário é
através da tecla Tab. O usuário preenche um campo de formulário, pressiona a tecla Tab, preenche
o próximo campo, e assim por diante até chegar ao final do formulário. Para pessoas que
enxergam, essa é uma tarefa bastante simples. No entanto, uma pessoa cega, por exemplo, que
está navegando utilizando um leitor de tela, irá passar de campo em campo com a tecla Tab sem
saber o que fazer nesses campos, a não ser que o formulário tenha sido desenvolvido de maneira
que cada campo esteja relacionado a sua informação em texto correspondente.
Esses dados preliminares da pesquisa apontam para a necessidade de reorganização do site,
especialmente nas áreas de conteúdo/informação, marcação e formulários das páginas avaliadas.

6 CONCLUSÃO
Na presente pesquisa, através de um estudo de caso de avaliação de acessibilidade,
objetivou-se avaliar a acessibilidade do site da SECMA sob a perspectiva de usuários com
deficiência visual com base no padrão nacional de acessibilidade – eMAG 3.1.
Apresentou-se os resultados preliminares advindos da primeira etapa da pesquisa
(avaliação automática), resultados estes que foram alcançados através da análise dos dados
provenientes dos relatórios emitidos pelo software de avaliação ASES Web.
Nesta análise, foram selecionados os erros indicados pelo software que indicassem
problemas de acessibilidade web para um grupo específico de usuários – pessoas com deficiência

31
“foto-porto-alegre.jpg" é o nome da imagem dada pela pessoa que escreveu o código da página.
32
"Foto de uma bicicleta de carga verde com caixas laranjas encostada numa parede" é o texto alternativo ao nome
da imagem.
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visual. Assim, pôde-se elencar as recomendações do eMAG 3.1 não seguidas pelo site em estudo,
apontando inclusive a justificativa em se seguir cada uma destas.
O estudo se mostra altamente relevante para a comunidade científica, uma vez que
acessibilidade em interfaces digitais, em especial no contexto da web, se mostra como um tema
em voga, instigante e, relativamente pouco estudado na área da Ciência da Informação, podendo
contribuir assim para a fundamentação teórica de outros trabalhos de mesmo viés.
Quanto a sua contribuição e relevância social, através dos resultados provenientes da
pesquisa poder-se-á identificar os problemas de acessibilidade presentes nos websites de órgãos
públicos tão importantes para a população ludovicense, permitindo assim inferir sobre as medidas
cabíveis para a reorganização dos websites, com base em conceitos como arquitetura da
informação, design responsivo e, principalmente, nos requisitos delineados pelo eMAG 3.1.

Por fim, com este trabalho, espera-se contribuir para a construção de uma sociedade mais
igualitária e democrática, com respeito às diferenças, e que permita aos indivíduos inseridos (ou
não) nesta sociedade, exercer, com autonomia, seus direitos enquanto cidadãos, especialmente no
que diz respeito ao direito do acesso à informação em ambientes web.

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Página 226 de 2230

ANÁLISE DA PRÁTICA DOCENTE SOB A ÓTICA DOS PROFESSORES DA


EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE PINHEIRO-MA

ANALYSIS OF TEACHING PRACTICE FROM THE PERSPECTIVE OF PUBLIC


BASIC EDUCATION TEACHERS IN THE MUNICIPALITY OF PINHEIRO-MA

Evileno Ferreira
Licenciado em Ciências Humanas - UFMA
Jeane Pimenta Amorim
Licenciada em Ciências Humanas - UFMA
Doracy Gomes Pinto Lima
Mestre em Educação - UFMA
Francilene do Rosário de Matos
Mestre em Educação - UFMA
Eixo temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: A análise sobre a prática docente remete às inquietações em reconhecer o real


significado do ser professor hoje. Em tempos de incertezas na educação, formar professores
comprometidos com uma prática pedagógica focada na qualidade social, tem se tornado o maior
desafio da formação docente. Este trabalho tem por objetivo socializar a análise sobre algumas
dimensões da prática docente, a partir de dados da pesquisa Trabalho Docente na Educação Básica
no município de Pinheiro-MA, desenvolvida entre 2017 e 2018 pelo Grupo de Estudo e Pesquisa
Formação e Trabalho Docente da UFMA. A pesquisa teve como objetivo analisar, a partir da
perspectiva dos professores da educação básica pública, algumas das dimensões do trabalho
docente, identificando características que compõem seu perfil, o que fazem e em que condições
realizam seu trabalho nas unidades educacionais. Para esse estudo, selecionou-se aspectos que
identificam a percepção dos sobre as nuances do trabalho docente, tais como: satisfação com a
carreira docente; pensamentos durante as atividades docentes; controle sobre questões
pedagógicas; posicionamento profissional na unidade educacional; importância dos objetivos
pedagógicos do trabalho docente; expectativas mais realizáveis nos próximos anos; e
concordância sobre os fatores para melhorar a qualidade do trabalho na escola. Considerou-se, por
fim, que face à atual conjuntura de transformações econômicas e sociais, a educação foi
incorporada ao processo de reforma estatal, que desencadeou impactos significativos no fazer
docente, colocando inicialmente os professores em suspensão e, posteriormente, requerendo deles
a reconstrução de sua identidade e, consequentemente, a revisão de seu posicionamento
profissional para o enfrentamento dos desafios da profissão.
Palavras-chave: Educação. Educação Básica. Trabalho Docente.

ABSTRACT: The analysis of teaching practice refers to concerns about recognizing the real
meaning of being a teacher today. In times of uncertainty in education, training teachers committed
Página 227 de 2230

to a pedagogical practice focused on social quality, has become the biggest challenge of teacher
training. This work aims to socialize the analysis on some dimensions of teaching practice, based
on data from the Teaching Work in Basic Education survey in the municipality of Pinheiro-MA,
developed between 2017 and 2018 by the UFMA Teaching and Research Group . The research
aimed to analyze, from the perspective of public basic education teachers, some of the dimensions
of teaching work, identifying characteristics that make up their profile, what they do and under
what conditions they perform their work in educational units. For this study, aspects that identify
the perception of the nuances of teaching work were selected, such as: satisfaction with the
teaching career; thoughts during teaching activities; control over pedagogical issues; professional
positioning in the educational unit; importance of the pedagogical objectives of teaching work;
more achievable expectations in the coming years; and agreement on factors to improve the quality
of work at school. Finally, it was considered that in view of the current conjuncture of economic
and social transformations, education was incorporated into the process of state reform, which
triggered significant impacts on teaching, initially putting teachers in suspension and subsequently
requiring reconstruction of their identity and, consequently, the revision of their professional
positioning to face the challenges of the profession.
Keyword: Education. Basic education. Teaching Work.

INTRODUÇÃO

A análise sobre a prática docente remete às inquietações na busca de reconhecer o real


significado do ser professor hoje. Em tempos de incertezas na área da educação, formar
professores comprometidos com uma prática pedagógica focada na qualidade social, tem se
tornado o maior desafio da formação docente. Este trabalho tem por objetivo socializar a análise
sobre algumas dimensões da prática docente, a partir de dados selecionados da pesquisa Trabalho
Docente na Educação Básica no município de Pinheiro-MA, desenvolvida entre 2017 e 2018 pelo
Grupo de Estudo e Pesquisa Formação e Trabalho Docente (GEP), da Universidade Federal do
Maranhão (UFMA).
O município de Pinheiro está localizado na microrregião da Baixada Maranhense,
mesorregião do Norte Maranhense, conhecida como a Princesa da Baixada, cercada por campos
inundáveis e banhada pelo Rio Pericumã. Cidade esta, que vem se desenvolvendo em todas as
áreas e na área da educação não poderia ser diferente.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018 estimava-se
uma população aproximada de 82.990 habitantes, possuindo uma área territorial de 1.512,966km².
Dentre os 217 municípios maranhenses, de acordo com a renda per capta em 2016, a cidade
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alcançou o 39°lugar na economia devido ao seu Produto Interno Bruto (PIB). Em 2010 o IDHM33
foi registrado em 0,637.
Em relação a Educação, em Pinheiro-MA, foram apresentados dados oficiais, que
apresentam que, houve um avanço significativo nos indicadores da avaliação, sobre a Educação
Básica, sem levar em consideração, uma maior aproximação em relação as metas estabelecidas.
Os resultados do IDEB em 2005, foram 3.2 e 3.0, estes para os anos iniciais e finais,
respectivamente. Em 2017, o resultado dos anos iniciais chegou a 4.9, este correspondente a meta
e dos anos finais foi de 3.9, mantendo ainda bem longe de alcançar a meta que era de 4.5. Em
relação ao Ensino Médio, não houve possibilidade de avaliar esse crescimento, devido não haver
nenhum registro dos anos anteriores, nem metas estabelecidas para o ano, em 2017, alcançou 3.2.
Percebe-se que, neste ano de 2019, essa realidade foi bem diferente, tanto para as escolas
municipais, quanto as estaduais, pois visando um melhor desenvolvimento dos alunos, foram
criados alguns programas, para que os educandos tivessem aulas de reforço, para assim se
sobressaíssem bem nas avalições nacionais e obterem um bom rendimento no IDEB34. Nas
escolas estaduais esse programa era: o “mais IDEB” e nas escolas municipais” Vem IDEB’.
Nota-se que o trabalho docente vem passando por modificações advindas das reformas
administrativas e educacionais, instaladas no Brasil desde a última década do século XX. A
formação dos profissionais da educação durante anos manteve-se asseguradas por uma preparação
profissional na qual a linearidade e a homogeneidade eram garantidas, pela reprodução em serie
do saber.
Segundo Souza e Gouveia (2012), verifica-se a existência de políticas que tanto tornam o
trabalho docente mais fragmentado e precarizado, como ações, mesmo em menor proporção, que
valorizam a profissão docente, como são os casos da Lei Federal do Piso Salarial Profissional
Nacional do Professores e as Diretrizes Nacionais para Carreira do Magistério.
As reformas educacionais da década de 90 colocaram como um dos pontos fundamentais
para a melhoria da educação a formação dos professores. Dessa forma, o interesse pelo professor
e por sua formação passou a ser central e ganhou ênfase, evidenciando um movimento mais geral,
não só no Brasil, mas em outros países, e aconteceu em função de uma nova compreensão sobre
o professor e seu papel na educação e na sociedade.

33
O IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal), é uma medida comparativa usada para classificar os
países pelo seu grau de “desenvolvimento humano” é para ajudar e classificar os países como desenvolvidos
(desenvolvimento humano muito alto), em desenvolvimento (desenvolvimento humano médio e alto) e
subdesenvolvidos (desenvolvimento humano baixo). A estatística é composta a partir de dados de expectativa de vida
ao nascer, educação e PIB (PPC) per capta (como indicador do padrão de vida) recolhidos em nível nacional.
34
IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), foi criado em 2007, reúne, em um só indicador, os
resultados de dois importantes conceitos para a qualidades da educação: fluxo escolar e as médias de desempenho nas
avaliações. Ele é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar obtidos no Censo Escolar, e das médias de
desempenho nas avaliações do Inep, o Sistema de Avaliação da Educação Básica(Saeb)- para as unidades da federação
e para o pais- e a Prova Brasil- para os municípios.
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Percebe-se que, a formação docente tem sido comumente organizada de forma burocrática
e estática e em muitos momentos imobiliza e não capacita o profissional. Sendo assim, as ações
ficam mais no plano ideológico do que na realidade escolar, que continua atrelada a modelos
inibidores de mudanças. Nesse sentido, urge trabalhar uma nova formação mais flexível e humana.
Para tanto, o processo de formação precisa se preocupar e refletir na sua concepção,
organização, realização, gestão e avaliação sobre as novas maneiras de ser, agir, de poder, de
comunicar, de relacionar-se e de estar com os outros.
Diante dessa realidade o grupo de estudo e pesquisa sobre a formação e trabalho docente
da Educação Básica, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em Pinheiro-MA, intitulado
GEP/Formação e Trabalho Docente, desenvolveu a pesquisa Trabalho Docente na Educação
Básica no município de Pinheiro-MA, no período de 2017 à 2018.Esta pesquisa teve como
objetivo analisar, a partir da perspectiva dos professores, algumas das dimensões do trabalho
docente no município de Pinheiro MA, identificando características que compõem o perfil desses
sujeitos, o que fazem e em que condições realizam seu trabalho nas unidades educacionais de
Educação Básica da rede pública municipal e estadual.
Para que a pesquisa fosse realizada, foram feitas parcerias com Unidade Regional da
Secretaria Estadual de Educação em Pinheiro (URE- Pinheiro), a Secretaria Municipal de
Educação de Pinheiro(SEMED-Pinheiro), para assim, termos acesso as informações básicas sobre
a estrutura educacional do município e apresentação da equipe de pesquisa ás escolas, além do
apoio financeiro obtido por meio de aprovação em edital próprio da Fundação de Amparo à
Pesquisa e ao Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico do Maranhão ( FAPEMA).
Portanto, considera-se a importância da pesquisa que proporcione uma leitura cientifica
sobre o perfil e as condições de trabalho dos profissionais da Educação Básica, a fim de retratar
as consequências das novas configurações da profissão docente e a partir daí prospectar análises
aprofundadas. Da mesma forma, contribuir para a aplicação de medidas de intervenção sobre as
problemáticas educacionais que assolam os municípios, principalmente aqueles de baixo IDH,
como a maioria dos municípios maranhenses.
Nesta perspectiva buscou-se através da pesquisa identificar a realidade do trabalho
docente, por meio da revelação de informações sobre a percepção dos professores sobre o universo
docente da Educação Básica, isto é, as unidades educacionais em que estão lotados; seu perfil
sociodemográfico; sua formação profissional; sua situação funcional; sua valorização
profissional; seus rendimentos e atividades paralelas; seu contexto familiar; quais atividades
exercidas no ambiente escolar; como se dá o envolvimento dos pais do alunos; seu relacionamento
com os alunos; seu relacionamento com seus pares; gestão escolar e avaliação docente; os fatores
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que dificultam a atividade de docência; as perspectivas e melhorias; sua filiação a sindicatos e


partidos políticos; e a saúde do profissional.

METODOLOGIA APLICADA

Esta pesquisa corresponde à área de Ciências Humanas, conforme a classificação do


Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Por sua finalidade é
considerada uma pesquisa básica estratégica, que, segundo Gil (2010), trata-se de uma pesquisa
voltada para novos conhecimentos, direcionados para uma área com vistas à solução de
reconhecido problema prático, neste caso o pouco ou até mesmo a ausência de conhecimento
sistematizado sobre a realidade docente no que se refere à sua formação inicial e continuada e suas
condições de trabalho no município de Pinheiro-MA.
Quanto ao objetivo da pesquisa, pela sua intenção primeira de identificar características da
atividade docente da Educação Básica, a pesquisa é descritiva. Todavia, devido ao seu nível de
detalhamento aproxima-se da pesquisa exploratória. Sabendo-se que a pesquisa exploratória, têm
o propósito de proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torna-lo mais
explícito ou a construir hipóteses (GIL, 2010, p. 27). O método utilizado para o desenvolvimento
da pesquisa foi o levantamento, que se caracteriza pela interrogação direta das pessoas cujo
comportamento e ou percepção se deseja conhecer. Gil (2010) esclarece que o procedimento é
solicitar informações a um grupo significativo de pessoas acerca do problema estudado para, em
seguida, mediante análise quantitativa, obter-se as conclusões correspondentes aos dados
coletados. O que também é ratificado por Creswell (2010) ao afirmar que,

Um projeto de levantamento apresenta uma descrição quantitativa ou numérica de


tendências, atitudes ou opiniões de uma população, estudando-se uma amostra dessa
população. A partir dos resultados da amostra, o pesquisador generaliza ou faz
afirmações sobre a população. (CRESWELL, 2010, p. 178)

Para a melhor compreensão do levantamento realizado serão apresentados detalhes sobre


o planejamento, a preparação, a execução e o tratamento dos dados aplicados no desenvolvimento
desta pesquisa.
Esta pesquisa foi aplicada restritamente à sujeitos profissionais docentes da Educação Básica
atuantes nas escolas públicas do município de Pinheiro-MA, na intenção de melhor compreender
sua condição de trabalho, por meio da identificação de suas características e captação de sua
percepção sobre a realidade educacional ao seu redor.
Para a coleta de dados optou-se pelo instrumento de pesquisa questionário, considerando
sua melhor adequação aos objetivos e dimensão da pesquisa. Para Martins e Theóphilo (2009, p.
93) o questionário é um importante e popular instrumento de coleta de dados para uma pesquisa
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social. Trata-se de um conjunto ordenado e consistente de perguntas a respeito de variáveis e


situações que esse deseja medir ou descrever. O questionário aplicado nesta pesquisa foi composto
por 125 perguntas objetivas (vide APÊNDICE I), organizadas em 26 categorias, que encontram-
se descritas no QUADRO 1:
QUADRO 1 – Categorias das perguntas do questionário
Caracterização do pesquisado
Rendimento
Contexto familiar
Outras atividades
Formação docentes
Formação continuada
Avaliando a política nacional de formação
Situação funcional
Nível de preparo no início da carreira
Valorização profissional
Atividades com alunos com necessidades especiais
Realização de atividades em casa
Condições de trabalho na unidade educacional que atua
Vivência profissional
Controle sobre questões pedagógicas
Grau de concordância com aspectos relacionados à organização e gestão democrática
Avaliação do trabalho escolar
Avaliação do acompanhamento dos pais dos alunos
Grau de concordância sobre as situações vivenciadas com docentes
Frequência com que realiza atividades com os colegas
Situação na unidade educacional
Grau de interferência no desempenho de suas atividades
Importância dos objetivos para o trabalho
Relacionamento com o sindicato e partido político
Tempo livre
Afastamento por licença médica
Fonte: GEP Formação e Trabalho Docente / UFMA, 2019

O instrumento de pesquisa foi elaborado pelo grupo de pesquisadores, a partir da análise


dos dados contidos no documento “Sinopse do survey nacional da pesquisa Trabalho Docente na
Educação Básica no Brasil”, realizada pelo Grupo de Estudos sobre Política Educacional e
Trabalho Docente (GESTRADO/UFMG). A partir desse relatório pode-se prospectar quais
informações seriam consideradas relevantes para o reconhecimento da realidade da docência da
Educação Básica na cidade de Pinheiro.
Após finalizar a etapa de elaboração, o instrumento de coleta de dados foi submetido a um
pré-teste, no mês de março de 2018, com a participação de dez professores da Escola Municipal
Inah Rego e dez professores do Centro de Ensino José de Anchieta. Como enuncia Gil (2010, p.
107), somente a partir do pré-teste é que os instrumentos estarão realmente validados para o
levantamento, garantindo que meçam exatamente o que pretendem medir.
De posse da experiência vivenciada no pré-teste, das informações contidas nos
questionários respondidos e dos feedbacks orais dos participantes, a equipe de pesquisadores se
reuniu para discutir sobre as adaptações necessárias. Finalmente, o instrumento de coleta de dados
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foi definido e seguido para a gráfica para reprodução do quantitativo necessário para dar-se início
ao trabalho de campo.
Estabelecido o instrumental, houve a necessidade de melhor reconhecimento do campo de
trabalho. Buscou-se, para tanto, documentos e informações fornecidas pelos parceiros, onde
verificou-se que a organização administrativa do município de Pinheiro subdivide o território em
uma unidade central, chamada SEDE, considerada urbana e 12 POLOS da zona rural, como
demonstrado no QUADRO 2:

QUADRO 2 – Organização administrativa do município de Pinheiro-MA


Sede
Polo Bom Viver
Polo Fortaleza
Polo Paraíso
Polo Pacas1
Polo Pacas2
Polo São Caetano
Polo Filuca
Polo Campo Novo
Polo Pirinã
Polo Porão Grande
Polo Santo Antônio dos Carvalhos
Polo Santa Vitória
Fonte: Plano Municipal de Educação de Pinheiro (PME-Pinheiro)

Em 2017, conforme dados da SEMED e URE, a cidade de Pinheiro contava com um


contingente de 1560 professores na Educação Básica, distribuídos em 149 escolas, que foi
assumido como a população deste estudo, ou seja, o seu universo. Contudo, como bem explica Gil
(2010):

De modo geral, os levantamentos abrangem um universo de elementos tão grande que se


torna impossível considera-los em sua totalidade. Por essa razão, o mais frequente é
trabalhar com uma amostra, ou seja, com uma pequena parte dos elementos que compõem
o universo. Quando essa amostra é rigorosamente selecionada, os resultados obtidos no
levantamento tendem a aproximar-se bastante dos que seriam obtidos caso fosse possível
pesquisar todos os elementos do universo. E, com auxílio de procedimentos estatísticos,
torna-se possível até mesmo calcular a margem de segurança dos resultados obtidos.
(GIL, 2010, p. 109)

Considerando a impossibilidade de realizar uma pesquisa censitária, ou seja, uma pesquisa


que acessasse todo o universo, buscou-se compreender a sua estratificação da população na
organização administrativa do município (Sede e Polos). Assim, a partir de dados da SEMED e
URE obteve-se como resultado a seguinte distribuição demonstrada no QUADRO 3:

QUADRO 3 – Distribuição das escolas e docentes na cidade de Pinheiro em 2017


Quantidade de Quantidade de
Escolas Professores
Sede 25 761
Polo Bom Viver 10 109
Polo Fortaleza 10 72
Polo Paraíso 10 60
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Polo Pacas1 9 166


Polo Pacas2 9 45
Polo São Caetano 10 44
Polo Filuca 7 62
Polo Campo Novo 7 23
Polo Pirinã 13 39
Polo Porão Grande 10 49
Polo Santo Antônio dos Carvalhos 10 45
Polo Santa Vitória 12 85
TOTAL 142 1560
Fonte: SEMED-Pinheiro e URE-Pinheiro

A seleção das escolas a serem pesquisadas em cada um dos polos foi feita, seguindo o
critério de sempre contemplar a escola-polo, assim considerada pela administração para fins de
referência e apoio às demais escolas, e mais algumas outras escolas definidas a partir do acesso
mais facilitado, considerando a difícil mobilidade dos pesquisadores
Para o tratamento dos dados foi utilizado o programa IBM SPSS Statistics versão 21. O
banco de dados foi elaborado com a criação de 264 variáveis, que pelo caráter objetivo do
questionário na maioria foi estabelecida como numérica, com exceções de algumas variáveis
sequenciais, criadas para contemplar aqueles respondentes que não encontrando opções que
correspondessem à sua opinião, poderiam indicar por escrito as suas respostas.
Os 405 questionários respondidos foram cadastrados eletronicamente pelos pesquisadores,
em tabelas próprias de Microsoft Excel, que posteriormente foram importadas para o SPSS.
Levando em consideração a extensão do questionário, percebeu-se que houve professores que por
algum motivo deixou de responder algumas das questões. Por essa razão, teve-se a preocupação
de observar o percentual da amostragem por variável analisada, de forma a garantir que os
resultados deixassem de ser representativos.
É interessante lembrar que para o universo de 1560 professores, o percentual mínimo de
amostragem é de 20 por cento dos resultados válidos, o que foi correspondido nas 264 variáveis
analisadas. Para efeito de composição da análise também foram destacados os dados referentes á
quantidade de variáveis que não receberam respostas dos professores.

ANÁLISE DOS RESULTADOS OBTIDOS

Para análise dos resultados, recorreu-se a alguns estudiosos do tema com destaque para
Dalila Oliveira, que discute o trabalho docente sob a ótica das reformas educacionais neoliberais,
as quais demanda uma reconfiguração do papel e do perfil do professor e Maria de Fátima Ribeiro
Franco Lauande, no que se refere à profissionalização docente concebida pelos novos referenciais
e novas diretrizes curriculares baseados nas competências e que induzem às mudanças nos
conteúdos, nas metodologias e na avaliação do processo de ensino-aprendizagem.
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A sociedade contemporânea, denominada por alguns como sociedade da informação e por


outros como sociedade do conhecimento, se apresenta tendo como uma de suas características a
acelerada transformação pela qual passa o mundo, provocada pelos avanços tecnológicos, que
incidem na constituição de uma nova cultura e assim afetando diretamente o universo escolar.
Diante dessa situação, o professor vê-se impulsionado a rever a sua atuação, ou seja, a sua
prática pedagógica, suas responsabilidades e seus processos de formação e de ação. Neste sentido,
pensar a formação de professores é sempre pensar a formação do humano e, nessa perspectiva, se
vislumbra a construção de mudanças em qualquer que seja o seu espaço de ação.
De acordo com Tardif (2002), os saberes profissionais dos professores são temporais,
plurais, personalizados e trazem as marcas do humano. Para ele, o saber dos professores é temporal
porque é adquirido através do tempo, no contexto de uma história de vida. É plural e composto
“porque envolve no próprio exercício de trabalho, conhecimento e um saber bastante diverso,
proveniente de fontes variadas e, provavelmente, de natureza diferente” (TARDIF, 2002, P. 18).
A docência compreendida como o trabalho do professor requer saberes específicos desses
profissionais formando um conjunto de conhecimentos que encaminham o trabalho pedagógico.
Por essa razão, não se pode falar de saberes profissionais dos professores sem relacioná-los com
os condicionantes e com o contexto do trabalho (LUANDE, p.154, 2012).
Nesse sentido, os professores da rede pública municipal e estadual de Pinheiro, puderam
avaliar sua prática docente, por meio da manifestação do seu grau de concordância ou indiferença
a respeito de afirmações sobre situações que comumente vivenciam. Como pode ser observado na
TABELA 39, 54,6% dos professores concordam parcialmente que é fácil motivar seus alunos. Já
63,7% concordam que precisa de muita energia para manter a disciplina em sala de aula. 72,1%
não concordam que os professores têm medo dos alunos. Sobre realizar um trabalho socialmente
valorizado, a opinião dos docentes se divide em não concordo (27,9%), concordo parcialmente
(38,85) e concordo (29,6%). 55,8% concordam que os alunos respeitam sua autoridade.
A maioria dos docentes (95,6%) concordam parcial e totalmente que no final do dia têm
o sentimento de que os alunos aprenderam alguma coisa. 75,5% concordam parcial e totalmente
que têm dificuldade de atende as diversas necessidades dos alunos. 55,3% concordam que sua
relação com os alunos é de base afetiva. Sobre sentir-se atordoado quando os alunos estão
indisciplinados, a opinião dos professores dividiu-se entre não concordo (33,8%), concordo
parcialmente (33,6%) e não concordo (26,4%). 84,4% dos professores se sentem responsável pela
formação e futuro de seus alunos. E 75,1% sentem satisfeito em realizar atividade de cuidado com
os alunos.

TABELA 39 – Concordâncias com as afirmações sobre a prática docente


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Total Válidos
Parcialmente
Indiferente

Respondeu
Concordo

Concordo

Concordo

Amostra
AFIRMAÇÕES SOBRE A

Total
Não

Não
Sou
PRÁTICA DOCENTE

É fácil motivar meus alunos 3 70 221 93 387 18 405


24,8%
0,7% 17,3% 54,6% 23,0% 95,6% 4,4% 100%
Manter a disciplina em sala 1 30 100 258 389 16 405
de aula com os alunos, exige 24,9%
0,2% 7,4% 24,7% 63,7% 96,0% 4,0% 100%
muita energia
Algumas vezes tenho medo 7 292 57 36 392 13 405
25,1%
dos meus alunos 1,7% 72,1% 14,1% 8,9% 96,8% 3,2% 100%
Sinto que realizo um trabalho 2 113 157 120 392 13 405
25,1%
que é socialmente valorizado 0,5% 27,9% 38,8% 29,6% 96,8% 3,2% 100%
Os alunos respeitam minha 2 13 150 226 391 14 405
25,1%
autoridade 0,5% 3,2% 37,0% 55,8% 96,5% 3,5% 100%
No final de um dia de 0 6 181 206 393 12 405
trabalho, tenho o sentimento
25,2%
de que os alunos aprenderam 0,0% 1,5% 44,7% 50,9% 97,0% 3,0% 100%
alguma coisa
As necessidades dos meus 2 84 190 116 392 13 405
alunos são tão variadas que
25,1%
encontro dificuldades de lhes 0,5% 20,7% 46,9% 28,6% 96,8% 3,2% 100%
atender
Minha relação com meus 7 27 130 224 388 17 405
24,9%
alunos é em base afetiva 1,7% 6,7% 32,1% 55,3% 95,8% 4,2% 100%
Quando meus alunos estão 8 137 136 107 388 17 405
indisciplinados, me sinto 24,9%
2,0% 33,8% 33,6% 26,4% 95,8% 4,2% 100%
atordoado
Vejo-me como uma pessoa 0 5 41 342 388 17 405
que tem um papel importante
24,9%
sobre o futuro dos meus 0,0% 1,2% 10,1% 84,4% 95,8% 4,2% 100%
alunos
Sinto-me satisfeito realizando 0 8 74 304 386 19 405
atividades de cuidado com os 24,7%
0,0% 2,0% 18,3% 75,1% 95,3% 4,7% 100%
alunos
Fonte: GEP Formação e Trabalho Docente / UFMA, 2019

Observa-se que, os novos referenciais e as novas diretrizes curriculares para formação


trazem uma nova forma de atuação para os professores, baseada nas competências o que induz
mudanças nos conteúdos, nas metodologias, e na avaliação do processo ensino aprendizagem.
Para que o professor dê conta de uma tarefa tão complexa, é necessário que, busque meios para se
aperfeiçoar sua prática pedagógica, e preciso que ele tenha uma formação inicial, para que o torne
capaz de desenvolver o trabalho pedagógico de maneira que, no momento necessário, ele saiba
reunir os saberes e capacidades incorporadas por meio de formação e da experiência; e aprenda
do seu fazer, ou seja, que saiba adicionar a esses saberes a capacidade de utiliza-los e transferi-los
para diferentes situações profissionais, no sentido de rever sua praticas fazendo uma relação entre
a teoria e a prática.
Percebe-se que as recentes investigações nacionais e internacionais sobre formação de
professores, apresentam a necessidade de tomar a prática pedagógica como fonte de estudo e
construção de conhecimento sobre os problemas educacionais, ao mesmo tempo que se evidencia
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a inadequação do modelo racionalista-instrumentalista em dar resposta ás dificuldades e angustia


vividas pelos professores no cotidiano escolar, embora seja esse paradigma mais presente em
nossas escolas. A prática pedagógica anunciada por Paulo Freire, baseada na racionalidade
dialógica, pressupõem a autonomia da escola, bem como dos sujeitos históricos e sociais que
convivem em determinado contexto de aprendizagem.
Segundo Lauande (2012), a política atual de formação de professores é justificada “pelas
medidas marcadas pelo ajuste econômico no meio das estratégias de (re)composição da nova fase
do capitalismo” (Idem, p. 151). Segundo essa autora, as reformas educacionais da década de 1990
estabeleceram como um dos objetivos fundamentais para a qualificação da educação brasileira a
formação dos professores, por conseguinte passando a ser central o interesse pela formação
docente. Nesse momento apresentando uma preocupação não somente brasileira com a formação
dos docentes brasileiros, como em outros países em uma nova compreensão sobre o professor e
seu papel na educação.
Para Oliveira (2010), de maneira geral, compreende-se a ideia de profissionalização como
uma organização específica de conhecimentos regimentada pelo Estado, de maneira burocrática e
racional. Essa racionalização dá-se em meio a um processo histórico de novas formas de
organização e especializações. Se em suas origens, o magistério era considerado sendo uma
vocação ou sacerdócio, com o advento da sociedade moderna, esse pelo processo da
profissionalização com uma “forma racional burocrática de estruturação dos serviços públicos,
que traz consigo a instituição de um corpo funcional” (OLIVEIRA, 2010, p.19).
Com isso, tornou-se necessário definir a formação docente. Foi nesse quesito que a
formação inicial dos professores passou a ser compreendida como condição para a
profissionalização docente, para isso, necessitando do rompimento da fragmentação das práticas;
a formação da identidade profissional e formação ética, cujos processos possibilitam ao “professor
afirmar-se como profissional, cuja identidade é o resultado das interações vividas por ele”
(LAUANDE, 2012, p.153).
Com relação a isso, nesse processo de profissionalização cada disciplina tem sua
especialização de conhecimentos produzidos nas relações sociais e do contexto profissional os
saberes docentes. Nesse sentido, os saberes docentes são conteúdos necessários à compreensão da
organização do trabalho docente. Parte dessa organização do trabalho docente são os objetivos
previstos nas atividades realizadas por esses.
No que se refere aos objetivos pedagógicos do trabalho docente, foram apresentados oito
objetivos e solicitado que os professores avaliassem seu grau de importância.

TABELA 43 – Importância dos objetivos pedagógicos do trabalho docente


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Importância

Importante

Importante

Importante

Respondeu
Amostra
OBJETIVOS

Válidos
Pouco

Muito

Total

Total
Sem

Não
PEDAGÓGICOS DO
TRABALHO DOCENTE

Preparar o aluno para a 1 1 100 281 383 22 405


26,6%
próxima etapa da educação 0,2% 0,2% 24,7% 69,4% 94,6% 5,4% 100%
Promover a formação cultural 0 4 115 260 379 26 405
24,3%
dos alunos 0,0% 1,0% 28,4% 64,2% 93,6% 6,4% 100%
Fazê-los adquirir as 0 0 63 319 382 23 405
competências básicas (ler, 24,5%
0,0% 0,0% 15,6% 78,8% 94,3% 5,7% 100%
escrever, contar)
Preparar os alunos para o 0 5 98 280 383 22 405
24,6%
mercado de trabalho 0,0% 1,2% 24,2% 69,1% 94,6% 5,4% 100%
Promover o desenvolvimento 0 0 95 290 385 20 405
24,7%
integral do aluno/criança 0,0% 0,0% 23,5% 71,6% 95,1% 4,9% 100%
Preparar os alunos para serem 0 0 55 327 382 23 405
24,5%
cidadãos responsáveis 0,0% 0,0% 13,6% 80,7% 94,3% 5,7% 100%
Educar os alunos segundo os 0 1 71 305 377 28 405
24,3%
valores e normas sociais 0,0% 0,2% 17,5% 75,3% 93,1% 6,9% 100%
Instruir os alunos. 2 1 72 302 377 28 405
24,2%
0,5% 0,2% 17,8% 74,6% 93,1% 6,9% 100%
Fonte: GEP Formação e Trabalho Docente / UFMA, 2019

Como pode ser visto na TABELA 43 todos foram tratados pela maioria dos professores
como muito importante. Com destaque para os objetivos de preparar os alunos para serem
cidadãos responsáveis (80,7%); fazer os alunos adquirir as competências básicas de ler, escrever
e contar (78,8%); educar os alunos segundo os valores e normas sociais (75,3%); instruir os alunos
(74,6%) e; promover o desenvolvimento integral do aluno/criança (71,6%).

CONSIDERAÇOES FINAIS

Considerou-se, por fim, que face à atual conjuntura de transformações econômicas e


sociais, a educação foi incorporada ao processo de reforma estatal, que desencadeou impactos
significativos no fazer docente, colocando inicialmente os professores em suspensão e,
posteriormente, requerendo deles a reconstrução de sua identidade e, consequentemente, a revisão
de seu posicionamento profissional para o enfrentamento dos desafios da profissão.
Por atingir o nível amostral desejado nas respostas de todas as perguntas do questionário e
em muitos casos ultrapassando o mínimo estabelecido. E pela correspondência às exigências de
representatividade e proporcionalidade. Por generalização, os resultados que registraram o maior
número de frequência na pesquisa desenvolvida proporcionaram a construção de inferências sobre
as características, conceitos e opiniões comuns dos professores da Educação Básica na cidade de
Pinheiro-MA, as quais serão apresentadas nessa seção.
Sobre sua prática docente, boa parte dos professores considera que é fácil motivar os
alunos, mas afirma precisar de energia para manter a disciplina em sala de aula. Os professores
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não consideram ter medo dos alunos. Sentem-se realizados e valorizados. Percebem que os alunos
respeitam sua autoridade, não se sentindo atordoados com sua indisciplina. Mesmo achando que
ao final do dia os alunos aprendem alguma coisa, reconhecem que as demandas são diversas e têm
dificuldades de atende-las. E, por fim, reconhecem seu importante papel na vida dos alunos e, por
tudo isso, se sentem satisfeitos com a atividade de cuidar dos alunos.
O compartilhamento de atividade com os colegas é declarado pela maioria dos docentes
como promovido pelas formações e capacitações, havendo também trocas de materiais
pedagógicos, discussão sobre a situação dos alunos e experiências sobre métodos de ensino.
Os três objetivos pedagógicos considerados pelos professores como os mais importantes
foram: preparar os alunos para serem cidadãos responsáveis; fazer os alunos adquirirem as
competências básicas de ler, escrever e contar e; educar os alunos segundo os valores e normas
sociais.
Tendo em vista o objetivo descritivo da pesquisa, observou-se que as conclusões
apresentadas limitaram a elucidar os aspectos investigados, sem fazer análises das constatações.
Cada uma das inferências apresentadas tem potencial para se tornar objeto de pesquisa, requerendo
o desenvolvimento de investigações exploratórias e explicativas. Possivelmente pode-se continuar
tratando os dados sob uma abordagem quantitativa, a partir do processo de análise de dependência
entre as variáreis ou através de análises comparativas com dados oriundos de pesquisas nacionais.
Também há espaço para a seleção de objetos de pesquisa entre os fenômenos identificados e, sob
uma abordagem qualitativa, desenvolver pesquisas de campo. Enfim, a partir das informações aqui
elencadas pode-se e deve-se realizar futuras pesquisas que possam responder suas influências,
causas e efeito.
Portanto, finalizamos esta tarefa agradecendo a todos aqueles que possibilitaram o
desenvolvimento desse trabalho, primeiramente os professores da Educação Básica de Pinheiro,
pela sua disponibilidade em contribuir com a pesquisa e aos diretores das unidades educacionais,
por tão bem receberem a equipe de pesquisadores. Gratos também à Unidade Regional de
Educação-Pinheiro (URE-Pinheiro) e a Secretaria Municipal de Educação de Pinheiro (SEMED-
Pinheiro), pelo apoio incondicional e disponibilidade de acesso irrestrito à informações e espaços
escolares. E, por fim, o muito obrigada pelo apoio financeiro da Fundação de Apoio à Pesquisa
do Estado do Maranhão (FAPEMA), que oportunizou os meios de desenvolvimento e a
materialização final dos resultados que estão sendo entregues agora.

REFERENCIAS
Página 239 de 2230

CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: método qualitativo, quantitativo e misto. Tradução


Magda Lopes. 3ª Ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.
FIELD, Andy. Descobrindo a estatística usando o SPSS. Tradução Lorí Viali. 2ª Ed. Porto
Alegre: Artmed, 2009.
FELDMANN, Marina Graziela(Organizadora). Formação de professores e escola na
contemporaneidade- São Paulo: Senac, 2009.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 5ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010.
INEP. Índice de Desenvolvimento da Educação Básica: resultados e metas. Disponível em <
http://ideb.inep.gov.br/>. Acessado em: 02 de junho de 2019.
LAKATOS, Eva Maria. MARCONI, Mariana de Andrade. Fundamentos de metodologia
científica. 7ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010.

LAUANDE, Maria de Fátima Ribeiro Franco. Formação Docente: um estudo a partir do tema
da profissionalização. In. Licenciaturas: métodos e práticas em diálogo. São Luís: Edufma, 2012.
MARTINS, Gilberto. THEÓPHILO, Carlos Renato. Metodologia da investigação científica
para ciências sociais aplicadas. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2009.

MELLO, Maria Alice. Nascimento, Ilma Vieira(organizadoras). Licenciaturas métodos e


práticas em diálogo. São Luís: Edufma, 2012.
OLIVEIRA, Dalila Andrade. VIEIRA, Lívia França. Trabalho na educação básica: a condição
docente em sete estados brasileiros. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2012.
Pesquisa trabalho docente na educação básica no Brasil: sinopse do survey nacional.
Universidade Federal de Minas Gerais, Grupo de Estudos Sobre Política Educacional e Trabalho
Docente. Belo Horizonte, 2010.
SOUZA, Ângelo Ricardo de. GOUVEIA, Andréa Barbosa. Os trabalhadores docentes da
educação básica no Brasil em uma leitura panorâmica. In: Trabalho na educação básica: a
condição docente em sete estados brasileiros. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2012. p. 19-41.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 13 ed.- Petrópolis, RJ: Vozes.
2012.
Página 240 de 2230

ANÁLISE DAS CONDIÇÕES DE OFERTA EDUCACIONAL EM UMA COMUNIDADE


QUILOMBOLA NO INTERIOR DO MARANHÃO

ANALYSIS OF THE CONDITIONS OF EDUCATIONAL OFFER IN A QUILOMBOLA


COMMUNITY INSIDE MARANHÃO

Lara Venina Matos Abreu


Graduando em Pedagogia - UEMA
Mirian Raissa Pereira Coelho
Graduando em Pedagogia - UEMA
Evandicleia Ferreira de Carvalho
Mestre em Educação - UEMA
Eixo 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Ao longo da história do povo negro no país, os quilombos foram locais de refúgio,
resistência e luta por direitos, incluindo educação. A luta por ampliação do direito educacional
levou a conquistas, mas a garantia de educação de qualidade ainda é um desafio até os dias atuais.
Este estudo teve por objetivo analisar as condições de oferta educacional a crianças quilombolas
na atualidade, refletindo sobre ambiguidades em relação à conquista do direito à educação.
Utilizou-se pesquisa bibliográfica, além de pesquisa de campo na escola quilombola da
comunidade Marajá, município de Bequimão/MA. Foram realizadas observações e entrevistas
semiestruturadas com atores escolares, no intuito de apreender aspectos relacionados à oferta de
educação pública. Identificaram-se limitações quanto à garantia de educação às crianças
quilombolas, relacionadas à estrutura física, recursos materiais e pedagógicos. Também,
percebeu-se a necessidade da implementação de adaptações curriculares que atendam as
especificidades locais, tendo em vista a inexistência de proposta pedagógica relacionada com a
realidade histórica e sociocultural da comunidade, aspecto que também associa-se ao processo de
exclusão do povo negro do espaço educativo.
Palavras-chave: Políticas Educacionais. Educação Quilombola. Direito educacional.

Abstract: Throughout the history of black people in the country, quilombos have been a place of
refuge, resistance and struggle for rights, including education. The struggle to expand educational
law has led to achievements, but ensuring quality education is still a challenge to this day. This
study aimed to analyze the conditions of educational offer to quilombola children today, reflecting
on ambiguities in relation to the achievement of the right to education. Bibliographic research was
used, in addition to field research in the quilombola school of the Marajá community, in Bequimão
/ MA. Observations and semi-structured interviews were carried out with school actors, in order
to apprehend aspects related to the provision of public education. Limitations were identified
regarding the guarantee of education for quilombola children, related to the physical structure,
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material and pedagogical resources. Also, there was a need to implement curricular adaptations
that meet local specificities, in view of the lack of a pedagogical proposal related to the historical
and socio-cultural reality of the community, an aspect that is also associated with the process of
exclusion of black people from the educational space.
Keywords: Educational Policies. Quilombola Education. Educational law.

INTRODUÇÃO

O Brasil possui uma diversidade de comunidades quilombolas espalhadas pelo território


nacional. De acordo com dados da Fundação Cultural Palmares (2019), existem comunidades
remanescentes de quilombos em quase todos os estados da federação. O Maranhão, o segundo
estado com maior número, registra o total de 816 comunidades certificadas35. São comunidades
que, coletivamente, se autodefinem como quilombolas e são reconhecidas em face de
documentação sobre histórico e principais traços culturais relacionados à ancestralidade negra.
Ao longo da história de luta do povo negro no país, os quilombos foram tanto local de
refúgio no período da escravidão para àqueles que tentavam fugir dos castigos, trabalho excessivo
e maus-tratos como, após esse período, um espaço de preservação da cultura, de resistência
(Fiabiani, 2007) e luta por direitos, incluindo educação. Por séculos, os negros foram totalmente
privados do acesso à escola. A luta por acesso e ampliação do direito educacional levou a
importantes conquistas, mas a garantia de educação de qualidade ainda é um desafio até os dias
atuais.
Este estudo visa refletir sobre as condições de oferta de educação pública a crianças
quilombolas no país na atualidade. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica com
levantamento de artigos e outros textos sobre o tema, assim como uma pesquisa de campo, na
comunidade quilombola Marajá, município de Bequimão/MA. Foram desenvolvidas entrevistas
com a docente, gestora e alunos da única escola da comunidade no intuito de apreender aspectos
materiais, humanos e culturais da oferta de educação pública em uma comunidade quilombola.
O presente artigo para além de conter a introdução e considerações finais está divido em
dois tópicos: o primeiro traz análises sobre a história da educação para negros no país e o segundo
trata das condições objetivas dessa oferta educacional nos dias atuais e repercussões, levando em
conta a observação de escola pública de educação básica da comunidade quilombola Marajá,
localizada no município de Bequimão, interior do estado do Maranhão.

35
Dados atualizados pela Fundação Cultural Palmares até 02/08/2019. Disponível em: <
http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551>
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ESCOLARIZAÇÃO DE NEGROS NO BRASIL

A história de oferta educacional a negros no Brasil é marcada por um processo de


desigualdades, injustiças e lutas por direito à educação e valorização da trajetória desses grupos
étnicos. Assim, é marcada por ambiguidades e contradições que interferiram no direito à educação
da população afro-brasileira que repercutem ainda nos dias atuais.
Durante aproximadamente três séculos os negros foram escravizados no território
brasileiro, realizando trabalhos forçados e sob tortura que sustentaram a economia local, sem
quaisquer direitos. Além da exploração, eles também foram submetidos a um processo brutal de
aculturação que teve apoio da Igreja, cujas concepções foram impostas no território da colônia
com a chegada dos jesuítas, em 1549. A Companhia de Jesus tinha como missão prioritária a
expansão dos domínios da fé católica por meio da catequização dos índios através da educação,
mas alcançou de modo residual negros no período colonial (Ferreira Jr e Bittar, 1999)
De acordo com Ferreira Jr. e Bittar (1999) o ensino que veio a ser oferecido na colônia
dava pouca atenção para às crianças negras, alcançando apenas filhos e filhas de escravizados nas
fazendas dos missionários jesuítas. Era um projeto educacional a serviço de uma ordem social
violenta e foi marcado por um processo de aculturação e conversão que “[...] converteu-se no
aspecto diferencial que distinguiu a escravidão praticada pelos jesuítas da implementada pelo
colonizador comum (Ferreira Jr e Bittar, 1999, p. 474)
Nesse projeto, a população negra era vista como lucrativa para a coroa e para a Igreja sendo
o ensino ofertado a negros e nativos uma estratégia de consolidação do império jesuítico-lusitano
(Ferreira Jr e Bittar, 1999).
Fiabiani (2007) destaca que durante todo o período de escravidão no Brasil, o povo negro
criou estratégias de resistências à escravidão e demais formas de exploração, o que tornou o
quilombo uma forma eficaz de oposição ao sistema escravista. Os quilombos surgiam quase
naturalmente e cresciam, sobretudo, pela agregação de membros do seu exterior, em sua maioria
cativos fugidos dos trabalhos forçados no campo e cidades.
Nesses povoamentos a luta por liberdade de trabalho, religiosidade, pensamento e pela
própria existência se congregavam. Assim, indica Fiabiani (2007), durante o período escravocrata
os quilombos foram tanto local de refúgio para cativos, como após esse período, um espaço de
resistência e luta por direitos.
A abolição da escravidão trouxe poucas mudanças na vida dos negros no país, deixando
afro-brasileiros à margem das políticas governamentais. Em relação ao direito educacional,
segundo Veiga (2008), a presença de filhos da população negra e mestiça nas escolas brasileiras
não é decorrente nem da abolição, nem da instalação da República, mas integra a história do Brasil
Página 243 de 2230

desde fins do século XVIII. Considerando práticas desenvolvidas no interior das instituições ainda
no período imperial, indica a autora:

[...] ao ser anunciada a República, já se tinha um considerável acúmulo de experiências


relativas aos processos de discriminação e preconceitos também no ambiente escolar.
Isso ensejou a busca de técnicas voltadas à depuração dos alunos de “todas as
procedências”, a partir da elaboração de testes escolares e da instituição da escola seriada
(grupos escolares) como práticas científicas de organização escolar (Veiga, 2008, p. 554).

Assim, quando houve a expansão do ensino público no período republicano, alcançando


número maior de crianças de classes sociais minoritárias, a exemplo das crianças negras, já
encontravam-se enraizadas práticas de discriminação quanto à origem dos alunos.
Além disso, no período correspondente à segunda República, mesmo com a expansão do
ensino público por meio dos grupos escolares públicos laicos, essas instituições seguiram
mantendo o caráter elitista, visto os custos para permanência na escola e o fato dessas instituições
concentrarem-se nas cidades, excluindo do acesso à escolarização, parcela expressiva de crianças
negras, brancos pobres assim como filhos de imigrantes europeus que trabalhavam no campo
(Ferreira Jr, 2010).
Pode-se afirmar que a história da população negra e quilombola se caracteriza entre
distintas estratégias de luta que não concentram-se somente à educação, mas contra o racismo,
pelo respeito à diversidade cultural, direito ao território, moradia e outros. Além disso, as lutas
por educação não se restringem ao acesso escolar, mas também por atenção às especificidades das
populações quilombolas, incluindo a construção de propostas pedagógicas que articulem as
histórias e culturas do povo afro-brasileiro.
Nesse contexto, a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos
estabelecimentos de ensino público e privados pela Lei nº 10.639/2003 (Brasil, 2003) e a
aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na
Educação Básica, Resolução nº 08/2012 (Brasil, 2012) representam importantes conquistas da
população afro-brasileira e quilombola, pois incidem em estratégias para o reconhecimento da
participação negra na construção da sociedade nacional e na organização da educação em escolas
quilombolas.
Nesse sentido, a regulamentação de educação diferenciada para os estudantes de áreas de
quilombo resulta da resistência do povo negro por manutenção das heranças culturais de seus
ancestrais e busca por garantia do direito educacional. Contudo, é essencial acompanhar como
vem se delineando esse processo para democratização do acesso à educação por parte dos afro-
brasileiros.
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CONDIÇÕES DE OFERTA EDUCACIONAL NO QUILOMBO NA ATUALIDADE:


ASPECTOS MATERIAIS, HUMANOS E CULTURAIS

A Educação Quilombola tem respaldo em documentos como as Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Brasil, 2012) e na Lei nº 10.639/2003 (Brasil,
2003) que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira”. Nas comunidades quilombolas, a escola atua na preservação da cultura,
tradição e diminuição de desigualdades. Para tanto, é imprescindível que o Estado garanta as
devidas condições, mediante recursos humanos, didáticos, culturais, tecnológicos e literários que
atendam as especificidades das comunidades quilombolas.

Educação Escolar Quilombola na comunidade Marajá: elementos históricos

A comunidade quilombola de Marajá está localizada no município de Bequimão/MA. O


município de Bequimão localiza-se a 54,74 km da capital do estado, São Luís, e tem população
de 20.344 habitantes, de acordo com dados do último censo (2010). No município existem onze
comunidades reconhecidas como quilombolas.
Com aproximadamente 150 anos de existência, a comunidade Marajá possui certificação
da Fundação Cultural Palmares, desde o ano de 2012 (Portaria nº 229 de 31/12/2012)36. O povoado
iniciou-se com apenas três famílias vindas de outros quilombos no território maranhense que
decidiram habitar naquele local. Essas famílias tiveram influência no desenvolvimento da
comunidade no que diz respeito a educação, cultura e meio de sobrevivência. Atualmente, no ano
2019, existem cerca de 40 famílias vivendo na comunidade e participando diretamente da
dinâmica escolar nesse território quilombola37.
Quando teve início a oferta de educação escolar na comunidade quilombola
Marajá/Bequimão, na década de 1980, a escola funcionou com condições estruturais inadequadas.
De acordo com depoimento de participantes da pesquisa (professora e gestora), à época essa oferta
se deu em algumas casas dos alunos e só foi organizado em um espaço escolar após luta da
comunidade e atuação de outros sujeitos históricos e políticos.
A única escola pública da comunidade trata-se de um anexo da escola-polo da região,
localizada no povoado Areal38, também município de Bequimão/MA. A conquista de um prédio
próprio para o desenvolvimento de atividades escolares resulta de lutas da comunidade e atuação

36
Dados retirados de < http://www.palmares.gov.br/sites/mapa/crqs-estados/crqs-ma-02082019.pdf>
37
Esse tópico foi elaborado com base em informações coletadas junto à Associação de Moradores do Povoado
Marajá-Bequimão e entrevistas realizadas na escola-campo.
38
Vale ressaltar que o povoado Areal, localidade em que situa-se a escola-pólo, não é uma comunidade quilombola.
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de sujeitos históricos e políticos. Todavia, apesar dos avanços alcançados a oferta de educação na
comunidade ainda enfrenta contradições e desafios.

Aspectos materiais, físicos, humanos e culturais

De acordo com as DCN’s para Educação Escolar Quilombola (Brasil/CNE/CEB, 2012), a


oferta de Educação Escolar Quilombola deve estar atenta à sua finalidade dentro da comunidade
e valorizar a diversidade e cultura dos povos quilombolas, prevendo desde a adequação da
estrutura física ao contexto quilombola, condições de acessibilidade, currículo flexível e que
articula o conhecimento escolar e da comunidade. Ou seja, a educação escolar nas comunidades
quilombolas deve considerar as especificidades dos grupos étnicos a que se destinam, garantindo
a estes as devidas condições de oferta educacional.
O poder público e os sistemas de ensino precisam assegurar os recursos e meios para a
garantia do direito educacional às populações quilombolas. Nesse sentido, cabe a União, aos
estados e municípios garantir condições materiais, humanas e pedagógicas para construção e
desenvolvimento de propostas pedagógicas atentas às especificidades das populações
quilombolas, conforme previsto nessas Diretrizes:

Art. 2º Cabe à União, aos Estados, aos Municípios e aos sistemas de ensino garantir:
I) apoio técnico pedagógico aos estudantes, professores e gestores em atuação nas escolas
quilombolas;
II) recursos didáticos, pedagógicos, tecnológicos, culturais e literários que atendam às
especificidades das comunidades quilombolas;
c) a construção de propostas de Educação Escolar Quilombola contextualizadas
(Brasil/CNE/CEB, 2012).

Além disso, faz-se necessário uma gestão democrática e que seja formada
preferencialmente pelos próprios quilombolas, com professores e gestores membros da
comunidade de modo a favorecer a construção e o desenvolvimento de propostas pedagógicas que
respeitem e valorizem os conhecimentos e especificidades desses grupos étnicos.
Durante visita à escola-campo foram realizadas observações e entrevistas com professora,
gestora e alunos no sentido de analisar as condições de oferta educacional a crianças quilombolas
na atualidade, refletindo sobre ambiguidades em relação à conquista do direito à educação.
Na visita à escola-campo, observou- se que a estrutura física do espaço escolar é restrita,
não possuindo área para o lazer das crianças, nem para realização de atividades culturais. O espaço
físico é composto por uma (01) cantina, um (01) banheiro e uma (01) sala de aula, que recebe
crianças de (quatro) 4 a (dez) 10 anos em apenas um turno (matutino).
Em relação aos recursos humanos, conta com a presença de uma (01) docente apenas, que
realiza o ensino de forma multisseriada. Também, de uma (01) profissional de apoio operacional
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responsável pela limpeza do prédio e preparo de merenda escolar. A docente é pertencente à


comunidade e atua como professora em sua comunidade há seis anos. A gestora da instituição
reside no povoado vizinho onde se localiza a escola pólo, não sendo natural da comunidade
Marajá.
No que se diz respeito aos recursos materiais oferecidos para auxiliar no processo de
ensino-aprendizagem, identificou-se a inexistência de computadores e outros recursos
tecnológicos, além da carência de acervo literário e outros recursos didáticos como jogos.
Em relação ao acervo, identificou-se a existência de uma estante com alguns livros
didáticos e paradidáticos que, conforme a docente, não suprem a necessidade dos alunos e
distanciam-se da realidade local
A falta de recursos, problemas de infraestrutura física e a organização escolar
(multisseriada e multietapas) foram alguns dos pontos apontados pela docente como desafios à
Educação Escolar Quilombola. Sobre isso, houve aproximações com os aspectos elencados pela
gestora da instituição que apontou a falta de recursos, número restrito de profissionais para apoio
e deficiências no acompanhamento pedagógico.
Outro aspecto que vale destacar refere-se ao Projeto Político-Pedagógico (PPP) da
instituição. A escola-campo não dispõe PPP construído de forma contextualizada com a
comunidade local. O documento que rege o trabalho educativo na instituição é o mesmo da escola-
pólo, que não se localiza em uma comunidade quilombola e não foi elaborado com participação
da comunidade escolar de Marajá
Segundo Veiga (2002), o PPP busca a organização do trabalho pedagógico da escola em
sua globalidade, o que inclui a organização da sala de aula e a relação com o contexto social
imediato.
Nas escolas quilombolas, de modo específico, o PPP adquire uma relevância especial, pois
é o documento que irá agregar o currículo oficial e os conhecimentos preservados pela comunidade
(Brasil, 2012). Assim, tanto sistematiza o pensamento coletivo da escola, como define os saberes
que integram a parte diferenciada do currículo da escola.
A escola quilombola precisa de uma estrutura que faça sentido para a comunidade em que
está inserida e aos que dela façam parte. Nesse sentido, os conhecimentos ancestrais, valores
sociais, elementos culturais, históricos, econômicos e modos de ensino-aprendizagem próprios da
comunidade precisam ser integrados ao fazer dessas instituições. Por isso, a importância de um
PPP especifico para cada escola quilombola, pois a realidade enfrentada é diferente de uma
comunidade para outra.

Repercussões na aprendizagem
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Os desafios enfrentados pelo povo negro no Brasil em torno da educação não estão ligados
somente ao preconceito, mas também à condições inadequadas de oferta educacional, inclusive
em comunidades quilombolas, que são redutos de resistência e preservação da cultura e tradições
da população afro-brasileira.
No caso da escola-campo desta pesquisa, conforme depoimentos de participantes do estudo
(professora e gestora), as condições de oferta garantidas às crianças quilombolas repercutem na
qualidade educacional e aprendizagem dos estudantes.
Para a docente, que atua há seis anos na instituição, a própria estrutura física da escola se
constitui como desafio à prática pedagógica. A escola possui uma estrutura simples e espaço
restrito para o desenvolvimento das atividades com os alunos. Os projetos ou ações que requerem
mais espaço são desenvolvidos na frente da escola ou em outros espaços como a sede da
associação comunitária.
Outro aspecto indicado pela docente refere-se ao trabalho com uma turma multisseriada e
multietapas. A docente trabalha com estudantes da educação infantil às séries iniciais do ensino
fundamental (1º ao 5º ano), o que demanda atividades diferenciadas na abordagem dos conteúdos
curriculares.
De acordo com a docente, faltam materiais de apoio levando a utilizar recursos alternativos
para valorização da cultura local como o uso de músicas, danças e brincadeiras que resgatam as
tradições da comunidade. Sobre o material didático existente na escola, conforme a docente, a
ausência de representatividade dos negros nos livros didáticos prejudica o processo de ensino-
aprendizagem e reforça o distanciamento do material com o contexto quilombola, o que a leva a
buscar estratégias para adequar seus planos de aulas à realidade local, para que os alunos não se
sintam distanciados do que lhe é ensinado.
Tais fatores repercutem na aprendizagem e no alcance dos objetivos traçados, conforme
expressou na entrevista: “Se faz de tudo para não lesar, mas infelizmente é difícil. São poucos
alunos [...] e muitos acabam tendo dificuldade. Tem que ter um ‘jogo de cintura’ muito grande
pra conseguir alcançar os objetivos (Docente – Comunidade Marajá/Bequimão).
Apesar das dificuldades, as crianças, que em maioria são filhos de moradores da
comunidade, expressam sentimento de pertencimento à comunidade. Todavia, o conhecimento
das lutas e trajetórias da ancestralidade parece frágil.
Questionados sobre o que é “ser quilombola” e seus conhecimentos da história da
comunidade e as crianças afirmaram sentir muito orgulho de fazer parte da história do povo
quilombola, mas não conseguiram relatar aspectos da história local.
Página 248 de 2230

Mesmo não conseguindo verbalizar sobre a história da comunidade, as crianças relataram


vivências e experiências relacionadas a conhecimentos de seus antepassados e relataram que nos
momentos de lazer utilizam brinquedos tradicionais como bolas de saco, cavalo-de-pau e outros
que são confeccionados por eles mesmos, algumas vezes em sala de aula, não deixando assim a
tradição acabar.
Sobre a participação comunitária nas ações da escola, os alunos afirmaram que costumam
participar de eventos da comunidade na escola, principalmente que valorizam seus costumes e
tradições39. Essa informação foi confirmada pelas demais participantes (docente e gestora) que
evidenciaram que a oferta de educação na localidade tem sido uma luta da comunidade e dos
atores escolares.
A luta das populações quilombolas por educação tem sido recorrente e intensa ao longo da
história da educação brasileira. Sobre a comunidade escolar campo desse estudo, cabe frisar que
quando foi realizada a visita, em maio de 2019, a escola havia passado por recente reforma de seus
espaços, com melhoria das condições de infraestrutura existentes. Todavia, como destacado pela
gestora, ainda nos dias atuais a manutenção do funcionamento da escola na comunidade é motivo
de luta da comunidade e atores escolares, haja vista que o número de alunos e os custos para
manutenção são costumeiramente apontados como motivos para o fechamento da única instituição
de ensino da comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de uma perspectiva histórica, este trabalho fez um breve estudo sobre a oferta de
educação pública a quilombolas nos dias atuais. Com base no processo de desenvolvimento do
Estado brasileiro e as formas de participação social do povo negro em matéria educacional é
possível afirmar que a trajetória dessa parcela da população tem sido construída por meio de lutas
e resistências no que concerne ao acesso e ampliação do direito à educação.
Na escola-campo do estudo identificaram-se limitações e desafios quanto às condições de
oferta educacional, relacionadas à estrutura física, recursos materiais e pedagógicos. Também,
percebeu-se a necessidade da implementação de adaptações curriculares que atendam as
especificidades locais, considerando a inexistência de proposta pedagógica relacionada com a
realidade histórica e sociocultural da comunidade.

39
Sobre tais eventos, as crianças destacaram a Semana do Bebê Quilombola que é uma ação desenvolvida pela
prefeitura de Bequimão em parceria com o governo do estado, Unicef e Fundação Josué Montello. O evento consiste
em uma série de palestras, rodas de conversas e oficinas envolvendo todas as comunidades quilombolas da região e
visa contribuir com a proteção, cuidado e desenvolvimento de crianças quilombolas.
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Tais limitações refletem-se na baixa representatividade da população afro-brasileira nos


materiais didáticos e paradidáticos disponíveis, assim como no pouco conhecimento da história
local pelos alunos, aspectos que podem ser associados ao processo de silenciamento e exclusão
do povo negro do espaço educativo.
Por outro lado, destaca-se o esforço dos sujeitos da comunidade escolar no sentido de
buscar mecanismos para promoção da aprendizagem dos conteúdos curriculares e tradicionais da
comunidade, numa luta pelo direito educacional das novas gerações e preservação de sua
identidade e história.
Entendemos que seja relevante o desenvolvimento de pesquisas e estudos sobre a
Educação Escolar Quilombola, incluindo àqueles vislumbrem o reconhecimento da história e
conhecimentos desses grupos étnicos. Muitas comunidades tradicionais vem desaparecendo ao
longo das décadas por falta de reconhecimento, incentivo e valorização do poder público. A
Educação Escolar Quilombola é um caminho para valorizar os conhecimentos dos povos
tradicionais e aprender com suas tecnologias, história de lutas, formas de relacionamento com a
natureza e etc. Para tanto, é essencial buscar aproximações entre os estabelecimentos de ensino e
as comunidades de modo a valorizar e preservar a identidade desses grupos étnicos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de


1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências. Brasília: DF, 2003. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>

______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução CNE/CEB nº


08, de 20 de novembro de 2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola na Educação Básica. Brasília: DF, 2012. Disponível em<
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=11963-
rceb008-12-pdf&category_slug=novembro-2012-pdf&Itemid=30192

FERREIRA, Amarílio Júnior. História da educação brasileira: da colônia ao século XX. São
Paulo: EdUFSCar, 2010.

FERREIRA JR, Amarilio e BITTAR, Marisa. Educação jesuítica e crianças negras no Brasil
Colonial. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v. 80, n. 196, p. 472-482,
set./dez. 1999.

FIABIANI, Aldemir. O quilombo antigo e o quilombo contemporâneo: verdades e construções.


Anais ANPUH- XXIV. 15 a 20 de julho de 2007. Simpósio Nacional de História, Unisinos, São
Leopoldo. 2007.
Página 250 de 2230

FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Certidões expedidas às comunidades


remanescentes de quilombos. Atualizada até a portaria nº 138/2019, publicada no dou de
02/08/2019. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/wp-
content/uploads/2015/07/certificadas-02-08-2019.pdf>.

VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Projeto político-pedagógico da escola: uma construção


coletiva. Campinas: SP, Papirus, 2002.

VEIGA, Cynthia G. Escola pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção imperial.
Rio de Janeiro, Brasil: Revista Brasileira de Educação, v.13, n.39, set/dez. 2008.
Página 251 de 2230

ANÁLISE SOBRE A OBRIGATORIEDADE DA DISCIPLINA LIBRAS NO


CURRÍCULO DAS LICENCIATURAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
MARANHÃO

ANALYSIS ON THE OBLIGATORITY OF DISCIPLINE LIBRAS IN THE


CURRICULUM OF LICENSES AT THE FEDERAL UNIVERSITY OF MARANHÃO

Josiane Coelho da Costa


Graduada em Letras - UFMA
Dra. Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira
Doutora em Informática na Educação - UFRGS
Professora do Departamento de Letras – UFMA
Eixo Temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Os registros históricos que tratam da educação de surdos localizam na França os


primeiros passos de tentativas desse processo. Algumas literaturas apresentam um histórico de
tentativas ineficientes e concepções equivocadas acerca das metodologias educacionais para
surdos. Considerando a ausência da audição, a língua sinalizada torna-se o principal canal
comunicativo dos surdos, mas nem sempre, na história desses sujeitos, essa modalidade de
comunicação, visual-motora, foi aceita. No que se refere ao surgimento da Libras, este teve como
início a vinda do professor francês surdo, Ernest Huet, que funda a primeira escola de surdos no
país e, junto a surdos brasileiros cria a língua sinalizada do Brasil. Entretanto, cabe demarcar que
o processo educacional dos surdos continua acontecendo, ainda que de modo lento e com pouco
sucesso. Aqui no país, mesmo com o reconhecimento da Libras pela Lei 10.436/2002 como meio
de comunicação e expressão da comunidade surda e regulamentada pelo Decreto 5.626/2005,
muitos entraves são observados no tocante ao processo de ensino e de aprendizagem de pessoas
surdas. Nesse contexto, pesquisas recentes apontam baixo desempenho escolar e número
inexpressivo de alunos surdos que conseguem ingressar no Ensino Superior. Assim, busca-se neste
trabalho analisar os Projetos Políticos Curriculares (PPC) das Licenciaturas da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA), a fim de elencar em quais cursos a Libras encontra-se, como
destaca o Decreto, no eixo das disciplinas obrigatórias. A pesquisa discute ainda, sobre a
relevância da disciplina e a proporção de impacto da falta de acesso desta aos futuros professores.
A pesquisa possui natureza qualitativa e quantitativa, estruturada a partir da bibliografia de
Fernandes et al (2012), Mercado (2012), Lacerda (2004), Brasil (2002, 2005), entre outros autores;
realizou-se também pesquisa documental através de minuciosa análise dos PPCs dos cursos de
licenciatura da UFMA, Campus Dom Delgado. Com base nas análises dos dados verificou-se que
a disciplina de Libras, em algumas licenciaturas, não se mostra em consonância ao Decreto 5.626,
no eixo obrigatório; notou-se também que a carga horária de 60h pode não ser suficiente para
desenvolver competências necessárias para o exercício profissional docente no contexto da
educação inclusiva, de alunos surdos . É notório a urgência de uma fiscalização mais rígida no
Página 252 de 2230

tocante às leis de inclusão, uma vez que a inserção da Libras no currículo das licenciaturas
propicia a construção intelectual de profissionais que atuarão nesse contexto. Torna-se relevante
atentar para os documentos relacionados aos efeitos do ensino de Libras na formação do professor,
haja vista serem estes os possíveis intermediadores na construção social dos surdos, assim como
no trabalho desenvolvido pelas instituições de ensino superior, no tocante à inclusão da disciplina,
em consonância com o dispositivo legal.
Palavras-Chave: Libras. PPC. Licenciaturas. Formação docente.

Abstract: The Historical records dealing with the education of the deaf find in France the first
steps of attempts at this process. Some literature has a history of inefficient attempts and
misconceptions about educational methodologies for the deaf. Considering the absence of hearing,
the sign language becomes the main communicative channel of the deaf, but not always, in the
history of these subjects, this type of communication, visual-motor, was accepted. With regard to
the emergence of Libras, this began with the arrival of the French deaf teacher, Ernest Huet, who
founded the first school for the deaf in the country and, together with Brazilian deaf people, creates
the sign language of Brazil. However, it should be noted that the educational process of the deaf
continues to happen, albeit slowly and with little success. Here in the country, even with the
recognition of Libras by Law 10.436 / 2002 as a means of communication and expression of the
deaf community and regulated by Decree 5.626 / 2005, many obstacles are observed with regard
to the process of teaching and learning deaf people. In this context, recent research indicates low
school performance and an inexpressive number of deaf students who are able to enter Higher
Education. Thus, the aim of this work is to analyze the Political Curriculum Projects (PPC) of the
Licentiate Programs at the Federal University of Maranhão (UFMA), in order to list in which
courses Libras is, as the Decree highlights, in the axis of the mandatory subjects. The research
also discusses the relevance of the discipline and the proportion of impact of its lack of access to
future teachers. The research has a qualitative and quantitative nature, structured from the
bibliography of Fernandes et al (2012), Mercado (2012), Lacerda (2004), Brazil (2002, 2005),
among other authors; documentary research was also carried out through a thorough analysis of
the PPCs of the UFMA undergraduate courses, Campus Dom Delgado. Based on the analysis of
the data, it was found that the Libras discipline, in some degrees, is not in line with Decree 5.626,
in the mandatory axis; it was also noted that the 60-hour workload may not be sufficient to develop
the necessary skills for the professional teaching practice in the context of inclusive education, for
deaf students. It is clear that there is an urgent need for stricter enforcement in relation to the
inclusion laws, since the inclusion of Libras in the curriculum of undergraduate programs
promotes the intellectual construction of professionals who will work in this context. It is relevant
Página 253 de 2230

to pay attention to documents related to the effects of Libras teaching on teacher training, given
that these are the possible intermediaries in the social construction of the deaf, as well as in the
work developed by higher education institutions, regarding the inclusion of the discipline , in line
with the legal provision.
Keywords: Libras. PPC. Licenses.. Teacher training.

1 INTRODUÇÃO

Com o advento das políticas educacionais inclusivas, as discussões e busca por


metodologias acolhedoras nos espaços escolares têm sido pauta de muitas pesquisas. Nesse
sentido, buscou-se neste trabalho, além de agregar reflexões acerca da educação especificamente
de alunos surdos, analisar os documentos Projetos Políticos Curriculares (PPC) das Licenciaturas
da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a fim de elencar em quais cursos a disciplina
Libras encontra-se em consonância ao que narram os dispositivos legais.
Os alunos surdos possuem características particulares, provenientes, principalmente por
questões identitárias e suas condições linguísticas que acontecem de forma visual-espacial. Deste
modo, o processo de educação de alunos surdos torna-se um desafio, principalmente para os
docentes que atuam em salas inclusivas e, nesse aspecto, justifica-se o trabalho, a partir da
relevância em preparar os licenciandos para a prática docente de modo que esta se aproxime da
realidade do aluno surdo.
Sua relevância se dá no tocante à análise do trabalho desenvolvido pelas instituições de
ensino superior (IES), no que se refere a inserção do ensino de Libras no currículo das
licenciaturas, para além da oferta e cumprimento de dispositivos legais, mas por refletir qual a
efetiva contribuição da disciplina no processo de ensino e de aprendizagem de surdos.
O trabalho desenvolveu-se metodologicamente a partir de pesquisa bibliográfica e
documental. Sendo inicialmente estruturado com base nas literaturas de Fernandes et al (2012),
Mercado (2012), Lacerda (2004), Brasil (2002, 2005). Para tanto, analisou-se 18 documentos
(PPC) dos cursos de licenciaturas presenciais da UFMA, campus Dom Delgado, analisando-se seu
ementário, carga horária, entre outros aspectos da área.

2 EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Nas sociedades modernas, a consciência acerca da relevância da educação, como elemento


de progresso social tem pautado, em nível mundial, as questões que abrangem as práticas sociais
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e a construção de cidadãos mais críticos, as discutindo como uma necessidade urgente que
demanda tanto recursos materiais quanto humanos, a fim de proporcionar efetivação plena no
processo educacional, como assevera Toscano (2010). Nesse contexto, tem sido desafiador a
responsabilidade da escola enquanto agente formador de indivíduos atuantes, principalmente
quando estes sujeitos possuem algum tipo de necessidade educacional especializada.
Nesse sentido, no que tange à educação inclusiva, é importante demarcar a diferença entre
esta perspectiva e a modalidade de educação especial, muitas vezes, confundidas ou tidas como
sinônimos. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) Lei 9394/96, define educação especial, em seu
capítulo V, Art. 58, da seguinte forma: “[...] a modalidade de educação escolar oferecida
preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência, transtornos globais
do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”. Analisando o artigo, nota-se que um
fato importante, neste trecho da Lei é que, a oferta é preferencialmente, o que não a torna
obrigatória, ou seja, se a família optar por um espaço específico para a escolarização, a escolha
será livre.
Ainda sobre a modalidade de ensino, nos parágrafos 1° e 2° do citado artigo, a LDB dispõe
que:

§ 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola


regular, para atender às peculiaridades da clientela de educação especial.
§ 2º O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços
especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não
for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular. (BRASIL,
1996, 2013).

À vista disso, caso o aluno necessite de um atendimento mais especifico e que, por algum
motivo, não esteja apto a conviver em sala com os demais alunos, poderá ter serviços
especializados, de acordo com sua necessidade, todavia, sentindo-se hábil para estar em sala
comum poderá também, assim permanecer. Nesse ponto, é essencial perceber que a inclusão é
muito mais uma perspectiva, ou seja, é como será realizado essa educação a fim de alcançar esse
aluno dentro dessa modalidade de ensino, perspectivando mudanças ou adequações objetivando o
sucesso educacional desse público.
Cabe destacar que tais discussões não são tão recentes; a própria Constituição Federal em
seu Art. 208 explanou, décadas atrás, sobre a oferta do atendimento educacional especializado
para alunos com deficiência (BRASIL, 1988). Outro grande marco nesse contexto foi a
Conferência de Salamanca, UNESCO (1994), um movimento mundial que chamou atenção de
muitos países sobre a questão. A LDB também discorre, com especificações, sobre as exigências
propostas para efetivação de um sistema educacional que envolva todos. Fragilidades diversas
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permaneceram entretanto, ao longo desses anos, e a educação inclusiva não tem acontecido de
modo como dispõem os dispositivos legais.
Na concepção de inclusão, pressupõe-se que esta possui um papel não apenas de permitir
acesso, mas de permanência, bem como, propiciar métodos que efetivem a escolarização desses
sujeitos. Assim, incluir alunos com necessidades educacionais especializadas, numa perspectiva
inclusiva, em salas comuns de ensino vai além de colocá-los num mesmo ambiente dos demais, e
sim repensar o processo de ensino e de aprendizagem a partir de metodologias que, entre outras
coisas, possam adequar recursos que os façam assimilar conteúdos, reorganizar atividades que
desenvolvam a capacidade intelectual, entre outros.
A responsabilidade nesse processo exige dinamicidade e para plena materialização
demanda que um conjunto de indivíduos estejam interligados. Logo, é imprescindível a interação
entre políticas educativas, dispositivos legais que garanta seus direitos, a escola e a família. Desse
modo, “se a sociedade quer assegurar o direito à educação e à igualdade de oportunidade terá de
refletir sobre as condições de acesso e de sucesso que é capaz de dar a seus alunos” (FREITAS,
2008, p. 20).
Em face do exposto, focando no Ensino Superior, muitos estudos têm mostrado que a
presença de alunos, com algum tipo de necessidade educacional especializada, perpassa
dificuldades que são encontradas desde a educação básica, segundo demarca Chahini (2016) e,
mesmo que o número de alunos no nível superior seja menor, comparado aos outros níveis da
educação, a problemática não se resolverá porque estes fazerem parte de um nível de escolarização
mais autônomo.
Os entraves tais como, dificuldades com a linguagem, escassez de habilidades com a
escrita, problemas de compreensão em leitura e dificuldade de produção de textos ou
entendimentos dos conteúdos curriculares, faz-se presente também no Ensino Superior, como
destacam Sampaio e Santos (2002). Nesta acepção, chama-se para a seguinte reflexão: se estes
indivíduos encontram-se amparados por dispositivos legais e, ainda assim tem sido árduo
materializar este processo, torna-se pertinente destacar a importância da formação do profissional
que atuará nesse cenário, uma vez que, o professor, é primordialmente um agente que poderá
efetivar o sucesso no processo educacional.
Nesse sentido, a Lei brasileira de inclusão, Lei 13.146/2015 em seu Art. 28, inciso X sobre
a questão discorre: “adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação
inicial e continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento
educacional especializado.” O professor ainda em formação poderá vivenciar seus primeiros
contatos com a diversidade escolar e, neste ponto, considerando que a presente pesquisa agrega
discussões sobre os documentos PPCs dos cursos de licenciaturas, demarca-se que a quantidade
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de horas na matriz curricular voltadas à educação inclusiva poderia ser repensada como uma
oportunidade de contribuir acerca de conhecimentos para o exercício da profissão.
Um dos fatores principais que influencia a identidade e a forma de viver dos surdos,
segundo destaca Perlin (2016) é, com certeza, a língua de sinais, que permite interagir socialmente,
expressar-se. Considerando que a Libras, uma língua em modalidade visual-espacial, é ainda
minoria, aqui no país, as tentativas para conquistar espaços foram árduas, persistentes e, após
décadas de lutas, a Libras foi reconhecida legalmente (BRASIL, 2002).
Umas das grandes conquistas nesse contexto da surdez, além da Libras ganhar status
linguístico oficializado, foi o Decreto 5.626/2005, que entre muitas explanações acerca dos
direitos, dispõe sobre a educação de surdos, não apenas no âmbito da sala de aula, mas desde a
formação do professor que estará desenvolvendo atividades escolares com alunos surdos
(BRASIL, 2005).
Mesmo anos depois da obrigatoriedade de garantir acesso a esses estudantes, as
experiências relativas ao aspecto educacional têm evidenciado muitas dificuldades, algumas
literaturas narram sobre problemas e possíveis soluções, a exemplo de Gesser (2012), quando este
comenta que algumas aulas de Libras demarcam fragilidades na estrutura dos cursos; esta segue
pontuando que é de extrema importância a formação de professores e que é urgente repensar as
questões de planejamento da aula e de cursos que apresentam Libras como disciplina; a autora
destaca ainda, a relevância de elaborar corretamente os materiais didático/pedagógicos.
Nessa perspectiva, chama-se atenção para a exigência do Decreto de Libras em seu Art. 3°
discorre:

A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de
formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e
superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e
privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios (BRASIL, 2005)

Inserir a disciplina na formação inicial dos professores, significa também, proporcionar,


aos futuros docentes, uma reflexão sobre a realidade da educação de alunos surdos, sob vários
aspectos: as peculiaridades da comunicação, as dificuldades enfrentadas por esses alunos, a
importância do sentido da visão. Nessa visão, Pereira (2009) concorda que o contato com a
disciplina de Libras possibilitará ao licenciando, não somente proximidade com a língua
sinalizada, mas a compreensão de elementos culturais e especificidades do processo de ensino e
aprendizagem.
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3 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Para fomentar a discussão, no contexto da educação de surdos e a importância da disciplina


de Libras nos currículos das licenciaturas, nesta pesquisa, organizou-se um estudo analítico, tendo
como corpora 18 licenciaturas de cursos presenciais, campus Dom Delgado, da UFMA e ao longo
do trabalho demarcou-se sobre a urgência de repensar o ensino de Libras aos professores
formandos e como conhecer a libras é, sobretudo, um elemento construtor de uma educação
eficiente a esses alunos. Para iniciar a análise, elencou-se no quadro 1, os cursos que apresentam
a disciplina de Libras enquanto componente curricular obrigatório, em consonância ao Decreto
5.626. Vejamos:

Quadro 1: Cursos que apresentam Libras em seus currículos como disciplina obrigatória

CURSOS EM CONSONÂNCIA EIXO CARGA


COM O DECRETO DE LIBRAS HORÁRIA
Pedagogia Eixo formação pedagógica 60h
Ciências Biológicas Eixo formação pedagógica 60h
Educação Física Eixo formação pedagógica 60h
Ciências Sociais Eixo formação pedagógica 60h
Estudos Africanos e Afro-brasileiros Eixo formação pedagógica 60h
Geografia Eixo formação pedagógica 30h
História Eixo formação pedagógica 60h
Letras Português Eixo formação básica 60h
Letras Espanhol Eixo formação básica 60h
Letras Francês Eixo formação básica 60h
Letras Inglês Eixo formação básica 60h
Artes Visuais Eixo interação com outras áreas 60h
Fonte: Criação das autoras a partir das consultas nos documentos dos PPCs das licenciaturas da UFMA

Como mostra o quadro 1, a disciplina de Libras no curso de pedagogia encontra-se no eixo


formativo, com carga horária de 60h; nesta categoria, o documento40 afirma que ficam as
disciplinas que fomentarão a construção de conhecimentos teórico-práticos, relevantes ao
exercício da profissão. No PPC do curso de pedagogia, o eixo em questão é dividido em: EIXO
FORMATIVO 1, com as disciplinas de fundamentos sócio históricos, político e culturais da

40
Ao longo do o trabalho ao mencionar o termo documento refere-se ao PPC – Projeto Pedagógico Curricular.
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educação; também em EIXO FORMATIVO 2, onde ficam as disciplinas relacionadas às políticas


e gestão de sistemas educacionais, escola e organização do trabalho pedagógico, sendo que este
eixo é subdividido em SUBEIXO 1, das disciplinas de gestão de sistemas educacionais e
SUBEIXO 2 da formação para a docência, sendo que o SUBEIXO 2 é onde encontra-se a Libras,
como disciplina dentro do curso de pedagogia, e é composta ainda pelo SUBEIXO 3, nas práticas
educativas integradora,
De acordo com o documento, as disciplinas do SUBEIXO 2, categoria que a Libras está
inserida, deverão propiciar conteúdos de diferentes áreas do conhecimento, que serão trabalhados,
futuramente, na escola, associados às metodologias específicas, de modo a instrumentalizá-lo para
efetuar a transposição didática dos conteúdos e saberes científico-culturais, numa abordagem
voltada para à aprendizagem crítica e significativa destes conteúdos pelos alunos.
No que diz respeito ao ementário referente à Libras, não há um específico, mesmo ela
sendo uma disciplina com carga horária própria e estando em uma categoria obrigatória. Os
conteúdos relacionados à Libras aparece no ementário de uma outra disciplina: FUNDAMENTOS
DA EDUCAÇÃO ESPECIAL, na qual sugere a bibliografia de Subsídios para Organização e
Funcionamento de Serviços de Educação Especial- Área de Deficiência Auditiva. Brasília: MEC/
SEESP, 1995, que se trata de um documento norteador, no sentido de instruir professores no
contexto de sala de aula, com alunos surdos.
Outras questões que abordam Libras e surdez, no curso de pedagogia, aparecem também
nas disciplinas METODOLOGIAS E PRÁTICAS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL e em
HISTÓRIA E POLÍTICA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL. As bibliografias41 dispostas narram
sobre surdez e Língua Brasileira de Sinais e educação de surdos, como material a ser trabalhado
em sala.
No que se refere a exigência do Decreto 5.626/2005 de Libras, temos que:

A formação de docentes para o ensino de Libras na educação infantil e nos anos


iniciais do ensino fundamental deve ser realizada em curso de Pedagogia ou
curso normal superior, em que Libras e Língua Portuguesa escrita tenham
constituído línguas de instrução, viabilizando a formação bilíngue (BRASIL,
2005).

Nessa direção, o curso encontra-se em consonância ao que narra a lei, considerando que
está em um eixo obrigatório, mas chama-se atenção para as proposições de Mercado (2012),
quando demarca a relevância de desenvolver adequadamente a educação da criança surda. Nesse

41
Os materiais que estão no ementário são: subsídios para organização e funcionamento de serviços de educação
especial-área da deficiência auditiva. Brasília. MEC/SEESP, 1995. BRASIL.MEC /Secretaria de Educação Especial.
Programa de capacitação de Recursos Humanos do Ensino Fundamental- Deficiência Auditiva. V I. Brasília: SEESP,
1997. A educação dos surdos. v II. Brasília: SEESP, 1997. Língua Brasileira de Sinais. V. III. Brasília: SEESP, 1997.
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sentido, o pedagogo precisa muito mais que conhecimentos básicos, como os recomendados em
seu ementário, é necessário entender especificidades, cultura e traços identitários desses alunos
para contribuir nesse processo educativo; logo, pensa-se que poderia ser abordado muito mais
conteúdos para realização da disciplina no referido curso, uma vez que este profissional atuará
com alunos nos anos iniciais.
Nessa perspectiva, os conteúdos poderiam ser mais específicos, repensando a forma como
esses alunos percebem o mundo, ou seja, a partir de aspectos visuais, como destaca Fernandes et
al (2012). A Libras enquanto língua e canal comunicativo sinalizado, poderia ser abordada na
licenciatura, considerando que nem todas as escolas dispõem de profissional intérprete/tradutor,
como assevera Falcão (2017). O conhecimento acerca da língua é um ponto crucial para que o
futuro professor possa comunicar-se com seus alunos e a inserção da disciplina na licenciatura
precisa ser organizada de modo que as 60h possam ser estruturadas com conteúdos que propiciem
conhecimentos satisfatórios para a prática docente, nesse contexto de educação inclusiva de
surdos.
No que tange o curso de Ciências biológicas, seu PPC é composto por disciplinas
obrigatórias, eletivas, estágios, monografia de conclusão de curso e atividades complementares.
Neste documento, verificou-se a disciplina de Língua brasileira de Sinais no eixo de formação
pedagógica, com obrigatoriedade de 60h. O ementário proposto tem em sua bibliografia básica a
Lei n. 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre Libras, seu Decreto N. 5.626, de 22 de
dezembro de 2005 que a regulamenta, e o art. 18 da Lei n. 10.098, Lei de acessibilidade.
Apresenta ainda a literatura de Lucinda Ferreira Brito, Por uma gramática de Língua de
Sinais. Que explana sobre a gramática da Libras, corroborando para entendimento acerca da sua
estrutura, o que pode contribuir aos formandos, no que se refere à compreensão da diferença entre
as composições frasais da Libras, que comparada à Língua Portuguesa apresenta algumas
diferenças, como afirma Fernandes et al (2012).
O curso organiza a ementa com bibliografias complementares que mostram as sinalizações
a partir de dicionários ilustrados42, que permitem conhecimento da formação de sinal em libras,
que correspondem às palavras em Língua Portuguesa. Nessa direção, Lodi (2013) destaca que os
processos educacionais de alunos surdos exigem recursos diferenciados, principalmente visuais,
assim, como o uso de estratégias de ensino de Língua Portuguesa, e que é urgente que se pense

42
BRANDÃO, Flávia. Dicionário ilustrado de libras: língua brasileira de sinais. São Paulo: Global, 2011. 719 p.
ISBN: 9788526015883. CAPOVILLA, Fernando César; Raphael, Walkiria Duarte. Dicionário Enciclopédico
Ilustrado Trinlingue da Língua de Sinais Brasileira: o mundo dos surdos em Libras. São Paulo: Edusp, 2004.
CAPOVILLA, Fernando César; Raphael, Walkiria Duarte. Enciclopédia da Língua de Sinais Brasileira VOL 1: O
mundo dos surdos em Libras. São Paulo: Edusp, 2004. QUADROS, Ronice Muller de. O tradutor e interprete de
lingua brasileira de sinais e lingua portuguesa. Brasilia: Mec, 2004. 94.
Página 260 de 2230

em reformulações nas políticas educativas, sobretudo na formação do professor que atua com
surdos.
O curso de ciências biológicas traça um roteiro interessante em seu PPC, inicia pela
literatura que apresenta a Libras como língua oficializada, perpassa pelo Decreto que dispõe sobre
os direitos que são assegurados a estes alunos, aborda a gramática da língua e segue, de acordo
com o ementário, focando em disponibilizar aprendizado de vocabulários ao licenciando, haja
vista, que os dicionários são sugeridos entre as literaturas da disciplina.
Nessa direção, Soares (2015) concorda que a disciplina Libras é fundamental para o aluno
em formação acadêmica em licenciatura, no sentido de que poderá explicar de forma mais clara e
objetiva o conteúdo aos seus alunos surdos, ainda que o profissional intérprete de Libras esteja
presente em sala, juntos possibilitarão um desempenho melhor ao aluno, e estes conhecimentos
em formação inicial, para a autora, são indispensáveis para que a inclusão educacional aconteça.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), explana que os
profissionais educadores devem ter uma formação sólida que permita conhecimentos científicos e
sociais, acerca do público que atuarão. Nessa acepção, Soares (2015), em uma de suas pesquisas
no curso de Ciências biológicas, na Paraíba, discorre sobre as dificuldades que alunos graduandos
em licenciaturas têm na aprendizagem da língua sinalizada:

Os graduandos deixam claro que apresentaram sim dificuldade na aquisição da


Libras, o que nos afirma que há necessidade de se repensar em práticas didáticas
que permitam os graduandos exercitarem mais as expressões faciais em
contextos de comunicabilidade. Como por exemplo, realizar uma dinâmica com
os alunos para que eles pratiquem as expressões faciais de frente a um espelho.
Aprender a Libras, além da necessidade de se aprender as questões estruturais ou
gramaticais, comuns a aprendizagem de qualquer língua, são necessárias
habilidades motoras e expressivas, o que torna difícil a aprendizagem da Libras
por parte de algumas pessoas (p.25).

Diante das colocações da autora, torna-se imprescindível permitir aos formandos o acesso
às capacitações não somente em relação à estrutura gramatical, mas também aos aspectos
comunicacionais, entre estes, expressões faciais que são elementos essenciais em Libras, segundo
afirma Quadros (2019).
No que se refere ao curso de Educação Física, a Língua Brasileira de Sinais encontra-se
no eixo das disciplinas de formação pedagógica, com carga horária de 60h, subdividida em 30h
teóricas e 30h práticas. A ementa propõe literaturas sobre a legislação educacional, fatores de
inclusão da pessoa surda, o ensino de alfabeto manual e numerais em Libras, e propicia
conhecimentos básicos, necessários ao professor de educação física, em sala e no contexto da
surdez.
Página 261 de 2230

O ementário é organizado por uma bibliografia básica43 que compõe a utilização de


dicionários que apresentam sinalizações em Libras, bem como, materiais sobre a estrutura da
língua e documentos que propiciam instruções pedagógicas acerca da surdez. Ainda no que se
refere às bibliografias, o PPC traz uma literatura complementar44 com conteúdos mais focados à
sinalização prática de Libras. Nesse aspecto, demarca-se a relevância do professor em formação
de compreender o canal comunicativo em modalidade espaço-visual, como sugere Rossi, (2010).
No que concerne ao objetivo da disciplina, no curso de Educação física, o documento
discorre:

Instrumentalizar os futuros profissionais de Educação Física para o


estabelecimento de uma comunicação funcional com pessoas surdas em
situações de conversação; Identificar os principais aspectos da Libras, língua
oficial da comunidade surda brasileira, contribuindo para a inclusão educacional
dos alunos surdos; Propiciar uma melhor comunicação entre surdos e ouvintes
nos espaços educacionais, sobretudo, nas aulas de Educação Física; Favorecer
ações de inclusão educacional nas aulas de Educação Física, oferecendo
possibilidades para a quebra de barreiras linguísticas por meio do aprendizado da
Libras (PPC do curso de Educação Física, p. 80)

Á luz dessas considerações, verifica-se que os objetivos coadunam-se com o ementário,


haja vista este sugerir conteúdos lexicais e vocabulares e a organização do PPC mencionar a
priorização da aprendizagem da Libras para uso funcional. Nesse aspecto, destaca-se o Art. 22 do
decreto nº 5.626 (BRASIL, 2005), que discorre sobre os direitos educacionais de surdos: “escolas
e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues, na
educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental”. Assim, o professor para estar em
sala, na condição de professor bilíngue, deverá adquirir, durante sua formação inicial, habilidades
para tal. Nesta acepção, o ementário do curso propõe que seja trabalhado na disciplina, léxicos da
Libras, a fim de facilitar a interação do futuro professor para com seu aluno em sala inclusiva.
Como observado em quadro1, o curso de Ciências Sociais apresenta a disciplina Libras no
eixo de formação pedagógica, com 60h. O ementário não estabelece a bibliografia, mas discorre
que esta será definida a partir das prioridades que a disciplina vier a demandar; destaca que os

43
CAPOVILLA, F. C; RAPHAEL, W.D. Dicionário: Língua de Sinais Brasileira – LIBRAS. Vol. I e II. 2ª Ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. QUADROS, R. M.; KARNOPP, L. B. Língua de Sinais
Brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. RINALDI, G. Programa de Capacitação de
Recursos Humanos do Ensino Fundamental Deficiência Auditiva, Brasília. DF, Atualidades Pedagógicas, 1997. Vol:
I, II, III.
44
CAPOVILLA, F. C.; RAPHAEL, W. D. Dicionário enciclopédico ilustrado trilingue da Língua Brasileira de Sinais.
São Paulo: EDUSP; FABESP; Fundação Vitae; FENEIS; BRASIL TELECOM, 2001a. v. 1: Sinais de A a.
CAPOVILLA, F. C.; RAPHAEL, W. D. Dicionário enciclopédico ilustrado trilingue da Língua Brasileira de Sinais.
São Paulo: EDUSP; FABESP; Fundação Vitae; FENEIS; BRASIL TELECOM, 2001b. v. 2: Sinais de M a Z. FELIPE,
T. A; MONTEIRO, M. S. LIBRAS em contexto: curso básico, livro do professor instrutor: Brasília: Programa
Nacional de Apoio à Educação dos Surdos, MEC:SEESP, 2001. FELIPE, T. A. Libras em Contexto, Rio de Janeiro.
RJ, Gráfica, 2006, 7ª edição. OLIVEIRA, J. et al. Primeiros sinais em libras. Arara Azul, 2008.
Página 262 de 2230

assuntos abordados deverão compor filosofias da educação de surdos (oralismo, comunicação


total e bilinguismo); definições de língua e linguagem; conteúdos sobre a língua de sinais e a
formação do pensamento; aspectos socioculturais da língua de sinais e gramática das Libras
(aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos).
Ao analisar o PPC de Ciências Sociais, nota-se que ao não estabelecer previamente as
bibliografias, a disciplina pode tornar-se fragilizada, pois segundo afirma Leite (2009), a falta de
um material teórico-didático, para ampliar os conhecimentos acerca da Libras, deixa os
professores obrigados a recorrer, muitas vezes, a informações alternativas, sem base teórica, o que
pode tornar o ensino muito mais empírico.
Nessa visão, Lacerda, Caporali e Lodi (2004) demarcam ser fundamental investir na
formação do professor para que este se aproprie de conhecimentos sobre aspectos específicos da
língua. E nesse ponto, questiona-se: se as demais disciplinas, do curso de Ciências sociais, tem
uma estrutura organizada antecipadamente, por que a Libras não tem? Considerando o Decreto
5.626/2005 que exige a obrigatoriedade da disciplina em carga horária de 60h, escolher os
conteúdos a ser trabalhados deveria ser uma atribuição de modo igualitário, em relação a outras,
dispostas no documento do PPC do citado curso.
No tocante ao curso de Estudos Africanos e Afro-brasileiros, a Libras também se localiza
no eixo das disciplinas de formação pedagógica, com carga horária de 60h. Em seu ementário
observa-se a recomendação de noções básicas comunicacionais entre surdos e ouvintes no
contexto educacional, o que coaduna com o pensamento de Martins e Nascimento (2018) que
destacam a relevância de não tornar o ensino da Libras no currículo das licenciaturas como
superficial, afinal, segundo afirmam os autores, a língua transcende a sua organização gramatical;
é um canal comunicacional em modalidade específica.
Ainda no que concerne ao curso em questão, este organiza-se com o ensino de léxico em
Libras e vocabulário específico da área de Ciência; reúne também bibliografias que desmistificam
mitos45 acerca da língua, bem como, literaturas46 que estudam a estrutura da língua e narram sobre
a educação de surdos; apresenta ainda bibliografia complementar com dicionários47 da área, que
no caso da Libras são compostos por mais de 9.000 sinais em Libras.

45
GESSER, Audrei. Libras: que língua é essa - crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade
surda. São Paulo: Parábola, 2009. GESSER, Audrei. O ouvinte e a surdez: sobre ensinar e aprender a libras.
46
QUADROS, Ronice Muller de. Educação de Surdos – A aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas,
2004. BRITO, Lucinda Ferreira. Por uma gramática de línguas de sinais. 2. ed.Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2010.
QUADROS, R. M; KARNOPP, L.B. Língua de sinais brasileira. Estudos Linguísticos. Porto Alegre: Artemed, 2004.
47
CAPOVILLA, Fernando Cesar; RAPHAEL, Walkiria Duarte. Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue -
Língua de Sinais Brasileira. 2 Vols. São Paulo: EDUSP, 2008. 3ed. CAPOVILLA, Fernando Cesar; RAPHAEL,
Walkiria Duarte. Novo deit- libras: dicionário enciclopédico ilustrado trilíngue da língua de sinais
brasileira(libras)baseado em linguística e neurociências cognitivas. São Paulo: Edusp: Inesp: Cnpq: Capes, 2009. 2V.
Página 263 de 2230

A legislação oferece, sem dúvida, a oportunidade de tornar a educação de surdo mais


eficiente, a partir do trabalho desenvolvido pelo professor, nesse sentido, (TAVARES;
CARVALHO, 2010, p. 8) asseveram:

Deste modo, é inegável o papel da disciplina de formar professores regentes que


conheçam a surdez e suas especificidades, que envolvem questões linguísticas,
culturais, cognitivas e pedagógicas, além de conhecimento, básicos da língua,
considerando a importância de professores com formação adequada para o
trabalho pedagógico, o qual possui como “condição básica”, a comunicação.

Considerando que trata-se de uma língua, a carga horária trabalhada não será suficiente
para agregar conteúdos diversificados. Todavia, a estruturação da grade curricular pode ser
organizada, abrangendo os conhecimentos básicos da área. Assim, a formação de professores, na
perspectiva de inclusão escolar, poderá contribuir para uma educação com qualidade e que se
materializará em sala de aula no exercício da docência.
No curso de Geografia, a Libras aparece no eixo das disciplinas obrigatórias; entretanto,
esta se dá com carga horária menor, 30h apenas. De todos os documentos analisados, somente o
curso de Geografia apresenta carga horária reduzida. Desse modo, chama-se atenção: se em 60h
trabalha-se pouco conteúdo, considerando as especificidades da língua e seus sujeitos, em 30h
seria possível desenvolver habilidades para a docência com surdos? Sobre a questão Martins e
Nascimento (2018) afirmam:

O discurso da inclusão de surdos, de modo raso e superficial, na medida em que,


aparentemente forma professores com domínio linguístico para atender as
especificidades educacionais de alunos surdos. Problematizar o que seja uma
educação bilíngue, e mesmo o aprendizado da língua de sinais como algo
processual, para além da disciplina oferecida é possibilitar um espaço de reflexão
e formação crítica dos licenciados que lidarão com a realidade da diferença surda
no cotidiano da escola (p.35).

No ementário é apresentado a sugestão de literaturas que trabalhem orientações acerca do


que é surdez48 e grau de surdez, filosofias comunicacionais da área (bilinguismo, oralismo total),

DORZIAT, ANA. Educação de surdos em tempos de inclusão. (Artigo). FALCÃO, LUIZ ALBÉRICO. Surdez,
cognição visual e libras : estabelecendo novos diálogos.

48
FERNANDES, E. Problemas Linguísticos e Cognitivos do Surdo. Ed. Agir. 1990. MOURA, Maria Cecília, et al.
Língua de sinais e educação do surdo. São Paulo: Tec Art, 1993, Série de neuropsicologia V.3. QUADROS, Ronice
Muller. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Editora Artes Médicas. 1997.
Página 264 de 2230

noções de língua e linguagem, aspectos sociais49 e estrutural50 da Libras. em comparação aos


demais cursos, este em questão, apresenta um conteúdo menos abrangente.
Nos documentos do curso de História foi possível verificar que a Libras encontra-se no
eixo da formação pedagógica com 60h e o ementário é constituído por fundamentos históricos da
educação51 de surdos; dispõe de dicionários52 da área da surdez com sinalizações em libras e
literaturas que narram sobre aspectos socioculturais53 dos surdos.
Segundo (MARTINS E NASCIMENTO 2018, p. 31) “a disciplina se apoia nesta ideia
principal, a saber, a necessidade de formar professores que reconheçam as reais necessidades dos
sujeitos surdos e compreendam as peculiaridades de seus modos de aprender”. Durante este
presente estudo, foi nessa direção que a Libras se inseriu nos documentos analisados; de fato, a
inserção da disciplina nos currículos das licenciaturas tem estado conforme o que dispõe o decreto
de Libras, embora haja ainda, muitas restruturações a serem feitas, sobretudo no tocante à carga
horária.
O curso de Letras (Português, Inglês, Espanhol e Francês ) em cumprimento ao Decreto
5.626/2005 tem disciplina de Libras em caráter obrigatório, inserida no eixo de formação básica
com 60h. O ementário do curso de letras dispõe de bibliografia54 que versam entre filosofias da
educação de surdos, aspectos educacionais e gramática da Libras. Ressalta-se que este curso é
voltado aos estudos da língua e linguagem, de forma mais específica que os demais; logo, a
compreensão acerca da Libras pode acontecer de forma mais eficiente, considerando que as teorias
linguísticas são fortemente marcada, ao longo da graduação.
Lima, Lima e Macêdo (2018), em uma de suas investigações acerca da Libras como
disciplina obrigatória no curso de Letras, inferiram que os alunos sujeitos, da pesquisa,
manifestaram a vontade de de estudar um pouco mais a Libras no âmbito acadêmico e mesmo

49
SACKS, Oliver. Vendo Vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
50
BRITO, Lucinda Ferreira. Por uma gramática de língua de sinais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: UFRJ,
Departamento de Linguística e filologia, 1995.
51
BOTELHO, Paula. Segredos e Silêncios na Educação dos Surdos. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. LUNARDI,
Márcia Lise. Cartografando os Estudos Surdos: currículo e relação de poder. REIS, Flaviane. Professor Surdo: A
política e a poética da transgressão pedagógica. Dissertação (Mestrado em Educação e Processos Inclusivos).
Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006. SKLIAR, Carlos B. A Surdez: um olhar sobre as
diferenças. Editora Mediação. Porto Alegre, 1998. _______ (org). Atualidade da educação bilíngüe para surdos.
52
CAPOVILLA, Fernando César; RAPHAEL, Walkíria Duarte. Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngüe da
Língua de Sinais Brasileira, Volume I: Sinais de A a L. 3 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
53
GESSER, A. LIBRAS: que língua é essa? São Paulo: Parábola, 2009. MELO, Sandro Nahmias. O direito ao
trabalho da pessoa com deficiência: o princípio constitucional da igualdade. São Paulo: LTR, 2004. SACKS, Oliver.
Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. Trad.Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SANTANA, Ana Paula; BERGAMO, Alexandre. Cultura e identidade
54
BRITO Lucinda Ferreira. Por uma gramática de língua de sinais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: UFRJ,
Departamento de Linguística e filologia, 1995. FERNANDES, E. Problemas Linguísticos e Cognitivos do Surdo. Ed.
Agir. 1990. MOURA, Maria Cecília, et al. Língua de sinais e educação do surdo. São Paulo: Tec Art, 1993, Série de
neuropsicologia V.3. QUADROS, Ronice Muller. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Editora Artes
Médicas. 1997. SACKS, Oliver. Vendo Vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
Página 265 de 2230

estando em processo de aprendizado da língua não se sentiam preparados para receberem alunos
surdos nas suas aulas. Os licenciandos entrevistados, relataram que o motivo do despreparo era a
oferta da disciplina, pelo fato desta acontecer somente em um semestre do curso de Letras, pois
eles consideraram pouco provável se aprender qualquer língua em apenas um semestre.
No percurso desta pesquisa, concorda-se sob alguns aspectos, com as colocações da
pesquisa de Lima, Lima e Macêdo (2018), pois mesmo o curso trabalhando com linguagens, a
Língua brasileira de sinais demanda muitas especificidades a serem compreendidas, bem como
peculiaridades dos sujeitos falantes dessa língua, a disciplina é ministrada em um espaço de tempo
insuficiente.
Em Artes Visuais, a disciplina organiza-se no eixo de interação com outras áreas, eixo
obrigatório com carga horária de 60h, o documento discorre que este eixo trata-se de uma
aproximação do curso com outras áreas do conhecimento, entre elas estética, sociologia, filosofia,
objetivando estimular a interdisciplinaridade com cultura maranhense, arte indígena, aspectos
socioambientais e por propiciar a inclusão auditiva. A ementa traz conhecimentos linguísticos
acerca da Libras, tais como, morfologia, sintaxe55 léxico, habilidades de desenvolvimento de
expressão facial56 e processos educativos57 para surdos.
O quadro 1, representado pelas licenciaturas nas quais a libras é componente curricular
obrigatório, no geral, apresentou os conteúdos abordados de modo engessado, sem muitas
variações. Observou-se o uso de documentos em comum, mesmos autores e dicionários utilizados.
Inferiu-se pouca variação dos conteúdos; a disciplina segue em comum a todos os cursos. Nesta
primeira categoria analisada, soma um total de 12 cursos que têm em seus eixos obrigatórios a
disciplina de Libras, como discorrem os dispositivos legais.
Concorda-se que embora muitos estudos mostrem que a carga horária da disciplina seja
insuficiente, uma vez que se trata de uma língua, mas passos importantes foram dados no sentido
de permitir o acesso ao conhecimento dos alunos surdos, que neste caso, inicia-se pela formação
do profissional que atuará com o público. É nessa formação inicial que os professores tomam
conhecimento de que existe a comunidade surda e que esta tem uma língua com especificidades e
que isto demanda conhecimentos para contribuir no processo educacional desses sujeitos.

55
QUADROS, Ronice Muller; KARNOPP, Lodenir. Língua de Sinais Brasileira: Estudos Linguísticos. Porto Alegre:
Editor a Artmed, 2004.
56
PIMENTA, Nelson. Coleção Aprendendo LSB – vol. I, básico; vol.II intermediário; e vol. III avançado,. Rio de
Janeiro: Regional,
57
FELIPE, Tanya; MONTEIRO, Myr na. LIBRAS em Contexto: Curso Básico: Livro do Professor. Rio de Janeiro:
LIBRAS, 2005. , 2000.FERNANDES, Eulália (Org.). Surdez e Bilinguismo. Porto Alegre: Mediação, 2005. LANE,
Harlan. A Máscara da Benevolência. Lisboa: Instituto Piaget, 1992. LACERDA, Cristina B.F. de; GÓES, Maria
Cecília R. de; (Orgs.) Surdez: processos educativos e subjetividade. São Paulo: Lovise, 2000. MOURA, Maria Cecília
de. O surdo, caminhos para uma nova Identidade. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.
Página 266 de 2230

Quadro 2: Cursos que apresentam Libras em seus currículos como eletiva

CURSOS EM DISSONÂNCIA EIXO CARGA HORÁRIA


COM O DECRETO DE LIBRAS
Filosofia Eletiva 45h
Música Eletiva 60h
Teatro Eletiva 60h
Fonte: Criação das autoras a partir das consultas nos documentos dos PPCs de cada curso

Como ilustrado em quadro2, o curso de Filosofia não apresenta a Libras como obrigatória.
Contrário ao Decreto, a disciplina encontra-se no eixo das eletivas com carga horária de 45h. Seu
ementário destaca as literaturas sobre aspectos sociais, gramática58 da língua sinalizada e
educação59 de surdos. A disciplina, fora dos eixos obrigatórios poderá impedir que o aluno em
formação tenha contato com a Libras, considerando que as disciplinas em eixos optativos ficam a
critério dos alunos. Vale ressaltar que atualmente, o número de alunos surdos que não consegue
desenvolver atividades educacionais é significante. (LACERDA, CAPORALI E LODI 2004;
PEREIRA, 2009; SOARES E LOPES,2019).
Nessa acepção, é importante repensar que mesmo as leis assegurando direitos a esses
sujeitos, a inclusão materializa-se mesmo em sala de aula, com professores preparados para lidar
com as necessidades específicas desses alunos, segundo afirma Luz (2016). Nesse ponto, a
disciplina, em discordância ao que exige o Decreto 5.626/2005 em seu art. 22, poderá impedir o
sucesso da escolarização de alunos surdos.
O curso de Música apresenta a disciplina de Libras em seu eixo de formação
complementar, mas a Libras não consta como disciplina obrigatória. No PPC aparece a exigência
de duas eletivas, mas o documento não estabelece quais eletivas devem ser; sobre a questão, o
documento discorre que: ”Eletiva I e II (Departamento Acadêmico a definir) - Disciplinas
escolhidas pelo aluno, dentre as disciplinas consideradas de áreas afins, ofertadas no âmbito de
qualquer Departamento Acadêmico da UFMA, a partir dos critérios regulamentados pelo
Colegiado do Curso”(p.34).

58
BRITO, Lucinda Ferreira. Por uma gramática de língua de sinais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: UFRJ,
Departamento de Lingüística e filologia, 1995. FERNANDES, E. Problemas Lingüísticos e Cognitivos do Surdo. Ed.
Agir. 1990
59
MOURA, Maria Cecília, et al. Língua de sinais e educação do surdo. São Paulo: Tec Art, 1993, Série de
neuropsicologia V.3. QUADROS, Ronice Muller. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Editora Artes
Médicas. 1997. SACKS, Oliver. Vendo Vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
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Diante do excerto, nota-se que se o aluno quiser pode escolher em cursar a disciplina, mas
esta não é obrigatória, pois, as eletivas do curso exigem carga horária de 60h, cada. Não possui
ementário voltado especificamente à Libras, pois fica de acordo com o departamento responsável
que o aluno venha a escolher. Nessa perspectiva, é importante demarcar que o êxito na educação
de alunos surdos poderá ser concretizado se o verdadeiro interesse em atender as necessidades
educacionais desse aluno for respeitado, e para que este educando possa ser atendido; um passo
importante é a formação inicial do professor, como destaca (MONTOAN,2007, p. 16): “A meta
da inclusão é desde o início, não deixar ninguém de fora do sistema, que deverão adaptar-se as
particularidades de todos os alunos. ”
Nesse sentido, mesmo a licenciatura de Música utilizando-se, em alguns momentos, de
elementos sonoros e os surdos sendo sujeitos com a ausência do sentido da audição, os
conhecimentos musicais constituem-se necessários às experiências sociais desses sujeitos. Sendo
assim, o professor de música precisará também, conhecer aspectos da surdez e libras, a fim de que
possa desempenhar habilidades da área aos seus alunos.
No curso de Teatro, a disciplina Libras não se constitui como componente curricular
obrigatório, encontrando-se no eixo das eletivas, com carga horária de 60h. O ementário dispõe
de bibliografias60 que versam acerca da surdez e suas características, educação de surdos, língua
e linguagem, aspectos socioculturais da língua de sinais e gramática da Libras. É necessário
destacar que no curso de Teatro, há uma discordância com o que é exigido em lei, a respeito da
obrigatoriedade da disciplina no currículo, e que se torna urgente repensar que além de legalmente
garantido, a disciplina agrega muitos conhecimentos pertinentes à comunidade acadêmica do
teatro, enquanto licenciandos.
Todavia, um aspecto positivo observado foi que além da disciplina Libras, o curso possui
em sua matriz curricular outra disciplina eletiva que trabalha a língua brasileira de sinais; tem por
nome: VIVÊNCIA EM LÍNGUA DE SINAIS. Pesquisando em seu ementário, notou-se que a
citada disciplina se assemelha ao curso básico de Libras, considerando o conteúdo programático
do módulo básico de diversos centros e instituições que trabalham com formação de intérprete,
como por exemplo, o Centro de Apoio e Ensino à Pessoa com Surdez (CAS), Associação de
Surdos do Maranhão (ASMA), entre outros.

60
BRITO Lucinda Ferreira. Por uma gramática de língua de sinais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: UFRJ,
Departamento de Lingüística e filologia, 1995. FERNANDES, E. Problemas Lingüísticos e Cognitivos do Surdo. Ed.
Agir. 1990. MOURA, Maria Cecília, et al. Língua de sinais e educação do surdo. São Paulo: Tec Art, 1993, Série de
neuropsicologia V.3. QUADROS, Ronice Muller. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Editora Artes
Médicas. 1997. SACKS, Oliver. Vendo Vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
Página 268 de 2230

Em seu ementário destaca o ensino do alfabeto datilológico, iconicidade e arbitrariedade,


relação espaço visual, as expressões faciais e corporais, a relação Língua Portuguesa e Libras,
vocabulários e aspectos da Língua em uso. Em sua maioria, as bibliografias são as mesmas das
outras licenciaturas, mas acrescentam literaturas61 que não foram mencionadas nas outras ementas
de cursos já analisados.
A oferta de duas disciplinas que agregam conteúdos sobre a Libras, surdos e surdez é, sem
dúvidas, uma oportunidade de construir muito mais conhecimentos, perspectivando um possível
melhoramento do processo educacional de alunos com surdez, pois como destaca Paulon (2005),
é o professor que exerce a função essencial, para otimizar o processo de ensino e de aprendizagem
no contexto inclusivo.
A seguir, o quadro 3, representa os cursos de licenciaturas nos quais a disciplina Libras
não aparece nem nos eixos das obrigatórias nem entre as eletivas. Observemos:

Quadro 3: Cursos que não apresentam Libras em seus currículos

CURSOS EM DISSONÂNCIA EIXO CARGA HORÁRIA


COM O DECRETO DE LIBRAS
Química X X
Física X X
Matemática X X
Fonte: Criação das autoras a partir das consultas nos documentos dos PPCs de cada curso

Os cursos de química, e matemática não possuem a Libras em seus currículos, mesmo


sendo um curso que forma professores, os quais possivelmente atuarão em salas de aulas
inclusivas. Durante a pesquisa verificou-se que estes dois cursos possuem o documento de PPC
mais antigo. Salienta-se, ainda em relação ao PPC do curso de Física, não foi possível acessar o
documento, realizando-se, desse modo, investigações a partir da matriz curricular, que é
disponibilizada no site da UFMA. O documento se encontra disponível nas referências desta
pesquisa.
Desse modo, é possível perceber, a partir do quadro3 que, estes três cursos não atendem à
exigência da Lei, disposta no Art. 31o do Decreto 5.626 de Libras, quando discorre que entra

61
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Programa Comunicar. Língua de Sinais. Brasília, 2000. MOURA, Maria Cecília,
et al. Língua de sinais e educação do surdo. São Paulo: Tec Art, 1993, Série de neuropsicologia V.3. REVISTA
ESPAÇO-Informativo Técnico Científico do Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES – Rio de Janeiro, s.d.
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO – Aspectos lingüísticos da LIBRAS. Departamento de Educação
Especial. Brasília, s.d.
Página 269 de 2230

em vigor a partir da data de sua publicação, que no caso do citado, do Decreto supracitado, foi o
ano de 2005.
Lemes, Silva e Carvalho (2018) desenvolveram uma pesquisa e investigaram a percepção
dos alunos licenciandos em Física, sobre a obrigatoriedade da disciplina no currículo do curso. A
pesquisa foi realizada em uma Instituição de Ensino Superior no Estado de Goiás; os participantes
foram graduandos do 4° e 5° período, a partir da aplicação de questionários. Obtiveram como
resultados que 80% dos alunos licenciandos concordaram com a obrigatoriedade da disciplina de
Libras no curso de física e 20% discordaram dessa obrigatoriedade.
Alguns alunos participantes da pesquisas questionaram que se devem aprender métodos
para trabalhar com surdos, deveriam aprender para trabalhar com cegos. Neste ponto é importante
demarcar que uma língua requer muito mais conhecimentos do que os códigos, como é o caso do
braile. O canal comunicacional é diferenciado, as percepções são visuais. O aluno argumenta
ainda com os pesquisadores sobre a possibilidade de ter apenas um aluno futuramente nas salas e
assim, a Libras poderia ser dispensada enquanto disciplina. Sobre a questão, vale ressaltar que
professores não escolhem com quem vão trabalhar, qual sala querem ter. Assim, a heterogeneidade
das classes regulares de ensino demanda do professor capacitações e habilidades, como demarca
Lacerda, Caporali e Lodi (2004).
Os cursos representados em quadro3, também são voltados à formação de professores, e
enquanto licenciados, é imprescindível lembrar que a inserção desse componente curricular, de
caráter obrigatório, proporciona uma familiarização com aspectos da surdez, propiciando um bom
desempenho profissional e, sobretudo, o alcance satisfatório do desenvolvimento escolar de alunos
com surdez, conforme concorda Santos (2015).

4 CONCLUSÃO

No âmbito educacional, todos os elementos que envolvem o sistema são importantes, mas
o professor tem um papel fundamental. Para Nóvoa (1999) refletir sobre a formação do professor
é compreender que não haverá sucesso no processo de ensino e de aprendizagem, nem reformas
políticas e educativas se não existir a devida formação docente.
Nesse sentindo, desenvolveu-se este trabalho, pensando nos aspectos que envolvem a
formação inicial, abrangendo o contexto da educação inclusiva de surdos, sujeitos que lutaram
para conquistar direitos aos espaços sociais, e hoje, têm lutado para que seus direitos sejam
materializados.
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Nessa direção, é importante pensar no aprendizado ao longo da graduação, o que concorreu


para que se escolhesse investigar a disciplina Libras, no que se refere aos direitos educacionais,
pesquisando as dezoito licenciaturas na UFMA e o que dispõem seus PPCs sobre a temática.
Percebeu-se que doze dessas licenciaturas têm apresentado aspectos essenciais acerca
desse público, para que desenvolvam suas habilidades docentes, no cenário da surdez. Três
licenciaturas apresentam Libras como disciplina eletiva e três ainda não disponibilizam o conteúdo
da disciplina aos licenciandos.
Sacristán (1998) demarca que o currículo se constitui um elemento dinâmico e essencial
enquanto conjunto de práticas variadas que permitem aos formandos construírem esferas mais
elevadas nos sistemas educacionais e, nesse sentido, ressalta-se a importância da disciplina Libras.
Notou-se ainda, neste estudo, um aspecto relevante sobre os ementários dos cursos: uma
espécie de engessamento de conteúdo. Os cursos seguem uma sequência de conteúdos repetidos,
sem aprofundar muito na língua sinalizada. Embora a carga horária seja relativamente pequena
para ampliar conhecimentos, pensa-se que se as bibliografias forem dispostas mais seletivamente,
estas poderiam alcançar objetivamente as principais necessidades na formação de professor, em
contexto inclusivo de surdos.
Observou-se ainda, que em muitos cursos, houve priorização da parte teórica da disciplina,
enquanto a prática de Libras não foi considerada como fator essencial na estruturação curricular
dos cursos. Seria interessante que cada curso organizasse sua ementa com vocabulários específicos
de seus respectivos cursos. Assim, além de um léxico comum a todos os cursos, tais como
saudações, o formando de um determinado curso superior aprenderia sinais do contexto das suas
aulas; por exemplo, o curso de Música focaria nas sinalizações mais necessárias em seu contexto,
o que se estenderia assim, por todas as graduações.
Chama-se atenção que agora em 2020, faz quinze anos do Decreto de Libras, entre
exigências, sugestões e obrigatoriedades, há muito ainda a se fazer; é necessário buscar detalhes
que aparentemente estão ajustados aos dispositivos legais e repensá-los em uma perspectiva crítica
e analítica. É urgente que as Instituições de Ensino Superior, privadas ou públicas, busquem
pequenas falhas na execução da Lei, a fim de permitir que a educação, seja concretizada de forma
eficiente e eficaz. Vale lembrar que esta se inicia desde o momento de formação docente, na
graduação.
Indiscutivelmente, o campo de formação de professores vai muito além da formação
inicial, é necessário buscar competências a partir de formação continuada, todavia, esse primeiro
contato, ainda na graduação, com a realidade de possíveis públicos no âmbito da sala de aula
poderá contribuir para um bom desempenho no exercício da profissão. Considera-se que a
temática demanda repensar a estrutura organizacional dos cursos de licenciaturas, matrizes
Página 271 de 2230

curriculares que permitam a aproximação do graduando e a Língua sinalizada para desenvolver


reflexões e resultados positivos no processo escolar do sujeitos surdos.

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ANÁLISE SOBRE AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS DOCENTES DA


EDUCAÇÃO BÁSICA EM PINHEIRO-MA

ANALYSIS ON THE WORKING CONDITIONS OF THE BASIC EDUCATION


TEACHERS IN PINHEIRO-MA
Luzimary de Jesus Amorim Aroucha
Licenciada em Ciências Humanas – História. UFMA
Ducielma Pereira Costa
Licenciada em Ciências Humanas – Filosofia UFMA
Francilene do Rosário de Matos
Mestre em Educação UFMA
Doracy Pinto Lima
.Mestre em Educação UFMA
Eixo Temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as condições de trabalho docente na educação
básica em Pinheiro-MA, bem como o modo como essas condições afetam o trabalho do professor
e a aprendizagem do aluno. O processo metodológico deu-se por meio de uma pesquisa
bibliográfica, onde foram levantados elementos teóricos que sustentaram a análise sobre as
condições do trabalho docente, resgatando conceitos necessários para a realização do estudo,
utilizando-se, para tanto, referenciais de autores como Maurice Tardif, Claude Lessard, Miguel G.
Arroyo, Selma Garrido Pimenta, Edimilson Antonio Junior Pereira, além de outros. Também
foram analisados os resultados da pesquisa realizada pelo Grupo de Estudo e Pesquisa Formação
e Trabalho Docente na Educação Básica, da UFMA, que teve como objetivo descrever a formação
e o trabalho docente na zona urbana e rural de Pinheiro-MA. Os dados foram coletados por meio
de questionário aplicados junto aos professores ativos da educação básica do município, composto
por perguntas que tratavam vários temas, inclusive condições de trabalho. Para esse estudo,
destacaram-se os dados referentes às exposições aos ruídos durante a atividade docente, avaliação
dos ambientes de trabalho da escola, da sala de aula, entre outros. Como conclusão, foi possível
demonstrar a importância de um ambiente pedagógico adequado, com recursos pedagógicos
disponíveis, além da necessidade que as unidades educacionais tenham bibliotecas, salas de
informática, salas de repouso e equipamentos, pois todos esses condicionantes determinam o
sucesso das atividades desenvolvidas pelo professor junto aos alunos. Este trabalho propõe que
haja intervenções acerca das condições de trabalho docente, fomentando melhorias no ambiente
de trabalho do professor.
Palavras-chave: Educação. Docência. Condições de trabalho.

Abstract: This article aims to analyze the teaching work conditions in basic education in Pinheiro-
MA, as well as how these conditions affect the work of the teacher and the student's learning. The
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methodological process took place through a bibliographic research, where theoretical elements
were raised that supported the analysis on the conditions of the teaching work, rescuing concepts
necessary for the realization of the study, using, for that, references from authors such as Maurice
Tardif, Claude Lessard, Miguel G. Arroyo, Selma Garrido Pimenta, Edimilson Antonio Junior
Pereira, among others. The results of the research carried out by the Study and Research Group
for Training and Teaching Work in Basic Education, at UFMA, which aimed to describe the
training and teaching work in the urban and rural areas of Pinheiro-MA, were also analyzed. The
data were collected through a questionnaire applied to the active teachers of basic education in the
municipality, composed of questions that addressed various topics, including working conditions.
For this study, the data referring to the exposure to noise during the teaching activity, evaluation
of the school work environments, the classroom, among others, were highlighted. As a conclusion,
it was possible to demonstrate the importance of an adequate pedagogical environment, with
available pedagogical resources, in addition to the need for educational units to have libraries,
computer rooms, rest rooms and equipment, as all these conditions determine the success of the
activities developed by the teacher with students. This work proposes interventions about teaching
working conditions, promoting improvements in the teacher's work environment.
Keywords: Education. Teaching. Work conditions.

INTRODUÇÃO

Existem muitos aspectos que determinam as condições de trabalho dos professores e que
exercem forte influência em sua prática. Para Pereira Junior (2016), as condições de trabalho
docente nas escolas de educação básica constituem os aspectos objetivos e subjetivos encontrados
ou vivenciados pelos professores no cotidiano escolar, os quais determinam o trabalho do docente.
Compreender as circunstâncias do trabalho mostra-se importante elemento para a
compreensão da realização da atividade do dia a dia do professor. Diante disso, o que se pretende
com este estudo é conhecer como o trabalho dos profissionais docentes se apresenta na realidade
do cotidiano dentro dos espaços educacionais, trazendo uma reflexão de como essas situações
afetam o trabalho do professor e a aprendizagem do aluno.
O interesse pelo estudo sobre o trabalho docente pode ser esclarecido em razão da vontade
de investigar quais são as condições para o bom desenvolvimento do trabalho docente. Para tanto,
corroborou-se com a opinião de Pereira Junior (2016) sobre os aspectos que compõem as
condições de trabalho, tais como: estrutura da escola; o suporte aos professores; o tamanho das
turmas; a disponibilidades de materiais didáticos; e a interação com os professores.
Neste estudo, para entender em quais condições os professores trabalham, inicialmente foi
tratada a questão do trabalho docente e a busca pelo reconhecimento da sua profissionalização,
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onde se constatou que seu trabalho consiste em atividades relacionadas à educação e que se trata
de um profissional assegurado por lei, o que traz para estes profissionais resultados positivos na
legislação educacional.
Posteriormente, foram tratadas algumas definições sobre as condições de trabalho docente,
utilizando diversos conceitos da literatura. Por meio da obra dos autores Tardif e Lessard (2014),
foram tratadas as condições de trabalho dos professores, onde, por exemplo, foi discutida a falta
de recursos, de tempo e a escassez de instrumentos pedagógicos, fatores “materiais”
frequentemente mencionados pelos professores, por dificultar sobremaneira o trabalho docente.
As condições de trabalho docente estão atreladas aos recursos disponíveis para realização
da prática docente, a infraestrutura das instituições, ou seja, condições que possibilitem o trabalho
do cotidiano do professor. Deu-se também destaque às referências sobre esse tema contidas na
Constituição Federal do Brasil, para a garantia de que estes profissionais tenham qualidade no
ambiente de trabalho.
Os profissionais podem estar expostos a várias situações ao longo da sua jornada de
trabalho, que podem afetar a saúde, gerar desvalorização e baixo rendimento dos alunos. O
professor está sujeito à precarização das condições de trabalho e também da sua situação
profissional, que provocam, consequentemente, o sobretrabalho e a ampliação da carga horária, o
adoecimento e a sensação de desvalorização (SILVA, 2007).
O processo metodológico contou com a análise dos dados da pesquisa Trabalho Docente
na Educação Básica de Pinheiro-MA, realizada em 2018, pelo Grupo de Estudo e Pesquisa
Formação e Trabalho Docente na Educação Básica (GEP), da Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). Esses dados foram coletados por meio da aplicação de questionário composto com
perguntas que tratavam vários temas, inclusive condições de trabalho. Para entendimento da
problemática tratada nesse estudo, foram analisados itens relacionados à exposição de ruídos
durante a atividade docente, à avaliação da sala de aula e à avaliação dos ambientes de trabalho
da escola.
Este artigo está dividido em mais quatro tópicos, após esta introdução. Os tópicos 2 e 3
tratam da revisão bibliográfica sobre as condições do trabalho docente e têm o interesse de
apresentar os elementos teóricos que sustentam o trabalho, resgatando conceitos necessários para
a realização da pesquisa. No tópico 4, são apresentados dados sobre o trabalho docente na zona
urbana e rural de Pinheiro-MA, considerando as exposições aos ruídos durante a atividade
docente, avaliação dos ambientes de trabalho da escola, da sala de aula, entre outros. Por fim, o
tópico 5 trata das considerações finais e, logo depois, são apresentadas as referências
bibliográficas.
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O TRABALHO DOCENTE

A educação, nas últimas décadas do século XX, sofreu mudanças substanciais que
alteraram o panorama da educação brasileira. Essas mudanças representam a busca de
democratização do ensino, possibilitando o acesso para a maioria da população. Nesse cenário de
mudanças, emergiu o debate sobre a profissionalização dos professores, principalmente no tocante
às garantias constitucionais da profissão docente.
Oliveira (2010) elucida que, em suas origens, os sujeitos que se ocupavam do ato de ensinar
o faziam por vocação ou sacerdócio e para tornar-se profissão o magistério percorreu um longo
caminho. A constituição do trabalho docente e sua profissionalização estão relacionadas à
organização e à expansão escolar. Ao longo da história, o magistério sempre esteve em busca da
sua profissionalização.
De acordo com Rodrigues (2002), o conceito de profissionalização pode ser aceito como
uma ocupação que exerce autoridade e jurisdição exclusiva, simultaneamente, sobre uma área de
atividade e de formação ou conhecimento. Pode-se perceber que a busca para consolidação da
profissão do magistério encontrou barreiras, os docentes sempre estiveram na luta em defesa dos
seus direitos, reivindicando melhores condições de trabalho e lutando pela autonomia no exercício
de sua profissão.
A primeira regulamentação no sentido de consolidação do ofício docente surgiu com a Lei
de Diretrizes e Base (LDB) nº 4024/1961, com ela passou-se a conhecer e entender os profissionais
da educação, o que constituiu um grande avanço na profissionalização dos docentes,
estabelecendo o marco legal, descrito em seu Art. 61. Consideram-se profissionais da educação
escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos
reconhecidos, são:

I – professores habilitados em nível médio ou superior para a docência na educação


infantil e nos ensinos fundamental e médio;
II – trabalhadores em educação, portadores de diploma de curso técnico ou superior em
área pedagógica ou afim;
Parágrafo único. A formação dos profissionais da educação, de modo a atender às
especificidades do exercício de suas atividades, bem como aos objetivos das diferentes
etapas e modalidades da educação básica, terá como fundamentos:
I – a presença de sólida formação básica, que propicie o conhecimento dos fundamentos
científicos e sociais de suas competências de trabalho;
II – a associação entre teorias e práticas, mediantes estágios supervisionados e
capacitação em serviço. (BRASIL, 1996, Art. 61, incisos I e II)

A partir desse reconhecimento, o sistema educacional obteve grandes conquistas para os


professores, culminando na (LDB) nº 9394/1996, que, em suma, estabelece que o profissional
deve ser habilitado, ter diploma na área, conhecer suas competências de trabalho, saber a teoria e
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prática da sua profissão. Com a existência de uma Lei com determinação jurídica, o profissional
tem o sentimento de estar amparado, porém a realidade brasileira tem mostrado que ainda existe
muito a ser feito, para que a formação e valorização profissional dos professores propicie uma
educação de qualidade para todos.

Atualmente, a docência é um trabalho socialmente reconhecido, realizado por um grupo


de profissionais específicos, que possuem uma formação longa e especializada
(geralmente de nível universitário ou equivalente) e que atuam num território profissional
relativamente bem protegido: não ensina quem quer; é necessária uma permissão, um
credenciamento, um atestado etc. (TARDIF; LESSARD, 2014, p.42)

A docência, portanto, é uma atividade que atende a requisitos profissionais estabelecidos


em Lei, seu trabalho se assemelha a outros segmentos organizacionais. O trabalho docente não se
limita apenas a dar aulas em um determinado espaço e para um contingente de alunos, existem
outras atividades atreladas à sua vivência no espaço educacional. Tardif e Lessard (2014)
enunciam que o trabalho docente não consiste apenas em cumprir ou executar atividades, mas
atividades que não podem ser realizadas sem sentido, é uma interação com outras pessoas, em
algumas situações desempenha-se funções que não fazem parte da profissão docente.
O professor está em constante atenção a seus alunos, além de interagir com seus pais ou
seus responsáveis, com colegas de trabalho, com a gestão escolar, enfim, com todos que fazem
parte do processo da aprendizagem do aluno, dentro e fora dos estabelecimentos de ensino. O
profissional docente depende do trabalho de outras pessoas, que cuidam da organização do
ambiente pedagógico, a fim de que sua prática possa contribuir com a construção humana. De
acordo Arroyo (2019), é necessário ver o trabalho docente como trabalho humano, como atividade
concreta de pessoas humanas, professoras e professores que põem em ação sentimentos e
emoções, olhares, concepções e valores. Em suma, ao longo da sua prática existe uma constante
interação com outros seres humanos, durante o exercício da docência essas práticas acabam por
se tornar comum, parte da rotina dos docentes, estabelecendo, assim, que o trabalho docente é uma
prática social.
Conforme Pimenta (2012), o trabalho do professor é um “trabalho inteiro”, pois o ato de
ensinar, mesmo sendo composto por atividades diversas e podendo ser decomposto
metodologicamente, só pode ser desenvolvido em sua totalidade. O trabalho exercido na sala de
aula não pode ser fragmentado, o professor não pode delegar funções às outras pessoas, como se
fosse um trabalho segmentado, a exemplo do que acontece nas indústrias.
Pode-se observar as distinções entre o trabalho docente e trabalho industrial, cuja diferença
essencial, segundo Tardif e Lessard (2014), está na natureza serial do objeto de trabalho industrial
e na natureza ao mesmo tempo individual e social do objeto do trabalho docente, isto é, os alunos.
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Enquanto o trabalho nos espaços educacionais é feito com seres humanos, que interagem e
colaboram com o trabalho do professor, o trabalho realizado nas indústrias são com objetos
materiais passivos, os quais podem ser moldados, ou seja, é apenas um objeto. Em contrapartida,
o professor nunca pode ter controle totalmente do seu aluno.

AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOCENTE

Para entender as condições do trabalho docente dos profissionais da educação básica e o


desempenho das atividades, buscaram-se algumas definições sobre condições de trabalho, tendo
em vista que existem várias definições e fatores que condicionam o trabalho. Sobre isso, Pincheira
(2007) destaca que os aspectos das condições de trabalho podem ser percebidos nos aspectos
referentes ao material didático, ao desenvolvimento de trabalho coletivo, à remuneração e à
jornada de trabalho. Nota-se que são aspectos inerentes à profissão.

O conjunto de recursos que possibilita uma melhor realização do trabalho e, que


envolvem a infraestrutura da instituição, os materiais disponíveis, os serviços de apoio,
as relações de emprego, ou seja, as circunstâncias indispensáveis para que a atividade de
trabalho se realize e se desenvolva. (BARROS, 2013, p. 19 apud Gestrado/UFMG, 2009)

É importante enfatizar que ao conceituar condições de trabalho, o autor não destacou


somente os aspectos acerca das condições dos espaços educacionais, mas, mais que isso, verificou
que existem muitas possibilidades de análise. Para verificar as condições de trabalho, é preciso
investigar como ocorrem as relações de emprego, o apoio que os docentes recebem e os materiais
que possuem para desenvolver seus trabalhos com os alunos. Tudo isso mostra que as condições
estão para além da sala de aula.
Vieira (2008) esclarece que, para análise das condições de trabalho, é necessário verificar
a infraestrutura, a autonomia e a qualificação dos professores. Percebe-se que a qualidade desse
conjunto de aspectos determina o desenvolvimento do trabalho do professor. Já para as autoras
Oliveira e Assunção (2010), para analisar as condições de trabalho, deve-se considerar que são
resultados de uma dada organização social, definida em suas bases econômicas pelo modo de
produção capitalista.

Constatou-se que tem havido um alargamento das funções atribuídas ao professor, como
exigências de trabalho coletivo e novas formas de avalição do trabalho escolar, nem
sempre acompanhadas de condições necessárias para sua realização. Observou-se que o
professor está sujeito a precarização das condições de trabalho e também da sua situação
profissional, que provocam, consequentemente, o sobretrabalho e a ampliação da carga
horária, o adoecimento e a sensação de desvalorização. (SILVA, 2007, p.8)
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Nessa percepção, observa-se que as condições podem trazer resultados danosos ao


profissional, como problemas que podem afetar o rendimento do aluno e a própria saúde do
professor. Tem-se em vista que os professores com carga horária exacerbada podem ter o
desempenho das suas funções comprometidas, além de adoecimentos e sua autoestima abalada.
Esses fatores podem ter relação diretamente com as condições de trabalho às quais esses
profissionais são submetidos ao longo de toda sua jornada de trabalho.
As condições de trabalho em que os profissionais atuam não deixaram de ser mencionadas
na Constituição, o que demonstra que houve conquistas e destaque da importância que deve ser
dada às condições de trabalho dos professores, fortalecendo a carreira do magistério.

Art.206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:


I – igualdade de condições para acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimento oficiais;
V – valorização dos profissionais de educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos
de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos
das redes públicas; (Redação dada pela Emenda Constitucional, nº 53, de 2006)
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão de qualidade;
VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar
pública, nos termos de lei federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006).

Como pode ser observado, de acordo com a Constituição Federal do Brasil, em seu Art.
206, dos oito princípios, pelo menos três fazem menção diretamente ao trabalho desenvolvido
pelo profissional docente no inciso V, VI e VIII. Vale enfatizar que isso representou um grande
avanço para a Educação, tendo em vista que nos textos da constituição anterior não havia menção
sobre a valorização dos profissionais de educação escolar.

Além disso, o que chamamos de “condições de trabalho” dos professores corresponde a


variáveis que permitem caracterizar certas dimensões quantitativas do ensino: o tempo
de trabalho diário, semanal, anual, o número de horas de presença obrigatória em classe,
o número de alunos por classe, o salário dos professores, etc. (TARDIF; LESSARD,
2014, p. 111).

Existem várias dimensões para entender as condições em que os profissionais da educação


realizam suas práticas, sejam elas voltadas para o aluno ou centradas no professor, que tratam da
remuneração ou de tempo de serviço.

As “condições de trabalho docente nas escolas de educação básica” constituem os


aspectos objetivos e subjetivos encontrados ou vivenciados pelos professores no
cotidiano escolar que possibilitam o desenvolvimento do trabalho docente e se associam
a fatores relacionados aos aspectos físicos e psicológicos, aos sentimentos, as percepções
e às ações realizadas pelos professores em decorrência do cotidiano escolar. (PEREIRA
JUNIOR, 2016, p.103).
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Diante de todas as abordagens analisadas, é inegável a variação de conceitos e aspectos


que podem ser considerados na análise sobre as condições do trabalho docente. Para a presente
pesquisa, na busca de entender as condições de trabalho dos professores da educação básica do
município de Pinheiro-MA, foram analisados os dados de acordo com os aspectos descritos na
pesquisa sobre o trabalho docente na educação básica no município de Pinheiro-Ma, desenvolvida
pelo Grupo de Estudo e Pesquisa Formação e Trabalho Docente da UFMA-Pinheiro, os quais
serão tratados na seção seguinte.

ANÁLISE DE DADOS SOBRE AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOCENTE NA


EDUCAÇÃO BÁSICA DE PINHEIRO-MA

Na cidade de Pinheiro-MA, há um número expressivo de profissionais que exercem a


docência na escola pública. De acordo com dados fornecidos pela Secretaria Municipal de
Educação de Pinheiro (SEDUC-Pinheiro) e pela Unidade Regional de Educação de Pinheiro
(URE-Pinheiro), em 2017, atuavam na rede municipal de ensino 1.303 (mil trezentos e três)
professores e na rede estadual 257 (duzentos e cinquenta e sete) professores, totalizamos 1560
(mil quinhentos e sessenta) professores da educação básica neste município. De acordo com o
Plano Municipal de Educação (PME Pinheiro) de 2015-2024, desde 2001, a gestão municipal
dividiu o munícipio em zona urbana e 12 polos da zona rural do município. E, nessa estrutura,
estão instaladas 149 (cento e quarenta e nove) unidades educacionais, sendo que 137 (cento e trinta
e sete) escolas da rede municipal e 12 (doze) unidades de ensino da rede estadual.
O interesse pela análise das condições de trabalho dos professores surgiu a partir da nossa
participação no Grupo de Estudo e Pesquisa Formação e Trabalho Docente na Educação Básica
(GEP), grupo ligado ao curso de Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão
(UFMA) em Pinheiro. O GEP desenvolve, desde o ano de 2016, diversas ações com a comunidade
acadêmica e sociedade em geral, com o intuito de conhecer a realidade da educação básica,
contribuir com a educação deste município e conhecer com mais profundidade a realidade da
formação e do trabalho dos docentes.
Os dados desta pesquisa foram extraídos de mais uma das atividades realizadas pelo grupo,
a pesquisa Trabalho Docentes na Educação Básica de Pinheiro-MA, selecionado pelo edital de
apoio à pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Maranhão (FAPEMA). A pesquisa teve
a pretensão de conhecer mais a respeito da formação e trabalho docente dos professores da
educação básica de Pinheiro, buscando analisar as dimensões do trabalho desses agentes
educacionais, mapeando as características dos docentes, as suas ocupações e onde estão
localizados.
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A coleta de dados foi feita por meio de um questionário constituído por perguntas fechadas,
que contemplaram as temáticas: a) caracterização do pesquisado; b) rendimentos; c) contexto
familiar; d) outras atividades; e) formação docente; f) formação continuada; g) avaliação da
política nacional de formação; h) situação funcional; preparação no início das atividades docentes;
i) valorização profissional; j) atividades com alunos com necessidades especiais; k) realização de
atividades em casa; l) condição de trabalho na unidade educacional; m) vivência profissional; n)
preparo para as atividades; o) gestão escolar; p) avaliação do trabalho escolar; q) acompanhamento
dos pais dos alunos às atividades escolares; r) atividade do professor; s) atividades com colegas;
t) situação na unidade educacional; u) interferência no desempenho das atividades; v) importância
dos objetivos para o trabalho; x) relacionamento com sindicato; w) tempo livre e; y) afastamento
por licença médica.
Foram obtidas informações de 405 (quatrocentos e cinco) professores, que correspondem
a 26% de todos os professores que trabalhavam na educação básica de Pinheiro-MA durante a
pesquisa. Buscou-se ter a maior representatividade possível das unidades educacionais
pesquisadas, da mesma maneira, os sujeitos que nela trabalham, ou seja, os docentes.
Para a composição desse trabalho, a partir do macro universo da referida pesquisa,
recortaram-se os dados sobre as condições do trabalho docente, especificamente aqueles
relacionados à exposição de ruídos durante a atividade docente, à avaliação da sala de aula e à
avaliação dos ambientes de trabalho da escola, que serão analisados em maior profundidade.

Avaliação da exposição aos ruídos durante a atividade docente

A avaliação dos professores em relação aos ruídos na sala de aula e fora da unidade
educacional são fatores que fazem parte das condições em que os professores praticam suas
atividades, pois a sala de aula é considerada o lugar em que os docentes passam maior parte do
tempo. De acordo com a NBR 7731/83 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), o
ruído é a mistura de sons cujas frequências não seguem nenhuma lei precisa e que se diferem entre
si por valores imperceptíveis ao ouvido humano. Diante de tal afirmação, buscou-se entender
como os professores avaliam os ruídos presentes durante a prática docente.
Segundo Pereira Junior (2016), ao tratar especificamente sobre os ruídos, considera-se que
eles podem advir dos próprios estudantes ou de dispositivos ou equipamentos existentes na sala
de aula, pois considerando que a sala de aula é um lugar destinado à aprendizagem é comum as
conversas realizadas pelos alunos e atividades desenvolvidas pelo professor com os alunos durante
as aulas. Assim como, as ações indisciplinares constantes podem ocasionar um ambiente ruidoso,
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o que leva o professor, muitas vezes, a diversas interrupções na sua prática, portanto, interferem
no desenvolvimento das aulas e, consequentemente, dificulta o aprendizado.

TABELA 1 – Exposição a ruído durante a atividade docente


Não
Desprezível Razoável Elevado Insuportável Total
respondeu
31 303 45 7 19 405
RUÍDO NA SALA DE AULA
7,7% 74,8% 11,1% 1,7% 4,7% 100%
RUÍDO FORA DA SALA DE 42 277 47 12 27 405
AULA 10,4% 68,4% 11,6% 3,0% 6,7% 100%
RUÍDO FORA DA UNIDADE 43 277 40 14 31 405
EDUCACIONAL 10,6% 68,4% 9,0% 3,5% 7,7% 100%
Fonte: GEP Formação e Trabalho Docente / UFMA, 2019

Na presente pesquisa, não houve a medição do ruído, somente descrição subjetiva dos
entrevistados acerca do nível de ruído durante a atividade docente. Os dados da Tabela 1 mostram
que 74,8% dos professores avaliam de forma RAZOÁVEL o ruído na sala de aula e 11,1%
consideram ELEVADOS os ruídos oriundos da sala de aula. Para 68,4% dos pesquisados, os
ruídos fora da sala também são considerados RAZOÁVEL, seguido de um percentual de 11,6%,
que o consideram ELEVADO.
Do mesmo modo, o ruído fora da unidade educacional foi considerado RAZOÁVEL por
68,4% dos entrevistados, e mais de 10% dos professores o avaliaram de forma DESPREZÍVEL.
Os ruídos externos, isto é, aqueles produzidos fora da unidade educacional, sejam eles produzidos
pelos veículos, comércio ou propagandas resultam em algum tipo de ruído que afetam as escolas,
principalmente as que estão localizadas no centro da cidade, devido ao fluxo contínuo de algum
tipo de som. Logo, o ambiente físico torna-se inadequado para que o aluno desenvolva suas
capacidades intelectuais.
As avaliações dos docentes permitem afirmar que mais da metade dos professores exercem
suas atividades com a presença de algum tipo de ruído. Segundo Masson (2001), o ruído ambiental
pode ser nocivo ao professor, pois, desta maneira, ele acaba competindo com os ruídos internos e
externos, obrigando-o, muitas vezes, a elevar a intensidade da voz, ocasionando lesões nas pregas
vocais e comprometendo a saúde do docente. Sobre isso, Dragone et al. (2010) reforçam que há
indicações consistente de que esta categoria profissional apresenta maior prevalência de distúrbios
vocais quando comparada à população em geral.
Dessa forma, os ruídos, sejam eles produzidos na sala de aula, fora da sala de aula ou fora
da unidade educacional, comprometem o trabalho docente, a aprendizagem dos alunos e afetam a
saúde dos professores. Deste modo, é preciso refletir e agir sobre as condições em que os
professores realizam seu trabalho.
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Avaliação dos itens da sala de aula

A Tabela 2 mostra as dimensões das condições de trabalho do professor, bem como as


características das salas de aula das unidades educacionais públicas. Para tanto, foram levadas em
consideração a ventilação, a iluminação, as paredes e a mobília. Os docentes respondentes tiveram
cinco opções de resposta, podendo considerar cada aspecto como ruim, regular, bom ou excelente.
TABELA 2 – Avaliação das salas de aula
Não
Ruim Regular Bom Excelente Total
respondeu
106 147 115 31 6 405
VENTILAÇÃO
26,2% 36,3% 28,4% 7,7% 1,5% 100%
45 125 189 40 6 405
ILUMINAÇÃO
11,1% 30,9% 46,7% 9,9% 1,5% 100%
39 135 187 35 9 405
PAREDES
9,6% 33,3% 46,2% 8,6% 2,2% 100%
47 175 150 24 9 405
MOBÍLIA
11,6% 43,2% 37,0% 5,9% 2,2% 100%
Fonte: GEP Formação e Trabalho Docente / UFMA, 2019

Para a maioria dos professores, a ventilação das salas de aula é REGULAR. Contudo,
dentre os itens pesquisados, a ventilação foi o pior avaliado, recebendo o maior percentual na
opção RUIM, 26,2%. Com essas condições inapropriadas, as salas tornam-se mais quentes,
gerando desconforto em virtude do calor. A ventilação faz parte dos aspectos ambientais da sala
de aula, quando inadequada compromete o trabalho do professor com os alunos, pois, como já
mencionado, a sala de aula é lugar onde alunos e professores ficam a maior parte do tempo.
Conforme o autor Pereira Junior (2016), as condições apropriadas em relação aos aspectos
ambientais e estruturais na sala de aula favorecem o desenvolvimento da atividade docente, sendo
assim, a sala de aula precisa oferecer boas condições para desenvolvimento da atividade docente.
A iluminação das salas de aula foi avaliada como BOA por 46,7% dos respondentes,
entretanto, obteve um contingente significativo de avaliação REGULAR, 30,9%. Já as paredes
das salas de aula, 46,2 % dos entrevistados avaliaram como BOAS condições. Quanto à mobília,
foi avaliada como REGULAR por 43,2%, que somam quase metade dos docentes. Pode-se, ainda,
observar o percentual de excelente, próximo a 10% no que se refere à iluminação.
Ao serem consideradas as opções RUIM e REGULAR para os itens avaliados, pode-se
afirmar que mais de 40% das salas de aula não proporcionam um ambiente favorável para o ensino
e aprendizagem, com destaque para os itens ventilação e mobília, onde a junção desses dois itens
ultrapassam 50%.
Para Gestrado (2015), a melhoria das percepções concernentes às condições da sala de aula
impacta em aumento da satisfação profissional. A realidade das unidades educacionais tem
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mostrado necessidade de melhoria, pois as condições em que muito delas se encontram podem
gerar nos profissionais o sentimento de desvalorização e, assim, ter a autoestima abalada.
Ainda na opinião de Gestrado (2015), o desenvolvimento da atividade docente necessita
de condições apropriadas de aspectos ambientais e estruturais, os quais afetam tanto aluno quanto
professores. Diante desta afirmação e observando as avalições dos itens na tabela, percebe-se que
todos os itens foram avaliados como REGULAR por mais de 30% dos entrevistados. Essa
realidade do cotidiano docente e do aluno, de acordo com os autores já mencionados, têm refletido
no resultado do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), haja vista que o munícipio
de Pinheiro nos anos finais do ensino fundamental teve nota 3,9,ou seja, ficou abaixo da meta
desejada que era 4,6 no ano de 2017.
Pode-se a afirmar que os docentes, assim como os alunos, estão expostos a uma sala de
aula que, infelizmente, não atende ao padrão de qualidade tratado na Seção 3 deste trabalho, que
compõe a Constituição Federal do Brasil, no Art. 206, inciso VII, que trata da garantia de padrão
de qualidade destes profissionais. Reforça-se, mais uma vez, que tais aspectos são relevantes, pois
favorecem a atividade docente, logo, também a aprendizagem do aluno.

Avaliação dos ambientes de trabalho da escola

De acordo com dados da pesquisa, foram analisados os ambientes das unidades


educacionais da rede pública, os professores tiveram a oportunidade de apontar se esses itens estão
disponíveis na escola e em que condições se encontram.

TABELA 3 – Avaliação dos ambientes de trabalho da escola


Não Não
Ruim Regular Bom Excelente Total
consta respondeu
SALA DE CONVIVÊNCIA E 143 35 116 98 6 7 405
REPOUSO DOS
35, 3% 8,6% 28,6% 24,2% 1,5% 1,7% 100%
PROFESSORES
BANHEIROS PARA 156 43 108 81 10 7 405
FUNCIONÁRIOS 38,5% 10,6% 26,7% 20,0% 2,5% 1,7% 100%
98 23 152 111 6 15 405
EQUIPAMENTOS
AUDIOVISUAIS 24,2% 5,7% 37,5% 27,4% 1,5% 3,7% 100%
306 34 34 19 0 12 405
SALA DE INFORMÁTICA
75,6% 8,4% 8,4% 4,7% 0% 3% 100
RECURSOS 43 40 191 113 8 10 405
PEDAGÓGICOS/DIDÁTICOS 10,6% 9,9% 47,2% 27,9% 2,0% 2,5% 100%
197 35 102 57 5 9 405
BIBLIOTECA
48,6% 8,6% 25,2% 14,1% 1,2% 2,20% 100%
PARQUINHO/ÁREA DE 331 18 32 9 0 15 405
RECREAÇÃO 81,7% 4,4% 7,9% 2,2% 0% 3,7% 100%
240 76 51 24 0 14 405
QUADRA DE ESPORTE
59,3% 18,8% 12,6% 5,9% 0% 3,5% 100%
Fonte: GEP Formação e Trabalho Docente / UFMA, 2019
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Constatou-se que 35,3% dos professores não dispõem de sala convivência e repouso nas
unidades educacionais em que atuam. E, dentre aqueles que dispõem, 28,6% consideram a
qualidade desse espaço REGULAR. Também foi atestado que, em 38,5% das unidades
educacionais, os professores não dispõem de banheiros exclusivos para funcionários. E, dentre
aqueles que dispõem, 26,7% consideram de qualidade REGULAR. A literatura aponta que a
importância da presença desses espaços favorece a qualidade do trabalho do professor, pois além
de proporcionarem bem estar, também estão relacionados:

[...] à qualidade das relações pessoais na escola. Os contatos sociais na escola favorecem
laços que podem levar a colaborações profissionais e ao desenvolvimento de um espírito
de equipe. A qualidade das relações sociais no interior de uma escola é mencionada como
um fator importante para permitir um bom ambiente de trabalho. (TARDIF; LESSARD,
2014, p. 186).

Nesse sentido, a sala de convivência e repouso dos professores é onde os profissionais se


encontram no trabalho cotidiano para o descanso, trocar ideias em relação à prática docente,
colaboração com os colegas, que contribuem para que o professor desempenhe bem suas
atividades. Porém, infelizmente, foi revelado pela pesquisa que quase a metade das escolas não
dispõem de um espaço apropriado para encontro destes profissionais.
Além disso, 37,5% dos docentes avaliaram como REGULAR os equipamentos
audiovisuais disponíveis nas suas escolas. Condição agravada pelo fato de que 24,2% dos
professores nem mesmo dispõem desses equipamentos. O autor Tardif (2014) ressalta que o
magistério merece ser descrito e interpretado em função das condições, condicionantes e recursos
que determinam e circunscrevem a ação cotidiana dos profissionais. No processo de ensino e
aprendizagem, o professor precisa dispor de condições para tornar a aula motivadora para seus
alunos, tendo em vista que esses recursos trazem para a sala de aula uma maneira diferenciada de
abordagem de conteúdo, despertando o lúdico.
Apesar dos avanços ocorridos e da difusão da tecnologia na sociedade, assim como da
indiscutível contribuição que ela traz ao processo ensino-aprendizagem, como afirma o autor
Borges (1999), a Informática Educativa se caracteriza pelo uso da informática como suporte ao
professor, como um instrumento a mais em sua sala de aula, no qual o professor possa utilizar
esses recursos colocados à sua disposição. No entanto, apesar da notória importância, percebeu-
se que 75,6% dos professores não podem contar com uma sala de informática nas escolas públicas
que desenvolvem seu trabalho. Esses dados divergem da estatística nacional, conforme o Censo
Escolar de 2018, na rede pública, 43,9% dos estabelecimentos de ensino fundamental possuem
Laboratório de informática; já no ensino médio, 82,1%.
Mais de 10% dos professores declaram que em seus ambientes de trabalho não existem
recursos pedagógicos/didáticos. Dentre aqueles que podem usufruir desses recursos, 47,2% os
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avaliam com REGULAR. Conforme a Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação


Básica, na perspectiva de contribuir para a erradicação das desigualdades e da pobreza, a busca da
equidade requer que se ofereçam mais recursos e melhores condições às escolas menos providas
e aos alunos que deles mais necessitem. Dessa forma, torna-se possível seguir os princípios
norteadores da educação, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta
o desenvolvimento nacional, que busque “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais”, ou seja, promover o bem para todos.
O profissional docente sempre lutou pelo reconhecimento da sua classe e, claro, que as
condições em que atua interferem no exercício da sua profissão. É evidente que houve muitas
conquistas, mas, diante da realidade das escolas, essa luta continua.

As lutas da categoria nas últimas décadas têm sido mais tensas para mudar o como
ensinar, as condições materiais em que ensinamos do que para mudar o que ensinamos.
Por que tanta sensibilidade para com as condições em que exercemos nossa docência e
nosso trabalho e reproduzimos nosso ofício e nossa existência? Porque intuímos que os
modos de viver e trabalhar, de ensinar e aprender determinam o que somos e aprendemos.
(ARROYO, 2013, p. 110)

Percebe-se que 48,6% dos docentes apontam não existir biblioteca nas escolas da rede
pública em que atuam. Para 25,2% dos que trabalham em escolas que têm biblioteca, as
consideram REGULAR. Sabe-se que uma biblioteca na escola colabora com a formação de
qualidade durante o processo de aprendizagem. De acordo com Garcia (1989), sabendo-se que o
livro e a leitura não são valores concretamente presentes na maioria dos lares brasileiros, fica a
cargo da escola operar a iniciação e estimulação à leitura. No entanto, quase 50% dos
estabelecimentos de ensino não oferecem para alunos e professores acesso a livros.
De acordo com o censo escolar realizado no país em 2018, na educação básica, ao avaliar
a disponibilidade de biblioteca ou sala de leitura nas escolas, um recurso pedagógico essencial
para o aprendizado dos alunos, percebe-se que esse recurso é menos encontrado nas regiões norte
e nordeste, que possuem somente 20% dos estabelecimentos. Ainda de acordo com o censo, no
Maranhão, menos de 40% das escolas dispõem desses recursos, o que permite concluir que as
escolas pesquisadas da cidade de Pinheiro-MA, embora estejam um pouco acima da média
regional, apresentam uma realidade similar comparada aos dados nacionais, que mostram 48,9%
das escolas públicas no ensino fundamental têm Biblioteca ou Sala de leitura.
Ao verificar as condições referente aos parquinhos e área de recreação, atestou-se, por
meio das respostas de 81,7% dos professores, que as escolas não dispõem de ambientes para esses
fins. Destacando-se também que dentre os poucos docentes que declararam contarem com esses
ambientes, nenhum os avaliaram como EXCELENTE e que apenas 10,1% os considera BOM ou
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REGULAR. A proposta curricular ressalta a importância desses espaços no desenvolvimento das


crianças:

As crianças precisam brincar em pátios, quintais, praças, bosques, jardins, praias, e viver
experiências de semear, plantar e colher os frutos da terra, permitindo a construção de
uma relação de identidade, reverência e respeito para com a natureza. Elas necessitam
também ter acesso a espaços culturais diversificados: inserção em práticas culturais da
comunidade, participação em apresentações musicais, teatrais, fotográficas e plásticas,
visitas a bibliotecas, brinquedotecas, museus, monumentos, equipamentos públicos,
parques, jardins. (Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica, 2013, p.
94)

Nota-se o quanto é relevante no desenvolvimento das crianças espaços destinados a


promover as interações educativas, novas experiências, possibilidades de se expressarem, permitir
que as crianças sejam estimuladas em sua criatividade. Logo, os professores necessitam dessas
condições para desenvolver um bom trabalho e atender a proposta curricular.
Dentre os professores respondentes, 59,3% informaram que nas escolas em que trabalham
não há quadra de esporte. Dos que informaram a existência desse ambiente, 18,8% o consideram
RUIM, apesar da importância desse espaço, tendo em vista que faz parte de umas das estratégias
do PNE para alcançar a Meta 6, que propõe oferecer ensino integral nas escolas públicas.

E para que a oferta de educação nesse tipo de escola não se resuma a uma simples
justaposição de tempos e espaços disponibilizados em outros equipamentos de uso social,
como quadras esportivas e espaços para práticas culturais, é imprescindível que
atividades programadas no projeto político-pedagógico da escola de tempo integral sejam
de presença obrigatória e, em face delas, o desempenho dos alunos seja passível de
avaliação. (Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica, 2013, p. 125)

Considerando o art.27 da LDB, que estabelece a promoção do deporto educacional e apoio


às práticas desportivas não formais enquanto diretrizes para os conteúdos curriculares, remetendo
especificamente aos professores de Educação Física, mais da metade não têm espaço para
desenvolverem suas práticas. É claro que a falta desse espaço afeta todo o projeto pedagógico da
escola.
Diante da revelação dessa realidade educacional da Educação Básica Pública na cidade de
Pinheiro, onde mais de 35% das escolas não têm sala de convivência e banheiros para
funcionários; não existe recursos didático-pedagógicos em 10,6% das escolas e, naquelas onde
existe, 47,2% são considerados regular; quase 50% das escolas não têm biblioteca; 59,3% não têm
quadra de esporte e; lamentavelmente, em mais de 75% das unidades educacionais não há sala de
informática e área de recreação, conclui-se que as unidades educacionais não oferecem o suporte
básico necessário para o desenvolvimento do trabalho docente de forma digna, eficiente e eficaz,
para o cumprimento dos objetivos educacionais.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelos pressupostos teóricos elencados e pelas condições existentes observadas na pesquisa,


é possível afirmar que as escolas precisam oferecer melhores condições de trabalho aos
professores. A atividade que os professores realizam nas unidades educacionais requer uma série
de fatores que possibilitem boas condições para a realização da prática docente. Quanto à
exposição de ruídos na sala de aula, fora da sala de aula e fora da unidade educacional, os dados
apontam que mais da metade dos professores trabalham com a presença de algum tipo de ruído.
Um ambiente ruidoso pode dificultar a compreensão dos alunos durante a exposição da aula, assim
como, afetar o desenvolvimento do trabalho docente.
Com base nisso, foi possível perceber que essas condições inapropriadas para o exercício
do magistério têm afetado também a saúde do profissional, comprometendo, principalmente, as
cordas vocais. A voz é considerada como principal instrumento de trabalho dos professores, os
ruídos sejam eles externos ou internos, de alguma forma, atrapalham o bom desenvolvimento na
sala de aula, logo professor e alunos são prejudicados.
A sala de aula é um lugar de suma importância, pois é onde o profissional exerce seu ofício,
é o espaço no qual professor e aluno interagem, no qual ficam a maior parte do tempo. Contudo,
observar-se que os resultados da pesquisa quanto à avaliação da sala de aula mantiveram-se entre
as opções ruim e regular para os itens ventilação, iluminação, parede e mobília, confirmando,
assim, que mais de 40% dos professores trabalham em uma sala em condições que não favorecem
o trabalho docente, tampouco a aprendizagem dos alunos.
Para a profissão docente, considerando os ambientes de trabalho dentro das unidades de
educacionais, é notório que a falta de suportes e recursos pedagógico ou ambientes físicos nas
escolas de má qualidade trazem impactos para o desenvolvimento do trabalho do professor e, por
consequência, afetam a execução do projeto pedagógico da escola.
Os resultados da pesquisa permitiram reconhecer o quanto é importante um ambiente
educacional adequado, com recursos pedagógicos disponíveis, que possibilitem ao professor
oferecer aos alunos aulas diferenciadas. Para tanto, as unidades educacionais precisam dispor de
biblioteca para estimular a leitura nos alunos, sala de informática, assim como, sala de repouso,
na qual os profissionais possam interagir e contribuir com os demais colegas de profissão. É
importante melhorar sua prática profissional, com equipamentos que possam dar suporte nas aulas,
que motive os alunos durante a aprendizagem, pois todos esses condicionantes determinam a
atividade cotidiana do professor, beneficiando os alunos e colaborando para uma prática de
qualidade no decorrer do trabalho docente.
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Pelas limitações de um trabalho de pesquisa, reconhece-se a necessidade da continuação


da pesquisa acerca das condições que o trabalho docente se realiza e os rumos que a educação tem
seguido. É necessário que haja um aprofundamento e ampliação das investigações que focalizem
os específicos locais de trabalho em que estes profissionais atuam, de modo a subsidiar a tomada
de decisão dos gestores públicos para intervir em melhorias das condições de trabalho dos
docentes e, consequentemente, na aprendizagem dos alunos.

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APLICABILIDADE DE RECURSOS DIDÁTICOS NO PROCESSO DE


ALFABETIZAÇÃO

APPLICABILITY OF DIDACTIC RESOURCES IN


THE LITERACY PROCESS

Flavia Maria Moraes Mendes Costa


Graduanda em Pedagogia - FACAM
Anacildes Sousa Silva
Graduanda em Pedagogia – FACAM
Marjorie Ferreira Magalhães Serrão
Graduanda em Pedagogia - FACAM
Orientador: Cristiane Alvares Costa-Mestre - FACAM
Eixo 1: Arte, Tecnologia E Educação

Resumo: O presente estudo aborda a aplicabilidade de recursos didáticos no processo de


Alfabetização. Tem como objetivo pesquisar e propor diferentes recursos didáticos no processo
ensino aprendizagem na alfabetização. Para fundamentar o tema em questão buscamos
embasamento teórico nos autores Ferreiro (2008), Oliveira (1997),Brandão(2009), entre outros.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica. Como resultados, apontamos alguns materiais
direcionados aos professores, os quais podem ser confeccionados para que estes venham contribuir
no processo de leitura e escrita na alfabetização. Para tanto sugerimos, a confecção de jogos
pedagógicos, uso de material dourado na matemática, para analisar as situações problemas, a
relação entre quantidades, a comparação, agrupamento, desagrupamento, ordenação, analogia,
indução e dedução de número; uso de material reciclado em que pode favorecer a compreensão
das operações de multiplicação e divisão; adição e subtração por meio de jogos confeccionados
com sucata.
Palavras-chave: Recursos Didáticos. Alfabetização. Aprendizagem. Ludicidade.

Abstract: The present study addresses the applicability of didactic resources in the Literacy
process. It aims to research and propose different teaching resources in the teaching-learning
process in literacy. To support the topic in question, we seek theoretical support from the authors
Ferreiro (2008), Oliveira (1997), Brandão (2009), among others. This is a bibliographic search.
As a result, we point out some materials aimed at teachers, which can be made so that they will
contribute to the process of reading and writing in literacy. To this end, we suggest making
pedagogical games, using golden material in mathematics, to analyze problem situations, the
relationship between quantities, comparison, grouping, ungrouping, ordering, analogy, induction
and number deduction; use of recycled material that can favor the understanding of multiplication
and division operations; addition and subtraction through games made with scrap.
Keywords: Didactic Resources . Literacy. Learning. Ludicity.
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1 INTRODUÇÃO

O presente estudo abordou a aplicabilidade de recursos didáticos no processo de Alfabetização


com o seguinte problema: Como aplicar diferentes recursos didáticos no processo ensino -
aprendizagem na alfabetização?
Justifica-se o estudo a partir da observação em auxiliar as crianças no processo ensino
aprendizagem na leitura e na escrita. Pesquisar sobre a produção de materiais didáticos por
professores na alfabetização é pertinente diante das dificuldades que alguns professores possuem
diante da ausência de diferentes recursos no âmbito escolar.
Para desenvolver tal questionamento foi proposto objetivo como geral pesquisar e propor
diferentes recursos didáticos no processo ensino aprendizagem na alfabetização. Neste sentido,
objetivos específicos direcionaram nossa pesquisa como diagnosticar a necessidade do educando
na leitura e escrita no processo ensino aprendizagem; verificar os possíveis entraves do professor
da alfabetização em selecionar recursos didáticos; sinalizar alternativas possíveis para
aplicabilidade dos recursos
Para fundamentar o tema em questão buscou-se embasamento teórico nos autores Ferreiro (2008),
Oliveira (1997), Brandão (2009), entre outros
Quanto a metodologia, Este trabalho foi elaborado por meio de pesquisas bibliográficas, pois de
acordo com Gil (2017, p.44), “[...] a pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material
já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos”. A vantagem desse tipo de
pesquisa é de colocar o pesquisador em contato com materiais já publicados permitindo um
enriquecimento do tema da pesquisa.
O trabalho esta estruturado em cinco seções: a primeira seção aborda a introdução com as
características gerais do trabalho como tema, problematização, e objetivos, os quais nortearam a
estruturação do Artigo.; a segunda seção trata do processo ensino aprendizagem na
alfabetização;a terceira seção aborda as estratégias pedagógicas para o processo de alfabetizar.;a
quarta seção tratamos dos recursos didáticos no processo de alfabetização ;por fim na quinta e
última seção, tratamos das considerações finais e resultados.

2-PROCESSO ENSINO APRENDIZAGEM NA ALFABETIZAÇÃO

De acordo com Ferreiro (2008), existem quatro sistemas de hipóteses de escritas, no qual a criança
durante a alfabetização para pré-sílabico, silábico, silábico- alfabético e alfabético.
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Os recursos didáticos podem trazer de volta o prazer de aprender com liberdade e prazer. São
muitos os fatores que dificultam para que o objetivo se torne real.Tratando-se nesta
abordagem,quanto a aprendizagem com jogos, Vygotsky, aborda que:
A aprendizagem através de jogos, como dominó, palavra cruzadas, jogo da memória e outros permite que o aluno
faça a aprendizagem um processo interessante e outros permite que o aluno faça a aprendizagem um processo
interessante e até divertido. Para isso devem ser utilizados ocasionalmente para sanar as lacunas que se produzem na
atividade escolar diária (VYGOTSKY 1988, p47).

Segundo o autor, perecebe-se a riqueza de utilização e da diversidade de recursos didáticos que


venham favorecer o aprendizado discente.
A fase da alfabetização é o processo de desenvolvimento pelo qual o ser humano adquire
informações, habilidades, valores a partir do seu contato com a realidade, o meio onde ele vive.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais –PCNs afirmam que:

Além de organizador o professor também é facilitador nesse processo. Não mais aquele que expõe todo o conteúdo
aos alunos, mas aquele que fornece as informações necessárias, que o aluno não tem condições de obter sozinho.
Nessa função, faz explanações, oferecem materiais, textos etc. (BRASIL, 1998, p.38)

Conforme os PCNs, é pertinente a utilização de recursos que venham contribuir no


desenvolvimento discente. Neste sentido tem-se vasta possibilidade de uso como textos, materiais
os quais deve-se escolher de acordo com a faixa etária e objetivos específicos de acordo com as
competências e habilidades as quais serão desenvolvidas pelo discente.
O uso dos recursos didáticos possibilita que o aluno visualize e construa significado , conduzindo
o mesmo ao raciocínio . Por meio dele, o professor observa, relaciona informações, busca
estratégicas para os obstáculos apresentados, compara os resultados, produz novas ideias para
depois chegar ao seu objetivo.
O professor precisa conhecer as diversas possibilidades de trabalho para
construir a sua prática ,neste sentido, Moreira aborda que “a utilização de materiais diversificados,
e cuidadosamente selecionados, ao invés da “centralização” em livros de texto é também um
princípio facilitador da aprendizagem significativa crítica”. (MOREIRA, 2011, p.229).
De acordo com Moreira, a utilização diversificada de materiais é importante, neste sentido,
concorda-se com o autor que a diversidade de recursos favorece maior aprendizagem de forma
lúdica e prazerosa com propostas desafiadoras valorizando a faixa etária e o aprendizado do aluno.
Antigamente, o professor centralizava seu ensino em livros de textos, o educador, observou por
meio de seus educandos que o ensino deveria buscar novos recursos de ensino, fazendo com que
os mesmos aprendam de maneira significativa e critica.
Ainda sobre a importância do uso de materiais didáticos no ensino, destaca-se o estudo de Rêgo e
Rêgo (2006), que afirma que durante a utilização do material didático, cabe ao professor alguns
cuidados básicos. Eles precisam ser utilizados aos objetivos propostos, as dificuldades
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apresentadas pelos educandos. Acreditamos que qualquer dificuldade pode ser trabalhada com
maior facilidade, pois quando se trabalha com material concreto, os educandos visualizam mais e
o aprendizado se torna mais fácil.

2.1 Fases do processo de Alfabetização

De acordo com Ferreiro (2001), existem quatro sistemas de hipóteses de escritas, no qual a criança
durante a alfabetização para pré-islâmico, silábico, silábico- alfabético e alfabético.
No pré -silábico, a criança não estabelece vínculo entre fala e a escrita. Supõe que a escrita
representa objetos e não seus respectivos nomes. A criança pode ou não conhecer os sons das
letras.
Na silábica, a criança supõe que a escrita representa a fala, tenta fonetizar a escrita e dar
sonoridade as letras. Supõe que a menor unidade da língua seja a sílaba. Em frases, pode escrever
uma letra para cada palavra.

Na silábica-alfabética, a criança inicia a superar as hipóteses silábicas. Compreender que a escrita


representa o som da fala. A criança passa a fazer uma leitura termo a termo.
A etapa alfabética, a criança compreende o modo da construção do código da escrita e pode ainda
não separar todas as palavras nas frases. Conhece o valor sonoro das letras e não tem problemas
de escrita no que se refere o conceito. Neste sentido, Vygotsky, contribui:
A aprendizagem através de jogos, como dominó, palavra cruzadas, jogo da memória e outros permite que o aluno
faça a aprendizagem um processo interessante e outros permite que o aluno faça a aprendizagem um processo
interessante e até divertido. Para isso devem ser utilizados ocasionalmente para sanar as lacunas que se produzem na
atividade escolar diária (VYGOTSKY 1988, p47).

Vygotsky (1988) nos mostra que é necessário construir espaço, meios e tempo para que os alunos
joguem na sala de aula e ao mesmo tempo é um grande desafio e um compromisso, respeitando
que a educação formar as crianças são dominadas cada vez mais cedo para atividades poucas
criativas.
Os recursos didáticos pode trazer de volta o prazer de aprender com liberdade e prazer, no
entanto, são muitos os fatores que dificultam para que o objetivo se torne real. A fase da
alfabetização é o processo de desenvolvimento pelo qual o ser humano adquire informações,
habilidades, valores a partir do seu contato com a realidade, o meio onde ele vive.

3-ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS PARA O PROCESSO DE ALFABETIZAR.


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É importante perceber o que produz a necessidade de novos metodos no campo da docência é


pertinente a prceria com intituições para a formação de educadores.
Quando nao se tem leituras,e estudos sobre nossa ação pedagogica , é comum utilizar o improviso,
mas quando temos compromisso com ação pedagogica fazemos uso do planejamento e com
objetivo claros para ao aprendizado. Neste sentido busca-se escolher as atividades com
encadeamento temático ,com progressividade , partindo das necessidades do aluno, assim busca-
se investir no desenvolvimento de cada habilidade de leitura e escrita.
Nos cursos de formação de professores ,busca-se conhecer novos recursos,metodologias e agregar
á pratica de sala de aula que para a alfabetização é de estrema importancia buscar diferentes
formas de reconhecer e nomear letras, escrever palavras com letras móveis , comparar palavras
com números de sílabas diferentes .Uma série de práticas de alfabetização que não são novas, mas
que nos possibilita discutir a pratica exercida ,dialogar sobre os desafios do educador no processo
de alfabetização e buscar meios de fortalecer o aprendizado no processo de alfabetização.
Deesenvolvendo suas práticas pedagogicas,atualizadas e dinamicas , a escola estará trabalhando
de forma contextualizada para que a aprendizagem ocorra de forma mais efetiva , é preciso que a
prática dos professores seja voltada para a necessidade de cada aluno , já que o método de ensinar
é dada a tarefa de buscar conhecimentos para ajudar a criança que está familiarizada ou não ,com
a escrita (lojas,placas,anuncios...)para somente então buscar o método mais eficaz para fazer com
que a criança se interesse pelo apredizado.
De acordo com o autor, Kleimen,diz que:
(...)mesmo que a criança já valorize a escrita, a contextualização do novo conhecimento os sistemas alfabetico e
ortográfico da língua-torna a aprendizagem muito mais fácil.Uma palavra torna-se vívida, real, concreta durante a
leitura. (KLEIMEN, 2005,p36)

Segundo o autor, a contextualização do que está sendo aprendido é fundamental para formulação
do conhecimento, valorizando assim o que o aluno já conhece, para assim formular o
conhecimento e desenvolver a criticidade, partindo do que o aluno já sabe, dessa forma torna-se
significativo para o discente .
Fica notória a importância de se letrar, porém ,é importante destacar ,também , que tal aprendizado
não é funçaõ apenas do professor , pelo contrário, este é o papel de todos que fazem parte da vida
da criança.Neste sentido, Soares contribui que:
Ler e escrever são processos frequentemente visto como imagens
espelhados uma da outra , como reflexos sob,ângulos opostos de um mesmo fenômeno
a comunicaçaõ através da língua escrita mas há diferenças fundamentais entre habilidades
e conhecimentos empregados na leitura e aqueles empregadas na escrita, assim como.
Há diferenças considevéis na apredizagem da escrita(SOARES 2009,pg 67-68).

Concorda-se com a autora quanto as diferenças entre habilidades e conhecimentos empregados na


leitura e na escrita. O aprendizado é um processo em que deve-se conhecer as especificidades dos
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alunos e utilizar os recursos pertinenetes á faixa etaria e objetividade de forma intencional para
que o aprendizado seja significativo e contextualizado.
No âmbito individual , a leitura é explicada por Soares (2009, pg68) como “um conjunto de
habilidades linguistícas e psicológicas que se estendem desde a habilidade de codificar palavras
escritas até a capacidade de compreender textos escritos”.
Para facilitar o processo de alfabetização do educando, destaca-se algumas atividades lúdicas
segundo Brandão (2009) que estão descritas abaixo.
● Trabalhando com letras e números, os alunos recebem cartões com
letras repetidas para formarem seu nome e o nome de seus colegas. Como este recurso didático o
aluno consegue identificar a quantidade de letras de cada nome da criança da turma e também
identifica a letra inicial dos nomes de seus amigos da turma.
● Manuseando rótulos e embalagens, o educando identifica as letras que
compõe o nome da embalagem, qual é o produto e o que está escrito.
● Jogo da memória relacionando as palavras com suas gravuras. Por meio
desse recurso didático os alunos relacionam a gravura com a imagem, desenvolvendo atenção,
concentração e agilidade.
● Telefone de brinquedo para ajudar no desenvolvimento da leitura e no
reconhecimento sonoro, além de ajudar na concentração.
● Utilizar recursos didáticos variados para estimular as crianças para
promover melhor a aprendizagem do ser humano no processo ensino aprendizagem na
alfabetização.
A escola é um lugar onde ocorrem a sistematização do conhecimento e onde a aprendizagem
deve estar sempre presente entre os recursos pedagógicos. A sala de aula é um lugar no qual
ocorre o processo de alfabetização, onde o educando aprende a se conhecer e conhecer a leitura
e a escrita apresentadas de maneira menos prazerosa.
É neste momento que se torna essenciais as estratégias com recursos didáticos para o processo de
alfabetização.
Ferreiro (2002, p12) salienta que "Todos os problemas da alfabetização começaram quando se
decidiu que escrever não era uma profissão, mas uma obrigação, e que ler não era uma marca de
sabedoria mas de cidadania". Assim pode-se observar que para o ser humano a obrigação de atingir
determinados objetivos prejudica o seu ato de aprendizagem, pois o desenvolvimento infantil é
dominado por uma obrigação incapaz de fazer com que a criança sinta o prazer pela aprendizagem.
Ainda Ferreiro (2008 p.32,33,34) diz que, "um fator frequentemente mencionado como necessário
para facilitar as ações de alfabetização é a produção de materiais ‘’ A autora distingue três tipos
de materiais:
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a) materiais dirigidos aos professores;


b) materiais para ler;
c) materiais para alfabetizar.
Os primeiros são empregados para o educador verificar como anda a sua prática profissional. Os
outros devem ser dos mais diversos tipos , para que os alunos possuem diferentes formas de ler. E
por último, a autora salienta a importância dos significados para a criança, uma vez que o
desenvolvimento da leitura e escrita deve ser feita através de textos e materiais didáticos que
contenham características reais do espaço onde o educando habita.

Fonte: Imagens da Internet

Para desenvolver tais estrategias é necessário o planejamento com foco na


aprendizagem,com objetivos especificos . Neste sentido, torna-se pertinente utilização
de Fichas Diagnósticas e de Acompanhamento durante o processo de aprendizado de
leitura e escrita do aluno. Um mapeamento da Turma é uma boa proposta para o
acompanhamento, em que avalia-se os niveis de leitura do discente ,em que cada nivel
pode ser de uma cor, assim temos uma visao geral do Mapeamento da Turma por nivel.
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Fonte: Disponivel na Internet

As Fichas auxiliam no diagnóstico e acompanhamento do desenvolvimento dos alunos.

4-RECURSOS DIDÁTICOS NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

Os recursos didáticos são componentes do ambiente educacional estimular do educando,


facilitando e enriquecendo o processo de ensino e aprendizagem. Eles auxiliam nas situações,
experimentação, demonstração. A utilização de sons, imagens e fotos facilita o entendimento,
analise e a interpretação por parte dos educandos.
Neste sentido, de acordo com Soares:
Recurso didático é todo material utilizado como auxílio no ensino-aprendizagem do conteúdo proposto para ser
aplicada pelo professor a seus alunos. Os recursos didáticos compreendem uma diversidade de instrumentos e
métodos utilizados como suporte experimental no desenvolvimento da aprendizagem e na organização do processo
de ensino. Eles servem como objetos de incentivo do interesse para aprendizagem dos educandos. SOARES (2007,
P11)

Conforme aborda Soares, todo material utilizado como auxilio no ensino aprendizagem do aluno
é recurso didático, neste contexto, o uso de jogos, é pertinente pois desenvolve o raciocínio lógico,
pode-se desenvolver a lateralidade, a psicomotricidade do discente entre outros benefícios.
No ensino da matemática pode-se utilizar o material dourado, o ábaco e material reciclado, em
que precisa-se ter objetivos específicos para utilização de cada recurso.
Uso de Material Dourado
O” Material Dourado “foi criado por Maria Montessori (1870-1952), formada em medicina
e encarregada de educação de crianças com deficiências, observou que elas se desenvolvia mais
pela ação do que pelo pensamento, desenvolveu então um método e material apropriado de ensino.
Objetivos:
● Explorar o material dourado de forma lúdica.
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● Realizar agrupamentos utilizando Material Dourado, compreendendo que existem diversas


formas de compor o número e comparando quantidades

Uso do Ábaco
O Ábaco é um antigo instrumento de cálculo, que segundo muitos historiadores foi inventado
na Mesopotâmia, pelo menos de forma primitiva e depois pelo chineses e romanos o
aperfeiçoaram. Ele foi a primeira máquina de calcular.
Objetivos:
● Realizar contagens, utilizando a correspondência biunívoca (um a um).
● Compreender e fazer uso do valor posicional dos algarismos, no sistema de
Numeral Decimal.

Uso de Material Reciclado


A reciclagem é um conjunto de técnicas em determinados tipos em que determinados tipos
de materiais são realizados como matéria- prima para a fabricação de novos produtos.
Entre o ensino da matemática e a reciclagem do lixo, possibilitando uma interação maior
com a preservação do meio ambiente, neste sentido pode-se por meio deste recurso trabalhar a
interdisciplinaridade entre matemática, ciências e história.
Objetivos:
● Favorecer a compreensão das operações de multiplicação e divisão;
adição e subtração por meio de jogos confeccionados com sucata.
● Desenvolver o cálculo mental; proporcionar o desenvolvimento do
raciocínio lógico através de recursos construindo com material reciclados.

No ensino de Língua Portuguesa ,pode-se utilizar entre vários recursos os


paradidáticos, material reciclado em que pode-se construir um Telefone Sem Fio,entre outros.
Uso de Paradidático
Paradidáticos são considerados importante porque podem utilizar aspectos
lúdicos que os didáticos. Recebem esse nome porque são adotados de forma paralela aos materiais
convencionais.
A importância dos paradidáticos aumentou nas instituição escolares no final da
década de 90, a partir da lei de Diretrizes e Bases da Educação(LDB).
Objetivos:
● Promover um contato prazeroso aluno/livro.
● Realizar atividades escritas a partir da história do paradidático.
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● Desenvolver fluência de leitura através dos paradidáticos

Material Reciclado-Uso do Telefone sem Fio

Fonte: Arquivo pessoal das autoras -Telefone sem fio

Ferramenta “construindo” artesanalmente com tubo de pvc , faz a vez de um


telefone sem fio de brinquedo para ajudar no desenvolvimento dos alunos no momento da leitura
e no reconhecimento sonoro , além de ajudar na concentração.

● Estimular as crianças no aprendizado especialmente na alfabetização.


● Desenvolver os alunos a concentração no momento da leitura.

4.1-Aplicabilidade do jogo pedagógico no processo de alfabetização.


Os jogos têm importância fundamental para o desenvolvimento físico e mental da criança,
auxiliando na construção do conhecimento e na socialização, englobando, portanto, aspectos
cognitivos e afetivos. É um importante instrumento pedagógico, nem sempre valorizado. Muitas
vezes, quando utilizado, é feito de forma errada, sem nenhum objetivo.
A importância do jogo na vida da criança é fundamental para o desenvolver a percepção e
pensamento da mesma, assimilar a realidade da atividade lúdica, criar e reproduzir os jogos
aprendidos.
A atividade lúdica passou a contribuir na área de aquisição de conhecimento. Nesse caso, pode-se
afirmar que é riquíssima a utilização de recursos didáticos na escola, pois como diria Alves(2003),
o brinquedo desperta interesse e curiosidade, aspectos que contribuem na aprendizagem.
O trabalho com jogos didáticos- pedagógicos, além de opção divertida e instrutiva para as crianças
entrarem em contato com o objeto de estudo, melhora o trabalho do pedagogo, possibilitando -lhe
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maneiras variadas de desenvolver e de atingir seus objetivos de forma mais prazerosa com seus
educando.
Kishimoto (2008) nos mostra que muitos professores reconhecem a importância do jogo, através
de seu significado associando a função lúdica com a forma pedagógica de como trabalhando o
jogo.
Trabalhar com jogos pedagógicos possibilitam aos alunos a facilidade de assimilar o conteúdo,
fazendo -os a buscar respostas para a construção em uma nova aprendizagem.

5-CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como resultados, apontamos alguns materiais direcionados aos professores, os quais podem ser
confeccionados para que estes venham contribuir no processo de leitura e escrita na alfabetização.
Para tanto sugerimos, a confecção de jogos pedagógicos, uso de material dourado na matemática,
para analisar as situações problemas, a relação entre quantidades, a comparação, agrupamento,
desagrupamento, ordenação, analogia, indução e dedução de número; uso de material reciclado
em que pode favorecer a compreensão das operações de multiplicação e divisão; adição e
subtração por meio de jogos confeccionados com sucata.

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Página 306 de 2230

APLICAÇÃO DE METODOLOGIAS ATIVAS ATRAVÉS DA EXTENSÃO


UNIVERSITÁRIA: O CASO DO PROJETO COMUNIDADE ATIVA

APPLICATION OF ACTIVE METHODOLOGIES THROUGH UNIVERSITY


EXTENSION: THE CASE OF THE ACTIVE COMMUNITY PROJECT

Beatriz Teixeira Fernandes


Aluna de Turismo UFMA
Dayana de Lima Carvalho
Aluna de Turismo UFMA
Protásio Cézar dos Santos
Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal do Pará
Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMA
Ruan Tavares Ribeiro
Mestre em Hospitalidade pela Universidade Anhembi Morumbi - UAM (SP)
Professor Substituto do Departamento de Turismo e Hotelaria da UFMA
Werllem do Nascimento Frazão
Aluno da Graduação em Turismo UFMA
Orientador: Saulo Ribeiro dos Santos
Doutor em Gestão Urbana (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). Doutor em
Geografia (Universidade Federal do Paraná).
Professor do Curso de Bacharelado em Turismo da Universidade Federal do Maranhão
Eixo 1 - Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Enquanto contexto epistemológico entende-se o turismo como um fenômeno social, e,


portanto, a partir desta compreensão, o curso de Turismo da Universidade Federal do Maranhão
(campus São Luís) desenvolve desde 2004 o projeto de extensão Comunidade Ativa (Resolução
n° 348-CONSEPE). Desde a criação, até o presente momento, o projeto atendeu aproximadamente
700 crianças. Atualmente, o projeto de extensão está sendo executado na escola COC (São Luís)
que também implementa ações direcionadas à temática do Comunidade Ativa, como o
Expedicionários da Ilha e São Luís 2030. Objetiva-se neste estudo relatar as experiências dos
bolsistas do Comunidade Ativa nas diversas atividades desenvolvidas ao longo do primeiro
semestre de 2019. Para desenvolver esta pesquisa, adotou-se como procedimentos metodológicos
a pesquisa bibliográfica e documental. Caracteriza-se como descritiva e exploratória, com análise
qualitativa das experiências vivenciadas e relatadas pelos bolsistas do Comunidade Ativa com as
crianças do COC.
Palavras-chave: Comunidade ativa. Escola COC. Extensão universitária. Turismo.

Abstract: As an epistemological context, tourism is understood as a social phenomenon, and


therefore, based on this understanding, the Tourism course at the Federal University of Maranhão
(São Luís campus) has been developing the Active Community extension project since 2004
(Resolution n ° 348 -CONSEPE). Since its creation, until the present moment, the project has
served approximately 700 children. Currently, the extension project is being carried out at the
Página 307 de 2230

COC school (São Luís), which also implements actions aimed at the theme of the Active
Community, such as the Expeditionaries of the Island and São Luís 2030. The objective of this
study is to report the experiences of the Fellows of the Community Active in the various activities
developed throughout the first semester of 2019. To develop this research, bibliographic and
documentary research was adopted as methodological procedures. It is characterized as
descriptive and exploratory, with qualitative analysis of the experiences lived and reported by the
Fellows of the Active Community with the children of the COC.
Keywords: Active community. COC School. University Extension. Tourism.

INTRODUÇÃO
Tendo como pressuposto que o turismo pode ser compreendido como um fenômeno social
e que a extensão universitária possui papel importante de intermediação de conhecimento entre
Universidade e comunidade. A referida intermediação busca, através da formação acadêmica do
discente, proporcionais benefícios de via dupla para a sociedade e com isso desenvolver o
acadêmico de forma positiva, com isso, entende-se que a ampliação do trabalho que se dá entre
Universidade e sociedade deve possuir caráter continuo, pois ambos possuem importância para
seu crescimento e desenvolvimento em meio a evolução global. É pensando na evolução
profissional e pessoal dos discentes que o curso de Turismo da Universidade Federal do Maranhão
(campus São Luís) desenvolve desde 2004 o projeto de extensão Comunidade Ativa (Resolução
n° 348-CONSEPE) que possui como propósito sensibilizar crianças através de metodologias
ativas de referência nacional e internacional com foco na proposição de soluções urbanas e
turísticas para uma São Luís do futuro, enfatizando a importância das crianças para a
sustentabilidade da cidade, utilizando, assim, temáticas direcionados a turismo, acessibilidade,
mobilidade urbana, meio ambiente, patrimônio, higiene, segurança e tecnologia. Até o presente
momento, o projeto atendeu cerca de 700 crianças do bairro Sá Viana (área circunvizinha do
campus Dom Delgado), e atualmente (2019) o projeto está vinculado a escola COC - São Luís que
também implementam ações direcionadas as mesmas temáticas abordadas pelo projeto
Comunidade Ativa, sendo elas Expedicionários da Ilha62 e São Luís 203063. Com isso, faz-se
objetivo deste trabalho relatar as experiências dos bolsistas do projeto de extensão Comunidade
Ativa nas diversas atividades desenvolvidas ao longo do primeiro semestre de 2019 com as
crianças participantes do projeto. No presente ano, o projeto atende 42 crianças, com faixa etária
entre oito a dez anos, onde, através da extensão universitária, os bolsistas do projeto Comunidade

62 Busca conhecer marcos históricos e a cultura existente em São Luís.


63 Aborda questões relacionadas a mobilidade urbana e sustentabilidade que influenciam na evolução urbana de
São Luís.
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Ativa colocam em prática o que aprenderam anteriormente em sala de aula e dos diversos estudos
sobre os temas trabalhados no projeto. As atividades com as crianças iniciaram desde o mês de
abril de 2019 e abordaram as temáticas que foram anteriormente citadas, os encontros foram
realizados quinzenalmente em alternância entre sala de aula e atividades externas, onde os
bolsistas trabalham as temáticas propostas e as levam a campo para analisarem na prática o que
foi apresentado em sala. A elaboração do cronograma das atividades fora previamente pensada.
Foram realizadas reuniões periódicas que se davam com os bolsistas e coordenador do projeto
Comunidade Ativa e coordenadora do fundamental I da escola COC para a definição do que seria
mais viável de trabalhar, levando em conta a faixa etária das crianças envolvidas no projeto devido
o mesmo também promover visitas técnicas a diversos locais da cidade de São Luís onde as
temáticas podem ser abordadas. Participaram ainda, professores da escola que contribuíram no
desenvolvimento do projeto.

METODOLOGIA

Em busca da melhor metodologia que pudesse se adotar para o projeto no ano de 2019,
buscou-se como procedimentos metodológicos a pesquisa bibliográfica e documental com
características descritiva e exploratória, com análise qualitativa das experiências vivenciadas e
relatadas pelos bolsistas do Comunidade Ativa com as crianças do COC. KÖCHE explicita a
importância da pesquisa bibliográfica onde a mesma é utilizada para que o investigador possa
analisar e/ou compreender um determinado problema. KÖCHE cita ainda que “objetivo da
pesquisa bibliográfica, portanto, é o de conhecer e analisar as principais contribuições teóricas
existentes sobre um determinado tema ou problema[...] (2011, p. 122)”. Com isso, no primeiro
momento, buscou-se analisar bancos de dados que fossem significativos para o desenvolvimento
das metodologias nacionais e internacionais aplicadas no projeto, pois conforme colocado por
Severino a pesquisa bibliográfica pode ser considerada por “aquela que se realiza a partir do
registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros,
artigos, teses etc. [...]” (2007, p. 122). Todo esse levantamento se deu durante as 20 horas semanais
que os bolsistas possuem para desenvolvimento e planejamento das atividades que se submeteriam
nas salas de aulas e/ou atividades externas. Os extensionistas contam ainda com o vínculo do
grupo de pesquisa “Turismo, Cidades e Patrimônio”, cujo projeto do Comunidade Ativa faz parte.
Desse modo, os bolsistas puderam realizar o levantamento do estado da arte dos temas: turismo,
patrimônio, mobilidade urbana e sustentabilidade, com isso foi possível estabelecer
representações de metodologias ativas (nacionais e internacionais) que pudessem ser utilizadas
com as crianças da melhor forma possível. Dessa forma, a pesquisa bibliográfica se torna
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extremamente importante, pois possui como objetivo “[...]colocar o pesquisador em contato direto
com tudo o que foi escrito sobre determinado assunto, com a finalidade de colaborar na análise de
sua pesquisa” (SILVA, 2015, p. 83). Após os referidos estudos, foi possível definir aulas
expositivas, utilizando recursos metodológicos como vídeos, textos, músicas, visitas técnicas e
discussões que as estimulassem e que as colocassem na parte central do processo de aprendizagem.
O levantamento bibliográfico possibilitou que os extensionistas pudessem aumentar suas bases
teóricas e, ainda, proporcionou que os mesmos dominassem novas técnicas de didáticas para o
compartilhamento de conteúdo em sala de aula e/ou campo. No que se refere à pesquisa descritiva,
a mesma é utilizada para “[...]descrever fenômenos existentes, situações presentes e eventos,
identificar problemas e justificar condições, comparar e avaliar o que os outros estão
desenvolvendo em situações e problemas similares, visando aclarar situações para futuros planos
e decisões[...]” (GRESSLER, 2004, p. 54). É com base nisto que são feitas as descrições das
experiencias vividas pelos bolsistas do projeto de extensão Comunidade Ativa, onde são levados
em considerações as atuações e analise dos personagens envolvidos. Na pesquisa exploratória,
“têm como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em
vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores
[...]” (GIL, 2008, p. 27). No que se trata a pesquisa qualitativa, GODOY coloca que na referida
abordagem, “[...]valoriza-se o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a
situação que está sendo estudada.” (1995, p.62). evidencia ainda a necessidade na confiabilidade
do próprio pesquisador em sua capacidade de interpretação das informações tendo base na
“[...]observação, seleção, análise e interpretação dos dados coletados[...]” (1995, p.62). Como
anteriormente colocado, o projeto de extensão Comunidade Ativa atendeu 42 crianças, e estas se
mostraram atentas e participativas nas temáticas trabalhadas no projeto, com isso, os
extensionistas viram-se incentivados ainda mais a buscarem por maiores conhecimentos acerca
das temáticas já mencionadas. Neste caso, os bolsistas dividem as 20 horas semanais para
realizarem o levantamento sobre o estado da arte dos temas trabalhados, preparação de material a
ser apresentado às crianças, reunião com o coordenador do projeto, apresentação do conteúdo que
será ministrado às crianças para os coordenador e atividades realizadas na escola COC. O preparo
dos extensionistas se dá, anteriormente, na sala do Grupo de Pesquisa “Turismo, Cidades e
Patrimônio”, onde possui subsídios para os estudos necessários para que possam ir à campo com
confiança acerca dos conteúdos ministrados.

REFERENCIAL TEÓRICO
Partindo da compreensão que o turismo é entendido como um fenômeno social e uma
atividade que está em constante evolução, o curso de Turismo da Universidade Federal do
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Maranhão em busca de promover e manter o contado aproximado entre Universidade e sociedade,


desenvolve o projeto de extensão Comunidade Ativa. Levando em consideração o papel de
extrema importância da extensão universitária, a mesma pode ser descrita “[...]sob o princípio
constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, é um processo
interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora
entre Universidade e outros setores da sociedade” (FORPROEX. Política nacional de extensão
universitária. Manaus, 2012, p. 28). Desde modo é visto que a extensão universitária é “resgatada
enquanto instrumento que vai possibilitar à universidade cumprir a sua função social”
(NOGUEIRA, 2013, p.37), e a comunidade, por sua vez, poderá desfrutar das benéficas que as
inúmeras aplicações positivas que a universidade, através da extensão, poderá propor. A extensão
universitária ainda possibilita a formação profissional do graduando e proporciona o crescimento
do mesmo, nisto, a Indissociabilidade entre o ensino, pesquisa e extensão garante que todas as
ações desenvolvidas na extensão esteja “[...]vinculada ao processo de formação de pessoas e de
geração de conhecimento, tendo o aluno como protagonista de sua formação técnica para obtenção
de competências necessárias à atuação profissional, e de sua formação cidadã[...]”(Fórum de Pró-
Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras. 2007, p. 18). Por tanto, o princípio
que tange a Indissociabilidade, busca, como objetivo prezar pelos atributos no que se refere aos
trabalhos acadêmicos. Com isso, o projeto Comunidade Ativa possui como matriz as diversas
disciplinas trabalhadas na graduação do curso de Turismo, tendo aspectos multi, pluri, trans e a
interdisciplinaridade que o curso dispõem e os utilizando às para buscar metodologias (nacionais
e internacionais) que melhor se adequasse ao propósito do projeto e ao público participante
(infantil), pois o mesmo está ligado diretamente a comunidade. As diversas disciplinas envolvidas
no curso de turismo proporcionaram uma ampla compreensão de diversos temas que são
abordados no projeto Comunidade Ativa, através disso, uma das metodologias que melhor se
adequou foi as que se direcionavam às metodologias ativas, onde estas “utilizam a
problematização como estratégia de ensino-aprendizagem, com o objetivo de alcançar e motivar
o discente, pois diante do problema, ele se detém, examina, reflete, relaciona a sua história e passa
a ressignificar suas descobertas” (MITRE, at all, 2008, p.2136). Assim sendo, as metodologias se
tornam eficazes, uma vez que, promove a produção do conhecimento dos envolvidos, em especial
dos alunos da comunidade, pois terão mais propriedades em solucionar problemas similares e/ou
reais colocados pelos extensionistas, cujos mesmos utilizam da metodologia da sala de aula
invertida para aplicar as atividades que darão autonomias aos alunos nas resoluções das
problemáticas, por tanto, “[...]o professor atua como facilitador ou orientador para que o estudante
faça pesquisas, reflita e decida por ele mesmo, o que fazer para atingir os objetivos estabelecidos”
(BERBEL, 2011, p. 29)
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RESULTADOS

O encontro inicial com as crianças se deu através de um tour no Complexo Fábrica Santa
Amélia, polo cede dos cursos de Turismo e Hotelaria da UFMA (campus São Luís), onde se
situava um antigo Complexo Fabril. O guiamento foi realizado pelos próprios extensionistas, onde
as crianças puderam conhecer a história que o lugar possui. Percebeu-se que todas as crianças
estavam atentas e ávidas por perguntas. Devido sua história do passado e sua trajetória no que se
refere a importância no crescimento econômico da cidade de São Luís e a economia do Brasil de
forma gral (LEITE, 2017, p. 21). Nesta atividade, os bolsistas tiveram como base de estudos
diversos artigos e documentos para os auxiliarem e, assim, que fosse possível o guiamento. Os
encontros futuros que ocorreram na escola COC, teve como proposito abranger ainda mais as
temáticas trabalhadas durante a visita de campo inicial e também abordar assuntos atuais, como a
"Poluição do Ar", tema exposto pela ONU 2019. Para que fosse possível elaborar conteúdos e
aulas, adotou-se vídeos e fácil assimilação e atividades cujos assuntos tinham os principais
poluentes do ar, sua origem, sua relação maléfica com a fauna e flora. A partir disso, construíram-
se uma série de atividades em sala de aula para a composição de resolutivas de problemas
relacionados ao meio ambiente, fazendo assim a ligação com outros temas como meio ambiente,
acessibilidade, pensando em uma cidade sustentável, colocando ideias validas para o crescimento
da cidade de forma ordenada e limpa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A extensão universitária mostra-se de fundamental importância aos extensionistas do


projeto Comunidade Ativa, pois seu caráter de interdisciplinaridade proporciona desejo de busca
constante do aprendizado, assim, utilizando as temáticas trabalhadas no projeto e, com isso,
promover a evolução pessoal e profissional do discente. O contato com a comunidade
proporcionado pela extensão universitária ainda favorece ao bolsista no que se refere ao contato
com um possível mercado de trabalho, tornando-o, melhor preparado para as exigências que
podem surgir durante sua trajetória profissional, podendo estar sempre em aprimoramento tanto
dentro da academia quando fora dela. E para concluir, é notado que os resultados adquiridos no
primeiro semestre do projeto de extensão Comunidade Ativa possibilitam maior profundidade no
conhecimento da cidade de São Luís, pois a mesma é utilizada como um dos objetos de estudo,
para que dessa forma, os extensionistas possam transmitir seus conhecimentos às crianças de
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forma lúdica e que promova o sentimento de pertencimento, onde as crianças terão mais
aproximação com a cidade e com o turismo.

REFERÊNCIAS

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estudantes. Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 32, n. 1, p. 25-40, jan./jun. 2011.

Extensão Universitária: organização e sistematização / Fórum de Pró-Reitores de Extensão das


Universidades Públicas Brasileiras; organização: Edison José Corrêa. Coordenação Nacional do
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FORPROEX. Política nacional de extensão universitária. Manaus, 2012.

FÓRUM DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS


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<http://www.renex.org.br/documentos/Encontro-Nacional/1987-I-Encontro-Nacional-do-
FORPROEX.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2020.

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POSSIBILIDADES. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 35, n. 2, p. 57-63
Mar./Abr. 1995.

GRESSLER, Lori Alice. Introdução à pesquisa : projetos e relatórios / Lori Alice GRESSLER. –
2. Ed. Ver. Atual. – São Paulo: Loyola,2004. 295 p.

KÖCHE, José Carlos Fundamentos de metodologia científica : teoria da ciência e iniciação à


pesquisa / José Carlos Köche. Petrópolis, RJ : Vozes, 2011.

LEITE, Brenda Rodrigues Coelho. Os múltiplos cenários futuros da Fábrica Santa Amélia no
contexto turístico de São Luís/MA. 2018. 154 f. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade)
- Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2018.
Página 313 de 2230

MITRE, S. M.i; SIQUEIRA-BATISTA, R.; GIRARDIDE MENDONÇA, J. M.; MORAIS-


PINTO, N. M.; MEIRELLES, C.A.B.; PINTO-PORTO, C.; MOREIRA, T.; HOFFMANN, L. M.
Al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates
atuais. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, 2008. Disponível em:
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NOGUEIRA, Maria das Dores Pimentel. O Fórum de Pró-reitores de Extensão das


Universidades Públicas Brasileiras: um ator social em construção. Interfaces - Revista de
Extensão, v. 1, n. 1, p. 35-47, jul./nov. 2013

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2007.

SILVA, Airton Marques. Metodologia da Pesquisa. 2ª edição Revisada, Fortaleza – Ceará:


Editora da Universidade Estadual do Ceará – EdUECE, 2015.
Página 314 de 2230

APP-LEARNING NO ENSINO DE ADMINISTRAÇÃO: PLICKERS COMO


FERRAMENTA DE AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM TEMPO REAL

APP-LEARNING IN TEACHING ADMINISTRATION: PLICKERS AS A TOOL FOR


THE ASSESSMENT OF REAL-TIME LEARNING

Verissimo Barros dos Santos Junior


Pós-graduando em Informática na Educação
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão
Jean Carlos da Silva Monteiro
Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão
Eixo Temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O app-learning trata-se de um modelo de aprendizagem que utiliza aplicativos para fins
educacionais. Tem como finalidade tornar a sala de aula mais divertida e flexível, suscitando a
interatividade e a motivação configuradas num processo formativo mais adequado a uma geração
de alunos que convive em diversos ambientes permeados de ferramentas digitais. Nesse contexto
de utilização dos apps em sala de aula surge o Plickers, um aplicativo projetado para verificar os
conhecimentos dos alunos sobre uma temática em tempo real. Este artigo aborda a inserção
estratégica do app-learning no ensino de Administração. Analisa a implementação do aplicativo
Plickers na disciplina Administração de Materiais, do curso Técnico em Administração do Centro
de Ensino Técnico e Profissionalizante do Maranhão - CEMP/MA. Metodologicamente, versa
sobre um estudo descritivo e exploratório, que inicialmente debate os aspectos conceituais a
respeito do app-learning para, posteriormente, descrever o aplicativo supracitado e suas
funcionalidades. Averigua as contribuições do app por meio de um questionário aplicado com 39
alunos matriculados na disciplina. Constata que há dois aspectos dessa experiência que merecem
reflexão: o primeiro deles tem a ver com a atuação do professor, visto que o Plickers possibilita
um diagnóstico mais rápido quanto ao desempenho dos alunos; e o segundo refere-se à percepção
dos alunos acerca da utilização da ferramenta, que despertou a curiosidade, o engajamento e o
caráter participativo dos aprendentes no momento de avaliação da aprendizagem.
Palavras-chave: App-learning. Plickers. Interatividade. Administração.

Abstract: App-learning is a learning model that uses applications for educational purposes. Its
objective is to make the classroom more fun and flexible, raising interactivity and motivation,
ensuring a more appropriate process for a generation of students who live in different
environments permeated with digital tools. In this context of using apps in the classroom, there is
Plickers, an application designed to check students' knowledge on a theme in real time. This article
investigates the strategic insertion of app-learning in business education. The implementation of
the Plickers application is analyzed in the Materials Management discipline, of the Technical
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course in Administration, from the Technical and Vocational Training Center of Maranhão -
CEMP / MA. Methodologically, the work is a descriptive and exploratory study, which initially
presents the conceptual aspects regarding app-learning to later describe the aforementioned
application and its functionalities. The app's contributions are verified through a questionnaire
applied to 39 students enrolled in the discipline. It appears that two aspects of this experience
deserve reflection: the first has to do with the performance of the teacher, since Plickers allows a
faster diagnosis as to the performance of students; and the second refers to the students 'perception
of the use of the tool, which aroused the students' curiosity, engagement and participatory
character when assessing learning.
Keywords: App-learning. Plickers. Interactivity. Administration.

INTRODUÇÃO

Em uma sociedade onde mais de 5 bilhões de pessoas usam aparelho celular (GSMA,
2019), os processos diários, como efetuar pagamento, marcar consulta e até solicitar transporte se
tornam cada vez mais rápidos e conectados – online. Essas demandas diárias dão espaço para os
meios de armazenagem em nuvem e as tecnologias de processamento evoluíram a cada instante,
modificando a todo momento o conceito de novo e de inovação.

Cria-se app diariamente com o objetivo de facilitar o dia-a-dia das pessoas, fornecendo-
lhe as mais diversas funcionalidades. Uma pesquisa feita pela App Annie (2018) mostra que a
quantidade de apps baixados em 2017 superou a marca de 175 bilhões no mundo, impulsionando
principalmente o Brasil com grande de downloads (EXAME, 2019).

Segundo a App Aniie (2018), o Brasil é o quarto país na lista dos cinco dos mercados
que mais consomem aplicativos, perdendo apenas da China, Índia e Estados Unidos e à frente da
Rússia no top 5.

A sociedade tem passado por um amplo processo de transformação, sobretudo na


evolução digital. Como afirma Fernando Coelho (2019), a sociedade nitidamente mudou. Hoje
não realizamos mais nenhuma tarefa no cotidiano sem a presença de dispositivos digitais.

Diante dessa evolução, a educação e suas relações de aprendizagem têm tentado


acompanhar esse avanço.

Alunos hiperconectados em sala de aula têm acesso às diversas fontes de informação,


sendo atualizados a cada momento sobre os acontecimentos que ocorrem no mundo (COELHO,
2019).
Página 316 de 2230

Neste contexto, esta pesquisa tem como objetivo demonstrar a utilização dos apps em
sala de aula. Dentro desse contexto, surge o Plickers, um aplicativo projetado para verificar os
conhecimentos dos alunos sobre uma temática em tempo real.

Este artigo aborda a inserção estratégica deste aplicativo no ensino de Administração


com a implementação do aplicativo Plickers com 39 alunos da disciplina Administração de
Materiais, do curso Técnico em Administração do Centro de Ensino Técnico e Profissionalizante
do Maranhão - CEMP/MA. Sendo utilizados questionários e análise do professor como coleta de
dados para a descrição dos resultados obtidos.

Como utilizar esse avanço a favor do processo educacional? Será viável? Atrapalha a
aula do professor no quadro negro? Essas e outras resposta serão encontras ao longo do texto.
Analisa-se a mediação do ensino com o uso de app, baseados em pesquisas bibliográficas,
apresentando reflexões sobre o app-learning, sobretudo com a utilização do app Plickers.

APP-LEARNING

Em uma sociedade cada vez mais conectada, utiliza-se aplicativos com as diversas
funcionalidades que já faz parte da nossa rotina. Já que esses apps estão ao alcance dos alunos,
por que não utilizar para enriquecer o processo de aprendizagem?

O app-learning trata-se de um modelo de aprendizagem que utiliza aplicativos para fins


educacionais. Tem como finalidade tornar a sala de aula mais divertida e flexível, suscitando a
interatividade e a motivação configuradas em um processo formativo mais adequado a uma
geração de alunos que convivem em diversos ambientes permeados de ferramentas digitais
(POLINARSKI, 2019).

O app-learning é uma mediação educacional com o auxílio de app. Os dispositivos


digitais móveis são semelhantes aos computadores em termos de funções e recursos disponíveis,
por meio dos quais a cultura jovem atual realiza suas atividades diárias (SANTAELLA, 2016).

Os aplicativos são boas estratégias pedagógicas e ajudam a desenvolver a autonomia de


professores e alunos. Dessa forma, eles se tornam ativos, passam de consumidores a produtores
de conteúdo, tendo mais criatividade (SANTAELLA, 2013; COUTO; PORTO; SANTOS, 2016).

Vive-se em uma sociedade em que a conectividade e a colaboração fazem parte do


cotidiano. Há alguns anos, surgiu a geração dos chamados “nativos digitais”, crianças que
nasceram em um mundo digitalizado e que, com um ou dois anos de idade, já interagiam com
tablets e celulares (SANTAELLA, 2013; COUTO; PORTO; SANTOS, 2016).
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Conforto e Vieira (2015) afirmam que:

A abundância de recursos e de conte dos físicos e digitais, aliada ampliação dos serviços
de conexão móvel com a Internet, de armazenamento em nuvem e a evolução da telefonia
celular, promoveram o surgimento de uma nova modalidade de educação, a
Aprendizagem Móvel. (CONFORTO e VIEIRA, 2015, p. 45)

Totti, Gomes, Moreira e Souza (2011) afirmam que “a tecnologia antes vista como algo
que tirava o sujeito do convívio social e do contato coletivo, torna-se cada vez mais customizadora,
assim, os ambientes tornam-se individualizados, mas não individualistas”. Visto agora que o
celular não pode ser considerado apenas como fonte de entretenimento, mas como ferramenta de
auxílio para o processo educacional.

Nesse contexto de utilização dos apps em sala de aula surge o Plickers, um aplicativo
projetado para verificar os conhecimentos dos alunos sobre uma temática em tempo real.

ENSINO DE ADMINISTRAÇÃO

O ensino administração se mantem em um campo multiparadigmático, que se integra em


dimensões e atuações vastas. Por este motivo, o aluno deve adquirir uma postura efetiva, de modo
a obter habilidades necessárias para assumir uma conduta profissional no mundo dos negócios
e/ou lidar com as incitações do mercado de trabalho.

Sendo assim, é indispensável por parte da gestão educacional a criação de estratégias e


políticas educacionais capazes de acompanhar a mudança do conhecimento, reduzindo o
distanciamento que ainda existe entre a formação e o trabalho a ser exercido pelo futuro
profissional (PINTO et al., 2015).

A construção do profissional precisa se fundamentar em um processo de ensino que


transmita o treinamento para lidar com os desafios vigentes da sociedade contemporânea e a
realização de atividades exigidas pelo ambiente empresarial.

O processo formativo deve transmitir o real avanço do conhecimento, de modo que a


aprendizagem seja ampla e oriunda dos conteúdos estudados e praticados em sala de aula (SOUZA
et al., 2017).

PLICKERS

O Plickers é um aplicativo que incentiva a interação entre educadores e estudantes a partir


da criação de quizzes digitais em tempo real. A ferramenta permite uma avaliação por meio da
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plataforma, sem demandar o download do aplicativo pelos alunos. Basta que o professor tenha o
app baixado e imprima cartões de realidade aumentada que são entregues em sala de aula.

Cada estudante receberá o seu próprio cartão e terá de manejá-lo de acordo com a resposta
que escolher. O app tem um mecanismo de scanner ativado pela câmera do celular, que decodifica
as respostas dos cards. É uma alternativa que permite a criação de atividades avaliativas mais
dinâmicas; aplicação com somente um Smartphone; conexão a partir do 2g; e avaliação em tempo
real. Permite, resumidamente, fazer um quiz, chamar os alunos a responder e a obter os resultados
da sua avaliação em direto (tal como gostam de ter o feedback dos seus trabalhos). A grande
vantagem está no equipamento que é necessário: um computador/projetor com o website e um
tablet/smartphone com a aplicação mobile (app). Edgar Costa (2018).

Figura 01: App disponível para download.

Fonte: Google Play (2020).

a) Sistema de Feedback

O sistema de feedback imediato encontrado nos games está presente neste aplicativo.
Um questionário pode, a princípio, ser um instrumento de avaliação chato para os alunos;
entretanto, por meio do aplicativo em questão e da criatividade do professor, poderá se tornar
desafiador e divertido, mantendo o aluno motivado em continuar os estudos.
Página 319 de 2230

Figura 02 – Pontuação.

Fonte: Slideshare – adaptado (2019).

b) Utilização do App

O Plickers é um aplicativo que agrega um computador/projetor com o website e um


tablet/smartphone com a aplicação mobile para a realização de um tipo de avaliação da
aprendizagem, o que favorece o uso de aplicativos para o processo de avaliação, ou seja, o uso de
tecnologias para diferentes fins.

Figura 03 – Aplicação Plickers.


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Fonte: Slideshare – adaptado (2019).

AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM TEMPO REAL

O Professor, que terá uma papel nesse processo de Mediador, realizou o planejamento da
disciplina de Administração de Matérias com carga de 40h/aulas, do curso técnico em
Administração da Escola Técnica CEMP – MA, para realizar uma avaliação em dupla com
finalidade de obtenção da 2ª nota da disciplina, por meio do Plickers, substituindo a avalição
“tradicional somativa”.

A aplicação da avaliação ocorreu por meio do Plickers, para inovar no processo de


aprendizagem, fazendo com que o mediador e os alunos obtenham feedback em tempo real as
respostas julgadas pelos alunos.

Visando planejar o estudo aqui descrito, metodologicamente dividiu-se o experimento


em quatro bloco para aplicação da avaliação: Planejamento/Plano de Aula/Disciplina; Elaboração
de Avaliação; Preparação para a Avaliação - Impressão de Cards e Aplicação da Avaliação.

a) Planejamento/Plano de Aula/Disciplina:

Nesta etapa, o Mediador planejou as 40h da disciplina, sendo 14 encontros de 3h com a


turma em atividades teóricas e práticas. Além do Plickers foram envolvidos recursos para auxílio
das aulas como: Google formulários, Youtube, e Google sala de aula.

A avaliação da turma para obtenção das médias foram planejadas das seguintes formas:
N1 - Nota obtida com apresentação de seminário oriundo de uma visita técnica na área de
administração de matérias - logística, que foi avaliada pelo mediador com nota de 0 a 10, sendo
apresentado em grupo de quatro a cinco alunos; N2 - Nota obtida em dupla com avalição por
intermédio do app Plickers, sendo avaliado com nota de 0 a 10.

b) Preparação para a Avaliação – Impressão de Cards

O Mediador elaborou cinco questões sobre Administração de Matéria e fez a inclusão na


plataforma do Plickers, no site www.plickers.com.br. O Mediador hospedou as questões no site;
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elaborou as duplas para aplicação da avaliação e finalizou com a impressão dos cards, que são
disponibilizados pela própria plataforma para impressão.

Figura 04 – Cards.

Fonte: Plickers (2019).

c) Aplicação da Avaliação

Após a impressão dos cards foi realizado a aplicação da avaliação. Os alunos dividiram-
se em duplas planejados previamente pelo mediador e receberam os cards impressos. Cada card
continha quatro opções de respostas: 1/A; 2/B; 3/C e 4/D. Cada posição do card representa uma
alternativa, cada uma com “figuras” individuais, o que não influencia um aluno olhar a resposta
da dupla próxima.

Para a aplicação o medidor utilizou um Datashow/Computador para projetar as perguntas


no quadro e com seu celular fazia a leitura dos cards dos alunos. A cada pergunta os alunos
respondiam uma questão com a resposta considerada correta. Com a leitura pelo celular, os
resultados eram gerados automaticamente na tela ao lado das questões, dessa forma, o aluno
obtinha um retorno online sobre sua resposta.

Figura 05 – Aplicação.
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Fonte: Plickers (2019).

RESULTADOS

Averiguou-se as contribuições do App por meio de um questionário do Google


Formulários, aplicado com 39 alunos matriculados na disciplina. Os alunos receberam um link
para responder de forma individual. Dos 39 alunos, 68% eram do gênero feminino e 32% do
gênero masculino.

Questionados sobre o uso das tecnologias digitais, 30 alunos utilizam diariamente o


smartphone para trabalhar e ou estudar; 12 alunos não possuem computador/notebook em casa,
porém afirmam que utilizam com frequência na escola e ou no trabalho.

Gráfico 1 - Uso regular das plataformas digitais/Ferramentas conhecidas pelos alunos.

120%
100%
80%
60%
40%
20%
0%

(Fonte: Próprios autores, 2019).

Questionados sobre a aplicação das questões por meio do app, 87% dos alunos afirmam
que se sentiram mais motivados em participar da aula, uma vez que, logo em seguida, tinham o
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retorno das repostas corretas. Percebeu-se também que o retorno de correção online favoreceu o
processo de dúvidas ainda existentes após a avaliação.

Sobre o método de avaliação, os alunos afirmam que se sentiram mais descontraídos na


aplicação. O quesito tempo é demonstrados pelos alunos como medida a ser analisada por parte
do professor, pois na aplicação não é possível retornar as questões, uma vez que todos são
avaliados no mesmo momento.

90% dos alunos afirmaram que utilizariam novamente a aplicação da avaliação em outras
disciplinas, dados que mostram que a inclusão de avaliação online utilizada no ensino técnico
tende a despertar o interesse dos alunos pela disciplina que está sendo estudada,
consequentemente, haverá uma interação maior entre os alunos, aumentando assim o espaço
colaborativo entre eles, contribuindo no processo de aprendizagem (BARBOSA; MOURA, 2013).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Incluir tecnologias emergentes durante as aulas poderá contribuir com o protagonismo


dos em sala de aula. Mas é importante ressaltar que o aluno precisa se sentir parte do processo,
interagindo em sala, sugerindo atividades e compartilhando experiências com os outros alunos,
pois do contrário corre-se o risco de ser uma ferramenta de uso aleatório.

O resultado de ter o aluno como protagonista no processo de aprendizagem é positivo e


contribui muito para a colaboração na sala de aula. É claro que pode ser necessário estabelecer
algumas regras para que essa dinâmica funcione, mas o objetivo é aproveitar o que cada pessoa
tem de melhor para um aprender partilhado.

Essa forma de aprendizagem permite explorar melhor as dificuldades e facilidades de


cada aluno, favorecendo a criação de um ambiente mais compreensivo e colaborativo

Constata-se que há dois aspectos dessa experiência que merecem reflexão: o primeiro
deles tem a ver com a atuação do professor, visto que o Plickers possibilita um diagnóstico mais
rápido quanto ao desempenho dos alunos; e o segundo refere-se à percepção dos alunos acerca da
utilização da ferramenta, que despertou a curiosidade, o engajamento e o caráter participativo dos
alunos no momento de avaliação da aprendizagem.

REFERENCIAS
A utilização da tecnologia na administração financeira e suas influências para a melhoria das
associações de produtores rurais. Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/a-
Página 324 de 2230

utilizacao-da-tecnologia-na-administracao-financeira-e-suas-ifluencias-para-a-melhoria-das-
associacoes-de-produtores-rurais/18272/>. Acesso em Jan/2020.
COELHO, Fernando. A Sua marc@ no digital. Editora Laboro, 2019.
Como Utilizar o Plickers: O guia completo para aplicá-lo com sucesso na sala de aula. Disponível
em: < https://aulaincrivel.com/guiaplickers/>. Acesso em Jan/2020.
FONSECA, S. M.; NETO, J. A. M. Metodologias ativas aplicadas à educação a distância: revisão
de literatura. Revista EDaPECI, v. 17, n. 2, p. 185-197, 2017. Disponível em:
<https://seer.ufs.br/index.php/edapeci/article/viewFile/6509/pdf>. Acesso em Jan/2020.
TORRES, Patrícia Lupion; IRALA, Esrom Adriano F. Aprendizagem Colaborativa: Teoria e
Prática. Disponível em: <
http://www.agrinho.com.br/site/wpcontent/uploads/2014/09/2_03_Aprendizagem-
colaborativa.pdf>. Acesso em Jan/2020.
Uso do aplicativo plickers dentro da proposta de metodologia ativa. Disponível em:
http://www.abed.org.br/congresso2017/trabalhos/pdf/243.pdf. Acesso em Jan/2020.
SOUSA, S. O. Aprendizagem Baseada em Problemas (PBL- Problem-Based Learning): estratégia
para o ensino e aprendizagem de algoritmos e conteúdos computacionais [dissertação]. Presidente
Prudente: Unesp; 2011. Disponível
em:<https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/96471/sousa_so_me_prud.pdf?sequ
ence=1>. Acesso em Jan/2020.
PLICKERS. Disponível em: https://www.plickers.com/login. Acesso em: Jan/2020.
JOHNSON, L. et all. NMC Horizon Report: Edição Ensino Superior. USA, 2013. Disponível em:
<https://www.nmc.org/publication/nmc-horizon-report-2017-higher-education-edition/>. Acesso
em Jan/2020.
JOHNSON, L. et all. NMC Horizon Report: Edição Ensino Superior. USA, 2013. Disponível em:
<https://www.nmc.org/publication/nmc-horizon-report-2017-higher-education-edition/>. Acesso
em Jan/2020.
10 aplicativos para complementar o ensino em sala de aula. Disponível em:
http://fundacaotelefonica.org.br/noticias/10-aplicativos-para-complementar-o-ensino-em-sala-
de-aula/. Acesso em Jan/2020.
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APRENDENDO E EMPREENDENDO COM O TURISMO: UM RELATO DE


EXPERIÊNCIA

LEARNING AND UNDERTAKING WITH TOURISM: AN EXPERIENCE


REPORT
Maria Paula Torres Ribeiro
Aluna do curso de Turismo da UFMA
Paulo Anderson Camara Ribeiro
Bacharel em Administração pela UFMA
Eduardo Filipe Carneiro Silva
Aluno do curso de Hotelaria da UFMA
Ylanna Mendes Silva
Aluna do curso de Turismo da UFMA
Conceição de Maria Belfort Carvalho
Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa -UNESP
Professora Permanente do PGCULT UFMA
Eixo 1:Arte, Tecnologia e Educação

Resumo:O presente trabalho traz uma abordagem sobre as ações do projeto “Aprendendo e
Empreendendo com o Turismo”, vinculado ao ESINT (Espaço Integrado do Turismo) da
Universidade Federal do Maranhão, que tem como objetivo contribuir na formação profissional
de jovens e adultos, moradores da cidade de São Luís, dando ênfase em questões empreendedoras
ligadas ao mercado turístico. Atualmente são realizadas aulas expositivas, oficinas, palestras e
visitas técnicas guiadas para atender tal objetivo. Esses procedimentos de ensino são gerenciados
por alunos bolsistas e voluntários dos cursos de turismo, hotelaria, administração e ciências
contábeis da UFMA com acompanhamento dos professores envolvidos no projeto. Ao final das
ações educacionais, espera-se que o público-alvo do projeto reconheça a importância da atividade
turística sustentável como instrumento educacional no reconhecimento e valorização da cidade,
seja motivado a empreender e, consequentemente, proporcionar o desenvolvimento econômico,
cultural e social da comunidade onde reside. Diante disso, as ações do projeto de extensão
colaboram tanto para a inserção comunitária em áreas de interesse turístico como também na
formação de potenciais empreendedores.
Palavras-chave: extensão. qualificação profissional. sensibilização turística. ações de
capacitação.

Abstract:This study brings an approach on the actionsof the project “Learning and Undertaking
with Tourism”, linked to the ESINT (Integrated Tourism Area) of the Federal University of
Maranhão, which aims to contribute to the professional training of young people and adults,
residents of the city of São Luís, emphasizing entrepreneurial issues related to the tourism market.
Currently are performed exhibition classes, workshops, lectures and guided technical visits to
meet this goal. These teaching procedures are managed by scholarship students and volunteers of
the Tourism, Hospitality, Administration and Accounting courses of the UFMA with monitoring
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of teachers involved in the project. At the end of the educational actions, it is expected that the
target audience of the project recognizes the importance of sustainable tourism as an educational
tool in the recognition and appreciation of the city, motivated to undertake and, consequently,
provide the economic, cultural and social development of the community where it resides. In view
of this, the actions of the extension project collaborate both for the community insertion in areas
of tourist interest and also in the formation of potential entrepreneurs.

Key-words:extension. professional qualification. tourist awareness. training actions.

1. INTRODUÇÃO
A extensão universitária é um processo que visa dialogar com a comunidade local, muitas
vezes lhes trazendo novas perspectivas de um mundo já conhecido. Dentre as três funções da
universidade, ensino, pesquisa e extensão, é esta a mais democrática, pois alcança não somente
aqueles que estão inseridos no contexto físico da universidade, mas toda a população ao seu redor.
O projeto “Aprendendo e Empreendendo com o Turismo”, vinculado ao ESINT (Espaço
Integrado do Turismo) da Universidade Federal do Maranhão, busca despertar na comunidade,
através de oficinas e cursos, habilidades empreendedoras ligadas direta ou indiretamente ao
turismo.
Todavia, entende-se que inicialmente é necessário direcionar o olhar dessas pessoas para
sua comunidade, sensibilizá-las acerca de seu próprio patrimônio, para que possam assim
contribuir economicamente, através do empreendedorismo, de forma consciente e sustentável,
uma vez que “o conhecimento crítico e a apropriação consciente pelas comunidades do seu
Patrimônio são fatores indispensáveis no processo de preservação sustentável desses bens, assim
como no fortalecimento dos sentimentos de identidade e cidadania.” (HORTA, GRUNBERG,
MONTEIRO, 1999).
Dessa maneira, objetiva-se com este estudo analisar a importância da educação patrimonial
na formação de futuros empreendedores, de forma a consolidar atitudes sustentáveis no cenário
socioeconômico da cidade. É imprescindível a educação agregada ao mundo cultural e seus
elementos, uma vez que, dessa maneira, “os indivíduos vão desnudando a sua realidade e se
descobrindo nela” (SILVEIRA, BEZERRA, 2007).
Entende-se, então, que a partir da inserção do aluno no contexto cultural de sua cidade, ele
será capaz de valorizar a cultura local e preservação do patrimônio, de forma a empreender e gerir
um negócio de forma sustentável, uma vez que se entende, de acordo com Horta, Grunberg e
Monteiro (1999), que a apropriação cultural pela comunidade faz parte do processo de preservação
dos bens, uma vez que são apreendidos seu valor e sua importância para a cidade tanto histórica
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quanto socialmente. Para a comunidade o projeto contribui na formação profissional de jovens e


adultos que poderão vislumbrar novos caminhos com o desempenho de atividades relacionadas
direta e indiretamente à atividade turística.
Pretende-se, com a implementação do projeto, sensibilizar os alunos sobre a importância
da educação ambiental, ou seja, conscientizá-los sobre a necessidade de desenvolver a atividade
turística de modo sustentável no seu espaço. Outrossim, almeja-se ampliar conhecimentos e
oportunidades a fim de que a comunidade possa ter uma participação mais efetiva no processo de
desenvolvimento da atividade turística. Os cursos propostos articulam as áreas de turismo,
cidadania e empreendedorismo, a partir dos objetivos expostos anteriormente.
2. METODOLOGIA
A metodologia utilizada nas oficinas consiste em aulas expositivas e visitas técnicas
guiadas, permitindo maior integração entre alunos e a cidade. Visitas técnicas realizadas a museus
e locais históricos, como são promovidas pelo presente projeto, já se demonstram, segundo
Bezerra (2006, apud SILVEIRA, BEZERRA, 2007), como “ferramentas pedagógicas que
potencializassem o processo de ensino e aprendizado”. De acordo com Horta, Grunberg e
Monteiro (1999), “Nada substitui o objeto real como fonte de informação sobre a rede de relações
sociais e o contexto histórico em que foi produzido, utilizado e dotado de significado pela
sociedade que o criou”, dessa forma torna-se necessário “se aplicar uma metodologia apropriada
que facilite a percepção e a compreensão dos fatos e fenômenos culturais”, a qual pode ser
observada na utilização das visitas técnicas como forma de estimular a curiosidade sobre conceitos
apresentados nas aulas expositivas.
O projeto tem como objetivo desenvolver competências do Empreendedorismo em jovens
e adultos, moradores da cidade de São Luís, dando ênfase em questões empreendedoras ligadas
ao mercado turístico, além de apresentar o conceito de diversidade, cada dia mais presente no
mundo globalizado. Objetiva ainda despertar nos alunos a questão da Criatividade através da
oferta de minicursos, onde poderão participar de dinâmicas que os apoiem na identificação de
novas oportunidades de negócios.
O projeto é desenvolvido em três etapas: na primeira, objetiva-se sensibilizar jovens para
a importância do empreendedorismo e preservação do patrimônio ambiental e cultural. Os
procedimentos de comunicação são feitos por meio da divulgação na imprensa local, panfletagem
em escolas do Ensino Médio e redes sociais. Como procedimentos de ensino são realizadas três
oficinas (módulo básico): noções de empreendedorismo; educação patrimonial; cidadania e
turismo. As oficinas serão ministradas por alunos dos cursos de Turismo e Hotelaria da UFMA.
Cada oficina terá duração de 20 horas, e atenderá 40 pessoas.
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No segundo momento, após realização dos cursos do módulo básico, damos início aos
cursos do módulo específico, que são direcionados ao desenvolvimento das habilidades
empreendedoras dos alunos, onde são oferecidos 03 cursos de 20h cada. Esses cursos são
ministrados pelos bolsistas com acompanhamento dos professores envolvidos no projeto. Este
módulo organiza-se em: Habilidades Empreendedoras; O meu negócio pode ser turismo;
Gerenciando Empreendimentos de Alimentos e bebidas. Como procedimentos metodológicos
para a execução dos módulos, as atividades consistem em aulas expositivas; debates e estudos de
casos; exibição de vídeos; leitura de textos; quatro visitas monitoradas para análise da gestão dos
empreendimentos localizados nos municípios de São Luís.

3. REFERENCIAL TEÓRICO
Será feita uma abordagem geral sobre a educação e formação de jovens e adultos por meio
do turismo, assim como alguns conceitos de empreendedorismo e de que forma está relacionado
com o setor do turismo. Além disso, será apresentado o projeto de extensão aprendendo e
empreendendo com o turismo, vinculado ao Espaço Integrado do turismo – ESINT da
Universidade federal do Maranhão.

3.1 Aprendendo com o Turismo


A inclusão de jovens e crianças a uma educação de qualidade, a fim de desenvolver
habilidades e potencialidades para o mercado de trabalho, tem sido uma das prioridades do
governo.
Segundo estudiosos e pedagogos, desenvolver serviços de qualidade na educação é realizar
uma mudança a partir de uma gestão pedagógica compartilhada, ou seja, é envolver gestores,
educadores, famílias e comunidades no processo de construção de uma educação apoiada na
responsabilidade social. E responsabilidade social implica em verificar quais as necessidades da
comunidade, em estabelecer estratégias que expressam a importância da identidade local e da
cidadania.
Para Ferreira (1993), a contribuição da escola como espaço de crescimento e
compartilhamento do conhecimento é essencial na formação de jovens e crianças como futuros
cidadãos. A educação pública brasileira, apesar de todos os entraves e conquistas, ainda está em
processo de obter um patamar mínimo de qualidade.
É a partir desta questão que o projeto propõe a Sensibilização de jovens sobre temas
pertinentes à atualidade, como: Educação e Conscientização Ambiental e do Patrimônio Histórico,
Cidadania e Turismo na comunidade como um elo que por meio da educação irá desenvolver o
empreendedorismo desses jovens, maximizando as oportunidades e respeitando a escolha e as
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decisões da comunidade. Diante disso, o turismo como instrumento de integração e inclusão


social, aliado à Educação, poderá proporcionar o crescimento de jovens dando-lhes oportunidades,
bem como conscientizando-os dos seus direitos e deveres na sociedade.
Trabalhar o Turismo na Educação é direcionar o olhar dos jovens para suas comunidades
como espaços de identidade e de desenvolvimento sustentável. Para Martins (2003, p. 30), “o
ambiente que é voltado para o turista também é voltado para o povo em seus momentos de lazer,
e só por esta forma se torna sustentável, gerando a preservação de ruas, cidades, centros históricos,
encenações de feitos heroicos e até de guerrilhas”.
A sensibilização para o turismo a partir da educação é um meio de incentivar jovens de
comunidades potencialmente turísticas a desenvolver suas habilidades profissionais futuras e fazer
com que todos da comunidade participem e decidam sobre os rumos que a atividade deverá seguir.
O turismo, além de ser uma atividade econômica é, sobretudo, uma atividade que envolve o
território, a história, a cultura e as pessoas da comunidade.
De acordo com Martins (2003), o fenômeno do turismo apesar de parecer devastador no
primeiro momento, consequência de um planejamento a curto prazo, a atividade turística de uma
forma ou outra irá despertar a consciência de ser local, de um sentimento de orgulho e de
pertencimento do povo àquela comunidade, uma maneira de valorizar sua identidade, o seu jeito
de ser e gerar desenvolvimento econômico e social para o local.
A necessidade de resgatar a identidade diferencia os grupos, apesar das mudanças de
comportamento e das relações sociais no decorrer dos séculos, o indivíduo precisa de uma
identidade que o torne membro de uma comunidade e de uma sociedade. A atividade turística
pode promover o fortalecimento e valorização da identidade, na medida em que pode revelar
comunidades fortalecidas pelas tradições, por meio de manifestações culturais e pela influência
da globalização e da tecnologia dos últimos séculos.
O desenvolvimento da atividade turística por meio da educação revela uma parceria
importante, uma vez que a educação constitui a base que irá gerar o desenvolvimento e o turismo.
A competitividade é uma marca inerente à atividade turística, o que exige a constante melhoria da
qualidade dos produtos e serviços oferecidos, além da inovação e atualização dentro do mercado.
O estímulo ao empreendedorismo e à descentralização no gerenciamento da atividade possibilita
um maior retorno de benefícios, na medida em que a comunidade passa a atuar como propulsora
do turismo, ao mesmo tempo em que é para ela que convergem os resultados.
Logo, possibilitar que a comunidade se insira em novas atividades de produção e comércio
a partir dos recursos locais, implicará na não dependência em relação ao poder público, no
atendimento indireto ao turismo e na criação de novos mercados que poderão se estender para
outras esferas econômicas, além do turismo.
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3.2 Empreendendo com o Turismo


O termo empreendedorismo tem origem da palavra francesa entrepreneur, que era
empregada para denominar indivíduos que assumem riscos. Com o passar do tempo a terminologia
ganhou novos significados. Assim, empreendedorismo pode ser entendido como “o envolvimento
de pessoas e processos que, em conjunto, levam à transformação de ideias em oportunidades”
(DORNELAS, 2008, p.22).
Além do mais, o empreendedorismo também pode se encontrar em “empresas que são
velhas e novas; pequenas e grandes; com crescimento rápido e lento; nos setores privados, sem
fins lucrativos e públicos; e em todas as etapas do desenvolvimento de um país,
independentemente da política” (DORNELAS; TIMMONS; SPINELL; 2010, p.76)
Em relação ao ser empreendedor, muitos autores apontam como alguém que está disposto
a enfrentar riscos ao identificar oportunidades de criar negócios no mercado. Diante disso, Leite
(2012), afirma que é aquele que é influenciado, pelo meio em que se encontra, a transformar ideias
em bens e serviços que são consumidos pelo mercado.
Nos últimos anos, o conceito de empreendedorismo tem ganhado notoriedade no Brasil.
De acordo com Dornelas (2008), uma das causas para essa popularização ocorreu a partir do
momento em que o governo e entidades de classe passaram a dar maior atenção, pois muitas
empresas tiveram que buscar meios para minimizar custos, bem como elevar a competitividade e
a permanência no mercado devido ao fenômeno da globalização.
No entanto, um dos impactos gerados foi o aumento do desemprego no país. Dornelas
(2008) destaca que os ex-funcionários de empresas buscaram no empreendedorismo uma
alternativa para obter ganhos financeiros, isto é, deixaram a condição de empregados para serem
donos do seu próprio negócio.
Com base nisso, Leite (2012) aponta que é fundamental que haja uma propagação do
ensino do empreendedorismo para aqueles que se encontram desempregados. De forma geral, cada
vez mais a educação empreendedora tem sido disseminada como “disciplina, forma de agir, opção
profissional e como instrumento de desenvolvimento econômico e social” (DORNELAS, 2008,
p.8).
Pode-se dizer que a atividade empreendedora está diretamente relacionada ao turismo, pois
o processo de desenvolvimento do turismo demanda ações de empreendedores que atuam na área,
uma vez que estão empenhados em prestar soluções às exigências econômicas, sociais e
ambientais pertinentes ao setor (TOMIO E SCHMIDT, 2014).
O turismo como atividade econômica é capaz de gerar oportunidades de emprego e renda
por conta do seu efeito multiplicador. Fagundes e Ashton (2010) acreditam que os impactos
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positivos produzidos pelo turismo estão ligados a uma cadeia produtiva do turismo que engloba
diversos setores produtivos.
Com base nisso, Tomio e Schmidt (2014) destacam a importância da inovação na atividade
turística, que apresenta característica multidisciplinar, por parte dos agentes que atuam nesse setor,
isto é, os empreendedores devem interagir entre si para agregar e formatar serviços e produtos a
serem comercializados. Dessa forma, as empresas relacionadas ao mercado turístico, como os
meios de hospedagem, restaurantes, agências emissivas e receptivas, empresas de lazer, entre
outras, devem se conectar com o objetivo de gerar valor aos seus consumidores.
Sobre a participação do mercado de viagens no produto interno bruto do Brasil, o
Ministério do Turismo (2019) aponta, com base em um estudo realizado pelo Conselho Mundial
de Viagens e Turismo, a contribuição para o PIB nacional aumentou 3,1% no ano de 2018,
totalizando US$ 152,5 bilhões. No que se refere ao volume de postos de trabalhos, o mercado gera
emprego para aproximadamente 7 milhões de pessoas.
A nível global, o turismo trouxe impactos positivos ao PIB mundial, ocasionando uma
participação de US$ 8,8 trilhões que corresponde a 10,4%. Além do mais, foi responsável por
originar 319 milhões de empregos (1 a cada 10 postos de trabalhos) e se consolidou como o
segundo com maior crescimento, perdendo somente para o ramo de manufaturas. (MINISTÉRIO
DO TURISMO, 2019).
3.3 O Projeto Aprendendo e Empreendendo com o Turismo
O projeto Aprendendo e Empreendendo com o Turismo têm por finalidade dotar jovens,
entre 18 e 26 anos, moradores do Centro Histórico de São Luís, de uma visão crítica em relação à
atividade turística, no que se refere às possibilidades de ingresso de mão de obra local na referida
área, assim como possibilitar que eles reconheçam a importância socioeconômica e ambiental do
turismo. Objetiva ainda a Instrumentalização eficiente no sentido de conferir qualidade à prestação
de serviços, através da oferta de cursos de capacitação profissional e de orientação para o mercado.
O Maranhão, segundo dados do IBGE 2009 (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), possui uma taxa de 33,2 % de analfabetismo funcional. É necessário promover uma
mudança nesse quadro. Esses dados são resultado, dentre outras razões, da necessidade de crianças
e jovens que interrompem seus estudos para auxiliar na renda familiar. O projeto que propomos
visa implementar e organizar ações em prol da comunidade, a fim de lhe possibilitar o
desenvolvimento de atividades de produção e comércio a partir de recursos locais.
Tais atividades implicarão no atendimento indireto ao turismo e na criação de novos
mercados que poderão se estender para outras esferas econômicas. A constante melhoria da
qualidade dos produtos e serviços oferecidos, além da inovação e atualização dentro do mercado,
o estímulo ao empreendedorismo e a descentralização no gerenciamento da atividade possibilitam
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um maior retorno de benefícios, na medida em que a comunidade passa a atuar como propulsora
do turismo, ao mesmo tempo em que é para ela que convergem os resultados.
O projeto visa a contribuir para a educação formal de jovens e adultos de comunidades que
possuem potencial turístico, acrescentando valores relacionados à preservação e conscientização
ambiental, à cidadania e ao empreendedorismo. O intuito é ressaltar a importância da atividade
turística sustentável como instrumento educacional no reconhecimento e valorização da cidade,
incentivando o empreendedorismo e, consequentemente, proporcionando o desenvolvimento
econômico, cultural e social da comunidade.
As comunidades a serem beneficiadas pelo projeto estão localizadas próximo ao conjunto
arquitetônico do Centro Histórico de São Luís, que possui cerca de 5 mil imóveis datados dos
séculos XVII e XIX, reconhecido em 1997 como Patrimônio da Humanidade pela Unesco e que
configura como um dos principais atrativos turísticos da capital maranhense.
As ações do projeto, além de contribuir para a inserção comunitária em áreas de interesse
turístico, de forma a possibilitar o complemento da renda familiar, permitirá a elevação das
oportunidades de negócios criativos e inclusivos que atendam as potencialidades intrínsecas de
cada comunidade, estimulando o fomento ao empreendedorismo, multiplicando novas
possibilidades de trabalho e geração de renda.
O projeto será o norteamento para a implementação e organização das ações a serem
gerenciadas pelos próprios residentes, conferindo-lhes autonomia e segurança para atuarem em
novos mercados.

4. RESULTADOS

Como colocado por Severino (1991) na elaboração de um projeto de pesquisa não é


possível trabalhar com resultados, pois esses ainda não foram obtidos, de forma que o que se tem
é uma meta, um resultado esperado que deve ser alcançado cumprindo todas as etapas descritas
no projeto.
Dentre os resultados iniciais do projeto, destacam-se: a capacitação de mais de 500 jovens
do Centro Histórico de São Luís e de outros bairros da cidade e a percepção que o estímulo ao
empreendedorismo e à descentralização no gerenciamento da atividade possibilita um maior
retorno de benefícios, na medida em que a comunidade passa a atuar como propulsora do turismo,
ao mesmo tempo em que é para ela que convergem os resultados. Logo, possibilitar que a
comunidade se insira em novas atividades de produção e comércio a partir dos recursos locais,
implicará na não dependência em relação ao poder público, no atendimento indireto ao turismo e
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na criação de novos mercados que poderão se estender para outras esferas econômicas, além do
turismo.
Diante do exposto fica evidenciado que a realização deste projeto é de imensurável
importância, pois o mesmo propôs e propõe despertar uma nova concepção de empreendedorismo
em cada um dos alunos, que obtiveram ganhos significativos em relação ao campo de negócios.
Levando-se em conta o que foi observado, o projeto foi significativo e muito proveitoso,
além de proporcionar uma maior visão sobre os assuntos abordados em sala de aula aos alunos.
Os mesmos puderam colocar em prática os conhecimentos que foram compartilhados em sala,
com um trabalho prático de criação de negócio, individual, que pôde contribuir e incentivar adoção
de práticas administrativas e empreendedoras, depois de tudo o que foi explicado.
Notório destacar-se o comprometimento dos alunos para com as aulas, a assiduidade, a
manifestação de interesse em compartilhar suas experiências e se aprofundar mais no que ainda
se mostravam leigos. A participação da turma nas atividades propostas contribuiu para o
fortalecimento do potencial de cada um, apresentados como futuros empreendedores da cidade e
possíveis disseminadores dos temas tratados em sala para a comunidade ao seu redor.
É interesse da educação obter uma integração de campos de conhecimento e experiência
que facilitem uma compreensão mais reflexiva e crítica da realidade, ressaltando não só dimensões
centradas em conteúdos culturais, mas também o domínio dos processos necessários para
conseguir alcançar conhecimentos concretos e ao mesmo tempo, a compreensão de como se
elabora, produz e transforma o conhecimento, bem como as dimensões éticas inerentes a essa
tarefa. Tudo isso reflete um objetivo educacional tão definitivo como é o ato de aprender.
(TORRES, 1998, p.27)
Assim, compreendendo a importância do ato de aprender e do impacto que isso gera a uma
pessoa, chamamos a atenção para objetivos aqui alcançados , percebidos durante o caminhar deste
projeto e a compreensão e entendimento de cada aluno, como protagonista de sua própria
possibilidade de empreendedorismo e o fortalecimento dessas ideias.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entende-se que o projeto “Aprendendo e Empreendendo com o Turismo” possui
demasiada importância no âmbito socioeconômico da comunidade envolvida. Com a participação
como aluno, deste projeto, jovens interessados em empreender na região podem aprender e
desenvolver seus negócios interligados fortemente à cultura e à história locais, de maneira que a
beneficiar a região, com oferta de empregos, e o turismo do local, desenvolvendo estratégias de
empreendedorismo para o mesmo ou estabelecimentos que auxiliem na atividade turística.
Página 334 de 2230

A educação é uma ferramenta importante para a formação do jovem, de maneira que


interligá-la ao Turismo redireciona o olhar do estudante para sua comunidade como um local de
potencialidades e possibilidades para o desenvolvimento sustentável. Trabalhar o
desenvolvimento sustentável com jovens alunos possibilita o desenvolvimento de futuros projetos
e empreendimentos conectados ao tripé da sustentabilidade, visando melhorias no
desenvolvimento das comunidades e regiões.
Dessa forma, além de sensibilizá-los e incentivá-los a serem protagonistas na execução de
seus próprios negócios, espera-se que as aulas, palestras e visitas técnicas possam ter sido
essenciais para os alunos avaliarem e enxergarem o território em que vivem, compreender as
possibilidades que existem nele, e o impacto de suas decisões empreendedoras e seus papéis como
agentes de mudanças.
Considera-se que foi de grande importância a realização desse projeto bem como seu o
papel conscientizador proposto, de fato que a comunidade foi diretamente envolvida e
conscientizada sobre seu fator de modificação social, em que os alunos se vejam capazes de
realizarem suas ideias com maiores esclarecimentos sobre o tema.
Por fim, espera-se que o projeto tenha ajudado no desenvolvimento e construção da
aprendizagem desses alunos e que possa servir de inspiração para a realização de outros estudos e
pesquisas. Acreditamos que o desenvolvimento da percepção empreendedora despertada em cada
um dos estudantes possa ser uma ferramenta importante para assegurar o desenvolvimento de seus
futuros projetos e ao acesso a informações já conhecidas e utilizadas, uma vez que através desse
contato os alunos possam transformar-se em profissionais conscientes de seus papéis e contribuir
para a produção de novas possibilidades.

REFERÊNCIAS

DORNELAS, José Carlos Assis. Empreendedorismo: transformando idéias em negócios. Rio de


Janeiro: Elsevier/Campus, 2008.

DORNELAS, J.; TIMMONS, J. A.; SPINELLI, S. Empreendedorismo para o século 21. 8 ed.
São Paulo: Elsevier, 2010.

FAGUNDE, Camila; ASHTON, Mary Sandra Guerra. Desenvolvimento regional através do


turismo: geração de emprego e renda. In: ENCONTRO SEMINTUR JR, 1. SEMINÁRIO DE
PESQUISA EM TURISMO DO MERCOSUL, 2010, Caxias do Sul. Anais. Caxias do Sul, RS:
Universidade Caxias do Sul, 2010.
Página 335 de 2230

FERREIRA, Nilda Teves. Cidadania: uma questão para a educação. As idéias de cidadania e
Estado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993

HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz.


Guia Básico da Educação Patrimonial. [S. l.]: Museu Imperial, 1999. 58 p. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/temp/guia_educacao_patrimonial.pdf.pdf. Acesso em: 9 out.
2019.

LEITE, Emanuel Ferreira. O fenômeno do empreendedorismo. São Paulo: Editora Saraiva,


2012.

MARTINS, André. Cresce a participação do Turismo no PIB nacional. Ministério do Turismo,


07 de mar. de 2019. Disponível em: < http://www.turismo.gov.br/>. Acesso em: 17 de nov. de
2019.

MARTINS, Cleiton. (Org.). Turismo, cultura e identidade: percepção e contexto. São Paulo:
Rocca, 2003.

SANTOMÉ, J.T. Globalização e interdisciplinaridade: O currículo integrado. Porto Alegre:


Artmed, 1998, p.27.

SEVERINO, A. J.; Metodologia do Trabalho Científico. 17. ed. São Paulo: Cortez, 1991.

TOMIO, M.; SCHMIDT, C. M. Governança e Ações Coletivas no Turismo Regional: a


experiência dos Empreendedores da Região Oeste do Paraná. Revista Turismo - Visão e Ação –
Eletrônica. v. 16, n. 3, set/dez, 2014.
Página 336 de 2230

ARTES E CIÊNCIA: CONTRIBUIÇÕES DA ARTETERAPIA NA SAÚDE

ARTS AND SCIENCE: CONTRIBUTIONS OF ART THERAPY IN HEALTH

André Felipe Moreira Reis


Licenciando em Ciências Biológicas - UFMA
Mariana do Espírito Santo Robson
Graduanda em Licenciatura em Artes Visuais - UFMA
Mariana Guelero do Valle
Orientadora - UFMA.
Eixo temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: É comum que aconteçam discussões acerca da necessidade de serem realizadas


atividades interdisciplinares em ambientes educativos. Entretanto, são poucos os incentivos a esta
prática. A partir dessa inquietação, buscamos por construir um trabalho que possa promover a
interface entre Artes e Ciências e, assim, analisar as contribuições das duas áreas na Saúde e suas
diversas possibilidades. Por isto, este trabalho apresenta uma abordagem qualitativa caracterizada
como um ensaio acadêmico-teórico. Assim, objetivamos discutir sobre Arteterapia a partir da
interação entre os conhecimentos dos cursos de Licenciatura em Artes Visuais e Ciências
Biológicas, pois estes campos de estudos apresentam perspectivas complementares sobre estilos
de vida saudáveis. Por exemplo, as artes são importantes no desenvolvimento de atividades que
envolvem cultura e criatividade, enquanto a Biologia é necessária para o autoconhecimento sobre
os diversos sistemas do corpo humano e suas funções. Com isto, percebemos a arteterapia como
um método artístico terapêutico que vem ganhando espaço dentro dos serviços de saúde, assim
como em ambientes educativos. Esse método é utilizado com finalidade terapêutica por meio do
uso de várias formas de expressão artística e de maneira lúdica, utilizando diversos materiais,
técnicas e formas de expressão variadas, tais como pintura, desenho, escultura, colagem,
modelagem, e até mesmo música, dança, e a performance entram como métodos utilizados pelo
profissional de arteterapia. Por meio dessas práticas, as pessoas podem desenvolver diversas áreas
do cérebro, como o psicomotor, o cognitivo, o afetivo ao trabalhar os conteúdos emocionais
internos e a capacidade de tomar decisões através da própria expressão artística. Destacamos a
necessidade que as ações não se restrinjam a serem apenas práticas conhecidas como biomédicas,
que por conta de seu caráter reducionista não conseguem enxergar o ser humano como um ser
complexo que vai além de um organismo funcional. A arteterapia, se vista em uma perspectiva
mais ampla de saúde, pode auxiliar no desenvolvimento cerebral das pessoas através da expressão
artística como tem sido estudado na neurociência ultimamente.
Palavras-chave: Artes. Arteterapia. Ciências. Saúde.
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Abstract: It is usual to happen discussions about the necessity of interdisciplinary activities in


educational environments. However, there are few incentives to that practice. Starting from this
concern, we look up to work in a way that makes possible to promote an interface between Arts
and Science, and then to analyze the contributions of both fields in Health and their many
possibilities. Therefore, this work presents a qualitative approach characterized as a theoretical
research paper. Thus, we aim to discuss about Art therapy starting from the interaction of the
knowledge from the degrees (teaching license) in Visual Arts and Biological Science, as these
fields of study present complementary perspectives about healthy lifestyles. For example, the arts
are important for the development of activities that involve culture and creativity, while biology
is necessary for self knowledge about the human body system and its functions. Thereby, we can
perceive the Art therapy as an artistic therapeutic method that has been gaining notoriety in the
healthcare systems, as much as in educational environments. That method is used for a therapeutic
purpose through the usage of many ways of artistic expression and in a playful manner, using
diverse tools, techniques and varied ways of expression, such as painting, drawing, carving,
collage, modeling, and even music, dance and performance can be used as methods by the Art
therapy professional. Through these practices people can develop diverse areas of the brain, such
as psychomotor, cognitive, affective when it looks into emotional contents and also the capacity
of making decisions through the artistic expression. We highlight the necessity of having actions
that are not restricted to the practices called biomedical which are characterized by a reductionist
perspective that cannot see the human being as a complex being that exceeds a functional
organism. The Art therapy, if seen in a broader perspective of health, can help with brain
development of people through artistic expression, as it has been studied on neuroscience lately.
Key-words: Arts. Art therapy. Science. Health.

1. Introdução

Comumente acontecem discussões sobre a interdisciplinaridade em ambientes educativos.


No livro "A República", de Platão, por exemplo, o personagem Sócrates, uma homenagem ao seu
mestre, participa de uma série de diálogos com outros filósofos, como Trasímaco e Glauco, a
respeito da formação do ser humano ideal como o reflexo de uma cidade ideal (a Politéia) ao
apresentarem virtudes como a coragem e a sabedoria, que nas palavras de Sócrates: “para estas
duas faces da alma, a corajosa e a filosófica, ao que parece, eu diria que a divindade concedeu aos
homens duas artes, a música e a ginástica" (PLATÃO, 2000, p. 105). A arte, representada pela
música e a ginástica, neste contexto, são referidas como a educação da subjetividade humana, ou
seja, da alma e dos sentidos humanos, sendo elementos essenciais na formação do caráter das
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pessoas, já que “a virtude, ao que parece, uma espécie de saúde, beleza e bem-estar da alma
(PLATÃO, 2000, p. 141), e que antecipam a formação de aspectos mais intelectuais concedidos
pelas ciências, como o cálculo, a geometria e astronomia, “cujos princípios são hipóteses; os que
estudam são forçados a fazê-lo, pelo pensamento, e não pelos sentidos” (PLATÃO, 2000, p. 209),
para a formação de valores como a justiça e a temperança. Entende-se que apesar desse tipo de
educação não apresentar as características atuais da interdisciplinaridade, os gregos da antiguidade
já entendiam a necessidade de uma formação holística, que envolvia o desenvolvimento de um ser
humano saudável a partir de várias perspectivas disciplinares que conversavam entre si. Assim,
promovemos a interface entre Artes e Ciências através da Arteterapia e sua capacidade de
desenvolver tanto os aspectos emocionais e espirituais quanto os cognitivos humanos, discutindo
suas contribuições na área da Saúde.
A Arteterapia iniciou-se na antroposofia de Rudolf Steiner (1985), onde o mesmo
conceitua o homem como um ser espiritual, constituído de alma e corpo vivo, onde através dos
elementos como cores, formas, volumes e disposição espacial, que quando aplicados na terapia
artística possibilita que as pessoas vivenciem os arquétipos (ou modelos ideais) da criação, ou
seja, a se reconectarem com leis que são inerentes à natureza e com isso consigam alcançar um
contato com a sua própria essência criadora.
As pesquisas só foram continuadas na década de XX, quando Carl Jung (2013) começou
a utilizar a arte dentro de tratamentos psicoterápicos. A partir das imagens obtidas com seus
pacientes, Jung pôde constatar que eram representações simbólicas do inconsciente individual e
muitas vezes até um inconsciente coletivo. Ele analisou diversas sociedades e culturas distintas,
onde suas configurações imagéticas, uma linguagem que utiliza símbolos, cores e imagens como
forma de comunicação, e suas ideias análogas, carregadas de emoção em diferentes núcleos, foram
denominadas estruturas arquetípicas, fazendo possível compreender o comportamento individual
e a manifestação da sociedade no tempo e espaço.
No Brasil, as práticas de arteterapia só se iniciaram em 1920, com o psiquiatra Ulysses
Pernambucano, porém o termo Arteterapia foi utilizado somente em 1946, por Nise da Silveira.
Ela foi uma médica psiquiatra que lutava contra as técnicas psiquiátricas utilizadas comumente,
as quais considerava extremamente agressivas como a lobotomia, o eletrochoque e o coma
insulínico, sendo assim, menosprezada pelos seus colegas de trabalho e transferida para a ala de
terapia ocupacional do Centro psiquiátrico Engenho de Dentro, onde trabalhava. As práticas de
terapia ocupacional antes eram de limpeza e manutenção do hospital, que eram exercidas pelos
próprios pacientes, sendo trocadas por Nise para práticas lúdicas e artísticas. Seguindo o
pensamento de Jung, ela tem seu trabalho voltado para pacientes psiquiátricos, em principal,
esquizofrênicos e pacientes que eram isolados, considerados incompreensíveis e impossíveis de
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conviver em sociedade. Dessa forma, Nise criou oficinas dentro desse espaço terapêutico que
utilizavam linguagens artísticas como a pintura, desenho, colagem, escultura e o poema, onde
obteve muito sucesso. Foram descobertos muitos artistas incríveis dentro do hospital, como
Emygdio de Barros e Adelina Gomes (SILVEIRA, 1981).
A produção de obras foi tão grande e intensa que em 1952, Nise criou o museu de Imagens
do Inconsciente, no Rio de Janeiro, sendo um centro de estudo e pesquisa destinado à preservação
dos trabalhos obtidos nas oficinas artísticas, valorizando-os como documentos e objetos de
pesquisa, abrindo novas oportunidades para a compreensão mais profunda do universo interior do
esquizofrênico. Ela fundou também, em 1956, a Casa das Palmeiras, uma clínica voltada à
reabilitação de antigos pacientes de outras instituições psiquiátricas. Lá os pacientes expressam
diariamente sua criatividade, sendo tratados como pacientes externos, numa etapa intermediária
entre a rotina hospitalar e sua reintegração na sociedade (SILVEIRA, 1981).
E, a partir de todo esse contexto que envolve, inicialmente, as atividades artísticas dentro
de um ambiente médico hospitalar, e mais recentemente pelas práticas científicas , pretendemos
analisar as contribuições das Artes e da Biologia na área da Saúde, além de discutir sobre
Arteterapia a partir da interação entre os conhecimentos dos cursos de Licenciatura em Artes
Visuais e Ciências Biológicas, tendo em vista as perspectivas humanísticas, sociais e pedagógicas
da Arteterapia.

2. Metodologia

Para a construção deste trabalho foi utilizada uma abordagem qualitativa, pois a fonte de
dados para a pesquisa é o contexto e o histórico do ambiente a ser investigado (BOGDAN;
BIKLEN, 1994). Assim, buscamos entender as causas e os motivos da construção do conceito de
Saúde a partir do ponto de vista da Arteterapia como um campo interdisciplinar que envolve tanto
as artes como as ciências e as humanidades, tendo em vista que a pesquisa também surge a partir
de um ponto de vista pedagógico do conceito de saúde.
Assim, a tipologia de pesquisa escolhida foi a de Ensaio Acadêmico-Teórico, sendo
norteado pelas perguntas que nos causam reflexões profundas (MENEGHETTI, 2011). Esta
pesquisa surgiu a partir de conversas informais dentro do campus universitário a partir de uma
troca de conhecimentos construídos nos cursos de licenciatura em Artes Visuais, sobre
Arteterapia, e de Ciências Biológicas, a respeito da Educação em Saúde. Com a troca de
experiências e conhecimentos pelas conversas informais, também notamos que há uma dificuldade
na interação entre os cursos licenciatura, por exemplo, a Biologia encontra-se no Centro de
Ciências Biológicas e da Saúde, enquanto as Artes, Filosofia e Geografia encontram-se no Centro
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de Ciências Humanas, além de não haver uma promoção do contato e relacionamento das
licenciaturas através das cadeiras comuns da Educação, como a psicologia educacional e a
didática. Portanto, resolvemos utilizar o Ensaio Acadêmico-Teórico como uma forma de
aproximação das duas áreas de conhecimento através da Arteterapia na Saúde.

3. Desenvolvimento

Originalmente, a arteterapia usava apenas conceitos artísticos, sem o uso da investigação


científica. Em 1916, Jung realiza sua primeira mandala, composta por vários símbolos e arquétipos
mitológicos.

Imagem 1: Imagem encontrada no livro de Carl Gustav Jung (2013, p. 496).

Jung passa a explorar com mais profundidade o significado das mandalas e todas as
manhãs ele desenha uma nova mandala que, para ele, correspondia à situação interior do seu
momento atual. Graças a esses desenhos ele observou a sua transformação psíquica diária. Foi
através dessa observação progressiva que ele definiu a mandala como a formação, transformação
e eterna recriação do espírito eterno. E isso é a totalidade da personalidade que, se estiver bem, é
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harmoniosa, mas não tolera nenhuma auto-ilusão.


Contudo, esta modalidade terapêutica tem incluído, aos poucos, o pensamento científico
ao utilizar dados e métodos neurocientíficos. A “plasticidade cerebral” é uma expressão usada na
Neurociência e em outras áreas para explicar a capacidade do cérebro de se reestruturar a partir
de terapias. Essa plasticidade do cérebro pode ser vista através da expressão artística, pois a arte
permite que as pessoas relembrem experiências, que possam reorganizar seus pensamentos e, em
forma de disciplinas (visuais e cênicas), as artes têm ajudado na reabilitação de pacientes com
condições médicas e/ou psiquiátricas, sejam elas congênitas ou adquiridas ao longo da vida
(KONOPKA, 2014).

Imagem 2: Pode-se observar Emygdio de Barros pintando no Centro psiquiátrico engenho de


dentro. Ele recria um ambiente com árvores e casas ao relembrar suas experiências. Ao fundo também
pode-se observar Adelina produzindo uma de suas obras. Fonte:
http://www.ccms.saude.gov.br/museuvivo/mii.php
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Imagem 3: Em outra obra de Emygdio pode-se observar a reorganização de seus pensamentos ao


recriar elementos de um cômodo do que supõe-se ser uma casa. Ficha técnica da obra sem título - Data de
criação: 1971. Autor: Emygdio de Barros. Técnica utilizada para produzir a obra: óleo sobre cartolina.
Fonte: http://www.ccms.saude.gov.br/museuvivo/mii.php

Imagem 4: Nise da Silveira (à esquerda) e Adelina Gomes (à direita) em um momento de


socialização e demonstração de afeto pela médica psiquiátrica e sua cliente, como gostava de chamar as
pessoas de quem cuidava, ao invés do termo “paciente”. Fonte:
http://www.ccms.saude.gov.br/museuvivo/mii.php
Página 343 de 2230

Imagem 5: Uma das obras produzidas por Adelina, onde ela demonstração a recriação de alguma
de suas memórias.. Ficha técnica da obra sem título - Data de criação: 1953. Autora: Adelina Gomes.
Técnica utilizada para produzir a obra: óleo sobre tela. Dimensões: 33.00 cm x 46.00 cm. Acervo: Museu
de Imagens do Inconsciente. Fonte: http://www.ccms.saude.gov.br/museuvivo/mii.php

Porém, a ciência ainda tem uma visão reducionista para explicar os fenômenos humanos,
conhecida pelo seu positivismo ingênuo. Existem três paradigmas de investigação que surgiram a
partir desse positivismo: o pós-positivismo; a teoria crítica; e o construtivismo. O pós-positivismo
examina os fatos individuais, mas reconhece que o mundo é mais do que esses fatos. A teoria
crítica busca pelas conexões ocultas que existem entre diferentes fatores. E o construtivismo busca
pelos produtos que surgem de interações criativas, como novos sistemas de serviços de saúde
(TAYLOR; FRANCIS, 2016).
Esse positivismo usa a metáfora mecanicista do mundo como um laboratório, ou seja, uma
máquina com resultados previsíveis. Isso encoraja a ideia de que o mundo pode ser simplesmente
controlado. Esse tipo de metáfora do corpo humano como uma máquina pode ser encontrado em
livros didáticos de Biologia, por exemplo:

Há quem compare o sistema nervoso a uma rede de comunicação, em que sinais captados
por sensores (ou sentidos) são transmitidos para uma “estação central” na forma de
pulsos elétricos; estes viajam com rapidez por cabos transmissores, as fibras nervosas
(AMABIS; MARTHO, 2016, p. 234).
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No entanto, se usarmos metáforas criativas é possível expandir as ideias, como por


exemplo, o “cérebro como uma árvore” gera expectativas de que o cérebro é algo dinâmico, muito
diferente de uma metáfora sobre o cérebro, ou a vida, como uma máquina pré-programada.
Metáforas ecológicas como essas fornecem uma visão mais holística do assunto, além de maior
interação, ao invés de um protocolo a ser seguido. As pessoas precisam interpretar suas ações
através dessas metáforas de formas que façam sentido às suas jornadas pessoais (TAYLOR;
FRANCIS, 2016). Também podemos usar a capacidade simbólica dos vários tipos de
representações existentes, ou seja, aquilo que há nas entrelinhas, nas associações, ironias e
expressões de uso conotativo ou até mesmo os simbolismos mais complexos como os mitos, pouco
utilizados pela Biologia, ou sendo subutilizado como pano de fundo histórico para introdução de
conteúdos, apesar de que a capacidade de ler a vida simbolicamente ser um dos aspectos da
inteligência humana. Esse tipo de simbolismo pode ser visto nas imagens arquetípicas citadas por
Steiner:

Imagem 6: Os elementos cor, forma e tamanhos podem ser percebidos como ideias de criação,
algo também citado por Platão a respeito do plano das ideias, onde tudo é perfeito e belo. Fonte:
http://institutorudolfsteiner.org.br/evento/palestra-a-vida-de-hilma-af-klint/
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Imagem 7: Pode-se perceber que as imagens arquetípicas podem apresentar um nível de


organização complexo e que podem ser vistas no mundo físico, a exemplo das pirâmides localizadas no
Egito, com uma das arquiteturas mais criativas e complexas construídas por seres humanos. Fonte:
http://institutorudolfsteiner.org.br/evento/palestra-a-vida-de-hilma-af-klint/

4. Considerações finais

A arteterapia é o termo utilizado para designar práticas terapêuticas que utilizam a arte
como artifício metodológico em suas práticas. A vertente se dá pela união da arte com a psicologia
e a neurociência, fazendo com que a partir destas práticas o aluno/paciente possa desenvolver
outras habilidades, estimular o cérebro, aumentar seus níveis de cognição e motricidade, dentre
outros. Ela não se limita a pessoas com condições consideradas patológicas, como a esquizofrenia,
o autismo, as doenças neurodegenerativas e vícios em “drogas”.
De acordo com as pesquisas desenvolvidas acerca da utilização da arte como auxiliadora
no processo de recuperação, reabilitação e melhora, não somente em condições físicas dos
indivíduos, como a motricidade e outras habilidades motoras e/ou artísticas, há também a
valorização dos processos de livre criação individual, potencializando as formas singulares de
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cada indivíduo, auxiliando na autoestima, minimização dos efeitos negativos de possíveis


limitações de doenças ou transtornos, melhorando o equilíbrio emocional e consequentemente,
auxiliando de maneira significativa na saúde mental que irá se refletir na saúde física e emocional.
Dessa forma, a arteterapia entra na sociedade como uma ferramenta primordial nos processos
cognitivos, afetivos e inclusivos, devendo estar presente não somente em escolas, clínicas de
reabilitação e hospitais, mas também em centros comunitários, associações de bairro, onde a arte
possa estar presente inclusive em lugares menos favorecidos por fatores socioeconômicos,
atendendo também às comunidades periféricas.
Ademais, a Educação em Saúde também necessita de novas abordagens que levem em
consideração os educandos e as educandas como seres biopsicossociais, que precisam entender a
saúde a partir de suas próprias perspectivas e ideologias de vida, levando em consideração o
funcionamento orgânico de seus corpos que está em constante interação com o ambiente em que
vivem. E, tratando de Educação em Saúde, essa forma de ensino deve estar presente tanto na
Educação Básica, para a formação do caráter dos jovens, quanto para o Ensino Superior, como
por exemplo, nos cursos de Ciências Biológicas, Medicina, Enfermagem e Fisioterapia, por se
tratarem de cursos que irão formar profissionais da Saúde, além dos cursos tradicionais de Artes
Visuais, Teatro, Música e Dança, para uma formação cada vez mais holística.
Outro ponto a ser considerado são os estudos da Arteterapia pela Biologia, seja pela
Neurociência, que já têm estudado esta modalidade terapêutica por algum tempo, ou pela
Evolução Orgânica dos seres vivos, pois a Arte e o Belo também são fenômenos observáveis em
outras espécies de forma de vida, um exemplo disto foi a evolução dos olhos e das cores, outro
exemplo é a seleção de características sexuais simplesmente pela beleza, algo bem observável nos
pavões e suas belas e enormes penas, pois apesar de ser uma característica altamente custosa em
energia para esses animais e, por conta de seu peso e cores chamativas, facilitar sua predação, as
pavoas foram selecionando essas características apenas pela sua estética. Há algum tempo tem-se
discutido os prejuízos da fragmentação das áreas do conhecimento humano, então, por que não
sairmos de nossas especializações a fim de ampliar nossos conhecimentos?
Por fim, disponibilizamos em forma de Q.R Code um trailer do filme “Nise - O Coração
da Loucura”, para todos aqueles que queiram conhecer um pouco da evolução do conceito de
Saúde no Brasil.
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Para ter acesso ao trailer, basta usar algum aplicativo que consiga ler o código e acessar o link
disponível pelo site Youtube. Bom filme!

“Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda.
Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas.” Nise da Silveira.

Referências

AMABIS, José M; MARTHO, Gilberto R. Biologia Moderna. 1º ed. V.2. São Paulo: Moderna,
2016.

BOGDAN, Robert C; BIKLEN, Sari K. Investigação Qualitativa em Educação. Portugal:


Porto editora, 1994.

JUNG, Carl G. O livro vermelho. Tradução de Liber Novus; Edgar Orth. 2° ed. [S.I.]: Editora
Vozes, 2013, 516 p.

KONOPKA, Lukasz M. Where art meets neuroscience: a new horizon of art therapy. Croat
Med J., v. 55, p. 73-74. 2014.

MENEGHETTI, Francis K. O que é um Ensaio-Teórico? Curitiba, PR: RAC, v. 15, n. 2, p.


321-331, 2011.

PLATÃO. A República. Tradução de Pietro Nassetti. 3° ed. [S.I.]: Editora Martin Claret Ltda.,
2000. 321 p.

SILVEIRA, Nise da. Arqueologia da psique: Exposição Museu de Imagens do Inconsciente,


1981.

STEINER, Rudolf. Antroposofia e as Artes Visuais: O supra-sensível /sensível: conhecimento


e criação artística. 1985.
Página 348 de 2230

TAYLOR; FRANCIS. Combining art and science in healthcare. London Journal of Primary
Care: v. 8. n. 2. P. 19-20, 2016.
Página 349 de 2230

ARTES INDÍGENAS E ESTÉTICA: PLUMÁRIA KA’APOR

INDIGENOUS ART AND AESTHETIC: KA’APOR FEATHER

Larissa Lacerda Menendez (orientadora)


Doutora em Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo
Professora Permanente do Departamento de Artes Visuais do
Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade -UFMA
Lourdes Carvalho
Graduanda em Artes Visuais – UFMA
Bolsista Fapema/Pibic
Eixo 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Esse artigo apresenta o resultado do plano de trabalho de Iniciação Científica vinculado
ao projeto Estéticas indígenas contemporâneas: a arte Canela e Ka'apor no Maranhão,
coordenado pela Prof. Dra. Larissa Lacerda Menendez. O objetivo deste artigo é apresentar a
plumária Ka’apor a partir de catalogação de alguns objetos que fazem parte do acervo do Centro
de Pesquisa de História Natural, Arqueologia e Etnologia do Maranhão e sua relação com os rituais
dessa etnia. A metodologia usada é a análise bibliográfica e catalogação dos objetos da plumária
Ka’apor do Centro de Pesquisa de História Natural e Arqueologia do Maranhão. O referencial
teórico permite uma abordagem antropológica e artística, a partir de autores como a Balée e
Ribeiro.
Palavras-chave: Arte. Estética. Ka’apor. Plumárias.

Abstract: This article presents the result of the Scientific Initiation work plan linked to the project
Contemporary Indigenous Aesthetics: Canela and Ka'apor art in Maranhão, coordinated by Prof.
Dra. Larissa Lacerda Menendez. The purpose of this article is to present Ka’apor feathers as from
the cataloging of some objects that are part of the collection of the Research Center for Natural
History, Archeology and Ethnology of Maranhão and its relationship with the rituals of that ethnic
group. The methodology used is the bibliographic analysis and the cataloging of feather objects
from the Research Center for Natural History, Archeology and Ethnology of Maranhão. The
theoretical reference allows an anthropological and artistic approach, as from on authors such as
Balée and Ribeiro.
Keywords: Art. Aesthetic. Ka’apor. Feathers

INTRODUÇÃO
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No campo das Artes Visuais, as produções indígenas foram oficialmente reconhecidas a


partir da implementação da lei nº 11645/08, que institui a obrigatoriedade do ensino da História e
Cultura Indígena, Africana e Afro-Brasileira em todas as instituições de ensino, sobretudo por
meio das disciplinas de Letras, História e Artes Visuais. Essa lei está contextualizada no campo
das políticas de educação étnico-racial para combate ao racismo e às desigualdades sociais.
Atualmente, no Brasil, há 305 etnias, falantes de 274 línguas indígenas de diferentes
troncos linguísticos. As populações indígenas, embora protegidas por lei, sobretudo na
Constituição Federal, vivem em contextos de embates territoriais que, muitas vezes, ocasionam
em violência e morte das lideranças.
A história desses atos agressivos contra o povo Ka’apor é citada por Ribeiro (1922, p. 196)
quando foram registrados os relatos de lutas entre os indígenas e a população local, formada por
garimpeiros, madeireiros e trabalhadores da linha telegráfica, espalhada pelo imenso território dos
rios Turiaçu, Gurupi e Pindaré, por volta de 1911.
Um certo João Grande, agente da linha, perseguia atrozmente os índios,
organizando expedições contra suas aldeias e espetando a cabeça das vítimas,
homens, mulheres e crianças, nos postes telegráficos, como advertência para que
os índios não cortassem mais a linha. (RIBEIRO, 1922, p. 197)
Baleé (1984) aponta para registros históricos de escravidão e servidão deste povo, desde
o século XVII. No século seguinte a mineração e a borracha, além da implantação de linha de
telégrafo entre Belém e Maranhão, causariam mais confrontos e mortes na população ka’apor. Em
1912 os Ka’apor foram assassinados em uma emboscada preparada pelos trabalhadores da linha
de telégrafo. Foram convidados para um almoço e covardemente assassinados enquanto se
alimentavam (Cf. Baleé, 1984:46). Em 1920 mulheres e crianças Ka’apor foram assassinadas na
região do Alto Turi (Abreu e Ribeiro APUD Baleé, 1894:45) pelos exploradores de borracha,
copaíba e trabalhadores das linhas de telégrafo. Apenas em 1928 foi realizado o processo de
pacificação pelo Serviço de Proteção ao Índio.
Diante de um cenário desenhado com brutal hostilidade, é possível perceber que, no
decorrer da história do Brasil, os povos originários foram perdendo seu lugar de relevância,
tornando-se comunidades que estavam à margem da sociedade civil, muito embora, fossem
cidadãos de direito como todos os outros.
Com o intuito de que a sociedade não-indígena se conscientize da existência de diferentes
hábitos culturais, no território nacional, assim como se sensibilize a respeito de sua cultura, este
artigo e possibilita a visibilidade da cultura indígena do povo Ka’apor, a fim de divulgar as suas
produções artísticas. Assim, busca-se contribuir para quebrar estereótipos e revelar a riqueza e
complexidade de suas produções, considerando que existem diversas modalidades de expressão
destas artes: a cestaria, a cerâmica, tecelagem e arte plumária.
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No que diz respeito às artes plumárias, diversas etnias despertaram e ainda despertam a
admiração do público, seja por seu colorido intenso, ou por sua minuciosa elaboração. A arte
plumária dos grupos Tupi, que abrange os povos Tupinambá, Munduruku, e Ka’apor (na
atualidade) caracteriza-se por pequenas plumas associadas a tecidos. A plumária dos grupos
macro-jê, como os Karajá, Bororoe Kayapó utilizam longas penas caudais de araras e aves
aquáticas (Cf. RIBEIRO, 1996, p. 43).
Os Ka’apor (segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena, SESAI,2014),
somam 1863 pessoas falantes da língua ka’apor, tronco linguístico Tupi-Guarani, os quais habitam
a Terra Indígena Alto Turiaçu, ao norte do Maranhão (ISA, 2018)
A arte plumária dos ka’apor é reconhecida como uma das mais belas, sendo objeto de
acervo de diversos museus, como o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo, Museu Nacional, Museu do Índio, Museu Emílio Goeldi, Centro de Pesquisa em História
Natural e Arqueologia do Maranhão (Brasil), Museu Nacional de Etnologia de Leiden, na
Holanda, apenas para citar alguns exemplos.
Figura 1 - Plumária Ka’apor, exposição “Curt Nimuendaju e as tessituras indígenas no Maranhão”2019

Nota: Acervo do Centro de Pesquisa em História Natural e Arqueologia do Maranhão. Foto: Larissa Menendez.

A pesquisa

A pesquisa de iniciação científica do plano de trabalho “Arte e estética Indígena no


Maranhão: Povos Ka’apor”, pertence ao projeto de pesquisa “Estéticas indígenas: artes visuais
Canela e Ka’apor no Maranhão”, coordenado pela professora Dra. Larissa Menendez. Apresenta
resultados importantes acerca da arte plumária e aspectos culturais dos povos Ka’apor.

Essa é uma pesquisa de caráter bibliográfico, onde foram analisados textos da tese de
doutorado de William Balée “ The persistence of Ka’apor culture” de 1984, Além de textos de
Berta Ribeiro e Darcy Ribeiro como: “Arte plumária dos índios Kaapor” de 1957, e o texto da
Berta Ribeiro no catálogo da 17ª Bienal de São Paulo de 1983. E, ainda outros textos encontrados
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ao longo do levantamento bibliográfico sobre os Ka’apor. Fez parte, também, dessa pesquisa, a
análise do acervo técnico e de exposição do Centro de Pesquisa de História Natural e Arqueologia
do Maranhão - CPHNAMA. De onde foram escolhidas as peças plumárias para a construção da
ficha técnica, a qual fazia parte do plano de trabalho.

Uma breve descrição sobre o povo Ka’apor, eles estão localizados no interior do
Maranhão, mais precisamente na Terra Indígena Alto Turiaçu, a qual possui, segundo dados da
FUNAI, 5305 km quadrado. Um território que se estende pelos municípios de Centro novo do
Maranhão, Maranhãozinho, Centro do Guilherme, Zé Doca, Santa Luzia do Paruá e Araguanã.
Além de Possuírem uma população em torno de 1541 (IBGE, 2010) indígenas. E, sendo a sua
língua oficial o Ka’apor, proveniente do tronco linguístico Tupi-Guarani.

A plumaria Ka’apor

Em relação a plumária Ka’apor, durante essa pesquisa foi abordada a perspectiva dos
antropólogos Berta Ribeiro e Darcy Ribeiro, para se ter uma melhor compreensão acerca dessa
arte plumária.

A plumaria é um dos elementos artísticos dos indígenas que mais se destaca, seja pela
sua diversidade de formas e cores, presentes nos adornos elaborados, ou seja pela beleza que
impressiona a muitos. O que, segundo Ribeiro e Ribeiro (1957), pode ter iniciado com um impulso
estético com propósito de somente enfeitar o copo, teve como resultado a construção de uma
minuciosa e requintada técnica, com a utilização de penas e diversos outros matérias, que por fim,
criaram obras de artes que seriam capazes de competir a com beleza dos próprios pássaros. Com
isso, tem-se o que é chamado por Ribeiro e Ribeiro (1957) de a “verdadeira” arte plumária:

Entre esta utilização simplesmente apropriativa de elementos que em estado


natural já se recomendam como adôrnos e o desenvolvimento de uma verdadeira
arte, se impôe a elaboração de uma tecnologia adequada aos materiais plumários,
de todo um saber complexo, quase uma ciência, sôbre a fauna ornitológica e,
sobretudo, um apuramento de sensibilidade para as combinações de cores e os
arranjos de forma que só se alcança através do esfôrço continuado de gerações.
(RIBEIRO; RIBEIRO,1957, p.8).

O que também é observado sobre a plumária brasileira por Ribeiro e Ribeiro (1957),
para além de sua elaboração formal e estética, são as características que diferentes etnias
apresentam na elaboração das plumárias. Muita parte dessa construção é padronizada, sendo
possível ter técnicas iguais em diferentes povos, assim como essas técnicas são capazes de
diferenciar uma a uma das etnias. E são, também, capazes de dividir a plumária em dois grandes
grupos. O primeiro grupo trabalha com a técnica que associa a plumária com armações trançadas,
o que lhes atribuem uma imponência majestosa, mas deixando de lado aspectos sensíveis e um
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acabamento requintado. E o que caracterizar o segundo grupo é a associação de penas a tecidos


trançados, o que resulta em uma flexibilidade ao ser aplicada ao corpo. Além disso, as plumárias
desse segundo grupo, que exploram os efeitos cromáticos na construção das peças, além de
apresentarem sutileza e tamanhos pequenos, que exigem sensibilidade. E, segundo Ribeiro e
Ribeiro (1957), é dentro desse segundo grupo onde encontra-se a plumária Ka’apor.

Para Ribeiro e Ribeiro (1957, p.16), “O estilo plumário dos índios Kaapor se
caracteriza pelo gôsto do detalhe, a sensibilidade da composição cromática e o virtuosismo da
execução.” É nesse trecho que se pode entender o porquê da plumária Ka’apor ser colocada no
segundo grupo, dito antes por Berta e Darcy Ribeiro. E, para além dessas características, a sua
elaboração, minuciosa e requintada, se utiliza da técnica da colagem de penas para a realização
dos mosaicos, o qual é visível nas plumárias, como o Tembetá, colar feminino e testeira. Dessas
três peças plumárias citadas, apenas o Tembetá e o colar feminino foram analisados durante essa
pesquisa.

1.2 A plumária e a cultura Ka’apor

A cultura e a plumária Ka’apor estão diretamente relacionadas, ao passo que a


utilização de cada peça plumária está associada tanto ao dia a dia, quanto a datas festivas e rituais
dos Ka’apor. Não só o seu uso, com também, a sua elaboração é definida culturalmente. Como foi
compreendido durante essa pesquisa.

A elaboração da plumária, como já mencionada antes, tem como principal


característica a associação da plumagem com tecidos trançados e a colagem de penas para
obtenção do mosaico. Sempre prevalecendo o virtuosismo e técnica apurada. Essa parte remete ao
fazer da plumária, mas ela envolve, também, questões além dos materiais que são usados. Durante
a análise do texto de Berta Ribeiro sobre a plumária Ka’apor, para a o catálogo da 17ª Bienal de
São Paulo “Arte Plumária do Brasil” de 1983, foi verificado que há uma separação entre homens
e mulheres Ka’apor, referente a uso e a construção da plumária. Onde, segundo Ribeiro (1983), a
elaboração é artífice do homem Ka’apor. Mesmo colocando dessa forma, e sendo eles, homens
Ka’apor, os responsáveis por elaborar as mais belas plumárias, as quais são as peças com mais
destaque nos rituais. As mulheres também participam da produção dos objetos, mesmo não sendo
o seu “ofício”. Essa parte é apresentada no artigo “Conversações desassossegadas: diálogos sobre
coleções etnográficas com o povo indígena Ka’apor” de 2017:

O trabalho da cestaria e a elaboração da arte plumária é uma atividade


preponderantemente masculina, cabendo aos homens a elaboração dos mais
requintados objetos plumários (cocares, labretes, colar apito, colar feminino),
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embora tanto homens quanto mulheres elaborem alguns objetos plumários, como
braçadeiras (jiwapita rupihar) e brincos (nhami putir), enquanto que os cintos
(pitá) e as pulseiras (arará) são elaborados exclusivamente pelas mulheres.
(GARCÉS; FRANÇOZO; BROEKHOVEN; KA’APOR, 2017, p.721).

Essa divisão é encontrada, também, em relação ao uso da plumária. Fazendo parte,


assim, segundo Ribeiro (1983), o diadema (acangatar), Tembetá, colar apito, braçadeiras, brincos
e pulseiras, do traje masculino, durante os rituais Ka’apor. E, sendo o colar feminino, o pente de
madeira emplumado, brincos e pulseiras, parte do traje feminino.

1.3 Algumas das peças plumária

Para a construção dessa pesquisa foram selecionadas algumas das peças da arte
Ka’apor. A seleção se deu a partir dos objetos disponíveis no Centro de Pesquisa em História
Natural e Arqueologia do Maranhão. Entre elas estão o diadema, tembetá, colar-apito, colar
feminino, pente de madeira, brincos e a tipoia. Neste artigo será apresentado uma breve descrição
desses objetos, de início com as que fazem parte somente da indumentária feminina.

Colar feminino (figura 1), possui, geralmente, na lateral uma fibra de carauá, que
amarra as pequenas penas laranjas, as quais são retiradas do papo do tucano. Além disso, esse
colar apresenta, segundo Ribeiro e Ribeiro (1957), um medalhão ao centro, e na parte do colar que
toca o dorso da mulher Ka’apor, é encontrado um pingente, o qual é compõe um mosaico de penas
utilizando a técnica de colagem. E, ainda segundo os autores, esses elementos são ornitomorfos,
ou seja, apresentam formatos que lembram pássaros, caraterística muito presente na plumária
Ka’apor. Em relação ao uso, esse colar é exclusivo das mulheres, além de ser usado apenas durante
as datas festivas e rituais Ka’apor.

O pente de madeira (figura 2), outra peça que compõe a indumentária feminina, possui
em fios laterais com pequenas plumas o enfeitando, nesse pente encontrado no CPHNA-MA, as
plumas que enfeitam esses fios são amarelas, com pequenas penas pretas no final do fio. Segundo
Ribeiro e Ribeiro (1957), em pentes catalogados por eles, as penas que compunham esse fio
emplumado, eram, em geral, de três tipos de tucano, sendo laranja, amarelo e branco as tonalidades
dessas penas. E as penas pretas eram da ave de graúna. Outro ponto interessante a cerca desse
pente é que, nos estudos de Darcy e Berta Ribeiro de 1957, ele é citado como de uso tanto
feminino, quanto masculino. Mas, em estudos recentes, é possível encontrar a classificação desse
pente somente na indumentária feminina.
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Figura 1- Colar feminino

Foto: Lourdes Carvalho, 2019.


Fonte: Centro de pesquisa de História Natural e
Arqueologia do Maranhão (CPHNAMA)
Figura 2- Pente de madeira

. Foto: Lourdes Carvalho, 2019.


Fonte: Centro de pesquisa de História Natural e
Arqueologia do Maranhão (CPHNAMA)

Indumentária masculina:

Diadema (figura 3), é a plumária Ka’apor de maior destaque, tanto por sua
imponência, quanto pela sua representação simbólica. Como é explicado por Berta Ribeiro em seu
texto para a décima sétima bienal de São Paulo, “É um apanágio masculino o uso do belo
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acangatar, diadema de penas amarelas de japu (Ostinops decumanus), que simboliza o sol e que,
segundo sua tradição, foi dado a eles por Maíra, o criador. (RIBEIRO,1983, p.33). Além da pena
de japu na sua composição, o diadema é composto por penas de outras aves que são presas a uma
estrutura entretorcida de algodão, o que atribui ao diadema uma caraterística maleável.

O tembetá (figura 4), que também faz parte da indumentária masculina, é usado
durante o ritual Ka’apor de nomeação, onde ele possui grande destaque. Em sua forma é
constituída de uma grande pena de arara canga, e pequenas penas no mosaico formado por
colagem em sua ponta. Ele é usado, em uma forma menos elaborada, por crianças, pois, segundo
Ribeiro e Ribeiro (1957), é feito um furo abaixo do lábio inferior da criança Ka’apor, logo após a
queda do cordão umbilical.

O colar-apito (figura 5), composto por penas de arara canga com e um osso do cúbito
do gavião, usado como apito, na parte que seria um pingente, e, em suas laterais é composto por
penas do anambé azul. Assim como o diadema e o tembetá, o colar-apito é importante na
cerimônia de nomeação Ka’apor por ser usado, geralmente, pelo irmão da mãe da criança Ka’apor.

Figura 4- Diadema

Foto: Lourdes Carvalho, 2019.


Fonte: Centro de pesquisa de História Natural e
Arqueologia do Maranhão (CPHNAMA)

Figura 5- Tembetá
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Foto: Lourdes Carvalho, 2019.


Fonte: Centro de pesquisa de História Natural e
Arqueologia do Maranhão (CPHNAMA)
Figura 6- Colar-apito

Foto: Lourdes Carvalho, 2019.


Fonte: Centro de pesquisa de História Natural e
Arqueologia do Maranhão (CPHNAMA)

Plumária comum a mulheres e homens Ka’apor são os brincos (figura 6) de uso


cotidiano e ritualístico, segundo Ribeiro (1983) eles são, em geral, compostos por pequenas
penas do anambé-roxo.

Além dos brincos, a tipoia de algodão emplumada também é de uso comum a homens
e mulheres Ka’apor. Uma descrição mais precisa sobre ela é feita por Claudia Leonor López
Garcés, Mariana Françozo, Laura Van Broekhove e Valdemar Ka’apor:

Usada em bandoleira, a tipoia (ham) (MPEG 10591; NME 4016-288) é


uma peça de uso cotidiano, principalmente das mulheres, para carregar as
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crianças pequenas; os homens também a usam com a mesma finalidade. É


confeccionada pelas mulheres no tear manual, usando fios de algodão
(maneju) e leva penas de diversas aves, tais como as vermelhas, de arara
negras, de mutum, penas amarelas, de japu, e pequenas plumas azuis, do
passarinho azul, no caso de a tipoia ser de menino [...] (GARCÉS;
FRANÇOZO;BROEKHOVEN;KA’APOR, 2017, p. 721).

Figura 7- Brincos

Foto: Lourdes Carvalho, 2019.


Fonte: Centro de pesquisa de História Natural e
Arqueologia do Maranhão (CPHNAMA)

Figura 8- Tipoia

Foto: Lourdes Carvalho, 2019.


Fonte: Centro de pesquisa de História Natural e
Arqueologia do Maranhão (CPHNAMA)

1.4 Plumária e ritual Ka’apor


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Outro aspecto relevante, encontrado durante esta pesquisa, é em relação ao uso da


plumária e os rituais Ka’apor, pois, as plumárias estão presentes durante a realização destes. Na
maior das vezes, ela é parte importe da deles.

O ritual analisado durante este estudo foi o de nomeação, o qual pode coincidir com
outros rituais como o de iniciação da menina Ka’apor (menina-moça), e o rito de iniciação do
menino Ka’apor, e outros. Para se chegar até esse momento do ritual de nomeação, existem uma
série de restrições que os pais da criança passam, o primeiro é a couvade, segundo Balée (1984),
é um período de restrições em que os pais de uma criança Ka’apor recém-nascida, passam do
nascimento até a queda do cordão umbilical. Durante esse período, os pais permanecem reclusos
em um salão de isolamento (kapy). Além de se isolarem, os pais não podem consumir carne de
qualquer animal que não seja de jabuti, e comer farinha de mandioca. Em relação a alimentação,
a mãe da criança fica nesse estado até a nomeação, enquanto o pai é liberado logo após a queda
do umbigo, mas ele não pode comer de tudo. Não só essas restrições, os pais também não podem
tomar banho de água de rio, ficando a serviço dos membros da família a busca de água para o
banho. (BALÉE,1984, p.239).

Essas restrições segundo Balée (1984), interfere diretamente na rotação das zonas de
caça, já que os pais deixam de consumir carnes durante um tempo. E, para além dessa relação,
essas restrições são justificadas, pois se não forem realizadas, podem ocorrer malefícios ao bebê
Ka’apor, como é relatado na dissertação de William Balée, “O chefe do local 1 atribuiu a morte
do filho de três anos da sua filha ao genro ter tomado um banho no riacho apenas oito dias após o
nascimento do bebê.” (BALÉE, 1984,p.240).

Logo após essas restrições, é se esperado o tempo em que a criança já pode ser
nomeada. Segundo Balée (1984), o período para que isso ocorra entre seis a um ano de idade.

Para Andrade (2009), esse período pode representar, assim como em outros aspectos
da vida do Ka’apor, um constituinte importante do indivíduo nessa sociedade. Ele coloca, também,
que a criança Ka’apor apresenta determinados comportamentos que são índices de que é hora dela
passar pelo ritual de nomeação:

[...] quando a criança começa a apresentar os primeiros sinais de habilidades


motoras - tais como: wata (ele anda); wapik (ele senta); jumumbe (ele se agacha;
ele se dobra) - que ela está apta a receber um nome, ou ainda, a passar pelo rito
de nominação. (ANDRADE, 2009, p.103).
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Com a chegada da nomeação, é o momento em que as plumárias mais belas são


vestidas pelos Ka’apor. Esse momento de cerimonia é chamando de festa do caium (vinho de
caju), como dito antes, as vezes outros ritos são realizados juntos.

As peças plumárias que mais se destacam durante essa festa do cauim são: Colar
feminino, colar apito, diadema e o Tembetá. Sendo o Colar apito um dos mais importantes para a
cerimônia de nomeação, o qual é usado pelo padrinho da criança Ka’apor. Geralmente, o padrinho
é o irmão da mãe.

Conclusão

A princípio, a realização dessa pesquisa, possibilitou, o aprendizado sobre a arte e


cultura dos indígenas Ka’apor pois, esta temática é abordada na disciplina na graduação de
Licenciatura em Artes Visuais, da Universidade Federal do Maranhão, denominada “Arte
Indígena, Africana e Afro-brasileira”. Constatou-se que a pesquisa possibilitou o aprofundamento
a respeito do tema, contribuindo para a formação do discente em Artes Visuais, que deverá
lecionar conteúdos referentes às artes indígenas no currículo do Ensino Básico.

Verificamos que há uma especificidade da plumária Ka’apor que faz com que seus
objetos sejam admirados e sejam parte de coleções de museus. A partir do conhecimento de seus
rituais, verificamos também a relação do uso de colares, acangataras com o batismo das crianças,
constatando-se que seu uso é intrinsecamente relacionado à cultura e suas dinâmicas.

Além disso, essa pesquisa proporcionou a vivência em espaços de estudo e pesquisa,


exteriores a Universidade. Como exemplo destes lugares, tem-se o Centro de Pesquisa em História
Natural e Arqueologia do Maranhão, o qual é, também, um dos pontos fundamentais para os
resultados deste estudo. A participação no Grupo de Estudos em Memória, Artes e Etnicidade
também contribuiu para as reflexões apresentadas neste artigo. Os dados deste estudo foram
apresentados na I Jornada de Pesquisa e Extensão em Artes Visuais na Universidade Federal do
Maranhão, no III Congresso Internacional Pueblos Indígenas da America Latina, em Brasília e no
III Simpósio Internacional Interdisciplinar em Cultura e Sociedade.

O presente artigo deverá contribuir também para o conhecimento das terminologias


que designam a arte plumária indígena, vulgarmente chamadas de “cocares”. Este estudo
específico sobre os Ka’apor é um importante meio de divulgação da cultura indígena e subsidia
as práticas docentes do ensino das artes indígenas.
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Bibliografia

BALÉE, William. The persistance of Ka’apor culture. Tese (Doutorado em Antropologia),


Columbia University, 290f. 1984.Arts and Sciences, Columbia University, New York, 1984.
DORTA, Sonia Ferraro; CURY, Marília Xavier. A plumária indígena Brasileira no Museu de
Arqueologia e Etnologia da USP. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,2000.
GARCÉS, Claudia L. López; FRANÇOZO, Mariana; BROEKHOVEN, Laura Van; KA’APOR,
Valdemar. Conversações desassossegadas: diálogos sobre coleções etnográficas com o povo
indígena Ka’apor---Troubled conversations: dialogues about ethnographic collections with the
Ka’apor indigenous people. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 3, p.
713-734, set.-dez. 2017.
MENDES DE ANDRADE, José Maria. Ipy’a pe ukwa katu te’e – ele sabe por si mesmo. Uma
etnografia do saber-fazer cotidiano e ritual na formação da pessoa ka‘apor. Dissertação de
Mestrado do Programa de Pós-graduação em Ciências sociais, Departamento de antropologia da
Universidade Federal do Pará, 2009
RIBEIRO, Berta. Plumária dos índios urubus-Kaapor. In: 17ª BIENAL DE SÃO PAULO: Arte
Plumária Brasil. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1983.
RIBEIRO, Darcy; RIBEIRO, Berta G. Arte plumária dos índios Kaapor. Rio de Janeiro: Seikel,
1957.
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AS TECNOLOGIAS ASSISTIVAS COMO FERRAMENTAS NO PROCESSO ENSINO-


APREDIZAGEM PARA CRIANÇAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA
(TEA) NA EDUCAÇÃO INFANTIL

ASSISTIVE TECHNOLOGIES AS TOOLS IN THE TEACHING-LEARNER PROCESS


FOR CHILDREN WITH AUTISM SPECTRUM DISORDER (ASD) IN EARLY
CHILDHOOD EDUCATION

Joyce Cordeiro Mendes


Graduanda de Pedagogia FACAM
Marta da Silva Costa
Graduanda de Pedagogia FACAM
Orientadora: Mestra Cristiane Alvares Costa
FACAM
Eixo 1 Arte, Tecnologia E Educação

Resumo: O presente estudo aborda o uso das Tecnologias Assistivas como apoio ao processo de
ensino-aprendizagem para crianças da educação infantil que sejam diagnosticadas no Transtorno
do Espectro do Autismo. Ressalta-se a relevância das Tecnologias Assistivas como ferramenta
que valoriza a inclusão e a acessibilidade no ambiente escolar, ferramenta esta que alia tecnologia
e inclusão como agente facilitador para crianças com necessidades especiais. Tem como objetivo
pesquisar a contribuição das Tecnologias Assistivas no processo ensino-aprendizagem para
crianças com Autismo na Educação Infantil. Para fundamentar o tema em questão busca-se
embasamento teórico nos autores Rotta (2006), Cunha (2014), Braga (20018), entre outros.
Quanto a legislação estamos pautados em Brasil (2017), Brasil (2008) ,ECA ( 1990),entre outros.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica. Podemos concluir que as Tecnologias Assistivas
favorecem meios para que pessoas com deficiência possam tornar-se mais autônomas e possibilita
que a criança com Autismo tenha melhor desenvolvimento no processo ensino-aprendizagem,
como uso do Ipad, jogos que venham favorecer o raciocínio, coordenação, atenção, concentração,
leitura, escrita, musicalidade, entre outros.

Palavras-chave: Tecnologias Assistivas, Autismo, Aprendizagem, Inclusão

Abstract: The present study addresses the use of Assistive Technologies as a support for the
teaching-learning process for children in early childhood education who are diagnosed in Autism
Spectrum Disorder. It is emphasized the relevance of Assistive Technologies as a tool that values
inclusion and accessibility in the school environment, a tool that combines technology and
inclusion as a facilitator agent for children with special needs. It aims to research the contribution
of Assistive Technologies in the teaching-learning process for children with Autism in Early
Childhood Education. To support the theme in question, theoretical basis is sought in the authors
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Rotta (2006), Cunha (2014), Braga (20018), among others. Regarding the legislation we are based
in Brazil (2017), Brazil (2008) ,ECA ( 1990), among others. This is a bibliographic research. We
can conclude that Assistive technologies favor ways for people with disabilities to become more
autonomous and enables children with Autism to have better development in the teaching-learning
process, such as ipad use, games that encourage reasoning, coordination, attention, concentration,
reading, writing, musicality, among others.
Keywords: Assistive Technologies, Autism, Learning, Inclusion

INTRODUÇÃO
Este trabalho abordou o uso das Tecnologias Assistivas ( T.A) como apoio ao processo de
ensino-aprendizagem para crianças da Educação Infantil diagnosticadas no Transtorno do
Espectro do Autismo (TEA). Ressaltando a relevância das Tecnologias Assistivas como
ferramenta que valoriza a inclusão e a acessibilidade no ambiente escolar, ferramenta esta que alia
tecnologia e inclusão como agente facilitador para crianças com necessidades especiais. Neste
sentido, investigou-se uso das Tecnologias Assistivas como apoio ao processo de ensino-
aprendizagem para crianças da Educação Infantil.
O presente trabalho surgiu das inquietações acerca de práticas pedagógicas que
atendam às necessidades de crianças com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), práticas
estas que estejam voltadas para o processo de ensino-aprendizagem e que promovam a educação
inclusiva.
Ressalta-se a relevância das Tecnologias Assistivas- T.A como ferramenta que valoriza a
inclusão e a acessibilidade no ambiente escolar, ferramenta esta que alia tecnologia e inclusão
como agente facilitador para crianças com necessidades especiais. Neste sentido, partimos do
seguinte Problema de pesquisa: De que forma as Tecnologias Assistivas podem servir como
ferramentas no processo ensino-aprendizagem para crianças com Autismo na educação infantil?
Para desenvolver a pesquisa, inicialmente partiu-se do seguinte objetivo geral pesquisar a
contribuição das Tecnologias Assistivas no processo ensino-aprendizagem para crianças com
TEA na Educação Infantil. Para alcançar este objetivo, traçou-se os específicos: verificar os
possíveis entraves que dificultam o uso das Tecnologias Assistivas nas escolas; conhecer as
Tecnologias Assistivas que facilitam a aprendizagem de crianças com TEA; observar de que forma
ocorre o processo de inclusão do aluno com Transtorno do Espectro do Autismo na Educação
Infantil.
Para fundamentar o tema em questão buscou-se embasamento teórico nos autores Rotta
(2006), Cunha (2014), Braga (20018), entre outros. Quanto a legislação estamos pautados em
Brasil (2017), Brasil (2008) ,ECA ( 1990),entre outros. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica.
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Pretende-se futuramente ampliar este estudo para uma pesquisa de campo, para que assim
possamos ampliar as discussões e contribuições acerca do tema.
Assim para melhor compreensão, o presente trabalho está estruturado em seis seções. A
primeira seção aborda quanto a introdução, problematização, objetivos da pesquisa. A segunda
seção trata do Transtorno do Espectro Autista (TEA) na Educação Infantil. A terceira seção aborda
as Tecnologias Assistivas no processo de inclusão. A quarta seção refere-se como acontece o
processo de aprendizagem de crianças autistas. A quinta seção direciona-se quanto as Tecnologias
Assistivas como ferramentas no processo ensino-aprendizagem para crianças com transtorno do
espectro autista (TEA) na educação infantil. Por fim na sexta seção, tratamos das considerações
finais.

2-TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA)


O termo “autismo”, foi pela primeira vez usado, em 1911, pelo psiquiatra suiço Eugen
Bleudler (CUNHA, 2014) quando referia-se a perda de contato da realidade, atribuída a
característica de pacientes em quadro de esquizofrenia.
Em 1943, o médico austro-húngaro Leo Kanner (DUMAS, 2011), ao examinar 11 crianças
com comportamentos atípicos, constatou que se tratava de “uma condição que se diferencia
significativamente de tudo o que foi escrito na literatura até a data. Kanner foi o primeiro
profissional a descrever o autismo e diferencia-lo da esquizofrenia (BRAGA, 2018). Segundo
Dumas, Kanner definiu que as 11 crianças estudadas por ele, apresentavam solidão, ou seja,
preferiam o isolamento, tinham dificuldades na interação social, e insistência obsessiva na
infância, ou seja, apresentavam comportamentos que demonstravam uma diferença entre idade
cronológica e idade mental.
Um ano após os relatos de Kanner (BRAGA, 2018), o psiquiatra e pesquisador austríaco,
Hans Asperger também identificou características pertinentes em um grupo de crianças, em que
apresentavam falta de capacidade empática, baixa aptidão para relações sociais e vínculos de
amizade, foco em interesses repetitivos e movimentos pouco coordenados. Como o pesquisador
Asperger não tinha o hábito de viajar e escreveu os seus relatos em alemão, diante disso, suas
pesquisas só ganharam destaque por volta de 1981 (CUNHA, 2014), com um trabalho realizado
pela médica inglesa Lorna Wing.
Paralelo a história do autismo, o conceito desta condição passou por algumas
modificações. Na primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais
– DSrM-I, da Associação de Psiquiatria Americana, em 1952, o autismo era descrito como sintoma
da reação esquizofrênica. Em sua segunda edição, a DSM-II, publicada no ano de 1968, o autismo
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deixa de ser uma reação da esquizofrenia e passa a ser considerada um tipo especifico de
esquizofrenia, com a nomenclatura Esquizofrenia Tipo Infantil (APA, 1968).
Segundo Braga(2018), somente na década 1980, com os avanços da Neurociência, diversos
transtornos passaram a ser associados a origem biológica, incluindo o Autismo que a ser
classificado como Transtorno Global do Desenvolvimento – TGD, na terceira edição do DSM-III,
em 1987.
Em sua mais atual edição, a DSM-V(2013), o autismo recebe a nomenclatura Transtorno
do Espectro do Autismo, configurado em capítulo próprio, classificado dentro dos Transtornos do
Neurodesenvolvimento. Neste documento, o autismo passa a ser visto com espectro, por ser um
transtorno com um conjunto de condutas, com diferenças de individuo para individuo, devendo
ser caracterizado com nível 1, nível 2 e nível 3, em que “a gravidade baseia-se em prejuízos na
comunicação social e em padrões restritivos ou repetitivos de comportamento” (DSM-V, 2013.
p.50).
Atualmente, tem surgido várias pesquisas sobre as principais características das crianças
com autismo, BRAGA destaca que estas crianças “ tem sinais com possíveis atrasos quando
comparados, quando comparado com crianças em idade semelhante”. O autor diz que em
observações fora verificado que essas crianças fazem repetição da fala de outras pessoas
A ONU reconhece em 2006, o autismo como deficiência, passando a ter proteção junto a
Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência – CDPD, no Brasil a Convenção foi
sancionada, em 2008, como ementa constitucional. Vale ressaltar que a Convenção, em seu artigo
24, preconiza total liberdade ao acesso à educação inclusiva, em classe regular a toda criança e
adolescente com autismo.
No cenário jurídico brasileiro o Autismo ganha prestígio e benefícios com a promulgação
da Lei Nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, Instituindo a Política Nacional de Proteção dos
Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo. Lei esta que visa assegura a pessoa
com Autismo o pleno exercício de seus direitos básicos como saúde, educação, trabalho lazer entre
outros, o que nos leva a destacar o artigo 3º quer garante livre acesso a educação e ao ensino
profissional.
A forma como o autismo é visto na sociedade acontece por causa dos avanços em pesquisas
e estudos sobre a temática, resultando num olhar mais inclusivo e democrático para pessoas com
espectro do autismo e suas famílias, que devem ser fortalecidas e instruídas. Famílias estas que
são a base para o desenvolvimento e a inclusão destes indivíduos na sociedade.

2.1 Transtorno do Espectro Autista (TEA) na Educação Infantil


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Em se tratando da criança no Espectro do Autismo –TEA,na educação infantil, há que se


fazer um caminho de observações e cuidados, para que se possa descobrir primeiro como adaptar
o currículo a suas especificidades.
Sobre a Educação Infantil DEHEINZELIN ,afirma :

.. acolhemos crianças no tempo e no espaço da creche para que elas se sintam seguras e
incluídas no afeto de seus pares[...]. Um espaço de explorações e descobertas atende à
necessidade de cuidados específicos e ao desejo de progressiva autonomia que
caracteriza a vida do aprendiz... (DEHEINZELIN 2018, p 32).

O autor explora a ideia de educação infantil de forma geral que nos leva a um comparativo
da ideia de educar uma criança com autismo, que deve ser, primeiramente, pautada no olhar
atencioso a suas individualidades e necessidades especificas, auxiliando o mesmo a desenvolver
sua autonomia. Pois quando o educador está predisposto a estimular sua autonomia ele estará
visando melhor qualidade de vida e dignidade a esta criança assim como as demais.
Segundo Aranha (1996), a educação não pode ser concebida fora de um contexto histórico-
social existente, pois a pratica social vivenciada pelo indivíduo é o ponto inicial da ação
pedagógica.
Para Veiga (1994, p.16), a prática pedagógica é “uma pratica social orientada por objetivos,
finalidades e conhecimentos, e inserida no contexto de pratica social. A pratica pedagógica é uma
dimensão da pratica social”.
Neste sentido, tratando-se do primeiro contato escolar que este discente vai ter que muitas
vezes é reconhecido na escola que esta criança possa ter autismo, é de suma importância esse
processo pois o discente com TEA tem problemas na comunicação, na socialização e no
comportamento, que pode ser diagnosticado entre os dois e três anos de idade, por isso nós
educadores precisamos estar atentos, humanizados, capacitados para lidar com TEA na Educação
Infantil
Cunha (2017, p.57), aborta que; ” A prática escolar é uma grande oportunidade para
profissionais e familiares construírem um repertorio de ações inclusivas para o aprendente com
autismo”. Neste sentido, o autor destaca a importância da pratica escolar tanto aos educadores
quanto a família, para tratarmos das ações inclusivas para o autista.
Uma pratica inclusiva deve iniciar cedo, tanto ao educador, quanto ás famílias, que muitas
vezes buscam respostas na escola, tem-se aqui responsabilidades compartilhadas em níveis
pedagógico, inclusivo e de eternos aprendentes.

2.2 Autismo e Atuação Docente


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Para ressaltar a atuação do docente frente a um diagnóstico de Autismo em seu alunato


devemos, primeiramente, fazer uma ressalva a história da Educação Inclusiva no Brasil sobre o
prisma dos meios legais. A Constituição Federal Brasileira de 1988 foi o primeiro documento que
expressou em seus autos normas que garantiam os direitos da pessoa com deficiência.
Porém, somente no ano de 2000 fora apresentado o primeiro texto da Lei Brasileira de
Inclusão (na época chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência), e que teve retificação
somente em 2008, na Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
sancionada em 2015 como Lei Brasileira de Inclusão – LBI. Este documento define as pessoas
com deficiência como “aquelas que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”
(BRASIL,2015), então a sociedade pode obter um olhar inclusivo diante das diversidades num
vislumbre de que o diferente pode estar incluso, onde quer que seja em estado de direito.
Com a deflagração da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva inclusiva
observa-se que a escola é um espaço direcionado para todos, com ou sem deficiência:
[...] tem como objetivo o acesso, a participação e a aprendizagem dos alunos com
deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/ superdotação nas
escolas regulares, orientando os sistemas de ensino para promover respostas às
necessidades educacionais especiais. (MEC/SEESP- Portaria n° 948.)

E certo que ainda a uma carência de professores que atuem com excelência no atendimento
a pessoa com deficiência, pois desde a criação da LBI percebeu-se que o atendimento é
inversamente proporcional a demanda de pessoas que necessitam de acompanhamento e serviços.
Mas muito além das medidas institucionais pela Convenção, tais como o acesso à saúde,
educação, trabalho, cultura, lazer, informação, entre outros, o texto da Lei Brasileira de
Inclusão baseou-se na carência de serviços públicos existentes no Brasil e nas demandas
da própria população. (BRASIL, 2015,p.12)

Com o atendimento a criança com TEA não é diferente, ainda a muitos profissionais que
pensam que toda pessoa com autismo não olha nos olhos, não interagem, é agressiva e não gosta
de socializar-se, criando estereótipos da patologia, quando não é verdade, pois TEA tratasse de
um Espectro e se manifesta de formas e sintomas diferenciados, de indivíduo para indivíduo.
Ainda temos um caminho a trilhar pela busca de informações, as pesquisas sobre esta
temática vêm crescendo desde a década de 80, basta que estejamos predisposto a explorar novos
conhecimentos. O professor deve ter ciência que o primeiro passo para que trabalhe no
atendimento criança com TEA, é procurar conhecer como o autismo funciona, através de cursos
e formações acadêmicas e continuada. Este é principal profissional no atendimento na escola e
tem um papel determinante no processo ensino aprendizagem do aluno com TEA, desde a
recepção até o dia a dia em sala de aula, o professor é que vai efetivar o processo de inclusão.
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3- TECNOLOGIAS ASSISTIVAS NO PROCESSO DE INCLUSÃO

Ultimamente tem se falado muito em educação inclusiva, e a partir de então, novas


pesquisas vem surgindo nos mostrando a pertinência de cada vez mais estudarmos sobre a
temática, visto que a ideia de igualdade traz possibilidades imensuráveis para mudança da
sociedade e reconhecimento da igualdade social.
Porém para que a inclusão seja consolidada, há uma utilidade de adaptação do espaço
escolar, como adaptações de materiais pedagógico, da oferta dos espaços, bem como a capacitação
dos recursos humanos. Sabendo que este último é uma necessidade de grande relevância, este
trabalho, porém, visa vislumbrar a importância das novas tecnologias, que também são
denominadas tecnologias assistivas e que se tornaram um tipo de recurso facilitador nas mais
diversas necessidades que uma criança possa obter.
O termo Assistive tecnology, no Brasil surge como Tecnologia Assistivas, criado em 1988
como elemento jurídico na área de legislação norte americana, conhecido como public Lan 100-
407, junto a outras leis, que asseguram direitos aos cidadãos com deficiência nos Estados Unidos
da América. No Brasil, as Tecnologias Assistivas passaram a ser implantadas em 16 de novembro
de 2006, pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da Republica – SEDH/PR,
através da portaria nº142 que institui o Comitê de Ajudas Técnicas (CAT), que tem como principal
objetivo “apresentar propostas de políticas governamentais e parcerias entre a sociedade civil e
órgãos públicos referentes a área de tecnologias assistivas”.
Esse recurso também titulado ajudas técnicas, ou tecnologias de apoio, ou de suporte ou
de autoajudas, é conceituado pelo Comitê de Ajudas Técnicas (CAT) (2007) como:
“ uma área de conhecimento, de característica interdisciplinar, que engloba produtos,
recursos, metodologias, estratégias, praticas e serviços que objetivam promover a
funcionalidade, relacionada a atividade e participação, de pessoas com deficiência,
incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade
de vida e inclusão social.” (CORDE – Comitê de Ajudas Técnicas – ATA VII)

As Tecnologias Assistivas são classificadas por Bersch (2006) nas seguintes modalidades:
auxílios para a vida diária e vida prática, materiais pedagógicos e escolares especiais;
comunicação aumentativa e alternativa; recursos de acessibilidade ao computador; adequação
postural (mobilidade e posicionamento); recursos para cegos ou pessoas com visão subnormal;
recursos para surdos ou pessoas com déficits auditivos; projetos arquitetônicos para acessibilidade
dentre outros.
Para Torres, Mozzani e Alves (2002), as Tecnologias Assistivas são para algumas pessoas
como complementos que permitem melhor desempenho em suas atividades e para outras são de
suma importância ao servirem como suporte no desenvolvimento de seus intelectos para poder se
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expressar, tanto nas condições educacionais como nas demais interações sociais. Esse recurso
serve, para muitos, como suporte para melhor qualidade de vida.
Marzini e Delibirato (2007), se refere as tecnologias assistivas como recursos pedagógicos
adaptados e que estes podem ser considerados elementos que permitem compensar uma ou mais
limitações funcionais motoras, sensoriais ou mentais da pessoa com deficiência, e afirma ainda
que as tecnologias assistivas tem o objetivo de permitir a superação das barreiras da comunicação
e da mobilidade, dentre outros.
Podemos verificar que o autor se refere as tecnologias assistivas, dentre suas várias
denominações, como recursos adaptados ou seja, quando há um aluno ou criança com deficiência
em sala de aula, os recursos disponibilizados devem ser adaptados as suas necessidades,
proporcionando um aprendizado mais significativo e de qualidade.
Para tanto, Reganham (2006) afirma que a possibilidade de adaptação dos recursos é
relevante, pois favorece um ensino e aprendizado correspondente as condições dos alunos, o que
pode garantir o êxito da integração do aluno com deficiência, no ensino regular.

3.1 Possíveis entraves que dificultam o uso das Tecnologias Assistivas nas escolas

As tecnologias têm um papel significativo no contexto social em que vivemos. Ela nos
auxilia para resoluções de problemas sem termos que sair de casa, usando a internet por exemplo,
acesso a um site, etc.
Mas dominar esta ferramenta e seus inúmeros utensílios não é tarefa fácil a todos, seja em
casa, seja no serviço. Quantas donas de casa, tem dificuldades em pôr um simples DVD para
passar um filme!!! Assim na educação não é diferente.
Professores, deparam-se com o avanço das Tecnologias e precisam adaptar-se, mas essa
adaptação não é tão fácil a todos e precisa ser compreendida, observada de acordo com as
limitações frequentes em alguns docentes.
Kenski (2007), destaca que as tecnologias midiáticas sozinhas, não são os únicos
responsáveis pelo processo de aprendizagem, e ressalta que tecnologia e educação são
indissociáveis. Nesse sentido, percebe-se que as tecnologias ajudam, favorecem o aprendizado,
mas não são as únicas responsáveis pelo aprendizado.
Mas quando trata-se do o uso das Tecnologias Assistivas nas escolas, temos um papel
importante e buscar formação adequada para tais demandas.
Prieto (2016), destaca que a formação continuada do(a) docente parte do compromisso dos
sistemas educacionais de forma comprometida com o ensino, sendo de qualidade e que possa
assegurar propostas e práticas de ensino que venham atender as necessidades dos discentes com
ou sem deficiência. Neste sentido, não é responsabilidade única do professor, mas compartilhadas
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com seu compromisso educacional e social em que o educador precisa de suporte técnico que
venham suprir tais necessidades.
Segundo Bersch ( 2007), ele aponta que as Tecnologias Assistivas apontam algumas
modalidades como: auxílios para a vida diária, comunicação aumentativa e alternativa, materiais
pedagógicos e escolares especiais, entre outros. Neste sentido, o autor classifica em várias
modalidades, o que nos faz perceber o quanto precisamos buscar entendimento e como utilizar
cada recurso.
Desta forma, percebe-se alguns entraves nesse sentido, pois só a formação realizada pelos
sistemas não resolvem, precisa-se de imobiliário adequado aos usuários que são os discentes,
investimento público para manter os equipamentos funcionando e substituindo quando há
necessidade, capacitação aos docentes, internet, wifi disponibilizado aos docentes e discentes, et...
De acordo com suas especificidades, são muitos os entraves que os docentes possuem que
dificultam o uso das Tecnologias Assistivas nas escolas.
Vale ressaltar que não é uma situação generalizada, que em muitos municípios e estados
possuem atendimento de forma adequada, mas em alguns locais, ainda temos esta realidade de
entraves para um trabalho eficaz. Só a boa vontade do docente em pesquisar os melhores
aplicativos, softwares, não resolve a situação.

4- PROCESSO DE APRENDIZAGEM DE CRIANÇAS AUTISTAS

A educação de uma criança com autismo é tão relevante quanto em qualquer criança,
mesmo com todos os entraves que possa ocorrer em cada indivíduo a busca pela sua independência
deve ser um dos principais objetivos, porem o educador deve estar ciente que esta é uma evolução
progressiva, não devendo esquecer que seu trabalho deve estar em comum parceria com as
famílias. Carothers (2004), diz que há dois ambientes fundamentais para se desenvolver a
aprendizagem de uma criança no espectro do autismo, são elas: a escola e a casa. Ou seja, o
ambiente escolar deve ser a extensão do ambiente familiar, e vice versa.
No ambiente familiar a criança tem toda sua comodidade de interagir com as mesmas
pessoas todos os dias, pois a família é a mediadora para que o processo de socialização aconteça,
mas é na escola que vai desenvolver a habilidade de interação social de forma mais ampla, porem
essa é uma das maiores dificuldades para uma criança no espectro, o que Braga (2018), vem
confirmar quando diz que comunicação social “é um dos principais pontos observados como
sinalizadores para o espectro do autismo”. Diante disso, o educador pode encontrar em sala de
aula resistência desse individuo em interagir “...nesse sentido sua tendência natural será a de
afastar-se dos grupos de convivência” (BRAGA, 2018), para tanto o educador deve estar atento a
fazer observações e intervenções para que o mesmo esteja envolvido em todas as atividades
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realizadas, buscando sempre adaptar à realidade de cada situação, através de jogos de interação,
rodas de conversa, exposições, leituras, aulas com materiais sólidos e entre outras metodologias.
Porem a interação social não é o único entrave que uma criança com autismo enfrenta,
pode apresentar atraso na fala, dificuldade de aprendizagem, ausência de atenção, dificuldade em
mudança em sua rotina entre outros, e todos os esses sintomas devem ser observados buscando
uma melhor adaptação. Diante disso, Bossa e Baptista afirma, em seu livro Autismo e educação,
que “a importância do compromisso ético, da articulação dos membros da equipe de trabalho e,
sobretudo, para o desenvolvimento da capacidade de problematização que emerge a partir das
tentativas de soluções de problemas. É com a problematização que nascem a disposição de busca
de compartilhamento do saber [...]” (BOSA, BAPTISTA, 2002, P.16)
O autor acredita que a escola deve estar disposta a estimular a criança a resolver problemas
do cotidiano, para que a mesma possa se perceber como agente participante, e essa é uma estratégia
de aprendizagem sobre a dinâmica da socialização, levando-a a compreender a si mesmo e a seus
pares, é o que o autor chama de “movimento humilde de olhar a realidade também sob a óptica do
vizinho”.

4.1 Metodologias\técnicas para a aprendizagem de crianças autistas

Com o avanço de pesquisas, existem diversos recursos que proporcionam melhor


qualidade na comunicação e autonomia da pessoa com TEA. O importante é que o profissional
que esteja predisposto a trabalhar com esse público esteja munido de informações, esteja
predisposto a adequar-se e qualificar-se, conhecer melhor o Transtorno do Espectro Autista, além
de muitos momentos precisar exercitar a empatia para melhor entender a criança com TEA.
De acordo com Carothers e Taylor (2004), existem algumas técnicas que têm certa eficácia
para a aprendizagem de crianças autistas. São as técnicas de aprendizagem que se utilizadas de
maneira adequada podem fazer muita diferença na vida dessas crianças:
 Modelagem através de gravação de vídeo: quando uma criança com TEA não
desenvolve uma habilidade ou apresenta dificuldade para faze-la, é gravado um vídeo
de uma outra criança que desenvolve essa habilidade, e esse vídeo é repassado a
primeira criança quantas vezes for necessário, criando um entendimento de
assimilação trabalhando a repetição para melhor entendimento.
 Rotina de atividades pictográficas: para melhor entendimento da realização de
tarefas cria-se a coleção de várias ilustrações (fotos, desenhos, entre outros) dispostas
em estágios de determinada tarefa, para que a criança possa executar a tarefa
independentemente. Essa é uma técnica que além de ser utilizada na escola, é válida
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para outros ambientes como em atividades domésticas e outros locais frequentados


pelo mesmo.
 Participação e orientação de colegas: nessa técnica crianças homotípicas são o
modelo de referência para as crianças com autismo, esta realiza uma atividade
funcional sendo observada por aquela, na ambiente escola. O autor destaca que esta
técnica ajudou as crianças no espectro a realizar atividades
como pegar um livro na biblioteca, comprar itens em um bazar e atravessar a rua.

Os pesquisadores afirmam que essas técnicas apresentaram eficácia em muitos casos de


crianças com autismo, mas ressalta que é de fundamental importância a participação da família,
executando tais técnicas em casa com ajuda de parente e vizinhos como modelo de
comportamento, de habilidades e tarefas. Podemos perceber que as técnicas acima citadas
trabalham a constante observação dos seus pares e o trabalho por repetição, levando ao maior
entendimento das dinâmicas do dia a dia, mesmo funcional, de uma criança que esteja nessa
condição.
Existe um recurso muito utilizado em escolas onde não há tantos recursos financeiros, são
os cartões de comunicação dispostos com figuras, palavras e letras, em tamanho adequado para
trabalhar a faixa etária a qual pretende-se atender, são utilizados pela pessoa com TEA para
expressar seus desejos e/ou para trabalhar seu aprendizado.
Diante disso, podemos inferir que a família e a escola têm responsabilidade compartilhadas
sobre sua aprendizagem, devendo estes estarem predisposto a observar e ensinar de forma mais
coerente, e para isso precisam estar atentos em pesquisas, formações e estudos constantes. Pois ao
transpormos a ideia aqui apresentada sobre técnicas que aprimorem a execução de tarefas do
cotidiano para a realidade que é o processo de ensino-aprendizagem, da mesma forma, deve-se
trabalhar a repetição, o uso de comparações, a insistência em socializar-se com seus pares e o meio
que vive e, acima de tudo, a busca por novas técnicas.

5-CONTRIBUIÇÃO DAS TECNOLOGIAS ASSISTIVAS NO PROCESSO ENSINO-


APRENDIZAGEM PARA CRIANÇAS COM TEA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Atualmente vivemos em um processo constante de inclusão de crianças com deficiência


no ensino regular, demandando diariamente uma gana de esforço por parte de escola e família
para que estes sejam atendidos da melhor forma possível em suas necessidades especiais.
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Nesse sentido, o professor aliado as Tecnologias Assistivas formam um par preponderante


para que a vida dessas pessoas se tornem mais fáceis e autônomas. Direcionando a criança com
TEA, que é nosso instrumento de estudo, o professor tem a perspectiva de encontrar vários
recursos, métodos e técnicas que viabilizem a vias do aprendizado de forma positiva e produtiva.
Segundo BERSCH(2017,p.10) é importante ressaltar que as Tecnologias Assistivas deve
ser entendia como “recurso do usuário” e não como “recurso do profissional”, ou seja esse recurso
deve facilitar o cotidiano do usuário de forma independente.
No contexto educacional a autora da pesquisa afirmam que só são Tecnologias Assistivas
quando:
“[...] utilizada por um aluno com deficiência e tem por objetivo romper barreiras
sensoriais, motoras e cognitivas que limitam/impedem seu acesso às informações ou
limitam/impedem o registro e expressão sobre os conhecimentos adquiridos por ele;
quando possibilitam a manipulação de objetos de estudos; quando percebemos que sem
este recurso tecnológico a participação ativa do aluno no desafio de aprendizagem seria
restrito ou inexistente.” BERSCH,2017,p.12.

A autora destacam ainda que são considerados TA no contexto educacional os mouses


diferenciados, teclados virtuais com varreduras e acionadores, softwares de comunicação, leitores
de texto, textos ampliados, recurso de mobilidade entre outros.
Para o atendimento a criança com TEA as Tecnologias Assistivas mais utilizadas são os
softwares de comunicação, leitores de texto para pessoas com dificuldades de alfabetização,
recursos de mobilidades entre outros. No campo da comunicação estão sendo criados diversos
software com interfaces que facilitam cada vez mais a navegação e o aprendizado.
Um exemplo é o Sistema de Comunicação Alternativa para o Letramento de pessoas com
Autismo (SCALA) que foi desenvolvido através de estudo de caso em crianças com TEA, nos
quais “foi possível identificar necessidades comuns da síndrome com relação ao estabelecimento
da comunicação” (AVILA, 2011), o sistema apresenta uma prancha de comunicação que
proporciona ao usuário acesso a imagens que o mesmo pode se comunicar com ou sem a ajuda de
terceiros.
BERSCH (2017) dividem as Tecnologias Assistivas em categorias das quais cada
categoria atende as respectivas necessidades de pessoas com deficiência. Como esta pesquisa
comtempla as tecnologias assistivas direcionadas a pessoa com TEA, destacaremos a seguir
algumas categorias para estes fins:
 Auxilio para a vida diária e vida prática: inclui materiais que proporcionam
“autonomia e independência nas tarefas rotineira”, BERSCH (2017). Nesta categoria,
subdivide-se como materiais escolares: aranha mola para fixação da caneta, pulseira
de imã estabilizadora da mão, plano inclinado, engrossador de lápis.
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 CAA (Comunicação Aumentativa e Alternativa): destinada a pessoa com


necessidades comunicativas (até mesmo pra pessoas sem fala ou escrita funcional
deficiente), são eles: prancha de comunicação que em sua estrutura possui símbolos,
palavras e letras para facilitar a comunicação quando a pessoa presisa expressar “suas
questões, desejos, sentimentos, entendimentos” BERSCH(2017).
A autora ressaltam ainda a importância e a verdadeira intensão do uso das Tecnologias
Assistivas:
Todo o trabalho desenvolvido em serviço de TA deverá envolver diretamente o usuário
e terá como base o conhecimento de seu contexto de vida, a valorização de suas intenções
e necessidades funcionais pessoais, bem como a identificação de suas habilidades atuais
(. BERSCH e TONOLLI,2017, p.13)

Percebe-se o quanto é pertinente o estudo e aplicabilidade da contribuição das Tecnologias


Assistivas no processo ensino-aprendizagem para crianças com TEA na educação, neste caso em
específico na Educação Infantil, respeitando as limitações e ampliando potencialidades de forma
que venham possibilitar e estabelecer tipos de comunicação com o autista , pois sabe-se que estes
têm dificuldades de lidar com mudanças, portanto inserir na rotina técnicas, recursos por meio das
Tecnologias Assistivas é favorável .

6-CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa possibilitou refletir sobre uso das Tecnologias Assistivas como apoio
ao processo de ensino-aprendizagem para crianças da educação infantil que sejam diagnosticadas
no Transtorno do Espectro do Autismo. Podemos concluir que as tecnologias Assistivas
favorecem meios para que pessoas com deficiência possam tornar-se mais autônomas e possibilita
que a criança com Autismo tenha melhor desenvolvimento no processo ensino-aprendizagem,
como uso do Ipad, jogos que venham favorecer o raciocínio, coordenação, atenção, concentração,
leitura, escrita, musicalidade, entre outros.
Ressalta-se que a perspectiva de adaptação dos recursos é relevante, pois oportuniza um
ensino e aprendizado correspondente as condições dos alunos, o que pode assegurar o êxito da
integração do aluno com deficiência, no ensino regular. Para sugestão de estudos futuros, vê-se a
possibilidade de fazer uma pesquisa de campo, para que possamos ter maior fundamentação e
resultados na pesquisa empírica.

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Página 377 de 2230

BIBLIOMETRIA E PRODUÇÃO CIENTÍFICA INTERDISCIPLINAR NO


MARANHÃO: UMA ANÁLISE DA REVISTA INTERDISCIPLINAR EM CULTURA E
SOCIEDADE (RICS) À LUZ DAS LEIS BIBLIOMÉTRICAS DE LOTKA E ZIPF

BIBLIOMETRY AND INTERDISCIPLINARY SCIENTIFIC PRODUCTION IN


MARANHÃO: AN ANALYSIS OF THE INTERDISCIPLINARY JOURNAL IN
CULTURE AND SOCIETY (RICS)IN THE LIGHT OF LOTKA AND ZIPF
BIBLIOMETRIC LAWS
Maurício José Morais Costa64
Mestre em Cultura e Sociedade (PGCult – UFMA)
Claudia Maria Pinho de Abreu Pecegueiro
Doutora em Ciência da Educação 65
Professora Associada I no Departamento de Biblioteconomia da UFMA
Eixo temático 1 - Arte, Tecnologia e Educação

Resumo:Investigação que trata da análise bibliométrica do periódico científico Revista


Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (RICS), a partir das leis bibliométricas de Lotka e Zipf.
Objetiva analisar a Revista Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (RICS) segundo sua
produtividade, análise de fontes bibliográficas e documentais referenciadas, autores, bem como as
temáticas abordadas desde sua criação. Contextualiza os periódicos científicos, bem como o
cenário de produção científica aberta no Brasil. Caracteriza a RICS, perpassando seu contexto
histórico de criação junto ao Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade na Universidade
Federal do Maranhão. Detalha-se a metodologia da pesquisa, de caráter documental e natureza
exploratória, analítica e descritiva, de abordagem quantitativa e qualitativa. O corpus de análise
fora composto por 12 (doze) números da RICS, divididos em 5 (volumes) publicados desde 2015.
Dentre os resultados preliminares, destaca-se que foram publicados na RICS 150 (cento e
cinquenta) artigos originais, desprezando-se entrevistas e resenhas. O periódico investigado tem
por foco produções científicas originais em temas interdisciplinares, cujas linhas são: Expressões
e Processos Socioculturais e Cultura, Educação e Tecnologia. A RICS está classificada em
diferentes áreas de avaliação na Plataforma Sucupira, cujo Qualis CAPES possui estratos B3 em
Linguística e Literatura, B4 para Antropologia, B5 em Artes, Sociologia, Serviço Social,
Interdisciplinar e C em Direito e Educação. Pontua que a RICS conta com artigos em sua maioria
voltados para o campo das Letras, Linguística, Antropologia e Arqueologia, visto os indicadores
científicos.

64
Especializando em Design Instrucional (Centro Universitário Senac – São Paulo). Bacharel em Biblioteconomia.
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Grupo de Estudos e Pesquisas
na Análise de Materiais Publicados, de Divulgação da Ciência, em Mídia Digital ou Impressa (GEP-DCMIDI). Grupo
de Estudos e Pesquisas em Tecnologias Digitais na Educação (GEP-TDE). Grupo de Estudos e Pesquisas em
Patrimônio Cultural (GEPPaC). mauricio.jmc@outlook.com.
65
. Mestre em Ciências da Informação.. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas na Análise de Materiais Publicados,
de Divulgação da Ciência, em Mídia Digital ou Impressa (GEP-DCMIDI). claudia.pecegueiro@ufma.br.
Página 378 de 2230

Palavras-chave: Estudo Métrico da Informação Bibliometria. Lei de Zipf. Lei de Lotka.

Abstract: Research that deals with the bibliometric analysis of the scientific journal
Interdisciplinary Journal in Culture and Society (RICS), based on the bibliometric laws of Lotka
and Zipf. It aims to analyze the Interdisciplinary Journal in Culture and Society (RICS) according
to its productivity, analysis of bibliographic and documentary sources referenced, authors, as well
as the themes addressed since its creation. It contextualizes scientific journals, as well as the open
scientific production scenario in Brazil. It characterizes RICS, passing through its historical
context of creation with the Graduate Program in Culture and Society at the Federal University of
Maranhão. The methodology of research, documentary and exploratory, analytical and descriptive
nature, of quantitative and qualitative approach, is detailed. The corpus of analysis was composed
of 12 (twelve) numbers of RICS, divided into 5 (volumes) published since 2015. Among the
preliminary results, it is noteworthy that 150 (one hundred and fifty) original articles were
published in RICS, disregarding interviews and reviews. The journal investigated focuses on
original scientific productions in interdisciplinary themes, whose lines are: Expressions and
Sociocultural Processes and Culture, Education and Technology. RICS is classified in different
areas of evaluation in the Sucupira Platform, whose Qualis CAPES has B3 strata in Linguistics
and Literature, B4 for Anthropology, B5 in Arts, Sociology, Social Work, Interdisciplinary and C
in Law and Education. It points out that RICS has mostly articles focused on the field of Letters,
Linguistics, Anthropology and Archaeology, given the scientificindicators.
Keywords: Metric Study of Bibliometry Information. Zipf's law. Lotka's law. Interdisciplinary

1 INTRODUÇÃO

Refletir sobre a produção interdisciplinar no Estado do Maranhão pressupõe identificar os


canais pelos quais os pesquisadores optam para comunicarem seus estudos. A universidade, de
um modo geral, tem sido desafiada constantemente a ampliar o número de publicações, sobretudo
na pós-graduação, o que revela o papel que as revistas, eventos, congressos, conferências, dentre
outros espaços têm para fomentar a produção cientifica. No arranjo da comunicação e divulgação
dos feitos acadêmico-científico, destacam-se os periódicos, estes canais privilegiados pelos
pesquisadores, não apenas por estarem vinculados aos programas de pós-graduação, mas por seu
alcance na comunidade científica.
Dentre os periódicos maranhenses, tem-se a Revista Interdisciplinar em Cultura e
Sociedade (RICS), criada e mantida pelo Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da
Universidade Federal do Maranhão, criada em 2015 com o intuito de fortalecer os estudos
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interdisciplinares no Estado, como socializar os estudos desenvolvidos pelo Programa. Desse


modo, optou-se por estudá-la, tendo em vista seu escopo favorecer o diálogo entre diferentes áreas
do conhecimento. Além disso, acredita-se que estudos desta natureza – bibliométricos,
infométricos, cientométricos – contribuem com a geração de indicadores que podem, dentre outras
coisas, direcionar algumas ações de fortalecimento dos canais de comunicação científica.
A partir dessas inflexões, levantam-se as seguintes problemáticas: é possível traçar um
cenário dos estudos interdisciplinares no Maranhão, tomando por base a Revista Interdisciplinar
em Cultura e Sociedade (RICS)? Quais leis bibliométricas seriam capazes de gerar indicadores
acerca dos artigos e autores da Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (RICS)? Nesse sentido, o
presente estudo tem por objetivo analisar a Revista Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (RICS)
segundo sua produtividade, bem como as temáticas abordadas desde sua criação, a partir das leis
bibliométricas de Zipf e Lotka.
O presente estudo está organizado em três seções principais. Na primeira seção discutem-
se os aspectos voltados para os indicadores informacionais, a comunicação e a divulgação
científica, na perspectiva de clarificar alguns conceitos importantes, dentre eles as leis
bibliométricas de Bradford e Zipf. Na segunda seção descreve-se o percurso metodológico
norteador desta pesquisa, bem como seu escopo de análise. Na terceira seção apresenta-se e
analisa-se na ótica das leis bibliométricas de Bradford e Zipf a Revista Interdisciplinar em Cultura
e Sociedade (RICS), na perspectiva de traçar um cenário dos estudos, bem como das temáticas
presentes em seus números publicados. E por fim, as considerações finais com ponderações
importantes acerca das análises empreendidas, além de direcionamentos para estudos futuros.

2 INDICADORES, COMUNICAÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: alguns conceitos

Tratar da comunicação científica interdisciplinar no Maranhão, desprende a necessidade


de revistar alguns entendimentos necessários acerca dessa categoria e como ela se expressa no
contexto acadêmico em questão. Caribé (2015) pontua que os estudos que se dedicam a conceituar
comunicação científica são escassos, o que abre precedente para uma variedade de terminologias
e definições voltadas para a descrição das relações, processo e natureza da comunicação científica.
O significado da comunicação científica (CC) e outros termos usados no campo da
alfabetização científica foram atormentados por uma infeliz falta de clareza. A comunicação
científica - Science communication (SciCom) - não está simplesmente incentivando os cientistas
a falar mais sobre seu trabalho, nem é uma ramificação da disciplina de comunicação. Embora as
pessoas possam usar o termo “comunicação científica” como sinônimo de conscientização pública
da ciência - Public Awareness of Science (PAS) - entendimento público da ciência - Public
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Understanding of Science (PUS) -, cultura científica – Scientific culture (SC) - ou alfabetização


científica - Scientific literacy (SL) - de fato, muitos desses termos são frequentemente usados de
forma intercambiável - não devendo ser confundido com esses termos importantes e intimamente
relacionados (BURNS; O’CONNOR; STOCKLMAYER, 2003).
Partindo da junção dos termos “comunicação” e “científica”, a categoria ora em tela
poderia ser facilmente conceituada como o ato de comunicar a ciência. Nesse sentido, Caribé
(2015) esclarece que a comunicação científica tem como fundamento o processo clássico de
comunicação postulado por Shannon e Weaver em meados de 1949. Grosso modo, pode-se
explicar a CC como a socialização do conteúdo informacional gerado mediante procedimentos
metodológicos e científicos, ou seja, por cientistas, pesquisadores, acadêmicos, dentre outros
profissionais inseridos nesse contexto.
Nessa assertiva, pontua-se que a comunicação científica é um dos pilares da produção e
desenvolvimento da ciência, esta que por natureza representa os conhecimentos publicizados, por
sua vez fruto de práticas coletivas e colaborativas entre pesquisadores (MEADOWS, 1999). Cabe
destacar que a comunicação científica não pode ser confundida com a divulgação científica, esta
segunda compreende as técnicas, recursos, processos e produtos utilizados para a veiculação de
informações científicas, tecnológicas, bem como as inovações para a comunidade, como por
exemplo, periódicos, livros, imprensa, dentre outros (BUENO, 2009).
Bueno (2010, p. 2) diferencia a divulgação científica da comunicação científica, afirmando
que a segunda “[...] diz respeito à transferência de informações científicas, tecnológicas ou
associadas a inovações e que se destinam aos especialistas em determinadas áreas do
conhecimento.” Sendo assim, entende-se que a CC se assenta em núcleos mais específicos, como
por exemplo, eventos técnico-científicos e periódicos científicos, como bem elenca Bueno (2010).
Entende-se que, tanto a divulgação científica, quanto a comunicação científica são entes
indissociáveis. Targino (2000) acentua que todo e qualquer achado científico deve ser comunicado
e difundido, visando não apenas dar ciência, mas consolidar tais descobertas e colocá-las em
discussão, combatendo, assim, o analfabetismo científico. Segundo Vieira (2010) os periódicos
são os veículos de divulgação científica privilegiados pelos pesquisadores, sobretudo para a
publicação de resultados de pesquisas, revisões de literatura, dentre outros insumos de suas áreas.

2.1 Entendimentos acerca da Bibliometria

Esta seção dedica-se a trazer alguns conceitos básicos acerca da Bibliometria, técnica não
tão recente, cujos primeiros intentos se remonta ao ano de 1743, conforme explicam Gomes e
Autran (2018). A bibliometria surgiu no início do século devido à necessidade de estudar e avaliar
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as atividades de produção e comunicação científica. Teve-se como marco inicial os estudos acerca
de leis empíricas voltadas para o comportamento da produção literária.
Marques (2010) acentua que a Bibliometria tem como um de seus pilares a utilização de
métodos quantitativos aplicados na avaliação precisa e objetiva da produção científica. Ou seja,
tem como objetos de estudo os livros ou as revistas científicas, cujas análises se vinculam à gestão
de bibliotecas e bases de dados. Desse modo, consolida-se tal entendimento dialogando com
Santos e Kobashi (2009, p. 157) ao reforçarem que se trata do [...] uso de métodos estatísticos e
matemáticos para mapear informações, a partir de registros bibliográficos de documentos (livros,
periódicos, artigos) [...]”.
Borba (2014) nos explica que a bibliometria se vai além dos estudos de natureza teórico-
conceitual, uma vez que se associa a estudos sobre o avanço do conhecimento, na perspectiva de
propor não apenas novos conceitos, mas também indicadores, reflexões e análises relativas às
áreas as quais é aplicada. Segundo o autor, antes mesmo de ser radicada e alicerçada no campo da
Ciência da Informação, Sociologia, Matemática, Estatística e Ciência da Computação, já vinham
sido postuladas leis que incumbidas de analisar a produção científica e o comportamento da
ciência. As leis bibliométricas dividem-se em três:
a) Lei de Lotka – Publicada em 1926, favorece o estudo da produção científica dos
autores, bem como a contribuição de cada um deles. Também conhecida por Lei do Quadrado
Inverso, orienta o cálculo da produtividade de autores de artigos científicos. Segundo Borba (2014,
p. 23), “A Lei de Lotka também pode ser vista com uma função de probabilidade da
produtividade.”;
b) Lei de Bradford – pauta seus estudos na descrição acerca do comportamento repetitivo
das ocorrências em um campo específico ou área científica. Borba (2014, p. 24) explica que “[...]
após a publicação de alguns artigos sobre um determinado novo tema de um campo científico em
periódicos qualificados, os mesmos periódicos polarizarão artigos sobre este novo tema durante
um tempo.” Santos e Kobashi (2009), complementam, acentuando que numa especialidade
científica, coexiste pequeno número de pesquisadores extremamente produtivos com uma grande
quantidade de cientistas menos produtivos;
c) Lei de Zipf – também chamada de lei quantitativa fundamental da atividade humana,
analisa a frequência da ocorrência de palavras num texto longo (BORBA, 2014).
Ressalta-se que, o cálculo de co-ocorrências (de autores, de palavras, de instituições),
fundada em métodos de análise multidimensional é uma das áreas que vem crescendo de forma
acentuada nos estudos métricos contemporâneos (SANTOS; KOBASHI, 2009, p. 160). Para fins
deste estudo, optou-se por analisar a Revista Interdisciplinar em Cultura e Sociedade na ótica das
leis de Lotka e Zipf, por entender que em um primeiro momento é importante verificar o perfil
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dos autores que publicam em tal periódico, bem como as temáticas exploradas e se estas estão
alinhadas com o escopo da RICS.

3 PERCURSO METODOLÓGICO

Esta seção se dedica a fazer o enquadramento do estudo no campo de investigação


interdisciplinar, uma vez que se dedica a analisar na ótica bibliométrica o periódico científico
Revista Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (RICS) na ótica das leis de Lotka e Zipf. Desse
modo, consiste em uma investigação subsidiada pelos fundamentos teóricos do campo da Ciência
da Informação e suas interfaces com diferentes campos do conhecimento.
Diante disso, trata-se de um estudo exploratório, analítico e descritivo, visto não se limitar
ao detalhamento da RICS enquanto canal de difusão da pesquisa interdisciplinar maranhense, mas
analisar o cenário refletido por seus volumes e números publicados (PRODANOV; FREITAS,
2013; GERHARDT; SILVEIRA, 2009). De abordagem qualitativa e quantitativa, uma vez que
revela a complexidade da pesquisa maranhense publicada na RICS, a partir da pesquisa
documental como procedimento técnico de investigação.
Nesse sentido, o corpus de análise fora composto por 12 (doze) números da Revista
Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (RICS), divididos em 5 (volumes) publicados desde 2015,
desprezando-se entrevistas e resenhas. Para tanto, a pesquisa recorreu a análise de conteúdo de
Bardin (2016). Pontua-se que, a análise de conteúdo compreende técnicas de pesquisa que
permitem sistematicamente a descrição das mensagens e das atividades atreladas ao contexto da
enunciação, assim como, inferências sobre os dados coletados. Sendo assim, orientados por Bardin
(2016), os procedimentos de análise foram divididos nas seguintes etapas:
a) Pré-análise: compreendeu a coleta dos documentos no portal da RICS66 e organização
por pastas, identificadas por seus respectivos volumes e números;
b) Exploração do material: consistiu na extração das informações dos artigos, a saber:
identificação dos volumes, números, quantitativo de artigos por número, autores, instituições,
estados e regiões de origem dos autores, resumos e palavras-chave;
c) Tratamento dos resultados, inferências e interpretação: subsidiada pela análise de
conteúdo (BARDIN, 2016), os dados foram tabulados com o auxílio do software Microsoft Office
Excel 365 e do Nvivo 1167, este último responsável por subsidiar a extração das unidades de
registro, alicerçando o processo de categorização essencial para análise dos resultados.

66
Disponível em: <http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/ricultsociedade>. Acesso em: 12 nov. 2019.
67
O Nvivo é um software destinado à investigação em ciências humanas e sociais e à análise de dados não-numéricos
e não-estruturados em um ambiente colaborativo e distribuído com base na Internet.
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Por fim, o corpus documental fora analisado, tratado e os resultados representados


graficamente por meio de gráficos, quadros e tabelas, posteriormente discutidos mediante
entrelaçamento com a literatura, por sua vez apresentados na seção seguinte.

4 ANÁLISE BIBLIOMÉTRICA DA REVISTA INTERDISCIPLINAR EM CULTURA E


SOCIEDADE (RICS)

Ao longo desta seção, discorre-se acerca da RICS e em seguida apresentam-se os


resultados da análise bibliométrica do periódico em questão. Para tanto, dialoga-se com autores
do campo da Ciência da Informação na perspectiva de compreender as características do referido
periódico, bem como as temáticas exploradas nele.
A Revista Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (RICS) é um periódico eletrônico de
publicação semestral vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da
Universidade Federal do Maranhão. Constituída por pesquisadores de diferentes especialidades
de estudos das áreas das humanidades e sociais, surgiu a partir da necessidade de o PGCult-UFMA
difundir pesquisas nos eixos: a) Expressões e Processos Socioculturais e b) Cultura, Educação e
Tecnologia. Criada em 2015, já publicou 5 (cinco volumes) e 12 (doze) números (dentre regulares
e especiais).
Destaca-se como primeiro aspecto de análise o fato de a RICS estar classificada em
diferentes áreas de avaliação disponíveis na Plataforma Sucupira68, cujo Qualis CAPES possui
estratos B3 em Linguística e Literatura, B4 para Antropologia, B5 em Artes, Sociologia, Serviço
Social, Interdisciplinar e C em Direito e Educação. Tendo seu número 1 publicado em 2015, a
RICS se mantém publicando em média dois números por ano, conforme pode ser observado na
Tabela 1:

Tabela 1 - Anos, volumes e artigos


Ano Volume Nº Total de Artigos Total de Páginas
2015 1 1 11 169
2016 2 1 7 133
2016 2 2 8 200
2017 3 Esp. 6 96
2017 3 1 9 151
2017 3 Esp. 23 339
2017 3 2 9 135
2018 4 1 7 105
2018 4 Esp. 13 210

68
Disponível em: <https://sucupira.capes.gov.br>. Acesso em: 22 jan. 2020.
Página 384 de 2230

2018 4 Esp. 42 620


2018 4 2 9 146
2019 5 1 8 145
Total 152 2449
Fonte: Dados da pesquisa (2019)

Como pode ser observado na Tabela 1, ao todo foram publicados 152 artigos entre 2015 e
2019. O número com a maior quantidade de artigos fora o número especial, volume 4, publicado
em 2018 na ocasião do II Simpósio Internacional Interdisciplinar em Cultura e Sociedade,
promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade.
A publicação de números especiais por parte dos periódicos avaliados pela CAPES pode
implicar em alguns embargos, sobretudo de forem levadas as resoluções da instituição no tocante
a avaliação das revistas de um modo geral. Segundo o Relatório do Qualis Periódicos publicado
em 2019, os periódicos que não atendem aos critérios são enquadrados como “Não Periódico
Científico (NP)”, dentre eles

[...] veículos que apenas publicam trabalhos de determinado evento científico ou que
publiquem números especiais que reúnam trabalhos publicados em anais de eventos ou
textos que sejam fruto ou que tenham como origem os trabalhos apresentados em eventos
científicos e que não tenham passado pelos mesmos procedimentos e mesmo rigor de
avaliação dos números regulares. (BRASIL, 2019, p. 3).
Dentre os elementos pelos quais podemos avaliar os periódicos, está a concentração de
autores de outros países. A internacionalização dos periódicos pode ser o caminho para o
crescimento de sua qualidade, visto o fator de impacto ser um determinante quando se trata da
competição global de pesquisadores. Cabe destacar, que por se tratar de um periódico brasileiro,
há pela frente um longo caminho para que este chegue aos rankings internacionais (FARIAS,
2014). Todavia, fora possível investigar, mediante diálogo com a lei de bibliométrica de Bradford,
quais países estão representados na RICS desde sua criação, cujos resultados podem ser
observados no Quadro 1:

Quadro 1 – Distribuição de artigos por países na RICS


País Qtd. de artigos
Brasil 145
Canadá 1
México 1
Espanha 1
Portugal 4
Fonte: Dados da pesquisa (2019)

Como pode ser observado no Quadro 1, a maioria dos autores presentes na RICS são
brasileiros, todavia há pesquisadores de outros países, dentre eles Portugal, Canadá, México e
Espanha. Destaca-se que a internacionalização dos periódicos científicos visa proporcionar
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visibilidade à pesquisa, de modo a aumentar a colaboração internacional. Deve-se fortalecer a


internacionalização dos periódicos científicos, considerada um ponto forte de comunicação e
divulgação da produção científica brasileira, bem como o reconhecimento gerado a partir dela
(GUEDES, 2013). Além disso, analisou-se a quantidade de artigos por Estado do Brasil, visando
identificar a origem nacional dos autores presentes na RICS, cuja distribuição pode ser observada
no Quadro 2:

Quadro 2 – Quantidade de artigos por Estado do Brasil


ESTADO QTD. DE ARTIGOS
Maranhão 83
São Paulo 11
Rio Grande do Sul 7
Rio de Janeiro 5
Mato Grosso 5
Paraná 5
Teresina 4
Santa Catarina 3
Amazonas, Minas Gerais, Sergipe, Goiânia 2
Fonte: Dados da pesquisa (2019)

Conforme os resultados apresentados no Quadro 2, a maioria dos artigos (83) são de


origem maranhense. Pode-se observar também que há autores de outros Estados, dentre eles São
Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, dentre outros. Embora a RICS conte com artigos cujos
autores são de outras regiões do Brasil, há um número expressivos de autores locais, o que implica
em endogenia.
De acordo com Amoras (2017, p. 2), “A endogenia/exogenia é um conceito utilizado pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para classificar os
periódicos em diferentes níveis, sendo que os critérios variam de uma área para outra.” Pontua-se
que, a taxa da endogenia/exogenia é um valor percentual calculado a partir da quantidade de
autores vinculados a instituições diferentes daquela que edita o periódico. Caracterizada por
Valerio (1994), como a presença, na publicação, de quantidade significativa de avaliadores,
autores ou membros do Conselho Editorial pertencentes à instituição editora. Com autoria
majoritariamente maranhense a RICS acaba sendo prejudicada, não apenas pela falta de projeção
nacional, mas algumas bases indexadoras acabam não indexando-a por conta disso, o que implica
na redução do alcance nacional e internacionalmente. Tal fato não é benéfico para a ciência, uma
vez que se tem um ponto de vista unilateral dos avaliadores.
Por fim, o estudo analisou as temáticas predominantes na RICS, para tanto foram
analisados os títulos, resumos e palavras-chave dos 152 (cento e cinquenta e dois) textos
publicados, recorrendo a análise de conteúdo de Bardin (2016) e a Lei Bibliométrica de Zipf.
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Foram mapeadas, com o suporte do software Nvivo, as unidades de registro e espelhadas às linhas
de pesquisa aceitas pelo periódico em análise, cujos resultados podem ser observados no Quadro
3:

Quadro 3 - Temas na ótica da Lei de Zipf


UNIDADE DE REGISTRO FREQUÊNCIA
Maranhão 86
Cultura, culturais, Educação, Literatura 19
Cultural, feminina, política 16
História, sociedade 13
Filosofia 11
Narrativa, representação 6
Linguagem, trabalho 5
Memória, mulheres, performance, romance, tecnologias. 4
Ciências, crítica 3
Fonte: Dados da pesquisa (2019)

Como observa-se no Quadro 3, a coerência das produções cujas unidades de registro


expressam as temáticas que ancoram os artigos com as linhas interdisciplinares da RICS -
Expressões e Processos Socioculturais e Cultura, Educação e Tecnologia. Destaca-se que a
maioria dos trabalhos têm como objeto de análise o Maranhão, o que expressa a contribuição do
periódico como canal de comunicação privilegiado por autores maranhenses, embora a endogenia
seja um problema. Os temas predominantes mediante análise na ótica da Lei de Zipf, corrobora
os Qualis cuja revista é avaliada (Linguística e Literatura, Antropologia, Artes, Sociologia,
Serviço Social, Interdisciplinar e em Direito e Educação).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo se dedicou a analisar a Revista Interdisciplinar em Cultura e


Sociedade (RICS) segundo sua produtividade, bem como as temáticas abordadas desde sua
criação, a partir das leis bibliométricas de Zipf e Lotka. Embora seja um grande desafio analisar
um periódico, cuja criação é recente, mostra-se relevante tal investigação na perspectiva de
apresentar indicadores que podem fortalecer e direcionar algumas de suas ações.
Ressalta-se que a RICS por se tratar de um periódico recente, visto seu número de
volumes e números, está em processo de consolidação, o que explica a alteração de sua
periodicidade de publicação, que hoje conta com quatro números anuais (quadrimestral). Assim
sendo, há ainda um longo caminho a ser percorrido para que esta amplie seu alcance e fator de
impacto no campo dos estudos interdisciplinares.
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Pontua-se que a RICS se mostra como um importante veículo de produção científica


interdisciplinar no Maranhão, uma vez que se firma como um relevante canal com produções
multidisciplinar de outros Estados do Brasil, visto a presença de autores de outros estados do
Brasil. Evidencia-se que sua mudança para a periodicidade quadrimestral favorece a ampliação
do número de artigos e autores por número. Destaca-se que o presente estudo não pretende se
esgotar neste ensaio, deixando precedente para outros elementos a serem objeto de análise, dentre
eles as bibliografias predominantes nos textos, os perfis dos autores que optam pela RICS, dentre
outros.
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Página 390 de 2230

CONHECIMENTO “ENTRE OS DEDOS”: ARTESANATO COMO ENSINO,


APRENDIZAGEM E QUALIDADE.

KNOWLEDGE “AMONG THE FINGERS”: HANDICRAFT AS TEACHING,


LEARNING AND QUALITY.
Márcio Soares Lima
Mestre em Design pela UFMA
Raquel Gomes Noronha
Doutora em Antropologia pela UERJ
Professora do PPG em Design UFMA
Raiama Lima Portela
Mestre em Design pela UFMA
Eixo I – Artes, Tecnologia e Educação

Resumo: Sob a temática do artesanato e socialização do saber fazer das comunidades artesanais,
temos o objetivo de entender a atuação do design na realidade das bordadeiras, especificamente
no que diz respeito a aprendizagem, conhecimento e qualidade dos bordados na Associação de
Mulheres da Agulha Criativa - AMAC. A pesquisa foi realizada a área conhecida como “capital
dos bordados”. De acordo com o Termo de Referência do SEBRAE (2010), o artesão é aquele
detentor de conhecimento técnico sobre os materiais, as ferramentas e os processos de sua
especialidade. Com a atuação do designer na AMAC, ocorreram algumas implementações
observadas pelas próprias bordadeiras, e nos dizem que: ”a aprendizagem foi a implementação
mais importante, pois isso que eles (designers) nos ensinaram através das oficinas, capacitações e
outras atividades que o conhecimento ninguém tira de nós”. Em discursos ouvidos por nós, duas
categorias nos chamaram atenção em primeira instância, quando os informantes tratam de
produtos de primeira qualidade e de qualidade superior. O que seria isso? Para refletirmos,
acionamos o conceito de qualidade para o SEBRAE, por ser a instituição responsável pela
intervenção do designer na associação e “confrontamos” com as opiniões e práticas das artesãs e
autores que tratam dessa temática, como Borges (2011).
Palavras-chave: Artesanato. Aprendizagem. Qualidade do produto. São João dos Patos.

Abstract: Under the theme of handicrafts and socialization of the know-how of the handicraft
communities, we aim to understand the role of design in the reality of embroiderers, specifically
with regard to the learning, knowledge and quality of embroidery at the Associação da Mulheres
da Agulha Criativa - AMAC . The research was carried out in an area known as “capital of
embroidery”. According to the SEBRAE Term of Reference (2010), the artisan is the holder of
technical knowledge about the materials, tools and processes of his specialty. With the
performance of the designer at AMAC, there were some implementations observed by the
embroiderers themselves, and they tell us that: “learning was the most important implementation,
because this is what they (designers) taught us through workshops, training and other activities
Página 391 de 2230

that knowledge nobody takes from us ”. In speeches heard by us, two categories called our
attention in the first instance, when the informants deal with products of first quality and superior
quality. What would that be? To reflect, we used the concept of quality for SEBRAE, as it is the
institution responsible for the intervention of the designer in the association and we confront with
the opinions and practices of artisans and authors who deal with this theme, such as Borges (2011).
Keywords: Crafts. Learning. Product quality. São João dos Patos.

1 INTRODUÇÃO

Sob as temática de tecnologia, educação, design e artesanato, buscamos entender a


atuação do design na complexa realidade das bordadeiras, especificamente em sua atuação na
Associação, além de buscarmos entender os limites das relações entre o design e artesãs na
comunidade estudada.
Essa fantástica combinação de uma agulha, fios, mãos e mente presente me
encanta sobremaneira, e meu esforço em renovar a técnica é, além de realização
pessoal e crença, uma vontade sincera de que a técnica se mantenha viva,
carregando consigo a mudança dos tempos. (RÖDEL, 2010, p. 67)

A frase acima nos instiga a estudarmos o envolvimento do design com o artesanato,


especialmente o bordado. Os desdobramentos dessa prática e técnica são tão intensos, assim como o
papel social daqueles relacionados a esse saber fazer. Entre outros elementos, estes são bases iniciais
para adentrarmos esse universo tão vasto e rico. O desejo do autor citado acima, para que essa técnica
artesanal se mantenha viva, também é nossa. Temos a consciência de que a cultura é viva e que o
artesanato deve ir mudando com o tempo, visto que, segundo Lima (2010), o artesanato é a palpitação
do tempo humano.
É com esse pensamento que introduzimos o assunto do presente artigo. Iniciaremos falando do
artesanato como uma forma tradicional de manifestação cultural, com algo que atravessa o tempo e
acaba por se renovar de alguma maneira. Esse é um dos papéis possíveis para o design, identificado nesta
pesquisa, que é o de trabalhar em conjunto com comunidades artesãs para, além de trocar experiências
e conhecimentos, conhecer, propor soluções técnicas e, ainda, alternativas para perpetuar essa técnica
milenar, formando parcerias que possibilitem a emancipação e o desenvolvimento do artesanato, bem
como novas oportunidades e possibilidades para esse saber fazer empírico.
Página 392 de 2230

Figura 1 - Atores sociais envolvidos nesta pesquisa

Fonte: elaborado pelo autor (2016)

Nessa oportunidade, apresentamos na imagem acima, os atores sociais envolvidos na pesquisa e


observamos o que diz a teoria e a prática.
Sobre a consultoria em design, Borges (2011) afirma que a intervenção dos designers não pode
ser pontual, porque senão, quando a atuação dele na comunidade finaliza, não deixa nada. Segundo a
autora, é necessário ter pessoas atuando no local para dar continuidade ao trabalho sistematicamente.
Os consultores podem desencadear um processo, mas ele deve ser continuado com base em laços locais.

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO TERRITÓRIO

Figura 2 – Cidade de São João dos Patos - MA

Fonte: http://artesanatocomdesign.blogspot.com.br

A pesquisa foi realizada no reconhecimento das atividades artesanais e culturais,


desenvolvidas na área conhecida como “capital dos bordados”. Em São João dos Patos,
encontramos algumas peculiaridades que a torna única. Assim como o restante do Estado, sofre
certa estagnação econômica e busca inovações para promover seu desenvolvimento. De acordo
Página 393 de 2230

com Albuquerque & Lucena (2004), o estado do Maranhão tem um apego cultural ao artesanato.
As produções artesanais da AMAC contribuem de forma direta e indireta para o crescimento social
e sustentável das artesãs.
Falamos de mulheres que bordam numa cidade assentada no Sertão Maranhense: São João
dos Patos localiza-se a 570 km de São Luís e com 24.928 habitantes (IBGE, 2013), possui uma
significante e contínua produção de bordados, principalmente dos bordados ponto cruz. Possui em
toda sua extensão, segundo Nascimento (2012), essa particularidade cultural que por muito tempo
foi passada de geração em geração, e assim vai se perpetuando esta técnica artesanal que é
considerada primitiva e ao mesmo tempo, contemporânea.
Realizamos entrevistas com as artesãs e designers que atuaram na associação. As
entrevistas semiestruturadas, segundo Lakatos (2003), dá ao entrevistador e ao entrevistado a
liberdade para desenvolver cada situação em qualquer direção que considere adequada, sem perder
o “fio da meada”. É uma forma de poder explorar mais amplamente uma questão. Em geral, as
perguntas são abertas e podem ser respondidas dentro de uma conversação informal.
Inicialmente, nessa pesquisa descritiva e exploratória, analisamos os aspectos
socioeconômicos das artesãs e sua relação com a forma de produção do artesanato,
comercialização e gestão a fim de identificar dados relevantes à fundamentação da pesquisa de
nos situarmos junto ao contexto que estávamos nos inserindo. Nesta parte estavam presentes nas
nossas entrevistas, perguntas que representam e caracterizam o grupo de artesãs, tais como
características socioeconomicamente; características sobre o nível de instrução; características
sobre o tempo de trabalho e domínio do ofício de bordar; características sobre o tipo de produção
artesanal (ver qual produto de maior e menor “saída” e por que); características a comercialização;
características sobre o cuidado com meio ambiente; características sobre o enquadramento na
sustentabilidade e características sobre o processo de produção (cadeia produtiva), que é o foco
principal deste artigo.

3 CONHECIMENTO “ENTRE OS DEDOS”: ARTESANATO COMO ENSINO,


APRENDIZAGEM E QUALIDADE

O artesanato, de acordo com o Conselho Mundial do artesanato, se classifica como toda


atividade produtiva que resulte em objetos e artefatos acabados, feitos manualmente ou com a
utilização de meios tradicionais ou rudimentares, com habilidade, destreza, qualidade e
criatividade.
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De acordo com o Termo de Referência do SEBRAE (2010), o artesão é aquele detentor de


conhecimento técnico sobre os materiais, as ferramentas e os processos de sua especialidade.
Com a atuação do designer na AMAC, ocorreram algumas implementações observadas
pelas próprias bordadeiras e consultor, como mostramos a seguir:
A aprendizagem foi a implementação mais importante, pois isso que eles nos
ensinaram através das oficinas, capacitações, ninguém tira de nós. Fez também
com que a qualidade do nosso trabalho aumentasse mais. E eu sei o quanto isso
(a qualidade) é importante, pois viajo muito e ouço as pessoas falarem isso do
nosso bordado. Outra coisa também que nos ensinaram foi o jeito de vender. 69

Mas nem sempre foi assim. As bordadeiras da AMAC ao relatarem sobre o aprendizado
do bordado, nos dizem que aprenderam com suas mães e avós. Ele dava nas calçadas e portas de
suas casas, onde começaram seus primeiros pontos. Marcelucia, de uma forma descontraída
compartilha essa lembrança:

(risos) eita, é uma história engraçada... Não só do bordado, mas também do


crochê. Na minha época, aqui na cidade, se usava muito a tecelagem de rede, e
eu via as mulheres sentadas na calçada, fazendo a varanda da rede e eu ficava
curiosa. Ai o que que eu fazia?!? Criança, eu ia lá na calçada, olhava o que elas
tavam fazendo e voltava em casa. Eu não tinha agulha, ai eu pegava um grampo
de cabelo, abria o grampo (risos) e pegava as “bundinhas” (sobras) de linhas que
ficavam da minha mãe, que ela tecia, e ai corria lá na calçada de novo olhava o
que elas estavam fazendo. Dai ficava com aquela presilha e tentava fazer aquele
ponto. Até que eu consegui fazer a trança, que são os primeiros pontos do crochê.
Ai a sinhorinha que morava com a gente, ela observou aquilo que eu tava
fazendo, ai ela foi na rua e comprou uma agulha e me deu (risos). Isso eu tinha
entre 8 e 9 anos. Aí ela me deu essa agulha. E essa agulha pra mim foi tudo... ai
sim, eu me sentava no meio das mulheres, ficava olhando elas fazendo e ia
imitando e aprendi fazer o crochê. E o ponto cruz do mesmo jeito, só observando
os outros fazendo. Aí depois que eu aprendi o ponto, foi que alguém via que eu
já tava dominando ponto e veio só me explicar como era a técnica de você
aumentar, diminuir o ponto, o modelo e tudo. Mas foi na observação! Eu nunca
esqueço disso porque um grampo, né? Que é pra ser usado no cabelo e eu não sei
como eu tive a imaginação de que se eu abrisse aquele grampo, eu ia conseguir
fazer o crochê. Mas eu aprendi assim.70

Nessa fala da artesã, as ideias de projeto, de observação, curiosidade, criatividade e tantas


outras características associadas ao designer ficam claras e curiosas se pensarmos sobre os saberes
e fazeres tradicionais que se comparam, no relato citado acima, às guildas, que cultivavam tanto
essa relação de mestre e aprendiz.
Essas guildas são oficinas de artes e ofícios que fortalecem a qualidade do trabalho manual
bem-acabado, do apoio a essa relação de quem ensina e quem aprende e os laços de solidariedade.
Então esses pensamentos fortaleceram o trabalho manual e fizeram com que esse trabalho

69
Entrevista concedida pela artesã Joelma, ao autor, em junho de 2017.
70
Entrevista concedida pela artesã Marcelucia, ao autor, em outubro de 2016.
Página 395 de 2230

artesanal permanecesse, apesar da indústria. E, de certa forma, foi essa organização em guildas,
em artes e ofícios que inspirou a formação da Bauhaus, que visava capacitar os alunos na teoria e
prática das artes, dando-lhes condições de criar produtos que fossem ao mesmo tempo artísticos e
comerciais.
Sobre esse aspecto, a irmã Rosália acrescenta:
Com certeza, as comunidades que trabalham com artesanato, que vive do
artesanato e da cultura que o artesanato traz, agrega todo um valor, pois a maior
parte deste ofício é feita entre os dedos da pessoa, e não na máquina, então agrega
esse valor manual de poder escolher, combinar cores, o estilo, então é uma
cultura, é um aprendizado, um conhecimento, ensaio pessoal e experiência
própria... aprendizado que vem da própria experiência. 71

Nesse âmbito, entendemos que, a partir da experiência, sejam elas com mães, avós
e ancestrais, consultores, com a própria cultura do local, o indivíduo acumula um repertório de
lembranças, histórias e saberes que serão determinantes na estruturação do seu fazer.

Figura 3 – Irmã Rosália Favero – Fundadora da AMAC

Fonte: autores (2018)

O consultor Marcelo Medeiros complementa ao dizer que “eu bebo nessa fonte, porque sei
que é uma fonte de conhecimento muito grande, então vê como aquilo é feito, toda a paciência
que o pessoal tem de mostrar como é feito” traz mais aprendizados do que anos em sala de aula
numa universidade.
“A partir do momento em que eu recebia das artesãs, me sentia na obrigação e convidado
a contribuir com elas”, complementa o consultor, e
quando eu fui chamado para a associação em São João dos Patos, eu não tive
dúvidas de que minha contribuição seria a de pesquisar, caminhar na história da
cidade e da vida daquelas pessoas, ver que elementos eu poderia trazer dessa
história e aplicar ao produto delas. Porque com o passar dos tempos, essas

71
Entrevista concedida pela Irmã Rosália, ao autor, em 20 de junho de 2017.
Página 396 de 2230

informações do mundo globalizado (programa da Ana Maria Braga (rede globo),


revistas e internet em geral) podem interferir e matar a essência do trabalho
daquelas pessoas. 72

Conhecimento tem a ver com trocas, experiências compartilhadas, e “esse conhecimento


as artesãs tem, é inegável e singular”, completa a analista do SEBRAE, Shamia Renata. Segundo
ela, existe uma cultura envolvida nesse saber, e é isso que prende a instituição a elas.

Acho que isso não é só no Maranhão, isso é a nível nacional, a gente não pode
abandonar o que é nosso, o que está na nossa veia, na nossa raiz, então isso nos
prende muito. Às vezes a gente tem vontade de brigar com elas e outras, a gente
quer colocar elas no colo. É complicado porque a gente vê que elas precisam
muito de apoio, da gente ali incentivando, e ao mesmo tempo a gente quer que
elas andem com as próprias pernas, por que é necessário também. E a gente sabe
que tem todo um contexto empresarial por trás dessa história e que precisa ser
desenvolvido, e a gente é cobrado. 73

Mais uma vez nos deparamos com as cobranças e metas da instituição que acompanha as
artesãs nos projetos. Eles admiram, incentivam as práticas e necessitam de um retorno segundo
seu contexto empresarial.
E para que essas expectativas sejam alcançadas, é preciso acionarmos uma outra categoria
relacionada ao produto artesanal das bordadeiras, a qualidade de seus produtos.
Iniciamos a reflexão, tomando como base a fala do consultor Sandro Lopes, num
comentário sobre o artesanato de São João dos Patos:
O artesanato de SJP é artesanal, todo mundo sabe. Sabia-se que a rede de lá iria
durar uma vida, colchas de cama com material de primeira qualidade, e isso era
uma grande vantagem, porque a gente não precisava maximizar o produto, o
produto em si só já tinha uma qualidade superior, já tinha um acabamento muito
bom. Algumas bordadeiras aqui ou ali que precisavam de ajuda e aí entravam as
consultorias. 74

Duas categorias neste discurso nos chamaram atenção em primeira instância, e resolvemos
colocar em negrito, produtos de primeira qualidade e de qualidade superior. O que seria isso?
Para refletirmos, acionamos o conceito de qualidade para o SEBRAE, este está relacionado
a processos de aumentar competitividade, ampliando as chances de permanecer no mercado. Para
a instituição, a qualidade é a matéria prima para o sucesso, e tem como fundamentos, a satisfação
do cliente, avaliações frequentes, melhorias contínuas nas técnicas, entre outros.

72
Entrevista concedida pelo Consultor Marcelo Medeiros, ao autor, em outubro de 2016.
73
Entrevista concedida pela analista do SEBRAE, ao autor, em 04 de julho de 2017.
74
Entrevista concedida pelo consultor Sandro Lopes, ao autor, em 09 de maio de 2017.
Página 397 de 2230

Figura 4 - Bordadeiras exercendo seu ofício

Fonte: Elaborado pelo autor

As artesãs sempre são incisivas em enfatizar sobre a qualidade de seus produtos, falam
com orgulho que seus bordados não têm diferenças entre avesso e direito, e, como na cadeia
produtiva da produção delas existe a etapa rigorosa da fiscalização, essa, segundo elas, é um de
suas grandes preocupações.
O bordado da gente é sim de qualidade. Qualidade porque é algo que é feito
caprichado, sem querer enrolar ninguém. Qualidade tem a ver com
transformação. Uma transformação de três ou mais matérias-primas para gerar
um único produto. 75

Por outro lado, o consultor Marcelo Medeiros, entende por produto com qualidade superior
aquele que
segue as normas corretas de sustentabilidade, ou seja, trabalha com o máximo de
recursos naturais, não desperdiça água, protege e trata o meio ambiente de forma
respeitosa, otimiza fontes de energia e age com respeito para com todos. 76

A qualidade superior é entendida também como aquela que não passa por cima de nada e
de ninguém para poder ser transformada, não gera lucros em cima do trabalho escravo de outros,
mesmo que esse outro seja o próprio artesão. Na verdade, entendemos como algo que está acima
das expectativas das pessoas e ligadas às práticas sustentáveis.
Nesse contexto, Borges (2011) apresenta o designer como um profissional responsável em
desenvolver critérios de qualidade de produção. E sobre o que diz a autora, a artesã afirma que
está entranhado nelas esse zelo pela imagem de qualidade, que elas conquistaram junto aos seus
clientes:
A preocupação com a qualidade é uma constante na AMAC, as artesãs lembram
imediatamente das Irmãs Rosália e Amália quando acionam esta categoria,
dizendo que elas são muito exigentes com o artesanato em si. Elas valorizam as
pessoas, as que fazem as peças e as que vão comprar também, por isso, elas

75
Entrevista concedida pela artesã Marcelucia, ao autor, em junho de 2017.
76
Entrevista concedida pelo consultor Marcelo Medeiros, ao autor, em outubro de 2016.
Página 398 de 2230

querem pontos firmes, emendas discretas, limpeza impecável (das peças e da


gente também). 77

Nesse sentido, as características de profissional responsável em desenvolver critérios de


qualidade, se encaixam a essas mulheres da Congregação Chambérry, que, como Manzini (2015),
podemos também categorizá-las como designers difusos. É de responsabilidade delas também a
criação da associação, que possibilitou e possibilita esse controle de qualidade, já que observam a
qualidade e o acabamento das peças antes de colocá-las à venda. A esse respeito a artesã confirma:
A associação ajudou e ajuda a gente muito, nos organizamos melhor e
trabalhamos em conjunto. Além disso, existe a preocupação com o bom
acabamento, o que valoriza mais ainda o nosso trabalho, temos que nos esforçar
mais. 78

E continua a outra artesã:

O trabalho aqui não sai de qualquer jeito não, é fiscalizado, porque o cliente que
compra também fiscaliza. Se não tiver bem-acabado ele não aceita, manda de
volta. Então a gente tem que ter esse cuidado pro nosso trabalho ser
diferenciado... aqui a gente trabalha muito, ganha pouco, mas ganha o justo. 79

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho diferenciado descrito acima nas falas pelas artesãs, seria o trabalho com
qualidade, com bom acabamento e feito sobre efeito de fiscalização rígida? E o trabalho sem o
sufixo “diferenciado” seria o que não passou pelas consultorias de instituições que trazem aos
artesãos normas e padrões pré-estabelecidos, que até então não conheciam?
Na AMAC, tive experiências com os dois sentidos dos “trabalhos” descritos acima. Já fui
consumidor de peças que haviam sido feitas com todo cuidado e zelo para levarem o selo dos
padrões do SEBRAE, onde houve uma fiscalização rígida para que os produtos pudessem estar
expostos nos stands e em feiras no exterior. Mas também fui público, através de uma encomenda
feita diretamente a elas, sem época de feiras, eventos, exposições ou consultorias, pelo contrário,
em uma época sem vendas e sem perspectivas, e nesse sentido, o trabalho ficou desprovido de
algumas exigências e características de qualidades, tão defendidas por elas, como
comprometimento com prazo de entrega, esclarecimentos sobre o método de produção, cuidado
na entrega do produto.
Portanto, observamos que sim, a qualidade está associada à elevação da autoestima, bem
viver e outras características positivas, e, que mais uma vez, atrelamos esse termo ao de
conhecimento e aprendizado, mas que é preciso sustentar a marca qualificação na qual elas

77
Entrevista concedida pela artesã Marcelucia, ao autor, junho de 2017.
78
Entrevista concedida pela artesã Marcelucia, ao autor, junho de 2017.
79
Entrevista concedida pela artesã Joelma, ao autor, junho de 2017.
Página 399 de 2230

“vestem” em todos os sentidos, em todos os momentos e para todos os públicos a qual levam suas
incríveis peças.
Marcelucia nos ajuda a refletirmos quando expõe que esses elementos de qualidade,
conhecimento e aprendizado, na verdade são transitórios, e, segundo ela, é algo que não ficou só
no bordado, “é algo que ficou implementado na mente, a gente leva pra outros campos, pra vida,
pro dia-a-dia, nas relações. “É uma coisa que fica!”, e o melhor de tudo, conclui ela, “a gente ainda
pode passar para outras pessoas”.

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Rápido/NUPEEA. 2004.

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Indicadores Sociais. Perfil dos Municípios Brasileiros: Cultura 2012. Rio de Janeiro: IBGE,
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Paulo: Atlas, 2003

MANZINI, Ezio. Design, when everbody design: introduction to Design for Social innovation.
The MIT Press. Cambridge/London: 2015.

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RÖDEL, H. SPFW. Máscaras de animais em crochet para 2nd floor. Porto Alegre: 2010.
Disponível em: <http://www.helenrodel.com.br/projetos/2nd-floor-inverno2010>. Acesso em:
15 abr. 2010.

SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS. Termo de


referência: atuação do Sistema SEBRAE no artesanato. Brasília: SEBRAE, 2010.
Página 400 de 2230

CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBESIDADE EM LIVROS DIDÁTICOS DE CIÊNCIAS


DO ENSINO FUNDAMENTAL

CONSIDERATIONS ABOUT OBESITY IN SCHOOL BOOKS OF SCIENCE OF


FUNDAMENTAL EDUCATION

Uerlene do Rosário Garcês Ribeiro


Mestre em Ensino de Ciências e Matemática - UFMA
Jackson Ronie Sá-Silva
Doutor em Educação - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UniSinos
Professor Adjunto do Departamento de Biologia – UEMA
Nilvanete Gomes de Lima
Doutora em Ciências Sociais
Professora de Sociologia do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico no
Instituto Federal de Educação e Tecnologia do Maranhão – IFMA
Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Na Idade Média os corpos gordos eram tidos como sinal de formosura, prestígio e
riqueza, sendo considerados como símbolo de saúde, força e poder. Com o passar do tempo foram
sendo percebidos de maneira diversa e o excesso de peso foi categorizado como obesidade, uma
doença que traz consigo várias comorbidades que precisa ser combatida. Este trabalho analisou
discursos sobre a obesidade presentes em livros didáticos de Ciências do ensino fundamental
aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2017, utilizados em escolas
públicas da cidade de São Luís, Maranhão, buscando compreender a ideia de obesidade e
caracterizando aspectos biomédicos e socioculturais nessas obras. A pesquisa caracterizou-se
como qualitativa e documental. Ao todo foram catalogados doze livros do 6º ao 9º ano encontrados
em três escolas do bairro da Vila Palmeira e analisados a partir da perspectiva dos Estudos
Culturais em Educação e da Análise de Conteúdo de Bardin (1977). Os discursos giravam em
torno do que é saudável e do movimento. Concluímos, portanto, que os livros didáticos de Ciências
falam dela de forma higienizada, propondo formas de incorporar medidas preventivas para que os
corpos se adequem ao que é tido como “normal” e aceito atualmente, daí a necessidade de
pensarmos mais criticamente se são saudáveis apenas os corpos magros.
Palavras-chave: Obesidade. Ensino de Ciências. Livro didático. Educação em Saúde.

Abstract: In the Middle Ages, fat bodies were seen as a sign of beauty, prestige and wealth, being
considered a symbol of health, strength and power. Over time, they were perceived differently and
excess weight was categorized as obesity, a disease that brings with it several comorbidities that
need to be combated. This work analyzed speeches about obesity present in elementary science
textbooks approved by the 2017 National Textbook Program (PNLD), used in public schools in
the city of São Luís, Maranhão, seeking to understand the idea of obesity and characterizing
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aspects biomedical and socio-cultural aspects of these works. The research was characterized as
qualitative and documentary. In all, twelve books from the 6th to the 9th grade were found in three
schools in the Vila Palmeira neighborhood and analyzed from the perspective of Cultural Studies
in Education and Bardin's Content Analysis (1977). The speeches revolved around what is healthy
and about movement. We conclude, therefore, that science textbooks talk about it in a hygienic
way, proposing ways to incorporate preventive measures so that the bodies adapt to what is
considered “normal” and currently accepted, hence the need to think more critically if only thin
bodies are healthy.
Keywords: Obesity. Science teaching. Textbook. Health education.

1. Introdução

A obesidade nem sempre foi vista como estigma social. Durante muito tempo se
configurou como sinal de formosura, prestígio, riqueza, símbolo de saúde e sinônimo de força e
poder. “O prestígio do gordo está ligado, antes de mais nada, ao meio” (VIGARELLO, 2012, p.
21).
Os “excessos” foram muitas vezes retratados em obras de pintores da Idade Média e da
Renascença, mas o olhar que se tinha estava bem longe do olhar que hoje temos (e fazemos) da
obesidade. As transformações ocorridas na sociedade modificaram nossa maneira de enxergá-la.
Embora a obesidade seja percebida como algo depreciativo, precisamos compreendê-la em um
contexto plural, pois ela envolve aspectos sociais, econômicos, políticos, históricos e culturais –
que são quase sempre esquecidos de serem mencionados ou problematizados, principalmente em
sala de aula – e não somente relacioná-la aos aspectos genéticos, biológicos e médicos.
Conforme Sá-Silva, Ribeiro, Borges e Leal (2016, p. 58), a obesidade vem ganhando
espaço cada vez maior no que se refere à prevenção e mudanças de hábitos alimentares quase
sempre com o intuito de reduzir seus altos índices no Brasil e no mundo. Isto nos dá indícios de
que há uma urgência e emergência em se discutir o tema da obesidade numa perspectiva mais
ampla, sobretudo na escola.
Como este tema tem sido abordado no contexto educacional? O que ensinam os livros
didáticos de Ciências sobre a obesidade? A lógica biomédica é a que prevalece? Os aspectos
históricos e socioculturais sobre a obesidade são problematizados? São questões importantes que
merecem ser pensadas/problematizadas.
É fundamental reconhecer que as inúmeras transformações sociais e econômicas ocorridas
no Brasil nos últimos anos provocaram mudanças importantes no perfil epidemiológico e
nutricional da população, ocasionando, portanto, um aumento da obesidade em faixas etárias cada
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vez mais jovens (SANTOS, 2005). Nesse sentido, professores e professoras da educação básica
devem estar atentos a essa questão, compreendendo sua origem multifatorial e a importância da
sua atuação frente a esse problema de saúde pública (LOPES et al., 2013).
O Ministério da Educação (MEC) afirma que professores/as devem incluir tais temas no
currículo escolar, tendo o cuidado de abordar o assunto de forma crítica e não estereotipada. Em
uma perspectiva cultural, a obesidade deixou de ser configurada apenas como patologia, passando
a ser compreendida também como uma produção cultural a que temos acesso a partir de diferentes
fontes (SÁ-SILVA; RIBEIRO; BORGES; LEAL, 2016).
Nessa perspectiva os Estudos Culturais se configuram como um valioso instrumento
teórico-metodológico capaz de nos dar suporte para que possamos compreender a maneira como
a cultura vem influenciando nossa maneira de viver, pensar e agir. E ainda, nos possibilita entender
que todas as representações sociais são frutos de processos históricos e culturais que devem ser
problematizados e discutidos no ensino de Ciências.
Segundo Oliveira (2009, p. 40), “a cultura, desempenha papel constitutivo na vida social.
As práticas sociais não são apenas influenciadas pela cultura, são atravessadas por ela, por um
campo de produção e negociação de significados”. Dessa forma, é interessante e significativo
poder compreender os diferentes significados que são dados à obesidade através dos discursos
produzidos nos livros didáticos de Ciências.
Neste artigo, o corpus de análise se constitui dos discursos sobre a obesidade presentes no
conteúdo dos livros didáticos de Ciências do ensino fundamental aprovados pelo Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2017 e utilizado pelas escolas públicas estaduais da cidade
de São Luís, Maranhão. A pesquisa apresenta uma investigação de cunho qualitativo cujo objetivo
mais geral é analisar os discursos sobre a obesidade em livros didáticos de Ciências do ensino
fundamental utilizados em escolas públicas de São Luís, ao mesmo tempo em que busca
compreender a ideia de obesidade e caracterizar os aspectos biomédicos e socioculturais dela
nesses livros.

1 Metodologia

Realizamos a pesquisa em Livros Didáticos de Ciências (do Ensino Fundamental II Séries


Finais - 6º ao 9º ano) de escolas públicas estaduais da cidade de São Luís, Maranhão, para conhecer
os conteúdos sobre o tema da obesidade, através da perspectiva qualitativa, utilizando os
pressupostos teórico-metodológicos dos Estudos Culturais em Educação.
Essa temática envolve a compreensão de um objeto construído pelas representações -
sociais, históricas, culturais e pela subjetividade. Assim, optamos por utilizar a pesquisa
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qualitativa, entendendo que este tipo de abordagem nos daria a descrição e compreensão
necessárias pois, “quem trabalha com dados qualitativos não deve se preocupar em quantificar e
em explicar, e sim em compreender. Compreender e interpretar a realidade” (MINAYO, 2014, p.
24). Foi exatamente esse o exercício que nos propusemos a realizar.
Como base teórica e metodológica utilizamos os Estudos Culturais em Educação que por
sua vez, nos possibilitou compreender os significados dados à obesidade nos discursos produzidos
por autores e autoras dos livros didáticos de Ciências do ensino fundamental.
Além de qualitativa esta é uma pesquisa documental cujo objeto de investigação foram os
livros didáticos de Ciências utilizados na rede pública de ensino da cidade de São Luís, Maranhão.
A pesquisa documental é importante pois nos possibilita uma riqueza e diversidade de
informações. Além disso, o uso de documentos em pesquisas “deve ser apreciado e valorizado.
[...] porque possibilita ampliar o entendimento de objetos cuja compreensão necessita de
contextualização histórica e sociocultural” (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009, p. 02).
Como técnica de análise de dados, utilizamos a análise de conteúdo que para Laurence
Bardin (1977, p. 42), consiste em:
Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por procedimentos,
sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores
(qualitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições
de produção/recepção [...] destas mensagens.

Através da análise de conteúdo pretendíamos obter indicadores que nos permitissem


analisar as mensagens referentes ao tema da obesidade presente nos livros didáticos de Ciências.

2.1 Coleta de dados

A coleta de dados ocorreu em quatro escolas públicas da rede estadual de ensino do


município de São Luís, Maranhão. O local escolhido para realização dessa coleta foi o bairro da
Vila Palmeira.
A escolha do local se deu a partir da localização na região urbana de São Luís e da situação
de vulnerabilidade e risco social presente no bairro, na medida em que os locais mais vulneráveis
são mais propensos ao desenvolvimento e aumento da obesidade conforme revelam os trabalhos
de Cláudia Borges Colcerniani e Fernanda B. C. Carlos de Souza (2008, p. 02-04),
A obesidade nos remete à idéia [sic] de uma classe social economicamente mais abastada,
cujo acesso aos alimentos seja fácil e imediato. No entanto, a realidade nos mostra que
tal raciocínio não é verdadeiro, visto que o número de pessoas obesas nas classes sociais
consideradas pobres é alto e está em crescimento. [...] O fato das pessoas que vivem em
um meio pobre, serem empurradas para o consumo de alimentos baratos e muito
calóricos, tem sido determinante na constatação da obesidade crescente.

De acordo com o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) a Vila Palmeira se


encontra dentro da área de vulnerabilidade e risco social. O contato com os estabelecimentos de
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ensino se deu por meio da Carta de Apresentação da Pesquisa demonstrando às escolas tanto as
intenções quanto o objeto de nossa investigação, solicitando dessa forma, o consentimento da
direção e coordenação pedagógica para realizar a coleta dos dados. Somente após o consentimento
iniciamos a coleta dos dados.
As escolas que fizeram parte da pesquisa no bairro da Vila Palmeira foram: Colégio
Militar da Polícia Militar do Maranhão (Tiradentes) – Escola Estadual, trabalha com Ensino
Fundamental I (1º ao 5º ano) e II (6º ao 9º ano) e Ensino Médio (1º, 2º e 3º grau); Colégio Militar
2 de Julho (Bombeiros) – Escola Estadual, trabalha com Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano) e
II (6º ao 9º ano) e Ensino Médio (1º, 2º e 3º grau); Unidade Integrada Pio XII - Escola Estadual,
trabalha com Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano) e II (6º ao 9º ano), Ensino Médio (1º, 2º e 3º
grau) e Educação de Jovens e Adultos (EJA); e U. E. B. Ensino Fundamental Newton Neves80
– Escola Municipal, trabalha com Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano) e II (6º ao 9º ano) e
Educação de Jovens e Adultos (EJA).

2.2 Materiais da Investigação

Os materiais de nossa investigação foram os Livros Didáticos (LD) de Ciências (do 6º ao


9º ano), aprovados pelo PNLD do ano de 2017 utilizados pela rede pública de ensino no triênio
2017/2018/2019.
Alguns critérios definidores para a escolha dos mesmos foram: terem sido aprovados pelo
PNLD 2017, integrarem o Guia Digital do PNLD 2017 e terem sido adotadas pelas escolas
participantes da pesquisa para subsidiar o trabalho docente. As coleções que fizeram parte de nossa
análise estão descritas no quadro 1 a seguir:

Quadro 1 – Descrição das coleções analisadas de acordo com o estabelecimento de ensino


Escolas Instrumento de Coleção
Bairro Ano Autores/as Editora
Visitadas Coleta Analisada
Livros 6º 7º Investigar e conhecer:
Sônia Lopes Saraiva
1ª Didáticos e 8º Ciências da Natureza
Militar da Vila adotados pelo
Polícia Palmeira PNLD de Ciências Novo pensar Demétrio
(Tiradentes) Ciências do ano – Edição Renovada Gowdak e
9º FTD
de 2017 (PNLD Eduardo
2014/2015/2016)81 Martins

80
Realizamos a visita nesta escola, apresentamos a Carta de Intenções da Pesquisa, mas não foi possível a realização
da coleta dos dados. A escola nos encaminhou à Secretaria Municipal de Educação (SEMED) e solicitou uma série
de documentação, o que foi inviável devido ao cumprimento dos prazos e cronograma da pesquisa.
81
Esta coleção utilizada no 9º ano na escola Militar Tiradentes é diferente porque segundo informações da
coordenação pedagógica da escola, foram entregues poucos livros que não supriram a necessidade dos/as alunos/as e
por conta disto optaram por utilizar a coleção anterior aprovada pelo PNLD de 2014.
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Livros
Didáticos 6º Demétrio

Vila adotados pelo 7º Gowdak e
02 de Julho Ciências Novo Pensar FTD
Palmeira PNLD de 8º e Eduardo
(Bombeiros)
Ciências do ano 9º Martins
de 2017
Livros
Ciências – (Planeta
Didáticos 6º
3ª Terra; Fernando
Vila adotados pelo 7º
C. E. Vida na Terra; Gewandsz- Ática
Palmeira PNLD de 8º e
Pio XII Nosso Corpo; Najder
Ciências do ano 9º
Matéria e energia)
de 2017
Fonte: Autoria própria.

2.3 Percurso da análise de dados

Embora o tema obesidade seja abordado, mais especificamente, no 8º ano - no conteúdo


de alimentação, optamos por analisar também os outros livros didáticos de Ciências do 6º, 7º e 9º
ano, por entendermos que esse tema, pertencente ao componente Transversal Saúde, pode ser
incorporado em outros anos de ensino, bem como em diferentes contextos.
Após a coleta dos dados, com as coleções aprovadas pelo PNLD e escolhidas pelas escolas,
procedemos à organização e análise dos materiais que, de acordo com Laurence Bardin (1977, p.
95), acontece em três etapas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados,
inferência e interpretação.
Para Bardin (1977, p. 95), a pré-análise se constitui como “a fase de organização
propriamente dita”. Desse modo, foi possível fazer a escolha dos materiais que fariam parte da
análise. Porém, para isso, realizamos a leitura flutuante desses materiais a fim de estabelecer
contato com o documento e conhecer seu conteúdo. A partir desse contato, “pouco a pouco a
leitura foi se tornando mais precisa” (BARDIN, 1977, p. 96) a ponto de percebermos que o tema
da obesidade tratado nesses livros didáticos (LD) de Ciências se apresentava de forma higienizada.
Em seguida, partindo da ideia de que a obesidade é marcada socialmente como doença
procuramos identificar como esses livros didáticos apresentavam o tema obesidade a partir do
discurso biomédico.
Concluída essa primeira fase, iniciamos o processo de exploração do material, ou seja, a
“fase, longa e fastidiosa, que consiste essencialmente de operações de codificação, desconto ou
enumeração, em função de regras previamente formuladas” (BARDIN, 1977, p. 101). O processo
de categorização se deu, portanto, a partir da repetição e relevância de palavras presentes no
conteúdo dos discursos dos autores e autora desses LD, formando nossas unidades de registro e
de contexto, que nos permitiram codificar o material e construir 9 categorias de análise.
Reconhecemos, no entanto, que no momento da análise algumas categorias se tornaram
menos expressivas diante de outras e, por esse motivo não faria sentido discuti-las. Dessa forma,
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decidimos apresentar somente aquelas com maior representatividade, quais sejam: o que se fala
sobre saúde alimentar; como os corpos “saudáveis” aparecem e a representação do gordo e da
obesidade através das figuras/imagens e comentários sobre ela.

2 Resultados e discussão

Apresentamos nesta seção as descrições e problematizações acerca do conteúdo das


mensagens sobre o tema obesidade a partir da análise documental realizada com livros didáticos
de Ciências do ensino fundamental aprovados pelo PNLD de 2017.
De maneira geral percebemos que a obesidade ainda é vista pela ótica biomédica, sendo
muitas vezes caracterizada como um problema social grave que precisa ser combatido. Deste
modo, inúmeras mensagens aparecem para indicar a importância da alimentação saudável, do
corpo saudável como mecanismos promotores da saúde.
Entretanto, reconhecemos a necessidade de enxergá-la também pelo viés social e cultural
e não somente pelo biomédico.

3.1 Entre proibições e permissões: o que se fala sobre saúde alimentar

A alimentação é uma das atividades humanas que mais aproximam as pessoas. Através
dela incorporamos não só nutrientes essenciais à nossa sobrevivência, mas tudo aquilo que
envolve o ato de comer. Isso porque, os alimentos são escolhidos, preparados e combinados de
maneira particular, com cheiro, cor, temperatura, textura e sabor. Nos alimentamos, portanto, de
seus significados e de seus aspectos simbólicos (DAMATA, 1987). É por isso que, de acordo com
Denise Bernuzzi de Sant’Anna (2003, p. 42),
Alimentação equilibrada, alimentação natural, alimentação consciente... as identificações
variam tanto. Mesmo para aqueles que buscam emagrecer, não faltam receitas
conjugando dieta com bem-estar, prescrições de regime intimamente associadas ao
prazer de comer, enquanto que, em vários restaurantes e lanchonetes, os menus
específicos para a aquisição da boa forma deixaram de ser considerados extravagâncias
de uma minoria para funcionar como uma exigência de massa. Há muito sabemos que
"somos o que comemos". Mas, atualmente, somos levados a jamais esquecer que
podemos ser tudo o que queremos, desde que as mudanças alimentares em voga façam
parte da nossa rotina. Ou seja, por meio da comida pode-se, por exemplo, mudar a
aparência corporal, transformar o estado emocional e reinventar cotidianamente a própria
subjetividade.

Dessa forma, a comida ganha um lugar de destaque cada vez maior em relação ao corpo e
à saúde. A alimentação deve ser compreendida, portanto, por inúmeras perspectivas. Mesmo com
novas mudanças de hábitos, não podemos esquecer que o ato de comer é construído culturalmente
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e muitas vezes elaboradas a partir de diversas formas de saber - como o conhecimento científico,
o senso comum e o religioso, dentre outros (CANESQUI, 1988).
Por outro lado, “na alimentação humana, natureza e cultura se encontram, pois se comer é
uma necessidade vital, o quê, quando e com quem comer são aspectos que fazem parte de um
sistema que implica atribuição de significados ao ato alimentar” (MACIEL, 2005, p. 49).
Vejamos, portanto, o que dizem os conteúdos dos LD sobre a saúde a partir da alimentação.

Figura 1 – Alimentos de origem animal devem ser consumidos com moderação

Fonte: LOPES, 2015, p. 59.

Alimentos de origem animal devem ser consumidos com moderação, pois o excesso traz
problemas, como a obesidade, como mostra figura 1. Percebemos já de início, que há uma relação
de biopoder sendo desenvolvida. Esse termo apresentado por Foucault, representa os mais
diversos mecanismos para controlar o corpo (individual) e a população. Para ele, “o poder era,
antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e,
finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la”
(FOUCAULT, 1988, p. 127). E ainda, “são as disciplinas do corpo e as regulações da população
que constituem o poder sobre a vida” (FOUCAULT, 1988, p. 130).
É, portanto, nesse jogo de poder que o disciplinamento e controle dos corpos vão sendo
escritos. O corpo passa a ser domínio político, onde normas são constantemente impostas pela
sociedade para colocá-los em um sistema de aprisionamento. Com isso, ao dizer que devemos
consumir certos alimentos com moderação, é também uma forma de disciplinamento dos corpos.
Fica evidente, portanto, que o excesso é prejudicial à saúde, pois nos remete a ideia de descontrole.
Outras questões também aparecem com muita frequência nos LD, como mostram as figuras 2, 3
e 4 a seguir,

Figura 2 – Importância da alimentação bem variada

Fonte: LOPES, 2015, p. 63.


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Figura 3 – Alimentação Saudável

Fonte: LOPES, 2015, p. 71.

Figura 4 – Alimentação Saudável e balanceada

Fonte: GOWDAK, 2015, p. 39.

Essas mensagens trazem um discurso que enfatiza sobretudo, a importância de se ter uma
alimentação variada e saudável. Uma alimentação saudável “é aquela que atende todas as
exigências do corpo, ou seja, não está abaixo nem acima das necessidades do nosso organismo”
(BRASIL, 2007, p. 15). E para ser saudável, a alimentação deve ser “variada – que inclua vários
grupos alimentares; equilibrada – que respeite o consumo adequado de cada alimento; suficiente
– em quantidades que atendam e respeitem as necessidades de cada pessoa; acessível, colorida e
segura” (BRASIL, 2007, p. 16-17, grifos do autor). Isso é o que encontramos com maior
frequência dentro do conteúdo dos livros didáticos conforme mostram as figuras 5 e 6 a seguir.

Figura 5 – A alimentação equilibrada

Fonte: GEWANDSZNAJDER, 2015, p. 60.

Figura 6 – Definição da alimentação equilibrada


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Fonte: GEWANDSZNAJDER, 2015, p. 60.

A própria definição sugere esse equilíbrio quando diz “não está nem abaixo nem acima das
necessidades do organismo” (BRASIL, 2007, p. 15), ou seja, deve estar em equilíbrio, balanceado.
Isto é bem evidente nessas representações. No entanto, um ponto que chama a atenção é que a
alimentação saudável precisa ser acessível – tanto em um aspecto físico, quanto financeiro, mas
isso não é percebido no conteúdo dessas mensagens. Essa informação merece ser discutida e
problematizada porque nem todos os alimentos recomendados (e que aparecem com frequência
nesses LD) são acessíveis à população, seja por questões de regionalidade, seja por questões
financeiras.

Figura 7 – Fazendo escolhas sadias

Fonte: LOPES, 2015, p. 72.

Na figura 7, é possível perceber claramente como o “poder disciplinar” vai sutilmente


sendo incorporado no nosso modo de viver. Ou seja, ao fazer escolhas sadias os indivíduos não o
fazem com base em seus interesses íntimos e pessoais. Mas, sobretudo, com base nos interesses
daqueles que o querem dominar.
Ao expor tais ideias nessas representações, expõe-se também aquilo que “não é adequado”,
que “não é aceito”, ou seja, frases, enunciados e imagens, são representações e interações
discursivas carregas de saber-poder que para Fabiana Bom Kraemer, Shirley Donizete Prado,
Francisco Romão Ferreira e Maria Claudia Veiga Soares de Carvalho (2014, p. 1345),
Conhecimento, saber e poder estão relacionados de forma circular a partir do momento
em que a racionalidade opera como princípio de organização dos saberes e de ordem no
mundo e a ciência se configura numa forma socialmente privilegiada e institucionalmente
legitimada de produção de verdades.

Temos que ter um olhar diferenciado para perceber essas relações. Olhar com desconfiança
para aquilo que nos é apresentado a fim de identificar mensagens que possam reforçar o
preconceito.
Nossos hábitos alimentares fazem parte de um sistema cultural repleto de símbolos,
significados e classificações, de modo que nenhum alimento está livre das associações culturais
que a sociedade lhe atribui (LÉVI-STRAUSS, 1976). Nesse caminho, vale dizer que essas
associações determinam aquilo que comemos e bebemos, o que é comestível e o que não o é.
Símbolos, significados, situações, comportamentos e imagens que envolvem a alimentação podem
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ser analisados como um sistema de comunicação (ALMEIDA; GUTIERREZ; VILARTA, 2009,


p. 64).
Não nos alimentamos apenas conforme o meio natural em que vivemos, mas conforme o
meio social a que pertencemos. Assim, escolhemos não só o que comer, mas quando comer, como
comer e com quem comer, aspectos que, constantemente interligados, definem um sistema
alimentar (PAPALÉO; GUTIERREZ, 2009, p. 120). Dessa forma, a comida saudável associada à
saúde ganhou um novo sentido, ela está na moda. Para Denise Bernuzzi de Sant’Anna (2003, p.
47),
Essa tendência contribui para que a comida também seja penetrada pelos fenômenos da
moda. Não por acaso, a recomendação de que uma alimentação variada pode significar
saúde e bem-estar não cessa de conquistar adeptos entre publicitários e industriais. Assim
como as roupas, os lazeres, os trabalhos, a vida íntima e social, a comida tende a se tornar
algo que deve oferecer diversidade, envolvendo receitas, restaurantes e produtos que
entram e saem da moda.

Isso reflete exatamente as concepções sobre saúde alimentar apresentada nesses LD.

Figura 8 – Alimentação saudável em 10 lições

Fonte: LOPES, 2015, contracapa.

De acordo com Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)82, as


mensagens que aparecem na contracapa dos LD do ensino fundamental anos iniciais, finais e do
ensino médio sobre alimentação saudável conforme representado na figura 8, tem por objetivo
incentivar os estudantes a desenvolverem hábitos saudáveis e auxiliar na redução da obesidade de
crianças e jovens (BRASIL, 2015).
Essas mensagens são medidas profiláticas que visam controlar a obesidade e o sobrepeso
na sociedade. Por conta disso, esses LD trazem um discurso meramente voltado para a saúde, com
indicações do que devemos ou não comer. Além disso, a relação que se faz da comida com a saúde
tem tido grande representatividade atualmente pois, “a comida não só caracteriza um corpo, mas

82
BRASIL. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Disponível em:
<https://www.fnde.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/area-de-imprensa/noticias/item/7673-livros
did%C3%A1ticos-ter%C3%A3o-mensagens-sobre-alimenta%C3%A7%C3%A3o-saud%C3%A1vel>.
Acesso em: 15 maio 2019.
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o constitui e o modifica constantemente. As ações da comida sobre o corpo variam de modo


significativo, elas estão baseadas tanto em suposições objetivas quanto em definições e ideias
subjetivas” (SANT’ANNA, 2003, p. 49). Somos constituídos, portanto, a partir dessas
representatividades. Alimento e saúde mais do que nunca tem caminhado juntos.

3.2 Paradoxo contemporâneo: como os corpos “saudáveis” aparecem

O que é corpo? O que é “saudável”? O que faz do corpo um corpo “saudável”?


O corpo é alomórfico, é adaptativo e adaptado... é cobrado, é olhado, é alvo de críticas e
de desejo, de regras e repressões... O corpo humano, suas diversas formas, contornos,
cores e significados atribuídos dentro de um contexto sociocultural atravessa a história,
em constante busca pela perfeição tangível e inatingível (DOURADO; FUSTINONI;
SCHIRMER; BRANDÃO-SOUZA, 2018, p. 207).

Essas questões nos ajudam a pensar (e repensar) as representações que fazemos (e temos)
do corpo humano enquanto um produto social e cultural. Ao refletir sobre o que é corpo nossas
definições não se esgotariam, pois, dependendo do contexto no qual este corpo está inserido ele
adquire uma infinidade de sentidos. Para Jocimar Daolio (1995, p. 25-26),
Ao se pensar o corpo, pode-se incorrer no erro de encará-lo como puramente biológico,
um patrimônio universal, já que homens de nacionalidades diferentes apresentam
semelhanças físicas. Entretanto, para além das semelhanças ou diferenças físicas, existe
um conjunto de significados que cada sociedade escreve nos corpos dos seus membros
ao longo do tempo, significados estes que definem o que é corpo de maneiras variadas.

Da mesma forma, o termo “saudável” pode estar relacionado a diferentes questões não
sendo necessariamente ligado somente a alimentação. Então, um corpo “saudável” pode ser um
corpo gordo, um corpo magro, um corpo esbelto, um corpo deficiente, alto, baixo, negro, branco,
etc., isto porque se saudável se referir a tudo aquilo que é bom para a saúde, então esses corpos
podem sim ser saudáveis da forma como são. Não tendo necessariamente a ver com os padrões
socialmente aceitos.
Neste ponto, vale destacar que a felicidade, o bem-estar, o lazer, foram questões centrais
nas representações das coleções analisadas como mostram as figuras 9 e 10, por exemplo.

Figura 9 – O lazer proporciona bem-estar

Fonte: LOPES, 2015, p. 15.


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Figura 10 – Bem estar e lazer

Fonte: GOWDAK, 2015, p. 42.

No entanto, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que nessas representações não
aparecem corpos obesos, apenas corpos magros (e felizes). Para Jocimar Daolio (1995, p. 25, grifo
do autor),
O corpo é uma síntese da cultura, porque expressa elementos específicos da sociedade da
qual faz parte. O homem, através do seu corpo, vai assimilando e se apropriando dos
valores, normas e costumes sociais, num processo de inCORPOração (a palavra é
significativa). Mais do que um aprendizado intelectual, o indivíduo adquire um conteúdo
cultural, que se instala no seu corpo.

Ou seja, nossos corpos vivem em constante incorporação de valores, normas e costumes


sociais de acordo com nossa época. A partir disso, é fácil compreender o porquê de não mostrarem
corpos obesos nos LD, pois, o que é reconhecido como o ideal de beleza e de saúde hoje em dia é
o corpo magro. Entende-se assim, que quem não está magro é infeliz, é doente, ou não se sente
bem com o corpo que tem, por isso eles não aparecem. Há, portanto, preconceitos e estigmas em
relação ao gordo e à gordura. De acordo com Erving Goffman (1988, p. 11), o termo estigma foi
criado pelos gregos e se referia a,
Sinais corpóreos com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou
mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo
no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor: uma pessoa
marcada, ritualmente poluída, que deveria ser evitada, especialmente em lugares públicos.

A gordofobia, segundo Andressa Noronha e Camila Deufel (2017, p. [?]) se caracteriza


pelo “sentimento de repulsa ou acentuado desconforto para com as pessoas consideradas gordas,
fora dos padrões estéticos”. Dessa forma, a gordura é um sinal marcado socialmente como algo
ruim, o que classifica os sujeitos gordos como seres abjetos83, que se constituem discursivamente
como menos importantes que os sujeitos magros. Assim, os LD trazem um conteúdo gordofóbico.
Pois, essa não aparição nos LD indicam a rejeição ao corpo gordo e a gordura.
Segundo Maria Raquel Barbosa, Paula Mena Matos e Maria Emília Costa (2011, p. 32),
Hoje vive-se a revolução do corpo, valores relativos à beleza, saúde, higiene, lazer,
alimentação, exercício físico, têm reorientado um conjunto de comportamentos na

83
Segundo Nilvanete Lima (2018) os processos sociais de abjeção que se constituem como outra face da moeda nos
processos de normalização experenciados por todos nós. Nesse sentido, a abjeção seria uma operação de exclusão
constitutiva da demarcação entre sujeitos “legítimos” e seres “abjetos”. Segundo Judith Butler (2000, p. 112), “o
abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, [...], densamente povoadas
por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o
domínio do sujeito seja circunscrito”.
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sociedade, imprimindo um novo estilo de vida. Percebe-se então que vivemos uma época
de contradições, no que diz respeito às nossas escolhas, uma vez que hoje não há uma
obrigação das pessoas se vestirem de acordo com a classe social de que fazem parte,
como ocorria noutras épocas, porém, a moda dita as regras, dita as tendências e aquilo
que devemos escolher.

A moda hoje é levar uma vida mais saudável, fazendo escolhas que atendem essa
especificidade. Hábitos mais saudáveis são entendidos como sinônimos de bem-estar e saúde. Por
isso as representações do “saudável”. A comida antes de tudo precisa ser compreendida como uma
forma de (re)conhecer no outro os valores de sua própria história, pois ao unir pessoas, une-se
também culturas. Figuras/imagens (como mostradas a seguir) aparecem para retratar o estar à
mesa, com alimentos “saudáveis” como uma tentativa de resgatar o poder da comensalidade em
nossa vida ou talvez pelo fato de que, “a alimentação envolve a emoção, o afeto, o sentimento e a
memória. A ‘comida caseira’ evoca aconchego, remete ao ‘familiar, ou seja, ao próximo” (GÓES,
2008, p. 381).

Figura 11 – A comensalidade no ambiente familiar

Fonte: LOPES, 2015, p. 48-9.

Figura 12 – Refeição em família

Fonte: GOWDAK, 2015, p. 41.

Figura 13 – A comensalidade no ambiente escolar.


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Fonte: GEWANDSZNAJDER, 2015, p. 60.

De acordo com Sueli Aparecida Moreira (2010, p. 23) a comensalidade significa, portanto,
Conviver à mesa e isto envolve não somente o padrão alimentar ou o quê se come mas,
principalmente, como se come. Assim, a comensalidade deixou de ser considerada como
uma consequência de fenômenos biológicos ou ecológicos para tornar-se um dos fatores
estruturantes da organização social.

Entende-se, portanto, que tais representações têm forte relação com a convivência familiar
em que a comida proporcionaria sensação de bem-estar e por outro lado, o alimento que é
preparado em casa é visto como mais saudável, por ser caseiro. Mas é interessante mencionar que
essa relação com a alimentação não é estática. É uma relação que vai sendo modificada ao longo
do tempo, então, dependendo das influências sociais e culturais que cada sujeito tiver durante sua
vida seu gosto pela comida ou por determinados tipos de alimentos também vão sendo alterados
nesse percurso.
Por este motivo, os corpos que aparecem nesses LD são corpos que prezam pela aparência
e saúde física, por meio da alimentação “saudável” conforme figuras 14, 15 e 16.

Figura 14 – A comensalidade individual

Fonte: LOPES, 2015, p. 54.

Figura 15 – Se alimentando só
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Fonte: GOWDAK, 2015, p. 61.

Figura 16 – Alimentação individual

Fonte: GOWDAK, 2015, p. 39.

Além disso, essas figuras também sugerem a importância do autocuidado. Se o comer


sozinho envolve uma questão mais pessoal, o que os LD querem dizer com essas figuras/imagens
é que essas pessoas estão priorizando a saúde física ao optarem por alimentos balanceados e
saudáveis como por exemplo, comer saladas ou porções variadas de acordo com o que é
estabelecido atualmente como o sendo o mais adequado. Corpo e saúde são também construções
socioculturais que vão sendo modificadas ao longo do tempo.

3.3 Produção (e poder) cultural: a representação do gordo e da obesidade pela ótica


imagética

A cultura tem influenciado cada vez mais nossa vida. Isto porque ela é construída por um
conjunto de textos produzidos pelo homem não apenas em relação a linguagem verbal, mas
também por mitos, rituais, gestos, ritmos, entre outros. Esses textos são considerados também
sistemas comunicativos que obedecem às regras e normas preconizadas pela cultura vigente
(MENDES; NOBREGA, 2004, p. 131).
Dessa forma, conteúdos imagéticos se apresentam como verdadeiros sistemas
comunicativos impregnados de significações que vão muito além do entretenimento.
A imagem é um artefato cultural que apresenta e representa o mundo. O termo imagem
se refere às diversas formas visíveis representadas, por exemplo, em desenhos,
fotografias, pinturas, charges. A imagem é um produto que revela a visão de mundo,
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expressa a sensibilidade e a intencionalidade de seu autor na captura de determinado


momento da realidade (SOUZA; OLÁRIA, 2014, p. 7).

Portanto, figuras, imagens, ilustrações, charges, tirinhas, quadrinhos, desenho animado etc.
vão se constituir como verdadeiros campos férteis para se compreender as relações (e intenções)
da cultura vigente principalmente quando associamos essas imagens as questões relacionadas ao
corpo. Pois, “além de ser um processo histórico, o corpo funciona como um processador da
história, por meio do qual são veiculados e modificados os legados culturais e biológicos”
(SANT’ANNA, 2000, p. 50). Assim, nas três coleções analisadas, identificamos o uso das tirinhas
referentes ao desenho Garfield, como mostram as figuras 17, 18, 19, 20 e 21.

Figura 17 – O desenho Garfield e a representação do gordo e da obesidade

Fonte: LOPES, 2015, p. 50

Garfield é um felino (preguiçoso) e sua história é uma sátira aos donos de animais
domésticos que retrata o gato como o verdadeiro dono da casa. O felino, a sua maneira, também
sofre de problemas tipicamente humanos como a dificuldade em manter uma dieta, o ódio às
segundas-feiras, a apatia, o mau humor, entre outros. No decorrer da história, a conduta de Garfield
se torna cada vez mais humana e menos felina. Sua aparência física também se transformou ao
longo do tempo, já que no começo ele era um gato grande, gordo, com mandíbulas frouxas e olhos
pequenos. Com o passar dos anos, Garfield se tornou menor, seus olhos ficaram maiores e ele
passou a sorrir mais. A partir de 1983, começou a caminhar com duas patas e deixou de se focar
nos pontos fracos dos gatos para se centrar em situações cômicas (HISTORY, [201-]).
Tais situações, vivenciadas pelo personagem Garfield, são utilizadas para satirizar
questões relacionadas ao corpo obeso, como por exemplo, dificuldades em manter uma dieta, ter
ódio as segundas-feiras, ter apatia, além disso são classificadas como mal-humoradas.
Com relação à sua aparência, podemos fazer um paralelo com o que o Vigarello (2012)
apresenta em seu livro as metamorfoses do gordo história da obesidade, essa transformação se
deu justamente com as próprias mutações no modo de perceber o gordo na história. Antes o gordo
tinha um prestígio social, por isso ele era visto com certa autonomia diante das outras pessoas.
Com o passar do tempo esse prestígio foi dando lugar ao estigma, já que o ideal de corpo
“belo” passou a ser associado ao corpo esbelto, magro, leve. Garfield se tornou menor e passou a
sorrir mais, ou seja, por ele ter se tornado alvo de críticas pelas suas condições físicas ele utiliza
o riso para ser mais agradável e assim, ser aceito pelos outros.
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A partir disso, fica claro então o porquê de os LD utilizarem tanto esse personagem para
retratar questões como peso, movimento e hábitos saudáveis. “Gravuras e quadros tentam mais do
que antes figurar o homem pesado” (VIGARELLO, 2012, p. 102). É a partir do acesso à imagem
que o gordo passa a ser estigmatizado,
O acesso à imagem, os volumes agora identificáveis nas miniaturas ou afrescos do fim
da Idade Média, dos quais estavam ausentes até então, é bem o sinal de uma lenta e
explícita atenção que se presta aos contornos e também de uma tentativa de identificar e
estigmatizar os excessos. O tema fica mais vivo nesse século: o “gordo”, novamente
presente na iconografia, revela sem dúvida uma maneira igualmente nova de ser
observado (VIGARELLO, 2012, p. 52).

Com o advento da imagem o “gordo” passa a ganhar formas, contrastes e defeitos. É como
se o desenho/imagem tornassem reais as descrições que se faziam (e se fazem) do gordo. Pois,
antes era apenas a palavra, e com ela não era possível ter essa real dimensão de contraste e defeito,
mas só a partir da imagem essa representação se materializa.

Figura 18 – Garfield e os estigmas do gordo e da obesidade

Fonte: LOPES, 2015, p. 50.

O texto apresentado na figura 18, deixa claro o quão estigmatizado é o gordo atualmente.
Utiliza-se designações que ferem moralmente e psicologicamente pessoas nessas condições –
preguiçoso, guloso, detesta comida saudável, trapaceiro, enganador. “A crítica ao gordo, por sua
vez, continua em grande parte moral: zomba do comportamento [...]” (VIGARELLO, 2012, p.
55). Tudo é motivo de chacota e de zombaria. “O gordo não passa agora de contraste nostálgico,
divertido ou popular [...] é exatamente um modelo social que liga mais que antes o gordo ao
grosseiro” (VIGARELLO, 2012, p. 78-79).

Figura 19 – Tirinha Garfield a respeito de peso e gravidade

Fonte: GOWDAK, 2015, p. 185.

Figura 20 – Tirinha Garfield sobre repouso


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Fonte: GEWANDSZNAJDER, 2015, p. 143.

Figura 21 – Tirinha Garfield sobre movimento

Fonte: GOWDAK, 2015, p. 152.

Também há representações positivas sobre o gordo nos LD, demonstrando que podem
existir outras percepções. É interessante observarmos que, ao mesmo tempo em que se retrata o
gordo como preguiçoso, grosseiro, etc. há uma imagem representando o lado “positivo” da
gordura que está associada a força, ao vigor e a robustez, nos fazendo questionar em que medida
uma pessoa gorda, porém ativo, tende a ser aceita pela sociedade.

Figura 22 - Corpo delgado como sinônimo de força

Fonte: GOWDAK, 2015, p. 126.

Para Kalyla Maroun e Valdo Vieira (2008, p. 175),


Na lógica industrial, o corpo passa a ser visto como força de trabalho. Ele passa a ser
suporte dos signos cambiados com desejos ideológicos, veiculados midiaticamente. Mais
contemporaneamente, a partir da concepção erógena que reconheceu o corpo em sua
totalidade de prazer, ele pode então ser tomado em sua materialidade visível como objeto
de culto narcisista. Logo, ao mesmo tempo em que a humanidade vai avançando na
construção do conhecimento, percebemos uma mudança na relação dos indivíduos com
o seu corpo e na transformação dele pela interação histórica e dialética que se vai
processando. Nessa perspectiva, talvez possamos falar de um corpo transformado (um
corpo contemporâneo) que abarca e imprime as transformações de uma transição social,
que ainda está por completar-se, por estar constituindo a realidade atual e por ser fruto
de um processo dialético.
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“O corpo pode ser encarado como um dos elementos que exterioriza o interior de uma
sociedade” (MAROUN; VIEIRA, 2008, p. 177). O corpo que pratica atividades físicas, que se
cuida, é um corpo que reflete o que a sociedade hoje quer dele. O corpo é conduzido então, “à
condição de propriedade, ora como objeto físico – e descrito em suas qualidades fisiológicas –,
ora como objeto simbólico – e descrito em suas qualidades culturais” (FERREIRA; NOVAES;
ASSIS; TELLES, 2018, p. 184).

4 Considerações finais

A partir do modelo biológico e médico, a obesidade tem sido apresentada e marcada como
doença. Mas o tema nem sempre foi visto dessa forma. A obesidade precisa ser pensada para além
desse olhar biomédico. Um local propício para isso, é sem dúvida a escola.
Na escola, o livro didático é um dos recursos mais utilizados servindo de referência teórica
para alunos/as e subsidiando o trabalho docente. Dessa forma, as maneiras como os conteúdos
relacionados à saúde são apresentados nesses documentos precisam ser analisados. Consideramos
relevante uma abordagem histórica e sociocultural do tema da obesidade no ensino de Ciências
para que professores/as da educação básica possam problematizá-lo a partir de um olhar plural.
Percebemos que a saúde alimentar apresentada nesses LD traz, em sua grande maioria,
uma abordagem meramente preventiva, tendo como propósito principal objetivo o bem-estar
físico das pessoas. Há um discurso normalizador que diz o que devemos ou não consumir, e em
que quantidades, pois o excesso é prejudicial à saúde e a alimentação precisa ser variada e
equilibrada.
Os corpos “saudáveis” aparecem magros e felizes o que nos leva a pensar que, quem não
tem um corpo magro não é feliz/não é saudável. São discursos que se caracterizam como
gordofóbicos, pois o fato de ocultar os corpos obesos nessas representações é uma forma de dizer
que eles não se enquadram no padrão normalizador.
A representação do gordo e da obesidade pela ótica imagética também demonstra uma
visão claramente preconceituosa em relação ao gordo e a obesidade. Ao utilizar referenciais
cômicos como é o caso do personagem Garfield para abordar temas como peso e movimento,
atribuem-se a ele designações como preguiçoso, guloso, que detesta comida saudável e trapaceiro,
são formas preconceituosas que classificam o corpo gordo como algo “anormal” e desprezível.
Por outro lado, um corpo mais boleado pode ter sua versão socialmente aceita quando está
relacionado à força e atividade física, pois nesse caso os músculos dão sustentação e vigor ao
gordo na realização de tarefas profissionais.
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A partir do que foi explicitado, consideramos que as representações sociais e culturais


acerca da obesidade nos LD de Ciências aprovados pelo PNLD 2017 sobretudo as coleções do 8º
e 9º trazem um discurso meramente preventivo (e gordofóbico), nos quais os cuidados com a saúde
aparecem com maior relevância dentro desse contexto.
Ao trazer esse discurso, os LD ratificam que corpos gordos ainda são vistos como
“anormais”, são estigmatizados, pois há uma valorização de corpos magros e elementos voltados
para alimentação saudável, hábitos de vida saudáveis etc., o que reforça ainda mais discurso
medicalizante, disciplinador, normativo. E, fica claro que a ideia de “saudável” é dada, não há
problematizações regionais ou de classe sobre ela. Portanto, a análise documental se faz necessária
para que possamos identificar, compreender e problematizar questões sociais tão relevantes como
é o tema obesidade.

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CORRESPONDÊNCIAS ENTRE SABERES: CONSTRUINDO UMA MATERIOTECA


VIRTUAL COM ARTESÃOS MARANHENSES

KNOWLEDGE´S CORRESPONDENCES: BUILDING UP A VIRTUAL


“MATERIOTECA” WITH CRAFTSPEOPLE FROM MARANHÃO
Alice Campos da Silva
- Bacharel em Design, UFMA
Ferdinan Silva de Sousa
Graduando em Design UFMA
Letícia Barros Dantas
Graduanda em Design, UFMA
Luiza Gomes Duarte de Farias
Graduanda em Design, UFMA
Raquel Gomes Noronha
Doutora em Ciências Sociais UERJ
Eixo: Arte, Educação e Tecnologia

Resumo: Após o percurso de dez anos de pesquisa realizada pelo NIDA (Núcleo de Pesquisas em
Inovação, Design e Antropologia), foram observadas diversas lacunas nas cadeias produtivas de
artesanato, no que se refere à comercialização e a logística dos produtos dos processos produtivos.
Dessa forma, o projeto da construção de uma MAterioteca (DANTAS, BERTOLDI, 2016) surge
como uma possibilidade de facilitar o intercâmbio de saberes e fazeres maranhenses, construída
conjuntamente com os artesãos, a fim de solucionar parcialmente a falta de visibilidade das
comunidades. Assim, o presente artigo possui como objetivo a discussão sobre as etapas de
produção dessa materioteca virtual através de práticas do design colaborativo (MANZINI, 2015)
e da correspondência entre saberes (INGOLD, 2011; 2018) na construção desse acervo.
Apresentaremos a pesquisa de referências de similares, focando na metodologia de produção de
materiotecas e classificação do conteúdo, bem como, a tipificação dos acervos. O artigo trata ainda
da importância das Tecnologias da Informação e Comunicação (VELOSO et al, 2017) na
preservação e salvaguarda desses saberes e fazeres, e como conclusão, exibe nossos resultados,
relativos à identidade visual, arquitetura e o layout do site.
Palavras-chave: MAterioteca. Materiais. Artesanato. Codesign. Maranhão.

Abstract: After ten years of research carried out by NIDA (Innovation, Design and Anthropology
Research Unit) several gaps were observed in the handicraft production chains, with regard to the
marketing and logistics of the products of the production processes. Thus, the project to build a
MAterioteca (DANTAS, BERTOLDI, 2016) emerges as a possibility to facilitate the exchange of
knowledge and practices in Maranhão, built jointly with the artisans, in order to partially solve the
lack of visibility of the communities. This article aims to discuss the stages of production of this
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virtual material collection through the practice of collaborative design (MANZINI, 2015) and the
correspondence between knowledge (INGOLD, 2011; 2018) in the construction of this collection.
We will present the research of similar references, focusing on the methodology of production of
material collections and classification of content, as well as the classification of collections. The
article also deals with the importance of Information and Communication Technologies
(VELOSO et al, 2017) in the preservation and safeguarding of this knowledge and practices, and
in conclusion, it displays our results, relating to the virtual identity, architecture and the layout of
the website.

Key-words: MAterioteca. Materials. Handicraft. Co-design. Maranhão.

Introdução

Ao longo de dez anos de pesquisas em comunidades artesãs no estado do Maranhão,


observou-se diversas lacunas e potencialidades nas dezesseis cadeias produtivas que pudemos
investigar, especialmente a produção de louça em Itamatatiua e em Porto dos Nascimentos; a
produção de tecido de fibra de buriti em Santa Maria; o fazer da renda de Bilro no município da
Raposa, entre muitas outras. Estas comunidades, detentoras de uma forma de produção ligada à
conservação de saberes e fazeres tradicionais, frequentemente carecem de formas de divulgação
que se tracem por meio da tecnologia, evidenciando, assim, a importância de mecanismos que
busquem facilitar a comunicação entre a sociedade e estas comunidades criativas, a fim de ampliar
as possibilidades de intercâmbio entre saberes e de comercialização de produtos, mobilizando
importante aspecto de suas cadeias de valor, a etapa de logística.
Tendo em vista as mudanças contemporâneas no papel do designer que Manzini (2015) atribui a
um processo de deslocamento entre a função de finalizador de produtos para a atual posição, a de
mediador de processos culturais, os designers atualmente encontram-se atuando como
tangibilizadores de conceitos e produtores de sentidos.
Assim, nossa proposta neste artigo é a de apresentar e discutir as bases teóricas e metodológicas
da produção de uma MAterioteca, isto é, um espaço virtual para divulgação de materiais,
processos e produtos artesanais do estado do Maranhão. Aqui, apresentaremos as etapas iniciais
deste projeto, inicialmente refletindo sobre a importância das Tecnologias da Informação e da
Comunicação no âmbito da preservação e salvaguarda desses saberes e fazeres; posteriormente
apresentaremos a pesquisa de referências de similares, com enfoque na metodologia de produção
de materiotecas e classificação do acervo, assim como, a tipificação das materiotecas, no que tange
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à abordagem: comerciais, acadêmicas e independentes. Finalmente, apresentaremos os resultados


preliminares do projeto de identidade visual e os princípios da arquitetura de navegação da
plataforma.

1. Definindo a MAterioteca

Uma materioteca pode ser definida, segundo Dantas e Bertoldi (2016), como um acervo
de amostras de materiais, uma grande biblioteca, que pode ser consultada por qualquer um que
tenha acesso à plataforma. Conforme podemos observar pela forma como se estruturam, há sua
maioria, grandes catálogos categorizados em seções específicas, como polímeros, metais e outros
materiais utilizados por estudantes, artesãos e outros profissionais.
Quanto à tipificação, divide-se em três categorias: acadêmica, independentes e comerciais
(CAMPOS E DANTAS, 2008). Geralmente, estão alicerçadas na categorização de informações
de ordem científica sobre as especificidades físicas dos materiais, exibindo, em seguida, os
produtos que possam ser gerados com a utilização de certo material ou como consequência de um
processo. Foi realizado um levantamento de materiotecas virtuais que atuam nos três âmbitos,
dando ênfase aos acervos de ordem acadêmica, como a Materioteca do Centro Universitário
Feevale, o Tecniche e dei materiali per l'architettura e il disegno industriale - Artec da Università
Luav di Venezia (na Itália), a Materialize (USP), o Laboratório de Design e Seleção de Materiais
da UFRGS e a Materioteca Sustentável – UFSC.
Nas materiotecas analisadas, é rara, quando não, inexistente, a presença de informações que
evoquem saberes tácitos. O conhecimento tácito é definido por Spinuzzi como um tipo de
conhecimento difícil de ser descrito e formalizado e que, por isso, tende a ser ignorado
(SPINUZZI, 2005, p.165). A MAterioteca que aqui apresentamos traz este enfoque, até então não
encontrado em nossas pesquisas. Ela visa disponibilizar o uso de materiais e seus processos na
confecção de produtos executados por alguém que não detém do conhecimento formal sobre os
mesmos, para contribuir para uma sistematização que não busque somente a divulgação de
informações, mas também a promoção de uma correspondência entre saberes e a valorização da
identidade de comunidades tradicionais, trazendo à tona a produção artesanal e a vida das pessoas
envolvidas nesses processos.
Esta proposta está atrelada a outras pesquisas do NIDA - Núcleo de pesquisas em Inovação,
Design e Antropologia da UFMA, que refletem sobre os processos de encontros entre designers e
artesãos, por meio de práticas de correspondências, que para o antropólogo Tim Ingold (2018), é
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uma prática atencional de se estar no mundo, e no campo do design pensamos como uma forma
de fazer coisas juntos, respeitando os processos de todos os implicados nesta ação.
A atividade artesanal, além de ser praticada por diversas gerações tradicionalmente e reflete a
cultura local, é um meio de subsistência com pouca visibilidade, principalmente em comunidades
locais de difícil acesso ou com poucos recursos tecnológicos e de comunicação. Nota-se, portanto,
que a falta de divulgação e visibilidade destas cadeias produtivas gera a dificuldade na
comercialização e logística de circulação destes grupos produtivos.
Logo, os designers como mediadores sociais podem buscar estratégias e soluções alternativas,
enquanto mediador, para ser o elo que dá voz a esses artesãos e facilita essas trocas. Buscamos,
assim, construir relações de correspondências com essas comunidades locais, a fim de que se
consiga dar maior visibilidade a essas cadeias produtivas de valores e saberes.
Considerando tais questões, nossa MAterioteca surge como uma proposta, através das tecnologias
de informação e comunicação, de reduzir a falta de visibilidade da produção local e facilitar sua
comercialização. A construção da MAterioteca, de forma conjunta aos artesãos, possui suas
particularidades por se tratar de uma ação realizada através de práticas colaborativas. Este acervo
não será criado somente por meio de uma coleta de dados a respeito dos materiais e processos
categorizados, visto que será realizado por meio de trocas de saberes e fazeres entre os praticantes
habilidosos, alunos e todos os participantes da pesquisa.

2. Metodologia

Segundo Manzini (2015), uma sociedade cada vez mais fluida e complexa requer a criação
de novas ferramentas de design, ampliando o papel do designer de um mero solucionador de
problemas ao de um agente que atua de forma a dar sentido social às coisas. No desenvolvimento
da MAterioteca, buscamos, primeiramente, entender sua construção como um processo de
colaboração a fim de minimizar os níveis de hierarquia entre os integrantes da iniciativa, buscando
uma atividade de criação que considere a ação de todos os envolvidos. Assim sendo, investimos
em pensar como estes saberes e fazeres podem ser entrelaçados quando têm-se como escopo a
ordenação sistemática de elementos materiais e processuais numa plataforma digital de
comunicação sobre o artesanato maranhense.
A primeira fase da construção do acervo se constituiu de forma conjunta aos artesãos através do
levantamento de informações sobre os materiais e processos coletadas de experiências passadas,
tais como os diversos encontros com produtores de artesanato em vários municípios do Maranhão
ocorridos em projetos anteriores (NORONHA, 2011; NORONHA, 2016; NORONHA et al,
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2017). A partir da segunda etapa de execução, serão realizadas oficinas criativas no ambiente
acadêmico, em que os praticantes habilidosos serão convidados a ensinar sobre o seu processo de
criação para alunos do curso de Design da UFMA.
Tais propostas possuem como finalidade a formação de uma relação cada vez mais aproximada
entre os colaboradores, visando elaborar estratégias de inovação social que pensem em espaços e
processos criativos que não se limitem à concepção de projeto como tradicionalmente se constitui
no campo do design, fundamentada a partir das estruturas do pensamento moderno do que seria
projetar; esta iniciativa visa a prática do fazer como processo criativo que evoca a experimentação
e a improvisação, formas de se estar em correspondência com o mundo e com os materiais, como
observa Ingold (2011; 2016; 2018) e especialmente com as qualidades percebidas pelas pessoas
(LIMA; SANTOS; NORONHA, 2018).
A MAterioteca será, portanto, produto da associação entre alunos e os demais coautores da
pesquisa, proporcionando um diálogo colaborativo entre os agentes e apoiado em relações de
correspondência entre os conhecimentos formais transmitidos no âmbito acadêmico e o
conhecimento tácito dos praticantes habilidosos.
Como já discutido, nosso acervo de materiais se distinguirá dos demais no que diz respeito ao
conteúdo abordado, dado que daremos ênfase à produção artesanal e a contribuição que os agentes
transmissores destes saberes tradicionais possibilitam à sociedade, abrindo espaço à divulgação
sobre como se traçam suas relações com os materiais e seus processos produtivos.
Como etapa de desenvolvimento do projeto, materiotecas virtuais de alcance nacional e
internacional foram analisadas.
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Tabela 1 - Levantamento das principais materiotecas virtuais acadêmicas analisadas

NOME DADOS CLASSIFICAÇÃO FONTE

Materioteca do Materioteca da Universidade Acadêmico http://materioteca.feeval


Centro Feevale, apresenta informações e.br:8080/webmateriote
Universitário técnicas sobre os materiais e busca ca/externo/index.jsp
Feevale abranger o público das áreas de
design, engenharias e afins. Possui
também um acervo físico.

Laboratório de Desde sua criação, em 1998, o Acadêmico https://www.ufrgs.br/lds


Design e Seleção LdSM/UFRGS procurou m/
de Materiais da disponibilizar na internet
UFRGS informações acerca de materiais e
processos de fabricação para os
estudantes das áreas de projeto.
Com as tecnologias mais avançadas
da época, em 2005, foi
desenvolvida a última versão deste
sistema, integrando um banco de
dados com uma interface gráfica em
Flash. O sistema continuará
disponível por tempo
indeterminado, porém, atualmente,
não há intenção de realizar novas
atualizações.

Archivio delle Materioteca de acesso gratuito que Acadêmico http://www.iuav.it/SIST


tecniche e dei apresenta informações sobre EMA-DE/Archivio-d/
materiali per matérias primas e seus produtos.
l'architettura e il O arquivo coleta e exibe os http://materioteca.iuav.i
disegno industriale principais materiais e produtos de t/
- Artec da construção no mercado italiano para
dar aos alunos a percepção física e
Università Luav di "material" dos mesmos (formas,
Venezia tamanhos, texturas de superfície,
montagens e métodos de instalação)

Materialize (USP) Base de dados de materiais, Acadêmico http://www.materialize.


apresenta propriedades, fau.usp.br
características, análises técnicas e
aplicações do material. Apesar de
ser necessário login para acesso é
gratuita e qualquer pessoa pode
efetuar o cadastro.

Materioteca Acervo virtual gratuito que tem por Acadêmico http://materioteca.pagin


Sustentável - objetivo viabilizar uma análise da as.ufsc.br/
UFSC sustentabilidade (social, econômica
e ambiental) nos diversos materiais
utilizados em projeto de produtos.
Fonte: SILVA (2019)

Além de identificarmos o formato quanto ao caráter acadêmico, comercial independente, foi


possível evidenciar as diferenças entre as categorias e o modo de apresentação dos dados. De
acordo com Silva (2019), as materiotecas independentes destacam-se pela exposição de
informações técnicas para que os profissionais possam utilizar ou ter acesso aos materiais,
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enquanto as comerciais distinguem-se pela aparição de propagandas, sendo utilizada como uma
forma de catálogo de fornecedores e veículo de contato entre os mesmos.
A MAterioteca em construção insere-se na categoria de cunho acadêmica e tem como
característica uma maior flexibilidade quanto à disposição das informações,
transmitindo-as de forma compreensível e gratuita a toda sociedade. (SILVA, 2019,
p.18)
Quanto ao processo de sistematização das informações, partimos de um levantamento dos
materiais e processos explorados em pesquisas anteriores, criando tópicos relativos à
categorização entre materiais e processos das comunidades maranhenses, local de uso do material
e/ou realização do processo, insumos que são utilizados, produtos obtidos e fontes da pesquisa,
concretizando a seguinte sistematização de dados:

Tabela 2 - Sistematização dos dados

Fonte: SILVA (2019)

2.1. Identidade visual da Materioteca

A fase de projetação da identidade do site da MAterioteca abrangeu o processo de escolha


do nome, escolha da cor, layout e marca. De início, empenhamo-nos em pensar um nome que
melhor identificasse o nosso acervo de materiais, salientando aspectos territoriais e culturais da
produção artesanal maranhense. Definimos, por fim, que este seria denominado MAterioteca,
utilizando as duas primeiras letras em maiúscula a fim de evidenciar a sigla representativa do
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estado do Maranhão, território onde resistem os saberes e fazeres que investigamos ao longo das
nossas pesquisas e que serão sistematizados a partir dessa iniciativa.
Segundo Péon (2009), a identidade visual objetiva a formação de uma unidade e identidade aos
componentes de um objeto visual. Conduzidos pela ideia de seguir os fluxos dos materiais
(INGOLD, 2011) e guiados pela manutenção da identidade do núcleo (NIDA), dado que a
materioteca será atrelada ao site do mesmo, partimos à fase de criação da identidade. O conceito
do projeto foi construído a partir da elaboração de um painel de referências visuais (moodboard),
mesclando imagens do artesanato maranhense, representações da ideia de fluxo do materiais e
referências visuais da identidade do NIDA, para auxiliar na escolha da cor, tipografia e marca da
materioteca.
Figura – Moodboard

Fonte: SILVA (2019)

O método de escolha cromática partiu de um estudo da identidade do artesanato no Maranhão,


explorando as cores predominantes nos materiais e processos sistematizados. As cores utilizadas
ganharam nomes fantasias com base no material de referência, sendo estas: vermelho-do-mato,
azul-rede, amarelo-urucum, laranja-barro e verde-guarimã. Já quanto à tipografia, delimitou-se
que seriam usadas as fontes já utilizada no NIDA, mantendo a identidade visual do núcleo. A fonte
principal é a bree, sendo utilizada em títulos e subtítulos, e a fonte empregada nos corpos de texto
do site é a Sarabun. A escolha foi guiada pela uso de fontes simples, sem serifa, conectadas à
identidade e que harmonizasse com a bree. A bree apresenta espessura dos tipos maior e a Sarabun
tem espessura mais fina, ideal para uso em informativos e leitura.
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A idealização da marca da MAterioteca ocorreu de maneira colaborativa, entre os integrantes do


núcleo (NIDA), visando a representação dos fluxos dos materiais por meio de elementos orgânicos
e uso de caixas baixas e altas ao longo do texto. Composta pelo mapa do Maranhão, desenhado de
forma fluida e conectado às sílabas, com destaque ao “MA”, sigla do estado, a fim de remeter à
concepção de fluxos dos materiais e processos maranhenses.

Figura 2 - Marca

Fonte: SILVA (2019)

Figura 3 - Especificação da cor da marca

Fonte: SILVA (2019)

3. Abordagem teórica

3.1. Tecnologias de Informação e Comunicação como um meio alternativo de divulgação de


saberes e fazeres tradicionais
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Para Castells (1999), a revolução tecnológica atual foi essencial para a reestruturação de
uma nova sociedade informacional decorrente também de um processo de transformação
capitalista, a partir da década de 1980. Sendo assim, o autor demonstra uma estruturação em redes
presente na nova organização social, associada aos sistemas midiáticos de comunicação. Através
disso, após a revolução comunicacional, especialmente com o uso da internet, essencial
facilitadora do processo de integração ao ciberespaço, evidencia-se como esse instrumento é uma
das mais importantes ferramentas para facilitar o acesso ao conhecimento no contexto da
globalização. Com o avanço das novas necessidades humanas, a tecnologia evolui conjuntamente
a esses aspectos, e assim faz-se cada vez mais imprescindível o uso das Tecnologias de Informação
e Comunicação (TICs) em nossas práticas cotidianas. Além de otimizar nossos processos
colaborativos, Veloso et al. (2017) defendem que as TICs possibilitam uma maior propagação e
disseminação de informações devido seu fácil acesso e amplo alcance, além dessas ferramentas
virtuais estarem cada vez mais atrativas e intuitivas para uso.
Devido à grande densidade informacional ofertada pela internet e outros meios de comunicação,
fica cada vez mais difícil pessoas se locomoverem a longas distâncias para obterem informações
acerca do que desejam. Com as ferramentas virtuais, temos a comodidade em encontrar com
facilidade em dispositivos eficientes e aparência intuitiva, informações acerca do que procuramos.
Veloso et. al (2017) reafirma o suporte que as TICs oferecem com seu fácil compartilhamento, em
possibilitar a difusão e rápida propagação de conhecimentos históricos e culturais. Para os autores,
as TICs são ferramentas importantes para o intercâmbio de informações entre “leigos” e
especialistas, além de um método alternativo para divulgação de projetos.
A nossa plataforma web, além de contar com um acervo de materiais utilizados nas práticas
artesanais maranhenses e seus processos, também disponibilizará informações acerca de cada
território, retratando um pouco da vida daqueles que produzem, trazendo consigo suas raízes e
identidades. Reuniremos fotos e informações acerca das cadeias produtivas como um todo, além
de dados para contato com os artesãos de cada comunidade.
Por meio da nossa MAterioteca, é possível inserir as práticas artesanais tradicionais em um
contexto cada vez mais amplo, para que toda a sociedade civil com acesso à plataforma tenha
contato com a cultura local e descubra novos possibilidades de fazeres com materiais e processos
presentes no território maranhense. Somado a isso, para Veloso et. al (2017) é uma maneira de
salvaguardar a identidade regional e estimular a valorização do artesanato e de suas cadeias
produtivas associadas a um contexto local. A autora Lia Krucken nos apresenta o embate de
inserir-se no processo da globalização, em meio à complexidade das relações, de forma que seja
possível valorizar e respeitar as diversidades existentes:
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A globalização nos confronta o tempo todo com relações complexas. Encontrar


oportunidades e situações de equilíbrio na relação local-global é um grande
desafio, especialmente no que se refere à melhoria das condições de qualidade
de vida, à valorização e ao respeito da diversidade e do ecossistema, aos modelos
de produção e de consumo. A aparente oposição de relações criadas pela
globalização pode representar complementaridades e o surgimento de novos
cenários e possibilidades, que requerem lógicas e perspectivas de análise
alternativas. (KRUCKEN, 2009, p.38)
Com base nesses aspectos, buscamos construir esta plataforma através das TIC’s e das práticas
colaborativas, a fim de que possamos complementar tais cadeias produtivas respeitando a
integridade e complexidade dos saberes dos artesãos, somando respeito às diversidades e
fortalecendo cada identidade ali representada, por meio de nosso web site, com o objetivo da
preservação e do intercâmbio da cultura tradicional local entre artesãos e visitantes da plataforma,
situada no endereço: www.materiotecaufma.com.br

2.2 Classificação e catalogação

À respeito da classificação e da catalogação adotada, foi levado em consideração


principalmente, as materiotecas apresentadas anteriormente (Tabela 1) que constavam com a
presença de materiais e processos, além das materiotecas que não priorizavam somente o produto
final como foco principal. Assim, a materioteca LdSM - UFRGS (Laboratório de Seleção de
Materiais da Universidade Federal do Rio Grande so Sul), a Materioteca ARTEC (Arquivo de
técnicas e de materiais para arquitetura e design) e a Materials Lab foram nossas referências para
esta análise de como elas expunham e categorizam suas informações, como se estruturam suas
classificações e subclassificações, de modo a organizar o modo de apresentação dos conteúdos e
objetivos da nossa materioteca.
Desse modo, de acordo com os objetivos da materioteca em mediar os materiais sistematizados e
processos presentes em nosso acervo de pesquisa, foi definida a divisão entre duas grandes
categorias: materiais e processos. Com base nos estudos de Silva (2019), foi escolhida como
parâmetro de classificações, a materioteca ARTEC, que utiliza como base, classificações através
de nomes específicos.
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Portanto, quanto aos materiais, com base no acervo já sistematizado, serão classificados em: barro,
taquipé, jutaicica, fibra de guarimã, fibra de buriti, anil, jenipapo, mangue vermelho, urucum,
guarimã, coco babaçu, semente de juçara cúrcuma e aroeira, e em processos, teremos a tecelagem
de redes, renda de bilros, caretas, bois de bumba, bordados de bois e bordados. Estas classificações
poderão aumentar, devido a atualização da plataforma à medida que sejam sistematizados novos
saberes e fazeres de comunidades artesãs.

Tabela 3 - Classificação dos materiais e processos

MATERIAIS PROCESSOS

Barro Tecelagem de redes

Jutaicica Bois de bumba

Pó de osso Bordados de bois

Anil Renda de bilro

Cúrcuma Bordados

Jenipapo

Murici-do-mato

Mangue vermelho

Urucum

Guarimã (fibras)

Coco babaçu

Fibras de buriti

Sementes de juçara

Fonte: SILVA (2019)


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Com base nas análises de Silva (2019), foi preciso adaptar o método utilizado para catalogação
dos materiais devido às idiossincrasias da MAterioteca:
A partir dessas informações e com base no Sistema de Catalogação de Amostras de
Materiais por Configuração (DANTAS; BERTOLDI, 2016) foi possível realizar a
adaptação do método de catalogação dos materiais. Dando ênfase às categorias (materiais
e processos), matérias primas, insumos ou processos, local da produção artesanal, ano de
catalogação e pesquisadores. Sendo estes os pilares utilizados para catalogação e geração
do código de cada informação contida no acervo da materioteca. (p.43)

Tabela 4 - Sistema de Catalogação de Amostras de Materiais (Adaptado)

CAMPO DESCRIÇÃO

1. Organização de Classificação especificando o tipo de informação (ex.: material ou


cada informação processo)

2. Classificação das Classificação dos materiais e/ou processos por códigos a partir da
informações matéria prima ou insumo informados pelos artesãos

3. Indicação do A partir do local pesquisado e onde está localizada a matéria prima e a


local produção artesanal. Cada local recebe seu próprio código.

4. Ano de aquisição Refere-se ao ano em que a pesquisa foi adicionada à plataforma.


da informação

5. Diferenciação das Especifica-se a amostra gerando códigos com informações que a


informações distinguem como o(s) nome(s) do(s) pesquisador(es). Campo flexível,
acrescentado ao código apenas caso haja informações similares.

6. Especificidade da Complementa o campo 4. Campo flexível com objetivo de


amostra diferenciação de amostras que tenham obtido informações idênticas
até o quinto campo (ex.: nome do artesão).

Fonte: SILVA (2019)


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Quanto ao processo de catalogação e geração de códigos para as informações da MAterioteca,


Silva (2019) define que:
Dessa forma, o processo de catalogação, visando a organização do acervo e facilidade de
inclusão de novos itens à plataforma, consiste na criação de códigos a partir dos campos
indicados. Para isso, no campo 1, referente à categoria utiliza-se a letra “M” para
materiais e “P” para processos. No campo 2, que indica o nome do item catalogado,
utiliza-se as iniciais dos nomes quando compostos ou as duas primeiras letras do nome
quando simples. A regra para o campo 3, relativo à localização da comunidade artesã, é
equivalente à do campo 2. No campo 4, que se refere ao ano de catalogação, serão
utilizados os dois últimos números. Nos campos 5 e 6, que são flexíveis, utiliza-se iniciais
do sobrenome quando se trata dos pesquisadores e iniciais do primeiro nome quando se
trata do artesão.
Para o processo de catalogação utilizou-se da ferramenta Planilhas Google pois a mesma
possui facilidade de acesso, possibilidade de compartilhamento, disponibilidade de
download em diversos formatos caso seja necessário e alerta o usuário de imediato no
caso de repetição de termos, assim facilitando a visualização de códigos repetidos para
que se aplique os campos 4 e/ou 5 nos itens. (p. 44)

Tabela 5 - Catalogação

Fonte: SILVA (2019)


4. Resultados e debates

Por fim, no que consiste à disponibilização do site nos serviços da web, foram feitas
diversas pesquisas e análises referentes à qual seria a plataforma ideal para construção e
funcionamento de nosso web site. Os critérios foram analisados conforme à facilidade de uso,
funcionamento de um layout responsivo e compatibilidade com o servidor oferecido pela UFMA.
Após alguns testes, decidimos que a plataforma utilizada seria o Wordpress, que cumpre todos
esses requisitos e possui uma interface intuitiva, com a disponibilidade de diversos plugins para
implementação do site, como o Elementor, plugin utilizado para a criação e manutenção do layout
da nossa MAterioteca.
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Além disso, foi construído um banco de dados para o nosso site devido aos numerosos dados
informáticos que poderiam vir a ter o nosso acervo, além da possibilidade de terem múltiplos
usuários acessando o site ao mesmo tempo. Após essas etapas, foi realizada uma série de seleção
de imagens e construção de seus respectivos textos informacionais a partir de cada uma das
categorias analisadas. Os textos foram retirados da nossa fonte de pesquisa, o projeto
“Iconografias do Maranhão” do NIDA, que desenvolveu ao longo de mais de 10 anos de pesquisa
diversos livros como o “Cirandas de Saberes” e o “Identidade é valor”, além de utilizarmos vários
artigos de autoria de graduandos e mestrandos que passaram pelo núcleo de pesquisa.
Partiu-se, então, à etapa de elaboração do layout do site, por meio de um processo colaborativo
entre os integrantes do projeto.

Figura 3 - Página de abertura do site

Fonte: autores

Figura 4 - Página “Início”


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Fonte: autores
A construção do layout seguiu uma ordem de modo a facilitar e otimizar a navegação para
qualquer indivíduo, utilizando-se de estratégias que ressaltam as peculiaridades dos materiais e
processos maranhenses, como a inserção de uma página de abertura com um slide de imagens das
pesquisas de campo anteriores do NIDA. Ao clicar em “Acesse o acervo”, o usuário será
direcionado a uma página configurada já dentro da estrutura padrão do site, em que poderá
escolher entre “materiais” e “processos”, iniciando, assim, sua pesquisa.

Figura 5 - Página “Materiais”

Fonte: autores
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Figura 6 - Subpágina “Cerâmica (Barro)”

Fonte: autores

Quando acessadas as páginas de “Materiais” ou “Processos, o usuário entrará em contato com os


elementos catalogados dispostos em uma estrutura em forma de galeria, diferenciados com cores
e tonalidades diferentes, sendo também indicado o local em que se fez a pesquisa sobre os
mesmos. Escolhendo um material ou processo da galeria, cuja pesquisa se estende por mais de
um território, o usuário acessará uma página que possibilita a escolha de acordo com os locais,
função essencial quando se trata sobre a diversidade de materiais e processos encontrados em
um mesmo território, como já elucidado anteriormente.

Figura 7 - Página “Cerâmica (Itamatatiua)

Fonte: autores
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Por fim, a página seguinte exibe informações mais específicas sobre o material ou processo,
subdividindo-se em abas que tratam do local em que se encontra o elemento, os artesãos
envolvidos, informações sobre os materiais utilizados e a cadeia produtiva, bem como os produtos
oriundos desse processo e as fontes de pesquisa. O usuário poderá também acompanhar um slide
com várias fotografias do material e acessar as fontes de pesquisa.
Além das páginas ilustradas, o site ainda conta com uma página de “Sobre” e de “Contatos”. Na
primeira, o indivíduo que acessa poderá informar-se sobre os objetivos do projeto e conhecer os
nomes por trás de sua construção. Já a segunda contém um formulário e os dados para contato
com a equipe da MAterioteca a fim de que o usuário venha a esclarecer dúvidas ou dar feedbacks,
além de abrir a possibilidade para contribuição com o acervo, através do envio de novas pesquisas
sobre materiais e processos maranhenses.
As informações ainda estão em processo de revisão que será construída a partir de um encontro
com os artesãos para a atualização sobre os dados sistematizados. Devido a isso, o site ainda não
se encontra aberto para toda sociedade, mas, assim que processo for finalizado, o site será posto
no ar e informado nas redes sociais.

5. Considerações Finais

Compreende-se a importância do papel inovador que o designer contemporâneo exerce


hoje na sociedade, atuando como um facilitador de processos culturais que contribuem, dentre
muitas funções, para divulgação de saberes e fazeres de territórios tradicionais. Assim, a
MAterioteca surge como uma TIC, para a salvaguarda desses saberes e contribuição para os
entraves de comercialização identificados em pesquisas anteriores.
Ao apresentar as etapas iniciais e finais da produção da MAterioteca, este trabalho buscou dar
visibilidade aos processos e produtos artesanais do Maranhão. Num mundo globalizado, em que
as pessoas se encontram cada vez mais distanciadas dos conhecimentos tácitos, esses tipos de
ferramentas buscam estreitar as relações do indivíduo com o seu próprio território,
compreendendo a riqueza e a diversidade dos seus fazeres tradicionais, facilitando, assim, a
comunicação dessas comunidades com a sociedade em geral.
Deve-se ressaltar que por conta de alguns percalços quanto ao financiamento, houve uma inversão
das etapas do projeto, que seria executado primeiramente através da construção de uma
materioteca física. Tais empecilhos levaram ao foco na segunda etapa do projeto, isto é, a
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elaboração da materioteca virtual em questão, porém a execução desta em formato físico entrará
em breve em processo.

6. Referências

CASTELLS, M. (1999). A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1.


DANTAS, Denise; BERTOLDI, Cristiane Aun. Sistema de catalogação e indexação de
amostras de materiais orientado a projetos de design para uso em materiotecas. DAT
Journal Design Art and Technology, v. 1, n. 2, p. 62-75, 2016. Disponível em:
<https://datjournal.anhembi.br/dat/article/view/29/22>. Acesso em: 25 out. de 2019.

DANTAS, D.; CAMPOS, A. P. Análise Comparativa de Materiotecas: recomendações para


a construção de modelos acadêmicos. In: 8o. Congresso Brasileiro de Pesquisa e
Desenvolvimento em Design / P&D Design 2008, 2008, São Paulo. Anais do Oitavo Congresso
Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design / P&D 2008. São Paulo:Aend Brasil,
2008. p. 56-72.
INGOLD, Tim. Anthropology and/as Education. Routledge. Abingdon: 2018
________. Chega de etnografia! A educação da atenção como propósito da Antropologia.
Educação, Porto Alegre, v.39, n.3, set-dez. 2016. p.404-411.
_______. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de
materiais. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre: ano 18, n.37, p. 25-44, jan./jun. 2012.
_______. Estar vivo: Ensaios sobre o movimento, conhecimento e descrição. Londres: Editor
Vozes, 2011.
KRUCKEN, Lia. Design e território: valorização de identidades e produtos locais. São
Paulo: Studio Nobel, 2009.
LIMA, JULYANA ; NORONHA, Raquel; SANTOS, DENILSON . Materiais que geram
novos materiais: uma percepção simbólica sobre os compósitos. In: 13º Congresso Pesquisa
e Desenvolvimento em Design, 2019, Joinville. Blucher Design Proceedings. São Paulo: Editora
Blucher, 2018. v. 6. p. 36-45.
MANZINI, Ezio. Design, when everybody design. An introduction to Design for Social
innovation. The MIT Press. Cambridge/London: 2015.
NORONHA, Raquel et al. Cirandas de saberes: percursos cartográficos e prática artesanal
em Alcântara e Baixada Maranhense. São Luís: EDUFMA, 2017. 136p.
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NORONHA, Raquel. Corpo e saber fazer: da cosmologia à política. In: SANTOS, D. M. (Org.) ;
NORONHA, R. G. (Org.) ; CARACAS, L. B. (Org.) ; CESTARI, G. A. V. (Org.). Artesanato
no Maranhão: práticas e sentidos. 1. ed. São Luís: EDUFMA, 2016. v. 1. 270p.
________. Dos quintais às prateleiras: as imagens quilombolas e a produção da louça em
Itamatatiua – Alcântara – Maranhão. 289f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade
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_______ (org.). Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara. EDUFMA:
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PEÓN, Maria Luiza. Sistemas de Identidade Visual. Rio de Janeiro: 2AB. 2009.
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THACKARA, John. Plano B, o design e as alternativas viáveis em um mundo complexo.
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VELOSO, Gabrielli Ciasca; TRIERWEILLER, Andréa Cristina; ESTEVES, Paulo César Leite.
As Tics como suporte ao patrimônio público cultural: Projeto de digitalização do acervo do
arquivo histórico do município de Araranguá-SC. : RDBCI Revista Digital Biblioteconomia
e Ciência da Informação, Campinas-SP, v. 16, n. 1, p. 25-38, 2018. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rdbci/article/view/8648773/pdf>. Acesso em: 25
out. de 2019.
Página 445 de 2230

CULTURA INDÍGENA NO CURRÍCULO ESCOLAR: REFLEXÕES A PARTIR DO


LIVRO DIDÁTICO

INDIGENOUS CULTURE IN THE SCHOOL CURRICULUM:


REFLECTIONS FROM THE TEXTBOOK

Ingrid de Jesus Gonçalves


Graduanda em Pedagogia - UEMA
Ludmila Melo Sousa
Graduanda em Pedagogia - UEMA
Ronthykerlas Cruz Rocha
Graduanda em Pedagogia - UEMA
Evandicleia Ferreira de Carvalho
Mestra em Educação
Graduanda em Pedagogia - UEMA
Eixo 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O presente artigo discute a representação da cultura indígena no currículo escolar através
do livro didático. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica e análise de materiais
didáticos direcionados às séries iniciais do Ensino Fundamental. Verificou-se que a representação
da cultura indígena no livro didático, ainda apresenta limitações que podem ser relacionadas ao
silenciamento dos povos indígenas no currículo e preconceitos construídos em torno desses grupos
étnicos. Identificou-se que os povos indígenas são pouco mencionados nos materiais didáticos e
algumas formas de representação sugerem estereótipos acerca desses grupos. A valorização da
história e cultura indígena e afro-brasileira no currículo escolar evidencia a diversidade
étnicocultural da sociedade brasileira, reconhecendo as contribuições dos diferentes grupos sociais
na formação do país. Nesse sentido, é imprescindível, nos espaços escolares, o debate sobre a
diversidade cultural, histórias e lutas dos povos indígenas, de maneira positiva, desmistificando
estereótipos e preconceitos existentes.
Palavras-chave: Cultura indígena. Currículo escolar. Livro didático.

Abstract: This article discusses the representation of indigenous culture in the school curriculum
through the textbook. The methodology used was bibliographic research and analysis of teaching
materials directed to the initial grades of Elementary School. It was found that the representation
of indigenous culture in the textbook, still has limitations that can be related to the silencing of
indigenous peoples in the curriculum and prejudices built around these ethnic groups. It was
identified that indigenous peoples are rarely mentioned in didactic materials and some forms of
representation suggest stereotypes about these groups. The appreciation of indigenous and Afro-
Brazilian history and culture in the school curriculum highlights the ethnic and cultural diversity
of Brazilian society, recognizing the contributions of different social groups in the formation of
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the country. In this sense, the debate on cultural diversity, histories and struggles of indigenous
peoples is essential, in a positive way, demystifying existing stereotypes and prejudices.
Keywords: Indigenous culture. School curriculum. Textbook.

INTRODUÇÃO

O Brasil é constituído por uma diversidade de povos indígenas de etnias, línguas, modos
de viver e ser diferentes. De acordo com dados do Censo de 2010, são mais de 896 mil indivíduos,
305 etnias diferentes e 274 línguas84. Estima-se que a população indígena brasileira fosse de cerca
de três milhões quando os europeus aportaram desse lado do Atlântico, por volta do ano de 1.50085.
Ao longo do percurso histórico brasileiro, os povos indígenas sofreram com processos de
aculturação e silenciamento que ignoravam as identidades e diversidades desses grupos étnicos e
produziram distorções em relação à população indígena (Novaes, 2006; Ferreira Jr e Bittar, 1999).
No campo educacional, a escola construiu uma imagem esteorotipada acerca dos índios
por meio de materiais e práticas pedagógicas que contribuíram para a perpetuação de preconceitos
em torno desses grupos étnicos. A inclusão da história e da cultura indígena no currículo oficial
da rede de ensino ocorreu tardiamente, mediante a Lei nº 11.645/2008 (Brasil, 2008) que alterou
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB nº 9394/1996 (Brasil, 1996) e, além
disso, a efetivação dessa normativa ainda se constitui um desafio para muitos sistemas e
instituições de ensino. Representações estereotipadas e abordagens distorcidas ainda figuram
materiais didáticos e práticas docentes, influenciando negativamente a imagem construída acerca
das culturas dos povos indígenas.
Este artigo discute a presença cultural indígena no currículo escolar e tem por objetivo
refletir sobre formas de representação dos povos indígenas no livro didático. Apresenta análises
preliminares de estudo que vem sendo realizado no âmbito do curso de Pedagogia, da
Universidade Estadual do Maranhão, Campus Pinheiro, tendo se desenvolvido mediante pesquisa
bibliográfica e análise de materiais didáticos direcionados às séries iniciais do Ensino
Fundamental. Inicialmente, discute-se sobre medidas direcionadas aos povos indígenas na história
da educação brasileira e, na sequência, analisa-se a representação desses grupos étnicos no
currículo, por meio do livro didático.
Entendemos que a cultura condiciona os modos de ver o mundo, os valores e diferentes
comportamentos sociais dos indivíduos86. Também, que cada sistema cultural tem seu sentido
próprio, não podendo ser comparados ou postos em escalas, pois como afirma Laraia (1986, p.

84
Disponível em: <http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/ascom/2013/img/12-Dez/pdf-brasil-ind.pdf>
85
Estimativa feita pelo IBGE. Disponível em<: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao>
86
Sobre o conceito de cultura, ver Laraia (1986).
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87): “[...] não passa de um ato primário de etnocentrismo tentar transferir a lógica de um sistema
para outro”. Nesse sentido, é fundamental desmistificar estereótipos e preconceitos em torno dos
povos indígenas, promovendo o reconhecimento da história e participação desses grupos na
formação da sociedade nacional, além de valorização de suas identidades e diversidades.

POVOS INDÍGENAS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

Ao longo do percurso histórico da educação brasileira, as medidas e práticas educacionais


direcionadas aos povos indígenas caracterizaram-se por processos de aculturação e silenciamento,
desconsiderando as diversidades e identidades culturais desses grupos étnicos.
Novaes (2006), em análise da educação escolar indígena na história do país, indica que as
políticas com foco nos povos indígenas visaram a integração à sociedade nacional e ao mercado
de trabalho. Tais medidas iniciaram-se ainda durante a colonização, quando a educação foi
utilizada para submeter os nativos ao homem branco, desconsiderando as singularidades desses
grupos étnicos.
Antes da chegada dos colonizadores, os povos indígenas vivenciavam sua cultura de forma
livre, com transmissão de aprendizagem de geração a geração e igualdade de participação na vida
social. Segundo Saviani (2008), os conhecimentos eram acessíveis a todos, sem monopólio, e a
cultura transmitida por processos diretos. Esse processo de transmissão de saberes tratava-se de
forma de educação, embora não houvesse pedagogia, fundamentando-se na tradição, na ação e no
exemplo.
Os europeus entraram em choque com essa forma de sociedade e tipo de educação e
utilizaram-se, através dos missionários, de estratégias como o uso do idioma tupi para se dirigir
aos nativos e outras ações pedagógicas para modificar as tradições e costumes aos interesses da
colonização (Saviani, 2008).
Para Ferreira Jr (2010, p. 21), essa educação direcionada às crianças indígenas no período
colonial adquiria duplo significado, pois de um lado, possibilitava o aprendizado das primeiras
letras tanto no português quanto no tupi, mas por outro realizavam uma forma violência simbólica
contra os elementos estruturais da cultura ameríndia.
O silenciamento dos povos indígenas também ocorreu por meio de leis e normativos, a
exemplo da Constituição Política do Império do Brasil, de 1824 que não mencionava os indígenas
em seu texto. A Lei estabelecia a instrução primária “gratuita a todos os cidadãos” (art. 179), mas
a rigor isso excluía negros escravizados e indígenas que não eram considerados cidadãos
brasileiros.
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Essas políticas de silenciamento assumiram contornos diferentes com a ascensão da


República e interesses em torno por um senso de patriotismo. Sobre os anos iniciais do período
republicano, Novaes (2006) destaca a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de
Trabalhadores Nacionais (SILTN) e que se transformou em Serviço de Proteção aos Índios(SPI)
entre as políticas públicas elaboradas. Segundo indica essa autora, nesse período a ênfase das
medidas com foco nos povos indígenas passa a ser o civismo e patriotismo, aspecto que só se
modifica com a articulação do Movimento Indigenista nos anos 1970 em prol de direitos e
participação na elaboração de políticas públicas (Novaes, 2011).
As conquistas em torno da educação indígena previstas na Constituição Federal de 1988
resultam desse processo de articulação do Movimento Indigenista por ensino que reconhecesse as
diversidades e identidades dos povos indígenas do Brasil. Nesse contexto, a CF de 1988 (Brasil,
1988) passa a reconhecer aos índios sua “[...] organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras” (art. 231).
Na mesma perspectiva, e a Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB nº
9394/96 (Brasil, 1996), prevê entre outras mudanças, a oferta de educação escolar bilíngue como
direito dos povos indígenas e a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura afro-brasileira e
indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados (artigo 26-
A)87. Sobre o conteúdo a ser abordado no ensino da história e cultura afro-brasileira, a LDB prevê:

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da


história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses
dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos
negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e
o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil (Brasil, 1996, art. 26-A).

Em síntese, esses normativos asseguram aos povos indígenas o direito educacional com
respeito as identidades, costumes e manifestações culturais. Assim, passa a ter obrigatoriedade a
inclusão no currículo da educação básica a participação dos povos indígenas na formação da
sociedade brasileira, sua trajetória de lutas e diferentes aspectos culturais no sentido de valorizar
as contribuições desses grupos étnicos para a sociedade nacional, desconstruir estereótipos e
ampliar novos horizontes sobre a diversidade cultural, racial e social do país.
Com o objetivo de atender o disposto, os editais do Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD) começaram a cobrar, a partir de 2008, a adequação dos materiais didáticos de modo a
atender as novas exigências em relação às temáticas indígenas e africanas (Silva, 2012). Desde
então, os sistemas de ensino devem acompanhar como vem se realizando esse processo que

87
Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2008/Lei/L11645.htm#art1>.
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vislumbra o resgate e reconhecimento da história e cultura dos povos indígenas brasileiros.


Considerando a importância que o livro didático ainda possui na sociedade brasileira, sendo para
muitos jovens a única ou principal fonte de informação a que tem acesso, é essencial avaliar como
vem se dando esse processo.

CULTURA INDÍGENA NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA

A história e o ensino de história tornaram-se essenciais na recuperação da cidadania de


grupos étnicos marginalizados no decurso do desenvolvimento do nosso país, sendo fundamental
a compreensão de discursos ocultos na concepção de história e materiais utilizados de história
(Silva, 2012). Sobre isso, cumpre salientar que a temática indígena ainda é pouco abordada no
cotidiano das escolas ou abordada de modo estereotipado e em momentos específicos, o que
remete ao histórico silenciamento desses grupos étnicos no espaço escolar.
Santomé (2001) denomina de culturas negadas e silenciadas no currículo aquelas de grupos
minoritários e/ou marginalizados, a exemplo de etnias sem poder, que não aparecem no currículo
escolar ou são apresentadas de forma deformada, sobre as perspectivas de determinado grupo,
ignorando a exibição do outro ponto de vista.
Ainda de acordo com esse autor, a negação e/ou silenciamento de culturas de grupos
minoritários se expressa entre outras maneiras, ao desconectar as culturas ou vozes de grupos
minoritários por meio de abordagens pontuais (dia D), mediante um currículo turístico (Santomé,
2001). Nesse sentido, o tratamento de uma determinada cultura em momentos pontuais nas
instituições de ensino ou de maneira estereotipada no currículo pode ser vista como uma forma de
negação e exclusão no âmbito educacional.
Considerando análises de livros didáticos de história publicados antes e depois da
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo, Ramos Cainelli e
Oliveria (2018) indicam que, apesar de avanços, ainda persiste um tratamento limitado e de
silenciamento dos povos indígenas.
Sobre as análises de materiais didáticos publicados até os anos 2000, as autoras apontam
como eixos do conteúdo dos livros de história, entre outros: o tratamento do indígena no passado
ou na condição de subalternidade e aculturação; a apresentação dos indígenas a partir de
estereótipos; desconsiderando a diversidade de povos indígenas; a ideia de colaboração apenas em
relação a manifestações culturais; análises segundo uma perspectiva eurocêntrica ou
evolucionista.
Considerando a necessidade do reconhecimento e valorização dos povos indígenas na
formação da sociedade brasileira, cumpre acompanhar como estão sendo representados esses
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grupos em sua diversidade étnica e cultural e pensar em caminhos para diminuir possíveis
contradições.

O “índio” no livro didático de história

Para realização deste estudo foram selecionados livros didáticos de história das séries
iniciais do ensino fundamental publicados após a aprovação da Lei 11.645/2008 e recomendados
pelo PNLD. Partindo dessa premissa e face às limitações do estudo optou-se pela síntese das
análises de apenas dois dos materiais selecionados que atendiam aos critérios e já haviam sido
utilizados em escolas públicas da região, especificamente: um direcionado ao 2º ano do ensino
fundamental (2011) e o outro ao 4º ano do ensino fundamental (2011). Para fins deste artigo serão
aqui chamados de Livro A (2011, 2º ano) e Livro B (2011, 4º ano).
Considerando as análises sobre o conteúdo dos livros didáticos de história (Silva, 2012;
Ramos Cainelli e Oliveria, 2018), nota-se que foi hegemônica, por muito tempo, a apresentação
dos povos indígenas de forma estereotipada, subalterna e sem atentar para diversidades étnico-
culturais desconsiderando hábitos e costumes próprios, o jeito de trabalhar, crenças, língua, e
traços específicos.
Em relação aos livros publicados após a reformulação da LDB pela Lei nº 11.645/2008, as
pesquisadoras reconhecem pontos positivos, mas também registram a permanência de desafios a
superar. Sobre isso, cumpre destacar:

Avanços: atualização conforme a historiografia; positivação do PNLD para avaliação e


“controle” do livro didático; indígenas vistos na atualidade também, não só no passado,
e desconstrução de estereótipos. Ainda sobre os problemas: estereótipo, generalização e
preconceito; não consideram a diversidade de povos indígenas, tratando-os de forma
homogênea, e partem do eurocentrismo, da ideia desenvolvimentista, civilizatória ou
evolucionista (Ramos Cainelli e Oliveria, 2018, 72).

Considerando os materiais analisados neste estudo preliminar, foram identificados


aspectos que indicam avanços sobre as formas de representação cultural dos povos indígenas, mas
também evidenciou-se lacunas e pontos que merecem atenção.
Sobre o Livro A, direcionado ao 2º ano do ensino fundamental, identificou-se a abordagem
da temática indígena ao relacionar o estudo dos grupos sociais de convívio da crianças com outros
grupos, em tempos e espaços diferentes. Os povos indígenas são apresentados por meio de
imagens e textos sobre trabalho, educação e outras atividades do cotidiano social, na perspectiva
de identificar aproximações e distanciamentos de costumes dos povos indígenas com os grupos
que criança participa. Nesse volume, contudo, a apresentação de elementos culturais indígenas se
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restringe a algumas menções, acompanhadas de questionamentos a serem respondidos pelas


crianças.
O Livro B, referente ao 4º ano do ensino fundamental, trata sobre a temática indígena com
mais frequência. Ao longo do material, registram-se abordagens sobre a participação dos povos
indígenas no processo de formação do país, mas essa abordagem é mais evidente quando menciona
o início do período de colonização. Foram identificadas também análises sobre a representação
dos indígenas em documentos históricos, acompanhadas de questões interpretativas, mas sem
aprofundamento do debate. De modo geral, segue a história cronológica convencional, ou seja, a
partir da chegada do colonizador ao território brasileiro.
Sobre a diversidade étnica e cultural dos povos indígenas, cabe destacar que é pouco
abordada nos livros selecionados. Também, não foram identificadas problematizações da temática
indígena no contexto atual como as lutas dos povos indígenas por território, saúde, educação e
outros direitos.
A esse respeito, como adverte Santomé (2001), o tratamento de uma determinada cultura
de maneira estereotipada no currículo consiste numa forma de negação e silenciamento no âmbito
educacional. Em relação aos povos indígenas, é comum a abordagem por meio do currículo
turístico, em datas pontuais nas instituições de ensino.
Como indicam Ramos, Cainelli e Oliveria (2018), é necessário repensar a lógica disciplinar
dos documentos curriculares de modo a repercutir nos materiais didáticos. Sobre os livros
didáticos da área de história, essas autoras indicam que embora tenham ocorrido mudanças
importantes como a presença da temática nos materiais por elas analisados, ainda permanece a
tradição curricular de organização da história cronológica e eurocêntrica, o que constitui
empecilho nesse processo de mudanças.
De modo similiar, identificou-se nesse estudo a presença da temática indígena nos livros
didáticos consultados, mas com lacunas quanto à abordagem sobre os diferentes povos indígenas
do Brasil. Como ocorreu em estudo desenvolvido pelas referidas autoras, nota-se nos materiais
selecionados um tratamento homogêneo dos povos indígenas brasileiros, sem ênfase à
diversidades de povos, etnias e culturas. Além disso, a escrita histórica parece atribuir certo
protagonismo aos europeus, em detrimento de indígenas e outras raízes culturais e históricas do
país, aspecto que remete ao silenciamento que esses segmentos sociais receberam ao longo da
história da educação brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
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A valorização da história e cultura indígena e de outros grupos sociais minoritários no


currículo escolar reconhece as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do
povo brasileiro e atua no sentido de combate às formas de discriminação social.
Por meio desse estudo preliminar verificou-se que a representação da cultura indígena no
currículo escolar, através do livro didático, apresenta importantes avanços, mas ainda há desafios
a superar. A diversidade cultural dos povos indígenas do Brasil ainda é pouco abordada e algumas
formas de representação sugerem estereótipos. Nesse sentido, é fundamental que o livro didático,
principal recurso de muitas escolas brasileiras, apresente as diversidades dos povos indígenas e
discuta sem hierarquias e preconceitos, a história desses povos no processo de formação da
sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

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Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.

________. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Brasília: DF, 1996. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>

_______. Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: DF, 2008. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm>.

FERREIRA, Amarílio Júnior. História da educação brasileira: da colônia ao século XX. São
Paulo: EdUFSCar, 2010.

FUNARI, R. dos S. Aprender juntos história: ensino fundamental. – 3 ed. – São Paulo: Edições
SM, 2011 (Aprender juntos).

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. O Brasil indígena. Rio de


Janeiro: RJ, 2013.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Zahar, 1986.

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da história. VII Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas. História, Sociedade e Educação no
Brasil. Campinas, 2006. Disponível em: < https://histedbrnovo.fe.unicamp.br/pf-
histedbr/seminario/seminario7/TRABALHOS/G/Gabriela%20pontin%20novaes.pdf>

NEVES, Cláudia. C. Mundo Amigo História 2. 1ª ed. São Paulo: SM, 2011. São Paulo: Saraiva:
Ed. Universidade de São Paulo, 1978.
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RAMOS, Marcia Elisa Tete, CAINELLI, Marlene Rosa Cainelli; OLIVEIRA, Sandra Regina. As
sociedades indígenas nos livros didáticos de História: entre avanços, lacunas e desafios. Revista
História Hoje, v. 7, nº 14, p. 63-85 – 2018.

SANTOMÉ, Jurjo Torres. As Culturas Negadas e Silenciadas no Currículo. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da (Org.). Alienígenas na Sala de Aula: Uma introdução aos estudos culturais em educação.
3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

SAVIANI, Demerval. História das Ideias Pedagógicas no Brasil. – 2 ed. rev. e ampl. –
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SILVA, Maria De Fátima Barbosa da. Livro didático de História: representações do índio” e
contribuições para a alteridade. Revista História Hoje. v. 1, n. 2, p. 151-168, 2012.
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DESAFIOS DO PROFESSOR NA SALA DE AULA PARA O DESENVOLVIMENTO DA


LEITURA E A ESCRITA COM ALUNOS DO 1º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL I

TEACHER CHALLENGES IN CLASSROOM FOR O


DEVELOPMENT OF READING AND WRITING WITH STUDENTS OF THE 1ST
YEAR OF ELEMENTARY SCHOOL I

Marta da Silva Costa


-Graduanda de Pedagogia -FACAM
Joyce Cordeiro Mendes
Graduanda de Pedagogia –FACAM
Orientadora: Mestra Cristiane Alvares Costa
-FACAM
Eixo 1 Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O tema favorece os docentes do ensino fundamental, investigar técnicas e metodologias


que visam minimizar as dificuldades na leitura e na escrita, pois vivemos em um mundo com
códigos, letras, números e sons e tudo depende a leitura e da escrita. O presente estudo aborda os
desafios do professor na sala de aula para o desenvolvimento da leitura e a escrita com alunos do
1º ano do Ensino Fundamental. Tem como objetivo pesquisar os desafios do professor no processo
do desenvolvimento da leitura e da escrita destes alunos. Para fundamentar o tema em questão
buscamos embasamento teórico nos autores Kleiman (1998), Lerner (2002),Pimenta
(2012),Tardiff (2014),entre outros. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica. Como resultados, o
professor alfabetizador, apresenta vários desafios entre eles: a falta de motivação dos alunos em
sala, as salas de aulas cheias, o não comprometimento da família, falta de recursos e outros, mas
talvez o grande desafio seja possibilitar que esse aluno vem a prender a ler no tempo hábil e
facilitar a sua vida escolar, pois além de tudo é uma responsabilidade do professor, portanto deve
ser analisada as condições que este possui em seu ambiente de trabalho.
Palavras-chave: Leitura. Escrita. Alfabetização. Aprendizagem. Formação Docente

Abstract:The theme favors elementary school teachers, investigate techniques and methodologies
that aim to minimize the difficulties in reading and writing, because we live in a world with codes,
letters, numbers and sounds and everything depends on reading and writing. The present study
addresses the challenges of the teacher in the classroom for the development of reading and writing
with first year elementary school students. It aims to investigate the challenges of the teacher in
the process of reading and writing development of these students. To support the theme in question
we seek theoretical basis in the authors Kleiman (1998), Lerner (2002), Pimenta (2012),Tardiff
(2014), among others. This is a bibliographic research. As a result, the literacy teacher presents
several challenges among them: the lack of motivation of students in the classroom, full
classrooms, the non-commitment of the family, lack of resources and others, but perhaps the great
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challenge is to enable this student comes to hold to read in a timely manner and facilitate their
school life, because in addition everything is a responsibility of the teacher, therefore the
conditions that it has in their work environment should be analyzed.
Keywords: Reading. Writing. Literacy. Learning. Teacher Training

1.INTRODUÇÃO
O presente estudo abordou os desafios do professor na sala de aula para o desenvolvimento
da leitura e a escrita com alunos do 1º ano do Ensino Fundamental. Esse tema partiu de
inquietações sobre os desafios do professor para desenvolver a leitura e a escrita destes alunos, já
que no cotidiano em sala de aula percebe-se as dificuldades para desenvolvimento da leitura e a
escrita.
Neste sentido, o problema que direcionou nossa pesquisa gerou em torno do seguinte
questionamento: Quais desafios o professor enfrenta em sala de aula para o desenvolvimento da
leitura e a escrita nos alunos do 1º ano do ensino fundamental I?
Para desenvolver tal questionamento foi proposto objetivo como geral pesquisar os
desafios do professor no processo do desenvolvimento da leitura e da escrita de alunos no 1º ano.
Neste sentido, objetivos específicos direcionaram nossa pesquisa como conhecer as dificuldades
existentes na leitura e na escrita dos alunos; discriminar as práticas pedagógicas do professor para
facilitar o processo da leitura e da escrita nos alunos; e por fim analisar o processo de formação
de docentes do 1º ano.
Para fundamentar o tema em questão buscou-se embasamento teórico nos autores Kleiman
(1998),Lerner (2002),Pimenta (2012),Tardiff (2014),entre outros.
Este trabalho foi elaborado por meio de revisão de literatura realizado nas principais
publicações indexadas nos bancos de dados nacionais. Para estabelecer a amostra de estudo, foram
adotados critérios de inclusão, publicados no período de 2012 a 2019, tendo como termos
descritores: leitura, escrita, alfabetização, aprendizagem, formação docente. Foram excluídas as
publicações que não apresentaram resumo nas plataformas de busca on-line.
Para melhor compreensão quanto a estrutura das seções, este está apresentado em seis
seções, a saber;
Primeira seção aborda a introdução com apresentação sobre o temas, problematização e
objetivos da pesquisa.
A segunda seção aborda o processo de formação docente de professores do Ensino
Fundamental I, assim como os desafios da prática docente .
A terceira seção trata a Lei de Diretrizes e Bases 9394\96 e formação docente.
A quarta seção reflete sobre as práticas pedagógicas no processo de leitura e escrita
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A quinta seção aborda a influência da leitura nos diversos contextos sociais,


tratando também os desafios do professor no processo do desenvolvimento da leitura e da escrita
de alunos no 1º ano.
E por fim, na sexta e última seção traçamos as considerações finais.

2 PROCESSO DE FORMAÇÃO DOCENTE DE PROFESSORES DO


ENSINO FUNDAMENTAL I

Tema debatido constantemente, a formação de professores surgiu no século XIX quando,


em resposta às transformações ocorridas na sociedade após a Revolução Francesa, foi colocada
em pauta a abordagem da instrução popular.
Ao longo deste século foram sendo instituídas em vários países europeus as Escolas
Normais, instituições encarregadas de preparar professores. No Brasil, essa preocupação com o
preparo de professores surgiu após a Independência se intensificou com a proclamação da
Republica, idealizado como parte do projeto de construção da Nação.
Segundo o Censo da Educação Superior em 2013 existiam 7900 cursos de licenciatura na
área da educação espalhados pelo país, já no Censo Escolar de 2014 indicava que dos 2,2 milhões
de docentes em atuação no país 24% não apresentava a formação adequada. Todos esses fatores
quando somados indicam a pertinência da questão da formação docente da Educação Básica frente
aos desafios impostos pelas constantes transformações políticas, econômicas e sociais nas
sociedades contemporâneas, desta forma pode-se acreditar que a formação de professores é de
grande valia para uma educação de qualidade que possa a vim melhorar o desempenho de todos
na escola.
A formação continuada de professores vem sendo muito discutida principalmente depois
da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em que a mesma aborda como obrigatório a
formação curricular dos professores, nessa mova abordagem vem se criando e fornecendo
oportunidades para facilitar a formação de professores por meios tecnológicos como plataformas
online com vários cursos de formação como por exemplos. Habilidades a serem desenvolvidas na
classe, como oratória, lousa, preparação de aula e expressão corporal, como incorporar as nova
tecnologia tendências na sala de aula; desenvolvimento de competências socioemocionais dos
alunos, métodos de avaliação e acompanhamento do desempenho e desenvolvimento dos alunos.
Segundo Furtado ( 2015), a formação continuada de professores é o processo permanente
de aperfeiçoamento dos saberes necessários à atividade docente, realizado ao longo da vida
profissional, com o objetivo de assegurar uma ação docente efetiva que promova aprendizagens
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significativas. Partindo desse pressuposto pode-se dizer que a formação continuada é de


fundamental importância para a qualificação dos professores já que a buscar por um novo saber
de passar e repassar conhecimento, hoje tem como base uma nova forma de aprender e de ensinar.
Segundo DEMO (2007, p. 11) “investir na qualidade da aprendizagem do aluno é, acima
de tudo, investir na qualidade docente”, já que ao possibilitar a formação continuada a professores
facilitar a qualificação de todos por uma educação mais justa e de qualidades buscando sempre
uma sociedade mais justa e humanizada.
Neste sentido, Freire, aponta:
A educação é permanente não por que certa linha ideológica ou certa posição política ou
certo interesse econômico o exijam. A educação é permanente na razão, de um lado, da
finitude do ser humano, de outro, da consciência que ele tem de finitude. Mas ainda, pelo
falto de, ao longo da história, ter incorporado à sua natureza não apenas saber que vivia,
mas saber que sabia e, assim, saber que podia saber mais. A educação e a formação
permanente se fundam aí. (FREIRE 1997 p 20)

Percebe-se que a formação do docente resulta em uma qualificação constante que


possibilita o professor a buscar e desenvolver novas práticas que facilita a abordagem do mesmo
em sala de aulas e ao mesmo tempo promove ema educação com eficácia e qualidade Quando o
docente busca se aprimorar, ele abre espaço para novas práticas educacionais e com isso dá um
novo significado ao espaço escolar. De acordo com a PAR (2019) -Plataforma Educacional, o
educador que busca a evolução constante das suas competências desenvolve, por exemplo:

 Didáticas de aulas mais dinâmicas na transmissão do conteúdo das disciplinas;

 Maior engajamento dos alunos em atividades de aprendizagem;

 Detecção mais fácil das dificuldades de aprendizagem e construção de novas estratégias


para contorná-las.( PAR-2019).

Assim, as práticas de aulas desatualizadas, caracterizadas por uma linguagem diferente


daquela dos alunos, serão repensadas. Com isso, a dinâmica de aula melhora, bem como o
engajamento dos alunos e a motivação destes com o processo de aprendizagem.

2.1 Desafios da prática docente

Ao retratar sobre a função de ser professor na atualidade podemos citar vários desafios
quem implicar nas práticas do mesmo vivemos em uma sociedade que está sempre em evolução a
educação caminha junto em busca de nova roupagem
visando o avanço do indivíduo. Esse novo de mudanças no qual a escola está inserida exigiu um
profissional com atitude investigativa para lhe dar com as situações que se apresenta. O momento
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necessita de um professor com formação e perfil diferentes das apresentadas décadas atrás, como
afirmado por Tardif (2002,p.39).
Um ponto pertinente é a da presença da família na vida acadêmica dos alunos é de
fundamental importância no processo de alfabetização da criança, pois essa participação estimula
o desenvolvimento cognitivo discente
Outro ponto a ser destacado no contexto escolar em que há uma grande diversidade cultural
e social entre os alunos e isso exige das\dos docentes estratégias diferenciadas de ensino de forma
a tornar a prática eficiente aos discentes. (MEDINA-PAPST & MARQUES, 2010).
Neste contexto percebe-se que quanto maior o número de experiências dos discentes nos
diferentes níveis, maiores são as possibilidades da mesma para aprender e se adaptar ao contexto
e programas escolares .
Entre muitos desafios citados a cima podemos citar as salas de aulas cheia, a falta de
materiais e recursos para o desenvolvimento da leitura e da escrita no tempo certo para os alunos
do ensino fundamental menor, ao possibilitar a leitura e a escrita no tempo certo se pode preparar
esse aluno um bom desempenho escolar na vida dos alunos garantindo um desenvolvimento
integral de cada um.

Todavia considera-se que alfabetizar, por ser um processo, exige sempre


responsabilidade do docente, o qual deve utilizar métodos eficientes que venha
contribuir no desenvolvimento do discente, em formação. (MENDONÇA, 2009). Desta
forma, por meio da escrita, oportunizamos o aluno expressar-se oralmente ouvir seu
aluno e muito relevante já que os alunos trazem consigo uma bagagem de
conhecimento alem do mais ao possibilitar a fala do aluno enriquece as aulas e a
tornas mais prazerosa e é um bem comum para todos.

Para Kishimoto:
Falar e pensar são práticas centrais para aprendizagem do letramento/literacia, como ler
e escrever. Contrariando o desenvolvimento natural, a criança precisa do suporte e
mediação do adulto, que é coparticipante do processo do letramento/literacia.(
KISHIMOTO, 2010, p. 26).

Essa mediação prevalece para facilitar o desenvolvimento da criança para que a mesma
venha crescer e enriquecer os seus conhecimentos para vida escolar.
O baixo investimento do governo e a falta de condições muitas vezes dificultam o trabalho
do docente, isto não deve levar o professor a vim se acomodar mais a buscar alternativas que possa
vim a cooperar na sua como docente.

3LDB 9394\96 E FORMAÇÃO DOCENTE


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A formação do docente vem sendo abordado a muito tempo como um bem necessário para
todos, trazer um grande preparo para os professores já que a sua formação está sempre em buscar
de novas praticas pois segundo Imbernon (1998,) os docentes devem se assumir como
protagonistas, com a consciência de que todos são sujeitos quando se diferenciam, trabalham
juntos e desenvolvem uma identidade profissional.
Pimenta (2012,) ressalta a importância de preparar professores que assumam uma atitude
reflexiva diante das condições sociais e educacionais que o influenciam. Pensar em formação de
professores, significa educar profissionais críticos capazes de praticar a liberdade e a democracia.
Segundo TARDIFF (2014, p 22) “o saber docente pode ser definido como um saber plural,
formado pelo amalgama, mais ou menos coerente de saberes oriundos da formação profissional e
de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”. Como isso pode-se dizer o docente teve ir
sempre em buscar de novos conhecimento visando a pluralidade que existe em sua caminha com
profissional.
Segundo a LDB, o professor é extremamente relevante para que a qualidade do ensino seja
cumprida e aperfeiçoada diariamente. Sua participação no dia a dia da escola, além da sala de aula,
é primordial para seu crescimento pessoal e profissional, principalmente quando o item I ressalta
sua participação na elaboração da proposta pedagógica da escola. Infelizmente muitas vezes o
professor não consegue se dedicar aos seus direitos como gostaria em virtude da pressão diária .A
LDB \96 contempla em seu artigo 62 algumas diretrizes, como:
Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior,
em curso de licenciatura plena, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério
na educação infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível
médio, na modalidade normal. (Redação dada pela lei nº 13.415, de 2017) (BRASIL,2018)
§ 1º A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, em regime de colaboração,
deverão promover a formação inicial, a continuada e a capacitação dos profissionais de magistério.
(Incluído pela Lei nº 12.056, de 2009).
§ 2º A formação continuada e a capacitação dos profissionais de magistério poderão
utilizar recursos e tecnologias de educação a distância. (Incluído pela Lei nº 12.056, de 2009).
(BRASIL,2018)
§ 4o A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios adotarão mecanismos
facilitadores de acesso e permanência em cursos de formação de docentes em nível superior para
atuar na educação básica pública. (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013) § 5o A União, o Distrito
Federal, os Estados e os Municípios incentivarão a formação de profissionais do magistério para
atuar na educação básica pública mediante programa institucional de bolsa de iniciação à docência
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a estudantes matriculados em cursos de licenciatura, de graduação plena, nas instituições de


educação superior. (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013)
§ 8o Os currículos dos cursos de formação de docentes terão por referência a Base Nacional
Comum Curricular. (Incluído pela lei nº 13.415, de 2017) (Vide Lei nº 13.415, de 2017) 11 Art.
62-A. A formação dos profissionais a que se refere o inciso III do art. 61 far-se-á por meio de
cursos de conteúdo técnico-pedagógico, em nível médio ou superior, incluindo habilitações
tecnológicas. (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013) Parágrafo único. Garantir-se-á formação
continuada para os profissionais a que se refere o caput, no local de trabalho ou em instituições de
educação básica e superior, incluindo cursos de educação profissional, cursos superiores de
graduação plena ou tecnológicos e de pós-graduação. (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013)
Art. 62-B. O acesso de professores das redes públicas de educação básica a cursos
superiores de pedagogia e licenciatura será efetivado por meio de processo seletivo diferenciado.
(Incluído pela Lei nº 13.478, de 2017)

§ 1º Terão direito de pleitear o acesso previsto no caput deste artigo os professores das
redes públicas municipais, estaduais e federal que ingressaram por concurso público, tenham pelo
menos três anos de exercício da profissão e não sejam portadores de diploma de graduação.
(Incluído pela Lei nº 13.478, de 2017)
§ 2o As instituições de ensino responsáveis pela oferta de cursos de pedagogia e outras
licenciaturas definirão critérios adicionais de seleção sempre que acorrerem aos certames
interessados em número superior ao de vagas disponíveis para os respectivos cursos. (Incluído
pela Lei nº 13.478, de 2017)
§ 3o Sem prejuízo dos concursos seletivos a serem definidos em regulamento pelas
universidades, terão prioridade de ingresso os professores que optarem por cursos de licenciatura
em matemática, física, química, biologia e língua portuguesa. (Incluído pela Lei nº 13.478, de
2017) Como observamos, a LDB é uma lei e deve ser comprida por todos, pois ressalta o
crescimento do profissional docente e suas práticas para que venha melhorar o desenvolvimento
de e crescimento de uma nação com uma educação de qualidade que venha a conceber a todos
uma educação justa e de qualidade.

4.PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO PROCESSO DE LEITURA E ESCRITA

Segundo Lerner (2002), Ler é adentrar outros mundos possíveis. É questionar a realidade
para compreendê-la melhor, é distanciar-se do texto e assumir uma postura crítica frente ao que
de fato se diz e ao que se quer dizer, é assumir a cidadania no mundo da cultura crítica. É a buscar
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por uma nova porta que abre sonhos que liberta os pensamentos atitudes de um cidadão já que
vivemos em sociedade e precisamos sempre está em evolução a leitura oportunizar tudo isso e
muito mais.
Segundo Kleiman (2004), a leitura é um processo que se evidencia através da
interação entre os diversos níveis de conhecimento do leitor: o conhecimento lingüístico; o
conhecimento textual e o conhecimento de mundo. Sendo assim, o ato de ler caracteriza-se como
um processo interativo.
Para o desenvolvimento do aluno leitor é de fundamental que o professor seja um leitor
com isso Cramer e Castle, o objetivo básico do professor em incentivar a leitura deve esforçar-se
para tornar a leitura uma atividade útil, valiosa e desejável. (2001,p.107).
O professor é um grande formador de opinião, devido a essa aptidão ele pode, a partir das
primeiras séries, implantar conceitos de leitura e prática diária gerando leitores ativos. Criar
projetos envolvendo as artes como o teatro e música também podem ajudar na prática do
desenvolvimento da leitura das crianças na fase onde elas precisam aprender a ler visando sempre
que ao proporcionar um aprendizado que é de grande valia para a sua vida pois vivemos em um
mudo letrado e necessitamos a prender a ler e escrever.
Para Freire :
Ler um texto é algo sério (...) é aprender como se dão as relações entre as palavras na
composição do discurso. É tarefa de sujeito crítico, humilde e determinado. (...) Implica
que o (a) leitor (a) se adentre na intimidade do texto para aprender sua mais profunda
significação. O ato de ler é algo que vem proporcionando grande viagem, pois em cada
pagina de um livro está escrito algo ou alguma coisa que causa essa sensação de
liberdade. (FREIRE 1992, p.76.)
Segundo ao autor, a leitura é algo sério, o leitor deve ter uma relação profunda por meio
do texto e que nos leva a liberdade. Percebe-se pelo conhecimento adquirido, que nos modifica,
amplia nossa visão, postura e que possibilita a compreensão, criticidade e o conhecimento.

4.1 Atividades e ações do educador relacionadas à prática de leitura


A leitura é uma pratica que serve de avaliação no cotidiano escola ela também é um meio
de se comunicar de resolver problemas e formular um dialogo através de símbolos.
Para Augusto (2011), a leitura faz parte do cotidiano, em que encontramos as As letras e
palavras nas embalagens de alimentos que consumimos, placas de trânsito, nas fachadas de lojas
etc. Desta forma, vive-se em um mundo letrado. Vale ressaltar que rodeados de distintas
representações no que tange as técnicas presentes na escrita, à alfabetização nesta óptica
configura-se como um desafio que assombra muitos educadores.
O professor deve incentivar a leitura com atividades que venham a supri as necessidades
de cada individuo, buscando sempre o desenvolvimento de cada um. Contudo o professor deve
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utilizar recursos que disponibilizam a ele na escola muitas vezes recorre a outros recursos
confeccionados por ele mesmo para o desenvolvimento da leitura em sala de aula.
Ao planejar as atividades para os alunos, o professor precisar diversificar os recursos de
leitura, utilizando jogos, rótulos, embalagens, contos, musicas, poesias etc. A pratica do professor
é o principal fator de incentivo os alunos para a aprendizagem e gosto pela leitura e escrita.
(MORAIS, LEITE, 2012).
Segundo Rosa, Brainer e Cavalcante (2012), a ludicidade motiva o aluno e despertar
interesses, pois inclui jogos e brincadeiras com objetivos de ensino na escola, onde os alunos se
envolvam de forma lúdica aprendam regras ampliem o imaginário, apropriando-se de outros
conhecimentos inclusive a leitura. Dessa forma é importância propor desafios para todos os alunos
com o objetivo de alcançar nas atividades aprendizagens.
Rosa , Brainer e Cavalcante (2012), dizem que aproximação dos alunos aos jogos e
brincadeiras, bem como atividades lúdicas são um bom caminhos para que eles desenvolvas as
função cognitivas associadas ao pensamento e a linguagem. Neste sentido um professor ao
desenvolver estas atividades buscar uma alternativa de inserir em seu planejamento um bem capaz
de produzir efeitos benéficos aos seus alunos aliando o jogo e as brincadeiras para o
desenvolvimento da leitura no cotidiano escolar.

4.2 Atividades e ações do educador relacionadas à prática da escrita


A escrita faz parte do cotidiano e pode ser observar de varias maneiras, por exemplo,
letreiros de ônibus, placas de transito, fachadas de lojas e etc. Pelo o motivo de não saber ler em
algumas circunstâncias pode ser igualado à falta do sentido da visão, isto é, quem não sabe ler é
como se fosse um cego.
A escrita é muito importante em nossa vida. Somos capazes de verificar na cidade ou no
campo a escrita transforma à vida dos indivíduos, e ela encontrada não só em atividades escolares,
mas também em outras como, por exemplo, lista de compras, assinatura de documentos etc.
Pereira & Calsa (2007, p. 1602) dizem que: A escrita exige o desenvolvimento de
habilidades específicas e um esforço intelectual proporcionalmente superior às aprendizagens
anteriores da criança. Na escrita ocorre à comunicação por meio de códigos que variam de acordo
com a cultura, e sua aprendizagem se dá pela realização da cópia, do ditado e na escrita espontânea.
Cabe ao professor disponibilizar em seu planejamento atividades prazerosas quem venham a
desenvolver a escrita dos alunos proporcionar a eles ditados divertido com auxilio de objetos
concretos, jogos e brincadeiras que envolva a escrita
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Lerner (2002) relata que é necessário à escola possibilitar aos alunos a apropriação da
escrita e de suas práticas sociais para assim, poder incorporá-los a comunidade de leitores e
escritores.
A escrita não é um produto escolar, mas sim um objeto cultural, resultado do esforço
coletivo da humanidade. Ferreiro, ressalta, que “(...). Imersa em um mundo onde há a presença
de sistemas simbólicos socialmente elaborados, a criança procura compreender a natureza destas
marcas especiais”. (FERREIRO, 1995, p.43)
O fato dos obstáculos de ensinar a ler e escrever existe, toda via tem que burlar este
incômodo para aprimorar ao educando uma aprendizagem adequado com suas necessidades e que
o permita usar a leitura e a escrita em seu cotidiano.
O letramento de acordo com Kleiman (2005) não é um método pedagógico, mas ele auxilia
a imersão do aluno no mundo da escrita, a autora nos alerta também que a definição de letramento
causa confusões e interpretações equivocadas.
Nesta perspectiva entende-se que a alfabetização deve ser minuciosamente planejada com
o objetivo de proporcionar ao alfabetizando uma aprendizagem significativa que o faça refletir
criticamente sobre sua realidade. Deste modo, o alfabetizador deve ter explicitamente claro quais
são os conteúdos que almeja que o aluno aprenda para ter capacidade de organizar suas estratégias
com a finalidade de contribuir com o processo de aprendizagem dos seus alunos. (MENDONÇA,
2011).
Com base apresentada compreende-se que o ensino e o aprendizado da leitura e escrita são
métodos inseparáveis e heterogêneos, contudo, a modernidade juntamente com os avanços
tecnológicos nos mostra que aprender a ler e escrever representa um marco importantíssimo na
história da humanidade.

5 INFLUÊNCIA DA LEITURA NOS DIVERSOS CONTEXTOS SOCIAIS

Nos dias de hoje, a leitura é o caminho necessário para entender o mundo, sem deixar de
respeitar as diferenças culturais, sociais e políticas do indivíduo. A formação de cidadãos, não se
limita a conceitos preestabelecidos que torna inviável o ato de pensar.
É dever dos educadores perceber está nova realidade e criar estratégias que valorizem a
leitura de escrita e de mundo. Fazendo assim, os indivíduos deixarão de ser apenas um número a
mais nas pesquisas e estatísticas para serem cidadãos capazes de respeitar direitos, cumprir
deveres, reivindicar melhorias, preservar e transmitir cultura, enfim, construir a história e
construírem sua formação social. Neste processo de formar cidadãos leitores, a dificuldade maior
que se encontra é a falta de hábito de leitura no Brasil.
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Esta realidade se confirma quando se leva em conta a forma do desenvolvimento histórico


e cultural do país, a leitura enquanto atividade de lazer e atualização, sempre foi feita por uma
minoria de pessoas que teve acesso à educação e, portanto, ao livro.
A escola não só detém o papel de disseminar conhecimentos científicos, designada de
socialização formal, como também cabe a esta o progresso de capacidades cognitivas, afetivas,
capacidade de relacionamento em sociedade, competências comunicativas e participação na
formação da identidade individual de cada aluno, denominada de socialização informal. Sendo
assim, a formação integral do indivíduo é de finalidade da escola e da família, tendo como
objetivo, primeiro tornar os indivíduos cidadãos críticos e conscientes de seu papel na sociedade.
Para Gomes, a escola é:
A escola é um lugar onde os alunos “novos membros da sociedade, começam a alargar
a sua experiência do social para além do seu grupo de origem”, é o lugar onde se realiza
uma rede de interações contribuído para a produção da realidade escolar (GOMES,
2000p. 40)

De acordo com o autor a escola tem um papel fundamental na formação da sociedade, e as


redes de interações construídas em vistas a realidade escolar, algo de grande pertinência, pois o
olhar desta realidade nos mensura quais atitudes a tomar diante das reais necessidades sejam de
convívio, sejam de aprendizagem.
É função de o professor possibilitar leituras de textos diversos para que o aluno venha
tornar com a sua cultura que foi aglomerada pelo homem, visando a transformação da mesma,
através de uma educação que ofereça suporte para que o homem atinja a transformação social
diante do conhecimento da cultura amontoada pela sociedade, pois, a escola além de ser
incentivadora de conhecimentos baseados em conteúdo é também uma instituição desencadeadora
de processos sociais de comunicação e identidade de pessoas.

5.1 Desafios do professor no processo do desenvolvimento da leitura e da escrita de alunos


no 1º ano.

O desenvolvimento da leitura é como um processo, onde está presentes a maturação do


organismo, o contato com a cultura produzida pela humanidade e as relações sociais que permitem
a aprendizagem da leitura.
De acordo com Maciel e Lúcio (2008, p.32): Compreendermos que, para alfabetizar
letrando, é preciso que o professor assuma certas posturas, de modo que a prática pedagógica seja
conduzida no sentido de viabilizar a formação de um sujeito que não apenas decodifica ou codifica
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o código escrito, mas que exerça a escrita nas diversas situações sociais que lhe são demandadas.
(MACIEL e LUCIO, 2008, p.32).
O professor deve criar situações para desenvolver a leitura e a escrita nos alunos buscar
sempre conhecer seu aluno no individual para lhe proporcionar um desenvolvimento integral no
processo de alfabetização e letramento. Conforme observam Maciel e Lúcio (2008 ).
Acreditar que é possível alfabetizar letrando é um aspecto a ser refletido, pois não basta
compreender a alfabetização apenas como a aquisição de uma tecnologia. O ato de ensinar a ler e
escrever, mais do que possibilitar o simples domínio de uma tecnologia, cria condições para a
inserção do sujeito em práticas sociais de consumo e produção de conhecimento e em diferentes
instancias sociais e políticas. (MACIEL E LUCIO, 2008, p.16).
O processo de desenvolvimento da leitura e da escrita em alunos do 1º ano do ensino
fundamental I é um desafio de grande valia encarado pelo professor em sua caminhada como
alfabetizador, em que pode encontrar vários entraves no decorrer desse processo como a falta de
motivação dos alunos em sala, as salas de aulas cheias, o não
comprometimento da família, falta de recursos e outros, mais possibilitar que esse aluno vem a
prender a ler no tempo certo facilitar a sua vida escolar. Pois, o desenvolvimento pleno do ser
humano depende do aprendizado que realiza num determinado grupo social, a partir da interação
com os outros indivíduos da sua espécie.
A aprendizagem inclui relações entre pessoas, não há um desenvolvimento pronto e
previsto dentro de nós, e assim atualizam-se conforme o tempo passa.

6.CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa possibilitou refletir sobre os desafios do professor na sala de aula


diante do desenvolvimento da leitura e da escrita com alunos do 1º ano do Ensino Fundamental.
Como resultados, o professor alfabetizador, vários desafios entre eles: a falta de motivação
dos alunos em sala, as salas de aulas cheias, o não comprometimento da família, falta de recursos
e outros, mas talvez o grande desafio seja possibilitar que esse aluno vem a prender a ler no tempo
certo e facilitar a sua vida escolar, pois além de tudo é uma responsabilidade do professor, portanto
deve ser analisada as condições que este possui em seu ambiente de trabalho. Pois para atingir este
objetivo, o docente não deve trabalhar sozinho, precisa de parcerias e responsabilidades
compartilhadas da família e da escola.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
Página 466 de 2230

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2014.
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DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM: UM ESTUDO DE CASO NA ESCOLA


MUNICIPAL OSVALDINO JOSÉ DE SOUSA

LEARNING DIFFICULTIES: A CASE STUDY AT: OSVALDINO JOSÉ DE SOUSA


MUNICIPAL SCHOOL

Antônio de Assis Cruz Nunes (orientador)


Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
Professor do Programa De Pós-Graduação Em Gestão De Ensino Da Educação Básica UFMA
Luis Félix de Barros Vieira Rocha
Mestre em Educação: Gestão de Ensino da Educação Básica UFMA
Maria Neuraildes Gomes Viana
Especialista em Gestão Pública Municipal UFMA
Cecilna Miranda de Sousa Teixeira
Graduanda em Biblioteconomia UFMA
Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Este trabalho traz uma reflexão sobre os aspectos referentes aos problemas de
aprendizagem junto ao professor, onde o professor sente-se desafiado a repensar a prática
pedagógica, inscrevendo a possibilidade de novos procedimentos. Pois a preocupação com a
qualidade do ensino e com a preparação do professor tem crescido bastante nos últimos anos,
devido ao aumento das dificuldades na sua aprendizagem. Este estudo teve como objetivo geral
analisar criticamente o processo de aprendizagem e a qualidade de ensino como um todo, de forma
que contribua com um planejamento adequado para o aprendizado do discente. A pesquisa de
campo teve sua atuação realizada na Escola Municipal Osvaldino José de Sousa, com duas
professoras do ensino Fundamental, efetuado por meio de um questionário com questões fechadas,
procurou-se identificar as possíveis falhas dos professores ao transmitir os seus conteúdos
programáticos. Com intuito de fundamentar esta pesquisa procurou-se desenvolver uma pesquisa
bibliográfica para maior respaldo teórico e encontrar as respostas nas hipóteses. Desta forma,
entende-se que esta pesquisa possa estar contribuindo de maneira positiva para os educadores que
se preocupam com o desempenho na Educação das crianças. A escolha deste tema fez necessário,
com o intuito de descobrir a causa do desinteresse do aluno em aprender e a criar seus próprios
conceitos sobre determinados temas. Ficou claro que as dificuldades de aprendizagem são
causadas por diversos fatores, entretanto, entende-se que as crianças com dificuldades
educacionais poderiam seguir sem maiores conflitos desde que encontrassem como sala de aula
organizada para tal situação e professores bem preparados.

Palavras-chave: Dificuldades. Educação. Ensino Aprendizagem. Discentes.

Abstract: This paper brings a reflection on aspects related to learning problems with the teacher,
where the teacher feels challenged to rethink the pedagogical practice, inscribing the possibility
of new procedures. Because the concern with the quality of teaching and the preparation of the
teacher has grown a lot in recent years, due to the increasing difficulties in their learning. This
study had as its general objective to critically analyze the learning process and the quality of
teaching as a whole, in order to contribute to an adequate planning for the student learning. The
field research was performed at Osvaldino José de Sousa Municipal School, with two elementary
school teachers, through a questionnaire with closed questions, sought to identify the possible
failures of teachers when transmitting their syllabus. In order to support this research, we sought
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to develop a literature search for greater theoretical support and find the answers in the hypotheses.
Thus, it is understood that this research may be contributing positively to educators who care about
the performance in children's education. The choice of this theme was necessary in order to
discover the cause of the student's lack of interest in learning and to create their own concepts on
certain topics. It was clear that learning disabilities are caused by several factors, however, it is
understood that children with educational difficulties could follow without major conflicts as long
as they found an organized classroom for such a situation and well-prepared teachers.
Keywords: Difficulties. Education. Teaching Learning. Students.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho traz uma reflexão sobre os aspectos referentes aos problemas de
aprendizagem junto ao professor, onde o professor sente-se desafiado a repensar a prática
pedagógica, inscrevendo a possibilidade de novos procedimentos. Pois a preocupação com a
qualidade do ensino e com a preparação do professor tem crescido bastante nos últimos anos,
devido ao aumento das dificuldades na sua aprendizagem. A falta de clareza dos conteúdos, o
baixo índice de rendimento dos alunos e o elevado nível de reprovação comprovam tal fato.
O processo de aprendizagem já não é considerado uma ação passiva de recepção, nem o
ensinamento uma simples transmissão de informação. Ao contrário, hoje se fala de aprendizagem
interativa, da dimensionalidade do saber. A aprendizagem supõe uma construção que ocorre por
meio de um processo mental que implica na aquisição de um conhecimento novo. É sempre uma
reconstrução interna e subjetiva, processada e construída interativamente.
Nesse sentido, o apreender é o caminho para atingir o crescimento, a maturidade e o
desenvolvimento como pessoas num mundo organizado as interações com o meio, os quais
permitem a organização do conhecimento.
Portanto, a aprendizagem é um processo que ocorre durante toda a vida, ou seja, é um
processo integral que ocorre desde o princípio da vida. “Exige de quem aprende o corpo, o
psiquismo e os processos cognitivos que ocorrem dentro de um sistema social organizado,
sistematizado em ideias, pensamento e linguagem”. (RISUENÕ e MOTTA, 2005).
O principal desafio que têm os pais, os professores e profissionais da educação que
trabalham com crianças que apresentam dificuldades é ajudá-las a adquirir confianças em si
mesmas, a acreditar nas suas capacidades. Devem saber que as pessoas aprendem de maneiras
diferentes e que sua energia pode ser encaminhada para encontrar estratégias adequadas para sua
aprendizagem, ao invés de buscar formas de esconder suas dificuldades.
As crianças aprendem a esconder suas dificuldades com condutas como ser o palhaço da
classe, manter-se calada, fugir das responsabilidades, demonstrar desinteresse ou muitas vezes
com mau comportamento. Essas crianças precisam de um ambiente seguro, estimulante onde os
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erros sejam permitidos e assumir riscos seja incentivado. Quando sente que aprender é uma
experiência excitante onde se pode sentir prazer, então isso se transformará em algo que nunca
termina, durará a vida toda.
A dificuldade de aprendizagem afeta a pessoa na sua totalidade, A pessoa sofre pela
subestimação que sente por não conseguir cumprir com aquilo que espera de si mesma e com o
que os outros esperam dela, sofre, também, com a desvalorização que enxerga no olhar dos
demais. Em consequência o fracasso toca o seu íntimo e o ser social da pessoa, levando em
consideração o lugar que tem o sucesso social no mundo em que se vive hoje.
A análise das dificuldades na aprendizagem nos conduz a uma reflexão acerca das
propostas pedagógicas de ensino e a sugerir alguns métodos que amenize tais dificuldades.
A escolha deste tema fez necessário, com o intuito de descobrir a causa do desinteresse o
aluno em aprender e a criar seus próprios conceitos sobre determinados temas.
Este artigo tem por objetivo analisar o processo de aprendizagem e a qualidade de ensino
como um todo, de forma que contribua com um planejamento adequado para o aprendizado do
discente, bem como entender as formas de amenizar as dificuldades na aprendizagem; analisar os
fatores presentes no diagnóstico de problemas de aprendizagem; traçar um breve perfil
profissional dos professores; compreender as dificuldades de aprendizagem dos alunos;
identificar as possíveis falhas dos professores ao transmitir os seus conteúdos programáticos.

2 ENTENDER AS FORMAS DE AMENIZAR AS DIFICULDADES NA


APRENDIZAGEM
Os professores que ensinam nas primeiras séries sentem seus alunos tolhidos e sem
ambiente para desenvolverem seus raciocínios, devido à comparação da prática na escola com a
vivência fora dela. Recursos diversificados para se obter tais respostas e poder cumprir o
programa, devem estar sempre sendo focalizados avivando a iniciativa e a espontaneidade dos
alunos, para se tornarem mais alertas e participativos.
Na sala de aula normalmente são encontradas crianças com dificuldades na aprendizagem,
crianças que têm capacidades necessárias, mas não conseguem atingir o rendimento que seria
esperado delas. Não aprendem como as demais crianças e, portanto, os métodos normalmente
utilizados não funcionam com elas. Os problemas de aprendizagem são complexos; suas
manifestações podem ser sintomas de sua infinidade de fatores. O diagnóstico de cada um é
indispensável para poder conceder as estratégias de condução e tratamento adequados. É
importante que as pessoas a cargo da sua educação conheçam seus pontos fortes e suas áreas de
dificuldades, a forma como apreende e como poderia compensar suas áreas deficitárias.
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A aprendizagem é uma função interativa, onde se relacionam o corpo, a psique e a mente


para que o indivíduo possa apropriar-se da realidade de uma forma particular.
Portanto, desenvolver-se no aluno a habilidade de elaborar raciocínio lógico, fazendo uso
dos recursos disponíveis e enfrentar situações novas. E, para isso, é primordial desenvolver a
iniciativa, espírito explorador, criativo e independente, onde os alunos, incentivados e orientados
pelos professores, trabalhem de modo ativo individualmente ou em grupos para buscar a solução
das dificuldades na aprendizagem. Assim é necessário formar cidadãos alfabetizados e letrados,
com bom preparo para resolver as situações que lhes forem apresentados em seu cotidiano.
Nesta luta, onde professores e alunos se engajam no intuito de encontrar soluções, a escola
tem sua parte a cumprir, atendendo os interesses da família, com reformulações nos currículos,
proporcionando etapas de reciclagem didáticas aos professores, além de adequar calendários,
sistema de avaliações junto aos alunos no critério de seleção e localização.
As famílias de crianças com dificuldades de aprendizagem, sempre deve estar procurando
maneiras de ajudá-las a potencializar suas habilidades, as quais podem de alguma forma
compensar suas dificuldades.
Neste sentido, as famílias devem ser um verdadeiro apoio emocional para a pessoa com
dificuldades. Essas crianças enfrentam frustrações frequentes, sobre tudo na escola; a família deve
ser um apoio constante que a ajude a manejar e superar suas crises.
Entende-se que o conjunto se completa, com o apoio da sociedade, dos governantes a nível
federal, estadual e municipal, no cumprimento das reivindicações para se mantiver o ensino e que
as escolas possam ter condições para funcionar e atender às necessidades de toda a comunidade
local.

3 ANALISAR FATORES PRESENTES NO DIAGNOSTICO DE PROBLEMAS DE


APRENDIZAGEM
O ser humano vem ao mundo fazendo parte de uma estrutura familiar e com um lugar
designado dentro dela. A interação com o mundo ocorre primeiramente por meio de vínculo com
a mãe. No qual, a criança estrutura suas capacidades individuais e também sua atitude frente ao
mundo e, portanto, frente à aprendizagem.
É muito importante entender que a aprendizagem caminha unida ao crescimento, ir
deixando, pouco a pouco, a dependência para chegar a ser independente. Nesse processo a criança
deve ser capaz de transferir seus afetos para fora do núcleo familiar e encontrar outros modelos
de identificação com seus colegas e professores. Também, a partir da família, deve dar o espaço
para a aceitação do crescimento já que este é o caminho para que ocorra a socialização dos
processos do pensamento e dos mecanismos de contato com a realidade.
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A possibilidade de aprender depende do processo de individualização. Quer dizer, do


nascimento psicológico do ser humano, que quando pode aprender por meio de suas
sensações e dos seus sentimentos passa do plano da ação para o plano de simbolização.
O sujeito pode refletir sobre o que sente e pensa. O educador, a partir da sua função, pode
ajudá-lo a colocar em palavras sentimentos e sensações e deve cuidar para que o aluno
estabeleça um vínculo saudável com o objeto da aprendizagem. (RISUEÑO e
MOTTA, 2005 p. 53)

Há uma multiplicidade de fatores que intervêm para o surgimento de um baixo rendimento


escolar como resultado do processo de aprendizagem. Há também, existência de condições
internas e externas nesse processo. Entre as condições internas podem-se mencionar os fatores
relacionados com aspectos neurobióticos ou orgânicos, ou seja, referem-se ao sistema nervoso
central e, especificamente, ao cérebro, ou seja, “com o que se aprende”. Devem ser levados em
consideração também os aspectos psíquicos, que em muitos casos apresentam-se como causa
subjacente do baixo rendimento escolar. Nesse caso de “quem aprende”. Por último, entre as
condições externas, devem ser considerados os aspectos sociais que se referem ao “como se
aprende” e “ao ambiente” no qual se aprende. É importante entender que esses fatores interagem
entre si.
As dificuldades de aprendizagem têm como desencadeantes alguns fatores, quais sejam:
de origem orgânica, que incluem questões genéticas, fatores orgânicos, como perinatais ou pós-
natais que por sua vez, seriam responsáveis por distúrbios do sistema nervoso central, saúde física
deficiente ou alimentação inadequada; de origem psicológica, como inibição, fantasia, ansiedade,
angústia, inadequação à realidade, sentimento generalizado de rejeição; e fatores ambientais, que
incluem a dinâmica familiar, o grau de estimulação que a criança recebe desde os primeiros dias
de vida na família e, depois na escola, a influência dos meios de comunicação.
Quem ensina são os pais, tios, avós, irmãos, professores e colegas de escola. No entanto,
a pessoa que ensina, com todas as suas características individuais, além das suas qualidades
pedagógicas, é fundamental. Mas o importante do que o conteúdo ensinado é a relação com a
pessoa que ensina que afeta a subjetividade da pessoa que aprende.
Para que uma criança aprenda é necessário que a pessoa que ensina dê a ela a possibilidade
de “ser a pessoa que aprende” e a coloque no lugar do sujeito pensante. Mais que ser uma pessoa
que ensina conteúdo, a pessoa que ensina abre espaço para o saber, um espaço para a construção
dos conhecimentos e um espaço para construir a si mesma como um objeto criativo e pensante.
O professor ensina, mas a criança aprende sozinha, essa é a incoerência. Os pais e os
professores podem possuir as informações, porém a sua função não é transmiti-la, mas sim
propiciar ferramentas e o espaço adequado para que a construção do conhecimento seja possível.
O papel do professor pode ajudar a criança a reconhecer a si mesma como ser pensante e autora
de sua história.
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Os métodos e as técnicas psicopedagógicos precisam ser sustentados pela pessoa que


ensina. A responsabilidade do ensinar e do aprender é uma responsabilidade compartilhada.
A pessoa que ensina entrega as ferramentas necessárias para se aprender, não oferece o
conhecimento diretamente. Para que uma pessoa que ensina possa apoiar a criança no seu espaço
de aprendizagem, no seu processo, necessita estar medianamente segura de si mesma e ter seus
próprios projetos, ou seja, não necessita depender do sucesso da pessoa que aprende para sentir-
se bem.
No que se refere aos fatores genéticos, o fato das dificuldades de aprendizagem surgirem
em famílias, poderá levar a pensar que existe uma conexão genética. Porém, é improvável que
dificuldades de aprendizagem sejam herdadas diretamente. Possivelmente, o que é herdado é uma
sutil disfunção cerebral que pode levar a um problema de aprendizagem.
Deve-se também investigar as condições gerais da saúde, alimentação, as condições de
abrigo e conforto. O déficit alimentar crônico provoca uma distrofia generalizada que interfere na
capacidade de aprender. Quando o organismo apresenta um bom equilíbrio, a pessoa defende sua
ocupação cognitiva e busca outros caminhos que não afetem seu desenvolvimento intelectual.
No que se tange aos fatores específicos, Estes transtornos afetam o nível de aprendizagem
da linguagem, da sua articulação, da leitura e da escrita. Aparecem inúmeras pequenas falhas
como, por exemplo, a alteração da sequência percebida, dificuldade para construir imagens claras
de fonemas, sílabas e palavras, etc. Pode-se também encontrar dificuldades na análise e síntese
dos símbolos, na capacidade sintática e na atribuição significativa.
Muitos problemas de aprendizagem encontram-se relacionados com uma indeterminação
da lateralidade. Deve-se ter claro que a norma é o uso da mão direita. A pessoa destra nas
extremidades e no olho apresenta uma grafia mais uniforme e harmônica. A criança canhota é
forçada a uma decodificação precoce. O caso se complica ainda mais quando existe uma
lateralidade cruzada, ou seja, quando os olhos e as mãos não apresentam uma lateralização
comum.
A respeito dos fatores emocionais, deve-se partir levando em consideração que “a família
é a sala de aula primordial na educação da criança. Esta metáfora sublinha os aspectos da interação
familiar que podem contribuir para as dificuldades da criança na escola”. (MENIM, 2003). É quase
totalmente reconhecida por docentes, pedagogos, psicólogos que os aspectos emocionais podem
interferir negativamente nos processos de aprendizagem. No entanto, somente é conhecida a
influência destes aspectos emocionais quando se tenta fundamentar um problema de aprendizagem
ou quando é realizada uma prevenção de tais problemas.
Se pensar somente em operações centrais da inteligência como classificar ou ordenar, se
pode perceber a importância dos aspectos emocionais na aprendizagem. A criança é capaz de
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realizar classificação de cor ou tamanho e ordenações de menor a maior ou vice-versa, sempre e


quando tenha as capacidades cognitivas para fazê-lo, mas, além disso, quando sentir-se
pertencente a uma classe: sou filho de tais pessoas, sou mulher, sou homem e se sinta como única
e distinta, diferenciada de outras, só assim poderá desenvolver estas operações lógicas.
Diferentes desajustes emocionais também podem surgir em função de uma dificuldade de
aprendizagem. A aprendizagem de lectoescrita (as habilidades da leitura e da escrita) é
considerada como uma das tarefas mais importantes na escolaridade precoce. As dificuldades de
aprendizagem e os problemas emocionais frequentemente estabelecem uma relação recíproca: as
dificuldades de aprendizagem podem produzir leves desajustes emocionais e estes, por sua vez,
podem agravar os problemas de aprendizagem.
As crianças respondem emocionalmente diante de diferentes situações como divórcios,
problemas familiares, superproteção, rivalidade entre irmãos, morte de pessoas próximas,
situações novas. Portanto, deve-se estar muito atento às reações das crianças, buscando a forma
de ajudá-las a manejar e elaborar estas situações, já que podem ser afetados diferentes âmbitos da
sua vida, inclusive a aprendizagem. Assim então se vê que o desenvolvimento emocional sadio é
um fator importante para assegurar uma escolaridade com êxito.
A intervenção pedagógica para o conhecimento é necessária. É por meio dessa ajuda que
o professor acompanha o aluno para construir significados e dar sentido ao que aprende. O
verdadeiro forjador do processo do conhecimento é o aluno, é ele quem vai construir significados.
A função do professor é ajudá-lo nessa tarefa. A importância do professor que orienta os discentes
é muito grande. Eles têm que saber como as atividades que realizam com as crianças favorecem a
maturidade. Por isso, um estudante não só deve saber o que fazer e como fazer, mas também para
que está fazendo.
Portanto, a intervenção do docente é uma guia da atividade do aluno. A estratégia que ele
utiliza será valiosa quando motivarem os alunos para a análise do tipo de operações mentais que
realizam em diferentes momentos da aula. De maneira que percebam como e sob que
circunstâncias aprendem.
A aprendizagem é um processo interativo na qual se experimenta, buscam-se soluções: a
informação é importante, porém mais importante ainda é a forma pela qual ela é apresentada e a
função desempenhada a experiência da pessoa que aprende. A busca, a pesquisa e a exploração
desempenham um papel muito importante na construção dos conhecimentos.
Geralmente é importante que, para que a aprendizagem seja significativa, começar pelos
aspectos mais gerais e simples para depois ir introduzindo progressivamente os conteúdos mais
detalhados e complexos. De fato, os conteúdos são aprendidos de forma gradual, é necessário
compreender cada passo para passar ao próximo. E também é necessário que seja dado tempo à
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criança, um tempo adequado para a reorganização do pensamento, para integrar novas


aprendizagens às anteriores é indispensável.
Devem ser significativos, não somente que sejam relevantes e tenham uma organização
clara, mas sim que seja possível assimilá-los, ou seja, que existe uma estrutura cognitiva por parte
de quem aprende e que existam elementos relacionáveis na sua estrutura, com o material de
aprendizagem. E também a intencionalidade por parte do professor de comunicar o que se quer
transmitir.
Devem oferecer aos alunos a possibilidade de adquirir o conhecimento e de praticá-lo num
contexto de uso o mais realista possível. E que exista reciprocidade, ou seja, quando exista um
laço de comunicação forte entre quem aprende e quem ensina, para que ocorra uma aprendizagem
mais efetiva.

4 METODOLOGIA

Os resultados desta pesquisa foram obtidos através de um questionário com questões


fechadas, com duas professoras que se disponibilizaram a participar da pesquisa não havendo
critérios de exclusão, as quais fazem parte do quadro efetivo de funcionárias, localizada na Rua
s/n, no povoado Peri de Cima – Bacabeira – MA.
Salienta-se que as professoras entrevistadas disseram ter entre 7 e 10 anos de docência nas
escolas, tem nível superior em, porém, nenhuma apresenta especialização em Psicopedagogia.
Como todo trabalho científico o estudo passou por levantamento bibliográfico colhido em
fontes como livros, revistas, publicações especiais e sites da internet, com fins de embasamento
teórico em atores renomados no assunto.
O instrumento de coleta foi o roteiro de entrevista estruturado, com aplicação de
questionário fechado em loco. De posse das respostas dos pesquisados, fez-se análise dos
resultados e posteriormente levantadas às questões evidenciadas nesta pesquisa.
Após coletados, os dados da referida pesquisa foram tabulados, extraindo-se a
porcentagem e, fazendo-se depois uma comparação com estudos anteriores sobre o tema. Os
resultados encontram-se dispostos a seguir em tabelas.

5 RESULTADOS E DISCUSSÃO DA PESQUISA DE CAMPO

Com a pretensão de identificar as possíveis falhas dos professores ao transmitir os seus


conteúdos programáticos e para compreender as causas de dificuldades de aprendizagem dos
alunos, procurou-se através de uma pesquisa de campo pelo autor deste artigo, com objetivo de
reunir informações que possibilitassem fornecer práticos e elementos reais para melhor
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caracterizar as dificuldades de aprendizagem no contexto da prática pedagógica dos docentes da


escola escolhida.

5.1 Professores contratados ou concursados


Tabela 1 – Demonstrativo relativo à estabilidade dos docentes pesquisados na Escola Municipal Osvaldino José de
Sousa

VARIÁVEIS NÚMERO %
Contratado ou concursado
É contratado 00 00
É concursado 02 100
Total 02 100

Sobre esta questão perguntaram aos docentes sobre o regime de trabalho 100% (cem
por cento) disseram que são concursados. (Tabela 1).

5.2 Tempo que leciona

Tabela 2 - Demonstrativo relativo ao tempo que leciona dos docentes pesquisados na Escola Municipal Osvaldino
José de Sousa.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Tempo que leciona
Menos de um ano 00 00
Mais de um ano 00 00
Mais de cinco anos 01 50
Mais de dez anos 01 50
Total 02 100

A experiência profissional dos docentes é outro fator importante m qualquer análise que
trate das questões escolares. Nessa questão 50 % (cinquenta por cento) dos docentes entrevistadas
disseram que lecionam mais de cinco anos; 50 % (cinquenta por cento) mais de dez anos. A
maioria dos professores entrevistados para este estudo leciona, em média, mais de 10 anos. Mas
essa média varia muito entre os professores homens, que tendem a ter carreiras mais breves, e as
mulheres, com maior número de anos de permanência na profissão.

5.3 Se os professores lecionam em outras escolas


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Tabela 3 - Demonstrativo relativo se os docentes lecionam em outras escolas, além da Escola Municipal Osvaldino
José de Sousa.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Leciona em outras escolas
Sim 02 100
Não 00 00
Total 02 100

Todos os entrevistados lecionam em mais de uma escola. Com mais da metade dos
professores no Brasil tem contrato em tempo integral, grande parte deles acaba pulverizando sua
atuação em diversas instituições. Trabalhar só em uma escola seria o ideal e certamente
amenizaria os problemas de quem precisa se deslocar entre três, quatro lugares diferentes. Pois,
lecionar em uma só escola contribui para a criação de um vínculo que facilitaria o
acompanhamento dispensado a cada estudante, o que contribuiria para o melhor desempenho,
além de permitir ao profissional se concentrar mais nas aulas. Não é só o ato de lecionar que é
afetado pela jornada excessiva. Fora da sala de aula, há provas para corrigir, lições a preparar,
reuniões a fazer.

5.4 O grau de instrução

Tabela 4 - Demonstrativo relativo ao grau de instrução dos docentes pesquisados na Escola Municipal Osvaldino
José de Sousa.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Grau de instrução
Ensino médio 00 00
Magistério 00 00
Superior 02 100
Total 02 100

De acordo com os entrevistados 100 % (cem por cento) possui graduação. Muitos autores
ressaltam a importância do reconhecimento do saber docente, em especial dos saberes da
experiência, no âmbito das práticas de formação continuada. Segundo Candau (2003, p. 146), os
saberes que nascem da experiência e são, pela experiência, validados, “incorporam- se à vivência
individual e coletiva sob a forma de hábitos e de habilidades, de saber fazer e de saber ser”.
A melhoria da qualidade do ensino é um dos objetivos centrais do Plano Nacional de
Educação. Mas tal objetivo depende da elaboração de uma política global de valorização do
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magistério que, entre outros aportes, seja capaz de prover: a adequada formação profissional
inicial; corretas condições de trabalho, salário e carreira; e a formação continuada.

5.5 Especialização dos professores

Tabela 5 - Demonstrativo relativo à especialização dos docentes pesquisados na Escola Municipal Osvaldino José de
Sousa.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Especialização
Sim 02 100
Não 00 00
Total 02 100

Nesta questão também todos possuem especialização. Para tanto, Gadotti aponta que: “A
formação do educador depende muito mais de sua inserção social e no político do que numa boa
reformulação dos currículos e de cursos” (GADOTTI, 2000, p. 64).
As políticas governamentais concernentes à educação fundamental têm oferecido
programas de formação continuada aos profissionais em exercício, que levam a compreender a
importância de apoiar e incentivar o desenvolvimento profissional de professores e especialistas
em educação.

5.6 Professores que preparam as aulas com antecedências


Tabela 6 - Demonstrativo relativo à preparação das aulas com antecedências dos docentes pesquisados na Escola
Municipal Osvaldino José de Sousa.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Preparação das aulas com antecedências
Sim 01 50
Não 00 00
Às vezes 01 50
Total 02 100

De acordo com o resultado desta questão 50 % (cinquenta por cento) dos docentes
entrevistados preparam as aulas com antecedências, e 50% (cinquenta por cento) disseram às
vezes.
Nesse sentido, acredita-se que os profissionais da educação envolvidos no processo
educacional na modalidade Ensino Fundamental, pressupõem sujeitos que possibilitem momentos
de profundas reflexões sobre a sociedade atual e analisam as contradições existentes no contexto
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social. Logo, os estudantes que vivenciam tal prática reflexiva, estarão preparados para confrontar
a realidade vigente para mobilizar mudanças na sua prática social.

5.7 Intenção periodicamente de capacitação

Tabela 7 - Demonstrativo relativo à intenção periodicamente de capacitação dos docentes pesquisados na Escola
Municipal Osvaldino José de Sousa.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Intenção periodicamente de capacitação
Sim 02 100
Não 00 00
Total 02 100

No que tange esta questão 100 % (cem por cento) dos entrevistados tem intenção fazer
periodicamente capacitação. Assim, observa-se que as docentes se preocupam com sua formação
no que tange ao seu trabalho como docente, pois, segundo Josso (2004) que defendem a
reabilitação do indivíduo como sujeito e autor do conhecimento. Conforme Libâneo (2002), a
capacidade de pensar, a reflexão, a autoria e o “empoderamento” dos sujeitos frente à realidade
está no cerne das discussões modernidade/ pós-modernidade.
Desse modo, a conquista da prática pedagógica se trata de uma maneira dos educadores
tomarem o poder sobre a sua atuação profissional, colocando-se como sujeitos e autores do seu
fazer pedagógico.

5.8 Dificuldades de aprendizagem por parte dos alunos

Tabela 8 - Demonstrativo relativo as dificuldades de aprendizagem por parte dos alunos dos docentes pesquisados
na Escola Municipal Osvaldino José de Sousa.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Dificuldades de aprendizagem dos alunos
Falta de material 01 50
Falta de interesse do aluno 01 50
Falta de relação com a realidade 00 00
Total 02 100

No que se refere às dificuldades de aprendizagem dos educandos 50 % dos docentes


afirmaram falta de interesses dos alunos; 50 % disseram falta de material didático.
Acredita-se que não só o formalismo e a dificuldade de abstração são os únicos culpados
das dificuldades que os alunos encontram no ensino aprendizagem.
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Devem-se considerar outros fatores que também podem estar concorrendo para este
fracasso. A forma como se desenvolve o conteúdo e até problemas sociais e culturais podem
contribuir para esta problemática.
Acredita-se que para a superação dos problemas de ensino é necessário um planejamento
que inclua atividades diversificadas e individuais, estudo constante, dedicação e muita
competência, pois será necessário investigar as teorias de aprendizagem e colocá-las em prática,
conhecendo também a história familiar do educando que é o ponto essencial de ensino
aprendizagem.

5.9 O meio de utilização para assimilação do conteúdo


Tabela 09 - Demonstrativo relativo ao meio de utilização para assimilação do conteúdo dos docentes pesquisados na
Escola Municipal Osvaldino José de Sousa.

VARIÁVEIS NÚMERO %
O meio de utilização para assimilação do
conteúdo
Exercício e avaliação escrita 01 50
Perguntas orais 00 00
Levando o aluno ao quadro 00 00
Outros tipos de avaliações 01 50
Total 02 100

A respeito do meio de utilização para assimilação do conteúdo 50 % (cinquenta por cento)


disseram que usam exercício e avaliação escrita e 50 % (cinquenta por cento) disseram que usam
outros tipos de avaliação.
A complexidade de elementos presentes no processo de avaliação da aprendizagem indica
que não existe uma única concepção de avaliação. Na verdade, existem diferentes formas possíveis
de abordar o ato de avaliar. De acordo com Libâneo (1999), a avaliação é uma análise qualitativa
sobre dados considerados importantes do processo de ensino e aprendizagem que auxilia o
professor a tomar decisões sobre o seu trabalho.
Concorda-se com o autor, mas acrescenta-se que a avaliação deve auxiliar também o
discente, pois ela possibilita ao aluno tomar decisões sobre seus estudos, dificuldades e progressos.
A avaliação da aprendizagem, sob esta conotação, serve tanto para o aluno quanto para o professor.
É possível notar que em todas as respostas dos professores, revela-se, mesmo que
sutilmente, a preocupação com a aprendizagem do aluno. Isso mostra que apesar de a avaliação
ainda ser considerada pela maioria desses profissionais uma verificação da aprendizagem,
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demonstram, nas linhas e entrelinhas, interesse pela aprendizagem dos seus alunos. Observar-se
também que, os professores entrevistados, em nenhum momento abordaram a avaliação como um
fim em si mesmo e tampouco sob a conotação de castigo ou de mera classificação dos alunos.
Nesse sentido, apontamos possíveis nuances de mudanças na concepção de avaliação dos
professores pesquisados.

5.10 Interrupção do conteúdo, durante as aulas, atitude dos docentes

Tabela 10 - Demonstrativo relativo à interrupção do conteúdo, durante as aulas, atitude dos docentes pesquisados na
Escola Municipal Osvaldino José de Sousa.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Interrupção do conteúdo, durante as aulas
Repete o conteúdo em discussão 01 50
Deixa o problema para o final da aula 00 00
Resolve com ajuda da turma 01 50
Adota outra atitude 00 00
Total 02 100

Durante a exposição do conteúdo, quando um aluno interrompe dizendo não ter entendido,
50 % (cinquenta por cento) disseram adotar o procedimento de repetir o conteúdo em discussão e
50 % (cinquenta por cento) disseram resolver com ajuda da turma.
A aprendizagem profunda ocorre quando a intenção dos alunos é entender o significado
do que estudam, o que os leva a relacionar o conteúdo com aprendizagens anteriores, com suas
experiências pessoais, o que, por sua vez, os leva a avaliar o que vai sendo realizado e a
perseverarem até conseguirem um grau aceitável de compreensão sobre o assunto. Partir daquilo
que o aluno já traz algum conhecimento, reforçá-lo e valorizá-lo é fazê-lo sentir-se parte do
processo de aprender e, paralelamente, é elevar sua autoestima.

5.11 Intercâmbio com os colegas

Tabela 11 - Demonstrativo relativo ao intercâmbio com os colegas dos docentes pesquisados na Escola Municipal
Osvaldino José de Sousa.

VARIÁVEIS NÚMERO %
Intercâmbio com os colegas
Sim 01 50
Somente com os docentes da minha escola 01 50
Raríssimas vezes 00 00
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Total 02 100

No que diz respeito ao intercâmbio dos professores com seus colegas de profissão, 50 %
(cinquenta por cento) disseram que sim; 50 % (cinquenta por cento) disseram somente com os
professores da mesma escola que fazem intercâmbio.
O trabalho coletivo entre educadores é defendido por inúmeros autores da área
educacional. Especialmente Warschauer (2001) nos fala de seus efeitos formativo e Inter
formativo, afirmando que o educador, dessa maneira, descobre-se responsável por sua formação.
Os educadores precisam superar o isolamento da sala de aula, e nesse sentido, Alarcão
(2003, p. 58) afirma que “em colaboração, têm de construir pensamento sobre a escola e o que
nela se vive”.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com as abordagens feitas ao longo desta análise, mais as pesquisas de campo realizadas
com professores da Escola Municipal Osvaldino José de Sousa, onde foram efetuados
levantamentos por amostragem, conseguiu-se detectar as principais causas que dificultam a
aprendizagem dos alunos desta escola escolhida.
Quando manifesta dificuldades, o aluno revela uma situação mais ampla, em que também
se inscreve a escola, uma vez que esta é parceria no processo da aprendizagem. Nessa parceria
entra o professor, e cabe à escola, abrir espaços para que se disponibilizem recursos que façam
frente aos desafios, isto é, na direção da efetivação da aprendizagem. Nesse sentido, o professor
sente-se desafiado a repensar a prática pedagógica, inscrevendo a possibilidade de novos
procedimentos. Esse processo de parceria possibilita uma aprendizagem muito importante e
enriquecedora.
Fica claro que as dificuldades de aprendizagem são causadas por diversos fatores,
entretanto, entende-se que as crianças com dificuldades educacionais poderiam seguir sem
maiores conflitos desde que encontrassem a sala de aula organizada para tal situação e professores
bem preparados.
Portanto, antes de qualquer posição em relação às dificuldades de aprendizagem, o
educador ou a instituição de ensino deve antes de tudo fazer o diagnóstico. Para as crianças que
têm essas dificuldades sejam acompanhadas nas suas tarefas escolares, de preferência juntos aos
alunos ditos “normais”.

REFERÊNCIAS
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ALARCÃO, Isabel. Professores reflexivos em uma escola reflexiva. São Paulo: Cortez, 2003.

CATANIA, A. Charles. Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição. 4 ed. Porto


Alegre: Artmed, 2008.

GARCIA, Jesus Nicasio. Manual de Dificuldades de Aprendizagem. Porto Alegre: Artmed,


1998.

JOSSO, Marie Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.

LIBÂNEO, José Carlos. Reflexividade e formação de professores: outra oscilação do


pensamento pedagógico brasileiro? In: PIMENTA, Selma Garrido; GHEDIN, Evandro (Orgs.).
Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002.

MENIM, O. Problemas de aprendizaje. Qué prevención ES posible? Ediciones Homo Sapiens,


Santa Fé, 2003.

PAMPLONA, A. M. Distúrbios de aprendizagem: uma abordagem psicopedagógica. 8 ed. rev.


E ampl. São Paulo: Edicon, 2002.

RISUEÑO, Alicia; LA MOTTA, Iris. Trastornos específicos Del aprendizaje. Editorial Bonum,
Buenos Aires, 2005.

SCHÖN, Donald. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a


aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000.
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DISCURSOS SOBRE A TRANSEXUALIDADE NO CENTRO DE ENSINO PAULO VI


EM SÃO LUÍS, MARANHÃO

SPEECHES ON TRANSEXUALITY AT THE PAULO VI TEACHING CENTER IN SÃO


LUÍS, MARANHÃO
Nilvanete Gomes de Lima
Doutora em Ciências Sociais - UFMA.
Professora de Sociologia do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico no
Instituto Federal de Educação e Tecnologia do Maranhão – IFMA
Jackson Ronie Sá-Silva
Doutor em Educação - Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos
Professor Adjunto do Departamento de Química e Biologia da Universidade Estadual do
Maranhão – UEMA.
Annie France dos Santos da Silva
Graduada em Ciências Biológicas Licenciatura pela Universidade Estadual do Maranhão
– UEMA.
Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Falar sobre sexualidade ainda é um tabu para a sociedade. Nesse contexto, falar sobre
transexualidade é fundamental, pois as pessoas trans costumam ser invisibilizadas em uma
sociedade marcadamente heteronormativa. Mais necessária ainda é essa discussão no ambiente
escolar, visto que a educação básica tem uma longa duração na vida do indivíduo, que está em
processo de formação. Realizada no Centro de Ensino Paulo VI esta pesquisa teve como objetivo
compreender os discursos acerca da transexualidade. Para isso, foram aplicados questionários com
a comunidade escolar do turno noturno, incluindo agentes administrativos(as), terceirizados(as),
professores(as) e alunos(as) do terceiro ano do Ensino Médio. A partir da análise do conteúdo
foucaultiana notamos não só o dito, mas também o não dito sobre a temática, tais como falas e
recusas a responder o instrumento de pesquisa. Também observamos estranheza dos(as)
pesquisados(as) com o termo “cisgênero”, e a confusão e preconceito com o significado de
“transexualidade” e “travestilidade”, que ao mesmo tempo em que reduziam o indivíduo trans à
necessidade de uma cirurgia de redesignação sexual, colocavam as travestis no mundo da
prostituição. Concluímos que o ambiente escolar ainda precisa caminhar muito para reconhecer e
respeitar as diferenças em seu espaço.
Palavras-chave: Educação. Heteronormatividade. Invisibilidade Trans. Análise do Discurso.

Abstract: Talking about sexuality is still taboo for society. In this context, talking about
transsexuality is essential, as trans people are often invisible in a markedly heteronormative
society. Even more necessary is this discussion in the school environment, since basic education
has a long duration in the life of the individual, who is in the process of formation. Conducted at
the Paulo VI Teaching Center, this research aimed to understand the discourses about
Página 485 de 2230

transsexuality. For this, questionnaires were applied with the school community of the night shift,
including administrative agents, outsourced workers, teachers and third year students. From the
analysis of Foucault's content, we noticed not only what was said, but also what was not said about
the theme, such as speeches and refusals to answer the research instrument. We also observed the
strangeness of those surveyed with the term "cisgender", and the confusion and prejudice with the
meaning of "transsexuality" and "transvestility", which at the same time reduced the trans
individual to the need for surgery of sexual reassignment, put transvestites in the world of
prostitution. We conclude that the school environment still has a long way to go to recognize and
respect the differences in its space.
Keywords: Education. Heteronormativity. Trans invisibility. Discourse analysis.

1 A sociedade é heteronormativa, mas nem tod@s88 serão heterossexuais...

Atualmente é comum ouvirmos que vivemos em uma sociedade heteronormativa, mas


poucas vezes paramos para refletir sobre o que isso de fato significa. Para os estudos queer89 a
heterossexualidade não é um regime fechado e coerente em si mesmo, nesse processo repetido,
continuado, mas sempre inacabado de produzir o gênero, que se constitui performaticamente.
Dessa forma, Judith Butler (2000) articula a crítica da heteronormatividade, à performatividade
de gênero. Para ela, o gênero é performativo. O ato de repetir as normas da heterossexualidade faz
com que se esteja preso às normas do imperativo heteronormativo. “A performatividade não é,
assim, um ‘ato’ singular, pois ela é sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto de normas”
(BUTLER, 2000, p. 163). Nesse sentido, os sujeitos são construídos por práticas discursivas que
cimentam seus corpos no caminho da inteligibilidade e não no da contestação. Entretanto há
corpos que não se submetem facilmente e não aderem totalmente a essa norma (BUTLER, 2014a,
Berenice BENTO90, 2006, 2011, 2012). Apesar disso, não podemos esquecer que a
heterossexualidade também normaliza gays, lésbicas, bissexuais, pessoas trans, que podem

88
Escolhemos utilizar uma linguagem não-binária a partir do símbolo “@”– fugindo à norma padrão, que coloca o
uso do masculino como um gênero marcado, admitindo seres de ambos os sexos/gênero a partir de uma generificação
masculinista – para designar um gênero neutro, sem marcações, sem hierarquias. Há outras possibilidades, as mais
conhecidas além do @, são o “x” e o “e” como substitutos do “a” e do “o” em palavras com gêneros masculino e
feminino. Nossa opção está baseada na percepção do @ como uma grafia que desvela ao mesmo tempo e em um
mesmo nível o “a” e o “o”. Nesse sentido, parece coerente, a partir de uma perspectiva derridiana da desconstrução
que questiona as binariedades, acionar essa aglutinação do “a” e do “o” em um único símbolo.
89
Este trabalho se aproxima de um referencial próprio a um conjunto de estudos designados como pós-estruturalistas.
Estudos de gênero, especialmente aqueles que adotam a perspectiva queer têm por base esse referencial por
considerarem relevantes as problematizações que destacam as interpretações, conceitos e estruturas binárias.
90
Neste trabalho, sempre que citarmos pela primeira vez um/a autor/a utilizaremos prenome e sobrenome, na tentativa
de fugirmos à generificação masculinista, mesmo que esteja utilizando a primeira menção no sistema de chamada.
Fazemos isso, sobretudo, como forma de chamarmos atenção para a produção acadêmica realizada por mulheres.
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contribuir tanto com preconceitos, quanto estigmatizações na medida em que aquel@s,


aparentemente, menos normalizad@s parecem estar fora dos padrões heteronormativos.
Nos processos de normalização experenciados por tod@s nós que vivemos sob o regime
da heteronormatividade, a norma é fundada em um modelo heterossexual, reprodutivo e familiar,
o qual, como observam Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (2015, p. 179), utiliza a violência
como “[...] modus operandi” sobrevivendo “[...] inabalável enquanto norma hegemônica”, o que
permite pensar que se sustenta “[...] à custa de muito sangue e dor”.
De fato, a heteronormatividade é violenta e opressora. Disfarçada de um caráter universal,
aparece como temporal e espacialmente a mesma para todos os seres viventes, pressupondo que
tod@s @s pesso@s sejam heterossexuais, alinhando sexo (macho e fêmea), gênero (masculino e
feminino) e desejo (heterossexual), de maneira que aqueles que fogem a esse padrão podem ser
como afirmou Butler (2014b) sentenciados e condenados à exclusão e a uma pena de morte que
embora não retire literalmente a vida, a mantém suspensa. Entretanto, a norma pode ser subvertida
e é, pois, a heteronormatividade, como qualquer outro processo constituído culturalmente é
passível de disputa política.
O conceito de heterossexualidade compulsória é anterior ao de heteronormatividade,
utilizado inicialmente por Monique Wittig, no artigo O pensamento hétero (1980), e Adrianne
Rich, em Heterossexualidade compulsória e a existência lésbica, ambos publicados na década de
1980. A ideia de heterossexualidade funcionaria como uma instituição política que retira das
mulheres o poder (RICH, 2010). Esta imporia um modelo de relações sexuais entre pessoas do
sexo/gênero oposto. O conceito de heteronormatividade é retomado por Butler em seus trabalhos,
mas aparece inicialmente em Michael Warner (1991). Este compreendia que havia um padrão de
sexualidade que regularia a organização das sociedades ocidentais modernas.
Como um dispositivo histórico de poder, a heteronormatividade e seu binarismo sexual
têm sido objetos do discurso médico-científico “[...] normatizando as condutas sexuais e as
expressões da masculinidade e da feminilidade em parâmetros de saúde/normalidade ou
doença/anormalidade” (Tatiana LIONÇO, 2009, p. 48). O termo dispositivo histórico de poder é
foucaultiano. Segundo ele, esse “dispositivo de sexualidade” é:
[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e
o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer
entre esses elementos. [...] está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no
entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente
o condicionam. É isto o dispositivo: estratégias de relações de forças sustentando
tipos de saber e sendo sustentadas por eles. (Michel FOUCAULT, 2014, p. 364; 367,
grifos nossos).
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Foucault identificou em seus estudos, como as normas regulatórias agem sobre os corpos
dos indivíduos, fabricando, assim, corpos docilizados. Segundo ele “[...] o corpo é objeto de
investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de
poderes muito apertados, que lhe impõem limites, proibições ou obrigações” (FOUCAULT, 2013,
p. 132). Portanto, neste processo de adestramento dos corpos, é possível pensar que estes são
produzidos discursivamente ao longo da história, inserindo normas de comportamento e de
estética que produzirão corpos considerados “normais”.
Assim, a heterossexualidade não é, para os estudos queer, um regime fechado e coerente
em si mesmo, nesse processo repetido, continuado, mas sempre inacabado de produzir o gênero,
que se constitui performaticamente.
Da mesma forma, a transexualidade, assim como a própria heterossexualidade, não é a-
histórica. Há um contexto em que ela surge, se transforma em um dispositivo e, enquanto tal,
encontra resistências. Se fizermos uma genealogia da transexualidade, nos moldes foucaultianos,
perceberemos que, a partir da segunda metade do século XX, mais especificamente na década de
1950, sendo intensificado nas décadas de 1960 e 1970, o “fenômeno transexual” (BENTO, 2012)
foi emergindo e ganhando visibilidade como “disforia de gênero” ou “transtorno de identidade”,
trazendo a transexualidade para o terreno das patologias e produzindo uma universalização desse
fenômeno91.
É importante pensarmos esse processo como a produção de um dispositivo de
transexualidade – assim como houve a de um dispositivo de sexualidade – para que possamos
perceber que há, dentro dele, lutas e resistências pela despatologização da transexualidade ao
mesmo tempo em que outros grupos lutam pela manutenção do diagnóstico por facilitar um
percurso médico viável e gratuito para a transformação corporal92. O primeiro passo já foi dado
com sua retirada do Código Internacional de Doenças 11/CID-11 – entendendo esta não como um
dado natural, mas uma invenção, bem como a heterossexualidade, que, enquanto tal, também
possui subversões normativas que compõem o dispositivo93. A emergência desse dispositivo
permitiu também a nomeação e a visibilidade da transexualidade.
No Brasil, o encontro d@s brasileir@s com a transexualidade se deu, inicialmente, de
maneira midiática. Ainda na década de 1980 a primeira transexual a ganhar os holofotes da grande
mídia foi Roberta Close, com apenas vinte e dois anos à época. Em maio de 1984 ela pousou nua

91
Interessante observarmos que em 1973 a APA aboliu o diagnóstico da homossexualidade como um transtorno e, em
1987, deixa de considerar a categoria “homossexualidade ego-distônica”.
92
Sobre essa discussão sugerimos a leitura do texto Desdiagnosticando o gênero de Butler (2009).
93
Sobre a genealogia da transexualidade e a constituição de um dispositivo sugerimos as leituras do artigo A invenção
do dispositivo da transexualidade: produção de “verdades” e experiência trans, de Maria de Fátima Lima Santos
(2011) e das obras de Berenice Bento, A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual (2006)
e O que é transexualidade (2012).
Página 488 de 2230

para a Revista Playboy, que vendeu mais de duzentos mil exemplares em apenas três dias, algo
inédito até aquele momento. O jornal Notícias Populares de 31 de maio do mesmo ano veiculou
a matéria Mulher mais bonita do Brasil é homem onde afirmava que ela era uma morena com
estonteantes medidas e “uma malícia ingênua que não deixa dúvidas, merecia ter nascido mulher”
(apud Luiz Carlos FERREIRA, 2014, p. [?]).
E, na escola também há dificuldades de visibilização das pessoas transexuais? Conforme
Heloísa Aparecida de Souza e Marcia Hespanhol Bernardo (2014) a heteronormatividade também
rege o ambiente escolar e acaba refletindo no ambiente escolar e nos que a compõem (estudant@s,
professor@s, corpo pedagógico, etc.), estimulando a exclusão e limitação de direitos básicos como
de saúde e de educação (Adriana SALES; Leonardo Lemos de SOUZA; Wiliam Siqueira PERES,
2017). Certamente, os preconceitos começam na educação básica, que tem uma longa duração na
vida do indivíduo, podendo continuar na educação superior, estendendo-se até a vida profissional
e relacionamentos, como afirmam Sales, Souza e Peres (2017) quando enfatizam a precariedade
de vidas trans e travestis e a imposição da marginalização as quais eram (e ainda são) submetidas,
simplesmente por não seguirem a linearidade imposta pelos meios sociais.
Diante das questões acima levantadas, esta pesquisa teve como objetivo abordar o tema da
transexualidade no contexto escolar a partir da aplicação de questionários com seus integrantes:
alun@s, professor@s, administrativ@s e terceirizad@s. Segundo Guacira Louro (2000), não é
possível pensar em escola, como instituição educacional e social sem considerar construções e
normas de gênero e sexualidade. Desta forma, conhecer as ideias e discursos produzidos e
reproduzidos no ambiente escolar é fundamental para que possamos propor formas de abordagem
desta temática na escola e fora dela.
A escola é um local onde vivemos e aprendemos sobre as possibilidades de construção do
masculino e do feminino. Nela, lidamos com discursos que, socialmente construídos, podem se
corporificar em processos exclusão, interdição, separação e rejeição (FOUCAULT, 2016). Por
isso, o espaço escolar precisa desenvolver pedagogias e formas de socialização que respeitem as
diferenças. A escola deve exercitar uma pedagogia da diversidade, rompendo a vigilância sobre
os corpos e sua preocupação em alcançar a forma considerada “correta” e “normal” de
sexualidade, ou seja, a heterossexualidade. Mas, o Centro De Ensino Paulo VI, em São Luís,
Maranhão, estaria formando discentes a partir dessa perspectiva pedagógica?

2 Percursos metodológicos

A pesquisa se caracterizou como um estudo de caso, de natureza qualitativa, realizado com


alun@s, professor@s, administrativ@s e terceirizad@s. do turno noturno do Ensino Médio do
Página 489 de 2230

Centro de Ensino Paulo VI. Escolhemos esse turno em particular por entendermos que nele se
encontram mais minorias representadas e invizibilizadas, tais como adultos que não conseguiram
concluir seus estudos no período regular, empregad@s doméstic@s que só conseguem estudar à
noite, trabalhador@es em geral, dentre outr@s.
Nosso instrumento de coleta de dados foi o questionário, definido segundo Antonio Carlos
Gil (2010, p. 102) como “[...] um conjunto de questões que são respondidas por escrito pelo
pesquisado”. Nele havia questões fechadas – relacionadas ao perfil socioeconômico d@s
entrevistados – e abertas, elaboradas a partir dos objetivos específicos da pesquisa (GIL, 2010)
que pretendiam investigar os discursos da comunidade escolar sobre o tema transexualidade;
entender como a perspectiva heteronormativa da escola contribuía para que as ideias sobre
diversidade sexual fossem apresentadas de forma preconceituosa ou não e; problematizar a
transexualidade e a desconstrução de seus preconceitos no ambiente e escolar. As perguntas
abertas foram diferenciadas para cada grupo da comunidade
Antes da aplicação dos questionários, foram apresentados os objetivos da pesquisa e o
esclarecimento de que não havia obrigatoriedade em responder ao instrumento, produzindo um
consentimento verbal daquel@s que aceitavam participar. Todo o processo de resposta foi
acompanhado pel@ aplicador@, a fim de sanar possíveis dúvidas ao longo do preenchimento.
Consideramos importante ressaltar que inspirad@s por Roberto Cardoso de Oliveira (2004)
consideramos haver diferenças entre pesquisas em seres humanos e com seres humanos. Em nosso
caso, trabalhamos com e não em, negociando e interagindo com pessoas, não simplesmente com
seres humanos94. Por isso, não só não submetemos esse trabalho à Plataforma Brasil, como
optamos por trabalhar com o método do consenso tal qual apresentado por Luiz Felipe Zago e
Luís Henrique dos Santos (2011, p. 46, grifos nossos). Para eles, este consiste em que:
o/a pesquisado/a possa ‘consentir livre e esclarecidamente’ a participar da pesquisa ou a deixá-
la em qualquer momento; que negocie com o/a pesquisador/a as perguntas feitas e as
respostas dadas; que o pesquisado/a possa também fazer perguntas ao pesquisador/a e, talvez,
pedir informações sobre a perspectiva teórica adotada na análise dos dados. Sobretudo, o método
do consenso, [...], é um método em que a relação entre pesquisador/a e pesquisado/a é
construída principalmente em referência ao contexto no qual se desenvolve a pesquisa (seu
objeto, os dados produzidos, a abordagem teórica das análises), e não somente em relação
estrita a um conjunto de normas e regras prévia, externa e burocraticamente imposto, que
enrijece e cristaliza os lugares, direitos e deveres tanto do/a pesquisado/a quanto do/a
pesquisador/a.

As respostas dos questionários foram analisadas a partir da Análise Crítica do Discurso


(ACD), tomando Foucault como referência. Foucault entende os “[...] discursos como práticas que
formam sistematicamente os objetos dos quais falam” (2008, p. 55). Neste sentido, consideramos

94
Para maiores detalhes sobre a discussão sugerimos a leitura dos artigos de Luis Roberto Cardoso de Oliveira, Carlos
Caroso e Guita Grin Debert, publicados na coletânea de artigos Antropologia e ética: o debate atual no Brasil (2004)
e de Eduardo MacRae e Sérgio Souza Vidal (2006).
Página 490 de 2230

o discurso não somente como um ato de fala ou como a ação de pronunciar discursos, mas
sobretudo como práticas discursivas que “moldam nossas maneiras de constituir o mundo, de
compreendê-lo e de falar sobre ele” (VEIGA-NETO, 2016, p. 93).
Para uma melhor diferenciação, foram identificad@s por meio da letra “F” @s
funcionári@s do setor administrativo, terceirizad@s e professor@s e @s alun@s através da letra
A, ambos enumerados quando necessário. Ao todo foram aplicados 43 questionários, sendo 07
com funcionári@s do setor administrativo e terceirizad@s, 07 com professor@s e 29 com alun@s.

3 Discutindo o dito e o escrito

Como já ressaltamos anteriormente, a escola onde foi realizada a pesquisa foi o Centro de
Ensino Paulo VI (Figura 1), localizado no bairro da Cidade Operária, nas adjacências da
Universidade Estadual do Maranhão – daí o principal motivo para ser escolhida, já que uma das
autoras era estudante de graduação dessa Universidade – oferecendo turmas do 1º ao 3º ano do
ensino médio durante os turnos matutino, vespertino e noturno, incluindo neste último o EJA –
Educação de Jovens e Adultos.
Figura 1 - Entrada da escola C.E. Paulo VI

Fonte: Autoria própria, 2019.

À época da pesquisa, realizada entre os meses de maio a junho de 2019, a escola contava
com 85 professor@s, 30 administrativ@s, 17 servidor@s afastad@s e 09 terceirizad@s. Havia
ainda 26 turmas e 972 alun@s matriculad@s, sendo 471 do sexo/gênero masculino e 501 do
sexo/gênero feminino, distribuídos nos turnos matutino, vespertino e noturno. No caso do 3º ano
existiam quatro turmas do matutino, três do vespertino e uma do noturno. No turno da noite
trabalhavam 19 docentes em 03 turmas (1º, 2º e 3º anos) com um total de 125 alun@s, sendo 80
Página 491 de 2230

do sexo/gênero masculino e 45 do sexo/gênero feminino, 09 pessoas no administrativo e duas


terceirizadas.
Ao todo foram aplicados 43 questionários, sendo 07 com administrativ@s e terceirizad@s,
07 com professor@s e 29 com alun@s da turma noturna do 3º ano, sendo 09 mulheres e 20
homens.

3.1 Quem é o público escolar?

O questionário aplicado contou com perguntas de caráter socioeconômico para todos os


grupos de pesquisados.
Dentro do grupo de funcionári@s a idade variou entre 28-63 anos, tod@s cisgêner@s95 e
heterossexuais, com exceção de um@ pessoa que não se auto identificou. A renda familiar variou
entre um salário mínimo e mais de seis salários. Em sua maioria @s pesquisad@s moram com @
cônjuge/companheir@ e filh@s e têm como religião predominante o catolicismo.
@s alun@s apresentaram grande algumas diferenças em relação @s funcionári@s nos
aspectos socioeconômicos. A idade variou entre 16-37 anos, demostrando a diversidade de faixa
etária d@s estudant@s do turno noturno. Com relação à sexualidade, praticamente todos se auto
identificaram como cisgêneros heterossexuais. Apenas duas alunas afirmaram ser bissexuais,
sendo uma delas auto identificada como transgênero. A renda familiar predominante é de até três
salários mínimos, e a maioria ainda mora com os pais. Quanto às religiões, essas variaram entre
católicos e evangélicos em sua maioria.

3.2 Estranheza e incompreensão do (des)conhecido?

Durante o processo de aplicação dos questionários notamos que, praticamente tod@s,


demonstraram estranheza e incompreensão com o termo cisgênero, utilizado na pergunta 3, de
cunho socioeconômico, na qual @ pesquisad@ deveria colocar qual o seu sexo/gênero, podendo
ser est feminino cisgênero, feminino transgênero, masculino cisgênero e masculino transgênero.
“Afinal o que é cisgênero?” “Sei o que é trans, mas e cisgênero?” Este questionamento foi
muito ouvido por nós. Isto nos remete ao conceito de cisgênero, pois por mais que o termo exista,
além de não ser divulgado, seu uso ainda encontra resistências no meio acadêmico (JARDIM,
2016). Se pensarmos na historicidade dos termos cis e trans é interessante notar que trans passa a

Grosso modo, Amara Moira afirma que a resposta mais óbvia e redutora que se encontra sobre a cisgeneridade em
95

oposição à transgeneridade é a de que cis/cisgênero “é a pessoa que se identifica com o gênero que lhe atribuíram ao
nascimento” (2017, p. 366).
Página 492 de 2230

existir discursivamente na década de 1920, enquanto cis, somente começa a ser utilizado em
meados de 1990. Setenta anos separam um termo do outro. Talvez, parte da resistência e
invisibilidade da noção de cisgeneridade resida do fato de que o subalterno (as pessoas trans)
nomeou seu superior (indivíduos cis). Em outras palavras, demonstrando a sabedoria da afirmativa
de Butler de que aquilo que aparentemente está fora (o “abjeto”), e atua na reprodução das normas
de gênero ao produzir dentre outras coisas a vergonha, produz também o que está dentro: o
“objeto”. Dessa forma, o “abjeto” nomeou o “objeto”. Performaticamente o “abjeto” fala,
chamando atenção para a sua não anormalidade, produzindo o cis como categoria política, instável
e não ligada à natureza:
Não queremos criar uma dicotomia entre pessoas cis e pessoas trans* e sim evidenciar o
caráter ilusório da naturalidade da categoria cis. [...] Ser cis é uma condição principalmente
política (mas não só). A pessoa que é percebida como cis e mantém status cis em documentos
oficiais não é passível de análise patologizante e nem precisa ter seu gênero legitimado. [...]
Ao nomearmos @s ‘normais’ possibilitamos o mesmo, e colocamos a categoria cis sob
análise, problematizando-a. Buscamos o efeito político de elevar o status de pessoas cis ao
mesmo das pessoas trans*: se pessoas trans* são anormais e doentes mentais, pessoas cis
também o são, suas identidades também não são ‘reais’; se pessoas cis são normais e suas
identidades naturais, pessoas trans* também são normais e suas identidades tão reais
quanto. (Hailey KAAS, 2017, p. [?], grifos da autora).

Neste sentido, consideramos que o que mantém a marginalização é a heteronormatividade,


ratificando o privilégio daquel@s que se encontram dentro das normas. Dessa forma, é claro que
uma pessoa heterossexual reconhecidamente cis, será considerada socialmente bem mais
adequada que uma trans, mesmo que a nomeação “cis” não seja falada.
De modo geral, percebemos também a confusão estabelecida na pergunta “Você sabe o
que significa transexualidade e travestilidade?” que foi feita para todos os grupos. Grosso modo,
as respostas se dividiram entre “sim” e “não”. @s pouc@s que tentaram responder relacionavam
a transexualidade à mudança de sexo/gênero ou faziam confusão com os termos, como
demonstram as falas a seguir:
Acho o mesmo significado, apenas serve para complicar (mas são termos).
96

Transexualidade: não se aceita com o seu sexo. Travestilidade: já são as pessoas que se
aceitam? – F8

Transexualidade: é uma pessoa que se identifica com outro sexo. Travestilidade: não
entendo sobre esse assunto – A6

Sim, transexualidade é uma pessoa que não aceita seu “sexo”. E travestilidade é um ser
humano que aceita o que é – A10

Transexualidade: gostar do mesmo sexo. Travestilidade: não sei – A4

Transexualidade é a pessoa que não aceita seu corpo fazendo uma série de
procedimentos. Travestilidade é no caso um homem se aceitar como um travesti homem
sem ter alterações fisicamente – A8

Para diferenciar as citações teóricas das falas d@s entrevistad@s, decidimos utilizar o recurso “itálico” quando
96

apresentarmos o conteúdo retirado dos questionários.


Página 493 de 2230

Bento (2006) já havia chamado atenção para a incompreensão da transexualidade e a


redução do indivíduo trans à cirurgia de redesignação sexual, afinal, torna-se muito mais fácil
reconhecer @ transexual a partir das mudanças para o sexo/gênero oposto, como enfatizado pelo
pesquisado A8, sobre a realização de procedimentos para aceitação própria. Quando @ transexual
não se opera, pode surgir a discussão sobre quem são os transexuais de verdade? (BENTO, 2006).
Ora, o que @ transexual deseja, é ser reconhecid@ pelo gênero ao qual se identifica, não a
associação com o “pênis-vagina” estabelecido pela sociedade. Bento (2012) ainda destaca a
dificuldade estabelecida em dissociar a homossexualidade e transexualidade, pois o trans pode ser
homossexual, mas continua sendo transexual.
As falas também remetem a invisibilidade da travesti, sendo essa, na maioria das vezes,
mais subjugada e inferiorizada que o transexual. Sales, Souza e Peres (2017 p. 72) reiteram a
hegemonia existente nas escolas, colocando “as travestilidades como algo que introduz o caos, a
desordem, a inviabilidade de existência”. Algumas transmulheres97 têm utilizado o termo travesti
como uma categoria política, na luta pelo reconhecimento dessas pessoas. Amara Moira, uma trans
mulher que se auto identifica como travesti, afirma que a sociedade heteronormativa lhe atribuiu
o papel de puta ao decidir que este é o lugar que cabe às travestis. Amara se descobre travesti e
puta enquanto tenta descobrir o que é ser mulher, entre tantas outras questões que sua narrativa
apresenta: “Sou tratada igual puta bem antes de me assumir puta, quase uma tatuagem na
testa: bastou me verem travesti e já começa o assédio, assédio do qual nunca tive notícia
enquanto posava de homem” (MOIRA, 2016, p. 33, grifos nossos). Em um discurso engajado
politicamente, ela apresenta, a partir e através de sua própria existência, não só o lugar de fala das
travestis como também a importância da luta pela visibilidade das prostitutas no Brasil, chamando
atenção para as violências e os medos que a profissão impõe.
Ser travesti já nos torna tabu, daí a maioria ainda encontra na prostituição a única forma de
subsistência (e sabemos que seremos consideradas putas mesmo as poucas de nós que escaparem
a esse destino)... não é fácil querer encarar esse combo ao nosso lado e, mesmo quando se queira,
não é fácil ter estrutura emocional para lidar com tanta pressão. [...] A transfobia nos exclui, a
prostituição nos abraça e a putafobia amplifica a exclusão a que já estamos sujeitas
meramente por existir. (MOIRA, 2016, p. 192, grifos nossos).

97
Há mais de uma forma de denominar um homem ou uma mulher que, grosso modo, não tem sentimento de
pertencimento ao sexo/gênero no qual nasceu, quais sejam: homem/mulher trans, transhomem/transmulher, FTM
(sigla em inglês que significa female to male, em tradução livre, do feminino para o masculino)/MTF (sigla em inglês
que significa male to female, em tradução livre, do masculino para o feminino) e transexual. Também se pode utilizar
a designação travesti, mas nesse caso apenas para transmulheres. Há ainda o termo transgênero, cujo uso é bem
questionado, pois funciona como um termo guarda-chuva, na medida em que se aplica a qualquer pessoa que
demonstre algum grau de descontentamento com o enquadramento sexo/gênero, independentemente do período de
tempo ser integral, parcial ou momentâneo. Neste trabalho, inspirados em Simone Ávila (2014), quando a designação
for nossa, utilizaremos transhomem e transmulher por três motivos principais. Primeiro, porque escrito dessa forma,
essas palavras se tornam substantivo – que denomina o ser – e não adjetivo – que qualifica o ser –, como no caso de
“transexual masculino/homem” ou “transexual feminino/mulher”. Segundo, decorrendo do primeiro, ao não os
qualificar, acreditamos que fugimos, mesmo que minimamente, dos binarismos. Por fim, no caso dos transhomens,
por se tratar da uma tradução aproximada de transhomme, utilizado pela teórica queer Marie-Hélène Bourcier (2008).
Página 494 de 2230

Há, entretanto, um componente a mais em sua história: ela é graduada em Letras e hoje é
doutoranda em Teoria Literária, pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.

3.3 O que foi escrito, falado e cifrado

Quando questionamos acerca da importância da discussão sobre a temática da sexualidade


no ambiente escolar, há praticamente um consenso, sobretudo entre @s alun@s:
Sim, até porque ainda existem muitos preconceitos e às vezes existem garotos e garotas
que querem se assumir, mas por motivo de falta de diálogos faz com que eles se travem
e esse tipo de debate nas escolas seria uma força a mais – F1

Sim, pois ajuda o desenvolvimento e o conhecimento – A3

Sim, porque é importante esclarecer – A4

Sim, é um assunto de tamanha importância. Devemos falar mais sobre esse assunto – A5

Sim, porque muitos jovens não recebem em casa orientação sobre sexo e doenças
sexualmente transmissíveis – A6

Sim, pois ajuda muito, é um conhecimento a mais – A7

Com certeza, pois nós alunos deveríamos absorver conhecimento sobre sexualidade,
onde poderíamos quebrar a barreira do preconceito – A8

Considero, pois ajuda contra o preconceito – A9

Esses discursos explicitam a importância e a necessidade de abordagens sobre a


diversidade sexual nas escolas. O silêncio desses temas causou por muitos anos e, ainda causa, o
isolamento de alun@s gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis, dentre outr@s. Tânia
Maria Cruz e Tiago Zeferino dos Santos (2016), por exemplo, relatam os diversos
constrangimentos vividos por estudantes trans, fazendo da escola, um ambiente de exclusão e
discriminação.
Notamos também discursos que, apesar de concordarem com a discussão da sexualidade
na escola, relacionam isso a alguma condição, como:
Como ciência sim (abordagens científicas) sem pendências à filosofia de vida ou
comportamento de quem trata do assunto – F2

Sim. Quando os estudantes estão no Ensino Médio – F3

Sim, mas somente para pessoas maiores 13 anos – A10

Alguns entrevistad@s, em sua maioria, homens, cisgêneros, heterossexuais,


evangélicos/protestantes, com idade entre 18-25 anos, responderam que o ambiente escolar não
deveria discutir essas questões:
Não, acredito que o ambiente escolar não é apropriado para essas questões que abordam
a sexualidade – A12
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Tais posicionamentos apontam para a solidificação do padrão heteronormativo nas escolas.


Carla Lisbôa Grespan e Silvana Vilodre Goellner (2011, p. 121) demonstram como esse discurso
tem um potencial negativo, pois a problemática está diretamente relacionada à visão social do que
“se busca naturalizar e tornar verdadeiro: a heterossexualidade como o modo correto, digno e
sadio de viver a sexualidade”.
O domínio do discurso heteronormativo se apoia em diversos argumentos como forma de
enfatizar que o “padrão heterossexual” é o correto e tod@s que fogem dele são considerad@s
errad@s, de forma que, utilizando a religião, a política e até mesmo aspectos biológicos, esse
discurso tenta determinar que esse padrão seja seguido por tod@s e aquel@s que não o seguem,
sejam perseguidos e excluídos da sociedade (Bruna Camilo de Souza Lima SILVA; João Felipe
Zini Cavalcante de OLIVEIRA, 2016). Em grande parte, discursos religiosos e político-sociais
atuam juntos ao determinar e exigir os padrões que devem ser seguidos pelos indivíduos de uma
sociedade, de forma que a religião é moldada por um conjunto de ideais socioculturais e
econômicas (Max WEBER, 2007).
Segundo Silva e Oliveira (2016 p. 3), “ensinar sobre gênero nas escolas é empoderar,
emancipar, dar visibilidade a direitos poucos discutidos pela sociedade”. A omissão por parte da
escola em abordar esses assuntos, prejudica nos direitos de inclusão dos indivíduos que fogem do
“padrão heteronormativo”, pois apenas com a discussão desses temas, a escola pode abrir um
espaço para integração e inserção das diversidades.
Discursos condicionais e de invisibilidade às diversidades continuaram entre o grupo d@s
funcionários. “F2” quando questionad@ “como a escola trabalha ou pretende trabalhar essa
temática?” (pergunta número 11), responde que “a escola segue as diretrizes curriculares da
Secretaria Estadual de Educação e que, portanto os temas serão abordados dentro das disciplinas
cabíveis” (grifos nossos). Assim como “F3” que afirma que “não existe um trabalho específico ou
pretensão até o momento para realizá-lo. Porém, poderá sim ser uma demanda a ser
desenvolvida no ambiente escolar” (grifos nossos).
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não inclui explicitamente o tema. Entretanto,
para o 8º ano, salienta a discussão de sexualidade humana ao introduzir, na disciplina de Ciências,
o assunto de “Vida e Evolução”, que tem como uma das habilidades “selecionar argumentos que
evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e
ética)”, apesar de, anteriormente afirmar que “nos anos finais, são abordados também temas
relacionados à reprodução e à sexualidade humana, assuntos de grande interesse e relevância
social nessa faixa etária.” (BRASIL, 2018 p. 327).
No entanto, como é a abordagem desse assunto na disciplina de Ciências? Quais aspectos
são discutidos? É de responsabilidade única da Biologia discutir sobre o tema apenas no 8º ano?
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Ao discutir sobre gênero, Neílton Reis e Isabel dos Reis Goularth (2017 p. 102, grifos nossos)
afirmam que:
Assim como a Sociologia, é papel também da Biologia romper com os paradigmas
heteronormativos, reproduzidos pela ciência durante muito tempo nos bancos escolares.
Faz-se necessário dar voz aos alunos e alunas que, durante as aulas, silenciam-se por
não se identificarem com os padrões estabelecidos na escola, fruto da reprodução das
estruturas sociais, ampliando o olhar para além dos aspectos biológicos. Exige-se,
portanto, também esforços por parte dos educadores das ciências biológicas de repensar
suas práticas bem como o currículo, uma vez que este último é sempre espaço de
disputas culturais, ideológicas e sobretudo, políticas.

Não nos passou despercebida a dificuldade de algum@s pessoas em responderem ao


questionário, provocada, provavelmente, pela falta de conhecimento sobre o assunto, acabando
por deixar algumas perguntas sem resposta. Houve também pesquisad@s que se recusaram a
responder ao questionário. Sílvio Colognese e José Melo (1998) afirmam que o comportamento
verbal deve ser considerado em situações de pesquisa. Ao longo de nossa pesquisa, uma das
pessoas do grupo de funcionários, aceitou inicialmente colaborar, mas após ler as perguntas do
questionário se recusou a responder, sem alegar qualquer motivo. Se considerarmos que não
existem perguntas neutras, consequentemente as respostas também não o serão. Dessa forma, a
recusa ao responder e/ou o silêncio em determinadas questões também não demonstra neutralidade
alguma (COLOGNESE; MELO, 1998). A omissão abre margem para um discurso subtendido, ou
seja, o que está por trás da recusa?
Houve também indagação para @s alun@s a respeito de vivências, convivências (pergunta
11) e preconceitos (pergunta 12) com travestis, transexuais, homossexuais, lésbicas, bissexuais,
dentre outr@s e as respostas foram, quase que de forma geral, afirmativas:
Sim, a gente vive ‘numa sociedade onde eles estão presentes – A10 se referido à pergunta
11.

Sim, fora da escola, tenho um primo que é do sexo masculino, mas não aceita seu sexo e
se veste de mulher – A7 se referido à pergunta 11.

Sim, já vi duas mulheres sendo expulsas de um local só porque estavam juntas de mãos
dadas – A6 se referido à pergunta 12.

Sim, várias vezes muitas pessoas não respeitam a escolha dos outros – A7 se referido à
pergunta 12.

Estas falas evidenciam como o preconceito e intolerância agem na sociedade. Apesar das
lutas das minorias e dos movimentos contra a discriminação de transexuais e travestis, dentre
outr@s, serem um pouco mais visibilizadas com o passar dos anos, as pessoas que estão inseridas
nesses grupo são mais suscetíveis a serem discriminadas e assassinadas, sendo muitas vezes
consideradas culpadas pelos atos de violência sofridos (Alberto Magalhães PIRES; Lívia
Guimarães SANDES; Carla Andreia Alves de ANDRADE; Esmeraldo Rodrigues de LIMA
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NETO; Silvania Lúcia da Silva CARRILHO, 2018), o que está diretamente ligado ao olhar,
culturalmente ensinado e reafirmado pela sociedade, da marginalização de transexuais etc.

3.4 A invisibilidade das minorias

Diante de uma realidade escolar em que grande parte d@s pesquisad@s se auto declararam
cisgêneros e heterossexuais, é possível afirmar que aqueles que não seguem esse padrão fazem
parte de um grupo minoritário, são só em termos numéricos, mas em questões de acesso a políticas
públicas e à própria cidadania.
Destacamos duas mulheres, uma cis e outra trans, ambas bissexuais, que embora tenham
se sentido à vontade para expressar sua sexualidade no questionário – até porque tiveram a
contrapartida de que toda informação seria tratada de forma a não expor a identidade d@s
pesquisad@s – não são reconhecidas na escola dessa forma, estão no “armário”. Este termo tem
sido usado tanto popularmente como pelos movimentos sociais, estudos de gênero e queer. Em
geral é utilizado para designar homossexuais não assumid@s (dentro do armário) ou assumid@s
(fora do armário), mas é preciso pensarmos em suas implicações e ampliarmos essa categoria para
outros grupos. Sedgwick (2007, p. 26, grifos nossos) argumenta que:
[...] grande parte da energia de atenção e demarcação que girou em torno de questões relativas
à homossexualidade desde o final do século XIX, na Europa e nos EUA, foi impulsionada pela
relação distintivamente indicativa entre homossexualidade e mapeamentos mais amplos do
segredo e da revelação, do privado e do público, que eram e são criticamente problemáticos
para as estruturas econômicas, sexuais e de gênero da cultura heterossexista como um todo; ‘O
armário’ e ‘a saída do armário’, ou ‘assumir-se’, agora expressões quase comuns para o
potente cruzamento e recruzamento de quase todas as linhas de representação
politicamente carregadas, têm sido as mais magnéticas e ameaçadoras dessas figuras. O
armário é a estrutura definidora da opressão gay no século XX.

Nos parece que essa ideia de opressão vem escamoteada nas falas de “A1” e “A2”,
mulheres trans e cis, respectivamente, que se auto identifica como bissexuais. Quando
questionadas se consideram importante que as questões de sexualidade sejam abordadas na
disciplina de biologia e na escola, suas respostas chamam atenção para a noção de
aceitação:/reconhecimento:
Sim, porque na sociedade em que estamos vivendo a sexualidade está muito presente,
porém o preconceito ainda é muito grande – A1

Sim, ajuda os alunos a se identificar e serem aceitos na sociedade – A2

Certamente, estas falas remetem muito à própria condição em que se encontram, pois se
reconhecer e ser reconhecida como bissexual não é fácil em uma sociedade cuja forma de pensar
gira em torno de extremos: ou se é hetero ou se é homossexual. Mas difícil ainda é a situação de
quem não goza do privilégio da cisgeneridade.
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A invisibilidade d@ indivídu@ bissexual e até mesmo a sua negação é uma problemática


corrente. Devido ao fato de se relacionarem com pessoas de ambos os sexos/gêneros, acabam
muitas vezes vistos como heterossexuais (quando demonstram “preferência” pelo sexo/gênero
oposto) ou homossexuais (quando a “preferência” é pelo mesmo sexo/gênero), sendo rotuladas
como “não resolvidas” e que estão “em cima do muro” (Camila Dias CAVALCANTI, 2007).
Esse discurso de negação atinge desde os lares, meios sociais e até grandes mídias.
Sobretudo quando se trata da bissexualidade feminina, nas construções discursivas veiculadas pela
mídia a imagem majoritária é a da curiosidade e da hiper sexualização, com personagens em geral
brancas e magras, portanto dentro dos padrões estéticos normativos. Regina Facchini (2008),
encontrou em sua pesquisa de doutorado categorias pejorativas acerca da bissexualidade, sendo
mais frequente em mulheres de classe média “o uso de classificações que desafiam o princípio de
coerência entre práticas e identidades, [...] expresso por meio da rejeição a categorias
aparentemente usadas de maneira intercambiável: bissexuais, indecisas, aventureiras e mulheres
que querem experimentar” (FACCHINI, 2008, p. 226). Dessa forma, reiteramos a importância
das falas de “A1” e “A2”, que sentem na própria carne o preconceito e a discriminação: é extrema
necessidade a discussão de sexualidade na escola, a fim de promover o reconhecimento e a
aceitação das nossas diferenças.
Quando questionada se conhecia um@ transexual e/ou travesti (questão 11) e se já havia
vivenciado casos de preconceito com pessoas transexuais, dentre outros (questão 12) “A1” afirma
que:
Sim! A maioria dos meus amigos, e eu sou bissexual. Eu procuro ficar mais próxima
deles, porque não é fácil conviver com pessoas preconceituosas – Resposta à questão
11, grifos nossos.

Eu já passei muito por isso, o fato de eu não ser assumida acaba me prejudicando muito
e as pessoas que sabem às vezes fazem piadas de mau gosto – Resposta à questão 12,
grifos nossos.

Essa alegação não é nova e muito menos desconhecida. Existem inúmeros relatos sobre
transexuais que, ao longo da educação básica e superior se sentiram excluídos do meio em que
viviam e passaram por inúmeras situações de preconceito, simplesmente por não se encaixarem
na hegemonia imposta na escola (CRUZ; SANTOS, 2016), que comumente é lembrada como um
“espaço de terror” (BENTO, 2011).
José Cláudio Leôncio Gonçalves, Cícero Joaquim dos Santos, Carlos André Silva do Vale,
José Brito da Silva Filho e Zuleide Fernandes de Queiroz (2017), apresentam em seu trabalho o
caso de Jonas, transhomem, que busca sair do anonimato, quer visibilidade, ser reconhecido como
realmente é, sem ser refutado com falas preconceituosas. Provavelmente este também deve ser o
desejo de “A1” quando diz não ser assumida e como isso a prejudica, talvez por medo do
preconceito que é tão visível aos seus olhos, tenha medo do reconhecimento. Dessa forma, a ideia
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do armário se torna opressora, pois estar ou não fora dele desperta os principais conflitos d@
indivídu@ em presença ou ausência de um grupo social, afinal, ficar no armário reprime e estar
fora não é, necessariamente, aceitação absoluta. Nesse sentido o armário atua ao mesmo tempo
como um mecanismo de controle e como uma forma de proteção (Nilvanete Gomes de LIMA,
2018).
A precariedade da abordagem sobre transexuais na sala de aula também colabora para a
corporificação do preconceito, como podemos ver em sua resposta à pergunta “a transexualidade
é ou já foi abordada na disciplina de Biologia, em outras disciplinas escolares ou pela própria
escola? Se sim, como?”
Não! Em todas as escolas que eu já passei a transexualidade nunca foi abordada. Ainda
mais por causa do preconceito muito grande – A1

Corroborando com a fala de “A1”, falas além do questionário, como “a escola não está
preparada para nada” e “não estamos preparados”, salientam essa questão. A escola precisa
mudar suas práticas, se preparar e implementar essas abordagens inclusivas. As inquietudes d@s
alun@s transexuais e não-héteros e suas necessidades de se sentirem representados e respeitados
precisam ser sanadas, assim como as de Jonas que externou suas angústias e luta pelo
reconhecimento (GONÇALVES; SANTOS; VALE; SILVA FILHO; QUEIROZ, 2017).
A questão do reconhecimento e do nome social são discussões necessárias no ambiente
escolar. Além das falas escritas de “A1”, ouvimos de “F3” e “F11” informações ditas fora do
questionário, que relatavam a existência de um@ alun@ trans, que não possuía nome social e, que
na percepção de ambos, não sofria preconceito da turma, mas que não conseguiu permanecer na
escola. “F3” disse que provavelmente @ alun@ foi transferido do diurno para a noite, mas não
ficou por muito tempo na escola, também não soube dizer o porquê e alegou “motivos pessoais”.
“F11” não soube dizer se @ alun@ que mencionava se tratava do mesmo citado por “F3”.
Quando se trata do reconhecimento de pessoas trans, a questão é delicada. Simone Ávila e
Miriam Pilar Grossi questionam a noção do psicanalista Roberto Cecarelli de que a
transexualidade é “autodiagnosticada” e, em um claro distanciamento de discursos patologizantes,
afirmam que ela é “autoidentificada”. Nas entrevistas semiestruturadas que fizeram com
transhomens de várias regiões brasileiras, chegaram à conclusão de que “eles se perceberam
transexuais ao ler um livro, ao ver um transexual na mídia, ao encontrar informações na Internet...
em suma, sua condição foi identificada a partir dos discursos sociais que circulam sobre
transexualidade” (ÁVILA; GROSSI, 2010, p. 4). Outra problemática, que hoje não exixte mais
era o constrangimento provocado pela impossibilidade de alteração do nome civil sem que
houvesse um processo judicial e, atrelado a isso, a exigência de laudos médicos que ratificassem
a transexualidade. Ou seja, para ter um nome com cujo gênero a pessoa se identificava era preciso
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adoecer. Essa mudança já pode ser comemorada: no dia 01 de março de 2018 o Supremo Tribunal
Federal decidiu, por unanimidade, que transexuais e transgêneros poderão retificar seus registros
civis sem a necessidade de laudos médicos, ou mesmo de cirurgia de redesignação sexual e,
principalmente, sem precisarem de autorização judicial.
Nos chama atenção o fato d@s pesquisad@s não saberem os motivos da possível evasão
d@ alun@ transexual. Tal situação nos remete a um discurso de despreparo e desinteresse, no
qual alun@s transexuais não têm importância para a escola. Bento (2011) afirma que há um desejo
de expulsão d@s diferentes para que el@s não contaminem o espaço escolar. Esse desejo se
fortalece quando não há interesse em mudar a abordagem e as práticas escolares, persistindo
apenas a invisibilização, quando não o silêncio diante de ações exterminadoras.
Quando questionados se “falar sobre transexualidade e/ou sexualidade em sala de aula
pode influenciar no gênero d@s alun@s?” a resposta foi unânime: não! No entanto, quando
perguntamos em relação à preparação e abordagem do tema na escola e/ou em sala de aula as
respostas foram evasivas:
Muito superficialmente – F10
Sim. Através de textos que falam sobre a sexualidade – F11
Sim. Em relação ao preconceito com colegas na sala de aula – F12
Sim. Em estudos de população – F14
Já, na disciplina de Sociologia, ano passado. A professora estava comentando sobre
respeitar as escolhas sexuais de todos os LGBT’s – A7
Sim, através de palestras, assuntos na disciplina – A18

Ao tratar de temas como sexualidade e corpo com a classe, @s alun@s se deparam, na


maioria das vezes, com um discurso naturalizante e heteronormativo, no qual predominam
aspectos biológicos. Nesse caso, aquel@s que não se encaixam no padrão tendem a se sentir
excluíd@s do processo de aprendizagem, por isso, é importante que no ambiente escolar esses
paradigmas, impostos socialmente, comecem a ser quebrados.
Naomi Nere Santana, Alexandre Luís Polizel e Eliane Rose Maio (2016, p. 5062) afirmam
que a existência precária do tema nos currículos de modo generalizado acaba por não incitar “a
revisão de conteúdo, políticas públicas e fomento de cursos de formação inicial e continuada”.
Talvez, a “superficialidade” descrita por um d@s pesquisad@s esteja associada justamente ao tipo
de preparação que têm @s professor@s da Educação Básica para falar de sexualidade. É
necessário, portanto, que haja o “rompimento de uma visão segmentada do corpo, do prazer, da
sexualidade e do gênero” como apontam Reis e Goularth (2017 p. 103).

4 Conclusões inconclusivas...

A partir dos discursos levantados por meio dos questionários, relatos e até mesmo das
abordagens de ausência/recusa fica explícito como heteronormatividade opera no espaço escolar
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e, claro, não poderíamos esperar algo diferente. Entretanto, a operação exclusiva e naturalizante
que a escola pesquisada mantém, nos surpreendeu. Apesar das falas adotarem uma abordagem de
“aceitação” da transexualidade na sociedade e na escola, ficou claro como o assunto é retratado
com invisibilidade.
A heteronormatividade é um regime de poder que se inscreve n@s sujeit@s como se fosse
algo natural a partir dos processos de reiteração e repetição que são performatizados. Para este
regime, o único lugar que pode ser habitado pelo feminino é o corpo de uma mulher e o masculino
pelo corpo de um homem. Fundada a partir da ideia de dimorfismo sexual, a heterossexualidade
marcaria a diferença sexual como algo dado, natural, sendo inteligível apenas àquele corpo que
está preso à concepção de “normalidade”, uma identidade, masculina ou feminina, não havendo
possibilidades de haver deslocamentos. Não?!? Claro que sim! E este trabalho mostra isso de
maneira tímida, pois entre tantos cisgêneros heteros havia uma trasmulher. Rodeada de mulheres
cis heterossexuais, havia uma bissexual, ambas invisibilizadas e “protegidas” dentro dos seus
armários.
Não é mais possível simplesmente desconsiderar a existência cultural e discursiva da
palavra cis, como tem feito a escola, pois ao se abolir esse termo sem problematizá-lo, pode ser
que se acabemos por viver em um “[...] mundo sem cisgênero [...] [mas também] na terrível
normalidade compulsória por trás da ausência de um nome. Há muito mais que opressão por trás
dos termos cis. Eles são a chave para a partilha e a expansão de nossas vivências na alteridade”
(Leila DUMARESK, 2014, p. [?]).
Dessa forma, é possível pensar que é no espaço escolar que a cisgeneridade precisa
problematizada, desconstruída, ressignificada para que a transgeneridade possa de fato existir.
Afinal, não deveria ser a escola o espaço social por excelência que nos ensina sobre as diferenças?

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Página 506 de 2230

EDUCAÇÃO INCLUSIVA: UM ESTUDO SOBRE A INCLUSÃO DE DISCENTES COM


DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NA ESCOLA MUNICIPAL JÚLIA FONSECA
BARBOSA EM MATÕES DO NORTE – MA

INCLUSIVE EDUCATION: A STUDY ON THE INCLUSION OF STUDENTS WITH


INTELLECTUAL DISABILITIES AT THE MUNICIPAL SCHOOL JÚLIA FONSECA
BARBOSA IN MATÕES DO NORTE - MA

Antônio de Assis Cruz Nunes (orientador)


Doutor em Educação UNESP
Luis Félix de Barros Vieira Rocha
Mestre em Educação: Gestão de Ensino da Educação Básica UFMA
Maria Neuraildes Gomes Viana
Especialista em Gestão Pública Municipal UFMA
Cecilna Miranda de Sousa Teixeira
Graduanda em Biblioteconomia UFMA
Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O artigo trata sobre a inclusão estudantes com deficiência intelectual no contexto escolar.
O presente trabalho teve como finalidade discutir e evidenciar o processo de inclusão de estudantes
com deficiência intelectual na Escola Municipal Júlia Fonseca Barbosa em Matões do
Norte/Maranhão, tendo em vista a análise do desenvolvimento das atividades pedagógicas e
educativas voltadas para estudantes com deficiência intelectual no tocante as disciplinas de língua
portuguesa e matemática, assim como evidenciar o processo de inclusão e formação dos
professores na instituição pesquisada. Participaram da pesquisa quatro professores/as sendo duas
docentes de Língua Portuguesa, dois professores de Matemática, e uma Coordenadora
Pedagógica. Utilizamos os seguintes autores para subsidiar a pesquisa tais como: Mittler (2003),
Reis & Ross (2018), Tédde (2012), Ferreira (2005), Souto (2014), Manchini (2014), Konkel,
Andrade, Kosvoski (2015), Cavalcante, Feitosa, Costa, Benício ( 2016), Almeida (2018) dentre
outros. Para alcançar os objetivos da pesquisa, foi realizada a elaboração de instrumentos
metodológicos por meio da entrevista semiestrutura (ESE), assim como o levantamento
bibliográfico que elucidou as primeiras reflexões. A pesquisa concluiu que a escola pesquisada,
apesar de possuir conhecimentos sobre inclusão de estudantes com deficiência, pouco tem feito
para incluir esses/as discentes, proporcionando formação continuada para seus/suas
professores/as. Todavia, esses/as docentes buscam metodologias de inclusão para inseriram esses
alunos/alunas com deficiência.
Palavras-chave: Estudantes. Deficiência Intelectual. Inclusão. Educação

Abstract: The article deals with the inclusion of students with intellectual disabilities in the school
context. The present work aimed to discuss and highlight the process of inclusion of students with
intellectual disabilities at Escola Municipal Júlia Fonseca Barbosa in Matões do Norte / Maranhão,
Página 507 de 2230

with a view to analyzing the development of pedagogical and educational activities aimed at
students with intellectual disabilities in regarding the subjects of Portuguese language and
mathematics, as well as highlighting the process of inclusion and training of teachers in the
researched institution. Four teachers participated in the research, two teachers of Portuguese, two
teachers of Mathematics, and one Pedagogical Coordinator. We used the following authors to
support the research such as: Mittler (2003), Reis & Ross (2018), Tédde (2012), Ferreira (2005),
Souto (2014), Manchini (2014), Konkel, Andrade, Kosvoski (2015 ), Cavalcante, Feitosa, Costa,
Benício (2016), Almeida (2018) among others. To achieve the research objectives,
methodological instruments were elaborated through semi-structured interviews (ESE), as well as
the bibliographic survey that elucidated the first reflections. The research concluded that the
researched school, despite having knowledge about the inclusion of students with disabilities, has
done little to include these students, providing continuing education for their teachers. However,
these teachers seek inclusion methodologies to insert these disabled students.
Keywords: Students. Intellectual Disability. Inclusion. Education

1 INTRODUÇÃO

Sabemos que o processo de inclusão de estudantes com necessidades educacionais


especiais vem ao longo do tempo ganhando proporções, no tocante a inserção de alunos/as em
sala de aula, no ensino regular. De acordo com Reis & Ross (2018, p.1), "esse movimento faz
com que a escola reflita sobre princípios desse novo paradigma, que vai desde a convivência com
esses alunos em um mesmo espaço até uma mudança na organização de todo o trabalho
pedagógico da escola". Nessa perspectiva, as práticas educativas e de prevenção processos e
problemas, desenvolvidas na escola tem o papel fundamental na inserção de pessoas com
deficiência no espaço escolar.
Dessa forma, as práticas do professor/a no cotidiano da escola inclusiva, buscam mudanças
de certas representações e concepções docentes relativas ao/a aluno/a com deficiência e sobre o
processo ensino-aprendizagem. Mittler (2003, p. 35), afirma que “a inclusão implica que todos os
professores têm o direito de esperar e de receber preparação apropriada na formação inicial em
educação e desenvolvimento profissional contínuo durante sua vida profissional”.
Esse processo de inclusão está ancorado em leis e diretrizes que fundamentam o processo
inclusivo desses/as estudantes no ambiente escolar, tais leis como: Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), os regulamentos e normas sobre
a Implantação do Atendimento Educacional Especializado e das Salas de Recursos
Multifuncionais (BRASIL, 2010) e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência
(BRASIL, 2015).
Página 508 de 2230

Vasconcelos (2004) é bem claro em afirmar que a deficiência intelectual é das deficiências
que é encontrada em crianças e adolescentes, atingindo um percentual de 1%. Essa deficiência se
caracteriza por meio diminuição no desenvolvimento cognitivo, "no QI, normalmente abaixo do
esperado para a idade cronológica da criança ou adulto, acarretando muitas vezes um
desenvolvimento mais lento na fala, no desenvolvimento neuropsicomotor e em outras
habilidades". (TÉDDE, 2012, p.23).
Em se tratando da inclusão de estudantes com D.I no ambiente escolar, muitas instituições,
ainda encontram dificuldades no que se refere em diagnostica-los e incluí-los, pois a grande
maioria dos professores não possui formação adequada, ou as escolas não possui sala de
Atendimento Educacional Especializado (AEE), deixando esses discentes de fora do processo de
ensino e aprendizagem.
Com o intuito de buscar respostas para a realidade da educação inclusiva a pesquisa
analisou o processo de inclusão de estudantes com deficiência intelectual na Escola Municipal
Júlia Fonseca Barbosa em Matões do Norte - MA, assim como a escola enquanto espaço de ensino
e aprendizagem desenvolvem atividades pedagógicas voltadas para estudantes com deficiência
intelectual no tocante as disciplinas de língua portuguesa e matemática. Além disso, a pesquisa
refere-se à forma em que os professores/as desenvolvem os conteúdos de língua portuguesa e
matemática para estudantes com deficiência intelectual e como a instituição desenvolve a
formação para professores no tocante a inclusão de estudantes com deficiência intelectual.
Esperamos que a presente pesquisa possa suscitar reflexões e ações sobre a inclusão de estudantes
com deficiência intelectual no espaço escolar de forma a promover o ensino e aprendizagem de
qualidade.

2 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA NO BRASIL


Traçando um panorama histórico sobre a educação inclusiva no Brasil, podemos afirmar
que no inicio do século XVI, já existia uma instituição especializada na área da deficiência física,
mantida pela irmandade da Santa Casa de Misericórdia. No segundo império, foram criadas na
cidade do Rio de Janeiro, outras instituições para deficientes físicos nos moldes europeus, como:
o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, atualmente conhecido pelo Instituto Benjamin Constant
e, o Instituto dos Surdos-Mudos, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos - INES
(FERREIRA. 2005). Em 1930 foi o momento decisivo para iniciar a educação escolar das pessoas
com necessidades especiais. Ferreira (2005) destaca que em 1942, o Brasil já contava com 40
escolas públicas regulares voltadas para atender alunos/as com deficiências, e o Instituto Benjamin
Constant foi considerado como a primeira instituição brasileira a editar em braile a Revista
Brasileira para Cegos.
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No ano de 1945, surge o primeiro atendimento educacional especializado ás pessoas com


superdotação na Sociedade Pestalozzi (Instituição especializada no atendimento ás pessoas com
deficiência mental); por Helena Antipoff98. Em nível de Brasil, na década de 1960, a Educação
Especial ganha força com a Lei nº 4024/61. Em 1971, criam a Lei n° 5.692/71, alterando a LDBEN
de 1961 que tinha como finalidade "tratamento especial para os alunos com deficiências físicas,
mentais, os que se encontram em atraso considerável quanto á idade regular de matrícula e os
superdotados” (BRASIL, 1971). A referida lei apesar de ser importante para o processo de
inclusão no país tornou-se falha, pois ela não organizou de forma eficaz um sistema de ensino
apropriado para atender ás necessidades educacionais especiais, reforçando e direcionando
alunos/as para classes e escolas especiais.
Em 1973, foi criado o Centro Nacional de Educação Especial (CENESP), pelo MEC,
instituição responsável em gerenciar a educação especial no Brasil, que "sob a égide,
integracionista, impulsionou ações educacionais voltadas ás pessoas com deficiência e ás pessoas
com superdotação, mas ainda configuradas por campanhas assistenciais e iniciativas isoladas do
Estado" (SOUTO, 2014, p.17). É interessante salientar que nesse período, não houve de fato uma
política pública de promoção á educação, permanecendo os entendimentos de “políticas especiais”
para tratar da educação de alunos/as com deficiência.
A Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais: Acesso e Qualidade realizado
na Espanha em 1994, que desencadeou a Declaração de Salamanca99 foi fundamental para que a
educação inclusiva no Brasil fosse evidenciada de forma mais concreta e necessária. Em 1994 foi
criado Política Nacional de Educação Especial que tinha como finalidade "orientar o processo de
integração nacional que condiciona o acesso às classes comuns do ensino regular que possuem
condições de acompanhar e desenvolver as atividades curriculares programadas do ensino comum,
no mesmo ritmo que os alunos ditos normais". (BRASIL, 1994, p.19).
A Resolução CNE/CP n°1/2002, foi um documento importante para o fortalecimento da
educação inclusiva, na qual instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de
Professores da Educação Básica. Este documento determina que "as instituições de ensino
superior devem prever, em sua organização curricular, formação docente voltada para atenção à
diversidade e que contemple conhecimentos sobre especificidades dos alunos com necessidades
educacionais especiais" (BRASIL, 2002).

98
Helena Antipoff – Grande pesquisadora e educadora da criança portador de deficiência; foi pioneira na introdução
da educação especial no Brasil, onde fundou a primeira Sociedade Pestalozzi. O seu trabalho no Brasil é continuado
pela Fundação Helena Antipoff.
99
A Declaração de Salamanca (1994) definiu políticas, princípios e práticas da Educação Especial e influi nas
Políticas Públicas da Educação. (SOUTO, p. 23, 2014).
Página 510 de 2230

O Ministério Público Federal divulgou em 2004, o documento intitulado: “O Acesso de


Alunos com deficiência às Escolas e Classes Comuns da Rede Regular”. Objetivo era propagar as
ideias e diretrizes mundiais para a inclusão, retificando o direito e os benefícios da escolarização
de alunos/as com e sem deficiência nas turmas comuns do ensino regular. Em 2005 é implantado
em todos os estados e no Distrito Federal os Núcleos de Atividade das Altas
Habilidades/Superdotação (NAAH/S) para o atendimento educacional especializado, orientação
familiar e formação de professores garantindo assim o atendimento aos/as alunos/as da rede
pública de ensino.
A Organização das Nações Unidas (ONU) teve um papel fundamental na educação
especial inclusiva brasileira, em 2006, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
foi aprovada, tornando o Brasil signatário, assim é obrigação dos Estados garantir o sistema de
educação inclusiva em todos os níveis de escolarização, proporcionando seu pleno
desenvolvimento acadêmico e social compatível com a meta de inclusão plena. Portanto, muitas
leis, decretos, resoluções e pareceres foram criados de forma a garantir a plena inclusão de alunos
com deficiência não só no espaço educacional, mais em toda a sociedade.

3 DIFICULDADES E AVANÇOS DA INCLUSÃO DE ESTUDANTES COM


DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NO ESPAÇO ESCOLAR

A escola como espaço educativo e de inclusão, tem enfrentado grandes desafios no


processo ensino e aprendizagem de alunos/as com deficiência intelectual. Essas problemáticas
estão presentes desde formação inicial, ou seja, os futuros professores/as em sua maioria, nunca
tiveram contato na graduação com a educação especial, assim como nas instituições de ensino na
qual eles atuam enquanto professor, geralmente não acontecem formações continuadas com essa
temática, prejudicando veemente o processo de ensino e aprendizagem dos alunos/as com
deficiência, quando estão no espaço educacional. Outro fator diz respeito, a estrutura física das
escolas, que não possuem acessibilidade para incluir esses estudantes. Manchini (2014, p.7) afirma
que:
A inclusão de alunos com deficiência intelectual (DI) no sistema regular de ensino e a
formação de professores para atuar com esses alunos em sala de aula requerem certos
conhecimentos referentes à proposta de inclusão que podem contribuir para a capacitação
docente. O grande desafio está em criar condições, buscar recursos e estratégias que
favoreçam a participação e o aprendizado dos alunos e, principalmente, oferecer uma
educação de qualidade.

O professor enquanto sujeito ativo, e que acredita na inclusão de estudantes com variadas
deficiências incluído a intelectual no espaço escolar, deve atuar de forma efetiva e proporcionar
aos seus educandos/as, um ensino de qualidade, e para isso é necessário que o docente, desenvolva
Página 511 de 2230

uma capacidade “para mediar as relações, mobilizar os conceitos e organizar os conteúdos


estrategicamente, para que estes alunos se apropriem de determinados conhecimentos
sistematizados e disponibilizados pela escola”. (KONKEL, ANDRADE, KOSVOSKI, 2015, p.
5780).
Nessa perspectiva, para que haja o sucesso no processo inclusivo de alunos e alunas com
deficiência no ensino regular é necessário que os/as professores/as renovem as suas práticas
pedagógicas e que estas sejam voltadas à diversidade e às necessidades dos aprendizes. Como
afirmam Ross, in Budel e Meier, (2012, p. 39), “Antes das rampas físicas, as escolas precisam
construir rampas pedagógicas”. Acreditamos que é necessário que as instituições escolares
assumam a suas fragilidades no tocante a inclusão de pessoas com deficiência, e revejam como o
ensino é ministrado e a aprendizagem é concebida e avaliada.
Sabemos que a presença de alunos e alunas com deficiência no espaço escolar é uma
realidade que não devemos deixar passar por despercebido. Nessa perspectiva, metodologias,
planejamentos, escolhas de conteúdos e formas de avaliação são algumas dificuldades encontradas
no percurso do/a professor/a no ensino regular. Outros problemas "como a falta de especialização
dos profissionais torna a existência de recursos pedagógicos adaptados ineficiente, a Educação
Inclusiva é um Desafio a ser enfrentado diariamente pelos profissionais da Educação"
(CAVALCANTE, FEITOSA, COSTA, BENÍCIO, 2016, p.2).
Sabemos que durante muito tempo a deficiência intelectual, era tratada como doença
mental, "tanto que os termos utilizados para nomeá-la foram enormemente influenciados pelos
conhecimentos e terminologia da medicina". (MANCHINI, 2014, p.36). É interessante salientar
que essa nomenclatura deficiência mental, nos últimos anos vem sendo substituída pela
terminologia, deficiência intelectual.
Para Manchini (2014, p.17), “define-se a deficiência intelectual como um tipo singular de
deficiência, com suas características e distinções em relação às demais deficiências, por isso não
se fala em pessoas com deficiências intelectuais, mas em pessoas com deficiência intelectual”. De
acordo com Carvalho & Maciel (2003, p.54):

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM IV – associa a


deficiência intelectual a dificuldades em, pelo menos, duas das seguintes áreas: a)
comunicação, b) autocuidado, c) vida doméstica, d) habilidades sociais/ interpessoais, d)
uso de recursos comunitários, e) auto-suficiência, f) habilidades acadêmicas, g) trabalho
h) lazer e i) saúde e segurança.

Em se tratando da inclusão de alunos/as com deficiência intelectual (DI), em sala de aula,


Almeida (2018, p.2), afirma que:

A inclusão do aluno com deficiência intelectual (DI) tem sido uma temática bastante
enfatizada nas escolas brasileiras, além de ser motivo de exclusão. Grande parte dos
Página 512 de 2230

professores se sentem inseguros por não saberem lidar com estes alunos, além de
encararem o aluno com DI como representação de negatividade.

A deficiência intelectual é uma das deficiências mais identificada no espaço escolar, logo,
os educadores encontram grandes dificuldades em trabalhar com os alunos DI, esse problema se
dá em virtude das instituições de ensino não estarem preparadas para trabalhar com esse público.
Almeida (2018) afirma que o despreparo em se trabalhar com alunos/as D.I se dar pela precária
formação inicial e até mesmo a sua inexistência nas universidades, assim como pela “falta de
aparatos existentes nas escolas, ou na inexistência de formação continuada, além de falta de
participação das famílias no processo ensino e aprendizagem”. (ALMEIDA, 2018, p.3)
Mantoan (1997), destaca que para haja inclusão de alunos com D.I é necessário que a
escola apresente novos recursos voltados para o ensino e aprendizagem, além de uma mudança
significativa em relação a atitude dos/as docentes e da instituição de ensino, restringindo o
conservadorismo presente nas práticas de muitos professores/as, possibilitando uma educação que
atenda às necessidades de todos/as os/as alunos/as. Nessa perspectiva, para que haja de fato a
inclusão de alunos/as com deficiência intelectual, é imprescindível algumas reflexões importantes
e fundamentais como: adequações e adaptações em relação ao currículo, sistema de avaliação,
participação da família, qualificação da equipe, formação dos docentes, além visão atual sobre a
deficiência.
Assim, as adaptações curriculares são de suma importância para a inclusão de estudantes
com deficiência, desta forma, Almeida (2018, p.5) destaca que, "quando se fala de adequações
curriculares estamos falando de estratégias de planejamento e atuação docentes, e nesse sentido,
de processos criativos para remover as barreiras de aprendizagem".
Em relação à prática pedagógica direcionada aos/as discentes com deficiência intelectual,
cabe ao professor buscar motivar a aprendizagem e criando "atividades onde possam ser
trabalhadas as relações interpessoais levando o aluno com deficiência intelectual a se sentir
integrado e apto a comunicar-se com aqueles que o rodeiam". (ALMEIDA, 2018, p.5). Nessa
perspectiva, o/a aluno/a desenvolverá autonomia para confrontar-se com as adversidades em seu
cotidiano, possibilitando um desenvolvimento positivo no que se refere, afetividade, a linguagem
e seu desempenho corporal.
Assim, a educação inclusiva deve possibilitar aos sujeitos, igualdade e respeito as
diferenças. Os/as alunos/as com deficiência, “devem se sentir efetivamente parte integrante do
ambiente escolar tendo a oportunidade de conviver de maneira respeitosa e de serem reconhecidos
como sujeitos” (STELMACHUK et. al.; 2010).
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4 METODOLOGIA

O cenário da pesquisa foi a Escola Municipal Júlia Fonseca Barbosa, situada Avenida Drª
Francisca Sampaio, n° 129, município de Matões do Norte. A escola foi fundada no ano de 1998
na gestão de Antonio Sampaio, e inaugurada em 1999, como nome de Escola Municipal
Professora Vilma Sampaio. Com a lei municipal nº 126 de 2013 em seu Art. 1º na gestão de
Solimar Alves de Oliveira, houve alteração no nome da escola, passando a ser chamada por Escola
Municipal Júlia Fonseca Barbosa.
A instituição de ensino pertence à Rede Pública Municipal, funcionando nos três turnos
(matutino e vespertino), na qual oferece o Ensino Fundamental (Anos Finais) nos turnos matutino
e vespertino. Atualmente conta com uma estrutura física formada por sete salas de aula, sendo
seis em funcionamento. Possui uma secretária, uma cozinha, uma cantina, dois banheiros
(masculino e feminino) para estudantes, um banheiro de professores/as, e uma área de recreação.
A instituição atende um total de 405 alunos/as nos turnos matutino e vespertino na modalidade
Anos Finais do Ensino Fundamental (6º ano ao 9º ano). No turno matutino a instituição conta com
210 alunos/as e o vespertino atende 195 alunos/as.
No aspecto administrativo, à escola conta com um diretor geral, duas coordenadoras
pedagógicas, três assistentes administrativos, dezessete professores/as, sendo sete docentes
lecionando nos dois turnos, quatro professores/as no turno matutino, e oito docentes no turno
vespertino. A escola conta também com cinco auxiliares de serviços gerais e dois vigilantes ambos
contratados/as.
Vale ressaltar que a Escola Municipal Júlia Fonseca Barbosa possui em seu quadro de
discentes oito alunos/as com deficiência intelectual diagnosticado, sendo cinco do sexo masculino,
e três do feminino. Todavia, durante a pesquisa constatamos que existem sérios problemas no que
se refere ao processo de inclusão desses discentes, é interessante salientar que os/as professores/as
conhecem o processo de inclusão, e as leis que asseguram pessoas com deficiência no espaço
escolar, porém, em suas práticas docentes, e a própria estrutura da escola dificulta do processo de
ensino e aprendizagem desses alunos e alunos.
O método de procedimento realizado foi o estudo de caso, que segundo Triviños (1995,
p. 133): "E uma categoria de pesquisa cujo objeto é uma unidade que se analisa
aprofundadamente". Do exposto a unidade que se pretende analisar será a Escola Municipal Júlia
Fonseca Barbosa no município de Matões do Norte. Os instrumentos de coleta de dados que
utilizamos foram: observação, e entrevista semiestruturada. Fizemos a observação não-
participante no espaço escolar durante 4 meses, iniciamos no dia 06 (seis) de agosto de 2018 e
finalizamos no dia 06 (seis) de dezembro do mesmo ano. Moreira (2014, p. 4) afirma que:
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Na observação não participante os sujeitos não sabem que estão sendo observados, o
observador não está diretamente envolvido na situação analisada e não interage com
objeto da observação. Nesse tipo de observação o pesquisador apreende uma situação
como ela realmente ocorre. Contudo, existem dificuldades de realização e de acesso aos
dados.

Os sujeitos da pesquisa foram uma coordenadora pedagógica, e quatro professores (as) do


Ensino Fundamental (Anos Finais)100. As razões das escolhas se deram pelos seguintes motivos:
os/as professores/as porque são os principais atores sociais que entram em contato com os
estudantes e a coordenadora porque é uma profissional que trabalha diretamente com os docentes.
Consideramos necessário que não revelaremos os nomes verdadeiros dos/as entrevistados/as, e
sim preferimos usar nomes fictícios de poetizas para as professoras de língua portuguesa e nome
de matemáticos para os docentes da matemática, e o nome do cargo para a coordenadora
pedagógica, pois assim, estamos garantindo o direito do anonimato por razões éticas de pesquisa.
A entrevista semiestruturada foi realizada com a coordenadora pedagógica e
professores/as. Para Minayo (2010, p. 261) a entrevista “é acima de tudo uma conversa a dois, ou
entre vários interlocutores, realizada por iniciativa do entrevistador, destinada a construir
informações pertinentes para um objeto de pesquisa, e abordagem pelo entrevistador, de temas
igualmente pertinentes tendo em vista este objetivo”.
A forma de análise dos dados se deu por meio das respostas dos sujeitos da pesquisa, as
quais foram articuladas com nossas interpretações de acordo com os eixos teóricos da temática
sobre inclusão de estudantes com deficiência intelectual. Para atender essa perspectiva
metodológica desenvolvemos por meio da abordagem qualitativa nas ciências sociais. Neste
sentido, Goldenberg (2004, p. 14) diz que: “Na pesquisa qualitativa a preocupação do pesquisador
não é com a representatividade numérica do grupo pesquisado, mas com o aprofundamento da
compreensão de um grupo social, de uma organização, de uma instituição, de uma trajetória etc”.
Assim, utilizamos todo o processo metodológico descrito acima para colher informações
pertinentes a pesquisa.

5 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A escola inclusiva com equidade é um desafio que implica e rever alguns aspectos, que
envolvem desde o setor administrativo até o pedagógico. A política de inclusão de alunos que
apresentam necessidades educacionais especiais na rede regular de ensino não consiste apenas na

100
Selecionamos duas professoras de língua portuguesa e dois professores de matemática.
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permanência física desses/as alunos/as junto aos demais educandos/as, mas representa a ousadia
de rever concepções e paradigmas, bem como desenvolver o potencial dessas pessoas, respeitando
suas diferenças e atendendo suas necessidades. Nas escolas inclusivas as pessoas se apoiam
mutuamente e suas necessidades específicas são atendidas por seus pares, sejam colegas de classe,
de escola ou profissionais de áreas. A pretensão dessas escolas é a superação de todos os
obstáculos que as impedem de avançar no sentido de garantir um ensino de qualidade
(MADER,1997).
Ainda sobre a ótica de inclusão dos/as alunos/as com deficiência nas escolas, verificou-se
que de acordo com os depoimentos dos/as participantes os/as mesmos/as têm uma noção básica
do que seja inclusão. É o que observamos no relato da professora Cecilia Meireles: “Inclusão é o
ato de integração e envolvimento do aluno dentro do processo de aprendizagem em que abrange
as dimensões aos aspectos cognitivos. A E. M. Júlia Fonseca Barbosa, muito embora não possua,
no seu aspecto físico, ambientais preparados que possibilitem melhor desenvolvimento do referido
processo conativos que necessitam de diversificado estímulo para absorver e praticar a
aprendizagem focada na validade de conteúdos, está com seu corpo docente em sua maioria
(acredito) habilitado/capacitado a trabalhar com esse nível de deficiência, porém se faz necessário
um acompanhamento e discussões contínuas no processo” (Professora Cecilia Meireles,
Março/2019, Matões do Norte/MA).
O relato do professor Isaac Newton diz o seguinte: “É atender a todos as pessoas sem
distinção de condições físicas, motoras, psicológicas e social. Com certeza não, pois as mesmas
estão equipadas com produto pedagógico, psicólogos, fonoaudiólogos etc. Além das salas de aula
que excluem cada vez mais estes alunos por não contemplarem as suas necessidades intelectuais”
(Professor Isaac Newton, Março/2019, Matões do Norte/MA).
De acordo com as respostas dos/as entrevistados/as, todos/as afirmaram que entendem
sobre o conceito de inclusão no ambiente escolar. Para Beyer (2005), inclusão escolar é a ação de
acolhimento de pessoas, sem exceção, no sistema de ensino, independentemente de cor, classe
social e condições físicas e psicológicas. Outro fato importante é que a maioria dos professores/as
alegaram que a instituição não está preparada para receber estudantes com deficiência intelectual.
Todavia, somente a Coordenadora Pedagógica, destacou que a escola está preparada para receber
esses/as alunos/as, visto que existem ações voltadas para esse público na escola. Consideramos
que a resposta da Coordenadora Pedagógica não está levando em consideração a prática dos
professores em sala de aula no que refere ao ensino e aprendizagem de alunos/as com deficiência
intelectual, e sim uma discussão teórica sobre o processo de inclusão desse público com os/as
professores/as. De acordo com a Declaração de Salamanca é “dever das escolas de acolher todas
as crianças, independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais,
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linguísticas ou outras” (BRASIL, 1994, p. 17). Nessa perspectiva, a Escola Municipal Júlia
Fonseca Barbosa, além de discutir sobre o processo de inclusão, deve colocar em prática ações
para a realização concreta da inclusão de alunos/as com deficiência intelectual no ambiente
escolar.
Foi questionado aos professores/as sobre os desafios de se trabalhar com os/as alunos/as
com deficiência intelectual na Escola Municipal Júlia Fonseca Barbosa. Segundo a Coordenadora
Pedagógica: No modo geral é difícil trabalhar com alunos com deficiência, pois os professores
devem elencar algumas estratégias, práticas de ensino para incluir os alunos com deficiência
facilitando o trabalho docente em sala de aula considerando cada especificidade de cada aluno”
(Coordenadora Pedagógica, Março/2019, Matões do Norte/MA).
A professora Clarice Lispector afirmou em seu relato que: “O desafio são: apoio
pedagógico, qualificação de professores, novas metodologias de ensino para trabalhar com esse
público, estrutura física, entre outro, esses são os grandes desafios que encontramos aqui na escola
e que nos deixa muito preocupados. É uma situação que eu acredito que não acontece somente
aqui na Escola Júlia Fonseca, mas em muitas instituições em nível estadual e nacional.”
(Professora Clarice Lispector, Março/2019, Matões do Norte/MA).
A maioria dos os/as professores/as afirmaram que o grande desafio em se trabalhar com
os/as alunos/as com deficiência intelectual se dá pela precária estrutura física da escola e materiais
didáticos defasados. De acordo com Alciati (2011, p.6), “a escola é um espaço que deva ter o
maior número de ajustes possíveis, para a acessibilidade para o deficiente. Os espaços internos,
externos, aparelhos e utensílios mobiliários, meios de transportes são fatores primordiais para que
se reconheça uma escola inclusiva”. Já a Coordenadora Pedagógica e a professora Clarice
Lispector destacaram que o principal desafio se dá, em adequar uma metodologia correta para os
discentes com deficiência intelectual para que de fato haja inclusão.
Percebemos que a coordenadora pedagógica e a professora Clarice Lispector salientaram
um fato que ocorre corriqueiro em muitas escolas brasileiras, e que angustia muitos docentes. Esse
problema parte da sua formação inicial, do futuro professor que não teve formação suficiente para
trabalhar com alunos/as deficientes, além de formação continuada que as instituições escolares
não proporcionam os seus educadores. Segundo Morin (1996, p. 25):
(...) Um dos grandes desafios para a educação inclusiva nestes tempos mutantes é a
formação de professores. Hoje se fala muito em atualização, capacitação, formação
permanente em serviço, quando não em treinamento de professores. Um dos grandes
desafios é rever a concepção de conhecimento, romper os limites positivistas,
concebendo o conhecimento como uma construção dinâmica, como um recurso a ser
mobilizado para desenvolver competências que permitam aos indivíduos interferir na sua
realidade, identificando e resolvendo os problemas e os desafios colocados pela vida
social, de forma autônoma.
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Assim, é necessário que as instituições escolares proporcionem formação continuada para


seus professores/as, para que estes estejam preparados para desenvolver um ensino de forma a
promover o desenvolvimento cognitivos dos discentes com deficiência intelectual, e as
universidades devem inserir em suas matrizes curriculares, disciplinas voltadas para a educação
especial, preparando seus futuros professores para realidade escolar.
Outro ponto importante abordado na pesquisa foi a formação dos professores e a promoção
destas formações continuadas sobre inclusão de alunos/as com deficiência intelectual, ou outras
deficiências.
A Coordenadora Pedagógica destacou que: “A SEMED juntamente com a escola já
realizou formações para que os professores possam trabalhar a inclusão de seus alunos com algum
tipo de deficiência. É importante que seja desenvolvido mais projetos nessa área” (Coordenadora
Pedagógica, Março/2019, Matões do Norte/MA).
O relato do professor Isaac Newton diz o seguinte: “Raramente, pois o município e a
própria escola não dispõem de recursos técnicos e pedagógicos e humano para realizar estas
formações. E isso é um grande problema para nos educadores que quando nos deparamos com
alunos com deficiência intelectual em sala de aula, ficamos angustiados em como inserir esses
alunos” (Professor Isaac Newton, Março/2019, Matões do Norte/MA).
A maioria dos/as professores/as, e a Coordenadora Pedagógica afirmaram que a instituição
escolar tem promovido formações continuadas. Somente o professor Isaac Newton destacou que,
“raramente ocorre formação continuada no município”, e a professora Cecilia Meireles pontou,
que a Secretaria Municipal de Educação (SEMED), nunca promoveu formações continuadas para
professores, “somente reuniões para levantamento de algumas dificuldades com a leitura e
cálculos entre outros aspectos, com ênfase no rendimento bimestral”. Para Manchini (2014, p.12).
Faz-se necessária uma formação continuada desses profissionais para que eles possam
trabalhar, no ensino regular, com alunos que apresentam NEE no ensino regular, a fim
de que os docentes adquiram novos conhecimentos, exponham suas dúvidas e conheçam
como utilizar recursos, procedimentos e estratégias de ensino para atender às
peculiaridades desses alunos (MANCHINI, 2014, p.12).

Nessa perspectiva, consideramos de suma importância que a instituição escolar desenvolva


formações continuadas aos seus docentes, pois é necessário que se corrija distorções na formação
inicial desses/as professores/as, possibilitando aos alunos/as com deficiência que saia da margem
do processo de ensino.
Por fim perguntamos aos nossos entrevistados, se na organização do trabalho pedagógico
de sua respectiva disciplina tem levado em consideração o processo de inclusão dos/as alunos/as
com deficiência intelectual.
A professora Cecília Meireles destacou que: “Sim, a partir do momento da “escolha” do
livro didático, das atividades planejadas, da aplicabilidade do conteúdo, enfim, já existe um
Página 518 de 2230

pensar, um objetivo voltado para os alunos com dificuldades de compreensão, e com essa
consideração vem junto a responsabilidade do professor em adequar as condições do aprendizado
nas suas diversidades de percepção e apreensão dos alunos pelos conteúdos” (Professora Cecília
Meireles, Março/2019, Matões do Norte/MA).
O professor Arquimedes em seu depoimento destacou que: “Sim, porque mesmo com essa
deficiência procuro sempre fazer o melhor para que esses alunos sintam-se incluso na sala de aula
e na escola. É um grande desafio para um professor de matemática, mas eu procuro muito em
incluir esses alunos na atividade que eu desenvolvo em sala de aula” (Professor Arquimedes,
Março/2019, Matões do Norte/MA).
Percebemos nas respostas dos professores/as que todos e todas levam em consideração a
inclusão de alunos/as com deficiência intelectual na organização de seus trabalhos pedagógicos.
A partir das concepções dos/as docentes, o professor deve:

Orientar e mediar o ensino para a aprendizagem dos alunos; responsabilizar-se pelo


sucesso da aprendizagem dos alunos; assumir e saber lidar com a diversidade existente
entre os alunos; incentivar atividades de enriquecimento curricular; elaborar e executar
projetos para desenvolver conteúdos curriculares; utilizar novas metodologias,
estratégias e material de apoio; desenvolver hábitos de colaboração e equipe (BRASIL,
2000, p.5).

Sabemos que não é tarefa fácil adaptar atividades para estudantes com deficiência
intelectual, mais ainda para professores que não estão preparados para atender esse público, devido
a inexistência de disciplinas voltadas para a educação especial na formação inicial e poucos cursos
no espaço escolar para seus professores. Goés (2008) afirma que a falta de cursos sobre educação
inclusiva na graduação, torna frágil a qualidade da educação para discentes especiais, deixando-
os à margem do processo de ensino.
É de sua importância que as instituições escolares possibilitem aos seus/as professores/as
formações continuadas na perspectiva da educação inclusiva, pois, é fundamental que esses
profissionais "disponham de conhecimentos referentes aos saberes e fazeres frente à inclusão de
alunos com NEE" (MANCHINI, 2014, p.14). Assim, acreditamos que sejam necessários estudos
mais fundamentados, metodologias inovadoras para ser desenvolvidas no espaço escolar,
principalmente para os discentes de deficiência intelectual.

6 CONCLUSÃO

A pesquisa constatou que a escola investigada apesar de possuir um espaço estrutural


amplo, necessita de uma boa estrutura física para receber alunos/as com variadas deficiências.
Outro fato que chamou nossa atenção, diz respeito a interação dos sujeitos escolares, ou seja, a
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instituição demonstrou uma boa interação, não somente entre todos/as os/as estudantes com e sem
deficiência, mais também, delas para com os funcionários da escola.
Constatamos também que o processo de inclusão dos/as alunos/as com Deficiência
Intelectual na Escola Municipal Júlia Fonseca Barbosa é possível, pois os/as professores/as estão
buscando capacitação para atender às especificidades desses/as alunos/as. Percebemos que os/as
docentes desenvolvem plenamente em suas práticas educativas métodos voltadas para a inclusão
de estudantes com deficiência intelectual, apesar de instituição oferecer poucas formações
continuadas na área da educação especial/inclusiva.
A escola reconhece a importância da inclusão de estudantes com deficiência Intelectual e
prima pela qualificação dos/as professores/as, apesar de poucas formações. Todavia, os/as
professores buscam vários procedimentos pedagógicos inclusivos em suas disciplinas para
facilitar a aprendizagem dos alunos com DI no ensino regular. Segundo Manchini (2014, p.38),
"os professores devem fazer uso dos procedimentos pedagógicos inclusivos, de forma a promover
a inclusão de alunos com DI no ensino regular".
Concluímos apontado alguns pontos positivos, negativos e sugestões para a Escola
Municipal Júlia Fonseca Barbosa. Referente aos pontos positivos percebemos que os entrevistados
demonstram a compreensão sobre inclusão, é nítido também que a coordenação pedagógica
percebe a necessidade de se criar projetos pedagógicos voltados para inclusão de deficientes
intelectuais na Escola Municipal Júlia Fonseca Barbosa, Assim como os/as professores/as
reconhecem a necessidade de desenvolver práticas pedagógicas que conduzam a inclusão de
alunos/as com deficiência intelectual no espaço escolar.
Referente aos pontos negativos identificamos no percurso da pesquisa que a maioria dos/as
professores/as afirmaram que a Escola Municipal Júlia Fonseca Barbosa não está preparada para
receber alunos/as com deficiência intelectual. Outro fato que nos chamou a atenção diz respeito
que a escola não tem desenvolvido nenhum projeto, seminário ou ciclos periodicamente que
debatem sobre a inclusão de estudantes com deficiência intelectual, ou outras deficiências.
Como sugestão, aconselhamos que a coordenação pedagógica deveria incentivar os/as
professores/as a desenvolverem projetos voltados para inclusão de pessoas com deficiência, em
especial a deficiência intelectual, que a escola priorize formações continuadas periódicos sobre
inclusão de pessoas com deficiência, em especial a deficiência intelectual, e que a instituição
corrija problemas estruturais e pedagógicas para que estejam preparados a receber alunos/as com
deficiência. Em síntese, esperamos que esta pesquisa possa ter contribuído na área de educação,
sobretudo para a o campo da educação especial/educação inclusiva, assim como para a Escola
Municipal Júlia Fonseca Barbosa e que a pesquisa possa contribuir com reflexões e ações no
tocante à inclusão de estudantes como deficiência intelectual.
Página 520 de 2230

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S82. Abr. 2004.
Página 523 de 2230

EDUCAÇÃO PELA ATENÇÃO E PELO DIÁLOGO NO FAZER: PRÁTICAS


COLABORATIVAS ENTRE ARTESÃS E DESIGNERS COM SEMENTES DA APA DO
MARACANÃ.

EDUCATION FOR ATTENTION AND DIALOGUE MAKING:


COLLABORATIVE PRACTICES BETWEEN ARTISANS AND DESIGNERS WITH SEEDS
FROM MARACANÃ’S APA.

Tayomara Santos dos Santos


Mestranda em Design UFMA
Raquel Gomes Noronha
Doutora em Antropologia UERJ
Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Design UFMA
Eixo Temático 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O presente trabalho discorre acerca de abordagens teórico-reflexivas da educação do


antropólogo britânico Tim Ingold (educação pela atenção) e do filósofo alemão Hans-Georg
Gadamer (educação pelo diálogo), observadas e vivenciadas em percursos projetuais mediados
por ações do design (NORONHA, 2012), a partir das experiências em torno da atividade artesanal
com sementes ornamentais (produção de biojoias) entre artesãs da comunidade rural e tradicional
do Maracanã em São Luís do Maranhão e designers do Núcleo de pesquisa em Inovação, Design
e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão - NIDA/UFMA101. O contato entre
artesanato e design por meio das trocas de saberes em campo, permite o desenvolvimento de
didáticas e ferramentas para aprimoramento da atividade produtiva, enfrentamento de situações-
problema na vida cotidiana das artesãs e a promoção da aprendizagem, refletindo principalmente
no aspecto econômico. O diálogo entre os autores sobre as formas de construção da educação
evidenciadas no trabalho de coprodução da atividade artesanal, consolida um processo ensino-
aprendizagem para além da sala de aula presente no ato de fazer junto.
Palavras-chave: Design, Educação, Artesanato, Maracanã.

Abstract:This paper discusses the theoretical and reflexive approaches to education of the British
anthropologist Tim Ingold (education for attention) and the German philosopher Hans-Georg
Gadamer (education by dialogue), observed and experienced in design paths mediated by design
actions (NORONHA, 2012), from the experiences around the ornamental seed artisanal activity
(biojewelry production ) between artisans from the rural and traditional Maracanã community in
São Luís do Maranhão and designers from the Innovation, Design and Anthropology Research
Center of the Federal University of Maranhão - NIDA / UFMA. The contact between crafts and

Pesquisa realizada por meio do NIDA com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Maranhão –
101

FAPEMA.
Página 524 de 2230

design through the exchange of knowledge in the field, allows the development of didactics and
tools to improve the productive activity, coping with problem situations in the daily life of artisans
and the promotion of learning, reflecting mainly on the economic aspect. The dialogue between
the authors about the ways of building education evidenced in the work of co-producing craft
activity, consolidates a teaching-learning process beyond the classroom present in the act of doing
together.
Palavras-chave: Design, Education, Crafts, Maracanã.

INTRODUÇÃO
O Maracanã, considerado um bairro rural da grande ilha de São Luís, localizado nas
proximidades da BR 135 e do Distrito Industrial, é reconhecido pela sua forte representatividade
em tradições folclóricas e identidade cultural através de manifestações como o grupo de bumba-
meu-boi do “sotaque de matraca”102 que carrega seu nome e é carinhosamente chamado pela
população de “batalhão pesado”, assim como pela valorização de sua história através de
festividades religiosas como o culto ao Divino Espirito Santo e ao maior símbolo cultural da
comunidade, a Festa da Juçara, que promove o envolvimento dos moradores, valoriza a mão-de-
obra local, geradora de empregos temporários.
A atividade artesanal na comunidade, baseia-se na utilização de recursos naturais como troncos,
fibras e sementes disponíveis no entorno e que através das mãos de seus artesãos do são
confeccionadas uma série de artefatos que traduzem a identidade local. A agrônoma e moradora,
Rosa Martins Mochel, foi a grande incentivadora das práticas artesanais no Maracanã orientando
as mulheres da comunidade que se ocupavam somente dos afazeres domésticos cotidianos e que
não tinham renda (CORREA, 2010).
Do trabalho artesanal com o uso de sementes ornamentais, em especial a semente de juçara
(euterpe oleácea mart.) típica da região, formou-se um grupo de mulheres artesãs, onde pôde-se
observar um complexo de valores em torno do manejo da semente constituindo assim um rico
processo de ensino-aprendizagem através das trocas do saber-fazer entre o conhecimento
acadêmico das designers103 e o conhecimento tácito das artesãs, como formas de perceber o
mundo, remetendo-nos aos discursos sobre processos de educação que vão para além dos muros
da escola de filósofos e fenomólogos como Tim Ingold e Hans-Georg Gadamer. Ainda que
tratando de pontos específicos da educação, nota-se uma relação muito clara nos discursos destes
dois autores nas relações resultantes desta atividade.
Severo (2015) postula que a pedagogia, como ciência da educação interessada pelo fenômeno
educativo em seu sentido amplo, para além da escola, deve assumir diálogos interdisciplinares,
para construção de literaturas teórico-metodológicas que possibilitem a potencialização de efeitos
formativos decorrentes de práticas em espaços de ensino não-escolar, convertendo-as em práticas
pedagógicas de ensino-aprendizagem, a exemplo do que explanamos nesta narrativa.
Deste modo, o presente artigo analisa fundamentos de abordagens teórico-reflexivas dos
autores em questão, relacionando-os às experiências do saber-fazer de artesãs e o papel do
designer com mediador, evidenciando um processo de ensino-aprendizagem para além da sala de

102
Existem cinco sotaques (Matraca, Zabumba, Da baixada, Costa-de-Mãos e Orquestra) dos grupos de bumba-
meu-boi do Maranhão.
103
Esta pesquisa contou com profissionais do design apenas do gênero feminino.
Página 525 de 2230

aula, presentes no ato de fazer junto, através de práticas colaborativas em design considerando os
estudos sobre a educação pela atencionalidade (INGOLD, 2010) e o educar é educar-se por meio
do diálogo (GADAMER, 2004).

2. AQUISIÇÃO DO CONHECIMENTO

2.1 Por meio da educação pela atenção


O conceito de educação da atenção é trabalhado pelo antropólogo britânico Tim Ingold. O autor
defende que o processo de aquisição de conhecimento não é algo definido a partir do interior e
nem do exterior do indivíduo, e sim um processo que ocorre a partir da sintonia entre o ser vivente
e o ambiente que o envolve (INGOLD, 2010), ou seja, das respostas provenientes dessa relação.
Desta forma, habilidades como a linguagem são constantemente geradas e regeneradas, pois
surgem dentro de processos de desenvolvimento, como propriedades de auto-organização
dinâmicas do ambiente no qual o indivíduo desabrocha, conhecido como devir humano.
Partindo deste pensamento e ancorado por Donald Schön (2000), o autor alude que cognição
ocorre em paralelo à ação desenvolvida (reflexão na ação), e que estes não são dois processos
separados. Ingold ressalta que quanto mais ‘habilidosa’ for a pessoa que realizará a ação, mais ela
poderá abdicar de um planejamento prévio para realizá-la. Isso ocorre graças à atenção dada
durante a tarefa. Para o autor o acúmulo de conhecimento provém de uma jornada que leva um
amplo repertório. Logo, “o aumento de conhecimento na história de vida de uma pessoa não é
resultado da transmissão de informação, mas sim da redescoberta orientada” (INGOLD, 2010, p.
19).
A transmissão é realizada da forma que quem está aprendendo sobre algo, consiga ‘pegar o
jeito da coisa’, através de seu ser-no-mundo e através de suas características e formas de enxergar
o mundo. Deste modo, “cada repasse é um movimento original, não uma réplica” (p. 23). O
processo de adquirir conhecimento seria correlato e simultâneo ao processo de responder ao
mundo, cujo autor chama de correspondência.
“A vida social, então, é vivida em correspondência. As implicações de uma teoria da
correspondência para a maneira como aborda-se temas da investigação antropológica,
incluindo parentesco e afinidade, ecologia e economia, ritual e religião, e política e lei.
A correspondência pode ajudar levar os indivíduos além das divisões entre a biologia
humana e a cultura, e entre a evolução humana e a história”. (INGOLD, 2013, p. 22).

Figura 01:
Diferenciação entre Interação e Correspondência.
Fonte: Making, 2013.
Página 526 de 2230

Na ilustração a cima, Ingold (2013, p. 105) nos mostra com a correspondência difere da
interação, pois para o autor, na interação, partes do que interagem são fechadas umas às outras,
como se elas pudessem ser conectadas apenas através de algum tipo de operação, um processo
intencionado, ou seja, de um ponto a outo, como observamos na prática comum em sala de aula a
figura do professor (ponto A) aquele que passa o conhecimento e a figura do aluno (ponto B)
aquele que recebe o conhecimento, logo, esse contato pode ser simplesmente racional sem levar
em consideração os sentidos.
Na correspondência, por outro lado, percebe-se movimento entre vários pontos, ou seja, linhas
que se envolvem como uma “melodia em contraponto”, nas palavras do autor, essas linhas em
movimento são relações de reciprocidade e harmonia em meio a diversidade, entre todas as coisas
tangíveis (as pessoas, a natureza) e intangíveis (energias, crenças, dogmas) terrestres (o que está
ao nosso alcance) e celestes (cosmos), essas relações se dão pela atenção que damos nas
realizações com o outo, podemos visualizar esse processo como um emaranhado de fios, cujo
Ingold chama de mashwork ou malha.
A partir deste exemplo, a correspondência é entendida como uma forma de nos colocar ao que
o mundo nos oferece e de como as pessoas se posicionam diante do que recebem nas relações com
o outro, o que Ingold chamou de “response-ability” para reportar-se ao ato de dar atenção e dar
responsabilidade ao responder (ser responsivo ao outro) e isto consolida o trabalho colaborativo
em práticas de correspondência. Esse processo requer posição de igualdade entre os atores sociais,
logo, a quebra de hierarquias.
Através destas práticas foi possível identificar as características do artesanato com sementes
em cada etapa produtiva desde a coleta; suas limitações; informações sobre o território e seus
nativos. Logo, a correspondência pode ser entendida como um processo colaborativo ou de
codesign. O termo denomina um processo que envolve o trabalho criativo de designers e de
pessoas não treinadas em design, como as artesãs, trabalhando juntos (SANDERS, 2002). Este
processo destaca-se a participação de vários atores nas decisões-chaves do design, como forma de
progredir através de um problema ou cenário para promover mudanças de comportamento, nesse
sentido, um processo de ensino-aprendizagem.

2.2 Por meio da educação pelo diálogo


O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, foi discípulo de Martin Heidegger, que o influenciou
decisivamente em seus estudos acerca da hermenêutica e mais tarde referenciando-a na obra
educação é educar-se.
Para Gadamer, o aprendizado é um modo de diálogo, pois a educação se dá em uma relação
aberta com o outro, logo, essa relação só se torna aprendizado de fato, na medida em que o diálogo
promova a autoformação do indivíduo, ou seja, em educar-se. O autor apresenta um modo de
ensino-aprendizagem de um ângulo diferente daquele que geralmente é adotado, visto que
tendemos a considerar a educação simplesmente como fruto da ação de uma pessoa dotada de
mais conhecimento, sobre outra.
O autor afirma ainda que quando entendemos que educação é educar-se, que formação é
formar-se, compreendemos seu real sentido, pois, a partir dessa perspectiva, seria possível ter um
campo de visão bem mais expandido do que simplesmente afirmar que educar corresponde ao
modelo de transmissão de princípios morais, crenças e saberes já consagrados ao que entendemos
como doutrinação. Esse modelo de transmissão de um saber postulado – doutrinação – tende a ser
um dos fatores que o autor define como a incapacidade para o diálogo, sobretudo, ressalta a
incapacidade daquele que ensina. “Aquele que tem que ensinar acredita dever e poder falar”, e
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quanto mais apropriado e articulado por sua fala, tanto mais imagina estar se comunicando com
seus aprendizes, este é “o perigo da cátedra que todos conhecemos”. (GADAMER, 2004, p.248)
A ideia é que aquele que se educa, precisa do diálogo com o outro para se colocar diante de
seus próprios preconceitos (preconceitos entendidos aqui como nosso manancial histórico de
concepções prévias); dessa forma, somente no momento em que ele experimenta essa situação de
embate, é que ele, somente ele, pode abrir mão de seus juízos prévios e conquistar uma consciência
hermenêutica – espécie de apreensão clarividente dos próprios preconceitos e dos preconceitos do
outro – o que, na maioria das vezes, não ocorreria de forma deliberada, em um mero voltar-se
sobre si.

2.3 Relação entre hermenêutica e correspondência (?)

Diante do que contextualizamos até aqui, sobre as formas de aquisição do conhecimento


aludidas pelos autores discutidos neste trabalho, nos surge um ponto de reflexão no qual também
podemos entendê-lo como um questionamento: há uma relação entre hermenêutica e
correspondência (?)
Conforme Ferreira (2015), a ideia é que aquele que se educa, precisa do diálogo com o outro
para se colocar diante de suas próprias concepções (costumes, crenças, preconceitos, história –
sua carga cultural) dessa forma, somente no momento em que ele experimenta essa situação de
confronto ou estranhamento, é que ele, somente ele, pode abrir mão de seus juízos prévios e
conquistar uma “consciência hermenêutica” que trata-se de “uma espécie de apreensão
clarividente dos próprios preconceitos e dos preconceitos do outro – o que, na maioria das vezes,
não ocorreria de forma deliberada, em um mero voltar-se sobre si. (FERREIRA, 2015. p.77).
Seguindo essa premissa, conseguimos visualizar esse experimento social no conceito de malha
ou emaranhados (INGOLD, 2016), provenientes das práticas de correspondência. Ou seja, a malha
é o modo como os movimentos e ritmos da atividade humana e cosmológicos são registrados no
espaço vivido, são esses movimentos que conduzem nossa percepção e ação com o mundo,
movimentos estes que na maioria das vezes surgem do estranhamento oriundo da atenção que é
posta, e isso constitui um processo de ensino-aprendizagem.
Na malha cada linha é constituída à medida que o indivíduo estabelece sua própria trilha a partir
das relações com outros indivíduos, através da comunicação nas atividades cotidianas. Assim
quanto mais vidas se relacionam (entrelaçam), linhas são continuadas e a malha se expande. As
linhas entrelaçadas na malha se unem umas às outras constituindo uma sensação interior uma pela
outra, ou seja, não estão simplesmente ligadas pela contiguidade externa.
A partir destes discursos, entendemos que verdadeiro diálogo pressupõe uma fusão de
cosmovisões diferentes, na qual a forma como o outro enxerga o mundo e se posiciona nele em
confronto como nós enxergamos e nos posicionamos no mundo se abre para uma possibilidade
legítima de compreensão do tema do qual buscamos entendimento. No entanto, nesse processo,
nos vemos colocados diante da questão da educação enquanto diálogo e autoformação, pois, na
relação com o outro, estamos sujeitos a mudar nossas concepções prévias.

3. ESTUDO DE CASO: MARACANÃ E O ARTESANATO COM SEMENTES


ORNAMENTAIS
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Situado em uma Área de Proteção Ambiental - APA104, o Maracanã possui uma diversidade
significativa de espécies de sementes florestais com características ornamentais potenciais para a
produção artesanal, além da semente de juçara presente em maior abundância e que possui grade
representatividade local. Esta semente em especial, passou a ser frequentemente empregada nos
produtos desenvolvidos por artesãs da comunidade.
Sementes como buriti (Mauritia flexuosa), dendê (Elaeis guineenses), leucena (Leucaena
leucocephala), falso Pau Brasil (Adenanthera pavonina L.), tamarindo (Tamarindo indicas), anajá
(Attalea maripa), babaçu (Attalea speciosa), tucum (Astrocaryum vulgare), entre outras, são
facilmente encontradas na região, tornando-a potencialmente forte fornecedor dessas sementes.

Figura 02: Localização geográfica do Maracanã


Fonte: Das autoras, 2019.

Considerando estes fatores, iniciado em 2016, através de pesquisas do Núcleo de Pesquisa em


inovação, Design e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão - NIDA/UFMA pudemos
estabelecer parcerias entre designers, guias da Rota da Juçara105, artesãs e moradores, onde foi
possível construir um percurso de atividades a partir das experiências, anseios, expectativas,
sonhos e dificuldades da comunidade em torno da atividade artesanal, principalmente no que tange
ao emprego de sementes ornamentais.

104
A APA – Área de Proteção Ambiental - do Maracanã, criada por meio do Decreto 12.103 de 01 de dezembro de
1991, com área aproximada a 1831 ha. Movido pela preocupação em proteger e conservar as espécies naturais do
Maracanã, principalmente os juçarais, da ação do Distrito Industrial e da ocupação desordenada (MARANHÃO,
1991).
105
Passeio em trilha ecológica na mata fechada com 1.200 km de extensão no bairro Maracanã, onde os nativos da
região trabalham como guias e trazem informações sobre a fauna e flora da reserva ambiental com destaque para as
palmeiras de juçara (TAGUATUR, 2018).
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Figura 03: Amostras de sementes ornamentais da APA do Maracanã


Fonte: Das autoras, 2018.

3.1 Base metodológica e a pesquisa com sementes


A pesquisa em torno da atividade artesanal com sementes no Maracanã foi realizada por meio
de práticas de correspondência, termo constituído através da aproximação do design com a
antropologia o Design Anthropology (DA) com o objetivo de humanizar as atividades projetuais
do design. Deste modo tais práticas são entendidas como um meio de trabalhamos
colaborativamente e/ou participativamente na vivência com o outro. Em algumas literaturas
podemos encontrar os termos, design participativo, design participatório, codesign.
Entende-se o design participativo ou codesign como uma forma de pesquisa em design que
envolve os usuários e outros atores sociais no processo de criação. Lupton (2014), afirma que no
processo de codesign há uma participação ativa dos stakeholders106 enfatizando as experiências
de cada um. Spinuzzi (2005) dialoga que se trata de uma forma de entender o conhecimento do
outro fazendo suas atividades cotidianas e como essas atividades podem ser moldadas de maneira
proativa. Noronha (2012) fundamenta que nesse contexto há um descolamento do design, do
centro para o meio, ou seja, os ‘designers’ devem apresentar uma postura de tradutores e
mediadores efetivos e não reprodutores de linguagem, apresentando-se como parte do processo
colocando-se no mesmo patamar do artesão e não acima dele.
A correspondência surge desta prerrogativa, mas a partir premissas epistemológicas da
antropologia que alinhadas à ciência do design, dá origem ao design anthropology ou
antropologia-por-meio-de-design (INGOLD e GATT, 2013). A correspondência é entendida
como uma forma de se posicionar no mundo e estar em relação aos outros, consolida o trabalho
conjunto realizado na comunidade em prol da valorização das manifestações materiais e
simbólicas da cultura local. A correspondência nos ajuda a compreender sobre as relações na
imersão no campo através da atenção.

3.2 Pondo em diálogo a teoria e a metodologia no processo de ensino-aprendizagem na


atividade com sementes

106
Participantes ativos de um processo.
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Beillerot (1985) alude que a educação está presente nas dinâmicas das relações sociais. As
dinâmicas sociais de desenvolvimento econômico e político da sociedade servem de base para a
construção de uma cultura de uso dos saberes que ampliou os horizontes dos fins e meios
educacionais, impulsionando práticas pedagógicas que ao longo dos anos, vão ganhando outros
ambientes para além do espaço escolar.
Para Severo (2015) a sociedade atual integra processos formativos a outros processos sociais,
tornando-os cenários de possibilidades de ensino-aprendizagem requerendo didáticas e políticas
próprias para estruturar determinados ideais e mecanismos de formação dos sujeitos. Sendo assim,
“certas práticas sociais cujas finalidades são próprias e específicas, para alcançar seus objetivos
necessitam integrar saberes a estas práticas pedagógicas” (BEILLEROT, 1985, p. 245). Entender
a educação como um fenômeno de múltiplas faces em diversas esferas da sociedade leva a crer na
existência de possibilidades potenciais de promoção do conhecimento ao ser humano em face de
demandas que marcam os contextos de inserção do sujeito nas dinâmicas sociais.
Essa construção discursiva nos faz retomar ao Maracanã no âmbito do trabalho com sementes
que é claramente entendido como ‘porta de entrada’ para o processo de ensino-aprendizagem dos
grupos envolvidos na dinâmica da atividade artesanal, principalmente às artesãs, trazendo
reflexões sobre como o percurso metodológico dialoga com a teoria apresentada.
Como mencionado anteriormente, o trabalho artesanal com sementes no Maracanã teve sua
gênese a partir de pesquisas do NIDA. Para tanto, traçamos algumas etapas-apoio que chamamos
de momentos, para sua realização. É importante ressaltar que etapa-apoio aqui, significa
recomendações para o campo, pois o ‘estar em campo’ poderia exigir outras ações metodológicas
mediadas pelo design.

1º Momento
“O que perfaz um verdadeiro diálogo não é termos experimentado algo novo, mas termos
encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria
experiência de mundo. [...] o diálogo possui uma força transformadora. Onde um diálogo
teve êxito ficou algo para nós, e em nós, que nos transformou” (GADAMER, 2004,
p.247)

No primeiro momento, o diálogo foi o elemento fundamental para uma aproximação entre
os atores sociais envolvidos (designers, artesãs, guias, moradores) possibilitando traçar planos em
comum. Através de visitas à residência de algumas artesãs, dinâmicas de aproximação, rodas de
conversa, palestras, seminários, oficinas e experimentos voltados a atividades com sementes
ornamentais, desde o manejo do material até ao levantamento de possíveis produtos a serem
desenvolvidos com o seu uso. A partir constantes conversas obtivemos informações preliminares
para compreensão das relações entre as pessoas com o material (as sementes), entre elas mesmas,
com o território do Maracanã e o que a comunidade representava a elas. Obtivemos respostas que
trouxeram questões para além da atividade artesanal, como políticas públicas (educação, saúde,
trabalho, sustentabilidade etc.). Neste processo, são claramente observadas práticas educativas,
pois o indivíduo educa-se, porque sobretudo, a aprendizagem depende de cada um, logo, o
indivíduo educa-se junto aos outros, pois somos seres em constante conversação e nos
relacionamentos. Essa relação se constitui na comunicação, no jogo e nas experiências que
trocamos uns com os outros (GADAMER, 2004).
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Figura 04: visitas, conversas e orientações com artesãs e moradores do Maracanã.


Fonte: Acervo projeto extensão Artesanato do Maracanã, 2017.

2º Momento
“[...] dar atenção é uma prática de educação [...] se manter atento ao que os outros estão
fazendo ou dizendo ao que acontece a sua volta; acompanhar os demais aonde quer que
estes vão, ficar à sua disposição, não importando o que isso implique e para onde o leve.”
(INGOLD, 2018, p.407-408).

O segundo momento foi dedicado ao acompanhamento e participação no cotidiano das artesãs:


no trabalho artesanal – considerando o que produziam e como produziam; que técnicas usavam;
como se organizavam; onde vendiam e o que significava este trabalho a elas; na vida familiar –
considerando a participação da família na atividade artesanal; meios de renda; educação; saúde,
etc. – ouvindo, observando e fazendo com elas suas atividades, dando-lhes atenção a tudo aquilo
que estava sendo exposto por elas, principalmente os sentimentos percebidos em cada prática, em
atividade e em cada palavra. Desta maneira conquistamos a empatia e a confiança destas mulheres,
o que permitiu imaginar futuros e tecer recomendações que atribuíssem melhorias ao trabalho e
qualidade de vida a elas, em contrapartida, também aprendemos com elas, sua experiência e
técnicas de trabalho que podem ser facilmente empregadas ao trabalho projetual do design.
A base do conhecimento se encontra especificamente no fazer, e o fazer junto e isto “favorece
e estabelece uma relação de correspondência” (INGOLD, 2013, p.107), tomando as coisas a partir
de sua produção em diferentes âmbitos disciplinares. Através da prática e da experiência, somos
capazes de falar do que sabemos; o que precisamos e porque o dizer.
A partir desta abertura, com recomendações do design, as artesãs constituíram um grupo
produtivo com o intuito de desenvolver produtos a partir da valorização do saber popular e
reconhecimento do território, oportunizando a geração de renda, o enfrentamento dos problemas
do cotidiano e o autorreconhecimento.
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Figura 05: Correspondências entre artesãs e designers.


Fonte: acervo projeto extensão Artesanato do Maracanã, 2018.

3º Momento
“Quando aprendemos a fazer algo, realizamos a tarefa sem pensar muito a respeito,
somos aptos a nos impulsionar espontaneamente à realização das tarefas, nem sempre
sendo dessa forma. Todas as experiências, sejam agradáveis ou não, contêm um elemento
de surpresa, quando algo não está de acordo com nossas expectativas, podemos responder
à ação colocando a situação de lado, ou podemos responder a ela por meio da reflexão,
refletir sobre a ação ou refletir no meio da ação, sem interrompê-la, chamando esse
processo de reflexão-na-ação”. (SCHÖN, 2000, p. 32).

No terceiro momento, em posse de um significativo arcabouço contextual sobre a realidade da


comunidade e sobre as artesãs por meio de diálogos e da atenção no acompanhamento e
participação das atividades cotidianas, passamos para o processo de reconhecimento do território
e da atuação destas pessoas sobre este, uma reflexão em torno de suas histórias e experiências com
o ambiente.
Esta imersão permitiu visualizar e refletir sobre outros aspectos que influenciam na atividade
artesanal e no processo de ensino-aprendizagem dessas artesãs como sustentabilidade ambiental,
questões de gênero (o ser mulher numa comunidade tradicional), políticas de incentivo, etc. – e
possibilidade de tangibilizar a cadeia produtiva do trabalho com sementes ornamentais.
Krucken (2009) alude que para que se desenvolva uma visão sistêmica do processo de
transformação e agregação de valor econômico a recursos naturais é crucial compreender os
sistemas de criação e de transmissão de valor (denominados cadeias, constelações e redes), diante
dessa premissa buscou-se identificar elementos que pudessem permitir a elaboração conjunta do
sistema para transformação das sementes nativas.

Figura 06: imersão no campo: 1- designer-pesquisadora e guia da APA; 2 – coleta de sementes com artesãs
Fonte: Das autoras, 2019.

Após reconhecimento do ambiente (não em sua totalidade, mas um recorte) e das habilidades
manuais das mulheres com o trabalho artesanal, observando e participando da sua rotina, pôde-se
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construir coletivamente a cadeia produtiva do artesanato com sementes ornamentais enfatizando


desde a coleta da semente em sítios e brejos até a exposição e venda dos artefatos. Além do
levantamento em um inventario prévio de sementes (Fig. 03) com alguns exemplares obtidos por
moradores e guias.

Figura 07: Estrutura simplificada da cadeia produtiva de sementes ornamentais.


Fonte: Das autoras, 2019.

O percurso metodológico desenhado para esta pesquisa deu-se a partir de práticas colaborativas
mediadas pelo design. Tais práticas nos motivaram a trabalhar o reconhecimento e a valorização
do território do Maracanã por meio da sua identidade, o saber popular, fauna e flora, além da
identificação das potencialidades econômicas e sustentáveis no trabalho com sementes
ornamentais. Estas ações denotam claramente aspectos de ensino-aprendizagem, que contribuem
de forma significativa para autoformação dos participantes, através do diálogo e das trocas entre
o conhecimento tácito e científico.
Outro aspecto fundamental no processo de ensino-aprendizagem identificado em campo foi o
‘conviver na diversidade’ (VYGOTSKY, 2001; FONTANA e FAVERO, 2013), ou seja,
vivenciamos a construção do respeito ao saber-fazer, pensamentos e modos de vida individuais,
haja vista que no âmbito educacional não há espaço para o preconceito ou para a menos valia,
pois, a educação não está limitada ao espaço escolar e aos saberes validados por ele. A educação
se dá na vida. “O saber que não passa pela experiência pessoal não é saber” (VYGOTSKY, 2001,
p. 76).

3.3 Educação em comunidades tradicionais


Nogueira (2015), define comunidades tradicionais como territórios constituídos de grandes
extensões de área conservada hoje no Brasil. Estes territórios são caracterizados pelos vínculos
históricos e afetivos de seus nativos, pela biodiversidade presentes nestes espaços, pelas formas
próprias de conhecimento e manejo de seus recursos naturais, bem como a predisposição de seus
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nativos para defendê-los contra ações de expropriação e degradação ambiental. Todas essas
características são identificáveis no Maracanã situado no interior de uma APA, nos vastos juçarais
(palmeira do fruto da juçara), em eventos culturais e grupos folclóricos ricos em valores
simbólicos e identitários.
Desta forma, o processo de ensino-aprendizagem em comunidades tradicionais ocorre através
de práticas sociais dentro de contextos do cotidiano de seus nativos, a exemplo da atividade
artesanal com recursos naturais empregada no Maracanã. Estas ações contribuem para a formação
das pessoas envolvidas na atividade, onde habilidades e competências específicas são
identificadas, a capacidade para o diálogo desenvolvida, a formulação de pensamento crítico e
alternativas teórico-práticas são propostas. São estes fatores que possibilitam o enfrentamento de
vários desafios e situação-problema do cotidiano. No entanto, requer esforços individuais e
coletivos.
A educação neste contexto surge com base nas necessidades dos sujeitos e da comunidade, e
atua como mecanismo potencializador da articulação dos saberes diante das demandas nas esferas
de sociabilidades humanas e do trabalho.

4. O DESIGN NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM


Nós seres humanos, somos sociais por natureza, e usamos os canais de comunicação para
trocar informações, ideias e forma de organização diante das diversas demandas que nossa
realidade cotidiana apresenta, na busca de uma vida com mais qualidade. Diante das propostas de
organização dessas ideias e da transmissão daquilo que se entende por conhecimento às futuras
gerações, surge em nossa sociedade à educação, na forma de ensino.
“A busca pela sistematização do conhecimento nas instâncias educacionais de ensino cria
tendências epistemológicas para a organização, separação dos objetos de seu contexto,
fragmentando o conhecimento em áreas e isolando as partes do todo”. (OZELAME, 2015,
p.81)

O objetivo de constante busca pelo conhecimento é contribuir para o melhoramento da


qualidade de vida das pessoas, pois entendemos que a instituição educacional deve se preocupar
com o crescimento daquele que busca formar-se como um todo, proporcionando atividades que
estimulem neste sujeito a busca pela compreensão de uma realidade ampla a partir da sua própria
realidade.
“O design e um amplo campo que envolve e para o qual convergem diferentes disciplinas.
Pode ser visto como uma atividade, processo, ou entendido como resultados tangíveis,
como uma função de gestão de projeto, como uma atividade projetual ou conceitual, e
ainda um fenômeno cultual. É tido como um meio para adicionar valor às coisas produzidas
pelo homem como veículo para mudanças sociais e políticas”. (FONTOURA apud
COUTO, 2014, p.95).

Diante desta contextualização plural, o design deve ser entendido como uma área de
conhecimento que vai além do projeto em torno do objeto (forma e função), pois esta atuação se
amplia também para o entendimento de uma prática cultural e social. Teóricos de design
contemporâneos como Buchanan (1995), Cross (2007), Dilnot (2007) e Miller (2010) dialogam
sobre a mudança no foco do olhar do design e sua busca a exploração de novos horizontes. “Os
objetos e produtos projetados certamente são emblemas das capacidades específicas dos
designers” (TABAK, 2010), no entanto, análises profundas dessas capacidades apresentam o
design como uma disciplina cheia de aberturas, que pode ser de grande valia para outras áreas do
conhecimento, diga-se de passagem, devida a sua transdisciplinaridade.
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O design possui valores intrínsecos que aliados aos valores de outras áreas do conhecimento
podem melhorar significativamente a vida das pessoas, inclusive quando direcionados a educação.
Um dos valores cruciais é apresentado por Nigel Cross que é o aspecto reflexivo do design – o
diálogo entre o processo mental e a expressão das idéias, quando faladas ou desenhadas, que
permite que elas sejam consideradas, revisadas, desenvolvidas, rejeitadas e retomadas (CROSS,
2007:53). Este aspecto reflexivo deu origem ao que Cross chamou de 'designerly' que trata-se de
um conceito aberto de design que cria um espaço que permite a dinâmica da “improvisação” do
dia-a-dia, ou seja, um “modo design” para construir algo.
Para Dilnot (2007), o design é uma atividade reflexiva porque trata-se de um modo de agir que
é, ao mesmo tempo, um modo de aprender e esta ideia de aprender e agir como parte de um mesmo
processo reflexivo, nos remete a educação pela atenção (INGOLD, 2010) no ato de fazer junto.
Essa prática reflexiva pode ser explorada pela associação entre o design e áreas como pedagogia
e psicologia educacional no âmbito da formação a partir das trocas em práticas colaborativas.

4.1 O designer como mediador em processos cocriativos


Quando o designer se vê na incumbência de ‘projetar’ para situações mais específicas, na qual
se convergem muitos pontos de vista, cosmovisões ou mesmo ações e realizações de design que
não sejam necessariamente chegar a um artefato, se depara com métodos que talvez não sejam os
mais adequados aos seus objetivos. Nesse sentido, Thackara (2005) evidencia a importância de
modelos de ação colaborativos, contínuos e abertos, que incluam o usuário, como já reportamos
aqui. No entanto, o autor alerta para a necessidade da integração do designer com agentes locais
e cidadãos para desenvolver formas de inovação colaborativa, que resultam em novos serviços
para a vida cotidiana. Estas considerações reforçam a necessidade de desenvolver competências
que vão além de um âmbito profissional específico, relacionadas à interatividade, à habilidade de
escuta e de ação em diferentes contextos, à gestão da informação, ao desenvolvimento coletivo
dentre outros aspectos.
Aboud e Noronha (2018), nos colocam que o designer deve atuar como mediador de processos,
devido a sua capacidade de imaginar e criar cenários, dos quais são empregados para facilitar os
diálogos sociais, e tais diálogos sustentam novas ideias. No entanto é preciso compreender a
realidade em que vive o usuário (seus costumes, sua cultura, o local e o contexto social em que
está situado), neste contexto, as artesãs. Para tanto, é fundamental se despir de conceitos de vida
pré-estabelecidos e adentrar no universo do outro. Deste modo torna-se possível desenvolver
ações colaborativas.
“A cocriação no design considera que todas as pessoas possuem habilidade para criar,
desde que seu processo seja facilitado e que sejam orientadas para tal. Além de possuírem
conhecimento sobre suas próprias necessidades, os participantes fazem parte da geração
coletiva de ideias, reunião de conhecimento e desenvolvimento do conceito. Dessa
maneira, entende-se que a inovação está intrinsecamente relacionada à cocriação e pode
ser facilitada por meio de um processo participativo”. (KRUCKEN et al, 2016, p. 31)

No contexto do Maracanã, o processo de elaboração das peças é o mais aguardado pelas artesãs,
quando, elas afloram a criatividade. Todo processo é mediado por designers. A partir da geração
de ideias, informações sobre conceito da coleção e recursos materiais são levantadas. Recursos
didáticos propostos pelas designers107 como observação e reconhecimento de elementos
característicos do território – fauna, flora, cultura, economia através de imagens; apreciação do
som ambiente e canções que enaltecem o Maracanã; Produção de Moodboards (ferramenta de

107
Apenas profissionais mulheres na realização do projeto.
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criatividade) com elementos que possam representar o ambiente (recorte de revistas, folhas,
desenhos, palavras), ajudam a ampliar a percepção e o imaginário das artesãs no processo criativo.
Algumas artesãs rabiscam pequenas ideias no papel enquanto outras com menos habilidade no
desenho, preferem desenvolver protótipos diretamente nos materiais disponíveis, cada uma
responde de uma maneira, a mente flui, logo, o conceito para coleção e as primeiras ideias
começam a surgir, mas leva-se um tempo para amadurecê-las. Em outro momento, tratamos da
seleção mais detalhada dos materiais e das técnicas de acabamento a serem empregadas, além da
definição das medidas de cada modelo, as informações são todas catalogadas pelas artesãs, como
um inventário. Por fim desta etapa, inicia-se a produção das peças que quando prontas são
devidamente embaladas, etiquetadas, e seguem para pontos de exposição e venda, em eventos
dentro e fora da comunidade.
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Figura 08: Mediação das designers no processo de ensino-aprendizagem com artesãs.


Fonte: Acervo projeto extensão Artesanato do Maracanã, 2017.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde 2016, durante todo o percurso da pesquisa que ainda segue sobre outras perceptivas,
pode-se construir um conhecimento coletivo entre artesãs, designers e outras pessoas interessadas
no processo, possibilitado por ações colaborativas, disso não há dúvidas. Através do trabalho
conjunto, pudemos encontrar e atribuir um uso para o material estudado – as sementes ornamentais
encontradas na APA do Maracanã – identificando as reais necessidades da comunidade alinhando
a fatores ambiental, social e econômico. Nesse aspecto, percebe-se a importância do design em
todas as fases da cadeia produtiva da atividade artesanal e principalmente para a formação destas
pessoas.
O diálogo e a atencionalidade ao outro no fazer, aludidos pelos discursos de Hans-Georg
Gadamer e Tim Ingold respectivamente, premissas fundamentais no processo de construção de
conhecimento e do ensino-aprendizagem, foram facilmente identificadas durante o transcorrer da
pesquisa em da atividade arsenal na pesquisa com sementes ornamentais mediadas pelo design,
que possibilitou enxergamos as necessidades da comunidade, a importância da valorização do
território em tudo aquilo que ele representa, além da oportunidade de compartilhar experiências e
saberes, possibilitando aos grupos, o alinhamento do conhecimento cientifico ao conhecimento
tácito que contribui para o trabalho projetual do design e para a identificação de alternativas que
tragam melhoria para a qualidade de vida na comunidade.
De acordo com Schön (2000, p. 32), quando aprendemos a fazer algo, realizamos a tarefa sem
pensar muito a respeito, somos aptos a nos impulsionar espontaneamente à realização das tarefas,
nem sempre sendo dessa forma. Todas as experiências, sejam agradáveis ou não, contêm um
elemento de surpresa, quando algo não está de acordo com nossas expectativas, podemos
responder à ação colocando a situação de lado, ou podemos responder a ela por meio da reflexão,
tendo esse processo duas formas. Dewey apud Pereira (2009) dialoga destacando que no processo
de ensino aprendizagem que o conhecimento se torna significativo quando é adquirido através da
vivência. Pois tanto professores como alunos possuem experiências próprias e que devem ser
aproveitadas no cotidiano escolar. E através das experiências compartilhadas no ambiente escolar,
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a aprendizagem e a produção do conhecimento seriam coletivas. Pois quando se vivencia e


experimenta a aprendizagem se torna educativa e um ato de constante reconstrução.

REFERÊNCIAS

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Página 540 de 2230

EMPREGOS NO SETOR CULTURAL MARANHENSE108

JOBS IN THE MARANHÃO CULTURAL SECTOR

Marilene Gonçalves Morais


Especialista em Gestão Cultural
Universidade Estadual do Maranhão
Orientador: Prof. Dr. Ewaldo Eder Carvalho Santana
Doutor em Engenharia de Eletricidade
Universidade Estadual do Maranhão
Eixo 1 - Arte, Tecnologia e Educação

RESUMO: Nas sociedades contemporâneas a cultura exerce papel significativo. Nesse contexto,
estudiosos da área buscam expandir o conceito de cultura, bem como abarcar novas dimensões,
especialmente sua dimensão econômica, para fundamentar a ampla relevância da cultura na
produção de valores simbólicos e riquezas. No entanto, o volume baixo de estudos sistematizados
acerca do setor, dificulta a comprovação efetiva dessa relevância. Nesse cenário, este trabalho tem
como objetivo central apresentar informações referentes ao mercado de trabalho formal do setor
cultural no Estado do Maranhão no período de 2006-2017, tendo como fonte de coleta dos dados
a RAIS, bem como submeter o indicador número de empregos formais e algumas de suas faixas
de remuneração média (SM) a uma análise de regressão e correlação simples, com intuito de
verificar o grau de dependência e relação desses indicadores com outras variáveis. Consuma-se
dessa forma, a estreita relação entre economia e cultura. Observa-se também haver um
comportamento ascendente do estoque de empregos formais no Maranhão na maior parte do
período estudado, havendo decréscimo apenas nos últimos dois anos da série. Por fim, mostra-se,
através de análises estatísticas, a influência e o relacionamento dos empregos formais do setor
cultural com outros indicadores.
Palavras-chave: Emprego Cultural. Setor Cultural. Economia. Cultura.

ABSTRACT: In contemporary societies, culture plays a significant role. In this context, scholars
in the field seek to expand the concept of culture, as well as embrace new dimensions, especially
its economic dimension, to support the wide relevance of culture in the production of symbolic
values and wealth. However, the low volume of systematized studies on the sector makes it
difficult to prove this relevance effectively. In this scenario, this work has the central objective of
presenting information regarding the formal labor market of the cultural sector in the State of
Maranhão in the period 2006-2017, having RAIS as the source of data collection, as well as
submitting the indicator number of formal jobs. and some of their average remuneration (SM)

108
Artigo resultante de trabalho de conclusão de Curso de Especialização em Estatística da Universidade Estadual
do Maranhão.
Página 541 de 2230

ranges to a simple regression and correlation analysis, in order to verify the degree of dependence
and the relationship of these indicators with other variables. In this way, the close relationship
between economy and culture is consummated. There is also an upward trend in the stock of
formal jobs in Maranhão for most of the period studied, with a decrease only in the last two years
of the series. Finally, it shows, through statistical analyzes, the influence and the relationship of
formal jobs in the cultural sector with other indicators.
KEYWORDS: Cultural employment. Cultural Sector. Economy. Culture

INTRODUÇÃO

O setor cultural possui relevante importância na sociedade contemporânea, pois além de


possuir valor simbólico, detém importância econômica, ou seja, agrega valor na produção de
riquezas. No entanto, o volume baixo de estudos sistematizados acerca do setor, dificulta a
comprovação efetiva dessa importância.
No Brasil as regiões Sul e Sudeste se destacam na produção desses estudos. Em vista disso,
a elaboração deste trabalho justifica-se, pois há poucos estudos a respeito do setor cultural no
Maranhão de forma mais detalhada. Assim, tem-se como objetivo central apresentar informações
referentes ao mercado de trabalho formal do setor cultural no Estado do Maranhão no período
entre 2006 e 2017, tendo como fonte de coleta dos dados a Relação Anual de Informações Sociais
(RAIS)109, bem como submeter o indicador número de empregos formais e algumas de suas faixas
de remuneração média (SM)110 a uma análise de regressão e correlação simples, com intuito de
verificar o grau de dependência e relação desses indicadores com outras variáveis.
Desse modo, o trabalho está dividido em cinco seções, sendo a primeira referente a
Metodologia aplicada, que trata a respeito das classes de atividades econômicas que compõem o
setor cultural e também acerca dos métodos estatísticos adotados na pesquisa.
A segunda seção discorre sobre a temática Economia e Cultura, que tem como proposta
inicial falar sobre a relação da economia com a cultura e laçar mão de temas ligados a essas duas
áreas de conhecimento, bem como expor conceitos, ainda que, por hora, encontrem-se em
processo de construção na atualidade.
Posteriormente, a seção A dinâmica do mercado de trabalho no Maranhão, faz uma síntese
do mercado de trabalho formal maranhense, apresentando aspectos mais gerais, num recorte
temporal semelhante ao da pesquisa. Em seguida a seção Empregos no setor cultural maranhense,
expõe os principais dados da pesquisa, bem como os resultados das análises de regressão e

109
É realizada pelo atual Ministério da Economia.
110
Salários Mínimos.
Página 542 de 2230

correlação simples. Por fim, nas Considerações finais realiza-se uma súmula de todo o trabalho,
pontuando as conclusões mais relevantes.

1 METODOLOGIA

Esta pesquisa do ponto de vista de sua natureza possui caráter básico. Quanto à abordagem
se caracteriza como quantitativa/qualitativa, pois mesmo se utilizando dados mensurados faz-se
uso de aspectos qualitativos em suas análises.
No que se refere ao ponto de vista dos objetivos essa pesquisa é do tipo exploratória-
descritiva, uma vez que, proporciona maior compreensão acerca do tema empregos no setor
cultural no Maranhão ao expor alguns de seus indicadores, bem como descreve características e
correlaciona variáveis. Quanto aos procedimentos técnicos se classifica como bibliográfica, pois
essa pesquisa possui base teórica constituída a partir de consultas a livros, artigos, revistas,
reportagens, dentre outros.
Neste universo a metodologia aplicada neste trabalho segmenta-se em duas partes:
primeira – classes de atividades econômicas que compõem o setor cultural e a segunda – métodos
estatísticos aplicados na análise dos dados deste setor.
Para definir as classes de atividades econômicas que integram o setor cultural, adotou-se
como referência a publicação Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2007-2010. Nessa
publicação o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), utilizou a Classificação
Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) 2.0, que possui uma desagregação por classe de
atividade econômica mais ampla, sendo composta por um total de 676 classes.
Destaca-se ainda, que a utilização dessa publicação como referência deve-se ao fato de a
mesma adotar como referencias, abordagens, estudos e pesquisas nacionais e internacionais no
campo estatístico da cultura.
Quanto ao setor cultural, no âmbito dessa publicação, é formado por apenas 74 dessas
classes, descritas no Quadro 1.

Quadro 1 – Códigos e Classes CNAE 2.0


(continua)
Código Denominação da classe
18.11-3 Impressão de jornais, livros, revistas e outras publicações periódicas
18.21-1 Serviços de pré-impressão
18.22-9 Serviços de acabamentos gráficos
18.30-0 Reprodução de materiais gravados em qualquer suporte
Página 543 de 2230

26.10-8 Fabricação de componentes eletrônicos


26.21-3 Fabricação de equipamentos de informática
26.22-1 Fabricação de periféricos para equipamentos de informática
26.31-1 Fabricação de equipamentos transmissores de comunicação
26.32-9 Fabricação de aparelhos telefônicos e de outros equipamentos de comunicação
Fabricação de aparelhos de recepção, reprodução, gravação e amplificação de áudio e
26.40-0
vídeo
26.70-1 Fabricação de equipamentos e instrumentos ópticos, fotográficos e cinematográficos
26.80-9 Fabricação de mídias virgens, magnéticas e ópticas
32.11-6 Lapidação de gemas e fabricação de artefatos de ourivesaria e joalheria
32.12-4 Fabricação de bijuterias e artefatos semelhantes
32.20-5 Fabricação de instrumentos musicais
32.40-0 Fabricação de brinquedos e jogos recreativos
Comércio atacadista de artigos de escritório e de papelaria; livros, jornais e outras
46.47-8
publicações
46.51-6 Comércio atacadista de computadores, periféricos e suprimentos de informática
Comércio atacadista de componentes eletrônicos e equipamentos de telefonia e
46.52-4
comunicação
47.51-2 Comércio varejista especializado de equipamentos e suprimentos de informática
47.52-1 Comércio varejista especializado de equipamentos de telefonia e comunicação
47.56-3 Comércio varejista especializado de instrumentos musicais e acessórios
47.61-0 Comércio varejista de livros, jornais, revistas e papelaria
47.62-8 Comércio varejista de discos, CDs, DVDs e fitas
47.83-1 Comércio varejista de jóias e relógios
47.85-7 Comércio varejista de artigos usados
58.11-5 Edição de livros
58.12-3 Edição de jornais
58.13-1 Edição de revistas
58.21-2 Edição integrada à impressão de livros
58.22-1 Edição integrada à impressão de jornais
58.23-9 Edição integrada à impressão de revistas
59.11-1 Atividades de produção cinematográfica, de vídeos e de programas de televisão
59.12-0 Atividades de pós-produção cinematográfica, de vídeos e de programas de televisão
59.13-8 Distribuição cinematográfica, de vídeo e de programas de televisão
59.14-6 Atividades de exibição cinematográfica
59.20-1 Atividades de gravação de som e de edição de música
60.10-1 Atividades de rádio
60.21-7 Atividades de televisão aberta

Quadro 1 – Códigos e Classes CNAE 2.0


(conclusão)
Código Denominação da classe
60.22-5 Programadoras e atividades relacionadas à televisão por assinatura
61.10-8 Telecomunicações por fio
61.20-5 Telecomunicações sem fio
61.30-2 Telecomunicações por satélite
61.41-8 Operadoras de televisão por assinatura por cabo
61.42-6 Operadoras de televisão por assinatura por microondas
Página 544 de 2230

61.43-4 Operadoras de televisão por assinatura por satélite


61.90-6 Outras atividades de telecomunicações
62.01-5 Desenvolvimento de programas de computador sob encomenda
62.02-3 Desenvolvimento e licenciamento de programas de computador customizáveis
62.03-1 Desenvolvimento e licenciamento de programas de computador não-customizáveis
Tratamento de dados, provedores de serviços de aplicação e serviços de hospedagem
63.11-9
na internet
63.19-4 Portais, provedores de conteúdo e outros serviços de informação na internet
63.91-7 Agências de notícias
Outras atividades de prestação de serviços de informação não especificadas
63.99-2
anteriormente
71.11-1 Serviços de arquitetura
71.19-7 Atividades técnicas relacionadas à arquitetura e engenharia
73.11-4 Agências de publicidade
73.12-2 Agenciamento de espaços para publicidade, exceto em veículos de comunicação
73.19-0 Atividades de publicidade não especificadas anteriormente
74.10-2 Design e decoração de interiores
74.20-0 Atividades fotográficas e similares
77.22-5 Aluguel de fitas de vídeo, DVDs e similares
77.23-3 Aluguel de objetos do vestuário, jóias e acessórios
85.92-9 Ensino de arte e cultura
85.93-7 Ensino de idiomas
90.01-9 Artes cênicas, espetáculos e atividades complementares
90.02-7 Criação artística
90.03-5 Gestão de espaços para artes cênicas, espetáculos e outras atividades artísticas
91.01-5 Atividades de bibliotecas e arquivos
Atividades de museus e de exploração, restauração artística e conservação de lugares
91.02-3
e prédios históricos e atrações similares
Atividades de jardins botânicos, zoológicos, parques nacionais, reservas ecológicas e
91.03-1
áreas de proteção ambiental
93.21-2 Parques de diversão e parques temáticos
93.29-8 Atividades de recreação e lazer não especificadas anteriormente
94.93-6 Atividades de organizações associativas ligadas à cultura e à arte
Fonte: IBGE/CONCLA/CLASSIFICAÇÃO (2007)111.
Nota: As atividades tarjadas em cinza correspondem às atividades indiretamente relacionadas à cultura.

Assim, o total do setor cultural resulta da soma das classes de atividades econômicas,
definidas como pertencentes ao setor. Desse modo, não é objetivo fundamental deste trabalho
analisar as classes de atividades individualizadas.
Reitera-se ainda, que neste trabalho nos atemos prioritariamente ao número de empregos
formais, e não a população ocupada, pois o emprego formal é composto por trabalhadores com
vínculo empregatício (celetistas, estatutários, avulso, temporário, e etc.), durante o todo ou parte
do ano-base da pesquisa, sendo pesquisado em sua totalidade nos estabelecimentos, e realizado

111
Diferentemente do que ocorre em outros países, o IBGE optou por excluir do conjunto de atividades do setor
cultural, as atividades estritamente relacionadas ao turismo, esporte, meio-ambiente e religião.
Página 545 de 2230

pela RAIS. Enquanto que a população ocupada é composta por pessoa que tem trabalho durante
toda ou parte da semana de referência da pesquisa, sendo que o trabalho pode ser exercido em
empreendimentos que tenham ou não registro formal (SISTEMA, 2013). Além disso, as
informações são coletadas em domicílios e por amostragem, e é feita atualmente pela Pesquisa
por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC).
Destarte, optou-se por adotar somente a RAIS como fonte das informações, pois a pesquisa
utiliza a CNAE 2.0 na íntegra para pesquisar estabelecimentos e vínculos empregatícios, além da
pesquisa apresentar uma série histórica mais extensa (a partir de 2006 para o setor cultural),
enquanto que a PNADC usa a CNAE-Domiciliar112 para os empreendimentos e a CBO-
Domiciliar113, para a população ocupada e apresenta uma série de dados menor114.
No tocante a outros aspectos desta parte do trabalho, faz-se importante prevenir que no
decorrer da pesquisa observou-se que a classe Comércio atacadista de artigos de escritório e de
papelaria na RAIS corresponde a classe Comércio atacadista de artigos de escritório e de
papelaria; livros, jornais e outras publicações (código 46.47-8), na CNAE 2.0.
Do mesmo modo, cabe esclarecer que para uma economia na análise dos dados e melhor
visualizar o comportamento dos mesmos, agrupou-se as faixas de remuneração média (SM): Até
0,50 e 0,51 a 1,00 e as faixas 1,01 a 1,50 e 1,51 a 2,00. Resultando nas faixas de remuneração
média (SM): Até a 1,00 e 1,01 a 2,00, respectivamente.
No que se refere aos métodos estatísticos adotados, optou-se por uma análise de regressão
e correlação linear simples, pois com esse método é possível verificar com maior precisão qual o
grau de dependência e relação do indicador número de empregos formais e suas faixas de
remuneração média (SM), com outras variáveis. Sendo o modelo de regressão linear simples,
representado por:

𝑌 = 𝛼 + 𝛽𝑋1 + 𝑒1 (1)

Onde:
α = interceptor da reta;
β = inclinação da reta;
𝑒1 = erro aleatório de Y para a observação 1.

Usando o modelo obtém-se a equação da regressão linear simples que tem a forma:

112
A CNAE-Domiciliar, deriva da Classificação Nacional de Atividades – CNAE.
113
A CBO-Domiciliar, deriva da Classificação Brasileira de Ocupações – CBO.
114
A PNADC passou a ser pesquisada a partir de 2012, depois que PNAD foi encerrada em 2015, modificando assim
a metodologia empregada na pesquisa.
Página 546 de 2230

𝑌̂ = 𝑎 + 𝑏𝑥1 (2)

Onde:
Ŷ = Variável preditora;
a = estimador de α;
b = estimador β;
x1 = Valor de x para a observação 1.

O instrumento utilizado para determinar a equação da regressão linear simples, coeficiente


de determinação ou explicação (r²), bem como o coeficiente de correlação de Pearson (r), foi a
ferramenta do excel Análise de dados.

2 ECONOMIA E CULTURA

A cultura na sociedade contemporânea busca por formas/métodos para construir quadros


estatísticos do setor, para assim fundamentar sobretudo sua importância no processo de produção
de riquezas. Em virtude disso, estudiosos do setor buscam ampliar o conceito de cultura, ou seja,
expandir seu objeto de pesquisa.
O conceito de cultura mais difundido, logo o mais aceito, é o definido pela Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) (2002, p. 02), que diz:

[...] a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e
materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e
que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos,
os sistemas de valores, as tradições e as crenças.

Assim, um conceito mais amplo de cultura parte da concepção de que a cultura faz parte
da dinâmica social, econômica, tecnológica, e etc., de uma sociedade e possui ligações com a
economia, educação, meio ambiente, e etc. que devem ser exploradas.
Entretanto, analisar o relacionamento da cultura com outros campos de conhecimento não
tem sido tarefa fácil, uma vez que, a “cultura está ou esteve isolada dos processos de integração
social e econômica”. (SILVA; ARAÚJO, 2010, p. 40). Ademais a cultura possui características
tangíveis e intangíveis, ou seja, é campo muito heterogêneo e complexo que tem dificuldades em
uniformizar termos, definir estruturas, construir estatísticas especificas do setor, entre outros.
Talvez por essas razões, o volume de estudos científicos acerca da cultura e sua ligação, bem como
Página 547 de 2230

sua interdisciplinaridade com outras áreas de conhecimento, seja tão baixo. Nesse contexto Silva
e Araújo (2010, p. 83), comentam:

A elaboração de indicadores tem se constituído em um dos desafios das políticas culturais


há alguns anos. A construção de quadros estatísticos específicos é apontada como algo
necessário para estabelecer uma visão de conjunto da cultura e das suas relações com a
economia e outras políticas setoriais, a exemplo da educação, das telecomunicações, das
políticas urbanas e assim por diante.

Desta maneira, há que se investir na produção de indicadores culturais com metodologias


adequadas para o setor, a fim de respaldar a necessidade de implementação de programas, projetos
e políticas públicas de cultura, quanto a alocação de recurso, a valorização de culturas locais,
preservação/restauração de bens culturais, e etc.
Partindo assim, de inquietações contemporâneas no que se refere a conhecer a cultura e
seu relacionamento com outros campos de conhecimento, a partir da década de 90 surgiram
diversos estudos e termos, porém este estudo limita-se aos termos relacionado com o campo da
economia. Constatou-se o surgimento de termos como cultura da economia, economia da cultura,
economia criativa, indústria cultural, indústria criativa, dentre outros, que no geral compreendem
a cultura na sua dimensão econômica.
Contudo as definições conceituais destes termos são inúmeras e variam entre as nações, as
vezes de autor para autor num mesmo país e por vezes os mesmos são usados como sinônimos.
Então complementando o assunto Reis (2007, p. 172) acrescenta:

Um dos maiores desafios para definir indicadores é delimitar o que se pretende monitorar.
Quando o assunto refere-se a temas sociais, como cultura, é preciso antes de mais nada
identificar o que se entende por cultura e o que esse conceito abarca.

Assim, o quadro 2 apresenta algumas definições adotadas por alguns autores/órgãos


ligados a pesquisas em cultura, ressaltando que a intenção deste trabalho não é fixar os termos,
muito menos engessar seus conceitos, mas expor, difundi-los para fomentar discursões, estudos,
pesquisa, debates, e etc., acerca destes temas.

Quadro 2 – Termos, definições e autores


Termo Definição Autor
[...] é o conjunto de atividades econômicas que dependem do
conteúdo simbólico – nele incluído a criatividade como fator OLIVEIRA;
Economia mais expressivo para a produção de bens e serviços, ARAUJO;
criativa guardando estreita relação com aspectos econômicos, SILVA, 2013, p.
culturais e sociais que interagem com a tecnologia e 07
propriedade intelectual. [...]
Página 548 de 2230

[...] a economia da cultura se refere ao uso da lógica


econômica e de sua metodologia no campo cultural. A
economia passa assim a ser instrumental, emprestando seus
Economia REIS, 2007, p.
alicerces de planejamento, eficiência, eficácia, estudo do
da cultura 23
comportamento humano e dos agentes do mercado para
reforçar a coerência e a consecução dos objetivos traçados
pela política pública. [...]
O termo “indústrias criativas” surgiu nos anos 1990, para
designar setores nos quais a criatividade é uma dimensão
Indústria BENDASSOLLI
essencial do negócio. As indústrias criativas compreendem,
criativa et al, 2009,
entre outras, as atividades relacionadas ao cinema, ao teatro,
à música e às artes plásticas. [...]
[...] na França, as “indústrias culturais” foram recentemente
definidas como um conjunto de atividades econômicas que
Indústria RELATÓRIO,
combinam as funções de concepção, criação e produção de
cultural 2012, p. 35
cultura com funções mais industriais da manufatura e
comercialização de produtos culturais em larga escala.
Trabalhamos com o termo Economia da Cultura ao invés de
Economia Economia Criativa ou Indústria Criativa por entendermos
criativa/ que o primeiro, ao invés de delimitar o campo, o alarga, pois PORTA, 2008, p.
Indústria abrange outros setores como ciência e tecnologia. Já o 04
criativa conceito de indústrias criativas circunscreve o campo aos
setores regidos por patente e propriedade intelectual.
Fonte: Elaborado pelo autor (2019).

Cabe enfatizar, que o quadro 2 não resume a miríade de definições adotadas por
pesquisadores, muito menos esgota a quantidade de termos existentes atualmente. No Brasil, por
hora, os termos mais utilizados são: economia da cultura e indústria criativa.
Desta maneira, é evidente o relacionamento estreito e constante da cultura com a economia,
conforme Avogadro (2018, p. 47-49) discorre:

Assim, é possível afirmar que tudo o que consideramos economia é resultado de


dinâmicas de interação social e cultural. Tais dinâmicas, em forma de fluxo de produção
e consumo, caracterizam a dimensão econômica da cultura, mas sua especificidade
subjetiva alterou substancialmente o conceito de valor, acrescentando-lhe o caráter
simbólico.

Portanto, numa sociedade contemporânea em que tudo é muito dinâmico e rápido, não é
concebível limitar o conhecimento, a que se estender, aprofundar e produzir informação.

3 A DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO NO MARANHÃO

A dinâmica do mercado de trabalho é composta por inúmeros indicadores como empregos


formais, ocupações, estabelecimentos, remunerações, custo do trabalho, dentre outros. No entanto,
Página 549 de 2230

como mencionado anteriormente, este trabalho se restringe principalmente ao estoque de


empregos formais no setor cultural e a indicadores correlatos.
Contudo, primeiramente faz-se necessário conhecer o comportamento do mercado de
trabalho maranhense como um todo, de forma mais globalizada, para posteriormente restringir-se
ao setor cultural.
Em vista disto, ao analisar o comportamento do mercado de trabalho maranhense na última
década, percebe-se uma evolução tímida, mas positiva, apesar do curto tempo, porém turbulento,
período de recessão econômica (2015-2017) que o país enfrentou. O Maranhão como qualquer
outro estado brasileiro sofreu as consequências em diversos setores, principalmente o econômico,
durante esse período, exibindo assim um crescimento menor do que o esperado: menos empregos,
diminuição do poder de compra da população, dentre outros fatores. Possivelmente devido a estes
fatores o Maranhão apresentou um PIB per capita de R$ 12.264,28 em 2016, o menor dentre os
estados brasileiros (SISTEMA, 2018).
Complementando o cenário do mercado trabalho maranhense a tabela 1 mostra que o
Maranhão tinha um total de 25.736 estabelecimentos formais em 2006 passando para 46.267 em
2017, resultando numa variação de 79,78% no período.

Tabela 1 – Número de estabelecimentos e empregos formais – Maranhão


– 2006-2017
Total de
Ano Total de Empregos
Estabelecimentos
2006 25.736 437.433
2007 27.377 482.938
2008 29.259 540.010
2009 31.327 562.275
2010 34.505 636.625
2011 37.518 675.274
2012 39.517 696.348
2013 41.854 721.490
2014 44.326 738.826
2015 45.712 722.866
2016 45.925 700.200
2017 46.267 713.051
Var. 2006-
79,78 63,01
2017 (%)
Fonte: Ministério da Economia/RAIS (2006-2017).
Página 550 de 2230

Em 2017 a classe que mais contribuiu para o total foi Comércio Varejista de Produtos
Farmacêuticos para Uso Humano e Veterinário, com 2.291 estabelecimentos.
A tabela 1 aponta ainda, que o estoque de empregos formais no Maranhão saltou de
437.433 postos de trabalho em 2006 para 713.051 em 2017, representando um crescimento de
63,01% no período, sendo que a classe de atividade econômica que mais influenciou no total dos
anos de 2006 e 2017, foi Administração pública em geral, tendo 263.481 postos de trabalho no
último ano da série.
Os dados da RAIS (2006-2017), apontam ainda, que em relação a distribuição de empregos
formais por sexo, em 2006 a participação das mulheres é de 44,54% ante 55,46% dos homens. Em
2017 os valores ficam em 46,23% para as mulheres e 53,77% para os homens. No que se refere a
escolaridade, mais da metade dos empregados formais (51,67% e 54,18% em 2006 e 2017,
respectivamente) possui apenas ensino médio completo em todos os anos da série.
Com na base tabela 2, é possível notar que durante o período de 2006 a 2017, a faixa de
remuneração média (SM), que possui maior concentração de empregos formais é a de 1,01 a 2,00
salários mínimos, e apresenta uma taxa de crescimento no período de 68,83%. Em oposto, a faixa
com menor volume de empregos formais é a de Mais de 20,00 salários mínimos, com 3,06% de
aumento no período.

Tabela 2 – Número de empregos formais, por faixa de remuneração média (SM) – Maranhão –
2006-2017
Até 1,01 a 2,01 a 3,01 a 4,01 a 5,01 a 7,01 a 10,01 a 15,01 a Mais de
Ano {ñ class} Total
1,00 2,00 3,00 4,00 5,00 7,00 10,00 15,00 20,00 20,00
2006 67.847 232.260 53.950 22.842 20.012 17.189 8.243 6.327 3.102 3.329 2.332 437.433
2007 73.827 259.990 59.302 25.280 21.897 16.946 9.821 6.735 2.878 3.702 2.560 482.938
2008 75.003 284.733 69.184 35.037 22.896 21.714 11.402 6.709 3.613 4.050 5.669 540.010
2009 72.985 307.825 67.687 39.216 21.146 20.583 12.305 6.793 3.514 4.016 6.205 562.275
2010 76.046 356.897 78.236 43.819 22.978 22.408 15.088 8.220 3.625 4.512 4.796 636.625
2011 76.089 365.861 93.924 51.916 23.876 23.922 15.210 9.630 3.797 4.508 6.541 675.274
2012 74.195 380.001 99.189 53.767 25.989 25.117 14.521 9.629 3.452 4.263 6.225 696.348
2013 71.380 400.256 101.847 55.175 26.722 25.682 15.979 9.604 3.503 4.220 7.122 721.490
2014 68.114 404.047 110.667 55.028 29.835 26.734 16.152 10.343 3.843 4.546 9.517 738.826
2015 64.990 389.759 110.291 52.099 31.904 28.607 15.659 10.361 3.950 4.231 11.015 722.866
2016 64.142 378.363 103.585 49.795 31.326 27.805 15.478 9.983 3.204 3.741 12.778 700.200
2017 56.766 392.118 111.040 53.057 30.066 28.630 14.651 9.804 3.388 3.431 10.100 713.051
Var. 2006-
-16,33 68,83 105,82 132,28 50,24 66,56 77,74 54,95 9,22 3,06 333,10 63,01
2017 (%)
Fonte: Ministério da Economia/RAIS (2006-2017).

No período considerado, na tabela 2 ainda, observa-se um crescimento significativo em


outras faixas de remuneração média (SM) como: 2,01 a 3,00 salários mínimos e 3,01 a 4,00
salários mínimos, que tiveram crescimento de 105,82% e 132,28%, respectivamente.
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4 EMPREGOS NO SETOR CULTURAL MARANHENSE: RESULTADOS


OBSERVADOS

Estudos de monitoramento do setor cultural no mundo como um todo, enfrenta


dificuldades, devido a diversas razões, mas as características complexas (materialidade e
imaterialidade) e heterogêneas do setor e a ausência de vontade política, são apontadas como os
principais empecilhos para o avanço de estudos, implementação de políticas públicas e construção
de indicadores sólidos e específicos do setor. A respeito disso, Escande (2003, p. 149), relata que:

As razões que tornam difícil a produção de indicadores culturais para um melhor


conhecimento do emprego cultural são familiares: a pequenez do setor da cultura e o
risco, no caso de sondagem, de que as amostras não sejam representativas; a extrema
atomização do setor em unidades econômicas muito pequenas e a frequente pluralidade
de estatutos de um mesmo indivíduo (assalariado e independente).

Complementando o tema Tolila (2007, p. 120) coloca que “uma exploração do emprego
cultural só pode ser feita com base em pesquisas sobre o emprego geral”. Nesse contexto, cabe
lembrar que a RAIS é uma pesquisa que abrange o emprego formal na sua totalidade, diferente do
Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), que pesquisa apenas trabalhadores
regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

4.1 Estabelecimentos Formais

Ao analisar a evolução do número de estabelecimentos formais do setor cultural no


Maranhão no período de 2006 a 2017, com base na tabela 3, percebe-se que houve crescimento
positivo, de 50,36%, embora a participação do setor no total tenha diminuído de 5,42% em 2006
para 4,53% em 2017.
Dentre as 74 classes de atividade econômica, a que mais contribuiu para o total de 2.096
estabelecimentos em 2017, foi a classe Comércio Varejista de Livros, Jornais, Revistas e
Papelaria, com 431 estabelecimentos.
É possível observar ainda, na tabela 3, uma queda no número de estabelecimentos do setor
nos últimos dois anos da pesquisa. Em relação a isso, cabe relembrar que o Brasil passou por um
período recente (2015-2017) de instabilidade política e econômica, que afetou todos os
seguimentos da sociedade, atingindo em cheio o mercado de trabalho brasileiro, o que resultou no
fechamento de inúmeros estabelecimentos formais em todo o país e no Maranhão não foi diferente.

Tabela 3 – Número de estabelecimentos formais do setor cultural – Maranhão –


2006-2017
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Estabelecimentos Participação Estabelecimentos Setor


Ano
Setor Cultural no Total (%) Cultural por 100 mil hab.
2006 1.394 5,42 22,54
2007 1.497 5,47 24,46
2008 1.554 5,31 24,65
2009 1.651 5,27 25,93
2010 1.762 5,11 26,80
2011 1.913 5,10 28,79
2012 1.968 4,98 29,31
2013 2.071 4,95 30,48
2014 2.103 4,74 30,70
2015 2.129 4,66 30,84
2016 2.126 4,63 30,57
2017 2.096 4,53 29,94
Var. 2006-
50,36 -16,36 32,84
2017 (%)
Fonte: Ministério da Economia/RAIS (2006-2017); IBGE.
Nota: Para os anos de 2006, 2008-2009, 2011-2017, usou-se a população estimada. Para o ano de
2007, Contagem da população. Para o ano de 2010, Censo Demográfico – 2010.
Outra informação pertinente a se destacar, refere-se ao número de estabelecimentos por
100 mil habitantes que cresceu 32,84% no período, o que representa 22,54 estabelecimentos em
2006 e 29,94 em 2017.

4.2 Empregos Formais

Em 2010, o então presidente Lula sancionou a Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010,


que instituiu o Plano Nacional da Cultura (PNC), que estabeleceu 53 metas. A meta 11 propõe
Aumento em 95% no emprego formal do setor cultural, ou seja, o “objetivo é que até 2020 mais
de 1,3 milhão de trabalhadores do setor cultural tenham conquistado empregos formais”.
(BRASIL, 2013, p. 47).
No entanto, ao monitorar os indicadores da meta com base nos dados da RAIS, no período
de 2010 a 2017, observa-se que o Maranhão (37,62%) teve um crescimento maior que o Brasil (-
1,69%) e o Nordeste (7,54%), no que diz respeito a alcançar o percentual recomendado pela meta.
Ao ampliar a série da pesquisa, a tabela 4, mostra a evolução do número de empregos
formais durante o período de 2006 a 2017 no Maranhão, e novamente os dados da RAIS indicam
que o Maranhão (86,67%) apresentou percentuais melhores que o Brasil (18,09%) e o Nordeste
(36,78%), no que se refere a criação de empregos no setor cultural.

Tabela 4 – Número de empregos formais no setor cultural – Maranhão – 2006-


2017
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Empregos Formais Participação no Média de Empregos


Ano
Setor Cultural Total (%) por Estabelecimento
2006 7.584 1,73 5
2007 7.766 1,61 5
2008 8.514 1,58 5
2009 9.038 1,61 5
2010 10.287 1,62 6
2011 11.530 1,71 6
2012 12.660 1,82 6
2013 13.292 1,84 6
2014 12.990 1,76 6
2015 12.409 1,72 6
2016 15.397 2,20 7
2017 14.157 1,99 7
Var. 2006-
86,67 14,52 24,15
2017 (%)
Fonte: Ministério da Economia/RAIS (2006-2017).
Nota: Os valores da média de empregos por estabelecimento sofreram arredondamento, enquanto
que a variação foi calculada com valores sem arredondamento.

A classe de atividade econômica que mais se destacou em 2006 foi Comércio varejista de
livros, jornais, revistas e papelaria, com 1.394 empregos formais, enquanto que no ano de 2017,
a classe que mais contribuiu para o total, foi Tratamento de dados, provedores de serviços de
aplicação e serviços de hospedagem na internet, com 2.333 empregos formais.
No que tange, a distribuição do número de empregos formais no setor cultural, por sexo,
os dados da RAIS (2006-2017) apontam que em 2006 a participação das mulheres era de 42,56%
e dos homens 57,44% no total. No último ano da série, 2017, as mulheres possuíam 42,69% ante
57,31% dos homens. Demostrando que, a desigualdade de gênero em quantidade de empregos
formais no setor cultural maranhense é razoavelmente acentuada.
No que concerne a escolaridade, conforme os dados da RAIS (2006-2017), os empregados
formais do setor cultural maranhense possuem em sua grande maioria (69,28% e 71,71% em 2006
e 2017, respectivamente) apenas o ensino médio completo, realidade mantida em todos os anos
do período de 2006 a 2017, atestando assim, o uso de mão de obra pouco qualificada no setor.
Quanto a participação dos empregos do setor cultural em relação ao total do estoque,
passou de 1,73% em 2006 para 1,99% em 2017. Nota-se ainda, que a média de empregos por
estabelecimento subiu de 5 para 7 em 2006 e 2017, respectivamente, expressando assim, um
progresso tímido em relação a esses indicadores.
Complementando o tema, a tabela 5 mostra a classificação dos empregos formais no setor
por faixa de remuneração média em salários mínimos. Ao analisar essa tabela observa-se que, no
período de 2006 a 2017 a faixa de remuneração média que possui maior volume no número de
empregos formais no setor cultural é a de 1,01 a 2,00 salários mínimos e a faixa que detém menor
número de empregos é a de Mais de 20,00 salários mínimos. Ademais, enquanto a faixa 1,01 a
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2,00 salários mínimos, teve um crescimento de 113,65%, a faixa Mais de 20,00 salários mínimos,
diminuiu 88,89%, no período considerado.

Tabela 5 – Número de empregos formais no setor cultural, por faixa de remuneração média (SM)
– Maranhão – 2006-2017
Até 1,01 a 2,01 a 3,01 a 4,01 a 5,01 a 7,01 a 10,01 a 15,01 a Mais de
Ano {ñ class} Total
1,00 2,00 3,00 4,00 5,00 7,00 10,00 15,00 20,00 20,00
2006 937 4.617 970 343 213 171 149 78 21 18 67 7.584
2007 1.020 4.862 916 335 179 170 144 72 25 13 30 7.766
2008 1.017 5.428 963 388 210 192 163 78 20 20 35 8.514
2009 1.018 5.875 959 419 220 226 150 66 27 13 65 9.038
2010 1.191 6.664 1.170 497 225 244 154 56 27 8 51 10.287
2011 1.236 7.176 1.540 591 292 315 188 78 27 13 74 11.530
2012 1.246 7.671 2.022 657 352 343 192 73 25 11 68 12.660
2013 1.291 8.443 1.778 689 363 348 180 80 25 11 84 13.292
2014 1.114 8.284 1.870 665 326 364 169 64 24 6 104 12.990
2015 1.255 7.896 1.700 579 295 326 140 65 26 4 123 12.409
2016 1.250 10.723 1.892 594 277 271 127 72 12 7 172 15.397
2017 1.245 9.864 1.744 523 208 214 100 63 10 2 184 14.157
Var. 2006-
32,87 113,65 79,79 52,48 -2,35 25,15 -32,89 -19,23 -52,38 -88,89 174,63 86,67
2017 (%)
Fonte: Ministério da Economia/RAIS (2006-2017).

Através da tabela 5, é possível ver que a remuneração média dos trabalhadores formais do
setor cultural maranhense se concentra nas faixas mais inferiores (as três primeiras), representando
juntas em 2017, 90,79% do total de empregos formais. Cabe lembrar que, segundo os dados da
RAIS (2006-2017) o nível de escolaridade da maioria dos empregados do setor é baixo,
estimulando assim o pagamento de remunerações aquém da ideal.

4.3 Regressões e correlações

No intuito de entender o comportamento do indicador empregos formais do setor cultural


no Maranhão (tabela 4) e a sua distribuição nas faixas 1,01 a 2,00 (SM) e Mais de 20,00 (SM)
(tabela 5), optamos por verificar o grau de dependência e o grau de relacionamento com outras
variáveis, assim, realizou-se uma análise de regressão e correlação, que Stevenson, (1981, p. 341),
define da seguinte forma:
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[...] a análise da correlação e regressão compreende a análise de dados amostrais para


saber se e como duas ou mais variáveis estão relacionadas uma com a outra numa
população. [...]. A análise de correlação dá um número que resume o grau de
relacionamento entre duas variáveis; a análise de regressão tem como resultado uma
equação matemática que descreve o relacionamento. [...].

Assim, os indicadores do setor cultural maranhense número de empregos formais é dito


variável dependente (Y) e os estabelecimentos formais, dito variável independente (X). O gráfico
1, mostra a regressão entre essas duas variáveis (Y e X).
Gráfico 1 – Regressão entre os empregos e os estabelecimentos – Maranhão –
2006-2017

Fonte: Ministério da Economia/RAIS (2006-2017).

O gráfico 1, exibe a equação Y = 9,22x - 5806,19, que convertendo para a forma da equação
(2), temos Ŷ = -5806,19 + 9,22x. O valor a = -5806,19, representa o valor médio estimado do
número de empregos formais (Y), quando o número teórico de estabelecimento formais (X) for
igual a 0, enquanto que b = 9,22, significa o valor médio estimado de crescimento de Y a cada
unidade de X.
Outra informação indicada pelo gráfico 1, é o coeficiente de determinação (r²) de 0,9198,
que significa que em 91,98% a variação do indicador empregos (Y) é explicada pela variação do
indicador estabelecimentos (X), ou melhor, o comportamento da variável Y depende em 91,98%
da variável X.
No que se refere a análise de correlação, existe uma correlação positiva muito forte entre
os empregos formais do setor cultural (Y) e os estabelecimentos formais do setor (X), confirmada
pelo valor do coeficiente de correlação de Pearson (r) que é de +0,96. Em suma, o estoque de
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empregos formais no setor cultural é fortemente correlacionado com o número de


estabelecimentos do mesmo setor.
No que concerne a análise de regressão e correlação entre duas faixas de remuneração
média e o tempo, é devido ao comportamento de destaque destas duas faixas no período analisado
expresso na tabela 3. A faixa de 1,01 a 2,00 salários mínimos possui a maior concentração de
empregos ante as demais e à medida que o tempo passa ela aumenta o volume de empregos
formais. A faixa de Mais de 20,00 salários mínimos apresenta o menor volume de empregos e
diminui a quantidade de empregos no decorrer do período em estudo.
Optou-se, portanto, por verificar o comportamento dessas duas faixas ao longo do tempo,
embora se saiba da influência da crise econômica e outras variáveis nesse comportamento.
Assim o gráfico 2, mostra a regressão entre a variável Empregos na faixa de 1,01 a 2,00
salários mínimos (Y) e a variável Tempo (X).

Gráfico 2 – Regressão entre empregos na faixa de 1,01 a 2,00 (SM) e o tempo –


Maranhão – 2006-2017

Fonte: Ministério da Economia/RAIS (2006-2017).

O gráfico 2 exibe ainda, a equação Y = 509,16x + 3982,39, que transformando para a forma
da equação (2), temos Ŷ = 3982,39 + 509,16x. O valor a = 3982,39, significa o valor médio
estimado da variável Y, quando teoricamente a variável X = 0, ao passo que b = 509,16, representa
o valor médio estimado de crescimento da variável Empregos na faixa 1,01 a 2,00 (SM) (Y) a
cada unidade da variável Tempo (X).
Outro aspecto importante a destacar é o coeficiente de determinação (r²) de 0,9232, ou
seja, a variável Tempo (X), explica 92,32% a variação da variável Empregos na faixa de 1,01 a
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2,00 salários mínimos (Y). Coexistente à regressão, a análise de correlação, obteve o coeficiente
de correlação de Pearson (r) de +0,96, apontando assim, que há uma correlação positiva muito
forte entre as variáveis X e Y.
Quanto à regressão e correlação entre a variável Empregos na faixa de Mais de 20,00
salários mínimos (Y) e a variável Tempo (X), o gráfico 3, exibe a regressão entre essas duas
variáveis.

Gráfico 3 – Regressão entre empregos na faixa Mais de 20,00 (SM) e o tempo –


Maranhão – 2006-2017

Fonte: Ministério da Economia/RAIS (2006-2017).

No gráfico 3, é possível observar a equação Y = -1,29x + 18,91, que modificando para a


forma da equação (2), obtemos Ŷ = 18,91 - 1,29x. O valor a = 18,91, denota o valor médio
estimado da variável Empregos na faixa Mais de 20,00 (SM) (Y), quando o valor teórico da
variável X = 0, e a medida b = -1,29, representa o valor médio estimado da variação de Y a cada
unidade da variável (X).
O coeficiente de determinação (r²) é de 0,7503, o que significa que a variável X, explica
75,03% da variação dos valores da variável Y, isto é, os valores da variável faixa de remuneração
média Empregos na faixa Mais de 20,00 salários mínimos dependem em 75,03%, da variável
Tempo. Neste caso, uma parte considerável de 24,97% de variação da variável em estudo não
depende do tempo e sim de outros fatores. Através do coeficiente de correlação de Pearson (r) de
-0,87, é possível observar que há uma correlação negativa razoavelmente forte entre as variáveis
em questão, isto é, na medida em que o tempo passa (aumenta X), o valor da variável Empregos
na faixa de Mais de 20 salários mínimos (Y) diminui.
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Importante rememorar que uma das principais razões apontadas anteriormente para esses
pontos de concentração, na distribuição dos empregos, por faixa de remuneração média, deve-se
a baixa escolaridade da população empregada no setor cultural maranhense, demostrando-se
assim, que há uma notável necessidade de fomento e investimento do poder público, privado e
individual na qualificação do trabalhador do setor cultural para que o mesmo possa usufruir de
melhores salários.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste trabalho evidenciou-se dados a respeito do mercado de trabalho no


Maranhão, notadamente em relação ao número de empregos formais do setor cultural, bem como
outros indicadores correlatos a temática. Assim, ao analisar a temática exposta ao logo deste
trabalho, percebe-se que a relação entre a economia e a cultura é muito estreita, mas carece de
avanços e fortalecimentos, sendo necessário ultrapassar as barreiras impostas pela complexidade
e heterogeneidade da cultura, para que se construa conhecimentos e seja reconhecida
definitivamente a grande relevância da cultura na produção de valores simbólicos e riquezas.
Nota-se ainda, que o comportamento ascendente do estoque de empregos formais no
Maranhão sofreu impacto negativo, assim como todos os estados brasileiros durante o período de
recessão econômica (2015-2017) que o Brasil passou recentemente, refletindo sobremaneira no
número de estabelecimentos e no volume de empregos formais nos últimos anos da série analisada
neste trabalho (2006-2017). Apesar disso o Maranhão conseguiu apresentar uma variação de
79,78% no período de 2006 a 2017 no número de estabelecimentos formais e um crescimento de
63,01% no total de empregos formais o mesmo período.
Em relação a distribuição de empregos por sexo, os homens se mantiveram com o maior
percentual de participação no total, havendo apenas uma variação de 1,69% para as mulheres e -
1,69% para os homens no período analisado na pesquisa (2006-2017). A escolaridade dos
trabalhadores formais se manteve concentrada no ensino médio completo em todos os anos da
série, refletindo no comportamento dos empregos distribuídos por faixas de remuneração média
(SM), que concentrou boa parte do estoque de empregos nas três primeiras faixas, isto é, nas faixas
mais inferiores. Quanto a isso, a faixa de remuneração média de 1,01 a 2,00 salários mínimos
abarcou a maior parcela dos vínculos empregatícios em todos os anos da série analisada, chegando
a 55% do total em 2017.
No que tange ao setor cultural maranhense, apesar da crise econômica enfrentada pelo país,
o número de estabelecimentos formais no setor se mostrou em crescimento, conseguindo
apresentar uma variação de 50,36% no período da pesquisa. Acompanhando esse cenário de
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crescimento, o número de estabelecimentos para cada 100 mil habitantes passou de 22,54
estabelecimentos em 2006 para 29,94 em 2017.
Ainda neste quadro de crescimento no setor cultural, o volume de empregos formais exibiu
um crescimento de 86,67% no período considerado na pesquisa, desempenho melhor que o
apresentado pelo Brasil (18,09%) e o Nordeste (36,78%). Destaca-se que a classe de atividade
econômica que mais contribuiu para o total em 2006, foi Comércio varejista de livros, jornais,
revistas e papelaria e em 2017 foi Tratamento de dados, provedores de serviços de aplicação e
serviços de hospedagem na internet, apontando assim uma mudança de comportamento no setor
cultural maranhense.
No que concerne aos empregos formais do setor, por sexo, de modo igual ao total geral, os
homens se mantiveram com percentual maior de participação no total do setor cultural, o que
corresponde a 57,31% para os homens ante 42,69% para as mulheres em 2017, demostrando
assim, uma variação de 0,13% para as mulheres e -0,13% para os homens no período de 2006 a
2017. O nível de escolaridade dos empregados no setor não mudou, se mantendo acumulado no
ensino médio completo em todos os anos da série.
Quanto a classificação dos empregos formais do setor por faixa de remuneração média em
salários mínimos, assim como no total geral, grande parte do volume de empregos ficou
aglomerado nas faixas mais inferiores (as três primeiras), exibindo juntas 90,79% do total em
2017. Sendo que dentre as faixas mais inferiores a que mais se sobressaiu foi a de 1,01 a 2,00
salários mínimos, apresentando um crescimento de 113,65%. Dentre as faixas de remuneração
superiores a que mais chamou atenção foi a faixa Mais de 20,00 salários mínimos, pois apresentou
a menor variação (-88,89%).
Ao se levar em consideração os graus de dependência e também graus de relacionamento,
ou seja, os coeficientes de determinação (r²) e os coeficientes de correlação de Pearson (r),
respectivamente, obtidos através das regressões e correlações realizadas na seção 4 deste trabalho,
percebe-se que as variáveis estão estritamente relacionadas. Assim, mediante aos resultados
podemos afirmar que o indicador número de empregos formais do setor cultural (Y) é explicado
em 91,98% pelo indicador estabelecimentos formais (X) e há um relacionamento forte entre as
duas variáveis (r = +0,96).
As regressões e correlações realizadas entre duas das faixas de remuneração média e
tempo, apresentaram ambas um relacionamento forte, sendo que a faixa de 1,01 a 2,00 (SM) e o
tempo apresentou um o coeficiente de correlação (r) de +0,96 e a faixa de Mais de 20,00 (SM) e
tempo exibiu um r = -0,87. Apontamos ainda, a crise econômica recente e a escolaridade dos
trabalhadores formais, como possíveis motivos para a concentração da remuneração média dos
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trabalhadores maranhenses nas faixas inferiores (isto tanto no estoque geral, quanto no setor
cultural, que é mais acentuado).
Por fim, espera-se que as informações disponibilizadas neste trabalho possam gerar
estudos, debates, discussões, dentre outras ações que proporcionem o desenvolvimento
econômico, social e cultural do nosso Estado do Maranhão, bem como implementação de políticas
públicas mais efetivas acerca do trabalho, emprego e renda no setor cultural.

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ENTRE DESIGN E ARTE: O OBJETO RESSIGNIFICADO

BETWEEN DESIGN AND ART: THE RESSIGNIFIED OBJECT


Felipe Pinheiro dos Reis115
Bacharel em Design - UFMA
Jocy Meneses dos Santos Junior116
Especialista em Design Gráfico - California Institute of the Arts, CALARTS
Francisco de Assis Sousa Lobo117
Mestre em Design e Biônica - Instituto Europeo di Design e
Doutorando em Design - UNESP
Professor do Departamento de Desenho e Tecnologia da
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: A discussão sobre a questão da produção e do consumo de objetos toca em um ponto


nevrálgico da delicada relação entre arte e design. Outrora, a solução proposta para o impasse
entre essas duas áreas residia no fundamento da “utilidade”: se os objetos fossem úteis, sua criação
competia aos profissionais de design e, se não o fossem, poderia ser a eles conferido o selo de arte,
considerando que os objetivos e caminhos específicos dessa área não buscavam culminar na
idealização, fabricação e comercialização de objetos para o “uso” (no sentido estritamente
funcionalista do termo). No entanto, na contemporaneidade, os objetos supostamente “banais” do
cotidiano assumem significados para aqueles que os consomem que estão para além de suas
funções puramente práticas, e a criação destes chega por vezes a desprezar esse aspecto por
completo. Os novos significados construídos a partir de produtos projetados através da
manipulação de suas características estéticas e simbólicas faz com que esses objetos transitem
assertivamente para além da fronteira que alguns tentaram erigir e consolidar para isolar em seus
respectivos lugares os campos da arte e do design.
Palavras-chave: Função Prática, Função Estética, Função Simbólica, Design Emocional,
Psicologia do Consumo.

Abstract: The discussion on the issue of production and consumption of objects touches on a
critical point in the delicate relationship between art and design. In the past, the proposed solution
for the impasse between these two areas layed on the basis of “utility”: if the objects were useful,

115
Bacharel em Design pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Discente no curso de MBA em Direção de
Arte para Propaganda, TV e Vídeo da Universidade Estácio de Sá. E-mail: spookakawaii@gmail.com.
116
Especialista em Design Gráfico pelo California Institute of the Arts (CALARTS). Discente nos cursos de
Especialização em Arte, Mídia e Educação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão
(IFMA), Campus São Luís: Centro Histórico e de MBA em Direção de Arte para Propaganda, TV e Vídeo da
Universidade Estácio de Sá. E-mail: jocy.meneses@gmail.com.
117
Mestre em Design e Biônica pelo Istituto Europeo Di Design. Doutorando em Design pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professor do Departamento de Desenho e Tecnologia da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: franciscodeassissousalobo@gmail.com.
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their creation was the responsibility of the design professionals and, if they were not, they could
be awarded the art seal, considering that the specific objectives and paths of this area did not seek
to culminate in the idealization, manufacture and commercialization of objects for “use” (in the
strictly functionalist sense of the term). However, in the contemporary world, the supposedly
“banal” objects of everyday life take on meanings for those who consume them that are beyond
their purely practical functions, and their creation sometimes overlooks this aspect altogether. The
new meanings constructed from products designed through the manipulation of their aesthetic and
symbolic characteristics make these objects assertively move beyond the frontier that some tried
to erect and consolidate to isolate in their respective places the fields of art and design.
Keywords: Practical Function, Aesthetic Function, Symbolic Function, Emotional Design,
Psychology of Consumption.

1 Introdução

Abraham Moles (1981, p. 8) caracteriza o objeto como um “mediador universal, revelador


da Sociedade na progressiva desnaturalização desta, construtor do ambiente cotidiano, sistema de
comunicação social, carregado de valores como nunca no passado, apesar do anonimato da
fabricação industrial”. O autor expõe que, à medida em que as relações interpessoais vêm
decrescendo, a aquisição de objetos não apenas cresce numericamente, mas esses objetos também
assumem novos significados para seus consumidores. É possível que certos produtos sirvam até
mesmo como remédios fugazes, doses de consolo para as frustrações e tantos outros dissabores
experimentados nas vidas atomizadas das sociedades de consumo118. Logo, não podemos
considerar os objetos construídos e experimentados pelo homem, que povoam nossas paisagens
urbanas, nossos espaços residenciais e nosso imaginário puramente como itens materiais. É
necessário investigar suas características imateriais, os significados que assumem de maneira
extrínseca a partir de suas características intrínsecas. Nesse panorama, assume papel proeminente
a reflexão sobre o design:
Os objetos são nossa maneira de medir a passagem de nossas vidas. São o que usamos
para nos definir, para sinalizar quem somos, e o que não somos. [...] o design passou a
ser a linguagem com que se molda esses objetos e confecciona as mensagens que eles
carregam. O papel dos designers mais sofisticados, hoje, tanto é ser contadores de
histórias, fazer um design que fale de uma forma que transmita essas mensagens, quanto
resolver problemas formais e funcionais (SUDJIC, 2010, p. 21).

Algumas das características marcantes da contemporaneidade são a pluralidade da oferta


de bens no mercado e a individualização do consumo. É nesse cenário que se desenvolve a

118
Impossível não lembrar da leitura que Bauman (2008, p. 60, grifo do autor) faz dessa situação: “O valor mais
característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor supremo, em relação ao qual todos os outros estão
instados a justificar seu mérito, é uma vida feliz. […] Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua”.
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atividade de design atualmente: os consumidores têm objetos diversos à sua disposição, muitos
deles com qualidades práticas extremamente similares, e a escolha agora se pauta largamente pela
associação que eles mesmos constroem entre determinado produto e suas personalidades, gostos
e interesses. Neste cenário de pluralidade de opções,
A única maneira de competir tem sido adicionar novos “significados” aos produtos,
fazendo a diferença e trazendo algumas razões para convencer os consumidores a
comprar determinado produto no lugar de outro; além das devidas funções e um preço
aceitável, os produtos começaram a apresentar formas e estilos capazes de comunicar
emoções aos usuários (MAIOCCHI; PILLAN, 2013, p. 26).

Concomitantemente, ocorre o que Lipovetsky e Serroy (2015) denominam “estetização”


ou “artealização” do mundo. Uma das características marcantes desse processo é a “relativa
desdiferenciação das esferas econômicas e estéticas [...]: doravante, nas economias da
hipermodernidade, essas esferas se hibridizam, se misturam, se curto-circuitam, se interpenetram”
(LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 14, grifo do autor). Nesse momento, as ultrapassadas
concepções que posicionavam de modo diametralmente oposto a função — antes atribuída à tutela
do design — e a estética — sob a custódia praticamente exclusiva da arte — não mais regem as
dinâmicas de produção e consumo de objetos. Assistimos ao surgimento de uma “hiperarte”, que
em seu âmago está aliada ao design, uma vez que
funciona como estratégia de marketing, valorização distrativa, jogos de sedução sempre
renovados para captar os desejos do neoconsumidor hedonista e aumentar o faturamento
das marcas. Eis-nos no estágio estratégico e mercantil da estetização do mundo. Depois
da arte-para-os-deuses, da arte-para-os-príncipes e da arte-pela-arte, triunfa agora a arte-
para-o-mercado (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 28).

É evidente que esse processo de “estetização” do consumo, que influencia diretamente a


configuração dos produtos, tem implicações que ultrapassam a esfera do mercado, uma vez que
“o consumo com componente estético adquiriu uma relevância tal que constitui um vetor
importante para a afirmação identitária dos indivíduos” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 31).
O ter para ser se torna uma característica marcante neste momento, já que os objetos hoje são
portadores de mensagens específicas sobre seus possuidores e ajudam a construir tanto a imagem
que eles enxergam de si mesmos quanto aquela projetada por eles para ser percebida pelos outros.
Com base em produtos cada vez mais impregnados de mensagens, as respostas emocionais que os
objetos despertam nos indivíduos se tornam fator decisivo para as escolhas que os consumidores
hedonistas executam na atualidade. Queiroz, Cardoso e Gontijo (2009, n.p.) apontam que, “em
muitos casos, a emoção suplanta os aspectos racionais na escolha dos produtos”. Nesse espírito,
Denis (1998, p. 17) explica que “a natureza essencial do trabalho de design não reside nem nos
seus processos e nem nos seus produtos, mas [...] na maneira em que os processos do design
incidem sobre os seus produtos, investindo-os de significados alheios à sua natureza intrínseca”.
Quando conjugada com o notável grau de “artealização” do consumo, a importância
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patente assumida pelo significado dos produtos demonstra que objetos presumidamente banais
hoje simbolizam mais que meras ferramentas que facilitam a execução de tarefas do cotidiano, e
em alguns casos suas funções de uso originais podem ser até mesmo minimizadas ou anuladas
para que eles operem de modo estritamente representativo. Refletir sobre a ressignificação dos
objetos expõe o potencial que a relação entre a arte e o design assume na atualidade. Surgem
objetos migrantes: ora configurados pelas mãos dos designers, acabam por assumir o “status” de
obras de arte; ora nascidos das parcerias entre artistas e marcas, têm como destino as prateleiras
das lojas, não as galerias.

2 A relação homem-objeto

Se aceitarmos que estamos todos rodeados por objetos inanimados que apelam aos nossos
sentidos e com os quais por vezes estabelecemos fortes vínculos emocionais — que passam por
todo o espectro de sentimentos, transitando entre o amor e ódio —, se faz imperativo recorrer aos
encarregados pela concepção destes objetos em busca de respostas sobre o poder que eles
demonstram ter. O estudo dos objetos produzidos na atualidade necessariamente demanda, então,
um olhar apurado sobre o modo de pensar e atuar do designer, uma vez que “o design representa
na sociedade industrial um sítio privilegiado para a geração de artefatos” (DENIS, 1998, p. 22).
Conforme explica Denis (1998, p. 22),
o design se configura como o foro principal para o planejamento e o desenvolvimento da
maioria quase absoluta dos objetos que constituem a paisagem artificial (no sentido de
“não natural”) do mundo moderno. [...] O design constitui, grosso modo, a fonte mais
importante da maior parte da cultura material de uma sociedade que, mais do que
qualquer outra sociedade que já existiu, pauta a sua identidade cultural na abundância
material que tem conseguido gerar.

É imprescindível compreender que “o produto de design é [...] portador de


representações, participante de um processo de comunicação” (NIEMEYER, 2003, p. 14).
Considerando o exposto, a investigação dos vínculos estabelecidos entre design enquanto projeto,
objeto enquanto item material e significado enquanto construção mental é de suma importância
para a tentativa de compreender o apego que os indivíduos enquanto consumidores estabelecem
com os produtos que consomem (ou aspiram vir a consumir).
O produto carrega expressões das instâncias de elaboração e de produção: cultura e
tecnologia. Quando ele entra em circulação, além de portar essas expressões, passa a ser
também um elemento de comunicação — não só portando informações objetivas mas
passando a ser suporte também de mensagens do usuário para si próprio e para outros.
Ou seja, ele “diz” àquele que o usa, ao que o contempla — e também por meio dele os
indivíduos se articulam. É o caso que se fala: “Diga-me o que usas que eu te direi quem
és”. Assim, o produto, além das funções prática, estética e de uso, tem a função
significativa (NIEMEYER, 2003, p. 14).

Conforme explica Sudjic (2010, p. 08), as “coisas” do mundo material produzidas segundo
Página 566 de 2230

a dinâmica das sociedades capitalistas são “calculadamente planejadas para obter uma resposta
emocional” daqueles que com elas interagem. Desse modo, o designer, responsável técnico pela
configuração formal desses objetos, atua como um “narrador” (SUDJIC, 2010, p. 34), ocupando-
se de tentar incutir nos produtos uma pletora de mensagens delineadas com perspicácia para que
engajem os consumidores que constituem o público de interesse previamente estabelecido,
culminando na aquisição. O autor compreende o design como uma linguagem importante para
desvendar a relação entre os indivíduos e os objetos:
O design, em todas as suas manifestações, é o DNA de uma sociedade industrial — ou
pós-industrial, se é isso o que temos hoje. É o código que precisamos explorar se
quisermos ter uma chance de entender a natureza do mundo moderno. [...] É um tipo de
linguagem, e é reflexo de valores emocionais e culturais. O que torna essa visão do design
realmente atraente é a noção de que há algo a entender sobre os objetos além das questões
óbvias de função e finalidade. Isso sugere que há tanto a ganhar explorando-se o
significado dos objetos quanto considerando o que fazem e o visual que têm (SUDJIC,
2010, p. 49).

Para Löbach (2000, p. 54), “mediante o emprego do conceito de função se faz mais
compreensível o mundo dos objetos para o homem”. Explicando em que consiste esse conceito, o
autor assevera que “os aspectos essenciais das relações dos usuários com os produtos industriais
são as funções dos produtos, as quais se tornam perceptíveis no processo de uso e possibilitam a
satisfação de certas necessidades” (LÖBACH, 2000, p. 54). Ele delineia e define três distintas
funções dos produtos, que segundo sua abordagem auxiliam a compreensão da relação
estabelecida entre portadores e objetos: a função prática, que trata dos aspectos fisiológicos do
uso; a função estética, aspecto psicológico da percepção sensorial durante o uso; e a função
simbólica, determinada por todos os aspectos espirituais, psíquicos e sociais do uso (LÖBACH,
2000). Dentre essas funções, são de claro interesse para a investigação do objeto ressignificado as
duas últimas. Löbach (2000, p. 66) assevera que “a função estética e a função simbólica têm
estreita relação e interdependência entre si”. Disto é possível concluir que a configuração formal
dos objetos contribui diretamente para os significados que eles têm o potencial119 de assumir, uma
vez que é através da percepção sensorial que o processo que atribui ideias e associações a
determinado objeto é despertado.

119
Tratamos da significação dos objetos usando o termo “potencial” por reconhecer que, apesar dos significados
planejados pelo designer para os produtos que projeta, “o artefato é fixo como significante mas o seu significado é
necessariamente fluido” (DENIS, 1998, p. 32). Desse modo, o significado dos objetos não é fixado em definitivo nos
mesmos por aqueles que os projetam, mas sim construído, transformado e destruído mentalmente pelas diversas
instâncias humanas que com eles interagem, a partir das experiências que com eles estabelecem. Conforme explica
Denis (1998, p. 33), “os artefatos possuem [...] diversos níveis de significados: alguns universais e inerentes [...],
outros extremamente pessoais e volúveis [...]. De onde advêm esses significados? São imputados pelos fabricantes,
pelos distribuidores, pelos vendedores, pelos consumidores, pelos usuários ou, normalmente, pela conjunção de todos
estes e outros mais, pois os objetos só podem adquirir significados a partir da intencionalidade humana. [...] De que
maneira imputam-se-lhes esses significados? Existem apenas dois mecanismos básicos para investir o artefato de
significados: a atribuição e a apropriação, os quais correspondem, em linhas gerais, aos processos paralelos de
produção/distribuição e consumo/uso”.
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Norman (2008, p. 87) explica que “as respostas humanas aos objetos do dia-a-dia são
complexas, determinadas por uma variedade de fatores”. Na tentativa de facilitar a compreensão
desse processo, o autor propõe outra classificação triádica, em que “cada um dos três níveis de
design — o visceral, o comportamental e o reflexivo — desempenha seu papel ao dar forma à
nossa experiência” (NORMAN, 2008, p. 87, grifo nosso)120. Nos ocuparemos mais detidamente
neste último nível, uma vez que ele resgata a discussão sobre o significado dos objetos. Conforme
propõe o autor sobre o nível reflexivo do sistema cognitivo e emocional,
Tudo nele diz respeito à mensagem, tudo diz respeito à cultura, tudo diz respeito ao
significado de um produto ou seu uso. Por um lado, diz respeito ao significado das coisas,
às lembranças pessoais que alguma coisa evoca. Por outro, diz respeito à auto-imagem e
às mensagens que um produto envia às outras pessoas (NORMAN, 2008, p. 107).

Do estudo das funções dos produtos e dos níveis de design, podemos concluir que, dentre
os objetos de consumo, há aqueles que exercem a função de ferramentas e acessórios de utilidade
indubitável. Além destes, existem outros em que os valores estético e simbólico são prioridades.
Estes últimos são frequentemente desencadeadores de um nível de engajamento emocional do
proprietário superior ao daqueles cuja qualidade preponderante é meramente utilitária. Tais
produtos têm o poder de proporcionar sensações como alegria, prazer e nostalgia, dentre outras.
O que importa é o que cada um deles representa para o seu respectivo dono: a rede de significados
que se encontra fora do objeto, mas na qual ele se encontra emaranhado e que justifica, para aquele
que o possui, o estabelecimento de um vínculo emocional com algo banal e inanimado.
Não mais consumimos muitos produtos que apresentem, como outrora, uma única forma
de interpretação e utilização. Estamos na hipermodernidade, na era do hiperconsumo, em que
praticamente tudo é hiper121 (LIPOVETSKY, 2004). É possível apreender que a atribuição da
superlatividade ao consumo não se justifica somente pelo fato de que a sociedade se encontra
engajada em um estágio alto (e crescente) de consumismo, mas também pelo modo como esse
consumo se estabelece: o consumidor espera e exige cada vez mais qualidades e significados das
mercadorias. Logo, este momento hiper significa, antes de mais nada, o anseio pelo grandioso,
que vai além da mera satisfação de necessidades e alcança o encantamento do
comprador/portador/usuário. Essa sedução se dá muitas vezes tanto pela estética quanto pelo
potencial que determinado bem de consumo tem de adquirir significação afetiva junto ao seu
portador, ou seja, por um apelo hedonista-sensível-emocional dos objetos.

120
É possível estabelecer certa relação entre a classificação das funções dos produtos propostas por Löbach (2000) e
os níveis de design estabelecidos por Norman (2008): enquanto o nível visceral (aparência) trataria da função estética,
o nível comportamental (prazer e efetividade do uso) se ocuparia da função prática e o nível reflexivo (auto-imagem,
satisfação pessoal, lembranças), da função simbólica.
121
Segundo Lipovetsky (2004, p. 54, grifo do autor), na hipermodernidade “as esferas mais diversas são o locus de
uma escalada aos extremos, entregues a uma dinâmica ilimitada, a uma espiral hiperbólica”.
Página 568 de 2230

3 O processo de ressignificação

Quando estabelecemos vínculos emocionais com certos bens materiais que possuímos,
essa conexão se deve muito mais a fatores externos aos objetos — como as lembranças e os
sentimentos que eles despertam em nós — que necessariamente ao que eles “fazem” (ou foram
concebidos para “fazer”). O apreço pelo objeto é, então, dependente do significado atribuído a ele.
Podemos interpretar a existência de uma ligação emocional entre humano e objeto como
decorrente de um processo de ressignificação. Essa transformação acontece através de uma
modificação na forma como o objeto é percebido e manuseado, desenvolvida por meio de um
movimento intelectual, não visível.
Loureiro (2007) estabelece o conceito de “conversão semiótica”, que pode ser definido
como o momento de redeterminação da função significativa de um objeto, ou seja, quando o
significado de algo se transforma de tal maneira que este passa a ser percebido de maneira
diferente. Esse processo permite que qualquer objeto venha a ser reconhecido como algo dissímil
do que fora anteriormente. Segundo o autor,
O significado dos objetos se constitui dentro de uma teia contextual que permite
identificar a natureza desse objeto e declarar, sob o aval social da cultura, se é um objeto
de arte ou de outra natureza. Nesse caso, a legitimação do que é arte decorre de uma
espécie de “canon” não explicitado. É o que se pode absorver de Arthur Danto, filósofo
norte-americano da estética atual […]. A sua ideia da arte, como transfiguração do banal,
refere-se à uma passagem processual do objeto banal transfigurado em objeto de arte.
Essa atualização transfiguradora em que se dá a mudança de estado do objeto banal em
arte, equivalente à de qualquer objeto que se transforme em um outro diverso do que ele
foi, creio que encontra sua explicação justificadora e compreensiva no que denomino de
conversão semiótica (LOUREIRO, 2007, p. 75).

Um exemplo icônico do processo de ressignificação dos objetos é a submissão por parte


do artista Marcel Duchamp, em 1917, de um urinol branco de porcelana intitulado Fountain para
a primeira exibição anual da Society of Independent Artists de Nova York. Este ready-made foi
prontamente recusado pela comissão do evento, embora as regras determinassem que qualquer
trabalho seria aceito daqueles artistas que pagassem as taxas para participar da exposição.
Duchamp estava desmanchando os valores que definiam a arte até aquele momento, questionando
a definição corrente acerca do que caracterizava o ato artístico e inserindo-o em um campo
subjetivo, onde a obra de arte podia ser classificada como tal de acordo com os julgamentos
pessoais do artista e/ou do interpretador (QUELUZ; CRESTO, 2010, p. 121). Desse modo,
O artista Marcel Duchamp foi um dos primeiros a perceber que as obras de arte não
precisam ser necessariamente criadas, mas apenas reconhecidas enquanto tais, que não é
mais o fator material, a manipulação de pincel e tinta, martelo e cinzel, mas de ideias e
conceitos, o que é decisivo para a arte e para todos os ofícios criativos (SCHNEIDER,
2010, p. 221, grifo nosso).

O ato transgressor de Duchamp e aqueles dos demais artistas cuja produção demonstra
ter sido influenciada por ele instigam até hoje acalorados debates sobre a relação entre a obra de
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arte e o objeto cotidiano e, por conseguinte, a relação entre arte e design. Para muitos críticos e
teóricos de ambos os campos, “o design é considerado uma espécie de atividade que não deve ser
comparada com a arte” (SUDJIC, 2010, p. 168). Isso se deve à crença de que “uma atividade [o
design] trata do mundo material, comercial e útil dos objetos produzidos em massa, e a outra [a
arte], de um mundo de ideias mais intangível e escorregadio, e da aura do singular e do inútil”
(SUDJIC, 2010, p. 168).
De um lado, alguns críticos de arte apresentam flagrante desconforto ao serem
confrontados com o emprego na arte de modos de pensar, produzir e agir semelhantes aos do
design, e os rejeitam categoricamente: “isso não é arte!”, vociferam. Os ready-mades de Duchamp,
a linha de produção serial e terceirizada na Factory de Andy Warhol (que afirmava
desafiadoramente querer ser uma “máquina”) e a “postura de vendedor” de Jeff Koons são
exemplos marcantes daquilo que desperta a ira de alguns connoisseurs, que assumem prontamente
o papel de detratores desses artistas. Apesar das duras críticas, no entanto, eles e outros
conquistaram espaço considerável dentro do circuito artístico, obtiveram estrondoso sucesso e
forçaram a arte a se reinventar nas últimas décadas.
Por outro lado, aqueles que abominam a ideia de que design tenha alguma relação com a
arte costumam elencar argumentos que apresentam a atividade artística como algo superficial,
pedante ou utópico. Projetar bens e serviços para satisfazer necessidades dos indivíduos para estes
parece ser uma atividade sublime que, por isso, foge do escopo da mera prática artística, cuja
implicação real na vida cotidiana das massas aparenta ser irrelevante ou nula aos seus olhos.
Apesar de certa “fobia” encontrada dos dois lados da fronteira — perceptível no clamor
para que haja uma cisão entre arte e design através da demarcação de linhas imaginárias que os
separem e na incitação dos membros de cada lado a perceber com maus olhos os objetivos, as
práticas e os resultados dos que transitam pelo outro —, a forte conexão existente historicamente
entre as duas áreas é um fato incontestável. Além disso, o esfacelamento dessa forma ultrapassada
de perceber a relação entre os dois campos é crescente na contemporaneidade:
Enquanto se evaporam as antigas fronteiras, se afirma um novo tipo de design feito de
sobreposições, de interpenetrações, de transversalidades. [...] o design não tem mais
estatuto claramente diferenciado. Tornou-se um universo indeterminado, aberto,
multidimensional, podendo ser ao mesmo tempo objeto utilitário, decoração, moda, arte
e até peça de luxo pelo preço proibitivo que às vezes é o seu. Assim é o estágio híbrido,
transestético, do design característico do último ciclo do capitalismo artista. Depois do
grande movimento vanguardista de purificação funcionalista das formas, eis-nos no
tempo hiperconsumista da hibridização dos territórios e das formas (LIPOVETSKY;
SERROY, 2015, p. 243, grifo do autor).

É evidente que, nesse contexto, a pressa no estabelecimento de fronteiras rígidas e


impenetráveis entre o que é competência do designer e aquilo que é atribuição dos artistas é uma
forma limitadora de conduzir esse tipo de discussão. Arte e design são modos complementares de
refletir sobre as questões da cultura material da atualidade:
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Caso pensemos no que definia grande parte do raciocínio de Marcel Duchamp, e de Andy
Warhol também, havia certamente uma preocupação íntima com muitas das mesmas
questões que sustentam os aspectos mais reflexivos do design. Em particular, tanto
Duchamp quanto Warhol exploraram a importância da produção em massa. O mictório
ready-made e as serigrafias de Mao sugerem algo importante sobre nossa relação com
objetos industriais e o impacto da produção em massa sobre a cultura. Entre outras coisas,
nos falam do poder que a arte tem de transformar materiais banais em objetos de valor
incalculável. Mas é isso que o design também trata — em geral não como ferramenta
crítica, mas oferecendo um guia passo a passo (SUDJIC, 2010, p. 169, grifo do autor).

É nesse caráter flutuante dos significados dos objetos que reside o conceito de
“ressignificação”. Arte e design têm o poder de transformar o ordinário em sublime. Obviamente
as duas áreas atuam de modos diferentes, muito próprios e específicos, nesse processo. Os artistas
podem ressignificar os objetos cotidianos os retirando da esfera do banal — como fizeram em
diversas instâncias Marcel Duchamp e Jeff Koons, à guisa de exemplo —, atribuindo a eles novo
significado e status, o de “arte”; ou buscando justamente nos significados correntes desses objetos,
nas ideias que eles carregam consigo, a referência e a inspiração de que todo artista necessita para
poder produzir — aqui, servem de exemplo Andy Warhol e Barbara Kruger. Os designers, por
outro lado, ressignificam os objetos que projetam a partir do tratamento conceitual, estético e
simbólico conferido a eles. Isso pode acontecer de diversos modos. Um deles, a homenagem —
Yves Saint Laurent, por exemplo, fez tributos a vários dos grandes mestres do cânone da história
da arte em sua moda, como o também fizeram vários outros estilistas. Outro, a colaboração —
que ocorre de modo crescente e da qual existem vários exemplos emblemáticos: um deles, a
icônica parceria entre Elsa Schiaparelli e Salvador Dali, que resultou em uma “arte vestível” da
mais alta qualidade; outro, as sucessivas parcerias que a marca Louis Vuitton estabeleceu com
artistas contemporâneos tão variados quanto Richard Prince, Yayoi Kusama, Cindy Sherman, Jeff
Koons e Takashi Murakami. Há ainda o plágio, que infelizmente acontece em larga escala,
culminando na produção de objetos que se apropriam de características da obra de um artista sem
a sua permissão e sem lhe conferir crédito algum, além de, em alguns casos, esvaziar
completamente de sentido essas características no processo de apropriação indevida — como fez
a identidade visual da marca Supreme ao se utilizar da iconicidade da obra de Barbara Kruger para
promover justamente um dos comportamentos que ela detrata em suas imagens: o consumismo.
Para além desses modos de ressignificar o objeto cotidiano, que envolvem
necessariamente um artista e sua obra, há um outro: nele, o designer assume ele mesmo, guardadas
as devidas proporções, o papel e o status de artista. Sudjic (2010, p. 169) comenta que “quase
todos os designers foram treinados para, no fundo, acreditar que design não é arte. Talvez por isso
tentem com tanta frequência ser artistas”.
A tentativa de cisão entre arte e design é persistente no ensino e na prática de design,
porém pouco produtiva, visto que
o esforço histórico do design para afastar-se do sentido artesanal e individualista da tradição
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artística ocidental e para acercar-se de uma pretensa objetividade científica e tecnológica


acarretou, entre outros resultados, uma relativa perda de consciência do teor artificioso do
campo. Não quero dizer de modo algum que o design não passe de uma espécie de artifício, no
sentido pejorativo de fingimento ou artimanha. Quero antes recuperar o sentido mais primitivo
da palavra artifício: o de habilidade ou engenho, de inventividade e – por que não dizer? – de
criatividade. [...] o artifício [...] consiste em dar forma às idéias: em gerar o fato material e
concreto a partir de um ponto eminentemente imaterial e abstrato (DENIS, 1998, p. 29).

O “artifício” de que trata o autor é uma das formas de exercitar o pensar artístico na
produção de objetos. Essa inventividade é essencial para a criação de produtos com maior valor
agregado, que se destinem a mais que simplesmente auxiliar no cumprimento de tarefas cotidianas
ao possibilitar algo mais, que seja mais simples de vivenciar que de explicar. Não é razão. É
emoção. Não é físico. É espiritual. Não é lógica. É fantasia. Uma experiência que suspenda ou
derrube definitivamente a crença em muros erigidos de maneira equivocada, e faça as comuns
exclamações apressadas e pouco pensadas — “NÃO É DESIGN!”, “NÃO É ARTE!” — darem
lugar a interrogações introspectivas: Pode ser design? Pode ser arte? Pode ser design e arte?

4 O produto-obra ressignificado

O funcionalismo, um dos pilares do paradigma modernista-fordista, pregava a eliminação


da aplicação de adornos em objetos, percebidos como superficiais, inexpressivos e
contraproducentes. Sua máxima, “a forma segue a função”, epitomizada nas palavras do arquiteto
Louis Sullivan, passa a perder espaço no campo do design quando, na década de 1960, os conceitos
de “função” e “significado” dos objetos passam a ser revistos, sob a forte influência da
efervescência cultural experimentada nas sociedades capitalistas nesse período. Todo esse
processo sociocultural teve reflexos significativos no design. A partir da pós-modernidade,
a função não mais estabelece a forma. A forma não segue mais a função, mas a emoção
ou a subjetividade dos indivíduos. A emoção passou a ser o fator determinante do
consumo. O objeto passou a ser projetado para despertar a emoção e uma identificação
com o consumidor (TEIXEIRA, 1994, p. 35).

Segundo Lipovetsky e Serroy (2015), com a queda do modelo de produção fordista e o


crescente poder exercido pelos consumidores nas relações comerciais, as indústrias tiveram de se
adaptar rapidamente a uma nova situação: com a inversão do cenário estabelecido anteriormente,
em que era disponibilizado um número bastante limitado de produtos e a clientela acabava por ter
de comprar aquilo que lhe era imposto devido à falta de variedade122, os consumidores passaram
a exigir cada vez mais das agora abundantes opções de escolha. Nesse novo cenário, despontou o
desejo por objetos que apresentassem algo além da função utilitária, que possuíssem valor estético
e simbólico, e que fossem capazes de desencadear uma relação interna e pessoal com seus

122
Como evidencia a clássica anedota do Ford T, que podia ser escolhido em qualquer cor, desde que fosse preto.
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proprietários, bem como externa, ao servir como instrumentos caracterizadores das identidades123
de seus possuidores.
Surgem, a partir da década de 1980, certos modos de praticar design que podem ser
equiparados aos artísticos — como a produção e o lançamento de produtos únicos, assinados e em
edição limitada —, fazendo com que qualidades comumente vistas em obras de arte fossem
integradas ao caráter do objeto de design (LIPOVETSKY; SERROY, 2015). Schneider (2010, p.
223, grifo do autor) comenta que
Na década de 1980, houve uma nova aproximação, ou melhor, uma diluição da diferença
[entre arte e design] [...]. A iniciativa não partiu dos movimentos artísticos, mas do
chamado “Novo Design”. Numa veemente confrontação com o funcionalismo
convencional, surgiu um novo entendimento do design, que não aceitava mais os antigos
ideais [...] A finalidade de uso não era mais a característica primordial dos objetos de
design. Os objetos de design, sobretudo os clássicos, tornaram-se objetos de arte e de
exposição. O resultado foi a transposição dos limites entre arte, artesanato e design. A
experiência do “Novo Design” em sua proximidade da arte, a forma de trabalho
transpondo limites entre artesanato, arte e indústria, as numerosas exposições em museus
e o novo autoentendimento dos designers-celebridades também fizeram crescer no
público em geral a consciência do design enquanto parte da cultura equiparável à arte.
Surgiram museus de design ou departamentos especiais em museus de arte.

Simultaneamente, a arte se torna parte cada vez mais indissociável do mundo material
contemporâneo, à medida em que as massas desejam — e até mesmo exigem — doses constantes
de beleza, surpresa e encanto124 em meio às pressões, instabilidades e percalços da vida cotidiana.
Dessa forma, é evidente e crescente a necessidade de que sejam engendradas estratégias para que
os mais variados objetos e formas de entretenimento sejam dotados de características visuais e
conceituais oriundas ou similares às advindas do mundo artístico. A partir dos anos 1980, o design
passou a se flertar com características tradicionais da obra de arte, como o status, o luxo e a
opulência. Com isto, não se exclui sua produção para a massa, mas o designer ganha o direito de
assinar seu produto-obra quando este, por sua vez, está sujeito à preciosidade devido à linha de
produção limitada.
Lipovetsky & Serroy (2015, p. 27, grifo do autor) comentam o surgimento de um
“universo de superabundância ou de inflação estética [...]: um mundo transestético, uma espécie
de hiperarte, em que a arte se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e da vida

123
Sobre a identidade do consumidor e a sua relação com o consumo, vale frisar que, conforme destaca Bauman
(2008, p. 141), “na sociedade líquido-moderna de consumidores, não há identidades recebidas de nascença, nada é
‘dado’, muito menos de uma vez por todas e de forma garantida. Identidades são projetos: tarefas a serem
empreendidas, realizadas de forma diligente e levadas a cabo até uma finalização infinitamente remota. [...] a
identidade é uma pena perpétua de trabalhos forçados. Para os produtores de consumidores ávidos e infatigáveis,
assim como para os vendedores de bens de consumo, ela é também uma fonte inesgotável de capital — que tende a
se tornar maior a cada investida. Uma vez posta em movimento ainda na tenra infância, a composição e o
desmantelamento da identidade se torna uma atividade auto-propulsora e auto-estimulante”.
124
Obviamente a prática artística não se restringe a essas questões, porém elas são inegavelmente algumas das
características artísticas preponderantemente agregadas ao processo de design quando ocorre a conjunção entre essas
duas áreas de atuação — em detrimento de outras como por exemplo o nível reflexivo e questionador da arte, que
geralmente não serve aos interesses capitalistas da máquina de consumo (mas ainda assim está sujeito a ser apropriado
e, muitas vezes, esvaziado de sentido por esse processo).
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comum”. Nesse panorama, “o domínio do estilo e da emoção se converte ao regime hiper: isso
não quer dizer beleza perfeita e consumada, mas generalização das estratégias estéticas com
finalidade mercantil em todos os setores da indústria de consumo” (LIPOVETSKY; SERROY,
2015, p. 27, grifo do autor). De acordo com os autores, o capitalismo
está na origem de uma verdadeira economia estética e de uma estetização da vida
cotidiana: em toda parte o real se constrói como uma imagem, integrando nesta uma
dimensão estético-emocional que se tornou central na concorrência que as marcas travam
entre si. É o que chamamos de capitalismo artista ou de criativo transestético, que se
caracteriza pelo peso crescente dos mercados da sensibilidade e do “design process”, por
um trabalho sistemático de estilização dos bens e dos lugares mercantis, de integração
generalizada da arte, do “look” e do afeto no universo consumista (LIPOVETSKY;
SERROY, 2015, p. 14, grifo do autor).

Conforme propõe Loureiro (2007, p. 75), vivenciamos uma era em que existe a
“assimilação indiferenciada entre arte-cultura-economia”, o que possibilita que um item qualquer
possa vir a obter alto valor significativo. Este processo ocorre devido à competência humana de
estruturar e reestruturar símbolos, necessária para fazer com que um objeto que carrega em si certa
função culturalmente sancionada possa ser convertido em algo a que é atribuída outra função,
distante da inicial. Isso é viável “uma vez que as funções são qualidades percebidas/atribuídas aos
objetos” (LOUREIRO, 2007, p. 15). Desse modo, é possível que objetos do uso cotidiano sejam
recortados de seus contextos originais e transformados em peças de coleções privadas ou
museológicas, protegidos da manipulação por usuários à qual eram destinados, ou até mesmo
convertidos e cultuados como obras de arte em si mesmos. Aqui, obviamente, os valores estético
e simbólico do objeto ultrapassam o seu valor de uso, tornando imprescindível exibir com orgulho
e proteger esses objetos para a posteridade, mesmo que isso inviabilize que o próprio colecionador
ou os visitantes da coleção os experimentem em sua função habitual. Como exemplo, temos as
cadeiras que marcaram a história do design, cujas imagens são abundantes nos manuais destinados
ao treinamento dos futuros profissionais do campo, já que ilustram a história das transformações
ocorridas tanto na própria área do design quanto nas sociedades em que a produção e o consumo
desses objetos estavam inseridos. Exibidas em museus, essas cadeiras — nas quais nunca
sentaremos, mas que admiramos de pé enquanto imaginamos como seria essa experiência — se
tornam objetos imortalizados que, retirados da função para a qual foram concebidos, gozam do
status de evidências materiais de um momento histórico e, de certo modo, convertem-se em
objetos de culto, gozando de uma “aura” equiparável à das obras de arte. Elas servem para saciar
a fome dos olhos — e talvez até mesmo da alma — dos visitantes, não para oferecer repouso aos
corpos cansados que transitam por esses espaços e com eles se deparam.
O que explica o desligamento destes produtos de suas funções primárias, fazendo com que
assumam valor de “tesouro” (MOLES, 1981, p. 177) é que o interesse que recai sobre eles é
diferente do usual e previsto. Muitos dos objetos de hoje podem ser considerados fonte de
Página 574 de 2230

transcendência para seus portadores. Para eles, manter, cuidar e exibir uma coleção de bonecas
com as quais não se brinca, de carros com os quais não se desloca ou de qualquer outro objeto
transposto de sua “função”, no sentido estreito (e ultrapassado) da palavra, é uma atividade da
mais alta importância, que demanda gastos financeiros muitas vezes exorbitantes e que traz
recompensas emocionais da mesma magnitude. Esses objetos proporcionam para os indivíduos
que os possuem um prazer que não é muito diferente daquele experimentado diante das belas
pinturas do Renascimento, ou das intrigantes esculturas do Barroco. Nessa relação extremamente
individualizada entre as pessoas e os objetos, se torna cada vez mais difícil separar arte e design:
é tarefa árdua encontrar algum valor de um que não tenha impregnado o outro, em maior ou menor
medida.

5 Considerações finais

O design surgiu aliado à produção industrial, e no curso de sua história já esteve associado
tanto a uma preocupação excessiva com a aparência dos produtos quanto à busca exclusiva por
soluções de necessidades, com o intuito de facilitar as vidas dos usuários, contribuindo para a
resolução de imbróglios experimentados por eles no cotidiano. De modo a atender às expectativas
dos consumidores da era do capitalismo artista, nas últimas décadas assistimos ao crescimento da
preocupação estética e simbólica na concepção de objetos, que hoje existem em superabundância
e se diferenciam cada vez menos no que tange ao aspecto funcional que apresentam.
A consideração conjunta das características formais e funcionais dos objetos está agora no
cerne da atuação do designer. O potencial do design é explorado não mais de modo restrito ao
desenvolvimento da funcionalidade dos produtos, mas contemplando também a esfera hedonista-
sensível-emocional do consumo. Esse movimento do campo do design coincide com um momento
em que o consumidor busca frequentemente pelos prazeres instantâneos — ainda que
eventualmente passageiros — resultantes da aquisição de novos objetos. Para que esse
contentamento possa ser prolongado, o designer se utiliza constantemente da sua capacidade de
desenvolver — ou ao menos otimizar — produtos com o objetivo de que exerçam suas funções
utilitárias a contento ao mesmo tempo em que despertem emoções em seus proprietários,
cumprindo as tarefas deles esperadas e servindo também para ser exibidos com satisfação e para
comunicar algo sobre aqueles que os portam. O consumo não se trata mais necessariamente de
demonstrar alto poder aquisitivo, mas principalmente de contribuir para a construção e
publicização da identidade de quem adquire os objetos. Nesse cenário, o designer passou a estudar
e capturar desejos, sentimentos e sonhos do comprador para então devolvê-los sob a forma de
produtos no mercado, disponibilizando objetos carregados do potencial de despertar significados,
que aguardam nas prateleiras o momento em que surgirá algum indivíduo disposto a com eles
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estabelecer interação significante o suficiente para culminar em sua compra. É evidente o desejo
generalizado por objetos que apresentem algo além da função utilitária, que sejam capazes de
desenvolver relações peculiares tanto internas, com seus proprietários, quanto externas, servindo
como instrumentos caracterizadores das imagens daqueles que os possuem.
O design se tornou uma indústria da diversão, do prazer, do fascínio. Ao estudarmos com
atenção os objetos belos, intrigantes e arrojados que consumimos — ou aspiramos consumir —,
além de compreendermos que essas características inevitavelmente são projetadas de modo a
provocar a curiosidade e o desejo e impulsionar o consumo, encontramos uma forma de conjunção
do design com a arte: um objeto que desperta os sentidos dessa maneira não obteria tal êxito se
não apresentasse forte preocupação estética e simbólica. Pode-se afirmar que incutir essas
características em um objeto de modo bem sucedido demanda uma maior aproximação da
imaginação que da técnica, da liberdade criativa que do rigor projetual e… da arte que do design!
A decorrente ressignificação dos objetos banais, que passam a transitar na fronteira entre
obras de arte e objetos de design, cria conflitos que permeiam o imaginário de todos aqueles que
se preocupam em teorizar sobre a cultura material e suas questões. “Design não é arte!”, prega o
mantra repetido à exaustão por alguns nesse tipo de debate, que geralmente é acalorado. Refletir
sobre essa máxima é, no entanto, salutar para ambos os campos de atuação. Em vez de fechar as
fronteiras terminantemente de modo a isolar as duas áreas, é necessário desconstruir os
preconceitos por trás desse tipo de pensamento. Apesar de design não ser arte e arte não ser design,
ambas as áreas têm pontos de interseção inevitáveis, e há evidências robustas que comprovam que
muitos dos objetos com forte apelo comunicacional e comercial encontrados no mercado são
frutos justamente destes pontos de contato entre elas.

REFERÊNCIAS

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LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo


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LÖBACH, Bernd. Design industrial: bases para a configuração dos produtos industriais. São
Paulo: Edgard Blücher, 2000.

LOUREIRO, Jesus. A conversão semiótica na arte e na cultura. Belém: EDUFPA, 2007.

SCHNEIDER, Beat. Design – uma introdução: o design no contexto social, cultural e


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SUDJIC, Deyan. A linguagem das coisas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.

TEIXEIRA, José. Modo de produção, forma e função. Estudos em Design, Rio de Janeiro, v. 2,
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do uso. In: QUELUZ, Marilda (org.). Design & consumo. Curitiba: Peregrina, 2010. p. 115-140.
Página 577 de 2230

FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E DOCUMENTO: AS IMAGENS COMO


REPRESENTAÇÃO PRESENTIFICADA.

PHOTOGRAPHY, MEMORY AND DOCUMENT: THE IMAGES AS A


REPRESENTED REPRESENTATION.

Walter Rodrigues Marques (UFMA/IFMA/UEMA)


Maria de Jesus dos Santos Diniz (UFMA)
Diego Jorge Lobato Ferreira (orientador - IFMA)
Eixo temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo:A investigação aborda a fotografia como memória a partir dos álbuns de família de forma
estendida (físico e digital). As fotografias são documentos guardados como memórias particulares,
mas também social. A pesquisa buscará entrelaçar a Arte (fotografia como linguagem), mídia (a
evolução da fotografia do suporte físico para o digital), memória e documento (relação da
fotografia com a sociedade), alinhavando os eixos com a educação por meio da proposição de
projeto com estudantes, convidando-os a criarem narrativas autobiográficas por meio da
fotografia. A abordagem está sustentada em Le Goff (1996) Documento/Monumento – Os
materiais da memória coletiva e da história, que ampara esta pesquisa no sentido em que se busca
aqui aprofundar-se na memória coletiva de um sujeito; Alberti (1991) o sujeito ao construir sua
autobiografia, se coloca na narrativa se atualizando como sujeito moderno, recriando espaços, mas
também criando. A discussão é sobre que autoridade o narrador tem na construção da
autobiografia, uma vez que o relato é baseado em sua memória e uma vez pronunciado, torna-se
documento? Ou a noção de verdade é o que menos deve importar quando se trata de memória?
Espera-se que a temática possa contribuir para o tema das narrativas autobiográficas assim como
para a construção de memórias.
Palavras-chave: Fotografia, Memória/Documento, Autobiografia, Narrativa.

Abstract:The investigation approaches photography as memory based on extended family albums


(physical and digital). Photographs are documents kept as private memories, but also social. The
research will seek to interweave Art (photography as language), media (the evolution of
photography from physical to digital support), memory and document (relationship between
photography and society), aligning the axes with education through the project proposal with
students, inviting them to create autobiographical narratives through photography. The approach
is supported by Le Goff (1996) Document / Monument - The materials of collective memory and
history, which supports this research in the sense that it seeks here to delve deeper into the
collective memory of a subject; Alberti (1991) the subject when building his autobiography, places
himself in the narrative, updating himself as a modern subject, recreating spaces, but also creating.
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The discussion is about what authority does the narrator have in the construction of the
autobiography, since the report is based on his memory and once pronounced it becomes a
document? Or is the notion of truth the least important when it comes to memory? It is hoped that
the theme can contribute to the theme of autobiographical narratives as well as to the construction
of memories.
Keywords: Photography, Memory / Document, Autobiography, Narrative.

1 Introdução

O trabalho versa sobre a temática de “retratos de família”. Será feita uma narrativa da
geratividade de uma família “os Vieira Mendes” e dos “Rodrigues Marques” (descendentes dos
Vieira Mendes) que viveram no leste maranhense na Comarca de Brejo, município de Anapurus,
nas localidades Macacos e Bacabal respectivamente. A primeira localidade pertenceu ao patriarca
Antonio Rodrigues Mendes (1884-1986) e a segunda a seu filho Manuel Rodrigues Mendes (1919-
1988).
Almeida (2015) aponta alguns autores que construíram métodos sobre interpretação da
imagem na História da Arte. Destaca Wolffin como o criador do formalismo que consiste na
compreensão da linguagem visual das obras de arte como construções objetivas e complexas. Já
para Panosfsky a arte deve se fundamentar no saber sistemático, ou seja, não deve partir da
experiência, pois para alcançar o estatuto da ciência, deve seguir o método racional. E Didi-
Huberman que critica a visão de Panofsky, afirmando que a forma de ler a imagem é dialética.
Nessa concepção, o ato de ver remete o sujeito a um vazio que o olha. Partindo da dialética do
vazio, Didi-Huberman busca fundamentos nas teorias freudianas que permitem ultrapassar
oposições entre imaginário e realidade (ficção e verdade, respectivamente).
Jacques Le Goff (1996) em Documento/Monumento – Os materiais da memória coletiva
e da história, ampara esta pesquisa no sentido em que se busca aqui aprofundar-se na memória
coletiva de um sujeito (a família como sujeito). Alberti (1991) diz que o sujeito ao construir sua
autobiografia, se coloca na narrativa se atualizando como sujeito moderno, recriando espaços, mas
também criando. A partir de Alberti (1991), é possível inferir que a construção da memória
autobiográfica está na reconstrução do passado que é uma criação ficcional da realidade. Portanto,
a construção dessa autobiografia, buscará reconstruir o passado, rememorando-o e recriando os
espaços que se apresentam à memória do narrador.
A narrativa será feita a partir de fotografias dessa família e por relatos orais, ora ancorando-
se em lembranças dos mais velhos, ora buscando amparo no que o próprio narrador lembra e/ou
presenciou. O narrador sente-se autorizado a falar em primeira pessoa amparado na proposta do
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“cinema verdade” de Jean Rouch, onde o protagonista elabora sua narrativa a partir de sua
realidade e/ou imaginação, criando o documentário ficcionado, a exemplo do filme “Eu, um
negro” de 1957.
Outras obras ficcionais servem, igualmente, para fundamentar a narrativa de contar a
própria história, como no filme “Segredos da mata AIEMPI”, onde os índios tratam de sua própria
mitologia narrando e montando cenários e representações da vida na mata, os monstros, as
estórias; no filme “O massacre de Alto Alegre” em que o massacre dos padres capuchinos é
relembrado através das fotografias e a partir delas a reconstrução da história do massacre; e, no
filme “Rio de memórias” que mostra o Rio de Janeiro do século XIX, em que a família imperial é
retratada através de fotografias.
O filme “Rio de memórias” também faz um resgate da cidade e sua evolução assim como
seus espaços físicos, as modificações sofridas naquela cidade. A história da imigração italiana
também está na película e, um direcionamento interessante observado no filme é o foco em
retratos. As pessoas eram retratadas de uma forma meio teatral, pois havia uma montagem da
cena, uma elaboração temática. É possível observar isso nos retratos da família imperial e nos
retratos da imigração italiana. Já os retratos dos negros, que eram publicados em jornais na seção
de achados e perdidos, dá a entender que o retrato era feito unicamente como um registro de posse,
uma prova de que aquele negro pertencia a alguém e quando esse negro fugisse, era publicada
uma fotografia (retrato) no jornal. As fotografias (retratos) de família aqui retratados buscam
guardar essa memória, assim como acontece desde os primórdios da fotografia – a daguerreotipia.
A fotografia tornou possível às outras classes (as baixas) também deixarem para a
posteridade a sua imagem, a sua representação, uma vez que a memória com o tempo vai se
apagando, os traços vão desaparecendo e a fotografia está ali como prova irrefutável do passado
para o reavivamento dos traços da pessoa que não está mais presente. Não apenas se referindo à
morte, mas ao tempo que não volta e a fotografia congela esse tempo (KUBRUSLY, 2006).
Leite (1998) traz a perspectiva da imagem como pertencendo ao passado, mas que
paradigmaticamente torna-se presente. A imagem ou a fotografia tem uma profundidade que joga
com o visível e o invisível. Uma imagem tem mais do que se pode perceber as vistas rápidas, pois
toda imagem é polissêmica. Ainda que aquele que faça o registro fotográfico direcione, através do
seu olhar, o observador para determinada perspectiva, escapa-lhe a apreensão total e absoluta da
mensagem que pode a fotografia transmitir, uma vez que numa imagem muito do que lá está não
foi colocado pelo fotógrafo, mas pela realidade da fotografia, do lugar e do tempo e espaço onde
ela foi feita. Segundo Kossoy (1998, p. 40) a fotografia tem uma realidade interior, que é a
primeira realidade e, que “fotografia é memória e com ela se confunde”, portanto, “a
reconstituição - ... – sempre implicará um processo de criação de realidades”, quer seja ela apenas
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recordação ou de cunho investigativo (científico). Leite (1998) faz referência a Dubois (1990) que
se utiliza das metáforas freudianas do Palimpsestos que são o ato psíquico ou da memória para
referir-se à possibilidade de ler camadas inferiores. Assim é a fotografia, não é possível ler tudo
de uma só vez, num primeiro e rápido olhar, é preciso olhar mais de uma vez para que se possa
ver nas entrelinhas, no que não estar dito, explicitado.
As fotografias deste trabalho são da minha família, estando meu ancestral mais distante
numa ponta e eu na outra. Ainda que eu não possua fotografias (retratos) de todos, buscarei
introduzi-los na história da família pela memória oral.

Primeira imagem do encontro entre o homem e a máquina, a fotografia rompe


com o sistema de representação de imagens do século XIX e instaura uma nova
forma de visualidade: “(...) pela primeira vez, no processo de reprodução da
imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes.”
(MELLO, 1998, p. 14).

O que é fotografia? Para Kubrusly (2006) a resposta a esta pergunta é um tanto intrigante,
e responde com a fala de um menino: “O que é fotografia? Fotografia?...É quando a televisão
para de mexer, fica tudo paradinho e a gente pode olhar as coisas devagar. É o maior barato!”
(MARQUES et al, 2018, p. 133; MARQUES, 2019, p. 17).
O que se segue abaixo – a narrativa de uma família por meio de fotografias, em nenhum
momento foi pensado que serviria para tal objeto. As fotografias foram feitas unicamente para
guardar, congelar o tempo, guardar na memória o instante dessas pessoas e guardar ou resguardar
da morte, reter a lembrança dos que já se foram desta vida, ficando apenas essas que agora são
artefatos, memórias - fotografias.
As fotos de família, segundo Leite (1998, p. 39) “... desempenham papel fundamental na
socialização de seus membros, e na circunscrição e legitimação do setor privado da sociedade”.
Ainda sobre a classificação que Leite (1998) faz da fotografia, aqui serão analisadas as informais,
que são aqueles em que não se apresentam em ocasiões especiais como casamentos, formaturas
(estas são as formais).

2 Os Vieira Mendes

Maria Vieira Mendes (minha avó e mãe) era uma mulher excepcional. Não contava com
mais do que um metro e meio de altura, mas era todo esse pequeno corpo um ser humano de
coração universal, de bondade inigualável e de uma inocência incomparável. Minha mãe não via
a maldade dos homens, foi uma pessoa que buscou ajudar a todos a quem podia sem nada cobrar.
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Era uma dona de casa que sabia mandar em sua casa sem contudo ser autoritária, mas sabia
comandar o perímetro que lhe cabia a responsabilidade que era fazer funcionar a casa e os
negócios, desde a administração do mais comum como a comida, o cuidar do gado, da roça, dos
costumes, dos hábitos, uma vez que meu avô cuidava de coisas também como a roça e o gado,
mas quando viajava a negócio a vida ali não parava.
Meu avô, era um homem rígido, duro nas emoções, era um homem de família daquela
época, governava os seus, sejam eles filhos ou funcionários, com mão de ferro. Amava os filhos
a seu modo, ao modo como deveria se comportar um homem de sua posição – homem de negócios
e senhor de sua casa. Meu pai costumava dizer que “passava seis meses sem ranger (franzir) o
canto da boca” enquanto nós (as crianças) só vivíamos com os dentes acessos.
Minha avó era branca de cor e dizia sempre que era descendente de brancos portugueses e
indígenas, mas não tinha mais informações sobre isso, era só o que repetia sempre – que tinha
descendência indígena. Mas seus pais vieram do Ceará, fato que corrobora o que ela dizia, pois o
Estado é a terra de Iracema de José de Alencar. Meu avô, ela dizia que era descendente de brancos
portugueses e negros africanos, uma vez que era bisneto de Joaquim (Vaquim) Diniz, senhor de
escravos. O pai do meu avô era Antônio Rodrigues Mendes e seu pai (...) era filho de Joaquim
Diniz, se apaixonou por uma negra africana e por isso foi deserdado pelo patriarca (Vaquim). Meu
avô sempre negou essa história, era racista nos dizeres populares (piadas sobre negros) e alguns
de seus filhos e netos repetiam (e ainda repetem) seus dizeres, o que foi sempre rebatido por minha
avó.
Para chegar até mim (Walter Rodrigues Marques), retorno ao meu mais antigo e conhecido
ancestral – Joaquim (Vaquim) Diniz, cuja esposa desconheço, assim como também desconheço
seu filho e esposa cujo filho é meu bisavô Antônio Rodrigues Mendes (o qual chamávamos de
“pai mende”) e a esposa (Francisca, minha bisavó). Já da parte de minha avó – Maria Vieira
Mendes (também Maria Vieira Passos) o pai era Pedro Vieira Passos e sua mãe era Benedita
Rodrigues dos Santos. Segundo minha avó, seus pais vieram do Ceará.
Maria Vieira Mendes e Manuel Rodrigues Mendes tiveram dez filhos, um deles natimorto
e um com Síndrome de Down, os outros dentro do padrão do que se convencionou chamar de
normal. O filho com Síndrome de Down nunca foi diagnosticado, porém, hoje sei pelas
características que apresentava. Faleceu aos 39 anos. Seu nome é José Vieira Mendes (Zeca), foi
o caçula. O primeiro filho do casal é Antonio Vieira Passos125 (Antonio Mendes). A segunda filha
é Alcionira Mendes Carvalho, seguido de Raimundo Mendes, Francisca Mendes da Silva, Dalvina
Vieira Mesquita, Maria Mendes de Melo (Baíca), Rosa Rodrigues Marques (Rosa Vieira

125
Se registrou como filho de seu avô materno, Pedro Vieira Passos. Por isso, seus filhos têm sobrenome diferente
do restante da família.
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Rodrigues, Rosa Mendes), Maria das Graças Vieira Mendes Guimarães e o caçula. A partir do
exposto, mas pelas características do trabalho, somente farão parte os descendentes de Rosa
Mendes (a qual sou filho), ainda que se tenha uma grande quantidade de registros fotográficos das
outras irmãs.

3 Os patriarcas: Maria Vieira Mendes e Manuel Rodrigues Mendes

Fotografia 1 - Manuel Mendes e Maria Vieira Mendes

Fonte: Acervo particular

Minha família tem uma história antes dos meus avós (os quais me criaram, por isso os
chamo de pai e mãe) com muitas lacunas e difícil de ser reconstituída, sem registros imagéticos e
talvez inexistentes vestígios documentais. De meu avô e de minha avó, documentos pessoais e
algumas fotografias (mais dela do que dele). Meu avô morreu em 10 de agosto de 1988 e minha
avó em 24 de junho de 2008 e ainda assim possui poucos registros imagéticos. Von Simson (1998)
explora imagem e memória como formas de “relatos do passado”, ao ver uma imagem é possível
ativar a memória e lembranças são trazidas do passado, sendo, portanto, possível reconstituir a
história de vida das pessoas, principalmente dos mais velhos, que precisam de algo para lembrar.
Bosi igualmente faz essa comparação quando diz: “Mas, daria a memória coletiva conta da
explicação de todos os fatos de memória, mormente do que chamamos a lembrança individual? É
o caso das imagens remotas, talvez da mais antiga que consigamos evocar” (BOSI, 1987, p. 330).
Meus avós, por ocasião do casamento, não tinham posses, apesar de meu avô descender de
um rico senhor de escravos, seu pai (Antônio Rodrigues Mendes) era um homem comum e de
poucas posses. Recorde-se que seu pai foi deserdado por ter fugido e se casado com uma negra da
senzala do pai (Joaquim Diniz). Portanto, Maria Vieira e Manuel Mendes começaram a vida do
nada. Ele já havia sido casado e a esposa havia falecido (sua esposa era Francisca). A única
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fotografia que se tem do casal é esse retrato pintado. De minha avó há bem mais fotografias, como
se pode ser verificado abaixo.

As lembranças do grupo doméstico persistem matizadas em cada um de seus


membros e constituem uma memória ao mesmo tempo una e diferenciada.
Trocando opiniões, dialogando sobre tudo, suas lembranças guardam vínculos
difíceis de separar. Os vínculos podem persistir mesmo quando se desagregou o
núcleo onde sua história teve origem. Esse enraizamento num solo comum
transcende o sentimento individual (BOSI, 1987, p. 344).

Fotografia 2 - Dona Maria Vieira Mendes com a bisneta Sarah Mendes

Fonte: Acervo particular

Na foto acima, minha avô com sua bisneta Sarah Mendes, filha de Eraldina que é neta de
Maria Vieira, portanto, filha de Alcionira Mendes que é filha de Maria Vieira Mendes e Manuel
Rodrigues Mendes. Sarah representa a terceira geração dos Vieira Mendes.

Fotografia 3 - Eu (Walter), Erineu, Manél, Eraldina, Eronildes


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Fonte: Acervo particular

Esta é a minha mais antiga representação imagética feita entre 1985 e 1988. Da esquerda
para a direita tem a minha imagem (Walter), meu primo Erineu, meu irmão José de Maria (Manél),
minha prima Eraldina e minha outra prima Eronildes.
A fotografia acima (3) foi tirada no quintal da casa da mãe de Eronildes. Percebe-se que
os três irmãos se produziram para fazer as fotografias e eu e o meu irmão estávamos lá para
atrapalhar, pois ambos estamos só de calção e fazendo palhaçada.
Na foto abaixo (4) vê-se Maria Vieira na mais descontraída naturalidade e com ímpar
carisma, sorriso inocente, mas com uma implícita felicidade. Pela disposição das outras pessoas,
a ocasião é uma comemoração, sendo identificável apenas Maria Francisca (neta).

Fotografia 4 - Maria Vieira e sua neta Maria Francisca


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Fonte: Acervo particular

Fotografia 5 - Maria Vieira Mendes

Fonte: Acervo particular

Fotografia 6 - Maria Vieira com filhos, netos e bisnetos


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Fonte: Acervo particular

Na mesa para almoçar com o genro (Chico Lídia, meu pai biológico), a neta Eroneldes, à
direita; e sua filha Alcionira, Maria das Graças e José Vieira (Zeca) e netos e bisnetos à esquerda.

4 Os Rodrigues Marques: Rosa Rodrigues Marques e Francisco de Assis Marques

Da esquerda para a direita e em segundo plano, meu pai, Francisco de Assis Marques
(Chico Lídia), minha mãe Rosa Rodrigues Marques, eu (Walter), meu irmão José de Maria; na
mesma ordem e em primeiro plano, meus irmãos João, Francisca, Maria José e Antonio Gardene.
Esta é a primeira parte da família, sendo o primeiro filho nascido em 1973 e a última em 1985.
Para esta fotografia, foi contratado um fotógrafo profissional. Ao olhar para esta fotografia,
ativou-se em minha memória este fato, o que corrobora com o que escreveu von Simson (1998),
que o ato de ver fez com que a memória de fatos passados, viessem à tona. O que lembro dessa
fotografia é que eu já morava em São Luís e quando retornei, meu pai quis registrar o momento
em que estávamos todos ali juntos. Então, todos buscaram sua melhor roupa ou forma de serem
fotografados. Lembro que foi pela manhã, por volta das 8 horas.
Meu pai era um homem simples. Tinha os sentimentos de sua sogra, parecia não enxergar
o mau nas pessoas, soava quase uma inocência das crianças. Parecia ter herdado de sua sogra todo
aquele ser. Até parece que era ele o filho daquela doce mulher. Minha mãe não, sempre foi uma
mulher ríspida, herdou o temperamento de seu pai, essa puxou a ele, nunca foi muito amável.
Criou os filhos com mão de ferro, pelo menos os primeiros. Eu não fui criado nesse meio, fui
convidado a me retirar do ninho ainda com três meses de idade. Meu pai era apaixonado por mim.
Sempre dizia que amava todos os seus filhos por igual e até parecia mesmo que os amava sem
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distinção. Minha tia materna, Alcionira (Nega) sempre disse que era a mim a quem ele mais
amava.

Fotografia 7 - Família Rodrigues Marques

Fonte: Acervo particular

Fotografia 8 - Francisca Maria (Luri) e Lucas

Fonte: Acervo particular

A fotografia (8) apresenta o restante da família. Primeiramente, éramos seis e oito anos
depois nasce Francisca Maria (Luri) em 1993 e em 1995 nasce Lucas, fechando o ciclo familiar
de nascimentos. Na fotografia (9) abaixo, minha mãe Rosa Mendes em um momento do cotidiano
em sua casa em Mata Roma na Rua Alferes Antônio Garrêto.

Fotografia 9 - Rosa Rodrigues Marques


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Fonte: Acervo particular

Abaixo, meu pai Chico Lídia (como era conhecido). A fotografia foi feita em nossa
propriedade (Bacabal) no município de Anapurus (Maranhão). O fundo da fotografia mostra um
ambiente rural, tendo o forno de assar bolo, mas também serve para assar capão, leitão.

Fotografia 10 - Chico Lídia

Fonte: Acervo particular

Fotografia 11 - Walter Marques


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Fonte: Acervo particular

Fotografia 12 - Walter Marques

Fonte: Acervo particular

Eu, hoje Walter Rodrigues Marques tenho por nome de batismo Walter Vieira do
Nascimento. Sou filho de Francisco de Assis Marques (Francisco Marques do Nascimento) e Rosa
Rodrigues Marques (Rosa Vieira Rodrigues). Já foi explicado a descendência de minha mãe. Meu
pai é filho de Lídia Marques e Félix (...) sobrenome desconhecido.

Fotografia 13 - Walter Marques


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Fonte: Acervo particular

Meus pais tiveram oito filhos, a iniciar por mim, respectivamente: Walter, José de Maria,
Maria José, Antonio Gardene, João, Francisca, Francisca Maria e Lucas: Rodrigues Marques.

5 Metodologia

A organização do trabalho consistiu em definir o tema a ser desenvolvido. Seguiu-se com


a pesquisa bibliográfica, juntada aos filmes e às fotografias dos álbuns de família. A proposta para
a sala de aula consiste em solicitar aos alunos que busquem juntar as fotografias dos álbuns de
suas famílias, conversar com as pessoas mais velhas e anotar histórias que contarem. A partir
disso, montarem suas autobiografias. Podem também fotografar e gravar o momento atual para
criar suas narrativas autobiográficas.

5.1 Narrativa de si como proposta educativa em Arte


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Cada sujeito carrega uma história pessoal e através da construção de sua autobiografia
visual poderá ampliar a capacidade de questionar seus próprios valores, resguardados de
particularidades para falar de si mesmo. Pimentel (2017) acredita que as aulas de Arte deveriam
abrir espaço onde o educando pudessem expor livremente suas ideias elencando desejos,
curiosidades, descobertas, ou seja, sua vida, de modo que propicie ao aluno experiências de se
relacionar com suas vivências pessoais e sociais, provocando uma atitude significativa para a vida
por meio da produção artística.
Nas aulas de Arte é possível conduzir o processo de rememoração tecendo uma trama
intrinsecamente reflexiva sobre o sujeito, para transformação e geração de conhecimento por meio
dos envolvidos.

A narrativa de si não é relato do que se passa com alguém, mas a construção de como o
sujeito se percebe e se apresenta; é um processo contínuo que não se fixa em um papel
ou em um arquivo digital, não é somente um discurso, mas algo que deixa marcas e
memórias em fluxo. Mais que escrever ou gravar palavras e sons, é firmar compromissos
de vida consigo mesmo e com quem compartilha sua vida. (PIMENTEL, 2017, p. 309)

Para conduzir este processo é relevante que o mediador compreenda as fundamentações


teóricas e técnicas para o desenvolvimento do pensamento artístico, levando em consideração que
através da arte o sujeito pode reinventar sua vida a qualquer tempo e espaço, principalmente
quando o mesmo é envolvido em variadas possibilidades de leituras (LOPONTE, 2007). Para
desenvolver narrativas de si, o professor pode elaborar propostas educativas, tendo como
referência a Abordagem Triangular que oferece três encaminhamentos: o fazer, o fruir e o
contextualizar. Cada encaminhamento conduz uma proposta de exercício, de experimentação
artística e interligando a produção de conhecimento (PILLAR, 2012).
Desta forma, uma proposta de construção de autobiografia pode ser encaminhada por meio
da produção de autorretrato. Numa lógica inicial onde o aluno terá contato com produções de
artistas que por razões particulares optaram narrar a própria história pelo autorretrato e suas
diferentes técnicas. Podemos assim aproximar o aluno e o artista relacionando seus contextos, ou
seja, trabalhar apenas com artistas brasileiros ou locais mostrando a realidade dos educandos
envolvidos, por exemplo.
Para o primeiro encaminhamento da Abordagem Triangular o professor deve iniciar pelo
contextualizar, apresentando autorretratos produzidos ao longo da história. Elencamos nomes e
obras de artistas com propostas distintas: Carlos Zílio, Autorretrato, 1972; Leonilson, El puerto,
1992; Frida Kahlo, Pensando sobre a Morte, 1943; Andy Warhol, Autorretrato (fotografias de
passaporte), 1956; Rosana Paulino, Assentamento, 2013; Cindy Sherman, sem título, 1989. Desta
forma, o aluno terá contato com saberes e conhecimentos já construídos, para que possa entender
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e relacionar consigo mesmo e seu repertório e, como pode se sentir afetado para se reconhecer
como sujeito construtor.
O próximo encaminhamento pode tomar como direção o fazer. Conforme sugestão de
Pimentel (2017), a produção de expressão e de experimentação é o momento propício para o
conhecimento de materiais, técnicas e tecnologias que agregam papel fundamental para ações e
construção de conhecimento, além da imersão do sujeito ao seu íntimo no ato de recordar suas
memórias e suas emoções já vividas. Para que o aluno possa interagir com sua produção e do
artista estudado, o professor deve trabalhar com o encaminhamento fruir, mobilizando os
movimentos de imaginação e de relações com a memória e com as marcas das vivências artísticas,
de modo que o educando sinta motivação para explorar o entrelaçamento simbólico entre as
produções.
A autobiografia visual pode contribuir para a aprendizagem de arte, entendendo que “[...]
a dimensão de experiência e aprendizagem de si não é dissociável da experiência e da
aprendizagem dos mundos sociais.” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 89).

Considerações Finais

A análise ainda está bastante superficial, faltando a análise semiótica, por exemplo, mas
foi desafiador e gratificante elaborar este trabalho. Cavar mais profundamente a história da minha
família, a minha história, rever fotos antigas, pessoas que eu não imaginava que tivessem registros
fotográficos foi um momento ímpar. Contei com muitos da minha família para organizar as
fotografias, as buscas em lugares e pessoas que não imaginávamos guardarem esses registros. A
autobiografia em análise é referente à família de apenas um dos autores, porém, pelo escopo do
artigo, não cabe três autobiografias.
Os filmes projetados na sala de aula me incentivaram e me direcionaram muito na busca
desse objetivo de me autorretratar através dos meus ancestrais, meus familiares. Me fizeram
elaborar e reconstituir minha história de vida, minha subjetividade. Me tiraram da cômoda posição
individual, isolado, para a condição de pertencimento subjetivo, de que não sou apenas eu que me
constituo, mas sim, que sou um conjunto de individualidades e que, juntamente, formamos um em
todos – eu sou parte deles e eles de mim.
Não foram feitas análises estéticas e semióticas das fotografias, apenas leituras visuais e
descritivas de algumas apenas para situá-las, nomeando quem está nas fotografias.
Um desafio que propomos é isso possa ser feito em qualquer sala de aula, desde que os
alunos já tenham entendimentos sobre as relações familiares e sociais (conforme metodologia).
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Esperamos que o artigo possa provocar interesse nas pessoas para buscarem reviver/rememorar o
passado e poder, com isso, construir um presente e um futuro brilhante.

Referências

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Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 7, 1991, p. 66-81.

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Editora da Universidade de São Paulo, 1987. - (Biblioteca de letras e ciências humanas. Série 1.,
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trad. De Paulo Neves. - São Paulo: Editora 34,1998. 264 p. (ColeçãoTRANS).

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Etienne (Org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.

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Primeiros Passos; 82).

LE GOFF, Jacques. Documento / Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4.


ed. Campinas: Unicamp, 1996.

LEITE, Miriam Lifchtz Moreira. Retratos de família: imagem paradigmática no passado e no


presente. In: SAMAIN, Etienne (Org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.

LOPONTE, Luciana Gruppelli. Arte da docência em arte: desafios contemporâneos. In:


OLIVEIRA, Marilda Oliveira de. (Org.). Arte, educação e cultura. Santa Maria: UFSM, 2007,
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Barros Vieira; QUADROS JÚNIOR, João Fortunato Soares de. Fotografia: a singularidade no
olhar fotográfico do imagético social de Márcio Vasconcelos. In: Revista Interdisciplinar em
Cultura e Sociedade (RICS) São Luís - Vol. 4 - Número Especial - jul./dez. 2018. Disponível
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Acesso em: 02 fev. 2020.

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social de Márcio Vasconcelos [recurso eletrônico]. - Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2019.
Disponível em:< https://www.editorafi.org/568fotografia>. Acesso em: 02 fev. 2020.

MONTE-MOR, P.; PARENTE, J.I. Rio de memórias (filme).


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Brasil. – Rio de Janeiro: Funarte, 1998.

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WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte: o problema da evolução


dos estilos na arte mais recente. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
Página 595 de 2230

GÊNERO E TRABALHO DOCENTE NA EDUCAÇÃO BÁSICA DE PINHEIRO-MA: A


ATUAÇÃO FEMININA NAS ESCOLAS PÚBLICAS DO MUNICÍPIO

GENDER AND TEACHING WORK IN THE BASIC EDUCATION OF PINHEIRO-MA:


FEMALE PERFORMANCE IN PUBLIC SCHOOLS IN THE CITY
Maelson José Soares Silva
Licenciado em Ciências Humanas - UFMA
Pedagogo
Ana Patricia dos Santos Sodré
Licenciado em Ciências Naturais - UFMA
Francilene do Rosário de Matos
Mestre em Educação - UFMA
Eixo temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: A presença da mulher, na atualidade, é marcante em todos os níveis da educação, mas


nem sempre foi assim. Para isso, percorreu uma árdua trajetória. Nessa perspectiva, este trabalho
propõe-se analisar a docência na educação básica em Pinheiro-MA, A partir de uma revisão
bibliográfica sobre a feminização da educação brasileira, seguida da análise de dados sobre a
formação e o trabalho feminino na educação básica, revelados pela pesquisa do Grupo de Estudo
e Pesquisa sobre trabalho e formação docente da educação básica (GEP-Formação e Trabalho
Docente) da UFMA- Pinheiro, foi possível obter informações sobre a atuação e a formação de
ambos os gêneros. Do total de 1.560 professores do município, a pesquisa foi realizada com 405,
(26%), incluindo os que atuam nas redes municipal e estadual. Apenas 375 responderam a qual
gênero pertencem, e assim auferiu-se dentro da amostragem que 84% do professorado são do sexo
feminino e 16% do sexo masculino. Os dados obtidos nesta pesquisa assemelham-se aos
apontados em âmbito nacional, ratificando as análises dos pesquisadores do tema sobre os reflexos
históricos da feminização da profissão docente como um todo. Pode-se então considerar que o
magistério feminizado é um trajeto histórico, que se consolidou na prática, tornando as mulheres
as principais atuantes na docência da educação básica.
Palavras chave: Educação. Gênero. Escola. Feminino.

Abstract:The presence of women, nowadays, is remarkable at all levels of education, but it was
not always so. For this, it has traveled an arduous path. In this perspective, this work proposes to
analyze teaching in basic education in Pinheiro-MA, based on a bibliographic review on the
feminization of Brazilian education, followed by the analysis of data on training and female work
in basic education, revealed by research by the Study and Research Group on work and teacher
training in basic education (GEP-Training and Teacher Work) at UFMA-Pinheiro, it was possible
to obtain information on the performance and training of both genders. Of the total of 1,560
teachers in the municipality, the survey was conducted with 405, (26%), including those working
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in the municipal and state networks. Only 375 responded to which gender they belong, and so it
was found within the sample that 84% of the professors are female and 16% male. The data
obtained in this research are similar to those pointed out at the national level, confirming the
researchers' analysis of the theme on the historical reflexes of the feminization of the teaching
profession as a whole. It can then be considered that the feminised teaching profession is a
historical path, which has been consolidated in practice, making women the main players in
teaching basic education.
Keywords: Education. Genre. School. Feminine.

INTRODUÇÃO

O papel da mulher brasileira na escola teve consideráveis transformações no decorrer do


período colonial ao império. No primeiro, sem nenhuma participação na escola, cabia as mulheres
aprender apenas as tarefas relacionadas as atividades domésticas. Os colégios e escolas Jesuítas
destinavam-se apenas aos homens. Esse cenário começou a mudar após a Independência, quando
a mulher adquiriu o direito a educação, oportunizando o magistério feminino. Com a criação das
primeiras Escolas Normais, determinou-se que o magistério primário era preferencialmente
designado as mulheres (VIANNA, 2002).
Entretanto, a discriminação tornou esse acesso bastante difícil. De um lado a educação
formal era considerada desnecessária para as funções que a mulher iria desempenhar na sociedade;
por outro, a tarefa de ensinar crianças era considerada função própria das mulheres, para a qual
tinham “habilidade inatas”. Tal concepção era baseada em concorrentes que apontavam as
mulheres como biologicamente dotadas da capacidade de socializar crianças, como parte de suas
funções maternas. Todas as profissões associadas ao ato de cuidar passaram então a partir dessa
ótica, ser vistas como ofícios femininos. Somente no fim do período Imperial novas mudanças
surgiram e as mulheres passaram a ser admitidas na Escola Normal e dominantes nesse espaço até
os dias atuais (DEMARTINI; ANTUNES, 1993).
Nessa perspectiva, este trabalho tem como objetivo geral, destacar a questão do gênero na
docência na educação básica em Pinheiro-MA, por meio da análise da formação e do trabalho
feminino. Para tanto, será utilizado dados extraídos da pesquisa realizada pelo Grupo de Estudo e
Pesquisa sobre trabalho e formação docente da educação básica (GEP-Formação e Trabalho
Docente) da UFMA – Pinheiro. Do total de 1.560 professores do município, a pesquisa foi
realizada com 405, (26%) da totalidade, incluindo os que atuam nas redes municipal e estadual.
Dos 375 docentes que responderam a qual gênero pertencem, 84% do professorado identificou-se
como do sexo feminino e 16% do sexo masculino.
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A motivação para o desenvolvimento do trabalho ora apresentado surgiu em razão da


observação de grande quantidade de profissionais do sexo feminino exercendo a função docente
na Educação Básica. Constata-se que as escolas como os cursos de licenciatura são constituídos
em sua maioria por mulheres, havendo algumas poucas exceções. Nesse cenário, uns
questionamentos emergem, como: Qual processo levou às diferenças entre os gêneros no contexto
educacional? E, como esses profissionais, em sua maioria do sexo feminino estão hoje atuando na
educação básica? Para melhor compreender esse fenômeno alguns outros questionamentos foram
estabelecidos, como: Qual o papel da mulher e do homem na educação hoje? Na realidade do
município de Pinheiro, os professores são habilitados para desempenhar a profissão? Quais áreas
com mais graduados? Atuam com quais níveis de escolarização? Quais dos gêneros têm maiores
níveis em cada etapa da escolarização? Essas questões serão tratadas de forma incisiva, sempre
relacionando passado e presente, historicidade e atualidade.
Estabeleceu-se como metodologia para a elaboração desse trabalho a revisão bibliográfica,
fundamentado em diversas referências, entre elas, livros que abordam o tema, artigos científicos
publicados na mesma linha de pesquisa e obras dos autores ALMEIDA (1998 e 2014), SILVANO
(2014), VIANNA (2013), MARTINS (2007), além do MEC (2014) e do INEP (2009). Também
foram feitas análises de obras oficiais dos órgãos competentes da educação nacional (Ministério
da Educação, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, entre outras) e análise dos resultados da pesquisa
realizada pelo GEP-Formação e Trabalho Docente.
O texto a seguir inicia com a apresentação da revisão histórica sobre a educação feminina,
em seguida há uma análise sobre a feminização do magistério, depois observa-se a relação entre
o movimento feminista e a educação, fechando a produção com a análise sobre a presença das
mulheres nas escolas de Pinheiro-MA. Por fim, encontram-se as considerações finais e as
referências utilizadas.

A EDUCAÇÃO FEMININA NO DECORRER DA HISTÓRIA

Atualmente, a presença da mulher é marcante em todos os níveis da educação, mas nem


sempre foi assim. No período Colonial, a mulher era uma figura de apreciação, sobretudo pela
íntima relação com a Virgem Maria, atribuindo-lhe uma imagem de pureza e castidade, das quais
sua preocupação primeira deveria ser o casamento, filhos e as atividades domésticas (SILVANO,
2014, p. 11).
Destaca-se que a educação feminina no período colonial e imperial, era voltada para o lar,
não se cogitava a possibilidade de desempenhar uma profissão assalariada, pois a finalidade era
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preparar a mulher para atua no lar. Não havia preocupação com a educação feminina, pois “na
visão da sociedade, o ápice da vida da mulher era a maternidade” (SILVANO, 2014, p. 13).
Nesse período, a educação formal das mulheres, era considerada heresia social tanto em
Portugal como no Brasil, a sua ausência acarretou uma imensa massa de mulheres analfabetas na
Colônia, provocando muitos prejuízos, entre eles, o cultural (RIBEIRO, 2007, p. 24). O mito da
inferioridade dominava os âmbitos sociais. De todo modo, o letramento (nesse caso, a qualquer
gênero) não era visto como necessário ao colonialismo, pois a intenção básica dos colonizadores
não era estabelecer moradia, mas sim, manter um sistema de exploração, onde a educação letrada
não se fazia importante, não gerava lucros (SANTANA, 2014).
No início do século XIX, com a chegada da corte portuguesa no Brasil, o cenário colonial
passou por modificações que foram importantes para o futuro educacional das mulheres. Com a
chegada de milhares de pessoas no Brasil vindas de Portugal, se exigia que fosse alterada a
realidade da colônia, pois agora se tratava do “abrigo” da realeza. Silvano (2014, p. 14) revela que
“dá-se início a instrução laica para a mulher, por meio do trabalho de senhoras portuguesas,
francesas e alemãs, que ensinavam costura, bordado, religião, rudimentos de aritmética e língua
nacional para as meninas de classe dominante”. Assim, teve-se a iniciativa de instruir as mulheres
de origem da classe dominante para conhecimentos considerados básicos.
Uma nova perspectiva para as meninas surgiu com a criação das escolas régias, que teriam
uma educação diferenciada, em classes separadas, contando com o ensino de professores do
mesmo sexo (CUNHA & SILVA, 2010, p. 99). Mas, um sério problema se instaurava: o
preenchimento das vagas para professores era por meio de concurso público e por pessoas do
mesmo sexo que os alunos. Como esperar aprovação em concurso público de mulheres que
tiveram uma educação deficitária?

O fato é que as mulheres tinham dificuldades de serem aprovadas nesses concursos,


embora o nível de exigência para o professorado do ensino primário fosse somente o
domínio de leitura, escrita e das quatro operações de aritmética. Tal orientação gerava
um círculo vicioso, no qual as mulheres não tinham espaço para a ampliação de suas
classes justamente pela falta de professoras qualificadas (CUNHA & SILVA, 2010, p.
99).

Dessa maneira, a ampliação educacional da classe feminina não conquistou o tão almejado
espaço por falta de qualificação. Assim, nas últimas décadas do século XIX, o magistério era uma
profissão sumamente masculina e em grande parte, ainda muito religiosa. Portanto, não era
permitido religiosamente aos homens lecionarem para as meninas, era uma infração moral,
exigindo que houvesse mulheres “capacitadas” para o ensino feminino primário.
Diante dessa problemática e a carência de professores para educar meninas e meninos,
foram criadas as Escolas Normais (a partir de 1835) que passaram a admitir mulheres para atuar
na docência. Apesar disso, temia-se que elas abandonassem suas funções enquanto esposas e
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mães, e, também, significava a perda de espaço profissional dos homens (ALMEIDA, 1998, p.
64).
Contudo, deveria haver uma saída para essa situação, “um trabalho que não atentasse
contra as representações matrimoniais e a maternidade. O magistério inseria-se perfeitamente bem
nessa categoria, pelo menos era assim que rezava o discurso oficial da época (ALMEIDA, 1998,
p. 57). Portanto, a capacidade da mulher como boa educadora dos filhos, possibilitou sua inserção
no trabalho docente.
Para muitos, essa confiança dada às mulheres era uma extrema insensatez, já que elas não
possuíam instruções suficientes para tal posição, para outros, as mulheres já eram inclinadas
naturalmente para educar crianças, estabelecer relações maternas com os pequenos. Assim, o
magistério primário passou a ser tido não como um campo de trabalho, mas uma função feminina
e representada com muito amor (MONTEIRO & GATI, 2012).
Com o advento da Proclamação da República (1889), “a crença no poder da educação para
o crescimento do país repercutiu diretamente na política educacional e na criação de mais escolas”
(ALMEIDA, 1998, p. 66). Deste modo, a partir da última década do século XIX, elevou-se o papel
da educação para todos a um outro patamar, principalmente com o aumento da oferta de escolas
nesse período, exigindo maiores investimentos e logicamente, maior campo de trabalho docente.
Portanto, o ingresso feminino nas escolas para formação docente, havia dois sentidos:
conseguir instruções necessárias, já que sua educação ao longo do tempo foi precária; e também
a busca por oportunidade de um emprego remunerado. Esse primeiro passo das mulheres à um
espaço maior de visibilidade na sociedade, foi calcado de dificuldades, perante os preconceitos
referentes ao sexo. Em contrapartida, significou uma oportunidade única de conseguir uma
liberdade e autonomia.

A FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO

O final do século XIX e início do século XX foi marcado pela tradição de que a mulher
não possuía as atribuições necessárias para a concorrência com os homens, em termos
profissionais e intelectuais, logo, não poderiam ocupar as funções que estes ocupavam. “Nesse
contexto, o magistério de crianças configurou-se bastante adequado ao papel da mulher como
regeneradora da sociedade e salvadora da pátria e tornou-se aceitável, em termos sociais,
familiares e pessoais, que ela trabalhasse como professora” (ALMEIDA, 1998, p. 33).
Por tais situações, o magistério primário como primeiro ponto de partida profissional para
estas mulheres, se tornou paixão, não pela liberdade de escolha, mas pelo desejo, pelo esforço, de
aproveitar a oportunidade, de alcançar alguma visibilidade no espaço público e no mundo do
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trabalho. Almeida (1998, p. 75) destaca: “após isso, alguns direitos posteriores podem ser
associados à conquista do magistério pelas mulheres, como a educação feminina, a coeducação,
uma certa independência econômica e pessoal, o voto, a licença maternidade e outros”.
Notadamente, na primeira metade do século XX, o magistério sofreu um processo de
feminização, “tanto na frequência das Escolas Normais pelas moças, como pela ocupação do
magistério pelas mulheres” (ALMEIDA, 1998, p. 65). Os mesmos conceitos que atribuíram à elas
as condições desejáveis para uma boa docência (afetividade, minúcia, bondade, delicadeza, entre
outros), passaram de tal forma, a serem internalizados por elas, que como professoras, os
utilizaram como justificativa para a “escolha” da profissão. A dificuldade de conseguir espaços
em cursos superiores, fizeram com que a profissão feminina fosse de praxe a de professora
(FREIRE, 2011).
A feminização da educação passou por mudanças e trouxe por consequência, muitos
progressos para as mulheres, isto porque depois dessa ocupação (inicialmente do magistério
primário), “as mulheres conseguiram acesso ao secundário e puderam frequentar as universidades,
e, paulatinamente, foram dirigindo-se para outras profissões” (ALMEIDA, 1998, p. 75).
Compreende-se assim que o magistério de início, foi uma oportunidade de trabalho e campo de
lutas para reivindicação de direitos, inclusive o de exercer profissões que não fossem
exclusivamente a decência.
Com a oportunidade do trabalho, surgiram também maiores responsabilidades. De certa
forma, a opressão e a submissão passaram a ser alvo de lutas por espaço e respeito, a começar
pelas mulheres das classes médias e altas que conquistaram primeiro o magistério.
Ressalta-se que nas décadas iniciais do século XX, a luta feminina intensificou-se ainda
mais quando;

As mulheres posicionaram-se contra o abandono da infância e contra a prostituição,


reivindicaram maior instrução para o sexo feminino, mais acesso à cultura livresca,
desenvolveram práticas docentes, metodologias de trabalho pedagógico, escreveram
livros escolares e libelos sobre a condição feminina, defenderam seu trabalho contra
intromissões externas, além dos jornais e revistas que fundaram, dirigiram e mantiveram
por longos anos, apesar das dificuldades (ALMEIDA,1998, p. 76).

É importante destacar também as lutas travadas em muitas famílias


tradicionais/conservadoras que recriminavam o ingresso feminino na profissão. Mesmo as
mulheres que se formavam professoras, eram impedidas de ensinar pelos pais e maridos,
necessitando inclusive, em vários casos, da autorização do cônjuge para realizar a matrícula na
Escola Normal. Tais circunstâncias favoreciam o discurso de que a mulher seria um ser frágil e
incapaz de atender as obrigatoriedades de um trabalho, levando sobretudo, ao declínio da função
(ALMEIDA, 1998).
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Porém, essa visão não se sustentou, a educação começou a ser considerada fator de
desenvolvimento e mudanças significativas na visão do trabalho feminino no magistério
ocorreram (MARTINS, 2007, p. 95). Entre os anos de 1930 e 1940, as Escolas Normais se
disseminaram pelos estados brasileiros, nas capitais e cidades do interior, oficiais do governo ou
particulares. Depois de 1945, com a redemocratização do país, elas passaram a conceder
certificados para todas as mulheres no nível magistério, que lhes garantiam um tipo de ensino
técnico para ser professora de todo o ensino primário e secundário. Aliás, ambos os níveis de
ensino foram ocupados com força pelas mulheres com o passar do tempo.
Juntamente com esse momento abriram-se outras oportunidades preciosas para as
mulheres: os cursos superiores. Depois de sucessivas reformas nas Escolas Normais, da concessão
dos certificados em magistério (que passaram a ser considerados do nível médio), e das
reestruturações curriculares que preparavam de forma técnica os alunos normalistas, foram abertas
as oportunidades de continuação na formação no nível superior (ALMEIDA, 2014).
A feminização do magistério, entretanto, promoveu mudanças na profissão e representou
no Brasil um pontapé inicial importantíssimo na luta contra a desigualdade de gênero. Abraçar
discursos que afirmam que a entrada das mulheres como professoras levou ao decaimento do
magistério é infundado, principalmente diante das evidências que apontam a industrialização
como motivo do afastamento dos homens do ofício, considerando que produzia outras atividades
trabalhistas de maior valor econômico. Além disso, com o passar dos anos, a profissão se tornou
socialmente atrelada à mulher, levando muitos homens a rejeitarem a profissão por preconceitos.
Para Martins (2007), a herança deixada desde o início do século ainda persistia na escolha
do magistério como forma de alcançar mais rapidamente um trabalho remunerado pelas mulheres,
mesmo que as características maternais não fossem aplicadas a todas elas como era de se pensar.
Até o século XXI e independentemente de possuírem ou não as habilidades para serem
professoras, ainda continuaram a ingressar na profissão como primeira escolha de um trabalho no
ambiente público.

O MOVIMENTO FEMINISTA E A EDUCAÇÃO

O primeiro movimento feminista aconteceu no final do século XIX, na Inglaterra, quando


mulheres se reuniram para lutar por direitos de igualdade entre homens e mulheres. Entre os temas
discutidos estavam trabalho, educação, e um dos mais polêmico- o voto. O feminismo surge como
um movimento libertário, que busca um novo modelo de relacionamento entre homens e mulheres,
para que estas possam ter liberdade e autonomia sobre suas vidas e seus corpos (PINTO, 2010).
Ainda segundo a autora, no Brasil, a primeira manifestação pública feminista, ocorreu liderada
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por Bertha Lutz, também em prol do direito ao voto, e ficaram conhecidas como Sufragetes. Os
primeiros movimentos não duraram muito. Na Europa, Brasil e outros países, perdeu força a partir
da década de 1930 e só ganhou destaque novamente, na década de 1960.
Nesse período, na Europa e nos Estados Unidos as circunstâncias favoreciam o surgimento
de movimentos que lutavam por causas identitárias. No Brasil o cenário era de total repressão. Em
1964, veio o golpe militar que via como ameaça qualquer manifestação, inclusive feministas
(PINTO, 2010). Após a ditadura, e com a redemocratização do país na década de 80, o feminismo
viveu uma fase de intensa luta e conquistaram muitos avanços, principalmente no que se refere à
entrada da mulher no mercado de trabalho e o acesso à cultura de um modo geral.
Vários grupos de mulheres são formados em todas as regiões para tratar de temas como
direto ao trabalho, educação, saúde, terra, discutir questões acerca da violência, sexualidade,
igualdade no matrimônio, entre outros. Todo o engajamento resultou em uma das mais
significativas vitórias do feminismo brasileiro, a criação do Conselho Nacional da Condição da
Mulher (CNDM), em 1984. Quatro anos após sua criação, o CNDM contribuiu para que a
Constituição de 1988 se constituísse em uma das que mais garante direitos para as mulheres no
mundo. A conquista do direito a educação escolarizada, ao trabalho e ao voto, possibilitou a
mulher manifestar sua voz, reivindicar outros direitos e não ser apenas descrita e representada nos
textos como ocorria antigamente (BATALINI; FASCINA, 2011).
Diante do exposto, fica evidente que o direito de aprender a ler, escrever e frequentar a
escola foi conquistado com árdua luta das mulheres e grande contribuição do movimento
feminista. Vale ressaltar que algumas mulheres foram torturadas e mortas para que hoje, outras
tenham a vida que gozam. Enfatizamos também que os direitos e espaços conquistados não foi
aceito de forma pacífica, a sociedade se mostrava bastante receosa, e cheia de preconceito.
Para Bourdieu (2005, p.97), o temor ao movimento feminista, presente até mesmo nas
escolas, se dava em razão de ideias conflitantes. De um lado a escola influenciada por uma cultura
machista, almejava uma educação conservadora, de outro, os interesses feministas que pregavam
a igualdade de gênero, a liberdade e a independência das mulheres.
Com o passar dos anos e muitas lutas, a mulher foi conquistando seu espaço na educação,
e outras esferas da sociedade, ainda que em algumas destas não estejam em condições iguais,
como por exemplo na política (PINTO, 2010). Na atualidade, elas ainda enfrentam desigualdades
salariais nas mesmas funções que os homens exercem, além da dupla jornada de trabalho. Sobre
isto, basta observarmos que um homem ao chegar do trabalho, utiliza seu tempo para o descanso
ou lazer, enquanto a jornada feminina só acaba após finalizar as forças realizando afazeres
domésticos imposto pela cultura do machismo. Deste modo, o mercado de trabalho e os lares
ainda apresentam entrevas a serem superados.
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Em contrapartida, hoje em dia, a mulher representa uma provedora familiar não só nos
lares das classes baixas, como nas médias, e o ofício do magistério representa uma importante
fonte de renda. A quantidade de mulheres que buscam os cursos superiores já é maior em relação
de homens, emergindo assim uma geração feminina que busca a reversão histórica de
inferioridade. A participação delas só aumentou no âmbito educacional, ou seja, se antes elas eram
consideradas incapazes, atualmente elas ocupam os meios acadêmicos por suas capacidades.
Assim, as conquistas e direitos obtidos atualmente são frutos de árduas lutas de mulheres
guerreiras do passado e a continuidade por outras no presente. Como resultado, temos a presença
feminina em vários campos tradicionalmente dominados pelos homens, como ocorre na educação,
e outras ainda mais marcantes, a exemplo da ciência da computação, administração de empresas,
odontologia, engenharia, direito, medicina, engenharia civil, elétrica e hidráulica, mestre de obras,
mecânica, como também no campo político. Aos poucos derruba-se preconceitos, tabus,
ganhamos força, espaço e respeito (PRÁ; CEGATTI, 2016).

A PRESENÇA DAS MULHERES NAS ESCOLAS DE PINHEIRO

A mulheres alcançaram espaços antes não imaginados, embora não significando a


igualdade de gênero. Podemos então refletir acerca do seu trabalho na educação, que
gradativamente, por longos anos, ocuparam de forma qualitativa um lugar originalmente
concebido aos homens.
Nessa perspectiva, a cidade de Pinheiro-MA, tem um número expressivo de profissionais
que exercem à docência na escola pública. De acordo com dados fornecidos pela Secretaria
Municipal de Educação de Pinheiro (SEMED-Pinheiro) e a Unidade Regional de Educação de
Pinheiro (URE Pinheiro) em 2017, atuavam na rede municipal de ensino 1303 (mil trezentos e
três) professores e na rede estadual 257 (duzentos e cinquenta e sete), totalizamos 1.560 (mil
quinhentos e sessenta) professores da educação básica neste município. De acordo com o Plano
Municipal de Educação (PME Pinheiro), desde 2001 a gestão municipal dividiu a cidade em sede
e 12 polos da zona rural do município, com instalação 149 (cento e quarenta e nove) unidades
educacionais, distribuídas em 137 (cento e trinta e sete) escolas da rede municipal e 12 (doze)
unidades de ensino da rede estadual.
Através da pesquisa realizada pelo GEP – Formação e Trabalho Docente, foi possível
conhecer mais a respeito da formação e do trabalho dos professores da educação básica de
Pinheiro-MA. Nessa pesquisa foram obtidas informações de 405 (quatrocentos e cinco)
professores, que correspondiam a 26% de todos os professores que trabalham na educação básica
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de Pinheiro-MA no ano de 2017. Destes, 375 docentes responderam a qual gênero pertencem,
sendo 316 do sexo feminino (84%) e 59 do sexo masculino (16%).
Essa situação reflete bem o contexto histórico já destacado anteriormente, levando-nos à
reflexão de que a realidade educacional do município segue a regra histórica de feminização do
ambiente educacional do país nos últimos séculos. Vianna (2013, p. 165) destaca que essa
característica da educação se mantém no século XX e ainda persiste (não de forma negativa) no
século XXI, que apesar das intensas transformações globais, tem um cunho histórico fortíssimo
na manutenção de algumas ordens.
Os resultados da pesquisa que revelam as discrepâncias entre os gêneros atuantes na
docência, são muito semelhantes aos dados do 1º Censo do Professor realizado em 1999 pelo
Ministério da Educação (MEC), através do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP) em âmbito nacional. Os dados demonstraram na categoria
docente do ensino básico nacional, a maioria feminina chegava a ocupar 85,7% dos cargos de
professora, enquanto o sexo masculino apenas 14,1% do professorado.
Pode-se levar em consideração uma questão bastante relevante, também constituída pela
historicidade em relação ao trabalho docente: ser professor se tornou culturalmente uma profissão
feminina, tanto por sua ampla maioria ser mulheres, quanto por estereótipos- a identidade da
profissão é de praxe feminizada. Tendo em vista isso, a docência entrou no rol de profissões
consideradas femininas, como as fonoaudiólogas, nutricionistas, cozinheiras, entre outras
(VIANNA, 2013). “Assim sendo, mulheres e homens têm a sua identidade construída socialmente
[...] da forma como o mundo lhes foi apresentado pela família, escola, comunidade, enfim, pelos
grupos sociais sob o prisma da cultura de exploração” (ATAÍDE & NUNES, 2016, p. 169).
Continuando a análise dos dados da pesquisa, das 316 professoras somente 307 apontaram
sua escolaridade. Tendo uma das professoras (0,3%) declarado ter nível fundamental, duas (0,7%)
nível médio incompleto e com o médio completo 42 professoras (13,7%) atuantes. A maioria
declarou ter graduação, 146 (47,6%) e pós-graduação, 116 (37,8%).
Quanto a escolaridade dos homens, a pesquisa apontou que, do total de 58 professores
respondentes, não houve registro contendo o nível fundamental ou com o médio incompleto.
Foram apontados apenas professores com nível médio completo 10,3%, graduados 36,2% e pós-
graduados 53,4%. Não podemos deixar de destacar que somente entre as professoras houve
presença de profissionais com baixa escolaridade.
Nessa direção, a LDB aprovada em 1996 afirma em seu art. 62 que a educação básica
deverá ser suprida por profissionais formados em nível superior, por meio de cursos de licenciatura
plena. Assim, desde então, passaram a ser priorizados em admissões profissionais, pessoas com
graduação, visando que todo o ensino básico seja ocupado por profissionais com nível superior,
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diminuindo cada vez mais a atuação daqueles com apenas o nível médio, principalmente para as
etapas finais da educação básica. A obrigatoriedade é que todos os professores sejam graduados
para a atuar em sala de aula.
Ainda segundo a pesquisa do GEP- Formação e Trabalho Docente, 249 professoras
graduadas no município de Pinheiro apontaram sua área de formação. Com destaque para os cinco
cursos com mais professoras graduadas: Pedagogia, com 96 mulheres, correspondendo cerca de
38,6% dos resultados. Em segundo lugar, o curso de Letras, com 50 mulheres, apontando 20,1%.
Em terceiro, o curso de Matemática com 15 professoras (6%) graduadas na área. Em quarto, o
curso de História com 13 graduadas (5,2%) e por fim, o curso de Ciências Biológicas, com 12
professoras (4,8%). Observa-se em especial, a quantidade de professoras pedagogas atuantes no
município, e ressalta-se que a licenciatura em Pedagogia oferece um campo maior de atuação,
visto que além do ensino infantil (foco principal dos pedagogos), também habilita para as séries
iniciais do ensino fundamental.
Quanto aos homens, 46 indicaram suas formações e os cinco cursos que apontaram maiores
números foram: Pedagogia e matemática (13%), Letras (19,9%), Ciências Humanas (8,7%) e
Filosofia (6,5%). Entre as mulheres e homens, Pedagogia e Matemática estiveram entre os cursos
com mais profissionais graduados. Importante frisar que segundo o MEC, a maioria das matrículas
nos cursos de licenciatura no país, foram de mulheres, um total de 70,6%, enquanto os homens
somaram apenas 29,4%. Com 44,7% das matrículas para os cursos de pedagogia em todo o país,
tornando-se o curso de licenciatura mais procurado do Brasil, entre instituições públicas e
privadas, seguido do curso de Educação Física (11,7%) e matemática (6%) (INEP, 2018).
O MEC, através do INEP (2018), atestou que entre os vinte cursos mais procurados pelo
público feminino, o curso de Pedagogia está em primeiro lugar (em 2017 e outros anos anteriores
também). Por outro lado, Pedagogia ocupa a 19ª posição, quando se trata da escolha dos homens.
Isso significa que a licenciatura é a primeira opção da maioria feminina, podendo ser refletido na
realidade educacional pinheirense, já que as mulheres são maioria no ensino, na procura do curso
e as que mais se formam em um curso de licenciatura específico.
Com relação as disciplinas em que há mais atuação das mulheres na educação básica,
destacam-se cinco: Português e Matemática, indicadas por 16% das professoras; Geografia e
Ciências com 9% e Ensino Religioso com 8%. Percebeu-se que as duas disciplinas com maior
carga horária no currículo escolar, são também as mais ministradas por mulheres. As disciplinas
ministradas pelos professores são: Matemática 19%, História 14%, Educação Física e Português
com 10% e Ciências 9%.
Observou-se que no caso das professoras, as disciplinas de Português, Matemática e
Geografia estão conforme as cinco graduações com maiores números entre elas, enquanto as
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disciplinas de Ciências e Ensino Religioso estão em menor frequência. Desse modo, concluiu-se
que em alguns casos, há professoras ministrando disciplinas que não correspondem a sua área de
formação. Essa questão pode ser compreendida de outra forma, já que a graduação que possui
mais profissionais é o curso de Pedagogia, e este, pela abrangência de atuação (ensino infantil e
fundamental menor) é considerado por muitos como “polivalente”, já abarca diversas áreas dentro
da limitação de sua atuação.
Quanto aos docentes do sexo masculino, a pesquisa apontou que as disciplinas Português,
Matemática e História correspondem com a suas áreas de formação. Assim, os professores
formados nessas três áreas ocupam de forma igual, três das cinco disciplinas ministradas por eles.
As outras duas (Educação Física e Ciências) não estão na lista das cinco graduações em que mais
os docentes masculinos se formaram, o que quer dizer que há, da mesma forma que as mulheres,
uma defasagem entre a área da formação inicial e área de atuação profissional.
Em 2007 o INEP (2009) apontou que a defasagem entre área de formação e área de atuação
no ensino fundamental maior era de quase 50% do total de professores atuantes na disciplina de
Língua Portuguesa. Destes, 17% eram somente pedagogos, 18% só possuíam alguma
especialização e 14% não tinham qualquer formação na área. O mesmo ocorria com a disciplina
de Matemática, com 43,9% de profissionais na área, e o restante era compartilhado por pedagogos
(16,9%), alguma área específica (0,8%) e outras áreas (38, 3%).
Diante dessa situação, a meta 15 do PNE 2014-2024 objetiva e estipula diversas estratégias
acerca das formações docentes, inclusive no que tange à oferta dos cursos superiores com maiores
incentivos em áreas com grandes índices de defasagem formação-atuação.
Outros dados importantes acerca de realidade pinheirense, diz respeito a atuação docente
nos níveis da Educação Básica. Essa composição também destaca diferenças acentuadas entre
homens e mulheres. De 332 mulheres que destacaram sua área de atuação na educação do
município: 95,8% atuam na educação infantil, 94,6% ensino fundamental menor (1º ao 5º ano),
76,9% no ensino fundamental maior (6º ao 9º ano) e 71,6% no ensino médio. Os homens-
professores atuam: 4,2% no ensino infantil, 5,4% no ensino fundamental menor, 23,1% no
fundamental maior e 28,4% no ensino médio.
É evidente que os resultados mostram que a ampla maioria docente em todos os níveis
educacionais do município é feminina, porém é notória que há um aumento da participação
masculina conforme aumenta o nível de ensino. Tal situação provavelmente está associada ao fato
de que o ensino primário em sua totalidade foi atribuído como dever/função feminina, enquanto
que, os níveis “maiores” foram atribuídos a elas posteriormente ou ocupados gradativamente
conforme lhes eram permitidas. Dessa maneira, educação básica feminizada é uma herança
cultural.
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A feminização do ensino primário foi evidente, em pouco tempo as mulheres se tornaram


maioria absoluta, quase a totalidade, sob um discurso de dever sagrado que impregnava as
mentalidades acerca da profissão, considerando como aceitável que elas fossem educadoras nata
de crianças (ALMEIDA, 2014). Consequentemente, os resquícios históricos desse processo ainda
influenciam a realidade vigente, haja vista pesquisas (como a realizada no município de Pinheiro)
apontarem poucas variações na educação básica contemporânea, os dados ainda revelam a maioria
absoluta das mulheres nas primeiras etapas da educação básica.
Quanto aos cargos de gestão, segundo dados das secretarias Estadual e Municipal de
Educação, o quantitativo de gestores municipais de acordo com o gênero corresponde a 50
gestores escolares atuantes no ano de 2019, sendo 39 mulheres (78%) e somente 11 homens (22%).
As escolas estaduais (em menor número no território municipal), contam com 11 gestores,
sendo sete deles mulheres e quatro homens, totalizando 64% de participação feminina, contra 36%
da masculina. Tanto a rede municipal quanto a estadual apresentaram números maiores referente
às mulheres atuantes nas gestões escolares da rede do ensino básico no município.
Diante dos resultados obtidos na pesquisa, pode-se concluir que as escolas da rede de
educação básica do município de Pinheiro são feminizadas, não somente no professorado, mas
também nas gestões. Os dados apontam que 83% dos professores e gestores escolares são
mulheres no município, e 17% são homens. Se por determinado tempo elas ocuparam somente as
salas de aula, hoje elas são maioria até em cargos de liderança escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O levantamento teórico realizado para esta pesquisa possibilitou o resgate histórico da


educação ofertada as mulheres no Brasil, fornecendo informações importantes sobre a docência,
as relações de gênero e como ela foi se modificando ao longo do tempo. No início da colonização
a educação foi negada as mulheres. Estas eram consideradas biologicamente inferiores aos homens
e seu papel era cuidar da família, logo o único espaço que atuavam era o doméstico. Apenas na
segunda metade do século XX as mulheres conseguiram superar os entraves educacionais e
dominar o espaço escolar, mas isso ocorreu por meio de acirradas lutas das próprias mulheres, que
gradativamente tem conquistado direitos historicamente masculinos.
Dessa forma, por razões históricas, ser professor aos poucos, se tornou a profissão mais
procurada por mulheres, enquanto os homens passaram a se concentrar em outras.
Consequentemente à docência na educação básica foi se feminizando gradativamente.
Impulsionados por movimentos sociais e ao aperfeiçoamento da legislação educacional,
nas últimas décadas, em algumas etapas de ensino a diferença entre as mulheres e os homens
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elevou-se a favor do sexo feminino, como é o caso da Educação Infantil. Não se aboliu os homens
das escolas, eles continuam ali, porém com diferença marcantes em todos os níveis de ensino, em
alguns casos com maior e outros com menor proporção. É notável a majoritária presença feminina
nas escolas, inclusive nos cargos de liderança, antes ocupados por homens.
Atualmente, as mulheres são maioria na educação básica e nos cursos superiores, assim
como em outros campos/esfera da sociedade. As pesquisas realizadas demonstraram que o
predomínio das mulheres na educação atinge não somente no cenário nacional, mas numa escala
menor, como ocorrido no município de Pinheiro-MA. Dessa forma, consideramos que a docência
do município é também feminizada em todos os níveis de ensino, além dos cargos de gestão e
lideranças educacionais.
Os dados obtidos pela pesquisa no município retratam ainda algumas questões situadas em
âmbito nacional, além das disparidades entre os gêneros, por exemplo, a defasagem entre
formação e atuação de profissionais não qualificados, atuando ainda com pouca escolarização.
Essa é uma realidade que repercute tanto em escala macro e como micro também.
A luta das mulheres é histórica e apesar das conquistas de direitos em relação ao trabalho
e da crescente participação na sociedade, as questões de gênero requerem mais articulação das
mulheres com os movimentos sociais e feministas, para tornarem-se mais politizadas e
valorizadas.

REFERENCIAS

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UNESP, 1998.

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MANIFESTAÇÕES CULTURAIS DA REGIÃO NORDESTE: UMA ANÁLISE DA SUA


REPRESENTAÇÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS

CULTURAL MANIFESTATIONS IN THE NORTHEAST REGION: AN ANALYSIS OF


ITS REPRESENTATION IN TEXTBOOKS

Railma de Jesus Silva Ribeiro


Estudante de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Dinalva Pereira Gonçalves
Mestra em Educação
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Eixo 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: As formas culturais de uma população são passadas entre as gerações com o objetivo de
manter vivas suas crenças, costumes e valores. No entanto, em algumas sociedades ocorre a
supervalorização de uma cultura em detrimento de outras, havendo preconceitos e marginalização
a partir de estereótipos construídos historicamente, o que pode ser percebido no Brasil em relação
às culturas dos índios, negros, homossexuais, ciganos, pessoas de religiões de matriz africana
como o candomblé, nordestinos, etc. Este trabalho tem como objetivo realizar uma breve análise
de como as culturas da região Nordeste são negligenciadas no currículo escolar, tomando por base
livros didáticos. Como metodologia, utilizamos a pesquisa bibliográfica por meio de levantamento
de obras/trabalhos que versam sobre a temática, bem como a análise de livros didáticos dos anos
de 2008 a 2017 do 1º ao 5° ano do Ensino Fundamental, área de História. De acordo com os dados
levantados, foi possível verificar que o Nordeste é lembrando sempre pela histórica desigualdade
social que é atribuída a todos os estados nordestinos, que traz como consequência o silenciamento
da história dessa região no currículo escolar.
Palavras-chave: Cultura nordestina. Currículo. Educação. Livro didático.

Abstract: The cultural forms of a population are passed on between generations in order to keep
their beliefs, customs and values alive. However, in some societies there is an overvaluation of
one culture at the expense of others, with prejudices and marginalization based on historically
constructed stereotypes, which can be seen in Brazil in relation to the cultures of Indians, blacks,
homosexuals, gypsies, people of African religions such as Candomblé, Northeasterners, etc. This
work aims to carry out a brief analysis of how cultures in the Northeast are neglected in the school
curriculum, based on history textbooks. As a methodology, we use bibliographic research through
a survey of works / works that deal with the theme, as well as the analysis of textbooks from the
years 2008 and 2017 from the 1st to the 5th year of Elementary Education, History area. According
to the data collected, it was possible to verify that in the researched books, the Northeast is always
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remembered for the historical social inequality that is attributed to all the Northeastern states,
which results in the silencing of the history of this region in the school curriculum.
Key words: Northeastern culture. Curriculum. Education. Textbook.

INTRODUÇÃO

Quando nos referimos à região Nordeste do Brasil é comum observarmos associações que
se referem, mais precisamente, às manifestações folclóricas e à problemas de ordem social como
a fome e a seca, ou seja, imagens deturpadas que, muitas vezes, a própria mídia divulga.
As manifestações culturais brasileiras apresentam características próprias, legados da
cultura dos colonizadores portugueses, negros e índios, além de outros povos que migraram para
este país. A região Nordeste, especificamente, desenvolveu hábitos próprios em relação às demais
regiões, desenvolvendo manifestações culturais diversificadas e bastante expressivas, as quais
foram herdadas e recriadas a partir das contribuições dos diversos grupamentos étnicos que
formaram a sociedade brasileira e, desse modo, continuam sendo perpetuadas de geração em
geração.
Para iniciar nossa discussão, veremos que cultura tem uma multiplicidade de
interpretações. Para Williams (2007), a palavra cultura vem da raiz semântica colore que originou
o termo em latim cultura, de significados diversos como habitar, cultivar, proteger, honrar com
veneração. O uso do termo “cultura” era utilizado com diversos significados. “Tomando em seu
amplo sentido, cultura é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis,
costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade” (Laraia, 2006 apud Canedo, 2009, p.04). Portanto, de acordo com a passagem, cultura
é o modo de vida que pode ser individual ou coletivo, ou seja, é o resultado de como o ser humano
interpreta e reflete sua vivência, seja pelo conhecimento, ou pelos costumes, artes, crenças,
literatura popular e danças, dentre outros.
No entanto, alguns modos de vida, algumas culturas coexistem na sociedade em situações
de ocultamentos ou silenciamentos em relação a outros modos de viver considerados aceitos,
legítimos ou até superiores. Neste sentido, Paulo Freire (1976, p. 39 e 40), em seu livro Ação
Cultural para a Liberdade e Outros Escritos, afirma que “na cultura do silêncio as massas são
‘mudas’, isto é, elas são proibidas de criativamente tomar parte na transformação da sociedade e,
portanto, proibidas de ser”.
A história, ao longo dos anos, associa o Nordeste como parte do país pobre, miserável,
cercado pela seca e pela desigualdade social. E isso acaba sendo propagado pelos livros didáticos,
os quais mencionam a extrema pobreza de algumas cidades da região e com isso generalizam todo
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esse lugar. O Nordeste é visto sempre de uma forma generalista e sem uma identidade própria,
representado como um só local, onde a miséria e desigualdade social prevalecem, associado à
imagem da terra seca e da fome.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) de História recomendam que o ensino de história deve ser trabalhado em conjunto com a
história local, sendo esta adaptada ao currículo escolar; porém o que ocorre com frequência é a
transformação da cultura local em manifestações superficiais de determinados períodos do ano
letivo.
Este trabalho foi desenvolvido tomando por base bibliografias que versam sobre a temática
e análise de livros didáticos de História encontrados/utilizados em escolas da rede pública de
ensino do município de São Bento, interior do estado do Maranhão.
Embora tenhamos nos deparado com dificuldades para o desenvolvimento deste trabalho,
especialmente por conta da escassez de materiais impressos e/ou conteúdos publicados a respeito
do tema, esperamos que este estudo possa contribuir com pesquisas futuras e com reflexões acerca
das intencionalidades do currículo escolar, questão esta que não pode ser ignorada pelos
educadores.

A CULTURA REGIONAL NORDESTINA NO ENSINO DE HISTÓRIA

A história, ao longo dos anos, tem associado o Nordeste como parte do país pobre,
miserável, cercado pela seca e pela desigualdade social. De acordo com Albuquerque Junior
(2009) apud Nascimento e Lira (2018), os historiadores que separavam o estudo de história do
Brasil e história do Nordeste, acabavam por produzir uma espécie de subordinação. A cultura
nordestina não é de fato representada na história como cultura popular, mas na maioria das vezes,
simplesmente como manifestações folclóricas.
Os documentos educacionais oficiais como a BNCC e os PCNs de História orientam os
sistemas de ensino para adaptações curriculares nas quais o ensino de história possa se articular a
história local, permitindo assim que os alunos tenham oportunidade de conhecer e valorizar os
aspectos históricos e culturais de suas localidades. No entanto, o que ocorre com muita frequência
no âmbito escolar, é uma folclorização da cultura local, transformando-a em manifestações
superficiais em determinados períodos do ano letivo. A esse tipo de abordagens pontuais, Santomé
(2013) denomina de currículo turístico, ou seja, “unidades didáticas isoladas, nas quais,
esporadicamente, pretende-se estudar a diversidade cultural” (Santomé. 2013, p. 167). Este
mesmo autor chama a atenção para um tipo de atitude de currículo turístico muito usual, a
trivialização, ou seja,
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[...] estudando os grupos sociais diferentes dos majoritários com grande superficialidade
e banalidade. Estudando, por exemplo, seus aspectos mais de estilo turístico, por
exemplo, seus costumes alimentares, seu folclore, suas formas de vestir, seus rituais
festivos, a decoração de suas habitações, etc. (Santomé, 2013, p. 168).

Outro tipo de atitude do currículo turístico é a tergiversação, uma estratégia que visa
deformar e/ou ocultar as origens históricas de comunidades alvo de marginalização social,
justificando a opressão vivenciada por estas “devido à sua inferioridade genética, à sua
vagabundagem, à sua maldade inata, etc.” (Santomé, 2013, p. 169).
Esses tipos de atitudes costumas fazer parte das práticas curriculares. A escola acaba sendo,
nesses casos, um instrumento de reprodução e reforçador de preconceitos regionais, o que pode
ser percebido em determinados livros didáticos distribuídos aos sistemas de ensino público e
particular em todo o Brasil.
A partir dessas reflexões, discutiremos a seguir, de que forma a cultura nordestina tem sido
negada, deturpada e/ou ocultada nos currículos escolares, em especial nos livros de História, e as
consequências dessa problemática.

REPRESENTAÇÃO DA CULTURA REGIONAL NORDESTINA NO LIVRO DIDÁTICO


DE HISTÓRIA

Para efetivação desta pesquisa, procuramos livros didáticos da área de História, do 1º ao


5° ano do Ensino Fundamental, publicados entre os anos de 2008 e 2017. Analisamos 09 livros
que foram e ainda são utilizados nas escolas públicas municipais do município de São Bento/MA.
A seguir, uma tabela com informações dos livros analisados:
Quadro 2 - Relação dos livros didáticos analisados

Nome do livro Editora Ano


Ápis: História – 3º ano: Editora Ática 2017
ensino fundamental
Ápis: História – 5º ano: Editora Ática 2017
ensino fundamental
Aprender Juntos História: 3º Edições SM 2017
ano
Coleção Quatro Cantos: 1º Editora Dimensão 2017
ano.
Coleção Quatro Cantos: 4º Editora Dimensão 2017
ano
Coleção Quatro Cantos: 5º Editora Dimensão 2017
ano
Vamos aprender história: 4º Edições SM 2017
ano ensino fundamental
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Culturas e regiões do Brasil – Editora Global 2014


4º e 5º ano
Projeto Pintanguá: História – Editora Moderna 2008
1ª série
Fonte: Produzido pelas autoras (2019)

Observamos, em todos os livros pesquisados, que os mesmos mencionam a cultura


nordestina de uma forma generalista, a exemplo do frevo e da capoeira, patrimônios imateriais da
humanidade no Brasil, como representação limitada de toda uma região que, ao contrário, é
imensamente rica e diversa. Os livros também enfatizam a extrema pobreza de algumas cidades
da região, deixando a impressão de lugar indigno, insignificante.
Nessa perspectiva, outros estudos sobre a representação do Nordeste nos livros didáticos,
endossam nossas constatações:

O Nordestino é descrito, até nas ilustrações, como migrante e retirante. Em muitos livros
didáticos vi uma imagem similar: o personagem maltrapilho desenhado sob um sol
escaldante, a terra cheia de sulcos e aridez, ele com uma trouxinha, acompanhado de uma
mulher grávida com outra criança no colo, e uma legenda explicando que “Nordestinos
partem em busca de melhor destino”. Um certo livro escolar dá como título ao capítulo
que fala do Nordeste “penando na terra”, com imagem de seca e sertão. Enquanto isso,
ao apresentar o Sudeste, o capítulo seguinte traz foto de cenas urbanas, contextos
industriais e desenvolvimento. Esse discurso reforça uma suposta condição de
inferioridade daquele que nasce uma “região problema”, “afligida” por um fenômeno
climático. (Ramal, 2014, s/p).

De acordo com Albuquerque Júnior (2009), o caráter da região e da população do Nordeste


foi criada não só pela visão de outras partes do Brasil, mas, a própria literatura local,
principalmente no começo do século XX, reproduziu a imagem de “colonizados e de miseráveis
vítimas da seca: obras como as de Jorge Amado, Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto
produzem Nordestes vistos pelo avesso; Nordestes como região da miséria e da injustiça social
(Albuquerque Júnior, 2009 apud Nascimento e Lira, 2018, p. 169). A BNCC e os PCNs de História
dos anos iniciais, preconizam que o ensino de história deve ser trabalhado em conjunto com a
história local, ou seja, que possam haver adaptações, permitindo assim que os alunos tenham
acesso à cultura de suas localidades.
Os livros analisados também não retratam as belezas naturais da região, nem diferenciam
os estados, identificando-os como um só local, onde a miséria e desigualdade social prevalecem
em todos eles.

O Nordeste é uma das regiões mais pobres do país, inegavelmente. Mas as razões são
diversas: históricas, econômicas, políticas – jamais biológicas – como apontam os que
defendem uma superioridade humana dos que vivem na parte de baixo do mapa brasileiro
(Mota, 2018, s/p).
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Outro aspecto observado sobre a cultura nordestina nos livros didáticos é o exemplo dos
brincantes da quadrilha junina, estes sempre apresentados com roupas remendadas e sem dentes,
reforçando a ideia de pobreza e descasos na região.
Enquanto que, o Sudeste é representado nos livros didáticos como a parte que é mais
desenvolvida do país, que possui as melhores condições de vida e trabalho, trazendo fotos de cenas
urbanas, contextos industriais e a evolução que essa parte do país teve, passando a sensação que a
região Sudeste é superior ao Nordeste.
Diante do exposto, foi possível verificar como posicionamentos e atitudes preconceituosas
e discriminatórias podem ser reforçadas no espaço escolar, por meio dos seus currículos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A região nordestina possui uma vasta e heterogênea cultura. Entretanto, o Nordeste é


lembrando sempre pela histórica desigualdade social, que é atribuída a todos os estados dessa
região, que traz como consequência o silenciamento dos aspectos históricos e culturais no
currículo escolar.
Por meio desta pesquisa (ainda num estágio bem embrionário), foi possível observar que
a cultura nordestina é demonstrada nos livros didáticos de forma diminuta, em muitos casos sequer
é mencionada. É notória a desvalorização da região nordestina que carrega consigo heranças
pejorativas ao logo dos séculos, associada às imagens de terra seca e de fome, diferentemente das
regiões sul e sudeste que são sempre valorizadas e vinculadas à fartura e sucesso.
O Nordeste é lembrando sempre pela histórica desigualdade social que é atribuída a todos
os estados nordestinos, que traz como consequência o silenciamento da história dessa região no
currículo escolar.

REFERÊNCIAS

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WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução de
Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007.
Página 619 de 2230

METODOLOGIAS ATIVAS COM TIC: UMA ESTRATÉGIA COLABORATIVA PARA


O ENSINO DE ADMINISTRAÇÃO

ACTIVE METHODOLOGIES WITH TIC: A COLLABORATIVE STRATEGY FOR


THE TEACHING OF ADMINISTRATION

Verissimo Barros dos Santos Junior


Administrador, pós-graduando em Informática na Educação
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão
Jean Carlos da Silva Monteiro
Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão
Jornalista
Eixo Temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: A necessidade de ressignificação do modelo tradicional de ensino leva as instituições a


adotar metodologias ativas de aprendizagem para aperfeiçoar o ensino e tornar o processo
formativo mais significativo, em que o aluno assume o seu papel ativo e protagonista da
construção do seu próprio conhecimento. Essa mudança traz consigo um grande desafio:
desenvolver o pensamento crítico dos alunos, tornando-os capazes de solucionar problemas, criar
estratégias viáveis e que, após esse momento de aprendizagem, eles possam adquirir a habilidade
de transferir o que aprenderam em situações reais para além do ambiente educacional. Nesse
contexto, aborda-se as metodologias ativas de aprendizagem com uso das Tecnologias de
Informação e Comunicação (TIC) e como elas estão sendo desenvolvidas nos Cursos Técnicos de
Administração. Analisa a implementação de um experimento realizado na disciplina
Empreendedorismo, do Curso Técnico em Administração do Centro de Ensino Técnico e
Profissionalizante do Maranhão - CEMP/MA. Trata-se de uma pesquisa de caráter descritivo e
exploratório, elenca aspectos conceituais acerca das metodologias ativas e das TIC e, por fim,
apresenta como ocorre sua aplicação no decorrer da disciplina. Investiga as contribuições das
metodologias ativas por meio da aplicação de um questionário com 45 alunos matriculados na
disciplina. Descreve as exigências para formação do administrador e investiga como as
metodologias ativas e as TIC auxiliam nesse processo. Evidencia que as metodologias ativas
favorecem a capacidade de reflexão do aluno, tornando-o mais proativo na sua formação
acadêmica e profissional, tendo condições de detectar problemas e buscar soluções para questões
reais de seu cotidiano, e que as instituições formadoras devem potencializar a formação
continuada dos professores para que estes integrem as metodologias ativas nas práticas de ensino
dos futuros técnicos em administração na busca de qualificação na formação profissional.

Palavras-chaves: Metodologias Ativas. TIC. Ensino Técnico. Administração.


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Abstract: The need to transform the traditional teaching model requires institutions to seek active
learning methodologies to improve themselves. With this, they hope to make the training process
more meaningful, leading the student to assume his active role and protagonist in the construction
of his own knowledge. This change brings with it a great challenge: to develop students' critical
thinking, making them capable of solving problems, creating viable strategies. It is also expected
that, after this moment of learning, they can acquire the ability to transfer what they have learned
in real situations beyond the educational environment. In this context, we seek to think about active
learning methodologies using Information and Communication Technologies (ICT) and how they
are being developed in Technical Management Courses. The implementation of an experiment
carried out in the Entrepreneurship discipline of the Technical Course in Administration of the
Technical and Vocational Training Center of Maranhão - CEMP / MA is analyzed. This is a
descriptive and exploratory research that lists conceptual aspects about active methodologies and
ICT and, finally, presents how its application occurs during the course. The contributions of active
methodologies are investigated through the application of a questionnaire with 45 students
enrolled in the discipline. The work also describes the requirements for training the administrator
and investigates how active methodologies and ICT assist in this process. It is evident that the
active methodologies favor the student's ability to reflect, making him more proactive in his
academic and professional training, being able to detect problems and seek solutions to real issues
in his daily life. It is also recognized that the training institutions must enhance the continuing
education of teachers so that they integrate the active methodologies in the teaching practices of
future technicians in administration in the search for qualification in professional training.
Keywords: Active Methodologies. ICT. Technical education. Administration.

INTRODUÇÃO

Vive-se uma constante e crescente informatização da sala de aula. Cada vez mais,
professores e educadores têm aderido às tecnologias, trazendo-as para sua realidade. São
diferentes as formas de se conectar com seus alunos e de economizar tempo de trabalho
(POLINARSKI, 2019).

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) têm causado uma verdadeira


revolução nas práticas pedagógicas, apresentando um “mundo novo” para os alunos por meio das
informações passadas em tempo real e ao acesso de todos na palma da mão (POLINARSKI, 2019).
Neste sentido, é essencial pensar sobre a relação aluno e novas práticas pedagógicas.

Apresenta-se a importância das metodologias ativas com TIC nas práticas pedagógicas no
ensino técnico. Tem como objetivo interligar o aluno com a prática de sua área especifica de
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estudo (nesta pesquisa a área da administração), tornando-o elemento principal em um processo


formativo que utiliza as tecnologias para levar novas experiências para a sala de aula.

Ao longo do artigo, relata-se uma experiência feita na disciplina Empreendedorismo, do


Curso Técnico em Administração do Centro de Ensino Técnico e Profissionalizante do Maranhão
- CEMP/MA, em que se realizou atividades práticas com o auxílio das TIC. A escolha do tema se
deu pelos impactos advindos da inserção estratégica de metodologias ativas e das TIC no processo
educacional.

Discute-se, ainda, sobre algumas ferramentas que enriquecem o processo de


aprendizagem, como o Google Formulários, Google Sala de Aula, Kahoot e o YouTube,
demonstrando as características de cada plataforma.

Com os avanços das tecnologias e o surgimento de novas descobertas na indústria, na


saúde, assim também como na substituição de espaços físicos por meios online e a personalização
do produto e/ou serviço, tornou o mercado mais exigente e mantem uma busca continua por
soluções simples e rápidas. Diante de todas essas demandas e necessidades mercadológicas, as
instituições de ensino (principalmente aquelas que oferecem o curso de Administração) têm
buscado novas metodologias para aperfeiçoar o conteúdo que é ministrado em sala de aula às
novas tendências do mundo do trabalho (POLINARSKI, 2019).

“O que eu ouço, eu esqueço; o que eu vejo, eu lembro; o que eu faço, eu compreendo.”


(CONFÚCIO, XXX p. XX). Formulada há cerca de 2,5 mil anos, a reflexão do pensador e filósofo
chinês Confúcio foi retomada por pedagogos, psicólogos e estudiosos para fundamentar a
utilização de metodologias de aprendizagem mais interativos e envolventes em sala de aula:
chamadas de metodologias ativas. A metodologia tem como objetivo inserir o aluno como
protagonista de sua própria aprendizagem, torna-lo ser autônomo capaz de buscar seus próprios
conhecimentos e gerar informações críticas e estar com olhar atento para busca de soluções em
diversas áreas (CONTIN, 2015).

As metodologias ativas têm tomado as salas de aula no intuito sanar a necessidade na


formação desses profissionais, tornando o aluno protagonista de sua própria aprendizagem. A
saturação no modelo tradicional de aula leva as instituições a adotar metodologias ativas de
aprendizagem para motivar os estudantes e tornar o processo aprendizagem mais motivacional,
interativo e significativo (CONTIN, 2015).

FUNDAMENTOS DA METODOLOGIA ATIVA DE APRENDIZAGEM


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Por muito tempo o professor era conhecido como detentor do conhecimento, o único em
uma sala de aula capaz de responder perguntas e fazer questionamento para os alunos. As práticas
se limitavam a centralização do professor e tornavam o aluno um ser passivo, apenas capaz de
receber informações, sem opinar sobre o conteúdo transmitido, que muitas vezes ocorria por meio
de aulas expositivas (MARLEINE, 2018).

É imprescindível que os professores possam se atualizar e adotar novos métodos de ensino,


pois o desafio de dar aulas aos jovens de hoje exige tal preparação (MARLEINE, 2018). O
estudante não se contenta com a metodologia tradicional, não tem interesse e acha desmotivador.
Por outro lado, visualiza-se um outro cenário em que a inserção das tecnologias traz mudanças
comportamentais, cognitivas e psicomotoras.

Mais do que uma simples transferência de conhecimento, aprender está ligado à capacidade
de compreender e fazer uso de raciocínio crítico e analítico. Assim sendo, tira-se de cena a
memorização para incentivar o desenvolvimento de estruturas cognitivas que facilitam a
recuperação de informações relevantes, quando estas vierem a ser necessárias para a solução de
problemas (NORO, 2012).

Cabe destacar que metodologias ativas não se constituem em algo novo, pois, segundo
Abreu (2009), o primeiro indício dos métodos ativos encontra-se na obra Emílio, de Jean Jacques
Rousseau (1712-1778), tido como o primeiro tratado sobre filosofia e educação do mundo
ocidental e na qual a experiência assume destaque em detrimento da teoria.

Buscando inovar em relação a este modelo tradicional imposto e aceito ao longo do tempo,
tem-se lançado mão das metodologias ativas de aprendizagem, nas quais é dado forte estímulo ao
reconhecimento dos problemas do mundo atual (tanto nacional quanto regional), tornando os
alunos capazes de intervir e promover as transformações necessárias (NORO, 2012).

METODOLGIAS ATIVAS NA FORMAÇÃO DE ADMINISTRADORES

A utilização de metodologias ativas é descrita nesse artigo com base em análises que foram
obtidas por meio da aplicação da metodologia ativa em uma turma contendo 45 alunos do curso
técnico em Administração. As práticas metodológicas foram inseridas dentro das aulas da
disciplina de Empreendorismo que contem 40 hora/aulas na grade curricular do curso.

As aulas ocorreram no turno da noite de forma presencial durante toda a disciplina. Os


alunos foram inseridos em uma atividade prática já na primeira aula. Após a apresentação da
disciplina, o professor (que será denominado nesse artigo como mediador do processo de
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aprendizagem) pediu aos alunos que anotassem em seus cadernos um problema (dificuldade)
encontrada no percurso entre a casa/trabalho até a escola.

Após a solicitação feita, alguns foram terminando e já se mostravam ansiosos para


compartilhar com a turma as situações-problema do seu cotidiano. O mediador pediu para que
todos os alunos compartilhassem os problemas na turma, colocando as cadeiras em formato de
círculo – medida para facilitar com que todos os alunos possam ter um melhor contato visual e
receber feedback do grupo (PINAL, 2014).

Os problemas foram colocados diante da turma e o mediador anotou todos no quadro. Ao


finalizar, solicitou aos alunos que votassem nos problemas que tem maior impacto na sociedade.
Os problemas mais votados se tornaram temas das equipes, o mediador direcionou as equipes para
discutir o problema escolhido e votado por eles. Os mais votados foram: transporte público,
marcação de consultas no SUS e no sistema privado, comunicação nas empresas e compras de
roupas para recém-nascidos.

A turma foi dividida em nove equipes. Estas foram desafiadas a disputarem entre si, em
que cada etapa daria uma pontuação que serviria como classificação. Cada equipe ficou com um
dos temas mais votados descritos acima.

As aulas da disciplina sempre se realizaram com base na teoria e logo aplicado na prática.
Na administração sempre se visualiza um problema como oportunidade de negócio lucrativo
(DORABELA, 2017). Partindo dessa afirmação, os alunos aprendiam um dos conceitos de
empreendedorismo: a arte de resolver problemas e lucrar com a solução deles.

Durante todas as aulas os alunos foram colados em situação de protagonista, sendo


responsáveis pela busca de conhecimento, motivados a pesquisarem e resolverem os problemas
propostos pela equipe. Após identificar a “solução” lucrativa, o mediador começou outro processo
teórico que em seguida foi colocado em prática, a validação - nesta etapa, os alunos tiveram que
garantir que as informações estavam de acordo com a fundamentação de dados comprobatórios,
dando-lhes segurança para continuar com o planejamento da ideia lucrativa.

Após a validação, o próximo passo foi prototipar o projeto. Na administração, a


prototipagem tem como finalidade apresentar o planejamento/esboço do produto e/ou serviço.
Serve para ser testado a fim de melhor atender à necessidade do cliente. Nesta etapa, os alunos
mostravam tangivelmente seus projetos e produtos que, com base nos problemas acima descritos,
se tomaram soluções lucrativas.
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Durante o processo de validação, os alunos foram inseridos dentro do universo das


diferentes TIC para buscar resultados (ideias) e, consequentemente, e fortalecer a aprendizagem.
Os apps inseridos no plano de aula foram:

a) Kahoot

Aplicativo disponível nas principais lojas digitais (Android e iOS) – gratuito, de fácil
acesso e que permite interação dos alunos com o professor por meio digital. Apresenta
características da gamificação como o tempo, o ranking e a pontuação.

O app permite que o professor elabore perguntas na plataforma, permite quatro possíveis
opções de respostas, destacando a correta e ajuste do tempo. Após a elaboração do questionário,
o app disponibiliza um código que é a chave de acesso para os alunos assinalar as respostas. Ao
enviar as respostas, os nomes dos alunos aparecem na plataforma formando o ranking. Com a
utilização do Kahoot foi realizado revisões ao final de três aulas da disciplina.

Figura 01 – Plataforma digital do Kahoot.

Fonte: Elaboração dos próprios autores (2019).

b) Google Formulários

Disponível de forma gratuita, a plataforma oferece a possibilidade do professor criar


tarefas e avaliações online. As tarefas podem ser respondidas pelos alunos por meio das salas de
informática da instituição, celulares, tablets ou qualquer dispositivo com acesso à internet.

Uma nova e bem interessante forma de avaliação pode acontecer por meio do próprio
aplicativo. No app o professor consegue criar tarefas ou pequenos testes pelo google formulários,
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de forma que se obtenha as notas logo após o efetivo cumprimento da avaliação pelo aluno. Com
isso, ganha-se tempo tanto na realização como na correção da prova.

O professor também poderá configurar o formulário online para correção automática de


perguntas objetivas. Essa correção pode ser feita por meio do envio de um e-mail para um aluno
específico ou de um comentário padrão para toda a turma.

Figura 02 – Questionário aplicado com a turma com o Google Formulários.

Fonte: Elaboração dos próprios autores (2019).

c) Google Classroom

O google classroom é uma plataforma que pode ser utilizada em computadores, assim
como em aplicações disponível para smartphones e tablets. Seu diferencial está no sistema de
feedback que é disponibilizado para que o professor possa dar todo suporte aos alunos do início
até o final das atividades. O sistema de atividade ou postagem na plataforma vai gerar uma
notificação direta no e-mail do aluno e no aplicativo Google Classroom Mobile.

O Google Classroom vem sendo melhorado constantemente pelo Google, através das
opiniões fornecidos pelos usuários da plataforma. Daudt (2015) cita algumas funcionalidades do
Google Classroom que são: criação de turmas virtuais; lançamento de comunicados; criação de
avaliações; receber os trabalhos dos alunos; organização de todo material de maneira facilitada e
otimização da comunicação entre professor e aluno.

Para Araújo (2016), as utilizações de tecnologias online permitem um potencial de ensino


inovador. Nesse sentido, o app foi utilizado durante toda a disciplina, por todos os alunos com uso
em diferentes atividades: postagens de pesquisas, fóruns de discursões, postagem de matérias e
interatividade com outros membros.
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Figura 03 – Plataforma Google Classroom – visão das postagens realizadas pelo professor.

Fonte: Elaboração dos próprios autores (2019).

d) YouTube

Plataforma digital livre, com versão gratuita, que armazena conteúdo em audiovisual. Pode
ser utilizada de diversas formas para obtenção de resultados educacionais, como por exemplo
vídeos que demonstram o dia-a-dia do administrador.

Durante a disciplina foram compartilhados links de vídeos com os alunos para fomentar
debates na turma. A ferramenta facilita a visualização do real e é atraente para os alunos.
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Figura 04 – Plataforma digital do Kahoot que foram aplicadas na turma.

Fonte: https://www.youtube.com/results?search_query=PITCH+DE+NEGOCIOS (2019).

Ao final da disciplina, o mediador realizou com a turma um evento de apresentação das


ideias (denominado Pitch de negócios), para outra turma do mesmo curso. A intensão foi fazer
com que os alunos da outra turma comprassem a ideia da empresa e votassem na melhor
apresentação, gerando uma disputa chamada na Instituição como I Jornada Empreendedora Ativa
do CEMP – MA.

As apresentações foram realizadas com duração média de 20 minutos por equipe, onde
mostraram todos os passos das atividades até a idealização da empresa (negócio lucrativo) que
surgiu da análise crítica de um problema. Após apresentação, os alunos responderam um
questionário sobre a experiência. Ao final, receberam o resultado da disputa de melhor empresa
(apresentação em Pitch) da noite.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Esta pesquisa classifica-se como qualitativa, de caráter descritiva, desenvolvida a partir de


um estudo de caso (YIN, 2009). A aplicação do questionário ocorreu em novembro de 2019,
entrevistando-se 43 de um total de 45 alunos. Para a observação participante valeu-se dos relatos
do professor.

As entrevistas oriundas dos questionários e os relatos do professor foram transcritos e


avaliados se as respostas atendiam os objetivos da pesquisa, para haver assim a conferência da
precisão, fidelidade e posterior interpretação dos dados, conforme preceitos de Flick (2004) e
Gibbs (2009).

A interpretação dos dados coletados ocorreu por meio do método de Análise de Conteúdo,
o qual consiste em identificar os elementos que permitem a apreciação das comunicações e
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fornecem informações suplementares (BARDIN, 2004), os quais auxiliam no entendimento do


fenômeno estudado.

O objetivo do resultado não deseja mostrar um caminho único, mas uma alternativa para
enriquecer ainda mais a formação desses alunos sobretudo do curso de administração.

Neste sentido, com base nos objetivos da pesquisa e no referencial teórico, foram utilizadas
as categorias a priori: metodologias ativas influenciando na formação do administrador; utilização
de metodologias ativas como fator motivador em sala de aula; e a mediação baseada em problemas
para formação técnico/critica na formação dos administradores.

RESULTADOS
Após realização das atividades feitas em sala com o auxílio das metodologias ativas e das
TIC foram identificados um crescimento motivacional e no resultado individual dos alunos,
aumentando também sua participação. Foi perceptível a redução da ausência durante as aulas.
Após análises, identificou-se a diminuição de 80% no número de faltas durante as aulas da
disciplina (análise feita na turma em que foram inseridas as metodologias ativas e as TIC em
relação a turma do semestre anterior). Segundo Oliveira (2019), as atividades práticas diminuem
o número de evasão escolar.

Após pesquisas foram identificados que 70% dos alunos se sentiram mais preparados para
debater os assuntos discutidos em sala e ainda 82,3% se sentiram mais motivados para continuar
pesquisando sobre a temática central. Percebe-se, então, a importância dessa nova pratica
pedagógica para auxiliar professor e aluno na aprendizagem (ARROYO, 2000).

A comunicação com a turma foi realizada por meio do aplicativo Google Classroom, dessa
forma os alunos ficavam sabendo de todas as notícias e informações em tempo real e ainda
recebiam notificações em seus celulares, que facilitavam a comunicação e interação entre a turma.
Na pesquisa realizada com os alunos, chegou-se à aprovação de 78,7% dos alunos avaliando como
“ótima” ferramenta de comunicação e 95,9% dos alunos relatam que voltariam a utilizar a
ferramenta proveitosamente em todo o curso. Em relatos dos alunos, identificou-se a facilidade
do app para comunicação e eficiência de interação do meio. “Hoje consigo interagir com minha
turma a qualquer momento, compartilhando informações necessárias para nossa formação” (sic)
(informação escrita) (aluno 1).

Percebe-se que 4,1% dos alunos que afirmaram que não utilizariam o app em outra
disciplina se dá pela não utilização de internet em seus celulares e/ou não tem celular com acesso
à internet. Fato que nos leva a refletir que não só deve ser implantado as TIC como prática
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pedagógica em sala, mas pensar em fatores alternativos para integrar os alunos sem acesso a esse
recurso (LISBOA, 2001).

Com a utilização de questionários avaliativos online em sala, percebeu-se o crescimento


motivacional dos alunos para realização das atividades. Por meio da plataforma Kahoot, realizou-
se atividades em equipe com classificação em tempo real de pontuação, motivo que fez com que
os alunos não deixassem de vir as aulas, pois queriam acompanhar seus resultados individuais e
em equipes.

Em uma pergunta geral e direta para a turma, questionou-se sobre o uso das metodologias
ativas e das TIC em relação a sua aprendizagem. As respostas dos alunos foram surpreendentes,
visto que 81,3% dos alunos afirmam tiverem seus conhecimentos alavancados por meio dessa
prática didática e afirmaram que essa metodologia tem efeito eficaz na sala de aula. “Com essa
prática posso aprender onde estiver por meio do meu celular e nos encontros a noite aprofundo
ainda mais meu conhecimento tirando as dúvidas com o professor.” (sic) (informação escrita)
(aluno 2).

Portanto, seria importante que as metodologias ativas fizessem parte do cotidiano do


processo de aprendizagem dos cursos técnicos, de graduação e pós-graduação, em especial na
formação dos administradores. Como uma das dificuldades da aplicação das metodologias ativas
no curso técnico em administração pode-se citar a formação essencialmente técnica dos
professores e pouco pedagógica. Por outro lado, alunos com dificuldades na utilização de
tecnologias informatizadas e outras formas de aprendizado podem se tornar entraves na aplicação
das metodologias ativas durante o processo formativo (BARBOSA; MOURA, 2013).

Durante a aplicação das práticas metodológicas, com a utilização de metodologias ativas e


TIC na turma, fez-se necessário relatar os resultados obtidos para que outros
professores/administradores possam se basear nesse procedimento realizado com a turma para que
haja profissionais ainda mais preparados para serem agentes de transformação. (BARBOSA;
MOURA, 2013).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As metodologias ativas e a utilização das TIC na formação profissional dos


administradores fazem com que a aprendizagem seja transformadora, evitando a repetição dos
conteúdos ou tornando o aluno um depósito de informação. Para tal, é importante que os
professores estejam aptos a desenvolver as metodologias ativas nas aulas teóricas e práticas ao
longo de todo currículo.
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As metodologias ativas de aprendizagem contribuem para a formação de administradores


críticos e conscientes de sua participação enquanto sujeitos sociais éticos e responsáveis.
Permitem ampliar a compreensão e o uso de conhecimentos em diferentes contextos sociais,
inclusive às adaptações profissionais que envolvem transformações sociais e mudanças na forma
que a educação é vista como instrumento que garante normas, valores e estruturas sociais.

Investir em metodologias que confiram autonomia aos estudantes implica em desenvolver


competências desde a sua formação, o que demanda, sobretudo, formação docente. A
aprendizagem pressupõe a reconstrução de processos que permitam dar novos significados aos
fatos e aos objetos, de modo a reconstruir conhecimentos a partir de uma educação renovada e
transformadora. Isso requer transposição didática como forma de mobilizar a formação para que
os futuros administradores saibam como construir seus conhecimentos para suas práticas de
negócios e sociais.

Não se pretendia aqui esgotar as discussões sobre as vantagens ou desvantagens da adoção


de práticas pedagógicas apoiadas por metodologias de aprendizagem, mas sim apontá-las como
possíveis recursos que podem enriquecer as aulas sobretudo na formação dos futuros
administradores.

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METODOLOGIAS ATIVAS DE APRENDIZAGEM: PROBLEM-BASED LEARNING


NO ENSINO DE MARKETING

ACTIVE LEARNING METHODOLOGIES: PROBLEM-BASED LEARNING IN


MARKETING TEACHING

Jean Carlos da Silva Monteiro


Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão
Jornalista
Eixo temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: As Metodologias Ativas de Aprendizagem surgem como possibilidade de inserir o aluno


como agente ativo na construção de sua própria aprendizagem, uma vez que o método tradicional
de ensino - baseado na transmissão de informações e que tem seu protagonismo voltado ao
professor - dá lugar a uma nova forma de pensar o processo formativo, em que os alunos são
inseridos estrategicamente no centro de propostas didáticas e o conhecimento é construído de
forma autônoma e colaborativa, como em atividades que promovem a Aprendizagem Baseada em
Problemas - Problem-Based Learning - PBL. Na PBL os professores planejam suas atividades a
fim de que os alunos possam analisar a realidade em torno deles como forma de reconhecê-la e
refletir sobre o seu papel como agente social capaz de transformar a sociedade, fazendo que a
aprendizagem aconteça por meio da resolução colaborativa de desafios. Este artigo trata das
contribuições das metodologias ativas de aprendizagem no curso de Pós-Graduação MBA em
Gestão Estratégica de Marketing e Mídias Digitais da Faculdade Edufor São Luís. Analisa a
inserção estratégica da metodologia Aprendizagem Baseada em Problemas para impulsionar o
pensamento crítico e fomentar as capacidades de análise e decisão nos pós-graduandos.
Metodologicamente, versa sobre um estudo descritivo e exploratório, que inicialmente apresenta
os aspectos conceituais a respeito das metodologias ativas de aprendizagem e, em seguida,
discorre sobre um relato de experiência que verificou a percepção dos alunos acerca da utilização
da PBL no ensino de Marketing. Utiliza como instrumento de coleta de dados a realização de um
grupo focal. Verifica que a Aprendizagem Baseada em Problemas é a porta de acesso às
habilidades e competências educacionais do século XXI, pois desenvolve nos alunos a autonomia,
a comunicação, o trabalho colaborativo, discussões sob a ótica da interdisciplinaridade, assim
como a promoção de um raciocínio crítico e criativo.
Palavras-chave: Metodologias ativas. Problem-Based Learning. Ensino de Marketing. Edufor.
Abstract: The Active Learning Methodologies emerge as a possibility to insert the student as an
agent in the construction of the its own learning, once the traditional methods of teaching - based
in the transmission of information with protagonism of teacher - is exchanged a new way of
thinking the education process. In it, the students are inserted strategically in the center of didactic
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proposals and the knowledge is constructed in a independent and collaborative way, as in activities
that use the Problem-Based Learning - PBL. On the PBL, the teachers plan their activities to take
the students to analyze the reality around them. The expectation is to recognize it and reflect on
the social role of each student in the transformation of society, producing learning through
collaborative resolution of challenges. This article focuses the contributions of actives learning
methodologies in the MBA Course in Strategic Marketing and Digital Media Management from
Edufor College - São Luís. It analyzes the strategical insertation of Problem-Based Learning
methology to boost the critical thinking and foment the abilities of analysis and decision in the
students. Methodologically, this research is an exploratory and descriptive study that in the
begining presentes conceptual aspects regarding active learning methodologies. It then reports an
experience about students' views on the use of PBL in teaching marketing. A focus group was
used as an instrument for data collection. It has been verified that PBL is an access path for
educational skills and abilities of century XXI, because it is a way to produce independence,
comunication, collaborative work, discussion in interdisciplinar optical, like as to promoves
critical and criative thinking.
Palavras-chave: Active Learning Methodologies. Problem-Based Learning. Marketing teaching.
Edufor.

INTRODUÇÃO

A educação superior do século XXI propõe que os professores possam refletir e repensar
a sua prática pedagógica com foco nas metodologias ativas, com a aplicação de diferentes técnicas
e estratégias de aprendizagem. Isso ocorre porque o método tradicional de ensino dá lugar a uma
nova forma de pensar o processo formativo, em que os alunos são inseridos estrategicamente no
centro de propostas didáticas e o conhecimento é construído de forma autônoma e colaborativa
(MORAN, 2015).

A metodologia ativa neste artigo é a Aprendizagem Baseada em Problemas – Problem-


Based Learning – PBL, método em que professores fazem da sala de aula um ambiente mais
reflexivo para que os alunos possam se manifestar e se posicionar, exercitando uma atitude mais
crítica e construtiva. Além de promover o desvio de foco do docente para o aluno, esta
metodologia estimula o desenvolvimento de algumas habilidades e competências educacionais,
bem como aptidões para o mercado de trabalho (KOLMOS, 2015).

Este estudo trata das contribuições das metodologias ativas de aprendizagem no curso de
Pós-Graduação MBA em Gestão Estratégica de Marketing e Mídias Digitais da Faculdade Edufor
São Luís. O objetivo é analisar a inserção estratégica da metodologia Aprendizagem Baseada em
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Problemas para impulsionar o pensamento crítico e fomentar as capacidades de análise e decisão


nos pós-graduandos.

Para tanto, desenvolve-se um estudo descritivo e exploratório, que inicialmente apresenta


os aspectos conceituais a respeito das metodologias ativas de aprendizagem e, em seguida,
discorre sobre um relato de experiência que utilizou como instrumento de coleta de dados a
realização de um grupo focal para verificar a percepção dos alunos acerca da utilização da PBL
no ensino de Marketing.

METODOLOGIAS ATIVAS DE APRENDIZAGEM

Com base no cenário de expansão e mudanças de paradigmas na educação superior e na


necessidade de desenvolvimento de habilidades e competências educacionais para o século XXI,
propõe-se que os professores possam refletir e repensar a sua prática pedagógica com o objetivo
de construir outras formas de mediação pedagógica (RODRIGUES, 2014).

Freire (2015) acredita que qualquer proposta didática com a intenção de ensinar deve ser
planejada com vistas naqueles que vão participar dela e, nessa perspectiva, reflete sobre os novos
caminhos e novas metodologias de aprendizagem que enfoquem nos alunos como protagonista de
sua própria aprendizagem e que propiciam a comunicação, a motivação, a colaboração, a
criticidade, a criatividade e, principalmente, a autonomia destes.

É nessa interpretação do cenário educacional da atualidade que se investe em propostas


didáticas pensadas na perspectiva das metodologias ativas de aprendizagem como uma
possibilidade de inserir o aluno como agente ativo na construção de sua própria aprendizagem,
ideia defendida por Noval e Gowin (2016) quando enfatizam que o método tradicional de ensino
– baseado na transmissão de informações e tem seu protagonismo voltado ao professor – dá lugar
às metodologias ativas que colocam os alunos no centro das propostas didáticas e o conhecimento
é construído de forma autônoma e colaborativa.

No ensino superior, as propostas didáticas, na perspectiva das metodologias ativas,


surgem como intervenções que, ao contrário do método tradicional, provocam os alunos a assumir
um papel ativo na sua própria forma de aprender, visto que sua cultura – experiências, saberes e
opiniões – é valorizada no processo de construção do conhecimento (MORAN, 2015).

As propostas didáticas envolvem atividades que estimulam a autonomia e a curiosidade


para que o processo de autoaprendizagem aconteça. Nesse tipo de atividade, o aluno é colocado
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para selecionar, analisar, pesquisar e refletir criticamente sobre possíveis situações para que
possam tomar decisões (NÓVOA, 2017).

Compreende, também, o processo metacognitivo da aprendizagem, ou seja, quando o


aluno realiza o automonitoramento de como aprendeu e como construiu o seu próprio percurso
para consolidar o conhecimento, cabendo ao professor ser o mediador/facilitador dessa atividade,
garantindo que todo processo pedagógico seja realizado (RODRIGUES, 2014).

De modo geral, as metodologias ativas de aprendizagem não são fáceis de serem


efetivadas, uma vez que toda metodologia parte do princípio de como o aluno aprende, mas elas
estão sendo amplamente divulgadas nas Instituições de Ensino Superior na perspectiva de
ressignificar a prática do ensinar em sala de aula no século XXI.

APRENDIZAGEM BASEADA EM PROBLEMAS

Neste estudo, dá-se destaque a metodologia ativa Aprendizagem Baseada em Problemas


– Problem-Based Learning – PBL. A metodologia PBL, que surgiu em 1960 no Canadá, trata-se
de um modelo inovador de aprendizagem centrado no aluno, que utiliza situações-problemas para
fomentar habilidades e competências educacionais do século XXI, como a comunicação, a
colaboração, a criatividade e a criticidade em propostas que buscam a aplicabilidade e a
operacionalização dos conhecimentos aprendidos previamente no desenvolvimento de uma
solução viável a questão definida pelo professor (FREZATTI; MARTINS, 2015).

Segundo Kolmos (2015), a Aprendizagem Baseada em Problemas possui como


princípios, a orientação para o problema; a organização por projeto; a interdisciplinaridade; o
controle do participante; e conexão com a realidade. Nesta metodologia ativa de aprendizagem, é
necessário que o problema a ser resolvido possua vínculo real com os alunos, que seja complexo,
que possa ser analisado pela ótica da interdisciplinaridade e que permita a investigação de forma
coletiva.

São inúmeras as técnicas e formatos de aplicação da metodologia PBL. Existem formatos


mais simples (quando os problemas são casos baseados em palestras, palestras baseadas em casos,
estudos de caso, estudos de caso modificado) e formatos que necessitam de investigações mais
complexas (como a PBL baseada em problemas reiterativos) (FURQUIM; PLUSKWIK;
WIGGINS, 2015).

Metodologicamente, o processo de integração estratégica da Aprendizagem Baseada em


Problemas funciona da seguinte forma: os alunos tomam ciência da situação-problema sem leitura
prévia e dedicam-se para encontrar soluções. Segundo Graaf e Kolmos (2018), não há diferença
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entre as metodologias PBL e POPBL - Problem Oriented Project Based Learning - Aprendizagem
Baseada em Problemas e Organizada em Projetos, uma vez que as duas apresentam as mesmas
peculiaridades e pelo fato de um problema poder evoluir para um projeto a ser trabalhado em
diversas aulas e diferentes disciplinas.

As diferentes técnicas de aplicação da metodologia PBL são classificadas em cinco


dimensões: o número de exercícios planejados e realizados na disciplina; integração de conceitos
entre os exercícios e entre disciplinas; trabalho em equipe ou individual; abordagem para solução
dos problemas; e autonomia para aprendizagem (SILVA; ARAÚJO, 2016).

Entre as contribuições, a Aprendizagem Baseada em Problemas pode promover o


desenvolvimento de algumas competências educacionais, bem como conhecimentos e habilidades
que para além da instituição de ensino, colaboram potencialmente para todos os setores da vida,
inclusive com aspectos que tangem aptidões para o mercado de trabalho, como o desenvolvimento
de visão holística; do senso crítico e da competência “resolução de problemas”; da melhoria da
comunicação entre pares e exposição de ideias; do fomento de habilidades sociais pelo trabalho
em equipe; e do aumento da satisfação com o processo de aprendizagem (GRAAF; KOLMOS,
2018).

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Esta experiência, de natureza exploratória e descritiva (TRIGUEIRO et al, 2014), foi


realizada durante a ministração da disciplina Didática do Ensino Superior, no curso de Pós-
Graduação MBA em Gestão Estratégica de Marketing e Mídias Digitais da Faculdade Edufor São
Luís. Participaram desta intervenção 10 alunos (sendo 30% do sexo feminino e 70% masculino,
com idade entre 30 e 44 anos).

A disciplina foi dividida em três momentos: o primeiro abordou o conceito de


metodologias ativas de aprendizagem, com foco na Aprendizagem Baseada em Problemas, para
que os alunos tivessem mais informações sobre a temática, uma vez que, em uma conversa
informal, eles mostraram pouco conhecimento acerca do método e duas formas de aplicação.

O segundo referiu-se à aplicação da técnica de Análise SWOT (dos termos em inglês


strengths, weaknesses, opportunities e threats), uma ferramenta que, por meio de uma situação-
problema, permite uma análise aprofundada e detalhada do estado situacional de um
cenário/ambiente e ajuda seus utilizadores a tomar decisões.

Com essa técnica, os alunos aprendem a oferecer um diagnóstico estratégico com o


objetivo de prever, prevenir e resolver problemas, visto que realiza o entrelaçamento entre os
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fatores externos (as forças e as fraquezas) e os externos (as oportunidades e as ameaças) de uma
problemática em questão.

Neste caso, os alunos foram provocados a resolver problemas educacionais. O principal


objetivo era a criação de um projeto para planejar a implementação de metodologias ativas de
aprendizagem com foco em um público estratégico e traçar estratégias com mais chances de
sucesso.

Durante a atividade, os alunos fizeram o brainstorm da escola, dos professores e alunos


da situação-problema; investigação dos fatores internos; exploração dos fatores externos;
montagem da matriz SOWT; estudo da viabilidade do projeto; e a transformação da análise SWOT
em estratégia de solução para o problema.

Por fim, o terceiro momento contou com a apresentação das soluções para os problemas
lançados e reflexão do processo de implementação da metodologia PBL, com a finalidade de
discutir as dificuldades que sentiram, o que aprenderam, o que poderia ser melhorado num
próximo trabalho, entre outros aspetos considerados pertinentes.

Para obter essas informações, os alunos participaram de um grupo focal, cujo objetivo
foi analisar a inserção estratégica da metodologia PBL para impulsionar o pensamento crítico e
fomentar as capacidades de análise e decisão. O pequeno número de participantes possibilitou
maior nível de envolvimento dos alunos na hora de responder cada questão da entrevista.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A Aprendizagem Baseada em Problemas, seja ela aplicada via propostas didáticas ou por
meio de outras intervenções, é alicerçada por sete pilares fundamentais da “migração do ‘ensinar’
para o ‘aprender’, o desvio de foco do docente para o aluno, que assume a corresponsabilidade
pelo seu aprendizado” (SOUZA; IGLESIAS; PAZIN-FILHO, 2014, p. 285), tais pilares são aluno
no centro da aprendizagem; autonomia; reflexão; problematização da realidade; trabalho em
equipe; inovação; e professor mediador, facilitador e ativador.

Na primeira pergunta do grupo focal, os alunos foram questionados quanto ao pilar que
sugere o aluno no centro da aprendizagem, na perspectiva de “ativar” o aprendizado dos alunos,
fazendo com que eles estejam no centro do processo do ensino em que se enfoca na prática e na
compreensão de como a aprendizagem foi construída.

Os pós-graduandos destacaram que esse pilar promove maior interação dos alunos no
processo de construção do próprio conhecimento para que eles passem a ter mais responsabilidade,
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autonomia, controle e participação efetiva na sala de aula e na resolução de um problema, aspecto


apontado pelo aluno A1.

A gente se sentiu mais à vontade e mais motivados a resolver a questão-problema


direcionada a nossa turma. Inclusive, esse tipo de metodologia ativa de aprendizagem foi
necessário em nosso processo formativo, uma vez que ela nos permitiu vivenciar e
descobrir habilidades que não sabíamos ter, como ler, pesquisar, saber comparar,
observar, imaginar, obter e organizar as informações, elaborar e confirmar hipóteses,
classificar, interpretar, criticar, buscar presunções, construir pressupostos e aplicar em
novas circunstâncias, planejar projetos e pesquisar, analisar e tomar decisões (sic)
(informação verbal) (A1).

Para Rodrigues (2014) e Freire (2015), destacam que o papel das instituições de ensino é
fomentar um ambiente mais reflexivo para que os alunos possam se manifestar e se posicionar,
dizendo com suas próprias palavras o que pensam, exercitando uma atitude mais crítica e
construtiva. Esse cenário vai estimular uma postura autônoma dos alunos.

De acordo com o Aluno A4, o professor colabora na promoção da autonomia de seus


alunos quando sua metodologia ativa de aprendizagem:

Está aberto a acolher os interesses pessoais dos alunos, oferecendo explicações reais, do
cotidiano dos alunos. Quando o professor usa de linguagem informal e não controladora,
além de ser paciente e acompanhar o ritmo de aprendizagem dos alunos, valorizando a
cultura - experiências, saberes e opiniões – dos alunos no processo de construção do
conhecimento (sic) (informação verbal) (A4).

Quando inqueridos sobre o potencial das metodologias ativas de fomentar a autonomia,


os alunos enfatizaram que a PBL, que utiliza situações-problema para introduzir novos conceitos,
é um método capaz de contribuir significativamente para a formação de um aluno mais autônomo,
motivado e convidado a refletir sobre suas ideias.

O aluno A7 explica em sua fala que, com a implementação da Aprendizagem Baseada


em Problemas, foi possível descobrir que cada um tem sua forma de ser autônomo e que, com
isso, aprende-se a

Aceitar as diferentes opiniões das outras pessoas. Sendo assim, cada um é responsável
pelo sucesso do grupo na tentativa de resolver as situações-problemas. Percebe-se, então,
que o ser humano é incapaz de pensar sozinho, o mesmo necessita de outros
colaboradores para o planejamento e a execução de uma análise SWOT (sic) (informação
verbal) (A7).

Quando se trata dos pilares problematização e reflexão, os pós-graduandos acreditam que


metodologias como a PBL fazem com que os professores planejem suas atividades a fim de que
os alunos possam analisar a realidade em torno deles como forma de reconhecê-la e refletir o seu
papel como agente social capaz de transformar a sociedade, como ressaltado pelo aluno A10.

A gente vê que os nossos professores precisam estimular a discussão sobre os problemas


sociais, sendo estes problematizados por meio dos conteúdos. As metodologias ativas se
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tornam ferramentas que possibilitam essas novas abordagens em sala de aula (sic)
(informação verbal) (A10).

Novak e Gowin (2016) recomendam que, para que esse pilar se concretize, é importante
que os professores conheçam os problemas sociais de sua localidade e que possam inseri-los
pedagogicamente ao conteúdo a ser ministrado.

Moran (2015) ressalta que essa é uma das questões que mais dificulta a problematização
e reflexão em sala de aula, pois nem sempre o professor atende a esse pilar por falta de
planejamento, inferindo negativamente no desenvolvimento do caráter autônomo que os alunos
precisam para intervir sobre um problema social.

Quanto ao trabalho em equipe e ao desenvolvimento de habilidades e competências do


século XXI, como a colaboração, os alunos afirmaram que a Aprendizagem Baseada em
Problemas estimula a interação entre os alunos, a troca de ideias e as atividades pensadas na ótica
do trabalho em equipe, como destacado pelo aluno A3.

Em atividades como está a gente aprende a reconhecer que o nosso colega de turma
também tem muito a contribuir com nossa aprendizagem. Que todos possuem
conhecimentos e que a partilha destes se torna fundamental para que o processo de
aprendizagem significativa se concretize (sic) (informação verbal) (A3).

Nesta mesma perspectiva, Nóvoa (2017) reflete que esse pilar abre espaços discursivos
para construção do conhecimento e para promoção de habilidades, competências e estimulando a
autonomia do aluno, a colaboração e, principalmente, a inteligência coletiva.

Inovação é o pilar que permeia todos os outros. Dessa forma, os alunos foram
questionados se as metodologias ativas de aprendizagem, em especial a PBL, verdadeiramente
ressignifica método tradicional de ensino. Todos os pós-graduandos foram unânimes em dizer que
sim, e ressaltaram que

O perfil do aluno de hoje não está mais adequado às metodologias que visam a
transmissão mecânica das informações no qual ele ocupa a função de receptor passivo.
Os professores precisam criar modelos de ensino que trazem inovação didática para a
sala de aula (sic) (informação verbal) (A6).

Paulo Freire (2015) é um dos pensadores que mais se preocupou com o pilar que reflete
sobre o papel do professor contemporâneo como mediador, facilitador e ativador do processo de
aprendizagem. Segundo ele
Percebe-se, assim, a importância do papel do educador, o mérito da paz com que viva a
certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos, mas
também ensinar a pensar certo. Daí a impossibilidade de vir a tornar-se um professor
crítico se, mecanicamente memorizador, é muito mais um repetidor de frases e de deias
inertes do que um desafiador (FREIRE, 2015, p. 29).

Diante disso, indagou-se aos alunos se eles perceberam se o professor adquiriu essas
características durante a implementação da Aprendizagem Baseada em Problemas. O aluno A9
revelou que quando o professor se coloca como ativador da aprendizagem, ele permite ao seu
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aluno tomar o seu papel ativo em sala e desenvolver habilidades e competências educacionais do
século XXI.

Em atividades como esta, o professor oferece condições para que a gente possa refletir,
compreender, transformar e construir o conhecimento, dando, cada vez mais, importância
para o nosso potencial autônomo de compartilhar ideias. Isso retrata o verdadeiro papel
de um professor mediador, facilitador e ativador conforme preconiza as metodologias
ativas de aprendizagem (sic) (informação verbal) (A6).

Com os relatos deste grupo focal, percebeu-se que a aprendizagem, por meio da utilização
da metodologia PBL no ensino de marketing, foi significativa, atingindo seus objetivos
pedagógico e mantendo uma relação com as principais aptidões necessárias aos pós-graduandos
durante a sua formação, que é estar ter curiosidade, trabalhar colaborativamente, comunicar-se
com clareza e possuir um perfil capaz de selecionar, analisar, pesquisar e refletir criticamente
sobre possíveis situações para que possam tomar decisões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este relato de experiência tratou as contribuições das metodologias ativas de


aprendizagem no curso de Pós-Graduação MBA em Gestão Estratégica de Marketing e Mídias
Digitais da Faculdade Edufor São Luís e foi elaborado com o objetivo de analisar a inserção
estratégica da metodologia Aprendizagem Baseada em Problemas para impulsionar o pensamento
crítico e fomentar as capacidades de análise e decisão nos pós-graduandos e, consequentemente,
proporcionar informações úteis para professores e pesquisadores.

Apesar da investigação ter sido desenvolvida ao longo de uma disciplina de 24


horas/aulas, ela viabilizou o aprimoramento do conhecimento sobre a operacionalização da
metodologia PBL e seus benefícios, averiguando que houve o desenvolvimento da maturidade dos
alunos e o aumento de sua participação na construção do conhecimento.

Percebeu-se, também, a mudança do papel do aluno e a necessidade de ressignificação


da sala de aula para acompanhar as demandas de uma geração ativa e que buscam a construção do
conhecimento de forma autônoma e colaborativa.

Por fim, evidenciou-se que a PBL é a porta de acesso às habilidades e competências


educacionais do século XXI, pois desenvolve nos alunos a autonomia, a comunicação, o trabalho
colaborativo, discussões sob a ótica da interdisciplinaridade, assim como a promoção de um
raciocínio crítico e criativo.

REFERÊNCIAS
GRAAF, E.; KOLMOS, A. Management of change implementation of problem-based and
project-based learning in engineering. Rotterdam: Sense, 2009.
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FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 51ªed. Rio de


Janeiro: Paz e terra, 2015.
FREZATTI, F.; MARTINS, D. B. PBL ou PBL’S: a customização do mecanismo na educação
contábil. Grad: Revista de Graduação USP, v. 1, n. 1, p. 1-15, 2015.
FURQUIM, L.; PLUSKWIK, E.; WIGGINS, S. Shifting facilitator roles: the challenges and
experiences of tutors within Aalborg and Maastricht PBL settings. 2015. Disponível em:
<https://cornerstone.lib.mnsu. edu/ie-fac-pubs/1/>. Acesso em: 25 set. 2019.
KOLMOS, A. New contribution to PBL? Högre Utbildning, v. 5, n. 1, p. 1-5, 2015.
MORAN, J. M. Mudando a educação com metodologias ativas. In: SOUZA, C. A. de;
MORALES, O. E. T. (Org.). Coleção Mídias Contemporâneas. Convergências Midiáticas,
Educação e Cidadania: aproximações jovens. Vol. II. PG: Foca Foto-PROEX/UEPG, 2015.
Disponível em:< http://www2.eca.usp.br/moran/wp-
content/uploads/2013/12/mudando_moran.pdf >. Acesso em: 25 set. 2019.
NOVAK, J. D.; GOWIN, D. B. Aprender a aprender. 4. ed. Lisboa: Plátano Edições Técnicas,
2016.
NÓVOA, A. Os professores na virada do milênio: do excesso dos discursos à pobreza das
práticas. Educação e Pesquisa: São Paulo, 2017.
RODRIGUES. S. F. N. Metacognição em Práticas Colaborativas numa Comunidade de B-
learning: estudo de caso. 2014. Tese (Doutorado em Multimédia em Educação) – Universidade
de Aveiro, Aveiro. Disponível em:
<https://ria.ua.pt/bitstream/10773/13149/1/metacognicao%20em%20praticas%20colaborativas%
20numa%20comunidade%20de%20b%20learning.pdf>. Acesso em: 25 set. 2019.
SILVA, M. A. M.; ARAÚJO, U. F. A metodologia da problematização como estratégia para a
educação moral. Revista Educação e Linguagens, v. 5, n. 8, p. 25-41, 2016.
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NEGROS NA EDUCAÇÃO: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA REALIDADE DE


UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA NO INTERIOR DO MARANHÃO

BLACK IN EDUCATION: AN APPROACH FROM THE REALITY OF A


QUILOMBOLA COMMUNITY WITHIN THE MARANHÃO
Andressa Viegas Silva
Graduando em Pedagogia - UEMA
Rafaela Cunha Silva
Graduando em Pedagogia - UEMA
Evandicleia Ferreira de Carvalho
Mestra em Educação - UEMA
Eixo 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: A oferta de educação pública a negros no Brasil é resultante de uma trajetória de


exploração, desigualdades e resistências. Nas últimas décadas, em decorrência de lutas desses
grupos étnicos, a elaboração de leis e outros normativos tem atuado na garantia de melhores
condições de aprendizagem a essa população, inclusive em comunidades quilombolas, redutos de
preservação da ancestralidade negra. Este trabalho visa refletir sobre a presença do negro na
educação brasileira, discutindo contradições para a conquista do direito educacional.
Desenvolveu-se por meio de estudos bibliográficos e pesquisa de campo na comunidade
quilombola Marajá, município de Bequimão/MA. Foram realizadas entrevistas com agentes
escolares, no lócus da pesquisa. Na comunidade campo do estudo identificaram-se fragilidades
em relação à oferta educacional que podem ser associadas ao processo de exclusão do povo negro
no cenário educativo. A educação nos quilombos é uma demanda histórica da população negra e
quilombola que questiona o currículo e visa minimizar desigualdades que recaem sobre esses
grupos sociais. É dever do Estado garantir meios e condições adequadas de oferta educacional e
corrigir as assimetrias construídas historicamente.
Palavras-chave: História da Educação. Negro. Escola. Democratização.

Abstract: The provision of public education to blacks in Brazil is the result of a trajectory of
exploitation, inequality and resistance. In the last decades, due to the struggles of these ethnic
groups, the drafting of laws and other norms has acted in guaranteeing better learning conditions
for this population, including in quilombola communities, strongholds for the preservation of
black ancestry. This work aims to reflect on the presence of blacks in Brazilian education,
discussing contradictions for the achievement of educational rights. It was developed through
bibliographic studies and field research in the Marajá quilombola community, in Bequimão / MA.
Interviews were conducted with school agents, at the locus of the research. In the field community
of the study, weaknesses were identified in relation to the educational offer that can be associated
with the process of exclusion of black people in the educational scenario. Education in quilombos
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is a historic demand of the black and quilombola population that questions the curriculum and
aims to minimize inequalities that fall on these social groups. It is the duty of the State to guarantee
adequate means and conditions of educational offer and to correct the asymmetries constructed
historically.
Keywords: History of Education. Black. School. Democratization.

INTRODUÇÃO

A realidade da oferta de educação pública a negros no Brasil é resultante de uma trajetória


de lutas e resistências face a um processo histórico de exploração, desigualdades e preconceitos.
Historicamente, no país, o acesso educacional ao povo negro foi negado ou limitado. Muitas vezes,
foram construídas barreiras legais para impedir que acessassem os espaços escolares ou com o
intuído de limitar o pleno usufruto do direito educacional à população afro-brasileira (Ferreira Jr,
2010; Veiga, 2008).
Nas duas últimas décadas, em decorrência da atuação de movimentos sociais, a elaboração
de leis e outros normativos contribuíram na promoção de maior reconhecimento e valorização da
história e cultura do povo negro na escola e garantir melhores condições de aprendizagem à
população afro-brasileira, inclusive de comunidades quilombolas, redutos de preservação de
tradições e ancestralidade negra. Nesse contexto, a Lei nº 10.639/2003 (Brasil, 2003) incluiu no
currículo oficial da rede de ensino pública e privada do país a obrigatoriedade da temática História
e Cultura Afro-Brasileira. Também, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola na Educação Básica (Resolução nº 08/2012 CNE/CEB) passaram a prever princípios
para organização curricular e pedagógica, considerando as especificidades da educação escolar
quilombola na oferta de educação em comunidades quilombolas.
Contudo, apesar das lutas e conquistas alcançadas, os desafios enfrentados pela população
negra no campo educacional são recorrentes ainda nos dias atuais, determinando que a situação
dos negros ainda seja marcada por desigualdades também no campo educacional.
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a presença negra no contexto da educação
brasileira, discutindo contradições e desafios para a conquista do direito educacional. Em um
primeiro momento, apresenta análises sobre o histórico de oferta educacional à população afro-
brasileira, considerando características do processo de desenvolvimento do Estado brasileiro e
suas contradições. E, na sequência, focaliza a realidade escolar da comunidade quilombola
Marajá, município de Bequimão/MA, no intuito de refletir sobre a garantia do acesso à educação
escolar de quilombolas no contexto atual.
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O presente estudo foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica e de campo,


contando com observação e entrevistas com sujeitos da comunidade escolar, lócus da pesquisa.
Alguns teóricos orientam as reflexões das autoras como Ferreira Júnior e Bittar (1999), Aranha
(2012), Veiga (2008), entre outros.
O NEGRO E A ESCOLA PÚBLICA BRASILEIRA

A análise histórica na educação brasileira demonstra que a participação de negros no


campo educacional resulta de um processo marcado por injustiças, desigualdades e lutas por
acesso à escolarização e justiça social. Assim, a compreensão da situação do negro requer a análise
de um conjunto de elementos que explicam porque os negros foram excluídos da escola e como
se deu esse processo.
O Brasil escravocrata negava aos negros o acesso à educação, além de outros direitos
sociais. Ferreira Júnior e Bittar (1999) indicam que ainda no Brasil colonial, o projeto educacional
implantado pela Companha de Jesus excluía da instrução educacional as crianças negras que
viviam no território da colônia. Com enfoque na catequização de nativos e escolarização elementar
de colonos, o projeto jesuítico de instrução alcançou de forma residual filhos de negros
escravizados nas fazendas da ordem jesuítica. Essa instrução, no entanto, impôs às crianças negras
“[...] o processo de conversão ao cristianismo católico através da catequese e também sentiram na
pele a prática do sadismo pedagógico inerente ao projeto educacional desenvolvido pelos jesuítas”
(Ferreira Jr e Bittar, 1999, p. 479).
De acordo com Aranha (2012), diferentemente do que ocorreu com indígenas, que foram
alvo de interesse dos missionários, os negros que foram trazidos da África para desenvolvimento
da sociedade escravista, não receberam atenção especial de ninguém. Essa autora destaca inclusive
o registros de recusa de matrícula de alguns ‘mulatos’ nos colégios dos jesuítas, no século XVII,
medida que os missionários foram obrigados a revogar devido aos subsídios que recebiam da
Coroa.
Um dos últimos países a abolir a escravatura, o Brasil criou diversas barreiras legais para
impedir que a população afro-brasileira acessasse a escola e outros espaços públicos. Nesse
período, a Constituição Imperial de 1824 vetava aos negros direitos básicos, não os reconhecendo
como cidadãos, exceto àqueles que tivessem sido “libertos” (artigo 6º). Ainda a esse respeito, o
artigo 94 da primeira ordenação constitucional brasileira, impedia toda a população negra da vida
ativa na sociedade por meio de assuntos relacionados à política (Brasil, 1824).
Segundo Veiga (2008), durante a monarquia imperial houve uma tentativa de promoção
da escola pública com maior alcance da população que vivia no território, mas esse alcance
ocorreu forma parcial, sem a devida inclusão de negros e mestiços. Em muitas províncias do
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Império, negros eram impedidos de frequentar aulas públicas, dando seguimento à promoção da
discriminação racial no acesso à educação. Essa autora ressalta a existência de registros sobre o
ingresso de negros em algumas províncias, mas que falta de subsídios para permanência na escola
dificultava que esses estudantes dessem continuidade aos estudos.
Assim, como indica Ferreira Júnior (2010, p. 40): “[...] a amplíssima massa do povo
brasileiro, incluindo os escravos desafricanizados, ficou excluída da educação durante a vigência
do Império, mesmo porque os escravos não eram considerados cidadãos pela primeira
Constituição do Brasil”.
Face às lutas por liberdade, que repercutiam em conquistas paulatinas126, o acesso
educacional a negros se deu de maneira processual e fragmentada. A exemplo disto, o Decreto nº
7.031 de 1878 permitia o acesso de negros escravizados às escolas desde que seus senhores assim
permitissem, além da condição de que a frequência ocorresse somente durante o período noturno.
Os negros livres já haviam conquistado esse acesso, embora parcialmente, porém negros
escravizados permaneciam totalmente excluídos da escolarização (Santos et. al, 2013)
Apesar das regras que dificultavam os negros de serem alfabetizados há registos de
algumas escolas que funcionaram durante essa época no Brasil, que forneciam educação a negros
escravizados e libertos, pardos e indígenas. Nessas escolas era-lhes ensinado o básico, como ler,
escrever, as quatro operações matemáticas e religião (Santos et. al, 2013).
A proibição da escravidão no território nacional, em 1888, e proclamação da República
mudaram pouco a situação dos negros em relação à garantia de direitos, pois não foram criadas
políticas para promoção de justiça social aos “libertos” e seus descententes. Em relação à
educação, houve expansão do ensino público por meio dos grupos escolares públicos laicos, mas
parcela expressiva de crianças negras continuaram excluídas, assim como brancos pobres e filhos
de imigrantes europeus que trabalhavam no campo, visto que grande parte dessas instituições
ficaram concentradas nas cidades (Ferreira Jr, 2010)
Com o advento da Constituição de 1988, Aranha (2012) diz que houve uma lenta
aculturação do povo negro, por meio da qual o Brasil inovou no sentido de garantir e financiar
escola pública, obrigatória e gratuita a todos os cidadãos, no entanto esta foi apenas uma medida
de mascarar o racismo e a opressão que a população afro-brasileira vinha sofrendo.
Durante todo esse processo, negros lutaram por acesso e qualidade educacional. De acordo
com Gonçalves e Silva (2000), foram as entidades negras que ofereceram escolas para a
alfabetização de adultos e formação ampla de crianças negras no início do século XX. E a partir
do final da década de 1970 e durante os anos 1980, a educação tornou-se prioridade na pauta do

126
Em razão da luta dos negros por liberdade o alcance de uma sociedade igualitária, em setembro de 1871 foi
assinada a Lei do Ventre Livre, por meio da qual os filhos de escravizados que nascessem no território do Império a
partir da estabelecida lei, seriam considerados livres.
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Movimento Negro que buscou a unificação das entidades através do Movimento Negro Unificado
e maior participação no debate por políticas públicas.
Nesse contexto de lutas, foi aprovada a Lei 10.639/20003 (Brasil, 2003) que trata da
obrigatoriedade do ensino de história e cultura Afro-brasileira e africana na educação básica em
todo país com objetivo de valorizar as contribuições da população afro-brasileira à construção da
sociedade nacional.
Outra conquista decorrente da ação dos movimentos sociais, notadamente o Movimento
Quilombola, foi a aprovação das Diretrizes Curriculares para a Educação Escolar Quilombola, no
dia 20 de novembro de 2012, definindo objetivos, princípios e critérios para organização de
educação escolar em escolas localizadas em comunidades quilombolas ou que atendam estudantes
oriundos de territórios quilombolas (Brasil, 2012b).
Nesse trajeto da historiografia da educação no país, as lutas da população afro-brasileira
que busca a promoção de uma educação igualitária tem sido incessante. De modo geral, a escola
manteve-se resquícios dessas desigualdades que deixaram uma grande lacuna na inclusão
educacional e social do povo negro. Em relação à educação quilombola, os desafios postos são
amplos, pois de um lado tem-se o reconhecimento da especificidade da modalidade de ensino,
mas de outro permanecem inseguranças envolvendo as condições de oferta apresentadas às
comunidades quilombolas.

EDUCAÇÃO NO QUILOMBO NOS DIAS ATUAIS: CONDIÇÕES DE OFERTA NA


COMUNIDADE MARAJÁ/BEQUIMÃO-MA

Considerando-se a historiografia da educação brasileira, pode-se afirmar que as


desigualdades, discriminação, e barreiras criadas para impedir o acesso a escolarização
produziram uma dívida histórica com a população afro-brasileira. Nessa trajetória de injustiças e
lutas, o reconhecimento da educação escolar quilombola enquanto modalidade de ensino com
reconhecimento configura-se como importante conquista, mas os desafios para garantia da
qualidade educacional a estes grupos étnicos ainda são muitos.
A Educação Escolar Quilombola na Educação Básica é a modalidade de ensino destinada
ao atendimento das populações quilombolas rurais e urbanas, abrangendo estabelecimentos
localizados em comunidades reconhecidas ou próximos a essas comunidades que recebam
estudantes oriundos de territórios quilombolas (Brasil, 2012b, art. 1º, III e IV).
De acordo com dados do Ministério da Educação, no ano de 2010 existiam no Brasil 1.912
escolas localizadas em áreas remanescentes de quilombos e 210.485 mil estudantes matriculados
nessas instituições (Brasil/CNE/CEB, 2012a). Em geral, as escolas quilombolas ofertam o Ensino
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Fundamental, notadamente as séries iniciais. Essas instituições são ricas em diversidade, práticas
pedagógicas, modos de ser e de fazer a educação atenta às especificidades das comunidades em
que se localizam. No entanto, ainda há escolas quilombolas que funcionam de maneira
improvisada, com infraestrutura precária, materiais didáticos escassos e outras dificuldades.
As DCN’s para Educação Escolar Quilombola se fundamentam no reconhecimento de que
o histórico de desigualdades e violência sofrido pelas comunidades quilombolas reverberou sobre
a conquista do direito educacional. Também, que esses coletivos são dotados de uma série de
conhecimentos, práticas e tecnologias passadas de geração a geração e que, nesse sentido, a oferta
educacional deve prever formação básica comum, bem como respeito aos valores culturais dos
povos quilombolas (Brasil, 2012b).
No Brasil, conforme dados da Fundação Cultural Palmares, existem cerca de 4.000
comunidades quilombolas certificadas. No Maranhão, um dos estados com maior número de
comunidades quilombolas, eram 816 comunidades no ano de 2019127. Para refletir sobre a
realidade de oferta educacional em quilombos na atualidade, selecionamos o povoado Marajá,
localizado no município de Bequimão/MA. Foi realizada visita à comunidade, ocasião em que foi
utilizado o método de observação direta e entrevistas com membros da comunidade escolar, no
sentido de atender aos objetivos da pesquisa.

A escola e os sujeitos da pesquisa

A escola-campo deste estudo é pertencente à comunidade quilombola de Marajá,


localizada no município de Bequimão, estado do Maranhão. O município de Bequimão fica na
região do Litoral Ocidental Maranhense e tem população de 20.344 habitantes, de acordo com
dados do último censo (2010). Conforme dados do IBGE, no ano de 2018, o município possuía
36 escolas de ensino fundamental, registrando o total de 3.312 matrículas nesse nível de ensino128.
A escola do povoado Marajá foi fundada no ano de 1985. É uma escola da rede pública
municipal, sendo anexo da escola-polo da região que fica no povoado vizinho, Areal. Este, porém,
não se encontra em território quilombola.
A comunidade quilombola Marajá possui certificação da Fundação Cultural Palmares
desde o ano de 2012 (Portaria nº 229 de 31/12/2012)129. Tem aproximadamente 150 anos de

127
Disponível em: < http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551>
128
Dados disponíveis em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ma/bequimao/panorama>
129
Dados retirados de < http://www.palmares.gov.br/sites/mapa/crqs-estados/crqs-ma-02082019.pdf>
Página 648 de 2230

existência e origem associada à migração de negros/as de outros quilombos do território


maranhense para a região130.
De acordo com informações coletadas, a conquista de uma escola na comunidade foi
processual e resulta da luta de membros da comunidade e outros sujeitos históricos. Inicialmente,
diante da ausência de infraestrutura para essa finalidade, as atividades educativas eram
desenvolvidas nas próprias residências dos estudantes. Após passagens por outros prédios
improvisados, a instituição passou a funcionar em local próprio, tendo passado por reforma no
ano de 2019.
Na ocasião da visita, realizou-se entrevista com a professora, a diretora e os estudantes
presentes. Identificou-se que a docente é natural da própria comunidade. Ela atua há seis anos na
educação básica e cursa licenciatura em Pedagogia.
A diretora não reside no povoado. Ela se divide entre a gestão do polo e respectivos anexos
(total de quatro). Individualmente ou com profissionais da Secretaria Municipal de Educação,
realiza o acompanhamento pedagógico e de outras atividades das unidades sob sua
responsabilidade.
Sobre os estudantes, foi identificado que a ampla maioria é originária de famílias da
comunidade e residem na localidade. As crianças tem entre quatro (04) e dez (dez) anos de idade,
sendo oito (08) meninos e seis (06) meninas. A maioria se autodeclarou preto/a, tendo se
manifestando positivamente sobre ser quilombola.

Condições materiais, pedagógicas e culturais de oferta educacional

Sobre a oferta educacional, a legislação vigente determina que o poder público deve prover
as condições objetivas para desenvolvimento de educação de qualidade nas comunidades
quilombolas e que respeite e valorize a diversidade cultural dessas populações. De acordo com o
que prevê as para a DCN’s para a Educação Escolar Quilombola (Brasil, 2012b, art. 2º, I-III), cabe
à União, aos Estados, aos Municípios e aos sistemas de ensino garantir às escolas quilombolas
apoio técnico-pedagógico aos estudantes, professores e gestores; recursos didáticos, pedagógicos,
tecnológicos, culturais e literários que atendam às especificidades dessas comunidades; além da
construção de propostas de Educação Escolar Quilombola contextualizadas.
Sobre a escola-campo do estudo, pode-se afirmar que possui infraestrutura simples,
contendo apenas um (01) banheiro, uma (01) cantina e uma (01) sala de aula. A sala é

130
Baseado em registro da Associação de Moradores Do Povoado Marajá (2003) e informações colhidas através das
entrevistas.
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multisseriada e multietapas, alcançando os níveis de escolaridade de Educação Infantil e Ensino


Fundamental do 1º ao 5° com total de catorze (14) alunos.
É importante ressaltar que não há computadores, acesso à internet ou outros meios
tecnológicos. A escola conta com apenas alguns materiais didáticos organizados numa pequena
estante que se encontra dentro da própria sala de aula. O acervo literário também é restrito e são
escassas obras relacionadas a história e cultura afro-brasileira.
De acordo com depoimento da gestora da instituição, a manutenção das atividades tem
sido motivo de lutas da comunidade escolar, diante do quantitativo de estudantes e custos para
manutenção. Outro desafio apontado refere-se à necessidade de adequações ou “improvisos”
devido a insuficiência de servidores. Entre os profissionais, há somente uma (01) funcionária que
é responsável pela limpeza do espaço e preparo da merenda escolar, além da professora
responsável pela turma.
De modo geral, a falta de recursos financeiros para manutenção da escola pública tem sido
pauta de reinvindicações de sindicatos, profissionais da educação e estudantes, devido
dificuldades enfrentadas para garantia da qualidade educacional.
Em relação a recursos, identificou-se que a escola-polo participa do Programa Dinheiro
Direto na Escola. O PDDE é um programa do Governo Federal, de caráter suplementar, que visa
prestar assistência financeira às escolas, no que concerne à manutenção e melhoria da
infraestrutura e desempenho escolar, além de fortalecer a participação social e autogestão das
instituições131.
Apesar do enfoque na participação, a centralização de decisões sobre o uso de recursos, a
transparência dos processos de compra e outros problemas costumam ser apontados por sujeitos
escolares como entraves para desenvolvimento do PDDE. No caso em análise, conforme as
entrevistas, a participação da comunidade escolar na execução do PDDE se restringiu ao período
de prestação de contas, tendo sido os demais encaminhamentos realizados pela Secretaria
Municipal de Educação, aspecto que incide diretamente sobre os processos de compra de materiais
e possibilidades de atender a demandas da escola-polo e dos anexos.
Outro aspecto interessante sobre a realidade educacional na comunidade refere-se aos
aspectos curriculares e culturais. Como aludido, os normativos preveem para a Educação Escolar
Quilombola a construção de propostas pedagógicas contextualizadas, atentas às especificidades
desses grupos étnicos (Brasil, 2012). Como indicam Campos e Gallinari (2017. p. 200), “[...]
determinou-se, assim, que a Educação Escolar Quilombola ocorresse em escolas inseridas nas
próprias comunidades, tendo no currículo temas relacionados à cultura e à especificidade
étnicocultural de cada uma delas”.

131
Sobre o PDDE: <https://www.fnde.gov.br/programas/pdde>
Página 650 de 2230

Sobre a escola-campo desse estudo, cabe frisar que o Projeto Político-Pedagógico (PPP)132
existente é o mesmo da escola polo e dos quatro anexos vinculados a esta. É importante ressaltar
que a escola-polo, localizada no povoado Areal, não fica em território quilombola. Também,
conforme sujeitos da pesquisa (gestora e professora), o processo de construção do PPP não contou
com participação da comunidade escolar de Marajá, o que incidiu sobre a inclusão de elementos
históricos e da identidade da comunidade nesse documento curricular. Diante disso, a professora
busca adequá-lo de acordo com a realidade da comunidade e dos alunos.
Ainda a respeito das questões pedagógicas, nota-se pela fala das participantes que o
desenvolvimento de projetos didáticos segue a mesma dinâmica de funcionamento, pois ao
chegarem à escola, fica a critério da professora fazer adaptações para que sejam relacionados à
realidade local.
Outro aspecto mencionado pelas participantes é a dificuldade do acompanhamento
pedagógico, uma vez que existe coordenação, mas há distanciamento da comunidade escolar.
Assim relatou a gestora:

Tem uma grande carência na questão pedagógica. A gente tem um coordenador


pedagógico, mas infelizmente ele não é atuante [...] e acaba que fico sobrecarregada,
porque são cinco escolas, tem o polo e mais quatro anexos. E não consigo dar conta nas
duas partes: a administrativa e pedagógica (Gestora da Escola Quilombola de
Marajá/Bequimão).

Apesar das dificuldades relacionadas a aspectos pedagógicos e de valorização da


identidade histórica e cultural, ao questionarmos os alunos sobre “ser quilombola”, estes
manifestaram-se positivamente com palavras como “felicidade”, “orgulho”, “feliz” e outras. No
entanto, interrogados sobre conhecimentos da história da comunidade, não souberam informar, o
que sugere a importância de ações/projetos que visem resgatar o conhecimento da história local.
Conforme previsto nas DCN’s para a Educação Básica (2013), a Educação Escolar
Quilombola requer tanto a abordagem dos conhecimentos comuns do currículo escolar como a
atenção às práticas e conhecimentos de cada comunidade. Nesse sentido:

A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em


suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-
cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados
os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a
Educação Básica brasileira. Na estruturação e no funcionamento das escolas
quilombolas, deve ser reconhecida e valorizada sua diversidade cultural. (Brasil/MEC,
2013, p. 46)

132
Segundo Veiga (2002), o projeto político-pedagógico é uma ação intencional da escola que reflete um
compromisso definido coletivamente. Ele se fundamenta em princípios como a igualdade, qualidade e gestão
democrática do ensino, sua construção perpassa pela análise de elementos constitutivos da organização do trabalho
pedagógico, entre estes o currículo escolar.
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É essencial, assim, garantir às populações quilombolas as condições materiais, humanas e


culturais para apropriação dos conteúdos curriculares e preservação de conhecimentos
tradicionais, de modo a usufruírem plenamente do direito a educação, valorizando e reconhecendo
a identidade étnico-cultural e promovendo sua continuidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história de inserção dos negros na educação brasileira constitui-se em uma trajetória


permeada por lutas, contradições, preconceitos e exclusão. Essa trajetória deixou marcas
profundas para a população afro-brasileira, ainda perceptíveis nos dias atuais. Na comunidade
quilombola campo deste estudo identificaram-se fragilidades quanto à garantia do direito
educacional, relacionadas a condições físicas, curriculares e pedagógicas e que podem ser
associadas ao processo de exclusão do povo negro no cenário educativo. Os esforços dos sujeitos
escolares e da comunidade tem sido recorrentes no processo de luta pela conquista do direito
educacional.
A Educação Escolar Quilombola é uma demanda do Movimento Negro e Quilombola que
questiona o currículo e coloca em prática políticas que visam minimizar desigualdades históricas
que recaem sobre esses grupos étnicos. Nesse sentido, é dever do Estado garantir meios e
condições adequadas de oferta educacional nas comunidades quilombolas e corrigir as assimetrias
construídas historicamente.

REFERÊNCIAS

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação e da Pedagogia. São Paulo: Moderna,
2012.

CAMPOS, Margarida C. e GALLINARI Tainara S. A educação escolar quilombola e as escolas


quilombolas no Brasil. Revista Nera. Presidente Prudente, Ano 20, n 35, p. 199-217, jan.-abr.
2017.

BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível em:


< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>.

_______. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de


1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências. Brasília: DF, 2003. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>

______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer CNE/CEB nº


16/2012, aprovado em 5 de junho de 2012. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola. Brasília: DF, 2012a
Página 652 de 2230

______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução CNE/CEB nº


08, de 20 de novembro de 2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola na Educação Básica. Brasília: DF, 2012b. Disponível em<
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=11963-
rceb008-12-pdf&category_slug=novembro-2012-pdf&Itemid=30192>.

______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares


Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.

FERREIRA, Amarílio Júnior. História da educação brasileira: da colônia ao século XX. São
Paulo: EdUFSCar, 2010.

FERREIRA JR, Amarilio e BITTAR, Marisa. Educação jesuítica e crianças negras no Brasil
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FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Certidões expedidas às comunidades


remanescentes de quilombos. Atualizada até a portaria nº 138/2019, publicada no dou de
02/08/2019. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/wp-
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VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Projeto político-pedagógico da escola: uma construção


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Rio de Janeiro, Brasil: Revista Brasileira de Educação, v.13, n.39, set/dez. 2008.
Página 653 de 2230

O CURRÍCULO E A CULTURA DO QUILOMBO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS NA


ESCOLA QUILOMBOLA MARAJÁ, BEQUIMÃO/MA

THE KILOMBO CURRICULUM AND CULTURE: CHALLENGES AND


PERSPECTIVES AT THE QUILOMBOLA SCHOOL MARAJÁ, BEQUIMÃO / MA

Aldenora Rodrigues Sarges Neta


Graduanda em Pedagogia - UEMA
Dielle Kriss Monteiro do Nascimento
Graduanda em Pedagogia - UEMA
Domingas do Socorro Serra
Graduanda em Pedagogia - UEMA
Dinalva Pereira Gonçalves
Mestra em Educação - UEMA
Eixo 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O presente artigo objetiva analisar de que forma um currículo específico, que considere
os costumes e necessidades locais, poderia contribuir para a preservação da cultura da comunidade
quilombola Marajá, na cidade de Bequimão (MA). A pesquisa, resultante de um trabalho
acadêmico de disciplinas do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA),
foi desenvolvida na comunidade supracitada e contou com a participação da docente, gestora e
alunos da escola local. Para este estudo, utilizamos como metodologia a pesquisa de campo com
observações e entrevistas semiestruturadas, além de pesquisa bibliográfica sobre temas correlatos.
A partir dos dados coletados, inquietou-nos a percepção de um suposto distanciamento entre teoria
e prática na escola quilombola da comunidade Marajá, uma vez que essa unidade de ensino se
trata de um anexo vinculado a uma escola polo não quilombola e, portanto, sob a orientação de
um Projeto Político Pedagógico (PPP) que não foi elaborado especificamente para essa
comunidade. Desse modo, a pesquisa discutiu a importância da elaboração de um currículo, que
articule conhecimentos formais e conhecimentos produzidos pelas comunidades, para preservação
da sua identidade cultural e étnica.
Palavras-chave: Currículo. Cultura. Comunidade quilombola.

Abstract: This article aims to analyze how a specific curriculum, which considers local customs
and needs, could contribute to the preservation of the culture of the Marajá quilombola
community, in the city of Bequimão (MA). The research, resulting from an academic work of
subjects from the Pedagogy course of the State University of Maranhão (UEMA), was developed
in the aforementioned community and counted on the participation of the teacher, manager and
students of the local school. For this study, we used as a methodology field research with
observations and semi-structured interviews, in addition to bibliographic research on related
topics. From the data collected, we were disturbed by the perception of a supposed distance
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between theory and practice in the quilombola school of the Marajá community, since this
teaching unit is an annex linked to a non-quilombola school and, therefore, under the orientation
of a Political Pedagogical Project (PPP) that was not specifically designed for this community.
Thus, the research discussed the importance of developing a curriculum, which articulates formal
knowledge and knowledge produced by communities, for the preservation of their cultural and
ethnic identity.
Keywords: Curriculum. Culture. Quilombola community.

INTRODUÇÃO

Assegurada pela Constituição Federal de 1988, a educação é um direito de todos e dever


do Estado, sendo uma prática social, política e de desenvolvimento humano presente nos mais
diversos espaços, formais e não formais; sendo a escola o lócus privilegiado, convencionado pela
sociedade para formação do sujeito com vistas ao exercício da cidadania.
Neste sentido, a atuação do Movimento Negro na busca pelo direito à educação dos povos
afro-brasileiros, baseia-se na convicção de que a partir dela é possível alcançar todos os outros
direitos sociais. A partir de lutas constantes em prol dessa causa, é criado em 2003 a Lei 10.639,
que institui as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para
o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, o que significou um grande avanço no
sentido de dar visibilidade, no currículo escolar, ao papel social desses sujeitos na formação
histórica e cultural da sociedade brasileira. No entanto, essa Lei não avançou no sentido de
apresentar uma proposta educacional direcionada para as comunidades quilombolas.
Posteriormente, a partir da necessidade de criar um dispositivo que pudesse
regulamentar/orientar os sistemas de ensino acerca das especificidades da educação em
comunidades remanescentes de quilombos, foi instituída as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação Escolar Quilombola (DCNEEQ's), aprovada pela Resolução n° 8 de novembro de
2012. As DCNEEQ’s representaram uma importante conquista para esses povos, pois conforme
evidencia Leite (2016, p.198): “[...] os quilombolas defendem a existência de uma escola, cuja
organização curricular, administrativa e pedagógica esteja pautada na própria história e no modo
de vida da comunidade”.
Para discussão dessa temática, buscamos a escola situada na comunidade quilombola
Marajá, localizada no município de Bequimão (MA), para analisar de que forma um currículo
especifico, que considere os costumes, origem e realidade local poderia contribuir na preservação
cultural desses povos. Para este estudo, utilizamos como metodologia, além da pesquisa
Página 655 de 2230

bibliográfica, a pesquisa de campo com observações e entrevistas semiestruturadas individuais e


grupais.
A partir do que foi observado/coletado nos instrumentais para coleta de dados, inquietou-
nos a percepção de um suposto distanciamento entre teoria e pratica na escola quilombola
estudada. Considerando a trajetória histórica dos negros, apesar de haver avanços com a
institucionalização de dispositivos legais que visam contribuir para uma educação antirracista e
que respeite os modos de vida das populações afrodescendentes, na prática isso ainda não se
concretiza totalmente, pois apreende-se que ainda existem muitos problemas enfrentados pelos
quilombolas no que diz respeito à educação formal.

O CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO QUILOMBOLA: HISTÓRICO, DESAFIOS E


DIRECIONAMENTOS

Desde a segunda metade do século XVI até o século XIX, a escravidão se fez presente no
Brasil. Durante esse período até os dias atuais, os negros estiveram envolvidos em movimentos de
resistência, que tinham como objetivo libertarem-se do regime da escravidão, reivindicar direitos
e melhores condições de vida.
Após três séculos de escravidão, com a promulgação da Lei Aurea, os negros obtiveram
sua liberdade política, porém, permaneceram desamparados socialmente, uma vez que a abolição
não lhes permitiu condições de acesso à educação, empregos, nem mesmo moradia e/ou terras
para garantir sua subsistência. Segundo Costa (1999), a abolição deixou os negros largados à
própria sorte.
Na busca pela garantia de direitos, o Movimento Negro foi instituído no pós-abolição,
passando por alguns momentos históricos, nos quais esteve em maior ou menor evidência. Em
meados do ano de 1978, o Movimento Negro direcionou suas atenções para o campo educacional,
tendo como enfoque os materiais didáticos, formação de professores capacitados, bem como a
inserção do ensino afro-brasileiro nas escolas (Domingues, 2007). O enfoque na educação
justifica-se pelo fato de considerarem que quanto maior o nível de escolarização, menores as
chances de nos depararmos com situações de discriminação, bem como de praticá-las.
A partir da atuação do Movimento Negro, em conjunto com outros segmentos da sociedade
sensíveis à causa, foi criada em 2003 a Lei 10.639, que institui as diretrizes curriculares nacionais
para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e
africana. Essa Lei representou uma conquista para os negros; no entanto, ainda ocorria a ausência
de uma proposta educacional direcionada, ou seja, um tipo de educação escolar para as
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comunidades quilombolas, o que Leite (2016) denomina de Educação Diferenciada, entendida


como uma proposta educacional que coloca em seu currículo, temas comuns a todos os
quilombolas: “preservação da memória de identidade, conhecimento dos direitos, formação
política, o modo particular de se relacionar com a terra e as noções de posse e de propriedade e
outras peculiaridades inerentes às próprias comunidades” (Leite, 2016, p.119-200).
Diante disso, em 2010, na Conferência Nacional de Educação (CONAE) foi proposta a
formulação de políticas específicas para as comunidades quilombolas, considerando seus
costumes, historicidade, realidade, origem, já que a Lei 10.639/2003 não aborda essas
especificidades. Conseguinte a essa discussão, em 13 de julho de 2010 foi criada a Resolução n°4,
que define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, institucionalizando
a Educação Escolar Quilombola como modalidade de educação.
Ancorada nesse pressuposto, Leite (2016) defende que:

[...] mais que a parte diversificada do currículo prevista no artigo 26 e os conteúdos


relacionados no parágrafo 1° do artigo 216A, os quilombolas defendem a existência de
uma escola, cuja organização curricular, administrativa e pedagógica esteja pautada na
própria história e no modo de vida da comunidade (Leite, 2016, p.198).

Como atendimento a essa e outras reivindicações do Movimento Negro, em junho de 2012,


foi aprovada pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional em novembro do mesmo
ano, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (DCNEEQ's),
instituída pela Resolução n° 8 de novembro de 2012, compreendendo as escolas quilombolas
(aquelas localizadas em território quilombola) e as escolas que atendam um número
significativo133 de estudantes oriundos de comunidades quilombolas (Brasil, 2012).
De acordo com essas diretrizes, os projetos pedagógicos das escolas quilombolas devem
considerar as especificidades históricas, culturais, sociais, políticas, econômicas e identitárias
dessas comunidades, ou seja, um projeto que considere a realidade das comunidades quilombolas
e que conteúdos relacionados aos conhecimentos produzidos por estas, possam ser respeitados,
valorizados e trabalhados em sala de aula (Brasil, 2012).
Nesse sentido, Leite (2016, p. 198) afirma que "a história e a memória têm muito
significado para uma comunidade quilombola". Desse modo, é fundamental a existência de um
currículo próprio, aberto e flexível, de modo a articular os conteúdos básicos do currículo oficial
com os conhecimentos próprios das comunidades quilombolas.
Diante dessa vertente, "o currículo se expressa em usos práticos, que, além disso, tem
outros determinantes e uma história" (Sacristán, 2000, p.202 apud Silva, 2011, p.6). Tal

133
Embora a Resolução N° 08/2012, que regulamenta as DCNEEQ’s, trate de um número significativo de estudantes
para que a escola esteja incorporada à modalidade de Educação Quilombola, a mesma não cita um percentual mínimo
a ser considerado, o que pode levar a variados entendimentos por parte dos sistemas de ensino.
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pensamento põe em evidência a necessidade de construção de um currículo especifico para as


comunidades quilombolas, que leve em consideração sua cultura, lutas, vitórias e reconhecimento
enquanto sujeitos de sua própria história. Esse currículo também precisa permitir às pequenas
gerações o privilégio de conhecer suas raízes e estudá-las, reconhecer as cicatrizes que carregam,
resultado das lutas incansáveis por seus direitos. O pensamento de Freire (2007, p.69) endossa
esse pressuposto ao afirmar que a educação tem por finalidade desenvolver em cada um de nós “a
capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar, mas sobretudo para transformar a realidade,
para nela intervir, recriando-a”. Dessa forma, a educação torna-se o instrumento essencial para
minimizar visões preconceituosas, ao mesmo tempo em que possibilita a inserção dos sujeitos
historicamente excluídos da história da educação.

O CURRÍCULO DA ESCOLA DE MARAJÁ: DO IDEAL AO REAL.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola na Educação


Básica, aprovada pela Resolução nº 8 de 20 de novembro 2012, rege alguns princípios que são
garantidos para a modalidade de ensino quilombola, do qual podemos destacar a formação
específica de quadro docente, inserção da realidade quilombola em materiais didáticos, processo
educativo escolar que respeite a especificidade étnica – racial e cultural, implementação de um
currículo escolar aberto, flexível e de caráter interdisciplinar, elaborado de modo a articular o
conhecimento escolar e os conhecimentos construídos pela comunidade (Brasil, 2012).
Ademais, uma proposta curricular voltada para a cidadania, conforme os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN’s):

[...] deve preocupar-se necessariamente com as diversidades existentes na sociedade,


uma das bases concretas em que se praticam os preceitos éticos. É a ética que norteia e
exige de todos — da escola e dos educadores em particular —, propostas e iniciativas
que visem à superação do preconceito e da discriminação. A contribuição da escola na
construção da democracia é a de promover os princípios éticos de liberdade, dignidade,
respeito mútuo, justiça e equidade, solidariedade, diálogo no cotidiano; é a de encontrar
formas de cumprir o princípio constitucional de igualdade, o que exige sensibilidade para
a questão da diversidade cultural e ações decididas em relação aos problemas gerados
pela injustiça social. (Brasil, 1997, p. 129).

No entanto, esse currículo não pode se tratar de um currículo turístico, como salienta
Santomé (1995), onde as questões pertinentes às classes minoritárias sejam trabalhadas apenas no
chamado "Dia D", mas que essa abordagem se faça presente e constante em todo o currículo
escolar e em sala de aula.
A promoção desse currículo ideal na comunidade de Marajá Bequimão-MA tem sido um
desafio constante, inicialmente diante de um Projeto Político Pedagógico que, até o momento,
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ainda não foi adequado às diretrizes da modalidade quilombola. Para compreender o currículo da
comunidade Marajá, foi desenvolvida uma pesquisa de campo, com o intuito de conhecer as
peculiaridades da comunidade quilombola, focando em questões pertinentes à prática educacional
e de que maneira é articulado o conhecimento escolar com conhecimentos construídos pela própria
comunidade. Para coletar as informações, realizamos entrevistas com a gestora e a única docente
da escola local; e para coletar informações dos alunos optamos por entrevistas grupais.

Histórico da comunidade de marajá

Conhecer e compartilhar a história de um povo é uma forma relevante de preservar e


manter na memória a sua origem, os seus desafios, anseios e, principalmente, sua identidade.
Pedroso (1999) afirma que “um povo que não tem raízes acaba se perdendo no meio da multidão,
são exatamente nossas raízes culturais, familiares, sociais que nos distinguem dos demais e nos
dão uma identidade de povo”.
A comunidade quilombola de Marajá está situada no município de Bequimão, estado do
Maranhão. A partir de informações do histórico da comunidade, Marajá possui, aproximadamente,
150 anos de existência. “Iniciou-se com três famílias, sendo a do senhor João Faquende, Ponciano
e o senhor Marcimino, depois chegou o senhor João Macêdo vindo do quilombo Bem Posta da
mesma região, ele construiu a 4° moradia no quilombo que ficou conhecido como Marajá devido
à abundância dessa árvore” (Associação dos Moradores de Marajá/Ma, registro escrito da história
da comunidade, s/a).
A comunidade é constituída por 30 famílias, descendentes desses primeiros moradores.
Em 2003 Marajá foi titulada como comunidade quilombola, recebendo alguns benefícios do
programa do crédito fundiário como melhoria habitacional, casas de farinha, mini usinas de arroz,
melhorias de caminho e acesso, poços artesianos e fábrica de ração. No que diz respeito à questão
econômica, os moradores trabalham em mutirão e com troca de dias para roçar, plantar, capinar,
fazer colheita, fabricação de farinha e construção de casas. Além do cultivo da mandioca, como
produto principal, há plantação de milho, feijão e arroz para subsistência, com venda dos
excedentes da colheita. (Associação dos Moradores de Marajá/Ma, registro escrito da história da
comunidade, s/a).
De acordo com o registro escrito do histórico da comunidade, as celebrações, a
religiosidade e as tradições culturais são mantidas, a exemplo do bumba-meu-boi, pajelança,
tambor de crioula, além da ladainha para São Benedito, padroeiro da comunidade.
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Percepções sobre o currículo da escola de marajá

No que se refere às práticas educativas formais, a comunidade quilombola de Marajá


possui apenas uma escola, a Unidade Integrada Francisca Macêdo, que é um anexo de uma escola
polo que funciona no povoado Areal no Município de Bequimão (MA). É importante destacar
que, embora a escola de Areal receba alunos quilombolas, a mesma não está situada em território
autodefinido/reconhecido enquanto comunidade remanescente de quilombo.
O anexo de Marajá funciona no turno matutino, com uma infraestrutura simples,
organizada em uma única classe multisseriada, composta por 14 alunos, sendo 2 da educação
infantil e 12 alunos que compreendem os anos inicias do 1º ao 4º ano do Ensino Fundamental; 01
docente, oriunda da própria comunidade, a qual atua desde 2013 nessa escola; além da orientação
de 01 diretora e acompanhamento mensal de profissionais da SEMED/Bequimão.
Não existe nenhum tipo de acesso à tecnologia, nem biblioteca. Para material de apoio, a
escola conta com um pequeno acervo composto por livros didáticos variados e alguns
paradidáticos que, em sua maioria, evidenciam as questões étnico-raciais.
De acordo com os dados coletados durante a pesquisa de campo, verificamos nas falas dos
próprios sujeitos uma certa preocupação com os poucos recursos/suportes disponíveis para
efetivação de uma educação escolar que verdadeiramente considere as especificidades da
comunidade Marajá. Como principal fator, foi apontada a falta de formação inicial e continuada
para atuação da docente nesse tipo de modalidade educacional, além de recursos didáticos que
auxiliem no trabalho nessa escola quilombola.
A partir da entrevista com a gestora, foi possível constatar que o Projeto Político
Pedagógico existente ainda não está adaptado de modo a atender as escolas quilombolas que se
encontram anexas ao polo, o que ficou evidenciado no relato da mesma:

Nós temos um PPP só no Polo, porque aqui é um anexo, os professores não tem acesso,
só no começo do ano na Semana Pedagógica, e a maioria dos professores dos anexos são
contratados, essa é uma grande realidade, o professor fica alheio a Semana Pedagógica.
[...] Nós temos uma grande carência na questão Pedagógica. [...] O Professor é chamado
com dois dias antes pra trabalhar [...} E fica a critério da professora improvisar a
educação. (A.M. Gestora. Entrevista concedida em 25.06.2019).

É notória a preocupação da gestora em relação aos direcionamentos do PPP e à formação


continuada dos professores que, em sua maioria, são contratados. Como só existe um PPP para
todas as escolas anexos que integram o polo Areal, e pelo fato da escola de Marajá ser a única
unidade quilombola desse polo, isso inviabiliza a implementação de um projeto condizente com
as diretrizes para a educação quilombola, nas quais existe a seguinte orientação: “Art.8º -
Implementação de um projeto político – pedagógico que considere as especificidades históricas,
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culturais, sociais, políticas, econômicas e identitárias das comunidades quilombolas” (Brasil,


2012).
Sobre a questão dos contratos, se trata de uma prática muito comum em comunidades, que
embora tenha seus pontos negativos por inúmeros motivos, existe uma indicação nas DCNEEQ’s
que orienta que seja dada preferência aos professores das próprias comunidades para condução do
ensino nas mesmas. Um dos pontos que pode ser destacado é o fato de existir um número reduzido
de professores quilombolas concursados e com formação na área.
Quando a docente é questionada a respeito do trabalho com atividades e projetos sobre as
questões raciais em sala de aula, inferimos, pela sua fala, que acontecem especialmente em datas
pontuais:

[...] Mesmo que não esteja incluído lá no PPP, assim dentro do livro que veio este ano
com a mudança da BNCC, tem muita coisa que fala de fora, né... aí eu tô tentando
adequar, trazer pra realidade daqui. [...] a questão do meio ambiente, [...] conhecer nosso
município, aquilo que é nosso (F.C.R. Docente da escola de Marajá. Entrevista concedida
em 25.06.2019)

Essa fala nos chama a atenção e nos reporta a Santomé (1995), quando este autor menciona
os riscos existentes em práticas pedagógicas baseadas em uma organização curricular que o
mesmo chamou de currículo turístico:

[...] o tratamento desse tipo de temática nas escolas e nas salas de aula, corre perigo não
obstante, em proposta de trabalho tipo currículos turísticos, ou seja, em unidades
didáticas isoladas nas quais esporadicamente se pretende estudar a diversidade cultural.
(Santomé, 1995, p.172).

O perigo, mencionado por Santomé (1995), é de que as escolas acabem criando uma ilusão
de estarem incluindo determinadas temáticas ao currículo escolar, quando na verdade estão
trabalhando de forma pontual, esporádica, sem um objetivo claro, reforçando, muitas vezes, os
estereótipos existentes acerca desses temas.
Durante a entrevista grupal, ao questionarmos os estudantes sobre a participação deles em
atividades que remetam às particularidades comunitárias no espaço escolar, os mesmos
mencionaram apenas um acontecimento anual, a Semana do Bebê Quilombola134. Ou seja, não
veem na escola um espaço que espelhe a história e cultura da sua própria comunidade.

134
A Semana do Bebê Quilombola se trata de uma parceria entre a Fundação Josué Montello, Secretaria de Estado
da Igualdade Racial (SEIR), UNICEF, Prefeitura Municipal de Bequimão, sendo instituído por Lei Municipal nº
03/2013. Foi concedida como uma estratégia de mobilização social para tornar prioridade o direito a sobrevivência e
ao desenvolvimento de crianças até 6 anos de idade, a primeira infância (de 0 a 3 anos de idade). O evento tem como
referência a Semana do Bebê, realizada no Brasil pelo UNICEF, porém é o único em todo país que desenvolve
atividades especificas com foco voltado para primeira infância quilombola (Informações disponíveis em
https://www.fjmontello.org/semana-do-bebe-quilombola).
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Como vemos, embora alguns esforços sejam empenhados para preservar as raízes culturais
da comunidade na escola de Marajá, ainda está aquém do ideário desejado pelos sujeitos da
pesquisa e de todos aqueles que lutam e defendem a Educação Diferenciada para as comunidades
quilombolas.
Uma escola que deseja proporcionar uma educação pautada em conhecimentos que prezem
a história de uma comunidade deve ter a consciência da importância de um Projeto Político
Pedagógico que atendam às necessidades que os alunos e a própria instituição apresentam, e isso
pode ajudar na tomada de decisões e apontar os melhores caminhos e estratégias a serem realizadas
para se chegar a melhores resultados.
É nessa reflexão que ressaltamos o enriquecimento que traria a essa comunidade a
construção de um currículo específico voltado para conservação da identidade desse povo, por
meio de saberes compartilhados entre todos no dia a dia da escola, e que esses conhecimentos,
que são particulares, possam ser perpetuados, tornando-se uma ferramenta poderosa dessa gente
aguerrida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os resultados desta pesquisa, inferimos que a escola da comunidade Marajá


ainda luta pela efetivação de uma educação que contemple as especificidades locais, uma
educação que busque sistematizar em seu Projeto Político Pedagógico as questões elencadas na
legislação nacional para a Educação Quilombola e que possam ser de fato refletidas na prática
educativa.
A elaboração de um currículo que analise e discuta a origem e o papel das comunidades
remanescentes de quilombolas é uma tarefa que deve ser articulada por educadores, diretores,
coordenadores pedagógicos e pela própria comunidade por meio dos seus representantes.
Esperamos que este trabalho possa incentivar novos estudos/problematizações, bem como
discutir a implementação das DCNNEEQ’s na educação formal em comunidades quilombolas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 2016.

BRASIL. Secretária de Educação Fundamental – pluralidade cultural, orientação sexual.


Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997.
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BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para Educação


Básica. Brasília: Conselho Nacional de Educação, 2010.

BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar


Quilombola. Resolução n°8, de 20 de novembro de 2012. Brasília, DF: Conselho Nacional de
Educação- Câmara de Educação Básica (CNE/CEB), 2012.

COSTA, Emilia Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos/Emília Viotti da


Costa. – 6.ed. – São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

FUNDAÇÃO JOSUÉ MONTELLO. Fundação Josué Montello/ Projetos. Disponível em:


https:// www.fjmontello.org, Acessada em: 06 de jul. de 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 2007.

GOMES, Nilma. Indagações sobre currículo: diversidade e currículo. Ministério da Educação.


Secretária da Educação Básica. Brasília, 2007.

LEITE, Maria Jorge dos Santos. Movimento Social Quilombola: processos educativos. 1ª ed.
Curitiba: Appris, 2016.

PEDROSO.S.F. A Carga Cultural Compartilhada: a passagem para interculturalidade no


ensino de português língua estrangeira. Campinas, 1999. Dissertação (Mestrado) – Universidade
Estadual de Campinas.

SILVA, Givânia Maria da. O currículo Escolar: Identidade e educação quilombola. Brasília,
janeiro de 2011. Disponível em
http://www.anpae.org.br/simposio2011/cdrom2011/PDFs/trabalhosCompletos/comunicacoeRela
tos/0213.pdf . Acesso em 06 de julho de 2019.

SANTOMÉ, Jurjo Torres. As Culturas Negadas e Silenciadas no Currículo. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da (Org.). Alienígenas na Sala de Aula: Uma introdução aos estudos culturais em educação.
3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
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O DESENVOLVIMENTO NOS ESTÁGIOS PRÉ-OPERACIONAL E OPERACIONAL


CONCRETO SEGUNDO PIAGET

DEVELOPMENT IN PRE-OPERATIONAL AND CONCRETE STAGES ACCORDING


TO PIAGET

Ingrid de Jesus Gonçalves


Estudante de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Ludmila Melo Sousa
Estudante de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Ronthykerlas Cruz Rocha
Estudante de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Dinalva Pereira Gonçalves
Mestra em Educação
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Eixo 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O presente trabalho discute o desenvolvimento infantil nos estágios pré-operacional e


operatório concreto, que compreendem, segundo Jean Piaget, alguns dos quatro estágios de
desenvolvimento cognitivo a saber: sensório motor, pré-operatório, operatório concreto primeiro
e segundo nível, e operações formais. O objetivo de Piaget era saber como o ser humano consegue
assimilar, estruturar e explicar o mundo em que vive. A partir dessa inquietação, Piaget escreveu
uma de suas mais famosas obras_ Epistemologia Genética. Tomando por base o referido livro,
além de outras leituras, foi possível uma melhor compreensão e estudo teórico dos estágios. A
partir dessas análises, daremos ênfase aos estágios pré-operatório e operatório concreto. Ressalta-
se a importância de especificar as estruturas mentais adquiridas nos estágios que contribuem para
a formação de novas estruturas que são assimiladas pela criança no estágio seguinte determinante.
Nesse sentido, os níveis pré-operacional e operacional concreto remetem ao desenvolvimento da
cognição promovido pelas experiências vivenciadas pela criança.
Palavras-chave: Jean Piaget. Desenvolvimento cognitivo. Pré-operacional. Operacional
concreto.

Abstract: This paper discusses child development in the preoperative and concrete operative
stages, which, according to Jean Piaget, include some of the four stages of cognitive development
namely: motor sensory, preoperative, concrete operative first and second level, and formal
operations. . Piaget's goal was to know how humans can assimilate, structure and explain the world
in which they live. From this concern Piaget wrote one of his most famous works. Genetic
Epistemology. Based on this book, besides other readings, it was possible a better understanding
and theoretical study of the stages. From these analyzes, we will emphasize the preoperative and
concrete operative stages. The importance of specifying the mental structures acquired in the
stages that contribute to the formation of new structures that are assimilated by the child in the
next determinant stage is emphasized. In this sense, the preoperational and concrete operational
levels refer to the development of cognition promoted by the experiences lived by the child.
Keywords: Jean Piaget. Cognitive development. Pre-operational. Concrete operational.

INTRODUÇÃO

Jean Piaget foi um biólogo e filósofo suíço de grande nome do século XX. Famoso por sua
teoria sobre o desenvolvimento da cognição humana, Piaget, por meio de vastas pesquisas, vem
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elucidar acerca de como o ser humano consegue assimilar, estruturar e explicar o mundo em que
vive.
Ao longo de sua carreira científica, Piaget escreveu uma de suas mais famosas obras:
Epistemologia Genética. E é baseado nessa obra que faremos as interpretações contidas neste
trabalho, com ênfase nos estágios pré-operacional e operacional concreto.
Seguindo a linha de pensamento piagetiano, o conhecimento é construído de forma
contínua, do início até o final da vida do indivíduo, resultante das experiências vivenciadas por
ele. Porém, Piaget estava preocupado em como se dava o início dessa inteligência e que fatores
estavam relacionados a ela. Desse modo, descreve quatro estágios do desenvolvimento da
cognição humana, que apresentam uma linearidade ao longo de toda a vida. Os estágios
desenvolvidos por Piaget seguem uma sequência que se inicia com o nascimento da criança e
prossegue de forma vitalícia.
É importante especificar que as estruturas mentais adquiridas em cada estágio contribuem
para a formação de novas estruturas que serão assimiladas pela criança no estágio seguinte. Piaget,
no decorrer de sua obra, aborda cada um desses estágios trazendo o processo de desenvolvimento
deles e as características específicas de cada um.
O estágio sensório-motor se inicia com o nascimento e vai até a aquisição da linguagem,
estendendo-se até os 2 anos, aproximadamente. Como o que prevalece são as características de
cada estágio, uma criança pode ou não ficar mais tempo em um estágio; tudo vai depender,
segundo Piaget, dos fatores externos que a criança está introduzida. Vale ressaltar que, como o
próprio nome diz, esta é uma inteligência totalmente motora, em outras palavras, é uma
inteligência prática, relacionada ao movimento sujeito-objeto. (Nitzke; Campos; Lima, 2018).
No estágio pré-operacional a criança já adquiriu estruturas que superam a fase anterior.
Com o aparecimento da linguagem, ela começa a dar significado aos objetos, ou seja, aparece a
função simbólica, também chamada de linguagem simbólica. Outra característica marcante desse
período é o egocentrismo presente na criança. Esse estágio compreende de 2 a 7 anos de idade
(Nitzke; Campos; Lima, 2018).
O estágio operacional concreto vai de 7 a 11/12 anos. Nessa etapa, há superação do
egocentrismo da fase anterior, dando espaço à capacidade de estabelecer relações com outras
crianças. Mas o que marca este estágio, como o próprio nome diz, é a capacidade do sujeito fazer
operações mentais a partir do concreto, ou seja, ela realiza tais operações partindo do contato físico
com o objeto (Piaget, 1971).
O último é o estágio das operações formais, estágio no qual a criança já conseguiu formar
estruturas suficientes para superar todos os estágios anteriores e, principalmente, superar a
presença do concreto para conseguir realizar as suas operações mentais. Nessa fase, a criança já
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consegue formular ideias a partir do abstrato, não necessitando haver contato com o objeto. Nesse
período, que se forma a partir dos 12 anos em diante, o adolescente consegue desenvolver a
autonomia (Piaget, 1971).
Tendo apresentado a teoria do desenvolvimento na qual Piaget separa por estágios que
decorrem numa ordem de linearidade, o presente artigo visa aprofundar esta pesquisa nos estágios
pré-operacional e operacional concreto, trazendo mais detalhadamente as características principais
e como ocorre o desenvolvimento nesses dois estágios.

O DESENVOLVIMENTO NOS ESTÁGIOS PRÉ-OPERACIONAL E OPERACIONAL


CONCRETO

A epistemologia genética enfatiza a necessidade da relação sujeito-objeto, que se dá de


forma empirista na atividade processual da criança. Segundo a teoria do desenvolvimento de
Piaget, os estágios são sucessivos e com fortes marcações no desenvolvimento cognitivo.

[...] De uma parte, o conhecimento não procede, em suas origens, nem de um sujeito
consciente de si mesmo nem de objetos já constituídos (do ponto de vista do sujeito) que
a ele se imporiam. O conhecimento resultaria de interações que se produzem a meio
caminho entre os dois, dependendo, portanto, dos dois ao mesmo tempo, mas em
decorrência de uma indiferenciação completa e não de intercâmbio entre formas distintas.
De outro lado, e, por conseguinte, se não há, no início, nem sujeito, no sentido
epistemológico do termo, nem objetos concebidos como tais, nem, sobretudo,
instrumentos invariantes de troca, o problema inicial do conhecimento será pois o de
elaborar tais mediadores. A partir da zona de contato entre o corpo próprio e as coisas
eles se empenharão então sempre mais adiante nas duas direções complementares do
exterior e do interior, e é desta dupla construção progressiva que depende a elaboração
solidária do sujeito e dos objetos. (Piaget. 1971, p.04).

Essa troca inicial de conhecimento tende a se dar por uma percepção do objeto e o meio
no qual a criança está inserida, facilitando, portanto, o desempenho das percepções acumuladas
na construção dos objetos, atribuindo identificações e significações relativas aos elementos
percebíveis e promovendo em si um desenvolvimento de efeito instrumental.
Descreveremos a seguir, as características dos estágios de desenvolvimento cognitivo, pré-
operacional e operacional concreto, segundo a teoria de Piaget.

Estágio pré-operacional

Nesse estágio, que vai de 2 a 7 anos, as crianças utilizam símbolos e linguagens de forma
mais desenvolvida que no estágio anterior a esse, caracterizado como sensório-motor. Os bebês
começam a construir esquemas de ação para, mentalmente, assimilar o meio onde sua inteligência
é prática e as noções de espaço e tempo são construídas pela ação. A partir de então, seu contato
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com o meio é direto e imediato, sem representação ou pensamentos, como por exemplo, o bebê
mamar ou morder o que é posto em sua boca pelo que ele vê, ou seja, o que está diante de si ele
aprimora e leva a boca.

Desde as ações elementares iniciais, não coordenadas entre si e não suficientes para
assegurar uma diferenciação estável entre sujeito e objetos, às coordenações com
diferenciações, realizou-se um grande progresso que basta para garantir a existência dos
primeiros instrumentos de interação cognitiva. Mas estes estão situados ainda num único
e mesmo plano: o da ação efetiva e atual, isto é, não refletida num sistema
conceptualizado. No estágio pré-operatório, as crianças aprendem intuitivamente, sem
usar o raciocínio lógico isso se dá porque elas ainda não pensam de forma lógica. (Piaget,
1971, p.08).

Esse conhecimento é uma reprodução da realidade num aspecto da ação afetiva, o que se
dá por meio das interações cognitivas primárias, por exemplo, quando uma criança usa seu pai ou
sua mãe como instrumento inicial para operar determinada atividade, pois através da imitação ela
se apropria do mundo externo, reproduzindo atividades semelhantes. No estágio pré-operacional,
a criança opera os objetos e atividades por representatividade dos objetos.
Esse estágio pré-operatório divide-se em dois níveis, dos 2 aos 5 anos de idade, e dos 5 aos
7 anos, aproximadamente.

Em outros termos, a assimilação por esquemas envolve certas propriedades dos objetos,
mais exclusivamente no momento em que eles são percebidos e de modo indissociado
em relação às ações do sujeito, aos quais correspondem (salvo em certas situações
análogas às do sujeito). (Piaget. 1971, p.11).

Nessa fase, elas possuem conceitos primários que devem ser estimuladas à aprendizagem,
pois, essa linguagem e simbolismo exprimem uma sistematização de imagens. Desenhos são
exemplos de representações simbólicas onde a criança expressa seus sentimentos, conceitos e
formas de ver o mundo, de modo que seus conceitos primários contribuem para o contato com o
mesmo. Elas desenvolvem um pensamento egocêntrico, pensam que são o centro das atenções;
um exemplo bem interessante, é o ciúme que a criança sente da mãe em relação à outra criança.
Nessa idade elas não conseguem lidar com dilemas morais nem se colocar no lugar do outro, tem
opiniões limitadas. São categorias que desempenharam seu desenvolvimento nessa fase. “Este
segundo subestágio (5 a 6 anos) é assinalado por um início de descentração que permite o
descobrimento de certas ligações objetivas graças a isto que chamaremos ‘funções constituintes’.”
(Piaget.1971, p.14).
Quando a criança estiver mais desenvolvida passará a questionar. É nesse momento que
começam os “porquês”, sendo comum e necessário para o seu desenvolvimento intelectual, pois
é um período de descobertas.
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[...] desde os começos deste período do conhecimento representativo pré-operatório


assinalam-se progressos consideráveis no duplo sentido das coordenações internas do
sujeito, logo, das futuras estruturas operatórias ou lógico-matemáticas, e coordenações
externas entre objetos, Logo, causalidade no sentido amplo com suas estruturações
espaciais e cinemáticas. Em primeiro lugar, com efeito, o sujeito torna-se rapidamente
capaz de inferëncias elementares, de classificações em configurações espaciais, de
correspondências, etc. Em segundo lugar, a partir do aparecimento precoce dos "por
quë?" assiste-se a um início de explicações causais [...]. (Piaget, 1971, p.09).

A representatividade se dá no processo de construção de indagação que é instigada pela


curiosidade de conhecer o meio que o circunda. Nessa propagação de conhecimento é que a
criança começa a estruturar seu aspecto cognitivo, visando sempre a apropriação do sujeito e
objeto. É nessa fase que o educando, ou grupo o qual ele faz parte, começa a explicar de forma
comum, sem um aspecto formal e direto, fazendo assim deslumbres da realidade e enfatizando
sempre a categoria natural e habitual do senso comum.
A criança passa a ter uma espécie de pensamento mágico em que uma vassoura, por
exemplo, pode ser usada como cavalinho; uma caixa de fósforo pode ser um carrinho; o
cruzamento de duas réguas podem ser um avião; e assim são as inúmeras ideias relacionadas às
fantasias infantis, ou seja, transformam objetos em algo que faça parte da sua imaginação.
Também ocorre a generalidade de mudança de humor em decorrência de uma resposta
negativa, situação típica que contribui para a aceitação de si mesmo e para seu processo de
crescimento individual.

Estágio operatório concreto

O termo operatório concreto diz respeito à competência de operar o aumento das


capacidades de raciocínio e reflexão diante do objeto. Essa reflexão, que se dá diante do objeto,
deve ser apresentada e experimentada para melhor compreensão, ou seja, é atuar no concreto ao
ensinar a criança.
Para Jean Piaget, é nesse estágio que se organiza verdadeiramente o pensamento da
criança. As crianças são sonhadoras, muito imaginativas e criativas; no entanto, é a partir desse
estágio que elas começam a ver o mundo com mais realidade, deixam de misturar sua realidade
com suas fantasias.

O problema que se apresenta é então o de explicar esta novidade que, ao mesmo tempo
que apresenta uma alteração qualitativa essencial, portanto uma diferença de natureza em
relação ao que precede, não pode constituir um começo absoluto e deve resultar, aliás,
de transformações mais ou menos contínuas. Não se observam, com efeito, nunca,
começos absolutos no curso do desenvolvimento e o que é novo procede ou de
diferenciações progressivas, ou de coordenações graduais, ou ambas ao mesmo tempo
[...]. (Piaget. 1971, p.16).
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No estágio operacional concreto a criança não tem conhecimento absoluto, mas passa por
uma transformação e diferenciação de pensamento, momento em que adquire uma construção na
formação do “eu’’, podendo evidenciar sua realidade e coordenar relações continuas e
progressivas, gradativamente.
As ações operatórias são responsáveis pela capacidade de pensar, manusear e manipular o
objeto. A criança já consegue realizar operações; no entanto, precisa de uma realidade concreta,
pois é necessário que tenha essa noção da realidade concreta para que seja possível efetuar as
operações. Um exemplo que pode ser dado para dar ênfase a esse aspecto é o do copo de água: no
estágio anterior (pré-operatório) a criança não consegue perceber que a quantidade de líquido é a
mesma, independente do formato do recipiente; já no estágio operatório concreto ela já é capaz de
identificar que a quantidade de líquido é a mesma, pois nesse período já compreende e passa a ter
uma prévia noção de volume, peso, espaço, tempo e operações numéricas.

Sendo assim, é portanto claro que certos objetos se prestarão Mais ou menos facilmente
a esta estruturação, ao passo que outros oferecerão resistência a ela, o que significa que
a forma não poderia ser dissociada dos conteúdos, e que as mesmas, operações concretas
não se aplicariam a não ser com decalagens cronológicas a conteúdos diferentes: é assim
que a conservação das quantidades, a seriação, etc., e mesmo a transitividade das
equivalências só vem a ser dominada no caso do peso por volta dos 9 a 10 anos e não aos
7 a 8 anos como para conteúdos simples, porque o peso é uma força e seu dinamismo
causal cria obstáculos a essas estruturações operatórias; e, no entanto, uma vez efetuadas
estas, com os mesmos métodos e os mesmos argumentos com que se dão as conservações,
seriações ou transitividade de 7 a 8 anos. (Piaget. 1971, p. 20-21).

Essas ações se dão em relação à capacidade de seriação e classificação em que a criança


adquire a percepção conseguindo assimilar as diferenças existentes entre as coisas ao seu redor,
como por exemplo, alimentos, ciclo familiar, formas de perigo, desde os mais simples aos mais
complexos, etc.
Nessa fase também existe o sentimento de justiça. De acordo com atividades em grupos,
realizadas por Piaget, ele percebeu que as crianças conseguem observar e atuar de acordo com
esse aspecto, pois se alguém fez algo de errado, simultaneamente, a lógica será a punição. Diante
desse processo, nota-se o sentimento de justiça, não somente no ponto de vista social, mas dos
trabalhos em grupos realizados entre os alunos. Portanto, a criança já absorveu algumas regras
sociais e morais constituintes do seu dia a dia.
Nota-se também a socialização como um fator importante nesse período, pois aqui a
criança passa a valorizar em grande proporção os grupos sociais, amigos, adquirindo alguns
valores, passando a se colocar no ponto de vista do outro e deixando, aos poucos, os sentimentos
egocêntricos.
As operações matemáticas passam a ser efetuadas com um pouco mais de facilidade, a
noção de espaço é mais ampla e aspectos geométricos mais diferenciados. Contudo, a criança
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assimila e articula as simetrias e regulam de forma harmoniosa. Para tanto, percebe-se a atenção
da criança quanto às atividades propostas e a forma de como ela transmite a significação
constituídas nas suas estruturas prévias cognitivas.

[...] O primeiro é o de uma abstração refletidora que extrai das estruturas inferiores aquilo
com que elaborar as superiores: por exemplo, a ordenação que constitui a serração é
obtida das ordenações parciais que intervêm já na elaboração de pares, trios ou séries
empíricas; as reuniões que caracterizam as classificações operatórias são obtidas de
reuniões parciais em ação a partir das coleções figurais e a formação dos conceitos pré-
operatórios, etc. O segundo momento é o de uma coordenação que visa a abarcar a
totalidade do sistema e tende deste modo ao seu fechamento, ligando entre si estas
diversas ordenações ou reuniões parciais, etc. O terceiro momento é então o da auto-
regulação de tal processo coordenador, conducente a equilibrar as conexões segundo os
dois sentidos direto e inverso da construção, de sorte que a chegada ao equilíbrio
caracteriza esta passagem limítrofe que engendra as novidades peculiares a estes sistemas
em relação aos precedentes, e sobretudo sua reversibilidade operatória. (Piaget. 1971,
p.18).

Entretanto, categoriza-se em diversas estruturas condizentes ao processo de estimulação


cognitiva da criança, de modo geral, partindo de uma abstração à uma equilibração de processos
operatórios.
O sujeito faz analogias relativas que conduzem aos esquemas representativos da
equilibração. Dessa forma, a tarefa da criança passa a se tornar mais positiva quanto aos estímulos
educativos, pois esta faixa etária propicia uma maior facilidade em absorver os ensinamentos. A
forma de abstração elabora condições para uma formulação de conceitos primários lineados em
diversas relações de transmissão e articulação de conceitos, de modo que se limita a uma mística
de relações de conhecimentos novos, perpetuando em cada indivíduo, estruturas novas e
peculiares a cada um, gerando uma apropriação de ideias e modelos sistemáticos condicionados
em cada sujeito.
Contudo, facilita-se então a propagação da equilibração cognitiva extraída do intelecto do
educando.
[...]cerca de 9 a 10 anos) atinge-se o equilíbrio geral das operações "concretas" além das
formas parciais já equilibradas desde o primeiro nível. De resto, é o degrau onde as
lacunas próprias à natureza mesma das operações concretas começam a fazer sentir em
certos setores, sobretudo no setor da causalidade, e onde estes novos desequilíbrios
preparam de algum modo o reequilíbrio do conjunto que caracterizará o estágio seguinte
e do qual se apercebem às vezes alguns esboços intuitivos. (Piaget. 1971, p.21).

No processo de equilibração citado acima, percebemos que a criança, ao longo do seu


desenvolvimento, passa por diversos desequilíbrios quando começa a reorganizar aquilo que lhe
foi passado de alguma forma, ou seja, passa a desconstruir e reconstruir novos conhecimentos;
porém, esse processo é diário e processual, limitando-se à reorganização cognitiva de ensino e
aprendizagem.
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O processo ensino-aprendizagem se dá ao passo que se ensina, pois a forma de diálogo e


conexão entre os conhecimentos do educando com o educador demarca em hipóteses,
questionamentos, dúvidas e respostas dadas pelo professor e reformuladas na concepção e visão
de mundo do próprio aluno.

Do ponto de vista das operações lógicas, pode-se notar o seguinte: a partir dos 7 a 8 anos
o sujeito é capaz de elaborar estruturas multiplicativas tão bem quanto aditivas, a saber,
tabelas com registros duplos (matrizes) comportando classificações segundo dois
critérios ao mesmo tempo, correspondëncias seriais ou seriações duplas (por exemplo,
folhas de árvore seriadas na vertical conforme seu tamanho e na horizontal conforme
seus matizes mais ou menos escuros). Contudo, trata-se no caso mais de sucesso em
relação à questão proposta ("dispor as figuras o melhor possível", sem sggestâo sobre a
disposição a encontrar) do que de uma utilização espontânea da estrutura. (Piaget. 1971,
p.22).

As operações lógicas passam a traduzir no sujeito a elaboração de operações concretas,


aditivas, multiplicativas, dentre outros, correspondendo a uma seriação de matrizes ideológicas,
dispondo de estruturas correspondentes quanto às operações e ao desenvolvimento das estruturas
processadas no decorrer do tempo, transmitindo em si atitudes espontâneas.
Para tanto, percebemos que algumas crianças possuem dificuldades quanto às realizações
de atividades lógicas à qual exige maior observação e assimilação dos fatos dispostos na
problemática das atividades. Para se ter o aperfeiçoamento do arranjo cognitivo é necessário um
estimulo do professor, partindo para a temática da lógica do trabalho elaborado.

[...] observamos, nível por nível, duas espécies de evolução estreitamente solidárias: a
das operações lógico-matemáticas e a da causalidade, com influência constante das
primeiras sobre a segunda do ponto de vista das atribuições de uma forma a um conteúdo
e influência recíproca do ponto de vista das facilidades ou resistências que o conteúdo
oferece ou opõe à forma. (PIAGET 1971, p.23).

Os níveis se dão por uma causalidade do conhecimento, através do desenvolvimento


cognitivo, partindo de uma nova implementação de ideais, onde ressalta esse papel totalizante, ao
passo que se torna constante e influente nas estruturas intelectuais e nas atribuições da criança, de
forma recíproca.
A evolução parte no momento em que se percebe que as estruturas intelectuais e cognitivas
passam a se mostrar positivas no pensamento crítico, condicionando a uma reflexão da realidade.

Segue-se então, e eis o que é novo, uma série de desequilíbrios fecundos, sem dúvida
análogos funcionalmente àqueles que intervêm desde os inícios do desenvolvimento, mas
cujo alcance é bem maior para as estruturações ulteriores: eles conduzirão, com efeito, a
completar estruturas operatórias [...]. (Piaget. 1971, p. 24).

Portanto, toda criança passa por esse processo de transição e formulação de descobertas e
novos conceitos, contemplando a assimilação, acomodação, equilibração de funcionalidades na
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reprodução de estruturas sistemáticas do ensino-aprendizagem. A criança perpassa por períodos


que, muitas vezes, demoram um pouco mais que outros, pois cada uma tem uma peculiaridade
para desenvolver suas estruturas cognitivas de acordo com seu estágio, atenuando na sua clareza
dos fatos, ou seja, uma percepção construtiva de inteligência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dois estágios que foram abordados neste artigo têm papeis fundamentais para o
desenvolvimento do ser humano. No estágio sensório-motor o único contato da criança com o
mundo é através da boca. Já no estágio pré-operatório, esta passa a ter mais habilidades que o
anterior, utilizando a linguagem e símbolos para assimilar o meio em que vive.
No estágio operatório concreto ocorre um grande salto em relação aos estágios anteriores,
pois a criança desenvolve maiores capacidades cognitivas com um raciocínio mais refinado para
os diversos problemas encontrados. Nesse estágio, a mesma também adquire uma grande
capacidade de reflexão em relação ao objeto, o pensamento está organizado e apto a resolver
problemas numéricos.
Para concluir, Piaget, no decorrer de sua obra, aborda cada um dos estágios que ajudam a
entender o processo de desenvolvimento infantil. A Epistemologia Genética é a compreensão de
como se passa de um estado de menor desenvolvimento para um estado de maior conhecimento,
gradativamente. O desenvolvimento de uma criança apresenta uma grande diferença do
desenvolvimento de um adulto, sendo que não há um desenvolvimento linear por acúmulo, e sim
diversos saltos que reorganizam a inteligência. Cada estágio é condição para o seguinte se
desenvolver como um espiral.

REFERÊNCIAS

NITZKE, Júlio; CAMPOS, Márcia; LIMA, Maria. Teoria de Piaget, 2018. Disponível em:<
http://penta.ufrgs.br/~marcia/teopiag.htm>Acesso em: 25 de maio de 2019.
PIAGET, Jean. A epistemologia genética. Trad. Nathanael c. Caixeira Disponível
em:<https://pt.wikipedia.org/wikw/JeanPiaget>. S.A. Acesso em: 10 de junho de 2019.
PÁDUA, Gelson L. Daldegan. Teorias da linguagem teorias da aprendizagem. Lisboa: 70,
1987. (O Saber da Filosofia; 20).
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O JORNALISMO PELA ÓTICA DA INTERDISCIPLINARIDADE

THE JOURNALISM FROM THE VISION OF INTERDISCIPLINARITY


Jean Carlos da Silva Monteiro
Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão
Jornalista
Eixo temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Criado em 2009, o Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PGCult), que


oferta um mestrado interdisciplinar na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), surge com o
objetivo de abranger pesquisas que têm como desafio investigar as mais diferentes e complexas
relações entre os saberes. Por ser interdisciplinar, o PGCult interage com as mais diversas áreas
do conhecimento, produzindo novos saberes, que se apresentam como diferentes caminhos para
que os pesquisadores possam sair das gaiolas epistemológicas disciplinares. Com dez anos de
existência, o mestrado permite aos seus pesquisadores a possibilidade de encurtar a distância entre
disciplinas para que possam compreender o conhecimento por meio das conexões de vários
campos do saber. Diante do número expressivo de egressos da área do jornalismo, esta Revisão
Sistemática da Literatura (RSL) identificou dissertações que abordam o diálogo interdisciplinar
do jornalismo. Para tanto, realizou-se um recorte metodológico que selecionou somente as
dissertações defendidas durante os dez anos do referido programa (2009-2019). A pesquisa, que
aconteceu na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da UFMA, analisou quatro dissertações
de cunho interdisciplinar entre o jornalismo e outras áreas do conhecimento, como administração,
educação, tecnologia e filosofia. As quatro dissertações do PGCult que se encaixaram na proposta
desta RSL evidenciam que as pesquisas em jornalismo só podem ser consideradas
interdisciplinares quando se propõem a sair do lugar comum, permear outras áreas do
conhecimento, realizar um intercâmbio de métodos de pesquisa oriundos de distintas disciplinas
e criar novos saberes.
Palavras-chave: Jornalismo. Interdisciplinaridade. PGCult. Revisão Sistemática da Literatura.

Abstract: Opened in 2009, the Degree Program of Culture and Society (PGCult), that offers a
interdisciplarity master on the Federal University of Maranhão (UFMA), came up with the goal
to produced interligated reseaches what explore about complex and miscellaneous knowledges.
Being interdisciplinary, the PGCult interacts with several knowledge areas, producting new
investigations that demonstrat differents routes for researchers break the epistmological cages of
disciplines. Ten years old, the master course allows your researchers the possibility to reduce the
distance between disciplines to understand the knowledge by connections of various areas. Given
the significant number of graduates from the journalism área, this systematic literature review
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(SLR) identified dissertations that investigate the interdisciplinary dialogue of journalism.


Therefore, it carried out a methodological approach that selected the dissertations defended during
the ten years of the referred program (2009-2019). This reseach, that explored the UFMA Digital
Library of Theses and Dissertations, analyzied four interdisciplinar dissertations about journalism
and other knowledge areas, like as management, education, tecnology and philosophy. The four
dissertations of PGCult, according to the proposal of this SLR, showed that journalism researches
must be considerated only when proposes to leave the commonplace, to permeate other
knowledges areas, to conduct an exchange of research methods from differents discplines and to
created new lore.
Keywords: Journalism. Interdisciplarity. PGCult. Systematic Literature Review.

INTRODUÇÃO

Comemora-se, neste ano de 2019, dez anos de criação do Programa de Pós-Graduação


em Cultura e Sociedade (PGCult), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Inicialmente
ele surge ofertando um mestrado, de caráter interdisciplinar, cujo objetivo é acolher pesquisas que
tem como campo de estudos as diversas modalidades de conhecimento que envolvem os
saberes, a produção de identidades e de formas de subjetivação e os processos e práticas
sociais, nos contextos sociais em que emergem, se desdobram, produzem e transformam.

Por sua natureza interdisciplinar, no PGCult são enfatizadas as propostas


investigativas que privilegiem múltiplos olhares sobre as sociedades, procurando perceber
como os sujeitos constroem suas experiências, dotando-as de sentido. A produção do
conhecimento, nesse caso, envolve – necessariamente – abordagens interdisciplinares com
a participação de acdêmicos de diferentes campos formativos, o que redunda numa
formação acadêmica, em nível de mestrado, complexa e multifacetada.

Diante do número expressivo de egressos da área do jornalismo, buscou-se investigar as


dissertações que a discutiram sob a perspectiva da interdisciplinaridade. Para tanto, realizou-se
um recorte metodológico, no formato de uma Revisão Sistemática da Literatura, que selecionou
somente as dissertações defendidas durante os dez anos (2009-2019) do PGCult. Com os
descritores “Jornalismo”, “Interdisciplinaridade” e “Interdisciplinar”, a pesquisa foi realizada na
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da UFMA, entre os meses janeiro e junho de 2019.

A seguir, aborda-se um breve histórico do PGCult, contemplando objetivo do programa,


área de concentração e linhas de pesquisa. Logo após, reúnem-se alguns autores para falar sobre
a natureza interdisciplinar do jornalismo. Em seguida, apresenta-se conceito, características e
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aplicação da Revisão Sistemática da Literatura. Por fim, apresentam-se as evidências desta


investigação.

PGCULT - MESTRADO INTERDISCIPLINAR

O Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PGCult), que oferta um


Mestrado Interdisciplinar, nasceu a partir da necessidade de expansão dos projetos de ensino,
pesquisa e extensão da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e de vários grupos de estudo
e pesquisa das áreas de Ciências Humanas e Sociais, que atuavam em atividades interdisciplinares
(UFMA, 2019).

A área de concentração do PGCult abrange múltiplas investigações científicas acerca das


manifestações, experiências e formas de organização social. Estuda-se a diversidade sociocultural
numa perspectiva histórica e contextualizadora, buscando um quadro atualizador das práticas
sociais. “Identifica limites e possibilidades da reprodução social e o papel dos diferentes atores,
evidenciando como tais práticas sociais são absorvidas, recriadas e transmitidas às gerações
futuras” (PGCULT, 2019, online).

O PGCult possui duas linhas de pesquisa. Na Linha 1, denominada “Expressões e


Processos Socioculturais”, as pesquisas abordam as ações e relações entre indivíduos e
comunidades, suas práticas, representações e expressões estéticas, artísticas e simbólicas,
conhecimentos culturais e filosóficos, comunicação, etnicidades, sociabilidade, identidades,
gêneros e memórias (UFMA, 2019).

A Linha 1 do programa também estuda as relações entre artes performáticas, linguagem,


literatura e filosofia, considerando os fundamentos, os saberes e as práticas sociais e culturais, sua
significação e interpretação em contextos e tempos diversificados (PGCULT, 2019).

Na Linha 2 de pesquisa, chamada “Cultura, Educação e Tecnologia”, os estudos tratam


sobre as teorias da cultura e suas conexões com a educação formal, informal e não-formal,
considerando os fundamentos pedagógicos, o currículo, o imaginário, o meio ambiente e a
diversidade cultural, a cidadania e a sustentabilidade. Investigam-se as formas de apropriação e
difusão dos patrimônios materiais e imateriais, entendendo-os como processo dinâmico
transmitido através das gerações (UFMA, 2019).

Essa mesma linha de pesquisa abrange estudos que se debruçam sobre as relações entre
patrimônio, gestão e sustentabilidade. São contempladas as formas e processos de mediação da
construção do conhecimento e do desenvolvimento humano, englobando metodologias,
procedimentos e ações culturais. Investiga-se a produção, mediação e recepção dos processos
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educacionais e tecnológicos, enfatizando a utilização social e cultural dessas possibilidades e


recursos (PGCULT, 2019).

Em sua grade curricular (vigência a partir da turma 2019.1), o programa tem como
disciplinas obrigatórias as seguintes: Teorias da Cultura e da Sociedade; Epistemologia das
Ciências Humanas e Sociais; Seminário de Pesquisa I; Seminário de Pesquisa II; e Docência em
Ensino Superior. Solicita-se, ainda, aos alunos o Estágio em Docência, Produção Científica,
Pesquisa Orientada I (qualificação da dissertação) e Pesquisa Orientada II (defesa da dissertação).

Entre as disciplinas optativas estão: História e Sociabilidade; Comunicação, Tecnologia


e Sociedade; Gênero, Cultura e Sociedade; Identidade, Espaço e Memória; Arte, Cultura e Mídia;
Ética, Política e Educação; Discurso, Estética e Representação; Linguagem, Literatura e Filosofia;
Cidadania, Patrimônio e Sustentabilidade Ambiental; Cultura e Desenvolvimento Humano;
Gestão de Projetos Culturais; Literatura, Imprensa e Sociedade; Filosofia, Psicologias,
Psicanálises e Cinema; e Patrimônio Cultural e Arqueologia.

Na seção seguinte, aborda-se a natureza interdisciplinar do jornalismo com base nos


principais estudos de Bueno (2009), Barros (2010), Cohn (2011), Stone (2011), Barros e Targino
(2014) e Wolf (2015), autores basilares que se debruçam sobre essa temática.

A NATUREZA INTERDISCIPLINAR DO JORNALISMO

A interdisciplinaridade é uma das práticas mais importantes quando se trata das novas
formas de produzir conhecimento científico na atualidade, a exemplo das emergentes áreas do
saber que, em sua própria essência, refletem a convergência de bases disciplinares com pilares
interdisciplinares, conversando com duas ou mais disciplinas científicas. Nesse sentido, o
jornalismo é interdisciplinar por natureza, pois se constitui em “[...] um campo de produção de
discursos que interagem com os diversos campos sociais” (BARROS, 2010, p.04).
Segundo Wolf (2015), o jornalismo possui um arcabouço teórico e procedimentos
metodológicos que se fundamentam em outros campos do conhecimento científico. As teorias do
jornalismo, principalmente aquelas que tecem sobre os processos comunicativos, não se respaldam
apenas nas teorias da comunicação, mas também em teorias sociais que investigavam o fenômeno
comunicativo, analisado como consequência das transformações socioculturais que a sociedade
vivenciava.
Não somente as teorias, mas do ponto de vista prático, os métodos utilizados pelas
investigações em jornalismo (como os as pesquisas empíricas, estudos de campo, análises de
conteúdo, análises do discurso e análises estrutural-semióticas) eram provenientes de
entrelaçamentos interdisciplinares com Psicologia, Linguística e Sociologia, o que explica o
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interesse de outras áreas do saber em investigar as relações entre o jornalismo, a cultura e a


sociedade (BUENO, 2009; BARROS, 2010).
Tudo isto é explicado porque os primeiros estudos sobre a Comunicação não foram
realizados por comunicólogos, no sentido estrito do termo, mas por estudiosos de outras áreas
(sobretudo Sociologia e Psicologia) que despertaram interesse pelo assunto, devido à sua
repercussão social e, especialmente, seus efeitos e funções na sociedade (COHN, 2011; STONE,
2011).
Em síntese, quando se fala sobre a natureza interdisciplinar do jornalismo, percebe-se
que, tanto no passado como no presente, essa relação estabeleceu-se e constituiu-se como uma
constante necessidade, visto que o jornalismo relaciona-se diretamente com a resolução de
problemas socioculturais que, por serem muitos complexos, não podem ser analisados por uma
única ótica (BARROS; TARGINO, 2014).

REVISÃO SISTEMÁTICA DA LITERATURA

A Revisão Sistemática da Literatura (RSL) é uma metodologia de pesquisa que,


semelhante aos outros estudos de revisão, utiliza como matéria-prima a literatura disponibilizada
na Internet sobre uma determinada temática já investigada por outros pesquisadores (SAMPAIO;
MANCINI, 2010). Seu diferencial está no fato de ser um estudo que permite o detalhamento de
evidências, a partir da aplicação sistemática de um protocolo que vai identificar, selecionar, avaliar
e sintetizar os dados relevantes das produções científicas escolhidas.
A produção científica é pautada por um constante processo de construção e reconstrução
do conhecimento. Assim, a atividade da pesquisa torna-se imprescindível para acompanhar o fluxo
informacional de forma eficaz e sistematizada. Desse modo, a RSL surgiu da “[...] necessidade de
sintetizar a grande quantidade de informação científica para fundamentar propostas de
aprimoramento, de implementação e de avaliação dos resultados obtidos” (DE-LA-TORRE-
UGARTEGUANILO; TAKAHASHI; BERTOLOZZI, 2011, p. 02).
Segundo Costa e Zoltowski (2014, p. 56), “[...] a revisão sistemática é um método que
permite maximizar o potencial de uma busca, encontrando o maior número possível de resultados
de uma maneira organizada”. Esse tipo de revisão sistematizada é importante para compilar os
resultados de uma série de estudos realizados isoladamente, de modo particular, sobre o mesmo
tema, que podem apresentar desfechos semelhantes ou diferentes (GOUGH; THOMAS; OLIVER,
2012).
Para Ramos, Faria e Faria (2014), a RSL aponta aspectos que precisam ser mais bem
explorados, fornecendo novas informações com base no conteúdo analisado, contribuindo para
organização de futuras investigações. Outra característica importante da RSL é que ela possibilita
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a criação de uma síntese estatística metanalítica. A metanálise é a análise dos dados estudados em
diferentes produções científicas. Ou seja, vários estudos combinados apresentam melhor análise
estatística dos efeitos da realização de uma intervenção.
Na próxima seção, apresenta-se o percurso metodológico desta RSL, isto é, os
procedimentos técnicos utilizados para o refinamento da pesquisa.

PERCURSO METODOLÓGICO

Como percurso metodológico para a execução deste estudo, organizou-se um protocolo


de análise de dados, no qual delimitou-se o tema e elaborou-se um questionamento para nortear
toda a investigação realizada nesta RSL: qual o quantitativo de dissertações do PGCult que
abordam o jornalismo na perspectiva da interdisciplinaridade?
A partir dessa indagação, foram criados alguns parâmetros para que se pudesse explorar
mais precisamente aspectos pertinentes a essa pesquisa, bem como: Qual o período de defesa
dessas dissertações? Em quais áreas interdisciplinares as pesquisas foram desenvolvidas? Quais
metodologias foram empregadas nessas dissertações? Quais instrumentos para coletas de dados
foram mais utilizados pelos mestrandos?
Para a delimitação da pesquisa, foram elaborados critérios de inclusão e exclusão no
intuito de minimizar possíveis vieses. Essa delimitação fez-se necessária, pois é o princípio
fundamental e norteador para dar início a este estudo. Quanto aos critérios de inclusão, integraram
esta RSL apenas as dissertações defendidas durante os dez anos (2009-2019) do PGCult e que
abordam o jornalismo em sua natureza interdisciplinar. No que se refere aos critérios de exclusão,
não integraram esta RSL as dissertações fora do recorte temporal desta pesquisa e que não
apresentam características de pesquisa interdisciplinar.
Tomando por base os critérios de inclusão e exclusão acima elencados, inicia-se, entre os
meses janeiro e junho de 2019, o mapeamento das dissertações na Biblioteca Digital de Teses e
Dissertações da UFMA. A partir das leituras prévias, da revisão conceitual e dos objetivos
traçados para o levantamento e aprofundamento na temática abordada, estabeleceu-se a escolha
dos descritores da pesquisa a serem utilizados durante o mapeamento sistemático.
Os descritores, prioritariamente, foram correlacionados ao tema e apresentados em língua
vernácula, respeitando também a origem de algumas palavras e siglas já indexadas na Biblioteca
Digital de Teses e Dissertações da UFMA, bem como “Jornalismo”, “Interdisciplinaridade” e
“Interdisciplinar”.
Com essa estratégia metodológica inicial de busca, foram encontradas quatro dissertações
que versavam sobre o jornalismo pela ótica da interdisciplinaridade, apresentadas na Tabela 1.
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Tabela 1 – Dissertações mapeadas para esta Revisão Sistemática da Literatura


Nº Título Autor

Bandido bom é bandido morto - experiência


estética e produção de sentidos nos programas Poliana Sales Alves
1
policiais da televisão: o caso do Bandeira 2

Empreendimentos digitais no jornalismo: novos


modelos de difusão de conteúdos noticiosos e Poliana Marta Ribeiro de Abreu
2
inserção no mercado

Jornalismo científico ou promoção institucional?


3 Análise das regularidades discursivas no Romulo Fernando Lemos Gomes
jornalismo científico da UFMA, IFMA e UEMA

Narrativas hipertextuais na educação superior:


4 uma proposta didática para o ensino de jornalismo
Jean Carlos da Silva Monteiro
multimídia

Fonte: Dados da Pesquisa (2019).

Com base na pesquisa inicial, foi realizada a leitura pormenorizada dos principais itens
das produções, a saber: título, resumo, palavras-chave, objetivos, metodologia e considerações
finais. Esse processo garantiu um maior refinamento da pesquisa, bem como o favorecimento do
mapeamento sistemático das dissertações. Dentro dessa metodologia, é importante destacar que o
autor deste artigo assina, também, a autoria de uma das dissertações mapeadas nesta RSL e é
egresso do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFMA.

O estudo sistemático avançou com a elaboração de uma Ficha de Análise que contemplou
seis categorias, a saber: o título da dissertação; autor da pesquisa; ano de defesa;
interdisciplinaridade na dissertação; metodologia empregada; e instrumentos para coleta dos
dados. No que tange às duas dissertações excluídas, elas versavam, em sua maioria, sobre o
jornalismo numa perspectiva disciplinar, isso levando em consideração os conceitos de Bueno
(2009), Barros (2010), Cohn (2011), Stone (2011), Barros e Targino (2014) e Wolf (2015) sobre
jornalismo e interdisciplinaridade.

RESULTADOS

No processo de investigação de uma RSL sobre qualquer temática, torna-se interessante


saber o ano de publicação das dissertações selecionadas. O período temporal das pesquisas
mapeadas correspondeu os anos de 2011 a 2019. Os dois anos ficaram empatados, concentrando
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um quantitativo de dois estudos em cada, perfazendo um total de 50% das dissertações, dado
exibido na Tabela 2.

Tabela 2 – Ano de defesa das dissertações selecionadas


Nº Ano Quantitativo Porcentagem

1 2011 2 50%

2 2019 2 50%

Fonte: Dados da Pesquisa (2019).

Metodologicamente, o protocolo desta RSL buscou conhecer as áreas disciplinares que,


articuladas ao jornalismo, permitiram a construção de pesquisas com uma interface
interdisciplinar. Constatou-se que a área da Educação dialogou com 50% das pesquisas,
totalizando duas dissertações, conforme a Tabela 3.

Tabela 3 – Interdisciplinaridade nas dissertações mapeadas


Nº Título Interdisciplinaridade

Bandido bom é bandido morto - experiência estética e produção


1 de sentidos nos programas policiais da televisão: o caso do
Jornalismo e Filosofia
Bandeira 2

Empreendimentos digitais no jornalismo: novos modelos de


2 Jornalismo e Administração
difusão de conteúdos noticiosos e inserção no mercado

Jornalismo científico ou promoção institucional? Análise das


3 regularidades discursivas no jornalismo científico da UFMA, Jornalismo e Educação
IFMA e UEMA

Narrativas hipertextuais na educação superior: uma proposta


4 Jornalismo e Educação
didática para o ensino de jornalismo multimídia

Fonte: Dados da Pesquisa (2019).

No que tange aos procedimentos metodológicos das dissertações mapeadas por esta RSL,
investigou-se a metodologia utilizada nas pesquisas que abordaram o jornalismo na perspectiva
da interdisciplinaridade. Averiguou-se que cada estudo contemplou uma metodologia diferente,
como indicado na Tabela 4.

Tabela 4 – Metodologias empregadas nas dissertações selecionadas


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Nº Título Metodologia

Bandido bom é bandido morto – experiência


1 estética e produção de sentidos nos programas
Pesquisa documental
policiais da televisão: o caso do Bandeira 2

Empreendimentos digitais no jornalismo: novos


2 modelos de difusão de conteúdos noticiosos e Estudo de caso
inserção no mercado

Jornalismo científico ou promoção institucional?


Análise das regularidades discursivas no Pesquisa de levantamento
3
jornalismo científico da UFMA, IFMA e UEMA

Narrativas hipertextuais na educação superior:


uma proposta didática para o ensino de jornalismo Experiência de aprendizagem mediada
4
multimídia

Fonte: Dados da Pesquisa (2019).

Investigando-se, ainda, sobre os procedimentos metodológicos, foi possível conhecer os


instrumentos utilizados para recolha dos dados. Entre os instrumentos utilizados nos estudos estão
a análise do discurso, a análise de conteúdo e o grupo focal. Nesta análise, destacou-se a análise
do discurso, com uma amostragem de 50%, ou seja, presente em duas dissertações, dado destacado
na Tabela 5.

Tabela 5 – Instrumentos de recolha de dados nas dissertações mapeadas


Nº Título Instrumento
Bandido bom é bandido morto – experiência
1 estética e produção de sentidos nos programas Análise do discurso
policiais da televisão: o caso do Bandeira 2

Empreendimentos digitais no jornalismo: novos


modelos de difusão de conteúdos noticiosos e Análise de conteúdo
2
inserção no mercado

Jornalismo científico ou promoção institucional?


Análise das regularidades discursivas no Análise do discurso
3
jornalismo científico da UFMA, IFMA e UEMA

Narrativas hipertextuais na educação superior:


4 uma proposta didática para o ensino de jornalismo Grupo Focal
multimídia
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Fonte: Dados da Pesquisa (2019).

Apenas com esses resultados, é possível afirmar que as dissertações mapeadas para esta
RSL enquadram-se na proposta de investigar questões do jornalismo numa perspectiva de
pesquisa e conhecimento interdisciplinar. A natureza interdisciplinar do jornalismo interage com
as mais diversas áreas do conhecimento, acolhendo discursos originários de diferentes campos
sociais e reeditando esses discursos, imprimindo um sentido de produção de novos saberes, que
se mostram como diferentes caminhos para sair das gaiolas epistemológicas disciplinares.

EVIDÊNCIAS

O PGCult se destina a graduados em Ciências Humanas ou Sociais ou com Formação


Superior em áreas afins aos objetivos, às linhas de pesquisa ou ao conteúdo programático
estabelecido pelo Programa. Desde 2009 até 2019 são muitos os candidatos (hoje egressos) da
área do jornalismo. Todavia, esta RSL evidenciou que, em dez anos de Mestrado Interdisciplinar,
somente quatro dissertações abordaram o jornalismo na perspectiva da interdisciplinaridade,
sendo duas no ano de 2011 e outras duas em 2019.
É importante ressaltar que as dissertações da área do jornalismo que não integraram esta
RSL foram excluídas por dois motivos: não se encaixavam dentro do recorte temporal desta
pesquisa e não apresentaram características de pesquisa interdisciplinar (do ponto de vista do
pesquisador que assina este artigo, com base no referencial teórico supracitado).
A dissertação da Mestra Luiziane Silva Saraiva, intitulada “Dos reclames de jornal aos
anúncios iconográficos: o impacto sociocultural na estética de anúncios do jornal O Imparcial, em
1930 e 1950”, também poderia ser incorporada a esta pesquisa, mas o estudo não se encontra
indexado na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da UFMA, nem no site do PGCult.
Quanto à interdisciplinaridade presente nas pesquisas, a dissertação da Mestra Poliana
Sales Alves, intitulada “Bandido bom é bandido morto - experiência estética e produção de
sentidos nos programas policiais da televisão: o caso do Bandeira 2”, dialogou entre o jornalismo
e a filosofia a fim de investigar o potencial de comunicabilidade dos noticiários policiais da
televisão a partir da experiência estética e da produção de sentidos.
Com o título “Empreendimentos digitais no jornalismo: novos modelos de difusão de
conteúdos noticiosos e inserção no mercado”, a dissertação da Mestra Poliana Marta Ribeiro de
Abreu realizou um entrelaçamento entre o jornalismo e a administração. Em sua pesquisa,
analisou-se o cenário dos novos empreendimentos digitais de jornalismo, caracterizados não
apenas como novas formas de difusão de conteúdos noticiosos, mas como modelos de negócios
viáveis.
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A dissertação do Mestre Romulo Fernando Lemos Gomes, intitulada “Jornalismo


científico ou promoção institucional? Análise das regularidades discursivas no jornalismo
científico da UFMA, IFMA e UEMA”, congregou o jornalismo com a educação com o objetivo
de investigar se o jornalismo científico produzido nessas três instituições atinge propósitos
educativos consistentes, de modo a atender necessidades de formação de cultura científica.
Com o título “Narrativas hipertextuais na educação superior: uma proposta didática para
o ensino de jornalismo multimídia”, a dissertação do Mestre Jean Carlos da Silva Monteiro reuniu
teorias e práticas do jornalismo e da educação. A pesquisa averiguou as contribuições das
tecnologias de informação e comunicação na formação de jornalistas multimídias.
Quanto aos procedimentos metodológicos, os pesquisadores utilizaram a pesquisa
documental, estudo de caso e pesquisa de levantamento, métodos comumente aplicados em
estudos que norteiam o jornalismo. Todavia, em um deles, utilizou-se a experiência de
aprendizagem mediada, método específico da área da educação que, pela flexibilidade de sua
aplicação, foi adequado aos problemas e objetivos da pesquisa.
Por fim, em relação aos instrumentos de recolha de dados nas dissertações mapeadas,
observou-se que tais instrumentos, como a análise do discurso, análise de conteúdo e grupo focal,
apresentam peculiaridades da interdisciplinaridade, uma vez que nascem de entrelaçamentos de
uma ou mais áreas do saber.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desta Revisão Sistemática da Literatura, observou-se que o jornalismo pode ser
analisado por diferentes óticas, inclusive a interdisciplinar. É uma das áreas do saber que mais têm
características da interdisciplinaridade, isso porque possui uma natureza de grande abrangência,
que transita por todas as outras áreas (BARROS, 2010).
As quatro dissertações defendidas do PGCult, que se encaixaram na proposta desta RSL,
evidenciam que as pesquisas em jornalismo só podem ser consideradas interdisciplinares quando
se propõem a sair do lugar comum, permear outras áreas do conhecimento, realizar um
intercâmbio de métodos de pesquisa oriundos de distintas disciplinas e criar novos saberes.
Por fim, é importante salientar que é próprio da ciência produzir novas necessidades
sociais. À medida que o conhecimento científico contribui para a resolução de problemas da
sociedade, faz emergir novos problemas que não podem ser respondidos a partir de um único
ponto de vista disciplinar, gerando, assim, a necessidade de percorrer caminhos interdisciplinares.

REFERÊNCIAS
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BARROS, A. T. A natureza interdisciplinar da Comunicação e o novo modo de produção do


conhecimento científico. Revista do IEEE América Latina, Espanha, 2010.

BARROS, A. T; TARGINO, M. G. Comunicação e ciência na ótica de pesquisadores


brasileiros. Signo: João Pessoa, 2014.

BUENO, W. C. Jornalismo científico: conceitos e funções. Ciência e Cultura, São Paulo, 2009.

COHN, G. Comunicação e industrial: a análise estrutural da mensagem. São Paulo: Queiroz,


2011.

COSTA, A. B; ZOLTOWSKI, A. P. C. Como escrever um artigo de revisão sistemática. In:


KOLLER, Sílvia H. (Org.). Manual de produção científica. Porto Alegre: Penso, 2014.
DE-LA-TORRE-UGARTE-GUANILO, M. C; TAKAHASHI, R. F; BERTOLOZZI, M. R.
Revisão sistemática: noções gerais. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v.
45, n. 5, p.1260-1266, mar., 2011. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/reeusp/article/view/40833>. Acesso em: 16 jun. 2019. GOUGH, D.;
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Systematic Reviews, v. 1, n. 1, p. 28, 2012.

PGCULT. Site do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade. [S.l.: s.n.], 2019.


Disponível em: < http://www.pgcult.ufma.br/>. Acesso em: 16 jun. 2019.

RAMOS, A.; FARIA, P. M.; FARIA, A. Revisão sistemática de literatura: contributo para a
inovação na investigação em Ciências da Educação. Revista Diálogo Educ., Curitiba, v14, n. 41,
p. 17-36, jan/abr/2014.

SAMPAIO, R. F.; MANCINI, M. C. Estudos de revisão sistemática: um guia para síntese


criteriosa da evidência científica. Editora Fisio: São Paulo, 2010.

STONE, P. A análise de conteúdo da mensagem. In: COHN, G. Comunicação e Indústria


Cultural. São Paulo: Queiroz, 2011.

UFMA. Site da Universidade Federal do Maranhão. [S.l.: s.n.], 2019. Disponível em:
<www.ufma.br/>. Acesso em: 16 jun. 2019.

WOLF, M. Teorias da Comunicação. Lisboa: Presença, 2015.


Página 684 de 2230

O PROCESSO DE FOLKCOMUNICAÇÃO PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE


CULTURAL MARANHENSE: UMA VISÃO SOBRE O TAMBOR DE CRIOULA DE
SÃO LUÍS

THE FOLKCOMMUNICATION PROCESS FOR THE CONSTRUCTION OF


MARANHENSE CULTURAL IDENTITY: A VIEW OF SÃO LUÍS CREOLE DRUM

Antônio de Assis Cruz Nunes (orientador)


Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP),
Cecilna Miranda de Sousa Teixeira Graduanda em Biblioteconomia UFMA
Luis Félix de Barros Vieira Rocha
Mestre em Educação: Gestão de Ensino da Educação Básica UFMA
Maria Neuraildes Gomes Viana
Especialista em Gestão Pública Municipal UEMA
Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo:Estudo sobre a identidade cultural Maranhense a partir do processo de folkcomunicação


para construção panorâmica sobre o tambor de crioula de São Luís – Ma. Objetiva, analisar a
tradição popular no contexto histórico sobre cultura e arte para percepção dos costumes, valores,
crenças e impacto no contexto da sociedade ludovicense. Elencam os instrumentos e mecanismos
utilizados no ritual com destaque aos aspectos de referência na repercussão, difusão em massa,
considerando a característica da cultura como fator indissociável da realidade social. Enfatiza
sobre os aspectos da cultura presente nos seres humanos organizados em sociedade em suas
diferentes formas históricas de se organizar, relacionar internamente com outros grupos sociais e
o meio ambiente. Ressalva a importância da folkcomunicação como embasamento ao estudo da
cultura popular como subsídio à promoção dos resultados acerca da cultura maranhense
vivenciada pela prática da dança de tambor e disseminação de padrões culturais pelos meios de
comunicação de massa, para atingir o objetivo. A metodologia utilizada está embasada na pesquisa
exploratória, com procedimentos de pesquisa bibliográfica e documental sobre o tema em
evidencia. Conclui que a cultura permite a comunicação através da arte expressada pela dança
onde os seres se entrelaçam, educam-se e vivenciam o processo de interação pela representação
simbólica da manifestação ao rito da dança do tambor e pelas relações sociais.
Palavras-Chave: Identidade Cultural. Maranhão. Arte. Tambor de Crioula.

Abstrat:Study on Maranhense cultural identity from the process of folkcommunication for


panoramic construction on the São Luís - Ma Creole drum. The objective is to analyze the popular
tradition from the historical context about culture and art for the perception of customs, values,
beliefs and beliefs. impact in the context of Ludovicense society. It lists the instruments and
mechanisms used in the ritual highlighting the reference aspects in repercussion, mass diffusion
and cultural policies, considering the characteristic of culture as an inseparable factor of social
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reality. Emphasizes on the aspects of culture present in human beings organized in society in their
different historical ways of organizing, relating internally with other social groups and the
environment. It discusses the different societies, originated from different cultures, with ways of
seeing the world and orienting social activity. It emphasizes the importance of folkcommunication
as a basis for the study of popular culture as a support for the promotion of results about the
Maranhão culture experienced by the practice of drum dance, in which the manifestations and
process are dynamized by the rapid technological changes, by the constant contact between
cultures. and dissemination of cultural standards through the mass media to achieve the goal. The
methodology used is based on exploratory research, with bibliographic and documentary research
procedures, by theorizing with scholars in the area about the aspects of the subject in evidence. It
concludes that culture allows communication through the art expressed by dance where beings
intertwine, educate and experience the process of interaction both through the symbolic
representation of the manifestation to the drum dance rite and social relations.
Keywords: Cultural Identity. Maranhense. Art. Creole Drum.

1 INTRODUÇÃO

Falar da identidade cultural imbrica em conhecer um povo ou nação, seus hábitos,


tradições, costumes, a língua, a forma de pensar, agir e sua vivencia coletiva para a formação da
identidade.
No atual cenário maranhense, se observa as variações oriundas de vários aspectos em
virtude da miscigenação racial e cultural que existe no país, constituindo desta forma uma
pluralidade de identidades. No estado do Maranhão, o tambor de crioula, tem destaque ao
configurar como uma das mais ricas manifestações em que reúne brincantes e expectadores por
um período indeterminado, independente da época dos festejos juninos.
Neste processo de unidade em prol da arte e dança, utiliza-se o processo de
fdolkcomunicação, para estudar os elementos do processo de comunicação popular.
A folkcomunicação, então, faz parte de uma das dimensões da comunicação
popular, em seu viés que aborda a questão da inclusão social, de transformação
social; da necessidade de uma mídia cidadã, que promova as festas populares e
religiosas, visando à projeção midiática, e, a partir dessa projeção, desencadeie
outros processos, como a procura pelo turismo religioso, cultural, regional,
movimentando a economia das cidades. (AMPHILO, 2011, p.200).

Portanto, cabe ressaltar sobre o tambor de crioula maranhense, cuja característica está
presente na informalidade como dança de popularidade bastante difundida no Estado do
Maranhão, com apresentação em vários pontos da cidade e guarda em si traços marcantes da
cultura africana.
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Neste contexto, cabe salientar em conformidade com Sousa, (2002, p.251), que “[...] Os
descendentes de negros são os principais adeptos à dança, que é caracterizada pelo punga ou
umbigada [...]”. Neste ritmo de dança coreográfica, destaca-se a presença feminina envolta de
movimentos coordenados com sua forma vibrante na expressão corporal.
Considerando a importância do estudo da cultura, buscou-se através da folkcomunicação
uma referência para contextualizar a temática, tendo em vista que a mesma propicia os estudos na
cultura popular e na cultura de massa, pois misturam a tradição popular, acontecimentos históricos
com o contexto massivo.
A pesquisa utilizada é de caráter exploratório com procedimentos de pesquisa bibliográfica
e documental, ao teorizar aspectos relevantes sobre o tema em evidencia, embasado nas leituras
de alguns teóricos como subsídio para estruturação do trabalho.
O presente estudo tem como objetivo, analisar a tradição popular a partir do contexto
histórico sobre cultura e arte para a percepção dos costumes, valores, crenças e, seu impacto no
âmbito da sociedade com destaque ao tambor de crioula do maranhão, considerado como uma das
maiores fontes de manifestações culturais ao ressaltar as principais formas de manifestações e sua
contribuição social a partir da interação e identificação entre os indivíduos.
O trabalho está estruturado em revisões literárias sobre a identidade, origem da cultura
maranhense como parâmetro de descrição sobre a manifestação folclórica da dança de tambor de
crioula, por ser um agente propulsor ao processo interativo entre os grupos.
Em seguida faz uma abordagem sobre a cultura, arte e dança como base de análise para a
construção da identidade cultural maranhense, com especificidade sobre o tambor de crioula, sua
difusão e inclusão no contexto educacional a partir da interação em grupos e, por fim a conclusão,
com considerações pertinentes à temática.

2 IDENTIDADE CULTURAL MARANHENSE


Por identidade, consideram-se tudo que condiz a identificação, todavia, para identificar
algo, torna-se necessário o confronto, ou seja, fazer uso da alteridade, pois a partir da percepção
de mundo do outro, o homem cria mecanismos para identificar o seu próprio mundo, o seu espaço
e seus valores.
A identidade cultural permite conhecer o seu povo, sua visão e valores, como pressuposto
de algo enraizado e difícil de ser modificado, mas vivenciado entre os diversos povos. Para
conceber uma definição sobre identidade cultural observa-se que há uma grande diversidade em
sua composição onde a marcação da diferença é o elemento chave em qualquer sistema de
classificação da identidade.
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Cada cultura tem suas próprias e distintivas formas de classificar o mundo. É pela
construção de sistemas classificatórios que a cultura nos propicia os meios pelo
qual podemos dar sentido ao mundo social e construir significados. Há entre os
membros de uma sociedade, certo grau de consenso sobre como classificar as
coisas a fim de manter alguma ordem social. Esses sistemas partilhados de
significação são, na verdade, o que se entende por cultura. (HALL, 2006, p.42).
Neste contexto, percebe-se que vários aspectos são considerados importantes e
mensuráveis para agregar valor e reconhecimento da cultura em diferentes polo e povos em um
sistema classificatório, tais como, a comida, a língua, o gênero, idade, classe, ao analisar as
marcações de diferença.
Quanto aos sentidos da cultura, observa-se que ela é plural, dinâmica e diversificada, razão
pela qual possui significados diferentes quanto à sua inserção, tendo em vista que a mesma
responde a desejos e necessidades dos grupos, das comunidades e da sociedade em geral.
Do ponto de vista antropológico, Aranha e Martins (2009, p. 409):
"[...] o termo cultura refere-se a tudo o que o ser humano faz, pensa, imagina,
inventa, porque ele é um ser cultural. Não sendo capaz de viver somente guiado
por seus instintos, ele é levado a construir "ferramentas" que possam ajudá-lo a
instalar-se no mundo, a sobreviver, a desenvolver sua humanidade [...]".

A essas ferramentas dá-se o nome de cultura, enquanto o indivíduo utiliza-as para sua
reprodução no processo de humanização, ao mediar sua relação com o mundo ou com o grupo que
adota numa relação de pertencimento ao dividir o vocabulário, o sotaque, os valores e os gostos
por uma determinada manifestação cultural.
Neste contexto, observa-se que a cultura e a arte estão intrínsecas nas manifestações,
todavia, a cultura aponta para o mundo real com seus hábitos, costumes e valores, enquanto que a
arte oferece a compreensão mais profunda do mundo e do próprio indivíduo, mas que na cultura
popular existe espaço para a individualidade e diferenciação.
Portanto, a dança esculpe uma expressão da arte e da identidade cultural entendida no
sentido antropológico, como fruto do desejo, livre dos deveres e obrigações, guiada pelo desejo e
acolhida pelo sentimento. A arte expressa sentimento, emoção, onde a concentração e a
espontaneidade fazem imergir na subjetividade a imaginação com aspecto na forma de expressar
a comunicação e interpretação humana.

O Maranhão é um estado de ritmos forjados na confluência de três raças, o branco


europeu, o negro africano e o índio nativo. Da comunhão dessas vivências
nascem manifestações culturais ricas e diversificadas em cores, ritmos e danças.
(GUIA DO MARANHÃO, 2012- 2014, p. 39).

A miscigenação das raças reforça a congruência para diversidade das manifestações locais
e desejos dos seus povos. Em se tratando do tambor de crioula nos povoados e cidades do Estado,
possuem diferenças marcantes nos ritmos, nas danças e nos batuques.
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Quanto às festas relacionadas ao folclore, a época de destaque concentra-se no mês de


junho com o ápice da festa junina em que congrega consigo a cultura de um povo, seus valores,
costumes e suas simbologias. As danças maranhenses se caracterizam pelos seus ritmos animados
e músicas de letras simples e bem populares, com indumentárias e cenários que se justapõem as
representatividades.
Considerando que a dança sempre foi um dos principais componentes para culturais da
formação do ser humano, Reis (2008, p.55), enfatiza: “[...] Em assim sendo, o maranhense
possuidor de um riquíssimo folclore baseado em danças e folguedos, os quais representam
tradições seculares do Maranhão [...]”. Nessa tradição, as brincadeiras se distinguem em lendas,
aspectos religiosos com culto a vários santos, fatos históricos entre outras.
De acordo com Nóbrega (2010, p.17):
Mas cada evento festivo merece um olhar especifico para suas respectivas
linguagens, que procure desvendar seus códigos e signos multifacetados,
fragmentados e difusos, dispares e completos. Especialmente por se
manifestarem no superdimensionado campo da cultura.

Portanto, cabe ressaltar que o tambor de crioula configura como uma manifestação
folclórica na expressão cultura popular, pois perpassa do existir como uma simples brincadeira à
conotação religiosa em homenagem a São Benedito.

3 TAMBORES DE SÃO LUÍS

O tambor de crioula é uma forma de expressão de matriz afro- brasileira que envolve dança
circular, canto e percussão de tambores. Nesse conjunto, o mesmo merece destaque por ser
considerado um das mais difundidas e ativas no cotidiano, cujo ritual remonta desde o século XIX,
originado pelos escravos como mecanismo de lazer em opressão ao regime opressivo de trabalho
escravista.
Segundo Rammassote (2016, p. 16):
Dela participam as coreiras, tocadores e cantadores, conduzidos pelo ritmo
incessante dos tambores e o influxo das toadas evocadas, culminando na
punga (ou umbigada) – movimento coreográfico no qual as dançarinas,
num gesto entendido como saudação e convite, tocam o ventre umas das
outras.

São características que enriquecem toda a homogeneidade do grupo, com ritual que
transformando o cenário em um espetáculo de ritmos numa musicalidade sem começo nem fim.
Sobre o ciclo dos toques e toadas, Ferreti (2003, p. 340), enfatiza que "[...] Alguns consideram o
tambor de crioula monótono, mas é essa forma repetitiva que facilita a interação musical e social
dos participantes, que constitui a força do tambor de crioula [...]".
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Sobre, a origem, o encanto e a exuberância do Tambor de Crioula, a matéria no site do


jornal Imparcial referencia:

O Tambor de Crioula, arte e dança que tem sua origem na África e foi trazida
para o Brasil, especificamente para o Maranhão, por meio dos escravos africanos
que aqui chegaram, tem ganhado holofotes e é destaque nas festas juninas deste
ano no São João de Todos, promovido pelo Governo do Maranhão, por meio da
Secretaria de Cultura e Turismo (Sectur). Congregando dança liberdade, alegria
e movimentos rápidos, o ritmo de louvor a São Benedito – santo católico
homenageado pelos grupos de tambor, já tem seu espaço cativo no coração dos
maranhenses e dos demais cidadãos do mundo. O local onde esta arte reina
durante o período junino é o centro da cidade, seja no Canto da Cultura ou no
arraial da praça Maria Aragão. (Site: Jornal imparcial, 28.09.2019).
Nesta percepção, ressalta-se a narrativa da participante da roda Teresa Cantanhede
de 29 anos, que traz consigo a satisfação em dar continuidade à cultura ao revelar que [...] desde
a infância dança Tambor de Crioula e conta que é uma herança de família. “Na minha família eu
e a minha avó somos coreiras oficiais. Dançar essa arte linda me dá muita satisfação e me traz
muita felicidade. [...]" (Site: Jornal Imparcial, 28.09.2019).
A Secretaria de Cultura e Turismo (SECTUR) é o órgão vinculado ao estado que
difunde a informação para a sociedade através das mídias, tais como, rádio, TV, redes sociais,
com recortes sobre as manifestações culturais de modo a difundir uma parte integrante de nossos
brasis.
Recolher, organizar, conservar, preservar, divulgar e tornar acessível o acervo de
documentos produzidos e/ou acumulados pelos órgãos públicos e também
particulares do estado do Maranhão, que sejam de interesse para a preservação
da memória e para a pesquisa histórica, visando contribuir para o fortalecimento
da cidadania e da identidade maranhense. (SITE: SECTUR).
Cabe ressaltar o fluxo migratório do tambor de crioula em São Luís, que tem seu núcleo
massivo concentrado em bairros situados nas regiões periféricas e nas proximidades ao Centro
histórico de São Luís, pelo fato de proporcionar melhores condições para a atividade, e desta forma
fortalecer os vínculos étnicos de solidariedade, identificação e integração na sociedade que
constituem, com realizações de oficinas para aperfeiçoamento do fazer técnico em incorporação
dos sentidos lúdicos para a posse da dança, musicalidade e canto.
Segundo Oliveira, (2009, p.01) o que é considerado patrimônio cultural:

O patrimônio é aquele que ainda sobrevive muito da cultura de um povo. Fazem


parte do patrimônio cultural tanto as manifestações culturais materiais
(monumentos, obras de arte, cidades, objetos pessoais de celebridades, etc.)
quanto as manifestações culturais imateriais (saberes, músicas, festas, danças,
crenças etc.). O patrimônio é construído socialmente e tem a participação tanto
do saber erudito, como do saber de grupos populares. E cada localidade possui
sua singularidade como marcas da diferenciação.

Constata- se o reconhecimento da expressão cultural, desde a década de 60 e, reconhecido


como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro desde 2007. (OLIVEIRA, 2009) com ênfase à sua
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origem e ocorrência no estado do Maranhão, região Nordeste do Brasil, que detém vários grupos
nos municípios do litoral e do interior.
Neste contexto, observa-se que a festividade de uma sociedade integra como patrimônio
cultural imaterial e, perpassa por longas datas contribuindo desse modo como colaboradora no
processo educacional ao incentivo da prática e do conhecimento da cultura como disseminadora
da comunicação na memória.

De acordo com o Instituto da mulher negra (Geledes), a capital do estado do Maranhão,


São Luís, conta com aproximadamente 80 grupos oficialmente cadastrados e instituiu, desde o ano
de 2004, através da Lei Municipal nº 4.349, a data de 21 de junho como dia do Tambor de Crioula
e seus brincantes.
Nesta percepção, ressalta-se como característica nas apresentações em grupos a dinâmica
da circularidade em coreografias de movimentos moldados por expressões onde a fala torna-se
desnecessária mediante a expressão do corpo.
Destarte, o tambor de crioula como patrimônio imaterial, arte e dança, afere no estado da
consciência seu ápice nas festas juninas tendo em vista ser o período em que as manifestações
folclóricas trazem com maior representatividade a cultura de um povo, seus valores, costumes e
simbologias.
Conforme Nóbrega (2010, p.17)
Mas cada evento festivo merece um olhar especifico para suas respectivas
linguagens, que procure desvendar seus códigos e signos multifacetados,
fragmentados e difusos, dispares e completos. Especialmente por se
manifestarem no superdimensionado campo da cultura.
Portanto, o tambor de crioula, reflete a memória e reflexão sobre a gente do Maranhão,
povos que brincam como figurantes de destaque nesse cenário, encantam a sociedade que
pertencem, gritam a liberdade como soldado em defesa da arte, cultura e conhecimento.

CONCLUSÃO
A dança traduz simbologia da manifestação cultural que faz parte da diversidade e
identifica os brasis como Brasil. Uma tradição que é embalada por uma festa cheia de cores e
ritmos que faz parte da identidade do Maranhão que torna o nosso país o Brasil cheio de diferenças
e de particularidades que nos caracterizam e que nos tornam um povo único. O processo de
fokcomunicação permitiu a compreensão das mensagens populares, envoltos em uma
comunicação em massa como promoção à integração e a paz social. Cabe aos órgãos
governamentais, através das políticas culturais, que tem como objetivo propiciar através de
iniciativas e medidas de apoio institucional, fomentar diretrizes fortalecedoras para o
reconhecimento, a proteção e o estímulo ao desenvolvimento simbólico imaterial da sociedade
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maranhense no tangente ao aspecto da dança de tambor como uma raiz afro em nosso Estado.
Conclui que a cultura permite a comunicação através da arte expressada pela dança em que os
seres se entrelaçam, educam-se e vivenciam o processo de interação tanto pela representação
simbólica da manifestação ao rito da dança do tambor como pelas relações sociais.

REFERÊNCIA

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à
Filosofia. 4. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2009.

AMPHILO, Maria Isabel. Folkcomunicação: por uma teoria da comunicação cultural.


Disponível em: www.metodista.br › revistas-ims › index.php › AUM › article › view.Acesso em:
22.11.2019

FERRETTI, Sergio. Tambor de crioula: ritual e espetáculo. 3 ed. São Luís, 2002.

FERRETTI, Sergio. Os tambores da Ilha. São Luís: IPHAN - 2006.

Guia do Maranhão. São Luís do Maranhão 400 anos. VI ed. 2012-2014.

Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva,


Guaracira Lopes Louro-11. ed. -Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

NÓBREGA, Zulmira. A festa do maior São Joao do mundo: dimensões culturais da festa junina na
Capital de Campina Grande. Tese (doutorado), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.

NUNES, I. A. (org.) Olhar, memoria e reflexão sobre a gente do Maranhão. In: O lugar da
memória no bumba-meu-boi. Canjão, Isanda, p. 107-112. São Luís: Comissão Maranhense de
Folclore, 2003.

REIS, J. R. S. Folguedos e danças juninas do Maranhão. São Luís, 2008.

RAMASSOTE, Rodrigo. A performance da coreira do tambor de criola ...Disponível em:


www.periodicoseletronicos.ufma.br › ricultsociedade › article › view, Acesso em: 08.09.2019.

OLIVEIRA, Albino. Tambor de Crioula. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim


Nabuco, Recife. Disponível em: http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/. Acesso
em: 22.08.2019.

Folkcomunicação - Portal Intercom. Disponível em:


portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1592-1.pdf
de M FERNANDE

Conheça a Casa do Tambor de Crioula, em São Luís | O Imparcial


Disponível em: https://oimparcial.com.br › Entretenimento e Cultura , 2019.

Missão - SECTUR. Disponível em: www.cultura.ma.gov.br/apem/index.php?page=missao.


Acesso em: 21.08.2019
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Tambor de crioula, reconhecido como patrimônio cultural. Disponível em:


www.geledes.org.br › África e sua diáspora › Patrimônio Cultural . Acesso em: 10.01.2020.
Página 693 de 2230

O PROCESSO DE INCLUSÃO DE CRIANÇAS COM O TRANSTORNO DO


ESPECTRO AUTISTA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

THE PROCESS OF INCLUDING CHILDREN WITH AUTISTIC SPECTRUM


DISORDER IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION
Isaac Pereira Viana135
Psicólogo. Mestre em Cultura e Sociedade (PGCULT) pela Universidade Federal do
Maranhão
Thelma Helena Costa Chahini136
Doutora em Educação (UNESP/Marília). Professora Permanente do PGCULT-UFMA
Eixo 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo:O objetivo geral deste estudo correspondeu a investigar o processo de inclusão de


crianças com TEA, nas instituições públicas de Educação Infantil, em São Luís/MA, a partir da
percepção de seus familiares e dos profissionais das referidas instituições. Os dados foram
coletados por meio de entrevistas semiestruturadas. Os resultados revelam que a maioria dos
participantes possui conhecimentos adequados em relação ao TEA; apesar de a maioria das
crianças com TEA estarem sendo bem tratadas e bem aceitas pelos profissionais e pelas crianças
sem deficiência, nas instituições pesquisadas, ainda existem muitas barreiras a serem superadas
no contexto da Educação Inclusiva na Educação Infantil, dentre essas, as causadas pelos estigmas
em relação ao referido transtorno do neurodesenvolvimento, bem como o medo e/ou a rejeição de
pais e demais familiares do convívio de suas crianças, sem deficiência, com aquelas com TEA; a
maioria dos profissionais que trabalham com crianças com TEA ainda se sentem pouco
preparados; há carência de parceria entre as instituições pesquisadas e os familiares das crianças
com TEA, ocasionando, com isso, mais uma barreira no contexto da inclusão de crianças com o
Transtorno do Espectro Autista na Educação Infantil.

Palavras-chave: Crianças com TEA. Educação Infantil. Atitudes sociais. Inclusão.

Abstract:The general objective of this study was to investigate the process of inclusion of children
with ASD in the public institutions of Early Childhood Education in São Luís/MA, by the
perception of their families and professionals of these institutions. The data have been collected
through semi structered interviews. The results reveal that the majority of the participants have
adequate knowledge in relation to the ASD; despite of most of the children with ASD have being
well treated and well accepted by the professionals and children without disabilities, in the
institutions researched, there are still many barriers to be overcome in the context of Inclusive

135
. E-mail: isaac_pviana@hotmail.com
136
. E-mail: thelmachahini@hotmail.com
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Education in Early Childhood Education, among these, those caused by the stigma in relation to
the referred neurodevelopment disorder, as well as the fear and/or rejection of parents and other
relatives of their children's coexistence, without disabilities, with those with ASD; most of the
professionals who work with children with ASD still feel not well prepared; there is a lack of
partnership between the researched institutions and the families of children with ASD, thus
causing another barrier in the context of the inclusion of children with Autism Spectrum Disorder
in Early Childhood Education.
Keywords: Children with ASD. Early Childhood Education. Social attitudes. Inclusion.

Introdução

De acordo com a Associação Americana de Psiquiatria (APA), no Manual Diagnóstico e


Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), o TEA é um Transtorno do Neurodesenvolvimento.
Para que uma pessoa receba esse diagnóstico, deve apresentar alguns déficits no que tange às
habilidades sociais e de comunicação, além de comportamentos repetitivos e restritivos (APA,
2013).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009, p. 01), nos
Artigos, 3º, 4º e 5º, esclarecem que:
O currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que
buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os
conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental,
científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de
crianças de 0 a 5 anos de idade;
As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar que a
criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos que,
nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua
identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende,
observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a
sociedade, produzindo cultura;
A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é oferecida em creches
e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não
domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados
que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em
jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente
do sistema de ensino e submetidos a controle social.

Nesse contexto, a educação e o cuidado para com as crianças devem ser


compartilhados e complementados por instituições de Educação Infantil, em conjunto com as
famílias, que, por sua vez, devem participar, dialogar, serem escutadas, respeitadas e valorizadas
em suas diversas formas de organização (BRASIL, 2009).
Quanto aos profissionais que atuam junto a essas crianças (professores, cuidadores
etc.), espera-se que, entre outras coisas, contemplem, em suas práticas, “[...] o reconhecimento das
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especificidades etárias, das singularidades individuais e coletivas das crianças, promovendo


interações entre crianças de mesma idade e crianças de diferentes idades” (BRASIL, 2009. p. 03).
Ademais, no Brasil, existem leis que garantem o direito à inclusão de pessoas com
deficiência em todos os espaços educacionais. Algumas, dentre essas, são: a Política Nacional de
Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (2008); a Política Nacional de Proteção
dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista – Lei Berenice Piana (2012); e a Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (2015).
No Brasil, de acordo com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva, por exemplo, a Educação Inclusiva é um direito assegurado a todos os
discentes com deficiência e requer que docentes e demais profissionais envolvidos com o processo
ensino-aprendizagem estejam qualificados nessa modalidade (BRASIL, 2008).
Sendo assim, o problema de pesquisa é: como vem ocorrendo o processo de inclusão
de crianças com o TEA nas instituições públicas de Educação Infantil, em São Luís/MA, a partir
da percepção dos familiares das crianças e dos profissionais dessas instituições? A partir desse
questionamento, levantou-se a hipótese de que, apesar de todo o aparato legal que subsidia a
inclusão escolar de todas as crianças, ainda existem barreiras, principalmente de caráter atitudinal,
que não têm permitido que essa inclusão de crianças autistas ocorra, efetivamente, na Educação
Infantil, em São Luís/MA.
Para dar conta de responder ao problema de pesquisa elencado, o objetivo geral do
estudo correspondeu a: investigar como vinha ocorrendo o processo de inclusão de crianças com
o Transtorno do Espectro Autista (TEA) nas instituições públicas de Educação Infantil, em São
Luís/MA, a partir da percepção dos familiares das crianças e dos profissionais dessas instituições.

Metodologia

A Pesquisa foi realizada em duas instituições públicas de Educação Infantil que possuíam
crianças com TEA, regularmente matriculadas, em São Luís do Maranhão. No contexto,
desenvolveu-se uma pesquisa exploratória, descritiva, com abordagem qualitativa. No total, 20
pessoas fizeram parte da pesquisa. Dentre essas, quatro são familiares de crianças autistas (três
mães e uma avó) e 16 são profissionais que trabalham com as referidas crianças nas instituições
pesquisadas (15 docentes e uma cuidadora), sendo dez participantes pertencentes à escola A e dez
à escola B.
Para seleção dos participantes, o pesquisador se dirigiu à Secretaria Municipal de Educação
– SEMED, onde foi informado que, na cidade de São Luís, até o momento, existiam noventa e
quatro escolas com Educação Infantil, nas quais estavam matriculadas crianças na faixa etária de
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três a cinco anos. Dentre as noventa e quatro escolas, apenas doze apresentavam alunos, de três a
cinco anos, diagnosticados com TEA, devidamente matriculados nas referidas instituições.
Desse universo de doze escolas, duas foram selecionadas como amostra. O critério adotado
para essa seleção foi não probabilístico e por acessibilidade. De acordo com Gil (2008), esse tipo
de critério é adotado em pesquisas exploratórias sem rigor estatístico.
Após o Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética (CEP/CONEP/UFMA, Nº
2.891.951), os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, contendo questões
relacionadas às temáticas gerais acerca do TEA no contexto da Educação Inclusiva.
Desse modo, as entrevistas semiestruturadas possibilitam descrever e compreender a
totalidade dos fenômenos sociais, permitindo atuação consciente e atuante do pesquisador durante
o processo de coleta de informações (TRIVIÑOS, 1987).
Visando preservar suas identidades, os participantes encontram-se identificados neste
estudo por: F1, F2, F3 e F4 (familiares de crianças com TEA); P1, P2, P3, P4, P5, P6, P7, P8, P9,
P10, P11, P12, P13, P14, P15 e P16 (profissionais das instituições pesquisadas). As crianças, cujos
familiares foram entrevistados, estão identificadas neste estudo como C1, C2, C3 e C4.
O quadro A, a seguir, correlaciona cada criança, cujas famílias foram entrevistadas, a
escola que frequentam, o nível de TEA, a idade, o gênero e o familiar entrevistado:
Quadro A
Criança Escola Grau de TEA Idade Gênero Familiar
C1 A Leve (nível 1) 3 Masculino F4
C2 A Leve (nível 1) 4 Masculino F3
C3 B Severo (nível 5 Masculino F1
3)
C4 B Leve (nível 1) 5 Masculino F2
Fonte: Os Autores (2019).

O quadro B, a seguir, correlaciona cada profissional entrevistada à escola onde trabalha,


idade, formação, especialização (quando houver), ocupação, tempo de experiência com crianças
com TEA e gênero. É importante ressaltar que não foi possível fazer a correlação das crianças às
profissionais entrevistadas, porque algumas não haviam trabalhado com qualquer uma dessas
crianças – tendo tido contato com crianças com TEA em outras instituições, ou mesmo que já não
estudavam mais nas escolas pesquisadas –, enquanto outras já haviam trabalhado com elas, mas
não na ocasião em que ocorreram as entrevistas:
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Quadro B
Profissional Escola Idade Formação Especialização Ocupação Tempo de Gênero
experiência
com
crianças
com TEA
P1 B 48 Pedagogi Nenhuma Professora 3 anos Feminino
a (em
curso)
P2 B 62 Pedagogi Nenhuma Professora 2 anos Feminino
a
P3 B 34 Pedagogi Nenhuma Professora 3 anos Feminino
a
P4 B 41 Pedagogi Nenhuma Professora 1 ano Feminino
a (em
curso)
P5 B 53 Letras Nenhuma Professora 4 anos Feminino
P6 B 45 Pedagogi Nenhuma Professora 1 ano Feminino
a
P7 B 49 Ciências Contabilidade Cuidadora 1 ano e 5 Feminino
Contábeis Pública meses
P8 B 48 Pedagogi Nenhuma Professora 5 anos Feminino
a
P9 A 34 Pedagogia Nenhuma Professora 8 anos Feminino
P10 A 34 Pedagogia Nenhuma Professora 1 ano Feminino
P11 A 40 Pedagogia Nenhuma Professora 1 ano Feminino
P12 A 32 Pedagogia Neuropsicopeda Professora 2 anos Feminino
gogia
P13 A 39 Biologia e Nenhuma Professora 4 anos Feminino
Pedagogia
P14 A 45 Pedagogia Educação Professora 10 anos Feminino
Inclusiva
P15 A 40 Pedagogia Nenhuma Professora 10 anos Feminino
P16 A 37 Pedagogia Nenhuma Professora 1 ano Feminino
Fonte: Os Autores (2019).

Os procedimentos ocorreram levando-se em consideração os critérios éticos envolvendo


seres humanos. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
concordando com suas participações e cientes de que os resultados seriam divulgados em
Congressos e em revistas científicas.

Resultados e discussões

Apresentam-se, neste espaço, os dados obtidos por meio das entrevistas. Sendo assim, ao
serem questionados acerca do que entendiam a respeito do Transtorno do Espectro Autista,
60% das pessoas entrevistadas responderam dentro do critério científico para o diagnóstico do
TEA – ou, pelo menos, se aproximaram desse critério ao terem citado, no mínimo, uma das
características do TEA contempladas pelo DSM-V. Por sua vez, 40% das pessoas entrevistadas
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responderam dentro do senso comum, ou seja, não citaram nenhuma das características presentes
no DSM-V para o diagnóstico do TEA.
Nota-se que, dentre os participantes que conseguiram responder ao supracitado
questionamento dentro do critério científico do DSM-V ou, pelo menos, de modo aproximado, 11
eram profissionais e uma era familiar. É valido ressaltar que as participantes P11 e P15 se
referiram ao TEA sob o nome de Transtorno Global do Desenvolvimento. Embora, a partir do
DSM-V, esse termo não seja mais utilizado, foi, no contexto desta pesquisa, considerado como
aproximado ao critério científico, visto que diz respeito a uma nomenclatura utilizada na edição
anterior ao DSM-V, a saber, o DSM-IV.
Dentre os principais aspectos que, de acordo com o DSM-V, podem situar uma pessoa no
TEA, foram citados pelos participantes a dificuldade na interação social e na comunicação; a
apresentação de movimentos estereotipados e os níveis classificatórios: leve, moderado ou grave,
o que se pode verificar, um entendimento razoável acerca do que é o TEA.
Por sua vez, dentre os participantes que não conseguiram responder dentro do critério
científico do DSM-V – e nem de modo aproximado –, tendo, então, respondido a partir do senso
comum, cinco eram profissionais e três familiares.
De modo geral, percebeu-se certa dificuldade em identificar que tipo de Transtorno é o
TEA, bem como suas especificidades, focando-se em concepções como o dualismo normal x
anormal, que em nada contribui para a inclusão das crianças com TEA, e até mesmo em
estereótipos (CARVALHO, 2016), corroborando com o pensamento de Amaral (1998) e
exemplificado na fala de um participante: “São crianças diferentes da gente, mas com
pensamentos, às vezes, até melhor do que uma criança normal” (P13).
No contexto, cita-se a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva, por enfatizar que os profissionais devem ter formação inicial e continuada que abranja
desde conhecimentos gerais para o exercício da docência até conhecimentos específicos na área
da educação especial, de modo a se estabelecer uma interdisciplinaridade que crie condições para
que diversas áreas do saber (como, por exemplo, saúde e assistência social), e atuem juntamente
em favor da inclusão (BRASIL, 2008).
Nesse sentido, sabe-see que profissionais com algum nível de compreensão científica a
respeito do que é o TEA – sendo capazes de compreender e exemplificar algumas de suas
especificidades, por exemplo – podem ter maiores condições de favorecer a inclusão de crianças
com esse Transtorno, enquanto profissionais que não apresentam nenhum nível de compreensão
científica a esse respeito podem apresentar menores condições de facilitar a inclusão de crianças
com esse Transtorno.
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Ademais, há de se pensar que as atitudes sociais são, também, constituídas por um aspecto
cognitivo – além dos aspectos afetivos e comportamentais – que diz respeito ao nível de
conhecimento que os indivíduos têm acerca de determinado fenômeno social. Nesse sentido,
Rodrigues, Assmar e Jablonski (2009), informa que esse aspecto cognitivo pode, eventualmente,
quando alterado, também modificar os componentes afetivos e comportamentais dos indivíduos,
e, assim, mudar suas próprias atitudes sociais frente aos fenômenos sociais.
Diante disso, pode-se inferir a importância de conhecimentos corretos acerca do TEA, por
parte tanto dos profissionais quanto dos familiares, para que se facilite atitudes sociais favoráveis
à inclusão de crianças com o referido Transtorno, na Educação Infantil.
Ainda nesse contexto – e lançando mão dessa mesma discussão –, é importante que se
atente para os resultados do questionamento apresentado a seguir, visto que eles também abarcam
o nível de compreensão tanto por parte das profissionais quanto dos familiares acerca do TEA,
sendo, então, passíveis da mesma discussão supracitada.
Quando foi perguntado se os docentes e demais profissionais, das instituições
pesquisadas, estavam preparados para a inclusão de crianças com TEA na Educação
Infantil, 40% dos participantes responderam que sim e 60% responderam que não, porque não se
encontram capacitados, mas, enfatizaram que, mesmo assim, alguns deles fazem o que podem a
favor da inclusão das crianças com TEA na Educação Infantil.
Como verificado, a maioria ressaltou a falta de qualificação profissional no contexto da
Educação Especial/Inclusiva. Sendo assim, os dados convergem com os encontrados nos estudos
de Cabral e Marin (2017), Aguiar e Pondé (2017) e Ferreira (2017), ao constatarem que os
profissionais, de fato, não se sentem e/ou não estão preparados para a atuação com crianças com
TEA. Cabral e Marin (2017) e Ferreira (2017) enfatizam que essa falta de preparo é oriunda da
própria formação dos profissionais, que é deficiente no aspecto de prepará-los para práticas
inclusivas.
Diante disso, infere-se que, apesar de algumas políticas públicas já existirem, buscando
garantir o preparo desses profissionais para atuarem junto às crianças com deficiência, na prática,
vários profissionais não se sentem e/ou, de fato, não estão preparados para essa atuação, apontando
para uma possível falha no cumprimento da legislação federal, vigente, no contexto da educação
inclusiva.
Nesse sentido, parece que essa falha abarca tanto a formação inicial quanto a formação
continuada desses profissionais, como observado nos seguintes relatos: “Mas, a gente não recebe
muito apoio nesse sentido. A gente não recebe apoio da própria prefeitura. [...] a gente tem uma
formação em que a gente não recebe muita coisa” (P3); “Nós não temos um preparo, não só pela
Secretaria, mas, também, da nossa formação profissional” (P12).
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Após terem sido questionadas em relação se existia ou não barreiras para a inclusão de
crianças com TEA nas instituições de Educação Infantil, 85% das entrevistadas responderam
que existiam; 10% não souberam responder; 5% afirmou que não existiam barreiras no contexto
investigado.
Pode-se notar que, dentre as pessoas entrevistadas que responderam que existiam barreiras
para a inclusão escolar de crianças com TEA na Educação Infantil, 14 eram profissionais e três
eram familiares. Entre as barreiras citadas, encontram-se: falta de material didático adequado; falta
de estrutura física adequada; falta de uma equipe multidisciplinar nas escolas; salas superlotadas;
professores despreparados, por falta de formação adequada e/ou por falta de boa vontade; escolas
dificultando o processo de matrícula; famílias que não aceitam a condição do filho etc.
É importante registrar que, (P7) disse não haver barreiras, mas, em seguida, se contradiz,
ao relatar que na escola onde trabalhava não tinha sala de recursos multifuncionais, o que
caracteriza uma barreira a nível estrutural.
Diante dos fatos, verifica-se que os dados divergem do que vem sendo assegurado pela
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008),
pela Lei Berenice Piana (BRASIL, 2012) e pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (BRASIL, 2015), visto que de acordo com a legislação federal, vigente, nenhuma
dessas barreiras deveria existir. No entanto, para a maioria das pessoas entrevistadas, existem
barreiras dificultando o processo de inclusão das crianças com TEA, na Educação Infantil,
denotando, assim, uma discrepância entre os objetivos das políticas públicas voltadas à Educação
Inclusiva e os seus fins operacionais.
Em relação à discrepância entre as políticas públicas e sua operacionalização, os dados
convergem com os sinalizados pelas pesquisas de Chahini e Souza (2016), Luz, Gomes e Lira
(2017), Ferreira (2017), Aguiar e Pondé (2017) e Cabral e Marin (2017), nas quais, identificam
barreiras no contexto da inclusão e enfatizam a necessidade de superação desses empecilhos para
que, de fato, a Educação Inclusiva seja uma realidade de fato e direito.
Por sua vez, os participantes que disseram não haver barreiras à inclusão na Educação
Infantil, falaram a partir das suas experiências particulares, sem entrarem no mérito de como as
políticas públicas têm, ou não, sido aplicadas na Educação Infantil, conforme se observa nas
respectivas falas: “A gente nunca teve. Todo mundo tenta ajudar. Todo mundo se esforça” (P8);
“Por enquanto, como eu ainda tô recente nisso, ainda não encontrei nenhuma” (F1).
Diante dessas respostas, parece não ser possível precisar até que ponto essas experiências
particulares podem ser representativas quando se pensa no contexto mais amplo da Educação
Infantil nas demais escolas públicas da cidade de São Luís/MA.
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Após terem sido questionados acerca de como as demais crianças se relacionavam com
as crianças com TEA na Educação Infantil, 65% dos entrevistados responderam que as
referidas crianças eram aceitas pelas demais crianças; 35% dos participantes disseram que os
colegas, eventualmente, sentiam medo delas; que os colegas utilizavam estereótipos na
convivência com elas; que a relação entre a criança com TEA e as sem o referido transtorno não
era boa, devido à agressividade apresentada por parte de algumas crianças com TEA e que os
colegas sem o transtorno revidavam as agressões; que não havia uma atitude de acolhimento, de
aceitação por parte das crianças sem TEA para com as crianças com o Transtorno.
Quanto aos relatos que descreveram atitudes desfavoráveis em relação à aceitação das
crianças com TEA, por parte das crianças sem TEA, os dados convergem com os encontrados por
Brito (2017), ao esclarecer que quando as crianças com TEA apresentam agressividade, elas têm
uma possibilidade maior de não serem aceitas pelos colegas, ou mesmo de receberem, por parte
destes, atitudes sociais desfavoráveis ao seu processo de inclusão escolar.
Pode-se notar, por exemplo, que, nesta pesquisa, em quase todas as ocasiões em que os
profissionais e familiares citaram alguma atitude social desfavorável ao processo de inclusão,
como o medo, por exemplo, eles a relacionaram à agressividade por parte da criança com TEA,
conforme os trechos seguintes: “De repente, se ele se irrita com alguém, já bate na criança. E a
criança já fica com medo de brincar” (P5); “Mesmo ele fazendo parte da rodinha, todo mundo
queria sentar longe, porque, às vezes, de repente, ele batia” (P8); “[...] quando eu venho aqui, eu
recebo muita reclamação dele tá batendo” (F1); “Só em alguns casos, quando a criança apanha do
autista, ela revida” (P6).
Desse modo, por um lado, há que se pensar em estratégias que ajudem as crianças com
TEA, que apresentam comportamentos agressivos nas escolas, a terem esses comportamentos
reduzidos, assim como, por outro lado, há que se pensar na instrumentalização da escola, bem
como dos alunos sem TEA, para que consigam lidar do modo mais adequado possível com as
crianças com TEA, quando elas apresentarem esse tipo de comportamento.
Por fim, quanto às duas profissionais que responderam que as crianças com TEA eram
aceitas, mas superprotegidas pelas demais, isso representa bem o que Amaral (1998) chama de
estereótipo da vítima, no qual a pessoa com deficiência é vista como incapaz de fazer qualquer
coisa, até mesmo aquilo que é capaz de realizar com autonomia. Nesse caso, seria interessante que
as crianças fossem instruídas a acolherem, sim, as crianças com TEA, no entanto, com o cuidado
de não ignorarem suas capacidades individuais.
Quando questionados a respeito de como os pais e/ou responsáveis das crianças sem
TEA veem as crianças com TEA na Educação Infantil, 40% responderam que os pais de
crianças sem TEA, aceitam as crianças com TEA, em parte, desde que não sejam agressivas com
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os seus filhos e desde que não os atrapalhem em sala de aula, conforme verifica-se nos seguintes
relatos: “os pais entendem, desde que o autista não ‘atrapalhe’ o andamento das atividades de sala”
(P11); “os pais veem as crianças com TEA como crianças ‘doentes’, ‘diferentes’ e ‘incapazes’”
(P10). 30% responderam que os pais das crianças sem TEA aceitam que os filhos estudem com as
crianças com TEA, sem restrições.
Diante dos fatos, cita-se Brito (2017) por informar que, a agressividade representa um
contato social que não é positivo, tende a suscitar atitudes sociais desfavoráveis ao processo de
inclusão de crianças com TEA que apresentam esse tipo de conduta. E, quanto mais positivos
forem os contatos sociais com crianças com TEA, mais favoráveis tendem a ser as atitudes sociais
frente a essas crianças.
Importante registrar que, em relação aos pais que não aceitam a convivência de seus filhos
com as crianças com TEA, prevale a falta de conhecimento acerca do que é o TEA, assim como
do direito que as crianças com esse Transtorno têm de participarem do ensino regular,
favorecendo, assim, a formação de atitudes sociais desfavoráveis ao processo de inclusão dessas
crianças, como se pode perceber nos seguintes trechos: “Alguns não gostam, porque acham que o
filho não vai aprender porque a professora vai dar atenção só para o autista” (P14); “Eu já vivenciei
isso numa escola. Os pais se juntaram e pediram que o diretor mudasse uma criança de sala” (P16);
“Ela [mãe] estava se queixando de o filho estudar com uma criança autista. Eu disse pra ela que,
se ela quisesse, ia tirar o filho dela da escola, porque o outro garoto iria continuar na escola” (P15);
“[...] existem aquelas opiniões adversas de quem não conhece o autismo” (F2).
Quanto ao profissional que respondeu que os pais aceitavam, desde que a criança com TEA
não atrapalhasse o andamento das atividades de sala, pode-se perceber aquilo que Amaral (1998)
chama de estereótipo do vilão, no qual a pessoa com deficiência é vista como a causadora de
problemas.
Os participantes informaram ainda que, alguns pais se queixavam por terem o filho
“agredido” na escola, mas, quando eram esclarecidos de que a criança que “agrediu” tinha TEA,
passavam a compreender a situação, conforme os seguintes relatos: “Quando eles sabem que um
autista bateu em algum aluno, eles ficam meio inseguros, mas a gente explica a situação e eles até
simpatizam; eles entendem direitinho” (P12); “[...] quando eles sabem da situação, aí pronto, eles
compreendem bem. Tranquilo” (P13).
Esse dado corrobora com os encontrados por (CHAMBRES et al., 2008; CAMPBELL,
2006; OMOTE, 2004) , no sentido de que, quando uma pessoa não aparenta alguma deficiência,
como é o caso de uma pessoa com TEA, e se comporta de modo agressivo, tem uma chance maior
de receber atitudes sociais desfavoráveis do que uma pessoa que aparenta ter alguma deficiência
e se comporta de modo agressivo. No entanto, quando é explicado que, embora não aparente, trata-
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se de uma pessoa com deficiência – daí os comportamentos agressivos –, atitudes sociais positivas
são perceptíveis e, portanto, favoráveis à sua inclusão.

Conclusões

Retornando aos objetivos pretendidos, que foram os de investigar como vinha ocorrendo
o processo de inclusão de crianças com TEA nas instituições públicas de Educação Infantil, em
São Luís/MA, a partir da percepção de seus familiares e dos profissionais das instituições
pesquisadas. Foi verificado que, dentre o universo de noventa e quatro instituições públicas de
Educação Infantil, em São Luís/MA, havia apenas doze instituições que possuíam crianças – num
total de oitenta e quatro – diagnosticadas com TEA, devidamente matriculadas, sendo que quinze
estudavam na creche e sessenta e nove na pré-escola.
Nas duas instituições pesquisadas, o quantitativo de crianças com TEA correspondeu
a quatro crianças (cem por cento do universo pesquisado), duas na instituição A e duas na
instituição B, sendo três com grau leve (nível 1) e uma com grau severo (nível 3), com faixa etária
de dois a três anos; o quantitativo de profissionais pertencentes à instituição A foi de oito e da
instituição B, de oito também. Em relação aos familiares das crianças com TEA, o quantitativo
correspondeu a quatro (três mães e uma avó), sendo dois familiares de crianças da instituição A e
dois da instituição B. Ao todo, participaram do estudo vinte informantes. Faz-se necessário
registrar que o critério de seleção deles foi baseado no universo das crianças com TEA, das escolas
A e B.
A maioria dos participantes possui conhecimentos adequados em relação ao
Transtorno do Espectro Autista – TEA, apesar de que alguns desses conhecimentos estejam
alicerçados nas experiências do senso comum, mas, são conhecimentos que demonstram
compreensão, sensibilização e atitudes sociais favoráveis à inclusão de crianças com autismo e
respeito à diversidade humana.
Sobre as características das crianças com TEA, mesmo em meio a alguns mitos, as
mais registradas pelas participantes foram: dificuldade na fala; na comunicação; na interação
social; no contato visual; padrões de comportamento repetitivos; interesses restritos; ausência de
autonomia em atividades de rotina; comportamentos estereotipados etc. Tais características
citadas, vale destacar, são encontradas na literatura acadêmica, assim como na legislação. Então,
pode-se afirmar que isso é algo favorável ao processo de inclusão, pois pressupõe algum nível de
conhecimento adequado, por parte delas, no que diz respeito ao público de autistas com quem
trabalham ou trabalharam, e esse é um aspecto indispensável para que a inclusão ocorra.
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No tocante ao acesso das crianças com TEA à Educação Infantil, a maioria das
entrevistadas alegou não conhecer crianças com esse diagnóstico fora da escola, o que é algo
positivo para o processo de inclusão escolar, visto que essas crianças têm o direito legal não apenas
de serem matriculadas, mas também de permanecerem na escola, convivendo com as demais
crianças e aprendendo dentro do seu ritmo, interesse e capacidade. A ausência do cumprimento
desse direito sinalizaria a ausência da própria inclusão escolar.
Quanto ao preparo ou não dos profissionais para atuarem com crianças com TEA na
Educação Infantil, a maioria das pessoas entrevistadas acreditava não haver esse preparo,
principalmente por falta de formação inicial e continuada adequadas para essa demanda. Esse dado
é alarmante, visto que todos os profissionais que trabalham com esse público deveriam estar
devidamente capacitados, de acordo com a literatura científica e com a própria legislação.
Portanto, a ausência desse preparo pode dificultar o processo de inclusão.
Acerca de existir ou não barreiras para que a inclusão de crianças com TEA ocorra na
Educação Infantil, a maioria das pessoas entrevistadas afirmou que essas barreiras existem. As
principais barreiras citadas foram: falta de espaço físico adequado; de recursos lúdicos; de material
didático adequado; de capacitação dos profissionais; de esclarecimento das famílias; atitudes
sociais desfavoráveis ao processo de inclusão, por parte de alguns profissionais; salas de aula
lotadas etc. Segundo a legislação e a literatura científica, todas essas barreiras já deveriam ter sido
retiradas, visto que, de fato, prejudicam o processo de inclusão escolar.
No que diz respeito ao modo como as crianças com TEA eram tratadas pelos
profissionais das escolas onde estudavam, a maioria das pessoas entrevistadas respondeu que eram
tratadas bem, sendo que “bem”, de acordo com elas, significava que as crianças recebiam: atenção;
cuidado; amor; acolhimento; compreensão. Eram inseridas no contexto social; tinham suas
dificuldades minimizadas; os demais colegas eram conscientizados acerca da condição dos alunos
com TEA etc. Esse é um processo favorável à inclusão escolar, visto que a aceitação, o respeito e
a convivência com as diferenças pressupõem que a inclusão esteja acontecendo, em atenção à
legislação vigente e ao arcabouço científico de pesquisas na área.
Quanto à questão de como as crianças sem TEA se relacionavam com as crianças com
TEA, a maioria das pessoas entrevistadas alegou que as crianças com TEA eram aceitas pelos
demais. Essa aceitação consistia em: serem chamadas para brincar, interagindo com os outros;
serem cuidadas pelos demais colegas; os professores eram ajudados a cuidar das crianças com
TEA etc. Esses comportamentos, de fato, denotam aceitação e interesse pelo outro, o que é
fundamental para que a inclusão ocorra.
Acerca de como os pais/responsáveis das crianças sem TEA encaram o fato de
crianças com TEA estudarem com seus filhos, a maioria das entrevistadas respondeu que eles
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aceitam, com a ressalva de que os filhos não sejam agredidos. De fato, a literatura acadêmica tem
apontado que a agressividade dificulta o processo de inclusão de crianças com TEA. Diante desse
dado, é importante que os pais das crianças sem TEA sejam esclarecidos, pela escola, a respeito
do que é o TEA, assim como é necessário que as escolas saibam como lidar com esses
comportamentos agressivos, de modo a reduzi-los, favorecendo, assim, o processo de inclusão.
No que tange à existência ou não de parceria entre a família e a escola, a maioria das
pessoas entrevistadas respondeu que há, sim, essa parceria. De acordo com elas, essa colaboração
se dá das seguintes maneiras: participação das famílias nas escolas; as famílias buscam serviços
de atendimentos especializados, além de matricularem as crianças no ensino regular; as famílias
se adaptam às necessidades das crianças, à medida que os profissionais instruem para que essas
mudanças ocorram; profissionais e familiares trocam informações acerca do cotidiano da criança
tanto em casa quanto na escola; compartilhamento de informações a respeito dos atendimentos
especializados aos quais as crianças são submetidas etc. Constata-se, assim, que a participação da
família é fundamental nesse processo de inclusão, conforme prevê tanto a legislação quanto os
achados científicos.
No que se refere a faltar, ou não, algo para que a inclusão escolar, de fato, ocorra, a
maioria das entrevistadas afirmaram que falta maior investimento do poder público nesse setor.
De acordo com elas, ainda é necessário que haja: melhorias nos espaços físicos das escolas; maior
suporte aos professores; recursos, como materiais didáticos; salas de recursos em algumas escolas;
mais cuidadores em salas de aula; oferta de mais formações aos profissionais que atuam nas
escolas; mais profissionais na saúde pública para acompanharem as crianças com TEA, facilitando
a emissão de laudos, por exemplo, etc. De fato, todos esses aspectos citados são barreiras à
inclusão quando não ofertados. Para que a inclusão possa ocorrer, essas barreiras precisam ser
derrubadas, em conformidade com a legislação vigente.
No que diz respeito a como as próprias profissionais, exclusivamente, se julgam acerca
do preparo para atuarem com o público de crianças com TEA, a maioria não se sente preparada,
alegando, principalmente, deficiência na formação inicial e continuada. De acordo com a
legislação, essa deficiência não deveria existir, devendo ter todas as profissionais a oportunidade
de serem devidamente capacitadas.
Acerca de como as profissionais, exclusivamente, percebiam ocorrer o processo de
inclusão nas escolas onde trabalhavam, elas julgavam que as crianças com TEA eram acolhidas,
pois, de acordo com elas: o direito à matrícula era respeitado; havia facilitação, por intermédio
das profissionais, na interação social com as demais crianças; era garantida a participação nas
mesmas atividades curriculares das demais crianças; havia parceria da escola com a família;
parceria da escola com profissionais da saúde; material didático adaptado; atendimento
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educacional especializado na sala de recursos (em uma das escolas) etc. É interessante salientar
que a maioria dos familiares entrevistadas concorda com essa percepção das profissionais. Essas
características, realmente, apontam favoravelmente para o processo de inclusão escolar, de acordo
com a legislação e com o conhecimento teórico-científico.
Sobre a idade com a qual as crianças com TEA foram matriculadas na Educação
Infantil, os familiares entrevistados responderam que foi entre os dois e três anos, o que é algo
favorável ao processo de inclusão e que respeita a legislação vigente.
Diante do exposto, fica evidente que a maioria dos participantes possui conhecimentos
adequados em relação ao TEA; apesar de a maioria das crianças com TEA estarem sendo bem-
tratadas e bem-aceitas pelos profissionais e pelas crianças sem deficiência, nas instituições
pesquisadas, ainda existem muitas barreiras a serem superadas para que a Educação Inclusiva seja,
realmente, operacionalizada na Educação Infantil, dentre essas, as causadas pelos estigmas em
relação ao referido transtorno do neurodesenvolvimento e o medo e/ou rejeição de pais e demais
familiares de crianças sem deficiência, em relação ao convívio de seus filhos com as crianças com
TEA; a maioria dos profissionais que trabalham com crianças com TEA ainda se sentem pouco
preparados; há carência de parceria entre as instituições pesquisadas e os familiares das crianças
com TEA, ocasionando com isso, mais uma barreira no contexto da inclusão de crianças com o
Transtorno do Espectro Autista na Educação Infantil.
Portanto, pode-se depreender que este estudo comprovou a hipótese levantada ao
ressaltar que, apesar de todo o aparato legal que assegura a inclusão escolar de todas as crianças,
ainda existem barreiras, principalmente as de caráter atitudinal, que não permitem que a inclusão
de crianças autistas ocorra, efetivamente, na Educação Infantil.

REFERÊNCIAS

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autista em escola regular. Revista Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 7, p. 6-11, 2017.

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superação. In: AMARAL, L. A. Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e
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Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, DF, 2008. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf. Acesso em: 30 mai. 2019.

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______. Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção Dos
Direitos da Pessoa Com Transtorno do Espectro Autista e Altera o Parágrafo 3 do Artigo 98 da
Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 dez. 2012.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm.
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BRITO, M. C. Transtornos do espectro do autismo e educação inclusiva: análise de atitudes sociais


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RODRIGUES, A.; ASSMAR, E. M. L.; JABLONSKI, B. Psicologia social. Petrópolis: Vozes,
2009.
Página 708 de 2230

OS DESAFIOS DA ESCOLARIZAÇÃO DE SURDOS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO


SUPERIOR

THE CHALLENGES OF DEAF STUDENTS SCHOOLING IN THE COLLEGE


EDUCATION CONTEXT

Maelle Medeiros Garreto137


Assistente social. Mestranda em Educação pela Universidade Federal Do Maranhão (Ufma).
Mis-Silene Medeiros Garreto138
Graduanda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Thelma Helena Costa Chahini139
Professora Associada. Departamento de Educação II. Docente nos Programas de Pós-
Graduação, Mestrado em Educação e em Cultura e Sociedade.
Eixo 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo :O presente estudo analisou os desafios no processo de escolarização de discentes surdos


no contexto da Educação Superior. Os participantes foram dois discentes surdos do Curso de
Licenciatura Letras/Libras da UFMA. Os dados foram coletados por meio de entrevistas
semiestruturadas, com a mediação de um intérprete de Libras e gravada, visto que língua de sinais
é de modalidade espacial-visual. Os resultados sinalizam que os discentes surdos passam por
muitas dificuldades na área de leitura e na compreensão dos textos acadêmicos em Língua
Portuguesa (L2), durante o processo ensino-aprendizagem, na Educação Superior, devido a não
capacitação docente na área do bilinguismo e, consequentemente, carência de educação de boa
qualidade desde a Educação Básica. Ressalta-se que no processo ensino-aprendizagem
envolvendo discentes surdos se faz necessário adotar estratégias de ensino levando-se em conta a
Libras como primeira Língua (L1) e a Língua Portuguesa, como segunda Língua (L2). Enfatiza-
se que os docentes das instituições de educação superior devem rever suas estratégias
metodológicas, visando a eficácia da aprendizagem dos referidos discentes. Registra-se que o
interprete da Libras, nesta etapa de escolarização, representa um recurso na tradução do que é
ensinado em sala de aula.
Palavras-chave: Educação Superior. Discentes Surdos. Escolarização.

Abstract:This study analyzed the challenges in the schooling process of deaf students in the
context of Higher Education. The participants were two deaf students from the Graduation Course
Letras/Libras from UFMA. The data were collected through semi-structured interviews, with the
mediation of a Libras interpreter and recorded, since sign language is of spatial-visual modality.
The results show that deaf students go through many difficulties in reading and understanding

137
E-mail: maellemedeiros123@gmail.com
138
. E-mail: maellemedeiros123@gmail.com
139
Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus Dom Delgado, São Luís/MA – Brasil. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-9872-2228. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4061880434989954. E-mail:
thelmachahini@hotmail.com.
Página 709 de 2230

academic texts in Portuguese (L2), during the teaching-learning process, in Higher Education, due
to lack of teacher training in bilingualism and, consequently, lack of good quality education since
Basic Education. It is important to note that in the teaching-learning process involving deaf
students it is necessary to adopt teaching strategies taking into account Libras as a first language
(L1) and Portuguese as a second language (L2). It is emphasized that the teachers of higher
education institutions should review their methodological strategies, aiming at the effectiveness
of the learning of these students. It is noted that the interpreter of Libras, at this stage of schooling,
represents a resource in the translation of what is taught in the classroom.
Keywords: Higher Education. Deaf students. Schooling.

1 INTRODUÇÃO

A Língua Brasileira de Sinais - Lei nº 10.436/2002, é reconhecida como sistema linguístico


de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. Assim, um
dos maiores problemas na educação de surdos na atualidade é seu processo de escolarização, que
historicamente foi renegado ou quando ofertado, marcado por estigmas e fragilidades nos métodos
de ensino. O requer repensar as práticas utilizadas pelos docentes no processo de escolarização
sobretudo no contexto da Educação Superior, modalidade de ensino que pequena quantidade de
surdos acessa (DORZIAT, 1988).
É importante destacar que a concepção socioantropológica da surdez, caracteriza o surdo
e a comunidade surda com uma identidade específica, que manifesta aspectos culturais específicos
desenvolvidos a partir da língua de sinais (SKLIAR, 1998).
Quadros (2010) ressalta que em se tratando da escolarização de surdos é necessário atentar-
se para as especificidades da língua de sinais, levando em conta o processo de aprendizagem do
surdo tanto em sua língua materna (Libras) quando na língua portuguesa (L2).
Jesus e Neres (2018), destacam que os surdos são aptos a aprender como qualquer pessoa
sem deficiência auditiva, apesar de ao longo da história terem sido vistos como incapazes de
aprender. Os autores enfatizam, que as instituições de ensino enfrentam muitas dificuldades em
relação à escolarização dos discentes surdos e devem superar os desafios da educação inclusiva
no século XXI.
Ressalta-se que a temática se reveste de relevância, no que condiz à contribuição no sentido
de repensar a escolarização da educação de surdos no processo de ensino-aprendizagem na
educação superior. No intuito de dar visibilidade as questões relacionadas ao processo de
escolarização de surdos, o que possibilitará a amplitude de novas discussões, considerando que a
problemática da educação de surdos no ensino superior, envolve a luta por uma educação pública
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e de qualidade. Diante do exposto se questionou quais os desafios no processo de escolarização


de discentes surdos no contexto da Educação Superior na Universidade Federal do Maranhão-
UFMA.

2 EDUCAÇÃO DE SURDOS

O processo de escolarização se define segundo o dicionário Aurélio como ato ou efeito de


escolarizar, decorrente de um conjunto de conhecimentos adquiridos na escola. Desse modo a
escolarização se dá na escola, enquanto instituição capacitada para formar e fomentar o
conhecimento. Assim, a escolarização dos indivíduos, e nos referimos a todos sem distinção, deve
ocorrer na escola, sendo ele ouvinte ou surdo.
O processo de escolarização da pessoa com deficiência ao ensino superior, apesar de se
constituir enquanto direito, estando expresso na Constituição Federal de 1988, representa um
desafio a ser enfrentado atualmente, considerando que apesar de existir legislações, estas não tem
sido suficientes para assegurar a participação plena e com todas as condições necessárias para o
desenvolvimento no processo educativo.
Chahini (2010) enfatiza que não se deve ficar restrito apenas a criação, elaboração e
aprovação de leis, é necessário criar ações que sensibilize e conscientize a sociedade acerca das
especificidades da pessoa com deficiência, demarcando suas potencialidades e real inclusão em
todos os segmentos da sociedade.
A educação, segundo Cury (2008, p. 294) enquanto “um direito e como um conceito
ainda é recente em nosso país”. Em se tratando de educação especial em uma perspectiva inclusiva
no ensino superior o fato ainda é mais recente, expresso através da Lei 13.409/2016, que
determina:

Art. 3o Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o
desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e
indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total
de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas
com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição,
segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -
IBGE.

O Brasil, vem criando mecanismos com vista a minimizar a segregação e exclusão de


pessoas com deficiência, inclusive no que se tange ao ensino superior nas Universidades Públicas
Federais. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, no artigo 59, destaca, que:

Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais: currículos,


métodos, técnicas, recursos educativos e organização específica para atender suas
necessidades. Terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível
exigido para conclusão do ensino fundamental em virtudes de suas deficiências, e
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aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados


(BRASIL, 1996, p. 150).

Em se tratando do aluno surdo, Frias (2010) destaca que a inclusão destes alunos no
contexto escolar deve contemplar mudanças no sistema educacional e uma adaptação no currículo,
com alterações nas formas de ensino, metodologias adequadas e avaliação que condiz com as
necessidades do aluno surdo.
A presença do aluno Surdo em sala exige que o professor reconheça a necessidade da
elaboração de novas estratégias e métodos de ensino que sejam adequados à forma de
aprendizagem deste aluno Surdo, o aluno Surdo está na escola, então cabe aos professores
criar condições para que este espaço promova transformações e avanços a fim de dar
continuidade a um dos objetivos da escola, ser um espaço que promove a inclusão escolar
(FRIAS, 2010, p. 13).

Neste seguimento, Felipe (1997) afirma que muito se tem discutido e falado de
educação inclusiva e segregadoras, no entanto a realidade diz respeito a alunos surdos em salas
com alunos ouvintes que não conseguem de forma análoga interagir e compreender o que está
sendo ensinado.
Assim, o acesso e permanência na escola é um direito garantido em diversos
documentos, porém, muitas pessoas não tem acesso a este conhecimento, se colocando ou sendo
colocado à margem do processo de escolarização na sociedade.

3 METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa de cunho exploratório, descritivo de natureza qualitativa. Os


participantes foram dois discentes surdos do Curso de Licenciatura Letras/Libras da UFMA. Os
dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, com a mediação de um intérprete
de Libras e gravada, visto que língua de sinais é de modalidade espacial-visual.
O critério de inclusão dos participantes foi ser surdo e usuário da Libras como meio de
comunicação. A entrevista com os discentes foi realizada na própria Universidade. Foram dados
os devidos esclarecimentos em relação aos objetivos e fins da pesquisa e garantidos todos os
direitos dos participantes, de acordo com os critérios éticos de pesquisas que envolvem seres
humanos. Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE.
Importa destacar que os participantes se encontram identificados por A1 e A2, tendo em
vista, o sigilo dos participantes. No contexto, a pesquisa foi autorizada pelo Curso de Letras Libras
da UFMA.

4 RESULTADOS
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Ao serem questionados se sentem dificuldades no processo e aprendizagem no acesso aos


conteúdos abordados em sala de aula no curso de Letras/Libras, os entrevistados destacaram ter
dificuldade “algumas dificuldades, eu leio algumas coisas” (A1) e “esse momento é difícil,
porque, essa questão de ler texto, de saber os contextos, de entender a palavra” (A2).
Percebe-se que os discentes surdos passam por muitas dificuldades na área de leitura e na
compreensão dos textos acadêmicos em Língua Portuguesa (L2), durante o processo ensino-
aprendizagem, na Educação Superior, devido a não capacitação docente na área do bilinguismo e,
consequentemente, carência de educação de boa qualidade desde a Educação Básica.
Nesse sentido, para Brasil (2007, p. 21) é necessário repensar práticas pedagógicas que
favoreça o desenvolvimento do discente surdo, considerando que estas “constituem o maior
problema na escolarização das pessoas com surdez”.
Desse modo, faz-se necessário, cabe ao docente criar estratégias didáticas que possibilite
ao surdo a apreensão do assunto abordado em sala de aula, de modo que, ele possa acompanhar o
conteúdo da mesma forma que os discentes ouvintes.
Em relação às metodologias aplicadas em sala de aula pelo professor, os discentes
informaram: “falta estratégia, mais sinalização, aqui na sala, vídeos, cadê, onde é que tem? O
professor às vezes não sabe sinalizar eu utilizo os intérpretes (A1); “aqui na sala, por exemplo,
tem a questão do intérprete, slide, mas também cabe a professora usar estratégias, responsabilidade
dela usar estratégias, habilidades que facilitem esse aprendizado, esse ensino” (A2).
Em relação ao questionamento acerca das metodologias aplicadas em sala pelo docente, o
entrevistado A1 destacou “falta estratégia, mais sinalização”, já A2 salientou que “professora usar
estratégias, responsabilidade ela usar estratégias, habilidades que facilitem esse aprendizado, esse
ensino”.
Observa-se que os discentes sinalizam que falta estratégia dos docentes, com vista a
facilitar o repasse do conhecimento. Aulas estas que podem utilizar mais recursos visuais,
atendendo a especificidade da língua de sinais espacial-visual.
A pesquisa sinalizou que os discentes surdos passam por muitas dificuldades na área de
leitura e na compreensão dos textos acadêmicos em Língua Portuguesa (L2), durante o processo
ensino-aprendizagem, na Educação Superior, devido a não capacitação docente na área do
bilinguismo e, consequentemente, carência de educação de boa qualidade desde a Educação
Básica.
Destaca-se que os alunos surdos inseridos no curso de Letras-Libras da UFMA, sentem
dificuldade na apreensão dos materiais exposto em sala de aula pelo docente, não por
incapacidade, mas pelo processo de escolarização precarizada que historicamente tem marcado a
educação de surdos no país.
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Observou-se que no processo ensino-aprendizagem envolvendo discentes surdos se faz


necessário adotar estratégias de ensino levando-se em conta a Libras como primeira Língua (L1)
e a Língua Portuguesa, como segunda Língua (L2).
Enfatiza-se que os docentes das instituições de educação superior devem rever suas
estratégias metodológicas, visando a eficácia da aprendizagem dos referidos discentes. Registra-
se que o interprete da Libras, nesta etapa de escolarização, representa um recurso na tradução do
que é ensinado em sala de aula.
Defende-se que os docentes das instituições de educação superior devem rever suas
estratégias metodológicas em relação à eficácia da aprendizagem dos discentes surdos e a
relevância dos intérpretes da Libras nesse contexto.
Espera-se que este estudo dê visibilidade ao processo de escolarização de discentes surdos
no contexto da educação superior e possibilite repensar práticas docentes que favoreçam o
processo ensino-aprendizagem dos referidos discentes.

REFERÊNCIAS

AURÉLIO. Dicionário online de Língua Portuguesa. Disponível


em:<httphttps://www.dicio.com.br/aurelio-2/>. Acesso em: 20 nov 2019.

BRASIL. Lei 13.409/2016. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-


2018/2016/Lei/L13409.htm>. Acesso em: 10 jun 2018.

CHAHINI, Thelma Helena Costa. Atitudes sociais e opiniões de professores e alunos da


Universidade Federal do Maranhão em relação à inclusão de Alunos com deficiência na
educação superior. Tese – Doutorado em Educação. Faculdade de Filosofia e Ciências, da
Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus Marília. São Paulo. 2010.

CURY, Carlos Roberto Jamil. A educação básica como direito. Cadernos de Pesquisa, v. 38, n.
134, p. 293-303, maio/ago. 2008.

DORZIAT, Ana. Democracia na escola: bases para igualdade de condições surdos-ouvintes.


Revista Espaço. Rio de Janeiro: INES.1998.

FELIPE, T. A. Escola Inclusiva e os direitos linguísticos dos Surdos. Rio de Janeiro: Revista
Espaço – INES, Vol. 7, 1997.

FRIAS, E. M. A. Inclusão escolar do aluno com necessidades educativas especiais:


contribuições ao professor do Ensino Regular, 2010. Disponível
em:<http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1462-8.pdf> acesso em:03 jul
2019.

JESUS, Karen de; NERES, Celi Corrêa. Inclusão e escolarização do surdo: o que relatam as
pesquisas?. UEMS/ Paranaíba. 2018. Disponível em
Página 714 de 2230

<https://www.marilia.unesp.br/Home/Eventos/2015/jornadadonucleo/inclusaoescolarizacao-do-
surdo.pdf>. Acesso em: 03 jul 2019.

QUADROS, R. M. A aquisição da morfologia verbal na língua de sinais brasileira: a produção


gestual e os tipos de verbos. XI Encontro Nacional de Aquisição da Linguagem. Pontifícia
Universidade Católica do RS. In Letras de Hoje, 2010.

SKLIAR, CARLOS. A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.
Página 715 de 2230

PARA DESCOLONIZAR OS CURRÍCULOS DAS ESCOLAS DOS TERRITÓRIOS


QUILOMBOLAS DA BAIXADA MARANHENSE: A EXPERIÊNCIA DE UM
PROJETO EXTENSIONISTA NO IFMA CAMPUS PINHEIRO

TO DECOLONIZE THE CURRICULUM OF THE SCHOOLS OF QUILOMBOLA


TERRITORIES OF BAIXADA MARANHENSE: THE EXPERIENCE OF AN
EXTENSION PROJECT AT IFMA CAMPUS PINHEIRO

Jadson Fernando Rodrigues Reis


Licenciado em História – UEMA
Instituto Federal do Maranhão- Campus Pinheiro
Domingas Cantanhede dos Santos
Mestra em Ensino – UNIVATES
Instituto Federal do Maranhão- Campus Pinheiro
Eixo Temático 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Este trabalho apresenta a experiência do desenvolvimento de um Projeto de Extensão


intitulado Educação, escolas quilombolas e formação de professores na Baixada Maranhense,
organizado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA)
Campus Pinheiro, através do seu Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indiodescendentes
(NEABI), em colaboração com a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) Campus Pinheiro
e com o Movimento Quilombola da Baixada Maranhense (MOQUIBOM). A metodologia do
projeto contempla a realização de módulos e oficinas interdisciplinares para a formação
continuada de professores que atuam nas escolas de territórios quilombolas da microrregião,
contemplando as especificidades sociais e culturais dessas comunidades, mantendo um constante
diálogo com as teorias da decolonialidade. A proposição deste projeto está alinhada com a
compreensão de que as práticas educacionais das escolas quilombolas não devem estar divorciadas
das dimensões acima elencadas, descolonizando o imaginário etnocêntrico que permeia os seus
currículos. Dialogamos com Grosfoguel (2008, 2018), Maldonado-Torres (2018), Gomes (2012,
2018), Munanga (2008), Arroyo (2011, 2012) e Freire (2019). Como resultados deste trabalho
esperamos que os sujeitos envolvidos possam problematizar a visão que o currículo escolar e o
imaginário nutrido por estes em relação às comunidades remanescentes quilombolas.
Palavras-chave: Educação Quilombola. Decolonialidade. Formação de professores. NEABI.

Abstract: This paper presents the experience of developing of extension project entitled
Education, quilombola schools and teacher training in the Baixada Maranhense organized by
Federal Institute of Education, Science and Technology of Maranhão (IFMA) Campus Pinheiro,
through its Center for Afro-Brazilian and Indiodescendent Studies (NEABI, acronym in
Portuguese), in collaboration with Federal University of Maranhão (UFMA) Campus Pinheiro and
the Quilombola Movement of Baixada Maranhense (MOQUIBOM, acronym in Portuguese). The
Página 716 de 2230

methodology of the project contemplates the realization of interdisciplinary modules and


workshops for the continuing education of teachers who work in schools in quilombola territories
in the micro-region, contemplating the social and cultural specificities of these communities,
maintaining a constant dialogue with the decoloniality theories. The purpose of this project is
aligned with the understanding that the educational practices of quilombola schools must not be
divorced from the dimensions listed above, decolonizing the ethnocentric imaginary that
permeates their school curricula. The research dialogues with following authors: Grosfoguel
(2008, 2018), Maldonado-Torres (2018), Gomes (2012, 2018), Munanga (2008), Arroyo (2011,
2012) and Freire (2019). As a result of this research, it is expected that the subjects involved can
problematize the view that the school curricula and the imaginary nurtured by them in relation to
the remaining quilombola communities.
Keywords: Quilombola Education. Decoloniality. Teacher training. NEABI.

1 INTRODUÇÃO
Um dos inúmeros desafios da nossa rede pública de educação é o estabelecimento de
diálogos e reflexões que aproximem a multiplicidade de sujeitos que compõe as comunidades do
seu entorno no envolvimento de ações institucionais emancipadoras e de impacto social
significativo para além das atividades de ensino e de aprendizagem desenvolvidas internamente
no seu cotidiano. No contexto em que testemunhamos um recrudescimento dos discursos
conservadores que tentam deslegitimar o papel das instituições educativas e do cerceamento às
práticas pedagógicas desenvolvidas pelos sujeitos da educação, cabe repensarmos de forma
conjunta estratégias de resistências às investidas em favor do desmantelamento e desestruturação
da educação pública, reconhecendo que isto só será possível com o fortalecimento dos seus
vínculos com a sociedade civil e com os movimentos sociais através não apenas do ensino, mas
também da pesquisa e da extensão.
Norteado por esta reflexão, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Maranhão (IFMA) Campus Pinheiro organizou o seu I Encontro Pedagógico 2019.1, realizado
entre os dias 07 e 09/03/2019, com o tema Diálogos para aproximação do Campus Pinheiro com
a comunidade local. Na ocasião, o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indiodescendentes
(NEABI)140 da referida instituição mediou a roda de diálogos intitulada A inserção dos saberes
locais na produção de conhecimento dentro do IFMA Campus Pinheiro através da Pesquisa e
Extensão, que foi construída com membros da comunidade docente, pequenos produtores, artesãs,

140
A Rede Federal de Educação Básica, Técnica e Tecnológica é constituída por dois núcleos que trabalham na
implementação das políticas afirmativas a nível institucional: o mencionado NEABI e o Núcleo de Atendimento às
Pessoas com Necessidades Educacionais Específicas (NAPNE).
Página 717 de 2230

lideranças sindicais e do Movimento Quilombola da Baixada Ocidental Maranhense


(MOQUIBOM)141.
Os debates travados no decorrer deste momento, giraram em torno da reflexão de
ações mais concretas do IFMA Campus Pinheiro voltadas para o atendimento das demandas
desses segmentos sociais, aproveitando, dessa forma, o potencial dos seus profissionais e dos
recursos disponíveis na instituição. Como encaminhamento das ideias discutidas, o NEABI junto
ao MOQUIBOM propôs a organização de uma formação continuada para os professores que
atuam nas escolas de ensino fundamental no contexto das comunidades de remanescentes
quilombolas da Baixada Ocidental Maranhense.
Ainda é latente o negligenciamento dispensado a este nível da Educação Básica, o
que pode ser averiguado com a quase inexistência de cursos de formação contínua e de
aperfeiçoamento ofertados a esse público que levem em consideração as práticas pedagógicas e
educativas desenvolvidas nos contextos de suas escolas. Soma-se a isto a precarização do trabalho
desses professores no que tange a um plano de cargos e carreiras consolidado, que garanta
condições dignas de remuneração, estrutura física adequada dos espaços de trabalho e
investimentos na formação inicial, esta última uma dimensão que precisa ainda de mais avanços
entre os docentes envolvido nas reflexões deste trabalho.
Além disto, a proposição desta intervenção esteve alinhada ao projeto de descolonizar
as práticas educativas que são desenvolvidas no contexto das escolas quilombolas, que ainda
prezam por um padrão hegemônico de produção dos saberes estabelecendo, nesse ínterim, uma
hierarquia no que deve ser veiculado através dos currículos (GOMES, 2018, p. 238). Preterindo,
portanto, as formas de produção de existências e de conhecimentos do movimento negro e
quilombola ao longo do seu processo de luta por políticas afirmativas, emancipação e autogestão.
Em consonância com esse compromisso, a descolonização dos currículos numa
perspectiva das comunidades quilombolas, objetivou-se com essa formação continuada
problematizar os imaginários construídos pelo currículo oficial em relação às comunidades
remanescentes quilombolas, promover o estudo da memória, ancestralidade, oralidade,
corporeidade, estética e do etnodesenvolvimento produzidos pelos quilombolas ao longo do seu

141
O Movimento Quilombola da Baixada Ocidental Maranhense, o MOQUIBOM, é um movimento de organização
política e de resistência campesina que se articula em torno da luta contra os retrocessos que ameaçam as políticas
públicas conquistadas ao longo das últimas décadas pelos remanescentes quilombolas no Maranhão. Defende, ainda,
a soberania e autogestão das comunidades tradicionais na definição de caminhos sustentáveis e viáveis de produção
de suas existências e do seu etnodesenvolvimento. Surgido na Baixada Ocidental Maranhense, nos últimos anos o
MOQUIBOM tem pautado a sua atuação na luta pelo reconhecimento dos territórios de remanescentes quilombolas
da região, marcada por graves conflitos fundiários com o assassinato de lideranças comunitárias, e na construção de
uma agenda política que respeite a emancipação, a autonomia e as aspirações dos sujeitos do quilombo. Para mais
informações sobre o MOQUIBOM, conferir: AMADOR, Rafael Barra. A teia dos povos e comunidades
tradicionais: autonomia territorial e resistências em face de processos hegemônicos. 2018. Monografia (Graduação
em Geografia) – Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2018.
Página 718 de 2230

processo histórico, político, econômico e sociocultural, construir saberes e práticas pedagógicas


que contemplem e respeitem as formas de organizações das comunidades tradicionais e
estabelecer estratégias para positivar os saberes quilombolas na produção dos conhecimentos que
atravessam o currículo dessas escolas, refletindo, portanto, nos processos de ensino e
aprendizagem.
Desta forma, o IFMA Campus Pinheiro, através do NEABI, e o MOQUIBOM
contaram com a contribuição dos profissionais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Campus Pinheiro na construção da formação continuada para esses professores, organizada
através de um projeto de extensão nomeado Educação, Escolas Quilombolas e formação de
professores na Baixada Maranhense. Para a primeira turma, foram selecionados quarenta
professoras e professores que atuam nos anos iniciais e finais do ensino fundamental dos
Territórios Pau Pombo e Vivo, ambos localizados, em sua maioria, no município de Santa Helena
– MA, que fica aproximadamente a 43,4 km (47 min) de Pinheiro. No munícipio em questão, há
uma incidência de inúmeros territórios e comunidades quilombolas que historicamente vêm
construindo formas de organização política, social e de sustentabilidade na região muito profícuas
para os estudos interdisciplinares.
Página 719 de 2230

Figura 01 – Baixada Ocidental Maranhense Figura 02 – Município de Santa Helena – MA

FONTE: Google Imagens FONTE: Google Imagens

O território de Pau Pombo é formado pelas comunidades de São Roque, São


Raimundo, Pau Pombo, Boi de Carro, Faxina e Chapadinha. O território Vivo, por sua vez, reúne
as comunidades de Bacuri, Mundico, Aranha, Vivo, Maiabi, Rio do Curral, Mata de Pantaleão,
sendo que as três últimas comunidades pertencem ao município de Mirinzal. Todas essas
comunidades são reconhecidas como remanescentes quilombolas junto a Fundação Palmares,
conforme o Decreto n° 4.887, de 20 de novembro de 2003142.

2 REFLEXÕES ACERCA DA DESCOLONIZAÇÃO DOS CURRÍCULOS ESCOLARES:


a perspectiva da decolonialidade
Para que compreendamos de que forma opera o imaginário da
modernidade/colonialidade, faz-se necessário, portanto, que analisemos inicialmente como este
paradigma epistêmico veio se constituindo ao longo do processo de formação da chamada
civilização moderna ocidental. Importante pontuar que o objetivo deste trabalho não é construir
uma revisão bibliográfica extensa em relação ao que a historiografia tradicional denominou de
“descoberta” e nem sobre as discussões travadas no campo das teorias decoloniais. No entanto, se

142
Regulamenta os procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Segundo o Decreto, as comunidades de remanescentes
quilombolas são “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados
de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão
histórica sofrida” (BRASIL, 2003).
Página 720 de 2230

buscará subsídios para que entendamos como o sistema-mundo da colonialidade do poder veio se
estabelecendo na experiência da colonização latino-americana, repercutindo em várias dimensões
no processo de formação desses povos, inclusive no imaginário educativo e pedagógico.
O ponto chave dessa interpretação tem início em 1492 com a expansão dos impérios
ultramarinos das monarquias católicas que se localizavam na Península Ibérica. Como afirma
Nelson Maldonado-Torres (2018, p. 30), este acontecimento “teve implicações profundas
múltiplas, bem como um grande impacto sobre a noção de ser civilizado”. O autor afirma, ainda,
que a partir do século XV foi se constituindo teorias partilhadas entre a intelligentsia europeia que
classificavam arranjos socioculturais, políticos e econômicos distintos do seu modelo hegemônico
de sociedade (branca, cristã e “civilizada”) com categorias que variaram entre “menos
civilizados”, “não civilizados”, “selvagens” ou “primitivos” (MALDONADO-TORRES, 2018, p.
30).
A partir dessas injunções, foram se instituindo representações e interpretações
ocidentais acerca de povos e culturas que não se encaixavam nesse modelo civilizacional, a
exemplo dos nativos do Novo Mundo e, posteriormente, da mão de obra cativa africana que atuou
na consolidação das colônias além-mar.
A construção de um grande projeto salvacionista e civilizacional, perpetrado por parte
dos que se consideravam detentores da civilidade foi, portanto, inevitável. O resultado em longo
prazo mais contundente deste processo foi a perpetuação do imaginário de hierarquia e de
subalternização relegados a esses sujeitos, mesmo quando grande parte das colônias portuguesas
e espanholas vieram se tornar independentes no campo político e administrativo das metrópoles
coloniais.
Esse conjunto de pressupostos pretensamente científicos e filosóficos que tentam dar
conta da suposta inferioridade e subalternidade desses grupos sociais é o que chamamos aqui de
teorias da colonialidade que, segundo Maldonado-Torres (2018, p. 36) “pode ser compreendida
como uma lógica global de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de
colônias formais”, sendo, portanto, um projeto inacabado que se manifesta através da negação de
subjetividades dos sujeitos racializados, da imposição de um modelo de desenvolvimento
eurocentrado, da dominação do corpo feminino (da mulher negra sobremaneira) e na invisibilidade
das contribuições dadas pelos povos tradicionais no processo de formação dessas sociedades,
como as diversas etnias ameríndias espalhadas pelo continente assim como os povos de origem
africana e afro-brasileira, os quais nos atentaremos de forma mais específica a partir daqui.
Conforme nos aponta a pesquisadora Nilma Lino Gomes (2018), desde a segunda
metade do século XX, o movimento negro brasileiro tem construído estratégias de contraposição
à narrativa e ao imaginário da colonialidade, propondo reflexões acerca dos prejuízos trazidos a
Página 721 de 2230

essa parcela social com a primazia de uma forma única e eurocentrada de interpretação da
realidade social.
Descolonizar o pensamento e as práticas sociais é, portanto, confrontar o modo de
produção do conhecimento (epistemologia) que nos é imposto e dar vazão, também, a saberes que
são elaborados a partir do lado subalternizado do sistema-mundo, sendo eles, como sugere o
sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel (2008, p. 136):
[...] o lado da periferia, dos trabalhadores, das mulheres, dos indivíduos
racializados/colonizados, dos homossexuais/lésbicas e dos movimentos anti-sistêmicos
que participam do processo de produção do conhecimento. Isto significa que, embora o
sistema mundo tome o mundo como unidade de análise, ele pensa a partir de uma
determinada perspectiva de mundo.

Integradas ao pensamento da decolonialidade, ou do giro decolonial, perpetrado pelos


intelectuais latino-americanos, entendido aqui como “à luta contra a lógica da colonialidade e seus
efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos” (MALDONADO-TORRES, 2018, p. 36), Nilma L.
Gomes vem afirmar que tais reflexões não tiveram sua origem nos bancos das universidades, como
se costuma pensar, do contrário:
Isso surgiu na periferia, na experiência da pobreza, na ação cotidiana, nas vivências
sociais, na elaboração e reelaboração intelectual dos sujeitos negras e negros, muitos dos
quais nem sequer foram (e alguns ainda são) reconhecidos como pesquisadores,
intelectuais e produtores de conhecimento. Mesmo os poucos negros que conseguiram
romper com a barreira racial e social, alguns deles atuando como escritores, jornalistas,
artistas, docentes de universidades, pesquisadoras e pesquisadores, a partir da Abolição
da Escravatura, em 1888, não foram reconhecidos publicamente (ou o foram depois de
muito tempo) como intelectuais e como produtores de um conhecimento crítico sobre a
questão racial e africana, em particular, e sobre a realidade brasileira e do mundo, em
geral. (GOMES, 2018, p. 224)

A autora esclarece que essa atuação política e epistêmica tem buscado agir, também,
no campo dos currículos das nossas instituições escolares lutando pela construção de uma
pedagogia emancipatória que dê protagonismo e voz aos sujeitos subalternizados pelo sistema
colonial, os denominados “Outros Sujeitos”143 por Miguel Arroyo (2011, p. 24), criando
possibilidades de positivação dos seus saberes e das suas existências.
O sistema educacional brasileiro convive com práticas que reforçam um currículo
hegemônico, monocultural que tem atuado na desterritorialização e na invisibilidade de minorias
sociais e culturais que passaram pelo processo histórico da hierarquização do saber, poder e ser

143
“[...] os Outros Sujeitos mostram o peso formador da diversidade de resistências de que são sujeitos. Todas as suas
vivências narradas se entrelaçam às práticas coletivas de resistências. Práticas de saber-se e afirmar-se resistentes e
ter acumulado saberes de resistir aos brutais processos de subalternização. Não falam de saberes em abstrato, mas de
pedagogias, de saberes, de aprendizados de reações e resistências concretas à escravidão, ao despojo de seus
territórios, suas terras, suas águas, suas culturas e identidades. Teorias pedagógicas de resistência coladas e aprendidas
em práticas, lutas, ações coletivas, no resistir à destruição e, sobretudo, na retomada da agricultura familiar, da
construção de um teto onde abrigar a família, de sair do desemprego. Resistências que participam desde
crianças/adolescentes e que levam às escolas e aos encontros da educação popular” (ARROYO, 2011, p. 24).
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no sistema-mundo da modernidade/colonialidade. Embora no campo discursivo tenham surgido


debates aprofundados acerca de práticas pedagógicas emancipadoras que façam a leitura crítica
dessa narrativa unilateral e de viés colonialista (GOMES, 2012), compreender de que forma estas
discussões chegam até as salas de aula da Educação Básica espalhadas pelo país, espaços por
excelência de exclusão, ainda é um dado a ser analisado de forma mais sistemática.
Quando pensamos nas escolas inseridas nos territórios quilombolas, esta problemática
ganha contornos ainda mais agravantes. Faz-se necessário pensar em intervenções nos espaços
escolares dessas comunidades, buscando problematizar o currículo monocultural que contribuiu
para a reprodução da falácia de que os seus saberes não produzem conhecimentos socialmente
válidos, estabelecendo, nesse sentido, uma hierarquia no que deve e no que não deve ser ensinado
(MUNANGA, 2008).
A emergência da discussão sobre educação escolar em territórios quilombolas e o
currículo pensado para essa realidade vem confrontar mais um espaço em que esse olhar
colonizador estendeu suas ramificações: no imaginário pedagógico e nos sujeitos da educação.
Para tanto, a formação continuada proposta sempre esteve atravessada pelo conceito de currículo
enquanto um território em disputa, formulado por Arroyo (2012) e Gomes (2018), pois para
descolonizar as práticas educativas, se faz necessário, antes de tudo, entendê-las como construtos
sociais que agem com o propósito de moldar um projeto de sociedade fundada em estereótipos
raciais, sexistas e de classe através das relações de poder e das ideologias que atravessam o
currículo, tendo em vista que:
As narrativas do currículo trazem embutidas noções sobre quais grupos sociais podem
representar a si e aos outros e quais grupos sociais podem apenas ser representados ou
até mesmo ser totalmente excluídos de qualquer representação. E mais: as narrativas
representam os grupos sociais de formas diferentes, ou seja, valorizam alguns (sua
história, conhecimentos, cultura, política, sexualidade e religião) e desvalorizam outros.
Por isso, as narrativas do currículo contam histórias coloniais e fixam noções particulares
de raça, classe, gênero, sexualidade e idade (GOMES, 2018, p. 228).

Nesse sentido, faz-se importante mencionar o protagonismo de intelectuais negros (as)


e dos seus respectivos movimentos sociais na construção de referenciais legais para a
disseminação de ações afirmativas no âmbito do currículo escolar, contemplando o processo de
valorização dos seus conhecimentos, das suas subjetividades, das suas lutas e histórias, assim
como na reorganização das escolas dos territórios quilombolas para a implementação dessas
diretrizes.
Considerando que o currículo é uma construção social, entendemos, portanto, que ele
é passível de intervenções e mudanças, necessitando que essas parcelas subalternizadas da
sociedade disputem sua representatividade na sua elaboração. O(a) professor(a), na sua
responsabilidade de analisar criticamente a sociedade e de se posicionar contra as injustiças
sociais, também deve assumir o seu protagonismo nessa luta, pois:
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É ético que os profissionais e educandos lutem por devolver-lhes o que vem sendo
subtraído, o direito a pensar, criar, escolher o que ensinar e como, o que aprender, que
conhecimentos garantem o direito a entender suas vivências, a entender-se. Nessa luta
ética pela liberdade e a autoria, pelo direito a um conhecimento que liberte, o currículo
aparece como território de disputa. É ético questionar por que o currículo passou a ser o
território onde o conhecimento acumulado se afirma como único, legítimo, onde a
racionalidade científica se legitima como a única racionalidade. É ético garantir o direito
à diversidade de conhecimentos e de formas de pensar o real. (ARROYO, 2012, p. 40)

A escola regular e ordinária não tem nos seus currículos geradores marcos conceituais
sobre suas identidades e trajetórias sócio espaciais, por exemplo, que constroem o currículo com
as dinâmicas das trajetórias e fundadas na ancestralidade. O modelo em curso no século XXI
aponta apenas a dinâmica econômica e mercadológica, destarte da autonomia e protagonismo
quilombola. Portanto, torna-se importante que a comunidade acadêmica dispute parcelas de
demarcação teórica e pedagógica, no que se refere à formação de professores com abordagem
contextualizada quilombola (FREIRE, 2019) através de propostas emancipadoras e alinhadas com
o movimento decolonial latino-americano na perspectiva dos negros e negras do nosso país.

3 EDUCAÇÃO, ESCOLAS QUILOMBOLAS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA


BAIXADA MARANHENSE: a experiência de um projeto extensionista
O projeto de extensão Educação, Escolas Quilombolas e formação de professores na
Baixada Maranhense possuiu uma equipe composta por 14 colaboradores, entre eles servidores
da carreira do magistério, servidores da carreira dos técnicos-administrativos em educação e
alunos (as) bolsista do curso técnico de Meio Ambiente e integrantes do NEABI.
As oficinas realizadas durante a formação continuada foram inicialmente pensadas de
forma colaborativa com todos os membros do projeto, logo após o primeiro contato que se teve
com os professores e lideranças comunitárias dos territórios mencionados. Esse diálogo inicial,
que aconteceu durante o mês de março de 2019, foi de suma importância para que pudéssemos
mapear as principais necessidades pedagógicas pontuadas pelos sujeitos das escolas participantes.
A partir do levantamento dessas informações, construiu-se um cronograma com módulos
propostos pelos membros da equipe, que apresentamos a seguir.

Quadro 01- Oficinas realizadas durante a formação continuada

OFICINAS ORGANIZADORES(AS)

Do quilombo para a escola, da escola para Profa. Dinalva Pereira Gonçalves / UFMA
o quilombo: uma proposta de intervenção Campus Pinheiro
pedagógica para escolas quilombolas de
Ensino Fundamental
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Saberes quilombolas e saberes científicos nos Profa. Fátima de Jesus Soares Corrêa / IFMA
processos de ensino e de aprendizagem. Campus Pinheiro

Gênero e empoderamento para o Profa. Fernanda Maria Vieira Ribeiro / IFMA


desenvolvimento humano. Campus Pinheiro

Contribuição de saberes da Prof. Rodrigo Ferreira Quintanilha / IFMA


capoeira, educação do corpo e exercício de Campus Pinheiro
liberdade.

Segurança e soberania alimentar no contexto Profa. Thays Claudia da Silva Nascimento e Profa.
das comunidades tradicionais. Domingas Cantanhede dos Santos / IFMA
Campus Pinheiro

Práticas de letramento da comunidade e suas Profa. Áurea Maria Brandão Santos / IFMA
repercussões no cotidiano escolar. Campus Pinheiro.

Fundamentos sócio filosóficos da educação. Prof. Vicente Juciê Sobreira Junior / IFMA
Campus Pinheiro.

Abordagens teóricas e metodológicas do Prof. Weeslem Costa de Lima / IFMA Campus


ensino de arte. Pinheiro.

Representações da África e dos africanos no Prof. Jadson Fernando Rodrigues Reis e Profa.
currículo escolar. Domingas Cantanhede dos Santos / IFMA
Campus Pinheiro.

Matematizações, diálogos e conexões entre os Prof. Filardes de Jesus Freitas da Silva/ IFMA
saberes socioculturais de uma Campus Pinheiro.
comunidade quilombola e os
saberes escolares.

Geografias e saberes na educação quilombola. Prof. Saulo Barros da Costa / IFMA Campus
Pinheiro.

FONTE: organizado pelos autores.

Como se pode observar a partir da tabela, os módulos/oficinas foram pensados em


caráter interdisciplinar, buscando alcançar distintas áreas do conhecimento do currículo da
educação básica e as relacionando a questões e demandas das escolas quilombolas. Importante
mencionar que este é um direcionamento preconizado pelas Diretrizes Curriculares para a
Educação Quilombola144, corroborando que o currículo na Educação Escolar Quilombola poderá
ser organizado por eixos temáticos, projetos de pesquisa, eixos geradores ou matrizes conceituais,

144
Definidas pela Resolução nº 08 de 20 de novembro de 2012, as Diretrizes Curriculares para a educação quilombola
foram uma conquista significante das reivindicações históricas encabeçadas pelo movimento negro e pelos
intelectuais comprometidos em desconstruir as representações racistas e excludentes que permeiam os currículos das
escolas de Educação Básica no país. Como desdobramento das políticas de ações afirmativas promovidas desde os
primeiros anos do governo trabalhista de Luís Inácio Lula da Silva, tendo a Lei 10.639/03 como marco fundamental,
tais diretrizes possibilitaram que as escolas dos territórios quilombolas pudessem construir sua prática educativa de
forma autônoma e democrática, com participação efetiva dos sujeitos da comunidade, contemplando em seus
currículos aspectos relacionados aos seus modos de etnodesenvolvimento, gestão educacional e produção de
existências.
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em que os conteúdos das diversas disciplinas podem ser trabalhados numa perspectiva
interdisciplinar, respeitando as seguintes orientações:

§ 1º A Educação Escolar Quilombola na Educação Básica:


I - organiza precipuamente o ensino ministrado nas instituições educacionais
fundamentando-se, informando-se e alimentando-se:
a) da memória coletiva;
b) das línguas reminiscentes;
c) dos marcos civilizatórios;
d) das práticas culturais;
e) das tecnologias e formas de produção do trabalho;
f) dos acervos e repertórios orais;
g) dos festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural
das comunidades quilombolas de todo o país;
h) da territorialidade; (BRASIL, 2012, p. 61)

As oficinas aconteciam aos sábados, das 07h00min às 17h00min, no prédio do IFMA


Campus Pinheiro e nas escolas localizadas no território Pau Pombo. Cada módulo/oficina possuía
uma carga horária de 10 horas, totalizando 140 horas ao fim do curso. Em sua maioria, as aulas
eram metodologicamente organizadas no formato de expositivas e, ao fim do módulo/oficina,
havia a proposição de uma atividade prática onde os docentes desenvolviam planos de trabalho
que possibilitassem a aplicação dos conhecimentos obtidos durante a formação em suas escolas.

3.2 Discussões sobre as atividades propostas


Na oficina intitulada Do quilombo para a escola, da escola para o quilombo: uma
proposta de intervenção pedagógica para escolas quilombolas de Ensino Fundamental,
organizada pela pesquisadora Dinalva Pereira Gonçalves, trabalhou-se com Cadernos de Oficinas
Pedagógicas, elaborados pela ministrante, que são constituídos por dez temas geradores que
dialogam com a produção de saberes e com as relações étnico-raciais estabelecidas no contexto
das comunidades quilombolas. Fruto da sua pesquisa de mestrado, com uso desses cadernos a
autora buscou apresentar para os docentes participantes uma proposta pedagógica específica, para
a parte diversificada do currículo escolar, que levasse em consideração a história e os modos de
organização política, econômica e social dos povos quilombolas, contribuindo, então, como
estimulador da afirmação étnica dos seus estudantes.
As oficinas Saberes quilombolas e saberes científicos nos processos de ensino e de
aprendizagem e Matematizações, diálogos e conexões entre os saberes socioculturais de uma
comunidade quilombola e os saberes escolares, por sua vez, focaram na construção de uma
pedagogia adequada e contextualizada aos aspectos socioculturais de uma comunidade no ensino
de conceitos e categorias das áreas das ciências exatas e da natureza. Ministradas,
respectivamente, pela professora de Física, Fátima de Jesus Soares Correa, e pelo professor de
Matemática, Filardes de Freitas, as duas atividades propuseram aos docentes participantes das
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oficinas a reflexão sobre uma prática que parte do saber-fazer dos estudantes para conceitos mais
abstratos das áreas dos conhecimentos acima pontuadas.
Levantar este debate significa, acima de tudo, reconhecer que as atividades cotidianas
desenvolvidas pelos povos tradicionais são prenhes de saberes que, na maioria das vezes, são
negligenciados pelas hierarquias e silenciamentos produzidos pelo currículo monocultural,
colonial e desterritorializado. Nas proposições dessas atividades, almejou-se positivar esses
saberes sob a luz da etnomatemática e da etnofísica.
Essas mesmas preocupações, a contextualização dos saberes curriculares à realidade
das comunidades quilombolas, nortearam outras duas oficinas, discutidas a seguir, propostas na
formação continuada em análise.
Na oficina Geografias e saberes na educação quilombola, o professor Saulo Barros
da Costa, coordenador do projeto, se propôs a trabalhar a relevância e as particularidades dos
saberes geográficos para as comunidades quilombolas, respeitando a representação que estes
possuem sobre o seu território, assim como a luta empreendida pelos mesmos na defesa do
usufruto das suas terras. Dessa forma, as atividades propostas durante o desenvolvimento deste
trabalho, focaram na discussão sobre a Geografia ensinada nos territórios quilombolas e de que
forma os discursos sobre o espaço contribuem na formação das identidades individuais e coletivas
dos sujeitos que dele fazem parte.

Figura 03 – Oficina 01 - Do quilombo para Figura 04 – Oficina 05 - Segurança e soberania


a escola, da escola para o quilombo: uma alimentar no contexto das comunidades
proposta de intervenção pedagógica para
tradicionais.
escolas quilombolas de Ensino Fundamental.

Fonte: Arquivo do projeto. Fonte: Arquivo do projeto.

Em Práticas de letramento da comunidade e suas repercussões no cotidiano escolar,


oficina ministrada pela professora de Língua Portuguesa, Áurea Maria Brandão, a
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contextualização dos saberes curriculares às especificidades dos discursos, textos e imaginários


que circulam na comunidade, também é um tema que apareceu de forma latente. Seguindo os
direcionamentos filosóficos e educacionais explicitados nos trabalhos mencionados
anteriormente, esta oficina explorou as práticas e as situações de letramento que ocorrem nos
territórios de Pau Pombo e Vivo, a partir de diferentes textos que neles podem ser encontrados, e
de que forma estes se encontram inseridos nas práticas de alfabetização e leitura que atravessam
o cotidiano das suas escolas.
Na oficina Representação da África e dos africanos no currículo escolar, organizada
pela pedagoga Domingas Cantanhede dos Santos e pelo historiador Jadson Fernando Rodrigues
Reis, ambos servidores do IFMA e membros do NEABI, buscou-se à luz da Lei 10.639/03
evidenciar a importância de se trabalhar com a História e Cultura Africana e Afro-brasileira no
combate as injunções e estereótipos que vieram sendo impostos historicamente à África, aos seus
povos e aos sujeitos que foram alvos da diáspora após a inserção do continente no mercado
ultramarino moderno.
Dessa forma, os trabalhos desenvolvidos nesse momento buscaram refletir acerca das
imagens que estudantes e professores (as) da educação básica possuem acerca da África e dos
africanos, da forma que a história da África está sendo ensinada nas escolas da educação básica e,
principalmente, sobre que história da África está sendo ensinada.

Figura 05 – Oficina Fundamentos sócio filosóficos Figura 06 – Oficina Representações da África e dos
da educação africanos no currículo escolar.

Fonte: Arquivo do projeto.


Fonte: Arquivo do projeto.

Ainda explorando as dimensões dos saberes ancestrais e das reminiscências da


memória afro-brasileira, a oficina Contribuição de saberes da capoeira, educação do corpo e
exercício de liberdade, ministrada pelo professor de Educação Física e mestre de capoeira Rodrigo
Ferreira Quintanilha, possibilitou a construção de possíveis relações pedagógicas e
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epistemológicas entre os saberes da capoeira, vista enquanto instrumento de educação do corpo, e


os saberes que circulam nos espaços escolares.
A oficina Segurança e soberania alimentar no contexto das comunidades
tradicionais, organizada pela nutricionista Thays Cláudia da Silva Nascimento, teve como
princípio norteador a discussão de questões ligadas à educação alimentar e de que forma esta tem
buscado respeitar as especificidades das comunidades quilombolas maranhenses. As questões
motivadoras dos trabalhos desenvolvidos neste momento focaram no desenvolvimento sustentável
dessas comunidades, na qualidade sanitária dos alimentos por eles consumidos, no aproveitamento
integral destes e em práticas alimentares que dialoguem com a diversidade cultural e étnica dessas
populações, pontos que também são preconizados nos marcos legais que dão base a educação
desenvolvida no contexto das comunidades quilombolas.
Na ocasião desta oficina, o curso pode contar com a participação das merendeiras e
cozinheiras que trabalham nas cozinhas das escolas que participavam da formação, todas reunidas
no esforço conjunto de construir estilos de vida e hábitos alimentares mais saudáveis.
Na oficina Gênero e empoderamento para o desenvolvimento humano, organizada
pela socióloga Fernanda Maria Vieira Ribeiro, se discutiu a construção do lugar ocupado pelas
mulheres na nossa sociedade, na contribuição significativa destas para a organização das
comunidades quilombolas, a urgência do feminismo negro enquanto epistemologia da
decolonialidade e o respeito à diversidade sexual e de gênero em suas diferentes formas de
identidades.
Nas duas últimas oficinas aqui abordadas, Fundamentos sócio filosóficos da educação
e Abordagens teóricas e metodológicas do ensino de Arte, ministradas respectivamente pelos
professores Vicente Juciê Sobreira Junior e Weeslem Costa de Lima, buscou-se compreender
como se dá o processo onde a educação, enquanto ação mediadora da relação entre o homem e o
mundo, se constitui dimensão ontológica fundamental no processo de humanização.
Manifestando-se, portanto, na construção dos variados conhecimentos que circulam em diferentes
realidades sociais, onde se incluem, também, os saberes do campo das manifestações artísticas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A formação continuada para professores da educação quilombola aqui discutida foi
construída através dos esforços coletivos de um conjunto de profissionais da educação e lideranças
comunitárias que acreditam no potencial de uma educação igualitária, emancipadora e
contextualizada aos distintos interesses dos povos tradicionais, que ao longo do nosso processo
histórico tiveram negado o acesso aos direitos humanos fundamentais e o acesso a políticas
públicas eficazes de inclusão social. Nesse sentido, o campo da educação, que se caracteriza como
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direito humano essencial, é um território a ser disputado, tendo em vista que o currículo escolar,
atravessado pelo discurso da colonialidade do poder, pretere as trajetórias e os saberes desses
povos em detrimento de uma epistemologia (epistemicídio) eurocentrada, branca e ocidental.
O projeto demarcou, ainda, a necessidade do fortalecimento das formações
continuadas, por parte das instituições fomentadoras do ensino, pesquisa e extensão, ofertadas aos
docentes que atuam nas escolas dos territórios quilombolas. Embora as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Quilombola apontem para a necessária e constante atualização desses
professores, que deve acontecer obrigatoriamente atrelada a sua prática e ao contexto das
comunidades onde estão inseridos, percebe-se ainda que esta dimensão precisa ser trabalhada de
forma mais sistemática. O déficit de formações continuadas para professores da educação
quilombola na Baixada Ocidental Maranhense ainda é muito alarmante, tendo em vista que esta é
uma região onde se encontram inúmeras comunidades reconhecidas ou em processo de
reconhecimento como remanescentes por parte da Fundação Palmares.
Mensurar o impacto que esta formação continuada causou ou causará, em longo prazo,
nas práticas educacionais dos docentes que participaram do projeto, ainda é um dado a ser
analisado de forma mais aprofundada, cabendo, portanto, um projeto de investigação com essa
finalidade específica. No entanto, o que se pode averiguar prematuramente é que a relação entre
as instituições de Educação Profissional e Tecnológica, através dos seus Núcleos de Estudos Afro-
brasileiros, das instituições de Educação Superior e dos movimentos sociais precisam ser
fortalecidas para que a proposição de cursos de aperfeiçoamento e de caráter formativo possam
alcançar um número bem mais amplo de territórios, escolas quilombolas e professores que nesses
espaços atuam.
São essas ações que possibilitam a construção de espaços e de reflexões que
evidenciem o papel das comunidades quilombolas enquanto agentes políticos, históricos e sociais.
Permitindo, portanto, que se trabalhe nos espaços escolares com temas que, diante da conjuntura
política desfavorável às lutas sociais, ainda nos são bem caros, a exemplo da diversidade religiosa
e sexual, da luta por políticas de ações afirmativas e do combate ao racismo estrutural e
institucionalizado em suas diferentes facetas. Dessa forma estaremos assumindo o nosso
compromisso com uma educação que, alinhada com as ideias defendidas por bell hooks (2017, p.
11), seja em sua essência revolucionária, de resistência e profundamente anticolonial.

REFERÊNCIAS

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_______. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.


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esquerda ocidentalizada. In: BERNADINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson;
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Educação, Secretaria de Educação Continuada, 2008.
Página 731 de 2230

PERCEPÇÕES DE BIBLIOTECÁRIAS EM RELAÇÃO À DISPONIBILIZAÇÃO DE


TECNOLOGIAS ASSISTIVAS AOS USUÁRIOS COM DEFICIÊNCIA SENSORIAL

PERCEPTIONS OF LIBRARIANS REGARDING THE AVAILABILITY OF


ASSISTIVE TECHNOLOGIES TO USERS WITH SENSORY DISABILITY
Joseana Costa Lemos
Mestranda em Educação. Universidade Federal do Maranhão.
Thelma Helena Costa Chahini
Doutora em Educação. Universidade Federal do Maranhão.
Eixo temático: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo:as tecnologias assistivas são recursos e serviços que proporcionam habilidades


funcionais às pessoas com deficiência, promovendo participação, autonomia, inclusão social e
educacional. O presente estudo teve por objetivo investigar como vinha sendo utilizadas as
tecnologias assistivas por usuários com deficiência visual e auditiva na Biblioteca Central da
Universidade Federal do Maranhão (UFMA) na percepção das bibliotecárias que trabalham
diretamente com esses usuários. Nesse sentido, desenvolveu-se uma pesquisa exploratória,
descritiva com abordagem qualitativa, por meio de revisão de literatura e entrevistas
semiestruturadas. Os participantes foram 3 bibliotecárias do setor de referência. Os dados foram
coletados por meio de entrevistas semiestruturada. Os resultados revelam que a situação atual da
Biblioteca Central da UFMA se encontra pouco favorável, visto a existência de falhas em relação
à acessibilidade plena. As bibliotecas universitárias precisam dispor de tecnologia assistiva
visando a democratização da informação, autonomia e promoção da inclusão social e educacional
às pessoas com deficiência.
Palavras-chave: Tecnologia assistiva. Biblioteca universitária. Usuários com deficiência.
Acessibilidade. Autonomia.

Abstract: assistive technologies are resources and services that provide functional skills to people
with disabilities, promoting participation, autonomy, social and educational inclusion. The present
study aimed to investigate how the assistive technologies had been used by users with visual
impairment and hearing in the Central Library of the Federal University of Maranhão (UFMA) on
perception of the librarians who work directly with these users. In this sense, developed an
exploratory, descriptive research with qualitative approach, through literature review and semi-
structured interviews. The participants were three librarians from referencing sector. The data
were collected through semi-structured interviews. The results show that the current situation of
the Central Library at UFMA is little favourable, due to the existence of flaws in relation to full
accessibility. The University libraries need to be equipped with assistive technology aimed at the
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democratization of the information, autonomy and promotion of social and educational inclusion
of the people with disabilities.
Keywords: Assistive technology. University library. Users with disabilities. Accessibility.
Autonomy.

1 INTRODUÇÃO

O conceito de biblioteca baseia-se na igualdade de acesso para todos, sem restrição de idade,
etnia, sexo, status social, etc. e na disponibilização aos usuários de todo tipo de conhecimento. Assim,
a biblioteca é um espaço atuante na qual o usuário deve usufruir de toda a sua potencialidade, pois,
além de servir como apoio no processo ensino-aprendizagem, pode contribuir para a formação de
cidadãos críticos e criativos.
Nesse sentido, a contribuição das bibliotecas na construção do conhecimento humano deve
acontecer de forma efetiva, local onde o conhecimento e as informações assumem destaque
central, pois a biblioteca faz, realmente, a diferença (ANDRADE, 2003).
Nesse sentido, a biblioteca universitária tem como papel primordial, oferecer o suporte ao
ensino, à pesquisa e à extensão com a precisão e a rapidez que o meio acadêmico exige. Portanto,
para atender as demandas de seus usuários, a biblioteca precisa se desenvolver junto com a
Universidade e contribuir para a democratização da informação e promover a inclusão social.
Podemos afirmar que a biblioteca e universidade são fenômenos indissociáveis, vasos
comunicantes, como causa e efeito. A biblioteca não pode ser melhor ou pior que a universidade
que a mantém. Por sua vez, o inverso também é verdadeiro, a universidade, consequentemente,
não é melhor ou pior que o sistema bibliotecário em que se alicerça (MIRANDA, 1980 apud
SANTOS, 2015). Portanto, as bibliotecas precisam ser acessíveis, para que possam atender as
necessidades informacionais a todos os usuários sem ou com deficiência.
A realização de atividades simples como pegar um livro na estante ou folheá-lo pode,
dependendo de o tipo de deficiência, afugentar usuários haja vista o quão penoso isso pode ser.
Sendo assim, o acesso a biblioteca universitária é fundamental para a promoção da democratização
da informação e não pode se restringir somente para alguns, mas, deve abranger a população em
sua totalidade, respeitando as diferenças e peculiaridade de cada indivíduo.
As bibliotecas são exemplos de espaços em que o direito e a acessibilidade, infelizmente,
ainda não são uma realidade para todos os usuários. No caso específico, alunos com deficiência
enfrentam inúmeras dificuldades no seu cotidiano acadêmico para desempenhar atividades
simples como realizar uma pesquisa na biblioteca da universidade.
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No contexto, as tecnologias assistivas são imprescindíveis para dar suporte no processo da


pesquisa aos usuários com algum tipo de deficiência, possibilitando o acesso à informação com
autonomia, tendo como parâmetro a equiparação de oportunidades.
Sendo assim, a questão norteadora deste estudo questiona: como vem sendo utilizada as
tecnologias assistivas pelos usuários com deficiência visual e auditiva no contexto da Biblioteca
Central do Núcleo Integrado de Biblioteca (NIB) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
na percepção das bibliotecárias?
Nesta perspectiva, desenvolveu-se uma pesquisa exploratória, descritiva com abordagem
qualitativa, com objetivos de investigar se as tecnologias assistivas da Biblioteca Central do NIB
atendem as necessidades de pesquisa do usuário com deficiência auditiva e visual e se garantem
acessibilidade plena e autonomia. Visto que, investir nesse setor representa diferencial de grande
importância à formação acadêmica e profissional da pessoa com deficiência

2 BIBLIOTECAS UNIVERSITÁRIAS E ACESSIBILIDADE PLENA

A biblioteca universitária tem como função de prover infraestrutura bibliográfica,


documentária e informacional para apoiar as atividades da universidade, centrando seus objetivos
nas necessidades dos seus usuários por meio da prestação de serviços, proporcionando acesso à
informação, à leitura e a outros recursos disponíveis que são instrumentos da sociedade. Deve
servir de apoio ao programa de ensino, pesquisa e extensão da universidade, atendendo o perfil de
cada usuário, garantindo espaço acessível.
O termo “acessibilidade” teve origem no início dos anos 60, quando surge na área da
arquitetura, tanto nos Estados Unidos da América (EUA) como na Europa, o conceito de projetos
livres de barreiras, focado na deficiência física de pessoas usuárias de cadeiras de rodas
(MAZZONI, 2001).
No Brasil, as questões de acessibilidade tornaram-se mais visíveis a partir da década de
80, quando se iniciou o movimento organizado por pessoas com deficiência (ARANHA, 2005).
Com o desenvolvimento das tecnologias da informação o conceito de acessibilidade
evoluiu. Atualmente, o termo utilizado é desenho para todos ou desenho universal. De acordo com
a Norma Brasileira Regulamentadora (NBR) 9050, desenho universal é aquele “que visa atender
à maior gama de variações possíveis das características antropométricas e sensoriais da
população” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2004, p. 3). Busca
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alcançar a diversidade humana de forma a respeitar as diferenças existentes entre as pessoas e


garantir acessibilidade a todo e qualquer indivíduo.
O Desenho Universal é um conceito que, aplicado ao ambiente, visa assegurar que os
espaços, as estruturas, produtos e serviços possam ser utilizados por todas as pessoas
independentemente da sua idade, condições físicas e econômicas (FREGOLENTE, 2008).
Portanto, os princípios Desenho Universal são: igualitário, abrangente, adaptável, conhecível,
seguro, sem esforço e óbvio, a premissa é facilitar a vida de diversas pessoas, entre elas das pessoas
com deficiência.
Sendo assim, enfocar a dimensão psicossocial da acessibilidade em Bibliotecas
Universitárias significa reconhecer o papel que as estruturas acessíveis desempenham na vida do
indivíduo dentro e fora da universidade, e isso inclui sentimentos que podem tanto fortalecer
quanto enfraquecer a estrutura emocional da pessoa, resultando em posturas adequadas ou não ao
futuro profissional, dela.
Cabe aos bibliotecários a busca constante por práticas inclusivas em prol das pessoas com
deficiência. Uma biblioteca acessível e inclusiva é aquela que trabalha além da perspectiva de
acesso ao acervo, mas também o próprio espaço físico dentro da organização e visa ter condições
de atendimento de forma adequada, sendo assim esses espaços devem ser valorizados e também
o profissional que neles atuam; o bibliotecário é o responsável principal para que a biblioteca seja
de qualidade, tenha um bom atendimento e acesso a todos os seus possíveis usuários.
Vale ressaltar que em 1931, o bibliotecário e matemático Ranganathan já se preocupava
em atender qualquer tipo de usuário, no seu livro intitulado “As Cinco Leis da Biblioteconomia”,
ao tratar sobre a segunda lei – “para cada leitor seu livro” –, o objetivo é levar a uma reflexão:
todos os indivíduos tem o direito igual de acesso à informação, ou seja, as mesmas oportunidades,
“[...] No entanto a Segunda Lei tratará a todos como iguais e oferecerá a cada um o seu livro.
Obedecerá escrupulosamente ao princípio da igualdade de oportunidades em relação aos livros,
ao ensino e ao entretenimento”. (RANGANATHAN, 2009, p. 92).
Nessa perspectiva, destaca-se o usuário cego que para ter acesso ao seu livro impresso
deverá ser mediante a escrita em Braile, além de todas as informações necessárias para que esse
usuário possa frequentar a biblioteca com segurança e autonomia como por exemplo: piso tátil,
computadores adaptados, estantes sinalizadas e etc.
Portanto, o bibliotecário deverá conhecer as singularidades de cada usuário para
proporcionar a informação de forma precisa e coerente, enfatiza-se que não basta tornar o
ambiente acessível, mas é importante que as barreiras do próprio preconceito devem ser rompidas
para que o bibliotecário se torne uma pessoa acessível e inclusiva.
Página 735 de 2230

Para muitas pessoas, é na Universidade que acontece a formação inicial em busca de uma
qualificação profissional, e é neste contexto que as instituições de educação superior assumem um
papel relevante na formação profissional de seu estudante, devendo, para tanto, se encontrar
estruturada arquitetonicamente, acessível, com recursos humanos capacitados e tecnologia
adequada e assistiva aos discentes com necessidades educacionais diferenciadas.
No contexto, tanto a universidade, enquanto instituição de ensino, quanto a comunidade
acadêmica, devem assumir seus papéis enquanto protagonistas do e no processo ensino-
aprendizagem. Em relação à pessoa com deficiência, deve-se ter como meta a busca pela postura
de independência funcional, construída a partir do reconhecimento do próprio corpo. É com base
na independência individual, que envolve o reconhecer-se, que se vai buscar outros sentimentos
benéficos que irão colaborar com a formação do ser, são eles: a autonomia, liberdade, dignidade,
auto estima, auto realização, o sentir-se capaz de realizar e conquistar novas perspectivas e
horizontes. Envolve o acreditar em si mesmo.
Necessário esclarecer que, o conceito de autonomia empregado, envolve a independência
para o fazer e nesse contexto deve significar o fazer das atividades acadêmicas que envolve o ir e
vir da universidade, assistir aula com os demais colegas de turma, participar de todas atividades
que envolver o fazer universidade, dentre eles, fazer uso de uma biblioteca com eficácia. Assim,
se o estudante se sente íntegro para realizar as tarefas que o compromisso universitário exige,
certamente, chegará ao mundo do trabalho competitivo sentindo-se capaz de realizar aquilo para
qual estudou e se graduou.
Enquanto estrutura de ensino público, a Universidade deve incorporar medidas que visem
à redução a zero, preferencialmente, das barreiras arquitetônicas e atitudinais que se colocam a
frente da pessoa com deficiência. Este constitui um passo importante para a equiparação de
oportunidades e direciona a pessoa com deficiência para a conquista da autonomia, da
independência, autoestima e autorrealização.
Paralelo a quebra de barreiras, o investimento em tecnologia assistiva, entendida como
“[...] toda e qualquer ferramenta ou recurso utilizado com a finalidade de proporcionar uma maior
independência e autonomia à pessoa portadora de deficiência” (DAMASCENO; GALVÃO
FILHO, 2002, p. 1), associada aos preceitos do desenho universal sugerem uma alternativa
acessível que deve ser integrada aos projetos de biblioteca.
A aquisição de equipamentos, adaptação de estruturas socioespaciais, o envolvimento de
equipes multiprofissionais (arquitetos, engenheiros, pedagogos, psicólogos, bibliotecário,
tecnólogos, profissionais da informática, entre outros) também é de suma importância para que
seja alcançada uma mudança estruturalmente física, cultural e humana que repassada às gerações
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futuras não precise priorizar ou chamar a atenção para a acessibilidade, mas que esta já esteja
presente permanentemente nas ações políticas, econômicas, sociais e ambientais.

3 TECNOLOGIA ASSISTIVA NA BIBLIOTECA CENTRAL DA UFMA

As tecnologias assistivas podem ser definidas não somente como objetos, recursos,
equipamentos ou dispositivos para execução de tarefas e sim, tudo o que o homem criou e cria
para ampliar nossas capacidades físicas, mentais, a comunicação entre as pessoas, para dar sentido
à vida e ao mundo. Mesmo a comunicação escrita, o papel, a caneta, a criação do alfabeto, “tudo
isso é tecnologia. E tudo isso esteve sempre muito próximo do ser humano e de suas necessidades”
(GALVÃO FILHO, 2009, p. 38).
[...] as tecnologias estão presentes em cada uma das pegadas que o ser humano deixou sobre
a terra, ao longo de toda a sua história. Desde um simples pedaço de pau que tenha servido de
apoio, de bengala, para um homem no tempo das cavernas, por exemplo, até as modernas
próteses de fibra de carbono que permitem, hoje, que um atleta com amputação de ambas as
pernas possa competir em uma Olimpíada, disputando corridas com outros atletas sem
nenhuma deficiência. [...]. (LÉVY, 1999 apud GALVÃO FILHO, 2009, p. 38).
As tecnologias assistivas são todos os aparelhos e recursos utilizados afim de tornar mais
simples a vida das pessoas que necessitam de atendimento especial devido às suas necessidades
específicas.
Para as bibliotecas as tecnologias assistivas podem ajudar a torná-las inclusivas,
possibilitando o acesso à informação, compreendendo as necessidades e limitações de cada
usuário, a fim de que estes sejam mais independentes nos exercícios de suas atividades
(NASCIMENTO, 2011). “Desenvolver recursos de acessibilidade seria uma maneira concreta de
neutralizar as barreiras e inserir esse indivíduo nos ambientes ricos para a aprendizagem,
proporcionados pela cultura” (DAMASCENO; GALVÃO FILHO, 2002, p. 1).
Na Biblioteca Universitária é de extrema importância saber que essas tecnologias
assistivas ajudam os usuários com deficiência a terem o acesso à informação, ao conhecimento e
a comunicação, salientando que a importância do profissional bibliotecário é indispensável, já que
ele é o mediador nesse processo de inclusão social, dando um suporte aos seus usuários com
deficiência que vão se tornar independentes em suas vidas.
A Biblioteca Central da UFMA define que tem como expectativa de oferecer um
atendimento dinâmico e moderno aos seus usuários, com ênfase na acessibilidade e em serviços
que privilegiem itens como rapidez e autonomia, oferecendo terminais de autoatendimento para
empréstimo, devolução e renovação de títulos, por exemplo (UNIVERSIDADE FEDERAL DO
MARANHÃO, [2019?]). As tecnologias assistivas podem ser importantes para a eficiência de um
atendimento que prioriza a autonomia dos usuários.
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Atualmente, a Biblioteca Central tem duas salas de acessibilidade, uma é direcionada para
leitura individual a outra sala tem algumas tecnologias assistivas pra auxiliar na pesquisa como:
lupa eletrônica, dois computadores com ferramentas de ledores e libras, também tem um bolsista
que faz o serviço de ledor aos usuários com deficiência visual.
Nessa perspectiva, é interessante investigar como vem sendo utilizado as tecnologias
assistivas pelos usuários com deficiência visual e auditiva no contexto da NIB da UFMA na
percepção das bibliotecárias que trabalham diretamente com esses usuários.

4 RESULTADO, ANÁLISE E DISCUSSÃO

Nesta perspectiva, apresentam-se as análises e discussões dos dados de como os usuários


com deficiência visual e auditiva utilizam as tecnologias assistivas na biblioteca de acordo com a
percepção das bibliotecárias. As bibliotecárias estão identificadas como P1, P2 e P3. Dentre as
participantes, P1 tem 42 anos e trabalha há 6 anos na biblioteca central; P2 tem 41 anos e 12 anos
de serviços; P3 tem 42 anos e tempo de serviço de 2 anos e 6 meses.
No quadro 1 são apresentados os relatos em relação à primeira questão: Quais são as
tecnologias assistivas que se encontram a disposição dos usuários com deficiência visual e
auditiva na biblioteca da UFMA?

Quadro 1 - Tecnologias assistias disponibilizadas aos usuários com deficiência visual e auditiva

Nós temos DOSVOX que é um programa Universidade Federal do Rio de Janeiro


(UFRJ), ele auxilia de uma forma mecanizada em vários tipos de vozes, o VLibras,
tem a lupa eletrônica, também a lupa portátil e tem o serviço ledor humano que é um
P1
serviço novo realizado pelos bolsistas e tem muita gente que não sabe sobre esse
serviço. Fazemos divulgação para que o usuário com deficiente visual possa vir utilizar
e ao mesmo tempo fazemos o convite para quem quiser ser voluntariado.
P2 VLibras NVDA e a lupa eletrônica.
Temos DOSVOX, VLibras, lupa eletrônica, lupa portátil e o serviço ledor humano
P3
que é realizado pelos bolsistas e fazemos a divulgação para quem quiser ser voluntário.
Fonte: Dados da pesquisa realizada pelas autoras.

Diante dos dados, nota-se que o quantitativo de tecnologias assistivas existentes na Biblioteca
Central ainda são poucas para atender, por exemplo 146 estudantes ingresso em 2019 com deficiência
visual e auditiva da UFMA, provavelmente, usuários da biblioteca. Portanto, aquisição de um
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maior quantitativo de tecnologias assistivas possibilitará o acesso de mais usuários para realização
de pesquisa na biblioteca. Nesse sentido, os estudos de Santana, Pereira e Santana (2012, p. 1)
enfatizam que a utilização de tecnologia assistiva na educação “[...] favorece as pessoas com
deficiência, pois, facilita a obtenção de informações, a autonomia e independência na execução
de tarefas, além do resgate das suas potencialidades e motivações para aprender”.
No quadro 2 são apresentados os relatos referentes ao segundo questionamento: Como as
tecnologias assistivas estão disponibilizadas aos usuários com deficiência visual e auditiva?

Quadro 2 - Disponibilização das tecnologias assistivas aos usuários com deficiência visual e
auditiva

Aqui é na sala de acessibilidade com os programas disponibilizados e nós recrutamos


P1
bolsistas que são exclusivos para dar apoio aos alunos com deficiência.
Ficam na sala de acessibilidade e temos mais para alunos com deficiência visual e
P2 também os surdos, mas são poucos e quando não sabemos os sinais eles escrevem no
papel
Elas estão na sala de acessibilidade e são mais direcionadas para alunos com
P3
deficiência visual
Fonte: Dados da pesquisa realizada pelas autoras.

Diante do exposto, percebe-se que as tecnologias assistivas estão dispostas aos usuários
em uma única sala na biblioteca central e que essas são mais voltadas para usuários com
deficiência visual.
No contexto, ressalta-se, que os serviços de uma biblioteca se baseiam na igualdade de
acesso para todos, ou seja, uma “[...] biblioteca acessível é a que disponibiliza a informação em
qualquer suporte e provê acesso a todas as pessoas que dela necessitam, ou seja, segue os
princípios do desenho universal” (GONZALES, 2002 apud GONÇALVES, 2012, p. 2).
No quadro 3 são apresentados os dados obtidos da terceira questão: Qual a frequência
que os usuários com deficiência visual e auditiva utilizam as tecnologias assistivas na
biblioteca central da UFMA?

Quadro 3 - Frequência dos usuários com deficiência visual e auditiva no uso das tecnologias
assistivas na biblioteca central da UFMA
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Nós temos um público cativo são os alunos que sabem sobre os serviços, então eles
estão aqui toda semana , mas se a gente foi ver não é um número muito variado de
alunos, geralmente são os mesmos alunos e são mais os que tem a deficiência com
P1
baixa visão e também uma surda que sempre vem acompanhada de uma interprete, ela
vem duas vezes na semana e passa o dia inteiro aqui e ela também utiliza o acervo da
biblioteca.
P2 Os alunos com deficiência visual frequentam mais do que o auditivo
Temos uma frequência boa de alunos que conhecem os serviços, mas se fomos analisar
o quantitativo geral que existem na UFMA de estudantes com deficiência a frequência
P3
é baixa, é necessário um estudo de usuário para saber porque a maioria não frequenta
a biblioteca
Fonte: Dados da pesquisa realizada pelas autoras.

Diante dos dados, percebe-se que a frequência na biblioteca central é mais de usuários com
baixa visão e que apenas uma usuária surda frequenta a biblioteca, acompanhada por uma
interprete de libras. De acordo com as bibliotecárias, apesar de haver, na UFMA, pessoas cegas,
essas não costumam frequentar o referido local. Nesse sentido, se faz importante ressaltar que as
Tecnologias Assistivas podem ser consideradas como Tecnologias criadas para gerar
acessibilidade e inclusão a todo tipo de indivíduo (FONSECA; PINTO, 2010).
No quadro 4 estão os relatos das participantes referentes a quarta questão: Em sua
percepção, as tecnologias assistivas existentes na Biblioteca Central da UFMA contemplam
as necessidades especificas dos usuários com deficiência visual e auditiva?

Quadro 4 - Tecnologias assistivas existentes na Biblioteca Central da UFMA em relação às


necessidades especificas dos usuários com deficiência visual e auditiva

Eu acho que deveria ampliar mais porque temos só esses programas as vezes não
funciona, acho que uns programas mais modernos para contemplar de forma mais
P1
efetiva, mas pelo ou menos já começamos e está sendo frequentado por alguns
usuários. A minha esperança é que melhore.
Elas contemplam mais para os alunos com deficiência visual os auditivos não. Também
P2 temos os livros em Braile, mas não são utilizados. Os alunos com deficiência auditiva
frequentam mais o acervo do que a sala que tem as tecnologias assistivas.
Contemplam mais para usuários com baixa visão, os usuários cegos eu nunca atendi
P3 nenhum e nem tenho conhecimento de frequência de alguma pessoa cega aqui na
biblioteca. Sobre o usuário com deficiência auditiva é necessário um curso de libras
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especifico com linguagem técnicas da biblioteconomia para evitar o entrave de


comunicação com o usuário que tem essa deficiência, pois já ocorreu um caso de
estudante de letras que é surda ter saído insatisfeita porque não entendemos o que
ela queria dizer e ela nunca mais veio aqui.
Fonte: Dados da pesquisa realizada pelas autoras.

De acordo com os relatos, nota-se que as tecnologias assistivas contemplam mais os


usuários com baixa visão. Em relação aos usuários com deficiência auditiva e/ou surdos, há
barreiras de comunicação que dificultam o atendimento e, consequentemente, o acesso para que
esses usuários possam utilizar as tecnologias assistivas. Nesse sentido, registram-se os estudos de
Pereira, Chahini e Bottentuit Júnior (2018, p. 12), ao enfatizarem que:
As tecnologias assistivas permitem o desenvolvimento das habilidades e potencialidades
de pessoas com deficiência, trazendo consistência ao processo formativo e valorizando a
diversidade humana, bem como fortalecendo o processo de inclusão de pessoas com
deficiência nas instituições de ensino.
No quadro 5, encontram-se os relatos referentes à quinta questão: Na sua opinião, o que
pode vir a melhorar o acesso às tecnologias assistivas aos usuários com deficiência visual e
auditiva na biblioteca da UFMA?

Quadro 5 - Melhoria do acesso às tecnologias assistivas aos usuários com deficiência visual e
auditiva na biblioteca da UFMA

Os programas deveriam ser mais aperfeiçoados até mesmo o acervo deveria ter livros
por exemplo em formato braile. Nós temos de literatura geral, mas não temos
específicos das áreas. Da medicina não temos nada, direito não temos nada, biologia,
dos cursos de graduação em si não temos nada. O que temos é mais de literatura. E
P1
não temos impressora, poderia ter para ajudar na pesquisa. Tem um aluno que tem
baixa visão que passa muito tempo com o livro as vezes paga multa porque ele leva
para fazer a transcrição e eu acho que ele leva para o núcleo de acessibilidade então
se aqui tivesse seria mais rápido a pesquisa desse usuário.
Mais equipamentos e programas para que a pesquisa realizada por esses usuários torne
P2
mais eficiente.
Tecnologias mais modernas e treinamento para nós bibliotecários para atender de
P3
forma mais eficiente os usuários com qualquer tipo de deficiência
Fonte: Dados da pesquisa realizada pelas autoras.
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Conforme verifica-se, as bibliotecárias relatam que são necessárias mais tecnologias


assistivas para melhorar os serviços da biblioteca e, também, treinamentos que possam contribuir
para um atendimento eficiente aos usuários com vários tipos de deficiência. No contexto, cita-se
Madeiros et al. (2015, p. 8), ao enfatizarem que:
O profissional disseminador da informação tem como dever então assegurar o acesso à
informação de forma a atender todos os indivíduos, sendo eles ou não portadora de
necessidades especiais, satisfatoriamente; portanto devem ser desenvolvidos durante sua
capacitação profissional habilidades e conhecimentos específicos na área das tecnologias
assistivas, pois precisaram aperfeiçoar maneiras de transmitir exatamente o que o usuário
buscar ao pedir auxílio de um profissional.
No quadro 6, descrevem-se os relatos correspondentes ao sexto e último questionamento:
Para você, qual a relevância das tecnologias assistivas aos usuários com deficiência visual e
auditiva?

Quadro 6 - Relevância das tecnologias assistivas aos usuários com deficiência visual e auditiva

Pra mim isso deveria ser o primeiro passo de uma biblioteca porque temos uma
biblioteca aberta para que o usuário tenha autonomia de fazer a pesquisa então com
P1 as tecnologias assistivas facilitaria para que usuário com deficiência também tenha
essa autonomia para que explore todos os serviços da biblioteca para que ele saia da
universidade com uma formação completa
Elas são de grande importância principalmente para o aluno com deficiência visual
P2
que não tem como fazer a leitura dos documentos e livros do acervo
São extremamente importantes, pois facilita muito na pesquisa desses usuários e eles
P3
tem autonomia nos seus estudos
Fonte: Dados da pesquisa realizada pelas autoras.

Na referida questão, as bibliotecárias são unanimes ao enfatizar a relevância das


tecnologias assistivas aos usuários com deficiência na biblioteca central da UFMA, pois essas
possibilitam o acesso e a autonomia no decorrer das pesquisas. Sendo assim, cita-se os estudos de
Pereira, Chahini e Bottentuit Júnior (2018, p. 2), por esclarecerem que: “O uso dos recursos de
tecnologia assistiva constitui ferramentas fundamentais para que as pessoas com deficiência não
apenas ingressem na educação superior, mas tenham condições de aprendizagem e participação
no contexto universitário”.
Portanto, a biblioteca universitária, ao disponibilizar o acesso à informação por meio dos
recursos de tecnologias assistivas, contribui para que o usuário, independentemente da sua
condição social ou especificidade, adquira conhecimentos para poder exercer seus direitos de
cidadão.
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5 CONCLUSÃO

A Biblioteca Central da UFMA, apesar de disponibilizar tecnologias assistivas aos


usuários com deficiência, essas ainda são insuficientes aos usuários com deficiência visual e
auditiva. Nesse sentido, não atende as especificações dos padrões de qualidade estabelecidos pela
NBR 9050/2004, visto que necessita reestruturar seu espaço físico e adquirir recursos matérias e
humanos a fim de proporcionar acessibilidade plena aos usuários com deficiência, como por
exemplo, piso tátil, sinalizações em Braile e letras ampliadas, treinamentos de Libras para os
bibliotecários com especificações das linguagens biblioteconômicas.
As bibliotecárias reconhecem que ainda há muito a ser melhorado na Biblioteca Central e
que se faz urgente um levantamento em relação às ausências de usuários com deficiência, visando
identificar a causa dessa baixa frequência e o que falta para que esta se torne um espaço acessível
a todos os seus usuários.
Diante dos fatos, enfatiza-se que cabem aos pesquisadores da tecnologia, arquitetura,
informática, engenharia e os profissionais da Biblioteca Universitária da UFMA, buscar soluções
inteligentes que visem a acessibilidade plena aos usuários com ou sem deficiência.
Espera-se que este estudo traga visibilidade à promoção da acessibilidade aos usuários com
deficiência visual e auditiva nas Bibliotecas da UFMA e que a referida Universidade busque
parcerias com arquitetos, designers, analista de sistemas e com toda a comunidade acadêmica,
para que esses locais se tornem espaços de democratização da informação, autonomia e promoção
da inclusão social e educacional à todas pessoas com deficiência e/ou com necessidades especiais.

REFERÊNCIAS

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al. A biblioteca escolar: temas para uma prática pedagógica. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
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Acesso em: 15 junho. 2019.
Página 745 de 2230

PERFIL DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA DOS DOCENTES DO PROGRAMA DE PÓS-


GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE (PGCULT)

PROFILE OF SCIENTIFIC PRODUCTION OF GRADUATE PROGRAM TEACHERS


IN CULTURE AND SOCIETY (PGCult)

Cláudia Maria Pinho de Abreu Pecegueiro,


Doutora em Ciências da Educação, UFMA;
Larissa Silva Cordeiro,
Mestranda em Ciência da Informação, UFRGS;
Eixo temático 1: Arte, Tecnologia e Educação.

Resumo:o trabalho buscou promover uma análise interdisciplinar no campo da produção e


comunicação científica, nas perspectivas da Estudos Métricos da Informação (EMI), relatando sua
origem e delimitação. Explana os fundamentos acerca da produtividade, a partir da Lei de
Produtividade de Lotka, além de discutir as intercorrências e tendências temáticas nas
investigações interdisciplinares na ótica de Zipf. Apresenta a partir de indicadores bibliométricos
um estudo sobre a produção científica dos docentes permanentes no Programa de Pós-Graduação
em Cultura e Sociedade – PPGCult, onde foi exposto o perfil dos pesquisadores, a partir do vínculo
institucional, área de concentração, total de orientações concluídas no programa, índice H
calculado pelo Google Scholar, periódicos de publicação (e seus indicadores de impacto), tipos de
colaboração, tempo de obtenção de doutorado, além do mapeamento completo da produção
científica a partir do currículo do pesquisador cadastrado na Plataforma Lattes e a identificação
dos formatos das fontes mais utilizados por esses docentes para publicação de suas pesquisa.
Conclui que os docentes dos PGCult concentram suas produções bibliográficas em maior número
em apresentações de trabalhos em eventos científicos (29%) e em artigos publicados em
periódicos científicos (28%), ficando a publicação de livros (7%) e resumos em eventos científicos
(1%) com pouca representatividade.
Palavras-chaves: Estudos Métricos da Informação. Produção Científica Docente. Programa de
Pós-Graduação em Cultura e Sociedade.

Abstract:The work sought to promote an interdisciplinary analysis in the field of scientific


production and communication, from the perspective of Metric Information Studies (EMI),
reporting its origin and delimitation. Explains the fundamentals about productivity, based on
Lotka's Productivity Law, in addition to discussing the complications and thematic trends in
interdisciplinary investigations from the perspective of Zipf. It presents, based on bibliometric
indicators, a study on the scientific production of permanent professors in Programa de Pós-
Graduação em Cultura e Sociedade - PPGCult, where the profile of the researchers was exposed,
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based on the institutional link, area of concentration, total of completed guidelines in the program,
index H calculated by Google Scholar, publication journals (and their impact indicators), types of
collaboration, time to obtain a doctorate, in addition to the complete mapping of scientific
production from the researcher's curriculum registered in the Lattes Platform and the identification
of the formats of the sources most used by these professors to publish their research. It concludes
that the PGCult professors concentrate their bibliographic productions in greater number in
presentations of works in scientific events (29%) and in articles published in scientific journals
(28%), with the publication of books (7%) and abstracts in scientific events (1%) with little
representation.
Keywords: Metric Information Studies. Scientific Teaching Production. Programa de Pós-
Graduação em Cultura e Sociedade.

1 INTRODUÇÃO
O movimento comunicacional é a troca de informações e saberes entre seres humanos,
durante muito tempo se deu face a face, com o passar dos anos foram surgindo outras tecnologias
mediadas por papéis, tintas, fios, ondas eletrônicas etc. (THOMPSON, 1998). A produção dos
registros do conhecimento dá origem aos documentos manuscritos, administrativos, selos, mapas,
entre outros, registrando a cultura humana de uma época. No caso da comunicação científica esta
é antecedida pelos canais de comunicação para dar voz às suas descobertas e propagar seu
desenvolvimento.
Entendida como comunicação de resultados de pesquisas à comunidade científica e,
também, às pessoas interessadas, a comunicação científica traz, na sua essência, a “aprovação”
por seus pares quando é avaliado para publicação, ou, no momento que passa a ser, depois de
publicado, referência a novas pesquisas (MUELLER, 2012). Essa difusão facilita a criação e a
disseminação de novos conhecimentos (CASALVARA, 2011).
Desse modo, a comunicação científica é um elemento indispensável ao
desenvolvimento da ciência, nesse sentido, Meadows (1999) relata que ela configura o coração da
ciência, tão relevante quanto a própria pesquisa. De forma mais contundente, Ziman (1979, p. 23)
comenta que "[...] a literatura sobre determinado assunto é tão importante quanto o trabalho de
pesquisa a que ele dá origem.". Na perspectiva de valorização das trocas de informação para o
desenvolvimento científico, a comunicação científica “[...] gera o conhecimento científico, que
corresponde, por sua vez, a um ciclo contínuo de transmissão e recepção de dados [...]”
(PECEGUEIRO, 2011, p. 23).
O processo de geração do conhecimento científico, ou seja, a produção científica,
demanda do pesquisador grande esforço na busca dos saberes anteriormente produzidos
Página 747 de 2230

(ALBAGLI, 1996). Estes, por sua vez, irão subsidiar além da elaboração do seu próprio
conhecimento a de tantos outros estudos. O discurso interno acadêmico, registrado, por exemplo,
em monografias, teses, dissertações ou artigos científicos, tem seus reflexos em debates sociais,
quando ultrapassam os muros das universidades em apresentações de eventos científicos ou nas
discussões sociais.
Nesse sentido, os canais de comunicação científica possuem o intuito de divulgar a
produção científica tornando-as públicas, visto que a “[...] realização de pesquisas e a
comunicação de seus resultados são atividades inseparáveis.” (MEADOWS, 1999, p. 161). Por
isso, há de se considerar por quais canais esse discurso é difundido, de que modo e em quais meios
os estudos dos pesquisadores estão sendo publicizados, uma vez que estes são considerados o elo
entre os cientistas e seu público.
Existem múltiplos canais de comunicação científica, que possibilita a identificação
dos modelos de comportamento de pesquisadores na produção e disseminação do conhecimento,
de acordo com Meadows (1999) podem ser classificados conforme o tipo de publicação, a
exemplo, dos periódicos, livros, capítulos de livros, congressos etc., no âmbito nacional e
internacional. Mas, independentemente da categorização, que não alcança unanimidade na
literatura científica consultada, os canais de comunicação científica são relevantes para o
entendimento do percurso científico.
Para dimensionar esse percurso, medir a ciência, prática usual desde o início do século
XX, é cada vez mais necessário, considerando o crescimento e discussões que são propostas pelas
diversas áreas do conhecimento. As métricas são fundamentais quando auxiliam pesquisadores,
Instituições de Ensino Superior (IES), órgãos governamentais e multinacionais nas tomadas de
decisão, para o direcionamento dos recursos destinado à pesquisa.
A bibliometria considerada, um conjunto de metodologias e técnicas estatísticas, para
medição da comunicação escrita, em especial, da produção técnico-científica, propicia essa
prática, uma vez que, na visão Oliveira e Gracio (2013) permite uma abordagem que oferece um
diagnóstico confiável da produção científica de uma área, no seu tempo e espaço. Assim, a
bibliometria é considera “[...] um conjunto de métodos e técnicas quantitativas e estatísticas que
propicia mensurar a produção científica de um determinado escopo, seja ele um grupo de pesquisa,
um departamento, uma instituição ou um país [...].” (PINHEIRO; CAETANO; OLIVEIRA, 2019,
p. 17) que possibilita mapear a produção científica no que se refere as tendências de investigação,
linhas de pesquisa, autores mais produtivos, tipos de publicação mais utilizado dentre outros.
Ligada com o desenvolvimento político e econômico dos países a dimensão da
produção científica vem sendo estudada, por ser considerada o registro das conquistas realizadas
pelo avanço técnico-científico. Segundo Bassoli (2017, p. 17), os indicadores bibliométricos
Página 748 de 2230

permitem “[...] a elaboração de gráficos, tabelas e matrizes que facilitam a avaliação de


pesquisadores, assuntos de pesquisa, instituições e outras variáveis [...]”.
Nessa mesma linha, Oliveira e Gracio (2013) comentam que os indicadores
bibliométricos evidenciam pesquisadores, temáticas, instituições, áreas do conhecimento, países
mais produtivos, assim como frente de pesquisa de um campo de conhecimento, redes de
colaboração e citação entre cientistas, grupos, instituições ou países.
Diante do exposto, utilizando as técnicas bibliométricas esta pesquisa objetiva analisar
a produção científica dos docentes permanentes no Programa de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade – PGCult, entre os anos de 2016, quando iniciou o Programa até o momento, 2019.
Assim, o estudo apresenta o panorama da produção científica dos docentes
permanentes no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – PPGCult, onde foi
evidenciado o perfil dos pesquisadores, a partir do vínculo institucional, área de concentração,
total de orientações concluídas no programa, índice H calculado pelo Google Scholar, periódicos
de publicação (e seus indicadores de impacto), tipos de colaboração, tempo de obtenção de
doutorado, além do mapeamento completo da produção bibliográfica a partir do currículo do
pesquisador cadastrado na Plataforma Lattes, assim como a identificação dos formatos das fontes
mais utilizadas.

2 A BIBLIOMETRIA E OS ESTUDOS MÉTRICOS DA INFORMAÇÃO


A bibliometria, etimologicamente, deriva da junção das palavras gregas biblos (livro)
e metria (medida), significando, em primeira instância, a ‘medida dos livros’. Mostafa e Máximo
(2003, p. 97) descrevem a bibliometria como sendo “[...] uma área da ciência da informação que
de grosso modo ‘mede’ a ciência [...].” Ela faz parte de um campo de estudo mais abrangente da
infometria, que é dedicada aos aspectos quantitativos da produção, disseminação e uso da
informação registrada em fontes bibliográficas e patentes, cujo foco se volta para os setores
científicos e tecnológicos (CUNHA, 2010).
No Brasil, os estudos bibliométricos apareceram por volta de 1970, data de
implantação do curso de Mestrado em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de
Bibliografia e Documentação (IBBD), o qual, partir de 1976, passou a se chamar Instituto
Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), por meio da disciplina
“Processamento de Dados na Documentação”, ministrada pelo professor Tefko Saracevic
(ALVARADO, 1984).
As técnicas bibliométricas servem para avaliar a produção científica independente do
suporte, sendo ele eletrônico ou impresso (AMORIM, 2012). Por isso, ao longo dos anos, as
Página 749 de 2230

análises bibliométricas se firmam como fonte confiável de mensuração e uma das técnicas mais
utilizadas e adequadas para estudos qualitativos e quantitativos.
Desde sua origem até os dias de hoje, a bibliometria não só recebeu outras
denominações, como também foi ampliando suas aplicações nas diversas áreas do conhecimento,
sempre com seu objeto de estudo focado na produção científica escrita. Porém, esse foco não está
somente em livros, conforme a origem do seu termo remete, mas também em todos os âmbitos da
ciência, segundo a definição de Mostafa e Máximo (2003).
O termo bibliometria foi usado pela primeira vez em 1934 por Paul Otlet, que definia
bibliometria como sendo “[...] a parte definida da Bibliografia que se ocupa da medida ou da
quantidade aplicada ao livro [...]” (OTLET, 1986, p. 20). Otlet (1934) considerava que todos os
elementos bibliográficos seriam passíveis de mensuração, aludindo, assim, a bibliometria como a
aritmética ou matemática bibliológica.
Todavia, antes de Otlet, F. J. Cole e N. B. Eales, em 1917, utilizaram o termo
‘bibliografia estatística’ ao analisarem, estatisticamente, uma bibliografia de Anatomia
Comparada (FONSECA, 1986). Cronologicamente, Wyndham Hulme também utilizou esse termo
anteriormente à Otlet, no ano de 1922, em uma conferência na Universidade de Cambridge
(GARFIELD, 1986).
Para Costa e Vanz (2012, p. 98), a bibliometria “[...] auxilia os pesquisadores na
medida em que se presta a avaliar quantitativamente diversos aspectos da produção científica, não
dedutíveis de maneira frívola.” Por meio das técnicas quantitativas de mensuração é possível
traçar o perfil do mundo científico. Nesse sentido, na concepção de Araújo e Alvarenga (2007), a
bibliometria, enquanto área de estudo da Ciência da Informação, tem um papel relevante na análise
da produção científica de um país, uma vez que seus indicadores podem retratar o comportamento
e o desenvolvimento de uma área do conhecimento.
Em 1969, o termo bibliometria foi definido como “[...] a aplicação da matemática e
de métodos estatísticos aos artigos científicos e aos outros meios de comunicação [...]”
(POLANCO, 1995, não paginado). Tanto Cole e Eales quanto Hulme, ao realizarem seus estudos,
utilizaram uma espécie de ‘microbibliometria’, ou seja, a bibliometria aplicada a uma determinada
área da ciência ou campo do conhecimento científico.
Segundo Fonseca (1986, p. 10), “[...] como a Bibliografia, os estudos bibliométricos
podem ser classificados em nacionais, ou macrobibliométricos, e especializados ou
microbibliométricos.” Ademais, de acordo com Silva (2008), a macrobibliometria estuda a
produção bibliográfica, tendo uma abrangência maior que a microbibliometria, como, por
exemplo, ao analisar estatisticamente a produção bibliográfica de um país.
Página 750 de 2230

Cumpre ressaltar aqui que, embora alguns considerem a bibliografia estatística (ou
estatística do livro) como sinônimo de bibliometria, ela não significa a mesma coisa. Otlet (1934)
já assinalava isso na sua primeira obra sobre o assunto.
Para Araújo (2006), a bibliometria trata-se de uma técnica quantitativa e estatística de
medição dos índices de produção e disseminação do conhecimento científico, assim como ocorre
com a demografia, ao enumerar a população. Ela surge no início do século como sintoma da
necessidade do estudo e da avaliação das atividades de produção e comunicação científica.
Basicamente, ela consiste na aplicação de técnicas estatísticas e matemáticas para descrever
aspectos da literatura e de outros meios de comunicação, sobretudo através da análise quantitativa
da informação. Em princípio, em 1923, ela foi conhecida como “bibliografia estatística”.
Posteriormente, em 1934 o termo “bibliometria” foi criado por Otlet. Mas esse termo só se
popularizou em 1969 (VANTI, 2002, p. 153).
Figueiredo (1977) aborda que a bibliometria, desde sua origem, é marcada por uma
dupla preocupação: a análise da produção científica e a busca por benefícios práticos imediatos
para bibliotecas (desenvolvimento de coleções, gestão de serviços bibliotecários).
Teoricamente, segundo Araújo (2006), existem três leis básicas que regem a
bibliometria: Lei de Lotka, que estuda a produtividade dos autores; Lei de Bradford, que estuda a
produtividade dos periódicos e, por fim, a Lei de Zipf, que estuda a frequência com que as palavras
aparecem nos textos científicos.
A Lei de Lotka, formulada em 1926, foi elaborada a partir de um estudo sobre a
produtividade de cientistas, tendo em vista a contagem de autores presentes no Chemical
Abstracts, entre 1909 e 1916. Lotka descobriu que uma larga proporção da literatura científica era
produzida por um pequeno número de autores (ARAÚJO, 2006). A Lei de Lotka foi, desde então,
objeto de larga produção científica.
A Lei de Bradford, denominada lei da dispersão e publicada em 1934, segunda lei da
bibliometria, que incide sobre conjuntos de periódicos, tem o objetivo de descobrir a extensão na
qual artigos de um assunto científico específico aparecem em periódicos destinados a outros
assuntos, estudando a distribuição dos artigos em termos de proximidade ou de afastamento. A
Lei de Bradford “[...] foi muito utilizada para aplicações práticas em bibliotecas, tais como o
estudo do uso de coleções para auxiliar na decisão quanto à aquisição, descarte, encadernação,
depósito, utilização de verba, planejamento de sistema (ARAÚJO, 2006, p. 15).
A terceira lei da bibliométrica clássica é a Lei de Zipf, formulada em 1949. “Ela
descreve a relação entre palavras num determinado texto suficientemente grande e a ordem de
série dessas palavras (contagem de palavras em largas amostragens).” (ARAÚJO, 2006, p. 16).
Zipf ao estudar a frequência de palavras na obra de Ulisses de James Joyce, concluiu que “[...]
Página 751 de 2230

existia uma regularidade fundamental na seleção e uso das palavras e que um pequeno número de
palavras é usado muito mais frequentemente.” (ARAÚJO, 2006, p. 16), a partir desse estudo ele
formula o princípio do menor esforço que significa que as palavras mais usadas indicam o
conteúdo do documento.
As análises bibliométricas compõem os Estudos Métricos da Informação (EMI) que
são considerados como técnica de avaliação da atividade científica e tecnológica, mensurando o
desenvolvimento da ciência e o progresso tecnológico, que propiciam auxílio na tomada de
decisão e na elaboração de políticas públicas e científicas.
Os EMI podem ser concebidos como bibliometria, cientometria, patentometria entre
outros, que utilizam-se de métodos matemáticos e estatísticos possibilitando análises
quantitativas. Vale ressaltar que os mesmos atuam a partir de um contexto científico ou
tecnológico, isto é, a partir das publicações que representam os resultados das pesquisas científicas
e tecnológicas. No Quadro 1 a seguir verifica-se a distinção das características das subáreas dos
EMI conforme os autores a área.
Quadro 1- Características das Subáreas dos EMI
SUBÁREAS CARACTERÍSTICAS
Bibliometria Aplicação de métodos matemáticos e estatísticos para
livros e outros meios de comunicação. Considerada,
um conjunto de metodologias e técnicas estatísticas,
para medição da comunicação escrita, cujo
procedimento acontece mediante a mensuração de
documentos; palavras em documentos; palavras,
nomes e citações em registros bibliográficos; ou seja,
envolve a quantificação da produção,
disseminação e uso da informação registrada.
Cientometria Estuda a estrutura e as propriedades da informação
científica e as leis do processo de comunicação. É a
mensuração da comunicação científica em suas
diferentes áreas do conhecimento.
Informetria/Infometria Trabalha de forma ampla com os processos de
comunicação em ciência e com a mídia eletrônica.
Esse subcampo inclui temas como a análise estatística
do texto (científico) e os sistemas de hipertexto,
biblioteca, circulações, medidas de informação em
bibliotecas eletrônicas, bem como processos e
aspectos quantitativos de recuperação de informação,
com principal preocupação de descrever e analisar os
fenômenos e as leis implicadas na própria
informação.
Webmetria/Webometria Consiste no uso e aplicações dos métodos da
Informetria, agora aplicados em novo ambiente
World Wide Web (WWW).
Patentometria Constituindo-se como uma subárea da Informetria,
que analisa as patentes e utiliza as abordagens da
Bibliometria.
Altmtria O uso de dados webométricos e cibermétricos em
estudos cientométricos. Indicadores de atenção
online, que se dedicam à compreensão do impacto
social dos resultados parciais e finais de pesquisa
na web social.
Fonte: Araújo (2018); Oliveira (2018); Oliveira e Gracio (2013).
Página 752 de 2230

Diante disso, percebe-se que os EMI podem se tornar instrumentos úteis na otimização
da comunicação científica, recuperação da informação, assim como fornece apoio na formulação
de políticas e na tomada de decisão nas instituições acadêmicas, além de oferecer leituras mais
ricas da realidade, considerando aspectos contemporâneos que afetam diretamente a ciência, logo
os EMI consolidam-se como uma área ampla com diversas aplicações nas diferentes esferas do
conhecimento.

3 METODOLOGIA
O estudo caracteriza-se como bibliométrico de caráter descritivo, uma vez que utilizou
de técnicas padronizadas de coleta de dados, procurando compreender a descrição das
características da produção científica dos docentes permanentes no Programa de Pós-Graduação
em Cultura e Sociedade – PGCult, entre os anos de 2016, quando iniciou o Programa até o
momento, 2019, bem como o estabelecer relações entre variáveis que emergiram sobre o objeto
de estudo ao decorrer da pesquisa.
Segundo Morales et al. (2017) estudos de caráter bibliométricos vêm sendo realizados
na área da educação dentro de três perspectivas: a) os que estudam as revistas científicas da área;
b) os que analisam a produção científica em educação em uma perspectiva global nos diferentes
formatos e, c) os que analisam a produção científica em áreas específicas dentro das ciências da
educação;
Esta pesquisa se aproxima da perspectiva c, quando considera como unidade de análise
docentes permanentes no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade traçando
inicialmente o seu perfil, no que refere: área de atuação, tempo de conclusão de doutorado e
instituição, linhas de pesquisa e tempo de atuação no PGCult. Em seguida, a produção
bibliográfica a partir dos: artigos completos publicados em periódicos, trabalhos completos em
anais de congressos, resumos expandidos publicados em anais de congressos, apresentação de
trabalhos e orientações concluídas no programa.

4 ANÁLISE DOS DADOS


4.1 Perfil dos Docentes
Na busca do perfil docente foram analisadas as variáveis área de atuação; tempo de
conclusão de doutorado; linhas de pesquisa e tempo de atuação no PGCult, além do índice de
citação (índice H) dos docentes permanentes do programa na plataforma Google Scholar,
considerada a “[...] base de dados com maior quantidade de citação a livros, relatórios, trabalhos
de conferência, patentes e outros materiais não tradicionais.”. (NASCIMENTO, 2016, p. 48).
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Com relação ao índice H foi verificado que somente dois professores possuíam perfil
no Google Scholar e por isso somente esses dois apresentam o índice H calculado, que corresponde
23 e 5 cada um. O fato de ter poucos professores cadastrado na plataforma chama atenção, uma
vez que o Google Scholar é uma ferramenta de pesquisa muito utilizada na localização de fontes
de informação e de perfis de pesquisadores.
4.2 Grandes Áreas de Atuação
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) classifica
em sua tabela de áreas do conhecimento nove grandes áreas, sendo elas: Ciências Exatas e da
Terra; Ciências Biológicas; Engenharias; Ciência da Saúde; Ciências Agrárias; Ciências Sociais
Aplicadas; Ciências Humanas; Linguística, Letras e Artes; Multidisciplinar. Na pesquisa com os
docentes permanentes do PGCult foram identificadas, de acordo com a tabela da CAPES, quatro
grandes áreas de atuação (Gráfico 1). Cabe esclarecer que o mesmo professor pode estar
vinculado a mais de uma área. A Ciências Humanas teve destaque com maior número de
professores (12).
Essa constatação se explica, pois o PGCult abrange áreas do conhecimento multi e
interdisciplinares, o que se objetiva em suas duas linhas de pesquisa: Expressões e Processos
Socioculturais e Cultura, Educação e Tecnologia.
Gráfico 1 – Grande área de atuação

Fonte: Dados de pesquisa.

4.2.1 Áreas de atuação


Das nove grandes áreas da tabela da CAPES encontram-se ainda oitenta áreas de
atuação subordinadas, destas a maior concentração dos docentes pesquisados está entre história,
educação e letras com sete, seis e quatro professores respectivamente a elas vinculados (Gráfico
Página 754 de 2230

2). As demais subáreas agregam menos de quatro professores. Mais uma vez percebe-se a ênfase
as áreas de ciências humanas (história e educação) e linguística (letras).
Gráfico 2 – Área de atuação

Fonte: Dados de pesquisa.


4.3 Instituição de Ensino Superior de Doutoramento
Quando se analisa a origem das IES, constata-se que 17 dos 19 docentes pesquisados
foram titulados no Brasil: 1 na região Nordeste, 2 na região Sul e 14 na região Sudeste (Gráfico
3). Apenas 2 concluíram fora do país: um na cidade de Uminho e outro em Aveiro, Portugal.
Isso levar a refletir sobre a concentração e predominância da pesquisa em IES na
região sudeste brasileira já constatado por Pecegueiro em estudo sobre ciência da informação “[...]
É também na região sudeste que se concentra o maior número de cursos de pós-graduação na
área”. (PECEGUEIRO, 2011, p. 60).

Gráfico 3 – Origem das IES de doutoramento


Página 755 de 2230

Fonte: Dados de pesquisa.


4.4 Orientações Concluídas e a Produção Bibliográfica
Ao relacionar as produções bibliográficas com as orientações concluídas percebe-se
que essa atividade impulsiona a escrita acadêmica, uma vez que foi observado na pesquisa que o
professor que não possui nenhuma orientação concluída tem apenas 9 publicações, em contra
partida aquele que teve dez orientações concluídas chegou possui 199 publicações (Gráfico 4).
Outro fator que merece destaque é a grande concentração de orientações concluídas
por professor, observou-se que um único docente chegou a orientar 14 alunos, enquanto a maioria
dos professores não ultrapassam 5 orientações.
Gráfico 4 – Orientações concluídas e a produção bibliográfica

Fonte: Dados de pesquisa.


4.5 Produção Bibliográfica
As análises sobre a produção bibliográfica neste estudo foram trabalhadas conforme a
tipologia e ordem estabelecida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) para o Currículo Lattes. Portanto, a extensão da produção bibliográfica dos
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docentes do PGCult foi desenvolvida na seguinte disposição (Quadro 2): artigos completos
publicados em periódicos; livros completos; capítulos de livros; trabalhos completos e resumos
expandidos publicados em anais de eventos científicos; apresentação de trabalhos.
Quadro 2 – Quantidade de publicação por tipo de produção bibliográfica

QUANTIDADE PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA


316 Artigos publicados
85 Livro
132 Capítulos de livros publicados
256 Trabalhos completos publicados em anais de congressos
13 Resumos expandidos publicados em anais de congressos
330 Apresentações de Trabalho em eventos
Fonte: Dados de pesquisa.
4.5.1 Artigos publicados em periódicos
A média de artigos produzidos por docentes foi de 16,6 nos 3 anos analisados, uma
média de 5,5 artigos por ano pra cada docente (Gráfico 5). Nota-se, portanto, que os 2 professores
mais produtivos, 75 e 35 artigos cada, teriam contribuído com 34,8% do total dos 316 artigos
publicados.
Gráfico 5 – Artigos publicados em periódicos

Fonte: Dados de pesquisa.

4.5.1.1 Qualis Periódicos


O Qualis Periódicos é o principal instrumento nacional de avaliação das revistas
científicas, conforme a Plataforma Sucupira (2019, não paginado) “É um sistema usado para
classificar a produção científica dos programas de pós-graduação no que se refere aos artigos
publicados em periódicos científicos.”. Isto é, analisa a qualidade das publicações dos periódicos
científicos, além de trabalhar com a classificação em extratos, são eles: A1, A2, B1, B2, B3, B4,
B5 e C, onde A1 possui o maior peso e o C não possui valor.
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A pesquisa demonstrou que nos três anos pesquisado nenhum professor publicou em
Revista Qualis A1 e uma grande concentração dos professores publicou em revistas Qualis C
(Gráfico 6). Isso é preocupante, uma vez que a publicação em Qualis de baixa classificação afeta
diretamente a avaliação do Programa de Pós-Graduação, pois ele funciona como um dos
parâmetros de avaliação.
Gráfico 6 – Qualis dos periódicos de publicação

Fonte: Dados de pesquisa.


4.5.2 Livros
Quando analisamos a produção de livro, repete-se a condição de publicação em artigos
em que 2 professores concentrarem o maior número de publicações, 14 e 16 cada um (Gráfico 7).
Vale ressaltar que na análise não foi discriminado o tipo de livro, por exemplo, se eram livros
didáticos ou não, uma vez que a própria Plataforma Lattes deixa esse tipo de qualificação a cargo
do pesquisador.

Gráfico 7 – Livros publicados


Página 758 de 2230

Fonte: Dados de pesquisa.


Meadows (1999) relata que os livros são vistos como uma publicação importante
dentro da comunidade científica, em especial, na área das humanidades, porém no cenário da
pesquisa percebeu-se que esse canal de divulgação científica não é uma das principais escolhas
dos docentes do PGCult.
4.5.3 Capítulos de livros
Os capítulos de livros, conforme Costa et al. (2011), se configuram como um dos tipos
de publicação mais relevante dentro do contexto científico. A pesquisa revelou que dos 132
capítulos de livros publicados 53% destes publicaram até 5 capítulos de livros, 42% publicaram
entre 6 a 15 capítulos de livros e somente 5% ultrapassaram mais 16 capítulos de livros publicados
(Gráfico 8). Ressalta-se que mais uma vez os autores mais produtivos se repetem.
Gráfico 8 – Capítulo de livros publicados

Fonte: Dados de pesquisa.


4.5.4 Trabalhos publicados em anais de eventos científicos
Os anais são um produtos oriundos de eventos científicos, assim, muitos
pesquisadores os utilizam como forma intermediária de publicação, normalmente o material
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publicado neles, após os devidos acréscimos e complementações são publicados em outros tipos
e formatos “[...] quando os autores acham que vale a pena, as pesquisas relatadas em congressos
podem também aparecer em periódicos [...]” (MEADOWS, 1999, 165).
Os trabalhos completos publicados em anais de eventos científicos foi terceiro maior
canal de publicação utilizado pelos professores pesquisados (Gráfico 9). Seguindo na direção
contrária os resumos expandidos obtiveram somente 13 publicações, tal ocorrência se dá, talvez,
pelo baixo valor acadêmico atribuído a este tipo de produção bibliográfica.
Gráfico 9 – Trabalhos publicados em anais de eventos científicos

Fonte: Dados de pesquisa.


4.5.5 Apresentação de trabalho
A pesquisa demonstra um número significativo de professores que apresentaram
trabalhos em eventos acadêmicos e/ou científicos, nas categorias de Congresso, Seminário,
Simpósio e outros. Possivelmente, esse fato tem relação direta com o alto número de trabalhos
publicados em Anais (Gráfico 10).
Gráfico 10 – Apresentação de trabalhos
Página 760 de 2230

Fonte: Dados de pesquisa.


Campello (2000, p. 56) assegura que a apresentação de trabalhos simboliza “[...] a
oportunidade que o pesquisador tem de ver seu trabalho avaliado pelos pares ou colegas, de forma
mais ampla [...] tem a vantagem de possibilitar que críticas e sugestões sejam feitas na hora [...]”,
ou seja, proporciona um retorno imediato, uma vez que permite ao pesquisador ouvir, no momento
da apresentação, as dúvidas e opiniões dos seus pares.
4.6 Trabalhos em Colaboração
O trabalho em colaboração representa uma prática da produção em parceria nas IES,
assim, no que diz respeito aos artigos publicados em colaboração constatou-se uma margem
significativa de trabalhos nessa categoria (43%). Deste total, ao analisar origem institucional dos
colaboradores (Gráfico 11), percebe-se uma grande concentração no Nordeste (5) e Sudeste (7).
Tal concentração no Sudeste pode ser explicada quando se compara com a IES de origem de
doutoramento dos docentes pesquisados, o que comprova a prática de publicação com orientador
durante a qualificação. Em relação as instituições do Nordeste estas, em sua maioria, são oriundas
do próprio Estado do Maranhão.
Gráfico 11 – Colaboração institucional
Página 761 de 2230

Fonte: Dados de pesquisa.


Esse quantitativo nos leva a refletir, pois a colaboração reafirma o papel da ciência,
enquanto uma atividade de caráter institucional e colegiada. Sabe-se também que o trabalho em
colaboração dentro da academia representa a prática da produção em parceria, que muitas vezes é
motivada pelas “[...] afinidades e metas comuns a serem atingidas. A cooperação entre dois ou
mais pesquisadores é unidade fundamental da colaboração.” (GHENO, 2015, p. 30).
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo apresentado procurou analisar o perfil e a produção científica dos docentes
permanentes no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PGCult), entre os anos de
2016, quando iniciou o Programa até o momento, 2019.
Nesse sentido, a pesquisa revela que quanto ao perfil:
a) um quantitativo insignificante de professores com cadastro no Google Acadêmico
(Índice H);
b) grande concentração na área das Ciências Humanas (História, Educação e Letras);
c) tempo de Doutoramento de 48 meses, 17 no Brasil, com concentração na região
Sudeste e 2 em Portugal;
d) renovação do quadro de professores (26%); Descompasso de número de
orientação e professores.
No que diz respeito a produção bibliográfica revela que os professores do corpo
docente permanentes do PGCult, de acordo com o registro na Plataforma Lattes, concentram suas
produções bibliográficas em maior número em apresentações de trabalhos em eventos e em artigos
científicos publicados em periódicos. Tal fato demonstra serem esses os canais de divulgação de
preferência dos pesquisadores do Programa.
O caminho percorrido por essa pesquisa reforça a importância de se estudar os
processos e os canais de comunicação científica destes e demais Programas da Universidade
Federal do Maranhão.
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REFLEXÕES SOBRE POBREZA E EDUCAÇÃO: A DESIGUALDADE SOCIAL E


SUAS MANIFESTAÇÕES NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA

REFLECTIONS ON POVERTY AND EDUCATION: SOCIAL INEQUALITY AND ITS


MANIFESTATIONS IN HISTORY BOOKS
Eliabe Ribeiro Rodrigues
Estudante de Pedagogia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Dinalva Pereira Gonçalves
Mestra em Educação
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Eixo 1- Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a ligação entre pobreza e educação,
refletindo sobre o contexto histórico em que se assenta as desigualdades sociais e suas implicações
no âmbito escolar, além de elucidar de que forma a pobreza é manifestada nos currículos escolares.
A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, cuja fundamentação teórica contempla
autores clássicos e contemporâneos. Utilizamos, ainda, livros didáticos de História mais antigos e
atuais para analisar de que forma a pobreza vem sendo representada nos mesmos e como isso pode
afetar na formação da identidade das crianças das camadas sociais menos favorecidas. Os
resultados dos objetos apontam que as discrepâncias sociais afetam a educação escolar,
manifestando-se e alimentando-se por meio dos currículos escolares.
Palavras-chave: Pobreza. Educação. Currículo Escolar. Desigualdade Social.

Abstract: This article aims to analyze the link between poverty and education, reflecting on the
historical context on which social inequalities are based and their implications in the school
environment, and to clarify how poverty is manifested in school curricula. The methodology used
was the bibliographic research, whose theoretical foundation includes classic and contemporary
authors. We also use older and current history textbooks to analyze how poverty has been
represented in them and how it can affect the formation of the identity of children from the poorest
social classes. The results of the objects indicate that social discrepancies affect school education,
manifesting and nurturing themselves through school curricula.
Key words: Poverty. Education. School curriculum. Social inequality.

INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa os aspectos da pobreza em seu contexto histórico, logo, pauta seu
vínculo com a educação, chegando a reflexões sobre sua influência no processo de ensino-
aprendizagem. De acordo com Garcia e Hillesheim (2017):
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As desigualdades educacionais constituem grave problema na sociedade brasileira e estão


relacionadas à estrutura socioeconômica do país, sendo a pobreza sua expressão mais
explícita. Por sua natureza, os instrumentos de planejamento e gestão do Estado
apresentam as propostas para a administração do país, dentre elas as que visam enfrentar
as desigualdades sociais e educacionais e a pobreza. (Garcia e Hillesheim, 2017, p.1).

Nesse sentido, a presente pesquisa tem como objetivo fazer uma reflexão sobre as
desigualdades sociais e sua relação com a educação. Estudos sobre a formação das estruturas da
sociedade nos mostram que à medida em que o modo de produção capitalista foi se
engrandecendo, principalmente pelo aproveitamento da força de trabalho e das mudanças
tecnológicas, milhões de pontos de trabalho vieram a ser destruídos e o acúmulo de capital foi se
concentrando nas mãos de poucos, deixando assim, um enorme quantitativo de cidadãos sem
acesso ou sem poder usufruir da riqueza socialmente produzida.
No que diz respeito à metodologia, trata-se de uma pesquisa bibliográfica que nos permitiu
refletir sobre as marcantes categorias pobreza, desigualdade e exclusão social. Assim, pretende
referenciar a análise das práticas político-sociais, evidenciando a realidade econômica e
educacional no Brasil, ao longo do contexto histórico e social, além de verificar como a pobreza
tem sido representada nos livros didáticos e como a desigualdade social repercute na formação de
crianças das classes menos favorecidas. Daí as questões-problemas: Qual a relação entre pobreza
e escola? Por que e como as culturas dos grupos sociais desfavorecidos economicamente vêm
sendo silenciadas no currículo escolar?
O texto que segue está organizado em 2 seções. A primeira propõe uma compreensão do
contexto histórico da exclusão social das pessoas pobres, pois há uma generalização da pobreza
em si, cuja desigualdade impulsiona a exclusão social. A segunda discorre sobre a representação
dos pobres em livros didáticos de história, na qual discutimos a visão estereotipada dos pobres e
o silenciamento cultural de diversas minorias sociais; debatemos ainda a representação da pobreza
na escola por meio do seu currículo, imposto pela política de livros didáticos, bem como os
conceitos de uma cultura totalmente distorcida da realidade enfrentada no decorrer de sua
construção histórica. Finalmente, apresentamos as considerações finais e em seguida as
referências bibliográficas.
Esperamos que este estudo possa contribuir com pesquisas futuras a respeito deste tema,
onde a pobreza, educação e desigualdade são assuntos fundamentais a serem discutidos. Porém,
sabemos que este estudo não se encerra aqui devido à problemática que envolve o tema.

A HISTÓRICA EXCLUSÃO SOCIAL DAS PESSOAS POBRES


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A imagem do pobre constantemente esteve presente nas sociedades; no entanto, em cada


período histórico a pobreza somou diversos aspectos na questão do reflexo social. A humanidade,
no desdobrar de sua passagem histórica, vem analisando e tentando assimilar sua própria história,
que a priori, é a consequência da ação do homem, ao passo que assume o papel de sujeito histórico
e social. Desse modo, há a necessidade de analisar as convivências sociais determinadas.
As atitudes das pessoas são estabelecidas pelos vínculos de interesse inclusos na sociedade;
a partir de então, estes designam o modelo de organização do convívio social. Na área das políticas
públicas conduzidas à luta da pobreza no Brasil, a expansão do amparo mínimo da Previdência
Social, tanto para servidores urbanos quanto rurais, para uma remuneração mínima e amplitude
da aposentadoria para os trabalhadores rurais, independentemente de colaboração anterior,
equivalem a dimensões de profunda influência na vida de grande parte da sociedade brasileira
(Silva, 2010).
Numa perspectiva marxista, o status social do sujeito é perdurável e peculiar, assim, a
principal característica da particularidade humana. Por esse motivo, é impresumível entender o
homem longe da História, assertiva esta que evidencia uma noção situada no primórdio da coesão
lógica entre objetividade e subjetividade, entre objeto e sujeito, entre realidade e consciência
(Euzébios Filho; Guzzo, 2009).
A Igreja Católica e o Estado têm sido os principais responsáveis na luta da temática
pobreza desde a Idade Média. Com dimensões imperativas, propuseram apropinquar os ricos dos
pobres (Seabra, 2015). Contudo, na época teocêntrica o pobre era considerado como condição
decisão a partir do interesse divino. Emerge o conceito de que aquele que originou-se num estado
de vida desfavorável, da mesma forma, estado elevado, foi de acordo com a vontade de Deus.
Albert (1992) explica seu conceito de ser pobre:

O que é um pobre? Na maioria das sociedades humanas e das épocas da História, o pobre
tem sido, com grande frequência, tratado como um coitado, um inútil, um fracassado, um
preguiçoso, um suspeito, e até mesmo um culpado. [...] é possível que uma certa tradição
europeia considere o pobre mais como vítima do que culpado, e isto, numa percepção
multidimensional onde se somam a ignorância e a indigência, a desesperança pessoal e a
impotência social. (Albert,1992, p. 17 e 18).

Nessa perspectiva, é possível inferir a visão de como a minoria pobre era taxada ou
rotulada. No período que o Estado detém a posse do encargo da ordem social, nesta oportunidade
histórica, a figura do pobre, tal como sujeito em sua condição pré-definida divinamente, passa a
ser agregada à imagem de cidadão com direitos, tendo-se um novo significado do pobre, assim
como em seus papéis.
Todavia, com a chegada do Capitalismo e Revolução Industrial, o panorama social
conquistado, mudaria radicalmente. O pobre, passa a ser visto na sociedade capitalista, esta que
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transforma os conceitos das relações humanas e comercializa quaisquer campo do dia-a-dia, como
um fracassado, um ser nulo socialmente, um ser isento incapaz de conquistar um nível financeiro
estabelecido (Euzébios Filho; Guzzo, 2009). Corroborando com essa assertiva, Costa (2005, p.
172 e 173) assevera que:

Afirmamos que a pobreza, como fenômeno humano, resulta diretamente das decisões
políticas. Porém, as decisões políticas são tomadas a partir da racionalidade do capital, já
que na sociedade moderna as necessidades humanas estão subordinadas a lógica
econômica da rentabilidade do capital. Desta forma, é o homem que serve à produção,
realizada somente na medida em que recria o capital em escala ampliada[...].

Indubitavelmente, a pobreza não pode ser generalizada de maneira singular e/ou global.
Todavia, assimilamos que a pobreza é resultante das atitudes humanas; logo, o que colhemos
atualmente é consequência de ações habituais em eventos concretos. De acordo com Garcia (2003,
p. 9) apud Wlodarski e Cunha (2005, p. 6):

O destino não estava traçado e o caminho não era único, ainda que o passado tenha o seu
peso no presente. O Brasil foi fundado sobre o signo da desigualdade, da injustiça, da
exclusão: capitanias hereditárias, sesmarias, latifúndio, Lei de Terras de 1850 (proibia o
acesso à terra por aqueles que não detinham grandes quantias de dinheiro), escravidão,
genocídio de índios, importação subsidiada de trabalhadores europeus miseráveis,
autoritarismo e ideologia antipopular e racista das elites nacionais. Nenhuma
preocupação com a democracia social, econômica e política. Toda resistência ao
reconhecimento de direitos individuais e coletivos.

É perceptível que a pobreza, a exclusão e a desigualdade social participaram de todo o


seguimento histórico, fazendo-se existentes nas grandes questões de debates, porém, não como
tema de ações que objetivassem a mudança e a solução destas problemáticas.
A pobreza no Brasil se dá principalmente pela má distribuição de rendas e riquezas. De
fato, o Brasil é um país abundante em recursos, entretanto, continua com um grande índice de
desigualdade, considerado aos demais países. Segundo Heller (1998), deixar de aplicar as regras
de forma igual aos membros de um grupo, que exige este procedimento, é entendido como uma
forma de injustiça e desigualdade.
Ultimamente, apresenta-se resquícios do combate à escassez e, apesar da redução mínima
da pobreza, continuamos presenciando e vivenciando as desigualdades sociais. Logo, torna-se
necessário a elaboração de um vigente contrato social que envolva os requisitos da população em
massa, produzindo assim, a igualdade por meio da justa divisão de capital e bens, uma melhor
intervenção do Estado na demanda da inclusão e igualdade para com todos, afim de garantir
direitos iguais, entre esses, a educação formal de qualidade.
Como vimos, a contínua busca da emancipação da classe minoritária dependerá da forma
de distribuição dos recursos e da produção da igualdade em suas diversas áreas e aspectos.
Veremos adiante que, no âmbito educacional, o currículo escolar pode ser um grande influenciador
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das desigualdades sociais, como também um meio para a promoção da justiça e emancipação
social dos sujeitos.

AS NEGAÇÕES E SILENCIAMENTOS DOS POBRES NO CURRICULO ESCOLAR

Com o avanço da escolarização de massa, tornou-se necessária a reestruturação do


currículo para inclusão de determinados conteúdos e parâmetros nacionais para o ensino,
expressos pelos documentos normativos como os Planos Nacionais, Diretrizes Curriculares,
Parâmetros Curriculares, dentre outros. Consequentemente, como fruto de uma imposição
política, a escola acaba por privilegiar as classes dominantes, acarretando o ocultamento das
culturas pobres no seu currículo.
Por meio do currículo, as classes dominantes transmitem concepções, intenções e desejos,
enquanto as camadas minoritárias aparecem nas narrativas, em especial os povos pobres, omitidos
e tratados com descaso, mostrando o preconceito em apresentações em papeis limitados, textos
irrelevantes e imagens estereotipadas de inferioridade diante da sociedade, enaltecendo figuras
opressoras.
Quando se faz uma reflexão acerca dos recursos didáticos ensinados nas instituições de
ensino, é possível compreender que os livros didáticos são uma forte ferramenta portadora de
conceitos históricos, além de ideologia e conteúdos formadores de opinião.
Santomé (2001) chama de culturas negadas e silenciadas no currículo aquelas provenientes
de grupos infantis e juvenis, ciganos, das etnias minoritárias ou sem poder, entre outras. Para esse
autor, quando essas culturas aparecem no livro didático, as mesmas são apresentadas sobre as
perspectivas de determinado grupo ou evidenciando a passagem histórica de forma heroica,
ignorando a exibição do outro ponto de vista, como por exemplo, as modificações sofridas em
algumas etnias no mesmo evento histórico.

[...] essa tradição contribuiu de forma decisiva para deixar em mãos de outras pessoas
(em geral, as editoras de livros didáticos) os conteúdos que devem integrar o currículo e,
o que é pior, a sua coisificação. Em muitas ocasiões, os conteúdos são contemplados pelo
alunado como formulas vazias, sem que a compreensão de seu sentido. (Santomé, 2001,
p. 161).

A sociedade, em sua essência, tem obrigação de fazer uma reflexão crítica a respeito das
injustiças que nos cercam cotidianamente. Dessa maneira, para não interferir no conhecimento
dos alunos com esse silenciamento, que na maioria das situações os impedem de conhecer as
diversidades culturais, a solução pensada seria apresentar a realidade por intermédio da leitura dos
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livros didáticos que, assim, auxiliam na construção contínua do pensamento crítico. Santomé
(2001) justifica essa afirmativa:

[...] um projeto curricular emancipador, destinado aos membros de uma sociedade


democrática e progressista, além de especificar os princípios de procedimentos que
permitem compreender e sugerir processos de ensino e aprendizagem de acordo com isso,
também deve necessariamente propor certas metas educativas e aqueles blocos de
conteúdos culturais que melhor contribua para uma socialização crítica dos indivíduos.
(Santomé, 2001, p. 164).

Nesse sentido, o currículo escolar constitui-se como uma ferramenta fundamental nesse
processo de socialização crítica:

[o currículo] é permeado de intencionalidade e de múltiplas ações que traduzem


princípios e valores sobre os quais a escola trabalha. Embora as instituições escolares
estejam fortemente vinculadas às imposições do sistema educativo, ainda assim o
currículo escolar pode se tornar um aliado a serviço das demandas e interesses dos menos
favorecidos. (Gonçalves; Oliveira e Santos, 2018, p. 1093).

Para que o ocultamento no currículo não afete os alunos no processo de aprendizagem por
imagem estereotipada das culturas silenciadas, o alunado deve adquirir consciência da realidade
dessas culturas, que a priori são silenciadas no currículo e no livro didático, reestruturando a
realidade ausentada, juntamente com professores e comunidade escolar.

REPRESENTAÇÃO DOS POBRES NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA

O poder institucional tem a capacidade de persuadir o ensino, por meio da imposição de


determinados padrões e ideologias, atendendo os interesses de certos segmentos da sociedade em
determinados tempos históricos.
A exemplo do ensino de História que, inicialmente, serviu de objeto de poucos estudos nos
colégios designados para o ensino, à proporção que se planejava e se expandia o nível primário,
por volta da década de 70 do século XIX, sua seriedade foi desenvolvida como recurso responsável
por transmitir uma "história nacional" e como ferramenta pedagógica significativa na construção
de uma "identidade nacional"(Bittencourt, 2011). Assim, esse objetivo sempre extinguiu a prática
da história para os estudantes das escolas primárias e encontra-se presente, ainda neste século, na
sistematização curricular.
Atualmente, tem-se o cuidado de inserir fundamentos e conceitos históricos a partir desse
momento escolar, os quais serão gradativamente ensinados no decorrer do ensino fundamental e
médio. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de História estabelecem esse processo e têm
como ideias básicas a cultura da sistematização social e do ensino e noções de tempo e espaço
históricos, a serem inseridos a partir da alfabetização (Brasil, 1997).
Página 771 de 2230

Cultura e educação dos pobres na história e sua representação no livro didático de história

Com a aparição dos primeiros padres jesuítas ao Brasil, por volta de 1549, apresentava-se
os primeiros resquícios da educação no país, estabelecendo assim, uma fase que deixaria marcos
culturais e civilizatórios profundos. Instigados pela forte inspiração religiosa de alastrar a fé cristã,
os jesuítas foram, nesse contexto e época, os únicos educadores do Brasil durante mais de 200
anos. Visivelmente, o objetivo principal da Companhia de Jesus era o de conquistar fiéis e mão
de obra, certificando a conversão do povo indígena à fé católica e sua submissão aos senhores
brancos.
A educação primária foi primeiramente ensinada aos curumins145, mais à frente expandiu-
se aos filhos dos colonos. Existia também os centros missionários no meio dos povos indígenas.
A educação, com o passar do tempo, em especial o ensino de História no nível primário,
necessitava agregar âmbitos sociais, antes exilados no meio educativo, porém, sem inserir nos
planos curriculares sua participação na formação histórica do país (Bittencourt, 2011).
Para a maioria dos educadores que concordavam com a escolarização das classes
populares, a História a ser ensinada, desde o primeiro ano escolar, aos trabalhadores
livres que emergiam em substituição aos escravos deveria inculcar determinados valores
para a preservação da ordem, da obediência à hierarquia, de modo que a nação pudesse
chegar ao progresso, modernizando-se segundo o modelo dos países Europeus.
(Bittencourt, 2011, p. 64).

A definição de cidadania, estabelecido com o apoio das observações do ensino de História,


exerceria a função de apontar cada pessoa pertencente ao seu espaço na sociedade: competiria ao
político a função de tomar conta da política, e à classe minoritária sobejava o benefício de votar e
de trabalhar incorporado à norma institucional (Bittencourt, 2011). As ações da elite, divinamente
predestinada, ocasionaram a criação da nação; e os grandes homens, de tais elites, fariam com que
o país chegasse ao seu destino.

No transcorrer das primeiras décadas do século XX, nas áreas urbanas e rurais, havia uma
diversidade de escolas primarias, de escolas públicas que seguiam o modelo dos grupos
escolares e de muitas outras mais precárias, além de escolas particulares confessionais
ou criadas por grupos diversos de imigrantes e outros setores laicos que, muitas vezes,
atendiam alunos trabalhadores, em sua maioria adultos. (Bittencourt, 2011, p. 66).

O catecismo era um modelo de livro didático muito usado em diversas escolas elementares,
e vários conteúdos de história designados às crianças adotavam o mesmo modelo (Bittencourt,
2011). Conforme o método catecismo, a História era expressa por questionamentos seguidos de
respostas, e por meio da repetição exata do que estava no livro, os educandos eram avaliados. A

145
Curumins é o plural de curumim. Termo indígena dado aos: criados, garotos, meninos, rapazes, rapazinhos.
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palmatória ou férula eram usadas como repreensão daqueles que tinham lapsos ou dúvidas dos
termos e palavras.

O nível secundário no Brasil caracterizou-se como curso oferecido pelo setor público, no
Colégio Pedro II do Rio de Janeiro. [...] A rede particular de escolas, para esse nível
escolar, desempenhou e continua a desempenhar importante papel, levando-se em conta
que o secundário foi criado para atender à formação dos setores de elite. (Bittencourt,
2011, p. 77).

Os conteúdos apresentados asseguravam também uma educação moral apoiada no ideário


de progresso, dos quais valores sucediam difusos como totalidade, porém restritamente praticados
pela elite. Estes possuíam os grandes benefícios de escolarização em nível secundário e superior.
Ou seja, à classe minoritária cabia apenas a escolarização primária, evidenciando assim, os níveis
de desigualdades já existentes.
No Brasil, já na década de 1980, a discussão acerca dos assuntos escolares resultara na
divisão dos docentes aflitos com modificações curriculares possíveis de incluir os educandos das
classes populares (Bittencourt, 2011). Segundo esse mesmo autor, concordava-se que os
conteúdos associados às escolas tinham grande valor social, porém, existia discordância sobre
quais assuntos poderiam ser modificados e/ou conservados no meio da reestruturação curricular.
Desse modo, os currículos escolares tenderam à uma discriminação de conteúdos, dependendo do
público para o qual se destinava o ensino.
Analisando-se o livro didático “História, Sociedade e Cidadania” de Alfredo Boulos Junior
(2006), observamos resquícios dessa discriminação. Numa avaliação sobre a presença da cultura
pobre em livros didáticos de História, subentende-se como aquela que não se autovaloriza, não
dignifica os seres em si mesmos. Ideias e práticas não podem ser formuladas, quando não se tem
a comida na mesa, quando o saneamento básico está em precariedade e quando a saúde deixa de
ser importante. Nesse livro é apresentada a história da pobreza, iniciando-se no período colonial,
onde negros e índios eram escravizados e serviam os senhores brancos e possuidores de riquezas.
Haviam engenhos que empregavam assalariados, e dividiam com os escravizados o árduo trabalho
de produzir o açúcar nos engenhos coloniais. Com o passar dos anos, o percentual numérico de
pobres alavancou, assim, é bem simples localizá-los e defini-los na história, pois os pobres eram
(são) todas as pessoas que lutavam (lutam) para sobreviver ganhando menos de um salário e
encontrados, principalmente, nos países de baixo e médio rendimento. É tão verdade, que ainda
resistam fortemente os cidadãos assalariados, pois os mesmos sabem e convivem com a miséria e
desemprego. Neste livro, infelizmente, foi encontrado apenas pontos negativos referente ao tema
pobreza e educação, e nenhum aspecto que pudesse justificar uma melhoria.
Página 773 de 2230

Ao analisar outro livro didático de História, escrito por Silvia Panazzo e Maria Luisa Vaz
(2002), não foi identificada nenhuma preocupação em apresentar o tema estudado neste artigo,
levando-nos a crer que houve um silenciamento cultural, por parte dos autores de tal obra.
Em produções mais recentes como “Ligados.com história”, do 2º ano do Ensino
Fundamental, escrito por Leylah de Carvalhaes e Regina Nogueira Borela (2014); 3º ano do
Ensino Fundamental, escrito por Alexandre Alves, Letícia Fagundes de Oliveira e Regina
Nogueira Borela (2014), 4º ano do Ensino Fundamental, escrito por Lucimara Regina de Souza
Vasconcelos (2017), abordam indiretamente a minoria pobre em suas produções. Porém, a forma
como são exibidos caracteriza uma (re)produção negativa da figura pobre, de tal modo, é mostrado
o trabalho infantil, a precariedade do modo de vida, a escassa alimentação e a escravidão em
distintos contextos históricos.
Diante dos dados apresentados, percebe-se a insuficiência da abordagem da temática nos
livros didáticos de ensino, e quando abordado, a temática pobreza é apresentada de maneira
desfigurada. Os dados apontam que há o silenciamento e negação da cultura minoritária pobre,
confirmando as palavras de Santomé (2001, p. 161): “As culturas ou vozes dos grupos sociais
minoritários e/ou marginalizados que não dispõe de estruturas importantes de poder costumam ser
silenciadas, quando não estereotipadas e deformadas, para anular suas possibilidades de reação”.
Dessa forma, a análise reforça a reflexão sobre o modo como vem sido preparada a
estrutura curricular de algumas escolas, afim de apresentar aos discentes, conteúdos mergulhados
em ocultamentos e silenciamento de culturas minoritárias e marginalizadas, discretamente
impulsionando as desigualdades sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pobreza é vista como resultante da desigualdade social, acompanhando assim o processo


de agravamento da mesma. Tais ações do homem são determinadas pelas relações de interesse
presentes na sociedade e são eles que escolhem a forma de organização da vida social. No Brasil,
a existência da pobreza não se dá devido somente à falta de recursos, mas também por
consequência da desigual distribuição destes.
Na educação, conforme Santomé (2001), o racismo pode surgir de diversas maneiras, seja
lucidamente ou inconscientemente. Nos livros didáticos chega a ser visível identificar evidências
de racismo, particularmente por pretexto dos ocultamentos que são cometidos a respeito dos
benefícios e atributos de grupos, povos e etnias minoritárias e sem poderio, assim, esses povos e
culturas, na visão dos educandos que leem esses tipos de materiais curriculares, não coexistem.
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Ainda existem os casos de racismo nos livros didáticos que descrevem os feitos da
colonização utilizando termos como descoberta, fatos heroicos, civilização dos povos primitivos,
entre outros, que contribuem para que os educandos acreditem que de fato esses povos eram
bárbaros, ignorantes, cruéis, etc.
Avaliamos como um erro no plano educacional brasileiro, omitir temas como a escravidão,
exploração e crueldade sofridas por alguns povos, formando uma visão de que os feitos de certos
povos na história foram os únicos caminhos que se tinha, também, mascarando a história e cultura
de outras etnias minoritárias, ou seja, privilegia uma parte e silencia a realidade de outra, de acordo
com uma visão histórica predestinada.
Acerca disso, o processo de escolarização pública no Brasil e o desafio de proporcionar
educação de qualidade para a sociedade, necessita estar articulado com o processo de
enfrentamento à desigualdade social e com a busca de uma sociedade mais justa. No entanto, a
justiça social passa também pela justiça curricular, entendendo a escola como um ambiente que
não apenas deve transmitir conteúdos prestigiados pela elite, mas também atentar-se aos conteúdos
significativos a cada classe social.
Os resultados das análises dos livros didáticos, acerca da inclusão de conteúdos e visões
sobre a cultura dos pobres, nos sugerem que há um ocultamento ao julgar-se a forma como é
transcrita e apontada tal manifestação. Observou-se um predomínio do silenciamento da etnia
minoritária ou sem poder em seu contexto, propondo a construção de uma visão estereotipada
configurada em mentalidades que buscam generalizar tal assunto, partindo de ideologias raciais
de grupos sociais que se beneficiam de outros.
Contudo, a constatação dessas desigualdades não impede os grupos oprimidos de exigirem
a transformação das estruturas sócio-políticas do país. Ao contrário, evidencia a importância de
continuar buscando a igualdade, fazendo com que suas vozes sejam ouvidas, além de lutar para
que a cultura e realidade histórica desses grupos minoritários sejam apresentadas nos livros
didáticos de forma correta e justa, sem a intenção de privilegiar determinados grupos sociais em
detrimento de outros.

REFERÊNCIAS

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Página 777 de 2230

REVISÃO SISTEMÁTICA DA LITERATURA DE TESES E DISSERTAÇÕES SOBRE


O PROGRAMA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL

SYSTEMATIC REVIEW OF THE LITERATURE OF THESES AND DISSERTATIONS


ABOUT THE NATIONAL PROGRAM OF STUDENT ASSISTANCE

Me. José Rui Moreira Reis


Me. Ezenilde Rocha Mendes
Prof. Dr. João Batista Bottentuit Junior
Universidade Federal do Maranhão
Eixo temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Este artigo aborda o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES


apresentando uma revisão sistemática de literatura que mapeou as produções acadêmicas em nível
de mestrado e doutorado produzidas por alunos de universidades brasileiras sobre este programa.
Neste sentido, foram analisados sessenta e quatro trabalhos que se encontravam disponíveis no
banco de teses e dissertações da Capes entre os meses de maio e junho de 2017. Os resultados
mostram uma preponderância de estudos nas áreas de educação e serviço social, e uma distribuição
relativamente equilibrada de estudos por todo território nacional.
Palavras-chave: Revisão sistemática de literatura. Teses. Dissertações. Programa Nacional de
Assistência Estudantil.

Abstract: This article addresses the National Program of Student Assistance - PNAES presenting
a systematic literature review that mapped academic productions at the master and doctoral level
produced by students from Brazilian universities on this program. In this sense, sixty-four works
that were available in the bank of theses and dissertations of Capes between the months of May
and June 2017 were analyzed. The results show a preponderance of studies in the areas of
education and social service, and a relatively balanced distribution of studies throughout the
national territory.
Keywords: Systematic literature review. Theses. Dissertations. National Student Assistance
Program.

1. Introdução

De acordo com a Constituição Federal de 1988, em seu art. 205, “a educação, direito de
todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da cidadania e à sua qualificação para o trabalho"
(BRASIL, 1988).
Corroborando com a Constituição Federal, a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 –
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDB – estabelece, no seu Art. 2º, que: “a
Educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
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solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1996).
Assim, nos últimos anos, inúmeras ações foram empreendidas pelo Estado brasileiro,
particularmente pelo governo federal, no sentido de promover a democratização e garantir o
acesso ao ensino de nível superior no Brasil. Destacam-se programas como o PROUNI (Programa
Universidade para Todos), destinado à concessão de bolsas de estudo, integrais e parciais, a
estudantes de baixa renda para ingressarem em cursos de instituições privadas de ensino superior;
o FIES (Programa de Financiamento Estudantil), sistema de crédito educativo por meio do qual
os estudantes de instituições privadas recebem financiamento para quitar seus estudos; políticas
de ações afirmativas, que consistem em reservas de vagas no vestibular para alunos oriundos de
escola pública ou negros e pardos (BALDIJÃO; TEIXEIRA, 2011).
Destacam-se também o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), forma de ingresso em
algumas universidades, o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), gerenciado pelo Ministério da
Educação (MEC), pelo qual instituições públicas de educação superior oferecem vagas a
candidatos participantes do ENEM; a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação
e Expansão nas Universidades Federais (REUNI) (BALDIJÃO; TEIXEIRA, 2011).
O REUNI, instituído em 24 de abril de 2007, pelo Decreto Nº 6.096, tem como objetivo
principal ampliar o acesso e a permanência na educação superior. Suas ações preveem o aumento
no número de vagas em instituições públicas, com destaque para os cursos noturnos, inovações
pedagógicas, reestruturação acadêmico-curricular, combate à evasão, articulação da graduação
com a pós-graduação, ampliação de políticas de inclusão e assistência estudantil (definidas como
compromisso social), metas que visam à diminuição das desigualdades socioeconômicas no país
(BRASIL, 2007).
A redução das desigualdades socioeconômicas perpassa, necessariamente, pela
democratização e ampliação do acesso à educação superior gratuita, especialmente em
universidades públicas. O ingresso, apenas, não gera o efeito esperado, que é a formação dos
alunos. É necessária uma política que assegure a permanência e a conclusão com êxito.
Para tanto, o governo federal instituiu o Programa Nacional de Assistência Estudantil –
PNAES, através da Portaria Normativa nº 39, de 12 de dezembro de 2007, do Ministério da
Educação, e posteriormente regulamentado pelo Decreto nº 7.234 e 19 de julho de 2010, com a
finalidade de ampliar as condições de permanência dos jovens na educação superior pública
federal.
Tendo em vista a criação do PNAES, o presente trabalho busca realizar uma breve
descrição deste programa e identificar a quantidade de teses e dissertações já produzidas no país,
bem como as instituições estudadas no bojo deste programa, entre os anos de 2007 e 2016, a partir
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de uma Revisão Sistemática de Literatura. Para Sampaio e Mancini (2007, p.84) “as revisões
sistemáticas são particularmente úteis para integrar as informações de um conjunto de estudos
realizados”. Assim, busca-se ainda analisar se há algum tipo de concentração destes estudos em
determinadas áreas do conhecimento, instituições de ensino, estados ou regiões do país.
Para a consecução deste estudo foi necessária a organização de um protocolo de análise de
dados onde o primeiro passo foi a delimitação do tema e a elaboração da pergunta de investigação
que norteou todo o trabalho. Qual o quantitativo disponível de dissertações e teses sobre o
Programa Nacional de Assistência Estudantil? A partir desta grande pergunta elaboraram-se
alguns desdobramentos para que se pudesse analisar mais de perto aspectos mais específicos
destes trabalhos como, por exemplo:
a) Em quais programas de pós-graduação foram desenvolvidos estes estudos e em que áreas do
conhecimento se enquadram?
b) Quais instituições foram estudadas/pesquisadas?
c) Quais estados e regiões concentram o maior número de trabalhos?
A motivação para a realização deste estudo está no fato de que o PNAES é um programa
relativamente recente no âmbito do Estado brasileiro. Além disso, ambos os autores se interessam
pela temática, visto que um é aluno do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da
Universidade Federal do Maranhão, e tem como linha de pesquisa “Avaliação de políticas e
programas sociais” e a outra é assistente social desta instituição, lotada no setor Assistência
Estudantil, e desenvolveu um trabalho cujo objeto é a implementação do Programa Nacional de
Assistência Estudantil. Assim, também motivou a realização deste trabalho, identificar se já existe
algum trabalho que tenha estudado a implementação deste programa na Universidade Federal do
Maranhão.
Este artigo está estruturado da seguinte forma: a seguir, faz-se uma breve análise do
Decreto nº 7.234/2010, que dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil –
PNAES; em seguida, destaca-se a metodologia e o desenho do estudo; e mais adiante os resultados
obtidos são apresentados e analisados; e por fim, apresentam-se as considerações finais.

2. O Programa Nacional de Assistência Estudantil

O Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES foi instituído em 2007, pela


Portaria Normativa nº 39 do Ministério da Educação. E vem se somar a uma série de propostas de
expansão e inclusão social construídas no âmbito do Estado brasileiro nos últimos anos, como o
FIES, PROUNI e REUNI.
Ressalta-se que o PNAES tem entre seus influenciadores as pressões dos movimentos
sociais e estudantis, e das mobilizações de gestores e profissionais ligados à política de educação
superior, que cobravam a atuação do governo federal na promoção de ações que ampliem as
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possibilidades de permanência no curso superior, especialmente dos estudantes cujo acesso vem
sendo ampliado pelas políticas de expansão de vagas e ações afirmativas implementadas nos
últimos anos.
Sabe-se que para os estudantes oriundos das camadas mais pobres, somente o ingresso não
se faz suficiente para a conquista da diplomação, tendo em vista os diversos custos com a
escolarização universitária que poderão representar um “peso” no orçamento individual e familiar,
que eles podem não conseguir corresponder. Assim, os debates nos últimos anos se concentraram
não somente quanto a urgência da implementação de políticas de expansão de matrículas no ensino
superior, mas também em associá-las à promoção de políticas que propiciem igualmente a
inclusão dos grupos sociais excluídos (MARTINS, 2006).
Contudo, é importante destacar que diversas instituições de ensino já possuíam ações de
assistência estudantil, mas é a partir da criação deste programa que o Governo Federal assume um
papel efetivo no financiamento dessas ações. O PNAES foi regulamentado pelo Decreto nº 7.234
de 19 de julho de 2010.
De acordo com este decreto, o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES,
executado no âmbito do Ministério da Educação, tem como finalidade ampliar as condições de
permanência dos jovens na educação superior pública federal, e tem como objetivos: I –
democratizar as condições de permanência dos jovens na educação superior pública federal;
II – minimizar os efeitos das desigualdades sociais e regionais na permanência e conclusão da
educação superior; III – reduzir as taxas de retenção e evasão; e IV – contribuir para a promoção
da inclusão social pela educação (BRASIL, 2010).
Conforme o artigo 3º deste decreto, o PNAES deverá ser implementado de forma articulada
com as atividades de ensino, pesquisa e extensão, visando o atendimento de estudantes
regularmente matriculados em cursos de graduação presencial das instituições federais de ensino
superior (BRASIL, 2010). E as ações de assistência estudantil deverão ser desenvolvidas nas
seguintes áreas:

I - moradia estudantil;
II - alimentação;
III - transporte;
IV - atenção à saúde;
V - inclusão digital;
VI - cultura;
VII - esporte;
VIII - creche;
IX - apoio pedagógico; e
X - acesso, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos
globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação (BRASIL, 2010).

Ainda de acordo com o decreto, estas ações de assistência estudantil serão executadas por
instituições federais de ensino superior, abrangendo os Institutos Federais de Educação, Ciência e
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Tecnologia, considerando suas especificidades, as áreas estratégicas de ensino, pesquisa e


extensão e aquelas que atendam às necessidades identificadas por seu corpo discente, cabendo à
instituição federal de ensino superior definir os critérios e a metodologia de seleção dos alunos de
graduação a serem beneficiados (BRASIL, 2010).
Conforme se pode depreender destes dispositivos, este programa destina-se apenas ao
atendimento de estudantes das instituições federais de ensino superior, o que é criticado por
diversos analistas da área por diversas razões, dentre elas devido à necessidade de se apoiar, por
exemplo, os estudantes das instituições estaduais que enfrentam as mesmas dificuldades.
Nota-se também que, apesar do programa prever as ações a serem executadas pelas
instituições, deve ser levado em consideração a autonomia das instituições quanto à execução
dessas ações, deixando margem para que as Instituições Federais de Ensino Superior - IFES
executem tais ações conforme suas especificidades, as áreas que lhes sejam estratégicas e mesmo
as modalidades (moradia, alimentação, esportes, etc.) que melhor atendam às necessidades
identificadas junto ao seu corpo discente.
O decreto estabelece ainda que as ações de assistência estudantil devem considerar a
necessidade de viabilizar a igualdade de oportunidades, contribuir para a melhoria do desempenho
acadêmico e agir, preventivamente, nas situações de retenção e evasão decorrentes da
insuficiência de condições financeiras. E determina que deverão ser atendidos no âmbito do
PNAES prioritariamente estudantes oriundos da rede pública de educação básica ou com renda
familiar per capita de até um salário mínimo e meio, sem prejuízo de demais requisitos fixados
pelas instituições federais de ensino superior (BRASIL, 2010). Ou seja, o decreto elege como
público prioritário aqueles estudantes mais necessitados de assistência, assumindo assim um
caráter social.
Além disso, o decreto estabelece que as instituições federais de ensino superior deverão
fixar os requisitos para a percepção de assistência estudantil e os mecanismos de acompanhamento
e avaliação do PNAES, além de prestar todas as informações referentes à implementação do
programa solicitadas pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2010).
Neste quesito, é importante destacar que o decreto não estabelece em seu texto maiores
esclarecimentos quanto ao processo de monitoramento e avaliação do programa, deixando a cargo
das instituições de ensino a proposição das mesmas.
Por fim, o decreto estabelece que as despesas do PNAES corram à conta das dotações
orçamentárias anualmente consignadas ao Ministério da Educação ou às instituições federais de
ensino superior, devendo o Poder Executivo compatibilizar a quantidade de beneficiários com as
dotações orçamentárias existentes, observados os limites estipulados na forma da legislação
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orçamentária e financeira vigente. E que os recursos serão repassados às instituições federais de


ensino superior, que deverão implementar as ações de assistência estudantil (BRASIL, 2010).
Nota-se que o decreto não criou nem estabeleceu uma fonte de recursos específica para
atendimento das ações do PNAES. Assim, as ações de assistência estudantil bem como a
quantidade de beneficiários do programa devem ser compatibilizadas com os limites
orçamentárias previstos para essas instituições pela legislação orçamentária e financeira.

3. Metodologia e Desenho do Estudo

A revisão sistemática da literatura (RSL) é uma técnica muito utilizada nas ciências da
saúde, mas que pode ser utilizada em todas as áreas do conhecimento. Na área das ciências sociais
e humanas, esta técnica vem ganhando espaço e despontando em anais de congresso, revistas,
artigos científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado, como opção metodológica
relevante.
Enquanto a revisão da literatura simples ou também chamada de narrativa, apenas analisa
a visão ou conceitos de um número restrito de trabalhos de uma forma mais descritiva e discursiva,
a revisão sistemática de literatura é mais ampla e analítica, pois a partir de um problema ou
pergunta bem definida recupera-se um conjunto muito maior de trabalhos (BOTTENTUIT
JUNIOR; SANTOS, 2014).
Para Mendes, Silveira e Galvão (2008) uma revisão de literatura sistemática deverá levar
em consideração algumas etapas importantes, são elas: Definição do tema, objetivos e questão de
pesquisa; Estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão; Definição das informações a serem
extraídas e categorização dos estudos; Análise dos estudos selecionados; Interpretação e discussão
dos resultados e; Síntese do conhecimento ou das informações obtidas.
Assim, para a consecução deste estudo, o primeiro passo foi a delimitação do tema através
da formulação da pergunta de investigação que versou sobre a verificação do quantitativo
disponível de dissertações e teses sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES
no país. Em seguida, elaboraram-se os fatores de inclusão e exclusão para que pudéssemos obter
um quantitativo significativo de trabalhos a serem analisados.
A partir do estabelecimento destes critérios, iniciou-se a busca por trabalhos na base de
dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) nos meses de
maio e junho de 2017, utilizando os seguintes descritores: “PNAES”, “Programa Nacional de
Assistência Estudantil”, “Plano Nacional de Assistência Estudantil” e “Política Nacional de
Assistência Estudantil”. A utilização desses descritores visou selecionar o maior quantitativo
possível de dissertações e teses sobre este programa, visto que apesar do Decreto nº 7.234/2010
dispor sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil, o próprio site do Ministério da
Educação se refere a este programa como “Plano Nacional de Assistência Estudantil”, além disso,
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observou-se, durante a pesquisa, que alguns trabalhos utilizam a expressão “Política Nacional de
Assistência Estudantil” para se referir a este programa.
Os fatores de inclusão e exclusão são os descritos a seguir:
Fatores de Inclusão Fatores de Exclusão

a) Estudos em nível de mestrado e a) Estudos realizados em conclusão de


doutorado sobre o Programa Nacional de cursos de graduação e especialização;
Assistência Estudantil no Brasil;
b) Dissertações e teses que não se
b) Teses e dissertações disponíveis na base encontrem disponíveis no Banco de Teses
de dados da Coordenação de e Dissertações da Capes;
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
c) Dissertações e teses disponíveis em
Superior (Capes);
outros idiomas que não sejam os escritos
c) Dissertações e teses escritas em língua em língua portuguesa;
portuguesa;
d) Dissertações e teses que pesquisaram
d) Dissertações e teses que pesquisaram mais de três instituições de ensino;
até três instituições de ensino;
e) Estudos de cunho exclusivamente
e) Estudos que incluam análise empírica teórico, que não investigaram uma
em ao menos uma instituição federal de instituição federal de ensino superior
ensino superior. específica.

Para a formação da base de dados documental das teses e dissertações que fizeram parte
da amostra deste estudo, executou-se uma busca sistemática no banco de Teses e Dissertações da
Capes. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) é uma fundação
vinculada ao Ministério da Educação que tem como atribuições a avaliação da pós-graduação
stricto sensu, acesso e divulgação da produção científica, investimentos na formação de
especialistas de alto nível e promoção da cooperação científica internacional. Conforme
informações do site desta instituição, como forma de oferecer acesso a informações consolidadas
e que reflitam as atividades do sistema nacional de pós-graduação brasileiro, a Capes coloca à
disposição da comunidade acadêmica o Banco de Teses e Dissertações na qual é possível consultar
todos os trabalhos defendidos na pós-graduação brasileira ano a ano.
Neste sentido, foi possível pré-selecionar um quantitativo de 75 trabalhos. No entanto,
alguns deles, apesar de se enquadrarem em algumas das categorias de inclusão, não foram
contabilizados para o computo final por serem estudos de cunho exclusivamente teórico ou que
não estudavam o Programa Nacional de Assistência Estudantil em até três instituições federais de
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ensino superior específicas. Desta forma, foram excluídos desta análise os trabalhos de Saccaro
(2016), Prada (2015), Nascimento (2013), Zambello (2015), Lepore (2014), Carvalho (2012) e
Barros (2014). Entre os trabalhos que não fizeram parte do banco de dados deste artigo merecem
destaque os trabalhos de Silveira (2012), que faz uma análise sobre as políticas de permanência
das universidades federais brasileiras a partir de dados de quatorze Universidades Federais;
Taufick (2013), que faz uma avaliação da Política de Assistência Estudantil dos institutos federais
para o PROEJA considerando dados de trinta institutos federais; e Mussio (2015), que faz uma
análise da alimentação no âmbito da assistência estudantil considerando dados e informações de
sessenta e três universidades federais brasileiras. Também foi excluído do presente estudo o
trabalho de Pereira (2016), por ter como campo de análise não uma instituição federal de ensino
superior, e sim de uma Associação de Assistência ao Adolescente.
Após a formação da base de dados de trabalhos a serem analisados, criou-se um
instrumento de análise destes trabalhos baseado em fichas de análise de produções científicas,
onde se definiu as informações a serem extraídas, que contemplou nove categorias de análise,
entre elas o autor da tese ou dissertação, o título do trabalho, o ano da defesa, nome do programa
de pós-graduação, Instituição de Ensino, área de conhecimento/avaliação, Instituição de Ensino
pesquisada, unidade da federação e região da instituição pesquisada.
Após análise de todos os trabalhos encontrados foi possível considerar sessenta e quatro
dissertações de mestrado e duas teses de doutorado que se encontravam dentro dos padrões de
análise pré-estabelecidos nos fatores de inclusão e exclusão.

4. Resultados

Conforme apontado anteriormente neste artigo, o Programa Nacional de Assistência


Estudantil- PNAES foi instituído incialmente em dezembro de 2007 pela Portaria Normativa nº
39 do Ministério da Educação, e posteriormente regulamentado pelo Decreto nº 7.234, de 19 de
julho de 2010. Assim, a presente pesquisa pôde identificar que somente a partir de 2010 foram
defendidos trabalhos sobre as ações desenvolvidas pelo PNAES. No período compreendido entre
2007 e 2009 não foi localizado nenhum trabalho constantes no banco de teses e dissertações da
CAPES, sobre o tema.

Figura 1: Distribuição do quantitativo de trabalhos por ano

Ano N %
2010 1 1,56%
2011 0 0,00%
2012 7 10,94%
2013 13 20,31%
2014 13 20,31%
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20 2015 18 28,13%
2016 12 18,75%
15 Total 64 100,00%

10

0
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

Nota-se que a maior concentração de trabalhos sobre o PNAES ocorreu entre os anos de
2013 e 2016, contando com um total de 56 trabalhos, o que representa 87,5 % do total de trabalhos
que fizeram parte do banco de dados desta pesquisa. Esta concentração pode ser explicada pelo
fato que a maioria das pesquisas buscou identificar como o programa vinha sendo implementado,
e para isso precisa-se de um tempo de implementação para se fazer uma análise, considerando que
o programa foi instituído no ano de 2007.
Percebe-se ainda uma curva ascendente no número de trabalhos produzidos a partir do ano
de 2012, o que demonstra um maior interesse dos pesquisadores neste programa, a partir de sua
consolidação no cenário das políticas públicas de educação em âmbito nacional. O número menor
de trabalhos recenseados no ano de 2016 pode ser explicado pela defasagem no tempo entre a
defesa do trabalho e a disponibilização no banco de dados da CAPES, visto que este processo não
ocorre de maneira automática. Assim, novos trabalhos podem ser disponibilizados após conclusão
desta pesquisa, realizada entre os meses de maio e junho de 2017.
Outro ponto de interesse neste artigo foi o tipo de programas de pós-graduação, se
mestrados acadêmicos, profissionais ou doutorados, e as áreas de conhecimento dos referidos
programas. Neste quesito vale destacar que de acordo com a Portaria Normativa nº 17, de 28 de
dezembro de 2009, do Ministério da Educação, o mestrado profissional é uma modalidade de pós-
graduação stricto sensu que possibilita:

I - a capacitação de pessoal para a prática profissional avançada e transformadora de


procedimentos e processos aplicados, por meio da incorporação do método científico,
habilitando o profissional para atuar em atividades técnico-científicas e de inovação; II -
a formação de profissionais qualificados pela apropriação e aplicação do conhecimento
embasado no rigor metodológico e nos fundamentos científicos; III - a incorporação e
atualização permanentes dos avanços da ciência e das tecnologias, bem como a
capacitação para aplicar os mesmos, tendo como foco a gestão, a produção técnico-
científica na pesquisa aplicada e a proposição de inovações e aperfeiçoamentos
tecnológicos para a solução de problemas específicos (BRASIL, 2009).

Ainda de acordo com a Portaria, são objetivos do mestrado profissional:


I - capacitar profissionais qualificados para o exercício da prática profissional avançada
e transformadora de procedimentos, visando atender demandas sociais, organizacionais
ou profissionais e do mercado de trabalho; II - transferir conhecimento para a sociedade,
atendendo demandas específicas e de arranjos produtivos com vistas ao desenvolvimento
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nacional, regional ou local; III - promover a articulação integrada da formação


profissional com entidades demandantes de naturezas diversas, visando melhorar a
eficácia e a eficiência das organizações públicas e privadas por meio da solução de
problemas e geração e aplicação de processos de inovação apropriados; IV - contribuir
para agregar competitividade e aumentar a produtividade em empresas, organizações
públicas e privadas (BRASIL, 2009).

Deste modo, o mestrado profissional é um título, que se distingue do acadêmico porque


este último prepara um pesquisador para vida acadêmica, enquanto no mestrado profissional o que
se pretende é introduzir um pós-graduando na pesquisa, fazer que ele a conheça bem, mas não
necessariamente que ele depois continue a pesquisar.
Feitas essas considerações gerais, observa-se que dos trabalhos recenseados apenas dois
foram teses de doutorado, um na área de serviço social e outro na área de educação. Quanto a
modalidade dos mestrados, dezenove foram na modalidade profissional enquanto quarenta e três
na modalidade acadêmico, conforme tabela a seguir:
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Tabela 1: Frequência de trabalhos por tipo de Programa


Tipo de Programa N %
Doutorado 2 3,13%
Mestrado Profissional 19 29,69%
Mestrado Acadêmico 43 67,19%
TOTAL 64 100,00%

Outro foco deste artigo foi identificar as áreas do conhecimento destes trabalhos, visando
identificar as áreas preferencias em que foram produzidos estes estudos. Para efeito de análise
quanto às áreas de conhecimento, este artigo considerou as quarenta e nove áreas de avaliação dos
programas de pós-graduação definidas pela Capes. Os resultados estão dispostos na tabela abaixo:

Tabela 2: Número de trabalhos por Área de Conhecimento


Área de avaliação N %
Serviço Social 22 34,38%
Educação 21 32,81%
Administração Pública e
de Empresas, Ciências
Contábeis e Turismo 7 10,94%
Interdisciplinar 6 9,38%
Planejamento Urbano e
Regional / Demografia 2 3,13%
Sociologia 2 3,13%
Economia 1 1,56%
Direito 1 1,56%
Medicina 1 1,56%
Psicologia 1 1,56%
TOTAL 64 100,00%

Nota-se que a maioria dos trabalhos (67%) foi produzida nas áreas de Serviço Social e
Educação. Isto pode ser explicado pelo fato do PNAES se tratar de uma política pública com
interfaces tanto com a política de assistência social quanto com a política de educação, tornando-
se assim alvo preferencial de pesquisadores tanto da área de educação quanto da área de serviço
social. Nota-se também que parte relevante dos trabalhos (20%) são oriundos de programas de
pós-graduação de natureza interdisciplinar ou de programas na área de administração pública e de
empresas, que se dedicam a estudar programas de governo de modo geral.
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Gráfico 1: Distribuição dos Trabalhos por Área de


Conhecimento

3% 3%
6%

9% 35%

11%

33%

Serviço Social
Educação
Administração Pública e de Empresas, Ciências Contábeis e Turismo
Interdisciplinar
Outros
Planejamento Urbano e Regional / Demografia
Sociologia

Quanto as instituições de ensino destes programas de pós-graduação, onde foram


produzidas as dissertações e teses, observou-se uma distribuição bem variada entre diversas
instituições do país, com um leve destaque para Universidade de Brasília com cinco trabalhos,
destes, três foram produzidos no âmbito do mestrado profissional em educação, um no mestrado
profissional em economia e um no mestrado profissional em gestão pública. As demais
instituições tiveram entre um e três trabalhos produzidos. Conforme tabela abaixo:

Tabela 3: Instituições de Ensino dos Programas de pós-graduação


Instituições de Ensino N %
Universidade de Brasília 5 7,81%
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 3 4,69%
Universidade Estadual do Oeste do Paraná 3 4,69%
Universidade Federal da Paraíba 3 4,69%
Universidade Federal de Santa Maria 3 4,69%
Universidade Federal do Espírito Santo 3 4,69%
Universidade Federal do Ceará 2 3,13%
Pontifícia Universidade Católica de Goiás 2 3,13%
Universidade Católica de Pelotas 2 3,13%
Universidade Estadual Paulista Júlio De Mesquita Filho 2 3,13%
Universidade Federal da Bahia 2 3,13%
Universidade Federal de Juiz de Fora 2 3,13%
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Universidade Federal de Lavras 2 3,13%


Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2 3,13%
Universidade Federal do Tocantins 2 3,13%
Centro Universitário de Bauru 1 1,56%
Faculdade Novos Horizontes 1 1,56%
Universidade Federal de Sergipe 1 1,56%
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1 1,56%
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 1 1,56%
Universidade Católica Dom Bosco 1 1,56%
Universidade Cruzeiro do Sul 1 1,56%
Universidade de São Paulo 1 1,56%
Universidade de Taubaté 1 1,56%
Universidade do Estado da Bahia 1 1,56%
Universidade do Vale do Itajaí 1 1,56%
Universidade do Vale do Rio dos Sinos 1 1,56%
Universidade Estadual de Londrina 1 1,56%
Universidade Federal de Mato Grosso 1 1,56%
Universidade Federal de Pernambuco 1 1,56%
Universidade Federal de Rondônia 1 1,56%
Universidade Federal de São Paulo 1 1,56%
Universidade Federal de Uberlândia 1 1,56%
Universidade Federal do Amazonas 1 1,56%
Universidade Federal do Maranhão 1 1,56%
Universidade Federal do Pará 1 1,56%
Universidade Federal do Piauí 1 1,56%
Universidade Federal Fluminense 1 1,56%
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 1 1,56%
Universidade Metodista de São Paulo 1 1,56%
Universidade Nove de Julho 1 1,56%

O presente artigo identificou que os trabalhos foram desenvolvidos em quarenta e uma


instituições de ensino diferentes, o que demonstra que o PNAES desperta o interesse geral dos
pesquisadores das mais diversas instituições de ensino do país.
Quanto às instituições de ensino que foram campo dos estudos, nota-se também uma
grande variedade de instituições federais de ensino superior pesquisadas. Conforme tabela a
seguir:
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Tabela 4: Instituições de Ensino Pesquisadas


Instituições Pesquisadas N %
Institutos Federais 22 34,38%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia 1 1,56%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas 1 1,56%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília 2 3,13%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás 1 1,56%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima 1 1,56%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo 3 4,69%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Ceará 1 1,56%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão 1 1,56%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Norte de Minas Gerais 1 1,56%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí 2 3,13%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais 1 1,56%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins 4 6,25%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia no Rio Grande do Sul; Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha; Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Sul-rio-grandense 1 1,56%
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense 1 1,56%
Instituto Federal Goiano 1 1,56%
Universidades Federais 41 64,06%
Universidade de Brasília 2 3,13%
Universidade Federal da Bahia 1 1,56%
Universidade Federal da Fronteira Sul 2 3,13%
Universidade Federal da Paraíba 1 1,56%
Universidade Federal de Alfenas; Universidade Federal de Itajubá; Universidade Federal de
Lavras 1 1,56%
Universidade Federal de Campina Grande; Universidade Federal da Paraíba 1 1,56%
Universidade Federal de Itajubá 1 1,56%
Universidade Federal de Juiz de Fora 2 3,13%
Universidade Federal de Lavras 1 1,56%
Universidade Federal de Mato Grosso 1 1,56%
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul 2 3,13%
Universidade Federal de Minas Gerais 1 1,56%
Universidade Federal de Pernambuco 1 1,56%
Universidade Federal de Santa Maria 1 1,56%
Universidade Federal de Santa Maria; Universidade Federal do Rio Grande do Sul 1 1,56%
Universidade Federal de São Paulo; Universidade Federal de São Carlos; Universidade Federal
de ABC 1 1,56%
Universidade Federal de Sergipe 1 1,56%
Universidade Federal de Uberlândia 1 1,56%
Universidade Federal do Amazonas 2 3,13%
Universidade Federal do Ceará 1 1,56%
Universidade Federal do Espírito Santo 3 4,69%
Universidade Federal do Pampa 1 1,56%
Universidade Federal do Pará 1 1,56%
Universidade Federal do Paraná 1 1,56%
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 1 1,56%
Universidade Federal do Rio de Janeiro 2 3,13%
Universidade Federal do Rondônia 1 1,56%
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Universidade Federal do Sul da Bahia 1 1,56%


Universidade Federal do Triângulo Mineiro 1 1,56%
Universidade Federal Fluminense 1 1,56%
Universidade Tecnológica Federal do Paraná 3 4,69%
Universidades Federais e Particulares 1 1,56%
Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul 1 1,56%
TOTAL 64 100,00%

Entre as instituições de ensino mais pesquisadas destacam-se o Instituto Federal de


Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins, com quatros trabalhos, o Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, a Universidade Federal do Espírito Santo e a
Universidade Tecnológica do Paraná, com três trabalhos cada. Destaca-se ainda que a maioria dos
estudos tiveram como campo de estudo as Universidades Federais (64%). Do total de sessenta e
quatro estudos, apenas seis tiveram como campo de estudo mais de uma instituição de ensino, e
apenas um deles realizou uma análise comparativa entre as ações de assistência estudantil em uma
universidade federal e uma universidade particular.

Gráfico 3: Tipo de instituições de ensino pesquisadas


45
40
41
35
30
25
20 22
15
10
5
1
0
Universidades Federais Institutos Federais Universidade Federal e Particular

Quanto a distribuição geográfica dos estudos, nota-se uma preponderância de estudos


sobre instituições de ensino localizadas na região sudeste do país com 31,25% do total, com
destaque para o estado de Minas Gerais que concentrou o maior número de trabalhos realizados
com 15%. A região nordeste foi a segunda mais pesquisada com um total de 14 trabalhos,
representando aproximadamente 22% do total, e em seguida a região sul com 18,75%, um total
de 12 trabalhos. As regiões norte e centro-oeste tiveram a mesma quantidade de estudos com cerca
14% do total cada. Conforme figura abaixo:

Figura 2: Distribuição dos trabalhos por Estados das instituições pesquisadas


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2
1 1 2
2
2 1
1
4 1
1
4
1
4
2
10
3
2
4 3

REGIÃO N %
Sudeste 20 31,25%
Nordeste 14 21,88%
Sul 12 18,75%
Centro-oeste 9 14,06%
Norte 9 14,06%
Total 64 100,00%

Os nove estados da federação mais estudados foram: Minas Gerais (10), Rio Grande do
Sul (6), Paraná (5), Bahia (4), Distrito Federal (4), São Paulo (4), Tocantins (4), Rio de Janeiro
(3) e Espírito Santo (3). Estes estados somados representam 67% do total de estados pesquisados.

Tabela 5: Distribuição dos trabalhos por estados da federação


UF N % UF N % UF N %
MG 10 15,63% ES 3 4,69% MT 1 1,56%
RS 6 9,38% CE 2 3,13% PA 1 1,56%
PR 5 7,81% PB 2 3,13% PE 1 1,56%
BA 4 6,25% AM 2 3,13% RO 1 1,56%
DF 4 6,25% GO 2 3,13% RR 1 1,56%
SP 4 6,25% MS 2 3,13% SE 1 1,56%
Página 793 de 2230

TO 4 6,25% PI 2 3,13% AL 1 1,56%


RJ 3 4,69% MA 1 1,56% PR/RS/SC 1 1,56%

Nota-se que em contraposição a alguns estados que tiveram diversas instituições de ensino
examinadas, apenas três estados ainda não tiveram suas instituições de ensino como campo de
estudo do PNAES, são eles: Acre, Amapá e Rio Grande do Norte. Destaca-se que um dos trabalhos
teve como campo de estudo uma instituição de ensino que possui localização em mais de um
estado da federação, a Universidade Federal da Fronteira Sul, que engloba os estados do Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

5. Considerações Finais

A expansão do ensino superior vem contemplando a diversidade dos grupos sociais e


consequentemente trazendo à tona a questão da permanência desses estudantes neste nível de
ensino, que reconhecidamente é dispendioso e excludente, exigindo principalmente dos mais
pobres economicamente investimentos que muitas vezes não terão condições de fazê-los.
Assim, é importante a criação de estratégias ou mecanismos institucionais que possam
assisti-los. Por consequência disso, a assistência estudantil passou a ser exigida à agenda
governamental para responder à peculiaridade da inclusão desses grupos sociais na Universidade.
É neste contexto que se criou o Programa Nacional de Assistência Estudantil - PNAES pelo
Governo Federal. Apesar da maioria das instituições já possuírem ações de assistência estudantil,
a regulamentação dessas ações é algo que há muito tempo vinha sendo almejado pelos
profissionais que atuam nos setores ligados a assistência estudantil das Instituições Federais de
Ensino Superior.
Considerando a criação do PNAES no ano de 2007, este trabalho buscou realizar uma
breve descrição deste programa a partir do disposto no Decreto nº 7.234/10, e identificar a
quantidade de teses e dissertações já produzidas no país, bem como as instituições estudadas, entre
os anos de 2007 e 2016, a partir de uma Revisão Sistemática de Literatura. Buscou-se ainda
analisar se há algum tipo de concentração destes estudos em determinadas áreas do conhecimento,
instituições de ensino, estados ou regiões do país.
Sobre a pergunta central que norteou esta pesquisa “Qual o quantitativo disponível de
dissertações e teses sobre o PNAES produzidas no País?”, pode-se afirmar que apesar do pouco
tempo de criação deste programa, já existe um número considerável de trabalhos produzidos.
Observou-se que a maioria dos trabalhos se concentra na área de Ciências Sociais, particularmente
na área de educação e serviço social, por ser o PNAES, um programa com interface em ambas as
políticas. Quanto às instituições de ensino, estados e regiões do país investigadas, observou-se
uma distribuição de trabalhos entre as mais diversas instituições, apenas três estados da federação
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não tiveram nenhuma instituição em seu território investigada, observou-se ainda a realização de
trabalhos em todas as regiões do país, a distribuição de trabalhos entre as regiões demonstra certa
correlação com a distribuição populacional do país, sendo as regiões mais populosas as que
apresentaram o maior número de trabalhos.
Como possibilidade de investigação futura sobre o PNAES, sugere-se: mapear os
principais instrumentos de análise utilizados na realização destes trabalhos; identificar os
principais resultados encontrados; e analisar os êxitos e limitações a implementação deste
programa. Desta forma, poderia se construir um panorama geral da execução deste programa no
país, visando dar transparência às ações públicas e melhorar as políticas e ações do Estado,
recomendando e sugerindo modificações na formulação, na implementação e nos resultados.

REFERÊNCIAS

BALDIJÃO, C. E.; TEIXEIRA, Z. A. A educação no governo Lula. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2011.

BARROS. M.W.O. FIES: Políticas Públicas de Acesso e permanência no ensino superior.


Dissertação de Mestrado Profissional em Políticas Públicas e Gestão da Educação Superior.
Fortaleza: Universidade Federal do Ceará. 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em: 31 mai.
2017.

______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional:
Lei 9.394/1996. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso
em: 31 mai. 2017.

______. Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa de Apoio a Planos de


Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - REUNI. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6096.htm> Acesso em: 31
mai. 2017.

______. Decreto nº 7.234, de 19 de julho de 2010.


Dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7234.htm>. Acesso em: 31
mai. 2017.

______. Portaria Normativa nº 39, de 12 de dezembro de 2007. Institui o Programa Nacional de


Assistência Estudantil - PNAES.
Disponível em:
<https://www.capes.gov.br/images/stories/download/legislacao/Portaria_Normativa_38_PIBID.
pdf>. Acesso em: 31 mai. 2017.

______. Portaria Normativa nº 17, de 28 de dezembro de 2009. Dispõe sobre o mestrado


profissional no âmbito da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - CAPES. Disponível em:
Página 795 de 2230

<https://www.capes.gov.br/images/stories/download/legislacao/PortariaNormativa_17MP.pdf>
Acesso em: 31 mai. 2017.

BOTTENTUIT JUNIOR, J.B.; SANTOS, C. G. Revisão Sistemática da Literatura de


Dissertações Sobre a Metodologia WebQuest. Revista EducaOnline, Rio de Janeiro, v. 8, 2014.

CARVALHO. C.Q.L. O Processo de trabalho do (a) assistente social na Universidade pública:


Análise da “política de assistência estudantil” da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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SEM TERRINHA E O DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL: ABORDAGEM


PRELIMINAR A PARTIR DA VIVÊNCIA NO ASSENTAMENTO VILA DIAMANTE

WITHOUT LAND AND THE RIGHT TO CHILDHOOD EDUCATION:


PRELIMINARY APPROACH FROM LIVING IN THE VILA DIAMANTE
SETTLEMENT
Enaire de Maria Sousa da Silva
Mestranda m Desenvolvimento Socioeconômico (UFMA)
Gustavo Gomes da Silva Marques
Graduando em Serviço Social (UFMA)
Orientadora: Cláudia Alves Durans
Profª Drª no Departamento de Serviço Social (UFMA)
Eixo: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O artigo aborda os principais aspectos pedagógicos desenvolvidos pelo Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST) nos processos educativos de suas crianças, denominadas de “sem
terrinha”. Para tanto, realizou-se, de maneira inicial, levantamento bibliográfico referente à
formação do campo brasileiro, assim como dos movimentos sociais oriundos do mesmo, até se
chegar ao MST. Posteriormente, abordou-se as especificidades dos processos pedagógicos do
MST e, por fim, através de pesquisa de campo, como tais aspectos vêm sendo inseridos no
assentamento Vila Diamante. Concluiu-se que os princípios do movimento vêm sendo
implementados dentro da comunidade, e que a participação de professores, crianças e famílias tem
sido fundamental durante esse processo.
Palavras-chave: MST. Vila Diamante. Educação.

Abstract:The article addresses the main pedagogical aspects developed by the Landless Workers
Movement (MST) in the educational processes of their children, called “landless”. To this end, an
initial bibliographic survey was carried out regarding the formation of the Brazilian countryside,
as well as the social movements that came from it, until reaching the MST. Subsequently, the
specificities of the MST's pedagogical processes were addressed and, finally, through field
research, how such aspects have been inserted in the Vila Diamante settlement. It was concluded
that the movement's principles have been implemented within the community, and that the
participation of teachers, children and families has been fundamental during this process.
Keywords: MST. Vila Diamante. Education.

INTRODUÇÃO

Neste artigo intitulado “Sem Terrinha e o direito à Educação Infantil: abordagem preliminar
a partir da vivência no assentamento Vila Diamante” elege-se por objeto de estudo a educação de
crianças que vivem com suas famílias no assentamento rural do Movimento dos Trabalhadores
Página 798 de 2230

Sem Terra (MST) Vila Diamante, localizado no município de Igarapé do Meio – MA,
identificando as dificuldades enfrentadas pelas famílias e as estratégias formuladas pelo
movimento para assegurar o direito à Educação do Campo às suas crianças.

Considerando que dentro do contexto da Educação do Campo o MST possui uma


proposta pedagógica específica para as crianças de seus assentamentos, será analisado de que
maneira tal pedagogia é inserida no cotidiano escolar, assim como na comunidade como um todo.

Parte-se da ideia de que por um longo período da história brasileira a educação foi
considerada um bem restrito às pessoas das classes sociais abastadas. A conquista por escolas que
abarcassem as classes mais desfavorecidas foi fruto de luta. Apesar de hoje a educação, de acordo
com a Constituição Federal de 1988 e com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA,1990),
ser direito de todas as crianças e dever do Estado a sua garantia, sua efetivação ainda é precária.

Algumas revistas como a Carta Capital e a Revista Educação chegaram a abordar a


educação no campo e afirmam que a situação é bem mais séria quando se analisa o número de
escolas rurais que foram fechadas. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP) aproximadamente 30 mil escolas do campo fecharam as
portas em um prazo de 10 anos.

Hoje, apesar da precariedade da educação no campo, algumas conquistas já foram


alcançadas, e a principal encontra-se no reconhecimento legal de que a população rural também é
detentora de todos os direitos fundamentais, inclusive a educação. Através disso, a educação vem
sendo estendida ao campo.

Cabe salientar que quando se aborda a educação no campo, considera-se o uso de


didáticas que se adequem ao modo de vida das comunidades que lá residem, assim como a cultura
local, com respeito às suas especificidades e, principalmente, aos conhecimentos empíricos
obtidos por elas. Estes, incontestavelmente, serão muito úteis ao educador, assim como ao
processo de educar.

Frente às suas inúmeras conquistas, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)
encontra o desafio da efetivação de políticas públicas dentro das comunidades assentadas, levando
em conta que as necessidades básicas nesses ambientes são as mesmas dos demais segmentos da
sociedade, e que sem elas a sobrevivência e a reprodução social se tornam inviáveis. Desconsiderar
o processo educacional nos assentamentos rurais significa comprometer o desenvolvimento de um
segmento que compõe a sociedade.
Página 799 de 2230

É importante frisar que por se tratar de um contexto permeado pelo ativismo e pela
militância, infere-se que a infância nesses ambientes traz para as crianças um conhecimento único
a respeito das temáticas defendidas pelo MST. Esse aprendizado é incorporado na vida de todos
que ali estão, mais do que ensinado é algo vivenciado e, partindo do princípio de que a educação
vai além dos ensinamentos escolares, este fator se torna decisivo no processo de formação
humana, social e cultural das crianças que ali residem.

O MST, na tentativa de facilitar a formação de cidadãos dentro do movimento,


desenvolve Os Sem Terrinha, composto por todas as crianças do Movimento, onde as mesmas
realizam oficinas, produções artísticas e brincadeiras educativas. É demonstrado então que as
crianças são inclusas no processo de lutas do movimento na medida em que se desenvolvem.

O trabalho buscou compreender de que forma acontecem essas atividades, se estão sendo
ou não efetivadas, a visão das crianças (enquanto público alvo) acerca do que vem sendo
desenvolvido nos assentamentos com relação à educação, assim como da comunidade assentada
em geral. Ademais, a pesquisa analisa a Educação do Campo dentro das escolas do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em particular no assentamento Vila Diamante, na
perspectiva de efetivação da proposta pedagógica do Movimento.

1. A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL E O MST

De modo geral, compreende-se que o Brasil possui uma Questão Agrária, que tem
múltiplas expressões e raízes históricas pela gênese desta formação social. É sabido que desde a
invasão do território pelos europeus, principalmente portugueses, as terras foram apropriadas
através de Sesmarias e Capitanias Hereditárias, e que o modelo de exploração deu-se pelo
latifúndio, monocultura, com a utilização do trabalho escravizado (FERNANDES, 2013).

Tal contexto provoca, até os dias atuais, profundas marcas, pois como é de conhecimento
também, o Brasil não chegou a realizar a reforma agrária, por conseguinte, dado a imensa
concentração de terras, e grande número de pessoas que necessitam dela para produzir, está
estabelecido um acirrado conflito no campo brasileiro.

Em consequência disso, uma grande parcela da população rural brasileira vive em


péssimas condições, diante de uma acentuada concentração fundiária, onde uma pequena parcela
da população se beneficia da utilização de grande parte das terras agrícolas. São eles os grandes
fazendeiros e latifundiários que, vinculados à produção em larga escala e voltada para a
exportação, fazem da terra um "grande negócio".

É o chamado Agronegócio. Essa é a terminologia usada desde a década de 1990 até os


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dias atuais para identificar o modelo de desenvolvimento capitalista da agropecuária brasileira.


Tal modelo surge como decorrência do sistema de plantation, momento em que as produções são
caracterizadas pela utilização de muitos hectares para a plantação. Com base nisso, a nomenclatura
“Agronegócio”, carrega consigo a intenção de romper com uma agricultura unicamente
latifundiária (FERNANDES, 2013).

É possível concluir, através da enorme quantidade de terras utilizada, que se trata de uma
produção em larga escala. Contrastando com tal fato, é legado à maior parte da população rural
sobreviver com o pouco da terra que lhe resta, ou como muito frequentemente ocorre, são levados
a servir de mão-de-obra aos grandes proprietários de terra, sujeitando sua força de trabalho à
exploração do capital, dando então movimento à dinâmica do Agronegócio no Brasil.

Desse contexto é possível compreender como a população do campo passa a se situar à


margem social: grande parte se vê obrigada a servir de força de trabalho a baixo custo, pois sem
terra para viver, produzir e se reproduzir, não lhe resta outro meio de garantir o sustento familiar.

Outra saída buscada pelos camponeses refere-se ao deslocamento para os centros


urbanos, ocasionando assim diversos problemas estruturais e sociais nas grandes cidades - tais
como o inchaço urbano - além da proliferação de favelas que, considerando o modo no qual são
originadas, e a ausência de políticas públicas, não oferecem as condições de vida adequadas para
a reprodução social.

Abordar essa lógica significa analisar os resquícios que a colonização do Brasil deixou
na atualidade. Aquele foi um período em que a colônia foi organizada para suprir as necessidades
dos países europeus, marcado pela força de trabalho escrava, e o intenso controle da Coroa
Portuguesa que tinha como única meta a obtenção de lucro através dos produtos advindos daquela
terra. Disso, se conclui que, no Brasil, o domínio da terra nunca seguiu a lógica da povoação, mas
sim, do mercado.

Caio Prado Junior, afirma que:

(...) De uma tal atribuição respectiva de funções às duas categorias fundamentais da


população colonial - empresários e dirigentes do negócio, de um lado; trabalhadores e
fornecedores de mão de obra, do outro -, tinha que naturalmente resultar como de fato
resultou a apropriação da terra, principal recurso natural oferecido e a ser aproveitado e
explorado pela minoria dos primeiros. Os demais não deveriam participar do
empreendimento senão como trabalhadores. O essencial da estrutura agrária brasileira
legada pela colônia se encontrava assim como que predeterminada no próprio caráter e
nos objetivos da colonização. (PRADO JUNIOR, 1979, p. 48).

Ou seja, não haveria como ser diferente dada a relação de explorador x explorado (o
objetivo dos europeus no Brasil era de "explorar"), que proporcionou reflexos em todos os âmbitos
da colônia, e na questão territorial não poderia ser de outra forma.
Página 801 de 2230

Não se pode deixar de incluir nesse contexto, a promulgação da Lei nº 601, do ano 1850,
a primeira Lei de Terras, que foi o momento em que se passou a ter no Brasil a terra como
mercadoria. Tal medida foi tomada na tentativa de evitar que os recém-libertos se apossassem das
terras, e passassem a produzir nas mesmas. Foi o ponto de partida para a geração do latifúndio no
Brasil, visto que apenas os colonizadores possuíam capital para investir nas terras (STEDILE,
2011).

Os imigrantes, responsáveis por substituírem a força de trabalho escravizada, também


não tiveram o direito à terra, uma vez que, apesar de possuírem moradia e alguns hectares de terras
para a produção, não tinham essa terra como propriedade, levando em conta que tanto a concessão
do uso - apenas, sem direito à posse - das terras, quanto as moradias, era realizada em troca dos
seus trabalhos prestados (MARTINS, 1986).

O campesinato brasileiro foi formado através desses imigrantes, juntamente com os


resultantes da miscigenação entre brancos (portugueses), índios e negros (escravos):

A maioria absoluta dos trabalhadores, ex-escravos e imigrantes começaram a formação


da categoria, que na segunda metade do século XX seria conhecida como sem-terra.
Lutaram pela terra, pelo desentranhamento da terra, numa luta que vem sendo realizada
até hoje. Essas pessoas formaram o campesinato brasileiro, desenraizadas, obrigadas a
migrar constantemente. (...) A ocupação da terra pelos camponeses sem-terra era e é a
principal forma de ter acesso à terra. A ocupação tornara-se uma ocupação histórica da
resistência camponesa. (FERNANDES, 2000, p. 28).

Vale a observação de que a modernização do campo foi implantada pelo Estado e que,
apesar dos grandes fazendeiros terem um papel primordial nesse processo, o Estado brasileiro não
só apoiou como também financiou toda essa nova dinâmica, visando o crescimento
exclusivamente econômico do país. Conclui-se daí a "parceria" entre o público (representado pelo
governo) e o privado (empresários rurais) que muitas vezes não é percebida (PRADO JUNIOR,
2011).

Com o início da república foram registradas as primeiras grandes lutas camponesas do


Brasil (MARTINS, 1981). Da mesma forma que a concentração de terras é uma realidade com
raízes no Brasil-colônia, as resistências camponesas também o são. É um contexto que abrange
até mesmo os primeiros povoadores desta terra. Os índios lutaram e resistiram contra o fato de
serem escravizados, contra o extermínio de seu povo, e ainda contra a anulação de sua cultura
frente à imposição da cultura europeia pelos portugueses.

Em seguida, os escravos lutaram contra as explorações e humilhações a que eram


submetidos enquanto usados de mão-de-obra para a produção da colônia. Rebelavam-se pelo
modo de vida a que estavam submetidos através de rebeliões, fugas, e a consequente construção
dos quilombos (MARTINS, 1981).
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As organizações camponesas foram se fortalecendo ao longo da história, tiveram forte


embasamento com as revoltas de Canudos (1896-1897) e Contestado (1912-1916) e, em 1945,
com as Ligas Camponesas formadas por camponeses que após os mais diversos tipos de
resistências contra as injustiças dos grandes proprietários se uniram, e em alguns anos já eram
representadas em várias partes do Brasil. A resposta do Estado às demandas das Ligas
Camponesas foi a criação da Superintendência Regional de Política Agrária (SUPRA), em 1962,
na tentativa de se estabelecer uma reforma agrária no país (FERNANDES, 2000).

As Ligas Camponesas tinham a compreensão de que apenas a distribuição das terras de


forma igualitária iria solucionar a situação de exploração e submissão na qual os camponeses se
encontravam, portanto, levantavam a bandeira da Reforma Agrária. Tiveram fim com a chegada
da Ditadura Militar.

Nesse contexto, destaca-se ainda a importância da ULTAB (União dos Lavradores e


Trabalhadores Agrícolas). Teve seu início em 1954, e foi fruto das ações do Partido Comunista
Brasileiro (PCB). Importante mencionar ainda o Movimento dos Agricultores Sem Terra
(MASTER), que tem seu início no fim da década de 50, surge no Rio Grande do Sul e possuía a
formação de acampamentos como tática de luta.

A ditadura militar reprimiu violentamente os movimentos camponeses. Os latifundiários,


assim como a burguesia em geral, apoiaram o golpe militar. Foi um período em que as lutas
camponesas sofreram não somente com a forte repressão por parte do governo, mas também pelo
agravamento de todos os problemas agrários até então já existentes, como a desigualdade social e
a forte concentração fundiária decorrente da inserção de maquinarias agrícolas - característica do
modelo desenvolvimentista adotado pelo governo militar.

O Estatuto da Terra serviria como a demonstração de que os militares estariam


preocupados com os problemas agrários, onde:

(...) o objetivo era evitar que a questão agrária se transformasse num problema nacional.
Na pretensão de ter o controle sobre a questão agrária, o governo planejava usar o
Estatuto da Terra, conforme a sua concepção de reforma agrária, em que constavam a
utilização da tributação e os projetos de colonização, de modo que a desapropriação era
uma exceção. No entanto, no final da década de 70, o aumento do número de conflitos
fundiários obrigou o presidente da república a utilizar, intensamente, o recurso da
desapropriação. (FERNANDES, 2000, p. 43)

Com a evolução do capitalismo dentro do campo, a forte repressão contra os


trabalhadores que iam à luta, e a liberdade da qual detinham os grandes latifundiários, a questão
agrária se acentuou cada vez mais e passou a ser um dos problemas centrais do país.

Os movimentos camponeses que atuaram durante a Ditadura Militar, tiveram o apoio da


Comissão Pastoral da Terra (CPT), criada pela Igreja Católica, que articulou os camponeses na
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construção da luta e teve importante atuação no sentido da defesa dos direitos da classe
camponesa. Antes disso, na década de 60, eram fundadas as Comunidades Eclesiais de Base
(CEB's), que ajudaram a politizar os camponeses através de debates e discussões sobre a situação
na qual se encontravam.

A CPT foi muito importante na construção de diversas lutas camponesas que eclodiram
por algumas regiões do Brasil, sobretudo, aquelas que deram base ao hoje consolidado Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Através da mobilização e apoio dados aos
camponeses, a CPT conseguiu articular lutas que se tornaram vitoriosas, mostrando à classe
camponesa a força que tinham e do que eram capazes.

1.1 A Origem do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

Alguns autores, como Mitsue Morissawa, datam a origem do MST em 1979, quando a
Fazenda Macali foi ocupada no Rio Grande do Sul. Antes disso, muitas outras ocupações deram
embasamento ao movimento, como a ocupação na Fazenda Sarandi, também no Rio Grande do
Sul, organizada pelo Movimento dos Agricultores Sem Terra – MASTER146.

É ainda daquele ano que datam-se as ocupações nas glebas de Macali e Brilhante, também
no Rio Grande do Sul. A ocupação veio depois que os trabalhadores rurais já haviam feito suas
reivindicações ao governo e as mesmas não haviam sido atendidas. Apesar de toda a repressão das
tropas policiais, os camponeses resistiram e permaneceram nas terras até que definitivamente
conquistaram o local.

Os camponeses que não puderam permanecer nessas áreas, por falta de espaço, ocuparam
em outubro de 1980 a Fazenda Anonni, localizada no município de Sarandi - RS. No mês seguinte,
diversas famílias representando os camponeses que estavam acampados, se organizaram no centro
de Porto Alegre para pressionar o governo. Parte das famílias foi instalada em assentamentos nos
municípios de Rondinha e Palmeira das Missões.

Ainda em 1980, famílias que não haviam conquistado assentamentos nas lutas anteriores
ocuparam a Encruzilhada Natalino, perto da Fazenda Annoni e das glebas Macali e Brilhante.
Com o decorrer do tempo, o número de famílias dentro do acampamento crescia, assim como a
organização do mesmo. Definiram grupos, funções, estratégias de atuação, e elegeram, inclusive,
uma coordenação. É sustentado em toda a organização e politização do acampamento da
Encruzilhada Natalino que nasce o Boletim Sem Terra, importante documento do MST (MST,

146
O Movimento dos Agricultores Sem Terra – MASTER surgiu em 1960 e tinha como principal reivindicação a
Reforma Agrária. Oriundo do município de Encruzilhada do Sul – RS, surgiu depois que um proprietário de terras
tenta retomar uma área localizada no distrito de Faxinal que era habitada por cerca de 300 famílias.
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online).

A ocupação na Encruzilhada se tornou um marco na constituição do MST devido aos


apoios institucionais da época. Além do apoio da Igreja, agora contavam com o apoio da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), de alguns deputados, e da Imprensa que vinha denunciando
todos os abusos por parte dos militares dentro do acampamento. A união entre os acampados, a
sociedade e estas entidades, fez com que os militares deixassem o acampamento, mas antes disso,
destruíram-no. Os camponeses haviam permanecido por 208 dias no local.

É importante destacar que enquanto os camponeses lutavam naquele estado, vários outros
estados também eram cenários de movimentos similares. Em Santa Catarina, em 1980, os
camponeses conquistaram as terras da Fazenda Burro Branco. Dois anos depois, no Paraná, os
camponeses conquistam as terras da Fazenda Annoni, na cidade de Marmeleiro, no Mato Grosso
do Sul, conquistaram o assentamento Padroeira do Brasil, no município de Nioaque. Em 1984, em
Curitiba, trabalhadores rurais acamparam em frente à sede do INCRA manifestando a necessidade
que tinham de serem assentados. Obtiveram êxito no ano seguinte quando o governo do estado os
assentou na Fazenda Imaribo, no município de Mangueirinha.

Todas essas lutas deram origem a lideranças e a um processo que se tornaria cada vez
mais unificado e coeso. O apoio da Igreja e da CPT foi significativo no sentido de organizar os
camponeses na busca pela terra. Destaca-se ainda que apesar de várias lutas em prol da terra
estarem acontecendo também nesse período dentro do Brasil, se tratavam de lutas isoladas, não
havia uma articulação entre elas na tentativa de se unir por um bem comum como as que aqui
foram mencionadas (MORISSAWA, 2001).

Em Janeiro de 1984, já seria realizado o 1º Encontro Nacional dos Sem Terra, na cidade
de Cascavel, no Paraná. Esse evento foi de suma importância dentro da história das lutas
camponesas, visto que foi através dele que surgiu o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

Nesse momento foram estudadas todas as lutas que haviam sido travadas, as táticas
adotadas, os resultados obtidos e, diante tudo isso, é fundado o Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra. Estava então oficializado que tal movimento seria a entidade máxima de representação
e organização das lutas camponesas no país, a articulação agora seria ainda maior e abrangeria um
maior número de estados (MST, online).

Apesar de o movimento ter originalmente seu início em terras sulistas, o processo de


expansão do movimento pelo país se tornou viável através da própria estrutura criada no MST,
que contava com coordenações, direções e secretárias, que tiveram unicamente a função de
articular, organizar e politizar aqueles camponeses dentro de um movimento nacional, visto que
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as lutas pela terra e contra a exploração são históricas e acontecem de norte a sul neste país desde
a origem do mesmo.

Além de ocuparem em terras campestres, realizam tal ação em prédios públicos, nas
capitais e em frente a bancos. Há também os Acampamentos Permanentes. Quando a ocupação se
torna inviável, como quando há a determinação de Reintegração de Posse por parte da Justiça, os
camponeses se organizam em áreas próximas àquelas que haviam sido ocupadas, ou ao longo de
rodovias. A resistência é a característica central.

Esses acampamentos só têm fim com o assentamento de todos que estavam acampados,
diferente dos acampamentos provisórios que tem por finalidade atrair a atenção do poder público
e da sociedade. Com o objetivo alcançado eles são desfeitos. Há ainda marchas pelas rodovias,
que levam as intenções do movimento à sociedade, adquirindo adeptos da causa e pressionando o
poder público. Destacam-se ainda jejuns, greves de fome, manifestações em grandes cidades e
vigílias.

Dentro dos acampamentos as funções são devidamente organizadas, onde cada


necessidade básica, como saúde, educação, higiene, alimentação, finanças, possui um responsável
e um grupo de pessoas que realizará as atividades de cada setor. Os líderes desses grupos
costumam se encontrar em reuniões a fim de discutir o andamento do acampamento, além de haver
uma Assembleia Geral que é responsável pelas decisões máximas. Contam ainda com uma
coordenação que é composta por escolhidos dos próprios acampados.

Tudo isso explica que para que as famílias se mantenham dentro de um assentamento, é
necessária uma estrutura básica mínima para que sejam viáveis a sobrevivência e a reprodução da
comunidade. Dentro desse contexto, infere-se a quantidade de ações que os camponeses devem
desenvolver - levando em conta a ausência de atenção do poder público - para suprir todas as
necessidades de seus membros, desde a infância até a velhice.

No que tange à formação de crianças, adolescentes e jovens dentro do movimento, o MST


tem atuado no sentido de inserir esse público na luta pela reforma agrária. Considerando que a
cidade sempre foi um ambiente vislumbrado pelos jovens do campo em geral e para os que vivem
em assentamentos - sobretudo, pelas oportunidades e qualificações profissionais que o campo do
Brasil não oferece - muitos jovens dos assentamentos, ao longo da história do MST, chegaram a
migrar para áreas urbanas.

Diante disto, os "sem terrinha", denominação que abrange todas as crianças dos
acampamentos e assentamentos do MST, são envolvidos nas lutas, e recebem todo o aprendizado
necessário para se entender o movimento por parte dos adultos, além de contarem com o auxílio
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das escolas dos assentamentos ou dos municípios em que estão situados.

2. SEM TERRINHA E O DIREITO À EDUCAÇÃO: A PROPOSTA PEDAGÓGICA DO


MST

O Decreto Nº 7.352 de 4 de Novembro de 2010 dispõe sobre a política de educação do


campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA. Neste decreto fica
determinado que a Educação no Campo, assim como a Educação convencional, corresponde desde
as séries iniciais da Educação Infantil até a graduação.
A Lei traz alguns conceitos com a finalidade de especificar a abrangência das ações:
§ 1o Para os efeitos deste Decreto, entende-se por:
I - populações do campo: os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores
artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores
assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros
que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural;
e
II - escola do campo: aquela situada em área rural, conforme definida pela Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, ou aquela situada em área urbana,
desde que atenda predominantemente a populações do campo.

O momento em que os camponeses são reconhecidos como detentores do direito à


Educação, é marcado pela mera implementação de estruturas escolares embutidas de metodologias
pedagógicas tipicamente urbanas. Esse processo é marcado pela inferiorização dos saberes
populares, das práticas agrícolas, dos costumes e da linguagem tipicamente camponeses. Em
síntese, “educar” a população camponesa seria na realidade encaixar aquele público dentro dos
padrões urbanos:

Uma hipótese levantada com frequência é que nosso sistema escolar é urbano, apenas
pensado no paradigma urbano. A formulação de políticas educativas e públicas, em geral,
pensa na cidade e nos cidadãos urbanos como o protótipo de sujeitos de direitos. Há uma
idealização da cidade como o espaço civilizatório por excelência, de convívio,
sociabilidade e socialização, da expressão da dinâmica política, cultural e educativa. A
essa idealização da cidade corresponde uma visão negativa do campo como lugar do
atraso, do tradicionalismo cultural. Essas imagens que se complementam inspiram as
políticas públicas, educativas e escolares e inspiram a maior parte dos textos legais. O
paradigma urbano é a inspiração do direito à educação. (ARROYO, 2007, p. 158).

A Educação do Campo surge atrelada aos movimentos sociais, em especial ao MST, que
desde sua origem reivindicou a presença de escolas capazes de politizar e transformar os
acampamentos e assentamentos rurais. Dentro da agenda política do Brasil, a Educação do Campo
passou a ser componente em 1997 através da realização do I Encontro Nacional de Educadores da
Reforma Agrária. É nesse momento ainda que o Estado demonstra atuação dentro dos projetos e
ações do PRONERA.
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O PRONERA se caracteriza como uma medida de reparação histórica do Estado


para/com o campo brasileiro buscando a igualdade do acesso escolar entre zona urbana e rural,
assim como a adequação do processo de aprendizagem ao movimento da realidade campesina. Tal
programa é resultado de reivindicações dos movimentos sociais rurais, Universidades, e algumas
organizações da sociedade como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Fundo
das Nações Unidas para a Ciência e Cultura (UNESCO), e a (CNBB).

Diferente do que muitos defendem, a Educação do Campo não se caracteriza como uma
proposta de Educação, bem mais amplo que isso, busca-se uma nova concepção de Educação.
Dessa forma aborda-se aqui uma política educacional capaz de responder aos interesses sociais
dos camponeses e que rompa com a tradição da educação convencional marcada por reproduzir a
lógica da dominação, formando sujeitos que se submetem e aceitam o sistema capitalista,
inviabilizando assim a superação da situação na qual se encontram (CALDART, 2008).

Com base nisso, não será apenas a implementação de práticas pedagógicas de cunho
político que proporcionará a transformação do campo, pois se trata de uma realidade com desafios
ainda maiores, como a formação de professores, uma profissionalização que não se limita às
“funções consideradas específicas do meio rural”, estrutura das escolas do campo, a relação dessas
escolas com os movimentos sociais, visto que são estes os protagonistas do processo de origem
da Educação do Campo, em conjunto com os trabalhadores rurais.

Diante dessas informações, percebe-se a intrínseca ligação entre a Educação do Campo,


o trabalho dos camponeses, e as lutas travadas por eles, onde a eficiência do primeiro elemento
poderá promover a resolução dos embates sociopolíticos que permeiam esse cenário. Essas
disputas são representadas, atualmente, pela presença de dois projetos de desenvolvimento para o
campo, de um lado encontra-se o campesinato, e de outro o agronegócio.

Esses territórios são extremamente distintos e formados através de diferentes relações


sociais, onde o território do campesinato é originado em virtude da própria existência e reprodução
humana dos camponeses, refere-se a uma paisagem heterogênea, com a presença de pessoas,
enquanto o agronegócio é voltado à produção e comercialização de produtos, de aparência
extremamente homogênea devido ao cultivo de monoculturas, ausente de pessoas e provido de
máquinas e mercadoria (SAVELI, 2000).

Portanto, uma observação fundamental dentro do entendimento do que é Educação do


Campo, refere-se à diferenciação desta com Educação Rural, que seria o assistencialismo voltado
à manutenção e reprodução da exploração dentro do campo. É voltada à qualificação dos
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trabalhadores rurais para o agronegócio, isso significa que são processos educativos que não terão
significância na vida dos camponeses uma vez que serão úteis para uma produção que beneficiará
unicamente os grandes empresários, ou seja, não há, nesta modalidade, perspectiva de superação
ou transformação da situação social na qual se encontram.

Diferente disso, a Educação do Campo surge dentro do Movimento Camponês como


forma de questionar o modelo educacional adotado pelo Brasil e, mais especificamente, dentro do
próprio campo brasileiro. Na perspectiva de origem desta concepção de Educação existe a
necessidade de análise da totalidade, uma vez que se refere à realidade do trabalhador rural, ao
trabalho no campo, aos embates políticos dentro desse mesmo cenário e, consequentemente, à
necessidade de uma pedagogia que busque a transformação (FREIRE, 1967).

Dentro do MST, a luta pela educação e, mais especificamente por escolas dentro dos
assentamentos e acampamentos, é tão antiga quanto a luta pela terra, de acordo com os
documentos do movimento data-se da década de 80, mesmo período em que se tem notícias das
primeiras escolas dentro dos assentamentos rurais. Refere-se a uma bandeira que sempre foi
defendida pelo movimento, nunca de forma isolada à defesa da Reforma Agrária, pelo contrário,
são tratados como fatores interdependentes.

Organizado através de setores, o Movimento articulou o Setor da Educação a nível


nacional a partir de 1987, este seria responsável por todas as questões relacionadas ao âmbito
educacional. Atualmente, este setor é responsável por mais de 2.000 escolas públicas espalhadas
por assentamentos e acampamentos rurais do Brasil. Já possuem, de acordo com o site oficial do
movimento, mais de 100 cursos de graduação, 200 mil pessoas (crianças, adolescentes, adultos)
com acesso à educação, 50 mil adultos alfabetizados, e 2.000 estudantes frequentando
regularmente cursos técnicos ou superiores (MST, online).

A necessidade de Instituições Escolares vai além de estruturas que se insiram dentro de


comunidades rurais do MST, os processos pedagógicos devem envolver as práticas políticas e
sociais do movimento e que, assim como as escolas convencionais – porém não como única
finalidade - proporcionem ensinamentos úteis ao futuro profissional de cada aluno (CALDART,
2003).

A ideia de se lutar pela educação dentro do MST, inicialmente, era fundamentada no fato
de a educação ser um dos direitos sociais e o movimento desde os seus primórdios vem lutando
por estes. Com o passar do tempo a Luta pela educação ganha nova roupagem, em virtude da
percepção, por parte dos integrantes do movimento, de que assim como eles, grande parte do
Campo brasileiro também estava privada do acesso à Educação.
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Posteriormente, as reivindicações ganham mais amplitude e coerência com o


entendimento de que eles teriam de transformar as escolas convencionais para que elas pudessem
atuar dentro das comunidades do MST e no resto do campo, uma vez que não havia (e não há)
espaço para o povo campesino em instituições que não expliquem os processos históricos que
levaram significativa parcela da população do país a conviver com a ausência de políticas públicas,
ou referindo-se à demanda central do MST, a não terem “terra” para morar.

Não faria sentido ainda, frequentar uma Instituição que desconheça a realidade de seus
alunos, visto que os profissionais da educação, em geral, não são preparados para o campo,
tampouco para ambientes regados à militância. Dessa forma, foi percebido que a Escola
Convencional não permite a entrada dos “sem terra” e que, justamente por desconhecerem, muitos
profissionais acabam desrespeitando a realidade e os saberes deste público. Concluiu-se que é a
Escola que deve de adaptar aos alunos, e não o contrário (SAVELI, 2000).

Com base na preocupação do movimento com a educação é que surgem, dentro do MST,
as Escolas Itinerantes. São criadas na tentativa de garantir o acompanhamento pedagógico de
crianças - denominadas de sem terrinha - adolescentes, jovens e adultos mesmo quando na situação
de acampados.

As Escolas Itinerantes são organizadas dentro dos próprios acampamentos, dessa forma,
detinham de poucos instrumentos que pudessem proporcionar o mínimo de conforto para que o
processo de aprendizagem fosse mais efetivo. Em geral, não havia mesas e cadeiras, tampouco
cadernos e lápis, o conhecimento era o principal e único instrumento dentro desses espaços (MST,
1998).

Inicialmente, as creches do MST eram chamadas de Círculos Infantis. Após alguns


debates e discussões nos Coletivos Estadual e Nacional de Educação, passa-se a denominar os
espaços de Educação Infantil do Movimento de Ciranda Infantil, fazendo uma analogia às
brincadeiras, união, à força do círculo. As Cirandas seriam envolvidas em todos os espaços que
estivessem crianças de 0 a 6 anos.

Com a mudança no nome da área educacional destinada aos Sem Terrinha, surgem novas
propostas, ideias e novos desafios, tais como a necessidade de envolver as famílias das crianças
no processo de educação a fim de que as ideias fossem perpetuadas por toda a comunidade.
Hoje, o principal método pedagógico destinado aos sem terrinha consiste justamente em
envolvê-las em todas as atividades do movimento nos seus mais variados setores, tais ações
sempre baseadas na valorização da infância e de atividades lúdicas que ao mesmo tempo em que
respeitam seus limites de idade, facilitam o aprendizado.
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Com base nesses aspectos, os sem terrinha são preparados para o mundo, aprendem a se
relacionar com as pessoas e com as situações que lhes são postas, respeitando as diferenças e
buscando soluções para os problemas conjunturais que são colocados em conjunto com os demais
assentados ou acampados. Dessa forma, a Educação Infantil no MST visa a construção de sujeitos
culturais, sociais e cognitivos (MST, 2004).

Assim, são levados a compreender sua condição de sujeitos de direito, assimilando seu
cotidiano com as relações de gênero, de poder, com o trabalho e as próprias lutas,
consequentemente aprendem a serem críticos e contribuem com suas visões para o crescimento
do movimento.

Os encontros, congressos e jornadas a níveis locais, regionais e nacionais dos Sem


Terrinha demonstram quão envolvidas as crianças estão na luta pela Educação Infantil. Nesses
momentos as reivindicações são protagonizadas pelos próprios infantes que, devido ao processo
de conscientização desenvolvido dentro dos assentamentos e acampamentos, possuem
compreensão da situação social na qual se encontram e, sobretudo, da obrigatoriedade do Estado
em prover a Educação.

Hoje, os Sem Terrinha representam a luta do MST pela educação de qualidade dentro dos
assentamentos. Através de todas as atividades nas quais vêm sendo inseridos, compreendem desde
cedo qual a intenção do movimento e colaboram, conscientemente, para que os objetivos de sua
comunidade sejam alcançados. Por meio de um link no site oficial do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra, os Sem Terrinha levam à sociedade todas as suas produções e
demonstram como estão colaborando na luta contra a concentração fundiária, e todas as demais
formas de dominação.

3. ASSENTAMENTO VILA DIAMANTE E A CONSOLIDAÇÃO DA EDUCAÇÃO


INFANTIL DO CAMPO

3.1 Breve Histórico do Assentamento Vila Diamante.

O Assentamento Vila Diamante localiza-se na BR 222, a pouco mais de 3 km da sede da


cidade de Igarapé do Meio – MA, município situado no Norte maranhense com aproximadamente,
de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), 13. 774 habitantes. Criado em 29 de setembro de 1995, tal município se desmembrou da
cidade de Vitória do Mearim através da Lei Nº 6.431/95.
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Os moradores do Assentamento são oriundos de diversas cidades do estado do Maranhão,


boa parte do próprio município de Igarapé do Meio e também do município vizinho, Vitória do
Mearim.

O Maranhão, como estado reflexo do país no qual está situado, possui uma trajetória
marcada pela política do coronelismo e oligarquias, trazendo como consequência a forte
concentração de terras decorrente da formação de latifúndios. Tal ideia caracteriza-se como um
dos principais fatores que justifica a situação de miséria que boa parte do estado se encontra.

É dentro desse contexto que, no final da década de 1980, o MST passa a ser organizado
dentro do estado, mesmo momento em que acontecem as primeiras ocupações nas cidades
maranhenses Imperatriz e Açailândia. Dentro dessa perspectiva, em Março de 1989, tem início a
história do Assentamento Vila Diamante.

Três lideranças do MST vindas do sul do estado se deslocaram até a região onde hoje se
localiza o assentamento no intuito de articular e disseminar o Movimento na região da Baixada
Ocidental Maranhense e, assim que chegaram, foram recebidos pela Igreja Católica da região e
pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais, logo deram início aos trabalhos de organização dos
trabalhadores rurais. Tais articulações contavam com a presença de povoados vizinhos, como: São
Benedito, Acoque, São Vicente da Palmeirinha, entre outros. Em um desses momentos, foi
decidido que no dia 25 de Junho de 1989 haveria uma reunião no Clube de Mães de Igarapé do
Meio na intenção de que fossem deliberadas ações referentes à ocupação.

No dia 30 daquele mesmo mês os trabalhadores rurais se organizaram no Povoado São


Benedito que se localiza próximo à Fazenda que seria ocupada, de nome Diamante Negro, e foram
em filas até o local. Com o tempo, as filas de trabalhadores rurais que se deslocavam até a fazenda
foram crescendo e engrossando. Segundo os moradores do assentamento, ao fim, somavam-se 714
famílias em busca das terras.

Na tarde de 05 de Novembro de 1989 os trabalhadores rurais articulados ocupam a


Fazenda Diamante Negro. A área da fazenda ocupada correspondia a 8.885 hectares. Dentro desse
espaço surgiram vários povoados, hoje restam apenas os seguintes: Cerdote, Nova Morada,
Morada Nova, Centro dos Coqueiros, Ananazal, São Raimundo e Água Branca.

Após a ocupação, inicia-se a luta pela conquista da regularização das terras pelo INCRA.
No dia 15 de Novembro daquele mesmo ano as famílias interditaram a BR 222 como forma de
chamar a atenção do governo federal. Até o objetivo dos trabalhadores rurais ser alcançado,
travaram fortes lutas para garantir a permanência nas terras.
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No começo do ano 1990 pistoleiros invadiram o acampamento portando armas de fogo e


disparando tiros em direção às famílias causando em meio aos trabalhadores o sentimento de medo
de permanecer no local. Em Setembro daquele mesmo ano 500 famílias chegaram a ser despejadas
por Policiais Militares, porém, não se intimidaram e retornaram às terras no dia seguinte.

Somente quatro anos após esses acontecimentos, em 1994, as terras foram desapropriadas
para a Reforma Agrária quando o INCRA enviou sua equipe técnica para acompanhar as famílias
que estavam acampadas e com a finalidade de, juntamente com os trabalhadores rurais, elaborar
um projeto de produção agrícola.

Atualmente o assentamento possui um Posto de Saúde, três escolas, uma Rádio


Comunitária (provisoriamente interditada), o Centro de Capacitação Padre Josino (destinado à
eventos em geral), uma Cooperativa com 160 associados, um Auditório, além de alguns pequenos
estabelecimentos responsáveis pela venda de gêneros alimentícios e mercearia em geral.

3.1 A Luta pela Educação no Assentamento

A luta por educação dentro da Vila Diamante é tão antiga quanto a sua origem, uma vez
que ainda na situação de acampados as famílias entenderam a importância de uma escola no lugar.
Após realização de assembleia, escolheram o local e os educadores responsáveis pelas aulas, estas
aconteceriam dentro de um galpão e também embaixo das árvores, enquanto Maria Delma de
Sousa, Antonia Maria de Almeida de Sousa e Antonia de Sousa, irmã da Delma, seriam as
educadoras.

Apesar disso, as iniciativas da própria comunidade não eram suficientes para satisfazer
as necessidades básicas das famílias, uma vez que as ações do Poder Público ainda eram
deficientes. Frente a isso, no dia 24 de Agosto de 1992, homens, mulheres e crianças que estavam
acampados se organizaram em frente e Prefeitura de Vitória do Mearim (até então, o município
do Igarapé do Meio ainda não havia se emancipado), na intenção de chamar a atenção do Governo
Municipal para as suas questões. A resposta às reivindicações veio através da repressão das forças
policiais.

Em contrapartida, as pressões exercidas sobre o poder municipal renderam algumas


conquistas, como a contratação de três professores naquele mesmo ano. Posteriormente,
professoras do próprio acampamento substituíram aquelas contratadas.

Ao longo da história do assentamento as lutas por uma Educação de qualidade foram


constantes. Em 1995 os professores do assentamento juntamente com os professores de Igarapé
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do Meio se deslocaram até a prefeitura de Vitória do Mearim a fim de exigir do prefeito o


pagamento dos salários que até então estavam atrasados. Chegando lá, foram informados de que
o prefeito não se encontrava e que a secretária de educação da cidade estava de saída para São
Luís – MA.

Com base nessa informação os professores fecharam a BR 222 na tentativa de impedir a


saída da secretária de educação. Com tal feito, conseguiram encontrar esta e firmar o acordo de
que o Governo Municipal iria realizar os pagamentos. Logo os salários correspondentes aos quatro
meses de atraso foram efetuados, e as aulas que até então estavam paralisadas foram retomadas.

Em 1996, durante o Encontro dos Sem Terrinha, foi escolhida uma comissão composta
por crianças de todo o Maranhão a fim de negociar com o Governo do Estado e com o INCRA a
construção de uma estrutura escolar no assentamento. Em 1997, a demanda foi atendida e criou-
se a Escola Municipal Raimundo Cabral.

Em 1999 os salários dos professores novamente entram em atraso. Os professores da Vila


Diamante se articulam com os professores de Igarapé do Meio na tentativa de uma mobilização
para o pagamento dos salários. Iniciaram as manifestações com uma passeata puxada por um carro
de som pela cidade de Igarapé do Meio, em seguida tentaram uma articulação com a Câmara
Municipal, mas apenas três dos nove vereadores concordaram com a demanda dos professores.

Os três vereadores que apoiaram os manifestantes buscaram uma negociação com o


prefeito, nesse momento os professores fecharam a BR 222 para dar celeridade ao processo de
negociação. As negociações não foram suficientes e a resposta por parte da prefeitura, mais uma
vez, foi de agir através da força policial contra os manifestantes.

Tal episódio despertou a revolta não apenas dos professores que estavam lutando pelo
pagamento de seus salários, como também da sociedade em geral, o que fez com que várias
pessoas se unissem para atear fogo na prefeitura e também na casa do então prefeito de Igarapé
do Meio, Ubiratan Amorim.

Hoje, além da escola Raimundo Cabral que abrande do Jardim I ao 1º ano, o assentamento
conta com o funcionamento de outras duas instituições escolares, a Escola Municipal Luzia
Mendes de Sousa, que atende do 2º ao 9º ano, com funcionamento durante os três turnos, e tem
como atual diretora a Sra. Denilde, além da Escola Maria Barros, destinada aos programas Pró-
Jovem e PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil).
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Com base nisso, uma das principais reivindicações da comunidade é pela instituição de
uma escola de Ensino Médio, uma vez que até o momento, os adolescentes do assentamento
devem se deslocar até a sede da cidade de Igarapé do Meio para terem acesso às aulas. Atualmente,
existe um processo licitatório para a construção de uma Escola de nível médio no Povoado Morada
Nova, localizado próximo à Vila Diamante.

Durante visita ao Assentamento, um dos moradores, o Sr. Noé, relatou que a Biblioteca
da comunidade no momento está em desuso em virtude da perda da chave do local, e da queda de
um raio sobre a Rádio Comunitária, localizada próxima ao prédio da Biblioteca, que também
acabou afetando a estrutura do local. Citou ainda a importância que teve o extinto “Telecentro”,
um ambiente com computadores, na época doados pelo Banco do Brasil, onde crianças e
adolescentes começaram a se habituar com tais tecnologias.

Outra dificuldade relatada por pais, alunos e professoras do assentamento, refere-se à


migração de jovens que concluem o ensino médio para outros estados do país, como Mato Grosso,
Minas Gerais e São Paulo. Nesse momento destacaram como principal motivador o fato de não
haver Faculdades e/ou Universidades em Igarapé do Meio.

Apesar disso, o Sr. Noé afirmou que a grande maioria dos jovens que concluem o ensino
médio, ou até mesmo superior em outras cidades, retorna ao assentamento e que, aqueles que estão
prestes a ingressar no Ensino Superior, também relatam o desejo de atuarem profissionalmente
dentro do próprio assentamento, seja em umas das Escolas, no Posto de Saúde, ou nos casos em
que a graduação é voltada a agricultura, com as plantações do local.

A instituição de ensino superior mais próxima ao assentamento, o Instituto Federal do


Maranhão, localiza-se no município de Santa Inês, situada a mais de 20 km de Igarapé do Meio.
A maioria dos jovens que ingressam no ensino superior é através do PRONERA na cidade de
Bacabal, cidade polo do programa mais próxima ao assentamento e onde algumas professoras
concluíram a graduação.

Hoje, os (as) professores (as) do assentamento desenvolvem um projeto político e


pedagógico com vistas a desenvolver crianças, adolescentes e jovens enquanto sujeitos históricos,
colaborando para que todos participem desse processo educacional, independentemente de gênero
ou faixa etária e, considerando ainda, a realidade e o próprio movimento social do qual fazem
parte como princípios educativos.

3.2 A Inserção da Proposta Pedagógica do MST na Educação Infantil do


Assentamento.
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A escola responsável pela educação infantil do Assentamento Vila Diamante é a Escola


Municipal Raimundo Cabral. A Escola abrange as turmas Jardim I, II, III e o 1º ano do ensino
fundamental, e com funcionamento nos turnos matutino e vespertino.

A instituição conta com duas salas de aula, uma cozinha e uma secretaria. O corpo
docente é formado por seis professoras, a gestão da escola é responsabilidade da Sra. Francisca e
53 crianças estão matriculadas.

Durante uma conversa dentro da secretaria da Escola, as professoras da instituição


relataram que desde a educação infantil as crianças passam por aulas e atividades que explicam o
porquê de morarem em um assentamento e, para explicar questões que pareçam mais complexas
para as idades dos infantes, como a concentração de terras no país, as professoras se utilizam da
própria história do assentamento para que se torne de mais fácil compreensão.

Exemplo disso trata-se da “Noite no Acampamento”, que se refere a atividades lúdicas,


geralmente encenações, realizadas por alguns dos assentados, que representem a história da
conquista daquelas terras. Tal momento acaba se tornando de fácil compreensão para as crianças
da comunidade.

As profissionais destacaram que o fato de a maioria das professoras ser natural do


Assentamento ajuda na transferência de conhecimentos para os alunos e que, ainda os professores
contratados pela prefeitura naturais de outras localidades, devido à convivência com a comunidade
acabam conhecendo a história da luta daquele lugar e encontrando formas de levar análises e
explicações aos alunos.

Seis jovens que fizeram parte dos Sem Terrinha foram ouvidos e, ao relembrarem a
infância na Escola Raimundo Cabral, destacaram elementos que consideraram úteis ao
entendimento que hoje possuem a respeito da terra, e mais especificamente da comunidade em
que moram.

Dentre tais elementos, citaram o aprendizado que tiveram na Horta Comunitária da


Escola, onde a merenda escolar era feita através da “mini” produção agrícola dos alunos. Levando
em conta que a grande maioria das famílias do assentamento ainda trabalha com a agricultura de
subsistência, tais ensinamentos se tornaram de grande utilidade para os alunos.

A jovem Iná, 17 anos, relembra as Místicas, dramatizações realizadas sem o auxílio da


fala, apenas de gestos. Nas místicas, eram repassadas às crianças histórias relacionadas às lutas,
aos camponeses, e às questões territoriais. Hoje, Iná e os demais jovens que viveram a época das
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místicas, tentam recriar a prática para as novas crianças. Recentemente, fizeram uma mística
referente ao revolucionário Che Guevara.

A principal ferramenta de efetivação da proposta pedagógica do MST destacada tanto


pelo corpo docente, quanto pelos jovens que um dia fizeram parte dos Sem Terrinha, diz respeito
ao Encontro Estadual dos Sem Terrinha do Maranhão. Ambos os grupos retrataram que o Encontro
era, e ainda é, o momento em que as crianças têm a dimensão da realidade na qual estão inseridas
através de oficinas e atividades lúdicas em geral.

Apesar disso, devido haver um quantitativo de vagas limitadas em tal evento, as


professoras devem selecionar quais alunos irão poder participar do encontro. Como critérios de
seleção são considerados o bom comportamento dentro de sala de aula, e a idade, uma vez que
crianças muito novas requerem maior atenção por parte das professoras em atividades recreativas,
como o banho de mar, por exemplo, portanto, o critério é baseado na segurança das crianças.

Adeilson, 19 anos, relatou que no Encontro era possível se identificar através das
atividades realizadas e que, além disso, era possível conhecer outras realidades, levando em conta
o contato com outras pessoas. O processo de troca de experiências era intenso e ele pôde observar
que a luta por boas condições dentro dos assentamentos não poderia parar, uma vez que existiam
comunidades que ainda não haviam conseguido o básico.

Uma observação feita pelos jovens, diz respeito ao fato de que as demandas de todos os
sem terrinha nesses encontros eram referentes à educação, fato que demonstra o quanto as crianças
- enquanto autoras das demandas - se preocupavam com o fator educacional e sentiam a carência
de uma educação de qualidade que satisfizesse os interesses do campo.

Ricardo, 19 anos, mencionou o fato de o Encontro ter lhe ensinado, inclusive, a se tornar
uma pessoa melhor e que, graças aos ensinamentos dos professores que estavam presentes no
evento, deixou de ser uma criança rebelde e incompreensiva.

Ao fim da conversa, a Profª Ecieude argumentou que atualmente, as principais demandas


para a educação infantil do assentamento seriam melhorias nas condições de ensino e
aprendizagem na Escola Raimundo Cabral, uma vez que com o corte de verbas na área educacional
realizado pelo Governo Federal, a escola vem recebendo apenas o essencial para o seu
funcionamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Em tempos de uma acentuada concentração de terras no país e extrema criminalização


aos movimentos camponeses, deparamo-nos com uma comunidade camponesa extremamente
articulada e organizada e que, assim como a sociedade em geral, deposita em suas crianças a
esperança de um futuro mais justo e igualitário. A esperança, porém, é fundamentada. Desde muito
novos os indivíduos são conhecedores do contexto social que estão envolvidos.

A necessidade da luta naquele assentamento nasceu ainda quando o local era um


acampamento e foi passada de geração para geração. Não foi algo imposto aos mais jovens,
caracterizou-se como uma necessidade natural despertada pelo simples fato de conhecerem a real
dinâmica do capitalismo e da ausência de uma Reforma Agrária.

Frente a todo esse conhecimento, adquirido tanto pelas escolas conquistadas, quanto
pelos adultos que aprenderam com aqueles que estavam no acampamento – afinal isso também é
educação 147 – a única saída disponível àquelas pessoas, assim como foi aos seus ancestrais, seria
a de lutar.

A Educação Infantil do Campo, nesse contexto, configura-se como um dos elementos


indispensáveis para a capacitação política das crianças do assentamento. É a ferramenta capaz de
dar sentido ás reivindicações, como aborda Paulo Freire (1967) “uma pedagogia da liberdade pode
ajudar uma política popular, pois a conscientização significa uma abertura à compreensão das
estruturas sociais como modos da dominação e da violência (...)”.

Concluo com a percepção de que crianças do assentamento têm inseridos em seu


ambiente escolar todos os aspectos sócio-culturais e políticos que permeiam sua realidade
enquanto partícipes de um movimento social que busca a reforma agrária. Isso facilita a
compreensão de um aspecto tão marcante na formação do país, quer seja a concentração de terras,
assim estimula o engajamento político consciente por parte dos infantes.

REFERÊNCIAS
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v. 27, n.72, p. 157-176.
BARROS, M. R. S. Os Sem Terrinha: uma história da luta social no Brasil (1981-2012).
2013. 228 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza. 2013.

147
Há aprendizagens e produção de saberes em outros espaços, aqui denominados de educação não formal. Portanto,
trabalha-se com uma concepção ampla de educação. Um dos exemplos de outros espaços educativos é a participação
social em movimentos e ações coletivas, o que gera aprendizagens e saberes. Há um caráter educativo nas práticas
que se desenrolam no ato de participar, tanto para os membros da sociedade civil, como para a sociedade mais geral,
e também para os órgãos públicos envolvidos – quando há negociações, diálogos ou confrontos. (GOHN, 2011, p.
333).
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal:


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MOLINA, M. Por uma Educação do Campo. Petrópolis: Vozes, 2004.
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SUJEITOS DA EJA E OS ÍNDICES DE EVASÃO ESCOLAR EM ESCOLAS


ESTADUAIS DO MARANHÃO

EJA SUBJECTS AND THE MARANHÃO STATE SCHOOLS EVASION RATE

Deusur Gonçalves Sampaio


Discente do mestrado em Ensino de Ciências e
Matemática
Cícero Wellington Brito Bezerra
Doutor em Físico-Química pelo Instituto de Química de São Carlos; Docente do
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu: Ensino de Ciências e Matemática (UFMA)
Eixo temático: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo:A realidade escolar, notadamente a da EJA, é caracterizada pela variedade de ideias, de


intenções, de sujeitos e de culturas. Conhecer esta realidade é o primeiro passo para a construção
de um ambiente escolar acolhedor, capaz de integrar as diferenças, de promover o ensino e uma
convivência saudável. O presente trabalho busca contribuir para o entendimento da diversidade
na EJA - MA, com foco no perfil dos estudantes, considerando que esta modalidade abrange
distinção entre os sujeitos (jovens, adultos, idosos, pessoas com deficiência, apenados, jovens em
conflito com a lei, variadas idades, etnias diversas, classes sociais distintas, trajetórias escolares
diversas e histórias de vida singulares). A esta diversidade relacionaram-se os índices de abandono
em 2016 e 2017 das Escolas Estaduais que compõem a Unidade Regional de Educação de São
Luís - MA. Os dados foram categorizados tomando como referencial Bardin. Tanto pela literatura
quanto pelas vivências possibilitadas ao longo da realização deste trabalho, pôde-se perceber o
quanto a escola e o professor influenciam nos elevados índices de evasão escolar nesta
modalidade, notadamente quanto assumem uma postura rígida e autoritária, ou puramente
mecânica, contribuindo para a uma perda de sentido da função social da própria educação.
Palavras-chave: EJA. Diversidade. Evasão escolar. Escolas estaduais.

Abstract:The school reality, notably that of EJA, is characterized by a variety of ideas, intentions,
subjects and cultures. Knowing this reality is the first step towards building a welcoming school
environment, capable of integrating differences, promoting teaching and healthy living. The
present work seeks to contribute to the understanding of diversity in the EJA - MA, focusing on
the profile of the students, considering that this modality covers distinction between the subjects
(youth, adults, elderly, people with disabilities, prisoners, young people in conflict with the law ,
different ages, different ethnicities, different social classes, different school trajectories and unique
life stories). This diversity was linked to the dropout rates in 2016 and 2017 of the State Schools
that make up the Regional Education Unit of São Luís - MA. The data were categorized using
Bardin as a reference. Both by the literature and by the experiences made possible during the
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performance of this work, it was possible to perceive how much the school and the teacher
influence the high school evasion rate in this modality, notably when they assume a rigid and
authoritarian stance, or purely mechanical, contributing to a loss of sense of the social function
of education itself.
Keywords: EJA. Diversity. School evasion. State schools.

Introdução

Segundo as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394, de 20 de


dezembro de 1996), seção V, artigo 37, "A educação de jovens e adultos é destinada àqueles que
não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria."
Público-alvo: Jovens com 15 anos completos (Ensino Fundamental) e 18 anos completos (Ensino
Médio), adultos e idosos, pessoas com deficiência, pessoas que cumprem pena privativa de
liberdade e jovens em conflito com a lei, que não tiveram acesso ou continuidade de estudos na
idade própria.
Além da LDB, a Educação de Jovens e Adultos está baseada no que determina o Parecer
CNE/CEB nº 11/2000, na Resolução CNE/CEB nº 01/2000, no Plano Nacional de Educação (Lei
10.172/01), no Plano de Desenvolvimento da Educação, nos Compromissos e Acordos
Internacionais. Portanto, a regulamentação da legislação educacional referente à EJA ocorre no
ano 2000, estabelecendo para a EJA três funções: reparadora (significa não só a entrada no circuito
dos direitos civis pela restauração de um direito negado: o direito a uma escola de qualidade, mas
também o reconhecimento daquela igualdade ontológica de todo e qualquer ser humano),
equalizadora (criação de possibilidade aos jovens e adultos de desenvolver e atualizar os
conhecimentos e habilidades dentro de um contexto social e cultural) e qualificadora ou
permanente (propicia um patamar igualitário de formação e restabelece a igualdade de direitos e
de oportunidades face ao direito à Educação) (Ministério da Educação [MEC], 2000a).
A Resolução CNE/CEB nº 01/2000 estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação de Jovens e Adultos (MEC, 2000b). De acordo com a legislação vigente, a EJA deve
pautar-se pelos mesmos princípios estabelecidos para as demais modalidades de ensino.
Argumenta-se, entretanto, que a sujeição da EJA às Diretrizes que orientam o ensino regular não
significa que deva ser desconsiderado o caráter específico dessa modalidade de ensino (MEC,
2000b).
Segundo o Plano Nacional de Educação (Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001): A
Constituição Federal determina como um dos objetivos do Plano Nacional de Educação a
integração de ações do poder público que conduzam à erradicação do analfabetismo (art. 214, I).
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Trata-se de tarefa que exige uma ampla mobilização de recursos humanos e financeiros por parte
dos governos e da sociedade.
O movimento que amplia a definição do campo de necessidades para além das carências
dos indivíduos, reportando-a às demandas das sociedades é, porém, o mesmo que incita à
superação da concepção compensatória da Educação de Jovens e Adultos, segundo a qual sua
finalidade se restringiria a possibilitar ao aluno a recuperação do tempo perdido. Com efeito, as
propostas atuais em EJA é “tanto consequência do exercício da cidadania, como condição para
uma plena participação na sociedade” (Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura [UNESCO], 1998 como citado em Fonseca, 2012, p. 89). Questões vitais para
a sobrevivência da comunidade humana, como as que destaca o documento da 5ª Conferência
Internacional de Educação de Adultos (V CONFITEA) que constam “do desenvolvimento
ecológico sustentável, da democracia, da justiça, da igualdade entre os sexos, do desenvolvimento
socioeconômico e científico” (UNESCO, 1998 como citado em Fonseca, 2012, p. 47), e as quais
ainda podemos acrescentar muitas outras como a da tolerância religiosa, do acesso e do respeito à
diversidade cultural, da democratização das informações, dos recursos e dos procedimentos de
promoção e manutenção da saúde física e mental etc. Têm na Educação da população uma
condição necessária (mas não suficiente) para seu equacionamento, o que deveria, portanto, definir
as iniciativas de Educação Básica de adultos e de jovens, que não foram incluídos em unidades
escolares, como ações preferenciais e planeadas.
Os educandos (alunos e alunas de variadas idades, de etnias diversas, de classes sociais
distintas, de trajetórias escolares diferenciadas, de histórias de vida singulares etc.) são sujeitos da
diversidade que não podem ficar de fora de políticas públicas no espaço educacional. No dizer de
Soares, Paiva e Barcelos (2014, p. 26):

[...] em se tratando da EJA, garantir o direito à educação, implica considerá-la como


direito de todos os sujeitos, sujeitos da diversidade que nos forma como nação, o que
exige ser promovida e incentivada pelo poder público, a quem cabe o dever da oferta,
mas com a colaboração da sociedade que jamais se furtou a responder às exigências da
educação para todos.

Para Paulo Freire (2018, p. 59) ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando:

[...] que alguém se torne machista, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma como
transgressor da natureza humana. Não me venha com justificativas genéticas,
sociológicas ou históricas ou filosóficas para explicar a superioridade da branquitude
sobre a negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os empregados.
Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça
a força dos condicionamentos a enfrentar.
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A EJA é um espaço de aprendizagem em diferentes vivências que contribuem para a


formação de alunos e alunas dessa modalidade de ensino. Nesse espaço, a EJA volta-se para um
conjunto amplo e heterogêneo de jovens e adultos oriundos de diferentes seções da classe dos
proletariados. Por isso, é importante que a diversidade cultural, etária, racial e de gênero, entre
outras se expressam, se fazem presentes e não podem, portanto serem negadas. Toda essa
diversidade institui diferentes formas de mostrar a sua nacionalidade, que precisam incidir no
planejamento dos professores e na execução de diferentes propostas e encaminhamentos voltados
para essa modalidade de ensino. Daí a importância da escola e dos professores em direcionarem
as práticas curriculares para evitar reprodução de preconceitos dentro dessa modalidade.
De acordo com Vargas (2003), em razão das características encontradas na modalidade de
ensino da EJA, esta constitui-se num espaço significativo para se conectar a teoria com a prática,
principalmente se consideramos uma parte da sociedade que não teve acesso ao sistema escolar,
na idade adequada e que percebe nos cursos da EJA uma forma de começar ou mesmo de dar
prosseguimento aos seus estudos. Segundo a autora, várias pesquisas indicam que um dos graves
problemas que se colocam está intimamente ligado à falta de formações inicial e continuada por
parte dos professores que trabalham com esta modalidade de ensino tão heterogênea (Fávero,
Rummert, & Vargas, 1999; Ribeiro, 1999 como citado em Vargas, 2003). Coloca-se, portanto,
mais um desafio para o desenvolvimento de experiências significativas na área da EJA: Formar
educadores de Jovens, Adultos e Idosos para compartilhar com seus alunos as demandas, as
preocupações, os anseios e os sonhos da vida adulta, e com uma consciência atenta e crítica da
dimensão política do seu fazer pedagógico, que os habilite a participar da educação de seus alunos
e de suas alunas, pessoas jovens e adultas, com honestidade, o compromisso e o entusiasmo que
essa tarefa exige. Assim, com o intuito de melhorar a qualidade de ensino para essa modalidade,
é importante repensar até que ponto a diversidade cultural da EJA pelos professores e os sistemas
de ensino pode oferecer uma condição apreciativa mais adequada com a situação educacional, que
está vigente aos alunos da EJA (não raro observamos altos índices que os altos índices de
abandono da escola por jovens e adultos são muito elevados), onde os mesmos não dispõem dos
mesmos recursos de aprendizagem fornecidos em outras modalidades de ensino, destacando o
combate ao preconceito.
O objetivo deste trabalho é relacionar a diversidade na modalidade de ensino EJA por sexo
com os índices de abandono nas escolas polos dos municípios do MA que compõem a Unidade
Regional de Educação de São Luís/MA, procurando levantar os motivos que levam os estudantes
da EJA a abandonarem seus estudos na referente modalidade de ensino. Tomou-se por bases nas
linhas de pensamento dos autores: Paulo Freire (2011, 2018), Barcelos (2014) e Teixeira (2006).
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Metodologia

Com o propósito de chegar a uma compreensão mais real do objeto de estudo, foi escolhido
o método qualitativo. Esse entendimento tem como concepção Minayo (2014, p. 57), a qual
menciona: “Esse tipo de método que tem fundamento teórico, além de permitir desvelar processos
sociais ainda pouco conhecidos referentes a grupos particulares, propicia a construção de novas
abordagens, revisão e criação de novos conceitos e categorias durante a investigação”.
Os dados relativos ao número de alunos que abandonaram as escolas e de matriculados
entre os dois anos (2016 e 2017) foram obtidos junto à Supervisão de Estatística Educacional da
Secretaria de Estado da Educação do Maranhão (SEDUC/MA).
Fez-se um levantamento estatístico dos anos de 2016 e de 2017 de alunos da Educação de
Jovens e Adultos por sexo nas escolas estaduais dos municípios de Alcântara, Paço do Lumiar,
Raposa, São José de Ribamar, São Luís (municípios que compõem a Unidade Regional de
Educação de São Luís/MA). Posteriormente, a categorização de dados, separando os números de
alunas que abandonaram a escola dos números de alunos dentre os dois anos. Enfatizou-se também
a quantidade de alunos matriculados por sexo nesses 2 anos. Em seguida, procedeu se à análise
crítica das concepções presentes sobre os índices e motivos de abandono de escolas.
A partir de estudos de artigos e de marcos teóricos relacionados com o tema, verificou-se
o papel da escola e dos professores da modalidade EJA na promoção de uma educação voltada ao
tratamento das questões social, econômica, etária, existentes no universo da EJA, bem como se
analisou as causas das categorias de abandono na referida modalidade de ensino.
Para a análise documental dos dados estatísticos, utilizaram-se categorias propostas por
Ceratti (2008) e de outros autores de artigos sobre o tema em estudo.
Algumas definições, do Censo Escolar - levantamento de dados estatístico-educacionais
de âmbito nacional realizado todos os anos e coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), que trata do principal instrumento de coleta de
dados sobre estabelecimentos de ensino, turmas, alunos, profissionais escolares em sala de aula,
movimento e rendimento escolar, são necessárias para a compreensão e análise do tema. Nesta
pesquisa, denominamos de abandono – quando o aluno deixou de frequentar a escola antes do
término do ano letivo sem requerer formalmente sua transferência.
A proposta curricular da EJA referente ao Ensino Fundamental, a SEDUC-MA estabelece
a organização do ensino em quatro etapas com duração de 800 horas cada, totalizando o tempo
escolar com 3.200 horas. Já para o Ensino Médio, a SEDUC-MA determina um tempo de 2000
horas em duas etapas (MARANHÃO, 2018).
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Resultados e discussão

Para os sujeitos da EJA, a decisão de retomar os estudos, ou até mesmo de iniciá-los requer
um replanejamento de suas vidas, principalmente do educando trabalhador. Assim surge, o papel
do professor e da escola para um olhar diferenciado para esses alunos e alunas, já que os índices
de abandono escolar nessa modalidade de ensino são reais e elevados, em vários estabelecimentos
de ensino. O tema de estudo, dessa forma, deveria ser avaliado e entendido de forma mais ampla,
principalmente porque se trata de uma questão preocupante.
Tornar as turmas da EJA parte da comunidade escolar é fundamental para o sucesso da
aprendizagem e para evitar a evasão escolar. Os sujeitos da EJA expressam significados que,
muitas vezes, a escola ou não está preparada, ou não possui instrumentos eficazes para
compreender e superar. Pelos dados mostrados na tabela 1, com os dados categorizados tendo
Bardin (2011) como referência, observa-se que o abandono escolar é um traço marcante na
modalidade de ensino da EJA, principalmente pelo sexo masculino, mesmo tendo matrículas
quase equiparadas com alunos do sexo feminino.
Nota-se, a partir do Censo Escolar dos anos de 2016 e 2017, que há uma prevalência maior
de alunos do sexo masculino em relação ao sexo feminino no que tange ao abandono escolar, este
fato está de acordo com o trabalho de Ajala (2011), pois de acordo com esta autora, esse abandono
se dar à fadiga masculina que ocorre devido à ocupação de cargos e/ ou serviços braçais que ocorre
na maioria dos casos, dificultando a disposição em permanecer em sala de aula no fim do dia.

Tabela 1 – Quantidade alunos por sexo de abandono escolar nos anos de 2016 e 2017.

Período Escolas Estaduais do MA Matrículas Abandono


Masc. Fem. Masc. Fem.
Alcântara 106 70 6 4
2016 Paço do Lumiar 469 432 35 32
Raposa 156 170 52 45
São José de Ribamar 458 520 49 57
São Luís 4429 4477 786 713
Alcântara 110 96 5 1
Paço do Lumiar 441 394 91 63
2017 Raposa 175 195 41 32
São José de Ribamar 598 614 107 95
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São Luís 4273 4389 623 557


Fonte: Dados organizados pelos autores, com base na consulta de dados estatísticos da
SEDUC/MA.

Já a persistência das mulheres por mais tempo no âmbito educacional nos deixa claro que
elas deixaram de serem invisíveis, pois segundo Louro (2014) por muito tempo as diferenças entre
homens e mulheres foram restritas à diferença entre sexos, sob a justificativa de que havia bases
biológicas que determinavam como imutáveis tais diferenças. Nessa premissa, as mulheres, então,
assumiam a posição de subalternização com base em sua capacidade exclusiva de reprodução. As
relações de gênero no país têm sofrido mudanças consideráveis nas últimas décadas e as mulheres
avançaram em direitos nos muitos aspectos da vida cotidiana – trabalho, educação, saúde,
moradia, segurança e política, em particular, com estratégias de sobrevivência ao machismo
personificado nas mais diferentes formas.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] (2007 como citado
em Leoncy, 2013), as mulheres são maioria na Educação de Jovens e Adultos, correspondendo a
53% das vagas ocupadas. E de acordo com essa mesma autora, a escassez de estudos sobre as
relações de gênero dentro da educação de mulheres jovens, adultas faz com que não haja ainda
levantamentos suficientes sobre as barreiras sociais impostas ao sexo feminino que inviabilizam
não só sua adesão à escola, como também sua permanência nesta.
Em alguns trabalhos pesquisados como o de Souza e Alberto (2008) citam como fatores
internos do abandono escolar, a rigidez da escola com esta modalidade de ensino, o despreparo
dos professores, a má qualidade do ensino, a falta de motivação por parte do aluno. Com isso, com
intuito de diminuir esse abandono escolar, são necessários: Horários flexíveis para atender às
necessidades dos alunos trabalhadores, dada a sua especificidade, o estímulo a uma prática
educativa libertadora, a formação continuada aos professores que atuam nessa área. A escola
torna-se um espaço de formação que não pode reforçar preconceitos, mas valer-se dessa premissa
para uma formação cidadã crítica e sem reprodução de ideologia. Paulo Freire (2011) ao trazer o
seu método de ensino para uma perspectiva baseada numa educação emancipadora/ libertadora,
aspira a um aluno crítico e participativo na sociedade. Assim, a necessidade de se refletir sobre o
papel da escola, do docente e do discente a entenderem sua tarefa social dentro do campo
educacional, considerando a realidade do aluno para adequá–la à prática escolar.
Segundo Ceratti (2008), fatores externos que propiciam o abandono escolar na modalidade
EJA: Distância da escola até suas casas, opção de desenvolver uma atividade remunerada, o
esgotamento físico, entre outros fatores.
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Em relação ao papel da escola na evasão dessa modalidade de ensino, Oliveira (1999, p.


61) chama a atenção para as dificuldades na adequação dessa instituição para atender um público
que “não é o ‘alvo original’ da instituição”. A autora aponta aspectos dos currículos, programas e
métodos de ensino que sugerem como tais instrumentos e produtos da proposta pedagógica
constroem – se a partir de suposições sobre o desenvolvimento intelectual e sobre vivências dos
alunos que denunciam terem sido “originalmente concebidos para crianças e adolescentes que
percorreriam o caminho da escolaridade de forma regular” (Oliveira, 1999, p. 61).
Constrangimentos, perda da referência ou desinteresse manifesto ou mal – disfarçado pelos alunos
refletem a inadequação dos procedimentos didáticos e das posturas pedagógicas que daí decorrem
e redundam no afastamento (real ou atitudinal) do aluno dos palcos em que se desenvolvem as
cenas do ensino – aprendizagem escolar. De certa forma, acrescenta a autora, “é como se a situação
de exclusão da escola regular fosse, em si mesma, potencialmente geradora de fracasso na situação
de escolarização tardia” (Oliveira, 1999, p. 62).
Sobre o papel do professor em relação à diversidade na modalidade de ensino EJA,
Miranda (2001 como citado em Rodrigues, 2013, p. 42) diz:

Necessita, antes de mais, de ter um conhecimento sólido da matéria que se propõe


ensinar, de modo a poder transmitir imagens, perspectivas e pontos de vista que
desmistifiquem estereótipos e preconceitos e promovam a liberdade e a valorização das
diferentes culturas convergentes no espaço aula ou na sua escola. Deve, ainda, envolver-
se em processos de aquisição de conhecimento mediante os quais seja levado a analisar
os valores e os pressupostos dos diferentes paradigmas e teoria.

Alunos da EJA percebem-se pressionados por parâmetros de uma sociedade onde o saber
letrado é muito importante. Isso foi constatado em uma pesquisa com alunos ingressantes numa
etapa equivalente ao 3º ciclo do Ensino Fundamental (5ª série) de um projeto de EJA, as razões
declaradas pelos alunos para o retorno à escola foram organizadas em 2 grupos: no primeiro grupo,
estavam as motivações externas ou pressões da vida social, que incluíam: “oportunidade de
ascensão na empresa, maior exigência de escolaridade, conquistar profissão mais valorizada,
entrar no mercado de trabalho, conquistar melhor emprego, melhoria de salário, etc.” (Horta, 1999,
p. 42); o segundo grupo era composto pelas motivações internas ou de ordem pessoal, onde foram
reunidas respostas tais como: “preciso ter um objetivo na vida”, “agora deu vontade”, “quero me
sentir útil”, “sinto falta dos estudos”, “para melhorar minha qualidade de vida”, “agora eu vou
cuidar de mim”[...] (Horta, 1999, p. 42).
Entre os alunos do sexo masculino, para nossa surpresa, mesmo considerando que a
amostra era predominantemente formada por adultos, com idade superior a 30 anos, 54,8% das
motivações declaradas foram classificadas como motivações internas, índice que cresce no
público feminino (71,1%), em cujas entrevistas, sob formulações diversas, por várias vezes se
ouviu a frase: “agora eu vou cuidar de mim”.
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O valor atribuído a escola, o qual se revela nessa formulação que as alunas da EJA dão à
sua decisão de retomar os estudos, instaura, em seu projeto educativo, uma corresponsabilidade,
o que pode ser visto nesse cuidado de si, definido pelos sujeitos como prioridade atual de suas
vidas. Essas moças e senhoras, quando se permitem e se decidem a cuidar de si, elas apostam na
escola como uma ação de cuidado consigo mesmas. Elas, mas também eles, trazem para a escola
a esperança de que o processo educativo lhes confira novas perspectivas de autorrespeito,
autoestima e independência.
Cumpre, assim, aos docentes dessa modalidade de ensino, considerar esse tripé –
necessidade, desejo e direito – ao acolher seus alunos e alunas e tomá-los como sujeitos de
conhecimento e aprendizagem, para pautar suas ações educativas, em particular, no seu
componente curricular.
Nas práticas educativas, os educadores devem saber que o ensinar exige saber escutar
conforme nos diz Paulo Freire (2018, p. 118):

O respeito às diferenças e obviamente aos diferentes exige dos professores a humildade


que nos adverte dos riscos de ultrapassagem dos limites além dos quais as suas autovalias
necessárias viram arrogância e desrespeito aos demais. É preciso afirmar que ninguém
pode ser humilde por puro formalismo, como se cumprisse mera obrigação burocrática.

Pelo o que foi mencionado, podemos perceber que tanto a escola como os
educadores têm dificuldades em trabalhar em conjunto com o público da EJA. Tal cenário está a
exigir de todos educadores e gestores dos sistemas de ensino, um permanente e radical repensar
de nossas representações e conceitos sobre educação, bem como de uma profunda mudança em
certas atitudes e práticas pedagógicas. Este cenário que hoje vivemos na escola em geral, e na
escola de jovens e adultos em particular, está a demonstrar, a denunciar, a falência a um certo
modelo de ensino e de escola, segundo Boaventura Santos (2000) chama de processos de
silenciamento e de desconsideração pelas diferentes formas de saber que não o conhecimento
científico. Mais uma vez fica explícita a urgência em repensarmos os nossos papéis como
professores e as funções para essa instituição tão importante chamada escola. Isto não só é urgente
como é uma questão de prestação de contas a esta grande parcela da sociedade que teve negada
uma educação de qualidade.

Considerações finais

Assim, considerar a heterogeneidade desse público, os seus interesses, identidades,


preocupações, necessidades, expectativas em relação à escola, habilidades, enfim suas vivências,
torna-se necessária para a construção de uma proposta pedagógica efetiva. É fundamental perceber
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quem são os sujeitos da EJA, construir uma convivência harmoniosa e útil, para que os conteúdos
a serem trabalhados façam sentido, tenham significado e, sobretudo, sejam elementos concretos
na formação dos alunos, instrumentalizando-os pelo domínio de conhecimentos e os habilitando
a intervenções significativas em suas realidades.
Há, em todos os níveis de escolarização, certa diversidade. Entretanto, nas salas de aulas
da EJA, a heterogeneidade se manifesta mais gritante, incluindo a referente ao gênero, idade,
procedências, escolaridade, letramento, etc, indicando a importância da escola e dos professores
considerarem de forma mais efetiva a questão da diversidade, facultando um ambiente adequado
para um ensino de qualidade.
A metodologia de ensino-aprendizagem dos docentes da EJA deve contemplar os costumes
e os hábitos, os comportamentos desses alunos, visando uma aproximação com a realidade dos
educandos. A formação de profissional que atenda essa modalidade de ensino é colocada como
questão central nos debates sobre discussões temáticas que envolvem a Educação de Jovens e
Adultos. A atuação das Universidades na formação destes docentes permanece tímida e criticada.
É irrisório o número de Faculdades de Educação que formam professores voltados para atuar nessa
população específica. Em muitos casos, sem um quadro de educadores com formação inicial para
atuar com essa população, as iniciativas governamentais e não-governamentais têm procurado
realizar essa formação em serviço.
A análise aqui apresentada se manteve no campo qualitativo, os dados coletados ajudaram
a visualizar como tem sido o abandono escolar por sexo na modalidade de ensino da EJA. Sendo
assim, este estudo, abre possibilidades para novas abordagens e pesquisas sobre o tema, tão carente
de pesquisas no que tange à diversidade nos sujeitos da EJA e ao abandono escolar.

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SUPERAÇÃO DA FRAGILIDADE DA ESCOLA PARA O ENFRENTAMENTO DE SUA


REALIDADE, POR MEIO DA ANÁLISE DE SUA CONDIÇÃO E DO
ENVOLVIMENTO DA COMUNIDADE ESCOLAR

SCHOOL FRAGILITY OVERCOMING FOR THE COPING WITH THEIR REALITY


THROUGH THE ANALYSIS OF THEIR CONDITION AND SCHOOL COMMUNITY
INVOLVEMENT

Francilene do Rosário de Matos


Mestre em Educação. UFMA
Elderson Caio Pereira.
Graduando em Ciências Humanas UFMA
Maelson José Soares Silva
Graduado em Ciências Humanas. UFMA
Patrícia Cristina da Silva
Graduanda em Ciências Naturais. UFMA
Pedro Fernando Araújo de Melo
Graduando em Ciências Humanas. UFMA

Resumo :Este trabalho trata sobre o Projeto de Intervenção Interdisciplinar “Roda de Conversa”,
um projeto de ensino da UFMA-Pinheiro, promovido pelo Programa Foco Acadêmico, da Pro-
reitoria de Assistência Estudantil (PROAES). O projeto foi desenvolvido na escola municipal José
Erivan Cordeiro, em Pinheiro-MA, com objetivo de desenvolver competências e habilidades de
cunho pedagógico, interdisciplinar e específico da formação docente, por meio da integração entre
a comunidade acadêmica e os profissionais da educação básica. A metodologia englobou pesquisa
documental e observação direta para análise da documentação pedagógica e do acompanhamento
das rotinas. Além de uma revisão bibliográfica sobre os temas relacionados às problemáticas da
escola e, para tanto, recorreu-se aos estudos de Cogo & Nadal (2013), Oliveira (2010), Nogueira
(2005). Foram realizadas rodas de conversas para compartilhamento de conhecimentos, opiniões,
experiências e proposições. Durante o projeto houve uma visita técnica à escola Maria José
Aragão, em São Luís, para reconhecimento do seu histórico de superação frente a uma realidade
adversa. Ao final das atividades constatou-se a necessidade imediata de intervenções na escola
José Erivan, percebendo-se ainda a desarticulação entre o corpo docente, o serviço de
acompanhamento pedagógico e gestores, que dificulta a implementação de meios para a superação
das problemáticas existentes. Concluiu-se que a superação dos entraves que dificultam o alcance
dos objetivos da escola, não estão e nem virão de fora para dentro, mas sim da construção conjunta,
oriunda do reconhecimento de sua realidade, predisposição em construir proposições e,
principalmente, o envolvimento e responsabilização dos membros da comunidade escolar.
Palavras-chave: Educação. Realidade Escolar. Intervenção Pedagógica
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Abstract: This paper addresses the Interdisciplinary Intervention Project “Roda de Conversa”, a
teaching project at UFMA-Pinheiro, promoted by the Academic Focus Program, from Pro-Rectory
of Student Assistance (PROAES). The project was developed at the José Erivan Cordeiro
municipal school, in Pinheiro-MA, with the objective of developing pedagogical, interdisciplinary
and specific competences and skills of teacher education, through integration between the
academic community and professionals of basic education. The methodology included
documentary research and direct observation for the analysis of pedagogical documentation and
the monitoring of routines. In addition to a bibliographic review on the themes related to the
school's problems, and, therefore, the studies of Cogo & Nadal (2013), Oliveira (2010), Nogueira
(2005) were used. Conversation circles were held to share knowledge, opinions, experiences and
propositions. During the project there was a technical visit to the Maria José Aragão school, in
São Luís, to acknowledge its history of overcoming in the face of an adverse reality. At the end
of the activities, it was found an immediate need for interventions at the José Erivan school,
noticing still the disarticulation between the teaching staff, the pedagogical support service and
managers, which makes it difficult to implement means to overcome existing problems. It was
concluded that overcoming the obstacles that hinder the achievement of the school's objectives,
are not and will not come from outside to inside, but from the joint construction, arising from the
recognition of its reality, predisposition to build propositions and, mainly, the involvement and
accountability of members of the school community.
Keywords: Education. School Reality. Pedagogical Intervention.

INTRODUÇÃO

O Projeto de Intervenção Interdisciplinar “Roda de Conversa” é uma iniciativa da


Universidade Federal do Maranhão (UFMA) de Pinheiro, em parceria com a Secretaria Municipal
de Educação (SEMED) de Pinheiro. Sua realização se deu na escola municipal José Erivan
Cordeiro e teve como objetivo geral contribuir para o desenvolvimento das competências e
habilidades de cunho pedagógico, interdisciplinar e específico da formação docente, por meio da
integração entre a comunidade acadêmica e os profissionais da educação básica, num processo de
aproximação, reconhecimento, discussões e troca de experiência sobre temas da área de educação,
relacionados à prática docente.
Para o alcance desse propósito foram desenvolvidas estratégias metodológicas de execução
em duas fases. A Fase I consistiu na apresentação do projeto para SEMED Pinheiro;
reconhecimento da escola campo quanto à sua proposta pedagógica, estrutura administrativa e
educacional e dinâmica de funcionamento; e apresentação das sugestões de temas para as Rodas
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de Conversa, para a seleção de dois temas mais interessantes ao corpo docente. Na Fase II foram
realizadas as seguintes atividades: visita técnica à uma outra escola, com histórico de superação
de condições adversas e resultados negativas de rendimento escolar; pesquisa e estudo sobre os
temas selecionados; planejamento, execução e avaliação das Rodas de Conversa; reunião de
avaliação das Rodas de Conversa pela equipe executora; e, por fim, produção deste relatório.
Com o desenvolvimento do projeto obteve-se em destaque dois resultados. O primeiro de
cunho individual, refletido em cada participante e expresso por meio de sua maior e melhor
percepção sobre a prática docente, assim como repercutindo também no seu desempenho durante
seu percurso de formação inicial e na futura prática profissional. O segundo resultado, de cunho
mais social, teve reflexo no ambiente escolar, campo de estudo. Pois, acredita-se que a partir das
atividades desenvolvidas com o corpo docente e técnico durante a execução do projeto, a
comunidade escolar usufruiu do processo de autoconhecimento e autoavaliação, possíveis de
promoção das intervenções necessárias para a superação de suas dificuldades ou melhoria de seus
processos pedagógicos.
Este trabalho foi estruturado após o término de todas as atividades, realizadas entre os
meses de janeiro a junho de 2019 e é originário dos registros e percepções dos bolsistas durante a
realização da Fase II do projeto. Para melhor compreensão serão apresentadas a seguir seções que
tratam da metodologia utilizada, a visita técnica na escola Maria José Aragão, o planejamento e
execução das duas rodas de conversa e por fim, as considerações finais.

METODOLOGIA

O projeto foi desenvolvido em etapas, onde a primeira foi a apresentação do projeto para
SEMED Pinheiro, que indicou como escola-campo a escola José Erivan Cordeiro, considerada
pela equipe como carente de intervenções pedagógicas, tendo em vista as diversas ocorrências já
registradas. Depois da apresentação do projeto e escolha da escola-campo começou a etapa de
observação na escola, que aconteceu nos meses de setembro, outubro e novembro de 2018. Os
quatro bolsistas foram divididos em dupla e as observações feitas nos turnos matutino e vespertino,
onde puderam conhecer a proposta pedagógica da escola, a estrutura administrativa e educacional,
e a dinâmica geral de funcionamento.
Uma etapa inesperada, mas de muita importância para o trabalho foi a visita técnica na
escola Maria José Aragão, na cidade de São Luís, que teve como objetivo principal reconhecermos
um caso de sucesso frente a difícil realidade do entorno e situação complexa que a escola se
encontrava. Foi um momento de pesquisa, onde o grupo foi dividido em duplas e realizadas
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entrevistas com o diretor, funcionários, alunos e pais de alunos. Tivemos a oportunidade de ver a
dinâmica da escola, trabalhos realizados pelo diretor, funcionários e alunos.
Para a maior instrução dos participantes sobre os temas a serem desenvolvidos no projeto,
foram realizadas sessões de estudos. As reuniões ocorriam semanalmente, com intuito de após a
leitura dos artigos, discutir sobre o tema, onde cada um pudesse compartilhar o seu conhecimento
sobre o tema abordado.
Também eram desenvolvidos encontros para o planejamento de todas as etapas do projeto,
que sempre ocorreram semanalmente na UFMA-Pinheiro. Esses encontram serviam para sanar as
dúvidas, apresentar sugestões e organizar os estudos, a visita técnica e das rodas de conversa.
As rodas de conversas foram planejadas e marcadas de acordo com o calendário da escola,
um dos temas foi escolhido pela equipe da SEMED, em uma reunião, e o outro tema foi escolhido
pelos participantes, ao final da primeira roda de conversa, através de um questionário.
O tema da primeira roda de conversa foi “Família e escola: resgatando valores”. A segunda
roda de conversa teve como tema “A violência na escola: impasses e desafios da prática docente”.
Ambas as rodas de conversas tiveram quatro horas de duração e compartilharam os mesmos
procedimentos metodológicos: exposição do tema, de forma dialogada, para conhecimento teórico
sobre os temas abordados, onde houve a participação dos alunos, pais de alunos, participantes do
grupo, diretor e demais funcionários, em seguida foram aplicados questionários para avaliação da
atividade e entrega dos certificados de participação.
Posteriormente os bolsistas e a coordenação do projeto se reuniram para avaliar a atividade
realizada, oportunidade em que compartilhavam suas perspectivas e aprimoravam seus
conhecimentos. Ao fim de toda a execução, o grupo passou a se reunir para a elaboração do
relatório final do projeto.

VISITA TÉCNICA NA ESCOLA MARIA JOSÉ ARAGÃO PARA RECONHECIMENTO


DE UM CASO DE SUPERAÇÃO

A visita técnica na escola estadual de Ensino Médio Maria José Aragão, localizada no
bairro da Cidade Operária, em São Luís, possibilitou que a equipe reconhecesse diversas questões
educacionais, por meio do Professor Wilson Chagas, diretor da escola, e sua equipe, visualizando
perspectivas de fazer diferente e do quanto é possível acreditar nessa prática tão nobre e
enriquecedora que é a educação e suas mudanças claras na vida de cada cidadão.
Os assuntos voltados à escola sempre estiveram na pauta de discussão do grupo de tralho,
sendo tratado nas reuniões quinzenais, em alguns casos sendo observado pelos participantes como
algo utópico, curioso e impressionante, tendo em vista os diversos problemas que a educação
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brasileira vem enfrentando, principalmente ao se tratar da educação pública. E assim, se fez


necessário a observação de uma experiência exitosa para eliminar a ideia de que havia um
impeditivo conjuntural para que a Educação cumprisse seus objetivos.
O primeiro contato que do grupo com a realidade da escola Maria José Aragão ocorreu
por meio de uma matéria do programa Repórter Mirante, intitulado “Atitudes de um professor
modifica ensino prestado por escola pública em São Luís”, publicado em 29 de dezembro de
2018, onde faz toda uma abordagem de forma resumida da relação e contato do Prof. Wilson
Chagas com a escola desde a sua chegada, onde por meio de seu depoimento é feito um apanhado
de como era a escola antes e o que ela se transformou depois de todo os esforços depreendido por
ele, sua equipe e os docentes.
Após contato com a direção do Centro de Ensino Maria José Aragão, o grupo teve a
oportunidade de realizar a visita técnica no dia 10 de maio de 2019. Visualizando sua estrutura
externa foi possível perceber que aparenta ser uma escola como qualquer outra, murada, com
quadra esportiva ao lado, vigilante, pintada de amarelo e o nome da escola escrita em seu muro,
feito na cor vermelha. Porém, ao adentrar nos deparamos com diversas características que a
diferenciam de muitas escolas, principalmente públicas, e que fez com que o grupo se
maravilhasse com tudo aquilo, principalmente pela recepção dada pelo Prof. Wilson Chagas e os
demais servidores.
O diretor da escola, por meio de uma atrativa conversa com o grupo conseguiu nos mostrar
o seu papel como personagem protagonista daquela linda história, onde o envolvimento não
acontece apenas como profissional, mas pessoal e afetivo, com um verdadeiro espírito de
liderança.
Com a visita técnica foi possível analisarmos de que forma eles conseguiram chegar a fazer
mudanças significativas em meio a uma realidade de descaso, perca de perspectivas, em que a
princípio buscou-se conhecer a realidade dos alunos e a forma que poderiam agir diante de tudo
aquilo. Sendo assim, foi iniciado um processo de inclusão dos indivíduos em prol de um trabalho
coletivo, que visasse fazer diferente e trazer benefícios a todos os alunos, influenciando o
crescimento cognitivo de cada um dos alunos. Constatando-se que é possível por meio de atitudes
conscientes, ir além da condição de vítimas do descaso, passivos ao atual contexto educacional
que a sociedade vem passando.
Sobre a questão afetiva e sua importância do contexto educacional, sendo essencial para o
processo de inclusão que os alunos vêm sendo submetidos, trabalhada de forma ativa pela escola
visita, Silva (2017) afirma que:

A afetividade quando valorizada dentro do processo ensino-aprendizagem traz inúmeros


benefícios aos seus agentes, para o professor oferece confiança, a sensibilidade e o
manejo necessário para entender o que seus alunos estão sentindo em determinados
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momentos e a habilidade e competência para encontrar possíveis soluções para certos


conflitos. A relação entre sujeito e objeto, desenvolvimento e aprendizagem estão
permeados de afeto, pois a interação entre o organismo e o meio social se dá de forma
interativa, por meio de influências mútuas que envolvem todos os aspectos do ser humano
e não apenas o cognitivo. A afetividade ocupa lugar de destaque dentro do processo
educacional e a maneira como ela acontece pode ser decisiva na concepção de mundo e
de homem construída pelo aluno, assim como na sua reelaboração do conhecimento
culturalmente organizado (SILVA, 2017, p. 1).

Dentro de tal perspectiva, Prof. Wilson Chagas nos mostrou o quanto o envolvimento e a
preocupação em se desprender da comodidade gerada pelo descaso, é importante nesse processo
de transformação. E, assim, aproximando-se com a finalidade de conhecer as diversas realidades
que seus alunos se encontram, foi possível entender e assim trabalhar de forma sistemática e ativa
para que a mudança em torno do processo aconteça. Percebemos a importância do
comprometimento da direção, equipe técnica e docente, demais servidores, a família e
precisamente os alunos que são peças fundamentais nesse processo tão importante.
A supervisora da escola como agente importante do trabalho, fez uma abordagem da
importância de procurar estratégias que sistematizem a construção de um conhecimento que venha
a agregar valor ao processo ensino-aprendizagem, sempre procurando meios que facilitem essa
união entre teoria e prática. Destacou, ainda, o quanto é essencial manter o equilíbrio nesse
processo, principalmente utilizando o diálogo e a troca de ideias entre o professor, supervisor e
alunos.
Silva (2017) respalda em seu texto o quanto é necessário à importância da afetividade não
só para o ambiente educacional, mas para as questões sociais dentro e fora da escola, trabalhando
assim a forma como tal fator é importante:

Muitas vezes o afeto em algumas instituições recebe pouca importância provocando um ranço nas
relações interpessoais. Nestes ambientes em que a educação é considerada um depósito de
informações, onde um ensina e o outro aprende o professor que deveria ser o mediador do
conhecimento, é visto como o agente ativo da exclusão escolar e social. Sabemos que esta relação
possui um caráter unilateral, autoritário e punitivo, que não considera o aspecto sócio emocional
resultando num distanciamento entre educador e educando. A afetividade quando valorizada dentro
do processo ensino-aprendizagem traz inúmeros benefícios aos seus agentes, para o professor
oferece confiança, a sensibilidade e o manejo necessário para entender o que seus alunos estão
sentindo em determinados momentos e a habilidade e competência para encontrar possíveis
soluções para certos conflitos. Para os alunos, o simples fato de sentir-se valorizado e respeitado
como ser humano já aumenta sua disposição para aprender e cooperar com seu professor e seus
colegas (SILVA, 2017, p. 3).

O diretor tem um papel essencial para que tudo ocorra bem na escola, demonstrando que
há uma grande importância na transmissão do conhecimento, porém, é essencial que questões
como dá atenção aos alunos seja fator crucial para que a mudança ocorra. Assim, haja uma relação
recíproca entre os envolvidos no processo, principalmente respaldada no diálogo, respeito, afeto,
limites e principalmente confiança, fazendo com que aconteça um processo gradual de
crescimento e realizações para todas as pessoas inseridas no âmbito escolar e humano da escola.
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A arte foi e é a principal força transformadora na escola Maria José de Aragão, visto que
a atenção sobre uma construção a pequenos passos, foram possíveis mudar, segundo o Prof.
Wilson, plantar frutos para que sejam colhidas flores, e assim mostrar o potencial de cada um. Foi
esclarecido que a arte foi essencial nesse processo, trazendo para tal ambiente a introdução de
práticas criativas, visando assim o envolvimento por parte dos alunos e aguçando sua aproximação
de forma prazerosa com a leitura, com a dança, com a arte e principalmente criando uma relação
mais próxima com a escola que fazem parte.
Foi apresentado à equipe informações sobre a dinâmica de funcionamento da escola, onde
a vice-diretora, a coordenadora pedagógica e professores sempre utilizam estratégias para que o
trabalho aconteça da melhor forma. Há cobranças constantes para que as famílias estejam
presentes nesse processo de ensino-aprendizagem dos alunos.
É comum na escola a utilização de métodos artísticos como estratégia educativa, onde se
realizam projetos de leitura, incluindo concursos de poesia, teatro, música, e dança como é o caso
da crioula, do projeto e espetáculo de dança chamado Baião de Dois, Quixumba e o Cacuriá, dança
típica do estado do Maranhão, surgida como parte das festividades do divino Espírito Santo, sendo
tais projetos respaldados no respeito, liderança, organização e posição proativa de ambos os
envolvidos na dança.
Além das danças, a escola trabalha com projetos como o GAMAR (Grupo de Arte Maria
José Aragão), que visa envolver não só os alunos, mas a comunidade do entorno da escola, fazendo
com que haja a transparência para todos do que está sendo trabalhado de forma construtiva e
criativa dentro da escola. Dessa forma, por meio da arte é possível fazer a união entre
conhecimento, prática e pedagogia, juntando o útil e o agradável na prática educativa.
A coordenação, juntamente com o corpo docente, se preocupa em basear as práticas de
ensino com os princípios da interdisciplinaridade, interrelacionado as disciplinas de História,
Língua Portuguesa e Artes. Percebeu-se pelos relatos recebido, o quanto os alunos se preocupam
em sempre fazer o melhor, priorizam e levam consigo a responsabilidade desde o momento de
realizar os passos das danças de forma correta, até a compra dos matérias utilizados para confecção
das obras de artes que produzem e que se encontram facilmente ornamentando a escola. Isso
demonstra há nos alunos um sentimento de pertencimento, atrelado a aproximação de uma
identidade cultural, despertando em cada aluno o respeito à escola e a construção de valores morais
e sociais, preparando-se para a realidade fora da sala de aula. Raffestin (1993) demostra em sua
obra a importância de incitar na vida do aluno esse sentimento de pertencimento:

“O sentido de pertencimento escolar que se considera como modelo para o alunado é


aquele que privilegia e além do conteúdo curricular, a emoção e a afetividade que o
espaço escolar possa proporcionar a toda a comunidade envolvida. Entende-se que as
relações de identidade e pertencimento ao lugar são mescladas no processo de
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apropriação e territorialização do espaço. Isto é possível quando os sujeitos desenvolvem,


neste local, valores atrelados aos seus sentimentos e à sua identidade cultural e simbólica,
recriando o espaço onde vive ao qual se identificam e se sentem pertencer”
(RAFFESTIN, 1993, p.144).

Silva (2018) respaldado nesse sentimento de aproximação entre o aluno e o ambiente


educacional, coloca os pontos positivos e, por outro lado, o quanto podem ser gerados situações
ruins não só na escola, mas na vida social dessa pessoa:

“Nota-se que muitos alunos não vêm valorizando esses sentimentos dentro do ambiente
escolar e fora dos muros da escola não é diferente a não valorização de culturas,
ambientes, relações é uma característica das gerações atuais. Como os educandários são
representações e referências para as comunidades escolares, assim a revitalização destes,
exige a colaboração não apenas dos alunos, como de toda a comunidade escolar, que
passa pela afeição de pertencimento e de cuidado com o meio. Mas, para transformar o
meio escolar em um espaço favorável à aprendizagem, é imperioso encorajar a
comunidade escolar nas atividades dentro da escola direcionando todos de que a escola
é um ambiente agradável de estar. Tendo em vista que, pelo quadro de deterioração em
que se depara a maior parte dos prédios escolares, faz-se essencial articular atividade que
instigam toda a comunidade escolar recuperar estes ambientes sensibilizá-los para o zelo
e embelezamento com o patrimônio escolar de forma a sentirem-se pertencentes à escola”
(SILVA, 2018, p. 3).

Ao atestarmos a realidade da escola José Erivan, percebemos que tudo que foi abordado
na matéria do programa Repórter Mirante se comprovava. Constatou-se o quanto havia ocorrido
transformações extraordinárias na escola, onde no pátio, biblioteca e inclusive na sala do diretor,
se encontram diversas obras de artes produzidas pelos alunos. O que encheu toda a equipe da
certeza de que naquele lugar há muito sentimento, dedicação, envolvimento e uma exemplar
relação de cooperação na escola. Os professores, alunos e a coordenação fazem parte da
construção real daquele quadro de mudanças, com a uma grande finalidade, que é a mudança
social na vida de cada um.
Fomos informados que a demanda de vagas na escola vem aumentando, fazendo com que
muitas famílias insistam em colocar seus filhos, visto serem cientes da importância do trabalho
que vem sendo desenvolvendo no contexto educacional do Centro de Ensino José Aragão. Por não
conseguir atender a toda a demanda, há pressão por parte dos professores devido à superlotação e
a falta de mais profissionais, que possam possibilitar um maior acolhimento às necessidades da
escola. O diretor destacou que a escola realiza muitas matrículas, mas há uma diversidade de
critérios a serem seguidos, entre eles está à importância da relação familiar no processo de ensino-
aprendizagem, onde a família deve está apta a fazer seu papel de forma a participar das decisões,
dos problemas e trabalhar nos seus filhos o respeito com as regras, patrimônio, com os servidores
da instituição e demais colegas.
Para a realização da última atividade da visita os componentes do grupo se dividiram, e
em dupla fizeram perguntas à direção da escola, à um grupo de alunos, aos professores e para
alguns pais atuantes no contexto da escola. As respostas às perguntas possibilitaram um
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conhecimento maior sobre o que ocorre diariamente na escola, a partir de perspectivas diferentes.
Foram declarados os diversos valores inseridos no cotidiano da escola e o quanto isso é presente
na vida das pessoas que fazem parte.
Na conclusão da visita tivemos o prazer de assistir uma apresentação do grupo de dança
GAMAR, que demostrou todo talento e amor com que desenvolvem essa atividade, marcada por
muito carisma e dedicação.
O grupo participante da visita concluiu essa atividade compreendendo em definitivo a
importância de não se tornar mais uma vítima do descaso com a educação brasileira, como foi
declarado pelo diretor Prof. Wilson Chagar, procurando sempre fazer a mudança, mesmo diante
do contexto social que nos encontramos, nos tornando assim futuros docentes capazes de construir
o novo, de transformar os problemas em soluções, nos mostrando atuantes e esperançosos quanto
a dias melhores, dias onde a educação seja prioridade e o caminho da mudança.

REALIZAÇÃO DAS RODAS DE CONVERSA NA ESCOLA JOSÉ ERIVAN

Primeira Roda de Conversa - “Relação Família-Escola: Uma discussão necessária sobre


sujeitos essenciais ao ensino-aprendizagem.”

A 1ª Roda de Conversa foi realizada no dia 23 de maio de 2019 na escola José Erivan
Cordeiro, onde os organizadores puderam contar com a participação de alguns familiares de
alunos, professores, direção e coordenação pedagógica, além dos próprios alunos. Cerca de 42
pessoas se fizeram presentes.
O tema dessa roda de conversa foi escolhido pelo secretário de educação do município, o
diretor titular da escola e a coordenadora pedagógica, na reunião em que os integrantes do grupo
foram entregar o relatório parcial da pesquisa (com informações sobre a Fase I do projeto, a
observação). A escolha pelo tema Relação Família-Escola foi unânime, por ser considerada como
uma das principais problemáticas da escola.
Família e escola são os principais pontos de sustentação do indivíduo, mas por vezes
apresentam-se numa relação conflitante, comprometendo a formação das crianças. Essa educação
partilhada constrói o caráter do cidadão consciente que buscamos ter hoje em nossa sociedade,
pois a educação passa pela família e pela escola, mostrando seus reflexos na sociedade.
Max Weber (1864-1920) construiu uma teoria em que demonstra como funciona
basicamente a hierarquia de sociabilização de um indivíduo, colocando em tese os agentes
fundamentadores para uma vida em sociedade. Em formato piramidal, a família é a primeira base,
logo após a escola, a igreja (instituição religiosa) e o estado. Essa organização é inspirada em
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instituições sociais sem nenhum agravante, avaria ou configuração que altere suas formas. Mas,
em análises realizadas da atualidade, observa-se que em situações reais, a família e a escola têm
dividido a primeira base, já que a escola tem assumido muitas vezes a responsabilidade de educar
crianças naquilo que deveria ser aprendido na família.
Por lei a educação não é uma incumbência somente da escola, a Lei de Diretrizes e Bases
(LDB), em seu Art. 2º, afirma que a educação, é dever da família e do estado, inspirada nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para
o trabalho. O Art. 5º afirma que o acesso à educação básica obrigatória é direito público subjetivo,
podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical,
entidade de classe ou outra legalmente constituída e, ainda, o Ministério Público, acionar o poder
público para exigi-lo.
O Código Civil brasileiro, em seu Artigo 1.634, parágrafo I, afirma que o dever de criar e
educar é dos pais, e sendo assim, podemos afirmar que no cenário legislativo há uma série de
sustentações legais, todas definindo que ambas as instituições sociais possuem especificidades na
educação do indivíduo. Dessa forma, o entendimento sobre educação tem que ser cultivado como
um direito, primeiramente do indivíduo, posteriormente da sua família conceder esse direito e por
fim, do estado criar artifícios para sua escolarização.
O Código Penal pode interpretar a tal falta de participação familiar como abandono
intelectual do menor, e segundo o Art. 246, deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária
de filho em idade escolar, gera penalidade de detenção de quinze dias a um mês, ou multa. Essas
medidas tendem a ser tomadas como o extremo da situação, e devem ser evitadas, por isso há a
necessidade de não descumpri-las, pois são agravantes que só tem um prejudicado: o menor de
idade.
O Art. 53º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) diz que a criança e o adolescente
têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício
da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-lhes: 1) igualdade de condições para o
acesso e permanência na escola; 2) direito de ser respeitado por seus educadores; 3) acesso à escola
pública e gratuita próxima de sua residência. Ainda, em seu parágrafo único deixa claro que é
direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da
definição das propostas educacionais.
Para finalizar, devemos compreender que a escola é um espaço coletivo, que apesar da
consciência disso, tem encontrado grandes problemas em relacionar-se com outros agentes,
principalmente a família. Diversos problemas são decorrentes, e o acúmulo deles geram o
estancamento das ações relacionais. Não é possível encontrar agentes perfeitos, tampouco esperar
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que estes apareçam para que se possa fazer algo. Tem de haver o enfrentamento das problemáticas,
com soluções inteligentes e conjuntas, a iniciar dentro da escola. Realizar um trabalho conjunto é
essencial para o sucesso escolar, cumprindo as leis, contudo, não é de maneira alguma fácil.
O planejamento da Roda de Conversa iniciou-se com estudos teóricos, através de textos
científicos sobre o tema e discussões em equipe sobre as melhores metodologias possíveis a serem
aplicadas na execução. Para a realização desta roda de conversa, foram necessários alguns recursos
audiovisuais, como notebook, data show, som amplificado e microfones. Todos os recursos
utilizados foram importantes para a melhor execução do cronograma.
Iniciamos a execução da roda com uma dinâmica chamada “O garotinho chamado amor”,
onde os participantes foram convidados a interagir uns com os outros de acordo com o que a
dinâmica sugeria. Essa dinâmica serviu para que os participantes se sentissem mais à vontade e
agissem com naturalidade durante as discussões acerca do tema.
Logo após, iniciou-se o momento da explanação teórica, com os conteúdos que abordaram
o tema. Foi trazido uma série de pontos para discutir a temática da roda, abordando todos os
agentes e suas atribuições no processo educacional de crianças e adolescentes, dando ênfase
principalmente para a família e a escola. Dentre os pontos abordados, podemos destacar:
- Legislação que trata sobre as obrigatoriedades, direitos e deveres da educação
- Quais as atribuições educativas da família e da escola
- Desconstrução das ideias de família e escola perfeita
- A fragilidade nas relações família-escola atualmente
- Fatores influenciantes para a escola estabelecer vínculos com a família
- O problema da busca por culpados e a necessidade de um bom profissionalismo docente.
- A escola como um espaço coletivo e de diversidade de públicos.
A abordagem desses pontos teve como principal objetivo deixar claro quanto aos papéis
de cada agente do processo educativo, além de tentar conscientizar que ambas as partes precisam
estarem juntas, apesar das condições e situações contrárias e mitos sobre família ideal/perfeita e
escolas sem problemáticas, que afastam ainda mais estes que deveriam caminhar juntos.
Após a abordagem teórica da roda de conversa, foi exibido um vídeo em que uma
psicopedagoga é entrevistada e fala sobre a importância das instituições família e escola estarem
juntas no processo, trazendo reflexões que expõem a necessidade disto em qualquer realidade que
seja, para o melhor desenvolvimento da aprendizagem do indivíduo.
Por fim, deu-se início às discussões, onde os alunos, pais presentes, professores e gestores
tiveram espaço para exporem suas concepções, opiniões, experiências e ideias.
No momento de conversas da roda, houve várias contribuições de discentes e docentes, em
um bom andamento das mediações, com bastante entusiasmo. As falas foram muito valiosas para
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percebermos que essa temática correspondeu a uma necessidade da escola, representando um


momento exato para discussões, e que mesmo não havendo a participação discursiva dos pais que
estavam presentes, pudemos observar o anseio dos alunos e professores que estavam ali.
Concluindo a roda de conversa, foram entregues os certificados de participação a ficha de
avaliação, onde os participantes apontando sua percepção sobre relevância do tema, organização
das atividades, infraestrutura, nível das discussões, desempenho dos mediadores e a própria
percepção.
As discussões realizadas na roda de conversa tiveram um caráter contribuinte, onde os
participantes que expuseram suas opiniões e ideias, não discordaram com toda a abordagem feita,
mas somaram com experiências e opiniões sobre a importância dessa relação família-escola.
Houve de certo uma grande empolgação por parte dos estudantes ao perceberem que poderiam
expressar suas opiniões e destacar a importância de família e da escola para o seu aprendizado.
Alguns alunos destacaram em suas falas que a negligência familiar é uma realidade
existente para muitos alunos, onde além de não se fazerem presentes na escola, não reforçam a
importância do próprio ato de estudar. Ficou perceptível diante das discussões que há muitas
famílias desligadas por completo da vida escolar de seus filhos, e isso por consequência traz danos
interpessoais para os próprios indivíduos, como para o andamento das atividades escolares como
um todo.
Também foi abordado o fato de que o distanciamento das duas instituições gera conflitos
que expõem a problemática. Muitos dos alunos que demonstram dificuldade em seguir normas e
regras, além de dificuldades extremas na aprendizagem, geralmente trazem reflexos de um
ambiente familiar problemático. Crianças e adolescentes acabam sofrendo danos com
envolvimento em coisas ilícitas, já que geralmente não possuem controle dos familiares e até
mesmo, conhecem os meios ilícitos por intermédio da própria família.
Os professores contribuíram dizendo que manter o contato com as famílias sempre foi
difícil, mas hoje está quase impossível, cada vez mais há uma recusa destes em se fazerem
presentes nas atividades escolares dos seus filhos. De fato, o contexto da escola contribui para
isso, mas destacaram que os pais e responsáveis precisam compreender que é importante a
presença deles para o futuro de seus filhos. Ainda reiteraram que apesar de haver as
obrigatoriedades legais, há de certa forma um descumprimento dos deveres.
Não houve nenhuma fala de algum representante familiar nesta roda, mas as discussões
giraram em torno do distanciamento da família para a escola, entretanto, não foram citadas ações
ou tentativas de aproximar a escola da família. As contribuições foram reflexivas, das quais
consideramos importantes para a conscientização de que apesar da temática já ter sido abordada
nesta roda é importante pensar nas possíveis ações para tentar diminuir esse distanciamento.
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Os resultados desta primeira roda de conversa foram considerados positivos, tendo em


vista a organização da equipe e a própria escola estar acolhedora na determinação da data e da
concessão do espaço. O corpo docente da escola apresentou-se em sua maioria na referida data e
esteve atento durante toda a execução da roda. Houve também a presença de alguns pais/familiares
de alunos, assim como os próprios estudantes da escola.
Desde o início da elaboração da roda, houve a colaboração da direção da escola, que esteve
disponível para encontrar a data mais viável e que pudesse ajuntar docentes, família e alunos no
mesmo espaço. Além disso, os participantes dessa roda contaram ao final, com uma ficha de
avaliação de todos os aspectos de realização da mesma, resultando nos seguintes números: foram
39 fichas preenchidas dos 42 participantes, sendo que 14 classificou a abordagem do tema como
muito boa, 24 como bom e 01 como mediano. Esse resultado na avaliação nos leva a considerar
que foi importante a realização deste momento de discussão, e é um tema relevante para ser
abordado, tendo em vista as dificuldades da escola com isto.
Nas fichas avaliativas também foram abertos espaços para observações, onde alguns
participantes fizeram algumas afirmações importantes de serem destacadas, como por exemplo, a
fala do participante 01: “Foi muito gratificante, apesar de comparecer poucas famílias, mas foi
proveitosa, espero que venha acontecer mais vezes”.
O participante 02 destacou que “o desenvolvimento da roda de conversa foi bastante
proveitoso, onde a participação de todos foi bastante reflexivo”. Outro participante demonstrou
também satisfação ao participar da roda ao dizer que “o desenvolvimento da roda foi muito bom,
quero participar de novo, muito obrigado”.
As discussões elevaram pontos importantes para deixar inquietações, como por exemplo o
questionamento: o que eu estou fazendo para diminuir essa distância entre a escola e a família?
Durante toda a roda de conversa, os participantes pareciam bem atentos e nas discussões
interessados em falar ou ouvir. Essa percepção nos fez entender que esse momento foi de extrema
importância, e falar sobre isso, de alguma maneira trouxe a liberdade para tirar isso apenas de
observações pessoais e achismos, principalmente dos docentes.
Por fim, os participantes escolheram a temática da segunda roda de conversa, onde a
maioria votou para o tema “A violência na escola: impasses e desafios da prática docente”. Sendo
assim, os resultados obtidos podem ser considerados satisfatórios pela equipe organizadora.

Segunda Roda de Conversa: “Violência escolar: impasses e desafios da prática docente”

A segunda roda de conversa realizada na escola José Erivan Cordeiro ocorreu no dia 05 de
setembro de 2019 e mais uma vez contou com o apoio da direção e coordenação da escola. O tema
abordado foi escolhido pela maioria dos participantes da roda de conversa anterior, que indicaram
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como a relevância do tema violência escolar é alta no cotidiano desta escola, sendo um dos pontos
em que precisa de uma atenciosa intervenção. Essa roda contou com a presença dos discentes e
docentes da escola e foi dividida entre explanação teórica, discussão do tema e contribuições para
práticas.
A violência, na nossa atualidade é um dos mais fortes impasses entre as análises estatísticas
e a prática, isto porque ela se manifesta de várias formas e ao adentrar no ambiente escolar, ganha
proporções delicadas. O termo “violência escolar” diz respeito a todos os comportamentos
agressivos e antissociais, incluindo também os conflitos interpessoais, danos ao patrimônio, atos
criminosos e etc. A intervenção e solução geralmente dependem de fatores externos, que atingem
diretamente a escola ou mesmo, em casos delicados, surgem/acontecem nela.
Muitas vezes são necessárias ações interventivas que estão além da capacidade e da
competência da instituição, a qual possui outra proposta – a educação formal – que visa a formar
indivíduos capazes de refletir sobre seus atos, proporcionar o desenvolvimento da criatividade e
de potencialidades do estudante. O fato é que a violência escolar se enraíza no cotidiano escolar e
por vezes acaba passando por despercebida, e quando passa a ser vista, pode ser num desfecho
nem sempre reversível (BECKER & KASSOUF, 2016).
De certa forma, apesar de hoje haver uma emergência no tratamento adequado da
violência, não podemos trata-las como novidade das últimas décadas, por isso entende-se que ela
é um fenômeno existente desde as primeiras relações humanas, perpassando em todas as
civilizações históricas, em todos os períodos, sociedades e culturas. A violência não pode ser
tratada com naturalidade pelo simples fato de comprovada pela história, pois apesar de sua
existência ser antiga, ela sempre apresentou-se danosa para as relações sociais. Na escola, é
extremamente perigoso a não-atenção aos assuntos no cerne da violência, pois como espaço de
transformação e sociabilidade, ela se apresenta como empecilho para o aprendizado e as relações
escolares.
É relevante pensar a violência como um termo complexo, pois sua repercussão ultrapassa
o entendimento de agressão física. Há uma ampla necessidade de compreender que a ação violenta
está presente na falta do diálogo, pois quando este isenta-se, há maiores probabilidades de haver
violência dos diversos tipos existentes na sociedade, e no contexto do entorno escolar, as
problemáticas sociais são fortes percussoras de atos violentos (BECKER & KASSOUF, 2016).
A situação social, no que tange ao envolvimento com a criminalidade, drogas lícitas e
ilícitas, condições socioeconômicas e falta de infraestrutura (moradia e acesso aos serviços de
utilidade pública) são agravantes da violência que repercute na escola. A condição familiar
também tem se mostrado um forte indicativo de despontamentos violentos na escola, na medida
em que muitas famílias não conseguem contornar situações como indisciplina e nem intensificam
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o cultivo de valores sociais como honestidade e respeito. Muitos ambientes familiares também
acabam sendo espaços de aprendizado da violência, quando os próprios entes se chocam em atos
conflituosos, agravando ainda mais a solução deste problema.
Nas escolas, a identificação de crianças e adolescentes que não reconhecem os limites da
instituição, do outro e até mesmo de si próprio, comprometem o trabalho escolar, tendo em vista
que isso é o primeiro e principal passo para que valores humanos sejam cultivados. O respeito, a
humildade, a honestidade, a cooperação e etc, são fundamentais para que não haja um espaço
propício para a propagação de ações violentas (ROSA, 2010).
De forma bem específica, a escola é um ambiente de encontros humanos, e conflitos podem
ocorrer em qualquer momento do processo, entretanto, é papel da escola identificar os tipos de
violência existentes, não somente a física, mas todas aquelas que nem sempre são vistas
abertamente. A violência psicológica, verbal, sexual e contra o patrimônio público, possuem
também danos que nem sempre são fáceis de contornar, não podem ser apenas corrigidos
superficialmente, mas precisam de soluções aprofundadas (ROSA, 2010).
Uma atenção necessária que tem preocupado as escolas de forma geral, é sobre a violência
para os docentes. Em 2013 uma pesquisa global da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) com mais de 100 mil professores e diretores, colocaram o
Brasil no ranking dos países que mais agridem professores no cotidiano de ensino. Esse
levantamento indica que dos professores que participaram, 12,5% afirmaram serem vítimas de
agressões verbais ou intimidação por parte doe alunos pelo menos uma vez por semana, o que
resultou colocando o país em primeiro lugar na pesquisa. (Fonte: G1/Educação).
A segunda roda foi planejada com todos os integrantes do grupo, juntamente com a
coordenadora do projeto, que em reuniões, puderam chegar em elaborações didáticas que melhor
comtemplariam a temática proposta.
Agendada previamente com a direção e coordenação da escola, a roda de conversa ocorreu
no dia 05 de setembro de 2019, com quatro horas de duração. Devido a um atraso inicial foi
necessária a eliminação da primeira atividade, o vídeo e partimos para as apresentações da equipe
e logo em seguida, começamos a explanação do conteúdo programático. Nesse momento, o diretor
da escola e a coordenadora pedagógica estavam presentes, auxiliando-nos no que fosse preciso,
entretanto, pouco tempo depois, ambos se ausentaram, e a equipe responsável ficou desassistida.
O conteúdo programático foi aplicado somente para alunos e professores, já que outros
sujeitos não foram comunicados previamente pela direção ou coordenação da escola, sendo o
público alvo dessa roda de conversa, somente os docentes e alguns discentes. O total de
participantes foi de 24 pessoas, sendo 17 alunos, 06 professores e uma secretária.
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O conteúdo foi executado através de slides de maneira aberta e simples, com uma
linguagem mais acessível e de fácil compreensão, abordando os seguintes pontos:

- O que caracteriza a violência escolar?


- De onde resulta a violência?
- Situações atuais geradoras/propagadoras de violência.
- Fatores externos e internos que colaboram para o aumento da violência escolar.
- Tipos comuns de violência (física, psicológica, verbal, sexual, entre outros).
- Violência contra docentes.
- Dados e índices de violência escolar no Brasil.

Após a explanação do conteúdo, foi exibido a reportagem sobre o Centro de Ensino Médio
Maria José Aragão. Durante a exibição, os entrevistados explanaram sobre as atitudes e ações que
deram sucesso na evolução nos resultados daquela escola, assim como na solução dos altos índices
de violência. De certo, o uso desse instrumento serviu para sensibilizar os participantes,
instigando-os para posteriormente realizar ações interventoras para problemáticas existentes, entre
elas, a violência.
Por fim, abriu-se as discussões sobre o tema, onde alguns professores e alunos apontaram
de forma incisiva o quanto a temática da roda é relevante de ser trabalhada, tendo em vista que a
questão da violência é crescente na sociedade e na escola. Após isso, abriu o momento de
proposições onde os participantes puderam sugerir ou indicar possíveis primeiros passos (numa
intenção de coletividade), onde pudesse haver pensamentos que levassem a ações práticas
posteriormente.
A execução desta segunda roda de conversa foi de certo modo mais difícil do que a
primeira, principalmente pela escola não demonstrar efetivamente uma organização prévia para
tal acontecimento. A não comunicação da direção e coordenação para o corpo docente afetou a
organização e o planejamento, entretanto, o que mais ficou evidente foi o quanto a maioria do
corpo docente presente na escola não demonstrou interesse em participar se ausentando antes que
a atividade iniciasse. Poucos professores permaneceram na escola após o início da roda, e menos
ainda foram os que contribuíram de alguma forma, sendo a maior contribuição dos próprios
alunos. O próprio diretor e a coordenadora pedagógica da escola se retiraram do espaço após
algum tempo de fala da equipe causando uma sensação de desconforto.
Após a explanação do conteúdo foram abertas oportunidades para que os participantes
pudessem voluntariamente expor suas compreensões e opiniões sobre a temática. Nesse momento,
foi notável que os alunos presentes demonstraram ansiedade para falar, tendo em vista a vivência
na escola e o quanto os assuntos abordados são necessários. Muitos deles reafirmaram que vivem
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ou já vivenciaram situações de violência na escola, seja de qual for o tipo, assim como os danos
causados por uma situação violenta pode ser permanente.
As discussões foram mediadas pela equipe para que houvesse espaço para todos aqueles
que quisessem fazer suas considerações, pudessem ter tempo de fala. Contudo, houve uma
problemática inquietante, que foi o fato dos docentes presentes não se manifestarem diante das
instigações feitas pela equipe, levando-nos a pensar que havia uma insatisfação de estar ali, ou
mesmo desinteresse de abordar essa temática.
Ao serem convidados a falarem sobre ações que pudessem levar a soluções para a violência
escolar existente ali, nenhum docente se propôs a citar ou sugerir algo, mesmo após várias
elucidações sobre a necessidade de ser dado o primeiro passo para resultados positivos na prática
escolar. Após perceber essa negação à fala pública, deu-se oportunidades para os alunos exporem
ideias, dos quais afirmaram em suas falas que a escola precisa estar atenta à violência que acerca
e está no seu interior, principalmente para as violências não-físicas.
Ao direcionarmo-nos para a escola para a realização desta segunda roda de conversa, não
houve nenhuma resistência por parte de sua liderança. Muitos professores durante a presença no
cotidiano da escola nos apontaram a importância de abrir espaço para tratar de problemáticas
seríssimas de forma explícita, na tentativa de um consenso e, consequentemente, para possíveis
iniciativas práticas. Entretanto, na realização desta roda, não percebemos visivelmente os docentes
de forma geral, instigados em buscar soluções para a problemática apresentada, pois não se
movimentaram nas proposições práticas, e a própria retirada de vários professores, diretor e
coordenador, demonstraram o quanto a conscientização de que ações precisam ser realizadas é
necessária no corpo docente daquela escola.
No término da roda de conversa, cada participante avaliou a execução a partir de um
questionário que contemplava a relevância do tema; a organização das atividades; infraestrutura;
nível de discussões; desempenho dos mediadores e; sua participação, avaliando-as entre excelente,
bom, mediano, ruim e péssimo. Todas as avaliações consideraram o tema como excelente e bom,
ou seja, os participantes reconheceram que foi uma abordagem necessária.
Havia nas fichas um espaço para observações e sugestões para próximas rodas, ou seja,
onde cada participante pudesse escrever, caso não se sentisse na liberdade de falar abertamente.
Nestes espaços, diversos participantes fizeram pontuações sobre o tema para a escola, assim,
julgamos importante trazer algumas dessas sugestões pessoais mais recorrentes. Foram os temas
mais sugeridos:

- Drogas, prostituição e suas consequências;


- Comportamento em sociedade e na escola;
- Relação familiar;
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- Boas e más influências;


- Bullying, depressão e suicídio.
Basicamente, os resultados esperados para essa roda de conversa não alcançaram as
expectativas do planejamento inicial, pois além da simples abordagem teórica e a discussão do
tema, pretendia-se que houvessem muitas proposições práticas, majoritariamente dos docentes da
escola, já que como trabalhadores da instituição são aqueles que deveriam tomar a frente de toda
e qualquer intervenção junto a um agravante escolar. A resistência dos docentes presentes em
contribuírem com suas falas e o fato de muitos nem mesmo participarem desse momento, nos
remete ao resultado de que a disposição para enfrentar as problemáticas existentes na escola deve
ser o primeiro passo a ser dado.
De forma geral, avaliamos esta roda com resultados medianos, tendo em vista que
realizamos a abordagem precisa e requerida da melhor forma que pudemos, mas com a ressalva
de que poderia ser mais completa, se houvesse mais entrosamento por parte dos docentes. Por
mais que haja conversações sobre as problemáticas que rodeiam a escola, só será possível
solucionar qualquer um problema que seja, se sair da comodidade. Os resultados da roda são na
verdade a intenção inicial para toda e qualquer ação prática, é nossa intenção impulsionar para a
busca de soluções.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo o que foi observado e vivenciado, percebeu-se que a maioria das problemáticas
contidas na escola José Erivan Cordeiro tem um nível de complexidade que ultrapassa sua
condição de superá-las sozinha. E nessa perspectiva, requer-se uma ação imediata da gestão
municipal de educação, no cumprimento do seu papel de promotor, administrador e incentivador
do estabelecimento e desenvolvimento de uma proposta pedagógica capaz de correspondente às
demandas da escola.
Tendo em vista todos os aspectos e problemas na escola podemos considerar que é preciso
cada vez mais ser trabalhada a relação entre a família-escola, onde ambos devem desempenhar
seu papel quanto aos fatores primordiais ao conhecimento e desempenho no ambiente escolar dos
jovens e crianças. Percebe-se a grande deficiência do papel familiar quanto ao ensino, pois é bem
comum perceber crianças e adolescentes a mercê dos problemas sociais por falta de participação,
ou mesmo de pulso dos seus responsáveis, e isso se torna ainda mais agravante quando se percebe,
através dos relatos, que muitas dessas famílias são os núcleos desses problemas sociais.
Além disso, órgãos competentes da área de segurança, saúde e assistência social precisam
atuar efetivamente na realidade do entorno, pois é necessário um olhar diferenciado e
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especializado naquela localidade. Urge ações diretas sobre as vulnerabilidades sociais e suas
consequências que se configuram no exercício da violência e da criminalidade, a fim de a escola
possa sustentar ações pedagógicas que sejam impactantes tanto interna, quanto externamente à
instituição.
Utilizar a escola Maria José Aragão como base para pensamentos positivos foi crucial para
que pudéssemos chegar na conclusão de que as iniciativas para melhorias precisam acontecer em
algum momento, e mais do que isso, acontecer bem, de forma que o trabalho seja em coletividade
e bem ocorrido. É preciso despertar o interesse, através do contato da realidade vigente que
necessita de intervenção de todas as partes.
Agradecemos imensamente a gestão municipal de educação em Pinheiro-MA, na pessoa
do Prof. Augusto Miranda, pela parceria e confiança atribuídas a nós no início desse trabalho na
escola José Erivan Cordeiro. Agradecemos também a toda a comunidade escolar pela acolhida e
confiança em nos apresentar de forma sincera a sua realidade.

REFERÊNCIAS

BECKER, Kalinca Léia. KASSOUF, Ana Lúcia. Violência nas escolas públicas brasileiras:
uma análise da relação entre o comportamento agressivo dos alunos e o ambiente escolar.
Nova Economia, v.26 n.2 p.653-677, 2016.

DECRETO-LEI Nº2.848, de 7de dezembro de 1940. Código Penal.

LEI Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. ECA–Estatuto da Criança e do Adolescente.

LEI Nº10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.

LDB: Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Senado Federal, Coordenação de
Edições Técnicas, 2017.

ROSA, Maria José Araujo. Violência no ambiente escolar: refletindo sobre as consequências
para o processo ensino aprendizagem. Itabaiana: GEPIADDE, Ano 4, Volume 8 | jul-dez de
2010.

SILVA, Aylla Monise Ferreira da. A importância da afetividade no contexto educacional.


Estácio Macapá, 2017.

SILVA, Amanda Maria Soares Silva. Sentimentos de pertencimento e identidade no ambiente


escolar. Revista Brasileira de Educação em Geografia, 2015.

DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. 2ed. São Paulo: Cortez Brasília, DF:
MEC/UNESCO, 2003.
Página 850 de 2230

TECNOLOGIAS EDUCATIVAS E APPLEARNING NO ENSINO SUPERIOR: UM


RELATO DE EXPERIENCIA DO USO DO GOCONQR NA DISCIPLINA DE
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

EDUCATIONAL TECHNOLOGIES AND APPLEARNING IN HIGHER EDUCATION:


AN EXPERIENCE REPORT OF THE USE OF GOCONQR IN THE DISCIPLINE OF
YOUTH AND ADULT EDUCATION

Jailson Antonio Ribeiro Viana148


Especialista em Informática na Educação e Atendimento Educacional Especializado. Docente no
Instituto Federal do Maranhão Campus São Luís - Monte Castelo

Mauricio José Morais Costa149


Mestre em Cultura e Sociedade (PGCult – UFMA).

João Batista Bottentuit Júnior150


Doutor em Ciências da Educação com área de especialização em Tecnologia Educativa pela
Universidade do Minho.Professor do Departamento de Educação e do PGCULT

Resumo: Relato de experiência acerca da aplicabilidade da ferramenta GoConqr na dinamização


dos conteúdos da disciplina de Educação de Jovens e Adultos (EJA) com os alunos de Licenciatura
em Química do Instituto Federal do Maranhão, Campus São Luís – Monte Castelo. Tem por
objetivo relatar o uso do aplicativo GoConqr como recurso de sistematização dos conteúdos
relacionados à implementação da EJA na História do Brasil, bem como desvelar as possibilidades
de adoção de tal aplicação nos cursos de licenciatura no Ensino Superior. Metodologicamente
consiste em um estudo exploratório e descritivo, de abordagem qualitativa, uma vez que se dedica
a apresentar a experiência de uso de uma tecnologia digital como instrumento didático no Ensino
Superior, bem como seus contributos na aprendizagem no Curso de Licenciatura em Química. A
investigação parte da pesquisa bibliográfica, valendo-se de materiais previamente elaborados, tais
como livros, artigos, teses, dissertações, dentre outros. A pesquisa de campo foi realizada entre os
meses de agosto e setembro, contou com uma amostra de 12 (doze) discentes regularmente
matriculados na Disciplina de Educação de Jovens e Adultos, para tanto, utilizou-se como
instrumento de recolha de dados um questionário misto, construído no Google Forms, por sua vez
enviado aos alunos por meio do Ambiente Virtual de Aprendizagem Google Classroom. A análise

148
Mestrando em Cultura e Sociedade (PGCULT/UFMA).. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Tecnologias
na Educação (GEPTED/UFMA). jailson.rviana@gmail.com.
149
Especializando em Design Instrucional (Centro Universitário Senac – São Paulo). Bacharel em Biblioteconomia.
Docente do Centro Universitário Unidade de Ensino Superior Dom Bosco. Bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Tecnologias
Digitais na Educação (GEP-TDE) e Grupo de Estudos e Pesquisas na Análise de Materiais Publicados, de Divulgação
da Ciência, em Mídia Digital ou Impressa (GEP-DCMIDI). Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural
(GEPPaC). mauricio.jmc@outlook.com.
150
Mestre em Educação Multimídia pela Universidade do Porto (2007), Tecnólogo em Processamento de Dados pelo
Centro Universitário UNA (2002) e Licenciado em Pedagogia pela Faculdade do Maranhão (2016). É também
Especialista em Docência no Ensino Superior pela PUC-MG (2003), Engenharia de Sistemas pela ESAB (2010) e
Educação a Distância pelo UNISEB (2015). joaobbj@gmail.com.
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e discussão dos resultados foi mediante a aplicação da Análise de Conteúdo de Bardin (2016).
Aborda-se os aspectos teóricos e conceitos acerca de tecnologias digitais no Ensino Superior, bem
como App-Learning, a partir de autores como Moran (2012), Prensky (2012), Oliveira, Souto e
Carvalho (2016), dentre outros. Segundo os resultados da coleta dados, foi observado o
engajamento dos alunos para com o conteúdo, bem como para expansão das abordagens em sala
de aula. Relata-se as potencialidades do aplicativo, sobretudo como ferramenta de apoio a
aprendizagem, não apenas na disciplina de Educação de Jovens e Adultos, mas a continuidade no
decorrer da graduação. Reforça que a adoção do GoConqr pode representar ganhos em sala de
aula, visto as possibilidades de adaptação dos conteúdos de diferentes áreas do conhecimento,
servindo como um rico recurso de apoio à aprendizagem no Ensino Superior. Conclui que o uso
de tecnologias digitais em sala de aula no Ensino Superior, em especial nos cursos de Licenciatura
pode contribuir com a prática docente, bem como otimizar a compreensão de conteúdos
complexos numa linguagem clara, simples e gamificada. Tal investigação terá continuidade, uma
vez que, pretende-se comparar as experiências do uso do GoConqr entre os cursos de Licenciatura
e Bacharelado no Instituto Federal do Maranhão, Campus São Luís – Monte Castelo.
Palavras-chave: GoConqr Tecnologias Digitais no Ensino Superior. Metodologias Ativas no
Ensino Superior. Relato de Experiência no Ensino Superior.

Abstract:Experience report on the applicability of the GoConqr tool in the dynamics of the
contents of the youth and adult education (EJA) discipline with students of Degree in Chemistry
of the Federal Institute of Maranhão, Campus São Luís - Monte Castelo. It aims to report the use
of the GoConqr application as a systematization resource of content related to the implementation
of eja in the history of Brazil, as well as unveil the possibilities of adopting such application in
undergraduate courses in Higher Education. Methodologically consists of an exploratory and
descriptive study, of qualitative approach, since it is dedicated to presenting the experience of
using a digital technology as a didactic instrument in Higher Education, as well as its contributions
in learning degree in chemistry. The research starts from bibliographic research, using previously
elaborated materials, such as books, articles, theses, dissertations, among others. The field
research was conducted between August and September, had a sample of 12 (twelve) students
regularly enrolled in the Youth and Adult Education Discipline, for this purpose, a data collection
instrument was used as a data collection instrument. mixed questionnaire, built in Google Forms,
in turn sent to students through the Google Classroom Learning Virtual Environment. The analysis
and discussion of the results was through the application of Bardin content analysis (2016). The
theoretical aspects and concepts about digital technologies in Higher Education are approached,
as well as App-Learning, based on authors such as Moran (2012), Prensky (2012), Oliveira, Souto
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e Carvalho (2016), among others. According to the results of the data collection, students'
engagement to content, as well as for the expansion of approaches in the classroom, was observed.
The potentialities of the application are reported, especially as a tool to support learning, not only
in the discipline of Youth and Adult Education, but continuity during graduation. It reinforces that
the adoption of GoConqr can represent gains in the classroom, given the possibilities of adapting
the contents of different areas of knowledge, serving as a rich resource of learning support in
Higher Education. It concludes that the use of digital technologies in the classroom in Higher
Education, especially in undergraduate courses can contribute to teaching practice, as well as
optimize the understanding of complex content in clear, simple and gamified language. This
investigation will continue, since it is intended to compare the experiences of the use of GoConqr
between bachelor's and bachelor's courses at the Federal Institute of Maranhão, Campus São Luís
- Monte Castelo.

Keywords: GoConqr. Digital Technologies in Higher Education. Active Methodologies in


Higher Education. Experience Report in Higher Education.

1 INTRODUÇÃO

Tem-se se observado a popularização do uso de tecnologias digitais em diferentes


níveis de ensino, o que não se trata de nenhuma novidade. É natural o uso de recursos tecnológicos
para uma série de atividades e, com a educação não seria diferente. No ensino superior esse uso é
mais intenso, vista a presença de smartphones, tablets, laptops, dentre outros dispositivos em
distintas atividades. Em um contexto onde o aluno e a aprendizagem são ativos, os professores
têm a possibilidade de inovarem e conferirem diferentes possibilidades para o processo de
construção do conhecimento.
A diversidade de recursos tecnológicos modernos traz consigo, a necessidade de
formações específicas, tanto para usufruir, quanto implementá-los em sala de aula, efetivando
metodologias e práticas docentes diferenciadas. Diante da infinidade de aplicações e recursos
disponíveis para os docentes, este estudo tem por objetivo relatar o uso do aplicativo GoConqr
como recurso de sistematização dos conteúdos relacionados à implementação da EJA na História
do Brasil, bem como desvelar as possibilidades de adoção de tal aplicação nos cursos de
licenciatura no Ensino Superior.
Metodologicamente consiste em um estudo exploratório e descritivo, de abordagem
qualitativa, uma vez que se dedica a apresentar a experiência de uso de uma tecnologia digital
como instrumento didático no Ensino Superior, bem como seus contributos na aprendizagem no
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Curso de Licenciatura em Química (PRODANOV; FREITAS, 2013). A pesquisa de campo foi


realizada entre os meses de agosto e setembro de 2019 no Instituto Federal do Maranhão (IFMA),
Campus São Luís Monte Castelo, contou com uma amostra de 12 (doze) discentes regularmente
matriculados na Disciplina de Educação de Jovens e Adultos (EJA) no curso de Química
(Licenciatura). Para tanto, utilizou-se como instrumento de recolha de dados um questionário
misto, construído no Google Forms, e por sua vez enviado aos alunos por meio do Ambiente
Virtual de Aprendizagem Google Classroom. Os dados foram tratados e analisados à luz da análise
de conteúdo de Bardin (2016).
O estudo está dividido em três seções principais. Na primeira seção discorre-se acerca
da sala de aula gamificada e a mudança dos espaços de aprendizagem. Na segunda seção trata-se
do processo de avaliação com intermediada por tecnologias digitais. Na terceira seção aborda-se
o GoConqr, descreve algumas de suas características, para em seguida apresentar e discutir a
percepção dos alunos de Licenciatura em Química do IFMA – Monte Castelo. Por fim,
apresentam-se as considerações com aspectos pontuais acerca do estudo, bem como
direcionamentos para estudos futuros.

2 A SALA DE AULA GAMIFICADA

Falar em sala de aula é pensar em um local cheio de identidades, aprendizagens,


conhecimentos, relações e principalmente empatia, pois alunos e professores possuem diariamente
uma troca de sensações naquele ambiente que deve ser favorável para ambos. Em tempos antigos,
na época em que o ensino tradicional era o centro das “atenções” a sala de aula não se tinha
visibilidade e muito menos dinamismo em conteúdo que lá eram expostos e dialogados.
Século XXI passando por transformações e inovações principalmente pelo avanço da
tecnologia quase todos os setores sociais estão evoluindo e acompanhando o progresso da
globalização em especial a sala de aula que está buscando a cada dia atender a demanda e o perfil
dos alunos que lá estão. De acordo com Castells (2007) em uma sociedade cercada de informações
que estão disponíveis em rede faz-se necessário ter novas de didática que ultrapasse aquelas em
que não tinham dinamismo e empatia em sala tendo assim como consequência muitas vezes a
motivação dos alunos para aprender determinado conteúdo.
O indivíduo do século atual não fica satisfeito apenas em ser depósito de
conhecimento, mas sim ser reprodutor, testar, experienciar, viver o que está sendo posto, essas
novas gerações utilizam de diversas formas para aprender junto as tecnologias, seja no celular, no
tablet, vídeo, internet entre outros. Com esse novo perfil de sociedade as salas buscam uma maior
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dinamização em suas teorias alinhando as aulas ao ensino das metodologias ativas usando
aplicabilidades que possam despertar mais atenção de seus alunos (RUBTSOVA, 2016).
Com isso mencionamos a gamificação que é uma metodologia que tem por objetivo
potencializar o ensino e a aprendizagem dos alunos com games e até mesmo jogos. Lembrando
que o jogo é algo meramente passatempo e a gamificação tem um intuito pedagógico, objetivo
alinhado, meta a ser alcançada e aprendizagem em evidência. A gamificação deu início nas áreas
de marketing com finalidade de motivar e trazer novos clientes e até mesmo fidelizá-los, de acordo
com Zichermann e Cunningham (2012), esse metodologia tem feedback, conflitos, sistemas de
recompensas, objetivos claros, diversão, com objetivo de engajar os alunos a terem motivação
assim como vemos jogadores com bons games.
Como isso a gamificação vem sendo apresentada como uma grande possibilidade de
aprender de maneira dinâmica, jogando, brincando, se divertindo em sala de aula, tornando-a um
espaço híbrido, cheio de conquista, saindo da zona tradicional, onde os alunos passam a ser os
autores do próprio conhecimento. Nos tempos atuais a gamificação está sendo uma das
metodologias que mais despertam atenção de seus alunos, que possuem um processo de
colaboração, de troca de conhecimento, de espírito de competitividade boa, mas lembrando que
para tal a mediação e objetividade do professor tem que estar evidente para que a atividade ocorra
de forma calma.

3 AVALIAÇÃO COM TECNOLOGIAS DIGITAIS

O processo de avaliação é uma evolução do processo de aprendizagem e com isso


podemos verificar e perceber que nos tempos atuais com o advento das tecnologias digitais tem-
se que mudar a forma de avaliar nossos alunos. De acordo com Esteban (2002, p.114), “O conceito
de aprendizagem é bastante limitado por se referir às mudanças observáveis de conduta. Refere-
se quase exclusivamente ao aparente e ao memorístico, menosprezando o processo de aprender e
as relações que se estabelecem e que não se revelam imediatamente [...]”.
Em tempos atrás as avaliações eram feitas apenas para cunho de memorização, onde
os alunos colocavam e respondiam respostas secas, prontas e muitas vezes nem abstraia o que de
fato o conteúdo a queria repassar. Em tempos modernos onde a tecnologias já traz novas formas
de ensino, professores devem pensar e avaliar seus alunos que forma que os mesmos possam
refletir e aplicar o conteúdo dada em diversas situações e contextos.
Com as tecnologias em alta elas podem acrescentar no processo de ensino,
aprendizagem e até mesmo na avaliação dos alunos em sala de aula, pois ela pode ser utilizada de
maneira diversificada, onde cada alunos pode ser apropriar também de maneira distinta e com isso
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nasce um processo de avaliação de acordo com o perfil do aluno (FALCÃO, 2016). Exemplo disso
é quando professor passar uma atividade em grupo usando pesquisa em repositório de pesquisas
e afins geralmente cada um busca afinidade com alguma parte e assim começam a dividir a
atividade proposta e assim nasce interesse para além somente do conteúdo proposto, pode
incentivar e aguçar a criatividade dos alunos.
Os alunos trazem uma nova forma de ser avaliado a partir de suas inovações e criações
junto as tecnologias digitais que muitas vezes é o cotidiano do aluno, os smartphones, tablets,
jogos eletrônicos, televisões digitais, tudo isso eles a cada dia mais estão submerso nesse mundo
que muitas vezes é diversão para eles e com atividade e planejamentos orientados o professor pode
transformar esse cotidiano em uma forma dinâmica de aprender e reaprender (PRENSKY, 2012).
Nesse sentido, percebe-se que uma série de elementos interferem no processo de
aprendizagem, sobretudo as tecnologias, pois “Elas interferem em nosso modo de pensar, sentir,
agir, de nos relacionarmos socialmente e adquirirmos conhecimentos. Criam uma nova cultura e
um novo modelo de sociedade.” (KENSKI, 2012, p. 23).
Nesse sentido podemos dizer que avaliação é uma tarefa que oriunda muitas vezes da
ação e do planejamento do professor, que tem como finalidade repassar o conhecimento, fazer o
aluno refletir, discutir e aprender. Com esse cenário tecnológico as avaliações deixam de ser
tradicionais, padrões, aquelas onde os alunos apenas marcavam e nem expressavam seus
sentimentos, suas angústias e afins. Os alunos podem trazer novas formas de ensino a partir do
uso dos aplicativos, dos games e afins.
Segundo Hoffmann (2003) o processo de avaliação tem que permitir buscar novos
rumos, novas maneiras de pensar, refletir, aprender. O professor tem que pensar que a medida em
que ele submete uma avaliação, ele também será avaliado. Com isso a avalição nos tempos digitais
tem que ser um momento de conexão com outras formas de avaliar, olhar aquilo que não está
implícito, visualizar para além das notas amarradas, provas fechadas, ensino maçantes, visualizar
os bolsos dos alunos que possuem celulares, WhatsApp, Facebook, Instagram entre outras
ferramentas que fazem esses indivíduos mais conectados e mais conectados com suas realidades.

4 O GOCONQR NO ENSINO SUPERIOR: a percepção dos alunos de Licenciatura em


Química do IFMA – Monte Castelo

Esta seção dedica-se a abordar o GoConqr, a partir da descrição de algumas de suas


características, funcionalidade e possibilidade de uso em sala de aula, para em seguida apresentar
e discutir a percepção dos alunos de Licenciatura em Química do IFMA – Monte Castelo, acerca
de seu uso da disciplina de Educação de Jovens e Adultos.
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4.1 GoConqr

O GoConqr151 é uma aplicação que fornece diferentes recursos de aprendizagem


digital, proporcionando aos professores a possibilidade de criação e compartilhamento de pacotes
de conteúdo. A aplicação possibilita um ambiente onde o aluno pode estudar e rever os estudos, a
partir da criação de mapas mentais, notas, flashcards, quizzes, fluxogramas, slides, calendário,
grupos, cursos online, dentre outros recursos, como pode ser visto na Figura 1 (GOCONQR,
2020).

Figura 1 – Telas do GoConqr

Fonte: GoConqr (2020)

Trata-se de uma ferramenta gratuita capaz de complementar informações de diferentes


ambientes virtuais de aprendizagem, uma vez que um de seus intentos é criar um ambiente híbrido
e diversificado para o desenvolvimento da aprendizagem sob diferentes perspectivas
(ATANASIO et al., 2017). Sua interface intuitiva e simples permite a troca de materiais didáticos,
visto a possibilidade criarem-se grupos para tal compartilhamento. Destaca-se que todos os
materiais produzidos por seus usuários ficam armazenados em sua conta, ficando a critério de seus
detentores a disponibilização dos recursos online, ou não. Na seção seguinte, descreve-se e
analisa-se a percepção dos discentes do curso de licenciatura em Química do IFMA – Campus
São Luís Monte Castelo.

4.1 Percepções dos discentes de Química do IFMA – Monte Castelo

151
Disponível em: <https://www.goconqr.com/pt-BR/info/>. Acesso em: 29 jan. 2020.
Página 857 de 2230

A aprendizagem deve ter como principal produto a construção de conhecimento


efetiva, eficaz e significativa. Talvez o maior desafio docente seja garantir que os alunos aprendam
o que lhes é ensinado, de modo que estes sejam capazes de aplicar conceitos, resolver problemas,
dentre outras coisas (JACINTO et al., 2018). Nesta seção relata-se a percepção dos alunos acerca
do o uso do aplicativo GoConqr como recurso de sistematização dos conteúdos relacionados à
implementação da EJA na História do Brasil no Curso de Licenciatura em Química. Estando a
tecnologia presente no cotidiano do aluno em diferentes formatos e dispositivos, os alunos foram
indagados se já tinham utilizado aplicativos como recurso de aprendizagem antes da experiência
em questão, cujos resultados podem observados no Gráfico 1:

Gráfico 1 – Uso de outros aplicativos além do GoConqr

Fonte: Dados do Google Forms (2019)

Como pode ser observado no Gráfico 1, a maioria dos alunos afirmou já ter utilizado
aplicativos no processo de aprendizagem, além do GoConqr. Ressalta-se que o uso de tecnologias
digitais é natural e faz parte do cotidiano escolar, além disso estas são capazes de motivar e
possibilitar aos alunos múltiplas formas de aprender (ATANASIO et al., 2017; COSTA;
DUAILIBE; BOTTENTUIT JÚNIOR, 2018). Em seguida os discentes foram inquiridos acerca
de quais aplicações já tinham experienciado em sala de aula, cuja disposição pode ser vista no
Gráfico 2:

Gráfico 2 – Já fez uso de alguns dos aplicativos mencionados?

Fonte: Dados do Google Forms (2019)


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Dentre os aplicativos selecionados pelos alunos destacam-se o Plickers, Kahoot,


Canva, Mentimeter e Habitica, aplicações amplamente utilizadas pelos alunos, visto os resultados
de estudos correlatos apresentados por Costa, Duailibe e Bottentuit Júnior (2018) que descreveram
a experiência do uso do Plickers, o estudo de Romio e Paiva (2017) acerca do uso do Kahoot e
GoConqr no ensino de matemática, Maziero (2018) que fez uso do Mentimeter no ensino de
semiótica aplicada e Aprendizagem Baseada em Projetos (PBL) e Pereira et al. (2018) que
descreveram o uso do Mentimeter como ferramenta de apoio docente.
Nesse sentido, os alunos foram indagados sobre a importância da presença de
tecnologias digitais no ensino superior, em especial no currículo dos cursos de licenciaturas, como
é o caso do curso de Química no IFMA – Campus São Luís Monte Castelo, cujas respostas podem
ser observadas no Gráfico 3:

Gráfico 3 – A presença de tecnologias no currículo das licenciaturas

Fonte: Dados do Google Forms (2019)

Os alunos foram unânimes quanto a esse questionamento, segundo eles é importante


a presença dos recursos tecnológicos nos cursos de licenciatura. Embora não seja algo fácil,
Pereira et al. (2018) acentuam que os professores têm se dedicado e se esforçado para
implementarem em sala de aula tecnologias digitais, de modo que muitos debates ainda precisam
ser feitos com vistas ao uso significativo dos recursos tecnológicos em sala de aula. Tal
importância encontra ressonância na visão que os alunos têm sobre tais recursos, pois quando
questionados se as tecnologias facilitam o processo de aprendizagem, a maioria (91,7%) disse que
sim, como pode ser visualizado no Gráfico 4:
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Gráfico 4 – As tecnologias facilitam o processo de aprendizagem?

Fonte: Dados do Google Forms (2019)

Os resultados apresentados no Gráfico 4, onde confirma-se a visão positiva que os


alunos de Química (Licenciatura) têm do GoConqr encontra ressonância nos resultados presentes
no estudo de Carvalho, Silva e Lobino (2018), ao defenderem, com base na percepção dos
estudantes, as contribuições da aprendizagem ativa com o GoConqr devem ter continuidade nas
práticas docentes no Instituto Federal do Espírito Santo, Campus Ibatiba. As transformações no
modo de pensar, na elaboração e reelaboração do conhecimento, o professor tem como desafio
implementar novas metodologias de aprendizagem, e como bem pontuam Mitre et al. (2008), os
docentes devem ser capazes de reconhecer as necessidades emergentes com vistas as novas
práticas pedagógicas. Nesse sentido, os alunos em processo de formação foram indagados se o
uso de recursos tecnológicos pode ser mais explorado em sala de aula, as respostas podem ser
vistas no Gráfico 5:

Gráfico 5 – O uso de ferramentas tecnológicas pode ser mais explorado em sala de aula?

Fonte: Dados do Google Forms (2019)

Diante dos resultados do Gráfico 5, pode-se destacar que 58,3% afirmou que as
ferramentas podem ser mais exploradas em sala de aula, como recurso avaliativo, visto a
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experiência do uso do GoConqr como recurso de verificação da aprendizagem dos conteúdos de


EJA no curso de Química. Além disso, ressalta-se que, 41,7% destacou que é necessário maiores
informações sobre esses recursos, visando sua aplicação na prática docente. Em face disso,
ressalta-se a necessidade de formação docente no tocante as tecnologias digitais, visto que esse
processo de adoção é marcado por dificuldades e limitações, como acentuam Pereira et al. (2018).
Dar-se continuidade destacando as considerações dos alunos acerca da experiência
com o uso do GoConqr na disciplina de Educação de Jovens e Adultos, as ponderações podem ser
vistas no Quadro 1:

Quadro 1 – Considerações acerca do uso do GoConqr

Satisfatória, divertida e envolvente;


Não fui à aula!
Sensacional, é um aplicativo de fácil manuseio e facilita bastante na hora
de avaliar como sua turma se encontra;
Foi muito boa. O acesso à esses aplicativos;
Experiência muito boa;
Achei bem interessante por ter interativo e obter respostas instantâneas;
Satisfatória;
Só usei uma vez, muito interessante.

Fonte: Dados do Google Forms (2019)

Como pode ser visto no Quadro 1, os alunos em sua maioria consideraram positiva a
experiência de uso do GoConqr em sala de aula, ressaltando características pontuais da aplicação,
dentre elas a facilidade de uso, que a aula se tornou mais envolvente e interessante. Tais resultados
fazem interface com os resultados encontrados por Romio e Paiva (2017), ao acentuarem com
base em sua experiência com o GoConqr, que o uso de jogos e quizzes é capaz de trabalhar e
desenvolver diferentes competências no processo de aprendizagem, tornando o esse processo mais
engajado e motivador.
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Gráfico 6 – O uso do GoConqr contribuiu para um maior


entendimento dos conteúdos trabalhados em sala de aula?

Fonte: Dados do Google Forms (2019)

Mediante os resultados apresentados no Gráfico 6, a maioria dos alunos (58,3%) disse


que o GoConqr contribuiu para a aprendizagem dos conteúdos de EJA no curso de licenciatura
em Química, enquanto que 33,3% disse que talvez, o que expressa a possibilidade de que além do
recurso utilizado é possível fazer uso de outros recursos para complementar a aprendizagem dos
alunos, visto que somente os recursos tecnológicos não são capazes de garantir uma aprendizagem
significativa. Desse modo, os professores devem ser capazes de analisar e proporcionar aos alunos
múltiplos recursos na aprendizagem, uma vez que aplicações, plataformas, dentre outras
metodologias atuam como aliadas a prática docente (ROMIO; PAIVA, 2017).
A experiência dos alunos com o uso de tecnologias digitais e metodologias inovadoras,
com vistas a tornar a aprendizagem ativa é essencial para que tais práticas sejam aperfeiçoadas.
Logo, é indispensável investigar a visão dos alunos sobre o uso desses recursos no ensino superior,
para tanto os alunos foram convidados a relatarem se sua experiência no Ensino Superior poderia
ser melhor com o uso das tecnologias digitais, cujas ponderações podem ser observadas no Quadro
2:

Quadro 2 – Considerações acerca do uso de tecnologias no Ensino Superior

Seria mais incentivador se estas tecnologias fossem usadas em disciplinas


específicas do curso.
Nada a declarar.
O aprendizado seria mais eficaz, pois eu aprenderia de forma mais eficiente,
didática e prática.
Seria muito melhor, porque poderia sair dos métodos tradicionais que são
empregados dentro da sala de aula.
Professores mostrando mais apps que possamos utilizar com os alunos.
A capacitação em desenvolvimento de materiais nas tecnologias digitais seria
muito útil.
Se todos os professores fizessem o uso das tecnologias digitais, iríamos
aprender outras formas de transmissão de conteúdo, principalmente nas
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disciplinas mais trabalhosas. Poderia também otimizar o tempo de estudo


dentre outros.
Facilidade.
Facilita muito para a entrega.

Fonte: Dados do Google Forms (2019)

Como explicitado ao longo deste estudo, o uso de tecnologias móveis e digitais é


inerente a distintas atividades, e como bem pontuam Moran, Massetto e Behrens (2012), a
flexibilidade, mobilidade, conectividade, dentre outras características, faz com que os espaços de
aprendizagem se ampliem. Quando indagados sobre o uso de recursos tecnológicos digitais no
Ensino Superior, os alunos corroboram essa perspectiva, ressaltando a motivação, otimização do
tempo, a facilidade, a interação como principais contributos para o processo de formação,
resultados que se assemelham aos encontrados por Oliveira, Souto e Carvalho (2016) em seu
estudo sobre a seleção e análise de aplicativos com potencial para o ensino de química orgânica.
Com isso, afirma-se que cabe não apenas a apropriação das tecnologias, mas, sobretudo a adoção
desses recursos em sala de aula.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo teve como objetivo relatar o uso do aplicativo GoConqr como
recurso de sistematização dos conteúdos relacionados à implementação da EJA na História do
Brasil, bem como desvelar as possibilidades de adoção de tal aplicação nos cursos de licenciatura
no Ensino Superior. Após todos as abordagens, bem como a apresentação da percepção dos alunos
do Curso de Licenciatura em Química é possível afirmar que o uso de tecnologias digitais e de
recursos gamificados na sala de aula pode trazer novas possibilidades pedagógicas para abordar
diferentes conteúdos.
Cabe destacar, que embora os alunos estejam abertos às novas metodologias e recursos
de aprendizagem ativa, é indispensável que o professor seja capacitado para tal, de modo que este
seja capaz de realizar seu planejamento e tenha acesso as metodologias que emergentes nesse novo
cenário educacional na era digital. Vive-se em um cenário onde as metodologias ativas de
aprendizagem estão em alta e, consequentemente, os métodos avaliativos também têm devem se
adequar a essa nova perspectiva de ensino e aprendizagem.
Ressalta-se que as tecnologias digitais, os recursos gamificados, dentre outros
recursos, por si só não são capazes de conferir plenos benefícios para a aprendizagem, uma vez
que cabe ao docente traçar seus propósitos, objetivos, feedbacks com vistas a somar na sala de
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aula. Gamificar e usar tecnologias diversas é sair da zona de conforto, dos meios tradicionais e
buscar formas inovadoras que podem despertar mais ainda a atenção dos alunos.
Nesse sentido, com base nos resultados apresentados e discutidos, constata-se que o
GoConqr é uma aplica que tem múltiplas aplicações e usos em sala de aula, não restringindo-se
apenas ao processo de avaliação, mas de construção colaborativa e compartilhamento do
conhecimento. Os alunos do curso de licenciatura em Química do IFMA – Campus São Luís
Monte Castelo se mostraram receptivos quanto ao uso dessa aplicação, quanto nos impactos que
estava teve na aprendizagem dos conteúdos de EJA. Com base nisso, é possível ressaltar que estes
sairão docentes com uma visão diferenciada das tecnologias digitais, e, certamente serão capazes
e motivados a utilizadas em suas práticas docentes no futuro.
Abordar o uso de tecnologias digitais é indispensável para o aperfeiçoamento das
práticas em sala de aula, não esgotando-se neste estudo. Acredita-se que outras investigações serão
realizadas, tendo tanto o GoConqr como objeto, quanto outros recursos de aprendizagem.

REFERÊNCIAS

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Página 865 de 2230

THÉATRON: LUGAR PARA VER, MAS VER O QUÊ?

THÉATRON: PLACE TO SEE, BUT SEE WHAT?


Raylson Silva da Conceição
Aluno do Programa de Mestrando em Artes Cênicas na Universidade Federal do Maranhão –
UFMA/PPGAC.
Orientadora: Drª Tania Cristina Costa Ribeiro
Doutora em Artes pelo Programa de pós-graduação em Arte da UnB, na linha de pesquisa
“Processos Composicionais para a Cena”
Professora do Departamento de Teatro da UFMA
Eixo Temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: O presente artigo tem como objetivo refletir sobre como se dá o processo da construção
do conhecimento do espectador teatral adulto nos espaços ludovicenses. Reflexão que faz parte
da minha pesquisa de mestrado em Artes Cênicas da UFMA/PPGAC, intitulada A CONSTRUÇÃO
DO CONHECIMENTO NA RECEPÇÃO TEATRAL DA CENA CONTEMPORÂNEA EM SÃO
LUÍS: o teatro como acontecimento. Pesquisa na qual tem como objeto empírico o espectador
adulto em espaços tradicionais de São Luís. Por ser uma pesquisa em fase embrionária alguns
aspectos metodológicos ainda estão em processo de definição. Entretanto, ao que tange o
referencial teórico apresento alguns estudiosos que possibilitarão um diálogo para a construção de
tais reflexões. Primeiramente Denis Guénoun (2003) por valorizar o espectador no acontecimento
teatral. Momento em que enfatiza que o verdadeiro sentido do termo “théatron” se encontra no
espectador. Com isto a função e importância do teatro passa a estar no ver a si mesmo na
arquibancada e no que o ator tem para mostrar colocando este, o espectador, como peça
fundamental para o acontecimento do teatro. Para Guénoun (2003), a recepção
teatral/arquibancada é vista como local de entendimento do processo da construção de
conhecimento para além do palco. Em seguida, para dialogar sobre as teorias da recepção teatral,
busco Flávio Desgranges (2009) por ele abordar fenômenos, que considero relevantes para as
reflexões: “traços mnemônicos” e a “sinestesia”. Fenômenos que possibilitam a compreensão de
como o espectador se relaciona com a cena teatral. Por último, relaciono as contribuições dos
teóricos citados com o conceito de “acontecimento teatral” do crítico e historiador argentino Jorge
Dubatti (2016). Parto do princípio que, com base nestes teóricos, durante a recepção teatral o
espectador está submetido a um constante diálogo com a “poiesis” do ator e que neste diálogo
alguns “fenômenos” acontecem com o espectador. Fenômenos estes que fogem da minha área de
conhecimento, mas que sem a sua compreensão não seria possível uma reflexão pautada no
processo da construção do conhecimento durante o acontecimento teatral.
Palavras-chave: Teatro. Espectador. Percepção. Conhecimento.
Página 866 de 2230

Abstract: This article aims to reflect on how the process of building the knowledge of the adult
theatrical spectator in ludovic spaces takes place. This reflection is part of my master's research
in Scenic Arts at UFMA/PPGAC, entitled THE CONSTRUCTION OF KNOWLEDGE IN
THE THEATRAL RECEPTION OF THE CONTEMPORANCE IN SÃO LUÍS: the theater as
an event. Research in which the adult spectator in traditional spaces of São Luís is the empirical
object. Being a research in embryonic phase some methodological aspects are still in the
process of definition. However, as far as the theoretical reference is concerned, I present some
scholars who will enable a dialogue for the construction of such reflections. First of all, Denis
Guénoun (2003) for valuing the spectator in the theatrical event. A moment in which he
emphasizes that the true meaning of the term "théatron" is found in the spectator. With this the
function and importance of the theater becomes in seeing oneself in the bleachers and in what
the actor has to show placing this, the spectator, as a fundamental play for the theatrical event.
For Guénoun (2003), the theatrical reception/bench is seen as a place of understanding of the
process of knowledge construction beyond the stage. Next, in order to dialogue about the
theories of theatrical reception, I look for Flávio Desgranges (2009) for his approach to
phenomena, which I consider relevant for the reflections: "mnemonic traits" and "synesthesia".
Phenomena that enable the understanding of how the spectator relates to the theatrical scene.
Finally, I relate the contributions of the mentioned theorists with the concept of "theatrical
event" by the Argentine critic and historian Jorge Dubatti (2016). I assume that, based on these
theorists, during the theatrical reception the spectator is subjected to a constant dialogue with
the actor's "poiesis" and that in this dialogue some "phenomena" happen with the spectator.
Phenomena that escape from our area of knowledge, but that without their understanding it
would not be possible a reflection based on the process of knowledge construction during the
theatrical event.
Keywords: Theater. Spectator. Perception. Knowledge.

INTRODUÇÃO

O que o espectador busca ao ver um espetáculo? O que o leva ao teatro? O que


prende a sua atenção? Questionamentos como esses se identificam com as inquietações do
teórico polonês do teatro Jerzy Grotowski (1933-1999) que utilizou desta linguagem, o teatro,
para responder suas inquietações pessoais. Talvez, perguntas como estas também perpassem
aqueles que vão ao teatro. Sendo assim, o teatro pode ser um lugar de possíveis respostas para
o espectador. Cabe aqui pensar o lugar de ver o teatro, a partir de quem está na plateia.
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Estas são algumas das reflexões que fazem parte da minha pesquisa de mestrado152.
Por ser uma pesquisa em fase embrionária alguns aspectos metodológicos ainda estão em
processo de definição.
Para o presente artigo tenho como objetivo fazer uma reflexão de como se dá o
processo de construção do conhecimento do espectador teatral nos espaços teatrais a partir dos
teóricos aqui apresentados. O que me levou a uma revisão bibliográfica pautada em estudiosos
da educação, história do teatro, da antropologia e da filosofia do teatro ocidental.
Este artigo está dividido em três momentos. No primeiro, busco dialogar com Denis
Guénoun (2003) sobre o sentido do termo “théatron” dentro do contexto da Antiga Grécia
dando destaque ao espectador teatral. No segundo, apresento as teorias da recepção teatral de
Flávio Desgranges (2009) abordando fenômenos que é passível de acometer o espectador no
momento da recepção. No terceiro, relaciono as contribuições destes teóricos com o conceito
de “acontecimento teatral” do crítico e historiador argentino Jorge Dubatti (2016) dialogando
com o contexto artístico de São Luís. E para finalizar trago minhas considerações sobre as
reflexões.

A PLATEIA E SEUS CONTEXTOS

Um espetáculo teatral é composto por atores e espectadores. Um espetáculo em que


toda a atenção está no palco e na ação do ator, o que acontece na plateia durante esta
apresentação é pouco percebido pelo próprio espectador. Cabe pensar que uma reação de riso
ou de choro; de raiva ou de empatia, também compõe o acontecimento teatral.
Minha ida aos espetáculos teatrais, quando estagiava no teatro Arthur Azevedo, ano
de 2015, me possibilitou presenciar reações como essas nos espectadores. A exemplo do
espetáculo Pão com Ovo153, apresentado no Teatro Arthur Azevedo quando estagiava lá em
2015. Estas reações, em alguns casos, fazia com que o ator se voltasse para a plateia e
improvisasse em cima desta reação, pois de certa forma o espectador tinha-lhe roubado a cena
com a sua risada. Reações como estas direcionam a atenção do palco para a plateia
evidenciando a sua existência no jogo teatral.
Diante deste exemplo cabe refletir sobre a arquibancada também como local onde
o processo da construção de conhecimento acontece. Para refletirmos sobre este espaço que

152
Pesquisa de mestrado em Artes Cênicas da UFMA/PPGAC, intitulada A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
NA RECEPÇÃO TEATRAL DA CENA CONTEMPORÂNEA EM SÃO LUÍS: o teatro como acontecimento que tem
como objeto empírico o espectador ludovicense adulto e tem como objetivo geral investigar no contexto artístico
ludoviscense, a recepção do espectador para entender seu processo de construção do conhecimento teatral.
153
Este espetáculo é atualmente composto por César Boaes, Adeilson Santos e Charles Júnior com o texto de Bruno
Magno e figurino de Beto Modas.
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pertence ao espectador, trago Denis Guénoun (2003) por desenvolver algumas teorias e
descobertas em relação ao público de teatro na antiguidade. Algumas das suas descobertas
abriram caminhos para algumas reflexões neste artigo. Uma delas é pensar sobre o tempo que
o espectador gasta ao assistir um espetáculo e o que acontece durante este tempo. Esta primeira
etapa é referente somente ao espaço do espectador que perpassam por cinco fatores que o
compõe, são eles: o político; o espaço semicircular; o texto e por último os elementos símbolos
apresentados por João Maria André (2012).
O primeiro fator abordado por Guénoun (2003) no teatro é o político. Para ele, o
político está na reunião das pessoas e tudo aquilo que envolve esta reunião. Se pensarmos no
exemplo citado acima sobre o espetáculo Pão com Ovo (2015), o político para Guénoun (2003)
estaria em todo o aparato para colocar o espetáculo em funcionamento como, por exemplo, a
divulgação, a venda de ingressos e etc., pois para este teórico, o político no teatro da Antiga
Grécia se dava pela congregação de pessoas em um determinado espaço, ou seja, o horário
marcado, o tempo de reunião e além de tudo, a união de pessoas estranhas para um objetivo em
comum, assistir a uma apresentação teatral.
A reunião de pessoas que saem das suas casas para assistirem a cenas teatrais me
intriga e me=== faz pensar o motivo pelo qual elas se reúnem em um local e horário
determinado. Para Guénoun (2003), esta reunião é política. Sendo assim, posso entender de que
forma o político entra no teatro, ou o teatro entra no político, pois para este teórico, a ideia
política do teatro é:

[...] congregar a cidade, publicamente unida na mobilização de seu desejo de


comunidade, para convidá-la a tomar assento no lugar da assembleia política, para abrir
o político para outra coisa fora de si mesmo. (GUÉNOUN, 2003, p. 70)

A ideia de Guénoun (2003) sobre o político no teatro está na importância da


participação de todos e não somente no que é representado no palco, mas sim no convívio,
congregação, aglomeração e encontro, pois, “a convocação, de forma pública e a realização de
uma reunião, seja qual for seu objeto, é um ato político” (GUÉNOUN, 2003, p. 14). Sendo
assim, segundo o teórico, assistir ao espetáculo Pão com Ovo (2015) seria uma atividade
política. Político não somente pelo conteúdo mostrado, mas, antes de qualquer conteúdo, pela
natureza da reunião que o estabelece.
O segundo fator abordado por Guénoun (2003) diz respeito ao espaço do
espectador. Continuando com o exemplo do teatro Arthur Azevedo, este espaço é constituído
por uma arquitetura com características do teatro à italiana em que o público é localizado na
frente do palco com o olhar propositalmente direcionado para a cena.
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Imagem 1 – Planta baixa do Teatro Arthur Azevedo

Fonte: Memória do Teatro Arthur Azevedo (2019)

Quando falamos que vamos ao teatro, significa dizer que vamos à arquibancada,
pois o termo designa o lugar do público, o lugar de onde se vê, como afirma Guénoun:

(A palavra: púbico. Mas também a palavra: teatro. Lembremos que, no lugar teatral
grego, de onde nos vem o termo, “teatro” – théatron – não designa a cena que é
designada pelo termo skênê -, mas sim as arquibancadas onde se senta o povo. Isto
mudará: mais tarde, a palavra passa a dominar, realmente, a área de representação, o
francês clássico vê os atores “sur le théâtre”. E este deslocamento de um espaço à outro
é signo de uma história. Para nós, “teatro” designa por extensão o prédio em seu
conjunto. Mas, no começo, o teatro é lugar do público – do público reunido.)
(GUÉNOUN, 2003, p. 14)

A disposição frontal do espectador na arquibancada favorece o efeito de ilusão da


cena de forma que o espectador tenha a sensação de também fazer parte da ficção. Com isto, o
espectador não se percebe enquanto espectador e nem as reações dos outros espectadores, o
que seria neste contexto uma distração.
Segundo o teórico, durante anos o termo teatro mudou de foco dando mais ênfase
ao palco do que a arquibancada. Essa mudança de foco produziu um esquecimento e confusão,
onde as pessoas ao se referirem ao teatro, começaram a remeter ao prédio.
Na tentativa de resgatar o original significado do termo, Guénoun (2003) aborda o
teatro como o “lugar do público”, “o público reunido”. Mas, em que formato este público é
reunido? Esta pergunta se faz importante, pois o formato em que o espectador está distribuído
no espaço interfere diretamente na maneira como ele se perceberá, perceberá o outros
espectadores e a cena teatral.
Por esse motivo se torna relevante analisar alguns formatos de arquibancadas que
compuseram a história do teatro ocidental. Para Guénoun (2003), o formato circular ou
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semicircular de uma arquibancada no teatro (também conhecida como teatro de arena ou semi-
arena) permite com que o público veja o ator, a si mesmo e também seus colegas espectadores
observando as suas reações faciais e emocionais diante do que é visto em cena.

Num grupo, para que cada um veja todos os demais, é preciso estar em círculo. O círculo
não é a organização que permite que as pessoas se ouçam (é possível escutar alguém
que está atrás de nós), mas é precisamente a estrutura que permite que as pessoas se
vejam e distingam as demais não como massa, mas como reunião de indivíduos: permite
ver os rostos – reconhecer-se. (GUÉNOUN, 2003, p. 20-21)

Existem também outros formatos de arquibancadas como é o caso do teatro


elisabetano e o teatro romano. Para cada um destes dois teatros, o espectador observa a cena
em ângulos diferentes.
O teatro elisabetano, por exemplo, tem as suas arquibancadas em formato cilíndrico
que “acomoda três galeria de espectadores, sendo a mais alta protegida por um telhado
inclinado para dentro” (BERTHOLD, 2008, P. 318).

Imagem 2 – Teatro Elisabetano

Fonte: Google Imagem (2019)

Em Roma, na perspectiva histórica, o espaço do teatro sobre tablado de madeira


dos atores ambulantes cresceu a tal ponto que o teatro romano passou a ter sua própria estrutura
física em que dois oficiais eram os responsáveis pelo policiamento, arquitetura e pela obra de
construção dos teatros.
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Imagem 3 – Teatro Romano

Fonte: Google Imagem (2019)

Este teatro dava poucas despesas, e a disposição do público era semicircular ao


redor da plataforma do palco que consistia em “uma plataforma retangular de madeira, cerca
de um metro acima do chão, cujo acesso era feito por escadas de madeiras laterais e com uma
cortina que o limitava ao fundo.” (BERTHOLD, 2008, p. 148). Mas, porque o público precisava
estar em uma posição semicircular na antiguidade?
Segundo Guénoun (2003), somente os teatros circulares proporcionam a
possibilidade do espectador ver o ator e os outros espectadores de forma a se perceber como
parte do coletivo, da comunidade, pois:

[...] o público do teatro não é uma multidão. Nem uma aglomeração de indivíduos
isolados. Este público quer ter o sentimento, concreto, de sua existência coletiva. O
público quer se ver, se reconhecer como grupo, quer perceber suas próprias reações, as
emoções que o percorrem, o contágio do riso, da aflição, da expectativa. É uma reunião
voluntária, fundada sobre uma divisão. É, ao menos como esperança, como sonho, uma
comunidade. (GUÉNOUN, 2003, p. 21).

Com base nas pesquisas de Guénoun (2003), e fazendo um pararelo com as reações
do espetáculo Pão com Ovo (2015) citado anteriormente, o púbico busca ter no teatro, um
sentimento de existência coletiva, tanto pela identificação com a cena, quanto pela identificação
com as reações dos outros espectadores. Como o espectador se identifica por meio da cena
teatral? Por que o texto que está no corpo do ator, dialoga com a realidade destes espectadores.
Dessa forma, o que é apresentado aos olhos e ouvidos do espectador é o próprio texto no corpo.
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Imagem 3 – Teatro Grego

Fonte:
Google Imagens (2019)

Segundo Guénoun (2003), o texto é apresentado como uma das razões pela qual o
espectador se reúne na arquibancada. O que lhes é apresentado aos olhos? O corpo do ator.
Mas, o que o corpo do ator traz para a cena? O texto. Este se apresenta como atração aos olhos
pelo corpo do ator, pois é “isto que eles vêm fazer no teatro: ver a passagem do texto pelos
corpos. Ideia curiosa.” (GUÉNOUN, 2003, p. 64)
O texto se manifesta por meio do corpo do ator tendo em vista que a expansão do
corpo em cena possibilita também a comunicação dos diversos elementos simbólicos culturais
nas artes performativas, ideia esta defendida por João Maria André (2012) em sua publicação
Multiculturalidade, identidade e mestiçagem: o diálogo intercultural nas ideias, na política,
nas artes e na religião de forma que o teatro se torna um campo de tradução e, portanto, de
construção de conhecimento uma vez que o espectador, juntamente com o ator, se tornam
participantes na tradução dos elementos simbólicos culturais presentes no “verbo-corpo” do
ator através de uma leitura semiótica e semântica.
A cultura que está no corpo do ator se comunica com os espectadores e dessa forma
temos uma “análise da interculturalidade” nas encenações teatrais (ANDRÉ, 2012). Portanto,
o diálogo intercultural surge no teatro por meio do diálogo entre o espectador e a cena teatral.
O corpo do ator carrega elementos culturais que a percepção do espectador
identifica na cena teatral. Este corpo expande também os limites da comunicação e leva o
espectador a ouvir e ver o texto por meio do corpo. É por isso que o espectador do teatro quer
ver o visível em si, em sua efetividade sensorial. Ver verdadeiramente. Fazer advir diante das
arquibancadas (de si) algo de real, fisicamente apresentado, a ponto desta efetividade da
apresentação tornar-se pouco a pouco sinônimo do próprio teatro. A apresentação desta
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fisicalidade possibilita o surgimento de outro elemento apresentado aos olhos, além do corpo e
do texto, os elementos simbólicos.
O espetáculo Pão com Ovo (2018), por exemplo, é composto por figurinos que
carregam elementos regionais da cultura maranhense. Além dos figurinos, o sotaque e gírias na
fala dos personagens fazem referências a vida cotidiana dos espectadores ludovicenses.

Imagem 4 – Espetáculo Pão com Ovo em São Luís

Fonte: Tâmara Silva/ Blog da Riquinha (2018)

A roupa do personagem Zé Maria tem as cores do time de futebol maranhense


Sampaio Correia Futebol Clube, seu time de paixão. A personagem Dijé traz em seu figurino
o colorido das saias das coreiras do Tambor de Crioula154e outras referências locais. Já a
Clarisse, tem um figurino que sempre deseja acompanhar a moda atual.
Esta identificação do espectador com os elementos culturais na cena teatral é
também um processo de tradução e construção de conhecimento uma vez que o espectador,
juntamente com o ator se tornam agentes dessa tradução por meio do “verbo-corpo” através da
semiótica e semântica da cultura destas pessoas que se encontram nesta reunião (ANDRÉ,
2012). Sendo assim, o espetáculo Pão com Ovo (2015) proporciona reações aos espectadores
por meio de identificações com a sua vida cotidiana de forma que lhes são apresentados no
palco comportamentos e falas conhecidas. Esta identificação é uma forma de tradução por parte
destes espectadores ludovicenses dos elementos simbólicos culturais que está no figurino, na
fala, no cenário, na música, etc.

154
Tambor de Crioula ou Punga é uma dança de origem africana praticada por descendentes de escravos africanos no
Estado do Maranhão.
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Segundo (ANDRÉ, 2012), a interculturalidade são as diversas culturas que passa


pelos corpos e se comunica através do corpo do ator onde esta interculturalidade pode ser
apresentado na cena teatral através de três dramaturgias: nas codificações culturais no corpo do
ator, na narrativa e nos mitos.
A ação de cada personagem do espetáculo Pão com Ovo (2015) demostra esta
primeira forma de decodificação em que a cultura molda o corpo e nele residem vestígios desta
ação. Um exemplo disso é quando a personagem Dijé anda no palco com passos desengonçados
e a Clarisse demonstra um andar mais delicado e cuidadoso sobre o seu salto alto de quase 10
cm.
A segunda dramaturgia consiste na narrativa desta comédia teatral maranhense.
Algumas vezes está ligado com a descoberta da personagem Dijé sobre a farsa de Clarisse que
sempre tenta mostrar o seu gosto refinado e chique.
Por último, os mitos. Eles são geralmente apresentados nos espetáculos de São Luís
como é o exemplo de dois espetáculos como: A Lenda da Ana Jansen (2018) de Rosana
Fernandes e o Miolo da Estória (2010) de Lauande Aires.
Na contemporaneidade, o corpo do ator e do espectador se apresentam na
perspectiva da interculturalidade nas artes performativas como mecanismo de comunicação,
além das outras linguagens e formas existentes no teatro para a percepção do espectador.
Até aqui é possível perceber os caminhos que levam ao entendimento do processo
de construção do conhecimento do espectador ludovicense que interage com as suas várias
experiências cotidianas. Tendo apresentado os aspectos de Guénuon (2003) e André (2012),
buscarei aprofundar a compreensão de como funciona o processo da construção do
conhecimento durante a recepção teatral. Portanto, no próximo tópico abordarei o que acontece
com o espectador durante o acontecimento teatral com base em fenômenos, a saber: traços
mnêmicos, aura e sinestesia. Além disso, tentarei responder a seguinte questão: O espectador é
capaz de construir conhecimento ao assistir um espetáculo teatral? Se sim, de que forma isto
pode acontecer?

FENÔMENOS DA RECEPÇÃO TEATRAL

Na recepção teatral, o espectador identifica outros elementos, além dos já citados


anteriormente. O corpo do ator em cena, além de trazer elementos simbólicos, traz também
sensações aos espectadores que só podem ser entendidos e analisados pelo campo das
sensações.
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A mnêmica155 é um fenômeno que se apresenta como o encontro do que vemos e o


que vem ao nosso encontro, pois o corpo do ator em cena surge semelhante a um “objeto como
que avança sobre o indivíduo [espectador], toca-lhe o íntimo e, de maneira inesperada, faz
surgir conteúdos esquecidos, relacionados com a memória involuntária.” (DESGRANGES,
2009, p. 16). Esta reação do espectador o faz pensar. Deduzo assim que neste momento ele
constrói algum tipo de conhecimento.

A imagem mnêmica se constitui de lembranças que surgem espontaneamente, sem a


vontade e o controle do sujeito. Trata-se, portanto, de imagens que o indivíduo não
escolhe, que não se relacionam com a memória voluntária, o contrário de um processo
consciente de rememoração. (DESGRANGES, 2009, p. 17)

Flávio Desgranges (2009) dá um exemplo de como este fenômeno funciona ao


descrever uma cena intrigante de Walter Benjamin quando este entra em contato com uma
reprodução de um quadro de Cézanne impressa numa revista. Segundo Benjamin, a obra
invadiu o seu espaço trazendo lembranças pessoais de forma a possibilitar uma empatia com
aquela imagem.

“Olhando para um quadro extraordinariamente belo de Cézanne, ocorreu-me como é


errado, até linguisticamente, falar-se de “empatia”. Pareceu-me que compreender um
quadro – até onde isso se dá – não se trata, de maneira alguma, de penetrar em seu
espaço, mas, muito mais, do avanço deste espaço – ou de pontos bem determinados e
diferenciados dele – sobre nós. Ele se abre para nós em seus cantos e ângulos nos quais
acreditamos localizar experiências cruciais do passado; há algo de inexplicavelmente
familiar nesses pontos. (BENJAMIN apud DESGRANGES, 2009, p. 15)

A memória possibilita a construção de conhecimento uma vez que fatos


significativos que foram lançados na profundeza da psique vem à tona trazendo imagens do
passado. É dessa forma que o pensamento crítico nasce e suponho que com ele, o
conhecimento.

A mudança na percepção inibe a produção de memória (traços mnêmicos inconscientes)


e dificulta o acesso frequente aos conteúdos esquecidos, fundamentais para a elaboração
da experiência. A memória, para o filósofo alemão, constitui-se justamente pelos fatos
significativos que não foram filtrados pelo consciente e são laçados na profundezas da
psique. Esses conteúdos, ao virem à tona, trazendo imagens do passado, provocam o
indivíduo a se debruçar sobre as situações vividas e a chocar os ovos da experiência,
fazendo nascer deles o pensamento crítico. (DESGRANGES, 2009, p. 16)

Para tanto, segundo Desgranges (2009), é necessário uma surpresa ao estado


consciente. O espectador precisa ser pego de surpresa, desatento para que o objeto artístico
possa ter relação intima com ele. É necessário uma recepção distraída para que o olhar seja
retribuído e toque no íntimo do espectador trazendo à tona, dessa forma, experiências cruciais

155
Aquele que tem reminiscências, lembranças. Termo usado na psiquiatria freudiana.
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do seu próprio passado. Sendo assim, o encontro do espectador com a cena é vinculado com a
produção de experiências (DESGRANGES, 2009). E o desenvolvimento desta experiência
possibilita o surgimento do pensamento crítico. Mas, segundo Desgranges (2009), não se trata
aqui de um retorno nostálgico, e sim de um retorno de forma narrativa por meio de uma trama
de espaço e tempo que convida o espectador a mergulhar em si mesmo e produzir uma
“experiência aurática” por meio de uma arte “não-aurática”156. Dessa forma, o espectador
participa do ato artístico já que passa por suas entranhas (DESGRANGES, 2009).
De semelhante forma Augusto Boal fala de dois tipos de auras em sua obra A
Estética do Oprimido (2009). A aura é produzida pelo olhar subjetivo, não pela coisa concreta,
pois existem auras públicas e auras privadas.

Sendo esta afirmação verdadeira – e é! –, podemos dizer que, em menor medida, até
mesmo a cópia de um santinho de igreja ou qualquer amuleto, religioso ou profano,
pode ter sua aura, dependendo da paixão do fiel e da sua relação passional com esse
objeto. Exceções não invalidam regras; existem auras públicas e auras privadas.
(BOAL, 2009, p. 42)

Mais uma vez a obra se relaciona com o espectador de forma íntima. O significado
e importância se encontra no sujeito e não no objeto. A aura, portanto, está no espectador que,
semelhante a Walter Benjamin, entra em contato com a obra dentro de um tempo/espaço, pois,
as " Auras se perdem e se ganham ao sabor do diálogo social, capricho das culturas.” (BOAL,
2009, p. 43).
Outro fenômenos que analiso neste trabalho e que se encontra no campo da
recepção teatral é a sinestesia. Fenômeno também da psiquiatria que impulsiona à uma nova
criação instigado pelos sentidos corporais.
Além dos traços mnêmicos, a sinestesia157 também é um fenômeno que possibilita
tanto o contato com o objeto da arte quanto novas criações por meio dele. Augusto Boal
menciona a sinestesia em sua obra A Estética do Oprimido (2009) quando se refere ao cérebro
e conhecimento. Ele acredita que acontece um fenômeno dentro da estética chamado de
sinestesia que possibilita o diálogo entre os sentidos resultando em novos comportamentos e/ou
pensamentos e criações.

Entre emoções, sensações e pensamentos existe o fenômeno da sinestesia, que propicia


o seu entrelaçamento e interdependência. Sinestesia é o diálogo entre os sentidos: a visão
de uma pessoa ou coisa pode provocar sensações de medo ou atração; o doce na vitrine
faz a boca salivar; a voz amada ao telefone faz-nos vibrar. (BOAL, 2009, p. 60)

Pois era apenas uma reprodução da verdadeira obra de Cézanne em uma revista.
156
157
Na definição estilística é o cruzamento se sensações; associação de palavras ou expressões em que ocorre
combinação de sensações diferentes numa só impressão.
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Portanto, a sinestesia é mais um fenômeno além dos traços mnêmicos para a


construção de um novo conhecimento/ postura do espectador no acontecimento teatral. Embora
sejam elementos da percepção, é relevante a sua compreensão.
Sendo assim, penso que a “poiesis” e “expectação” se relacionam e participam em
um mesmo espaço/tempo (“convívio”) no “acontecimento teatral”, mas com experiências
diversas e particulares de cada espectador (DUBATTI, 2016). Deduzo assim, que o corpo do
ator comunica conhecimentos com o espectador não somente pelos pensamentos e teorias, mas
também pela experiência por meio dos corpos (espectador-ator).

Para lá dos debates teóricos e ideológicos há as experiências artísticas que nos mostram
que é possível um mundo em que a cultura transporta pelos nossos corpos, pelas nossas
festas e pelas nossas experiências performativas converge em rituais de unidade e em
celebrações das diferenças que pontuam a nossa comum humanidade. (ANDRÉ, 2012,
p. 209)

Diante destes pressupostos, persiste a seguinte questão: De que forma posso


analisar essas experiências e críticas construídas de forma pessoal e subjetiva de cada
espectador? Como analisar aquilo que suponho ser, neste trabalho, a matéria prima para a
construção do conhecimento na recepção teatral? Talvez estas respostas só poderão ser obtidas
quando eu estiver no meu campo de pesquisa.

O TEATRO COMO ACONTECIMENTO

Este terceiro momento tem como objetivo relacionar as contribuições dos teóricos
citados anteriormente com o conceito de “acontecimento teatral” de Jorge Dubatti158 (2016).
Jorge Dubatti (2016) entende o teatro como acontecimento teatral. Para ele o
acontecimento teatral é a junção de três aspectos, são eles: o convívio, a poiesis e a expectação.
Este conceito surge de uma disciplina que analisa a relação ontológica do teatro com o mundo
de forma bem minuciosa, com intuito de evidenciar uma “essência filosófica” pouco estudada
na teoria teatral. Dessa forma, o amante de teatro se torna um “filósofo do teatro” (DUBATTI,
2016).
Jorge Dubatti elaborou estas ideias com base na necessidade de novas formulações,
interpretações e pensamentos, a filosofia teatral é uma disciplina que possibilita reanalisar o

158
Crítico, historiador e docente universitário com especialização em teatro. Jorge Dubatti é professor adjunto regular
de História do Teatro Universal da Universidade Nacional de Buenos Aires (UNB), dirigindo o projeto de
investigação UBACyT (História do Teatro Universal e Teatro Comparado: Origem e Desenvolvimento do Teatro da
Vanguarda Histórica – 1896-1939). Coordena a área de investigações em Ciência da Arte no Centro Cultural da
Cooperação Floreal Gorini. Fundador e Diretor desde 2001 da Escola de Espectadores de Buenos Aires. Tem
ministrado disciplinas e seminários sobre História e Teoria Teatral na graduação e pós-graduação em diversas
universidades argentinas e internacionais como professor visitante.
Página 878 de 2230

fazer teatral. Sua finalidade é ajustar à teoria, os métodos e as análises, que já são utilizadas há
muito tempo, para a observação da prática teatral.
No que tange a análise do fazer teatral, encontro conexões do entendimento desses
termos de convívio e expectação com as ideias de teóricos abordados anteriormente, uma vez
que tudo que compõe um espetáculo teatral tem como pilar a relação o espectador e o ator.
Tanto o que é mostrado no palco quanto o que é sentido na plateia estão de certa
forma interligados, pois “o convívio, a poiesis corporal in vivo e a expectação estão a tal ponto
imbricados e são tão inseparáveis na teatralidade que devemos falar em convívio poético-
espectatorial” (DUBATTI, 2016, p. 37). Desta relação, vários fatores foram analisados neste
artigo como a exibição dos elementos simbólicos no corpo do ator, na narrativa, no texto e na
recepção.
A relação de Dubatti com Desgranges e Augusto Boal está nos fenômenos que
compõe a experiência artística do espectador na recepção teatral dentro do convívio entre o ator
e o espectador e entre o espectador e outros espectadores. O convívio dos corpos.
Relaciono o termo expectação apresentado por Dubatti (2016) com o instante onde
os fenômenos da percepção apresentados por Desgranges (2009) acontecem. Neste instante da
expectação onde os fenômenos da sinestesia, dos traços mnemônicos e outros fenômenos
surgem, possibilita ao espectador uma experiência que não se limita apenas a comtemplar a
poiesis, mas que também:

[...] a multiplica e contribui para sua construção: há uma poiesis produtiva gerada pelo
trabalho dos artistas, e outra receptiva. Ambas se estimulam e se fundem no convívio,
resultando em uma poiesis convivial. (DUBATTI, 2016, p. 37)

A poiesis convivial apresentada por Dubatti (2016) é o resultado da reunião


estabelecida previamente entre espectadores e atores em um local com data e hora estabelecida.
Suponho que seja nesta reunião que os fenômenos da atuação e da recepção teatral acontecem.

REFLEXÕES SOBRE O CONSTRUÍDO

Este artigo teve como foco contribuir para a compreensão de como funciona o
processo da construção do conhecimento na recepção teatral partindo do ponto de vista
histórico, arquitetônico, antropológico e da recepção teatral analisando os envolvimentos do
espectador durante a recepção e como participante do ato político, uma vez que este ato político
acontece desde o momento em que a hora e o local do espetáculo é marcado. Guénoun (2003)
me auxiliou numa visão histórica sobre a função e posicionamento do espectador na
arquibancada da Antiga Grécia e principalmente onde posso encontrar a função do político no
teatro ainda nos tempos atuais.
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O espectador é a peça fundamental para o contato do teatro com o mundo


(DESGRANGES, 2015). O espectador tem a sua importância sem desmerecer a função do ator,
pois com base nos princípios e conceitos de Jorge Dubatti (2016), percebo que sem a “poiesis”
do ator, a “expectação” dos espectadores não surge e muito menos o “convívio” que é a reunião
destes dois sujeitos no mesmo espaço-tempo.
A plateia é o lugar de diálogo com a “poiesis” do ator, consigo e com a reação dos
outros espectadores que também é uma poiesis e que nestes diálogos o processo da construção
do conhecimento acontece. Durante a recepção teatral, o diálogo que acontece com a poiesis
do ator é sustentada por alguns fenômenos. Estes fenômenos fogem da minha área de
conhecimento, mas que sem a compreensão destes fenômenos não seria possível analisar o
processo da construção do conhecimento durante o acontecimento teatral para nesse artigo.
Mesmo assim, ainda com estes conceitos da psiquiatria freudiana citada por Desgranges (2009),
existem outros fenômenos que residem no campo da subjetividade do espectador, como por
exemplo, a experiência de vida deles. Sendo assim, suponho que cada espectador se relaciona
com a poiesis do ator de forma singular.
A ausência de respostas para algumas das questões levantadas neste artigo me
impulsiona a avançar na minha pesquisa na recepção teatral para sua maior compreensão, tendo
em vista que além da singularidade da experiência de cada indivíduo, tenho também a
singularidade de cada região/territorialidade, o que faz com que o acontecimento teatral em
cada região se diferencie em percepções e construções poéticas (DUBATTI, 2016).
O teatro também acontece na plateia através do campo das percepções. Penso em
aprofundar o entendimento sobre as percepções do espectador ludovicense no que tange a
totalidade sensorial do seu corpo. Como são as reações físicas no corpo do espectador durante
um espetáculo? Pesquisar algo que vá para além da visão e da audição do espectador.
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REFERÊNCIAS

ANDRÉ, João Maria. Multiculturalidade, identidades e mestiçagem: o diálogo intercultural nas


ideias, na política, nas artes e na religião. Coimbra. Editora: Palimage, 2012.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Tradução: Maria Paula V. Zuraski, J.
Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 2015.
DESGRANGES, Flávio. Teatralidade tátil: alterações no ato do espectador. Sala Preta, vol. 08,
n. 3, abr. 2009, p. 11-19.
DUBATTI, Jorge. O Teatro dos Mortos: introdução a uma filosofia do teatro. Tradução de
Sérgio Molina. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2016.
GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma idéia (política) do teatro. Tradução: Fátima
Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.
SLOWIAK, James; CUESTA, Jairo. Jerzy Grotowski. São Paulo: É Realizações Editora, 2013.
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UNIVERSIDADE INCLUSIVA: A EDUCAÇÃO SUPERIOR AO ALCANCE DE TODOS

INCLUSIVE UNIVERSITY: HIGHER EDUCATION WITHIN REACH OF ALL

Gabriel Braga
Aluno de Comunicação Social - Rádio e TV (UFMA)
Email: gabrielgustavo997@gmail.com

Jorge Sousa
Aluno de Comunicação Social - Rádio e TV (UFMA)
E-mail: jorge_leandroms@hotmail.com

Letícia Mendonça
Graduada em Comunicação Social - Rádio e TV (UFMA)
Email: leticiamendonca4@gmail.com

Maurício Marques
Aluno de Comunicação Social (UFMA)
Email:mauriciomarquescastro@gmail.com

Rakel de Castro
Professora Doutora do Departamento de Comunicação Social/CCSO UFMA. E-mail:
rakeldecastro@gmail.com
Universidade Federal do Maranhão

Eixo 1 - Arte, Tecnologia e Educação

RESUMO: O presente trabalho pretende apresentar formas de inclusão de alunos com deficiência visual
dentro da rotina acadêmica através de um podcast informativo, possibilitando, assim, aos discentes com
deficiência visual (DV), o conhecimento dos afazeres iniciais dentro da universidade no curso de
Comunicação Social. Partindo de conceitos sobre Educomunicação, acessibilidade, os boletins
informativos, em formato de podcast, irão auxiliar os alunos com deficiência visual a conhecerem seus
direitos, informações sobre horários, turmas e departamentos especializados.
Palavras-chave: Educomunicação. Acessibilidade. Deficiente Visual. Podcast.

ABSTRACT: The present work intends to present ways of inclusion of students with visual impairment
within the academic routine through an informative podcast, thus enabling students with visual
impairment (DV) to know the initial work within the university in the Course of Social Communication.
Starting from concepts about Educommunication, accessibility, newsletters, in podcast format, will help
students with visual impairment to know their rights, information about schedules, classes and
specialized departments.
Keywords: Educomunicação. Accessibility. Visually impaired. Podcast.

1. INTRODUÇÃO

Observando os períodos iniciais de recepção aos calouros da Universidade Federal do


Maranhão (UFMA), dentro do curso de Comunicação Social há uma “Semana do calouro”, evento
Página 882 de 2230

organizado por estudantes das habilitações em Jornalismo, Rádio & TV, e Relações Públicas, para
prestar informações aos recém-chegados alunos. Constatou-se, então, a necessidade da elaboração
de um produto inclusivo para contribuir como suporte na apresentação das dependências do Centro
de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão, Campus São Luís, além de auxiliar os
alunos com deficiência visual a conhecerem seus direitos, informações sobre horários, turmas e
departamentos especializados.
Nos últimos anos houve um crescente número de estudantes com um determinado grau de
deficiência ingressantes nas Instituições de Ensino Superior (IES). Percebeu-se que com o Curso
de Comunicação da UFMA não foi diferente. Partindo do pressuposto que um dos principais
papéis da Universidade é a inclusão, acessibilidade e permanência dos estudantes em percurso
educativo e/ou de formação profissional, realizou-se uma pesquisa de Campo dentro da
Universidade Federal do Maranhão, de cunho qualitativo-exploratória e que lançou mão de
entrevistas episódicas com os mais variados setores da IES para construir uma peça sonora e assim
disponibilizar aos alunos deficientes visuais (DV´S) todas as informações essenciais para a
convivência acadêmica (do NTI à biblioteca, do Departamento à Direção de Centro...).
Após a pesquisa e posterior elaboração do produto “Papo de calouro: A Universidade ao
alcance de todos”, podemos observar que a Universidade Federal do Maranhão tem se mostrado
preocupada com a inclusão de alunos com vários tipos de deficiências, ainda assim isso não é
suficiente para a ideia de oferecer igualdade de oportunidades e processos autônomos de uma
construção do conhecimento libertador, como previu Paulo Freire (1984; 2011).
Teoricamente o estudo tentou relacionar educação e tecnologia, numa perspectiva de
pensar a inclusão do estudante cego. Sendo o podcast um produto que pode ser acessado com mais
facilidade na nossa era de cibercultura é compreensível sua utilidade em um ambiente acadêmico
voltado a estudantes deficientes visuais; portanto, indicando a possibilidade de usar tal produto
como uma ferramenta que amplia a acessibilidade na educação.

2. EDUCOMUNICAÇÃO

O termo Educomunicação começou a ser utilizado em meados dos anos 1960 quando
alguns estudiosos perceberam a ligação entre as áreas de Comunicação e Educação e essa ligação
estava condicionada a presença da mídia dentro do processo de formação social dos indivíduos.
Autores da área da Educação como Paulo Freire e da área da Comunicação como Mario Kaplún
foram pioneiros nesse novo tipo de pesquisa. A autora Eliany Machado (2008) da Escola de
Comunicações e Artes de São Paulo (ECA-USP) comenta que a Comunicação, por ser uma área
interdisciplinar, reconhece também o processo de ensino e aprendizagem dentro do próprio Campo
de estudo da Comunicação. Segundo ela:
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O campo acadêmico da Comunicação ao se autodenominar como campo reconhece o


ensino – formação do educando para operar com a comunicação -, a pesquisa – produção
de conhecimento sistematizado nos subcampos -, e, a atuação profissional – a
comunicação aplicada. (MACHADO, 2008, p. 3)

A ECA-USP159 descreve o termo Educomunicação como uma interface da Comunicação


e da Educação nos fluxos de informações e também do conhecimento. Desse modo, a Escola de
Comunicações e Artes, trás um conceito do termo e sua área de atuação, abordando as
intencionalidades no estudo da Educomunicação.

Trata-se das interfaces sociais da comunicação com a educação enquanto organizadores


dos fluxos da informação e do conhecimento, orientando pesquisas que estudam os
modos pelos quais a comunicação vem sendo usada para introduzir, na pauta da
sociedade, temas e questões de interesse para as práticas educativas formais, informais e
não-formais. Além disso, volta-se às maneiras como o sistema educativo trabalha a
recepção de mensagens da comunicação social sobre suas audiências e usuários, às
práticas educativas mediadas pelos processos e linguagens da comunicação, aos usos das
mediações tecnológicas pelos sistemas de ensino presencial e a distância, bem como à
gestão da comunicação em espaços educativos (ECA-USP)

Outro conceito relevante que podemos mencionar aqui é do autor Ismar Soares (2002) que
conceitua a Educomunicação da seguinte forma:

Conjunto das ações inerentes ao planejamento, implementação e avaliação de processos,


programas e produtos destinados a criar e fortalecer ecossistemas comunicativos em
espaços educativos presenciais ou virtuais, assim como a melhorar o coeficiente
comunicativo das ações educativas, incluindo as relacionadas ao uso dos recursos da
informação no processo de aprendizagem (SOARES, 2002, p. 115)

Dessa maneira, “de facto a educomunicação tem-se afirmado, nos últimos anos, como um
campo de intervenção social que procura incluir a comunicação no processo da mediação
educacional” (DIEGUES, 2010, p. 33). As ferramentas disponibilizadas pela Comunicação aliadas
as ações educativas, formando a Educomunicação, geram novas possibilidades para que se pense
em práticas de construção da cidadania. Para Cecília Peruzzo:

O campo da educomunicação pode ser considerado uma maneira de se apostar na


criatividade do aluno, na circulação de vozes e diálogos dentro da escola, na expressão
de criações dos educandos e aprendizagens suportadas por meios de comunicação
(PERRUZZO, 2008, p. 30).

Portanto, partindo da ideia central da educomunicação, trouxemos para dentro do contexto


do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), para

159
Para mais informações, acesse: <www.eca.usp.br>
Página 884 de 2230

desenvolver essa relação entre Comunicação, Educação e Tecnologia através do aluno cego como
o principal público alvo, mas não estritamente. Ou seja, fazer uso da mídia dentro desse contexto
para auxiliar os discentes do curso em questão. Vitor Diegues (2010) aborda a educomunicação
justamente no contexto escolar, mas suas afirmações também podem ser perfeitamente alocadas
dentro do ambiente acadêmico.

Através da educomunicação é possível promover uma educação que prepare o sujeito


para pensar, para desenvolver a sua consciência e o seu senso crítico. Ainda neste âmbito,
a prática educomunicativa permite ajudar os alunos de forma a poderem expressar a sua
voz e a realizarem actvidades educativas dentro da escola (DIEGUES, 2010, p. 35)

No ambiente informal da internet, práticas educomunicativas se fazem bem mais presentes,


videoaulas sobre qualquer assunto podem ser encontradas em sites como o Youtube, por outro lado,
o uso das tecnologias da comunicação facilita a produção e divulgação de conteúdos de produtores
independentes. Além de vídeos, conteúdos escritos ou auditivos como os podcasts têm sido
exemplos viáveis de aprendizado informal, dinâmico, autônomo e coletivo. Com a implantação da
Educomunicação no currículo formal será possível ampliar projetos já existentes e iniciar novas
maneiras de aprender com a mídia e sobre a mídia.
A junção da Comunicação, Educação e Tecnologia possibilita ainda pensar a
acessibilidade no ambiente escolar com a ajuda de vídeos ou podcasts para alunos que não podem
ouvir ou enxergar, as mídias se tornam ferramentas mais práticas em algumas situações. A proposta
do presente artigo, que resultou de um produto sonoro – Podcast -, é levar informação inclusiva
dentro do ambiente acadêmico, proporcionando aos deficientes visuais que estão ou vierem para a
Universidade um modo de conhecer suas dependências, serviços e direitos. Por isso, pensamos no
conceito e no formato do Podcast como um produto inclusivo e acessível.

3. PODCAST: ACESSIBILIDADE AOS DEFICIENTES VISUAIS NA IES

A evolução das tecnologias da Comunicação possibilitou avanços em diversas áreas,


dentre elas a Educação. Para o trabalho procuramos compreender o podcast, que é um produto
desses avanços tecnológicos, como uma ferramenta inclusiva para pessoas com deficiência visual
(DV) no ambiente acadêmico. O objetivo é utilizar essa tecnologia para a transmissão de
informações úteis para alunos deficientes visuais que integram o curso de Comunicação Social da
UFMA.
O podcast é um espaço onde são transmitidos programas completos, trechos de entrevistas
ou até palestras em formato de áudio disponibilizados na Web e que podem ser acessados a
qualquer momento, o termo é a junção “entre Ipod (aparelho produzido pela Apple que reproduz
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mp3) e Broadcast (transmissão)” Junior e Coutinho (2009). Os programas podem ser acessados
em sites, aplicativos ou podem ser baixados no próprio aparelho celular e ser consumidos off-line,
ou seja, qualquer aparelho que reproduza áudio pode ser usado para acessar os programas e não
só no Ipod, por isso, a pesquisadora Magaly Prado usou o termo “audiocast” em sua dissertação
de mestrado (Carvalho, 2012).
Outro aspecto também importante é a possibilidade de criação de um podcast está no baixo
custo para produzir um programa desse tipo. Praticamente qualquer pessoa interessada e
tendo em mãos algum dispositivo apropriado será capaz de produzir e distribuir o seu conteúdo
via internet. Tábata Flores (2014) explora essa ideia afirmando que:

A possibilidade de viabilizar uma produção independente e com baixos custos desperta


um interesse especial pelo processo chamado podcasting. Diferente do modelo de
produção de outros veículos de mídia, teoricamente, a produção de um podcast é
acessível a qualquer membro da audiência. (FLORES, 2014, p. 19)

A consequência desse tipo de produção, nesses moldes, está na descentralização e


democratização de produção de conteúdo. De modo que, qualquer pessoa pode produzir seu
conteúdo sem precisar passar por um grande veículo de mídia radiofônica. Marcello Medeiros
(2005), dentro dessa perspectiva, coloca que o processo de produção também está agora nas mãos
dos ouvintes. Segundo ele:

[...] a grande inovação que o podcasting propõe: o “poder de emissão” na mão do ouvinte.
Com isso, não existe mais uma produção de conteúdo centralizado nas mãos de uma
mídia. Cada usuário produz seu conteúdo descentralizadamente, disponibilizando-o na
rede da melhor maneira que lhe convier (MEDEIROS, 2005, p. 5)

O podcast pode ser usado para diversos fins, entre eles, o que cabe para esse trabalho, a
educação e informação. Em 2006 o pesquisador Marcello Medeiros identificou quatro modelos de
produção de podcast, sendo um deles o modelo “educacional”:

Através desse modelo de podcast é possível disponibilizar aulas, muitas vezes em forma
de edições continuadas, semelhantes aos antigos fascículos de cursos de línguas que eram
vendidos nas bancas de revistas. Algumas experiências estão sendo testadas por
professores que utilizam essa ferramenta como uma forma de disponibilizar aulas
ministradas ou uma como forma de reposição. Na página do Itunes Store, é possível
baixar alguns exemplos de podasts educacionais como o “French Pod Class”, que são
aulas de francês em formato podcast (MEDEIROS, 2006, p. 6).

Esse modelo e tantos outros podem ser encontrados na web em várias plataformas, até o
Google já lançou um aplicativo para acessar somente podcast. Por se tratar de um conteúdo
acessível e pela facilidade também de produção e disponibilidade, é interessante utilizar o podcast
neste trabalho aliando sua produção a educação e acessibilidade.
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Sendo o podcast um produto que pode ser acessado com mais facilidade é compreensível
sua utilidade em um ambiente acadêmico voltado a estudantes deficientes visuais, a sua “forma
de distribuição [...] propicia, para os deficientes visuais, o acesso a materiais em tempos e locais
diversos” (FREIRE, 2008, pg.198), essa característica indica a possibilidade de usar esse produto
como uma ferramenta de acessibilidade na educação.
A utilização de tal produto sonoro tem o propósito de ser um aparato comunicacional
acessível a todos e apresentar aos alunos calouros, entre eles os deficientes visuais, as
dependências da instituição e os serviços oferecidos em cada setor, entretanto, é válido salientar a
importância desses ambientes possuírem condições de acessibilidade física para todos os públicos,
de acordo com as normas estabelecidas na ABNT (2004), como aponta José Manzine:

A associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT (2004) define a acessibilidade, por


meio da norma NRB 9050, como a possibilidade e condições de alcance, percepção e
entendimento para a utilização com segurança e autonomia de edificações, espaços
mobiliários, equipamentos urbanos e elementos. A mesma norma define o termo
acessível como espaço, edificação, mobiliário, equipamento urbano ou elemento que
possa ser alcançado, acionado, utilizado e vivenciado por qualquer pessoa, inclusive
aquelas com mobilidade reduzida. O termo acessível implica tanto a acessibilidade física
como de Comunicação. (MANZINE, 2005, p. 32).

A Universidade Federal do Maranhão, Campus São Luís160, com pouco mais de 50 anos
de fundação possui um conjunto arquitetônico repleto de prédios, sendo alguns deles modernos e
outros, em sua grande maioria, com estrutura antiga, com vários andares e pouca acessibilidade
aos professores e alunos com mobilidade reduzida. O Núcleo de Acessibilidade (NUACE) da
UFMA tem entre as suas atribuições à função de garantir o acesso às dependências da IES a todos
os alunos com deficiência:

I. Garantir o acesso, o ingresso e a permanência de pessoas com deficiências na UFMA,


através de suporte técnico e atendimento especializado; II. Coordenar todos os trabalhos
pró-acessibilidade, fazendo respeitar a Constituição Federal de 1988, as normas da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e demais normas
infraconstitucionais; [...] VI. Levantar e mapear todas as barreiras que impeçam ou
dificulte o ingresso, o acesso e a permanência de pessoas com deficiência, na UFMA;
[...] Garantir aos estudantes portadores de deficiência sensorial o acesso às mesmas
informações e experiências que os textos em tinta e som transmitem às demais pessoas;
X. Produzir textos ampliados para alunos com baixa visão no Núcleo e em outras
dependências da UFMA, de acordo com as necessidades dos usuários; [...]. (PROEN,
2020, s/p).

É válido ressaltar que a função de tornar a IES mais acessível não cabe apenas ao NUACE,
sendo uma função e obrigação de todo o corpo de docentes e discentes ao longo dos centros,
departamentos e demais ambientes da instituição. O Centro de Ciências Sociais (CCSO)161, abriga

160
Disponível em: < https://portais.ufma.br/PortalUfma/paginas/fotos_aereas.jsf >
161
Disponível em: < https://portais.ufma.br/PortalProReitoria/proen/paginas/pagina_estatica.jsf?id=66 >
Página 887 de 2230

vários cursos da UFMA e foi um dos primeiros prédios construídos no Campus São Luís. Sua
estrutura antiga possui pouca acessibilidade arquitetônica, entretanto, nos últimos anos foi
possível à instalação de piso tátil (ou podotáteis) e placas em braile em todos os blocos do CSSO,
através dos esforços de professores e coordenadores do Centro, conforme aponta Lindalva Maia
Maciel, Diretora do CSSO, durante entrevista concedida ao podcast Papo de Calouro:

[...] Constituímos uma comissão de acessibilidade com representantes de cada


departamento para pensar, por exemplo, a distribuição das salas de aulas, principalmente,
para alunos que têm dificuldades de locomoção para ficarem no térreo. Alunos que são
cegos que o piso tátil faltava para se deslocar melhor no centro. Então, a gente mapeou,
foi buscar junto ao Núcleo de Acessibilidade todas as informações sobre os alunos com
deficiência e resolvemos assumir um trabalho mais proativo em favor dessa causa. Nós
somos o centro com um número maior em comparação com os outros centros que alunos
com deficiências diversas e o centro, a Universidade precisa fazer o enfrentamento, dar
resposta, para que a Universidade não garanta apenas o seu ingresso, mas acima de tudo,
a sua permanência e conclusão de seu curso. Essa é a intenção. (MACIEL, Lindalva
Maia, 2018. Entrevista concedida ao autor).

Nos últimos anos é perceptível o crescente número de estudantes com determinados graus de
deficiências nas IES, resultantes das políticas de cotas estabelecidas no Artigo 3º da Lei nº 13.409,
de 28 de Dezembro de 2016, que garante a este público vagas e o acesso nas Universidades:

Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta
Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e
por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas
no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com
deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição,
segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE. (PLANALTO, 2016, s/p)

Ao longo da pesquisa de campo para a construção deste trabalho, foi possível obter a
relação dos alunos atendidos pelo NUACE durante os períodos de 2019 e com esses dados
observar o número de alunos com DV`S no CSSO. Por muitos anos foram caracterizadas pessoas
com deficiência visual aquelas que possuem a cegueira total ou a baixa visão, conforme Barreto e
Barreto:

No grupo das deficiências visuais existem duas categorias, que são a cegueira e a baixa
visão. A cegueira total, ou simplesmente amaurose, pressupõe completa perda de visão.
A visão é nula, isto é, nem a percepção luminosa está presente. É considerado cego
parcial ou baixa visão aquele que apresenta alguma percepção luminosa que possa
determinar formas a curtíssima distância. (BARRETO E BARRETO, 2014, p.41).

Já em 2019, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei (PL) 1.615/2019162 que classifica
a visão monocular (cegueira em apenas um olho) como deficiência visual, garantindo os mesmos
direitos e benefícios das pessoas com deficiência. Com essa alteração, construímos uma tabela

162
Disponível em: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/135839 >
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com dados obtidos no NUACE, apresentando a quantidade de alunos DV`S que ingressaram em
cursos do CSSO ao longo de 2019:

Tabela 1. Relação da entrada de alunos DV´S no CSSO.

DEFICIÊNCIA CURSO PERÍODO TURNO

Visual/Monocular Turismo 2019.1 Matutino

Visual/Cego Pedagogia 2019.1 Vespertino

Visual/Baixa Visão Direito 2019.1 Noturno

Visual/ Baixa Visão Relações Públicas 2019.1 Vespertino

Visual/Monocular Administração 2019.1 Matutino

Visual/Monocular Rádio e TV 2019.1 Vespertino

Visual/Monocular Serviço Social 2019.2 Integral

Visual/Monocular Administração 2019.2 Matutino

Visual/Cego Pedagogia 2019.2 Vespertino

Visual/Monocular Hotelaria 2019.2 Vespertino

Visual/Baixa Visão Direito 2019.2 Noturno

Visual/Monocular Direito 2019.2 Matutino


Fonte: Núcleo de Acessibilidade da UFMA

A adesão cada vez mais gradativa de pessoas com deficiência nas IES demonstra a
necessidade de políticas mais inclusivas para que todos tenham os mesmos direitos nesses
ambientes, usufruindo e contribuindo para a construção de um saber cada vez mais igualitário com
apoio e respeito mutuo. Conforme aponta Sonza e Santarosa:

O respeito à idiossincrasia de cada sujeito constitui-se em um ponto chave para o que


atualmente denominamos de inclusão. E a informática tem sido uma grande aliada desses
“diferentes” atravessando barreiras e quebrando obstáculos. (SONZA E SANTAROSA,
2003, p. 2).

Cabe aos professores à utilização e implantação de ferramentas tecnológicas no ambiente


educacional, buscando sempre uma maior interação com todos os alunos.
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Sem dúvida, as práticas pedagógicas que incluem como suporte as tecnologias da


informação e da comunicação têm mais possibilidades de oferecer modelos inovadores
de ensino e de aprendizagem. Essas tecnologias transformaram a realidade da sala de
aula, os programas, os vídeos, os sites e outros recursos a elas associados, ampliaram o
espaço e otimizaram o tempo. Para as pessoas com deficiência, que fazem parte desse
processo, o acesso ao conhecimento e a todos os recursos disponíveis na atualidade estão
ressignificando os atendimentos que dão suporte as suas necessidades [...] (QUIXABA,
2015, p.97).

É importante que se pontue que os deficientes visuais utilizam de recursos tecnológicos


como leitores de tela tanto em computadores e celulares e esses dispositivos também podem ser
explorados dentro do ambiente acadêmico para impulsionar uma melhor compreensão dos
conteúdos ministrados.

Podemos citar como exemplos: os ampliadores de tela [...] as linhas braile [...] a
impressora braile [...] os sistemas NVDA4 e Jaws5 [...] e o navegador de voz que permite
o uso do computador e a navegação na internet por comando de voz. Dentre eles, um dos
mais conhecidos e utilizados é o sistema DOSVOX. (BARRETO E BARRETO, 2014,
p.41).

Para esse trabalho, levamos em consideração o uso do Podcast como um dispositivo que
pode auxiliar os deficientes visuais, além de servir como um elemento educomunicacional,
evidenciando o uso das mídias dentro do processo de ensino aprendizagem.

4. PAPO DE CALOURO.
O projeto Papo de Calouro163 originou-se da observação da semana do calouro, evento
realizado por estudantes veteranos das três habilitações (Relações Públicas, Rádio e TV e
Jornalismo) do Curso de Comunicação Social da UFMA, que durante as primeiras semanas de
cada período letivo organizam o tradicional trote e a partir do período 2016.1, além do trote,
passaram a apresentar as dependências da instituição acadêmica e sanar dúvidas recorrentes aos
alunos calouros, como explica Alessandro Vale et al:

[...] Posto isso, promovemos o evento Semana do Calouro Comunicação Social


2016.1, para engendrar mais interação entre calouros, veteranos e professores do
curso; a semana teve uma programação destinada a sanar dúvidas sobre os trâmites
da UFMA, e, especificamente, do curso de Comunicação Social. (Alessandro,
VALE; et al. 2017, p. 2)

Constatou-se que as informações da semana do calouro poderiam ser repassadas de forma


mais abrangente, atingindo um número maior de alunos e estando sempre disponível para consulta,

163
Disponível em: < https://soundcloud.com/gabriel-gustavo-3/programa-papo-de-calouro-a-universidade-ao-
alcance-de-todos >
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surgindo assim, a ideia da criação de um podcast informativo, destinado a todos os alunos, em


especial, os deficientes visuais, para que possam se situar obter informações pertinentes sobre o
curso e demais necessidades que possam surgir na IES, aprendendo a se locomover por essa
instituição, uma vez que o local se torna um novo ambiente de vivência para todos os alunos
recém-chegados. O primeiro passo para a construção da peça sonora foi realizar um mapeamento
dos setores e análise das informações que poderiam ser colhidas nesses ambientes, para em
seguida, ir a campo, conforme detalhamos na tabela a seguir.

Tabela 2. Relação dos entrevistados para a criação do podcast

ENTREVISTADO SETOR FUNÇÃO ASSUNTO


Felipe Lago Estudantil Organização de Evento Semana do Calouro
Ingrid Guterres Biblioteca Assistente de Gabinete Serviço Ledor
Marcus Lauande NTI Diretor/Departamento UFMA Mobile
Piedade NUACE Coordenadora/NUACE Atendimento ao DV
Elizabete Lima NUACE Professora Atendimento ao DV
Lindalva Maia CCSO Diretora/CCSO Atendimento ao DV
Carlos Benedito CSSO Chefe/Departamento Atendimento ao DV
Fonte: Quadro elaborado pelo autor, 2020.

Com o objetivo de compreender melhor a Semana do Calouro, elaboramos a nossa


primeira entrevista com Felipe Lago, estudante de Comunicação Social, habilitação Relações
Públicas, que foi um dos organizadores do evento em 2016.1 e nos explicou o que foi abordado
ao longo da programação:

[...] Foram abordadas as expertises mercadológicas das três habilitações (Rádio e


TV, Jornalismo e Relações Públicas), por meio de palestras com profissionais da
Comunicação, além de orientações sobre as atividades acadêmicas (orientações de
salas, laboratórios e realização de cadastros), visando proporcionar uma rápida
ambientação acadêmica. (BRAGA, Gabriel; et al. 2019, s/p).

Ingrid Guterres Simas, Assistente de Gabinete da Biblioteca Central (CEB Velho) foi a
nossa segunda entrevistada e explicou como o estudante pode obter o cartão de acesso único
(CAU) e sobre o Serviço Ledor, que visa auxiliar os DV`S em suas pesquisas acadêmicas:

[...] Orientou como os alunos podem fazer o seu cadastro e sobre os serviços
destinados aos usuários com deficiência visual e baixa visão, por meio do Serviço
Ledor, que foi iniciado em novembro de 2017, onde bolsistas da biblioteca auxiliam
nas leituras, interpretação de imagens e nos trabalhos acadêmicos, disponibilizando
duas salas, lupas eletrônicas e computadores. (BRAGA, Gabriel; et al. 2019, s/p).
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Em nossa terceira entrevista, conhecemos as dependências do Núcleo de Tecnologia e


Informação (NTI) e entrevistamos Marcus Lauande, Diretor do Departamento de
Desenvolvimento do NTI, que apresentou o site da IES, quanto à forma de acesso e realização de
cadastro no Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas (SIGAA) e no aplicativo para
celular UFMA Mobile. Já em nossa quarta entrevista, visitamos o Núcleo de Acessibilidade e
dialogamos com a Professora Elizabete Lima e com a Professora Piedade, Coordenadora do
NUACE que explanaram que o núcleo disponibiliza a digitalização de textos, aulas de orientação
e mobilidade e a entrega de equipamentos, como notebooks, lupas eletrônicas de mão e gravadores
de voz, para que os discentes consigam ter um melhor desempenho em suas atividades
acadêmicas. As nossas últimas entrevistas foram realizadas no CSSO. Lindalva Maia Maciel,
Diretora do CSSO nos recebeu e apresentou a luta em obter mais acessibilidade para o prédio,
conseguindo a instalação do piso tátil e das placas em braile, conforme abordamos no tópico
anterior deste trabalho e Carlos Benedito Alves, Chefe do Departamento de Comunicação
informou os atendimentos disponíveis aos professores e alunos.

Figura 1. Entrevista com Lindalva Maia Maciel no CSSO.

Fonte: Acervo do autor

O passo seguinte às entrevistas foi à parte técnica do trabalho, com a criação do roteiro,
decupagem, onde analisamos as informações mais pertinentes que deveriam estar contidas na peça
sonora, a gravação das vinhetas, locução e edição do produto sonoro:

A gravação do trabalho aconteceu no laboratório de rádio do curso de Comunicação


Social da UFMA, sob a supervisão do técnico do laboratório Saylon Sousa. A
apresentação do podcast foi gravada pelo aluno deficiente visual e integrante do grupo
deste trabalho, Maurício Marques, com o auxilio dos outros membros. De acordo com
a proposta do roteiro radiofônico, usamos uma linguagem mais descontraída para
passar as informações de maneira clara e objetiva aos alunos. A terceira fase de
produção do produto, a edição, foi confeccionada nos seguintes programas de edição
de áudio: Sony Vegas Pro 14 e no Sound Forge Pro 12. Selecionamos algumas
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músicas para usar como BG (o som de fundo do podcast) e vinhetas de abertura e


fechamento. (BRAGA, Gabriel; et al. 2019, s/p).

A etapa final foi à criação de paper sobre o podcast e o processo de divulgação, que iniciou
na própria disciplina Educação e Tecnologia, apresentando um seminário sobre a parte escrita e a
peça sonora. Em seguida, participamos do Congresso Regional Intercom Nordeste 2019164, onde
o trabalho figurou entre os 05 melhores da região. Foi possível fazer a divulgação também por
meio de uma matéria165, elaborada pela a Assessoria de Comunicação (ASCOM) e publica no site
da instituição e uma matéria veiculada pela TV Universitária (TV UFMA). 166

Com todo esse acervo em mãos (podcast, papper e matérias), resolvermos enviar por e-
mail e por mensagens privadas nas redes sociais para outros setores da instituição, a exemplo
Rádio Universitária, Diretório Acadêmico, NUACE e também gravar tudo em mídia física (CD´S)
e entregarmos nos locais que colhermos as entrevistas, como forma agradecimento como nova
forma de divulgação. A Professora Flávia Moura, que leciona a disciplina Teorias da
Comunicação, ofertada no primeiro período para as três habilitações de Comunicação Social, nos
permitiu apresentar o podcast aos alunos em um breve bate papo durante a ministração da sua
aula.

Realizamos a ultima divulgação deste trabalho durante o III Simpósio Internacional


Interdisciplinar em Cultura e Sociedade do PGCULT167, onde apresentamos todo o percurso de
criação de divulgação do Papo de Calouro, que resultou na elaboração e criação deste trabalho
“Universidade Inclusiva: A Educação Superior ao Alcance de Todos”.

Figura 2. Entrega de CD para diretora do NUACE

Fonte: Acervo do autor

164
Disponível em: <http://www.portalintercom.org.br/publicacoes/jornal-intercom/2019-2/02-2-2-2/ano-15-n-451-
sao-paulo-12-de-fevereiro-de-2019-issn-1982-372/chamadas-1333/confira-o-site-do-congresso-regional-intercom-
nordeste-2019 >
165
Disponível em: < https://portais.ufma.br/PortalUfma/paginas/noticias/noticia.jsf?id=54826>
166
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=9LoERn1Egvo >
167
Disponível em: <https://portais.ufma.br/PortalUfma/paginas/noticias/noticia.jsf?id=54580 >
Página 893 de 2230

É válido ressaltar que uma das formas que utilizamos para demonstrar a importância da
inclusão de todos, em especial dos DV´S neste trabalho, foi destinar a Maurício Marques, aluno
deficiente visual e membro desta equipe, a função de realizar as entrevistas, locução do podcast e
a apresentação do papo de calouro nos seminários, pois somente com o tratamento igualitário entre
as pessoas poderemos criar uma Universidade e uma sociedade melhor, a exemplo do que
enfatizamos nos minutos finais da nossa peça sonora.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar a Educomunicação como uma importante área de pesquisa dentro do campo da


Comunicação Social é abrir um leque de possibilidades para auxiliar no processo de formação
social dos indivíduos. Após a elaboração do produto “Papo de Calouro: A Universidade ao alcance
de todos”, podemos observar que a Universidade Federal do Maranhão tem se mostrado
preocupada com a inclusão de alunos com vários tipos de deficiências. A semana do calouro tem
por finalidade reforçar a importância dessa integração de alunos calouros com os alunos veteranos
de uma forma a promover a inclusão e conhecimento sobre os trâmites da vida acadêmica, sanando
dúvidas em relação aos processos estudantis. Toda a produção foi pensada para o público com
deficiência visual, mas que não se restringe apenas a esse público, uma vez que as informações
contidas no produto são essenciais para todos os alunos que chegam ao curso de Comunicação
Social, abarcando diversas informações pertinentes que irão fazer parte do dia a dia desse aluno
dentro da Universidade.
O resultado final foi satisfatório tanto para a Universidade e para o curso de Comunicação
Social, em suas três habilitações, quanto para as dúvidas iniciais da vida acadêmica que os alunos,
eventualmente, vão ter durante o decorrer do curso. Se a Universidade destina algumas de suas
vagas para pessoas com deficiência é trabalho dela, também, fornecer o mínimo de estrutura para
a permanência desse aluno até a conclusão de seu curso, como foi observado nas entrevistas feitas
nesse trabalho. A diretora do centro do prédio Centro de Ciências Sociais, em sua entrevista
concedida, falou da luta para construir um prédio acessível não só para os deficientes visuais, mas
também para todo aluno que possui algum tipo de deficiência. Dessa forma, a Universidade
também tem esse papel humanístico, de acolhimento, de inclusão, de acessibilidade, por que é da
Universidade que sairão os profissionais que irão servir a sociedade. Por isso, a Universidade tem
que está ao alcance de todos.
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REFERÊNCIAS:
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DIEGUES, Vitor Manuel Santos. Educomunicação: produção e utilização de Podcasts na


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FLORES, Tábata. A nova mídia podcast: um estudo de caso do programa Matando Robôs
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Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Escola de Comunicação – ECO.
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USO DE TECNOLOGIAS ASSISTIVAS PARA SURDOS NO INSTITUTO FEDERAL


DO MARANHÃO, CAMPUS ZÉ DOCA

USE OF ASSISTIVE TECHNOLOGIES FOR DEAF PEOPLE IN THE FEDERAL


INSTITUTE OF MARANHÃO, CAMPUS ZÉ DOCA

Esp. Lina Kelly Rodrigues Ferreira (IFMA/UAB)


Mestranda. Silvia Cleide Piquiá dos Santos (IFMA/UFMA)
Eixo 1 – Arte, Tecnologia e Educação

Resumo: Inclusão educacional é um direito assegurado aos surdos pelas principais leis de
acessibilidade vigente em nosso País. O uso de tecnologias assistivas (TA) no ambiente escolar é
uma forma de inclusão eficaz, que visa facilitar a interação comunicativa entre surdos e ouvintes,
promovendo ao surdo sua autonomia linguística e contribuindo para a qualidade do seu
aprendizado. O presente artigo tem como objetivo geral analisar o uso de TA para o processo de
inclusão de surdos no Instituto Federal do Maranhão – IFMA, campus Zé Doca. A pesquisa foi
exploratória baseada em estudo de caso com aplicação de questionário e com observação de
atuação de professores e intérpretes em sala de aula. Os dados levantados foram analisados
baseados nos autores MANZINI (2005), BENVENUTO (2006), BERSCH; MACHADO (2012),
que tem estudos sobre o uso de tecnologia para inclusão e acessibilidade de surdos. Os resultados
evidenciaram que o Instituto realiza a inclusão de surdos desde o momento do ingresso até sua
conclusão, principalmente, com o Tradutor Intérprete da Língua de Sinais – TILS para realizar a
mediação entre professores e estudantes surdos por meio da Língua Brasileira de Sinais - Libras.
Entretanto, percebemos que, apesar da presença de TILS ainda são necessários maiores
investimentos em recursos de tecnologias assistivas e em capacitação profissional.
Palavras-chave: Tecnologias Assistivas. Inclusão. Surdos. Acessibilidade.

Abstract: Educational inclusion is a right guaranteed to the deaf by the main accessibility laws in
force in our country. The use of assistive technologies (AT) in the school environment is a form
of effective inclusion, which aims to facilitate the communicative interaction between deaf and
listeners, promoting deaf their linguistic autonomy and contributing to the quality of their learning.
This article aims to analyze the use of AT for the inclusion process of deaf people at the Federal
Institute of Maranhão - IFMA, campus Zé Doca. The research was exploratory based on a case
study with the application of a questionnaire and observation of the performance of teachers and
interpreters in the classroom. The data collected were analyzed based on the authors MANZINI
(2005), BENVENUTO (2006), BERSCH; MACHADO (2012), who has studies on the use of
technology for inclusion and accessibility for the deaf. The results showed that the Institute
performs the inclusion of deaf people from the moment of admission until its conclusion, mainly
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with the Sign Language Interpreter Translator - TILS to mediate between teachers and deaf
students through the Brazilian Sign Language - Libras. However, we realized that, despite the
presence of TILS, greater investments in assistive technology resources and professional training
are still needed.

Keywords: Assistive Technologies. Inclusion. Deaf Accessibility.

1. INTRODUÇÃO

TA é uma expressão abrangente que caracteriza todos os recursos e serviços que


contribuem para melhorar ou mesmo ampliar as aptidões funcionais das pessoas com deficiência,
proporcionando autonomia, por meio da potencialização de suas habilidades.

As tecnologias assistivas envolvem não apenas o uso de sistemas computadorizados, mas


todos os recursos que objetivam a acessibilidade; desde um simples equipamento de comunicação
alternativa, auxílios visuais como figuras e textos escritos, até um poderoso sistema
computadorizado objetivando ajudar nas atividades e na assimilação dos conteúdos para os alunos
com necessidades específicas (MANZINI, 2005, p.82).

A tecnologia assistiva pode ser utilizada em todo espaço escolar, de uma forma inovadora,
criativa e planejada, proporcionando inclusão e acessibilidade aos alunos, em especial aqueles
com necessidades educacionais específicas para obter uma aprendizagem mais significativa.

As Tecnologias Assistivas podem ser instrumentos que facilitam a comunicação e a


interação entre professores e alunos surdos, além de contribuírem para absorção dos
conhecimentos dentro e fora de sala de aula. As instituições que possuem alunos surdos precisam
usar as tecnologias assistivas, uma vez que estas promovem a acessibilidade dos surdos que
frequentam o mesmo espaço escolar dos ouvintes.

Diante disso, o este artigo buscou analisar a presença e o uso de tecnologias assistivas para
o processo de inclusão dos surdos no Instituto Federal do Maranhão – IFMA, campus Zé Doca. A
instituição foi escolhida por ser considerada inclusiva e ter estudantes surdos e profissionais com
conhecimentos específicos na área da surdez.

A pesquisa foi norteada pelas perguntas: Qual a importância das Tecnologias Assistivas
para promover a inclusão escolar nas instituições educacionais? De que forma as Tecnologias
Assistivas possibilitam um processo de ensino aprendizagem satisfatório? Como as Tecnologias
Assistivas, estão sendo trabalhadas no ambiente escolar? Os questionamentos serviram para
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verificar o nível de conhecimento e os recursos de TA utilizados pelos profissionais entrevistados,


bem como ocorre o processo de inclusão dos surdos no IFMA, campus Zé Doca.

A pesquisa foi relevante por mostrar desafios no uso de TA na instituição e perspectivas


de mudança para melhorar o acesso a esses recursos, como a capacitação de profissionais para
desempenhá-los com eficiência e eficácia.

2 . INCLUSÃO DE SURDOS NO CONTEXTO ESCOLAR

A inclusão significa basicamente deixar de excluir o aluno, para que ele seja parte
integrante da escola, ou seja, sendo visto como cidadão, um ser humano capaz de realizar todas as
atividades educacionais em sala de aula.

A respeito do surdo, Benvenuto (2006) diz que:

[...] A palavra do surdo se expressa através da língua de sinais. [...] A surdez começa
então a metamorfosear-se naqueles que, ainda que seu ouvido funcione perfeitamente, se
tornam incapazes de escutar uma palavra que se expressa de maneira diferente da sua. É
a presença do outro que escuta ou que não quer ouvir que começa a definir o “ser surdo”
(BENVENUTO, 2006, p. 228).

A utilização da Língua Brasileira de Sinais – Libras no ambiente escolar foi reconhecido


pela Lei 10.436/2002 (Lei de Libras). A Libras durante as aulas é indispensável para que o surdo
possa participar e entender o conteúdo transmitido em sala de aula pelos professores. A Lei de
Libras foi regulamentada pelo Decreto 5.626/2005, que traça diretrizes para formação de
professores de Libras e intérpretes de Libras e para atuação educacional.

Apenas matricular e inserir alunos com necessidades educacionais, como a surdez, não é
fazer inclusão. Se assim fizer, na verdade estamos excluindo, em vez de incluir, porque quando o
aluno surdo é matriculado na escola, sem assistência este passa a ser um estrangeiro em sua própria
sala de aula. A educação inclusiva começa verdadeiramente quando o surdo interage com os seus
colegas e professores desenvolvendo suas capacidades cognitivas, onde o ambiente escolar é
favorável à sua aprendizagem fornecendo subsídios para que o surdo se sinta acolhido como parte
do processo educacional, tendo acesso aos conteúdos trabalhados através da Língua de Sinais.

A acessibilidade comunicacional é um meio de alcançar a inclusão. No caso dos surdos,


esse acesso à comunicação deve ocorrer em todos os níveis de educação, por meio do uso da
Língua Brasileira de Sinais – Libras, conforme preceitua o decreto nº 5.626/2005, art. 14, ao dispor
que:
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As instituições Federais de ensino devem garantir, obrigatoriamente, às pessoas surdas


acesso à comunicação, à informação e à educação nos processos seletivos, nas atividades
e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em todos os níveis, etapas e modalidades de
educação, desde a educação infantil até a superior. (BRASIL, 2005)

Segundo Sassaki (1997, p. 167) “a sociedade deve adaptar-se às necessidades das pessoas
com deficiência para que estas possam desenvolver-se em todos os aspectos de sua vida.” Dessa
forma verifica-se que, a escola precisa estar preparada e equipada para atender o surdo, pois não
é o aluno com necessidade que deverá adaptar-se sozinho, mas a sociedade, em especial a escola
precisa cumprir seu papel de fornecer recursos, ferramentas e serviços para a inclusão desde o
ingresso, a permanência e a conclusão do curso deste aluno.

A Lei 13.146/2015, chamada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI),
e também conhecido como “Estatuto da Pessoa com Deficiência”, foi criada “destinada a assegurar
e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais
por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”. Nesta perspectiva, a escola
precisa ter pessoas que saibam se comunicar com o surdo, utilizando a Libras na comunicação
para viabilizar o processo de ensino aprendizagem. Nessa situação, insere-se a figura do Tradutor
Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - TILS em sala de aula para auxiliar os surdos na
compreensão dos conteúdos curriculares e para mediar à comunicação entre professores e alunos
em Libras. Quadros (2004, p. 11) conceitua o profissional TILS como a “pessoa que traduz e
interpreta a língua de sinais para a língua falada e vice-versa em quaisquer modalidades que se
apresenta - oral ou escrita”.

Os profissionais de todas as áreas devem ter capacitação linguística em Libras para atender
a demanda dos alunos surdos, principalmente, os professores. Os professores precisam elaborar
estratégias, com metodologia inclusiva que atenda adequadamente a prática educativa e assegure
a qualidade do processo ensino e aprendizagem.

A escola deve incluir os surdos para que estes consigam progredir, em sentido de
conhecimento e adquiram sucesso profissional, acadêmico e pessoal. Entretanto, é um grande
desafio promover a inclusão através de implementação de tecnologias assistivas nas instituições
de ensino por requerer esforço de todos os indivíduos envolvidos no processo, direta ou
indiretamente. A sociedade precisa se mobilizar em promover a educação inclusiva, entre outros
quesitos, por ser um direito dos surdos assegurado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, no
art. 28, nos incisos IV a XIV.

IV - oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na modalidade escrita


da língua portuguesa como segunda língua, em escolas e classes bilíngues e em escolas
inclusivas;
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V - adoção de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o


desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência, favorecendo o
acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem em instituições de ensino;
VI - pesquisas voltadas para o desenvolvimento de novos métodos e técnicas
pedagógicas, de materiais didáticos, de equipamentos e de recursos de tecnologia
assistiva;
VII - planejamento de estudo de caso, de elaboração de plano de atendimento educacional
especializado, de organização de recursos e serviços de acessibilidade e de
disponibilização e usabilidade pedagógica de recursos de tecnologia assistiva;
VIII - participação dos estudantes com deficiência e de suas famílias nas diversas
instâncias de atuação da comunidade escolar;
IX - adoção de medidas de apoio que favoreçam o desenvolvimento dos aspectos
linguísticos, culturais, vocacionais e profissionais, levando-se em conta o talento, a
criatividade, as habilidades e os interesses do estudante com deficiência;
X - adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação inicial e
continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento
educacional especializado;
XI - formação e disponibilização de professores para o atendimento educacional
especializado, de tradutores e intérpretes da Libras, de guias intérpretes e de profissionais
de apoio;
XII - oferta de ensino da Libras, do Sistema Braille e de uso de recursos de tecnologia
assistiva, de forma a ampliar habilidades funcionais dos estudantes, promovendo sua
autonomia e participação;
XIII - acesso à educação superior e à educação profissional e tecnológica em igualdade
de oportunidades e condições com as demais pessoas;
XIV - inclusão em conteúdos curriculares, em cursos de nível superior e de educação
profissional técnica e tecnológica, de temas relacionados à pessoa com deficiência nos
respectivos campos de conhecimento;

Os incisos IV até XIV dispõem sobre os direitos à acessibilidade comunicativa e a


informação por meio do profissional Tradutor Intérprete de Libras em todos os ambientes e
espaços. Esse direito a inclusão nesses termos, no Brasil, foi motivado pela Declaração de
Salamanca, considerada um dos principais documentos internacionais, que visam à inclusão social
por meio do desenvolvimento de estratégias que promovam a igualdade de oportunidades. Esta
legislação defende a educação de qualidade e inclusiva.

Dentro do campo da educação, isto se reflete no desenvolvimento de estratégias que


procuram promover a genuína equalização de oportunidades (...). Ao mesmo tempo em
que as escolas inclusivas preveem um ambiente favorável à aquisição da igualdade de
oportunidades e participação total, o sucesso delas requer um esforço claro, não somente
por parte dos professores e dos profissionais na escola, mas também por parte dos
colegas, pais, família, voluntários. (UNESCO, 1994, p. 5).

A Declaração de Salamanca influenciou a criação de legislações voltadas para educação


inclusiva no Brasil, como a Lei 9.394/ 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), que regulamenta as regras gerais da educação básica e apresenta um capítulo específico
para tratar a respeito da Educação Especial (capítulo V). Este capítulo trata da garantia à inclusão
na educação escolar regular e ao atendimento educacional especializado. No artigo 58, diz:

§ 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular, para


atender às peculiaridades da clientela de educação especial.
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§ 2º O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados,


sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua
integração nas classes comuns de ensino regular.

§ 3º A oferta de educação especial, dever constitucional do Estado, tem início na faixa


etária de zero a seis anos, durante a educação infantil. (BRASIL, 1996)

A oferta de uma educação especial e de um atendimento especializado de qualidade, para


todos os alunos, desde a educação infantil até o ensino superior, constitui direito, amparada pela
Resolução CNE/CEB nº 2/2001, no artigo 2º, que determina que:

Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às escolas organizar-


se para o atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais,
assegurando as condições necessárias para uma educação de qualidade para todos.
(MEC/SEESP, 2001).

No entanto, sabemos que promover e efetivar a inclusão na escola não é uma tarefa fácil,
ainda que necessária. A escola tem que se adequar; ou seja, as barreiras atitudinais e
comunicacionais devem ser superadas, bem como os professores precisam se especializar, a fim
de melhor atender aos alunos com necessidades especiais. Segundo Rosseto (2005), a inclusão
escolar se refere a todo o sistema, desde o vigia, zeladores, até os diretores e professores.

A inclusão é um programa a ser instalado no estabelecimento de ensino em longo prazo.


Não corresponde a simples transferência de alunos de uma escola especial para uma
escola regular, de um professor especializado para um professor de ensino regular. O
programa de inclusão vai impulsionar a escola para uma reorganização. (ROSSETO
2005, p. 42).

Todos os profissionais da educação precisam empenhar-se nesta luta, para maximizar as


oportunidades de aprendizagens dos alunos, considerando a necessidade de reorganização
administrativa e burocrática, para que a inclusão possa acontecer, na prática, com objetividade.
Faz-se necessário utilizar estratégias para reinventar a prática pedagógica, ajustando os meios e
fornecendo, aos estudantes, elementos para oportunizar uma aprendizagem real e significativa.

3. TECNOLOGIAS ASSISTIVAS PARA EDUCAÇÃO DE SURDOS

No processo de ensino aprendizagem, usar tecnologias assistivas para pessoas com


deficiência faz toda a diferença. O Conselho Nacional de Deficientes do Estados Unidos (1993,
p.108) afirma que “para as pessoas sem deficiência a tecnologia torna as coisas mais fáceis. Para
as pessoas com deficiência, a tecnologia torna as coisas possíveis”. Ou seja, com o uso de TA
consegue-se tornar possíveis ações outrora extremamente difíceis, como por exemplo, a
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capacidade de entender e aplicar informações por meio da percepção aguçada de outros sentidos,
que no caso dos surdos, ocorre por meio da visão. Felipe (2006), enfatiza esta capacidade ao dizer
que a:

Libras é uma língua de modalidade gestual-visual que utiliza, como canal ou meio de
comunicação, movimentos gestuais e expressões faciais que são percebidos pela visão;
portanto, diferencia da Língua Portuguesa, uma língua de modalidade oral auditiva, que
utiliza como canal ou meio de comunicação, sons articulados que são percebidos pelos
ouvidos. (FELIPE, 2006, p. 21).

O surdo é um sujeito visual, então ele capta as informações com maior facilidade por meio
de vídeos, softwares e aplicativos com textos e imagens, entre outros. Todos esses recursos podem
ser considerados Tecnologias Assistivas, por auxiliarem os alunos surdos a realizarem e
entenderem tarefas. Por exemplo, o aparelho de celular pode ser usado pelo professor para diversas
atividades: mensagens de textos curtas, simples e objetivas, chamadas por vibração, recursos e
estímulos visuais como imagens, cores e figuras, bem como aplicativos de dicionários, software,
sistemas de legenda e avatares em Libras.

Quanto ao uso de software, o mais conhecido é o VLIBRAS que consiste em um conjunto


de ferramentas computacionais, responsável por traduzir conteúdos digitais (texto, áudio e vídeo)
para a Língua Brasileira de Sinais – Libras, tornando acessível para pessoas surdas, computadores,
dispositivos móveis e plataformas web (site e lojas virtuais), como no site do IFMA. Outra
ferramenta conhecida é o WIKILIBRAS, que consiste em um sistema de correção e inclusão de
novos sinais. As figuras 01 e 02 mostram imagens das duas ferramentas.

Figura 01- VLIBRAS Figura 02- WIKILIBRAS

Fonte: https://vlibras.gov.br/ Fonte: http://wiki.vlibras.gov.br//

O Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES foi à primeira escola para surdos no
Brasil, criada durante o império em 1856. A instituição tem um site em que disponibiliza materiais
diversos para ajudar na inclusão e acessibilidade linguística de surdos. Os recursos disponíveis na
plataforma podem auxiliar o professor e o Tradutor Intérprete de Libras em sala de aula. O
Dicionário Ilustrado de Libras é um desses recursos, pois oferece a possibilidade de traduzir sinais
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para o português e vice-versa. A Figura 3 ilustra um exemplo de como esse dicionário online
funciona e como disponibiliza as informações sobre uma palavra pesquisada.

Figura 03- Dicionário ilustrado de Libras

O Fonte: http://www.acessibilidadebrasil.org.br/libras_3/ site do INES


também tem um programa
de web TV em Língua Brasileira de Sinais (Libras), com legendas e locução. A TV INES prioriza
Libras, mas conta com legendas e locução em todos os produtos. Os vídeos produzidos são de
conhecimentos diversos de temas do cotidiano. Esses vídeos têm o intuito de divulgação e ensino
de Libras para o público surdo e ouvinte numa grade de programação bilíngue. Libras não é a
simples junção de gestos da língua portuguesa, antes se trata de uma língua estruturada, organizada
que possui regras, gramática, sintaxe e léxico próprios (HONORA, 2009, p.41).

O uso de TA não envolve somente uso de softwares digitais e aplicativos web, mas todos
os instrumentos, estratégias ou metodologias que ampliam as potencialidades dos surdos e
auxiliam na assimilação dos conhecimentos promovendo sua autonomia.

De acordo com a proposta de Bersch; Machado (2012) diz:

A composição da TA, engloba, portanto, não só artefatos ou instrumentos físicos, mas


todas as ações implicadas, estratégias e metodologias, que possam contribuir para a
ampliação da participação ativa e autônoma da pessoa com deficiência. Nesse sentido, os
Serviços de TA deve disponibilizar conhecimentos para que seus usuários possam
apresentar suas demandas funcionais e tomar a decisão sobre a melhor tecnologia que os
apoiará na resolução dos problemas. (BERSCH; MACHADO, 2012, p.71)
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A tabela 1 mostra a classificação de categorias de TA com diferentes recursos para auxiliar


os surdos, proposta por Tonolli e Bersh (2013). Os equipamentos apresentados são fundamentais
no processo de ensino, uma vez que estamos em um mundo globalizado, em que a tecnologia está
em constante crescimento.

TABELA 1 – Classificação de recursos de tecnologia assistivas


Equipamentos como infravermelho, FM, aparelhos para surdez,
Equipamentos que
Auxílios para visam à independência telefones com teclado-teletipo (TTY), sistemas com alerta táctil
pessoas com visual, celular com mensagens escritas e chamadas por vibração,
das pessoas com
software que favorece a comunicação ao telefone celular
deficiência deficiência auditiva na
transformando em voz o texto digitado no celular e em texto a
auditiva realização das tarefas
mensagem falada. Livros, textos e dicionários digitais em língua
diárias.
de sinais. Sistema de legendas (close-caption/subtitles).

Fonte: Tonolli e Bersh, 2013, pág. 10.

Segundo Bersch (2006), a relevância da Tecnologia Assistiva está nos resultados


alcançados no processo de aprendizagem, quando eles conseguem um aproveitamento mais
significativo do conteúdo repassado em sala de aula, a partir de uma maior compreensão e
desenvolvimento de atividades. As Tecnologias Assistivas contribuem não apenas para a
apropriação do conhecimento acadêmico na escola, mas vão além, proporcionando autonomia aos
alunos com necessidades especiais, fora dos muros da escola, ou seja, quando eles mesmos
estabelecem e efetivam a sua própria aprendizagem cognitiva, o que pode ocorrer por meio de
jogos educativos. De acordo com Bersch (2006, p.92) "a aplicação da Tecnologia Assistivas, na
educação, vai além de simplesmente auxiliar o aluno a fazer tarefas pretendidas. Nela,
encontramos meios de o aluno ser e atuar, de forma construtiva, no seu processo de
desenvolvimento". Bersch (2006) enfatiza ainda a importância do uso de TA, ao afirmar que:

Fazer TA na escola é buscar, com criatividade, uma alternativa para que o aluno realize
o que deseja ou precisa. É encontrar uma estratégia para que ele possa “fazer” de outro
jeito. É valorizar o seu jeito de fazer e aumentar suas capacidades de ação e interação, a
partir de suas habilidades. É conhecer e criar novas alternativas para a comunicação,
mobilidade, escrita, leitura, brincadeiras, artes, utilização de materiais escolares e
pedagógicos, exploração e produção de temas através do computador e etc. é envolver o
aluno ativamente, desafiando-o a experimentar e conhecer, permitindo assim que
construa individual e coletivamente novos conhecimentos. É retirar do aluno o papel de
espectador e atribuir-lhe a função de ator [...] (BERSCH, 2006, p. 22).

Matos (2015) salienta também, a necessidade de uso da TA, ao dizer que “a sociedade
precisa garantir a essas pessoas (surdos) a possibilidade de ter uma participação ativa nesses
espaços educacionais, dentre elas as IES, sem obstáculos que os impeçam acessar, permanecer e
concluir seus estudos” (MATOS, 2015 p.8). Compreende-se então, que as escolas necessitam criar
maneiras de desenvolver um ensino de qualidade, respeitando as diferenças e garantindo a inclusão
dos seus estudantes surdos para que estes consigam ter êxito no seu processo de educação formal,
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otimizando sua aprendizagem e superando dificuldades encontradas ao longo do seu percurso


acadêmico.

Os educadores precisam conhecer e utilizar a Tecnologias Assistivas na educação dos seus


alunos por beneficiar os alunos durante o seu aprendizado, favorecendo a inclusão e auxiliando os
professores no processo de ensino. Por exemplo, quando o professor utiliza estratégias
tecnológicas e metodológicas com o uso de recursos visuais (livros adaptados, vídeos legendados,
softwares e aplicativos e entre outros), pode auxiliar na mediação da comunicação, assimilação de
conteúdo, melhorando significativamente o desempenho escolar do aluno surdo. A TA quando
bem utilizada também ajuda os professores tornar suas aulas mais atraentes, melhorando sua
prática pedagógica. Concordamos com o pensamento de Neres e Corrêa (2015) em relação às
Tecnologias Assistivas favorecerem o processo de inclusão escolar de alunos com deficiência
quando dizem que:

A disponibilização das Tecnologias Assistivas no processo de inclusão escolar é


importante, considerando-se que são instrumentos que podem favorecer aos alunos com
deficiência o acesso às atividades escolares, aos conteúdos e aos conhecimentos
necessários ao seu desempenho acadêmico e social. (NERES E CORRÊA 2015, p. 293).

O uso de sistema interativo como lousa digital e outras tecnologias são estimulantes e
auxiliam os surdos. Desta forma, as tecnologias são grandes aliadas no processo de aprendizagem
e precisam ser efetivadas. Sendo assim, o uso e conhecimentos de TA se fazem necessários no
ambiente escolar, a fim de estimular o raciocínio e o desenvolvimento intelectual de pessoas com
deficiência, que no caso dessa pesquisa são surdos.

4. METODOLOGIA

O Instituto Federal do Maranhão – IFMA, campus Zé Doca – MA foi escolhido para


pesquisa por ter alunos com Necessidades Educacionais Especiais e um Núcleo Atendimento as
Pessoas com Necessidades Específicas (NAPNE), com profissionais com formação em educação
especial, inclusive na área de surdez. A pesquisa foi exploratória, com abordagem quali-
quantitativa e procedimentos técnicos de levantamento de informações em campo mediante
questionário e observação de aulas. O questionário continha 10 (dez) perguntas semiabertas e foi
aplicado aos profissionais do Núcleo de Atendimento a Pessoas com Necessidades Específicas –
NAPNE: 01 (um) professor de Libras e Educação Especial, 01 (um) Tradutor Intérprete da Língua
Brasileira de Sinais- Libras e 08 (oito) monitores.

A coleta de dados foi realizada em duas etapas: a primeira, aplicação de questionário na


instituição e, a segunda, observação de sala de aula, em turmas que havia os surdos. O questionário
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foi aplicado no dia 04 de junho de 2019, para 06 (seis) monitores que estavam na instituição.
Depois foi encaminhada uma cópia do questionário no Google Forms para 02 (dois) monitores
ausentes, para o Tradutor Intérprete de Libras - TILs e para o professor de educação especial.

As observações ocorreram durante o período de 05 a 15 de junho de 2019, nos turnos


matutino e noturno. Durante esse período de observações, os monitores, assim como o tradutor
intérprete de Libras estavam presentes em dias alternados, traduzindo simultaneamente do
português para Libras e vice e versa. As turmas eram do 2º ano do curso de Biocombustível (nível
médio) e 1º período do curso Licenciatura em química (superior). As observações das aulas foram
importantes para relacionar os dados coletados no questionário com a realidade da sala de aula e
verificar o nível de conhecimento a respeito de tecnologias assistivas, conscientização dos
usuários e os desafios na implementação de TA.

Após a aplicação do questionário e das observações, partimos para o procedimento de


estruturação e da análise dos dados, que resultou na construção do gráfico que resume as
informações coletadas de forma qualitativa e quantitativa. O gráfico permite identificar como se
ocorre o processo de inclusão dos surdos no campus e quais tecnologias assistivas são mais
utilizadas pelos profissionais.

4.1 O USO DE TECNOLOGIAS ASSISTIVAS NO IFMA, CAMPUS ZÉ DOCA.

A informática vem sofrendo um intenso processo de transformação devido aos avanços


tecnológicos existentes em diversas áreas; uma dessas transformações é a evolução das
Tecnologias de informação e comunicação – TIC. Com a emergência de novas tecnologias, o
campo educacional também passa por mudanças, se fazendo necessário investimento em
Tecnologias Assistivas para atender à perspectiva inclusiva proposta nas políticas públicas. Essas
políticas visam fortalecer e ampliar medidas para a implementação de TA, visto que as matrículas
de alunos com deficiências, principalmente, surdos vêm aumentando nas instituições públicas a
cada dia, tornando necessária a ampliação de recursos e serviços.

O gráfico apresenta as informações coletadas no questionário de forma resumida,


mostrando apenas o quantitativo de respostas positivas e objetivas dos entrevistados a respeito dos
recursos e uso de TA no campus. O gráfico se divide em duas partes: as colunas coloridas que
representam o resultado positivo das perguntas e a legenda com as cores que representam cada
temática central das 10 perguntas do questionário.
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Gráfico 1168 – Resultado169 dos dados coletados no questionário

1. Frequência do uso de TA.


Uso de Tecnologias Assistivas , campus Zé Doca
2. Nível de acessibilidade e inclusão.
10 10 10 10 10 10 10

9 3. Nível de conhecimento sobre TA.

4. Importância do uso da TA para inclusão.

6
5. Ausência de TA inviabiliza inclusão.

5 6. TA disponíveis: Intérprete, oficinas, palestras, recursos


visuais (imagens, vídeos legendados e/ou sinalizados)
7. TA ausentes: aplicativos de tradução, jogos e quadro
interativo.
8. Maior Desafio: Falta de investimentos em TA

9. Importância de formações continuadas em TA.

10. Influência da pesquisa e a sua aplicabilidade.


Fonte: Autora.

O gráfico mostra que os entrevistados apontam como relevante o conhecimento de TA para


o processo de ensino aprendizagem de surdos e as vantagens do uso de TA, apesar disso há pouco
frequência na utilização. Quanto aos desafios a resposta dos entrevistados foi unânime em dizer
que faltam investimentos em TA e em formação de professores.

Entretanto, em relação à pergunta 2 (dois) que indagava a respeito do ambiente se


acessível e incluso. As respostas foram variadas dos 10 (dez) entrevistados: 5 (cinco) responderam
que o ambiente escolar é acessível e inclusivo; 2 (dois) afirmaram que o ambiente escolar é apenas
inclusivo; 2 (dois) disseram que é somente acessível; e 1 (um) respondeu que o ambiente não é
acessível e nem inclusivo .

Os dados da tabela 2 foram construídos a partir das respostas dos entrevistados a respeito
das Tecnologias Assistivas que estão sendo utilizadas na instituição.

TABELA 02 – Tipos de TA usadas e ausentes na instituição.


Tradutor Intérprete da Recursos visuais Quadro/ Pincel, Materiais
TA usadas na
instituição Língua Brasileira de Sinais – (imagens, vídeos impressos (textos,
TILS legendados ou sinalizados). apostilas).

TA ausentes na Aplicativos e Softwares de Quadro interativo/ lousa


Jogos
instituição tradução digital.

Fonte: Autora.

168
Gráfico 01 – Resultado do levantamento de dados no questionário aplicado aos monitores do NAPNE, professor
de Educação Especial e TILS, sobre o uso de Tecnologia Assistiva, no IFMA – campus Zé Doca.
169
Os números se referem às respostas positivas sobre o uso de TA utilizadas pelos entrevistados.
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A tabela 2 apresenta que as Tecnologias Assistivas mais usadas no IFMA, Zé Doca, são
TILS, recursos visuais e materiais impressos, apesar da ausência de aplicativos na instituição os
170
monitores utilizam seus celulares como suporte para o aplicativo Hand Talk para auxiliá-los
em relação ao vocabulário. Os entrevistados apontam que a ausência de TA como: aplicativos de
tradução, jogos e quadro interativo dificultam a qualidade da acessibilidade linguística dos surdos.

Dentre os recursos visuais (imagens, vídeos legendados ou sinalizados) e tecnológicos


(projetor e computador) usados, na maioria das vezes, pelo professor de Libras. Enquanto, os
professores das disciplinas curriculares usam com mais frequência à escrita no quadro, apostilas
impressas e slides. Observamos que durante as aulas há a presença de Tradutores e Intérpretes de
Língua de Sinais – TILS que promovem a inclusão por meio da mediação linguística de Libras,
também constatamos que o profissional é o principal recurso de acessibilidade comunicativa
dentro da instituição. Quadros (2004, pág. 25) destaca que “Quando há carência de intérpretes de
língua de sinais, a interação entre surdos e pessoas que desconhecem a língua de sinais fica
prejudicada”. Percebe-se que a ausência de um intérprete impossibilita a comunicação entre surdos
e ouvintes e vice e versa, desmotiva os surdos e inviabiliza sua participação em discussões e
atividades educacionais diversas. A admissão do profissional intérprete em sala de aula é um
serviço de TA indispensável nas instituições de ensino, mas não deve ser o único.

Todos os entrevistados concordam que TA são importantes e necessárias para o processo


de ensino aprendizagem dos surdos e que a falta de TA inviabiliza o processo de inclusão dos
surdos no contexto escolar. Para eles, muito conhecimento é perdido pelos surdos no processo de
ensino e aprendizagem por conta da língua portuguesa utilizada pelos educadores ou pelo
desconhecimento dos professores da Língua Brasileira de Sinais – Libras. Sobre isso Preti (2012,
p.24) diz ainda que,

O uso de recursos informatizados oportuniza aos alunos desenvolver habilidades que a


deficiência não permite. A aprendizagem torna-se, assim, mais prazerosa, pois a
associação metodologia-tecnologia assistivas é essencial para o desenvolvimento de
ações pedagógicas para o alcance das competências/habilidades planejadas. (PRETI
2012, p. 24)

A respeito das formações continuadas para professores na área da Educação Especial,


todos os entrevistados afirmaram que capacitações promovem a educação inclusiva e incentivam
o uso das tecnologias assistivas nas escolas, visto que o processo de transformação da escola num

170
Aplicativo de celular com personagem virtual Hugo, avatar em animação 3D, criado para traduzir do português
para a Língua Brasileira de Sinais. Fonte: http://www.handtalk.me/app
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ambiente acessível e inclusivo perpassa, necessariamente, por aquisição de conhecimentos


específicos sobre a área. Para confirmar essa afirmação, Emer (2011, p. 35) diz que:

O professor precisa estar adequado a essa nova situação. Para muitos alunos, o mundo
digital parece familiar, pois eles nasceram na Geração Net. Os docentes, por sua vez,
precisam conhecer e se adaptar a essa nova realidade. Nesse caso, a situação se agrava,
sendo indispensável à formação adequada. (EMER 2011, p.35)

Percebemos que falta de formação continuada de professores para usar tecnologias


assistivas dificulta o desempenho dos estudantes surdos, por não utilizarem os recursos de
tecnológicos necessários para fazer uma inclusão de qualidade. A TA pode ser uma grande aliada
do professor por proporcionar maior autonomia e independência aos surdos dentro e fora da sala
de aula, além de garantir a acessibilidade determinada por Lei.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As tecnologias assistivas são imprescindíveis para a inclusão escolar, por oportunizar aos
alunos surdos dignidade e respeito, melhorando assim o seu processo de aprendizado que é direito
garantido pelo Decreto 5.626/2005 e pela Lei 13.146/2015, que regulamentam a formação de
profissionais em Libras e a inclusão em todos os espaços públicos e privados.

Verificamos que na instituição ocorre a inclusão por meio de Tradutor intérprete de Libras,
recursos visuais e materiais impressos. Todos recursos de Tecnologias Assistivas que são usados
com o objetivo de eliminar barreiras linguísticas entre professores e alunos no ambiente escolar.
O profissional Tradutor Intérprete de Libras é preponderante para mediar o ensino e a
comunicação entre o professor e o surdo no IFMA, sem o TILS o surdo fica alheio às informações
ministradas, não conseguindo interagir com o professor e com os colegas, dificultando seu
aprendizado. No entanto, destacamos que ter um intérprete de Libras na escola não é o suficiente,
são necessários outros recursos para promover a acessibilidade como materiais didáticos e
paradidáticos em Libras, vídeos legendados, entre outros.

Percebemos que o uso de Tecnologias Assistivas na instituição é tímido, pois não há


utilização de aplicativos de tradução, softwares para acessibilidade em Libras, quadro interativo
ou lousa digital. Ressaltamos que, segundo o levantamento dos dados da pesquisa, o principal
desafio na instituição para a implementação da inclusão de pessoas surdas é a falta de investimento
em recursos de Tecnologias Assistivas e formação de professores. A falta de investimentos nessas
áreas mostra que ainda falta uma política educacional inclusiva mais produtiva e eficaz.
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A informática cada vez mais faz parte do nosso cotidiano por vivermos numa constante
transformação e evolução tecnológica. Sendo assim, os profissionais da educação precisam
acompanhar o ritmo tecnológico, considerando que TA pode ser uma grande aliada aos estudos,
conferindo maior independência e autonomia aos estudantes, principalmente, as pessoas com
deficiência, como os surdos. Um dos caminhos na execução dessa tarefa é a consolidação de
políticas públicas que visem mais recursos e formação de professores em inclusão e acessibilidade
para o uso de recursos tecnológicos assistivos para alunos e professores. Os recursos vão
oportunizar mais autonomia de conhecimento e aprendizado aos professores e alunos, porém se
não houver capacitação dos docentes para usar os recursos tecnológicos, o investimento não
conseguirá atender com qualidade os alunos com deficiência. Os profissionais somente poderão
utilizar melhor as tecnologias se souberem manusear os equipamentos e souberem suas
finalidades. Assim, poderão potencializar suas práticas pedagógicas e o aprendizado do surdo.

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Walter Omar; GONDRA, José. Foucault 80 Anos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. P. 227246.

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sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de
2000. Diário Oficial da União, Brasília, 22 de dezembro de 2005.

________. Decreto nº 3298. Regulamenta Lei nº 7.853 de 24/10/1989, dispõe sobre


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________. Lei n. 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da


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________. Lei Nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
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Página 912 de 2230

USO DO SOLO E RECURSOS HÍDRICOS NO MÉDIO CURSO DO RIO MEARIM,


PEDREIRAS - MARANHÃO

SOIL USE AND WATER RESOURCES IN THE MIDDLE MEARIM COURSE,


PEDREIRAS – MARANHÃO

Vicente Camilo de Lima, graduando em geografia, UFMA


Marcelino Silva Farias Filho (orientador), Doutor em solos (UNESP), UFMA
Eixo temático 1: Arte, Tecnologia e Educação

RESUMO: Ao longo de décadas o peixe compunha a principal fonte de sobrevivência em


comunidades ribeirinhas. A diversidade de peixes de um rio, é o indicador de sua disponibilidade
e sua preservação é necessária. O ambiente de estudo é o rio Mearim mais precisamente na cidade
de Pedreiras, um dos principais rios do estado do Maranhão e o principal da sua bacia hidrográfica
que também leva o seu nome. Delimitou-se como área de estudo dentro do Município de Pedreiras,
no Médio Curso do Mearim fazendo o uso de GPS. O levantamento de dados foi precedido de
entrevistas informais com antigos pescadores, incursões à campo para fins de registro fotográfico
terrestre e aéreo, além do levantamento das condições ambientais locais como o uso do solo e da
mata ciliar. Estudos com essa finalidade são de grande importância, uma vez que tais
levantamentos fornecem subsídios para a elaboração de políticas públicas ambientais e de
planejamento do uso do solo bem como da preservação da ictiofauna dos ambientes aquáticos.
Palavras-chave: Mata Ciliar, Mearim, Piscosidade, Uso do Solo.

ABSTRACT: For decades, fish was the main source of survival in riverside communities. The
diversity of fish in a river is an indicator of their availability and their preservation is necessary.
The study environment is the Mearim River more precisely in the city of Pedreiras, one of the
main rivers in the state of Maranhão and the main river in its hydrographic basin that also bears
its name. It was defined as a study area within the Municipality of Pedreiras, in the Middle Course
of Mearim using GPS. The data collection was preceded by informal interviews with former
fishermen, incursions into the field for the purpose of land and aerial photographic recording, in
addition to the survey of local environmental conditions such as the use of soil and riparian forest.
Studies with this purpose are of great importance, since such surveys provide subsidies for the
elaboration of public environmental policies and planning of land use as well as the preservation
of ichthyofauna in aquatic environments.
Keywords: Riparian Forest, Mearim River, Pisco, Land Use.

INTRODUÇÃO
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O crescimento vertiginoso da população demanda acentuado aumento na produção de


alimentos, contudo, novas áreas de produção são buscadas e consequentemente, a pressão em cima
dos recursos naturais torna-se evidente (SANTOS, 2004). Partindo deste princípio há a
necessidade da realização de estudos voltados ao uso e ocupação do solo, sobretudo em bacias
hidrográficas. Estas são consideradas a menor unidade de planejamento ambiental, segundo
Albuquerque (2012).

Os estudos voltados à compreensão das alterações relativas quanto ao uso do solo e sua
cobertura do solo são bastante relevantes para a compreensão de sua dinâmica independentemente
da escala, bem como seus impactos nos mais diversos âmbitos como por exemplo o ambiental,
econômico, social, etc. (ANDRADE; RIBEIRO; LIMA, 2015); (COLDITZ et al. (2012).

A ausência de estudos voltados à compreensão da dinâmica do solo implica na sua


utilização sem os devidos cuidados e consequentemente inúmeros problemas são originados,
dentre eles, destacam-se o assoreamento, onde grandes quantidades de solo são deslocadas em
direção aos cursos d’água, alterando a sua qualidade, reduzindo a sua velocidade de escoamento
e disponibilidade causando grandes danos na fauna e flora (VANZELA; HERNANDEZ;
FRANCO, 2009).

Na região estudada, a pecuária ocupa imensas extensões ao longo do Mearim, tal fato gera
danos silenciosos ao longo de toda a sua bacia, canais de abastecimento são assoreados por
ausência de vegetação ciliar em seu entorno, aliado a tal prejuízo, menciona-se que inúmeras
nascentes não mais existem, ocasionando a passos largos o que não se deseja ver, o assoreamento
e por fim, a morte do Mearim.

Lentamente, o Mearim vem perdendo recarga de suas águas por seus contribuintes, ao
andar em meio às pastagens (em grande parte degradadas) próximas ao rio, se vê que muitos canais
não são mais profundos ou simplesmente encontram-se bastante rasos em função do deslocamento
de solos vindo das partes superiores.

A agricultura de vazante, bastante praticada é outro fator, agricultores familiares


aproveitam as terras fertilizadas pelas águas do rio durante as cheias para realizar plantio de
leguminosas como quiabo e maxixe, vinagreira, melancia, etc.

O estreitamento da vegetação ciliar ao longo do rio é perceptível por terra ao penetrar áreas
mais próximas de suas margens, percebe-se que, a faixa existente não apresenta a largura ideal
conforme preconiza a legislação vigente, fato que resulta noutro fator agravante, a redução no
número dos pontos de desova, fato percebido durante as entrevistas informais realizadas nas
visitações em campo.
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Contudo, tal decréscimo nestes pontos implica diretamente na reprodução dos espécimes,
bem como na variedade e oferta, cada vez menor. Como exemplo, cita-se o surubim
(Pseudoplatystoma corruscans) espécie bastante ameaçada. Na década de 1990, era comum ver
pescadores com exemplares de surubim maiores que 1,00 metro, atualmente, dificilmente
exemplares com tamanho superior a 50 centímetros.

Outras espécies de menor valor comercial, porém com grande importância social é a
branquinha, a mesma anda comprometida em função de não acompanhar a sua procura, pois
pescadores utilizam redes com malha cada vez menor, capturando os menores espécimes.

Deste modo, a temática aqui apresentada se propõem a discutir os cenários de alterações


do meio físico no Médio Curso do rio Mearim a partir da análise do uso e ocupação da área bem
como suas implicações na piscosidade do rio supracitado.

2. MATERIAIS E MÉTODOS
2.1 Caracterização do município de Pedreiras

A pesquisa foi realizada no Rio Mearim, no município de Pedreiras, cidade-polo da Região


de Planejamento do Médio Mearim. Sua área territorial, segundo IBGE (2018) é de 261,723 km².
Seus limites são: ao Norte com São Luis Gonzaga do Maranhão; ao Sul com Joselândia e São José
dos Basílios; a Leste com Lima Campos e Santo Antônio dos Lopes e a Oeste Esperantinópolis,
Poção de Pedras, Bernardo do Mearim e Trizidela do Vale. Segundo Correia Filho (2011), o
Município tem sua área encravada na Mesorregião Centro Maranhense, Microrregião do Médio
Mearim. A densidade demográfica da área é de 137 habitantes/km² segundo dados do IBGE
(2010).

Os trabalhos de pesquisa estão associados ao Grupo de Estudos em Pedologia e Edafologia


– GEPEPE, da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, Campus Bacanga, que vem
desenvolvendo ao longo de sua trajetória trabalhos voltados ao estudo de solos no estado do
Maranhão.
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Figura
01: Limites do Município de Pedreiras. Fonte: Dados da pesquisa (2019).

O Município em questão tem seu território inserido na Bacia Hidrográfica do rio Mearim,
a maior do estado do Maranhão, ocupando cerca de 29,84% da área do estado, com extensão de
99.058 quilômetros quadrados, abrangendo 83 municípios cuja população totaliza 1.681.307
habitantes, 25,6% da população do Maranhão, a sede municipal, está alocada nas coordenadas
UTM (Universal Transversa de Mercator) E: 544702.47 e N: 9494410.52, MC: 45, conforme
IBGE (2010).

O principal rio desta bacia é o Mearim, um dos mais importantes do estado do Maranhão.
O rio Mearim possui 930 (novecentos e trinta) quilômetros de extensão, nascendo na serra da
Menina, entre os municípios de Formosa da Serra Negra, Fortaleza dos Nogueiras e São Pedro
dos Crentes a uma altura aproximada de 400 a 500 metros (CODEVASF, 2019).

Geomorfologicamente o Mearim é dividido em três cursos: Alto Mearim, que vai de suas
cabeceiras até a barra do rio das Flores possuindo 400 (quatrocentos) quilômetros de extensão. O
Médio Mearim inicia-se a partir da barra do rio das Flores até Seco das Almas, localidade situada
após a cidade de Bacabal, compreendendo um trecho cuja extensão é de 180 (cento e oitenta)
quilômetros. Por fim, o Baixo Mearim, que se inicia a partir do Seco das Almas até a Baía de São
Marcos, num trecho que compreende 170 (Cento e setenta) quilômetros (CODEVASF, 2019).

Segundo GUERRA (1955, p.450) apud Feitosa e Almeida (2002, pág. 35) que, utilizando-
se da classificação climática de Köppen (1948), aponta em seu trabalho Tipos de Clima do
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Nordeste a existência de somente um tipo de clima no Maranhão que é Aw, acolhendo a existência
de uma variação para o subtipo Aw’.

2.2 Procedimentos Metodológicos

Inicialmente foi realizada a delimitação da área da pesquisa utilizando o software Google


Earth® e a base cartográfica do estado do Maranhão (IBGE, 2010), durante as incursões em campo
foi realizado o levantamento de determinados pontos fazendo o uso do GPS de navegação da
marca Garmin® modelo 64sc.

Após a coleta dos pontos de interesse, foram criados arquivos do tipo polígono
georreferenciados no formato shapefile utilizando o software Quantum Gis (Qgis) contendo as
referências necessárias para a construção de uma base cartográfica da área estudada, objetivando
a confecção dos mapas de uso do solo.

A pesquisa utilizou a metodologia sugerida por Martins e Martins (2008) utilizando de


pesquisa in loco, para a obtenção dos dados e levantamento das possíveis causas que ocasionaram
o problema abordado, bem como o grau de antropização da mesma bem como a sua contribuição
para a problemática, para tanto, buscou-se a utilização de um Checklist.

Durante a pesquisa de campo, buscou-se não intimidar os pescadores entrevistados


deixando-os à vontade para expressar a sua percepção e conhecimento de causa, para isso, utilizou-
se um aparelho Iphone SE da marca Apple e o app gratuito Gravador +.

A fotografia é parte imprescindível para a realização dos trabalhos de campo, sobretudo os


que envolvem o meio físico, bem como fauna e flora, durante esta pesquisa, os registros
fotográficos foram concretizados utilizando também o Iphone SE. Para o imageamento aéreo foi
utilizado um drone DJI Spark ®, a aeronave é equipada com gimbal de dois eixos e câmera com
sensor CMOS 1/2.3" e 12 megapixels efetivos. Devido à sua portabilidade o equipamento permite
a disposição de menor espaço junto aos itens utilizados em campo.

3.HISTÓRICO DE FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO E ECONOMIA PEDREIRENSE

Datada do ano de 1835, o desbravamento e ocupação do centro do estado do Maranhão


(Centro Geodésico do Maranhão) ocorreu duzentos anos após a vinda dos franceses à Ilha de
Upaon-Açu, no ano de 1612. Através da ajuda de indígenas locais, o desbravador Melo Uchoa
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consegue alcançar o então território do Alto Mearim, hoje Médio Mearim (FERNANDES, 2012),
local onde estava situada as terras pedreirenses, um marco que propiciou a ocupação de uma região
que há séculos encontrava-se isolada. Partindo do princípio de que a localidade é dotada de
riquezas naturais como terras férteis e águas a atenção dos aventureiros em busca de tais recursos
para trabalhar foi despertada.

Segundo Maranhão (1987):

“A primeira tentativa de desbravamento de Pedreiras coube a Manoel


Rodrigues de Melo Uchoa que, em 1845, depois de conhecer a terra, ligou
a por uma picada, com ajuda dos índios Guajajaras e mateiros, à povoação
de Barra do Corda, onde fixaram residência”.
Maranhão (1987, pág. 19).

Maranhão (1987) aponta a existência de diversas fazendas no entorno da região de


Pedreiras, as quais eram alimentadas pela mão de obra escrava, sendo destacadas por sua vultuosa
produção de arroz, feijão, algodão e café, as fazendas de Santa Amália (hoje Lima Campos),
Recursos, São Francisco, Bom Jesus, São Joaquim, Trindade, Saudades e Matões. Toda essa
produção era escoada das fazendas até o Porto Grande por meio de carros de boi e de lá até a
capital da Província eram utilizados botes e canoas através do rio Mearim.

Pode-se também, atribuir em parte a formação do território pedreirense à seca ocorrida


entre os anos de 1877 a 1879, conhecida por a maldita dos três setes, no estado do Ceará,
obrigando centenas de famílias a buscar guarida em terras bem distantes das suas, um desses
territórios foi o estado do Maranhão, mais precisamente no que anos depois viria a ser a povoação
de Pedreiras (FERREIRA, 2013).

De acordo com Lago (1976), “O ano de 1877 foi de grande importância para Pedreiras,
pois, àquele tempo ali chegaram mais de cem famílias nordestinas perseguidas pela seca. ”. Estes,
tinham sua força braçal “aproveitada” nas lavouras de arroz e algodão, culturas em franca
expansão e que ditavam a economia na época.

Entre as décadas de 1940 e 1950 se deu a época de ouro do desenvolvimento de Pedreiras,


fato este que resultou num aumento extraordinário da população entre as referidas décadas
mencionadas, conforme aponta Fernandes (2012):

[...] a população, em 10 anos apenas, saltou de 59.745 habitantes, conforme


o IBGE, para uma população de 97.787 habitantes em 1960. Esse
fenômeno só pode ser explicado pelo desenvolvimento agrícola registrado
no Município. Uma prova dessa realidade está nos números apresentados
na população rural, correspondente a mais de 80%, ou seja, 82.251
habitantes, contra, apenas, 14.536 habitantes na zona urbana.
Fernandes (2012, pág. 181).
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EMBRAPA (2013), menciona que nos anos de 1970, o Maranhão atingiu a primeira
colocação na produção nacional de arroz em terras altas e atingiu a segunda colocação na produção
total de arroz, cujas áreas produtivas ocupavam 20% das áreas de cultivo no país e participando
com 18% da produção nacional.

Nesse contexto, o Município de Pedreiras contribuía fortemente para a manutenção destes


percentuais, porém, coma inserção do arroz produzido na região sul que chegava ao estado por
um valor mais barato do que o aqui produzido, o produto local foi aos poucos sendo deixado de
ser produzido em larga escala como outrora. Ao longo dos anos as áreas produtivas tradicionais
situadas nos vales dos rios foram sendo substituídas pela pecuária bovina, o que ocasionou uma
considerável redução na área plantada e consequentemente na produção do cereal.

4. DIVERSIDADE DE USO DO SOLO

Ao longo das incursões a campo, pode ser perceber a diversidade no tocante ao uso do
solo, onde logo notou-se a ausência de instruções técnicas ou de quaisquer conhecimentos
voltados à preservação/conservação do solo e, por conseguinte dos recursos hídricos, uma vez que
a área abordada é margeada por um dos mais importantes rios do estado do Maranhão.

Tratando-se de zona rural, o uso do solo é bastante diversificado, dos quais observou-se
criação de porcos em chiqueiros construídos à base de alvenaria, porém bem próximos do rio,
balneários, pecuária, culturas de ciclo curto (vazantes), roça de toco ainda bastante comum e o
próprio povoamento humano que traz consigo uma vasta gama de problemas, dentre eles o
descarte de água servida e dejetos humanos diretamente no rio

Figuras 02 e 03: Cultivo temporário às margens do rio Mearim. Fonte: Dados da pesquisa, 2019.
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Conforme citado anteriormente, a roça de toco que ainda é largamente utilizada sobretudo
em todo o estado e não diferentemente das demais regiões do estado, na localidade estudada tal
prática ao longo dos anos foi a grande responsável pelo desmatamento senão por grande parte
destes. A prática consiste na derrubada da vegetação e posteriormente sua queima ou coivara,
como resultado obtém-se as cinzas, que são utilizadas (HADLICH, 2002) como adubo na correção
da acidez do solo. Este modelo agrícola trazido pelos colonizadores e que diversos autores
consideram como sendo oriundo da cultura indígena, era a derrubada de mata com posterior
queimada ou coivara, usando a cinza resultante como adubo (RENAUX, 1995 apud HADLICH,
2002).

Figura 04: Roça de toco próximo da mata ciliar. Figura 05: Roça de toco queimada e encoivarada.
Fonte: Dados da pesquisa, 2020. Fonte: Dados da pesquisa, 2020.

A região de Pedreiras é bastante conhecida por sua vultuosa produção de banana, segundo
IBGE (2015), foram produzidas 7.135 toneladas do fruto, em 493 hectares, com rendimento médio
de 14.473 kg/hectares, elevando o Município à primeira posição segundo o ranking da Instituição,
tal fato justifica-se em função da qualidade dos solos e das imensas áreas destinadas para a cultura.

Com o advento da melhoria econômica, o número de propriedades ao longo das margens


do rio cresceu, ao longo das visitações foi possível tal percepção, muitas delas pequenas chácaras,
outras pequenas propriedades que exploram as terras para sobrevivência com tanques de
piscicultura, plantios diversos, etc.

É sabido que as grandes civilizações tiveram sua origem próximo aos cursos d’água, como
por exemplo a Mesopotâmia, e, partindo deste princípio diversas são as comunidades existentes
ao longo das margens do rio Mearim, dentre elas o Povoado Pau D’árco.

Conforme a figura 06, vê-se diversas residências encravadas na área de várzea do rio,
ficando suscetíveis às inundações nos períodos de grandes cheias, conforme ocorreu no ano de
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2009, várias residências do Povoado São Raimundo (vizinho a este) sofreram como o aumento do
nível do rio e, segundo relatos, houveram dois desabamentos de residências.

Figura 06: Vista aérea do Povoado Pau D’Árco. Fonte: Dados da pesquisa, 2020.

Apesar de ribeirinhas muitas comunidades não sobrevivem somente da pesca, nas mesmas
há diversas formas de sobrevivência como pequenas criações de gado, mercearias, bares, oficinas
de manutenção de motocicletas e outra prática bastante antiga, denominada agricultura de vazante.

Segundo EMBRAPA (2004), as vazantes: “São as faixas de terras situadas às margens dos
açudes, barragens, lagoas e leitos dos rios, que são cobertas pelas águas durante o período chuvoso
e descobertas durante a época seca”.

Nesta prática, são desenvolvidas culturas como milho, vinagreira, quiabo, maxixe,
melancia, pepino dentre outras, onde parte da produção é comercializada entre os produtores e os
feirantes no Mercado Municipal de Pedreiras além da Feira da Agricultura Familiar promovida
pela Prefeitura Municipal de Pedreiras, em apoio ao desenvolvimento econômico.

Cabe lembrar que, conforme apresenta a figura 07, vê-se um estreitamento da mata ciliar
que margeia o rio, onde, esta mostra-se estreita se comparada à área descoberta, bem como canais
de drenagem (figura 08) que desaguam no rio sem qualquer cobertura vegetal, contribuindo para
o aumento da carga de sedimentos depositada no leito do rio, onde, de acordo com Addiscott
(1997) apud Santos e Sparovek (2011), “Quando localizadas em áreas agrícolas, previnem ou
minimizam a movimentação de sedimentos gerados durante o processo erosivo.”
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Figuras 07: Vazante próximo do rio Mearim. Fonte: Dados da pesquisa, 2020.

Figura 08: Canal de drenagem com ausência de mata ciliar em seu entorno. Fonte: Dados da pesquisa, 2020.
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Figura 09: Exemplificação de uso do solo observado na área de estudo. Dados da Pesquisa, 2019.

A pecuária é bastante presente na região, porém notou-se um certo distanciamento com


relação à faixa de mata ciliar, porém, mesmo com tal distanciamento a cultura tem sua
contribuição quanto ao assoreamento. Por ser praticada de modo extensivo, tal modalidade exige
grandes áreas para a formação de pastagens e em prol do lucro não se respeitam nascentes ou
canais de drenagem.

Segundo relatos de antigos moradores, a várias décadas atrás, antigos lagos tiveram se
barramento aberto, para que fosse aproveitado a sua área com pastagens adaptadas às áreas
alagadiças. Da mesma forma, o desmatamento próximo aos canais de drenagem colabora aos
poucos para o assoreamento do Mearim.
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Figuras 10 e 11: Pecuária próximo a área de estudo e pastagem de capim Mombaça. Dados da pesquisa 2020.

Por representar sinônimo de prosperidade, a pecuária ao longo dos anos veio de encontro
à substituição da orizicultura, os antigos campos de arroz foram deixados de lado e cederam seu
lugar às pastagens africanas como Mombaça (Megathyrsus maximus), braquiária (Brachiaria
brizantha Satrf), dentre outros. Mesmo se tratando de pequenas propriedades a pecuária bovina
tem o seu espaço garantido e divide o ambiente com a ovinocultura, suinocultura e avicultura,
mesmo que em menor escala.

5. DIVERSIDADE DE USO DOS RECURSOS HÍDRICOS

A importância deste rio para o estado é tamanha que ao longo de seu curso suas águas são
drenadas para a dessedentação de milhares de maranhenses, abastecer incontáveis rebanhos
bovinos e atende às demandas de projetos de irrigação além de servir como fonte de alimento para
todas as cidades ou pelo menos grande parte das cidades por ele banhadas.

Mais recentemente, um ousado projeto de utilização das águas do Mearim foi


implementado. Localizado no Povoado Pau D’Árco, zona rural do município de Pedreiras, a
captação para Termelétrica Parnaíba localizada no município de Santo Antônio dos Lopes, onde
por meio de tubulações subterrâneas são bombeados milhares de m³ (metros cúbicos) diariamente
para o resfriamento de suas turbinas. Tal feito pode ser realizado após a prospecção de vultuosos
poços de gás natural descobertos nos últimos 15 (quinze) anos na Bacia do rio Mearim,
principalmente em Lima Campos, Trizidela do Vale e Pedreiras).
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Figura 12: Usina de bombeamento da Termelétrica Parnaíba. Fonte: Dados da Pesquisa, 2020.

Dotado de rica fauna, o rio Mearim sofre com a grande pressão em seus estoques
pesqueiros, onde com base em relatos de pescadores, observou-se que o volume de pescado já não
é mais o mesmo de outrora. Era comum chegar nas comunidades ou no cais próximo à rodoviária
municipal e se deparar com surubins de cerca de 1 (hum) metro de comprimento ou pouco mais
que isso, atualmente, algo raro de se encontrar nas águas pardacentas deste rio.

Segundo os pescadores, os possíveis locais de reprodução dos peixes ao longo do rio foram
alterados ou não existem mais, o que impede a sua reprodução. É cada vez mais comum observar
a menor oferta dos peixes de maior valor comercial oriundos do rio Mearim.

Ao visitar o Mercado do Peixe, notou-se uma presença maio do surubim


(Pseudoplatystoma fasciatum) criado em cativeiro, cujo sabor não se compara ao nativo, muito
em função da sua alimentação, que é realizada utilizando ração industrializada. Outras espécies
nativas como o mandubé (Ageneiosus brevifilis), o bico de pato (Sorubim lima) e o lírio (Seriola
dumerili) bastante procurado e dotado de grande valor comercial já estão praticamente extintos.

A ausência de consciência ambiental por parte dos pescadores exerce uma grande pressão
sobre os estoques de pescado do rio. Cada vez, mais estes utilizam redes de pesca e tarrafas com
malhas menores capturando espécimes fora do tamanho ideal para consumo. Mesmo no período
de defeso “Piracema” a captura não cessa. Ao chegar no principal ponto de venda do Município
(Mercado do Peixe) verifica-se abertamente a venda livre dos pescados sobre os balcões.
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Figuras 13 e 14: Pescado com tamanho irregular à venda no Mercado do Peixe em Pedreiras.

Outro aspecto degradante observado na área de pesquisa é a extração mineral de areia,


realizada no leito do rio Mearim. A extração ocorre da seguinte forma: os “tiradores de areia” vão
até o fundo do rio com latas de metal, onde fazem o ajuntamento do material retornando à
superfície e transferindo-o para canoas, em seguida, as canoas são levadas até as margens do rio,
onde são descarregadas e o material comercializado. Há quem defenda esta modalidade de
extração, pois a mesma não “agride” o leito do rio como as dragas, pois a partir do momento em
que a areia começa a vir escura os trabalhadores mudam o ponto de extração.
A areia lavada possui grande utilidade e na construção civil, segundo alguns profissionais
da área é a melhor para se trabalhar, boa para se erguer paredes ou fazer rebocos. Tal fato se deve
à sua granulometria, que é intermediária, nem fina como a de praia, nem grossa como a dos
barrancos.
Há tempos atrás, retirava-se areia dos barrancos do Mearim para venda, porém esta não
era muito bem aceita. A extração é comprometida no período chuvoso, quando o nível do rio
aumenta dificultando assim a sua retirada, em função disso, alguns vendedores buscam estocar
para suprir o mercado e aumentar seus lucros devido à pouca oferta.
Além desta modalidade há a realizada por dragas que extraem a areia por meio de motores
acoplados a bombas de sucção, onde, estes equipamentos trabalham diariamente extraindo
toneladas de areia do Mearim gerando diversos impactos negativos ao leito do rio.
Segundo o trabalho elaborado por Nogueira (2016, pág. 30-31), a atividade de extração
mineral em leito de rios resulta em diversos aspectos negativos, buscou-se comparar e pontuar tais
pontos vistos do autor com os mais adequados à realidade local, conforme descritos abaixo:

 Estresse da fauna aquática, acarretado pela geração de turbulência no rio durante


o processo de extração do mineral;
 Possibilidade de interferência na velocidade e direção do curso d’água, tendo em
vista a eliminação dos bancos de sedimentos presentes nos leitos dos rios;
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 Aumento da concentração de partículas em suspensão (turbidez) no curso d’água,


devido ao revolvimento e desagregação do material mineral no curso d’água, durante o
processo de extração de areia;
 Depreciação da qualidade do ar, devido ao lançamento de gases provenientes dos
motores e de partículas sólidas, em virtude da utilização de maquinarias em diferentes
operações;
 Possibilidade de interferência na velocidade e direção do curso d’água, tendo em
vista a eliminação dos bancos de sedimentos presentes nos leitos dos rios.
Nogueira (2016, pág. 30-31).

Assim como na zona urbana, a problemática da ausência de saneamento básico é outro


atenuante de agressão ao Mearim, não se sabe ao certo a quantidade de residências que possuem
fossa séptica e das residências que a possuem o estado de conservação das mesmas, que implica
diretamente no lançamento dos efluentes diretamente no rio.
Cabe lembrar que muitos municípios do estado do Maranhão não possuem o Plano
Municipal de Saneamento Básico ou simplesmente PMSB, porém, desde 2014 por meio de um
acordo entre a Universidade Federal Fluminense (UFF) e Fundação Nacional de Saúde
(FUNASA) a realidade vem sendo mudada e estes municípios serão contemplados gratuitamente
com seu plano, podendo por meio dele acessar recursos para realização de obras voltadas às
melhorias sanitárias.

As águas servidas, como as utilizadas nas pias de cozinha e águas oriundas de máquinas
de lavar roupas, vem carregadas de diferentes poluentes. Mesmo diante da modernidade, fatos
culturais são percebidos, ao longo de todo o curso do rio Mearim, a lavagem de roupas diretamente
nas águas deste ainda é uma prática bastante comum.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme observado no decorrer do desenvolvimento desta pesquisa, a região do Mearim,


que outrora foi vista como o Eldorado Maranhense, por ser sinônimo de riqueza, prosperidade e
esplendor natural veio a ser esquecida, de modo que não se vê mais projetos voltados ao seu
reerguimento, tampouco estudos voltados a compreender o seu processo de ocupação e uso de
seus solos, seus recursos hídricos, etc.
Percebeu-se ao longo dos dias, a complexidade e dinâmica da região, sua produtividade,
seus recursos pesqueiros e chegou-se a uma conclusão: os investimentos naquela região não são
em vão. Por meio da sua variabilidade de solos e águas ainda há a alta probabilidade de se
desenvolver economicamente, socialmente e sobretudo ambientalmente. Os estudos geográficos
sobre essa temática, mesmo que ainda tímidos já despontam. Este por exemplo, é um dos quais
serão continuados e resultados virão.
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A fertilidade das águas do Mearim é um capítulo à parte. De lá já saíram para outros estados
o suculento surubim, peixe de alto valor comercial e até hoje bastante procurado, porém, em
escassez.
Registra-se aqui a preocupação com futuro do rio nas próximas décadas, pelo risco de sua
morte em função dos maus tratos por ele sofridos e o lado estático do poder público com relação
ao mesmo. É necessário lembrar a importância do Mearim tem para o estado, o mesmo doa suas
águas para dessedentar milhares de maranhenses, animais e manter uma fauna e ictiofauna
invejável, além, de mais recentemente, ceder água para um dos maiores empreendimentos
voltados à geração de energia do País, a Usina Termelétrica Parnaíba, que faz o aproveitamento
da produção de gás do Mearim, sobretudo das cidades de Lima Campos, Pedreiras e Trizidela do
Vale.
Mas os cuidados com o rio iniciam-se pelo manejo dos solos que o margeiam e de sua mata
ciliar, muito se ouve falar dela e de sua importância crucial no equilíbrio ecológico e funcional do
rio, porém, esquece-se dos reais cuidados e atenção não dados à mesma e de sua importância para
a manutenção e o desenvolvimento da ictiofauna local.
É praticamente impossível pensar na sobrevivência do rio sem pensar nos solos em seu
redor, a qualidade dos mesmos tem de ser monitorada, evitando que muitos problemas não sejam
deslocados para os cursos d’água e consequentemente para o Mearim e, em seguida, para a Baía
de São Marcos.
É de suma importância lembrar a importância lembrar que o rio não dispõe da mesma
quantidade de recursos como outrora, aos poucos nota-se que o pescado tem diminuído e que a
sua oferta também, obrigando muitas vezes os pescadores a não respeitar o período de defeso e
consequentemente acarretando no desequilíbrio ecológico local.

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Pedreiras, História e Vida de Pedreiras. São Luís, 1987. 97 págs.
Página 930 de 2230
Página 931 de 2230

Os conteúdos dos Trabalhos completos do III SIICS são de inteira responsabilidade dos autores.

Eixo 2: Gênero,
Literatura e Filosofia
Organizadores do Eixo: Prof. Dr. Luciano da Silva
Façanha e Profa. Dra. Zilmara de Jesus Viana de
Carvalho
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“MISTÉRIO” OU NATURALIZAÇÃO DA HETERONORMATIVIDADE EM UMA


SOMBRA NA PAREDE DE JOSUÉ MONTELLO: APRISIONAMENTO DE CORPOS E
DE DESEJOS ABJETOS

“MYSTERY” OR NATURALIZATION OF HETERONORMATIVITY IN A SHADOW


ON THE WALL OF JOSUÉ MONTELLO: BETWEEN BODIES AND ABJECT
DESIRES

Nilvanete Gomes de Lima


Doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Mestra em Sociologia Política pela Universidade
Federal de São Carlos – UFSCar. Professora de Sociologia da Carreira de Magistério do Ensino
Básico, Técnico e Tecnológico no Instituto Federal de Educação e Tecnologia do Maranhão –
IFMA

Eixo temático 2 – Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: O corpo sexuado não é “natural”. Gênero seria o resultado de tecnologias que
produzem corpos-sexuais. Porém, há corpos que escapam ao processo de produção dos gêneros
inteligíveis e desobedecem às normas de gênero, mostrando que não somos predestinados a
cumprir aos desejos das estruturas corpóreas e que há possibilidades de transformação dessas
normas. Em uma perspectiva queer, os julgamentos dos comportamentos ditos “anormais”
estariam relacionados à abjeção. Discursivamente, a abjeção refere-se a corpos cujas vidas não
são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante. Assim, estudei
o romance de Montello, Uma sombra na parede, que apresenta uma história de amor entre duas
mulheres, misturando ficção, memória e história. O olhar masculino marca a narrativa,
naturalizando as relações heterossexuais e vendo como “anormal” o amor entre pessoas do
mesmo sexo. Dessa forma, estudo esse enredo, “dramático e trágico” como “criação e
testemunho” para relatar a naturalização da heteronormatividade e as cenas vivas da dinâmica
da abjeção, do “entre dois”, do “ambíguo”. Nesse sentido, a literatura pode ser tomada como
um ritual, na medida em que, tendo ocupado o lugar do sagrado veste-se com o poder do horror
para, simultaneamente, resistir e desvelar o abjeto.
Palavras-chave: Abjeção. Heteronormatividade. Literatura. Estudos queer.

Abstract: The sexed body is not "natural". Gender would be the result of technologies that
produce sexual bodies. However, there are bodies that escape the production process of
intelligible genres and disobey gender norms, showing that we are not predestined to fulfill the
desires of corporeal structures and that there are possibilities for transforming these norms. In
a queer perspective, the judgments of the so-called “abnormal” behaviors are related to
abjection. Discursively, abjection refers to bodies whose lives are not considered lives and
whose materiality is understood to be unimportant. So, I studied Montello's novel, A Shadow
on the Wall, which presents a love story between two women, mixing fiction, memory and
history. The male gaze marks the narrative, naturalizing heterosexual relationships and seeing
same-sex love as “abnormal”. Thus, I study this plot, “dramatic and tragic” as “creation and
testimony” to report the naturalization of heteronormativity and the live scenes of the dynamics
of abjection, of “between-two”, of “ambiguous”. In this sense, literature can be taken as a ritual,
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insofar as, having taken the place of the sacred, one dresses with the power of horror to
simultaneously resist and unveil the abject.
Keywords: Abjection. Heteronormativity. Literature. Queer studies.

A título de introdução...

Josué de Sousa Montello nasceu em São Luís, Maranhão, em 21 de agosto de 1917,


onde passou sua infância e juventude e, faleceu em 15 de março de 2006, aos 88 anos no Rio
de Janeiro, cidade em que vivia desde dezembro de 1936. Foi ocupante da cadeira 29 da
Academia Brasileira de Letras, eleito em 04 de novembro de 1954, jornalista, professor,
romancista, cronista, ensaísta, historiador, orador, teatrólogo e memorialista. Ao longo dos seus
oitenta e oito anos de vida produziu 160 títulos em vários gêneros, entre eles: romances,
ensaios, crônicas, história, história literária, discursos, antologias, educação, novelas, teatro,
biblioteconomia, literatura infantil e juvenil, memórias, prefácios, edições para cegos e cinema.
Embora tenha se dedicado mais intensamente à produção de romances. Dentre estes, os mais
conhecidos são Cais da Sagração (1971), Os tambores de São Luís (1976) e Noite sobre
Alcântara (1978). Redigiu, também, de 1952 a 1995, um diário pessoal, publicado em seis
volumes: diário da manhã, diário da tarde, diário do entardecer, diário da noite iluminada, diário
de minhas vigílias e diário da madrugada. Em 1998, a Editora Nova Aguilar reuniu essas
publicações em dois volumes em uma obra intitulada Diário Completo.
Apesar de sua produção romanesca ser extensa, e de se reconhecer em seus escritos para
além de uma “saga” uma verdadeira “epopeia maranhense”171, me172 interessa aqui Uma
sombra na parede, um romance de menor visibilidade, publicado em 1995, que apresenta uma
história de amor entre duas mulheres, misturando ficção, memória e história. Apesar de possuir
descrições saudosas da cidade não chega a se constituir em uma epopeia. Segundo Telenia
Hill173 (2007, p. [?]), a crítica define este romance, juntamente com A viagem sem regresso

171
Agda Adriana Zanela, ao escrever sua tese de doutorado sobre A epopéia [sic] maranhense de Josué Montello:
desvendando a poética montelliana em quatro romances, argumenta que embora alguns estudiosos considerem o
conjunto da obra de Montello como uma saga, é preciso observar que “[...] apesar de os romances tratarem dos
vínculos familiares, da herança e hereditariedade, não se pode considerar o conjunto como uma saga. Aqui, como na
epopeia, embora a disposição mental da saga esteja presente, o que o autor quer resgatar é a noção de identidade de
um povo que habita o mesmo local e compartilha da mesma herança cultural e histórica, mas que não pertence
necessariamente à mesma família (ZANELA, 2009, p. 37).
172
Reconheço que há normas gramaticais no que se refere aos usos da próclise, da mesóclise e da ênclise. Peço licença
então para, aproximando meu texto escrito do ato de fala considerada “não padrão”, utilizar a próclise, rompendo, em
muitas situações, com a norma, mantendo assim uma uniformidade estilística.
173
Neste trabalho, sempre que citar pela primeira vez um/uma autor/a utilizarei prenome e sobrenome, na tentativa
de fugir à generificação masculinista, mesmo que esteja utilizando a primeira menção no sistema de chamada. Faço
isso, sobretudo, como forma de chamar atenção para a produção acadêmica realizada por mulheres. Enquanto escrevia
o trabalho fiz outras tentativas, enfatizando a autoria apenas quando era feminina, por exemplo. Depois de muito
pensar cheguei à conclusão de que, tanto em termos visuais, quanto em questões de visibilidade da produção
intelectual feminina, poderia usar prenome e sobrenome nas ocorrências de autoria feminina e masculina.
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(1993), Enquanto o tempo não passa (1996) e A mulher proibida (1996), cada um com enredos
diversos, como “uma tetralogia da vida contemporânea, dada a atualidade dos temas que os
inspiraram”.
Hill (2007) ressalta as influências bíblicas e de Aluísio Azevedo na produção literária
de Montello, que obviamente pode ser percebida no romance em questão, através da narrativa
de uma história moralizadora e recriminadora do amor entre mulheres, mantendo o autor preso
à naturalização do sexo, fazendo-o levar a protagonista a viver na sombra, escondida, sem
revelar seus desejos e sentimentos.
É preciso ressaltar que a temática de homens que amam homens e/ou de mulheres que
amam mulheres não é inédita na produção literária brasileira. Em 1895, Adolfo Caminha já
havia narrado um amor entre dois rapazes, no romance intitulado Bom-Crioulo, assim como
em O ateneu, de Raul de Pompéia e O cortiço, de Aluísio Azevedo, onde há amores entre
rapazes e entre moças. Mas é necessário entender, como chama atenção o livro O desejo da
nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX (2013) de Richard Miskolci, que
trabalhou sociologicamente, com documentos históricos, dentre outras fontes, três romances
do final do século XIX, quais sejam: O ateneu, Bom-Crioulo e Dom Casmurro, que havia
naquele momento um projeto maior de nação, o qual visava produzir uma sociedade civilizada
branca e heterossexual e que considerava como ameaça negros, mulheres e homossexuais,
dentro do qual essas obras se inseriam.
Embora reconheça a existência de obras literárias escritas por mulheres que retrataram
o amor entre mulheres, creio que o projeto de uma nação que pretendia invisibilizar negros,
mulheres e homossexuais, dava aos homens letrados, de classes mais abastadas, brancos e
héteros, maior destaque. Não é à toa que a temática do amor entre mulheres também apareceu
em O primo Basílio, de Eça de Queiróz e Papéis avulsos, de Machado de Assis, no conto D.
Benedita, cujo trecho narrativo da cena serve de epígrafe em Uma sombra na parede. No
Diário do entardecer de 24 de agosto de 1967, Montello escreve a seguinte anotação sobre
Machado de Assis e sua narrativa, fazendo citações do conto:
Relendo os Papéis avulsos, aconteceu-me o que habitualmente ocorre nos meus
regressos ao pequeno mundo de Machado de Assis: em vez de ater-me ao objeto da
pesquisa, andei a ler um trecho aqui, outro ali, outro mais adiante, levado pela sedução
da prosa do velho feiticeiro literário. De repente, nas emoções desse passeio, travei
as sobrancelhas, redobrando de atenção. Seria possível o que eu estava lendo? E por
que, até agora, ninguém atentara para a página erótica de Machado de Assis, no
livro de 1882?
Porque o que eu tinha diante de mim, espantado, era uma cena de
homossexualismo feminino, transparente, perfeita, habilmente concatenada,
sem deixar dúvida alguma quanto à sua natureza.
Em Machado de Assis? No Machado de Assis que, em 1878, escrevendo sobre O
primo Basílio, pedia contas a Eça de Queiroz pelas cenas ousadas do seu romance?
Sim, é verdade. No mesmo Machado de Assis.
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O episódio – nítido, claro, objetivo, sem deixar dúvidas – está no conto “D. Benedita”.
A página reclama leitura atenta, dando mesmo a impressão de que o autor, intimidado
pela escabrosidade do tema, sustem a pena, dando-lhe um desfecho que
interrompe a narrativa, abreviando-lhe o fecho natural.
.......................................................................................................................................
A cena erótica aí está, sem subterfúgios, transparente, muito clara. O que
atualiza o velho Machado, numa hora em que tudo é permitido. (MONTELLO,
1998, v. 1, p. 948-9, grifos do autor em itálico, grifos meus em negrito).

Ao retomar o trecho de Machado de Assis, utilizando-o como epígrafe de Uma sombra


na parede e ao escrever ele mesmo sobre o que chamava de “homossexualidade feminina”
acredito que Montello performaticamente volte a ensinar sobre a constituição de uma sociedade
brasileira branca e heterocentrada também para os séculos vindouros, reafirmando
pedagogicamente a impossibilidade das relações afetivo-sexuais entre mulheres. Aí está a
importância do romance na perspectiva dos estudos queer: demonstrar que há agência como
uma potencialidade d@s174 sujeit@s de, paradoxalmente, subverter as próprias normas, sendo
assim possível viver essas relações, ressignificar os preconceitos e avançar para além da
heterossexualidade e da branquidade, refletindo de fato a diversidade que constitui a nação que
somos.
Ora, ao anotar em seu diário que a cena descrita por Machado de Assis, se atualiza em
um momento de permissividade extrema, é preciso questionar que permissividade e para quem.
Afinal Montello fez essa anotação em seu diário em 1967, em um contexto de ditadura militar
e de vigilância extrema das liberdades individuais aqui no Brasil. Tudo de fato era permitido?
Depende de para onde se lança o olhar.
Ao pensar sobre o mundo ocidental da época, certamente, é preciso lembrar que o
aparecimento do movimento hippie e da contracultura, trouxe, ainda na década de 1960,
possibilidades de maiores liberdades sexuais, o feminismo e a luta por direitos iguais às
mulheres e as primeiras manifestações por direitos civis para gays nos Estados Unidos também
estavam presentes. O mundo estava sendo questionado. “Faça amor e não faça guerra” era o
lema da época, portanto, os costumes eram indagados e se experimentava muitas coisas
consideradas novas e libertárias.

174
Escolhi utilizar uma linguagem não-binária a partir do símbolo “@”– fugindo à norma padrão, que coloca o uso
do masculino como um gênero marcado, admitindo seres de ambos os sexos a partir de uma generificação masculinista
– para designar um gênero neutro, sem marcações, sem hierarquias. Há outras possibilidades, as mais conhecidas
além do @, são o “x” e o “e” como substitutos do “a” e do “o” em palavras com gêneros masculino e feminino. Minha
opção está baseada na percepção do @ como uma grafia que desvela ao mesmo tempo e em um mesmo nível o “a” e
o “o”. Nesse sentido, me parece coerente, a partir de uma perspectiva derridiana da desconstrução que questiona as
binariedades, acionar essa aglutinação do “a” e do “o” em um único símbolo.
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Apesar, de toda a pressuposição da “plena liberdade” contemporânea, diariamente


encontro na imprensa alguma notícia de homofobia175. Da época de Machado de Assis para a
de Josué Montello, muitas mudanças ocorreram. De lá para cá, há um acréscimo, lento e
gradual das liberdades individuais em termos de afetividade e de sexualidade, mas há também
retrocessos tanto na forma de atitudes preconceituosas e violentas, quanto em decisões
judiciais. O próprio Montello não parece ter escrito Uma sombra na parede, como alguém que
compartilhasse positivamente dessa ampliação de liberdades, mas ao questioná-la, acaba de
alguma forma, colocando-a na pauta, mesmo que em uma perspectiva heterocentrada e
preconceituosa. Em 11 de março de 1986, no Diário de minhas vigílias, escreve:
Desde que voltei ao Brasil, meu trabalho literário, além de meus artigos no jornal,
tem sido o romance. Quero ver se consigo fazer de Uma sombra na parede um dos
marcos da minha obra. Ao longo de outros romances, tenho esboçado em pequenas
situações circunstanciais o problema do homossexualismo feminino, certamente
mais terrível, na ordem da dissimulação natural, do que o homossexualismo
masculino176. Hoje, quando se abre o catálogo telefônico de Paris, e se constata a
existência de um Pronto-Socorro Lésbico e um Pronto-Socorro Gay, sente-se que o
drama da homossexualidade passou à categoria das vulgaridades, com os
homossexuais na rua empunhando cartazes em que reclamam novos direitos,
ostentando a sua condição. Quase diria: virilmente.
Machado de Assis tateou o tema num de seus contos. E também em alguns de seus
romances. E como ainda encontrei o problema em minha geração, intenso, como
maldição, escárnio ou perversão, e pude testemunhar algumas cenas patéticas,
decidi escrever-lhe, o romance, antes que se perca, com a permissividade atual,
o seu contexto dramático, e mesmo trágico, quer como criação, quer como
testemunho. (MONTELLO, 1998, p. 690, v.2, grifos do autor em itálico; grifos meus
em negrito).

Uma sombra na parede, é um dos últimos romances de Montello, embora seu


comentário seja de 1986, ele só é publicado em 1995, quase uma década depois. Além disso, o
romance está longe de ser um marco em sua carreira, talvez porque seja “[...] o olhar
masculino que marca a narrativa, [...]”, mais do que isto, mesmo que Josué Montello fosse,
para aquel@s que o estudam “[...] homem de seu tempo, [...], talvez não conseguisse ver essa
relação como normalidade, o amor homossexual, para Montello, [...] era impossibilitado”
(Régia Agostinho da SILVA, 2016, p. 58, grifos meus). Ricoeur (2014, p. 145, grifos do autor)
chama atenção para a figura do narrador, afirmando que a “[...] maneira narrativa, nunca
eticamente neutra, se mostra como o primeiro laboratório do juízo moral”. Como já me referi
anteriormente, é um homem branco, membro da Academia Brasileira de Letras, reconhecido

175
Embora reconheça que expressões sexuais de gênero diferentes do modelo heterossexual, falocêntico e reprodutivo
incluem lésbicas, gays, bissexuais travestis e transexuais dentre outros, e que, portanto, poderia usar o termo
LGBTfobia, incluindo nela a lesbofobia, a homofobia, a transfobia e a bifobia, adoto o conceito de homofobia de
Daniel Welzer-Lang (2001, p. 465) que a define “como a discriminação contra pessoas que mostram, ou a quem se
atribui, algumas qualidades (ou defeitos) atribuídos a outro gênero. A homofobia engessa as fronteiras de gênero.”
Tomo-o por entender o prefixo “homo” como “semelhante” e não significando “gay”.
176
Daniel Welzer-Lang (2001, p. 465) afirma que em uma pesquisa realizada com 500 indivíduos que interrogava
sobre “como [...] reconheciam pessoas homossexuais na rua” eles em geral falaram apenas de homens homossexuais
pois parece que “(o lesbianismo é invisível)”.
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como heterossexual – era casado com Yvonne Montello, com quem tinha duas filhas –,
maranhense, porém residente mais da metade de sua vida no Rio de Janeiro que, rememorando
as lembranças de sua cidade natal, irá contar a história de Ariana, se colocando como escritor
e narrador ao mesmo tempo. Mas o que há neste enredo, ao mesmo tempo “dramático e trágico”
que o torn a importante como “criação e testemunho” para a perspectiva dos estudos queer, a
partir da crítica à naturalização da heteronormatividade?

Entre sombras?

Na perspectiva dos estudos queer, o sexo é tão culturalmente construído quanto o


gênero. Neste sentido, as fronteiras entre o que seria “natural” ou “não natural”, definidas a
partir do que é considerado dentro ou fora das normas sociais, podem ser facilmente borradas.
É, particularmente, o argumento do sexo como “natural” e a partir dele as definições do que é
ser homem ou ser mulher e de como uma relação homossexual seria não só imoral, mas
amaldiçoada dentro dessa dinâmica dos papéis sociais que Uma sombra na parede discute.
Entretanto, partindo da ideia de Butler de que a homossexualidade não está fora da
heteronormatividade, porém ajuda a constitui-la, o romance não apresenta apenas um amor
“amaldiçoado”, mas também a possibilidade de mulheres amarem mulheres.
O romance se passa em São Luís, na segunda metade do século XX (SILVA, 2016) e
narra a história de Ariana, uma jovem que abandonou dois homens, em diferentes
oportunidades, prontos a casarem-se com ela, pois não aceitava passivamente a condição de
ser esposa, dona de casa e mãe. O narrador, chamado de “poeta” conhece a história da
desistência do primeiro casamento através de Mata Roma, que havia sido seu professor no
Liceu Maranhense177.
Otavinho, o primeiro noivo, “com ar de príncipe herdeiro à espera da princesa imperial,
já ocupava o seu lugar, defronte da mesa de centro onde estava aberto o livro de casamentos”
(MONTELLO, 1995, p. 15), porém depois de esperar bastante tempo pela noiva, para a
realização da cerimônia civil que, apesar de ocorrer no sobrado da família de Ariana, estava
lotada de convidad@s, recebeu como resposta à indagação do juiz sobre o seu desejo de casar
com ele um expressivo não. Envergonhado, o rapaz saiu pedindo desculpas a tod@s e, dois
dias após o fato, morreu vítima de um acidente automobilístico, mais parecido com um suicídio,
já que seu carro bateu de frente com uma árvore.

177
Escola pública ainda existente em São Luís.
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Também é Mata Roma quem inicia a narrativa acerca do outro noivo de Ariana: “─ Foi
ele, o João Emílio [irmão de Ariana], que apresentou à Ariana o seu segundo noivo, o Marcelo,
engenheiro da Western. Não tão bonito quanto o Otavinho, porém vistoso, com uma
expressão mais viril” (MONTELLO, 1995, p. 17, grifos meus). Ao apontar a virilidade de
Marcelo como um atributo que poderia torná-lo mais desejável, Montello acaba por estabelecer
fronteiras entre o masculino e o feminino. Isso parece mais evidente se se comparar sua posição
à do comentário de 11 de março de 1986 no Diário de minhas vigílias, já citado acima, no qual
Montello afirma, de maneira mais jocosa que crítica, que os homossexuais estavam lutando por
seus direitos de maneira “quase” viril.
Assim, no contexto de Uma sombra na parede, o homem não precisaria ser bonito, mas
viril, porém Ariana, descrita por Mata Roma e pelo próprio Marcelo, tinha a beleza natural
como algo que a tornava mais desejável, mais feminina. Para Mata Roma: “[...] A Ariana por
ser alta e bonita, com aqueles olhos verdes no rosto moreno, já suscitava paixões”
(MONTELLO, 1995, p. 14). Também Marcelo, em uma de suas conversas após o término do
noivado, afirmou: “[...] eu estava na janela, recostado no balcão, quando vi uma sombra na
parede178. Uma sombra nítida, bem recortada, na parede branca. De perfil, alta, esguia, o cabelo
apanhado para trás. [...] Nessa noite, comecei a pensar que ias ser minha mulher”.
(MONTELLO, 1995, p. 40-1).
Observo que ao utilizar a ideia de masculinidade e/ou feminilidade, não são as
categorizações generalistas, homogêneas e sólidas, presas a papéis sociais que estou pondo em
foco, mas as configurações de gênero. Segundo Butler (2014c, p. 48, grifos da autora), “[...] o
gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos
que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras
da coerência do gênero”. Portanto, este é um debate também ficcional, assim como a própria
noção de identidade o é, na medida em que tanto a coerência quanto a estabilidade do gênero
são socialmente construídas. Neste sentido, as relações de gênero devem ser pensadas como
plurais, assim as masculinidades e/ou feminilidades seriam tão somente efeitos que emergirão
em contextos sociais, históricos e culturais específicos, nada homogêneas, daí o uso no plural
e não no singular (Kelly Cristina KOHN, 2014). Além disso, a ideia de performatividade faz
pensar na impossibilidade da virilidade como uma característica espontânea dos homens. No
caso da mulher, Denise da Costa Siqueira e Aline Almeida de Faria, ao estudarem as
representações do corpo feminino na mídia escrita, pensada como um dispositivo de poder nos

Segundo Silva (2016, p. 52), “A sombra, projeção que se esmaece, que não perdura, que diz que algo está ali, mas
178

não é palpável, está próximo, mas ao mesmo tempo distante e fugaz é a imagem que Josué Montello escolheu para
nomear seu romance”. Esta é a analogia que se estende a Ariana em algumas passagens do romance, como a citada
acima.
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termos foucaultianos, encontraram o corpo feminino com poucos artifícios, como a primeira
categoria de beleza. Segundo elas, “[...] nos anos 1960 o corpo feminino foi valorizado por seu
aspecto ‘natural’, por sua beleza inata, paralelamente a um momento de emancipação
feminina” (SIQUEIRA; FARIA, 2007, p. 181). Parece ser exatamente esse o momento que
Ariana vive e através desses atributos “naturais” é definida como bela. Por óbvio, assim como
a virilidade, também a beleza é ficcional, na medida em que as duas são construídas e
performatizadas dentro de um contexto cultural específico.
Como Marcelo era católico, o casamento seria na igreja. O “poeta” então toma a
narrativa da história e passa a descrever as atitudes e pensamentos de Ariana no dia do seu
casamento com Marcelo: “Ela fazia tudo devagar, lutando contra o tempo. [...]. Mas foi no
momento de pôr o vestido de noiva que lhe veio, mais forte, imperativa, a determinação de não
ir à igreja. [...] E ouvindo a própria voz: ─ Acabou-se. Não me caso. Ponto final!”
(MONTELLO, 1995, p. 24).
O casamento hétero aparece como uma necessidade para a manutenção da própria
sociedade (RICH, 2010). Mas as atitudes de Ariana aqui apresentadas reforçarão a afirmativa
de Butler de que é no processo de repetição dos atos que as resistências aparecem.
No romance, os pensamentos de Ariana sobre a sua posição como mulher não surgiram
apenas no dia do casamento. Um mês antes ela havia proposto o adiamento da data, devido a
uma promoção que o noivo estava esperando. Mas a resposta de Marcelo tornou inadiável o
evento: a promoção seria o presente de casamento da Western para ele. Com todos os
preparativos, “[...] Ariana se tornara irascível, nervosa, quase intratável, a ponto de dizer ao
irmão, a quem por vezes confiava o que sentia: ─ É como se eu não tivesse pele: tudo me dói”
(MONTELLO, 1995, p. 25).
Se sua enxaqueca havia voltado e todo o seu corpo doía, parece claro que a resistência
não lhe era confortável. No dia do seu casamento, logo cedo foi à Igreja para, em um ritual, se
confessar antes da cerimônia. Na oração que faz a Nossa Senhora da Conceição, afirma: “O
mais difícil vai ser dominar a repulsa do meu corpo. [...]. Há momentos em que me
desoriento. Sou eu que sou assim? Ou há outras moças como eu? Não sei. Sei apenas o que
se passa comigo” (MONTELLO, 1995, p. 27, grifos meus).
Tais questionamentos, dores e angústias se corporificam na medida em que somos
apresentados a uma única possibilidade de construirmos sentidos rígidos para nossas
sexualidades: sou homem porque possuo pênis e desejo mulheres, sou mulher porque possuo
vagina e desejo homens. Ou seja, a heteronormatividade impõe um modelo de relações
amorosas e/ou sexuais apenas e tão somente entre pessoas do sexo oposto. Todavia, há sujeit@s
que escapam a esse processo de produção de corpos-sexuados, o que pode trazer dores,
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conflitos, medos e dúvidas, cada um vivenciado singularmente, a depender da subjetividade


que nos constitui a tod@s.
Por conta dessa ficção da coerência heterossexual, esse processo de “descobertas” e
“mudanças” não é tão “natural” assim, quanto pretende Montello e a ambiguidade permeia toda
a sua narrativa, relatando não apenas os sofrimentos psíquicos de Ariana, mas do seu corpo
físico também. Os questionamentos e reafirmações sobre “quem sou eu?”, “não sou uma
aberração?”, “foi Deus quem me fez assim?”, aparecem reiteradamente na obra:
─ A vida é minha! Se Deus me fez assim, assim tenho que ser!
Custara a aceitar si mesma. Sempre que lhe voltavam as prolongadas enxaquecas,
ou os dias sucessivos de nervos tensos, com as noites mal dormidas, as freqüentes
[sic] insônias da madrugada, ela própria atribuía tais desconfortos a algo que lhe
faltava. De um momento para o outro, tudo parecia ter mudado. Seu corpo. Sua
mente. Sua comunhão com a vida. (MONTELLO, 1995, p. 200, grifos meus).

O “sexo”, que na perspectiva de Butler se aparece como gênero e como norma desde o
início, na medida em que se constitui um ideal regulatório, recorrendo novamente a um termo
foucaultiano, é “[...] uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir — demarcar, fazer,
circular, diferenciar — os corpos que ela controla. Assim, o ‘sexo’ é um ideal regulatório cuja
materialização é imposta”. Essa materialização se dá “através de uma reiteração forçada destas
normas” que acaba por desvelar o fato “de que a materialização não é nunca totalmente
completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua
materialização é imposta”. Assim, são esses processos de performatização das normas que
produzem instabilidades e questionamentos sobre a hegemonia dessa mesma regulação abrindo
a possibilidade de novas rearticulações e de resistências (BUTLER, 2000, p. 151-2).
Dessa forma, no romance, embora a produção de gênero seja apresentada como
“natural”, ela será performatizada ao longo das narrativas. Em certo momento, a tia de Ariana,
Cremilda, a admoesta de que “[...] para ser fêmea, uma boa fêmea, uma fêmea completa, o
primeiro requisito é a feminilidade. E tu, pelo abandono em que estás, te esqueceste de tua
obrigação fundamental como mulher!”. E ainda continua ressaltando que as fêmeas estão no
mundo para apreciar seus homens e não para permanecerem sozinhas “─ Não queiras ficar para
tia, minha boboca. Não, não queiras. O talhinho que temos em nós, cá embaixo, foi Deus quem
abriu. Delicado. Protegido. Não contraries a astúcia divina. Por favor, Ariana, casa-te,
agarra teu macho. [...]”. (MONTELLO, 1995, p. 57; 62, grifos meus). A fala de Cremilda
chama a atenção para o fato de que a normas de gênero e a heterossexualidade compulsória
colocam a mulher que não casa em uma condição menor. Assim, é melhor se casar que “ficar
para titia”. Neste sentido, a pedagogia dos gêneros hegemônicos, tão claramente destacada no
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romance, acaba por “preparar os corpos para a vida referenciada na heterossexualidade,


constituída a partir da ideologia da complementaridade dos sexos” (BENTO, 2011, p. 551).
No desenrolar do romance, várias questões acerca das “normas regulatórias que
materializam o sexo” (BUTLER, 2000, p. 159) vão aparecendo, tais como a condição de
subordinação feminina, a divisão sexual do trabalho e a necessidade da mulher de ser
“feminina”. De acordo com Butler, (2014a, p. 271, grifos da autora): “A regulação é aquilo que
constrói regularidades, mas é também, [...], um modo de disciplina e vigilância [...]. Como se
apoia em categorias que tornam os indivíduos intercambiáveis uns com os outros, a regulação
está também vinculada ao processo de normalização”.
Todo argumento social levantado até aqui dá conta tão somente do fato de que há um
“processo natural” de formação dos sexos biológicos no qual o macho, supostamente, nasceu
para a fêmea assim como a fêmea, supostamente, para o macho, sendo “[...] a linguagem do
sexo [...] especialmente poderosa para expressar hierarquias e desigualdades sociais [...]”
(MISKOLCI; SIMÕES, 2007, p. 9). Entretanto, a narrativa de Montello se mantém presa a uma
noção diferenciada entre sexo como um atributo biológico e gênero, encarnando feminilidades
e masculinidades.
Em minha primeira leitura de Uma sombra na parede, entre as descrições saudosas da
cidade, a narrativa de vida de Ariana e a ideia das normas regulatórias que possibilitam algumas
identificações enquanto negam outras, fui sendo tomada por um questionamento: a mãe de
Ariana, dona Mariazinha, havia amado outra mulher – Creusa – a quem ela não deixou de
venerar mesmo depois que a grande amiga havia morrido? Assim, de alguma forma, em caso
positivo, estaria Montello pensando em questões de hereditariedade na lesbianidade – apesar
de o narrador não usar este termo ao longo de todo o romance – como uma patologia?
Interessante observar que apesar de não nomear a relação de Creusa e Mariazinha ou de Ariana
e Malu, há um momento no romance em que ele afirma que Mundiquinha Dourado, uma
professora que amava “[...] outras mulheres, quase sempre às escuras” atraía estas “como
‘parceiras de sua anormalidade’” (MONTELLO, 1995, p. 204). Portanto, não nomear também
pode ser um artifício para invisibilizar aquilo que ele considerava uma “anomalia”.
O amor de dona Mariazinha, mãe de Ariana, por Creusa é um mistério do começo ao
fim da história. As lembranças de Creusa acontecem a partir da morte de seu marido, Severino,
logo no início da obra. Ela já era falecida fazia bastante tempo e Severino, desde então, passara
a morar no sobrado com a família de Ariana, quando ela ainda era bem criança.
Dona Mariazinha, estava inconsolável durante o velório de Severino e o senhor Ribas,
em um diálogo com Ariana, sua filha, afirma que a esposa está muito abalada com a morte de
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Severino porque “A conversa dela com o Severino, e do Severino com ela, era a Creusa. Não
tinham outro assunto. Sempre a Creusa” (MONTELLO, 1995, p. 79).
Logo após o velório, Ariana interpela seu irmão sobre a atitude de sua mãe, mas, a
resposta de João Emílio será a de que a vida possui “mistérios”. Já quase ao final do romance,
será a própria Ariana que falará ao seu pai sobre o seu “mistério”.
─ Há muito mistério na vida alheia, mana. E na nossa também. (MONTELLO,
1995, p. 82, grifos meus).
─Cada um de nós, pai, nasce com o seu mistério. Um dia, sobre o meu, ei de ter
uma conversa com o senhor. Para isso preciso de tempo e de coragem. Peça a Deus
por mim. (MONTELLO, 1995, p. 297, grifos meus).

Claro está que há várias possibilidades para se pensar o sentido da palavra mistério aqui.
Na perspectiva de Montello, por exemplo, a lesbianidade parece essência e vem à tona, sendo
“descoberta”, mas permanecendo “misteriosa”. Seria então possível pensar que nesse caso o
“mistério” estaria ligado à mulher que por se constituir como o Outro do discurso, estava
invisibilizada. Nesse sentido Simone de Beauvoir (2009, p. 347; 349) afirma que “[...] Mistério
para o homem, a mulher é encarada como mistério em si. [...]. Mantida à margem do mundo, a
mulher não pode definir-se objetivamente através desse mundo e seu mistério cobre apenas um
vazio”. Todavia, prefiro tomar esse “mistério” a partir da perspectiva de Eve Kosofsky
Sedgwick, autora feminista norte-americana, ao falar sobre o armário. Este termo tem sido
usado tanto popularmente como por movimentos sociais e pelos estudos de gênero e queer. Em
geral é utilizado para designar homossexuais não assumid@s (dentro do armário) ou
assumid@s (fora do armário), mas é preciso pensar em suas implicações, assim como na
própria ideia de “mistério”, que me parece sinônima à de armário. Sedgwick (2007).
Dona Mariazinha parece ter vivido na pele as dificuldades dessa dualidade entre
segredo e revelação, público e privado em relação à sua amizade com Creusa. Isto pode ser
percebido tanto nas insinuações e indiretas que escutava de sua irmã mais velha, Cremilda,
quanto nos conflitos entre mãe e filha. Para além dessas questões, quem sabe, na perspectiva
do narrador, causados pela bissexualidade ou homossexualidade da mãe – o romance apenas
dá indícios, levanta dúvidas, não esclarece a questão – fica claro que, para Montello, a
“homossexualidade feminina” é mais fácil de escamotear.
De acordo com Denise Portinari (1989), as “homossexualidades femininas” são
produzidas em meio ao silêncio, enquanto as masculinas são ruidosas. Talvez, o que Portinari
esteja chamado de silêncio e o que Montello reconhece como dissimulação, seja na verdade a
possibilidade de uma performance de gênero mais próxima do que se considera um padrão
feminino heterossexual, tornando a lesbianidade invisível ou um “mistério”, para retomar a
expressão montelliana. Além disso, Guacira Louro observa que enquanto os meninos sofrem
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um efetivo controle nas suas manifestações de afetividade em relação a outros meninos, as


meninas desfrutam de menos vigilância. Nesse sentido, afirma: “não nos causa estranheza ver
meninas passeando de mãos dadas, trocando afagos, beijando-se no rosto. Essas manifestações
parecem nos indicar que a sua feminilidade está sendo ‘garantida’, pois se espera das meninas
que sejam carinhosas, meigas, cuidadoras” (LOURO, 2009, p. 149). Com isso não se está
dizendo que as meninas não sofram processos de regulação, entretanto, eles se manifestam
diferentemente em relação aos meninos. Enquanto estes precisam exorcizar toda e qualquer
manifestação de feminilidade, a produção da heterossexualidade compulsória em meninas e
mulheres deve ser pensada muito mais em relação aos “processos de interdição e silenciamento
da mulher, seu corpo, sua sexualidade”, o que produz uma “lógica de negação e subalternização
do feminino”, fazendo com que a “lesbianidade nem sequer exista como opção” (Marco
Aurélio Máximo PRADO; Rogério Diniz JUNQUEIRA, 2011, p. 55-6).
Na medida em que as normas regulatórias indicam limites, normalizando gênero e
sexualidade (de maneira dicotômica, mas complementar), se atribuem aos corpos limites de
sanidade, moralidade, coerência e, sobretudo, legitimidade ou o seu contrário: insanidade,
imoralidade, incoerência, ilegitimidade. Entretanto, apesar desse controle, há mudanças nos
corpos, há negações e reafirmações, há transformações e subversões. Talvez por isso Butler
afirme que: “A construção da coerência oculta as descontinuidades do gênero, que
grassam nos contextos heterossexuais, bissexuais, gays e lésbicos, nos quais o gênero não
decorre necessariamente do sexo, e o desejo, ou a sexualidade em geral, não parece decorrer
do gênero” (BUTLER, 2014b, p. 194, grifos meus). Dessa forma, há um rompimento da
coerência heterossexual que para Butler, não existe de fato, é uma ficção e faz esse modelo
perder força. Nesse sentido, ela ressalta o fato de que essa pretensa coerência binária é
contingência e não essência, além disso, “as permutações de gênero que não se encaixam nesse
binarismo são tanto parte do gênero quanto seu caráter mais normativo”.
Ao propor a desconstrução, Butler denuncia, assim como Derrida (2004) já havia feito,
que o pensamento moderno ou a metafísica da presença, é fundamentado por dicotomias:
presença/ausência, público/privado, segredo/revelação, homem/mulher, dentre tantas outras.
Neste jogo de dicotomias, os dois polos são marcados pela pretensa superioridade do primeiro
elemento, e, é dentro desta lógica binária e hierárquica que tod@s nós pensamos o mundo e
nossa existência.
Nesse sentido, a desconstrução luta contra a lógica de que existe um lugar “fixo” e
"natural" para cada gênero, levando a perceber que a oposição é contingente. Dessa forma, sua
principal tarefa, no contexto das regulações de gênero tão naturalizadas, é denunciar e
desmontar a lógica dualista que rege as polaridades, demonstrando não apenas que o masculino
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está contido no feminino e vice-versa, mas principalmente que estas oposições foram e são
historicamente construídas e performatizadas como um processo repetitivo de educar os
corpos.
No romance, as dicotomias continuam. Em determinado momento, Ariana chega a
levantar dúvidas sobre a semelhança do seu amor por Malu e o de sua mãe por Creusa.
Entretanto, pensa imediatamente que isso não seria possível por causa da autoridade e rigor do
pai e da fragilidade e recato da mãe. Em meio a dúvidas, questionamentos e tentativas de
esquecimento, não há respostas sobre esta questão, ela apenas perpassa o romance. Como
afirmei, as dúvidas pairam no ar, os “mistérios” e as sombras na parede ora se vão, ora
retornam, talvez para lembrar, como afirmou João Emilio, que todos nós temos nossos
“mistérios”, ou para ensinar, performaticamente, às mulheres a lição de Cremilda, de que nosso
destino é o casamento com um homem. Mas, há uma certeza: Ariana, de alguma forma, luta
contra estes ensinamentos, resiste de alguma forma às regulações. Há, nos termos de Butler,
um agenciamento na protagonista que talvez o narrador não consiga se dar conta: além de não
se render a um casamento, a ter filhos e a ser uma esposa devotada, ela também decide não
dividir Malu com um homem. Além disso, também decide retomar o curso de Direito que
começou. Em um diálogo com o pai, o modo como a produção de gênero é performatizada
discursivamente abre espaços para resistências e agenciamento: “Sou mulher, mas não nasci
para esperar marido, ou para depender de príncipe encantado, [...]. Não, isso não. Quero
depender de mim. Só de mim. Do meu trabalho. Da minha competência. Sabendo que posso
ser eu própria. [...]. Senhora de minha vontade. Dona de mim (MONTELLO, 1995, p. 110).
Estabelecer a lesbianidade como versão feminina da homossexualidade, relacionando a
mulher a um comportamento masculinizado não deixa de ser uma forma de invisibilizar as
mulheres. O que pretende Montello quando narra as mudanças no cabelo, na forma de se vestir
que, apontarão em Ariana, características mais masculinas, as quais contrastam com a descrição
inicial dela em quem além da beleza havia uma feminilidade “natural”? Invisibilizá-la como
mulher, utilizando essa descrição como um recurso pedagógico para que suas leitoras não
sigam seus passos?
É nessa busca infindável de si e de “sua natureza” – já apontei anteriormente como
Montello chama atenção para essa questão – que Ariana decide ir até a praia do Olho d’Água,
onde os pais tinham uma casa em que durante sua infância, no período das férias escolares,
costumava ficar lá com Malu. Tanto que Rosa, a antiga empregada da casa, entre a felicidade
de vê-la depois de tanto tempo, lhe pergunta: “─Cadê a meninazinha que sempre vinha aqui
passar férias com a senhora? Sumiu também. Deve estar uma moça, assim bonita como a
senhora” (MONTELLO, 1995, p. 91). Ariana confessa a saudade que sente de Malu, mas
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afirma que nos quase dez anos em que a amiga foi para São Paulo prometendo voltar, nunca
voltou. A pergunta de Rosa, entretanto, faz Ariana retornar à sua infância e leva o narrador a
afirmar que ela teria voltado ao lugar onde passara parte da infância na esperança de que suas
lembranças “lhe restituíssem alguma coisa que não saberia precisar e definir e que
participava de sua própria condição, naquela hora, naquelas circunstâncias (MONTELLO,
1995, p. 95, grifos meus).
Esse aspecto, ora aparece no romance com um caráter de ambiguidade, como no
parágrafo acima, ora aparece como a própria condição feminina. Ao longo de toda a obra, a
normalização do corpo feminino será traduzida como algo natural, “a sua própria condição”,
como a narrativa da constatação da chegada da menstruação, enquanto Ariana se encontrava
na praia do Olho d’Água: “─São elas, sim – reconheceu, ao mesmo tempo que lembrava os
dias em que as mesmas dores a atormentavam, por força de sua condição (MONTELLO,
1995, p. 105, grifos meus). Entretanto, não há nada assim tão ontológico no fato de uma mulher
menstruar, como faz parecer Montello. A menstruação pode ser experimentada por algumas
mulheres como aquilo que João Nery denominou de “monstruação”. Nesse sentido, alguém
poderia objetar que ele é um homem trans. Entretanto ele conta que, em outubro de 2011,
quando foi convidado pela produção do programa da Marília Gabriela, durante a entrevista fez
menção ao termo e “[...] ela pareceu se identificar e mencionou o tratamento a que se submeteu
para deixar de menstruar” (NERY, 2017, p. 83).
Finalmente, após o falecimento de dona Mariazinha, Malu chega para visitar a amiga.
Malu, diferentemente de Ariana, já havia viajado o mundo todo devido ao trabalho que possuía
e parecia não pretender deixar seu trabalho para voltar a morar em São Luís. Como a amiga
precisava, por ordem da companhia aérea, ficar hospedada em um hotel conveniado, na praia
do Olho d’Água, bem distante do centro da cidade onde se localizava o sobrado, e também pelo
fato de haver muito que conversar e contar sobre o tempo em que elas haviam ficado separadas,
sem notícia uma da outra, Ariana decidiu deixá-la de carro em seu destino. Quando chegaram
ao hotel já era tarde, Malu convidou a amiga a dormir com ela e a aproveitar mais algumas
horas para matarem a saudade.
No dia seguinte, tomaram o café e foram até a praia. Enquanto Ariana tomava sol, Malu
foi tomar banho de mar. Como as ondas estavam revoltas, Malu começou a se afogar e, ao
perceber a situação, Ariana se lança ao mar para salvá-la, e, depois de muitas tentativas
consegue retirá-la da água, iniciando uma respiração boca a boca, enquanto percebia diante do
pavor que a situação lhe provocava que “algo acontecia no seu próprio ser, transformando-
lhe o desespero em êxtase crescente, fundindo os dois corpos, amalgamando-os,
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completando-os, no paroxismo da posse mórbida que fazia refluir a vida no corpo renascido.
(MONTELLO, 1995, p. 169, grifos meus).
Com toda a dificuldade Ariana carregou Malu até o hotel para poder continuar a
socorrê-la com a ajuda do gerente do hotel, o senhor M. Michel. Após a visita do farmacêutico,
já que o médico não fora encontrado, Ariana passou o resto do dia a cuidar da amiga. Antes de
dormirem, enquanto ajudava Malu a vestir o paletó do pijama, acabou roçando a ponta dos seus
dedos em um dos mamilos de Malu, produzindo em Ariana um impulso de tocá-la mais, ao
mesmo tempo em que tentava se reprimir. A luta de Ariana contra seus desejos também aparece
em outras ocasiões. Depois que Malu estava recuperada, Ariana a leva até a casa na praia do
Olho d’Água onde passavam as férias quando crianças. Enquanto estavam no quarto e Malu
decide tirar a roupa devido ao calor, crescia em Ariana “[...] o impulso de tocar-lhe os seios
nus [de Malu] [...]. E, de repente, como ao choque de um pensamento impuro, reagiu: ─
Não; isso não!” (MONTELLO, 1995, p. 181; 193, grifos meus).
O amor por amigas de escola ou vizinhança parece ser um enredo comum. Entretanto,
apesar de ser um espaço para essas descobertas, também não é possível esquecer que “a escola
se constitui aparato atravessado por planos, cujas linhas produzem hegemonias que circulam
como tecnologias de controle e disciplinamento dos corpos [...]” (Adriana SALES; Leonardo
Lemos SOUSA; William Siqueira PERES, 2017, p. 72).
Ariana sem poder mais controlar seu desejo crescente, em um momento em que ambas
estavam deitadas em camas de solteiro unidas, para relembrar a infância, e com Malu
aconchegada em seus braços, “[...] Os dois corpos se juntavam, completando-se, [...], ambas
de olhos cerrados, ambas unidas, até que os dois seres deram a impressão de que se fundiam e
transbordavam, no supremo desmaio da carne apaziguada”. (MONTELLO, 1995, p. 195).
Assim: “ela sabia ter decifrado o seu próprio mistério. Não que de todo o ignorasse. Não.
Mas tudo quanto suspeitava, e que lhe vinha da adolescência, como algo impreciso e vago,
que em silêncio havia dissimulado e reprimido, abria-se em certeza plena” (MONTELLO,
1995, p. 199, grifos meus).
Como tenho reiteradas vezes afirmado, o corpo sexuado não é “natural”. O gênero,
nesse sentido, seria tal qual proposto por Paul B. Preciado (2017) o resultado de tecnologias
sofisticadas que produzem corpos-sexuais. Mais que isso, tanto os papéis quanto as práticas
sexuais que “naturalmente” são atribuídas a homens e mulheres, na verdade “[...] são um
conjunto arbitrário de regulações inscritas nos corpos que asseguram a exploração material de
um sexo sobre outro” (PRECIADO, 2017, p. 26). Dessa forma “a (hétero)sexualidade, longe
de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se reinstituir
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através de operações constantes de repetição dos códigos (masculino e feminino) socialmente


investidos como naturais” (PRECIADO, 2017, p. 26).
Cabe questionar: “[...] como as instituições operam para serem eficazes no seu intento
de naturalizar os gêneros?” (BENTO, 2011, p. 551). Montello, por exemplo, explica essa
diversidade como “vontade de Deus”, algo “natural”: “E toda a sua luta, em dois noivados
sucessivos, para ser o que deveria ser, como as outras mulheres genuinamente mulheres, tinha
sido desfeita à sua revelia [...] [da qual] não saberia escapar de algo que estava em seu próprio
ser, e era ela própria, por vontade de Deus. (MONTELLO, 1995, p. 272-3).
Entretanto, como cientista social, retomo uma metáfora bourdiana apenas para
perguntar de que Deus se está a falar? Para ele “Deus não é nada mais que a sociedade. O que
se espera de Deus nunca se obtém se não na sociedade, que tem o monopólio do poder de
consagrar”. Nesse sentido, “[...] o julgamento dos outros é o julgamento derradeiro; e a
exclusão social, a forma concreta de inferno e de danação [...]” (BOURDIEU, 2001, p. 57-
58, grifos meus).
Em uma perspectiva queer, posso pensar que o “julgamento” e a “danação” citados por
Bourdieu, estariam relacionados àquilo que Julia Kristeva (1982) chamou de abjeção, algo que
“[...] perturba a identidade, o sistema, a ordem. O que não respeita limites, posições, regras”
(KRISTEVA, 1982, p. 4, tradução livre). Dito de outra forma, em uma entrevista, Butler
considera que, enquanto processo discursivo, a abjeção se refere a “todo tipo de corpos cujas
vidas não são consideradas ‘vidas’ e cuja materialidade é entendida como ‘não importante’”
(PRINS; MEIJER, 2002, p. 161). Reiterando a questão da demarcação discursiva, Butler (2000,
p. 165) afirma que: “se a materialidade do sexo é demarcada no discurso, então esta demarcação
produzirá um domínio do ‘sexo’ excluído e deslegitimado”.
Adentro assim no terreno dos processos sociais de abjeção: “o sujeito, o ‘eu’ falante, é
formado em virtude de ter passado por esse processo de assumir um sexo” (BUTLER, 2000, p.
153) possibilitando uma identificação e impedindo ou negando outras. Indo para além do
terreno da sexualidade, pensando amplamente nos processos de abjeção, não basta a
identificação com o que é normativo, é preciso ir mais além e repudiar aquel@s que
aparentemente não compactuam com a norma. É nesse sentido que Butler (2000, p. 153) afirma
que a “matriz excludente pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea
de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são ‘sujeitos’, mas que formam o
exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito”.
No domínio da sexualidade, tudo se passa como “se o gênero não fosse ele próprio visto
como adequado somente no contexto de certa regulação da sexualidade” (PRINS; MEIJER,
2002, p. 165). Imagino que não seja à toa que, logo após sua experiência sexual com Malu,
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Ariana se lembre da figura de Mundiquinha Dourado, a colega de seu pai dos tempos de Liceu
que era lésbica, como uma mulher alta e gorda “[...] com seu cabelo curto, seus sapatos de meio
salto, seu paletó de xadrez, sua gravatinha borboleta, sua saia justa por cima da meia de homem
[...]” (MONTELLO, 1995, p. 201). Berenice Bento chama atenção de que até o uso de certa
indumentária, para algumas pessoas pode não ser não fácil: “as dúvidas ‘por que eu não gosto
dessas roupas? [...] Por que tenho esse corpo?’ Levam os sujeitos que vivem em conflito com
as normas de gênero a localizar em si a explicação para suas dores, a sentir-se uma aberração,
uma coisa impossível de existir. (BENTO, 2011, p. 551). Já chamei atenção acima de como as
roupas, desde os modelos até as suas cores e o estilo do corte do cabelo parecem ser importantes
no processo de aceitação ou negação de determinados corpos.
Esta, entretanto, não é a primeira vez que Mundiquinha aparece na narrativa. Quando
tia Cremilda admoestou Ariana a casar e se tornar de um homem só, cumprindo seu papel de
fêmea, falou a sobrinha com escárnio: “─ Só não quero que nossa família tenha em ti uma
virago, como a Mundiquinha Dourado” (MONTELLO, 1995, p. 63). Se pensar no romance
como um texto educativo, posso concluir que Montello alcança êxito ao ir tecendo ao longo da
narrativa a história de Mundiquinha que mesmo sendo “rica e prendada, escrevendo nos jornais,
publicando pequenos livros didáticos” (MONTELLO, 1995, p. 203) não fora poupada dos
processos sociais de abjeção mais perversos. Era preciso contar a história de Ariana chamando
atenção para o fato de que fugir à norma é perigoso, por isso não é à toa que as lembranças de
Ariana voltam sempre à Mundiquinha, lembrando a ela que há espaços de abjeção reservados
aqueles que ousam “seguir sua natureza”.
Mundiquinha viveu em São Luís no período em que Ariana ainda era uma criança, fora
na verdade colega de escola do senhor Ribas, “[...] amaria [...] outras mulheres, quase
sempre escuras, [...]. Seu andar pendulado, seu rosto sem pintura, seu traje (em boa parte)
masculinizado, sua voz grossa [...] tinham contribuído para que se firmasse a reputação viril da
professora” (MONTELLO, 1995, p. 203, grifos meus). Em certa ocasião, com medo de estar
passando por mudanças físicas depois que reconheceu que amava e desejava mulheres, Ariana
questiona a seu pai se ele havia sido colega da Mundiquinha Dourado e se suas mudanças na
forma de se comportar, vestir e andar foram notadas de imediato. Mais uma vez a resposta vem
carregada daquilo que Montello considerava serem atributos femininos “naturais”: “[...] Ela
era uma moça como as outras. Não digo que fosse bonita. Mas também não era feia. Foi das
primeiras, aqui em São Luís, a cortar o cabelo à la garçonne. À moda dos homens. [...]. Em
nossa turma, quem mandava era ela” (MONTELLO, 1995, p. 276). Além de mandona e usando
um corte de cabelo masculino, o senhor Ribas afirma que ela foi passando por uma lenta
transformação: “ao olhar para ela, não sentia a mudança. Até que, de repente, vi que o andar
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dela era outro, e outra também a entonação da voz. O casaco em forma de paletó, a
masculinizava. Mas, nos modos, no olhar, nas mãos bem tratadas, era ainda a Mundiquinha
Dourado”. (MONTELLO, 1995, p. 278).
Embora fosse uma professora respeitada na cidade, por ser eficaz na aprovação de
candidatos a concursos públicos e escolas superiores, como já afirmei não foi poupada de
processos de abjeção: sua residência teria sido alvo de pichações no muro denunciando que ela
“[...] mais homem que mulher, atraía mulheres” (MONTELLO, 1995, p. 204). Interessante
notar que o comentário do narrador não se restringiu ao fato de Mundiquinha amar mulheres,
mas mulheres negras. E os relatos continuam: “Mundiquinha Dourado não pode mais sair
à rua. E quando saiu, [...], logo os moleques das esquinas afluíram por trás de seus passos
enquanto crescia o coro de vaia unânime: ─ Sapatão! Sapatão! Sapatão!” (MONTELLO,
1995, p. 204, grifos meus). No auge do seu desespero, ela que “nunca tivera um namorado,
mesmo na fase em que, [...], ainda teria traços de beleza” (MONTELLO, 1995, p. 203), se casa
com um homem. Três dias depois do casamento, sai um pequeno cortejo com o corpo de
Mundiquinha, que a própria Ariana pode ver da janela de seu quarto no sobrado da família. O
que seriam “traços de beleza”? Um rosto feminino, esguio, com cabelos ondulados e boca e
olhos em destaque, em detrimento disso ela teria assumido um jeito masculinizado, com voz
grossa, o que teria “contribuído para que se firmasse a [sua] reputação viril” (MONTELLO,
1995, p. 203). A descrição de Montello é aquela que, conforme denuncia Silvia Aguião (2008),
foi estereotipada na figura da lésbica masculinizada, caminhoneira, sapatão, deixando de
considerar as variedades de performances que a lesbianidade possui.
As injúrias sobre a “anormalidade” de Mundiquinha e seus amores e, o medo inicial de
Ariana de estar se “transformando em uma Mundiquinha”, seriam o resultado de um dispositivo
pedagógico na medida em que, desde criança o processo educativo caminha no sentido de
transformá-las em heterossexual? Como considera Foucault (2014), a criança seria um artefato
biopolítico que irá garantir a existência de um “adulto normal”. Mais que isso, essa “política
de gênero” dá forma aos corpos de maneira a desenhar os órgãos sexuais como
complementares. Nesse sentido, os enunciados de gênero, pronunciados desde o nascimento,
como “é uma menina e/ou é um menino”, até os insultos como os citados acima “Sapatão!
Sapatão! Sapatão!”, nada descreveriam. São o que Butler chama de “enunciados
performativos”, que se materializam com a “prática reiterativa e citacional pela qual o discurso
produz os efeitos que ele nomeia”, ou seja, continua ela: “as normas regulatórias do ‘sexo’
trabalham de uma forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais
especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a
serviço da consolidação do imperativo heterossexual” (2000, p. 111).
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Nessa reiteração forçada da heteronormatividade, a abjeção surge como um processo


suplementar179, pois: “[...] ao ser chamado com um nome insultante, alguém é menosprezado
e degradado. Porém o nome também oferece outra possibilidade: ao ser chamado por um nome
se oferece a alguém também, paradoxalmente, certa possibilidade de existência social”
(BUTLER, 1997, p. 17, tradução livre). Reiterando o que já afirmei acima, e pensando na ideia
de suplementaridade, é no próprio processo de abjeção (o que apenas parece estar fora) que se
pode encontrar, paradoxalmente, a possibilidade de resistência e reexistência (para continuar
como objeto).
Dizer é fazer, na perspectiva de Butler, por isso ela pondera que tanto algumas palavras,
como algumas formas de se dirigir a uma pessoa podem operar ou ameaçando seu bem-estar
físico, ao mesmo tempo em que podem, alternadamente, preservar e ameaçar o próprio corpo.
Ou seja: “certa existência social do corpo é possibilitada por sua interpelação em termos de
linguagem. [...] Uma interpelação que [...] ‘descobre’ o corpo, mas o constitui
fundamentalmente. Poderíamos pensar que, para abordar alguém, é preciso primeiro
reconhecê-lo”, entretanto, se “essa constituição se dá fora do circuito, esse ser se converte em
algo abjeto. (BUTLER, 1997, p. 21, tradução livre). E continua: “fazemos coisas com palavras,
produzimos efeitos com linguagem e fazemos coisas com linguagem, mas também a linguagem
é aquilo que fazemos”. Nesse sentido, a ameaça produz o que estava ameaçando produzir “mas
não o produz completamente, porém tenta garantir, através da linguagem, um futuro em que
essa ação será realizada”. (BUTLER, 1997, p. 25-7, grifos em itálico da autora, tradução livre).
No desfecho da história o pior ainda estava por vir. Malu retorna a São Luís enquanto
Ariana está em Campinas, grávida de João Emílio e Ariana é apontada pelo irmão como a
principal responsável pelo amor que surgiu entre ele e sua amiga. Ariana tenta desqualificar
Malu, chamando atenção para a sua gravidez e suas experiências sexuais com outros homens,
mas nem de longe pensa em revelar o seu “segredo”: “E não te parece que, nesta hora, neste
momento, isso tem um ar de novela barata, indigna de ti, e de nossa família? ─ A Malu já
se entregou a outros homens, João Emílio!” (MONTELLO, 1995, p. 302, grifos meus).
Interessante observar que no processo de desqualificação moral de Malu produzido por
Ariana aparecem não só a gravidez e a experiência sexual que ela já possuía antes de ir para
cama com João Emílio, mas algumas linhas acima, Ariana também pensava que a amiga podia
querer “agarrar” o irmão por ele ser um “bom partido”. Parece então que a vida pensada para
elas era a da clandestinidade e, nesse contexto, as várias experiências sexuais de Malu não

179
A ideia de suplementaridade é atribuída a Jacques Derrida (2004). O autor chama atenção para o fato de que os
significados se organizam por meio de uma dinâmica de presença e ausência, assim, o que parece fora de um sistema
já está dentro dele, e o que parece “natural”, é na realidade, histórico.
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representavam impedimentos morais. Não haveria uma relação pública amorosa, porém de
amizade, embora houvesse o compartilhamento dos bens que Ariana possuía, estes não
passariam a Malu após a sua morte. Nesse sentido, as regulações estatais sobre casamento,
partilha de bens, adoção, assédio, dentre outras, para além da própria normatização, produz
“[...] parâmetros de pessoas, isto é, a construção de pessoas de acordo com normas abstratas,
que ao mesmo tempo condicionam e excedem as vidas que fabricam – e quebram.” (BUTLER,
2014a, p. 272).
Entre várias situações, sobretudo na performatização dos cuidados de Ariana com o pai
doente, renunciando a sua vida pessoal e viajando por um longo tempo com ele para o interior
de São Paulo a fim de lhe restaurar a saúde dos olhos. Ariana, ao sentir que seu amor não se
realizaria, lembra de “Mundiquinha Dourado, masculinizada pelo tempo e pela vida”
(MONTELLO, 1995, p. 302), pensa em suicídio, mas decide viver, “senhora de si”, ora
guardando o seu “segredo”, ora desvelando-o, formada em Direito, e se sentindo “respeitada”
na cidade, algo que sempre pensou diante de lembranças das situações de abjeção vividas por
Mundiquinha.
Se não pode ir à busca do seu amor, enquanto cuidava da saúde do pai em Campinas,
fez-se amiga de um médico paulista – Genaro – que embora não fique claro, também parecia
compartilhar seus conflitos e seu espaço de abjeção, tanto que ao final os dois se unem não
como marido e mulher, como se poderia esperar dentro dos padrões de “normalidade” da
perspectiva heterossexual hegemônica. Mas, como narra Montello (1995, p. 313, grifos meus):
Vi-os duas vezes em Paris, nos últimos anos, quando eu ali morava: [...]. Ela, sempre
de terninho bem cintado, elegante, com um tom levemente azul na prata dos cabelos;
ele, mais gordo, já querendo curvar-se, [...].
Tornei a vê-los em Paris, mês passado, um amparando o outro, de braços dados,
sempre felizes. [...] Ambos eufóricos, como desinteressados do tempo e da idade,
cada qual com seu mistério mal guardado, e sempre sob as bênçãos do bom Deus,
que continua a proteger-nos como seus filhos, até mesmo quando dá a impressão
de que nos esquece, ou que estende até nós a piedade de sua indiferença.

Interessante pensar como a condição de mulher e de boa filha, ao mesmo tempo traz,
na narrativa montelliana, punições e recompensas a Ariana, dando-lhe um “final feliz”, ora
reafirmando, como no caso de dona Mariazinha e Creuza, a impossibilidade da união entre
duas mulheres, ora chamando a atenção de que se ousasse passar dos limites estabelecidos
como o fez Mundiquinha Dourado, certamente viveria não na subversão apenas, mas,
sobretudo, na abjeção. Assim, na perspectiva de Montello, é melhor ser uma sombra na parede,
seguindo a vida com seu “mistério”, na invisibilidade, afinal tod@s certamente têm algum...

À guisa de conclusão...
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Se na pedagogia montelliana romanesca, é melhor manter os “mistérios”, ainda bem


que pensando a história de Ariana como um ponto de partida que incluiu as nossas próprias
vidas, se pode chegar à conclusão de que Montello estava enganado. As trajetórias de vida de
várias mulheres mostram que é possível resistir à norma, subvertê-la, significá-la, sofrer
abjeções, resistir mais uma vez, continuar resistindo sem desistir dos seus desejos e amores e
sendo feliz.
Dessa forma, a vida não imita a arte. Parece que o “largo propenso a amores obscuros”
que Montello se referia já não está intacto. Para além dos sofrimentos e das zonas de abjeção,
há também a possibilidade de terminar um noivado e viver seu amor de adolescência, sair da
igreja e não ser consumida pela ira divina, contar aos pais e não perder a convivência e o
respeito familiar tão caro para muit@s. Ou seja: há também felicidades, amores e experiências
sexuais, mais que renúncias na vida de mulheres que amam mulheres – como foi o caso de
Ariana –, descobertas, encontros, reencontros e desconstruções.
Mais ainda, se como acredita Butler (1997), dizer é fazer, e o sexo, tanto quanto o
gênero, não construídos discursivamente e podem ser subvertidos através daquilo que os
reproduz, nesse caso a performatividade, posso vislumbrar, a partir da história de Ariana, que
as questões levantadas neste artigo são também produtivas e produtoras de muito mais
subversões.
E Ariana? Certamente, não morreu como Mundiquinha Dourado e tem sua narrativa
ressignificada a partir das vidas que cruzam cotidianamente com a história dela...

REFERÊNCIAS

AGUILÃO, Silvia. “Sapatão não! Eu sou mulher de sapatão!” Homossexualidades femininas


em um espaço de lazer do subúrbio carioca. Niterói, v.9. n.1, p. 293-310, 2. sem.2008.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.
935p.

BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Estudos feministas,
Florianópolis, v. 19, n.2, p. 549-559, maio/ago. 2011.

BOURDIEU, Pierre. Lições da aula. 2. ed. São Paulo: Ática, 2001. 64p.

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“SEE YOU THERE IN BRAZIL”: A IMAGEM FEMININA NA PUBLICIDADE


TURÍSTICA BRASILEIRA DURANTE A DITADURA MILITAR

“SEE YOU THERE IN BRAZIL”: THE FEMALE IMAGE IN BRAZILIAN TOURISM


ADVERTISING DURING THE MILITARY DICTATORSHIP

Luana Ribeiro Soares180


Jocy Meneses dos Santos Junior181
Diêgo Jorge Lobato Ferreira182

Eixo 2 – Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: A análise das representações de mulheres difundidas internacionalmente por meio dos
materiais publicitários produzidos pela EMBRATUR (Instituto Brasileiro de Turismo) se faz
necessária para expor de que modo elas contribuíram para a construção simbólica da imagem do
gênero feminino brasileiro no exterior. Neste artigo, uma dessas imagens, veiculada no período
da ditadura militar, será estudada através da Semiótica Peirceana, a fim de demonstrar os
mecanismos em ação dentro e fora de construções imagéticas como essa que fomentaram a
consolidação de estereótipos problemáticos, cujos impactos ainda são notórios no que concerne à
percepção internacional da mulher brasileira.
Palavras-chave: Turismo, Publicidade, Gênero, Semiótica.

Abstract: The analysis of the representations of women disseminated internationally through


advertising materials produced by EMBRATUR (Brazilian Institute of Tourism) is necessary to
expose how they contributed to the symbolic construction of the image of the Brazilian female
gender abroad. In this article, one of these images, published during the military dictatorship
period, will be studied through the Peircean Semiotics, in order to demonstrate the mechanisms at
work inside and outside imagery constructions such as this that fostered the consolidation of
problematic stereotypes, whose impacts are still notorious with regard to the international
perception of Brazilian women.
Keywords: Tourism, Advertising, Gender, Semiotics.

180
Bacharel em Turismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Discente no curso de Especialização em
Arte, Mídia e Educação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA), Campus São
Luís: Centro Histórico. E-mail: ribeirosoaresluana@gmail.com
181
Especialista em Design Gráfico pelo California Institute of the Arts (CALARTS). Discente nos cursos de
Especialização em Arte, Mídia e Educação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão
(IFMA), Campus São Luís: Centro Histórico e de MBA em Direção de Arte para Propaganda, TV e Vídeo da
Universidade Estácio de Sá. E-mail: jocy.meneses@gmail.com.
182
Mestre em Design pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM/SP). Professor do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA), Campus São Luís: Centro Histórico. E-mail: diego.ferreira@ifma.edu.br.
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1 Introdução

A ditadura militar assumiu o poder no Brasil a partir de um golpe de estado, ocorrido no


ano de 1964, cujos pilares eram a repressão, a censura e a tortura. Os brasileiros com
posicionamentos divergentes aos da ditadura divulgavam no exterior as atrocidades cometidas no
país nesse período, gerando desconforto aos militares e impactando o imaginário estrangeiro sobre
o país. Disso decorreu a necessidade da criação de um órgão que pudesse contrapor essas
informações que estavam sendo veiculadas sobre o Brasil no exterior, culminando na criação da
EMBRATUR (Instituto Brasileiro de Turismo), através do decreto-lei n° 55 de 18 de novembro
de 1966, que se estabeleceu como um dos meios de promover as “maravilhas” do Brasil.
É inegável que as imagens aguçam sentidos e modelam o imaginário. O turista é
“seduzido” pela imagem publicitária de um destino, que estimula o seu desejo de desfrutar após a
compra daquilo que está sendo oferecido. A imagem da mulher brasileira veiculada no exterior
naquele período posicionava as figuras femininas como um dos atrativos disponíveis para serem
usufruídos no país, convidativas e prontas para recepcionar e acompanhar os homens que aqui
chegavam.
Explorando a imagem da mulher brasileira ligada ao exótico, ao desejado carnaval do Rio
de Janeiro e às praias deslumbrantes do litoral, nas campanhas da EMBRATUR o corpo feminino
é o centro ou parte importante da divulgação e aparece representado em sua nudez parcial,
encoberto por diminutos biquínis que enfatizam nádegas e seios, e apresentando forte apelo sexual.
Uma das imagens publicitárias desse período, veiculada na década de 1980 pela EMBRATUR,
cujo público eram mercados internacionais, constituirá o foco da discussão aqui proposta, tendo
como aporte a Semiótica proposta por Charles Sanders Peirce e popularizada no Brasil pela autora
Lúcia Santaella.

2 Imagem, gênero e turismo

O turismo é um fenômeno social e econômico, e constitui uma ferramenta de


desenvolvimento de uma localidade. Beni (2006, p. 331) define atrativo turístico como “todo
lugar, objeto ou acontecimento de interesse turístico que motiva o deslocamento de grupos
humanos para conhecê-los”. O atrativo turístico é vendido pela imagem, que influencia, muitas
vezes, a decisão da compra e a expectativa criada pelo consumidor, e pode estar diretamente
relacionada ao desenvolvimento ou retrocesso de uma localidade. Quando se propaga uma
imagem positiva de uma localidade, cresce em intensidade a motivação dos turistas para conhecer
a região, e também o orgulho da população local e a sensibilização da mesma para proteger os
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atrativos naturais e culturais. Quando essa imagem é mal planejada, atrai turistas indesejáveis.
Como exemplo, é possível mencionar aqueles indivíduos que buscam o “turismo sexual”,
estimulados por um discurso publicitário que apresenta a figura feminina nativa como um atrativo
a ser desfrutado em determinada localidade.
O estereótipo explorado na publicidade turística no período da ditadura militar, através das
campanhas da EMBRATUR veiculadas entre os anos de 70 a 80, expõe o “produto: mulher
brasileira” a partir de um discurso que situa sua imagem entre o “exótico” e o “erótico”. Nessas
imagens, o descaso com as cidadãs brasileiras é patente, exibindo seus corpos como produtos
turísticos a serem comercializados e consumidos. Ao exibir seus corpos bronzeados em biquínis
minúsculos, foi difundida — sob a chancela de um órgão oficial do “governo” — uma imagem
depreciativa da mulher brasileira no exterior, apresentada como um atrativo “sexual”.
Focar nas mulheres enquanto atrativos turísticos de cunho sexualizado, simbolizando-as
como mulheres-objetos, submissas e disponíveis, causa efeitos negativos tanto às nossas cidadãs
quanto ao desenvolvimento do turismo no país. Este modo de oferecer seus corpos como se fossem
atrativos turísticos, utilizando suas representações como estratégias para conquistar turistas, torna
salutar a discussão sobre o modo como essas imagens contribuíram para a construção da imagem
da mulher brasileira e os impactos decorrentes disso dentro e fora do país.

3 Metodologia

O artigo consiste na leitura semiótica de um material publicitário produzido pela


EMBRATUR em 1983, complementada por uma revisão de literatura sobre os temas que
atravessam a discussão sobre a imagem analisada. A respeito da Semiótica, vale destacar que “são
muitos os modos de conceituar esse campo de estudo que é recente, como conhecimento
sistematizado, embora remonte às cavernas o seu objeto de estudo, qual seja o fenômeno da
significação” (OLIVEIRA, 2009, p. 39).
A linha de interpretação preconizada por Charles Sanders Peirce (1839-1914), conhecida
como Semiótica Americana ou Semiótica Peirceana (OLIVEIRA, 2009) foi adotada neste estudo
com base nos escritos da autora Lúcia Santaella, maior referência nos estudos dessa escola
semiótica no Brasil. A definição de Semiótica proposta pela autora assevera que ela “é a ciência
que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o
exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de
significação e de sentido” (SANTAELLA, 1994, p. 14).
As três categorias criadas por Charles Sanders Peirce para desenvolver a classificação dos
signos são a Primeiridade, a Secundidade e a Terceiridade.
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As categorias de Peirce podem ser assim caracterizadas: primeiridade, como sendo a


capacidade contemplativa do ser humano, o ato de apenas ver os fenômenos, o acaso, o
espontâneo; secundidade, como a capacidade para distinguir e discriminar as
experiências, ou a reação aos fatos concretos; terceiridade, a capacidade de generalizar
os fatos e organizá-los em categorias; nesse nível, dá-se, segundo ele, a mediação, o
crescimento, a aquisição. Essa tricotomia é um modelo teórico que possibilita a sua
aplicação em diversas áreas do conhecimento (OLIVEIRA, 2009, p. 43).

A definição de signo é central para o estudo em Semiótica. Santaella (1994, p. 78) assevera
que “o signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como
signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa, diferente dele. Ora, o signo
não é objeto. Ele apenas está no lugar do objeto”. Segundo a autora,
na definição de Peirce, o signo tem uma natureza triádica, quer dizer, ele pode ser
analisado: em si mesmo, nas suas propriedades internas, ou seja, no seu poder para
significar; na sua referência àquilo que ele indica, se refere ou representa; e nos tipos de
efeitos que está apto a produzir em seus receptores, isto é, nos tipos de interpretação que
ele tem o potencial de despertar nos seus usuários (SANTAELLA, 2007, p. 5).

Santaella (1994, p. 61) explica que “Peirce estabeleceu uma rede de classificações sempre
triádicas (isto é, três a três) dos tipos possíveis de signo”. Dentre as discutidas em maior
profundidade, destaca-se a tríade que toma “a relação do signo com seu objeto dinâmico”
(SANTAELLA, 1994, p. 62). Nessa classificação,
Os signos são denominados ícones, índices ou símbolos tendo em vista a relação que
mantêm com o objeto que representam: um ícone é sempre uma qualidade do objeto, e
sua representação é sempre possível e não necessária, porém única, intransitiva e
intraduzível; um índice é realmente afetado pelo objeto que representa e tem, portanto,
com ele uma relação direta; o símbolo liga-se ao objeto que representa com a força de
uma convenção, de uma lei, uma associação de ideias obrigatórias. Como se vê, essa
classificação esclarece o significado das designações de ícone, índice e símbolo, de modo
a rever o uso que o senso comum faz desses vocábulos (FERRARA, 2007, p. 11).

No que concerne às especificidades das imagens da publicidade, Santaella (2012, p. 133)


demonstra a necessidade de que seja desenvolvida “uma visão crítica e consciente dos recursos
que são utilizados pela linguagem publicitária e que certamente nos afetam psiquicamente, sem
que estejamos atentos a isso”. Soma-se a essa consideração a advertência de que,
o escopo da publicidade não se limita à venda de um produto. Por meio de construções
de linguagem muito bem arquitetadas, ela embrulha junto um pacote de emoções,
expectativas e desejos. Muito mais do que podemos conscientemente nos dar conta, a
publicidade não apenas molda desejos, mas, sobretudo, responsabiliza-se por grande
parte de nossas formações cognitivas ao determinar até certo ponto o perfil daquilo que
pensamos e sentimos sobre as coisas, guiando consequentemente o modo como agimos
e o que buscamos (SANTAELLA, 2012, p. 133).

A fim de operacionalizar a leitura de imagens publicitárias, a autora propõe que “são três
os pontos de vista que devemos percorrer para a leitura de uma peça publicitária impressa: o ponto
de vista das qualidades visuais, o ponto de vista dos índices internos e externos à mensagem e o
ponto de vista das convenções culturais” (SANTAELLA, 2012, p. 138).
Acerca do primeiro nível de leitura, que equivale à análise das relações icônicas, convém
destacar que ela “deve se voltar para os aspectos qualitativos da mensagem” (SANTAELLA,
Página 959 de 2230

2012, p. 138), considerando as qualidades visíveis, as qualidades abstratas e as associações de


ideias:
Quando se observam, detida e pacientemente, as características que constituem uma
mensagem, pode-se, de um lado, determinar as qualidades abstratas que as qualidades
visíveis sugerem. De outro lado, é possível prever, até certo ponto, as associações por
semelhança que essas qualidades estão aptas a produzir (SANTAELLA, 2012, p. 138).

No segundo nível, em que a análise ocorre sob o ponto de vista indicial, “a mensagem é
vista como algo que existe em um espaço e tempo determinados. [...] Sob esse ângulo, as
qualidades que a compõem [...] passam a ser vistas em função da sua manipulação e uso” e, assim,
“de um lado, a mensagem é percebida em sua relação com o contexto a que pertence” e “de outro
lado, é percebida de acordo com as funções que desempenha, as finalidades a que se presta”
(SANTAELLA, 2012, p. 139).
No que diz respeito ao terceiro nível de leitura, executado sob o ponto de vista das
convenções culturais que sancionam as relações simbólicas, deve-se considerar (i) “os padrões de
design da mensagem e os padrões de gosto a que esses designs atendem”; (ii) “o poder
representativo da mensagem”; e (iii) “o tipo de usuário ou consumidor que a mensagem visa
atingir e que significados os valores do produto referendado pela mensagem podem ter para esse
tipo de receptor” (SANTAELLA, 2012, p. 140).

4 Leitura de imagem

Figura 1: Material publicitário da EMBRATUR (1983).


Fonte: Kajihara (2010).
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Na imagem publicitária objeto do presente estudo (figura 1), as cores e formas presentes
tanto na fotografia quanto no símbolo evocam o discurso da brasilidade. Ao representar as
“belezas naturais” do país, são utilizadas imagens que unem a paisagem e a figura feminina, como
se ambas estivessem disponíveis aos visitantes. As cores da bandeira nacional no símbolo do
Brasil estão profundamente conectadas com os supostos “nacionalismo” e “patriotismo”
apregoados pela ditadura. O corpo bronzeado da modelo e os tons que remetem à praia, somados
à forte luminosidade, transmitem um convite ao mar, ao clima quente e favorável à “diversão”. A
silhueta curvilínea da jovem fotografada partilha da aparência convencionalmente atribuída à
mulher brasileira, bela e voluptuosa. Seu traje e sua postura corporal aludem simultaneamente a
ideias opostas: tanto à pureza e à fragilidade, quanto à disponibilidade e à sensualidade. O
posicionamento e a forma das letras confere destaque às mensagens transmitidas por meio de
palavras, que fazem de modo “provocativo” o convite ao encontro e explicitam o local onde ele
se desenrolará, o Brasil. Relacionando texto e imagem, as palavras estão conectadas com a postura
“sedutora” da modelo, à altura de sua boca, explicitando que é ela quem faz o convite.
Essa imagem fez parte de um material publicitário produzido e distribuído em 1983 pela
EMBRATUR. No início da década de 1980, ainda o Brasil ainda se encontrava sob o “governo”
da ditadura militar, cujos impactos nocivos ao país extrapolaram a esfera sociocultural e se
manifestaram inclusive na econômica, marcada pela estagnação e pelos altos endividamentos, ao
contrário do que era dito por aqueles que acreditavam no “milagre econômico”, expressão usada
para designar um suposto período de “crescimento” da economia brasileira.
A ditadura disponibilizou recursos para áreas como o turismo e a hotelaria na tentativa de
aquecer a economia. A criação da EMBRATUR, em 1966, inicia a divulgação do Brasil no
exterior utilizando os seguintes motivos para visitar o país: o litoral, o carnaval e a mulher
brasileira. As ações promocionais do órgão nesse período eram difundidas em 11 mercados
potenciais, dentre eles os Estados Unidos, o Canadá, o Chile, a Venezuela, a Alemanha e a
Espanha.
O contexto histórico e social daquele período restringia a mulher brasileira a um papel
inferior ao exercido pelos homens, dentro de um cenário evidentemente machista e repressor. A
EMBRATUR representava comumente em seus materiais publicitários destinados ao público
internacional mulheres seminuas em posturas “sedutoras” situadas em meio às “belezas naturais”
do país, apresentando seu corpo como um atrativos do local, como se elas estivessem predispostas
a “acompanhar” os turistas que chegassem no território nacional, o que contribuiu para a
reafirmação e disseminação dos infames estereótipos da “sensualidade” e da “vulgaridade” da
mulher brasileira.
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Na imagem aqui analisada, vemos uma mulher de biquíni branco, com uma bebida na mão
e utilizando como acessórios colares e pulseiras, situada em uma ambientação praiana, com a
finalidade de caracterizar o país como um local hospitaleiro, quente e onde é possível encontrar
uma “bela companhia”. É notório o olhar da mulher fixo à câmera e, consequentemente, ao público
que tinha acesso a esse material publicitário, intensificando o “flerte” com o espectador. Sua
fisionomia funciona como um convite e é acompanhada da legenda em inglês “See you there”,
sugerindo a ideia de que ela está disposta a ter um encontro com alguém, o que reforça tanto o
discurso que classifica a mulher brasileira como “sedutora” e “fácil” quanto o endereçamento
privilegiado dessa imagem ao público masculino.
É notório o modo como esta imagem partilha dos cânones de representação do corpo
feminino. Convencionou-se perceber e tratar a mulher, dentro e fora das imagens, como um
“objeto da visão” (BERGER, 1999, p. 49). Essa convenção se fez (e ainda faz) presente em grande
parte da história das imagens ocidentais. Discutindo a questão a partir da história da arte, Berger
(1999, p. 66) comenta que as formas de representar a figura humana e de consumir essas
representações têm no gênero um importante marcador de diferença: “A mulher é representada de
uma maneira bastante diferente do homem — não porque o feminino é diferente do masculino —
mas porque se presume sempre que o espectador ‘ideal’ é masculino, e a imagem da mulher tem
como objetivo agradá-lo”.
Sturken e Cartwright (2001, p. 80, tradução nossa) apontam que “a convenção de retratar
mulheres como objetos do olhar e homens como espectadores continua a existir hoje, embora em
um contexto imagético consideravelmente mais complexo”. As autoras asseveram que faz parte
do cânone de representação dos corpos humanos a exposição das mulheres de modo a enfatizar
seu status como entidades sexuais, o que é perceptível desde a gênese da arte ocidental às
abundantes imagens publicitárias da contemporaneidade.
Na publicidade, as representações da mulher foram e ainda estão ligadas ao status de
corpo-objeto, sua imagem construída em associação à sexualização. As alusões à sexualidade são
estímulos que fixam a atenção do consumidor, reforçando a ideia de que “o sexo vende”, uma das
máximas mais apregoadas no meio publicitário. É importante ressaltar que “a publicidade não
inventa coisas; seu discurso, suas representações estão sempre relacionados com o conhecimento
que circula na sociedade” (SABAT, 2001, p. 12). Assim, o papel social conferido às mulheres nas
sociedades ocidentais vê-se refletido nas imagens produzidas dentro de suas dinâmicas:
Ao utilizar essas estratégias como forma de atingir consumidoras/es, a publicidade está
trabalhando a partir de um currículo cultural que é constituído nas relações sociais e que
opera como constituidor dessas mesmas relações. Tal currículo cultural faz parte de uma
pedagogia específica, composta por um repertório de significados que, por sua vez,
constroem e constituem identidades culturais hegemônicas. Pelas imagens publicitárias,
podemos observar como as relações de gênero estão sendo vistas por determinada
sociedade, ou seja, quais os significados mais ligados às mulheres e aos homens, ou quais
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os significantes mais diretamente relacionados aos comportamentos masculinos e


femininos desejados socialmente (SABAT, 2001, p. 14).

Toda a discussão até então feita sobre gênero e representação aplica-se à imagem aqui
discutida. No entanto, é importante trazer à baila a questão da interseccionalidade ao estudar o
corpo feminino presente nessa imagem. Desse modo, faz-se necessário perceber em que panorama
geral essa fotografia de uma mulher brasileira está situado, uma vez que “as mulheres brasileiras
são representadas seguidamente através de seus corpos exageradamente sexualizados. O elo entre
gênero e nacionalidade ajuda a construir discursos sobre elas e seus corpos” (BALLERINI, 2018,
n. p.). Albuquerque, Bragança e Lima (2019, p. 449) clarificam que
a imagem que se cria em relação à mulher brasileira, imagem esta construída e
disseminada sobretudo pelos meios de comunicação de massa, é permeada por forte teor
sexual, objetificando e submetendo tal mulher ao desejo e fetiche alheio (sobretudo, mas
não exclusivamente, ao desejo e fetiche masculino). [...] essa imagem é exposta como
uma representação da identidade nacional brasileira como um todo, gerando um
estereótipo em relação à própria representação do Brasil enquanto país, ao tomar-se em
conta as representações das mulheres: a imagem de um país de sexo fácil, festas, carnaval,
futebol e cerveja.

A construção simbólica da mulher brasileira está, desse modo, perpassada por estereótipos
construídos e reforçados no curso da história por aparelhos públicos e privados. A própria
sociedade brasileira é conivente com a subjugação da mulher e participa ativamente do processo
de instituição e perpetuação desse tipo de discurso e prática.
A imagem estudada foi produzida e replicada por um órgão oficial do “governo” do Brasil
então em exercício, o que demonstra um flagrante desrespeito às cidadãs brasileiras. No entanto,
essa representação não destoa da realidade vivida pelas mulheres antes, durante e depois do
período em que ela foi elaborada e distribuída. Compreender as violências simbólicas praticadas
contra as mulheres, vítimas desse aparelho midiático e estatal, é salutar para as discussões não
somente sobre o turismo no país, mas também para a cada vez mais necessária denúncia dos
reflexos deixados no imaginário coletivo por esse tipo de postura daqueles que compõem e
representam a sociedade brasileira.

5 Considerações finais

A imagem estudada integra um material publicitário concebido e divulgado no exterior em


1983 pela EMBRATUR, órgão estatal criado durante a ditadura militar. Ela faz parte da
construção histórica da narrativa que apresenta a mulher brasileira como bela, curvilínea, sensual,
provocante, sedutora, disponível e fácil. Desde a época colonial, era comum executar
representações da mulher brasileira que partilham dessas ideias, apresentando aos estrangeiros
essa imagem deturpada da figura feminina nativa do país. Essas representações, comumente
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executadas por homens, tornaram banal a percepção de que o corpo da mulher brasileira é
convidativo ao olhar e às ações masculinas.
Essa forma de exibir e oferecer as mulheres brasileiras foi empregada no período da
ditadura militar como uma estratégia para conquistar turistas, corroborando com a imagem de uma
mulher-objeto, que infelizmente ainda é notória na atualidade em discursos como o do presidente
da República Jair Messias Bolsonaro que, em abril de 2019, em meio a uma controversa fala sobre
o turismo LGBTQ+, convidou: “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à
vontade”183 (apud LIMA, 2019).
Devemos refletir sobre imagens e discursos como esses, uma vez que eles impulsionam a
percepção do Brasil como um local ideal para a prática do turismo sexual, disseminando a ideia
de que no país seria autorizado aos turistas desfrutar, dentre as tantas maravilhas que tornam o
território brasileiro um destino de férias ideal, de mulheres bronzeadas, sensuais e disponíveis
cujas representações servem, implícita ou explicitamente, ao estímulo de desejos dessa ordem.

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do Turismo, Rio de Janeiro, v. 5, n. 3, p. 01-30, set. 2010.

183
Nesse contexto, a EMBRATUR se posicionou através de nota, afirmando que “em campanhas publicitárias, [...] a
autarquia tem a preocupação de não exibir e não exaltar corpos masculinos e femininos, para não ter conotação sexual”
(apud MARIZ, 2019), postura claramente diferente da adotada no passado.Em resposta à fala do presidente, governos,
órgãos e entidades de diversos estados, como Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia, Alagoas
e Espírito Santo, lançaram campanhas de repúdio ao turismo sexual.
Página 964 de 2230

LIMA, Juliana. As mulheres e o turismo no Brasil, da Embratur a Bolsonaro. Nexo Jornal, São
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Página 965 de 2230

A CRÍTICA À MORAL E A TRANSVALORAÇÃO DOS VALORES COMO


SUPERAÇÃO DO CRISTIANISMO

CRITICISM OF MORALITY AND THE TRANSVALUATION OF VALUES SUCH AS


RESILIENCE OF CHRISTIANITY

Gilvan da Silva Monteles


Graduado em Filosofia e Professor da Rede Pública.
Luciano da Silva Façanha
Doutor em Filosofia e professora da Universidade federal do Maranhão

Eixo temático 2 – Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Este artigo aborda a crítica do filósofo alemão Friedrich Nietzsche à moral judaico-cristã
e a proposta de transvaloração dos valores como superação do cristianismo. Toma-se como base
para a pesquisa bibliográfica às obras, Genealogia da moral, O Anticristo, e Assim Falou
Zaratustra. Estrutura-se em dois tópicos, o primeiro discorre sobre o processo genealógico da
moral, apontando a origem dos valores “bom” e “mau” e o ideal ascético como negação da vida
em favor do mundo de Deus. O segundo tópico aponta a crítica de Nietzsche ao cristianismo,
responsável por tornar o homem um decadente, e, identifica a transvaloração dos valores como
proposta nietzschiana de superação do cristianismo.
Palavras-Chave: Nietzsche; Transvaloração dos valores; Moral; Cristianismo; Super-homem.

Abstract: This article discusses the criticism the German philosopher Friedrich Nietzsche to
moral Judeo-Christian tradition and the proposal of transvaluation of values such as resilience of
Christianity. Take as basis for the literature search to works, Genealogy of morals, the Antichrist,
and thus spoke Zarathustra. Structured in two threads, the first discusses the genealogical process
of morality, pointing the origin of values "good" and "bad" and the ascetic ideal as denial of life
in favor of the world of God. The second topic points to Nietzsche's critique of Christianity,
responsible for making the man a decadent, and identifies the transvaluation of values as
Nietzschean proposal of overcoming of Christianity.
Keywords: Nietzsche; Transvaluation of values; Morale; Christianity; Superman.

1 INTRODUÇÃO

A filosofia de Nietzsche é uma crítica à sua época, surge num tempo e espaço
determinado e preciso, segundo Scarlett Marton quando o filósofo afirma ter nascido póstumo ele
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quer com isso dizer que não pertence ao seu tempo, está além do seu próprio tempo e por essa
razão a sua crítica radical. Para Giacoia Junior, Nietzsche realiza um diagnóstico do homem
moderno, um homem que se ver como o último homem, herdeiro do progresso do iluminismo e
capaz de construir uma sociedade igual para todos os homens, livre de violência e exploração.
A obra de Nietzsche costuma ser dividida em três fases184: primeiro período, o do
jovem Nietzsche, entre os anos de 1870 a 1876; o segundo período, entre os anos de 1876 a 1882;
e o terceiro período, Nietzsche maduro, entre os anos de 1882 a 1889.
O terceiro período da filosofia Nietzschiana que inicia com Assim Falou Zaratustra
(1883 – 1885), está voltado para a desconstrução da metafísica, a crítica a moral, além de
preocupações com a educação, a política e a cultura. Em análise aos escritos desse período, a
saber, Assim falou Zaratustra (1883-1885), Genealogia da moral (1887) e O Anticristo (1888),
percebe-se uma crítica ao homem moderno, nos seus aspectos artísticos, religiosos, morais e
políticos, bem como a proposta de transvaloração dos valores para superar a moral de “bem” e
“mal”, ou seja, a moral cristã.
Segundo Nietzsche, a moral é um conjunto de valores estabelecidos na sociedade a
qual seus membros devem obediência aos costumes determinados pela tradição, torna-se uma
autoridade e o ser moral tem que cumprir nos atos mais difíceis e até mesmo se sacrificar pelos
costumes. O filósofo tenta resolver o problema da moral, e busca saber a origem dos preconceitos
morais, das ideias de bem e mal, e não se preocupa apenas com os conceitos, busca saber ainda
como eles são aplicados na sociedade.
No livro Assim falou Zaratustra (1883 – 1885), Nietzsche critica todas as esferas da
tradição ocidental, além de propor a doutrina do além-do-homem, um homem além do bem e do
mal, valores esses relativizados pelo homem moderno, que se julga o “último homem”185. Em
Genealogia da moral (1887), o filósofo filologicamente busca saber a origem dos termos bem e
mal, traça uma série de críticas a moral judaico-cristã, considerando-a uma moral de rebanho,
onde o homem é guiado por um pastor sem possibilidades de desprendimento, pois em caso de
rebelião é considerado o pior dos homens e será punido por castigos divino. Além disso, trata dos
ideais ascéticos, ideais inventados pelos sacerdotes, que consiste na ideia de que existe outro
mundo, o mundo de Deus, que subordina o homem na terra. Em O Anticristo (1888), Nietzsche

184
Divisão elaborada por Giacoia Junior, no livro Nietzsche (2000).
185
Conforme Giacoia Junior “o último homem simboliza a modernidade, que considera a si mesma o ponto mais
avançado do desenvolvimento histórico da humanidade, acreditando que a finalidade dessa história consistia
precisamente na chegada do moderno. Orgulhoso de sua cultura e formação, que o elevaria acima de todo passado, o
último homem crê na onipotência de seu saber e de seu agir. Para Zaratustra, entretanto, o último homem representa
o mais inquietante rebaixamento de valor do ser humano, a transformação do homem numa massa impessoal de seres
uniformes. O bem supremo almejado pelo último homem — sua concepção de felicidade — é uma combinação de
mediocridade, conforto, bem-estar, ausência de sofrimento e grandeza” (2000, p. 53).
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lança mão de uma série de críticas ao cristianismo e ao platonismo, chegando a compará-los,


distinguindo-os apenas por quem deles faz uso: cristianismo para os escravos e platonismo para
os aristocratas. E se o cristianismo é o responsável pela decadência do homem ocidental se faz
necessário uma transvaloração dos valores.
Sendo assim, pretende-se compreender a crítica nietzschiana a moral judaico-cristã,
bem como a proposta de transvaloração dos valores como superação do cristianismo. Para tanto,
elenca-se os seguintes problemas: Por que Nietzsche critica a moral judaico-cristã? É possível
uma transvaloração dos valores superar o cristianismo? Se sim, como se dá essa transvaloração
dos valores?
Para tentar compreender os problemas elencados, tomaremos como base as seguintes
obras de Nietzsche: Genealogia da moral, O Anticristo, e Assim Falou Zaratustra e outras obras
do filósofo quando se fizer necessário. Além disso, faz-se uso de comentadores e estudiosos do
filósofo alemão para elucidar a proposta do tema.
Estrutura-se em dois tópicos: o primeiro abordará o estudo genealógico sobre a moral,
apontando a origem dos valores “bom” e “mau” e o ideal ascético como negação da vida; o
segundo tópico tratará da crítica de Nietzsche ao cristianismo, e, sobre a proposta de
transvaloração dos valores como superação do cristianismo.

2 O PROCESSO GENEALÓGICO DA MORAL

Quem foi Nietzsche? É indispensável saber quem foi o pensador. Nasceu em 15 de


outubro de 1844 em Rocken na Alemanha, de Família cristã protestante, tanto seu avô quanto seu
pai eram pastores e tudo levaria o filósofo a seguir o mesmo caminho de seus predecessores.
Nietzsche perde o pai logo cedo, aos cinco anos de idade, mas seguiu os estudos cristãos e na
escola os colegas lhe tinham como um pastor.
Da leitura do livro Mundo como vontade e representação de Arthur Schopenhauer e
da amizade com o músico Richard Wagner, Nietzsche pôde produzir sua primeira obra intitulada
Nascimento da tragédia, escrita em 1862. Foi professor de Filologia na universidade de Basileia
e em 1869 por razões de saúde deixou a universidade e começou a viajar pela Suíça, França e
Itália.
Em 1881 publica Aurora, em 1882 publica Gaia Ciência e em 1883 concebe Assim
falava Zaratustra, obras bases para o que viria depois, uma crítica a moral cristã e a proposta de
transvaloração dos valores, que são concebidas nos livros Além do bem e do mal, Genealogia da
moral, O Anticristo, Crepúsculo dos ídolos, Hecce Homo e em sua obra publicada postumamente
Vontade de potência. Nietzsche morre em 25 de Agosto de 1900.
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Friedrich Nietzsche é considerado o "filosofo das marteladas", o “destruidor de


ídolos”, é tido como crítico impiedoso do passado, como o profeta do próprio destino, intitulava-
se o espírito que contradiz em tudo. Contraria o positivismo, o idealismo alemão, a ideia de
progresso, critica o cristianismo, os céticos, os imoralistas, e aponta a moral cristã como uma
invenção dogmática de sacerdotes ressentidos.
O filósofo critica ainda a filosofia idealista, a ciência, a religião, os céticos, os
anticristãos, é o intérprete do próprio destino, crítico impiedoso do passado, destruidor de valores
e defensor do homem do futuro. O filósofo intitulava-se adversário da compaixão, do escandaloso
sentimentalismo moderno, e por isso propõe uma crítica aos valores morais, busca saber como
surgiram esses valores, para servir a quem e com qual propósito, se foram para oprimir ou livrar
da opressão.
Nietzsche surge no século XIX, momento onde a filosofia passava por um período de
decadência cultural, uma ideia de progresso de uma modernidade decadente. Sua filosofia abarcou
problemas de seu próprio tempo, contudo, não é um filósofo apenas de seu século, deixou
problemas que influenciaram filósofos contemporâneos, como Heidegger, Foucault e Deleuze.
O livro Assim falou Zaratustra (1883 – 1885) marca o início do terceiro período de
produção nietzschiana, a crítica a moral e a proposta de transvaloração dos valores, porém,
Nietzsche não é crítico apenas da moral, criticou também a arte, as ciências e a própria filosofia
ocidental, uma filosofia metafísica, entendida como uma filosofia que divide o mundo em dois, o
mundo de Deus e o mundo dos homens, sendo que o primeiro subordina o segundo.
Nietzsche concebe a filosofia ocidental em consonância com a moral judaico-cristã,
pois tanto o platonismo quanto o cristianismo são sustentados por um mundo suprassensível.
Portanto, segundo o filósofo é necessário que homem supere os próprios valores, autossupere-se
a todo instante, rompa com valores cristãos que o domina, tornando-o fraco.
Zaratustra, personagem central do livro Assim falou Zaratustra, andou por muitas
terras e por todas as terras que andou não encontrou nenhum valor que superasse os valores de
bem e mal, todos os povos possuem uma tábua de valores.

Uma tábua de valores se acha suspensa sobre cada povo. Olha, é a tábua de suas
superações; olha, é a voz de sua vontade de poder.
Louvável é o que ele julga difícil; o que é indispensável e difícil considera bom,
e o que liberta da necessidade suprema, o raro, dificílimo — ele exalta como
sagrado.
O que faz com que domine, vença e brilhe, para horror e inveja de seu vizinho:
isso julga elevado, o primeiro de tudo, a medida, o sentido das coisas
(NIETZSCHE, 2011, p. 57).
Página 969 de 2230

Nessa passagem o personagem constata que as tábuas de valores foram criadas pelo
próprio homem, fruto de suas superações, ou seja, o desejo de ir além dos outros povos, uma
vontade de dominação, de subjugar o outro. Foi o homem que primeiramente pôs valores nas
coisas, “para se conservar — foi o primeiro a criar sentido para as coisas, um sentido humano!”
(NIETZSCHE, 2011, p. 58).
Para Antonio Edmilson Paschoal, Nietzsche é o primeiro a utilizar o termo
"genealogia", com o "sentido de busca de herança dos antepassados, de conhecimentos sobre a
origem daquele que ainda vive". No entanto, deve ser acrescentada a ideia de investigação, "da
busca pela herança deixada pelos antepassados, o seu engajamento, a partir do qual sua
investigação ganha forma". O autor entende ainda que, o procedimento genealógico se articula
com uma "transvaloração [e não uma mera destruição] de todos os valores" (PASCHOAL, 2000,
p. 3-5).
De acordo com Paschoal a genealogia consiste ainda numa interpretação, dessa
maneira, uma proposta de reinterpretar, ao passo que propõe a inversão do sentido da interpretação
dominante.

O que ele pretende é tomar as regras do jogo, assumir o próprio ‘impulso tirânico’
da filosofia, sem, contudo, querer ocultar o solo de onde se exprime, sua realidade
perspectiva. Com isto, Nietzsche não se propõe simplesmente a ‘desmascarar’ a
filosofia ou a pretensão à verdade dos filósofos; como estes, pretende portar uma
máscara (tendendo mesmo para uma caricatura) como forma de mostrar que
todas as demais filosofias também são máscaras. A diferença é que ele não
procura cristalizar sua perspectiva como uma ‘verdade’, com o que estaria
negando o jogo das perspectivas, mas fazer seguir o próprio jogo, mantê-lo em
movimento – se é que ele poderia parar. Nietzsche atua como uma vontade de
poder ativa que torna o interpretar ativo, que pelo seu dizer ‘sim’ ao próprio jogo
quer oferecer-lhe a possibilidade de dar seus próximos passos e com isto levar o
homem moderno à sua auto-superação (PASCHOAL, 2000, p. 6, grifos do autor).

Dessa forma, o processo de genealogia da moral surge como procedimento para a


proposta de transvaloração dos valores, uma vez que Nietzsche acredita que os valores são apenas
avaliações e que depois servirão de base para novas avaliações, dessa forma, faz-se necessário
investigar as valorações “bom” e “mau”.
Vânia Azeredo observa que “a análise nietzschiana centra-se na interpretação, pois
não existem fatos morais, apenas interpretações que são tomadas pela tradição como fatos”. Dessa
forma, “a verdade, a universalidade, a essência, o ser e Deus são interpretações introduzidas pelo
homem no mundo, convenções que referendam um modo de ser, que viabilizam uma dada
existência” (2000, p. 10).
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Em Ecce Homo (1880), Nietzsche afirma que a genealogia da moral consiste em “três
decisivos trabalhos de um psicólogo, preliminar a uma transvaloração de todos os valores”. Em
que

A verdade da primeira dissertação é a psicologia do cristianismo: o nascimento


do cristianismo do espírito do ressentimento, não, como se crê, do ‘espírito’ —
um antimovimento em sua essência, a grande revolta contra a dominação dos
valores nobres. A segunda dissertação oferece a psicologia da consciência: a
mesma não é, como se crê, ‘a voz de Deus no homem’ — é o instinto de crueldade
que se volta para trás, quando já não pode se descarregar para fora. A crueldade
pela primeira vez revelada como um dos mais antigos e indeléveis substratos da
cultura. A terceira dissertação dá resposta à questão de onde procede o tremendo
poder do ideal ascético, do ideal sacerdotal, embora o mesmo seja o ideal nocivo
por excellence, uma vontade de fim, um ideal de decadence (NIETZSCHE, 2008,
p. 93, grifos do autor).

Conforme Vânia Azeredo, a genealogia se apresenta como procedimento que


possibilita “identificar o valor dos valores pela remessa do valor às suas condições de produção:
interpretação e avaliação” (2000, p. 12).
Para Scarlett Marton, quando se investiga no que consiste os valores morais, torna-se
possível traçar uma dupla história sobre o bem e mal: da perspectiva do cordeiro, mau é quem
causa temor e bom deve ser aquele de quem não há nada a temer; numa palavra, mau é o forte e
bom o fraco; da perspectiva da ave de rapina, bom é quem quer lutar e ruim quem não é digno de
participar dela; numa palavra, bom é o forte e ruim é o fraco (1993, p. 51-52).
O que justifica quando Paschoal afirma que por “trás dos pressupostos básicos de toda
moral, há sempre a afirmação de um determinado tipo de homem, que ela defende e que apresenta
como sendo o ‘melhor’ (o ‘ideal’) em relação a outros tipos e outros homens de fato ou possíveis”
(2009, p. 95).
Nietzsche considera o homem moderno um doente, um homem preso em um labirinto,
que não sabe nem como entrou e nem como sair, vive a simples doença do sim e do não. Por isso,
percorre toda a história do pensamento sobre a moral, a fim de descobrir as causas da doença que
afeta o homem moderno, e afirma:

[...] necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses
valores deverá ser colocado em questão — para isto é necessário um
conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se
desenvolveram e se modificaram (moral como consequência, como sintoma,
máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa,
medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até
hoje nunca existiu nem foi desejado (NIETZSCHE, 2009, p. 12, grifo do autor).
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Dessa forma, o filósofo sugere um estudo genealógico da moral, pois os valores morais
foram criados para servir a uma classe de homens doentes, homens fracos, homens de rebanho, e
foi apresentada como a única verdade. O homem de espírito livre não pode se deixar guiar por
uma moral de rebanho, uma moral fraca, e para superar esses valores inventados por uma raça
vingativa e venenosa, Nietzsche propõe uma transvaloração dos valores, propõe o surgimento de
um novo homem, um homem além do bem e do mal.
Nietzsche não se preocupa apenas com os conceitos “bom” e “mau”, busca explicar
como eles são aplicados na sociedade. Com pressuposto, historicamente o cristianismo considera
alguns valores como bons em si mesmo, e alguns filósofos fizeram uma mumificação desses
conceitos tornando-os eternos e imutáveis.
O filósofo percebe que a moral não é algo inerente ao homem, ela foi desenvolvida no
homem, o homem foi o responsável por atribuir valores as coisas e começou a agir conforme esses
valores que se tornou moral. Portanto, de onde vem à ideia que o bem é melhor que o mal? Quem
disse que o bem é melhor que o mal?

2.1 A origem do bem e do mal

O filósofo alemão genealogicamente constata que desde o início da humanidade o bom


era definido fisiologicamente pelo mais forte, o mais forte era o bom e definia tudo que era bom.
O bom era um atributo do sujeito – a superioridade, os aristocratas eram aqueles que podiam
escandalizar seus instintos. Não reprimiam seus instintos, eles exaltavam a força, a guerra, não
abriam mão de dizer como as coisas eram, expressavam uma vontade de poder, afirmavam a vida,
pois era dos instintos que eles tiravam a sua afirmação, sua felicidade.
Como afirma Vânia Azeredo, em Nietzsche surge hipótese de que o juízo bom proviria
daqueles que se sentiam como bons, ou seja, homens distintos, poderosos e superiores, “que
julgavam como boas suas ações sem pensar na utilidade das mesmas, mas com o intuito de
diferenciar o seu ser, mais do que o seu fazer, de um ser e fazer baixo e vulgar”. Já “o juízo ruim
era estabelecido por esses mesmos homens para designar o homem baixo, vulgar, e seu respectivo
fazer” (2000, p. 50).
Para compreender o verdadeiro conceito de “bom” e “mau”, Nietzsche buscou
distinguir nas diferentes línguas e descobre a grande semelhança entre as oposições nobre e
plebeu, branco e negro, livre e escravo. E tudo de mal estava atribuído às oposições dos nobres.

Descobri então que todas elas remetem à mesma transformação conceitual – que,
em toda parte, ‘nobre’, ‘aristocrático’, no sentido social, é o conceito básico a
partir do qual necessariamente se desenvolveu ‘bom’, no sentido de
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‘espiritualmente nobre’, ‘aristocrático’, de ‘espiritualmente bem-nascido’,


‘espiritualmente privilegiado’: um desenvolvimento que sempre corre paralelo
àquele outro que faz ‘plebe’, ‘comum’, ‘baixo’, transmutar-se finalmente em
‘ruim’ (NIETZSCHE, 2009, p. 18, grifos do autor).

No entanto, a raça dos sacerdotes que advinham dos “bem nascidos” foram os
responsáveis por fazer emergir uma inversão de valores, uma raça que sofria segundo Nietzsche,
de problemas mentais e que inventaram uma cura para as doenças que afetam a sociedade pior do
que o verdadeiro antidoto. Demonstrou-se “ser mil vezes mais perigoso, em seus efeitos ulteriores,
do que a doença de que deveria curar? A própria humanidade sofre ainda os efeitos dessas
veleidades de cura sacerdotais” (NIETZSCHE, 2009, p. 22).
Os escravos se unem aos sacerdotes em troca desse remédio, um deus, outro mundo.
Acham motivo para afirmar que a vida é má, injusta, miserável. Nietzsche ressalta que o que
diferencia o homem dos outros animais é justamente o que os sacerdotes a serviço da aristocracia
com o poder de dominar e hostilizar o fez, os guiaram ora sentido a realização de sonhos, ora em
rumo à explosão de sentimentos, sem contar com um plano de fuga e encontro com Deus. Nessa
oposição de valores predominantes leva o homem a uma superioridade e faz nascer o mal.
Destaca-se que a oposição de bem e mal se inicia com a oposição entre a raça
sacerdotal e a raça dos guerreiros, ambos, participantes da aristocracia, mas mesmo pertencendo
à aristocracia os sacerdotes não tinham poder, nem dinheiro, pois esses bens advinham da guerra,
algo que os sacerdotes eram contra. Os sacerdotes, os guerreiros fracassados, os homens
internalizam os seus desejos e usam os judeus, o povo, os escravos, para seu plano de vingança.
Os sacerdotes propõem a anulação do mundo da vida em nome de um mundo sem
instintos, sem sofrimentos, sem problemas. Eles remetem a vida para um mundo do nada,
transferem o valor da vida para o mundo de deus.
A vingança de uma raça venenosa e vingativa foi responsável por uma indignação dos
escravos, dos pobres, pois com um plano de vingança, transformaram tudo que era mau para os
guerreiros em bom, ou seja, os judeus inverteram radicalmente todos os seus valores.

Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de


valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses),
e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se
apegaram a esta inversão, a saber, ‘os miseráveis somente são os bons, apenas os
pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes
são os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança – mas
vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis,
os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os
desventurados, malditos e danados!...’ (NIETZSCHE, 2009, p. 23, grifos do
autor).
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Não se consegue perceber que do ódio judeu e do plano de vingança judaico acontece
à inversão de valores, mas é entendido por Nietzsche que se trata de dois mil anos para uma
sociedade sem esclarecimento entender. É posto em questionamento a crucificação de Jesus de
Nazaré como sendo apenas um instrumento de vingança de Israel e que sua morte e crucificação
foi simplesmente uma estratégia de comparação a um deus crucificado por lutar pela salvação do
homem. Prova disso é que Israel com seus ideais triunfa até hoje sobre os ideais dos nobres.
Quem venceu o combate sobre a moral? “O povo venceu – ou ‘os escravos’, ou ‘a
plebe’, ou ‘o rebanho’, ou como quiser chamá-lo – se isto aconteceu graças aos judeus, muito
bem! Jamais um povo teve missão maior na história universal” (NIETZSCHE, 2009, p. 25). A
moral do homem comum venceu e é por isso que tudo se cristianiza tudo se plebeiza:

A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna


criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira
reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginárias obtém reparação.
Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início
a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ – e este Não é seu
ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário
dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento:
a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para
poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação. O contrário sucede no modo
de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas
para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão (NIETZSCHE,
2009, p. 26, grifos do autor).

O ressentimento dos escravos é o responsável por criar valores, para isso nega a si
mesmo e o seu mundo, essa negação de si em nome de outro mundo é em geral a moral dos
escravos. O escravo precisa se autodeclarar arrebatado para convencer que está correto em sua
avaliação sobre os valores de bem e mal, enquanto um nobre afirma a si mesmo, sua existência,
não se vitimiza, mesmo quando sente ódio é um sentimento natural humano, não pensa em
vingança e quando isso acontece nem se compara com a vingança dos pobres ou escravos que
precisam falsificar a imagem do objeto desprezado, a fim de ridicularizá-lo e torná-lo monstro.
Para Vânia Azeredo, os valores “bom e ruim sempre tiveram seu estabelecimento
associado à nobreza ou à vilania segundo a vontade que estava por trás de determinado tipo de
homem”. Em um primeiro momento o tipo de homem nobre atribuía para si o valor “bom” e
“ruim” para o seu oposto. “Mas, em segundo momento, houve uma inversão, que se estabeleceu
quando o bom, outrora sinônimo de nobre, passou a ser atribuído a tipo vil, e o mau, outrora
sinônimo de vil, enquanto ruim, passou a ser atribuído ao tipo nobre” (2000, p. 58).

2.2 A crítica aos ideais ascéticos


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Os escravos saem vitoriosos do combate, mas como não puderam tornar-se senhores
de si mesmos criaram alguns valores como: a memória, justiça, adaptação e o pior deles, o castigo,
que leva o homem a não agir, fazendo com que crie uma má consciência. E o medo de ser castigado
faz o homem reprimir seus instintos e criar um mundo interior.
Segundo Nietzsche o esquecimento propicia a calma, tranquilidade, cuida da
manutenção da ordem psíquica, e uma vez ocultado essa faculdade o homem não pode exercer sua
vontade de poder. Criam a memória para que o ressentimento nunca deixe de cessar e causar
danos:

quando o homem sentiu a necessidade de criar em si a memória; os mais


horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as
mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais
de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo,
sistemas de crueldades) – tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na
dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica (NIETZSCHE, 2009, p. 46)

Educar o animal homem foi uma das formas de impregnar uma má consciência, uma
consciência de dívida com Deus, uma dívida que sempre terá que ser paga com o sofrimento, com
crueldade, “sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do
homem; e no castigo também há muito de festivo!” (NIETZSCHE, 2009, p. 51). A moralização
domestica o animal homem e acaba reprimindo seus instintos.

O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido;
mas nem para o cristão, que interpretou o sofrimento introduzindo- lhe todo um
mecanismo secreto de salvação, nem para ingênuo das eras antigas, que explicava
todo sofrimento em consideração a espectadores ou a seus causadores, existia tal
sofrimento sem sentido. Para que o sofrimento oculto, não descoberto, não
testemunhado, pudesse ser abolido do mundo e honestamente negado, o homem
se viu então praticamente obrigado a inventar deuses e seres intermediários para
todos os céus e abismos, algo, em suma, que também vagueia no oculto, que
também vê no escuro, e que não dispensa facilmente um espetáculo interessante
de dor (NIETZSCHE, 2009, p. 53, grifo do autor).

Dessa maneira, segundo Nietzsche o que mais repugnava não era o sofrimento, mas
segundo ele próprio um sofrimento sem sentido. Inventaram os deuses para justificar essa
crueldade, criam o castigo para despertar um sentimento de culpa, uma má consciência, uma vez
que não reprime seus instintos e não paga sua dívida é mandado de volta a um estado selvagem.
A moral dos costumes aprisionou o homem e tornou-lhe decifrável. Como diz Vânia
Azeredo, “a moralidade do costume é percebida como a capacidade ou mesmo a condição do
humano de obedecer a leis, cujo referencial regulador encontra-se em uma superioridade imanente
expressa na figura da tradição” (2000, p. 93). Segundo Nietzsche somente quando o homem se
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livrar das grades que lhe aprisionam será novamente autônomo, independente e dotado de vontade
de poder. “O homem livre”, um homem de instinto dominante, que afirma o bom e despreza o
mau a partir de si mesmo e que tem consciência de sua supremacia.
As religiões com seus cultos são fontes de crueldade, para Nietzsche a má consciência
é justamente o oposto da privação de instintos, não agir de acordo seus instintos, obrigando-se a
desenvolver interiormente, isso é a má consciência. “Vejo a má consciência como a profunda
doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu”
(NIETZSCHE, 2009, p. 67).
O ascetismo, a afirmação de outro mundo, pertence ao domínio das religiões que
precisam tornar as coisas inesquecíveis para que continue o seu triunfo mantendo na memória dos
escravos os infortúnios naturais, como a repressão de seus instintos. O ideal ascético é a doença
mais perigosa dos padres e de seus rebanhos.
Para Nietzsche os valores metafísicos seriam resultado de uma invenção, e essa
invenção desencadeou os ideais ascéticos. O que são ideais ascéticos? Segundo Vânia Azeredo,

Nietzsche apresenta este ideal como o único vigente e, nesse sentido, como
suporte metafísico da religião, da moral, da filosofia e da ciência. A sua
significação está diretamente relacionada com a busca de sentido e a salvaguarda
da vontade de potência. Nesse ideal quer-se o nada, mas se preserva o querer,
possibilitando compreender o significado expresso na transposição do valor ao
plano imaginário (2000, p. 139).

A pobreza, a humildade e a castidade fazem a magia do ideal ascético. O homem


doente, o infectado com ideais ascéticos é o responsável por todas as mazelas que afeta os homens
modernos e para não assumirem seu ódio querem apresentar como verdade um desejo de justiça,
amor e prudência.
De acordo com o filósofo pode-se considerar o sacerdote asceta como salvador dos
doentes, o pastor predestinado a curar o rebanho doente. O pastor tem a função de defender o seu
rebanho dos sábios, dos rudes, dos felizes, dos selvagens. O sacerdote tem que ser capaz de ter a
mesma vontade de poder dos sadios para que em um confronto possa proteger o seu rebanho.

Uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar,


aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja senhorear-se, não
de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas
e fundamentais; aqui se faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte da
força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o florescimento
fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão, a beleza, a alegria;
enquanto se experimenta se se busca satisfação no malogro, na desventura, no
fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si, autoflagelação e
autossacrifício. Tudo isso é paradoxal no mais alto grau: estamos aqui diante de
uma desarmonia que se quer desarmônica, que frui a si mesma neste sofrimento,
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e torna-se inclusive mais triunfante e confiante à medida que diminui o seu


pressuposto, a vitalidade fisiológica (NIETZSCHE, 2009, p. 99, grifos do autor).

Vânia Azeredo observa que “a contradição de que Nietzsche está falando é a de luta
contra a própria vida e, ao mesmo tempo, do retirar dessa luta a maneira de preservar a vida”
(2000, p. 142).
O sacerdote é astuto, consegue ferir os sadios e transformar em doentes da mesma
forma que domesticam os doentes, “é o responsável direto pela introdução da culpabilidade e pela
transformação do doente em pecador, através da mudança de direção do ressentimento”
(AZEREDO, 2000, p. 139).

‘Eu sofro: disso alguém deve ser o culpado’ – assim pensa toda ovelha doente.
Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: ‘Isso mesmo, minha ovelha!
Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém – somente você é
culpada de si!...’. Isto é ousado bastante, falso bastante: mas com isto se alcança
uma coisa ao menos, com isto, como disse, a direção do ressentimento é –
mudada (NIETZSCHE, 2009, p. 109, grifos do autor).

O sacerdote é o doente indicado para mostrar ao rebanho que a culpa não está no outro,
mas nele mesmo, ele mesmo é o culpado de sua desgraça e com uma paixão doentia faz buscar o
consolo no cristianismo, o cristianismo é religião do consolo. Desde o início do cristianismo pode
se perceber a vontade de rebanho, juntar o máximo possível de doentes para serem tratados.
Segundo Nietzsche o rebanho foi formado por um instinto de proteção dos mais fracos,
dos plebeus, dos escravos e os sacerdotes foram os que com sabedoria souberam organizar esse
rebanho, reduzem todos os membros do rebanho a uma única coisa. O ideal ascético reduz tudo a
sua única interpretação, se coloca como o poder supremo, o poder que dar sentido a todos os outros
abaixo de si.

3 A TRANSVALORAÇÃO DOS VALORES CRISTÃOS

A genealogia da moral nietzschiana não se contenta apenas com a análise histórica dos
conceitos morais, é uma preparação para uma transvaloração dos valores, empreendimento esse
que está vinculado ao livro O Anticristo. Obra em que Nietzsche traça uma crítica ao cristianismo,
religião que segundo o filósofo é responsável por tonar o homem doente.
Nietzsche considera tudo que parte do cristianismo como danoso ao homem, com essa
religião da compaixão a humanidade se transformou num rebanho, tornou-se um animal
doméstico. Dessa forma, o filósofo acredita que os valores cristãos precisam ser superados.
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A rejeição dos valores cristãos se dá por serem postulados metafísicos, uma vez que,
Nietzsche, acredita serem esses valores, históricos, sociais e produzidos pelo próprio homem.
Apontando assim, o projeto de transvaloração dos valores, projeto esse que visa se “opor aos
valores superiores, e mesmo à negação desses valores, a vida como condição do valor, propondo
a criação de novos valores, que sejam os valores da vida, ou melhor, propondo a criação de novas
possibilidades de vida” (MACHADO, 2017, p. 123).
Para que a transvaloração dos valores seja posta em prática, faz-se necessário
compreender o cristianismo como responsável por tornar o homem um ser decadente, para isso,
Nietzsche utiliza-se de sua obra O Anticristo. Entretanto, não basta compreender o cristianismo
como a ruina da vida humana, o homem precisa inverter os valores cristãos, valores que são frutos
de uma inversão de homens ressentidos, homens fracos, e criar valores para além do bem e do
mal.

3.1 O cristianismo como decadência da cultura

Em O Anticristo, Nietzsche empreende uma crítica ao cristianismo, como é constatado


por Scarlett Marton, onde a autora afirma que o filósofo encara “a moral cristã como negação da
vida”, além disso, ataca “o altruísmo, a renúncia de si, o amor ao próximo e todas as chamadas
virtudes cristãs, por um lado, e julgue a crueldade, o egoísmo, a cupidez impulsos vitais, por outro”
(1993, p. 64).
De acordo com Nietzsche o homem moderno é medíocre e domesticado, só não
percebe por ter se acostumado a ponto de se colocar como homem superior aos outros animais.
Percebe-se no filósofo um cansaço com o homem moderno que se enche de fraqueza e não faz
nada, se nega a agir e a criar, por outro lado, clama para que o homem tenha uma vontade vital,
para que se assuma enquanto tal, para que forme a si próprio.
Segundo Nietzsche a moral aprisionou o homem e tornou-lhe decifrável, como diz em
Crepúsculo dos Ídolos, a moral “concebe Deus como antítese e condenação da vida”, a moral é a
“negação da vida” (2017, p. 30). E somente quando o homem se livrar das grades que lhe
aprisionam será novamente autônomo, independente e dotado de vontade de poder. “O homem
livre”, um homem de instinto dominante, que afirma o bom e despreza o mau a partir de si mesmo
e que tem consciência de sua supremacia.
Para isso é necessário criar um tipo de homem que seja o terror dos cristãos, o homem
que é contrário da besta humana, que seja digno da vida. Pois o homem moderno está doente, a
doença é uma tradição moral, o cristianismo, a religião da decadência, a religião que se opõe à
natureza, aos instintos do homem e à vida.
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Nietzsche ressalta que a humanidade não se superou, mas nos lembra de que de vez
por outra surge os super-homens186, porém, o cristianismo travou guerras contra os instintos vitais
desse homem superior. Da guerra cristã contra os instintos do homem superior, surgem valores
fracos, homens decadentes, homens que negam seus próprios desejos. Nietzsche entende os
conceitos cristãos como decadência, privam os instintos, privam a vontade de vida, uma vontade
de poder e todos os valores cristãos carecem dessa vontade de poder.
Na guerra entre os nobres e os escravos, o cristianismo tomou o partido dos escravos,
dos fracos, transformando-os nos fortes.

O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado,


transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida
forte; corrompeu a própria razão das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-
lhes a perceber como pecaminosos, como enganosos, como tentações os valores
supremos do espírito (NIETZSCHE, 2007, p. 12)

Nietzsche afirma que o homem com vontade de poder já existe e foi justamente por
isso que a religião no cristianismo criou seu modelo de homem, o oposto do homem digno de vida.
Segundo o filósofo, o cristianismo travou guerra contra todos os instintos desse homem de valor,
do super-homem.
Para Nietzsche o cristianismo é a religião da compaixão que por sua vez é entendido
como sofrimento, prova disso é que Jesus de Nazaré morreu por compaixão, compaixão é
sinônimo de negação da vida. Contudo, os cristãos chamam a incitação à compaixão de Deus.
O filósofo destaca que o homem se considera superior aos outros animais, se enche de
vaidade e se coloca como uma coroação da criação. Porém é o contrário,

não é absolutamente a coroa da criação, cada ser existente se acha, ao lado dele,
no mesmo nível de perfeição... E, ao afirmar isso, ainda afirmamos muito: pois
ele é, considerado relativamente, o animal mais malogrado, o mais doentio, o que
mais perigosamente se desviou de seus instintos — e com tudo isso, é verdade,
também o mais interessante! (NIETZSCHE, 2007, p. 19).

Pois graças ao cristianismo que criou uma série de conceitos, por exemplo: “Deus”,
“alma”, “pecado”, “castigo”, “reino de Deus”, “tentação do Diabo”, “presença de Deus”, “juízo
final”, “vida eterna”, que nem enquanto moral ou enquanto religião tem nada a ver com a
realidade. “O conceito de ‘Deus’ foi, até agora, a maior objeção à existência” (NIETZSCHE, 2017,
p. 39). O cristianismo é contrário à realidade, do ódio cristão ao real criou-se um mundo
imaginário.

186
No Dicionário Nietzsche, o super-homem é apresentado como “aquele que pode ir além do niilismo e de sua
possibilidade de repetição eterna” (MARTON, 2017, p. 106).
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Nietzsche critica o conceito de Deus cristão, um “cosmopolita”, um Deus de todos os


homens, pois, “um povo que ainda crê em si tem ainda também seu próprio deus” (NIETZSCHE,
2017, p. 20) e honram as formas a qual sobrevive, projetam tanto suas alegrias quanto suas
tristezas a um Deus e lhe prestam sacrifícios. Assim faziam os gregos antigos, os deuses eram as
causas dos benefícios, mas também dos malefícios.
O filósofo critica o conceito de Deus cristão, pois seria estranho pensar em um Deus
que não soubesse o que é o mal. Antes os deuses pertenciam exclusivamente a um povo e estava
ligado tanto ao bem quanto ao mal, mas foi invertido e tornou-se somente bom, cortaram-se seus
instintos e tornou-se Deus dos decaídos, dos fracos.

O conceito cristão de Deus — Deus como deus dos doentes, Deus como aranha,
Deus como espírito — é um dos mais corruptos conceitos de Deus que já foi
alcançado na Terra; talvez represente o nadir na evolução descendente dos tipos
divinos. Deus degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração
e eterna afirmação desta! Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à
vontade de vida! Deus como fórmula para toda difamação do ‘aquém’, para toda
mentira sobre o ‘além’! Em Deus o nada divinizado, a vontade de nada
canonizada!... (NIETZSCHE, 2007, p. 23, grifos do autor).

Segundo Nietzsche, o Deus cristão é a contradição da vida – é Deus dos doentes – o


mais corrupto dos conceitos, o nada se torna Deus. Esse é o Deus cristão, o Deus da contradição
dos conceitos, Deus onde a covardia e o cansaço encontra uma aceitação.
Para Nietzsche tanto o deus quanto o demônio são frutos da decadência do homem, é
mistura de zero, conceito e contradição, no qual todos os instintos de décadence, todas as fadigas
e covardias da alma têm sua sanção!:

É cristão um determinado senso de crueldade, contra si mesmo e os outros; o


ódio aos que pensam diferentemente; a vontade de perseguir. Ideias sombrias e
excitantes acham - se em primeiro plano; os estados mais cobiçados, designados
com os mais altos nomes, são epileptóides; a dieta é escolhida de modo a
favorecer manifestações mórbidas e superestimular os nervos. Cristã é a
hostilidade de morte aos senhores da Terra, aos ‘nobres’ — e, ao mesmo tempo,
uma oculta, secreta concorrência (— deixam - lhes o ‘corpo’, querem apenas a
‘alma’...). Cristão é o ódio ao espírito, ao orgulho, coragem, liberdade, libertinage
do espírito; cristão é o ódio aos sentidos, às alegrias dos sentidos, à alegria
mesma... (NIETZSCHE, 2007, p. 25-26, grifos do autor).

O cristianismo quer dominar e para isso torna doente os homens, domestica a


civilização. Os sacerdotes realizaram uma falsificação do conceito de Deus, uma falsificação da
moral:

O conceito de Deus falseado; o conceito de moral falseado: — a classe sacerdotal


judia não ficou nisso. Não havia utilidade para toda a história de Israel: fora com
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ela! — Os sacerdotes realizaram esse milagre de falsificação, cujo documento é


boa parte da Bíblia: com inigualável desprezo por toda tradição, por toda
realidade histórica, traduziram em termos religiosos o próprio passado de seu
povo, ou seja, fizeram dele um estúpido mecanismo salvador, de culpa em
relação a Javé e castigo, de devoção a Javé e recompensa (NIETZSCHE, 2007,
p. 31).

Os sacerdotes amansaram a besta humana e disseram ser isso uma “melhora”, em


Crepúsculos dos Ídolos, Nietzsche afirma que a besta humana foi enfraquecida, “tornada menos
nociva; mediante o depressivo afeto do medo, mediante dor, fome, feridas, ela se torna uma besta
doentia” (2017, p. 41, grifo do autor).
Nietzsche critica Paulo por ser o “portador da boa nova” que cometeu um crime contra
a história, esqueceu tudo que existiu anterior ao cristianismo, inventou uma história do
cristianismo inicial, não parou por aí, falseou a história de Israel mais uma vez, para que ela
aparecesse como pré-história do cristianismo.

Depois a Igreja falseou até a história da humanidade, tornando - a pré-história do


cristianismo... O tipo do Redentor, a doutrina, a prática, a morte, o sentido da
morte, até mesmo o após a morte — nada permaneceu intacto, nada permaneceu
próximo da realidade (NIETZSCHE, 2007, p. 48).

Paulo simplesmente deslocou o centro de gravidade de toda aquela existência para trás
dessa existência — na mentira do Jesus “ressuscitado”. Segundo Nietzsche, Paulo quis com isso
chegar ao poder, “quis os fins, portanto quis também os meios... O que ele mesmo não acreditava,
acreditavam os idiotas aos quais lançou a sua doutrina. — Sua necessidade era o poder”
(NIETZSCHE, 2007, p. 48).

O cristianismo travou guerra mortal, desde os mais secretos cantos dos instintos
ruins, a todo sentimento de reverência e distância entre os homens, ou seja, ao
pressuposto de toda elevação, todo crescimento da cultura — com o ressentiment
[ressentimento] das massas forjou sua principal arma contra nós, contra tudo o
que há de nobre, alegre, magnânimo na Terra, contra nossa felicidade na Terra...
(NIETZSCHE, 2007, p. 49).

Segundo Nietzsche o Deus criado por Paulo é a negação de Deus, o cristianismo é a


negação da realidade, “representa o movimento oposto a toda moral do cultivo, da raça, do
privilégio: - é a religião antiariana par excellence” (2017, p. 43, grifos do autor). O cristianismo
vive da doença, vive do rancor dos doentes contra o instinto dos sadios, é contra a saúde.

O cristianismo também se acha em oposição a toda boa constituição intelectual


— pode usar apenas a razão doente como razão cristã, toma o partido de tudo
idiota, pronuncia a maldição contra o ‘espírito’, contra a superbia [soberba] do
intelecto são. Como a doença é da essência do cristianismo, também o típico
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estado cristão, a ‘fé’, tem de ser uma forma de doença, todos os caminhos retos,
honestos, científicos para o conhecimento têm de ser rejeitados como caminhos
proibidos pela Igreja (NIETZSCHE, 2007, p. 62, grifos do autor).

Dessa forma, o cristão, o crente, é um homem doente, dependente, crente “não


pertence a si”, é um meio que necessita alguém que o use. “Todo tipo de fé é, em si mesmo, uma
expressão de abnegação, de alienação de si. […] O crente não é livre para ter alguma consciência
quanto à questão do ‘verdadeiro’ e do ‘não verdadeiro’: ser honesto nesse ponto seria a sua
imediata ruína (NIETZSCHE, 2007, p. 68, grifos do autor).
No cristianismo tem “apenas finalidades ruins: envenenamento, difamação, negação
da vida, desprezo do corpo, rebaixamento e autoviolação do homem pelo conceito de pecado —
portanto, também seus meios são ruins” (NIETZSCHE, 2007, p. 68). O cristianismo priva os
instintos, despreza o corpo e a perfeição é inatingível, portanto:

Eu condeno o cristianismo, faço à Igreja cristã a mais terrível das acusações que
um promotor já teve nos lábios. Ela é, para mim, a maior das corrupções
imagináveis, ela teve a vontade para a derradeira corrupção possível. A Igreja
cristã nada deixou intacto com seu corrompimento, ela fez de todo valor um
desvalor, de toda verdade uma mentira, de toda retidão uma baixeza de alma.
(NIETZSCHE, 2007, p. 78).

Assim, o filósofo alemão vê o cristianismo como o responsável por todo o caos criado
na ordem social, acabou com a esperança da vida, negando a realidade, enquanto a Igreja cristã é
um parasita, o cristianismo é uma grande maldição. Como afirma Scarlett Marton:

Se a ruína do cristianismo trouxe como consequência a sensação do que ‘nada


tem sentido’, ‘tudo é em vão’, trata-se agora de mostrar que a visão cristã não é
a única interpretação do mundo – é só mais uma. Perniciosa, ela inventou a vida
depois da morte para justificar a existência; nefasta, fabricou o reino de Deus
para legitimar avaliações humanas. Na tentativa de negar este mundo em que nos
achamos, procurou estabelecer a existência de outro, essencial, imutável, eterno;
durante séculos, fez dele a sede e a origem dos valores (MARTON, 1993, p. 65).

Dessa maneira, Nietzsche sentencia o cristianismo a uma transvaloração dos valores,


a superação do homem cristão. Conforme Paschoal, “uma inversão em relação a um modelo
anterior, que também se constituiu por uma transvaloração de todos os valores” (2009, p. 169).

3.2 A transvaloração como superação do cristianismo

De acordo com Scarlett Marton, “se a ruína do cristianismo trouxe como consequência
a sensação de que ‘nada tem sentido’, ‘tudo é em vão’, trata-se agora de mostrar que a visão cristã
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não é a única interpretação do mundo – é só mais uma”. Dessa forma, faz-se necessário a supressão
da moral cristã, é justamente nisto que “consiste o projeto nietzschiano de transvaloração de todos
os valores” (MARTON, 1993, p. 65).

Desde as primeiras páginas do prólogo, Zaratustra aparece como o anunciador


de uma completa reviravolta em nossa cultura. E, aos poucos, a transformação
por que acaba de passar ganha clareza. Sua causa então se explicita: ela reside no
conhecimento da morte de Deus. Se foi no mundo supra-sensível que até então
os valores encontraram legitimidade, trata-se agora de suprimir o solo mesmo a
partir do qual eles foram colocados, para então engendrar novos valores.
‘Humanos, demasiado humanos’, os valores restituídos surgiram em algum
momento e em algum lugar. E, em qualquer momento e em qualquer lugar, novos
valores poderão vir a ser criados. É a morte de Deus, pois, que permitirá a
Nietzsche acalentar o projeto de transvalorar todos os valores (MARTON, 2000,
p. 56, grifo do autor).

Nietzsche fala por meio de Zaratustra que os povos colocam suas valorações acima de
si, como criações divinas, ao olhar para os mares falavam de “Deus”, mas que vos ensinou a falar
“super-homem”. “Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado”
(NIETZSCHE, 2011, p. 13).

Vede, eu vos ensino o super-homem!


O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga: o super-homem
seja o sentido da terra!
Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos
falam de esperanças supraterrenas! (NIETZSCHE, 2011, p. 14).

Dessa forma, Scarlett Marton sustenta que antes o homem era visto como criatura de
Deus que dava sentido as coisas, agora não é mais que uma ponte para o além-do-homem187.
Para que viva o super-homem, Nietzsche pensa numa transvaloração dos valores.
Segundo Scarlett Marton, essa transvaloração consiste em suprimir, inverter e criar valores:

Transvalorar é, antes de mais nada, suprimir o solo a partir do qual os valores até
então foram engendrados. [...] Transvalorar é, também, inverter os valores. Aqui,
Nietzsche conta realizar obra análoga à dos alquimistas: transformar em ‘ouro’ o
que até então foi odiado, temido e desprezado pela humanidade. É deste ângulo
de visão que denuncia o idealismo e reivindica a efetividade. [...] Transvalorar é,
ainda, criar novos valores (2000, p. 60-62).

187
Scarlett Marton enfatiza que: “não se trata de um tipo biológico superior ou de uma nova espécie engendrada pela
seleção natural, mas de quem organiza o caos de suas paixões e integra numa totalidade cada traço de seu caráter, de
quem percebe que seu próprio ser está envolvido no cosmos, de sorte que afirmá-lo é afirmar tudo o que é, foi e será.
Fazendo surgir novos valores, ele intervém num momento qualquer do processo circular, que é o mundo, e assim
recria o passado e transforma o futuro” (1993, p. 69).
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Ou seja, com a transvaloração dos valores será instituído uma nova tábua de valores,
valores instituídos a partir do próprio homem e não mais em favor de outro mundo, pois
“Nietzsche mostra que os valores são ‘humanos, demasiado humanos’, ou seja, são valores criados
pelos próprios homens tendo assim uma história, com isso, há uma destruição das amarras
dogmáticas que impuseram os valores como criação de Deus” (MARTON, 2016, p. 11-46).
De acordo Scarlett Marton o além-do-homem situa-se para além das velhas dicotomias
da filosofia e está ligado diretamente ao projeto de transvaloração dos valores e indica a
necessidade de uma completa subversão da cultura ocidental.
Após zombarem de Zaratustra ele diz: “o homem é uma corda, atada entre o animal e
o super-homem – uma corda sobre um abismo” (NIETZSCHE, 2011, p. 16).
Os homens criaram para si seus valores de bem e mal e colocaram acima de si.
Segundo Nietzsche, Zaratustra viu muitos países e muitos povos, sendo assim, descobriu o bem e
o mal de muitos povos. “Zaratustra não achou maior poder na terra do que o bem e o mal”. Achou
uma tábua de valores suspensa sobre cada povo. “Olha, é a tábua de suas superações; olha, é a voz
de sua vontade de poder” (NIETZSCHE, 2011, p. 57).
Agora que Deus está morto, que a moral cristã foi destruída, Nietzsche implora para
que os homens permaneçam fiéis à terra:

Permanecei fiéis à terra, irmãos, com o poder da vossa virtude! Que vosso amor
dadivoso e vosso conhecimento sirvam ao sentido da terra! Assim vos peço e
imploro. Não os deixeis voar para longe do que é terreno e bater com as asas nas
paredes eternas! Oh, sempre houve tanta virtude extraviada! Trazei, como eu, a
virtude extraviada de volta para a terra — sim, de volta ao corpo e à vida: para
que dê à terra seu sentido — um sentido humano! (NIETZSCHE, 2011, p. 74).

Assim o homem precisa tomar para si a responsabilidade de ser criador, de criar novos
valores, valores que sejam demasiadamente humanos. Como afirma Scarlet Marton até agora foi
o homem, concebido enquanto criatura em relação a um Criador, quem avaliou e, como fruto de
sua avaliação, estabeleceu valores que desvalorizaram a Terra, depreciaram a vida, desprezaram
o corpo. É preciso, pois, combater esses valores, para que surjam outros. Tornando-se criatura e
criador de si mesmo, o além-do-homem prezará os valores em consonância com a Terra, com a
vida e com o corpo (2016, p. 11-46).
Um dia os homens falaram de Deus ao olharem para o que estava distante, mas
Zaratustra lhes ensinou a falar “super-homem”, pois segundo ele:

Deus é uma conjectura; mas eu quero que vossas conjecturas não excedam vossa
vontade criadora.
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Podeis criar um deus? — Então não me faleis de deuses! Mas bem poderíeis criar
o supra-homem.
Talvez não vós mesmos, irmãos! Mas podeis vos converter em pais e ancestrais
do super-homem: e que esta seja a vossa melhor criação! —
Deus é uma conjectura: mas quero que vossas conjecturas se mantenham nos
limites do pensável.
Podeis pensar um deus? — Mas que a vontade de verdade signifique isto para
vós, que tudo seja transformado em humanamente pensável, humanamente
visível, humanamente sensível! Vossos próprios sentidos deveis pensar até o fim!
E o que chamais de Mundo, isso deve ser criado primeiramente por vós: vossa
razão, vossa imagem, vossa vontade, vosso amor deve ele próprio se tornar!
(NIETZSCHE, 2011, p. 81).

Ou seja, a criação do homem não pode exceder a si próprio, não é possível criar um
deus, por outro lado é possível criar um super-homem. O super-homem é o criador, aquele que
cria tudo que pode ser pensado, tudo que é possível.
Nietzsche diz que quando Zaratustra desceu das montanhas e falou para os homens
pela primeira vez, deparou-se com a presunção dos homens, esses achavam saber o que é “bom”
e o que “mau”, porém, perturbou “esta sonolência ao ensinar que ninguém sabe ainda o que é bom
e mau — a não ser aquele que cria! — Mas esse é aquele que cria a meta para os homens e dá à
terra seu sentido e seu futuro: apenas ele faz com que algo seja bom ou mau” (NIETZSCHE, 2011,
p. 187).
O filósofo pela boca de Zaratustra propõe que sejam derrubadas as velhas tábuas de
valores e que “o homem é algo que tem de ser superado, — que o homem é uma ponte e não um
fim: declarando-se bem aventurado por seu meio-dia e entardecer, como o caminho para novas
auroras” (NIETZSCHE, 2011, p. 189).

Supera a ti mesmo também no teu próximo: e um direito que podes arrebatar, não
deixeis que te seja dado!
Aquilo que fazes, ninguém pode fazer a ti. Vê, não existe retribuição.
Quem não pode comandar a si mesmo, deve obedecer (NIETZSCHE, 2011, p.
190).

Para Nietzsche o homem é algo que precisa ser superado, essa superação precisa ser
uma autossuperação, ou seja, o homem precisa superar a si mesmo. Não pode esperar que o outro
faça por ele, pois os que não fazem por si devem ser comandados.
Segundo Nietzsche é necessário que surja uma nova nobreza que que seja procriadora
e cultivadora de novas tábuas de valores, tábuas de valores inspiradas em sua própria nobreza,
pois diferente da plebe que quer tudo de graça, a nobreza sempre reflete sobre o que pode dar em
troca da vida. Que essa nobreza seja semeadora do futuro, “vossa nobreza não deve olhar para
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trás, mas adiante! Deveis ser expulsos de todas as terras pátrias e avoengas!” (NIETZSCHE, 2011,
p. 194).
Mesmo sabendo que a plebe acredita que os homens são todos iguais, que ‘não há
homens superiores’, que todos são iguais, diante de Deus. Zaratustra afirma que é necessário saber
que “agora morreu esse deus”. Que esse deus era o maior perigo e somente com sua morte “vem
o grande meio-dia, somente agora o homem superior torna-se — senhor!”, e acrescenta: “Deus
morreu: agora nós queremos — que o super-homem viva” (NIETZSCHE, 2011, p. 271-272).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar o processo genealógico da moral, percebe-se que quando os escravos


tiveram a oportunidade de expressar os instintos negados, eles internalizaram esses instintos e
surge o mundo interior. Os escravos acabaram sendo mais fortes porque se esconderam, se
guardaram, planejaram e acabaram sendo mais inteligentes. Já o exercício do senhor é imediato
pela força, pois não existe mal, só existe ele e os seus iguais, o senhor está além do bem e do mal.
Os escravos mesmo tendo invertido os valores não assumiram o lugar dos fortes, dos
nobres, sempre se mantiveram fracos servindo a um senhor fora da vida. Criaram ideais ascéticos
que é a negação da vida em favor de um modo de vida interior, o mundo do nada, o mundo de
Deus. Enquanto os nobres amaram o mundo e a vida, enquanto o bom do aristocrata estava na
vida, o bom para o sacerdote estava no ascético, num ideal fora da vida, estava em um deus, no
nada. Os sacerdotes passaram a pregar uma vida servil, eles são servos e sempre serão servos, não
mais dos nobres, mas de um deus que eles mesmos criaram.
Os sacerdotes inventaram os conceitos de verdadeiro e falso e enquanto estiverem
como o homem de nível mais elevado nunca se chegará à verdade. Somente quando o homem
entender que as causas de sua ação são naturais e perder o temor das punições divinas, a
moralidade diminui seu domínio.
Dessa forma, considera-se com base nas concepções nietzschianas que para
transvalorar os valores assumidos como verdade por uma raça doente e criar uma nova tábua de
valores, o homem deve se superar, tornar-se um além-homem, um homem que esteja além do bem
e do mal, um homem que olhe com os próprios olhos, que saiba distinguir por si próprio o
“verdadeiro” e o “falso”.
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REFERÊNCIAS

AZEREDO, V. D. D. Nietzsche e a dissolução da moral. São Paulo: Discurso editorial e


Unijuí, 2000.

GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.

MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra, 2017.

MARTON, S. (org.). Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.

______. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Pualo: Unijuí, 2000.

______. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993.

______. O eterno retorno do mesmo, "a concepção básica de Zaratustra". Cadernos


Nietzsche, Garulhos/Porto Seguro, v. 37, p. 11-46, julho/setembro 2016.

NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos ídolos, ou Como se filosofa com um martelo. Tradução


de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de bolso, 2017.

______. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das letras, 2008.

______. O Anticristo: maldição ao cristianismo; ditirambos de Dionisio. Tradução de Paulo


César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2007.

______. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2009.

______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2011.

PASCHOAL, A. E. Nietsche e a auto-superação da moral. Ijuí: Unijuí, 2009.


______. O procedimento genealógico de Nietzsche. Diálogo Educacional, v. 1, p. 1- 21 ,
jul./dez. 2000.
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A CRÍTICA DE ROUSSEAU À EXALTAÇÃO SUPREMA DA RAZÃO E DO


PROGRESSO DO CONHECIMENTO HUMANO

ROUSSEAUS CRITICISM TO THE ULTIMATE EXALTATION OF THE REASON


AND PROGRESS OF HUMAN KNOWLEDGE

Cláudia da Silva188
Prof. Dr. Luciano da Silva Façanha189

Eixo Temático 2 – Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: O século das luzes uma das definições do século XVIII, marcado pelo o Iluminismo em
alguns países da Europa, sobretudo na França onde um ganhou destaque pelos filósofos, homens
de letras que publicavam tratados filosóficos, políticos e religioso e culturais na Enciclopédia. O
Iluminismo é exaltado por esses pensadores como a luz que veio salvar a humanidade de todos os
males. Rousseau chama atenção sobre essa exaltação à razão, pois o autor acredita que em quase
nada as artes e as ciências contribuíram para o aprimoramento da civilidade, e sim para
disseminarem o luxo, o egoísmo e as futilidades humanas, fortalecendo desse modo as
desigualdades sociais.
Palavras-Chave: Iluminismo. Progresso. Exaltação suprema da Razão. Rousseau. Natureza.

Abstract: The century of lights, one of the definitions of 18th century, marked by the
Enlightnment in some European countris, especially n France, where one gained prominence by
philosophers, men of letters Who published philosophical, political and religious and cultural
treatises in the Encyclopedia. The Enlightenment is extolled by these thinkers as the light that
came to save humanity from all evils. Rousseau draws attention to this exaltation of reason,
because the author believes that in almost nothing the arts abd sciences contributed to the
improvement of civility, but to dissiminate luxury, selfishness and human futility, thus
strengthening social inequalities.
Keywords: Enightenment. Progress. Supreme exaltation od Reason. Rousseau. Nature.

INTRODUÇÃO

O iluminismo é sobretudo um movimento caracterizado por uma ilimitada confiança na


racionalidade humana, onde a razão é considerada como capaz de resolver todos os problemas

188
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFMA) Pesquisadora do GEPi Rousseau–
UFMA/CNPq. Professora do IESMA/Faculdade Católica. E-mail: marvite.mc@hotmail.com
189
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade–UFMA. Professor do DEFIL –UFMA.
Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa Interdisciplinar Jean-Jacques Rousseau UFMA (GEPI Rousseau UFMA),
registrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq E-mail: lucianosfacanha@hotmail.com
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sociais, esclarecendo as coisas sobre aquilo se mostra como desconhecido e sempre na tentativa
de levar o homem à plena felicidade.
Rousseau ao ver um anuncio que a academia de Dijon lança sobre o restabelecimento das
artes, se elas tinham alguma contribuição para os costumes, Rousseau, então manda seu trabalho
e é premiado em seu Primeiro Discurso pela academia em 1750. O autor responde a academia de
forma negativa, inflamando seu discurso com a ideia que os costumes e a moral estão em nada
contribui para os costumes, estimula a depravação em razão da valorização atribuída as artes e a
luxuria, despertando o gosto pela vaidade.
Rousseau passa a ser lido, reconhecido, amado e odiado, embora todo esse vendaval em
torno, nada muda seu modo de ver e agir em relação as ciências e as artes. A educação era uma
das grandes preocupações de Rousseau, fato este que ele esclarece em sua obra O Emilio ou da
Educação. Esta deveria ser livre dos excessos institucionais. Assim como o homem é fruto da
natureza a educação também deve ser iniciada por ela.

Rousseau chama atenção sobre essa exaltação à razão, pois o autor acredita que em quase
nada as artes e as ciências contribuíram para o aprimoramento da civilidade, e sim para
disseminarem o luxo, o egoísmo e as futilidades humanas, fortalecendo desse modo as
desigualdades sociais.
Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de
natural ou física[...]; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou
política, por que depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou,
ao menos, autorizada pelo consentimento dos homens. (ROUSSEAU.J-J,
Discurso sobre a desigualdade. 1978, p. 235).

Jean-Jacques Rousseau acreditava que a natureza tenha um caminho reto, onde ela jamais
degenera um filho seu. Em sua obra, o Segundo Discurso (1978, p. 87), ele afirma que “Foi
preciso fazer muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de
geração para geração, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza”. Ou seja, toda
depravação moral vem do próprio homem e de seu afastamento do estado de natureza.
Portanto, não há como fugir de um contexto histórico, os homens não estão fora de um
determinado tempo histórico, de uma certa mentalidade que permeia e dita as regras numa dada
sociedade, num tempo específico. Isso não quer dizer que haja uma relação mecânica de causa e
efeito, entre aquele contexto histórico e a própria existência do ser humano, as relações entre os
homens e seus tempos são muito mais complexas, sobretudo quando se considera que num dado
contexto cultural (e histórico) há sempre brechas, espaços de diferentes enfrentamentos com o
mundo, que não necessariamente aquele dado pelo paradigma da conjuntura histórico-social na
qual se está inserido. Em seu Segundo Discurso Rousseau diz:
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Oh! Homem, de qualquer região que sejas, quaisquer que sejam tuas opiniões,
ouve-me; eis tua história como acreditei tê-la lido nos livros de teus semelhantes,
que são mentirosos, mas na tua natureza que jamais mente. Tudo a que estiver
nela será verdadeiro; só será falso aquilo que, sem querer, tiver misturado de
meu. Os tempos de que vou falar são muito distantes; como mudaste! É, por
assim dizer, a vida de tua espécie que vou descrever de acordo com as qualidades
que recebestes, e que tua educação e teus hábitos puderam falsear, mas que não
puderam destruir (ROUSSEAU, 1978, p. 237).

No diálogo entre as circunstâncias históricas, o contexto social e a existência individual,


Rousseau parece ter conseguido apontar linhas que não absolutizam uma dessas matrizes, mas que
considera a todas num contínuo relacionamento. Jean-Jacques Rousseau nasceu em 1712 e faleceu
em 1778. Como se nota, cronologicamente ele está situado no século XVIII. Mas poderia ter
brotado um pensamento filosófico neste momento da história ocidental europeia se não aquele que
obedecesse às regras e necessidades desse mesmo momento? Rousseau, porque parido neste
momento do Iluminismo, é necessariamente um iluminista?
O que se nota em Rousseau é uma clara diversidade controversa no conjunto de seu
pensamento, isso para nós que o vemos daqui o que não implica que tal controversa tenha, ele
próprio sentido e vivido. Jean-Jacques Rousseau era sim um admirador do iluminismo, ele não era
contra a razão, mas o modo como os próprios filósofos desviaram a conduta do movimento, tanto
que, por pensar assim, Rousseau afastou-se dos demais pensadores iluministas do século XVIII
que faziam parte da Enciclopédia e em resposta a essa diferença:
Rousseau responderia com um certo pessimismo, com uma desconfiança que
desconcertaria não só seus contemporâneos como também o espírito otimista do
século. Rousseau acaba sendo considerado “um verdadeiro desmancha-prazeres
da festa dos iluministas”, pois o mesmo denunciava em todas as suas obras as
falhas e os desvios que descaracterizavam o Iluminismo (FAÇANHA, 2014, p.
03).

É importante evidenciarmos que o século XVIII, enquanto momento de efervescência da


crença de que a razão curaria todos os males, não pode ser considerado de forma homogênea. A
historicidade já está presente em Rousseau desde seu nascimento, do seu significado enquanto
sujeito histórico, o que será também evidenciado e clarificado em suas obras. A propósito,
escrevia Rousseau ao rei Estanislau da Polônia:
Nunca se viu um povo, uma vez corrompido, retornar à virtude. Inutilmente
procuraríeis destruir as causas do mal, de nada serviria eliminar os incentivos à
vaidade, ao ócio e ao luxo, em vão vos esforçaríes até mesmo por levar os homens
de volta a primitiva igualdade, custodia da inocência e fonte de toda virtude: uma
vez estragados, seus corações assim ficarão para sempre, não havendo mais
remédio senão o de uma grande revolução qualquer, quase tão terrível quanto o
mal que poderia curar e que seria reprovável desejar e impossível prever
(REALE; ANTISERI, 1990, p.767).
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Em 1750 a academia de Dijon lança um concurso com o seguinte tema “Se o


restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes”? Rousseau
participa e ganha o prêmio, embora ele responda de forma negativa perguntando se: “O
restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para aprimorar ou corromper os costumes?
Eis o que é preciso examinar”. (ROUSSEAU, 1978, p. 333). Rousseau afirma que tal questão
precisa era examinada. Tanto que ele segue dizendo. “Antes que a arte polisse nossas maneiras e
ensinasse nossas paixões a falarem a linguagem apurada, nossos costumes eram rústicos, mas
naturais, e a diferença dos procedimentos denunciava, à primeira vista, a todos caracteres.” (1978,
p. 336). Procedimentos denunciados esses que são os costumes, os hábitos e os modos de vida do
homem antes a vida social, depravados pelas letras.
Embora, Rousseau teça críticas os hábitos e aos lugares que as ciências e as artes ocuparam
na vida do homem, o autor não é totalmente contra elas, ele é contra os excessos e é isso que ele
mostra em seu discurso. Continua Rousseau, “Cabe as letras, às ciências e às artes reivindicarem
o que lhes pertence numa obra tão salutar”. (1978, p. 337). Para Rousseau, em nada o progresso
das ciências e das artes contribuiu para a verdadeira felicidade e só corrompeu o gosto e os
costumes. Segundo ele. “Como o corpo, o espírito tem suas necessidades. Estas são o fundamento
da sociedade, aquelas constituem seu deleite”. (1978, p. 334). Portanto, por mais o homem tenha
suas necessidades, talvez nenhuma delas, através do seu refinamento cultural, possa ser atendida
de modo saudável, pois esse cada vez mais se aprisiona a uma vida depravada, de aparências, onde
as ciências, artes e as letras despertaram a vaidade, o luxo e as desigualdades:

Enquanto o governo e as leis atendem à segurança e ao bem-estar dos homens


reunidos, as ciências, as letras artes, menos despóticas e talvez mais poderosas,
estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro que estão eles carregados,
afagam-lhes o sentimento dessa liberdade original. Fazem com que ame sua
escravidão e formam assim o que se chama povos policiados. (ROUSSEAU,
1978, p. 334-335).

No Segundo Discurso (1978, p. 224), Rousseau descreve que “as paixões, por sua vez,
encontram sua origem em nossas necessidades e seu progresso em nossos conhecimentos, pois só
se pode desejar ou temer as coisas segundo as ideias que delas se possa fazer ou pelo simples
impulso da natureza”; sendo assim, logo fica claro o porquê do autor tecer sua crítica ao progresso
das ciências. “o homem selvagem, privado de toda espécie de luzes, só experimenta as paixões
desta última espécie não ultrapassando, pois, seus desejos e suas necessidades físicas”. Voltemos
ao Primeiro Discurso de Rousseau (1978, p. 335), onde “A necessidade levantou os tronos; as
ciências e as artes os fortaleceram”.
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Portanto, o Iluminismo, sobretudo é caracterizado por uma ilimitada confiança na


racionalidade humana, a razão é vista como algo que pode ser capaz de salvar o homem da
escuridão levando-o a resolver todos os males que impeça a sua felicidade. Diante de tais
características Ernest Cassirer assim terminou o prefácio de seu livro A Filosofia do Iluminismo:
Afirmando que:
Essa suficiência do “eu sei mais” (“Besserwissens”) de que recriminam o
Século das Luzes e sobre a qual ninguém se cansa de acumular provas gerou
inúmeros preconceitos que ainda hoje impedem um julgamento isento do
Iluminismo. [...]. O século que viu e glorificou na razão e na ciência ‘a
suprema faculdade do homem’ não pode estar para nós inteiramente superado;
devemos encontrar o meio de descobrir sua verdadeira fisionomia e,
sobretudo, de libertar as forças profundas que produziram e modelaram essa
fisionomia. (CASSIRER, 1992, p.14-15).

Embora, o Iluminismo esteja presente no pensamento grego, a efervescência que ele provoca
no século XVIII, parece novidade, principalmente em Paris, espaço para todo tipo de arte por ser
uma sociedade já corrompida pelos costumes, e sua influência estará na posterioridade,
preocupação essa de Rousseau. Quando ao século referido por Cassirer, vejamos o que diz Salinas
Fortes (2004, 12-14), em sua obra O Iluminismo e os reis filósofos
Quando falamos em Iluminismo não estamos nos referindo a uma doutrina
sistemática susceptível de ser exposta como um todo uno e coerente. Ao
contrário, não apenas nos encontramos diante uma multiplicidade de pontos de
vista doutrinários heterogêneo mas, além disso, [...], uma das características
principais do “espírito” do Iluminismo consiste justamente na sua aversão aos
grandes sistemas filosóficos do século anterior.

Nota-se, portanto, que os iluministas acabam herdando a confiança na razão, uma convicção
herdada dos racionalistas como Descartes, Spinoza e Leibniz, mas também não se pode esquecer
que eles de modo semelhante, são herdeiros da razão apresentada na experimentabilidade de John
Locke. Enfim, podemos dizer que a razão iluminista é uma razão orientada, fiscalizada e limitada
pela experiência, mesmo considerando que o homem não se reduz à razão, entende-se que
quaisquer indagações sobre os homens e suas relações sócio históricas só podem ser feitas através
da razão. E quanto a esta razão, “Cada século”, dirá Diderot, “tem um espírito que o caracteriza:
o espírito do nosso parece ser o da liberdade.” (SALINAS FORTES, 2004, p. 16). Já para o
filósofo alemão Immanuel Kant, citado por Reale e Antisere em sua obra História da Filosofia
volume II, (1990, p. 669), vai além afirmando que “O Iluminismo é a saída do homem do estado
de minoridade que ele deve imputar a si mesmo”. Essa minoridade descrita por Kant não é a de
sua estatura física, mas a de sua ação intelectual diante de suas atitudes. Sabedoria e coragem no
agir por si próprio.
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Diante das inúmeras definições acerca do que foi o Iluminismo, Maria das graças Sousa em
sua obra Ilustração e História: O pensamento sobre a história no Iluminismo francês, cita
Condorcet. “O século é, portanto, uma época feliz na qual a razão saiu vitoriosa na luta contra a
ignorância. Os séculos seguintes só lhe acrescentarão novas luzes, e o progresso só terminará com
o mundo. Seu limite é a duração do universo”. (2001, p. 11). É importante notar que o Iluminismo
surge em alguns países da Europa, sobretudo na França com os enciclopedistas (Voltaire, Diderot,
Montesquieu, Rousseau. Assim vale destacar que muitos acontecimentos políticos contribuíram
para a manifestação do Iluminismo, como o Renascimento, a Contra-Reforma, a Revolução
Inglesa entre outros movimentos como o aprimoramento da ciência no século XVIII. Ainda de
acordo com Luciano Façanha, não é uma tarefa fácil caracterizar o Iluminismo diante de tantas
ideias, de pensamentos diferentes, uma vez que ele vem de outros países e outras culturas
A isso também se acresce a circunstância de que tal época está longe de constituir
uma grandeza homogênea, pelo contrário, ela representa, nos diferentes países
europeus, uma pluralidade de diversificações de tal modo rica que talvez fosse
mais rigoroso falar de vários iluminismos do que de um só. (FAÇANHA, 2006,
p. 45).

Por esta razão, destaca-se a necessidade de frisar que em se tratando de Rousseau, o


Iluminismo em questão é o francês do século XVIII. Sendo assim, ele estar cronologicamente
situado nesse período, mas não é por isso que, necessariamente ele seja considerado um iluminista,
se se consideramos aquelas características como partes essenciais para a constituição do que se
entende por Iluminismo.
Em torno disso muitas discussões têm sido levantadas aponto de alguns pensadores o
consideram como “o maior pensador do século XVIII” (REALE, 1990, p. 755). Se ele é
considerado iluminista, essa casa da razão, não menos é considerado romântico, que acentua o
sentimento, a interioridade humana, ao mesmo tempo em que nele se percebe uma certa visão de
coletividade também se nota uma valorização da individualidade. Ele é crítico e tem uma visão
negativa em relação ao mundo.
Mas se quisermos falar de um Rousseau inquieto com os fatos socias e seus acontecimentos,
vejamos o que diz Immanuel Kant, e que era admirador dele. Rousseau foi “o Newton da Moral”,
(SALINAS FORTES, 1989, p.11) para Heine “Rousseau foi à cabeça revolucionária da qual
Robespierre nada mais foi que a mão executora”. O que não se pode negar diante dessas
considerações de fato, é que Rousseau é uma figura enigmática, complexa e até certo ponto,
controversa, mas são também essas definições que o torna ainda mais apaixonaste e intrigante,
pois ora é um liberalista, ora é socialista.
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Um homem que se preocupava e falava sem medo do homem. Sendo Rousseau um homem
de “contradições e incoerências” como diz Salinas fortes, (1989, p.11), “passemos a palavra a
Rousseau”: “Escrevi diversos assuntos, mas sempre nos mesmos princípios: sempre a mesma
moral, a mesma crença, as mesmas máximas e, se quiserem, as mesmas opiniões”. (Grifo do
autor.) E por essa diversidade de opiniões que para ele, o homem sem os instintos e as paixões, a
razão acaba se tornando meramente acadêmica, de outro lado, sem a disciplina que é oferecida
pela razão, as paixões junto com os instintos conduzem ao caos social.
Logo, por Rousseau ter uma mente eclética, por andar por muitos ramos do conhecimento
e tratar dos argumentos mais diversificados como a música, a pedagogia e política, política e
religião, todos esses elementos nos possibilita evidenciar os pontos principais de seu pensamento
como será apresentado em três definições chamadas “resumos” por Cláudio Dalbosco em seu livro
da Educação natural em Rousseau das necessidades das crianças e dos cuidados do adulto (2011,
p. 117-118),
[...] sendo que cada uma delas permite situá-lo de modo diferente no contexto
iluminista do século XVIII: a primeira concebo como um otimismo quanto aos
rumos da civilização humana; a segunda, trata-o de primitivista; e por último, a
terceira apresenta Rousseau como um “dialético” da razão.

Continua Dalbosco. “De todas estas interpretações, a primeira é a que menos tem amparo
textual só seu próprio pensamento”. Rousseau dentro do contexto iluminista consegue denunciar
o que se pode denominar de imoral, de excessos e, embora, confie na racionalidade humana, ele
não parece simpático ao extremo do racionalismo, no sentido do esquecimento dos instintos e das
paixões humanas e o processo de construção da história, pois a medida que a razão se forma na
consciência humana, a depravação se constitui, portanto, o homem deve seguir primeiramente a
voz da natureza, assim, ele jamais se afastará de caminho e de sua felicidade.
Enquanto se percebe no Contrato Social a concepção política rousseauniana, em sua obra O
Emílio ou da Educação é exposta a sua doutrina pedagógica. Mas é no Segundo Discurso,
Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens que o autor tratará
mais especifica e diretamente acerca do homem na construção do processo histórico, de como este
vive na história e sob que condições a constrói. Jean Starobinski (1991, p. 34), constata que
Rousseau “faz a história de seus pensamentos”. Passa-se a palavra a Rousseau:
É fácil de ver que nessas mudanças sucessíveis da construção humana que se
deve procurar a origem primeira das diferenças que distingue os homens, os
quais, na opinião comum, são naturalmente tão iguais entre si quanto o eram
antes os animais de cada espécie [...]. (ROUSSEAU, 1978, p. 227, 228). (grifo
do autor).

As diferenças surgem com a expansão da vista, com as novas aquisições das coisas e com
o afastamento do estado natural. Diante disso, ocorre uma clara manifestação de um pensamento
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extremamente crítico, que coloca o seu próprio tempo em questão e em debate. É, pois a razão a
condutora do novo modo de agir, ou seja, na questão racional iluminista “Rousseau era iluminista,
porque considerava a razão como instrumento privilegiado como para a superação dos males em
que séculos de desvio haviam lançado o homem e para a vitória sobre eles”. Reale e Antisere
(1990, p. 767).
O fato é que seria um absurdo pensar um homem capaz de fugir totalmente de seu tempo.
Como diz Luciano Façanha em seu artigo Da natureza ao diagnóstico do ‘mal-estar na
civilização’ em Rousseau (2014, p. 74). “Assim, diante de conflitos suscitados, como o de ser um
iluminista e ter passado boa parte de sua vida tecendo críticas à confraria dos iluministas, Rousseau
muitas vezes foi considerado “homem estranho””. Portanto, diante dessa diversidade controversa
manifesta em Rousseau, só pode ser pensada no espaço de sua existência crítica diante de seu
próprio tempo, e do movimento que foi parte indiscutível dele.
Portanto, dentro do processo histórico critico filosófico do iluminismo, Rousseau é um
iluminista pensando enquanto iluminista, é também um homem que critica as próprias estruturas,
que marcam o seu tempo e espaço, a sua história. Rousseau é um homem pensando e sentindo o
iluminismo e ao mesmo tempo em que é um homem repensando e re-significando o “século das
luzes”

REFERENCIAS

DALBOSCO, Cláudio Almir. Educação natural em Rousseau das necessidades das crianças
e dos cuidados do adulto. São Paulo: ed. Cortez, 2011.

CASSIRER, Ernest. A Filosofia do Iluminismo. São Paulo. ed. UNICAMP, 1992.

FAÇANHA, Luciano da Silva. Da natureza ao diagnóstico do ‘mal-estar na civilização’ em


Rousseau. Polietica. São Paulo, v. 2, n. 1, pp. 70-87, 2014.

FAÇANHA, Luciano da Silva. Para ler Rousseau: uma interpretação de sua narrativa
confessional por um leitor da posteridade. São Paulo: Edições Inteligentes, 2006.

FORTES, Luiz Roberto Salinas. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo: Brasiliense, 2004.

FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: o bom selvagem. São Paulo: ed. FTD, 1989.
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ROUSSEAU. Jean-Jacques. Discurso sobre as Ciências e as Artes. São Paulo: Abril Cultural,
1978.

ROUSSEAU.J-J, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os


homens. São Paulo: Abril cultural. Coleção os Pensadores,1978.

SOUSA, Maria das graças. Ilustração e História: O pensamento sobre a história no


Iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.

STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo-seguido de sete


ensaios sobre Rousseau. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras,
1991.
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A LITERATURA LAICA NA IDADE MÉDIA FRANCESA DO SÉCULO XII E SUA


RELAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA VISÃO DE CAVALARIA.

THE LAIC LITERATURE IN THE FRENCH MIDDLE AGE OF THE 12th CENTURY AND
ITS RELATIONSHIP IN THE CONSTRUCTION OF THE VISION OF CAVALRY.

Elisângela Coelho Morais


Doutoranda em História e Conexões Atlânticas-UFMA
Orientadora: Profa. Dra. Adriana de Souza Zierer

Eixo 2 – Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: A sociedade de corte, na França do século XII, era movida por aparências, modeladas
por padrões balizados sobre a égide cristã, onde cada um desempenhava um papel estritamente
definido por sua posição social e por seu sexo, homens e mulheres eram cerceados por obrigações
e imposições que visavam disciplinar corpos e mentes com barreiras estabelecidas, e tais
parâmetros eram espelhados pelas manifestações culturais, que buscavam arrebanhar audiências
com seu conteúdo baseado em grandes feitos de cavaleiros valorosos, fieis e leais ao rei e a Deus,
num ambiente que respirava o ímpeto cruzado, várias serão as formas de expansão desse
pensamento, sobretudo nas cidades que se reestruturaram no período para receber de volta a
nobreza. Tais características podem ser apreendidas na análise das obras literárias produzidas no
período, entre elas a canção de gesta e o roman que trazem aspectos da realidade em que os povos
do medievo estavam inseridos, além de criar uma série de leis e regras que deveriam ser seguidos
e conhecidos por todos dessa sociedade. A literatura nesse período faz o papel de moralizadora,
como instrumentos para incutir na mente do público valores e moldes de comportamento além de
pacificar suas ações violentas reduzindo assim o descontentamento da Igreja.
Palavras-chave: Literatura. Idade Média. Cavalaria. Cultura.

Abstract: Court society in France’s 12th-century was driven by appearances, shaped by standards
based on Christian aegis, where each played a role strictly defined by their social position and
gender, men and women were surrounded by obligations and impositions aimed at disciplining
bodies and minds with established barriers, and these parameters were mirrored by cultural
manifestations, which sought to gather audiences with their content based on great deeds of valiant
knights, faithful and loyal to the king and God, in an environment that breathed the momentum
crossed, there will be several ways of expanding this thought, especially in cities that were
restructured in the period to receive the nobility back. Such characteristics can be apprehended in
the analysis of the literary works produced in the period, among them the gesta song and the roman
that bring aspects of the reality in which the medieval peoples were inserted, besides creating a
series of laws and rules that should be followed and known to everyone in that society. Literature
in this period plays the role of moralizing, as instruments to instill in the public's mind values and
patterns of behavior in addition to pacifying its violent actions thus reducing the Church's
discontent.
Keywords: Literature. Middle Ages. Cavalry.Culture.

Introdução
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Para se inserir entre os seus semelhantes, e ser por eles aceito, o ser humano teve que
se adaptar à realidade social a ele imposta, essa configuração é dada desde seu nascimento, São
Tomás de Aquino em sua Suma Theológica, assim como Aristóteles analisava que o homem, como
ser sociável, necessitava desse convívio, sendo um infortúnio viver fora dele. No período
medieval, só era aceitável o isolamento, se a pessoa fizesse parte de uma ordem religiosa, que
via no recolhimento uma forma de aproximação com Deus.
Nessa época, a participação social era importante, visto que as redes de relações
engendradas eram complexas e plurais, o vivente dessa realidade assumia diversas personas, que
não se resumiam em somente seguir papeis designados por uma ordem trifuncional determinada
como se imagina.

A triplicidade é, com efeito, um dos elementos do sistema. Porque a desigualdade reina


no universo: uns mandam, os outros devem obedecer. Por consequência, duas condições
separam os homens, determinadas pelo nascimento, pela “natureza”: uns nascem “livres”
e outros não; uns nascem “nobres” e outros servos. Permanecem nesta posição natural
enquanto vivem na parte do universo maculada pelo pecado. Na medida em que
conformam a sua existência com as exigências da ordo, em que respeitem a lei divina
que lhes permite viverem como vivem os anjos, conseguindo assim escapar à impureza,
os servidores (os servos) de Deus libertam-se daquilo que instaura a diferença de
condições.190

Vendo-se inserido nessa concepção, cada individuo via-se diante duma ordenação
social estabelecida e quase imutável, e por isso, deveria se resignar e aceitar tal coerência,
pensando numa recompensa que seria alcançada no momento em que fossem julgados no fim.
Para o homem medieval, as coisas seguiam a lógica celeste, e restava a todos se
resignarem com sua sorte, já que a possibilidade de ascensão social pequena, os mais humildes
olhavam para cima e viam a nobreza e o clero, já a nobreza olhava para baixo e via uma massa de
pessoas destinadas a servir, sem questionar, sua autoridade previamente determinada pelas mãos
divinas.
Dentro dessa realidade social, a camada com maior fonte de riqueza, a terra, era a
nobreza, estamento econômico que recebia rendas da reserva dominal, cultivada por um vasto
número de criados, que o sustentava e lhe dava a liberdade para não explorar fisicamente seus
campos.
E pelo fato da sociedade europeia viver no clima de constante instabilidade e por ter
sempre presente o espírito bélico das Cruzadas, seus membros viam nas práticas de guerra um
movimento cotidiano, o que desencadeava uma série de consequências para as outras categorias
dessa tripartição.
A verdade é que na sociedade medieval, cada um era obrigado a viver de acordo com
a forma de vida em que nasceu e do meio em que as oportunidades surgiam, como um

190
DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p.76.
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“confinamento social”. Os mais nobres possuíam o controle, por suas armas e sua ideologia de se
acharem superiores aos demais. Ao pensar assim, os membros desse estamento não têm escrúpulos
em desprezar os outros e praticar a falta de moderação e dar vazão a seus impulsos.
Esse padrão de ordens implantadas advém da visão que o homem medieval possuía de
uma vida social harmônica, engendrada por Deus, ao contrário da lógica de convivência terrena
concebida pelo homem, carregada de pecado, vícios e paixões sem controle, que necessitava de
uma vigilância constante.
A esse mundo teoricamente organizado à perfeição de Deus, o homem do medievo
precisava encaixar-se, e para isso tinha que seguir regras estabelecidas, convencionadas ante os
poderes do céu e da terra.
O céu tendo como representante a Igreja, instância de representação de Deus, lugar de
salvação, mostra ao homem o modelo de comportamento reto, cristão, que o levará para a morada
celeste. Já a terra tem como emissária as realizações do homem, que induzem ao pecado, como o
paganismo e ao uso extremado da força, que desumaniza a figura criada por Deus, a sua imagem
e semelhança, que não tem outro fim senão a danação eterna.

A oposição entre o aqui embaixo e o além é inseparável da dualidade moral que estrutura
o pensamento cristão. Essa dualidade é, de resto, o fundamento do modelo das duas
cidade, que Agostinho lega à Idade Média e em virtude do qual o mundo se divide em
dois conjuntos opostos: a cidade de Deus , que reúne os justos daqui de baixo e a cidade
do Diabo , da qual fazem parte tanto os seres vivos atormentados pelo pecado como os
danados e os diabos que povoam o inferno.191

A definição das posições a que se pode aderir, dá um mote de compreensão de como


a religião era fundamental para se pensar padrões de comportamento em sociedade, assim como
suas definições do que era ou não aceitável, de quais eram as penas impostas a quem não se
enquadrasse em seu papel social previamente determinado e das recompensas adquiridas a aqueles
que fossem aceitos nesse círculo, que era ao mesmo tempo, público e privado.

1-Transmissão de modelos.

A maioria da população medieval era formada por iletrados, como então passar a
mensagem de como se deveria ou não agir, mostrar as consequências do vício e as maravilhas do
paraíso?

191
BASCHET, Jerôme. A Civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo,2006,
p.375.
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A quem fosse incumbida essa missão seja os representantes da Igreja, os clérigos, seja
os laicos jograis, ambos usavam de estratégias para a transmissão de suas mensagens, através de
palavras, ou de imagens.
No caso da palavra, para chegar ao público a que se destinava, o portador dela deveria
expô-la ao maior número possível de pessoas, e para isso a memória era fundamental, como nos
diz Le Goff:

Muitos dos homens da Idade Média são analfabetos, como é o caso da grande maioria
dos leigos até ao século XIII. Nesse mundo de iletrados, a palavra tem uma força especial.
Das pregações o homem medieval extrai noções, anedotas, instrução moral e religiosa. E
certo que o texto escrito tem um grande prestigio baseado no prestigio das ≪Sagradas
Escrituras≫ e dos clérigos, homens de escrita, a começar pelos monges, como o
scriptorium — o lugar da escrita, o aposento essencial de todos os mosteiros —
comprova. No entanto, o grande veículo de comunicação e a palavra. Isso pressupõe que
a palavra seja bem conservada. O homem medieval e um homem de memória, de boa
memória192.

Através das palavras e de gestos, a mensagem era transmitida nas pregações e


alcançava seu público alvo de forma mais contundente, e outro instrumento era utilizado, o corpo.
Elemento que podia ter conotações diversas, elogiosas, onde o corpo ganha uma
imagem social representando a ordem do mundo, onde cada uma das três ordens é definida por
partes específicas do corpo.

O melhor desenvolvimento dessa metáfora foi de João de Salisbury, por volta de 1159,
no seu famoso Policraticus: a comunidade política (res publica) é um corpo do qual o
rei é a cabeça, o Senado o coração, os juízes e governadores de províncias os olhos,
ouvidos e língua, os guerreiros as mãos, os arrecadadores de impostos e fiscais o ventre
e o intestino, os camponeses os pés. Na realidade medieval, o Estado típico era, portanto,
um reino193.

Uma ideia que usa o corpo como exemplo é de significação religiosa, onde Cristo é a
cabeça, porém posteriormente, é pensada uma nova configuração, usando o mesmo objeto, mas
enquadrando-o na imagem política, a cabeça não é mais o Cristo e sim o monarca - que gera a
disputa entre a Igreja e o Estado, para ver quem era mais essencial na fisiologia politica.194
Dentro dessa perspectiva, de ressignificação modelares, muitos daqueles que
“pertenciam ao mundo”, no fim de suas vidas entregavam seu corpo a causa celeste, abrindo mão
dos vícios terrenos e abraçando o hábito monástico como uma forma de reparação física e
espiritual.

192
LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. p.27.
193
FRANCO JR, Hilário. Idade Média Nascimento do Ocidente. Brasília: Ed. Brasiliense, 2001. p.67.
194
LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma História do Corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira,2006, p.169.
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Quantos se entregaram pelos ritos não da vassalagem, mas da servidão, submeteram-se,


tornaram-se propriedade de um santo, seus homens ou suas mulheres “de corpo”, tais
como esses “servos de santuário” dos quais muitos saíam da mais alta nobreza, tão
numerosos na Alemanha, na Lorena, doravante protegidos neste mundo e no outro.195

Outras visões trazem a imagem do corpo como portas para o pecado, em que por meio
dele, despontam os pecados capitais, que levam o homem a queda, e onde no inferno segundo
alguns textos da época, esses pecadores tem que pagar suas penas.
E mesmo após a morte, esses pecadores sentem os martírios, afligidos por uma espécie
do que Le Goff chama de “receptáculos incertos”196 , pois apesar da ausência de um corpo físico,
os mortos apresentam sensações corporais.
A materialidade é onde se dá a danação, mas também a salvação e dentro do espaço
físico que o cristão deve buscar a fiança para a recompensa final. E para isso, é necessária a
indicação de como proceder, e tomando em conta tal perspectiva, percebe-se a construção de
modelos que regerão as formas de comportamento social.
Essas regras são definidas de acordo com a camada social em que individuo está inserido,
e tais códigos serão construídos através de uma complexa e intricada teia discursiva.
Durante a Idade Média, a dialética de prevalência discursiva não é diferente das demais
épocas, numa sociedade onde poucos sabiam escrever e grande parte das ideias se disseminava
através da oralidade, e o significado das palavras adquiria um peso relevante.

[...]Muitos dos homens da Idade Média são analfabetos, como e o caso da grande maioria
dos leigos até ao século XIII. Nesse mundo de iletrados, a palavra tem uma forca especial.
Das pregações o homem medieval extrai noções, anedotas, instrução moral e religiosa. E
certo que o texto escrito tem um grande prestigio baseado no prestigio das ≪Sagradas
Escrituras≫ e dos clérigos, homens de escrita, a começar pelos monges, como
scriptorium — o lugar da escrita, o aposento essencial de todos os mosteiros —
comprova. No entanto, o grande veículo de comunicação e a palavra. Isso pressupõe que
a palavra seja bem conservada197

Grande parte desse conteúdo era repassado e ganhava significados de acordo com a classe
que absorvia o discurso e dela fazia uso, atribuindo signos repletos de ideologias.
Como em toda complexa sociedade, a população do medievo tinha necessidades de
comunicar-se e em seu caso, a palavra, o gesto e o signo ganhavam nuances que seriam
decodificadas para quem se destinasse a mensagem, geralmente passadas pelos clérigos em suas
pregações, ou pelos jograis -pessoas que declamavam as diversas ideias que circulavam na
sociedade.

195
DUBY, Georges. História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras,
1990, p.40.
196
LE GOFF, Jacques. Os Limbos. Signum Revista da ABREM. São Paulo, v.5: Associação Brasileira de Estudos
Medievais, 2003.p 264.
197
LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval. Lisboa: Ed. Presença, 1989, p.27.
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Nessa posição, clérigos e jograis “manobram” a língua a sua maneira, mesmo que não
sejam autores dos discursos, fazem as vezes de usurários de discursos de outros, sejam eles dos
doutores da Igreja, ou de autores de obras de ficção (trovadores). Que através de contos e
provérbios, expandiam as ideias dos detentores do poder.

[...]Na língua falada, os provérbios e ditados se distinguem nitidamente do conjunto da


cadeias pela mudança de entonação.Tem-se a impressão de que o locutor abandona
voluntariamente sua voz, tomando outra de empréstimo, a fim de proferir um segmento
da fala que não lhe pertence propriamente e que ele está unicamente citando[...]198

A oralidade que, com o passar do tempo, além das mensagens religiosas, se propagará na
cultura laica, onde a voz será produtora da emoção, e numa sociedade iletrada, a palavra dada vale
mais do que a palavra escrita. Ela é ainda uma herança dos povos germânicos, cujas leis eram
fixas no direito consuetudinário, além do religioso de que o entendimento do sagrado se dá pela
palavra199.
No exercício da oralidade, a relação subjetiva de transmissão de informação se concretiza,
dá a presença do autor na prática discursiva.
Para que um líder fosse efetivamente constituído era necessário criar em torno dele uma
imagem construída através de discursos que embasasse suas capacidades de governo, de luta, seu
trato com o povo e suas qualidades cristãs.

[...]percebemos como todo regime político estabelece uma base, um imaginário social
constituído por utopias e ideologias, mas também por mitos, símbolos e alegorias,
elementos poderosos na conformação do poder político, especialmente quando adquirem
a aceitação popular[..]200

E para que o poder político material fosse estabelecido, era necessária a construção da
identidade de um poder simbólico que o embasasse. Na Idade Média, vários elementos foram
usados para isso, territórios com a mesma língua, religião, fronteiras definidas e um exército forte,
além de ideias que funcionassem não só do ponto de vista jurídico como também no campo
simbólico, algo que transcenda a racionalidade, fazendo-os ser sentidos, compreendidos,
assimilados.

[...]Um poder político, com efeito, não é somente composto de homens que instauram e
manobram certas ideias e exercem certas ações. Ele visa se fazer reconhecer, identificar
e, se possível, favoravelmente apreciar, graças a todo um sistema de signos e de
emblemas dos quais os principais são aqueles que são vistos[...]201

198
GREIMAS apud POSSENTI, Sírio. Os Limites do Discurso. São Paulo: Ed. Parábola,2009, p.110.
199
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. A “Literatura” Medieval. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1993, p.
46.
200
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador : D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p.20.
201
RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Os símbolos do poder. Brasília: UnB Editora, 1995, p.14.
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Percebe-se aí o alcance exemplar de modelos forjados para a manutenção da ordem e


alcance da salvação, nessa conjuntura observamos as tentativas do clero e da nobreza, em
“civilizar” aquele que tinha junto ao rei uma expressiva participação social, o homem de armas, o
cavaleiro.
Entre as diversas mudanças mentais nos séculos XI e XII, veremos que as crenças do
fim do mundo e do apocalipse foram superadas por progressos econômicos e sociais,
estabelecimento de fronteiras e expansão territorial. Com isso, traços culturais se intensificaram,
e, a partir de então, modos de comportamento se expandiram e com o fortalecimento do comércio
e das cidades.
As distâncias diminuíram formando uma rede de disseminação de ideias e
distribuição de novidades nos campos da ciência, cultura e arte. Parte desses contatos eram feitos
pelos comerciantes e menestréis que iam de lugar em lugar, espalhando as novidades de uma
cidade para outra.
É a partir da cidade e de uma ampliação de públicos consumidores dessas narrativas,
que a literatura e a história tomam rumos distintos, cada uma assumindo seu cabedal de
conhecimento e técnicas retóricas.
Entre os séculos XI e XIII, a França passa por mudanças que a levariam a uma evolução
no processo de produção e de realizações sócio- econômicas. Isso se refletiu em vários campos da
sociedade que vão desde a volta da nobreza à cidade, até o incentivo à instrução desse estrato
social, que se reflete em vários aspectos culturais, inclusive na produção literária.
E em sua essência buscava balizar modelos que fundamentariam ou fortaleceriam as
crenças de um mundo perfeito e harmônico, traduzindo os desejos do povo de sua época,
idealizando o Paraíso, onde a justiça e a bonança reinariam.
Há ainda a ida de uma camada da nobreza para as cidades, o que no caso francês
colabora com uma tentativa da coroa em ter mais controle sobre esse estamento, ainda envolta no
pensamento de um rei distante e de que a autoridade repousava sobre os ombros de barões e duques
que viam a imagem do rei como figurativa, distante e essa ideia lhes dava mais liberdade de ação
em seus domínios.
Mas isso se modifica quando o rei passa a ser mais proeminente na cidade, criando
nesse espaço, um lembrete de sua presença e de seu olhar sobre aqueles a quem a ele serviam além
disso, a urbe suscita novas relações entre os nobres e os demais estratos sociais, gerando ainda
segmentações mais aparentes que se exprimiam nos moldes de comportamento e práticas culturais.
A cidade medieval além de receber a nobreza advinda do campo, possuía ainda uma
nobreza original, com visão mais ampla, em virtude das vantagens de se morar onde as maiores
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possibilidades de sustento e circulação de ideias se configuravam, mas que apesar disso, tinham
bases tradicionais de comportamento.
O revigoramento das cidades trouxe de volta a valorização da cultura local, que teve
nas cortes citadinas um campo prolífico, que tinham além da nobreza (vinda do campo e que trazia
com ela suas impressões e visões de mundo), a emergente burguesia comercial, que era abundante
e de grande importância para a economia dessas localidades.
A cidade é o centro da civilização no século XII, lugar de segurança, manifestação da
ordem e da civilidade; é para lá que seguem aqueles que buscam refinamento e instrução.
Observando essa realidade, as obras culturais realizadas nesse momento, buscam inspirar-se nesse
espaço de convivência e usam a cidade como polo de atração.
É nas cidades que a literatura vai se expandir, deixando de ser somente feita pela Igreja,
e passam também a serem produzidas pelos laicos; com isso, novas formas de cultura se destacam,
tornando-se meios expressão e de diferenciação de um determinado grupo. Uma dessas categorias
particularmente vai se aproveitar dessa nova modalidade de escritura, a cavalaria, que deixa de ser
somente uma categoria profissional e se impõe como hierarquia.
Além disso, há outros avanços no que se refere às técnicas de metalurgia, e agricultura,
a mobilidade aumenta e com isso o campo de visão de mundo do homem do período se alarga. A
aristocracia se renova integrando novos elementos, mostrando um código de ética mais bem
definido, fundindo nobreza e cavalaria. “A absorção da nobreza pela cavalaria é tal que se torna
difícil reivindicar ser nobre sem ser cavaleiro.” 202
Afora das mudanças econômicas provenientes das práticas de comércio, a corte trouxe
outro tipo de transformação que aconteceu concernente ao comportamento. O cavaleiro estava
acostumado a levar uma vida repleta de combates; desde pequeno foi preparado para isso, tinha a
agressividade na sua essência, e com a vida na corte, essa prática passa a ser limitada, em meio a
regras e proibições, que se tornaram autolimitações34.
Essa transformação ocorrerá no período que Marc Bloch chama de tomada de
consciência203 que se dará no momento em que o homem medieval passa a trabalhar sua erudição,
onde os espíritos são convidados a “raciocinar adequadamente”. Instigando o nobre a buscar mais
conhecimento e ilustração.
Com isso, ficam evidentes as diferenças culturais e econômicas na França, que no
momento possuía dois polos distintos: o norte e o sul. Essa polarização estará presente nas
produções culturais durante todo o século XII.

202
BASCHET, Jerôme. op. cit., p.116.
203
BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. São Paulo: Martins Fontes,2012, p.131.
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As obras produzidas nesse marco cronológico foram escritas ou no dialeto d’oil, com
relação às canções de gesta (geralmente o anglo-normando) ou no dialeto d’oc, no que concerne
ao romance, que tem vida mais longa e prolífica. Respectivamente falados ao norte e ao sul
francês.

Entretanto, o verdadeiro centro de elaboração da grande poesia lírica da Idade Média, foi
o sul da França, na região do Languedócio, comumente chamada Provença. O seu
aparecimento coincide com o nascimento das canções de gesta aia Norte da França, no
século das gêneses (XI)204

As cidades do Norte e Sul da França, sempre apresentaram diferenças culturais e


artísticas. No primeiro caso a épica teve maior destaque, já no sul a lírica foi mais forte, e do
favorável ambiente do sul, mais livre e com maior independência da Igreja, surge uma literatura
laica forte e com temática mais sensual, inspirada no prazer grego de Eros. O Norte achou a nova
literatura com desconfiança e até mesmo temor das novas ideias herdadas dessa nova forma de
expressão.205
Apesar de diferenças sociais e culturais, Norte e Sul se aproximam pelo ambiente de
produção, mas sua inspiração também as distingue. O Sul é bem mais ligado à temática romanesca,
na relação entre o cavaleiro e a dama, o norte busca relatar as grandes batalhas. Pode-se creditar
essa diferença temática às distintas realidades de ambas as regiões.
A organização político social do norte é mais aguerrida, firme, e por isso no início do
século XIII, domina o sul. “É nessa altura que se diversificam pela índole os dois movimentos
literários; o do Norte, épico, guerreiro, fazendo da luta o seu tema capital, e o do Sul, sentimental,
cortês, elegante, refinado, transformando a mulher no santuário de sua inspiração”.206
Norte e Sul franceses são os focos de desenvolvimento da cultura e literatura cortesã.
Ela surge na Aquitânia, em reuniões da nobreza frequentadas por damas da classe nobre, onde são
recitados poemas em dialeto d’oc, composta por senhores no qual o tema principal é a relação
amorosa. No Norte, o público principal era de cavaleiros e sua temática era mais guerreira, com
destaque à epopeia militar, e as virtudes da cavalaria eram escritas na língua d’oil, geralmente em
dialeto anglo-normando.
Esses gêneros eram lidos em voz alta nas cortes oferecendo um clima mais coletivo,
que será superado por outras modalidades literárias escritas, que tornaram a leitura individual e
íntima.
A lírica dos troubadours do Sul e a épica dos trouvères do Norte, já nascem com
estilos próprios e característicos e vão buscar no romance e na língua local manifestações do verbo

204
SPINA, Segismundo. A Cultura literária medieval: uma introdução. São Paulo: Ateliê Editorial, 1997. p.26-
27.
205
HERR, Jacques. A História Medieval. Rio de Janeiro: DIFEL, 1988, p.164.
206
SPINA, Segismundo. A Lírica trovadoresca. São Paulo: Edusp, 1996, p.22.
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épico e lírico, mostrando o alcance social dessa prática cultural, embasada em elementos do
cotidiano e do passado, acrescidos de imaginação e gerando uma identidade específica de cada
localidade.
A literatura que se desenvolve no chamado círculo cortês é geralmente constituída nas
cidades. Quando esta surgiu, houve uma maior preocupação da nobreza com modos de
comportamento, buscando engendrar uma teia de práticas comportamentais, onde se foi
convencionado o que era ou não socialmente aceito. “Tal civilidade, estritamente cavalheiresca,
exclusiva da vida palaciana e nascida simultaneamente nos dois hemisférios da França, no decurso
do século XI, rapidamente se difundiu e se afirmou em toda a Europa romana e anglo-
germânica.”207

2. A disciplina além dos campos de batalha

No período entre os séculos XI - XIII, essa produção feita pelos leigos, terá uma
função disciplinadora, onde tentará barrar o tom de agressividade vigente na sociedade. Surge a
ideia de incentivar a civilidade por parte da nobreza, que ao utilizar o conceito de civilizado, o
coloca como um meio de fundar uma autoconsciência aristocrática, que fabrica para si uma
autoimagem baseada na concepção de um modo de proceder socialmente aceitável, iniciado num
estrato elevado da elite cavalheiresca que queria se distinguir tanto para os outros, como para seus
próprios olhos, forjando uma imagem baseada num código de leis próprio e exclusivo.

O padrão de ‘bom comportamento’ na Idade Média, como todos os padrões depois


estabelecidos, é representado por um conceito bem claro. Através dele, a classe alta
secular da Idade Média, ou pelo menos alguns de seus principais grupos, deu expressão
à sua alto-imagem, ao que em sua própria estimativa, tornava-a excepcional. 208

Essa codificação era determinada por padrões civilizatórios específicos classificados


de acordo com os anseios e desejos que a nobreza desejava que seus membros seguissem.
Essa civilização, será exposta por sua camada criadora como uma evolução, um
refinamento, além de ser um meio de controlar uma categoria ociosa resultante da Paz de Deus209,
transformando-os de desordeiros, em defensores da paz.
Anteriormente a visão entre barbárie e civilização era balizada no princípio
linguístico, em seguida no princípio religioso e por fim na questão de “cultivo” do espirito. No
medievo o cultivo210 é ação de Deus, moldado e controlado por Ele, que determinava sobre esse

207
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. p.76.
208
Ibidem, p.190.
209
Paz de Deus é definida, em 989 d.C., no Concílio de Charroux. Aí se estipula, pela primeira vez, a existência de
períodos de paz obrigatória.
210
YOUNG, Robert J.C. Cultura e a História da Diferença. In:______.Desejo Colonial :hibridismo em teoria,
cultura e raça. São Paulo: Perspectiva,2005, p.37.
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meio quem era civilizado e quem não era. Uma das formas dessa determinação estava na cultura,
muito difundida com a produção literária.
Mesmo tentando afastar-se das amarras religiosas, as obras apresentavam ainda
elementos constitutivos dos ensinamentos cristãos, pois a vida cotidiana era fortemente inspirada
pela religião. Isto também se reflete na construção no ideal nobre de perfeição.
A nobreza usava a literatura para o fortalecimento do ideário de modelo perfeito ,
forjando mitos e criando modos de expressão próprios e convivência social, divulgando novas
formas de sociabilidade, de modelos estéticos, conduta de vida nobre, uma forma de “ditar” moda
“captando” a essência de pessoas reais e transportando-as para um mundo onde todas as coisas
são possíveis, as pessoas boas são reconhecidas pela honra e as más punidas por seus atos.
A elite manipula os seus e, além dela, o clero e os servos absorvem as obras, gerando
efeitos na sociedade como um todo: dentro da nobreza, essa ideologia se traduz em códigos e
costumes, entre os clérigos vem a aceitação, ou críticas que a repudiam tais produções, já entre os
servos, pode-se concluir que a opinião deles é pouco conhecida, sabe-se que sua visão de mundo
é de abnegação diante de uma realidade imutável, onde nada se pode fazer. Somente com o
advento da burguesia que estas ideias serão contestadas mais energicamente, gerando disputas e
com o tempo, algumas mudanças político-sociais.
As produções da literatura funcionarão como um meio de projeção de atitudes
coletivas e individuais, além de padrões de sensibilidade gerados a partir de um microcosmo que
expressa a percepção de um elemento da mentalidade coletiva do homem medieval. Ultrapassando
barreiras de classe e ordem social, influenciando a todos sem distinção e moldando tradições e
costumes.
Molde que se espalhará e fundamentará a identidade de uma época, em que a moral
do cavaleiro não era somente sua, mas de seu estamento, não somente pessoal, mas social, o que
pede um comportamento incontestável211.
Mesmo envolvido nessa lógica de que faz parte de um grupo, uma ordem e uma
família, o nobre medieval começa a se dar conta da sua dimensão como ser único dentro de uma
conjuntura social.
A esse mundo teoricamente organizado à perfeição, o homem do medievo precisava
encaixar-se e para isso tinha que seguir regras alhures estabelecidas, convencionadas ante os
poderes do céu e da terra. Para isso, ele teria que seguir regras e estas estabeleciam um novo perfil
de nobreza, civilizado e culto.
Os livros eram artigos de luxo, a educação e o ensino formal eram quase
exclusivamente privilégio dos clérigos, os oratores não tinham somente a prioridade sobre o

211
DUBY, Georges. O cavaleiro, a mulher e o padre. Lisboa: Publicações Dom Quixote,1988. p. 29.
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acesso à leitura, como também grande parte do que era produzido era feito por eles, que ganham
concorrência com as produções feitas por e para leigos.
As obras da literatura laica expressavam o ponto de vista do estamento a que era
dirigida: a nobreza. Construía sua autoimagem, além de resgatarem fatos do passado, suprindo
algumas aspirações mundanas, ausentes nas obras clericais, que se as pusessem, geralmente eram
representadas sobre um viés negativo.
Com a intensa circulação de nobres foram se formando pequenas cortes. Nelas, o rei
era visto sob uma aura quase sobrenatural, etérea, distante, e quem fosse próximo a ele, seria
valorizado pois para frequentar a corte régia era necessário obter um certo refinamento e numa
sociedade eminentemente guerreira poucos tinham um refinamento e um grau de instrução
satisfatório.
Com o advento das cidades, estas se tornaram o centro de tudo o que era novo e
elitizado, vendo isso, as pequenas cortes começaram a imitá-la e essa reprodução era disseminada
pelos trovadores que de passagem pelas cidades e vilas reproduziam seus hábitos aos senhores dos
distantes feudos visitados por eles.
Essa noção era embasada no princípio onde esses exemplos eram chaves para manter
a ordem social, e determinar as funções de cada estrato na dinâmica social, e nessa época, a
narrativa histórica se confunde com a religião nas hagiografias, e com a ficção com as gestas, que
tinham como uma das temáticas fatos reais.
Essa visão de demarcação de espaços físicos de poder, entra em consonância com
século XII, envolvidos em conflitos territoriais onde essa mensagem se dissemina, no momento
em que ocorre um processo de escrituração e burocratização nas instâncias religiosas e políticas
do que hoje é a França, numa forma de fortalecer o poder real e reduzir a fragmentação
institucional feudal, o texto se torna um meio de validação e referência aos modelos de práticas
sociais.

A burocracia emergente instala a autoridade no texto que institucionaliza como instância


de validação doo vinculo social e referencia maior das práticas sociais. A reforma
desencadeia um sistemático movimento de textualização das instituições e da cultura que
atinge a língua vulgar, dando origem à literatura em Francês antigo212

E este artifício valioso, foi utilizado para benefício próprio da nobreza, pois, no século
XII, a monarquia francesa passou por diversos embates na determinação sobre a quem de fato a
coroa pertencia, e, para legitimar sua posição, os reis do período usavam a descendência carolíngia

212
ALVARES, Maria C. Daniel. La Chanson de Roland In:______. Grandes Epopeias da Antiguidade e do
Medievo. Blumenal: EDIFURB,2014, p.270.
Página 1008 de 2230

como mote para sua posição213 e para comprová-la, buscavam nas narrativas sobre a vida do
monarca carolíngio, laços de semelhança e parentesco com o rei do período.
Além de refletir essa tendência na produção artística escrita do período, a França teve
precedência nas criações das formas literárias dos séculos XI e XII, possuindo uma estrutura
feudal organizada, e um terreno fértil para a construção de um espírito cavalheiresco e cortês bem
desenvolvido.

Isto é perfeitamente compreensível, uma vez que à França devemos aquelas condições
ideológicas, morais, políticas e econômicas, que permitiram o aparecimento dessas
matrizes literárias: a organização feudal e a consequente formação do espirito
cavalheiresco; a cortesia e seu corolário-a dignificação da mulher e uma nova concepção
do amor, desconhecida da Antiguidade Clássica214

O processo de escritura de documentos e burocratização das instituições religiosas e


laicas se estendeu para o meio cultural, cultivando a memória e fortalecendo a literatura de salão,
já incentivadas com o fortalecimento das cidades e a evidenciação das cortes citadinas, que
fornecia um público avido por aventuras, cada vez menos envolvidos em querelas domesticas.

Todavia, nestes tempos, o escrito desenvolve-se a par do oral e, pelo menos no grupo dos
clérigos e literatos, há um equilíbrio entre memória oral e memória escrita,
intensificando-se o recurso ao escrito como suporte da memória. [...] Durante muito
tempo, no domínio literário, a oralidade continua ao lado da escrita e a memória é um
dos elementos constitutivos da literatura medieval.215

É através desse novo pensamento intelectualizado, da vontade de adquirir cultura, que


a literatura ganha mais destaque e seus produtores oportunidades de, a partir do que é produzido,
conseguirem espaço. Mas essa possibilidade é condicionada à sua produção, pois existiam aqueles
que gostavam de viver sobre o patrocínio dos nobres, já outros preferiam a vida errante a
manterem-se sob a proteção de um senhor. De qualquer maneira, esses jograis e trovadores terão
papel de divulgadores dos anseios e vontades da nobreza, e eram também seus piores críticos.
O termo trovador é mais recente do que o jogral surge no século XI, e passou a
concorrer com o ele. Ganhou o significado de poeta-compositor, seus membros eram preparados,
estes eram geralmente nobres e tinham conhecimentos em técnica poemática, recursos gramaticais
e processos estilísticos.
Um jogral poderia se tornar trovador e vice e versa. Os trovadores são provas da
transformação da sociedade medieval a partir do ressurgimento das cidades e da valorização da
cultura, e essas mudanças se refletem nas produções: “Idade Média cultivou motivos de um

213
DUBY, Georges. Idade Média na França (987-1460):De Hugo Capeto à Joana D’Arc. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor,1992, p. 30.
214
SPINA, Segismundo. A Cultura literária medieval: uma introdução. São Paulo: Ateliê Editorial, 1997, p.37.
215
LE GOFF, Jacques. História-Memória. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, v.I, 1984, p.29.
Página 1009 de 2230

primitivo romantismo com uma insaciabilidade juvenil. Ao passo que em alguns gêneros de
literatura –como a poesia lírica- a expressão de desejo e posse se ia tornando mais requintada”.216
A modalidade literária laica nasce como uma alternativa de distração e divertimento
àqueles que não tinham acesso às obras escritas em latim, ou por não serem clérigos ou por serem
iletrados. As principais obras em língua nacional são escritas em honra aos cavaleiros. Essa
tradição de tratar dos feitos guerreiros vem de séculos anteriores como uma espécie de literatura
histórica, e somente a partir do século XI, essa tradição deixa de ser somente oral e passa a ser
transmitida também na forma escrita.
As narrativas em línguas nacionais, receberão dessa literatura, elementos estruturais
como a roupagem prosódica e o tom das velhas gestas, elas só assumiram um caráter mais factual
a partir do século XII, quando ela passa a ser produzida por pessoas que não fazem parte do ciclo
dos clérigos217.
Essas formas de expor ideias eram voltadas às cortes e falavam do mundo da nobreza,
se tornaram um veículo eficaz de transmissão de moldes sociais, produtos das transformações que
ocorreram no campo da produção intelectual medieval.
A produção em prosa ganha destaque, e a novela de cavalaria também passa a ser
usada e aos poucos - toma o lugar das histórias curtas usadas no ensino religioso - evoluindo para
um gênero narrativo, que sofrerá evoluções em estilo, destino e público-alvo.
No que diz respeito à cultura, a polarização entre cultura sofisticada (clerical) e cultura
simples (vulgar)218, cabe aqui apontar que existem algumas diferenças em relação ao uso desses
termos no medievo, e sua utilização nos séculos posteriores.
Na Idade Média Central a cultura erudita poderia ser traduzida por cultura clerical, já
que era a Igreja que detinha o monopólio da cultura intelectual, e os demais estratos sociais
usuários das línguas locais, eram produtores da cultura popular ou vulgar, pois eram mais
partidários das práticas culturais anteriores ao cristianismo, herdadas de seus ancestrais pré-

216
HUZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. São Paulo: Editora Verbo EDUSP.1978. p.75.
217
Ibidem, p. 129.
218
Aqui usando a nomenclatura adotada por Hilário Franco Jr, que assim explica: A primeira expressão é usual na
historiografia medievalística, pois providencialmente tem duplo sentido de “eclesiástica”- e esse grupo social
dominou a cultura sofisticada até pelo menos o século XII – e de “letrada”, acepção que a palavra ganha desde fins
do século XIII, quando cresce o segmento laico alfabetizado. Dessa forma, a expressão contempla ainda as mudanças
sociais do período. Pela mesma razão, propomos cultura “vulgar” ao invés de “laica”, [...] a distinção social
clérigo/leigo não correspondia a uma distinção cultural. Ademais, “vulgar” era a palavra usada pelos próprios
medievais para indicar algo diferente de clerical, sobretudo no domínio linguístico – as falas vulgares, vernáculas,
diante do latim-, o que justifica ainda mais o uso da expressão, já que aquela cultura (como popular) era
essencialmente oral”. FRANCO JUNIOR, Hilário. Meu, teu, nosso: reflexões sobre o conceito de cultura
popular. Revista USP, Brasil, n. 11, p. 18-25, nov. 1991, p. 22.
Página 1010 de 2230

cristãos219. Mais tarde erudito teria uma significação mais ligada ao refinamento e folclórico a
algo mais pitoresco.
Mas ambas culturas não são isoladas na sociedade medieval, uma influi sobre a outra
simultaneamente, transformando estruturas e meios de expressão, que mudam de acordo com a
intensidade dessa influência. “Sempre que há o contato de uma cultura com outra ocorre um
processo de transculturação, o que implica mudanças contínuas, não hierarquizadas de elementos
culturais díspares, responsáveis pela proposição de novas montagens”. 220.
Numa sociedade dividida em estratos, onde nobreza e pobreza eram previamente
segregadas formando universos distintos, a cultura folclórica aparecia como um elemento de
ligação que para os primeiros, servia para confirmar sua estada no poder e para o segundo um
meio de aceitação de sua condição. E a Chanson exprime precisamente essa bipolaridade, pois é
erudita em sua estrutura frasal e na versificação, mas é folclórica em algumas temáticas e
caracterização de personagens.

3.Conclusões Finais
No período identificado como Idade Média Central não existiam na França assim
como em parte da Europa, salvo exceções, grandes domínios políticos e sim pequenas possessões
de terra nas mãos da nobreza; que com esses privilégios, se assenhoravam da autoridade e
controlavam seus servos com laços de fidelidade em ocasiões de guerra e paz.
Eram necessárias tais medidas para a manutenção da ordem e do sistema vigente. O
poder era medido pela terra e pelos aliados, quem obtivesse a terra teria possibilidade de conseguir
alianças, que ajudavam a conquistar mais territórios.
A nobreza foi a maior proprietária de terras, e recebia rendas da reserva dominal
cultivada por um vasto número de criados, que os sustentavam e lhes dava a liberdade para não
explorarem fisicamente seus campos.
Quando este estamento desloca-se para a cidade, terá que se adaptar à uma nova
realidade onde esse estrato começa a dividir lugar com a burguesia ascendente, e esse nobre, terá
que fazer mutações em suas expressões culturais para exibir quem é, sobretudo no que se trata ao
que será escrito e declarado nos salões, como por exemplo sobre o que deverá ser divulgado acerca
das memórias de seus antepassados que seriam perpetuadas em formas de canções de gesta.

E ainda, uma vez que sabemos o interesse que os homens da época feudal dedicavam ao
passado e o prazer que sentiam ao ouvi-lo contar [...]. As linhagens senhoriais por seu
lado tinham as suas tradições, por intermédio das quais foram transmitidas várias

219
LE GOFF, Jacques. Para Uma Outra Idade Média - Tempo, Trabalho E Cultura No Ocidente. [Tradução
Thiago de Abreu e Lima Florêncio e Noéli Correia de Melo Sobrinho] Petrópolis: Vozes, 2013, p.286-296.
220
CANDIDO, M. R. (Org.). Memórias do Mediterrâneo Antigo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2010, p.89.
Página 1011 de 2230

recordações, verdadeiras ou deformadas e, tanto nas salas das praças fortes como sob as
arcadas do claustro, fala-se com prazer dos antepassados.221.

A nobreza acaba utilizando assim essa estrutura imagética para compor suas memórias
dando-lhes ressignificações, adaptando-as à realidade do público a quem são dirigidas, fazendo-
se atrativa, direta ou indiretamente, reafirmando valores e trazendo novas perspectivas de visões
sociais onde essa elite ainda era protagonista: “A literatura cortes do século XII, está num
momento em que o Estado está começando a se libertar do emaranhado feudal e o poder público
se sentia novamente capaz de modelar as relações sociais.”222
Essas recordações serão expostas nos salões e áreas de grande circulação de nobres,
em moldes específicos de acordo com seu território de origem, língua local e público consumidor,
mas apesar disso, essas memórias geralmente eram produzidas em formato de manifestações
artísticas cantadas, escritas e declamadas.

REFERÊNCIAS
ALVARES, Maria C. Daniel. La Chanson de Roland In:______. Grandes Epopeias da
Antiguidade e do Medievo. Blumenal: EDIFURB,2014.
BASCHET, Jerôme. A Civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo:
Globo,2006.
BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. São Paulo: Martins Fontes,2012, p.131.
CANDIDO, M. R. (Org.). Memórias do Mediterrâneo Antigo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ,
2010.
DUBY, Georges. O cavaleiro, a mulher e o padre. Lisboa: Publicações Dom Quixote,1988.
______________. História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
______________. Idade Média na França (987-1460):De Hugo Capeto à Joana D’Arc. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor,1992.
_______________. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. 2 ed. Lisboa: Editorial
Estampa, 1994.
_______________. Idade Média, Idade dos Homens: do amor e outros ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
FRANCO JUNIOR, Hilário. Meu, teu, nosso: reflexões sobre o conceito de cultura
popular. Revista USP, Brasil, n. 11, p. 18-25, nov. 1991.
_______________________. Idade Média Nascimento do Ocidente. Brasilia: Ed. Brasiliense,
2001.
GREIMAS apud POSSENTI, Sírio. Os Limites do Discurso. São Paulo: Ed. Parábola,2009.
HERR, Jacques. A História Medieval. Rio de Janeiro: DIFEL, 1988.
HUZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. São Paulo: Editora Verbo EDUSP.1978.
LE GOFF, Jacques. História-Memória. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, v.I,
1984.

BLOCH, op. cit. p.120-121.


221

DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens: do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
222

2011, p.73.
Página 1012 de 2230

________________. O Homem Medieval. Lisboa: Ed. Presença, 1989.


_________________. Os Limbos. Signum Revista da ABREM. São Paulo, v.5: Associação
Brasileira de Estudos Medievais, 2003.
_________________; TRUONG, Nicolas. Uma História do Corpo na Idade Média. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira,2006.
__________________. Para Uma Outra Idade Média - Tempo, Trabalho E Cultura No
Ocidente. [Tradução Thiago de Abreu e Lima Florêncio e Noéli Correia de Melo Sobrinho]
Petrópolis: Vozes, 2013.
RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Os símbolos do poder. Brasília: UnB Editora, 1995.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SPINA, Segismundo. A Lírica trovadoresca. São Paulo: Edusp, 1996.
_________________.A Cultura literária medieval: uma introdução. São Paulo: Ateliê
Editorial, 1997.
YOUNG, Robert J.C. Cultura e a História da Diferença. In:______. Desejo Colonial :hibridismo
em teoria, cultura e raça. São Paulo: Perspectiva,2005.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. A “Literatura” Medieval. São Paulo: Ed. Companhia das
Letras, 1993.
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A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA MÚSICA EM SÃO LUÍS – MA223

WOMEN'S PARTICIPATION IN MUSIC IN SÃO LUÍS - MA

Lorena Elias de Oliveira


Discente do Curso de Ciências Sociais - CCH
Prof. Dr. Paulo F. Keller (Orientador)
DESOC/PPGCSOC/CCH

Eixo Temático 2 – Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Este plano teve por objetivo realizar uma investigação do trabalho artístico musical sob
o recorte dos estudos de gênero e geracionais. Nossa questão de pesquisa é: de que forma a mulher
se faz presente na produção artística musical contemporânea e no mercado da música em São Luís
– MA? Investigamos a participação feminina no trabalho musical – seja como compositora,
arranjadora ou intérprete – considerando as diversas gerações de musicistas; a sua importância no
contexto artístico cultural local; e, as desigualdades, diferenças e dificuldades específicas do
gênero feminino no trabalho artístico musical. Utilizamos o método de pesquisa qualitativa, com
base em estudos bibliográficos, documentais e na observação direta da atuação de musicistas na
cena musical da capital. Após definir uma amostra (não probabilística) de seis casos de musicistas
que atuam em São Luís-MA, realizamos entrevistas semiestruturadas com estas artistas
selecionadas. Constatamos fatores importantes que condicionam o trabalho artístico das mulheres
na cena musical na capital ludovicence, tais como: a falta de infraestrutura, a instabilidade no
trabalho das musicistas; a falta de reconhecimento profissional, o que, pelo fato de serem
mulheres, é ainda mais acentuada; a ausência ou a insuficiência de apoio do setor público e
privado. Os processos de criação e de produção destas musicistas são atingidos por estes fatores,
levando principalmente a situações de trabalho instáveis, ao desenvolvimento de trabalhos
paralelos a fim de garantir sua sustentação econômica, e, a caminhos dificultosos no universo
musical. Nosso estudo pretende contribuir com entendimento das condições de trabalho das
musicistas em São Luís-MA, e, possivelmente, para as de todo o país, com o intuito de impulsionar
políticas e ações sociais que promovam a participação das mulheres em situações de maior
igualdade no mercado da música.
Palavras-chave: música, gênero, trabalho.

Abstract: This plan aimed to carry out na investigation of musical artistic work based on genre
and generation studies. Our research question is: How is the woman presente in contemporany
musical artistic production and in the music Market in São Luís – MA? We investigate female
participation in music work, considering the different generations of musicians; it’s importance in
the local cultural artistic contexto; and, the inequalities, diferences and difficulties specific to the
female gender in musical artistic woek. We use the qualitative research method, based on
bibliographic, documentar studies and direct observation of the performance of musicians in the
capital’s music scene. After defining a sample (not probabilistic) of six cases of musicians who
work in São Luís – MA, we conducted semi – structured interviews with these selected artists. We
found important factors that condition the artistic work of women in the music scene in the capital,
such as: the lack of infrastructure the instability in the work of the musicians. Our study intends
to contribute with na understanding of the working conditions of musicians in São Luís – MA in

223
PROJETO DE ORIGEM: O trabalho do artista: Investigação social das relações de trabalho na produção musical
contemporânea e do mercado de trabalho do músico em São Luís – MA.
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order to promote social policies na actions that promote the participation of women in situations
of greater equality in the music Market.
Keywords: music, genre, work.

01 – INTRODUÇÃO
O plano apresentado visa realizar uma investigação do trabalho artístico musical sob o recorte dos
estudos de gênero. Questionamos de que forma a mulher se faz presente na produção artística
musical e no mercado da música em São Luís – MA. Investigamos sobre a participação feminina
no trabalho musical – seja como compositora, arranjadora ou intérprete – considerando as diversas
gerações de musicistas; a sua importância no contexto artístico cultural local; e, as desigualdades,
diferenças e dificuldades específicas do gênero feminino no trabalho artístico musical.
O plano está associado ao projeto de pesquisa “O trabalho do artista: Investigação social das
relações de trabalho na produção musical contemporânea e do mercado de trabalho do músico em
São Luís – MA” que tem por objetivo geral investigar as diversas formas de trabalho do músico
no heterogêneo e diversificado mercado da música - em seus diversos estilos musicais - as suas
relações, condições e processos de trabalho e de produção, e as dinâmicas do mercado de trabalho
do músico em São Luís do Maranhão, no contexto das indústrias culturais e criativas e das políticas
neoliberais contemporâneas, relacionando às questões geracionais e de gênero e as desigualdades
geradas a partir destes fatores no mercado da música.

02 – JUSTIFICATIVA
A pesquisa realizada contribui significativamente para compreender e explicar de que forma as
mulheres integram o mundo da música em São Luís, e de que forma as mulheres estão imersas em
dinâmicas e desdobramentos que compõem a cadeia criativa da música e o mercado dessa arte na
capital. A partir dos resultados apurados é possível criarmos possibilidades. Podemos contribuir
com políticas e ações que melhorem a vida das mulheres musicistas em São Luís, no que tange o
preconceito de gênero e que promovam suas potencialidades, mostrando de fato, que elas também
compõem, cantam, tocam e produzem com qualidade em um universo predominantemente
masculino, onde, constantemente, são invisibilizadas.

03 - OBJETIVOS
3.1 OBJETIVO GERAL: Este Plano de Trabalho teve como objetivo investigar as condições e
dinâmicas do trabalho artístico musical destacando o trabalho feminino na produção musical e nos
demais postos constituintes da cadeia criativa da música em São Luís - MA.

3.2 OBJETIVO ESPECÍFICO: Investigar a presença feminina no processo criativo e de produção


artística musical, nas relações de trabalho e olhar a particular experiência de ser musicista em suas
diversas gerações e influências na cultura local.

04 - METODOLOGIA
A metodologia de pesquisa qualitativa foi a adotada neste trabalho. Uma revisão crítica de
literatura sobre o tema foi realizada: Gênero e trabalho artístico musical. Fizemos uma pesquisa
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documental analisando documentos e relatórios da ONU e do Ministério da Cultura e do Trabalho


do Brasil sobre música e economia criativa. Dados quantitativos foram usados a fim de conceber
entendimento sobre a presença feminina no trabalho musical formal dentro de uma abordagem
qualitativa. No trabalho de campo, observamos momentos da presença feminina na produção
musical local por meio do método de observação direta e realizamos entrevistas semi dirigidas em
uma amostra de seis musicistas de diferentes gerações e estilos musicais.
A princípio, nos debruçamos na pesquisa bibliográfica com teóricos que abordam essa temática
em seus trabalhos. Em seguida, na etapa da coleta de dados, fomos a campo e realizamos o método
de observação direta nas apresentações musicais das artistas. Realizamos entrevistas com seis
mulheres musicistas, com enfoque na questão geracional e de gênero.

05 - RESULTADOS
5.1 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA
Iniciamos nossos estudos a partir do entendimento de que a música não se vincula somente a uma
tangibilidade material, mas que, transcende às subjetividades dos indivíduos no meio social. Em
Mundos da Arte – Mundos da arte e atividade coletiva, Howard Becker (2010) trabalha de forma
ampla, o trabalho artístico e os diversos mundos pertencentes às mais variadas artes, como um
macrocosmo que inclui os mundos da música. . A existência desses mundos dá um pontapé à
sociologia das artes, que possibilita entender a respeito das redes que geram a arte. Presente
também no mundo das artes está a divisão do trabalho: cada indivíduo que participa na produção
e realização das obras de arte possui sua tarefa específica. O que distingue estas obras é a
“expressão do talento e da imaginação de um grande artista” (BECKER, 2010, p. 39), ou seja,
nesse período, a personalidade do artista já era considerada, entretanto, os seus direitos não lhes
eram reservados. BECKER (2010) aponta para o trabalho do artista: é ele quem executa as
atividades ditas nucleares e sua condição depende do seu talento materializado na realização de
suas obras de arte.
O reconhecimento do artista possui relevante consideração nos diálogos estabelecidos pelo
sociólogo em sua obra. Ele afirma que “a reputação de um artista é o resultado da soma das
apreciações feitas a toda a sua produção” (BECKER, 2010, p. 45), ou seja, a partir do olhar do
outro é que ele estabelece propensões a obter sucesso em seu trabalho ou não. Os mundos da arte
são definidos como redes de cadeias que cooperam entre si e estabelecem ligações entre os seus
participantes. Estes mundos determinam o que é ou não é arte e suas classificações, o que faz
destes, um sistema social com maior amplitude.
Ao darmos continuidade aos nossos estudos, utilizamos ADORNO (2011) em Introdução à
Sociologia da Música – Doze preleções teóricas, onde orienta que para que a sociologia da música
seja executada de forma concisa, é necessário que compreendamos as estruturas sociais que estão
anexadas na música e o significado da “vida musical”. Para o autor, cada som e cada reação a ele
– interiorizados do social - são registrados por relações de produção, condições econômicas e
ideológicas que regem o universo musical, sendo uma das tarefas prioritárias da Sociologia da
Música, investigar como ocorre esse processo e para isso, se faz necessária uma vivência empírica
no universo musical.
O centro de interesses da Sociologia da Música está no conflito entre as forças de produção e suas
relações, entretanto não se refere apenas à materialidade, senão que ao “que não se materializou e
foi denegado” (ADORNO, 2006, p. 401). Os talentos dos sujeitos adentram-se à preocupação
sociológica da música e visualiza-se, portanto, a pressão social como um fator repressor ao
desenvolvimento destes. Dessa forma, há a necessidade de compreender o contexto local para que
se compreenda, portanto, o macrocosmo das relações sociais e sua dialética gerada a partir da
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música. O mercado capitalista altera as obras a partir do momento que as reproduz e as adequa às
suas normas e o que antes, possuía um status elevado dentro desse mundo, vêm a alterar-se apenas
como entretenimento, determinando a música como um bem de consumo para ser negociado.
Ao nos debruçarmos sobre as pesquisas documentais, utilizamos o Plano da Secretaria da
Economia Criativa: Políticas, diretrizes e ações, 2011 -14, material produzido de forma
colaborativa, sob regência da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
e pela Unidade Especial para Cooperação Sul – Sul do Programa das ONU para o
Desenvolvimento. Produzido em 2012, este relatório apresenta a perspectiva global das Nações
Unidas sobre a economia criativa. Através de gráficos, imagens e esquemas, o plano apresenta
além das demais cadeias do mercado artístico, os arranjos da produção musical e os atores
necessários para que essa cadeia venha a se desenvolver. De acordo com o relatório realizado, “a
música é uma das principais indústrias criativas, contendo um grande valor cultural e econômico
para todas as sociedades” (BRASIL, 2012, p. 143). Ela não estabelece limites fronteiriços, o que
contribui para a mistura de diversos estilos musicais e estabelece um diálogo entre as culturas,
sejam elas próximas ou as mais distintas.

Fonte: Plano da Secretaria da Economia Criativa: Políticas, diretrizes e ações (MinC, 2012)

A partir dos recursos tecnológicos, a música pôde se expandir e novas dimensões no que diz
respeito à sua criação, à produção, reprodução, comercialização e consumo foram surgindo nos
mercados nacional e global. Além de ser uma expressão cultural, a música é uma indústria que
fomenta o comércio mundial, emprega milhares de indivíduos e gera renda por todas as partes.. A
indústria da música enfrenta na contemporaneidade um grande paradoxo: enquanto o consumo,
em especial, pela juventude vem aumentando, ao mesmo tempo, os compositores, produtores e
artistas vêm recebendo menos rendimentos do que antes.
As gravadoras que dominam a produção, comercialização e distribuição formam um mercado
oligopolista de quatro grandes multinacionais que se sobrepõe com 80% de domínio no mercado
mundial da música. São elas: SONY, Universal Music, EMI e Warner Music. Apesar de estes
poucos grupos ocuparem lugares de privilégio nesse mercado, há, em contraposição, milhares de
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artistas independentes, que atuam como pequenas empresas, na resistência ao mercado de


imposição norte americana.
Os estudos sobre os trabalhos das mulheres no Brasil emergem, a partir dos anos 60, do
desenvolvimento da divisão sexual do trabalho e da necessidade em resistir frente à dominação
masculina no mundo do trabalho, onde as mulheres possuíam participação limitada nas práticas
de produção da economia no Brasil e no mundo. Grandes distorções na distribuição de renda foi
um fator marcante que contribuiu para que as mulheres se sujeitassem a subordinar-se
economicamente e em todas as categorias de suas vidas. Por mais que exista uma porcentagem de
mulheres envolvidas no mercado de trabalho, não reduz a inferioridade social destas, traduzidas
nas relações de trabalho, nos salários inferiores aos recebidos pelos homens ocupando os mesmos
cargos e na pressão moral e psicológica no ambiente de trabalho. As pesquisas realizadas
referentes ao trabalho feminino na Sociologia do Trabalho Brasileiro contemplam a temática de
gênero, das operárias, muitas vezes invisibilizadas, pois “o núcleo forte da sociologia do trabalho
– o estudo da fábrica, dos postos de trabalho - não incorporou a problemática do trabalho feminino
(SOUZA-LOBO, 1981, p. 196)”. A segregação ocupacional é reforçada sobre a defesa de uma
segmentação do mercado de trabalho, que detém às mulheres um papel secundário, instável, com
salários reduzidos e sem qualificações. O patriarcado, trajado pelas bases materiais de uma
“hegemonia cultural” se faz presente na organização da vida dessas sociedades.
Tomando os exemplos recorrentes do nosso cotidiano, nos aprofundamos em uma pesquisa que
trata das relações de trabalho entre homens e mulheres em duas orquestras. SEGNINI (2006), em
Acordes dissonantes: assalariamento e relações de gênero em orquestras, a socióloga tem por
objetivo “analisar as formas que assumem as relações salariais em duas orquestras, reconhecidas
como referências prestigiosas em seus respectivos países - Brasil e França” (SEGNINI, 2006, p.
2): o Theatro Municipal de São Paulo – e, na França – Théâtre de l´Opera National de Paris.
Observa também, a pesquisadora, as distintas formas em que ambos os gêneros sem inserem nas
formações das orquestras, o que enriquece o seu estudo, enfatizando na divisão internacional e
sexual do trabalho assim como as questões referentes ao salário nesta área da música. Para “se
virarem” no mercado musical, os artistas recorrem ao auto emprego, ao free-lancing, ao trabalho
intermitente, aos cachês mais variados, e como é recorrente ter de ir atrás destes diversos trabalhos,
essas se tornaram as formas dominantes da organização do trabalho nos mundos das artes.
A socióloga afirma que questionar sobre as relações sociais presentes nas orquestras e articulá-las
com as relações sociais de sexo faz com que novas compreensões venham a surgir sobre as
diferenças e hierarquias que ocorrem dentro de cada grupo social composto por ambos os sexos.
A história contada pelas mulheres e pelos registros das orquestras relata que a inserção destas se
deu tardiamente nos anos 90 e ainda estando em serviços terceirizados, onde a mão de obra do
servidor é mais explorada e os seus direitos os são reduzidos.
As dificuldades que as mulheres enfrentam no dia a dia são ainda maiores em comparação aos
seus colegas homens. Os postos em que se encontram as mulheres, são, sobretudo, os de tuttistes,
descrito por um dos músicos da orchestre de l´Opera, como “o chão da fábrica”. Ao finalizar a sua
análise, a autora afirma que muitas conseguiram vencer os preconceitos, entretanto, é
extremamente perceptível que ainda falta muito a ser conquistado, tanto nos números de mulheres
presentes nestas orquestras como nos postos de poder, regência destes grupos.
Em sua outra pesquisa intitulada Os músicos e seu trabalho, SEGNINI (2014) aponta para a
temática que corresponde às relações de gênero como necessária para ser debatida já que os
trabalhadores possuem dois sexos e não enaltecer essa evidência empobrece a tentativa de
abranger as condições gerais dos trabalhadores. No campo da música, 48% que constituem esse
universo são homens brancos com um alto nível de escolaridade, que estão inseridos em uma elite
econômica e social. A partir de dados estatísticos analisamos que não somente nessa área do
mercado senão que em toda abrangência global, a predominância dos privilégios aos homens
brancos é significativamente marcada pela desvalorização das mulheres, principalmente as negras
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e indígenas. O trabalho artístico vem ganhando outra proporção a partir do crescimento da


indústria cultural, o que agravou ainda mais as condições de trabalho das mulheres.
Todo o desejo por autonomia se vê embrenhado ao conceito de mercadoria presente na indústria
cultural regida pelas grandes corporações capitalistas. A resistência encontrada em meio a tantas
desigualdades vivenciadas é transmitida através do trabalho árduo e na qualidade artística das
musicistas. São desafiadas no processo da maternidade, em seus processos fisiológicos naturais,
tendo que enfrentar muita pressão da instituição que a emprega e dos próprios colegas de trabalho.
Cabe às mulheres, em um contexto de desrespeito aos direitos trabalhistas, terem que fazer acordos
com os colegas para eles as “cobrirem” durante a gravidez para que quando retornem, elas façam
o mesmo com eles para que não venham a perder os seus postos.
No ano de 2016, a socióloga Liliane Segnini seguiu aprofundando sua pesquisa na área do trabalho
no meio artístico: produziu uma pesquisa (publicada com apoio do Itaú Cultural) juntamente com
Maria Noel Bulloni, em que trataram sobre o Trabalho Artístico e Técnico na Indústria Cultural.
Apontam para a precariedade do trabalho flexível ao mesmo tempo em que as exigências do
mercado de trabalho obrigam a qualificação por parte do trabalhador. A instabilidade, sempre
marcada na vida dos artistas é apresentada como central em suas profissões, onde os vínculos
formais, de acordo com os anos, como apontam as estatísticas, vêm reduzindo significativamente.
Em contraposição, o trabalho ressignificado como “por conta própria” vem crescendo na atual
conjuntura.
No Brasil, a instabilidade nas condições de trabalho se soma às diferenças de sexo e de regiões do
país, em que, os artistas residentes fora do eixo Sudeste – com maior número de recursos e leis de
incentivo - encontram ainda mais dificuldades para desenvolverem os seus trabalhos. Portanto, a
indústria cultural é um universo predominantemente masculino, sobretudo na música, no qual “as
desigualdades de gênero se evidenciam e são superadas por meio de uma dedicação ainda maior
das mulheres na construção de suas performances” (SEGNINI, 2016, p. 73).

5.2 COLETA DE DADOS: ENTREVISTAS SEMIDIRIGIDAS

A partir dos estudos teóricos realizados, selecionamos seis mulheres musicistas (amostra não
probabilística) da cidade de São Luís, capital do estado do Maranhão, para investigar e
compreender o desenvolvimento dos seus respectivos trabalhos, tendo em vista que as pesquisas
averiguadas indicam forte desigualdade de gênero no campo da música.
Patativa, Dicy Rocha, Célia Sampaio, Núbia Rodrigues, Nanda Preta e Lena Machado são as
mulheres musicistas nas quais nos debruçamos para adentrar em seus mundos, investigarmos suas
particularidades na vivência geracional, na questão de gênero e criarmos perspectivas sobre as
condições de trabalho no universo artístico musical na capital ludovicence predominantemente
masculino. Buscamos também o entendimento que é de extrema importância a participação das
musicistas enquanto trabalhadoras na cidade de São Luís como integrantes ativas na economia da
cultura no Maranhão.
A necessidade de produzir-se independentemente devido à falta de infraestrutura, de apoio, de
logística, aos baixos cachês, a desvalorização das artistas locais é evidente em todas as
entrevistadas. Utilizam-se das redes sociais e de amigos para criarem links que as possibilitem
chegar a outros cantos da cidade e do país.
PATATIVA
Iniciamos nossa coleta de dados com a sambista Maria do Socorro Silva, Patativa, 82 anos, natural
de Pedreiras, interior do Maranhão. A artista popular, que só obteve a possibilidade de gravar o
seu primeiro disco aos 76 anos, apesar de trabalhar como musicista, compositora, intérprete –
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cantora desde os anos 80 discorre como até hoje não conseguiu garantir uma vida estabilizada para
“morrer tranquila”. A instabilidade e a incerteza no mercado na prática musical, a falta de
reconhecimento pelo público e seus pares, a dependência da ajuda do Estado e a falta de políticas
públicas específicas são apontados por Patativa como fatores determinantes das desigualdades no
meio musical ao qual está inserida. Suas composições retratam suas condições emocionais, suas
experiências de vida e traumas sofridos por violências cometidas contra ela durante sua trajetória.
Em sua letra intitulada Xiri Meu, Patativa expressa o enfrentamento a um assédio sofrido durante
a sua mocidade, assim como outros sambas que marcam sua carreira a partir dos momentos vividos
pela artista. Sua experiência de vida retrata a estrutura social ao qual está envolvida e elucida sua
trajetória não somente por um viés econômico, senão que por seus sentimentos, sua sensibilidade
ao compor suas polêmicas letras, como formas de expressão.
Desde muito jovem, Patativa expressa a sua música, entretanto, nunca assegurou meios de
subsistência somente através dela. Moradora da periferia da capital, Patativa reclama da falta de
atenção do Estado para com os artistas locais, principalmente para com as mulheres. Compositora
de mais de duzentos sambas, Patativa conta que os cachês recebidos por cada show não são
suficientes para que ela possa se manter e, além disso, atrasam o pagamento. Ademais, a
burocratização das leis de incentivo à cultura inviabiliza a inserção da artista em muitos projetos
disponibilizados pela prefeitura de São Luís e pelo estado do Maranhão. A entrevistada cita
também a desigualdade no tratamento e no recebimento dos cachês comparado aos artistas que
estão na cena musical nacional: “Queria eu pelo menos um camarim pra me arrumar. Enquanto
eu tô ganhando R$ 5 mil no Réveillon pra receber em três meses, Leci Brandão vem e ganha R$
50 mil na hora pra cantar duas músicas” (PATATIVA, 2018).
O pouco reconhecimento da artista gerado através do seu trabalho, a incomoda porque o sente
desvalorizado. Patativa deixa nítida a sua insatisfação:
Não vendi nenhum CD por menos de R$ 20,00, porque, porra! Qual é? Aí achei
um cara lá na Praia Grande: Pô, Patá! Vinte reais? Vinte reais, qual o problema?
Só porque eu sou maranhense, sou lá de Pedreiras, da terra de João do Vale, pobre
lascada, negra, aí vocês não dão vinte. Meu irmão, a única coisa que eu tenho pra
vender na minha vida, é esse CD. (PATATIVA, 2018).

Com seu registro certificado pela Secretaria Municipal de Cultura, Patativa afirma desconhecer a
existência de algum sindicato que represente legalmente suas queixas e direitos. Entretanto, possui
registradas suas canções que asseguram sua porcentagem nas leis respectivas aos direitos autorais.
De acordo com a sambista, “é pouquinho, mas sai” (PATATIVA, 2018).
DICY ROCHA
Dicy Rocha, 39 anos, formada em Comunicação e Marketing, pós-graduada em Gestão da Cultura,
moradora da capital ludovicence há dez anos, natural do sul do estado, da cidade de Imperatriz
não possui formação em música, se considera como autodidata e a sua experiência com esse campo
inicialmente foi ainda muito jovem, onde atuava nos trabalhos com crianças. Dicy teve como
primeira influência, o seu pai que sempre ouviu Música Popular Brasileira e sua avó, que cantava
histórias para ela em sua infância. O seu maior interesse é produzir com qualidade. Como os
demais casos, a artista não sobrevive apenas da música, ela é assessora de comunicação do Centro
de Cultura Negra do Maranhão e da Rede Amiga da Criança e ainda compartilha o seu tempo
diário com os cuidados do seu filho de dois anos de idade. A concepção do reconhecimento
material da cantora através do CD está desvinculada dos padrões da indústria cultural. A sua
intenção não é divulgar um trabalho para as massas e sim, transmitir, estimular sentimentos,
mensagens e causar identificações que pudessem transformar a realidade de quem a escuta. Com
um disco gravado com uma “variação rítmica infinita” (DICY, 2018), a cantora e os demais
músicos levaram quatro anos para finalizá-lo. A artista afirma que o intuito principal, antes mesmo
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do ato, foi produzir um show que contemplasse o que desejava apresentar para aí sim, criar um
formato de CD, o “Rosa Semba”, lançado em 2016, gravado, mixado, finalizado e masterizado no
Maranhão, algo não recorrente na cena local. Ela conta que teve que recorrer à editais para
permanecer resistente às pressões das gravadoras, que desejavam sempre fundamentar as suas
vontades em detrimento da sua. Com esse auxílio da política de cultura do Estado, não foi
necessário depender de empresários e então pôde determinar os seus rumos a partir do que
desejava apresentar em seu material de trabalho, “na linha da produção independente, autônoma
e fiel” (DICY, 2018). Em relação à indústria, essa autonomia envolve uma insegurança, há a
necessidade de se auto promover, de divulgar o trabalho nas redes sociais e nos mais variados
locais da cidade e do estado.
De acordo com Dicy, é extremamente necessário o/a artista se aprimorar no seu ramo, já que
contribui quando vai atuar com os demais profissionais, dialogar para que a sua voz tenha valor
técnico e ele/a tenha condições de dialogar com os praticantes de outras áreas. Com um registro
de musicista, a artista popular vê maiores possibilidades para desenvolver o seu trabalho no
mercado da música no Maranhão e no cenário nacional, se inscrevendo nos editais para participar
dos circuitos de shows fomentados pelas políticas de cultura de Estado.
Pontua a cantora, como afirmação à revisão bibliográfica declarada pelo Relatório das
Organizações Unidas sobre Economia Criativa, a importância dos lançamentos das faixas avulsas,
sem inserção em um material como o CD, que alimentam a indústria cultural e incentivam a
produção local. Entretanto, de acordo com Dicy, lançar o disco como um material tangível de
reconhecimento do público e de seus pares abriu possibilidades de participar de editais, que antes
não poderia, não tendo esse trabalho na mão, o registro. A cantora afirma: “Eu já participei de
feira de música, participei de rodas de negociação com produtores porque eu estava com o meu
disco na mão, com o material ali, físico também, pra ser compartilhado” (DICY, 2018).
Quanto à cadeia de produção da música no Maranhão, Dicy elucida que:
A música independente tá muito fortalecida por conta de ter toda uma cadeia
produtiva já afinada, equipada e agindo com
profissionalidade, mas fazendo formação. Aqui, a gente tem muito profissional,
mas a gente tem pouca formação pra nossa cadeia de produção (DICY ROCHA,
2018).

O que falta na cena estadual para a artista é uma articulação feita em coletivo que trabalhe com a
produção, distribuição e consumo do público alvo. Enfatiza que é necessário um aperfeiçoamento
técnico dos profissionais da cadeia de produção da música. Além da busca em estudar feita pelos
músicos, os técnicos de som e os produtores precisam estar alinhados com as atualizações do
mercado fonográfico maranhense. Quanto às demandas enquanto mulher nesse meio
predominantemente masculino, Dicy questiona o quanto falta sensibilidade aos companheiros de
profissão para com os momentos de gravidez, onde sentiu na pele, já que no mesmo tempo em
que trabalhava o seu CD, estava grávida. Quando colocou a voz no registro fonográfico, a artista
já estava com sete meses de gravidez, sem fôlego e como tinha que seguir prazos por conta dos
patrocinadores que não compreenderam o seu momento de gestação, teve que gravar da forma que
podia, entretanto nada lhe agradou, já que não estava alinhada como gostaria para colocar voz ao
seu projeto. A cantora apresentou esse trabalho de acordo com a demanda dos apoiadores e em
seguida, após o nascimento do bebê, gravou novamente a voz, de acordo com o que acreditava
estar bom para a produção do seu trabalho, em resistência às imposições do mercado. Para ela, a
ideia predominante em São Luís e também presente em um contexto nacional, é de que “a mulher
musicista tem uma função mais do microfone e de estar linda, visualmente falando, estar afinada
com sua voz, e de não estar antenada com o que está acontecendo ao redor” (DICY, 2018). Apesar
de serem poucas em comparação aos homens, as mulheres também são instrumentistas, compõem
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as bandas, sempre resistindo com muita qualidade para garantir suas respectivas autonomias no
mercado da música. Dicy exemplifica uma situação que muito lhe incomodou a esse respeito:
(...) O Javier, que era o músico que estava fazendo toda a captação do áudio, em
alguns momentos, eu percebia o não interesse em não perguntar: Dicy, mas tu
achas que... Gosta assim? Porque a gente propôs assim, tu gostas assim? Então,
é muito forte essa coisa do machismo, mesmo nos meninos que são mais
sensíveis, nos músicos mais sensíveis. (DICY ROCHA, 2018)

Para a cantora, é fundamental estar vigilante para garantir que os homens “permitam” que ela
esteja no mesmo nível de decisão para coisas que eles acham que não é necessária a sua
intervenção. A partir de sua fala, a artista afirma que essa ideia e essas práticas são recorrentes,
por isso, a importância em estar sempre atenta, enfrentando as opressões de cunho machista. A
sua esperança é encontrar ainda pelo caminho musical muitas mulheres como técnicas de som,
profissionais da iluminação, encarregadas da produção. Gostaria, conta a cantora, de trabalhar
com mulheres na mesa de som, de trabalharem em cooperação para alcançarem êxitos em suas
práticas musicais. Seria gratificante para ela ser regida por mulheres comandando o seu trabalho.
Vê a importância em estabelecer esse equilíbrio de gênero na profissão não somente para as
mulheres, senão que para todos, inclusive para os colegas homens que atuam no mercado da
música.
Em relação aos contratos firmados com o Estado e com as empresas privadas, Dicy afirma que é
recente o estabelecimento dos contratos formais: ainda estão aprendendo a lidar com a burocracia
nesse aspecto, em relação aos editais, de escrever suas respectivas propostas, de produzir os seus
projetos. De acordo com a artista, essa burocratização do sistema dos contratos formais tem gerado
conflitos internos, já que como muitos não estavam acostumados a escrever e precisaram se
atualizar para concorrerem a essa forma democrática de inserção nas políticas da cultura, tanto
nas instituições públicas como nas privadas. O que acontecia anteriormente eram os convites
informais e os acessos dos chamados “quem indica”, sem a necessidade de produzir um trabalho
escrito, formal, para consolidarem suas propostas. Produtoras vêm surgindo, artistas passam a
estar mais organizados quanto aos seus materiais (release, portfólio). No que tange os contratos,
ela afirma que é algo que “temos que vencer” (DICY, 2018), já que não é uma prática das casas
de shows de São Luís propor esse tipo de documentação e que os artistas que começam a
estabelecer essas formalidades passam a ser vistos de forma desvalorizada. Recorrente na capital
ludovicence, os acordos informais estão associados ao “mau caratismo, nada a ver com a cadeia
produtiva” (DICY, 2018), de acordo com a cantora, por estabelecerem contratos boca a boca e os
empresários recorrerem a outros artistas que dizem “cobrar mais barato” (DICY, 2018) para
prestar um serviço em seu estabelecimento, correndo o risco de, ainda no final da apresentação,
os donos das casas de shows dizerem que não lucraram muito e pagarem menos do que o
combinado, o que atrapalha significativamente a organização financeira e o reconhecimento dos
profissionais da música.
CÉLIA SAMPAIO
Célia Sampaio, 55 anos, ensino médio completo, com especialidade na área da enfermagem,
profissão em que atua até hoje, nasceu em São Luís. Influenciada pelos ritmos afros da Liberdade,
bairro em que foi criada na capital ludovicence, recinto marcante da cultura popular maranhense
com aspectos que integram o bumba meu boi, o tambor de crioula, as religiões de matriz africana,
o tambor de mina, a festa do divino, o reggae, Célia deu início à sua história nas artes. Atualmente
reside na região metropolitana da ilha, em Paço do Lumiar. A chamada “Dama do Reggae” não
dedicou os seus estudos na área da música, entretanto teve oportunidades de fazer cursos de canto
para aprimorar a sua voz após iniciar a sua carreira musical. A cantora declara:
Eu comecei cantando no movimento negro, uma necessidade que o meu grupo
do bloco afro viu porque a maioria era de homens cantando e compondo e depois
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a gente criou o grupo de mulheres que começaram a também dizer: a gente


precisa também ter mulheres cantando. Nós éramos umas seis ou sete mulheres.”
(CÉLIA SAMPAIO, 2018).
Em 1986, a cantora começa a cantar no Bloco Afro de grande prestígio de São Luís, o Akomabu,
vinculado ao movimento negro. Após sete anos atuando somente nessa temática, nos ritmos do
Ijexá e do Afoxé, Célia Sampaio se inscreve para participar do MPM (música popular maranhense)
de Cara Nova, que ocorria no Teatro João do Vale semanalmente.. Após finalizar o projeto, todos
os artistas que participaram das apresentações, atuariam na produção de um disco. A cantora, entre
onze outros artistas, foi uma das escolhidas para integrar esse time. Com a faixa “Black Power”,
de Paulinho Akomabu. Já integrante da banda Guettos, a dama do reggae integrou o grupo por
cinco anos, sendo a única mulher entre vários homens. Depois de sua saída da banda, a cantora
iniciou a sua carreira solo em 1998 e permanece até os dias de hoje.
Para que o seu trabalho fosse divulgado com maior alcance, Célia Sampaio foi morar em São
Paulo dos anos 2001 a 2004.. Inspirada em musas como Rita Marley e Margareth Menezes, a
cantora afirma que essas, de fato, constituíram a escola de música que ela cursou durante a sua
carreira e abriram os caminhos para que ela conhecesse a sua voz. Identificada como auto didata,
Célia nunca teve influências familiares na constituição do seu gosto pela música, entretanto, o seu
meio social, o bairro em que vivia, transpirava cultura popular, o que a influenciou a seguir nesta
caminhada. A cantora começou dançando no meio musical: “Eu fiz dança moderna, eu fiz jazz,
fiz dança popular, fiz dança afro (...)” (CÉLIA, 2018). Influenciada pelas suas amigas, Célia
Sampaio afirma que os elogios cravados pelas mulheres que a cercavam quanto ao seu talento
foram essenciais para prosseguir na carreira. Foram esses estímulos que a fizeram assumir uma
postura de protagonista na primeira banda que construiu, a banda Guettos. Viu que não queria
apenas dançar e ser coadjuvante como back in vocal. A artista começou a cantar o seu primeiro
sucesso, de composição de seu colega de banda Paulinho Akomabu, chamada “Black Power” e a
apresentou nos festivais que participou. Apesar de alcançar êxitos na cantoria, Célia destaca como
era difícil o recebimento dos cachês: pelo fato da banda ser constituída por nove músicos “às
vezes, o cachê era só pra pagar a nossa passagem” (CÉLIA, 2018). Com toda instabilidade
financeira, a cantora confirma que a sua mãe sempre lhe dizia que essa carreira não lhe traria frutos
materiais, justamente por suas condições financeiras: “ela sempre dizia: pobre tem que estudar pra
ser professor ou técnico de enfermagem”. (CÉLIA SAMPAIO, 2018).
Além da enfermagem, Célia aprendeu com sua mãe o ofício de costurar: hoje em dia, confecciona
turbantes e roupas de estilo africano para vender com a identidade do movimento negro que
representa desde o início da sua jornada musical. Quanto às suas apresentações na ilha, a artista
reclama de não haver na capital ludovicence, bares, casas de shows para que se apresente com
frequência. O que surgem são convites pequenos, corriqueiros, que, de acordo com ela, acabam
desestruturando o seu trabalho, já que tem de trabalhar com um número reduzido de músicos e o
cachê não é proporcional ao serviço prestado e ainda demora para recebê-lo. O que gera renda
para a cantora na cena musical são as temporadas de Carnaval, São João, aniversário da cidade e
Réveillon. Todos com atrasos provenientes dos órgãos do estado do Maranhão acordado em
contrato formal. Destarte, os artistas da cena nacional recebem os seus honorários antes mesmo
de realizarem suas apresentações. Um fator que desqualifica e desvaloriza o trabalho dos artistas
locais. A incerteza cerca a carreira da artista a todo o momento: “cachê de artista, de músico é
incerto.” (CÉLIA SAMPAIO, 2018).
As maiores dificuldades enfrentadas pela artista é a instabilidade dos cachês que recebe, o que não
possibilita se programar e organizar melhor a sua vida financeira. Célia tem o desejo de levar a
sua música para todos os cantos da cidade, descentralizando a arte popular do centro histórico. A
desvalorização do artista local para valorizar os artistas da cena nacional muito incomoda a artista.
Para ela, quando estão presentes as bandas renomadas do país, o tratamento aos músicos regionais
é ainda mais inferiorizado, tanto no recebimento dos cachês quanto na logística e estrutura para
receber as bandas locais.
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Em relação ao seu registro como musicista, Célia possui a carteira como cantora popular pela
Ordem dos Músicos, entretanto, ela não foi validada no Maranhão, já que a instituição está
desativada no estado e não possui recolhimento da contribuição anual dos músicos que integram
a cadeia produtiva da música no Maranhão. Para que apresentasse um show pelo Sesc e realizasse
sua apresentação na Virada Cultural em São Paulo, a cantora teve que registrar a sua carteira na
capital paulista para que pudesse realizar a sua apresentação. Quanto ao registro das suas canções,
Célia deveria se encaminhar a AMAR SOMBRÁS (Associação de Músicos, Arranjadores e
Regentes Do Brasil), postergou a sua ida à instituição e enfrentará problemas, porque agora, para
que realize o registro das canções, é necessário passar pela Biblioteca Nacional e os trâmites
burocráticos estão mais difíceis de acessar. Além da Associação, a artista tem conhecimento de
outro órgão responsável pelos músicos em São Luís: o ECAD (Escritório Central de Arrecadação
e Distribuição de Direitos Autorais). Quando realiza shows de grande porte, os agentes do
escritório se fazem presentes para articular o repertório da cantora, recolher os tributos referentes
à arrecadação que o constrói. Além do ECAD, há o sindicato dos músicos, mas que não atua nas
questões referentes aos músicos do estado maranhense. Está omisso à suas reais obrigações.
NUBIA RODRIGUES
Núbia Rodrigues, 25 anos, natural de São Luís, cantora de reggae, em formação acadêmica, traz
consigo o interesse pela música a partir das influências do seu pai, amante da música, que lhe
presenteou com um violão quando tinha 15 anos de idade, o que a impulsionou a querer tocar e
cantar e de aí em diante, nunca mais parou. Compositora, a artista começava a expressar a sua
subjetividade nas letras musicalizadas: “Sentimento de corpo, do que eu sou aqui, mas também
tem muita questão de vivência, do olhar também sobre o outro. Expressar o que se sente, o que se
vivenciou.” (NUBIA, 2019).
As apresentações frequentes da artista passaram a ser em um projeto organizado por uma turma
do Cohatrac, chamado “Sebo no Chão”, organizado em uma praça do bairro. A artista afirma que
nunca participou de cursos relacionados à música, porém elucida a importância em se inserir em
uma capacitação voltada aos músicos. Paralelo ao trabalho na música, Núbia leciona aulas de
inglês e matemática em um cursinho popular na periferia da capital.
Em relação à instabilidade financeira, Núbia afirma que por mais que seja difícil sobreviver da
música, é esse o caminho que quer. Os cachês, insuficientes para remunerar toda a banda, são
sempre divididos em igualdade. Quanto aos contratos, a banda era representada por uma
produtora, devido às questões burocráticas, mas a partir das pesquisas da artista, compreendeu que
era mais vantajoso para a banda possuir um cadastro do MEI (Micro Empreendedor Individual),
e a partir daí, utilizam o seu próprio CNPJ para oficializar as negociações com os empresários e
com o Estado.
Núbia não possui carteira de musicista, mas já ouviu falar a respeito. O que anda buscando
atualmente é se filiar na AMAR, pra poder distribuir a sua música legalmente. Crê que é interesse
se filiar à associação pelo fato de facilitar a distribuição e o acesso aos seus registros fonográficos.
Cita que há, inclusive, plataformas digitais como o Spotify que exigem a filiação à AMAR para
que suas canções estejam nas playlists da rede e para que possa receber royalities pelas músicas
que estão sendo distribuídas pelo mundo e ganhe maior visibilidade entre os consumidores de sua
arte. Para ela, o mercado da música em São Luís possui muitas dificuldades, entre elas, a falta de
reconhecimento entre os seus pares, entre os empresários e o público de modo geral. A
desvalorização do artista ainda é latente na realidade da cena musical na capital. A cantora sente
o preconceito por parte dos donos dos bares por serem músicos, por não serem vistos como
trabalhadores. Principalmente pelo fato de ser mulher trabalhando na noite. Entre os próprios
profissionais, a artista exalta: “Pode não estar visível para todo mundo, mas nos bastidores, é
recorrente. Por exemplo, tu chegas a determinados lugares, tu vais olhar o line up, o roteiro de
quem vai tocar, só tem homem.” (NÚBIA, 2018) Apesar de ter muitas lutadoras que antecederam
a resistência de hoje para que as mais novas pudessem continuar galgando os seus passos no
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mundo da música atual, ainda há muito que enfrentar para que as mulheres assumam o seu
protagonismo e possam fazer a sua música a sua maneira, sem a necessidade em seguir padrões
opressores no meio artístico ou em qualquer que estejam inseridas.
A cantora, compositora, intérprete e instrumentista Núbia Rodrigues aponta para os fatores que
dificultam a sua permanência no mercado da música pelo fato de ser mulher: Por muito tempo, as
mulheres tiveram que estar “por debaixo dos panos”, somente no plano de back in vocals, mesmo
possuindo talento e qualificação para ocupar os espaços nas tomadas de decisões, porém, o
machismo intrínseco nas práticas diárias da vida social estagna as possibilidades e potencialidades
das mulheres para alcançarem postos de reconhecimento no trabalho com a música e em tantos
outros. A partir desse entendimento, Núbia sente a necessidade de trabalhar com mulheres, para
que se sinta mais confortável em produzir sua música.
Em São Luís, existem alguns coletivos de representatividade feminina na música, como o coletivo
“sómanas”, composto exclusivamente por cerca de trinta mulheres musicistas, instrumentistas,
percussionistas, cantoras, compositoras, produtoras e técnicas de som. Um enfrentamento às
opressões masculinas no universo artístico da música. De acordo com a artista, “a mulher é a força
total do universo” (NÚBIA, 2019). Quando juntas, logram transformar a realidade em um curto
intervalo de tempo.
FERNANDA MONTEIRO
Fernanda Monteiro Oliveira é natural de São Luís, 33 anos e reside no bairro Cohatrac IV na
capital. Graduada em Arquitetura e Urbanismo, Nanda Preta atua nos palcos da cena musical
ludovicence há quatorze anos, compõe a banda Afrôs como produtora e cantora, assim como uma
banda infantil, onde também é vocalista. A artista, que nunca frequentou cursos de música, teve
como origem do seu interesse pela música, o gosto musical de sua mãe e isso lhe acompanhou por
toda sua infância e adolescência. Para a artista, “o talento musical é fundamental para o
desenvolvimento da profissão” (FERNANDA, 2019). Acredita que o dom, a aptidão pela música
reflete a realidade de muitos músicos, assim como há aqueles que, de acordo com o tempo, se
desenvolvem através das experiências vividas e do estudo teórico. Da mesma forma, o estudo e a
prática constante é que fazem do músico, um exímio profissional, mesmo não possuindo registro
profissional, como é o seu caso.
Na banda Afrôs na qual é fundadora, Nanda elucida que os cachês da sua banda variam entre R$
5.000,00 e R$ 20.000,00 reais, de acordo com o contratante. O quantitativo é dividido de forma
igualitária, ademais reservam uma porcentagem para serviços utilizados pelo grupo que envolvem
essa cadeia produtiva, tais como figurinista, cenógrafo, mídias sociais, assessoria de imprensa,
técnicos de som, produção executiva, que sem eles, muito dificultaria a apresentação da banda.
Além desse trabalho, Fernanda, como percussionista, acompanha outros artistas da cidade e recebe
entre R$ 250,00 a R$ 400,00. É produtora cultural e gestora financeira e de projetos sociais em
uma Organização Não – Governamental. A música, na vida financeira da musicista representa 1/3
dos seus rendimentos.
Vários desafios são apresentados na vida profissional dos músicos em geral. Para a artista:
(...) faltam bons técnicos na área da música; a
desvalorização do trabalho do músico cotidiana,
falta articulação em rede dos músicos locais; o machismo ainda presente no
trabalho. (FERNANDA, 2019)

Como cantora, Fernanda afirma não sentir violência de gênero por seu ofício. Diferentemente do
ofício de percussionista, que afirma sentir preconceito quando atua nessa área. Quanto ao mercado
de trabalho na ilha de São Luís, a sua opinião é que existe uma divisão entre “quem faz música
comercial para sobreviver e quem faz música autoral na tentativa de fazer seu som ser conhecido”.
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(FERNANDA, 2019). A competição caracteriza o mercado da música por poucos espaços se


destinarem a sua área de atuação, portanto, existe uma disputa entre os músicos nesse contexto do
mercado da música em São Luís.
LENA MACHADO
Aurilene, ou melhor, Lena Machado, como é chamada na cena musical tem 45 anos, é residente
no bairro da Cohama, na capital, teve o seu primeiro envolvimento com a música ainda na sua
cidade natal, Zé Doca, interior do Maranhão. Em 1999, foi pra São Luís para desenvolver um
projeto na Cáritas Brasileira, uma instituição religiosa a nível mundial com fins em promover
ações civis e atuar em prol dos direitos humanos. Vinda da igreja católica, ela não possuía essa
pretensão, já que suas apresentações eram feitas somente pelo coral da comunidade eclesial desde
os dez anos, o que muito lhe ensinou sobre lidar com o público, já que não passou por nenhuma
escola de música.
Entre uma apresentação e outra, ainda no início da carreira, Lena passa a se envolver com grandes
nomes do samba maranhense. Nomes como César Teixeira e Josias Sobrinho compõem esse vasto
hall de inspirações artísticas que estimularam a cantora a seguir nesse universo musical, assim
como a cultura popular do Maranhão, com os seus diversos ritmos de bumba meu boi, cacuriá,
festa do Divino Espírito Santo e tambor de crioula. Em 2006, os integrantes da Cáritas, para
celebrar 50 anos da entidade, produziram um dis co sob a direção musical de Luiz Júnior, – o
mesmo produtor do disco de Patativa - e quem interpretou todas as canções foi a cantora, assim
como foi incumbida de produzi-lo, o que a possibilito expandir as suas potencialidades na cadeia
produtiva da música.
A intérprete, que lançou e produziu os seus três discos, afirma nunca ter vivido exclusivamente da
música e o que a possibilita realizar os trabalhos nesse campo e seguir nessa “missão” (LENA,
2019), como pontua, é justamente o seu emprego paralelo na Cáritas. Uma providência tomada
pela intérprete foi se filiar a AMAR, associação responsável por arrecadar tributos dos direitos
autorais dos músicos. Quanto aos locais de produção e todas as etapas que levaram a artista a
gravar dois de seus três discos, ela trata da necessidade em adquirir recursos materiais para
desenvolver o trabalho, assim como de qualificação dos profissionais desse ramo:
O primeiro disco, eu fiz, isso aqui em São Luís. No segundo, eu lancei em 2010,
eu já fiz em Fortaleza, porque me disseram que as técnicas de Fortaleza, os
aparelhos, a questão do resultado da mixagem, seria bem melhor e realmente, foi.
(LENA, 2019).

O seu segundo disco, O Samba de Minha Aldeia, de 2010, é fruto de um projeto que a cantora
acompanhava fielmente, o “Clube do Choro Recebe”, todos os sábados, no restaurante do Chico
Canhoto, localizado no bairro dos Vinhais. A partir desses encontros realizados entre os artistas
maranhenses, a artista foi contemplada por um plano fonográfico da secretaria de cultura do
estado, que tinha por objetivo apoiar o trabalho de artistas maranhenses nas produções de seus
discos e concretizou mais uma produção, O Samba de Minha Aldeia, que tem como temática o
samba maranhense. Durante o desenvolvimento do seu trabalho, a artista aponta para as
dificuldades nesse meio pelo fato de ser mulher. Os diretores musicais sempre querem prevalecer
a sua opinião, subestimando o papel da produtora, no caso, a própria Lena. Encara como um
obstáculo a ser superado, o conhecimento técnico sobre a música, para que possa se impor com
autonomia nas deliberações do processo de produção dos seus discos.
A sua perspectiva sobre o seu trabalho é também lançar um olhar sobre as mulheres, porque, como
afirma a intérprete, “eu tenho essa formação da luta pela igualdade, da valorização do que a mulher
faz, do trabalho que a mulher faz, da criatividade feminina na construção dessa sociedade”
(LENA, 2019). Tanto é que, no último trabalho da artista, essa preocupação do papel das mulheres
na produção do seu disco se destacou com a quantidade de parceiras que agregou nesse feitio. A
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cantora discute a quantidade reduzida de mulheres instrumentistas em destaque na cena musical


ludovicence por ser um mundo voltado para o masculino, onde a mulher tem presença restrita e
essa estrutura não é algo pensado pelas mulheres. A forma que encontrou em driblar os ataques
importunos de seus colegas de profissão é mostrar o seu trabalho com qualidade, com o fim de
explanar, de fato, para que veio.

A artista identifica o seu trabalho como música popular brasileira feita no Maranhão, a partir das
raízes do estado com a missão de se mesclar a outros ritmos do nordeste, como o maracatu.
Destaca que a preocupação de quem promove os editais lançados pela prefeitura de São Luís e do
estado do Maranhão é voltada para eventos específicos ao invés de se dedicarem aos processos
culturais que visam consolidar uma agenda cultural que gere uma economia criativa nessa área no
decorrer do ano. A necessidade do músico em “se meter em mil e quinhentas coisas pra viver no
mês, tocar não sei quantas vezes pra não sei quantas pessoas” é a cada dia, mais latente no universo
musical e esse fator, muito preocupa a artista que, apesar de possuir outra renda, tem amigos e
amigas que tentam viver somente da música e enfrentam em seu dia a dia, os obstáculos em
sobreviver dessa arte. A criatividade existe, entretanto, os recursos materiais e as disposições
financeiras não colaboram com o fluir criativo do universo musical de Lena Machado, que afirma
ter a música “hora como dádiva, hora como castigo” (LENA, 2019).

CONCLUSÕES

Durante o processo de estudos bibliográficos e coleta de dados realizados averiguamos a forte


presença da instabilidade financeira e da carreira das mulheres musicistas na cena ludovicence,
aspecto que incorpora uma dimensão macro e contempla a realidade do universo musical no
Brasil.
Os dados e resultados colhidos durante a realização da pesquisa foram imprescindíveis para
analisar o contexto social e as condições laborais das musicistas em São Luís. Forjamos nossos
estudos sobre uma base teórica e de investigação para entendimento de como se encontra esta
categoria profissional tão diversa por todo o mundo e como a participação das artistas é
fundamental neste processo de autonomia, na busca por estabilidade financeira e reconhecimento
social. Para chegar a tais resultados, a leitura e a revisão crítica da literatura sobre os mundos
artísticos, as formas como são produzidas as artes no mercado, as condições de trabalho das
musicistas no Brasil, contribuíram com grande eficácia para investigar a realidade do trabalho
artístico das profissionais dessa área, que se apresenta árdua, já que as dificuldades enfrentadas
pelas mulheres para ascender na carreira e obter o prestígio dos pares e do público, são alvos não
tão fáceis de serem alcançados, quando não há patrocínios, tampouco influências para que sigam
desenvolvendo suas respectivas profissões.
As dificuldades financeiras para viver da música na vida de cada entrevistada estão refletidas nas
suas falas. Os cachês recebidos por cada show não são suficientes para que elas possam se manter
e atrasam o pagamento. Além disso, a burocratização das leis de incentivo à cultura inviabiliza a
inserção da artista em muitos projetos disponibilizados pela prefeitura de São Luís e pelo estado
do Maranhão. A falta de reconhecimento pelo público e seus pares, a dependência da ajuda do
Estado e a falta de políticas públicas específicas são apontados como fatores determinantes das
desigualdades no meio musical.
Patativa, Dicy, Célia Sampaio e Lena Machado compreendem a importância do CD como um
registro material para alcançar o público no qual pretendem alcançar. Célia, aos seus 55 anos,
afirma, assim como Patativa, Dicy, Núbia, Fernanda e Lena que nunca viveu estritamente da
música, utiliza a sua especialização em enfermagem para trabalhar nessa área. Da mesma forma
que Célia, Nanda Preta e Lena Machado trazem à tona a ausência de bares, casas de shows para
que se apresentem artisticamente.
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Atravessando as gerações mais jovens, Célia e Patativa questionam as condições estruturais para
realizar os shows. A instabilidade dos cachês que recebem impossibilita que se programem e
organizem melhor a sua vida financeira, principalmente à quem não possui nenhum recurso
provindo de outra fonte, assim como é o caso da Núbia, de 25 anos, ocaso mais jovem entre as
musicistas que participaram dessa pesquisa, que afirma ser difícil permanecer neste universo
justamente pela ausência de estabilidade econômica. Nanda Preta, de 33 anos, em contraste com
Núbia que não tem a certeza de quanto faturará ao mês, de 25 anos, gera uma renda de 1/3 com a
música no valor final que arrecada entre os demais empregos.
No estudo realizado, as seis musicistas, Patativa, Dicy Rocha, Núbia Rodrigues, Célia Sampaio,
Nanda Preta e Lena Machado participam de quase todo o processo de produção dos seus trabalhos,
pela necessidade em garantir a autonomia e disseminar as suas músicas. Durante o ano da
pesquisa, foi possível constatar aspectos relevantes como alguns fatores que interferem na lógica
do desenvolvimento do trabalho artístico, entre eles estão: a instabilidade profissional, a ausência
de reconhecimento pelos seus trabalhos, – principalmente por serem mulheres - em que se incluem
os poucos investimentos na profissão por parte de grandes empresas ou do Estado, através de
políticas, por meio de editais e concessões privadas. Estes pontos interferem na produção das
musicistas, em seus processos criativos e na continuidade de suas carreiras profissionais,
caracterizando assim, momentos instáveis e incertos no mundo artístico da música.

REFERÊNCIAS
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______Adorno – Sociologia. São Paulo: Ática, 1986.

______Introdução à Sociologia da Música – Doze preleções teóricas. São Paulo: Editora


UNESP, 2011 (Epílogo – Sociologia da Música).

BECKER, Howard S. Mundos da Arte. Lisboa: Livros Horizonte, 2010.

BRASIL - MINISTÉRIO DA CULTURA. Plano da Secretaria da Economia Criativa:


Políticas, diretrizes e ações, 2011-14. Brasília, MinC, 2012.

SEGNINI, Liliana R.P. Acordes dissonantes: assalariamento e relações de gênero em


orquestras. In: ANTUNES, Ricardo (org.) Riqueza e Miséria do
Trabalho do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006.

________ Os músicos e seu trabalho. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, V.25, N.1,
Junho de 2014.

SEGNINI, L. & BULLONI, Maria Noel (orgs). Trabalho artístico e técnico na Indústria
Cultural. São Paulo: Itaú Cultural, 2016.

SOUZA-LOBO, Elisabeth. A Classe Operária tem Dois Sexos. Trabalho, dominação e


resistência. Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 1991.

UNCTAD. Relatório da Economia Criativa. Brasília – DF: ONU/Ministério da


Cultura, 2010.
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AS CONFIGURAÇÕES DO ESPAÇO NA OBRA A CIDADE SITIADA, DE CLARICE


LISPECTOR

THE CONFIGURATIONS OF SPACE IN THE WORK A CIDADE SITIADA, BY


CLARICE LISPECTOR

Andréia Mendonça Menegundes


Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFMA
Luciano da Silva Façanha
Doutor em Filosofia
Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade da UFMA
Márcia Manir Miguel Feitosa
Professora do Departamento de Letras, do Programa de Pós- Graduação em Letras e do
Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFMA

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: O presente trabalho analisa o romance A cidade sitiada, de Clarice Lispector. O terceiro
romance da escritora foi publicado em 1949 e escrito em um período em que a sua autora vivia
em Berna, na Suíça. Na referida obra, o espaço, enquanto elemento constituinte da narrativa, ganha
dimensão privilegiada, uma vez que está diretamente vinculado à protagonista Lucrécia Neves.
Por isso, elegemos analisar as configurações do espaço na obra citada. Inicialmente apresentamos
a escritora Clarice Lispector no contexto da literatura brasileira e peculiaridades da sua escrita, a
partir de pesquisa biográfica realizada. Para embasar a análise da obra, utilizamos como aporte
teórico os pressupostos da Geografia Humanista Cultural, a partir dos geógrafos Eric Dardel
(2015) e Tuan (2012, 2013), com a finalidade de promover o diálogo entre a Literatura e a
Geografia.
Palavras-chave: A cidade sitiada; Literatura; Espaço; Geografia Humanista Cultural.

Abstract: The present study analyzes the novel A cidade sitiada by Clarice Lispector. The
author´s third novel was published in 1949 and written at a time when her author lived in Bern,
Switzerland. In this work, space, as a element of the narrative, gains a privileged dimension, since
it is directly linked to the protagonist Lucrecia Neves. For this reason, we have chosen to analyze
the configurations of the space in the reported work. Initially, we present the writer Clarice
Lispector in the context of brasilian literature and the peculiarities of her writing, based on a
biographical research. To support the analysis of the novel, we used as theoretical contribution the
assumptions of Humanist Cultural Geography, based on the geographers Eric Dardel (2015) and
Tuan (2012, 2013), in order to promote the dialogue between Literature and Geography.
Keywords: A cidade sitiada; Literature; Space; Humanist Cultural Geography.

Introdução
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Clarice,. Este é o título dado a uma biografia da escritora Clarice Lispector, publicada no
Brasil, em 2009, pela editora Cosac Naify. A escolha do título (Clarice vírgula), segundo
Benjamin Moser (2009), se deu pelo fato de que algo sempre pode ser desvelado sobre Clarice
Lispector, principalmente, sobre sua vasta obra, da qual fazem parte romances, contos, crônicas,
traduções, dentre outros.
O livro A cidade sitiada é o terceiro romance de Clarice Lispector onde se narram os
processos pelos quais passam São Geraldo e Lucrécia Neves. O primeiro é um pequeno subúrbio
que passa por diversas transformações no decorrer da narrativa, enquanto a segunda, a
protagonista, é uma jovem que vive em São Geraldo, mas que, com o passar do tempo, começa a
sentir-se entediada no subúrbio e vislumbra uma possibilidade de futuro caso se mudasse para
uma cidade mais desenvolvida.
Lucrécia passou por transformações assim como São Geraldo, estabelecendo-se desse
modo uma relação indissociável de mudanças entre o espaço da narrativa, aqui representado pelo
subúrbio São Geraldo, em momentos distintos, e a protagonista do romance.
Mediante o que foi colocado até aqui, o presente artigo investigará a relação da personagem
Lucrécia com a cidade São Geraldo. Para tanto, o trabalho está estruturado da seguinte forma:
Inicialmente, faremos algumas considerações sobre a escrita e circunstâncias de
composição da obra analisada. Em seguida, apresentaremos um breve percurso da Geografia
Humanista Cultural, apresentando os principais conceitos apresentados pelos geógrafos Eric
Dardel, no livro O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica (2015); Yi–Fu Tuan,
Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente (2012) e Espaço e lugar:
a perspectiva da experiência (2013), que constituirão a base teórica deste trabalho.
Posteriormente, serão analisadas as configurações do espaço no romance A cidade sitiada, tendo
como referência os pressupostos teóricos da Geografia Humanista Cultural, sob o olhar de Dardel
e Tuan.
Finalizaremos com a apresentação das considerações finais da investigação empreendida.
Com a finalidade de incursionar por uma dentre as diversas possibilidades de leitura da
obra de Clarice Lispector, este trabalho pretenderá contribuir com um novo olhar sobre a escrita
da autora à luz da Geografia Humanista Cultural e promover um diálogo entre o discurso literário
e o discurso geográfico.

Clarice Lispector no contexto da literatura brasileira contemporânea

Certamente, Clarice não tinha consciência da grave crise política pela qual passava o
Brasil, em seus primeiros anos da infância, e era apenas uma criança que começava a ler. O país
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vivia o início da década de 30, afetado pela crise econômica mundial, ocasionada pela queda da
Bolsa de Nova York, em 1929. Tal fato afetou diretamente a organização política do país que vivia
a queda da República Velha, liderada pelo presidente Washington Luís que foi substituído pelo
governo Provisório de Getúlio Vargas. Nesse clima de incerteza política dos anos 30, após a
Revolução Constitucionalista ocorrida em São Paulo e a criação da Ação Integralista Brasileira,
em 1934, proclama-se no Brasil uma nova Constituição, que teve como acontecimento decorrente
a tomada do governo por Getúlio Vargas e a instauração do Estado Novo que perdurou até 1945.
Assim, quando Clarice Lispector muda-se para a então capital federal, Rio de Janeiro, o Brasil
vivia sob a Era Vargas.
Já no Rio de Janeiro, Clarice Lispector escreve seu primeiro romance, Perto do coração
selvagem (1944), que a lança no panorama da literatura brasileira moderna. Inicialmente seu
primeiro livro causou certo espanto e estranhamento nos leitores e críticos da época. Isso se deu
pelo modo como o enredo da obra está organizado. O livro conta a história de Joana, uma jovem
que perde a mãe e, futuramente, o pai e vai morar com uma tia com quem vive por pouco tempo,
pois ela a leva para um internato por não ter mais condições de cuidar da menina. Narrado em um
tempo não linear, o livro conta a vida de Joana, intercalando momentos da infância e da vida
adulta.

Passado o período inicial de “estranhamento” com relação ao primeiro romance de Clarice


Lispector, a crítica de modo geral passa a ver o livro com outros olhos. Este fato se consolida
quando Clarice ganha o prêmio da Fundação Graça Aranha.
Ressalta-se que, paralelamente às reviravoltas políticas e econômicas que o país vivia,
acontecem mudanças significativas no modo de pensar e escrever literatura, fomentada pela
Semana de Arte Moderna de 1922 e intensificada por escritores da época que lançaram sobre a
literatura novas problemáticas. O Brasil vê surgir no cenário nacional Graciliano Ramos, José Lins
do Rego, Érico Veríssimo, entre outros, que marcaram a literatura social de 30.
Após o período de efervescência causado pelos romances sociais, temos outro momento
que ficou marcado por Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector, que,
através de caminhos próprios e distintos, buscaram uma nova linguagem na literatura. Vê-se a
consolidação nessa época da intelectualidade brasileira que contemplava artistas de diferentes
áreas que viviam e acompanhavam um Brasil efervescente, seja do ponto de vista dos escritores,
seja como jornalista, função desempenhada por Clarice em grande parte da sua vida.
A escritora que surgia já tinha um estilo praticamente pronto e, muitas vezes, chocava pelo
estilo peculiar de suas narrativas. A obra de Clarice não é um produto intelectual, mas resultante
de uma consciência estranha e aberta para as regiões mais íntimas do ser.
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Distante de produzir uma literatura alheia, Clarice Lispector coloca em evidência


justamente o cotidiano alienado e o seu efeito na vida das personagens que é o cerne da sua
preocupação. Sob essa ótica, suas obras estão comprometidas com o homem e com a sua realidade,
na qual a teia narrativa é espaço para narradores e personagens mostrarem-se protagonistas de
suas existências.
Clarice busca constantemente alcançar o mundo anterior à cultura e aos símbolos. Um
mundo que ainda não havia se intercalado entre a “coisa” e a sua representação. Uma tentativa de
apropriar-se das experiências primeiras e “puras”, ainda não desgastadas pelo uso corriqueiro e
pelos símbolos que as representam, suprimindo delas o conhecimento para voltar a conhecer; uma
constante (des) aprendizagem para voltar a aprender.
Assim, para a escritora, importava mais a geografia interior, pois o extraordinário, na
escrita de Clarice, surge não do aspecto exterior de seus personagens, mas do que lhe sucede no
íntimo, pois seus personagens, mesmo parecendo estranhos e bem ao contrário de tipos épicos e
dramáticos, são tipos convencionais, situados numa atmosfera de mistério, vivenciando relações
profundas dentro do mais ordinário cotidiano.
Pelas razões apontadas acima e por outras, Clarice torna-se a figura que se afirmou por
representar o não-lugar na literatura brasileira. Tal denominação consolidou-se porque a autora
apareceu em um momento em que firmar-se dentro da literatura passava pelo localismo, ou seja,
por mais universal que fosse o tema de determinada obra, esta deveria localizar-se,
preferencialmente, em alguma região do país.
Essa necessidade de especificação regional e a consequente condição de não- lugar
outorgada à obra de Clarice Lispector sustenta-se porque a literatura sempre esteve associada
como sendo de um lugar. A maneira de apresentar o espaço na escrita de Clarice não constrói-se
por meio de um mar localizado, de um rio específico e de uma fazenda de uma determinada região,
pois,
Vemos logo nos primeiros livros como os trânsitos das personagens no espaço esboçam
o cenário da abstração. O mundo da escrita é espacialmente apresentado por meio de
figuras-territórios (cidades, mar, quintas, casas, quartos, montanha, deserto) e, como os
lugares figuram a relação tensiva com a língua, todo o espaço é sujeito a alterações.
Assinale-se a alusão a lugares abstractos, topónimos mais ou menos motivados, numa
direcção alegórica. (SOUSA, 2004, p. 141)

Como a cidade no romance A cidade sitiada. Assim, se Clarice não localiza a paisagem
em suas obras em um território, é porque o faz no território da linguagem, da escrita. Contudo,
isso não significa dizer que as paisagens não existem e que os espaços nas narrativas são anulados,
mas da ampliação desse elemento no contexto da literatura brasileira. Por isso ocorre, nas obras
da escritora, uma dependência das outras partes das narrativas à narração em si, em detrimento do
que é narrado, além de focalizar enredos que priorizam as digressões e impressões dos
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personagens no lugar em que se desenrolam as ações e acontecimentos. Neste sentido, “o não-


lugar também é a dominância desse pendor digressivo e impressivo, opondo-se aos
acontecimentos localizáveis que estavam implicados nas visões realistas e neo-realistas”.
(SOUSA, 2004, p. 142).
Nesta perspectiva a escrita torna-se o espaço por excelência na obra de Clarice Lispector.
Espaço este que nasce da tensão entre uma não-territorialidade para buscar um espaço além da
fronteira fisicamente referenciada para abarcar um espaço onde o homem se mostra e busca ser na
sua totalidade, sem os limites do localismo, na infinidade da linguagem e das possibilidades
criadas pela escrita.

Alguns aspectos da Geografia Humanista Cultural

Nas últimas décadas, com as transformações que o mundo passou e com o avanço da
ciência, houve a necessidade de se investigar as novas questões que o homem contemporâneo
enfrenta em seu meio.
Nessa perspectiva abriram-se novas possibilidades de investigação para a geografia.
Dentre elas, a Geografia Humanista Cultural que busca na cultura, nos valores e na subjetividade
humana compreender a relação do homem com o meio de sua existência.
Assim, o clamor por uma disciplina que tratasse de forma ampla os temas geográficos nos
estudos das humanidades, superando uma visão de análise cartesiana predominante até então,
apontam para o início dos anos 20 do século XX.
A geografia humanista teve alguns precursores como Carl Sauer, David Lowenthal, John
Wright e Yi-Fu Tuan. Enquanto Sauer influenciou os geógrafos que propuseram a geografia
humanista, “Wright foi um precursor e um visionário. Destacou o valor da subjetividade e do
senso geográfico do homem comum, aprofundou-se no domínio dos mapas mentais, preconizou
o alargamento das relações entre a geografia e as Humanidades – a criação de uma geografia
humanista”. (HOLZER, 2016, p. 55). Assim, Sauer convida os geógrafos a voltarem sua atenção
a trabalhos de não geógrafos, como meio de investigar sobre o homem.

Toda essa argumentação a favor da subjetividade leva à questão central que Wright
propõe: a de que os geógrafos não devem utilizar-se somente de sua imaginação
geográfica, mas utilizar-se, também, da de outros que a empregam com sensibilidade.
Isso porque a geografia tem dois domínios distintos: uma área nuclear reduzida em que
estão os estudos formais, e uma área periférica muito mais ampla. Essa área periférica
inclui a geografia informal de trabalhos não científicos (livros de viagem, ficção,
pinturas). (HOLZER, 2016, p. 53).
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Se por um lado a geografia humanista está diretamente ligada à geografia cultural, o que
as diferencia é que a geografia humanista valoriza o mundo vivido e a intenção humana como
elemento de modificação e ligação afetiva com o habitat, com valorização da ação do indivíduo.
Privilegiando a atuação do indivíduo no meio ambiente, a geografia humanista teve como
aportes a fenomenologia e o existencialismo, como aponta Relph:

O método fenomenológico é um procedimento para descrever o mundo cotidiano da


experiência imediata do homem, incluindo suas ações, lembranças, fantasias e
percepções; ele não é um método de análise ou explicação de qualquer mundo objetivo
ou racional através do desenvolvimento de hipóteses e teorias prévias. (RELPH apud
HOLZER, 2016, p. 144).

Para Relph, o método fenomenológico é essencial à geografia humanista, pois é o que


tenta compreender o homem e suas experiências humanas a partir de sua subjetividade.

A geografia humanista é a consequência de uma renovação da base e conceitos da


geografia cultural em um período em que o mundo passava por mudanças no modo de se conceber
o homem e sua condição no mundo. Para tanto “a base filosófica fenomenológico-existencialista
serviu para unir o coletivo renovador da geografia cultural e histórica em torno de uma nova
denominação a geografia humanista. Restava agora o reconhecimento oficial dessa geografia – o
que aconteceu em meados dos anos 1970”. (HOLZER, 2016, p. 175).

Eric Dardel e a geograficidade humana

Eric Dardel foi um precursor nas pesquisas sobre o conceito de lugar, um dos
conceitos-chave da geografia humanista, assim como os de paisagem, espaço, experiência e
percepção.
No livro O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica (1952), Dardel apresenta
as bases para uma geografia fenomenológica, como possibilidade para refletir sobre a condição
do ser no mundo.
Assim, apoiado na ideia de que a relação do Homem com a Terra deve ser pensada como
uma relação que perpassa uma geografia primitiva e, por isso, vista como una, indissociável,
Dardel mostra como se dá essa relação Homem-Terra da perspectiva de quem observa as atitudes
e vivências humanas no mundo, em diferentes espaços geográficos. Em contraposição ao espaço
geométrico, uma vez que este “é homogêneo, uniforme, neutro”, o espaço geográfico “é feito de
espaços diferenciados” e “tem um horizonte, uma modelagem, cor, densidade”. (DARDEL, 2015,
p. 2).
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Por isso, a experiência do homem na Terra não pode ser ignorada, uma vez que “a geografia
não implica somente no reconhecimento da realidade em sua materialidade, ela se conquista como
técnica de irrealização, sobre a própria realidade” (DARDEL,2015, p.5, grifo do autor). O autor
assegura também que a geografia primitiva que está na base do ser norteia o Homem que tenta
descobrir/conhecer/explorar/desbravar o mundo.
O homem habita espaços marcados por valores múltiplos e dotados de significados, nos
quais vive experiências geográficas distintas. Essas experiências são possíveis de ser depreendidas
sobretudo dos espaços geográficos a partir de uma reflexão sobre o “ser-no-mundo”.
Dardel faz uma relação entre as modificações que o homem faz no espaço construído, por
exemplo, e aponta para uma eterna necessidade do homem por construir lugares, como reflexo de
uma vontade primitiva de locomover-se. Algo que está nele, na sua relação primordial com a
Terra, ou seja, algo que lhe é indissociável.
Assim, ao observar o homem que constrói seu habitat por necessidade e, portanto, modifica
a “cor” e forma da natureza, temos um homem que inconscientemente demonstra o que está além
do visível, pois, ao mesmo tempo, “o espaço construído coloca em cheque o alcance do olhar,
apaga e submerge o desenho natural dos lugares”. (DARDEL, 2015, p. 29). Ao construir espaços,
passamos a vislumbrar a cultura do homem através dos espaços que ele cria/ modifica/altera.
A realidade geográfica é o lugar onde o homem dá sentido à sua existência, onde ele se
constitui e atribui significados. É a realidade marcada por uma presença. “A realidade geográfica,
é para o homem, então, o lugar onde ele está, os lugares de sua infância, o ambiente que atrai sua
presença”. (DARDEL, 2015, p.34).
Ao tratar da experiência do homem com o lugar, Dardel revela que

Há, no lugar de onde a consciência se eleva para ficar de pé, frente aos seres e aos
acontecimentos, qualquer coisa de mais primitivo que o “lar”, o país natal, o ponto de
ligação, isto é, para os homens e os povos, o lugar onde eles dormem, a casa, a cabana, a
tenda, a aldeia.
[...]
Antes de toda escolha, existe esse “lugar” que não pudemos escolher, onde ocorre a
“fundação” de nossa existência terrestre e de nossa condição humana. Podemos mudar
de lugar, nos desalojarmos, mas ainda é a procura de um lugar; nos é necessária uma base
para assentar o Ser e realizar nossas possibilidades, um aqui de onde se descobre o
mundo, um lá para onde nós iremos. (DARDEL, 2015, p.41, grifos do autor).

Dardel fala de um lugar que o homem não pode escolher: a Terra, e que a busca por um
lugar sempre se dará nesse mesmo lugar, que é onde ocorre a “fundação” da condição humana, ou
seja, a existência humana só pode ser constituída na Terra. Sem ela não há possibilidade da
experiência geográfica. Um elo que só pode ser percebido a partir da vivência.

Yi- Fu Tuan: espaço, experiência e lugar


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Pensar o espaço como uma forma de se conhecer sobre o homem se tornou mais uma
possibilidade de abarcar o humano na construção da sua existência. Nesse viés o trabalho do
geógrafo Yi-Fu Tuan também abriu caminho muito frutífero para se investigar sobre a dimensão
existencial e cultural do homem a partir das suas experiências geográficas.

A organização das ideias de Tuan primeiramente foram apresentadas no livro Topofilia:


um estudo da percepção, atitude e valores do meio ambiente (1974). Nele o autor aborda como o
ser humano percebe os ambientes e lhes atribui valores, significados e amor por um lugar, ou seja,
como desenvolve o sentimento de topofilia.
Já no seu segundo livro intitulado Espaço e lugar: a perspectiva da experiência (1977),
Tuan retoma alguns temas abordados em Topofilia, sempre partindo das experiências humanas
para investigar sobre a apreensão do mundo. No referido livro o autor centraliza seu pensamento
no modo como se dá a transformação dos espaços em lugar e como o homem constrói seus lugares
em diferentes espaços a partir de sua experiência.
Tuan parte do conceito de experiência como chave para se chegar a depreender a vivência
do homem no mundo. Para ele.

A experiência é um termo que abrange as diferentes maneiras por intermédio das quais
uma pessoa conhece e constrói a realidade. Essas maneiras variam desde os sentidos mais
diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira
indireta de simbolização. (TUAN, 2013, p.17).

Segundo Tuan, a experiência passa pela sensação e percepção, esta última definida como
“uma atividade, um estender-se para o mundo”. A sensação é qualificada pelo pensamento. Daí a
experiência envolve sentimento e pensamento, que são maneiras de conhecer: “Assim, a
experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência. Experienciar é aprender;
significa atuar sobre o dado e criar a partir dele”. (TUAN, 2013, p. 18).
O ser humano vive constantemente no espaço, constrói sua existência nele, de modo a lhe
atribuir significados e valores, o que faz com que o espaço deixe de ser vago e comum para se
tornar agregado de valores. É esse espaço que se torna lugar afetivo de que trata Tuan (2013, p.
14):

As ideias de “espaço” e “lugar” não podem ser definidas uma sem a outra. A partir da
segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça
do espaço, e vice-versa. Além disso, se pensarmos no espaço como algo que permite
movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento torna possível que localização
se transforme em lugar.

Espaço é movimento e liberdade. Lugar é pausa e localização. Pausa necessária para que
o espaço se torne inteiramente familiar, ordenado e com significado, para que se torne um lugar.
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O espaço aberto não tem caminhos trilhados nem sinalização. Não tem padrões
estabelecidos que revelem algo, é como folha em branco na qual se pode imprimir
qualquer significado. O espaço fechado e humanizado é lugar. Comparado com o espaço,
o lugar é um centro calmo de valores estabelecidos. (TUAN, 2013, p. 72).

O lugar é o que nos traz segurança, aconchego e é familiar. Por isso, “se definirmos lugar
de maneira ampla como um centro de valor, de alimento e apoio, então a mãe é o primeiro lugar
da criança”. (TUAN, 2013, p. 42). Ou como um objeto, “o lugar pode adquirir profundo
significado para o adulto mediante o contínuo acréscimo de sentimento ao longo dos anos. Cada
peça dos móveis herdados, ou mesmo uma mancha na parede, conta uma história”. (TUAN, 2013,
p. 47).
Desse modo o lugar é sinônimo de proteção, segurança e intimidade, assim como são os
objetos que nos são familiares ou uma pessoa que nos transmita proteção. Temos então o amor
humano por um lugar ou topofilia, definida assim por Tuan (2012, p. 135-136):

A palavra “topofilia” é um neologismo, útil quando pode ser definida em sentido amplo,
incluindo todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material. Estes
diferem profundamente em intensidade, sutileza e modo de expressão. A resposta ao
meio ambiente pode ser basicamente estética: em seguida, pode variar do efêmero prazer
que se tem de uma vista, até a sensação de beleza, igualmente fugaz, mas muito mais
intensa, que é subitamente revelada. A resposta pode ser tátil: o deleite ao sentir o ar, a
água, terra. Mas permanentes e mais difíceis de expressar são sentimentos que temos para
com um lugar, por ser o lar, o locus de reminiscências e o meio de se ganhar a vida.

O homem vive em espaços e está à procura de lugares, de lugares que lhe transmitam o
sentimento topofílico. Se um espaço não transmite segurança e proteção, o ser humano busca
transformá-lo, dando-lhe características e particularidades suas, significando-o e familiarizando-
o, tornando um espaço qualquer em lugar; um lugar onde possa finalmente repousar e se localizar.
Por isso, transformar um espaço em lugar e reconhecê-lo exige tempo.
Nessa perspectiva, Tuan demonstra como o homem tem percebido o subúrbio e a cidade
como espaços que se contrapõem. Para ele, “a cidade é lugar, um centro de significados, por
excelência. Possui muitos símbolos bem visíveis. Mais ainda, a própria cidade é um símbolo”.
(TUAN, 2013, p. 211). “(...)A cidade transcende as incertezas da vida; ela reflete a precisão, ordem
e a predição dos céus” (TUAN, 2012, p.211), enquanto

As imagens do subúrbio aparecem em resposta às imagens da cidade. Quando as cidades


são vistas como paradigmas cósmicos ou centros de civilidade e liberdade, viver longe
delas – nos subúrbios – é estar fora dos limites, é estar em uma zona intermediaria onde
os homens não podem alcançar a sua plena humanidade. Por outro lado, quando as
cidades são descritas como abominações, “antros de iniquidade”, os subúrbios adquirem
um brilho romântico, quando não sagrado. (TUAN, 2012, p.309).
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O subúrbio e a cidade, dependendo da experiência individual de cada sujeito, atrelada à


sua cultura, podem representar um espaço como também um lugar. No espaço, a ausência do lugar
é sentida. No lugar, o homem encontra-se.
Ao longo da história, a humanidade sempre conviveu com as mudanças de lugar, seja por
vontade própria, seja por circunstâncias que a levaram a mudar-se /ou a migrar. A busca é sempre
por um lugar em que se possa sentir-se seguro e protegido: “Um homem sai de casa ou da cidade
natal para explorar o mundo; a criança que engatinha sai de perto da mãe para explorar o mundo.
Os lugares permanecem aí. Sua imagem é de estabilidade e permanência”. (TUAN, 2013, p.42).
Nessa busca ele também opta por construir seus lugares. Dessa necessidade nasce o espaço
arquitetônico, materialização do espaço construído:

Quando um operário cria um mundo, ele não apenas modifica seu próprio corpo como a
natureza exterior. Uma vez terminado o edifício ou o complexo arquitetônico, torna-se,
então, um meio ambiente capaz de afetar as pessoas que nele vivem. O espaço construído
pelo homem pode aperfeiçoar a sensação e percepção humana. (TUAN, 2013, p. 128)

Refletir sobre a experiência geográfica do homem como parte da sua dimensão existencial
é a proposta da Geografia Humanista Cultural224. Nesse sentido a literatura se mostra como um
campo privilegiado para esse diálogo, pois revela e informa sobre a condição humana e situa
indivíduos e coletividades num determinado lugar e tempo.
Tem-se assim a possibilidade de um diálogo mais amplo entre Geografia e Literatura, pois
vemos as duas se reinventando para dar novas respostas a velhas perguntas, já que a
experiência do homem sobre a terra, seus sentimentos, dores, identidades, angústias e
afetividades continuam sendo a maior terrae incognitae a ser explorada por escritores e
geógrafos. (OLIVEIRA; MARANDOLA JR. 2010, p.135).

A narrativa literária inscreve sujeitos e paisagens. Como esta é modificada por aquele;
sujeitos culturais, que percebem e concebem as paisagens a partir de suas experiências. Ao
construir e modificar as paisagens, os sujeitos “falam sobre si”, marcam seu presente e o seu
passado.
O texto literário como material simbólico de uma cultura, ao situar os sujeitos, situa as
diferentes maneiras como eles percebem as paisagens e o modo como se dá essa relação sempre
de troca mútua e cambiante.
Dardel e Tuan, ao longo dos seus trabalhos, enfatizam as experiências humanas como a
fonte na qual é possível perceber como o homem concebe ou concebeu os espaços e as paisagens.
No vivido está a inscrição do humano. É o registro da sua essência.

224
A Geografia Humanista Cultural busca analisar a relação do homem com a natureza, valorizando a experiência,
o mundo vivido, a subjetividade e a cultura dos indivíduos, com base no existencialismo e na fenomenologia.
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Assim, elegeremos alguns conceitos apresentados por Dardel e por Tuan a fim de
analisarmos a experiência geográfica dos sujeitos na literatura contemporânea como resultado de
suas experiências com a paisagem, especificamente, no romance A cidade sitiada, de Clarice
Lispector.

S. Geraldo: de subúrbio à cidade

A cidade sitiada narra a transformação de um subúrbio em cidade e como os moradores


experienciam essa mudança, assim como a modificação que ocorre na paisagem deste lugar.
Nesse contexto o espaço da narrativa ganha uma perspectiva primordial, assim como a
protagonista da narrativa, conforme ressalta Ribeiro (2014, p. 12):

Destaca-se ainda como presença fundamental na obra A cidade sitiada o espaço,


construído e diretamente relacionado com a personagem principal. Cada caracterização
espacial específica de S. Geraldo ou as descrições da metrópole apontam para
peculiaridades da personalidade de Lucrécia Neves, tão instável quando as mudanças
sofridas pelo subúrbio onde viveu. Os ambientes que permeiam a vivência da
protagonista revelam não somente sua busca incessante por pertencer, mas a inquietude
por não se identificar com os ambientes de S. Geraldo. Mesmo assim, S. Geraldo está em
Lucrécia, que grita em silêncio desejando libertar-se e, entretanto, não encontra sucesso.

Narra-se, portanto, o processo de transição de um espaço que se constrói à medida que a


narrativa e a personagem também vão sendo construídas, pois Lucrécia percebe S. Geraldo de
modo diferente, à proporção que o espaço é modificado.

Temos um subúrbio em mutação. Antes dessa mudança os moradores conheciam o seu


subúrbio. No passado, S. Geraldo estava ligado aos seus moradores de forma muito próxima.
Contudo, essa relação foi sendo quebrada à proporção que as mudanças ocorreram no espaço à
medida que a modernização foi tornando-se uma realidade, pois, se, por um lado, ela foi
comemorada por alguns moradores, para outros significou a anulação de sua existência, uma vez
que a razão de sua existência estava em fazer parte daquilo que o subúrbio era no passado. Essa
era a função da personagem Efigênia para o subúrbio S. Geraldo:

Apesar do progresso o subúrbio conservava lugares quase desertos, já em fronteira com


o campo. Esses lugares em breve tomaram o nome de “passeios”. E também havia
pessoas que invisíveis na vida passada, ganhavam agora certa importância apenas por se
recusarem à nova era. A velha Efigênia morava a uma hora de marcha além da Cancela.
Quando lhe morrera o marido continuará a manter o pequeno curral, não querendo
misturar-se ao pecado nascente. (LISPECTOR, 1998b, p.19).

Ela representava, portanto, uma recusa ao progresso pelo qual alguns moradores tanto
ansiavam. Ora, o progresso de S. Geraldo tornou-se algo inevitável e com ele as reações dos
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moradores a esse novo S. Geraldo, um espaço construído. Assim, chegou a um determinado


momento em que a população, especificamente, as sócias da Associação de Juventude Feminina
de S. Geraldo deixam transparecer que “elas tinham medo da cidade que nascia”. (LISPECTOR,
1998b, p. 20).
A transformação do subúrbio modificou o conhecimento que os moradores tinham até
então, pois, ao modificar a paisagem do espaço, modificou-se também o modo como o espaço
passa a ser experienciado e conhecido:

Experienciar é vencer os perigos. A palavra “experiência” provém da mesma raiz latina


(per) de “experimento” e “perigoso”. Para experienciar no sentido ativo, é necessário
aventurar-se no desconhecido e experimentar o ilusório e o incerto. Para se tornar um
experto, cumpre arriscar a enfrentar os perigos do novo. (TUAN, 2013, p. 18).

S. Geraldo se transformava em cidade e, como cidade moderna, tem a rua como um de


seus símbolos, com bem aponta Dardel ao afirmar que

(...) A cidade, como realidade geográfica, é a rua. A rua como centro e quadro da vida
cotidiana, onde o homem é passante, habitante, artesão; elemento constitutivo e
permanente, às vezes quase inconsciente, na visão de mundo e no desamparo do homem;
realidade concreta, imediata, que faz do citadino “um homem da rua”, um homem diante
dos outros, sob o olhar de outrem, “público” no sentido original da palavra. (2015, p.28,
grifo do autor)

Cada morador de S. Geraldo mantinha um nível de proximidade ou afastamento com o


subúrbio de acordo com a experiência individual de cada um com o lugar.
Ana Neves, mãe de Lucrécia, por exemplo, não via S. Geraldo com bons olhos, uma vez
que “a pobre mulher odiava S. Geraldo e já se teriam mudado se, dizia em reprovação, Lucrécia
não fosse tão patriota. Mesmo o sobrado cheirava à cidade, e isso ambas sentiam, Lucrécia
rejubilando-se, Ana querendo falar o dia inteiro para escapar”. (LISPECTOR, 1998b, p. 107).
Enquanto Ana odiava o subúrbio e o que ele representava, a relação de Lucrécia com S.
Geraldo era mais sólida: “E a cidade ia tomado a forma que o seu olhar revelava”, o que leva a
ligação entre a moradora e o subúrbio a um estado de fundição. Chega a um nível onde não é
possível separá-los:

Da janela mais alta do Convento, no domingo - depois de atravessar o centro, a Cancela


e a zona da ferrovia – as pessoas se debruçavam e adivinhavam-na através do crepúsculo:
lá... lá estava o subúrbio estendido. E o que elas viam era o pensamento que elas nunca
poderiam pensar. “É o passeio mais bonito de S. Geraldo”, diziam então balançando a
cabeça. E não havia outro modo de conhecer o subúrbio; S. Geraldo era explorável apenas
pelo olhar. Também Lucrécia Neves de pé espiava a cidade que de dentro era invisível e
que a distância tornava de novo um sonho: ela debruçava-se sem nenhuma
individualidade, procurando apenas olhar diretamente as coisas. (LISPECTOR, 1998b,
p.23).
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Lucrécia é responsável por dar uma forma a S. Geraldo através do olhar:

Os olhos de Lucrécia avistam os movimentos de S. Geraldo e sua transformação. Os


“olhos” de S. Geraldo visualizam Lucrécia e a identificam como sua habitante nata que,
mesmo escapando ao desenvolvimento do subúrbio, retorna anos mais tarde ao seu nicho,
conservando ainda as mesmas características íntimas. (RIBEIRO, 2014, p. 14).

É por meio dela que as coisas passam a ganhar forma, assim como o subúrbio. Lucrécia
sente falta de S. Geraldo e vice-versa.
Com o passar do tempo, a protagonista passou a sentir-se incomodada em S. Geraldo, a
estranhar os novos modos das pessoas e do subúrbio. Passou a não sentir-se mais como parte do
subúrbio que ela ajudou a dar forma à medida que S. Geraldo foi sendo reconstruída: “Porque S.
Geraldo a asfixiava com sua lama e seus cravos boiando nos esgotos”. (LISPECTOR, 1998b, p.59)
Lucrécia passou a sonhar com uma cidade, com a vida em uma grande metrópole e com
tudo que ela pode oferecer a uma pessoa. A possibilidade de realização desse sonho se deu através
do casamento com Mateus, o homem que lhe daria uma cidade.
Mateus, diferente de Lucrécia, era um homem que não mantinha uma relação muito íntima
com a sua cidade. Ao mostrar as coisas que via à Lucrécia, ele tentava mostrar-se a ela e queria
transformá-la, ou seja, queria que ela visse como ele via, pelos seus olhos. “Mesmo na sua cidade,
Mateus Correia continuava a ser forasteiro, um homem que de todos os lugares tirava o que lhe
aproveitasse.” (LISPECTOR, 1998b, p. 120). Lucrécia “com surpresa viu que aquele homem nada
desejava de melhor do que segui-la e agregar-se à cidade da mulher, ele que não pertencia a
nenhuma”. (LISPECTOR, 1998b, p. 128).
Entretanto, ao mudar-se para a nova cidade, Lucrécia começou a sentir falta de S. Geraldo
e passou a buscá-lo na paisagem da nova cidade, porém não o encontrou: “E quando o advogado
reapareceu tão ocupado, olhou-o de longe quase tola, solta nestas ruas que não eram suas, com um
homem que falava e conduzia – um advogado!” (LISPECTOR, 1998b, p. 116).
Lucrécia sentia-se parte do subúrbio por diferentes razões. Uma delas porque ela era vista
por S. Geraldo. Quando mudou para a cidade com o marido, ela passou a sentir-se invisível porque
não era vista pelas pessoas:

nas calçadas cheias de gente ninguém olhava para ela, cujo vestido cor- de- rosa teria,
todavia encanto em S. Geraldo. [...] Na verdade as coisas novas é que a olhavam e ela
passava entre elas correndo atrás do advogado. Uma vez fora do subúrbio, desaparecera
sua espécie de beleza, e sua importância diminuíra. (LISPECTOR, 1998b, p. 116).

Segundo Tuan (2013, p.19), “ver e pensar são processos intimamente relacionados. Em
inglês, ‘eu vejo’ significa ‘eu entendo’. Há muito tempo, que já não se considera a visão apenas
um simples registro do estímulo da luz;”.
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Lucrécia tornou-se uma pessoa inexperiente na cidade porque não a via, não entendia o
novo espaço. Este não era lhe familiar.

Lucrécia passou a considerar-se o membro mais inexperiente da cidade, e deixava-se


guiar pelo marido em visitas a “lugares”, na esperança de em breve entender os táxis se
cruzando entre gritos de jornaleiros e aquelas mulheres bem calçadas pulando por cima
da lama. (LISPECTOR, 1998, p.119).

Após o casamento, Lucrécia mudou-se para a cidade, lugar de liberdade. Contudo, ao


concretizar seu desejo, começou a sentir-se deslocada no espaço onde tanto quis estar. Algo lhe
faltava e a fazia ver-se como não pertencendo a uma cidade que outrora fora para ela sinônimo de
lugar ideal: “Era assim. Que rápida caçada. Saía para fazer compras, ia pela sombra olhando as
placas dos dentistas, as fazendas expostas; até a loja era perto, além dela era ‘longe’: calculava na
paisagem nova, comparando com a de S. Geraldo.” (LISPECTOR, 1998b, p.124).
Ao tratar da cidade e da relação dos sujeitos com a paisagem deste espaço, Tuan aponta
que:
A cidade representa a maior aspiração da humanidade em relação a uma ordem perfeita
e harmônica, tanto em sua estrutura arquitetônica como nos laços sociais. (...) Uma
função primeira e essencial da cidade foi ser um símbolo vivo da ordem cósmica: por
isso seu padrão geométrico era simples, com muralhas e ruas frequentemente orientadas
pelos pontos cardeais, o mesmo acontecendo com seus imponentes monumentos.
(TUAN, 2005, p. 231).

Se por um lado a cidade representou um espaço ideal, almejado pelas pessoas, por outro
se tornou também uma paisagem do medo, pois “o medo da cidade como um ambiente físico não
pode ser nitidamente isolado do medo dos habitantes da cidade”. (TUAN, 2005, p. 250).
Se por um lado S. Geraldo representou para Lucrécia o amor e a segurança por um
ambiente, a cidade representou o seu oposto, a insegurança e o medo.
É no percurso da sua existência que o homem a constrói e dá-lhe sentido. Nessa caminhada,
perspectivas sobre o mundo e as coisas mudam, assim como as ideias sobre os lugares que
ansiamos. Lugares que, a partir das experiências e significados adquiridos no transcorrer do
tempo, tornam-se sinônimo de segurança e aconchego onde o homem possa desenvolver o amor,
o sentimento topofílico.
Tuan afirma que, para reconhecer um lugar como seguro, precisamos vivenciar o seu
contrário, ou seja, a insegurança de um espaço. No espaço, o lugar é invocado. O ser humano
precisa do espaço para reconhecer o lugar.
A cidade representou para Lucrécia um espaço e S. Geraldo um lugar. Foi na insegurança
da cidade que ela invocou a presença de S. Geraldo:
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(...) um espaço desconhecido se estende à nossa frente. Após algum tempo, conhecemos
alguns referenciais e os caminhos que os ligam. Eventualmente o que foi uma cidade
estranha e desconhecida se torna um lugar familiar. O espaço abstrato, carente de
significado exceto pela estranheza, torna-se um lugar concreto, cheio de significado.
(TUAN, 2013, p.243).

Conforme definição de realidade geográfica de Dardel (2015, p. 34), apresentada no tópico


anterior, percebe-se que S. Geraldo é como uma realidade geográfica onde Lucrécia dava sentido
à sua existência, marcada pela sua presença, invocada por ela e que a atraía, o que faz a
protagonista desejar voltar para seu antigo subúrbio, conforme aponta Lima: “A grande cidade
tornou-se, para Lucrécia, um espaço distante de seu ideal de liberdade. Sua falta de adaptação ao
meio metropolitano ocasiona o retorno ao espaço de suas origens”. (2009, p.106). Ao fazê-lo,
Lucrécia encontra uma cidade que ela não reconhece mais e que também não a reconhece, que
antes fazia parte dela, que ela construiu e deu forma com o seu olhar.
Ao retornar ao seu antigo subúrbio, pode-se dizer que Lucrécia reviveu o que sentira anos
atrás quando ainda vivia em S. Geraldo:

A moça abriu distraída a revista, e na penumbra mal se reconheciam as figuras. Mas lá


estavam as estátuas gregas...Uma delas talvez fosse apontar?... porém não tinha mais
braço. E mesmo haviam-na deslocado do lugar que ela indicava com o toco de mármore
que restara; cada qual deveria ficar na sua cidade porque, transportado, apontaria no
vazio, assim era a liberdade das viagens. Lá estava o toco de mármore. Na penumbra.
Que aspecto! a moça largou a revista, ergueu-se – que faria até casar? senão andar de um
lado para outro – e abriu as portas da varanda com curiosidade. (LISPECTOR, 1998b,
p. 70).

Nesse contexto temos uma personagem que viveu em um subúrbio com o qual teve uma
relação muito forte, a qual foi quebrada quando ela se mudou para uma cidade. Ao tentar recuperar
esse vínculo com o subúrbio, não consegue mais: “Assim, a trajetória de Lucrécia, por exemplo,
coincide com as mudanças espaciais da personagem ao longo da obra. O espaço está ligado não
somente à dimensão física, mas ontológica das personagens (...)”. (RIBEIRO, 2014, p. 61).
S. Geraldo mudou. Não precisava mais da mocinha. Ganhou autonomia. Com seus “carros,
de condutores invisíveis, deslizavam n´água e de súbito mudavam de direção, não se sabia por
quê. S. Geraldo perdera os motivos e agora funcionava sozinho.” (LISPECTOR, 1998b, p.132)
Lucrécia, após perceber a transformação de seu antigo subúrbio, tenta manter alguma coisa
com o receio de perder o último vínculo que ainda tinha, porque “desfazer-se de seu habitat em S.
Geraldo é deixar para sempre a construção de seu olhar durante todos os anos vividos nesse
ambiente. Representa a separação definitiva entre a mocinha e ambiente, uma deserção de um
território sitiado por ela mesma”. (RIBEIRO, 2014, p. 73).
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Lucrécia tinha S. Geraldo como referência de lugar seja para buscar outros lugares, seja
para saber que o que ela encontrou não era o que procurava. Em qualquer lugar que esteja, sempre
busca encontrá-lo. Assim, o espaço na narrativa ganha uma importância muito grande. O homem
habita espaços e anseia encontrar um lugar, onde possa finalmente repousar a sua existência e
encontrar-se na Terra.
S. Geraldo inicialmente é um subúrbio que se transforma em uma cidade. Temos, portanto,
um espaço modificado pelo homem que, através da cultura, transforma o espaço que vive,
modifica, assim, a paisagem e o modo como esta é vivenciada e percebida.
Enquanto espaço que ainda está sendo construído, a cidade em que se transformou S.
Geraldo precisa da subjetividade dos seus moradores para adquirir sentido para eles.
Especialmente, para Lucrécia que viveu a experiência da ausência do lugar quando teve a
liberdade do espaço, pois,

(...) o espaço, como já mencionamos, é dado pela capacidade de mover-se. Os


movimentos frequentemente são dirigidos para, ou repelidos por, objetos e lugares. Por
isso o espaço pode ser experienciado de várias maneiras: como a localização relativa de
objetos ou lugares, como as distâncias e extensões que separam ou ligam os lugares, e –
mais abstratamente – como a área definida por uma rede de lugares. (TUAN, 2013, p.22).

Ao deixar S. Geraldo, Lucrécia procurou encontrar em outro lugar o que o subúrbio


representou para ela em algum momento, mesmo que naquele momento ele a sufocasse: “Um
homem sai de casa ou da cidade natal para explorar o mundo; a criança que engatinha sai de perto
da mãe para explorar o mundo. Os lugares permanecem aí. Sua imagem é de estabilidade e
permanência”. (TUAN, 2013, p. 42).
Lucrécia procura um espaço em que possa sentir-se segura e protegida, um lugar que seja
familiar, que tenha os traços de S. Geraldo. Um lugar que tenha significado para sua existência.
Para onde sempre possa retornar e voltar o olhar. Lucrécia busca esse lugar, essa referência:
Assim ia para a rua, espiar de um lado e de outro. Bem gostaria de enfim desistir e
descansar. Às vezes mesmo se imaginava, sorrindo de arrebatamento, a tomar um navio
e fazer-se para sempre ao mar. Mas sua viagem era por terra. O vento a recebeu na rua,
a moça parou protegendo os olhos feridos pela luz. E de súbito a claridade a revelou.
(LISPECTOR, 1998b, p. 39).

Quando vivia no subúrbio, Lucrécia era parte indissociável dele. Ela se via em cada parte:
na rua do mercado, no morro do pasto, nos objetos de sua casa. Em uma conversa com Perseu e
sua mãe, a moça afirma sobre o subúrbio:

Ele [Perseu] a olhou com surpresa e alegria:


- Que tolice! as coisas são de pessoas!
- Da sala, resmungou Lucrécia Neves!
- E a sala, filhinha?
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- É da casa, a casa é de S. Geraldo, não me aborreça.


- Ah. E São Geraldo?
- E... É de S. Geraldo, me deixe. (LISPECTOR, 1998b, p.108).

Para Lucrécia a casa, os objetos e as pessoas pertencem a S. Geraldo, assim como ela
pertencia a ele. S. Geraldo representava o mundo para ela.
Ora, se a relação de Lucrécia com seu subúrbio está marcada na paisagem e nas coisas que
a cercam, é nelas que a moça procura os traços do seu subúrbio quando ela não o habita mais:

S. Geraldo não estava mais no ponto nascente, ela perdera a antiga importância e seu
lugar inalienável no subúrbio. Havia mesmo planos de construção de um viaduto que
ligaria o morro à cidade baixa... Os terrenos do morro já começavam a se vender para
futuras residências: para onde iriam os cavalos? [...] Nesse período Lucrécia Correia se
agregou enfim ao que sucedia. Terminando por admitir que sonhara com este progresso
e lhe dera sua própria força. Reconhecendo aqui e ali marcas de sua construção.
(LISPECTOR, 1998b, p. 138).

Segundo Ribeiro (2014, p. 10), “o questionamento e a reflexão sobre o ser, sua essência e
seu deslocamento ou função no mundo representam indagações a serem revisitados ao longo de
diversas obras de Clarice Lispector”. Reflexão essa que perpassa a busca do ser humano por um
lugar no mundo, como ser terrestre que habita a terra e tem necessidade de espaço.
E assim Lucrécia continua a sua busca. Ao deixar a cidade e retornar a S. Geraldo e não se
adaptar mais à vida lá, muda-se para uma pequena cidade, que era uma ilha, para repousar por
causa da saúde. Para Tuan (2012), a ilha tem um lugar especial na imaginação do homem e é
sinônimo do estado da inocência e recomeço e que, com as atribulações da vida moderna, passou
a representar o lugar para onde o homem pode ir para fugir da vida cotidiana. Naquele local, ela
começa a imitar a nova paisagem do lugar, na tentativa de construir e achar um lugar para si:

Lucrécia cheirava o ar salgado, farejava com cuidado aquilo tudo que lhe pareceu de uma
realidade fria e ligeira como de um córrego – e que tanto lembrava a silenciosa época
anterior ao progresso de S. Geraldo. Uma casa leve, construída sobre terra arenosa;
depois de alguns dias percebeu que também acordava de pele branca e cílios negros, toda
em claro e escuro, tanto já começara a imitar a nova paisagem. (LISPECTOR, 1998b, p.
145).

No seu terceiro romance, Clarice, além da história em si, lança seu olhar para algumas
problemáticas ligadas à literatura de modo geral que surgiram ao longo da sua carreira, às quais
tenta responder e teorizar sobre dentro da própria construção da narrativa.
Na narrativa A cidade sitiada as personagens veem o espaço e este as vê. Cria-se uma
relação de interdependência entre os personagens e o espaço da narrativa, onde uma paisagem que
lembra uma pintura é o palco para os personagens suburbanos mostrarem-se, em confronto com o
espaço da cidade. Como afirma Nunes, assegura-se que, em A cidade sitiada, “(...) intensifica-se
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o sentido do lugar, da localização espacial da protagonista, Lucrécia Neves, como ambiente que
circunscreve os seus atos e lhes dá sentido: um certo subúrbio em crescimento, chamado S.
Geraldo”. (NUNES, 2004, p. 292).

Considerações finais

A obra de Clarice Lispector como um todo nos apresenta o ser humano em uma
perspectiva de nascimento para a descoberta de um mundo que parece nascer/surgir no instante
em que incursionamos na sua escrita, na sua linguagem única que tenta narrar o indizível.
As narrativas clariceanas são o fio condutor da tessitura de vidas encontradas no seu
acontecer cotidiano. Assim, a linguagem é para a escritora um caminho a ser descoberto e
reencontrado nos seus textos.
Em 1949, a escritora publicou o seu terceiro romance, A cidade sitiada. Se comparado com
os dois anteriores, este se diferencia em alguns aspectos formais, mas a estrutura interna é a
mesma: uma tentava de abarcar a dimensão humana.
O espaço é um dos elementos da narrativa literária e, por isso, deve ser analisado como
parte de um todo que ganha sentido em uma dimensão maior, em especial, no livro A cidade
sitiada. Nesta perspectiva, a nossa análise voltou-se para o espaço da narrativa.
Clarice foi uma escritora que rompeu com o paradigma no modo de se pensar a literatura
brasileira, por isso também o espaço nas suas obras ganha ótica e dimensão únicas. Rompendo
com a ideia do localismo, ou seja, do espaço que fazia referência a uma determinada região do
país, o espaço na obra clariceana é apresentado em uma dimensão existencial.
As mudanças no modo de conceber os problemas humanos nas últimas décadas e,
consequentemente, a maneira de entendê-los levou a Geografia a modificar os seus modos de
investigação. Assim, a Geografia Humanista voltou seu olhar para as experiências humanas na
terra como meio de se abarcar a totalidade da dimensão humana.
A nossa análise teve como referencial teórico as ideias da Geografia Humanista Cultural,
fundamentadas especificamente a partir das ideias e conceitos dos geógrafos Eric Dardel (2015) e
Yi-Fu Tuan (2012, 2013). A escolha de tais teóricos deu-se em detrimento de outros porque as
suas ideias sobre o espaço abarcam o homem na sua dimensão existencial e universal. O ponto
comum do pensamento de Tuan e Dardel é que ambos colocam a experiência do homem no mundo
como fundamentais para compreender a condição do homem na Terra, pois a construção humana
é um acúmulo de experiências.
Ao elegermos dois geógrafos enquanto base teórica deste trabalho, tentamos promover um
diálogo entre a Literatura e a Geografia, pois a arte literária e a ciência geográfica têm no homem
e nas suas experiências um ponto de reflexão e de interesse em comum.
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A literatura é uma maneira simbólica de representar e apreender as experiências humanas


no mundo e, por isso, é uma dentre as várias possibilidades de investigar o modo como se dá a
relação do homem com o espaço e a sua construção existencial.
Desse modo, analisamos o romance A cidade sitiada com o objetivo de tentar compreender
a configuração do espaço na obra e o modo como os sujeitos vivenciam a experiência com a
paisagem e como se evidenciam as mudanças no modo de perceber e conceber um lugar por um
sujeito, quando ele muda as suas concepções sobre este mesmo lugar.
No seu terceiro romance, Clarice Lispector problematiza a questão da busca do sujeito por
um lugar no mundo, o que não é alcançado pela personagem, e a leva a se exilar do mundo e da
sua condição de deslocada. Lucrécia tentou nos deslocamentos
geográficos encontrar um lugar que não era físico, mas existencial.
Tentamos à luz da Geografia Humanista Cultural investigar sobre as configurações do
espaço no romance A cidade sitiada, de Clarice Lispector, uma dentre as várias possibilidades de
investigação na obra da escritora que tanto escreveu sobre as buscas humanas, o que inclui a busca
por um lugar. Construiu, no terceiro romance, uma narrativa na qual a personagem procura o seu
lugar no mundo como condição para a totalidade da sua essência humana e inscrição da sua
existência.
A literatura de Clarice se caracteriza por ser uma ruptura com paradigmas literários. Seus
romances, contos e crônicas são a síntese de uma escrita visceral, materializada em uma linguagem
a ser buscada, muitas vezes, no próprio processo de escrita de suas narrativas. Uma linguagem
única, através da qual tantas histórias foram tecidas, com enredos simples e ao mesmo tempo tão
complexos que tecem existências, como em A cidade sitiada.

REFERÊNCIAS

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São Paulo: Perspectiva, 2015.

HOLZER, Werther. A geografia humanista: sua trajetória 1950-1990. Londrina: Eduel, 2016.
LIMA, Bernadete Grob. O percurso das personagens de Clarice Lispector. Rio de Janeiro:
Garamond, 2009.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a.

_____. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.


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MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify,
2009.

OLIVEIRA, Lívia de; MARANDOLA JR, Eduardo. Caminhos geográficos para a literatura. In:
ALVES, Ida Ferreira; FEITOSA, Márcia Manir Miguel. (orgs.) Literatura e paisagem:
perspectivas e diálogos. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2010. p. 121-138.

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RIBEIRO, Lívia Paiva. Um passeio poético por entre A cidade sitiada de Clarice Lispector.
Dissertação de Mestrado. Uberlândia, 2014. Disponível em: http://docplayer.com.br/21084887-
Um-passeio-poetico-por-entre-a-cidade-sitiada-de-clarice-lispector.html>. Acesso em:
21/09/2016.
SOUSA, Carlos Mendes de. A revelação do nome. Cadernos de Literatura Brasileira, São
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TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

__________. Topofilia: um estudo da percepção, atitude e valores do meio ambiente. Trad. Lívia
de Oliveira. Londrina: EDUEL, 2012.

___________. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de Oliveira. Londrina:


EDUEL, 2013.
Página 1048 de 2230

AS RÃS DE ARISTÓFANES E OS DIONÍSIOS DE NIETZSCHE: DISFARCE,


CTONISMO E RECONCILIAÇÃO

THE ARISTOPHANES FROGS AND THE DIONYSIANS OF NIETZSCHE: DISGUISE,


CTONISM AND RECONCILIATION
Brenda dos Santos Menezes225
Ellen Caroline Vieira de Paiva226

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Discute-se o fundamento da relação entre estética e misticismo nos escritos


nietzschianos sobre a tragédia a partir de elementos que vinculam a imagem de Dionísio aos
chamados Mistérios. Defende-se que os escritos de Aristófanes ocupam papel relevante no
conteúdo e na forma de apresentação da proposta de Nietzsche de 1872 para além da conhecida
crítica a Sócrates. Inicia-se com uma visão panorâmica da peça para que, em seguida, sejam
identificados temas dela decorrentes desenvolvidos nos escritos do filósofo. Demonstra-se, ao
final, como a hipótese nietzschiana da relação entre o nascimento da tragédia e os mistérios
dionisíacos encontra parte de seu fundamento na conceituação abrangente e ambígua do termo
μουσικὴ (mousikḗ) nessa comédia aristofânica.
Palavras-chave: Nietzsche; Aristófanes; tragédia; comédia, Rãs.

Abstract: The ground of the relationship between Aesthetics and Mysticism is discussed in the
Nietzschean writings on tragedy based on elements which link the image of Dionysus to the so-
called Mysteries. It is argued that Aristophanes’ writings play an important role in both content
and form of presentation of Nietzsche’s proposal of 1872, in addition to the well-known criticism
directed at Socrates. It begins with a panoramic view of the play so that, subsequently, themes
arising from it and developed in writings of the philosopher. Finally, it remains to be shown how
the Nietzschean hypothesis of the relationship between the birth of tragedy and the Dionysian
Mysteries finds part of its foundation in the comprehensive and ambiguous conceptualization of
the term μουσικὴ (mousikḗ) in this Aristophanic comedy.
Keywords: Nietzsche; Aristophanes; tragedy; comedy, Frogs.

1 Introdução

Aspectos importantes da relevância dos escritos filológicos produzidos entre as


décadas de 1860 e 1870 na obra de Nietzsche são o caráter de documentação das bases teóricas de
onde o filósofo parte rumo às considerações posteriores a elas concernentes, bem como o seu
diagnóstico per se. Esses escritos revelam o desenvolvimento do ceticismo do jovem filólogo
quanto às fontes e metodologias disponíveis para o estudo do mundo antigo em face da
compreensão idealista na filologia vigente acerca da antiguidade grega como uma era jovial
vivenciada em uma realidade totalizante, ainda que em momentos históricos de profunda tensão.

Graduanda em Filosofia da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. brenda_menezes0@live.com


225

Professora de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão – UFMA; doutoranda em Filosofia da Technische


226

Universität Berlin. ellencarolinev@gmail.com


Página 1049 de 2230

Influxos de autores como Valentin Rose, Jacob Burckhardt, Müller-Strübing, entre outros,
ofereciam elementos de composição para um tal brainstorming.

Imerso em um horizonte que compreende o mundo antigo como totalidade por


projeção estético-conceitual, Nietzsche direciona paulatinamente sua crítica do âmbito
analiticamente filológico para o interpretativamente filosófico ao delinear traços do problema da
visão fragmentadora da cultura moderna a partir do desenvolvimento do racionalismo científico.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento do pensamento dialético na antiga Grécia, em paralelo com
a decadência do pensamento mítico lhe sugerem a inevitabilidade da fragmentação dessa suposta
ordem totalizante (e totalizadora). Em tais condições de pensamento, é compreensível que
Nietzsche, impulsionado pelo encontro com Wagner, encontre na sua modernidade uma extensão
desse processo fragmentador e venha a refletir sobre a possibilidade de reforma da cultura alemã
pelo renascimento estético do mito.

É farta a pesquisa que associa o tema da decadência da tragédia à figura de Eurípedes


e dele deduz o arquétipo de Sócrates, de modo que este paper pouco teria a contribuir se nisso se
detivesse. Todavia, vale retomá-lo por inversão de foco: ao invés de se convergir criticamente
para a claridade do tipo socrático, imiscuir-se nos espectros obscuros dos mistérios dionisíacos
que Nietzsche situa no núcleo da sua hipótese de que deles adviria a tragédia e, de que poderia
renascer do mito e da música alemã de sua era. Tais espectros ressaem da ideia de um Dionísio-
Zagreu historicamente despedaçado, degenerado e transformado pela cultura cristã, cujos
desdobramentos medievais e modernos teriam culminado na música coral luterana que servira de
istmo para as músicas de Bach, Beethoven e Wagner. Tomar “tão criativa” ideia em demasiada
consideração material parece ser uma via improfícua, ainda que a questão seja criticá-la227. Mas
o exame da forma pela qual ela foi elaborada pode ser revelador quanto aos aludidos espectros,
principalmente se for demonstrada coerência metodológica entre essa forma e o seu fundamento.

O presente trabalho reflete, portanto, sobre o fundamento da relação entre estética e


misticismo a partir de elementos que vinculam a imagem de Dionísio aos chamados mistérios
religiosos. A tese defendida é a de que os escritos de Aristófanes ocupam papel relevante no
conteúdo e na forma de apresentação da proposta de Nietzsche para além da conhecida crítica a
Sócrates. Com efeito, ainda à época de Nietzsche, a pesquisa sobre Aristófanes já revelava
detalhes iluminadores sobre linguagem de cena, paródia e efeito cômico228. Tais detalhes de forma

227
Como o fizera o jovem Wilamowitz-Müllendorf a propósito da publicação de O Nascimento da Tragédia em 1872:
Wilamowitz-Müllendorf, U. Filologia do futuro! in Machado: 2005, pp.55-78; 129-148.
228
Apesar de revelarem maior aproximação com um núcleo de pensamento posterior ao projeto wagneriano aqui
tratado, extrapolando, portanto, os objetivos do presente trabalho, é importante mencionar que entre os cursos sobre
a História da Literatura Grega, ministrados entre 1874-1876, Nietzsche trata analítica e historicamente da comédia
Página 1050 de 2230

assumem em As Rãs um significado especial tanto quanto pelo seu teor estético e mítico, quanto
por sua estrutura paródica. Enquanto fonte histórica e estética, Aristófanes oferece a Nietzsche
uma visão também totalizante para observação e interpretação dos fenômenos culturais e
elaboração das narrativas sobre eles. Ao modo aristofânico, o termo μουσικὴ (mousikḗ) consiste
em uma ampla e diversa visão de conjunto sobre a arte.

Por conseguinte, no presente estudo, analisa-se o tema central da oposição entre


tradição mítica e inovação dialética de As Rãs no âmbito da relação do cidadão com os deuses, de
modo a possibilitar uma visão panorâmica da obra. Em seguida, identificam-se temas aristofânicos
da peça nos escritos de Nietzsche sobre a tragédia. Finalmente, analisam-se as relações entre a
peça estudada e a doutrina dos mistérios dionisíacos nesse núcleo de pensamento.

2 As Rãs de Aristófanes: tradição mítica contra inovação dialética

Com As Rãs Aristófanes ganhou o concurso das Leneias (Λήναια) de 405 a. C.


discutindo tipos distintos de poesia trágica, quais sejam, a tradição guerreira do passado grego,
com a figura de Ésquilo, e a inovação dialética dos novos tempos com Eurípedes. O enredo da
comédia inicia com a necessidade do deus, acompanhado de seu escravo Xantias, descer até o
Hades para resgatar Eurípedes, pela sua “necessidade de um bom poeta” (vv. 65-75)229 após a
morte de Eurípedes e Sófocles.

À época de As Rãs, Eurípedes constava entre os trágicos admirados por suas obras.
Curiosamente, Dionísio se refere a ele no verso 80 como πανοῦργος (panourgos), isto é, como um
poeta astucioso, habilidoso, aldrabão, trapaceiro, em escapar de dificuldades, e que este seria
capaz de qualquer coisa. Assim, apesar de referir-se à habilidade, o termo assume conotação
pejorativa. Isto se evidencia nas atitudes pregressas do poeta no enredo da peça, pois, no mundo
subterrâneo já vigoraria uma lei, a respeito das artes mais nobres, que determinava que todo
homem “superior aos seus rivais” fosse sustentado no Pritaneu e se sentasse perto do próprio
Hades. “Isto até aparecer outro mais capacitado que ele em sua arte”, caso em que teria “de lhe
ceder o lugar.” Ésquilo ocupara o trono da tragédia, mas ao chegar àquele mundo, Eurípedes fizera
campanha junto aos criminosos, que eram em grande número no Hades. E, no dizer do escravo do
Hades: “(...) essa gente, vendo a desenvoltura dele para falar dos prós e contras, suas sutilezas,

(KGW II-5. Die Komödie, §10; pp. 152-173), com um tópico especial dedicado a Aristófanes, entre outras menções
ao comediógrafo. Para este artigo importa dizer que tais cursos também contam com parte das fontes clássicas já
utilizadas nesses escritos de 1869-1872, como o compêndio dos Sudas, Bernhardy, Otfried Müller, Usener e Aristóteles,
por exemplo, caracterizando um aprofundamento de estudos no tema da comédia e, em especial, no método de
observação de Aristófanes.
229
À exceção de uma passagem citada por Nietzsche adiante, que contém tradução nossa, todas as citações de
Aristófanes e Eurípedes neste trabalho correspondem às traduções brasileiras de Mário da Gama Kury. Utilizaram-se
outras traduções, para fins comparativos.
Página 1051 de 2230

seus artifícios, apaixonou-se por ele e decidiu que ele era mais competente; e, presunçoso como
é, ele se apoderou do trono onde se sentava Ésquilo.” (vv. 760-780)

Observe-se se essas passagens ainda não são conclusivas quanto à primazia tradicional
de Ésquilo, pelo menos sugerem certa usurpação quanto à fama de Eurípedes quando estava entre
os vivos, dada a efetividade dessa entre os mortos na peça. Mas a narrativa avança e afirma a
superioridade de Ésquilo pela submissão de Sófocles, outro grande trágico reconhecido, que na
peça ocupa um papel secundário (vv.786-795):

Xantias: E por que Sófocles não reclamou também o trono da tragédia? Escravo:
Ele tirou o corpo fora; quando chegou aqui ele primeiro abraçou Ésquilo, deu a mão a ele
e deixou-o na posse pacífica de seu lugar. Mas agora, como diz Clidemides, Sófocles está
preparado para ser o reserva; se Ésquilo for o vencedor ficará em seu lugar; se não for
assim, ele disputará com Eurípides.

A submissão de Sófocles a Ésquilo, comum à cultura hierárquica de saberes e


costumes da antiga Grécia, indica a ausência de confronto entre o poeta mais jovem e seu
predecessor, além da sensatez conhecida da biografia do autor de Édipo Rei (427 a.C.?). Quanto
a isso, Dover (1993, p. 181) considera que o projeto de Aristófanes seria o de assinalar uma
oposição extrema entre os estilos de Ésquilo e de Eurípedes. Em termos fáticos, há ainda a hipótese
indiferente de, em estando já composta a peça à época da morte de Sófocles, as rápidas alusões a
ele poderiam também ter o efeito de homenagem estética.

Em todo caso, a estrutura fundamental da tensão entre dois grandes trágicos


profundamente distintos entre si é mantida. Ao final da peça, é o próprio personagem Ésquilo que,
vitorioso, indica Sófocles como seu sucessor perante Hades: “Dê meu lugar a Sófocles, para que
ele o guarde e preserve para mim se algum dia eu voltar para cá. Considero-o o mais importante
poeta trágico depois de mim.” (vv. 1515-1519) Com efeito, é na forma possessiva (τὸν ἐμὸν) com
que Ésquilo se refere ao “seu” assento oficial (τὸν θᾶκον) junto a Hades230. Sófocles é o segundo
(δεύτερον) mais importante depois dele, conforme avalia. A solução cômica da narrativa
aristofânica consiste, portanto, na “devolução” de um direito usurpado. Confirma-se, assim, a
posição de Aristófanes/Dionísio diante do ágon.

Considerando-se o caráter discursivo do estilo de Eurípedes, que leva considerações


de críticos de teatro para os textos de suas peças, com redução das participações dos coros, parece
claro que Aristófanes reivindica a necessidade de parte dos elementos estéticos presentes na obra
de Ésquilo. Em uma realidade cultural dialética, grande parte da sensibilidade diluída no conjunto
harmônico de efeitos passa a ser suprimida quando elementos das peças se colocam distantes da

230
No original (vv. 1515-1519; grifou-se): ταῦτα ποήσω· σὺ δὲ τὸν θᾶκον | τὸν ἐμὸν παράδος Σοφοκλεῖ τηρεῖν | καὶ
διασῴζειν, ἢν ἄρ᾽ ἐγώ ποτε | δεῦρ᾽ ἀφίκωμαι. τοῦτον γὰρ ἐγὼ | σοφίᾳ κρίνω δεύτερον εἶναι.
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arte. Assim, precisamente no coro, encontra-se a reflexão: “É bom, então, não ficar perto de
Sócrates conversando com ele, desdenhando a música e as partes mais importantes da arte trágica.”
(vv. 1491-1495)231 Aristófanes inverte em sua comédia a inovação na forma proposta por
Eurípedes, o dramaturgo crítico do coro que o preteriu em favor da dialética. A paródia
aristofânica se apresenta na estrutura mesma da peça: nessa passagem, é do coro que parte a crítica
(e galhofa) ao filósofo dialético que tem seu paralelo metodológico no tragediógrafo derrotado.

Ressalte-se que esse efeito cômico do coro ao final da comédia é a exaustão conclusiva
da fórmula fundamental da peça: o coro a caçoar de Eurípedes. Mantendo a tradição da Comédia
Antiga de conter coros com nomes de animais, essa peça é uma paródia da crítica da arte. Ao invés
de um erudito tagarelando sobre assuntos privados no palco, há rãs barulhentas a incomodar o
deus do teatro com seu canto repetitivo.

Coro das rãs: Brequequequequex, coax, coax!


Diôniso: Danem-se vocês com seu coax, coax! É sempre o mesmo refrão, coax coax. (...)
Coro das rãs: Brequequequequex, coax, coax!
Diôniso: Maldita raça de cantoras! Vocês não vão terminar o concerto?
Coro das rãs: Cantemos mais. (...) é agora, mais do que nunca, que devemos repetir
brequequequequex, coax, coax!
Diôniso: Vou tirar este prazer de vocês!
Coro das rãs: Seria um suplício para nós. (...)
Diôniso: Tomara que a peste ataque vocês!
Coro de rãs: Pouco nos importa. Enquanto nossa goela aguentar, gritaremos o dia todo:
brequequequequex, coax, coax.
Diôniso: Vocês não gritarão com mais força do que eu.
Coro das rãs: Nem você mais forte do que nós!
Diôniso: Não! Vocês não ganharão de mim!
Gritarei durante todo o dia, até abafar o coax de vocês!
Coro das rãs: Brequequequequex, coax, coax.
Diôniso: Eu tinha certeza de que obrigaria vocês a silenciar o coax.

Em uma espécie de “ágon cômico”, Dionísio consegue silenciar as rãs barulhentas


com seu grito divino. Com efeito, o coro de rãs satiriza os poetas decadentes, seja pelo contraste
da musicalidade, seja pela qualificação dos animais que intitulam o texto. A dissonância
estabelecida lança sensorialmente no palco a pergunta pelo poético no âmbito da sonoridade, do
ritmo, do mistério, da fantasia e do encanto. E nessa questão Dionísio “tem a palavra (ou o grito)
final”!

Sonoridade e disfarce se integram em uma unidade dionisíaca de ambiguidade


necessária à estimulação do público. Apresentados os temais fundamentais, vale retomar a
caracterização de Dionísio logo no início da peça. Disfarçado de seu irmão Hércules, o deus do
vinho segue rumo ao submundo utilizando uma túnica amarela e um coturno – traje feminino,

231
No original: χαρίεν οὖν μὴ Σωκράτει | παρακαθήμενον λαλεῖν, | ἀποβαλόντα μουσικὴν | τά τε μέγιστα παραλιπόντα
| τῆς τραγῳδικῆς τέχνης. Em um tópico adiante haverá uma discussão mais detalhada sobre a tradução dessa
passagem.
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geralmente próprio das representações do deus e de suas mênades –, e por cima destas vestes usa
pele de leão e carrega uma clava (em referência a virilidade de Hércules). O irmão fantasiado leva
Hércules aos risos (vv. 45-48): “Não posso mesmo conter as gargalhadas vendo uma pele de leão
por cima de uma roupa amarela. Que significa este modo ridículo de se vestir? Qual é a relação
entre o coturno e o porrete? Por onde você viajou?”

Ao demonstrar uma conduta gestual de pouca habilidade de lidar com os imprevistos


e perigos enfrentados por qualquer mortal durante a viagem ao Hades, explicitando assim uma
tensão harmônica (e cômica) entre o humano e o divino, o masculino e o feminino, o cômico e o
trágico, Dionísio sucessivamente troca de lugar com o escravo, passando a Xantias as
responsabilidades de herói quando o perigo espreita, exigindo seu lugar de volta quando aparecem
as recompensas provenientes das divindades ctônicas. Eis então a heterogeneidade própria de seu
caráter de deus híbrido intensificada pela criação de Aristófanes.

Muito embora a comédia aristofânica tenha sido representada durante as Lenéias


(como supramencionado), em As Rãs, o coro de rãs faz referência aos rituais das Antestérias,
citando procissões, e sacrifícios presentes nos rituais. (Malhadas: 1983, p. 67) No coro (vv. 215-
220), as rãs entoam hinos de exaltação em honra de Dionísio Nísio, filho de Zeus, bem como o
Dionísio Limnaio (Leneu), senhor dos pântanos onde eram celebradas as Antestérias:

Nós, filhas das águas pantanosas, harmonizamos nossos tons com os sons das flautas;
vamos repetir este canto harmonioso, coax, coax, que entoamos nos pântanos em honra
de Diôniso Nísio, filho de Zeus, quando a multidão embriagada na festa das panelas se
reúne para celebrar as orgias nos lugares consagrados. Brequequequequex, coax, coax.

Há, pois uma notória relação do ctonismo com essas celebrações, popularmente
conhecidas como “festas das flores” de cunho primaveril. Durante as Antestérias aconteciam as
celebrações ao deus do vinho novo e o contato com o mundo do além e dos mortos.

A ida ao submundo ressalta, pois, a origem ctônica do jovem deus e, com isso, a força
totalizante da realidade promovida pelo misticismo do mistério. Reivindica-se o princípio daquela
ordem cultural e sobre ele afirmam-se suas representações. Nesse sentido, assim que consegue
chegar até a porta do palácio, Dionísio é convidado por Hades a decidir, junto a ele o agôn entre
Ésquilo e Eurípides pela posse do trono de honra da tragédia.

Com este famoso agôn, Aristófanes radicalizou para a posteridade uma oposição a
relacionar os dois poetas: Ésquilo como representante da tragédia na sua forma mais
antiga, severa, hierática, majestosa, ainda próxima da épica e dos valores por ela
celebrados; Eurípides como o promotor de um outro modelo revolucionário, amoral, mais
próximo da sociedade, fragmentada e decadente, do tempo da guerra do Peloponeso.
(Silva: 2014, pp. 18-19)232.

232
Cf. a introdução à tradução portuguesa de M. F. Silva (2014).
Página 1054 de 2230

Desta forma, em um primeiro momento a escolha final de Dionísio aparenta ser


contraditória segundo a perspectiva de quem participa da narrativa, visto que, ao início da trama,
ele afirmara que se aventuraria até o subterrâneo para trazer de volta à glória do mundo dos vivos
Eurípedes. Contudo, ao final, Ésquilo sai vitorioso e Eurípedes é abandonado – como a estrutura
da peça sugere para a perspectiva externa à narrativa.

Esse ágon não significa apenas o “combate” entre dois poetas, mas entre dois grandes
pensadores e influenciadores de extrema importância para a sociedade grega da época, e sobretudo
em dois cenários de crenças mítico-religiosas atenienses. Nesse sentido, a necessidade de um poeta
retornar para a cidade não se fazia por Sófocles estar morto, mas porque a cidade precisava ser
salva. Dionísio encontra a salvação para a cidade e para o estado de decadência da tragédia pela
ressureição de Ésquilo.

Fora do enredo da peça, não seria possível que Ésquilo retornasse à vida, mas a lição
pedagógica da comédia é que Atenas poderia ser capaz de recuperar todos os seus valores
tradicionais representados pela figura do poeta na peça: unidade, disciplina, honra, isto é, o que
conferia grandeza à arte e às formas de vida nos tempos em que o poeta vencedor reinava entre os
vivos.

A comédia, pois, representaria a união de dois modelos de enredo utilizados


anteriormente em outras obras de Aristófanes: o primeiro representado pela descida do jovem deus
ao Hades e pela ressurreição de heróis do passado. Esse modelo, além da recorrência em outras
comédias (inclusive de outros autores), teria, ainda, precedências míticas, como Hércules/Cérbero,
Hermes/Perséfone, Orfeu/Eurídice, Dionísio/Sêmele e Hércules/Teseu. O segundo modelo seria o
tema de Dionísio como anti-herói, juntamente com uma representação cômica do deus.

Caracterizado como deus das artes das musas, e como aquele que originou a tragédia
antiga grega em sua mais pura originalidade, Dionísio demonstrou ser mais astucioso que o
próprio Eurípedes. Sua real intenção sempre fôra resgatar Ésquilo, mas por temer que a astúcia
euripidiana e os empecilhos típicos do submundo o impedissem de realizar sua “odisseia” pelo
método convencional utilizou-se do disfarce no Hades para promover a reconciliação da força
plástica sensorial com a força dialética já presente no público da pólis de então.

Essa reivindicação ctônica e unificadora que aproxima o comediógrafo de seu


personagem vencedor orienta-se para uma cultura agregadora da cidade. Assim, por mais que
Aristófanes pouco tenha se atraído ao estilo de Eurípedes, segundo Suárez de la Torre, ambos
“perseguiram fins que não eram substancialmente diferentes, embora ao longo de caminhos e com
soluções divergentes.” (Suárez de la Torre:1997, p.; traduziu-se.)
Página 1055 de 2230

Nesse sentido, os poetas trazem à cena suas propostas de regeneração social e cívica,
de modo que a recuperação da pólis foi assimilada à do próprio teatro e, em ambos os casos, pela
figura de Dionísio. Isto se exemplifica com o fato de que, assim como em As Rãs, em As Bacantes
(Eurípedes) Dionísio é ator e ao mesmo tempo personagem. Para além do gênero (o primeiro
comediógrafo e o segundo com tragédia, trata-se de duas versões distintas de Dionísio e do
Dionisíaco: Aristófanes a apresentar um lado mais místico do dionisismo e Eurípedes um
dionisismo mais urbano, menos orgiástico que os cultos originais.

À guisa de exemplificação da visão euripidiana de Dionísio, vale uma curta digressão


sobre As Bacantes. Nessa peça Eurípedes narra o episódio em que o deus chega até a cidade de
Tebas, disfarçado em sua forma humana, e acaba por encontrar certa resistência do rei Penteu (seu
primo) em aceitar-lhe na cidade. O jovem Dionísio, vingativo, enfeitiça o rei tebano, persuadindo-
o a aceitar hábitos femininos e a vestir-se como tal, iguais aos de suas bacantes (vv. 825-835).

Penteu: Leva-me sem delongas; não quero esperar.


Diôniso: Antes cobre teu corpo com roupas de linho.
Penteu: Como? De homem que sou, transformas-me em mulher?
Diôniso: Matar-te-iam se te vissem como homem.
Penteu: Falaste bem; já te mostraste sábio antes ...
Diôniso: Porque Diôniso me inspira quanto a isto ...
Penteu: Como posso seguir teus ótimos conselhos?
Diôniso: Entremos no palácio; lá te vestirei.
Penteu: Mas, com que trajes? De mulher? Eu coraria!
Diôniso: Já não tens pressa de surpreender as Mênades?
Penteu: Descreve os trajes com que pretendes vestir-me.
Diôniso: Terás uma longa peruca na cabeça.
Penteu: Qual seria a segunda peça do disfarce?
Diôniso: Um manto pregueado; na cabeça, a mitra.
Penteu: Inda haverá peças além dessas três?
Diôniso: Na mão, um tirso; a pele de corça malhada.

Como o ator que se traveste e deixa de ser ele mesmo para ser um outro, para se tornar
personagem, Penteu, ao assemelhar-se a uma bacante, tem sua individualidade dissociada
mediante ação mimética que confunde ilusão e realidade. Dionísio, o protagonista, em toda a peça
instiga a ação que se desenrola ao emular simultaneamente, o figurinista (ao fazer com que Penteu
se vista de bacante), o coreógrafo e o diretor artístico da peça. O deus do teatro se expressa em
duplicidade e subversão da ordem.

Desta forma, voltando ao tema aristofânico fundamental, a projeção do futuro da


cidade é o critério determinante para as respectivas criações das imagens de Dionísio. Reconhece-
se na paródia de Aristófanes uma dimensão estética que se utiliza do místico e do ambíguo para
tratar de problemas objetivos da cultura que são relevantes para a vida pública. Com isso, o poeta
colocou a questão sobre a “função pedagógica da poesia” de forma ainda mais significativa do
que a decisão final do enredo que optou pelo poeta da tradição.
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O que constitui, de facto, a verdadeira qualidade de um poeta? E neste ponto,


surpreendentemente, os dois contendores, apesar de todas as diferenças, estão de acordo;
é o conselho, a capacidade de influenciar positivamente a opinião pública, ou seja, a
missão didáctica da poesia e a utilidade dos poetas como educadores da cidade o que
distingue os melhores, coadjuvado, como qualidade anexa, pelo talento, a excelência e o
toque de génio que garante a superioridade do pensamento e da expressão, que se testa
como o modo por que o conselho impressiona e ganha eficácia. (Silva: 2014, pp. 21-22)

Uma tal função é, simultaneamente, conciliadora e reconciliadora, uma vez que


considera a importância de forças estéticas distintas no pensar sobre a cidade e, ao mesmo tempo,
a dinâmica de reencontro dessas diferenças no espaço artístico. Apesar de preterido por Dionísio
na decisão final, o astucioso Eurípedes foi cogitado como poeta da contenda. Desta forma, a
solução cômica, aparentemente simples com a vitória de Ésquilo, não desconsidera a importância
de Eurípedes naquela realidade cultural, mas reivindica a presença dos elementos estéticos daquele
para o sentimento de unidade da pólis.

3 Temas aristofânicos nos escritos de Nietzsche sobre a tragédia

Na conferência sobre Sócrates e a tragédia, proferida em 1º de fevereiro de 1870, na


Universidade da Basiléia, constam referências expressas à peça com a qual Aristófanes conquistou
o primeiro lugar no concurso das Lenéias de 405 a.C. Nietzsche retoma a crítica aristofânica que
opõe a ordem dialética fragmentária socrática, expressa no plano estético pela figura de Eurípedes
e a ordem mítico-estética totalizante de Sófocles e Ésquilo. “Em torno de Eurípides, por outro
lado, há um brilho quebrado característico dos artistas modernos: seu caráter artístico quase não
grego é resumido o mais brevemente possível sob o conceito do socratismo.” (Nietzsche/ST: 2005,
p. 32).

Eurípides consta, assim, tanto na peça aristofânica quanto nos escritos nietzschianos
em questão como oposição ao mistério na arte, questão também presente em Visão Dionisíaca do
Mundo. “A falta de conhecimento de si no homem é o problema de Sófocles, a falta de
conhecimento sobre os deuses no homem o problema de Ésquilo.” (Nietzsche/VD: 2005, p. 51) O
mistério estético pressupõe o disfarce da máscara (Verkleidung), a mortalidade dos seres humanos
na terra (Erde) e a reconciliação (Versöhnung) entre elementos agonais. O enredo de As Rãs se
faz claro quanto a esses três aspectos: há cenas de disfarce de Dionísio no caminho rumo ao Hades,
bem como momentos de tensão harmônica entre o humano e o divino, o masculino e o feminino,
o cômico e o trágico.

De acordo com Nietzsche, em Sócrates e a tragédia, Eurípedes tira do palco de suas


peças o semideus da tragédia e o substitui pelo homem comum. Ao contrário da tragédia antiga,
onde o palco era ocupado pelo semideus, a figura do poeta torna-se com o autor de As Bacantes
um semideus. A tese nietzschiana é a de que a partir de Eurípides o cotidiano do homem grego
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pôde ser levado ao palco e, como consequência, houve uma decadência dos deuses em favor
daquele mesmo homem comum. Eis então uma apropriação significativa de As Rãs: um poeta que
leva a vida ordinária para o palco e é inimigo dos deuses.

Esse tema é determinante para o diagnóstico que o então professor de filologia faz da
cultura moderna: a conversão do conteúdo mítico em conteúdo prático implica na conversão da
arte em entretenimento dialético. A tragédia perde seu caráter original ao ter um coro de
expectadores e não mais um coro lírico-musical como antigamente. Em um tal sentido, a
representação do cotidiano de certa forma sofrido daquele povo ganha certo significado quando
aquele homem comum observa aquela mesma existência refletida e, de certa forma, vivenciada
pela figura de suas divindades.

Outra questão importante é o fato de que para Nietzsche Eurípedes aparece como o
poeta que seduz o povo, que pensava por si e não pelo povo. Como tal, há um enfraquecimento
político e cultural da pólis, que tende a deixar de ser o objeto da ação cômica, cuja reflexão era
provocada pela experiência estética e religiosa, e passa a ser deslocada para o indivíduo. Nisto
consistiria a decadência: no deslocamento dos problemas da πόλις (pólis) para os problemas do
οἶκος (oikos). Esta preocupação com a cidade também aparece ao final de As Rãs, no verso 1500:
“Parta alegremente, Ésquilo; salve a sua pátria valendo-se de sábias lições, e cure os loucos (eles
são numerosos).” Paralelamente, se, em Aristófanes, a escolha de Ésquilo envolve a percepção do
mundo como totalidade pela experiência plena dos sentidos através de um coro vivo e musical,
cuja totalidade se expressa cultural e politicamente na pólis, em Nietzsche, há a reivindicação de
uma questão semelhante em seu próprio tempo.

Ao criticar a decadência da cultura ocidental na conferência O Drama Musical Grego,


o autor afirma que o homem moderno possui o mau hábito de não “gozar como homem inteiro”233,
isto é, a cultura moderna é composta apenas por partes de artes absolutas, ora arte-visual, ora arte-
auditiva. Essa forma parcial de fruição do mundo tende a suscitar uma compreensão
proporcionalmente limitada e individualizada da vida.

Como homem privado, o homem moderno compartimenta a realidade em torno de si


e de suas questões imediatas. Falta-lhe uma visão ampla que lhe possibilite compreender a
grandeza (Größe) do mundo em que sua pequena forma de vida se encontra com o ideal da
dignidade (Würde). Essa reflexão parte de um tema de Schlegel, que ele cita expressamente em
um esboço para DM e ST no outono de 1869: “Semelhante à francesa, a tragédia de Eurípedes é

233
Nietzsche/DM: 2005, p.18; traduziu-se.
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baseada em um conceito abstrato. Schlegel: “Eles exigiam dignidade e grandeza trágicas,


situações trágicas, paixões e pathos, completamente nuas e puras, sem nenhum acréscimo
estranho”.”234

O tema schlegeriano expressa, assim, um ideal do ideal heleno, uma projeção de uma
ideia sobre a antiga arte grega. Nietzsche se apropria dessa questão, direcionando-a para o seu
projeto de reforma cultural alemã a partir da música. Do ideal ético-estético de grandeza ele
buscava partir para o ideal estético-técnico de harmonia e totalidade.

O efeito da tragédia antiga nunca repousou na tensão, na estimulante incerteza sobre o


que acontecerá no próximo momento, mas, ao contrário, naquelas grandes cenas
carregadas de pathos e amplamente estruturadas, nas quais o caráter musical fundamental
do ditirambo dionisíaco ressoava novamente235.

Eis, portanto, a importância de todo o conjunto que compunha a tragédia grega antiga:
o poeta, o coro, o ator (que utilizava máscaras). A visão de conjunto implicaria na elevação da
representação da imagem cotidiana do homem, mas não somente isto, diria respeito também à
fuga do grego da vida pública, da vida do mercado. A ponderação de Nietzsche é a de que o heleno
ia ao teatro não para fugir do tédio de sua própria existência por alguns instantes, assim como
fazia o alemão moderno.

Essa oposição de parâmetros de realidade é importante neste ponto. A questão


fundamental não é a fuga estética em si, mas de onde se foge: no caso do grego antigo, partia-se
da vida pública, enquanto o alemão moderno fugiria da própria vida privada. Para Nietzsche, a
alma ateniense que era auditora das Dionisíacas Urbanas possuía em si o elemento nascido na
tragédia que posteriormente será por ele nomeado como força ou impulso dionisíaco.

E aqui está o berço do drama. Pois ele não começou com alguém que tivesse se disfarçado
e quisesse enganar os outros: não, começou antes, quando o homem está fora de si e se
crê transformando e encantando. No estado de “estar fora de si”, do êxtase, somente um
passo é ainda necessário: que nós não voltemos a nós mesmos novamente, mas entremos
em um outro ser, de modo que nós nos portemos como encantados.236

Encontram-se, assim, reunidos os elementos ideais e técnicos para que Nietzsche


venha a lançar a ideia de o nascimento da tragédia haver se dado no espírito da música como o
resultado da reconciliação de duas forças artísticas antagônicas: o apolíneo e o dionisíaco. A
oposição e a interação entre essas duas expressões das respectivas divindades gregas, que também

234
KGW/FP-1869,1[100]; p. 45; traduziu-se. Neste fragmento Nietzsche cita a seguinte obra: SCHLEGEL, A.V.
Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur; in: Sämtliche Werke; 3.ed.; v.VI, E. Böcking: Leipzig:1846; lição
XIX; p.61.
235
Nietzsche/ST:2005; p. 31.
236
Nietzsche/DM: 2005; p. 20.
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são impulsos artísticos da natureza para o jovem Nietzsche, teriam dado origem à tragédia e
revelariam a relação dos gregos com a dor e sua perspectiva trágica de mundo.

Cabe perguntar sobre o que confere a força reconciliadora em uma tal tensão. A
resposta a essa questão aproxima-se de uma imagem ctônica dionisíaca: o epíteto juvenil Íaccos,
vinculado à questão dos mistérios em As Rãs de Aristófanes, que será analisada no tópico a seguir.

4 Os Dionísios de Nietzsche: Aristófanes e os mistérios

Na Poética (1449a32-37) Aristóteles conceitua a comédia como uma imitação de tipos


comuns inferiores em relação a um certo erro (ἁμάρτημά; hamartèma) ou sinal de vergonha
(αἶσχος; aischos) que provoca o risível (τὸ γελοῖόν; to geloion) por ser indolor e não destrutivo.
Ao contrário do herói trágico que comete ou está sujeito a um erro (ἁμαρτία; hamartia), o “herói
cômico” já contém o erro em sua personalidade. O hamartèma é uma condição errônea de ser do
personagem risível; a hamartia é uma ação errônea do personagem sublime. Desta forma, “o
risível é o destino do homem comum”237. Aplicados às Rãs, tais conceitos possibilitam interpretar
no artifício com as palavras e situações (dialética) o hamartèma dos poetas de quem se ri, bem
como antecipar já no verso 80 o destino de Eurípedes.

Apesar de divergir de Aristóteles em muitos aspectos, Nietzsche não parece distanciar-


se tão profundamente desses princípios clássicos para pensar sobre o cômico enquanto conceito238.
Com efeito, o fato de que a caracterização e análise de tipos permeiam sua metodologia de
estudos do mundo grego antigo durante a primeira metade da década de 1870 explica a projeção
criativa dos seus estudos sobre a tragédia. Para o projeto wagneriano de reforma da cultura alemã
o enfraquecimento da força mítica e do misticismo estético é uma condição errônea – ἁμάρτημά
– que fragmenta a realidade cultural e assim estabelece uma visão cômica do mundo. Como tal,
um olhar estreito, voltado para o cotidiano e para o presente. O destino dessa perspectiva
culminaria, destarte, no risível, no ridículo – como ocorre com o “πανοῦργος Eurípedes” na peça
de Aristófanes.

237
Westerkamp: 2015, p.128; traduziu-se.
238
Em um dos cursos sobre a História da Literatura Grega, ministrado em 1874, Nietzsche trata analítica e
historicamente da comédia. Tais cursos, contudo, revelam uma aproximação maior com um núcleo de pensamento
posterior ao projeto wagneriano aqui tratado, extrapolando, portanto, os objetivos do presente trabalho. Vale,
entretanto, fazer uma curta menção ao fato de que Nietzsche acolhe grande parte dos conceitos aristotélicos
fundamentais sobre a comédia, citando, brevemente, o primeiro parágrafo do texto, para fins de demonstração: “Não
se sabe, diz Aristóteles na Poética (cap. V), quem introduziu a máscara cômica, quem o [diálogo] prólogo, e quem a
multiplicidade de atores, todas essas coisas que se sabem da tragédia, cuja evolução nos é conhecida. Somente quando
a comédia já tinha todas estas formas, chegaram até nós os nomes dos poetas famosos. Portanto, a comédia já está
pronta em tais aspectos quando se começa a prestar atenção aos seus autores.” (Die Komödie, § 10; pp. 152-153;
traduziu-se).
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De forma distinta, a proposta de desenvolvimento de uma visão trágica coaduna-se


com horizontes voltados para o passado e para o futuro, a saber, para temporalidades distantes
que, juntamente ao mito, expandiriam e unificariam a realidade humana. Em um confronto de
reconhecimento do valor do hierático e do destino em face de fenômenos tradicionais no âmbito
da cultura, a peça de Aristófanes realiza Ésquilo como poeta especial, uma vez que os efeitos de
silêncio em seus personagens e enredos conferem totalidade ao real e sentimento de pertinência
dos cidadãos à cidade.

O jovem Nietzsche e seu amigo Erwin Rhode parecem trilhar a partir desse mesmo
ponto aristofânico mítico – Rohde rumo aos mistérios de Deméter de Elêusis, Nietzsche em
direção aos mistérios dionisíacos239. No verão de 1872, no contexto da “polêmica sobre O
nascimento da tragédia”, Nietzsche escreve ao amigo:

Aristófanes fala claramente sobre “música estimulante”: (...) Sobre a posição de Sócrates
diante da arte trágica há uma passagem muito peculiar em As Rãs, de Aristófanes, 1491:
“Convém não se sentar ao lado de Sócrates a conversar e desdenhar das artes das musas,
esquecendo-se as habilidades mais vitais da arte trágica” etc. – Tu sabes que quando
pensei em “Dionísio entre as musas”, pensei na aquarela de Genelli pendurada em
Tribschen. Diz novamente aos filólogos que meu Sócrates tem mãos e pés240: sinto o
contraste da minha descrição tão fortemente em oposição aos outros que todos parecem
tão mortos e deteriorados para mim. – A Moira como justiça eterna nas mãos de Zeus é
a representação fundamentalmente esquiliana. A relação de Ésquilo com os mistérios
também é sugerida por Aristófanes.241

Além da tradução do trecho da carta de Nietzsche, tornou-se significativo também


traduzir a passagem 1491-1495 de As Rãs por ele citada: χαρίεν οὖν μὴ Σωκράτει | παρακαθήμενον
λαλεῖν | ἀποβαλόντα μουσικὴν | τά τε μέγιστα παραλιπόντα τῆς τραγῳδικῆς τέχνης. É que, se é
importante a coerência com o idioma de Aristófanes, também o é a coesão com a referência que
o filósofo faz às musas na aquarela de Gennelli, elemento mítico fundamental para os objetivos
do presente trabalho. Como o substantivo μουσικὴ pode denotar arte ou qualquer das artes das
nove musas, é ampla a possibilidade de traduções242.

239
Sobre essa questão, vale observar a consideração filológica de Cancik (1999: pp. 44-45): “Karl Otfried Müller
(1797-1840) admite que a tragédia possa surgir “de um culto” de Dionísio. Mas nem Müller, nem J. Bernays, nem J.
L. Klein ou outros precursores de Nietzsche expressamente nomeiam “os mistérios” como o culto específico do qual
a tragédia teria surgido. Somente Nietzsche (1869/70) e, ao mesmo tempo, seu amigo de faculdade Erwin Rohde
teriam voltado a derivação dos mistérios de Dionísio e de Deméter de Elêusis, respectivamente para os centros de
suas teorias.”
240
A expressão “ter mão e pé” (Hand und Fuß haben) remonta épocas em que se punia crimes com amputações de
membros. Seu valor simbólico consistia na realização das tarefas diárias de manutenção da vida. Quem era privado
dessas funções por esse motivo não era mais um sujeito de pleno direito. Portanto, algo que tem uma mão e um pé é
precisamente como deveria ser, não lhe faltando nada essencial. (Richter: 1893, p. 58.)
241
Carta a Erwin Rohde: 16/07/1872: 239, KSB 1.25; traduziu-se.
242
Deve-se ressaltar que a edição bilíngue alemão-grego de 1856, com introdução e comentários de Herbert Pernice,
também segue nesse sentido: “Und verschmäht die Musenkunst”. Essa edição contém referência honrosa ao Prof.
Carl Steinhart, professor de Schulpforta, com quem Nietzsche convivera. Para enriquecimento da reflexão, constam
ainda as seguintes traduções consultadas: 1 – língua portuguesa: a) “desdenhando a música e as partes mais
importantes da arte trágica” (Kury: 2004, p. 231); b) “à margem da arte” (Silva, 2014, p. 157); c) “descartando a arte”
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A escolha pela segunda acepção tem o intuito de, além de conferir realce às nove
musas – dada a convocação expressa que o coro faz a elas entre os versos 875 e 884 – destacar a
compreensão ampla da poesia teatral grega. Enquanto parte de celebrações dionisíacas, o teatro é
uma arte múltipla e viva onde a visão de conjunto é decisiva tanto da perspectiva do palco em
direção ao público (atores) quanto da plateia em direção ao palco (público). Esse tema é muito
caro ao projeto de Nietzsche de então pela relação das artes das musas com a hipótese de
nascimento da tragédia – e da possibilidade do seu renascimento a partir da música alemã.
Com efeito, a posição central de Dionísio cercado de musas do quadro de Genelli em
Tribschen revela a unidade que (re-)concilia diferentes formas e impulsos estéticos, a
ambiguidade dinâmica das personas assumidas como disfarce e o mistério da dança. E que essa
seja uma memória dos domínios do casal Wagner, ressalta o contexto do projeto wagneriano
supramencionado de valorização do mito, em meio ao qual Nietzsche busca um paralelo com
Aristófanes ao valorizar a “representação fundamental” de Ésquilo.
É nesse sentido que a visão trágica esquiliana confere unidade à realidade pela ideia
de destino e vitalidade musical na poesia, opondo-se à posição socrática afastada da arte. Por isso
o tipo socrático delineado por Nietzsche “tem mão e pé” (Hand und Fuß haben), ou seja, é um
conceito completo da forma de vida dialética por excelência. No tópico anterior restou evidente a
relação realista de Eurípedes com os deuses, ao passo que Ésquilo, nascido em Elêusis, permanece
submisso às divindades. No excerto citado, concernente à relação de Ésquilo com os mistérios
sugerida por Aristófanes, Nietzsche se refere à passagem entre os versos 871 e 889, quando antes
de iniciar o combate, Dionísio deseja que sejam feitas orações aos deuses suplicando iluminação:
Diôniso: Vamos começar; tragam incenso e brasas; antes do início do combate quero
suplicar aos deuses que iluminem meu julgamento. (Dirigindo-se ao coro) Vocês aí,
cantem um hino em honra das Musas.
Coro: Castas filhas de Zeus, nove Musas cujos olhares observam os sutis fabricantes de
discursos, os fecundos artesãos de pensamentos, quando o amor da disputa os leva às vias
de fato e às armas de seus artifícios mais delicados, e com ímpetos estudados e sinuosos
se atacam verbalmente! Venham contemplar o poder de duas vozes eloqüentes! Venham
ajudá-los e inspirem seus versos! Esta luta de gênios vai começar.
Diôniso (dirigindo-se a Eurípides e Ésquilo): Vocês também, façam suas invocações
antes de recitar seus versos.
Ésquilo (queimando incenso): Deméter! Você que formou meu coração, torne-me digno
de seus mistérios!
Diôniso (dirigindo-se a Eurípides): Queime incenso você também!
Eurípides: Muito obrigado; tenho de invocar outros deuses.

Confirmada a fundamentação do filólogo-filósofo, cabe endossá-la com uma


referência anterior da peça, em que resta evidente que Aristófanes artisticamente vinculou motivos
das festas dionisíacas (Lenéias, Antestérias e das Grandes Dionisíacas) e elementos que remontam

(Soares: 2014, p. 207); d) “e esquecendo das Musas” (Andrade: 2014, p. 291); 2 – língua inglesa: a) “discarding
artistry” (Sommerstein: 2002, p. 167); b) “cast the Muses’ work aside”(Johnston: 2015; p. 167); 3 – língua espanhola:
“rechazar las artes de la Musa” (Fernández e Schvarz: 2011, p. 241).
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aos mistérios de Elêusis no conteúdo da sua obra. A partir do verso 316 de As Rãs, a imagem
dionisíaca de Íaccos é evocada no coro dos iniciados devotos de Deméter. O epíteto Dionísio
Íaccos refere-se ao espírito que projetava a alma coletiva para a procissão dionisíaca. Íaccos é “o
deus jovial” (v. 395), “inventor da melodia mais doce do festejo” (vv. 397-398), o “deus que
dança”, “amigo dos coros” (vv. 400-410). Ele é o deus dançarino que rejuvenesce o mundo com
vinho novo e reconcilia a terra para um novo ciclo.

Para além dos evidentes versos evocados no coro, a pesquisa aristofânica


contemporânea confirma essa mistura criativa, além de ser reconhecida no conteúdo da peça de
Aristófanes, também se dá na estrutura da sua paródia. Suárez de la Torre considera que “(...) as
características formais que de modo tradicional apresentava a comédia em sua articulação (...)”
(1997, p. 201; traduziu-se) misturam-se com a sequência dos acontecimentos dos festivais
eleusinos, aí havendo, portanto, uma combinação estrutural de elementos estéticos com elementos
místicos e festivos nessa peça de Aristófanes.
O fato de que Nietzsche busca fundamento em Aristófanes faz com que ele assuma
objetivamente a complexidade de imagens dionisíacas com a qual o comediógrafo estabeleceu a
totalidade que aproxima motivos dionisíacos de elementos eleusinos. Desse ponto de partida ele
desenvolveu sua doutrina dos mistérios em seus textos sobre a tragédia. Em um escrito
preparatório para tais trabalhos consta a incipiente hipótese, em diálogo crítico com a tese
aristotélica243, de uma derivação de rituais religiosos dos mistérios para a experiência estética do
teatro propriamente dita:
É muito significativa a antiga denominação da comédia como τρυγωδία, “canto do
mosto”: isto me direciona rumo a uma nova derivação do termo τραγωδία, a saber “canto
do vinagre”. τάργανον significa “vinagre”, de modo que ταργωδία, se transforma em
τραγωδία. Então a origem adviria do drama satírico: primordialíssimo! Canções
antiquíssimas da colheita, uma doce e exuberante como o mosto, outra azeda e
adstringente como o vinagre. Isto são apenas imagens, é absurdo que o mosto fosse o
prêmio do vencedor. (...) Não é o nascimento da tragédia a partir do ditirambo uma
conclusão errada do efetivo desenvolvimento do drama a partir do ditirambo na época de
Timóteo, etc.? Talvez daí proceda a etimologia errada τράγων ᾠδή? É importante o
impulso que tiveram de dar aos mistérios. A ação sagrada com efeitos teatrais em espaços
fechados, com luz e efeitos luminosos. O drama provavelmente teria surgido como um
mistério público, como uma reação contra o sigilo dos sacerdotes, como proteção da
democracia em face do poder supremo. Penso que os tiranos introduziram esses
“mistérios públicos” em oposição aos sacerdotes dos mistérios. Sabemos por Pisístrato
que ele beneficiou Téspis.244

Ora, como demonstra Cancik (1999, pp. 36), ao partir dos mistérios dionisíacos
deriva-se a ideia totalizante de que a apresentação de diferentes formas míticas representa os
sofrimentos de Dionísio e cria-se possibilidade para um possível renascimento (moderno) da

243
Consta na Poética (1449a9-12): “Tendo surgido, portanto, no início, da improvisação - tanto a tragédia como a
comédia, uma a partir dos autores de ditirambos, outra dos autores de cantos fálicos, (...)”.
244
Nachlass/FP-1869,1[67], KGW III-3.26-27; traduziu-se.
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tragédia no espírito da música alemã wagneriana. Isso explica o tom pouco analítico do livro de
Nietzsche de 1872 que tanto incomodou o jovem Wilamowitz. Com efeito, os escritos sobre a
tragédia ganham autenticidade metodológica com uma escrita mística, na medida em que
confirmam como modus operandi os objetivos do projeto: encantar o leitor pela estética e pela
mística de maneira a despertar o seu interesse em uma produção da cultura em tais termos.
Segundo a visão hodierna, como fonte estética e histórica, Aristófanes pode oferecer
ao leitor sua perspectiva criativa das transformações culturais da pólis de então e sugere as
condições fáticas a partir e sobre as quais lança sua produção teatral. Mas, como ponderava
Vischer245 (1840, p.3), fontes estéticas podem ser passíveis induções a erros, dado o seu caráter
simbólico: “(...) escritores mais novos parecem ter interpretado as piadas de Aristófanes
literalmente. Portanto, vale a pena investigar como a comédia antiga deve realmente ser usada
como fonte histórica.” Nietzsche, contudo, está convencido da fonte aristofânica em sua
metodologia.

“Contra a letargia do pensamento e do sentimento da filologia (...)”246, Nietzsche


reconhece que o enfrentamento de uma pesquisa histórica conta com margem grande de incerteza
em razão das interpretações que transmitem dados entre gerações. E, em meio a esse processo,
sente-se também parte da construção de formas interpretativas a serem registradas no mundo. Por
isso, a questão socrática que subjaz a peça aristofânica sob análise precisa ser repensada em favor
da forma dos discursos. Como homem do século XIX, o filósofo valoriza o fazer humano em seu
como. Um saldo positivo do fracassado projeto de O Nascimento da Tragédia é a corroboração de
uma ideia latente desde meados da década de 1860: a de que tudo que se diz demanda uma maneira
específica de ser dito, porque tudo que fala tem de falar como aquilo que é. Que essa ideia venha
a fundar seus métodos e variedade de estilos nos trabalhos posteriores é algo previsto antes dos
escritos sobre a tragédia. Mas tal ideia, como demonstrado acima, coincide artisticamente com
um tema aristofânico.

REFERÊNCIAS

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245
“Foi Wilhelm Vischer-Bilfinger quem promoveu vigorosamente e foi responsável pela nomeação do jovem
Nietzsche para a Basileia.” (Pernet: 2014, p. 131; traduziu-se).
246
Nachlass/FP 1869,3[7], KGW III-3.60; traduziu-se.
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<http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/270757>. Acesso em: 24 ago. 2018.
SOMMERSTEIN, A. H. Greek drama and dramatists. Routledge: London and New York,
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SUÁREZ DE LA TORRE, E. Las Ranas de Aristófanes y la religión de los atenienses.
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coord. por Antonio López Eire. Salamanca: Asociación Española de Estudios sobre Lengua,
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MACHADO, R. (Org.) Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia / textos
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MALHADAS, D. As dionisíacas urbanas e as representações teatrais em Atenas. in:
Ensaios de Literatura e Filologia; v. 4; pp. 67-79. 31.12.1983. Disponível em
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VISCHER, Wilhelm. Über die Benutzung der alten Komödie als geschichtliche Quelle.
Einladungsschrift zu der auf Montag den 4. Mai festgesetzten Promotionsfeier des Pädagogiums
und zur Eröffnung des Jahreskurses 1840. Basel: Universitätsbuchdrückerrei, 1840.
WESTERKAMP, Dirk. Ikonische Prägnanz. Paderborn: Wilhelm Fink, 2015.
Página 1066 de 2230

BREVE PERCURSO DO CONCEITO DE FILOSOFIA DA PSICANÁLISE NO BRASIL

BRIEF COURSE OF THE PHILOSOPHY CONCEPT OF PSYCHOANALYSIS IN


BRAZIL

Rafaela Cristina Barros Gomes (graduanda em filosofia – UFMA)


Orientador: Flávio Luiz Castro Freitas (Doutor em Filosofia
– UFMA/PGCULT)

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: O presente texto visa fazer um aparato histórico do surgimento do conceito de Filosofia
da Psicanálise no Brasil a partir das várias abordagens que lhe compõem desde a sua primeira
aparição no texto “Filosofia da Psicanálise” livro de 1991, organização de Bento Prado Jr e Luiz
Roberto Monzani. Prado Jr apresenta a filosofia da psicanálise como uma mutualidade entre
saberes filosóficos e psicanalíticos, para o autor se trata de uma colaboração entre as disciplinas e
não de uma submissão de uma em relação a outra. No texto de Monzani 2008, “O que é Filosofia
da Psicanalise?” o autor segue a mesma abordagem de colaboração entre esses saberes, essa
disciplina é apresentada não como um método de investigação da filosofia em relação à
Psicanálise, mas sim, de um conjunto de abordagens teóricas que se entrelaçam e englobam um
estudo aprofundado sobre o conhecimento psicanalítico que traça um histórico dos saberes e
analisa os procedimentos e encadeamentos discursivos e os próprios critérios de verdade da
disciplina onde a filosofia coloca questões à Psicanálise e vice-versa. Trata-se de uma
epistemologia que analisa os próprios fundamentos de verdade da psicanálise e não de critérios
impostos pela filosofia. Faz-se uma leitura interna do discurso psicanalítico, analisando sua
construção, seus conflitos e contradições. Na genealogia da psicanálise, trata-se de abordar
conceitos chaves que determinaram e constituíram determinado discurso, não tendo importância
seu valor de verdade. O texto de Simanke 2010, seguindo a mesma abordagem “Psicanálise e
Filosofia: um diálogo possível?” resume essa relação pelo filosofar sobre a Psicanálise, com ela e
a partir dela, que estuda e se interroga sobre os pressupostos dos conceitos que fundamentam a
psicanálise. No texto de Ana Carolina Soria 2016, “Há uma relação entre filosofia e psicanálise?”
relata um pouco sobre essa forma colaborativa entre as duas disciplinas, demonstrando que as
ideias que fundamentam a psicanálise possuem algo de filosófico na construção e fundamentação
de conceitos e desses conceitos surgem questões filosóficas.
Palavras-chave: Filosofia. Psicanálise. Relação. Colaboração.

Abstract: The present text aims there do a historical pomp of the appearance of the concept of
Philosophy of the Psychoanalysis in Brazil from several approaches that compose him from his
first apparition in the text “Philosophy of the Psychoanalysis” I release of 1991, organization of
Benedictine monk Prado Jr and Luiz Roberto Monzani. Meadow Jr presents the philosophy of the
psychoanalysis as a mutuality between knowing philosophical and psychoanalytic, for the author
it is the question of a collaboration between the disciplines and not of a submission of one
regarding other one. In the text of Monzani 2008, “what is a Philosophy of the Psychoanalysis?”
the author follows the same collaboration approach between knowing those, this discipline is
presented I do not eat a method of investigation of the philosophy regarding the Psychoanalysis,
but yes, of a set of theoretical approaches that are intertwined and include a study deepened on the
psychoanalytic knowledge that draws a historical one of to know and analyses the proceedings
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and discursive chains and the criteria themselves of truth of the discipline where the philosophy
puts questions to the Psychoanalysis and vice-versa. It is the question of an epistemologia that
analyses the bases themselves of truth of the psychoanalysis and not of criteria imposed by the
philosophy. There is done an internal reading of the psychoanalytic speech, analysing his
construction, his conflicts and contradictions. In the genealogy of the psychoanalysis, it is the
question of boarding concepts keys that they determined and constituted determined speech, when
his real value is not important. The text of Simanke 2010, following the same approach
“Psychoanalysis and Philosophy: a possible dialog?” it summarizes this relation for
philosophizing on the Psychoanalysis, with her and from her, which studies and if is questioned
on the presuppositions of the concepts that substantiate the psychoanalysis. In the text of Ana
Carolina Soria 2016, “Is There a relation between philosophy and psychoanalysis?” it reports a
little on this form colaborativa between two disciplines, demonstrating that the ideas that
substantiate the psychoanalysis have something of philosophical one in the construction and
fundamentação of concepts and of these concepts philosophical questions appear.
keywords: Philosophy. Psychoanalysis. Relation. Collaboration.

O presente texto visa realizar um breve e modesto aparato histórico-cronológico do


surgimento do conceito de Filosofia da Psicanálise no Brasil a partir das várias abordagens que
lhe compõem, apresentando desde a sua primeira aparição com o texto “Filosofia da Psicanálise”
livro de 1991, organização de Bento Prado Jr e do professor Luiz Roberto Monzani.

Na apresentação do livro, o professor Prado Jr apresenta a filosofia da psicanálise como


uma mutualidade entre os saberes filosóficos e psicanalíticos, para o autor se trata de uma
colaboração entre as disciplinas e não de uma submissão de uma em relação a outra. A partir desse
texto abre-se um leque de discussões acerca do conceito da disciplina.

No texto de Monzani, 2009, intitulado “O que é Filosofia da Psicanalise?” onde o autor


segue a mesma abordagem de mutualidade ou colaboração entre esses saberes, essa disciplina é
apresentada não como um método de investigação da filosofia em relação à Psicanálise, mas sim,
de um conjunto de abordagens teóricas que se entrelaçam e englobam um estudo aprofundado
sobre o conhecimento psicanalítico.

Quando se fala em Filosofia da Psicanálise, fala-se de uma disciplina de colaboração


mútua entre a Filosofia e a Psicanálise que traça um histórico das ciências ou saberes e analisa os
procedimentos e encadeamentos discursivos e os próprios critérios de verdade da disciplina
(Psicanálise) onde a filosofia coloca questões à Psicanálise e vice-versa.

Cabe salientar uma epistemologia da psicanálise que se diferencia das demais ciências,
justamente porque a filosofia da psicanálise não deve agir como um tribunal que impõe critérios
a ser seguido, mas sim, analisar a partir dos próprios fundamentos de verdade postos pela
disciplina. Faz-se uma leitura interna do discurso psicanalítico, analisando sua construção, seus
conflitos e contradições. Esse tipo de leitura investiga a ideia de verdade que brotam dos próprios
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critérios internos da disciplina psicanalítica, ou seja, a psicanálise não é objeto da filosofia, mas
há uma contribuição de sua parte para com ela.

Já no texto do professor Simanke, 2010, seguindo a mesma abordagem colaborativa entre


os saberes psicanalíticos e filosóficos, intitulado “O que a filosofia da psicanálise é e o que ela
não é”, onde resume essa relação pelo filosofar sobre a Psicanálise, com ela e a partir dela, que
estuda e se interroga sobre os pressupostos dos conceitos que fundamentam a psicanálise. No texto
da professora Ana Carolina Soria, 2016, intitulado “Há uma relação entre filosofia e psicanalise?”
relata um pouco sobre essa forma colaborativa entre as duas disciplinas, demonstrando que as
ideias que fundamentam a psicanálise possuem algo de filosófico na construção e fundamentação
de conceitos e desses conceitos surgem questões filosóficas e, por fim, disso resulta uma
colaboração entre as disciplinas.

No texto de Monzani “o que é filosofia da psicanálise?” o autor faz uma breve menção e
distinção entre o que conhecemos como uma filosofia da ciência e a filosofia da psicanalise.
Filosofia da ciência aparece aqui como uma investigação metodológica que procura saber se os
resultados de uma determinada disciplina estão ou não de acordo com um determinado critério de
verdade, frequentemente, “clássico.” Para o autor esse tipo de filosofia ou epistemologia é válida,
porem insuficiente, principalmente quando se fala em Psicanálise.

Na genealogia da psicanalise, posta pelo autor no primeiro grupo de abordagem da


filosofia com a psicanalise, trata-se de abordar conceitos chaves que determinaram e constituíram
determinado discurso, não tendo importância, nesse caso, se é verdadeiro ou falso, ou seja, a
importância está nos conceitos fundantes de tal discurso e não em sua característica de verdade.
A filosofia da psicanálise contempla, a partir de uma relação de colaboração entre as disciplinas,
as principais modalidades nessa relação que é o filosofar sobre a Psicanálise, com ela e a partir
dela.

Em segundo momento, trata-se a psicanalise como um corpus de textos buscando os


conceitos gênesis que influenciaram ou fundaram a disciplina ou busca-se olhar para ela como
uma rede discursiva, isto é, faz-se uma leitura interna do texto, levando em conta as suas
significações buscando decifrar encadeamentos, embates e contradições, pode-se também
trabalhar uma epistemologia da psicanalise que abandona o ideal unitário de ciência, ou seja, não
utiliza do tribunal filosófico que impõe critérios de verdades para todas as ciências, mas sim, parte
de critérios internos da própria teoria psicanalítica. Esse tipo de epistemologia não se preocupa
em demarcar se o campo psicanalítico é científico ou não, mas sim em sua função de nos fazer
refletir nossos pressupostos mais entranhados.
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Simanke em seu texto “O que a filosofia da psicanalise é e o que ela não é” tenta demarcar
a partir de um ponto de vista histórico em relação a filosofia da ciência e como esta se constituiu
passando pela própria filosofia da biologia e demais para demonstrar a partir de uma epistemologia
negativa aquilo que ela não é.

O mesmo mostra em seu aparato histórico como partiu-se do campo de uma epistemologia
da psicanalise para falar em uma filosofia da psicanalise em uma organização do conceito por
Bento Prado Jr, a importância disso se dá na desmistificação de como seria essa relação, visto que
a epistemologia sempre buscou demarcar verdades e falsidades baseada em um estruturalismo
filosófico que buscava demarcar o que era ou não ciência partindo de uma univocidade de critérios
de verdade, e quando falamos em filosofia da psicanalise estamos falando em um diálogo entre
esses saberes, visto que a disciplina criada por Freud não pode ocupar o lugar de subordinada da
filosofia.

Há três perspectivas que constituem o conceito de Filosofia da psicanálise:

1 – Filosofar sobre a psicanálise, tendo esta como objeto de interrogação. Trata-se de uma
investigação interna tanto do campo de pesquisa quanto das teorias psicanalíticas; entender os
desdobramentos e contribuições das obras dos grandes teóricos para a disciplina. Um filosofar
sobre ela, isto é, olhar para a psicanálise como objeto de interrogação filosófica, não como
subordinação, mas sim pensando em um estudo interno de suas teorias buscando entender seus
desenvolvimentos e implicações. Esse primeiro momento segue um movimento que vai da
filosofia para a psicanálise.

2 - Um filosofar com a psicanálise, partindo do ponto de vista de uma convergência entre


os saberes. Essa interação poderia se dar de duas maneiras – compartilhamento de um mesmo
conjunto de problemas, isto é, questões de interesse filosófico e psicanalítico, outra forma seria
pela aproximação entre a psicanalise e as tradições filosóficas como estética, politica, teoria social,
teoria da ação e ética, hermenêutica, a fenomenologia com questões sobre percepção, consciência
e comportamento.

A convergência entre psicanalise e filosofia, um filosofar com a psicanalise, sendo esta, de


contribuição mútua, colaborativa, visto que a psicanalise englobou questões de interesse da
reflexão filosófica, essa colaboração se dá pelo compartilhamento de questões e interesses como
a questão da consciência, percepção e comportamento, natureza mental relação mente e corpo e
dentre outros.

3 – Filosofar a partir da psicanálise, a psicanálise como campo indutor de problemas para


a filosofia. Um diálogo onde questões psicanalíticas podem muito bem ser assumidas pela filosofia
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inaugurando novas linhas de pensamento. Essa modalidade é um movimento que vai da


psicanálise para a filosofia. Trata-se de um diálogo onde as questões psicanalíticas podem ser
abordadas pela filosofia, inaugurando novas linhas de pensamento. Disciplina que estuda e se
interroga sobre os pressupostos dos conceitos que fundamentam a psicanálise. As ideias que
fundamentam a psicanálise possuem algo de filosófico na construção e fundamentação de
conceitos e desses conceitos surgem questões filosóficas e, por fim, disso resulta uma colaboração
entre as disciplinas.

Ana Carolina Soliva Soria em seu texto “Há uma relação entre filosofia e psicanalise?”
apresenta uma abordagem sobre a teoria freudiana onde conceitos fundamentais surgiram de
pressupostos e a partir de conceitos filosóficos, além do compartilhamento dos problemas
existenciais do mundo, Freud trabalha com uma ideia de homem, claro essa ideia é o homem real,
mas baseia toda sua teoria partindo de um ponto de vista do homem. Parte-se também do
compartilhamento de problemáticas e de um viés onde a filosofia põe questões à psicanálise e
vice-versa.

Abaixo segue um quadro comparativo que busca mapear alguns desdobramentos do


desenvolvimento da Filosofia da Psicanálise no Brasil:

Autor Título do texto Conceito de Filosofia da Psicanálise

É uma disciplina de colaboração mútua entre a Filosofia e a


Psicanálise que traça um histórico das ciências ou saberes e
O que é filosofia da analisa os procedimentos e encadeamentos discursivos e os
Luiz Roberto Monzani Psicanálise próprios critérios de verdade da disciplina (Psicanálise) onde
a filosofia coloca questões à Psicanálise e vice-versa. Cabe
salientar uma epistemologia da psicanálise que se diferencia
das demais ciências, justamente porque a filosofia da
psicanálise não deve agir como um tribunal que impõe
critérios a ser seguido, mas sim, partir dos próprios
fundamentos de verdade postos pela própria disciplina. Essa
forma de epistemologia, segundo o autor, é a mais
interessante forma de trabalho da filosofia com a psicanálise,
visto que, faz-se uma leitura interna do discurso
psicanalítico, analisando sua construção, seus conflitos e
contradições. Esse tipo de leitura investiga a ideia de
verdade que brotam dos próprios critérios internos da
disciplina psicanalítica, ou seja, a psicanálise não é objeto da
filosofia, mas há uma contribuição de sua parte para com
ela. Na genealogia da psicanalise, posta pelo autor no
primeiro grupo de abordagem da filosofia com a psicanalise,
trata-se de abordar conceitos chaves que determinaram e
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constituíram determinado discurso, não tendo importância,


nesse caso, se é verdadeiro ou falso, ou seja, a importância
está nos conceitos fundantes de tal discurso e não em sua
característica de verdade.

Disciplina que contempla, a partir de uma relação de


colaboração entre as disciplinas, as principais modalidades
Richard Theisen O que é a Filosofia da nessa relação que é o filosofar sobre a Psicanálise, com ela e
Simanke Psicanálise e o que ela a partir dela. Há três perspectivas que constituem o conceito
não é de Filosofia da psicanálise: 1 – filosofar com a psicanálise,
tendo esta como objeto de interrogação. Trata-se de uma
análise interna tanto do campo de pesquisa quanto das
teorias psicanalíticas; entender os desdobramentos e
contribuições das obras dos grandes teóricos para a
disciplina.
2 – a convergência entre psicanalise e filosofia, um filosofar
com a psicanalise, sendo esta, de contribuição mútua,
colaborativa, visto que a psicanalise englobou questões de
interesse da reflexão filosófica, essa colaboração se dá pelo
compartilhamento de questões e interesses como a questão
da consciência, percepção e comportamento, natureza
mental relação mente e corpo e dentre outros.
3 – Psicanálise como campo indutor de problemas para a
filosofia, isto é, a psicanálise levantando questões para a
filosofia, partindo de um filosofar a partir da psicanálise.
Trata-se de um diálogo onde as questões psicanalíticas
podem ser abordadas pela filosofia, inaugurando novas
linhas de pensamento.
Disciplina que estuda e se interroga sobre os pressupostos
dos conceitos que fundamentam a psicanálise. As ideias que
Ana Carolina Soliva fundamentam a psicanálise possuem algo de filosófico na
Soria Há uma relação entre construção e fundamentação de conceitos e desses
Filosofia e Psicanálise? conceitos surgem questões filosóficas e, por fim, disso
resulta uma colaboração entre as disciplinas.

(Autores: Rafaela Cristina Barros Gomes e Flávio Luiz de Castro Freitas)

REFERENCIAS

Monzani, L. (2009). O QUE É FILOSOFIA DA PSICANÁLISE?. Philósophos - Revista De


Filosofia, 13(2), 11 - 19. https://doi.org/10.5216/phi.v13i2.5735

Simanke, R. T. (2010). O que a filosofia da psicanálise é e o que ela não é. ETD - Educação
Temática Digital, 11, 189-214. https://doi.org/10.20396/etd.v11iesp.906

Sória, A. C. (2016). Há uma relação entre Filosofia e Psicanálise?. JORNAL de PSICANÁLISE


49 (91), 159-168. 2016. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v49n91/v49n91a14.pdf
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COMO AS PAIXÕES DERIVAM DOS TIPOS DE CONHECIMENTO PARA


ESPINOSA NO LIVRO O BREVE TRATADO DE DEUS, DO HOMEM E DO SEU BEM
ESTAR

HOW PASSIONS DERVE FROM THE KINDS OF KNOWLEDGE IN THE BOOK THE
SHORT TREATISE ON GOD, MAN & HIS WELL-BEING

Isnara Maria Frazão Pestana


Graduação em Filosofia Licenciatura – UFMA
Prof. Dr. Flávio Luiz de Castro Freitas –
Orientador/ Professor de Filosofia do Campus de Pinheiro e do PGcult/UFMA.

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia


Resumo: O objetivo do presente resumo consiste em apresentar a relação entre a teoria do
conhecimento e teoria das paixões no Breve Tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar, que
se trata da primeira obra do filósofo Holandês Baruch de Spinoza. Para o aprofundamento desta
apresentação, o método utilizado foi a análise do capitulo 2 e do capítulo 3 da “segunda parte: do
homem e de quanto lhe pertence” do Breve Tratado. Estes sendo os primeiros resultados da
presente pesquisa que trata das continuidades e rupturas acerca do tema da afetividade em
Espinosa, sobretudo esta pesquisa consiste de forma geral no itinerário que existe entre O Breve
Tratado e o livro III da Ética de Espinosa, que trata a cerca da origem e da natureza das paixões.
O Breve Tratado possui um aspecto pedagógico que não se encontra nas demais obras de Espinosa,
esta obra é disposta em capítulos, e merece ser lida e compreendida como autêntica filosofia
Espinosana. Em suma, trataremos aqui da relação entre as paixões e os tipos de conhecimento no
Breve tratado de Espinosa, e principalmente como essas paixões derivam através do nosso modo
de conhecer. Nesse sentido, Espinosa demonstra como cada paixão deriva de cada tipo de
conhecimento, podendo corresponder ou não a cada um deles. Com isto percebemos que a teoria
das paixões de Espinosa tem como base sua teoria do conhecimento.
Palavras-chave: Baruch de Spinoza. Breve Tratado. Teoria do Conhecimento. Teoria das
Paixões.

Abstract: The aim of this abstract consist in to present the relationship between the theory of
knowledge and the theory of passions in the Short Treatise on God, Man and His well-being,
which is the first work of Dutch philosopher Baruch de Spinoza. To the deepening this
presentation, the method used was the analysis of chapter 2 and chapter 3 of the “second part: of
man and how much belongs to him” of the Short Treatise. These being the first results of this
research, which deals with the continuities and ruptures on the affectivity’s theme in Spinoza,
especially this research consists, in general, in the itinerary that exists between The Short Treatise
and the book III of the Spinoza’s Ethics, which deals with the origin and nature of the passions.
The Short Treatise has a pedagogical aspect that is not found in the other works of Spinoza, this
work is arranged in chapters, and deserves to be read and understood as authentic Spinoza’s
philosophy. In short, we will deal here with the relationship between the passions and the kinds
of knowledge in Spinoza's Brief Treatise, and especially how these passions derive through our
way of knowing. In this sense, Spinoza demonstrates how each passion derives from each kind of
knowledge, and may or may not correspond to each of them. With this we realize that Spinoza's
theory of passions is based on his theory of knowledge.
Keywords: Baruch of Spinoza. Short Treatise. Knowledge theory. Passion theory.

.
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1. INTRODUÇÃO

Buscaremos investigar a respeito das paixões na obra O Breve Tratado de Deus, do homem e
do seu bem-estar, que é a primeira obra do filósofo holandês Baruch de Spinoza, o nosso interesse em
tratar do tema da afetividade nesta obra consiste na diferença com a qual ele é abordado na obra prima
de Espinosa que é a Ética demonstrada à maneira dos geômetras. A filósofa Marilena Chauí afirma no
prefácio do Breve Tratado que o núcleo das duas obras é o mesmo, entretanto existe algumas diferenças
entre as obras, a Chauí aponta cinco diferenças, gostaríamos de destacar uma para demonstrar a distinção
das obras em relação ao tema da afetividade, a diferença é a de uma nova organização do conjunto das
paixões, na Ética nos temos a tríade alegria, tristeza e desejo, já no Breve Tratado o Espinosa trabalha
as paixões a partir da demonstração, selecionando quatro paixões do quatro das seis paixões primitivas
listadas no texto As paixões da alma de Descartes. Portanto, nosso interesse reside em compreender
como as paixões estão caracterizadas na primeira obra do filósofo, para então compreender como as
paixões no Breve Tratado contribuem para nós identificarmos as continuidades e rupturas a certa do
tema da afetividade entre o Breve Tratado e a Ética.
Abordaremos especificamente os capítulos 2 e 3 da "segunda parte: do homem e de quanto lhe
pertence" onde Espinosa trata das coisas que particulares e limitadas que concernem ao homem, ou seja,
em que o homem consiste e o que se segue disso, pois tendo abordado Deus, o que é universal e infinito
na primeira parte da obra, ele então apresenta e caracteriza as origens das paixões na segunda parte, esta
caracterização consiste na relação entre teoria das paixões e teoria do conhecimento.
Para compreendermos como se caracterizam as paixões para Espinosa em sua primeira obra,
Investigaremos primeiramente a sua teoria do conhecimento que se encontra no capítulo 2 da segunda
parte intitulado “o que são opinião, a crença e o conhecimento claro”, a partir deste capítulo,
observaremos a necessidade de se falar de uma teoria do conhecimento para então se construir uma
teoria das paixões, e como essa relação terá grandes implicação na forma como entendemos as paixões.
Neste capitulo Espinosa relaciona a origem das paixões aos tipos de conhecimentos dos quais elas
correspondem. Tendo investigado sua teoria do conhecimento, buscaremos então compreender como
as paixões derivam dos tipos de conhecimento a partir do capitulo 3 da parte dois que tem por título
“Origem da paixão. Da paixão vinda da opinião”, do qual Espinosa trata da maneira pela qual as paixões
vêm a nascer da opinião, e como ocorre a correspondência entre tipos de conhecimento e paixões, para
então compreendermos como elas se originam e se caracterizam.
Analisaremos então, como o Espinosa relaciona a origem das paixões aos tipos de
conhecimento, ou seja, as paixões derivando dos tipos de conhecimentos. Buscando compreender em
que consiste a teoria do conhecimento de Espinosa no Breve Tratado, e assim como as paixões derivam
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dos tipos de conhecimento, para então ser capaz de percebermos como se definem e se caracterizam as
paixões para Espinosa no Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar.

2. ORIGEM E DEFINIÇÃO DAS PAIXÕES ATRAVÉS DA RELAÇÃO ENTRE TEORIA DO


CONHECIMENTO E TEORIA DAS PAIXÕES

Trataremos primeiramente da teoria do conhecimento, para então demonstrarmos como as


paixões derivam de cada tipo de conhecimento. A teoria do conhecimento descrita por Espinosa aponta
três tipos de conhecimento, sendo eles, a opinião, a crença e o conhecimento claro, que ocorrem no ato
de conhecer cada coisa segundo a sua maneira. A respeito daquilo que deriva dos tipos de conhecimento,
Espinosa em sua obra o breve tratado afirma: “[3] Depois desse preâmbulo, ocupemo-nos dos seus
efeitos. Diremos que do primeiro surgem todas as paixões (passien) que são contrárias à boa razão. Do
segundo, os bons desejos, e do terceiro, o verdadeiro e sincero amor, com todos os seus
frutos.”(Espinosa, 2012, p. 94).
Portanto, a opinião está sempre sujeita ao erro, e nunca deriva algo claro, ela reside no
conjecturar e supor, a opinião é origem de todas as paixões, ou seja, contrária à boa razão. Sobretudo, o
conjecturar e supor que é próprio da opinião, também são encontradas no modo como adquirimos os
conceitos pela crença, através da experiência e do ouvir dizer, ou seja, são também formas de opinar.
Em relação ao segundo tipo de conhecimento que é a crença, no ato de conhecer apreendemos os objetos,
não os vendo, mas pela razão, o modo pelo qual adquirimos os conceitos através da crença, consiste
simplesmente no convencimento do intelecto em relação ao objeto, concebendo este de uma maneira e
não de outra. A crença consiste ou na experiência, ou no ouvir dizer, ela está sujeita a erros através do
convencimento do intelecto.
O conhecimento Claro está além dos demais, ele não se trata do convencimento da razão, logo,
não precisa do ouvir dizer, da experiência ou da arte de raciocinar, por meio da intuição o conhecimento
claro vê de forma imediata, ele tem parte no sentir a própria coisa, do conhecimento claro se origina o
verdadeiro e sincero amor, é o que tira o homem da passividade. Esses modos de conhecimento se
aproximam então das paixões na mente, pois a forma em que elas consistem depende do modo como se
conhece, e não poderíamos deixar de ter paixões na mente, visto que estão intrinsecamente ligadas aos
tipos de conhecimento. Se não quiséssemos ter paixões na mente, seria necessário que não
conhecêssemos nada. Sobre a inevitável derivação entre as paixões na mente e os modos de
conhecimento, Espinosa afirma:

[4] De sorte que colocamos o conhecimento como causa próxima de todas as paixões na mente,
porque consideramos totalmente impossível que alguém que não conceba nem conheça de
acordo com os princípios e modos precedentes possa ser movido ao amor, ao desejo, ou a
qualquer outro modo da vontade. (Espinosa, 2012, p.94)
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Dito isto, para apontar de maneira clara como as paixões derivam dos tipos de conhecimento
para Espinosa, trataremos agora de algumas paixões particulares que ele seleciona como base para suas
demonstrações, e como elas derivam dos tipos de conhecimento. As paixões estão vinculadas aos
conceitos que são fornecidos pela opinião a respeito dos objetos, entretanto, é importante apontar que o
ato de conhecer no Breve Tratado não advém de movimentos da vontade ou da cognição do sujeito, pois
a vontade nada pode mover ou causar, ela é apenas uma ideia, a vontade não pode ser causa das ações,
pois a ideia do objeto não reside em um movimento da vontade. Dessa forma, não existe afirmação ou
negação nossa em relação a natureza, os objetos que se afirmam em nós e não o contrário, pois não há
como afirmar ou negar algo dos objetos sem que uma causa exterior nos obrigue a isto.
Doravante, a correspondência das paixões em relação ao tipo de conhecimento, pode ocorrer,
ou não. Espinosa seleciona quatro paixões particulares como base para suas demonstrações: a
admiração, o amor, o ódio, e o desejo. Essas paixões selecionadas integram o quadro das seis paixões
primitivas listadas no texto de René Descartes “As paixões da alma”. Deixando de fora desta primeira
demonstração, a alegria e a tristeza. Observando ainda a qual modo de conhecer elas correspondem ou
não, ou seja, de quais modos de conhecimento elas podem se originar.
A admiração deriva unicamente da opinião, que ocorre a partir da universalização de casos
particulares, ela é produzida quando se depara com uma situação que contradiz a generalização efetuada,
ou seja, a admiração reside naquele que conhece os objetos pelo primeiro tipo de conhecimento, que é
a opinião, este se surpreende quando observa algo que contradiz a sua conclusão que foi universalizada
a partir de casos particulares. Entretanto, uma conclusão formal nem sempre precede a admiração, ela
também se produz também a partir do que presumimos não de um outro modo, ou seja, quando
presumimos que é somente da forma como conhecemos. Espinosa aponta que geralmente a admiração
acontece em muitos filósofos, pois não se propõem a contemplar nada mais do que o que eles julgam
ser verdadeiro. Não há admiração em quem extraí conclusões verdadeiras, a admiração corresponde
somente à opinião.
Já o amor que se origina da opinião, consiste na inclinação de se unir com o objeto, pelo
conhecimento que se tem dele, logo o vê como bom, como se fora deste não houvesse nada mais perfeito,
mas quando conhece outro objeto pela opinião e o considera melhor que o anterior, desvia-se
imediatamente do primeiro para o segundo e assim sucessivamente, o amor do primeiro tipo de
conhecimento, é comparativo se deslocando sempre de um objeto para outro objeto, pois o amor aqui
está vinculado ao conhecimento fornecido a respeito de um objeto através do ato de opinar. O amor que
se origina da crença, surge do ouvir dizer que um objeto é bom, então se inclina á ele, sem saber nada a
respeito. Espinosa afirma que este amor ocorre com frequência nas crianças para com seus pais, quando
eles afirmam que algo é bom, de imediato elas se inclinam sem saber nada a respeito, logo, certamente
está sujeito ao erro. Sobretudo, o terceiro tipo de amor, é aquele que nasce de conceitos verdadeiro, é o
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amor de deus, isto é, a verdade, pois se chegarmos a conhecer Deus, que tem o ser, as causas e toda a
perfeição, devemos necessariamente amá-lo, ou seja, quanto maior e magnífica se mostra a coisa, maior
é o amor em nós, entretanto este amor do conhecimento claro é falado apenas posteriormente em sua
obra “[7] Do amor que nasce de conceitos verdadeiros, aqui não é o lugar de falar, por isso nós o
deixaremos de lado”(Espinosa, 2012, p.96), pois não existe uma identificação entre o conhecimento
claro e as paixões, pelo contrário, existe uma identificação entre este conhecimento e a liberdade que
é assim, o oposto da passividade.
O ódio que deriva de um erro da opinião, ele aparece contra aquilo que tenta prejudicar o
objeto que é tido como bom, ele tende a afastar aquilo que causa mal ao objeto, ou seja, aquele que
concluiu que algo é bom para si, e outra pessoa tenta prejudicar o objeto amado, o ódio surge contra o
autor da ação que prejudicou o objeto amado. Já o ódio que tem origem na crença, surge do ouvir dizer
que um objeto é mau, ele se revela o ódio contra este objeto sem saber nada a respeito. Podemos aqui
observar que o ódio é contrário ao amor, pois sempre objetiva devastação, enfraquecimento e
aniquilação. Enquanto que o amor visa sempre a melhoria e o fortalecimento do objeto. Espinosa
exemplifica o ódio que advém da crença no ouvir, através do ódio entre diferentes expressões religiosas,
e afirma que a maioria dos casos consistem em pura ignorância acerca dos cultos e dos costumes uns
dos outros. O ódio surge contra um objeto, que nos causa desconforto ou sofrimento, então, supomos
que o mal está na natureza do objeto, o que não pode ser possível, visto que o ódio jamais terá lugar no
conhecimento claro.
Sobretudo o desejo que tem origem na opinião, consiste no apetite ou atração por um objeto
que conjecturamos ser bom, ou seja, é uma disposição na mente para alcançar ou manter o que já
experimentamos como bom, logo o desejo, assim como o amor tende ao que supomos ser bom através
do ato de opinar. Ou seja, existe uma proximidade na forma com a qual o Espinosa trabalha o desejo e
o amor, pois ambos opinam sob a aparência do que é bom, se inclinando à ele, o desejo que deriva da
opinião não só se inclina ao que é bom, como também se dispõe a conservar este objeto, aqui está sua
relação com o amor, visto que o desejo da opinião reside o temor de perder o objeto amado, por isto,
não apenas se inclina mas também conserva, pois ama. Quanto ao desejo que tem origem na crença,
reside no ouvir dizer que um objeto é bom, então adquire apetite e atração por este objeto. Espinosa
exemplifica o desejo que deriva da crença no ouvir dizer, através do que se observa nos enfermos que,
apenas por ouvir o médico dizer que tal remédio é bom para o seu mal, logo se inclina ao remédio. O
desejo que tem origem na crença também ocorre pela experiência, portanto, Espinosa exemplifica
através da prática dos médicos que quando descobrem um bom remédio para sanar um determinado mal,
eles consideram esse remédio como infalível.
Em suma, Espinosa demonstra como cada paixão deriva de cada tipo de conhecimento, pois
as paixões na mente derivam do modo de conhecer, sendo que cada paixão pode corresponder ou não a
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cada modo de conhecimento. Através da demonstração de Espinosa, podemos associar as paixões à


opinião, pois é o que a analise da derivação nos fornece, a opinião é o conhecimento do qual ela advém.
Dessa forma, é geralmente apresentada como uma generalização efetuada que consiste em um erro, à
uma transição frequente por conta da forma opinativa pela qual se conhece os objetos, uma inclinação
excessiva enquanto que conhece o objeto daquela forma, pois este apetite ou atração são transitórios no
modo opinativo, pois está sempre comparando objetos, através da forma como o sujeito particular
conhece, portanto depende deste olhar opinativo, que parece estar sempre limitado às conjecturas e
suposições. Com isto, entendemos como Espinosa define e caracteriza as paixões através da relação
entre teoria das paixões e teoria do conhecimento. Para melhor compreensão analise a tabela da página
seguinte.

TABELA ANALÍTICA

PAIXÕES ADMIRAÇÃO AMOR ÓDIO DESEJO

TIPOS DE
CONHECIMENTO

É A CONTRADIÇÃO OPINA VER DECORRE DE CONSISTE NO


DE UMA OPNIÃO, ALGO UM ERRO, APETITE OU
QUE FOI BOM, VIVE A QUE PROVÉM ATRAÇÃO POR
UNIVERSALIZADA INCLINAÇÃO DE DA OPINIÃO. UM OBJETO
A PARTIR DE CASOS SE UNIR COM O O ÓDIO QUE APARENTA
OPINIÃO PARTICULARES. A OBJETO APARECE SER BOM.
ADMIRAÇÃO PREFERINDO CONTRA
ACONTECE QUANDO COMO O QUEM TENTA
SE DEPARA COM UMA MELHOR. PREJUDICAR UM
SITUAÇÃO QUE QUANDO OBJETO QUE
CONTRADIZ A CONHECE É TIDO COMO
GENERALIZAÇÃO OUTRO OBJETO QUE
BOM.
EFETUADA. OPINA SER
MELHOR,
DESVIA DE
IMEDIATO
O AMOR DO
PRIMEIRO
OBJETO PARA O
O SEGUNDO.
NASCE DO NASCE DO OUVIR NASCE DO OUVIR
OUVIR DIZER QUE UM DIZER QUE UMA
DIZER QUE UM OBJETO É MAU, COISA É BOA,
NÃO OBJETO É BOM, SURGE ENTÃO O ENTÃO ADQUIRE
CRENÇA CORRESPONDE E SE INCLINA ÓDIO CONTRA O APETITE E A
A TAL COISA ESSE OBJETO ATRAÇÃO POR
SEM SEM ELA. NASCE
SABER NADA SABER NADA A AINDA DA
A RESPEITO. RESPEITO. EXPERIÊNCIA DE
TER ALGO COMO
BOM, E
CONSIDERÁ-LO
SEMPRE ASSIM,
COMO ALGO
INFALÍVEL.
O VERDADEIRO
E SINCERO
AMOR. NASCE DE
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NÃO DEUS, OU NÃO NÃO


CONHECIMENTO CLARO CORRESPONDE SEJA, DA CORRESPONDE CORRESPONDE
VERDADE.
SE
CHEGARMOS A
CONHECER
DEUS
, QUE TEM
TODA A
PERFEIÇÃO
DEVEMOS
NECESSARIA -
MENTE AMÁ-LO.
DISCENTE: ISNARA FRAZÃO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos assim que ao derivar as paixões selecionadas, dos tipos de conhecimento,


dependendo da sua natureza, elas podem corresponder ou não aos tipos de conhecimento. Através desta
analise percebemos uma associação entre opinião e paixão, e dessa forma, a maneira pela qual as paixões
nasce da opinião reside de uma falha, observa-se então, uma identificação da paixão ao erro no ato de
opinar, a generalização no ato de conhecer, a oscilação ao anexar seu amor aos objetos, ou seja, apego
excessivo porém transitório, pois se direcionando a objetos através da opinião, não se pode adquirir
conceitos claros, e assim o indivíduo sempre apetece, se tornando passivo.
Quando adquirimos conceitos simplesmente por crença, advindo ou da experiência ou do ouvir
dizer, ela está também sujeita ao erro, dessa forma, os conceitos dessa crença são igualmente opiniões,
pois o crer somente pelo ouvir dizer ou pela experiência é também um ato opinativo, maneiras de opinar,
que se difere então da verdadeira crença. O conhecimento claro não deriva paixões, pelo contrário, é a
própria verdade, é o que leva a liberdade, pois consiste em ser ativo, ou seja, livre da passividade da
paixão, o conhecimento claro não deriva paixão alguma. Percebemos então que o resultado da analise
desta derivação das paixões dos tipos de conhecimento no Breve Tratado, expressa uma relação de
identificação que existe entre opinião e paixão.
A identificação entre teoria do conhecimento e teoria das paixões, aponta as paixões como
derivadas da opinião, e esta relação nos diz também da relatividade das paixões, como sendo
particulares, pois elas dependem do olhar opinativo particular, que está limitado ao ato de conjecturar e
supor. Percebemos então que Espinosa trata das paixões como originadas do primeiro e do segundo tipo
de conhecimento, visto que são opinativos, as quatro paixões selecionadas derivam da opinião e/ou da
crença. Todas estas paixões nascem de conceitos que residem em um erro no conceito, por conta da
forma pela qual conhece os objetos. Dessa forma Espinosa define e caracteriza as paixões em seu Breve
tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar.
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REFERÊNCIAS

DESCARTES, René. As paixões da alma. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2005.

ESPINOSA, Baruch de. Breve tratado de deus, do homem e do seu bem estar. Ed. Autêntica, São
Paulo, 2012.

FREITAS, Flávio Luiz de Castro. Pressupostos espinosanos da critica Histórico-psicológica.


Revista Conatus, 2013.

______________.Pressupostos filosóficos da crítica histórico-psicológica. Dissertação (Mestrado


em Cultura e Sociedade) Universidade Federal do Maranhão, 2012.
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CONFIGURAÇÕES DO MEDO EM VASTO MUNDO, DE MARIA VALÉRIA


REZENDE

SETTINGS OF FEAR IN VASTO MUNDO, BY MARIA VALÉRIA REZENDE

Danielle Gomes Mendes


Mestre em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras – UFMA
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade – UFMA

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: O sentimento de medo sempre acompanhou o homem desde os tempos mais remotos.
Ele pode ser potencializado pela imaginação ou conhecimento da mente humana, assim sendo,
temores ganham maior evidência do que a realidade factual dos acontecimentos. Esses temores
podem ser direcionados a seres sobrenaturais, às pessoas e a lugares. Paisagens podem despertar
nos homens sentimentos diversos, inclusive o de medo e de horror. Na narrativa “Medo”, presente
na novela Vasto Mundo (2001), da autora brasileira, Maria Valéria Rezende, conhecemos um
pistoleiro nordestino que acredita que sua coragem e valentia determinaram seu destino e seu
ofício de matador de aluguel, por isso desconhece o sentimento de medo, entretanto um
acontecimento o leva a ter uma experiência de horror com o sobrenatural e todos os seus temores
são trazidos à tona tornando-o um homem fragilizado e covarde. Diante disso, esse trabalho
objetiva a investigação das configurações do sentimento de medo na seguinte narrativa e como a
paisagem de escuridão e horror são responsáveis por atingir de forma profunda as subjetividades
de um homem destemido. Essa análise fundamenta-se nos pressupostos teóricos da Geografia
Humanista Cultura, de base fenomenológica, e estudos sobre a identidade regional nordestina,
dentre os eteóricos utilizados na elaboração desse trabalho, destacam-se os apontamentos de Eric
Dardel, Yi-Fu Tuan, Duval Muniz Albuquerque Júnior.
Palavras-chave: Medo. Paisagens do medo. Vasto Mundo. Maria Valéria Rezende.

Abstract: The feeling of fear has always accompanied man since the earliest times. It can be
enhanced by imagination or knowledge of the human mind, so fears gain greater evidence than
the factual reality of events. These fears can be directed to supernatural beings, people, and places.
Landscapes can arouse in men diverse feelings, including fear and horror. In the narrative “Fear”,
present in the novel Vasto Mundo (2001), by the Brazilian author, Maria Valéria Rezende, we met
a northeastern gunman who believes that his courage and bravery determined his destiny and his
role as a hit man, so he does not know the feeling. In fear, however, an event leads him to
experience horror with the supernatural, and all his fears are brought to life, making him a
weakened and cowardly man. Given this, this work aims to investigate the configurations of the
feeling of fear in the following narrative and how the landscape of darkness and horror are
responsible for profoundly reaching the subjectivities of a fearless man. This analysis is based on
the theoretical assumptions of the Humanistic Geography Culture, based on phenomenology, and
studies on northeastern regional identity, among the eteorics used in the elaboration of this work,
highlight the notes of Eric Dardel, Yi-Fu Tuan, Duval Muniz. Albuquerque Junior.
Keywords: Fear. Landscapes of fear. Vasto Mundo. Maria Valéria Rezende.

1 INTRODUÇÃO
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A trajetória da humanidade, independentemente do tempo e espaço ao qual pertence, é


marcada por um sentimento em comum que permeia a existência humana: o medo. Desde os
primórdios até a atual contemporaneidade, em diferentes faces e nuances, o medo acompanha os
indivíduos seja como sentimento individual, coletivo, estado psicológico ou mera ansiedade ante
ao desconhecido ou o perigo.
O medo não é um sentimento exclusivamente humano, conforme destaca o geógrafo sino-
americano, Yi-Fu Tuan (2010), entretanto, tal sentimento é potencializado no homem a partir da
imaginação e do conhecimento, desse modo são despertadas extrapolações da realidade tais que
aliadas à angústia e outras sensações negativas que retiram dos indivíduos, mesmo que
momentaneamente, o pleno reconhecimento da realidade factual ao seu redor.
Por outro lado, a imaginação pode funcionar como uma aliada dos homens, quando esta o
permite recriar suas angústias, ensejos e temores em outra esfera, qual seja, no plano ficcional. A
literatura, sendo a arte da palavra, possibilita a imitação do real por meio do verbo, assim
realidades são subvertidas e paradoxalmente encenadas. As inquietudes do espírito do artista se
materializam em enredos que são totalmente descompromissados com a verdade, pois,
A literatura, é assim, vida, parte da vida, não se admitindo possa haver conflito entre uma
e outra. Através das obras literárias tomamos contacto com a vida, nas suas verdades
eternas, comuns a todos os homens e lugares, porque são as verdades da mesma condição
humana.
Ela tem existência própria, é ela e nada mais, e seu campo de ação e seus meios são as
palavras e os ritmos usados por si mesmos e não como veículos de valores extraliterários
(COUTINHO, 2008, p. 24-25).

Ao ser inspirada na própria vida e experiências humanas, a literatura desperta nos leitores
um contentamento que somente ela o pode fazer a partir do elemento estético (COUTINHO,
2008), aquele que ler não somente imerge em um novo mundo criado a partir da ficção, mas,
muitas vezes, identifica-se com as situações vivenciadas por personagens igualmente diversos e
em alguns casos, singulares. Para além das personas encenadas, ambientes metafísicos e
metafóricos são costumeiramente eleitos como cenários para o desenrolar das tramas, atribuindo,
portanto, verossimilhança às narrativas. Por isso, não é incomum encontrarmos personagens
enfrentando dilemas, conflitos ou experimentando sentimentos humanos em potencial
profundidade.
Em “Medo”, uma das narrativas que compõem a obra Vasto Mundo (2001) de Maria
Valéria Rezende, nos deparamos com a história de um pistoleiro nordestino que vivia sempre a
desafiar o perigo e se considerava um homem “protegido” por sua fé e pelos políticos poderosos
que lhe deviam favores. Conquanto, por um ínfimo motivo praticou um assassinato por vontade
própria. A partir da sua fuga e reclusão para uma cabana abandonada no meio da mata, o homem
passa a ter uma experiência de horror com a visita rotineira de um espectro, até então,
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desconhecido. Em razão disso, o destemido pistoleiro passa a ser refém do medo que sente pela
criatura impalpável e com o tempo toda sua virilidade e coragem se esvai até que um trágico
desfecho o acomete.
Essa narrativa ambientada no Nordeste brasileiro, mais precisamente no sertão da Paraíba,
traz a figuração de uma paisagem de horror materializada pelo medo da escuridão que invade
todas as noites e traz sensações negativas e angustiantes ao protagonista. Esse medo acaba por
atingir diretamente suas subjetividades: um homem antes temido e intimidador se torna fragilizado
e amedrontado, perdendo sua virilidade e coragem que tanto o orgulhava.
O Nordeste como cenário não é uma exclusividade desta obra de Rezende, a autora
costuma eleger essa região e seus moradores, como verdadeiros protagonistas da grande maioria
de sua composição literária. Entretanto, longe dos estereótipos, com paisagens marcada por
intempéries, o sertão criado por Rezende, é vital, tal qual em Guimarães Rosa.
Torna-se importante destacarmos que apesar de Rezende iniciar na literatura aos 60 anos,
é uma autora que tem alcançado projeção no cenário de produção literária no Brasil, sendo,
inclusive, agraciada com importantes prêmios, como o prêmio Jabuti.
Vasto Mundo – obra objeto desta análise – foi publicado em 2001, nela, o chão – narrador
– nos conta a história de uma pequena vila nordestina Farinhada e de seus moradores. Com um
gênero passível a questionamentos e discussão, a narrativa de Rezende pode se encaixar no gênero
novela, tais quais as predicações de Massaud Moíses (2013, p. 331), apontam:
Constitui-se uma série de unidades ou células dramáticas encadeadas, com início, meio
e fim. De onde parecer uma fieira de contos enlaçados. Todavia, cada unidade não é
autônoma: a sua fisionomia própria resulta de participar de um conjunto, de tal forma
que, separada dela, não tem, as mais das vezes razão de ser. Ou, ao menos quando
destaca, perde algo do seu significado, e acaba comprometendo a progressão em que se
inscreve.

Vasto Mundo (2001) é constituído por dezoito células que interligadas entre si tematizam
a realidade do homem sertanejo desumanizado pelos poderes políticos, mas acolhido pelo chão, o
solo seco, mas generoso, que nutre os farinhenses não só de acolhimento, mas de provisão. De
forma mútua também recebe afeto e dependência de seus moradores, que são completamente
permeados do sentimento de apego ao lugar de origem e de pertença.
Diante de tais premissas, cabe a essa obra uma leitura espacializada, considerando,
principalmente, a relação do protagonista da narrativa “Medo” com o espaço de exclusão em que
se encontra e sobretudo a forma que aquela paisagem de escuridão aliada ao sentimento de medo
atinge a sua identidade.
Como aporte teórico para tal análise foram eleitos os pressupostos da Geografia Humanista
Cultura, de base fenomenológica e existencialista, e algumas considerações sobre a identidade
nordestina tanto as dos indivíduos quanto a identidade regional e de lugar. Para tanto, dentre os
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autores utilizados se destacam as predicações de Yi-Fu Tuan, Eric Dardel e Durval Muniz de
Albuquerque Júnior.

2 O HOMEM, AS PAISAGENS DO MEDO E O SERTÃO

O sentimento de medo acompanha a história e existência humana desde as mais antigas


sociedades. Experimentado de várias formas, o medo sempre configurou um temor por algo
enfrentado pelos indivíduos. As facetas são as mais diversas; medo do desconhecido, do
sobrenatural, dos perigos de um meio ameaçador, de guerras, pestes ou ainda das forças
incontroláveis da natureza.
De acordo com o historiador Jean Delumeau (2009, p. 82), o medo é, “uma emoção
choque, frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um
perigo presente e urgente que ameaça, cremos nós, nossa conservação". Semelhante ao conceito
de Delumeau (2009), Tuan (2010, p. 10) aponta que o medo é, “um sentimento complexo, no qual
se distinguem claramente dois componentes: sinal de alarme e ansiedade”.
O medo está diretamente ligado ao sentimento de insegurança e perda do controle, assim
ele pode ser vivenciado individualmente (assumindo um caráter patológico ou não) ou pode
representar um sentimento coletivo de uma sociedade ante quaisquer acontecimentos que ameaça
à paz e harmonia comunal.
Conforme acentua Tuan (2019, p. 8), “em todos os estudos sobre os indivíduos e sobre a
sociedade humana, o medo é um tema – esteja implícito, como nas histórias de coragem e sucesso,
ou explícito, como nos trabalhos sobre fobias e conflitos humanos”, logo, se vasculharmos a
História encontraremos diversos momentos em que o mundo esteve munido de temores vivendo
sob uma rede ameaçadora de acontecimentos incontroláveis. São períodos marcados pelo medo
presente em atitudes e pensamentos coletivos, fortalecido no imaginário pelas crenças, mitos, que
por fim impregnavam toda uma sociedade. Como aconteceu na Europa medieval:
É verdade que a Idade Média está cheia de tímpanos de igrejas românticas repletos de
diabos e suplícios infernais e que vê circular a imagem do Trinfo da Morte; que é uma
época de procissões penitenciais e, por vezes, de uma nevrótica expectativa do fim, que
os campos e os burgos são percorridos por bandos de mendigos e de leprosos e que a
literatura tem, por vezes, a alucinação das viagens. (ECO, 2010, p. 10).

Destarte, “se os habitantes da Idade Média se deleitavam com a cor e a beleza de suas
igrejas e festividades, eles também viam sordidez e sujeira nos seus arredores cotidianos; se
conheceram muito melhor o trabalho e o perigo, o fastio e o medo” (TUAN, 2010, p. 118). Tais
assertivas demonstram como a mentalidade à época estava ligada à imaginação, que engendrava
a amplitude de sentimentos.
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O medo fazia parte do cotidiano medieval. Os europeus acreditavam que o sobrenatural


influenciava todos os acontecimentos de qualquer natureza e que anjos e demônios viviam
gravitando ao seu redor agindo sobre as escolhas de cada indivíduo. Essa dialética acabou por
fortalecer no imaginário a ideia de que duas forças invisíveis, representadas pelo bem e o mal,
seguiam em guerra a todo tempo e influenciavam no presente e no futuro da humanidade,
aumentando assim o sentimento de insegurança do homem medievo em relação a sua existência.
Essas ideias, segundo Delumeau (2010), foram herdadas do antigo mundo romano.
Apesar de parcialmente superados após o aparecimento da vida industrial moderna, alguns
dos medos presentes na mentalidade à época, ainda reverberam nas sociedades posteriores, com
mesmas ou novas faces. Entretanto se o que marca as gerações precursoras às nossas é o medo por
fantasmas, bruxas e demônios, na atual contemporaneidade o medo ganha novas configurações.
A busca pela sensação de segurança e controle aos perigos da vida, fazem com que os indivíduos
se refugiem cada vez mais em espaços vigiados e protegidos, paradoxalmente, o medo do homem
(pós) moderno, também se direciona ao outro: o medo do seu semelhante.
O homem está completamente ligado ao espaço e lugar, ou como deduz Dardel (2015, p.
1-2), com a Terra, essa relação o autor irá chamar de geograficidade, ela explica que: “amor ao
solo natal ou busca por novos ambientes, uma relação concreta que liga o homem à Terra, uma
geograficidade (géographicité)”. Na perspectiva do teórico, essa relação se manifesta por meio da
paisagem, pois ela irá expressar a totalidade que envolver o ser e sua relação existencial com o
meio. Para ele, a paisagem não é unificada ou fechada, mas um desdobramento, “ela é um escape
para a toda a Terra, uma janela sobre as possibilidades ilimitadas: um horizonte” (DARDEL, 2015,
p. 31). Portanto não é, necessariamente, geográfica, mas uma construção da mente do homem
aliada aos sentimentos depositados sobre aquele cenário.
Yi-Fu Tuan, traz à baila em seus estudos as paisagens do medo, ele as elenca como as
diversas experiências ou imagens que os indivíduos têm ou criam ao longo da vida, como exemplo,
o medo do escuro; das doenças; guerras ou catástrofes, medos de assaltantes etc. O autor afirma
que embora esse sentimento seja experimentado pelos indivíduos de forma subjetiva, alguns são
oriundos de eventos materiais de um meio ameaçador.
Na perspectiva de Tuan, tal sentimento tem origem na mente, lugar onde ele existe, tais
como a “Paisagem”, que é “uma construção da mente, assim como uma entidade física
mensurável. “Paisagens do medo” diz respeito tanto aos estados psicológicos como ao meio
ambiente real” (TUAN, 2010, p. 12). Diante disso, o caos sempre é um elemento presente nessas
paisagens, seja ele uma manifestação da força humana ou dos meios naturais. A força humana
também pode representar um elemento dentro dessas paisagens, pois elas nada mais são do que a
tentativa de agir sobre possíveis ameaças, materiais ou mentais.
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Para além de medo, outros componentes podem evocar sentimentos diversos nos homens,
casas cercadas, com muros altos, ao mesmo tempo em que despertam a sensação de segurança é,
por outro lado, “uma lembrança constante da vulnerabilidade humana” (TUAN, 2010, p. 12). De
forma contrária, uma paisagem campestre, evoca sensação de paz.
Fenômenos naturais também propiciam paisagens de medo, de morte. Elas levam os
indivíduos a temerem as forças da natureza, aquelas que escapam aos poderes humanos, como a
seca quando atinge as regiões áridas ou fortes tempestades e furacões que dizimam cidades e
assolam países. Como ainda pontua Tuan (2010, p. 13),
Existem muitos tipos de paisagens do medo. Entretanto, as diferenças entre elas tendem a
desaparecer na experiência de uma vítima, porque uma ameaça medonha, independente de sua
forma, normalmente produz duas sensações poderosas. Uma é o medo de um colapso iminente
de seu mundo e a aproximação da morte – a rendição final da integridade ao caos. A outra é uma
sensação de que a desgraça é personificada, a sensação de que a força hostil, qualquer que seja
sua manifestação específica, possui vontade.

Quando configurada em uma manifestação do medo, essas paisagens provocam no


indivíduo sensações de hostilidade, angústia, sufoco, e ao reiterar o desespero roubam a paz
daqueles que a experienciam. O sertão brasileiro é uma região que experimentou em diversos
aspectos paisagens de medo, sobretudo, as provocadas pelas intempéries que castiga tão
duramente seus moradores. Para além dessas paisagens geográficas, as paisagens humanas
devastada pelas agruras climáticas e descaso político, por muito tempo pareceu representar o
retrato social desse lugar, principalmente, o Nordeste brasileiro. O homem sertanejo traz em sua
trajetória a luta pela sobrevivência, os desafios contra a fome, seca e morte.
Possivelmente, essa realidade contribuiu para a ideia de que o povo nordestino é aquele
que vive em uma constante odisseia contra as mazelas da vida e que os homens e mulheres
nascidos ali são naturalmente destemidos e valentes. Essas figuras retóricas são retratadas na mais
diversas artes, na literatura, por exemplo, principalmente os homens, geralmente são descritos
como,
Tipo fisicamente constituído e forte; aspecto dominador de um titã acobreado; verdadeiro
pai d’água; homem bravo; homem gênio forte; cabras se fazendo em arma com
facilidade; falando sempre em mulheres [...] mãos que manejam o chicote, o rebenque e
a repetição, que manejam os facões, os machados, derrubando árvores e homens, jogando
para longe matas, inimigos e assombrações; rostos picados de bexiga [...].
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 18).

São homens que parecem desafiar a própria morte e serem desprovidos de qualquer temor.
A ideia de que, viver em constantes ameaças, geográficas e humanas, os fazem mais fortes e
valentes tem permeado o imaginário coletivo desde a década de 20, marcando, inclusive, a
literatura escrita durante o Modernismo brasileiro.
Podemos perceber essa configuração no personagem protagonista da narrativa “Medo”, de
Maria Valéria Rezende (2001). A partir de sua exclusão experimenta na mais profunda medida o
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sentimento de medo e de horror diante das sombras que o visitam todas as noites, fato que esfacela
completamente os aspectos mais forte de sua identidade, inclusive sua macheza e valentia, como
veremos na análise a seguir.

3 FIGURAÇÕES DO MEDO EM MARIA VALÉRIA REZENDE: UMA LEITURA DE


VASTO MUNDO

A narrativa “Medo” (2001) é protagonizada por um matador de aluguel nordestino crédulo


que o seu destino já estava traçado e que fora sua valentia a principal responsável pelos caminhos
percorridos, principalmente, o seu ofício:
Foi a sua incapacidade total de sentir medo, desde menino pequeno, que o levou à
profissão. [...]. Dali em diante perdeu a conta. Nunca tinha nem olhado bem para a cara
dos que matou, não poderia lembrar. Jamais errara um tiro, jamais falhara, frio e preciso
com sua ferramenta como um carpinteiro com seu serrote, um carvoeiro com seu
machado, um vaqueiro com o ferro de marcar. (REZENDE, 2001, p. 32).

A morte é um fato previsível na execução de seus serviços e, portanto, não o intimida ou


o amedronta. Os pesares de seus atos são irrelevantes, pois acredita que, “quem mata mandado,
só pela profissão, sem raiva nem ódio do morto, não peca, mata por ofício e por destino. Se alguém
tem culpa é quem manda matar” (REZENDE, 2001, p. 32), assim as incumbências dos crimes
praticados não lhe pertencem.
O protagonista, cujo nome não é mencionado, figura um tipo regional do homem
nordestino e, nesse caso, marcado por um tipo sociológico em que seus aspectos são evidenciados
a partir das atividades ou papeis sociais que exerce. À título de exemplo, destacam-se: os jagunços,
os cangaceiros, brejeiros, vaqueiros; “o matador independente ou matador profissional a soldo dos
coronéis [...]” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 187), tal qual o personagem eleito por
Rezende (2001, p. 32):
Aos quinze anos fez o primeiro serviço, a mando do Sr. Leitão. Tiro limpo e certo, um
só, no meio da testa de um morador avexado que andava falando de botar o doutor na
justiça. [...]. Dr. Leitão lhe garantia as costas por lá com os conhecimentos políticos dele.
Nos primeiros dias, quando se descobria o morto era aquele fuzuê, abria-se inquérito,
mas tudo se esquecia em tempo e ele voltava para a fazenda, onde tinha o privilégio de
viver sem outro trabalho senão aquele mesmo.

A coragem tão evidenciada do personagem encena em diversos aspectos alguns arquétipos


do nordestino costumeiramente retratado na literatura brasileira e fortalecidos no imaginário
nacional: “O nordestino, portanto, fruto de uma história e uma sociedade violenta, teria como uma
de suas mais destacadas características subjetivas a valentia, a coragem pessoal, o destemor diante
das mais difíceis situações.” (ALBURQUEQUE JÚNIOR, 2013, p. 176).
Esses modelos geralmente desenham o sertanejo do Nordeste como, “cabra macho que luta
como Lampião, que enfrenta um batalhão, que trabalha sol a sol, [...], não traça rota retilínea e
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firme; aparência de cansaço que ilude, pronta a se transfigurar diante de qualquer incidente [...].”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 18). Principalmente, aqueles que confrontam ou se
relacionam de forma valente com a morte.
Para além de seu ofício subversivo e de sua coragem em potencial, o matador de aluguel,
de “Medo” (2001), possui características instigantes que evidenciam sua humanidade como: os
sentimentos intimistas e de apego ao seu lugar; sua fé, que se manifesta de forma devota e religiosa
e a virilidade tão valorizada.
A narração nos conta que, “nos tempos de calmaria, sem serviço, pescava no açude, botava
arapucas no mato e se entretinha com suas gaiolas de passarinhos. [...]. Era homem de bem e de
sossego.” (REZENDE, 2001, p. 33, grifo nosso). Podemos perceber no seguinte trecho supracitado
que não há hostilidade em relação ao seu lugar e a vida que leva cotidianamente, pelo contrário, o
trecho mencionado evidencia o sentimento de espaciosidade, posto que, a “espaciosidade está
intimamente associada com a sensação de estar livre” (TUAN, 2013, p. 70).
Assim, os momentos vivenciados naquele lugar, independente de sua profissão, expressam
a ligação interna que o une à aquela paisagem e, portanto, manifesta a sua relação de apego e
afetividade com aquele espaço. Evidenciando não apenas sua humanidade, mas sua geograficidade
- a relação visceral entre o homem e a Terra - com os seus espaços de habitação e existência
(DARDEL, 2015).
Outro aspecto elementar do protagonista é que se trata de um homem religioso que acredita
veementemente nas mazelas do mundo e da vida, mas não as teme, pois segue convicto que sempre
tomou os cuidados necessários para se manter protegido de qualquer desgraça, conforme
demonstra o trecho da obra:
Ele era prevenido: ia a cada dois anos a Juazeiro do Norte, deixava no túmulo do Padrinho
as ofertas de costume, a vela maior que houvesse, não tirava do pescoço o terço de
romeiro e carregava sempre no bornal, junto com as balas, o bentinho que lhe ficara da
mãe, enrolado num pano. Três vezes se confessara com frei Damião. Dissera tudo: que
se deitara com mulher-dama e com mulher casada, que embuchara uma moça e depois a
abandonara na zona, que chamara nomes, que jurara o Santo Nome em vão, que pensara
em fazer acordo com o Cão. As mortes não disse, que não entravam no rol dos pecados.
Recebera a bênção e tomara a Santa Comunhão das mãos do frade santo. (REZENDE,
2001, p. 33).

A maior medida de prevenção é a fé. Percebemos que sua confiança é estabelecida a partir
dos ritos religiosos que pratica ou nos artefatos que carrega consigo. Tuan (2015) aponta que a fé,
em algumas sociedades e culturas, funciona como um elemento de segurança e controle quanto ao
impalpável. Podemos relacionar essas assertivas à perspectiva que o homem dá às práticas
religiosos que executa, ele acredita que segue resguardado. Entretanto, um dia foi surpreendido
por um inesperado acontecimento,
Quando Rominho disse, rindo, que enquanto ele andava pelo mundo, se fazendo de
macho, José Marciano andava botando-lhe chifres com sua mulher, subiu-lhe um fogo à
cabeça, montou a égua de raça do doutor, foi disparado bater no roçado de Marciano e
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descarregou-lhe no peito seis balas de trinta e oito, sem lhe dar o tempo de uma ave-
maria. Voltou à fazenda ainda doido de ódio, para procurar a mulher e acabar com ela.
Rominho esperava-o na porteira, sempre rindo: “Tu ficaste louco, homem? Ôxe, sair
correndo assim só por causa de uma brincadeira! Tu não vê que eu só tô mangando de
tu, que tua mulher nunca teve nada com ninguém não, homem?” Era tarde, já estava feito
o desmantelo. (REZENDE, 2001, p. 33-34).

Cego pela indignação e disposto a manter sua honra inabalada, o homem utilizou suas
habilidades profissionais em uma vingança particular e voluntária, pois,

Um homem sem honra não existia mais, era considerado um pária na sociedade. O
adultério feminino, por exemplo, tinha que ser duramente punido pelo marido sob pena
de ficar desonrado. Nestes casos a morte do amante e da esposa era o que faria este
homem ser novamente aceito no convívio social. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p.
179).

Ceifou a vida de um inocente e ao perceber que havia praticado um ato injusto escondeu-
se em uma cabana facilitada por seus aliados políticos e foi ali naquele espaço de reclusão no meio
da mata que o homem passou a vivenciar uma experiência até então desconhecida: “acordava com
o sol a pino, encharcado de suor, sedento e esfomeado. E agora descobriu que era medo aquela
mão gelada e dura esmagando-lhe o peito, o tremor no corpo inteiro, o suor frio, as tripas se
retorcendo, cada noite.” (REZENDE, 2001, p. 31).
A sensação experimentada pelo matador, causa-lhe estranhamento, pois pela primeira vez
sente-se vulnerável e afligido por sentimentos de medo que se manifesta não só no seu estado
psicológico, mas em seu corpo com sintomáticas físicas. O estado do personagem concatena com
os apontamentos de Tuan (2015, p. 7-11),
Os medos são experimentados por indivíduos e, nesse sentido, são subjetivos; alguns, no
entanto, são, sem dúvida, produzidos por um meio ambiente ameaçador, outros não. [...]
O que é medo? É um sentimento complexo, no qual se distinguem claramente dois
componentes: sinal de alarme e ansiedade. [...] A imaginação aumenta imensuravelmente
os tipos e a intensidade de medo no mundo dos homens.

O medo do homem não acontece de forma voluntária, tem uma origem. O espaço que está
no meio da floresta, necessariamente não o assusta quando há luz. Seus sentimentos em relação
ao lugar só mudam quando a paisagem se transforma a partir das trevas que se instalam com a
chegada da noite. Foi durante a experiência com a escuridão que ele descobrira que a aflição que
sentia era medo,
O pior era o medo atocaiando-o na noite. No princípio, quando a sensação terrível o
assaltara na escuridão, não sabia que era medo.. [...] E agora? que descobrira que era
medo aquela mão gelada e dura esmagando-lhe o peito, o tremor no corpo inteiro, o suor
frio, as tripas se retorcendo, cada noite. (REZENDE, 2001, p. 32-33).

Portanto, a paisagem de horror que se configura a partir das trevas é responsável pelas
sensações de ansiedade, ameaça e descontrole que passam a atormentar diariamente o homem:
Sobressaltou-se no coaxar dos sapos como se fosse um sino dando as horas, horas de
trevas, de medo, de morte. [...] Velas, candeeiros tornavam ainda mais escura a escuridão.
Porque a faziam mover-se como coisa viva, recuar e avançar para ele, provocá-lo, zombar
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do pavor que o assombrava. [...] Quando a noite chegou, veio com ela aquela coisa
danada. (REZENDE, 2001, p. 31-32).

Tuan (2005, p. 25) ressalta essa relação de hostilidade que os homens têm com o escuro,
principalmente, por que está imbricada de outros sentimentos negativos que reverberam na falta
de controle,
O medo do escuro é mundial. [...] A escuridão produz uma sensação de isolamento e de
desorientação. Com a falta de detalhes visuais nítidos e a habilidade de movimentar-se
diminuída, a mente está livre para fazer aparecer por mágica imagens, inclusive de
assaltantes e monstros, com o mais leve indício perceptível.

Os medos ainda são fortalecidos pela imaginação do homem, aquilo que se teme, se torna
mais intenso à medida que o homem perde a noção da realidade factual e dimensiona suas
experiências a partir de seus temores. O medo pode subverter significativamente a relação
existencial dos indivíduos com os espaços e lugares; com o outro semelhante e consigo mesmo.
O personagem da ficção de Rezende (2001) tem todos esses aspectos abalados significativamente.
Se antes ele sentia a sensação de bem-estar quanto a espaciosidade vivida, agora, a partir dessa
experiência com uma paisagem de horror, “a sensação de espaciosidade passa ao seu oposto –
apinhamento” (TUAN, 2013, p. 78), isto é, a sensação de mal-estar, agonia e desassossego
provocada pela falta de liberdade e a privação.
Profundamente afetado pelo sentimento de medo, o antigo homem destemido deu lugar a
um ser frágil, covarde e virilmente vulnerável. Quando os capangas voltaram lhe trouxeram uma
mulher, mas ele não conseguiu tocá-la: “Não pôde. Não teve vontade. As noites de pavor tinham
tirado sua macheza. “Não diga nada que eu lhe mato”. [...] porque não podia dar parte de frouxo,
só pediu padre para confessar, que era de preceito, mas disseram que não tinha”. (REZENDE,
2001, p. 35).
Tuan (p. 2005, p.11) afirma que, “a capacidade de sentir vergonha e culpa amplia muito a
extensão do medo humano”. Permeado de medo e vergonha, o matador que antes concebia sua
existência e destino a partir de sua coragem, se torna refém dos sentimentos que trazem à tona sua
fragilidade humana, espiritual e física.
As sombras tomaram forma e a partir das trevas surgiu um ser identificável pelo homem:
o espectro responsável por todo o seu terror. O homem entendeu sua tórrida penitência quando o
que sentia era, “medo do cão, porque se desviara do seu caminho: sem mandado de ninguém,
matara com raiva um inocente [...]. (REZENDE, 2001, p. 33).
De acordo com o Dicionário de Símbolos (2019): “Cão: Não há, sem dúvida, mitologia
alguma que não tenha associado o cão (...) à morte, aos infernos, ao mundo subterrâneo.
(CHEVALIER, CHEERBRANT, 2019, p. 166)”. Diante disso, o medo do Cão é um dos grandes
temores que em algum momento atormenta os estados psicológicos do homem, seja momentâneo
ou constantemente.
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Por fim, o terror do homem se consumou em um trágico desfecho de horror:


Cada noite, sem falhar nenhuma, o Maldito vinha atentá-lo e ele mergulhava no medo,
impotente contra o mal impalpável. Agora chegava a ver o Coisa Ruim, dançando na
treva, cada dia mais perto. [...] Dizem que quando agarra um, o Maldito arranca os olhos
e as partes, mete uma estaca [...] até sair pela boca [...]. Quando os homens de Assis
Tenório chegaram para avisar que podia voltar, [...], os urubus já tinham feito o trabalho.
(REZENDE, 2001, p. 35).

O medo tomara de conta. A própria morte antes não temida, passou a ser a realidade mais
palpável do homem que sempre fora tão valente e viril. Tentou salvar sua honra, mas a mesma
solução foi também a causa de sua desgraça, a morte de um inocente no fim foi a dívida ideal para
que o Cão viesse ajustar o débito em aberto.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não apenas habitamos os espaços, mas nos relacionamos de forma intrínseca e profunda
com cada meio que vivemos e experienciamos. As paisagens diversas, geográficas ou humanas,
expressam essa relação visceral do homem com a Terra, sua geograficidade, e por meio dela
sentimentos humanos também veem à tona em plena profundidade. Os espaços e lugares possuem
atribuições diversas que são estabelecidas a partir das experiencias vivenciadas, por isso podem
ter significados bons e ruins.
Portanto, o homem pode vivenciar uma paisagem de horror, seus temores, sobretudo, o
sentimento de medo aliado à imaginação humana potencializa esses terrores. Vimos claramente
reverberações dessas relações na narrativa “Medo” (2001). O personagem protagonista, torna-se
refém de um terror que se configura a partir do medo que sente por um cenário de escuridão e
trevas.
Seu medo se potencializa quando ele entende que por conta de um feito injusto, sua
penitência chegaria como aconteceu no desfecho da obra. Por meio disso, pudemos perceber como
paisagens de horror interferem de forma significativa no relacionamento do homem com o meio
e para além disso, o relacionamento consigo próprio, já que sua sensação de paz, espaciosidade e
sossego são roubados e trocados por apinhamento, agonia, perda do controle que fortalecem o
medo.
À luz do exposto, concluímos que as paisagens podem provocar nos homens sentimentos
de paz e aconchego, mas também apinhamento e outras sensações de mal-estar. Esse fenômeno
evidencia a relação intrínseca do homem com a Terra, e conforme acentuou Dardel (2015), relação
que é capaz de afetar carne e sangue, capaz de atingir profundamente as subjetividades do homem,
seja pela satisfação em potencial ou caos.
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REFERÊNCIAS

ALBURQUEQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestinos: invenção do “falo” uma história do
gênero masculino (1920 – 1940). 2. ed. São Paulo: Intermeios, 2013.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes,


gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa. Rio de Janeiro: José Olympio,
2016.

DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: a natureza da realidade geográfica. Trad. Werther Holzer.
São Paulo: Perspectiva, 2015.

DELUMEAU, Jean. A história do medo no ocidente, 1300-1800: Uma cidade sitiada.


Tradução: Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 2013.

REZENDE, Maria Valéria. Vasto Mundo. 1. Ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Tradução: Lívia de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP,
2015.

______. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. Tradução: Lívia Oliveira. Londrina:


EDUEL, 2013.
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DA TRAGÉDIA À COMEDIA: O TEATRO PARA O FILÓSOFO JEAN-JACQUES


ROUSSEAU

FROM TRAGEDY TO COMEDIA: THE THEATRE FOR THE PHILOSOPHER JEAN-


JACQUES ROUSSEAU

Ana Beatriz Carvalho de Sousa- UFMA/ Bolsista PIBIC UFMA


Elayne de Araújo Pereira - UFMA/ Bolsista CNPq
Prof. Dr. Luciano da Silva Façanha – orientador e Professor do DEFIl e do PGCult/UFMA

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Em Genebra o teatro de comédia é proibido para que não contribua com desregramento
da sociedade e na formação dos jovens. Com base nisso, o filósofo Jean-Jacques Rousseau elabora
uma Carta esclarecendo sobre a não permissão dos espetáculos em Genebra, afirmando que o
teatro é apenas um entretenimento inútil aos homens como os cidadãos da pequena cidade de
Genebra. Em vista disso, desenvolve sobre as peças teatrais através dos espetáculos de comédia e
da tragédia em sua diferença para elucidar sobre o teatro moderno pode ser um viés de corrupção,
como de comédia que prescinde em qualquer identificação e piedade e a tragédia que não provoca
de modo duradouro os mesmos sentimentos longe dos palcos. Desse modo, estende-se que o teatro
seja bom para os bons e maus para os maus. Diante disso, objetiva-se neste trabalho esclarecer o
contraponto das tragédias gregas e suas características e a comédia estabelecida no século XVIII,
como ponto principal criticado pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau.
Palavras-chave: Teatro, Tragédia, Comédia, Genebra, Rousseau.

Abstract: In Geneva, comedy theatre is forbidden so that it does not contribute to the unrulerof
society and the formation of young people. Based on this, philosopher Jean-Jacques Rousseau
draws up a Letter clarifying the non-permission of the shows in Geneva, stating that theatre is just
useless entertainment for men like the citizens of the small town of Geneva. In view of this,
develops on plays through the shows of comedy and tragedy in its difference to elucidate about
modern theater can be a bias of corruption, as of comedy that dispenses with any identification
and piety and tragedy that does not lastingly provoke the same feelings away from the stage. In
this way, it extends that the theater is good for the good and bad for the bad. In view of this, the
objective of this work is to clarify the counterpoint of Greek tragedies and their characteristics and
the comedy established in the eighteenth century, as the main point criticized by the philosopher
Jean-Jacques Rousseau.
Keywords: Theatre, Tragedy, Comedy, Geneva, Rousseau.

INTRODUÇÃO
O termo Teatro surgiu na Grécia em meados do século VI a. C., como uma manifestação
artística e resultado das festas dionisíacas, que eram realizadas em homenagem ao deus Dionísio,
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o deus do vinho, festas e fertilidade. Na Grécia, o Teatro era uma manifestação sagrada e acontecia
durante a primavera, era marcado por máscaras, ornamentos e tablado.
A grande inovação deu-se quando se criou o diálogo entre coreutas e o corifeu. Cria-se
assim a ação na história e surgem os primeiros textos teatrais.
Quando se discute a origem do Teatro, principalmente na Grécia, e consequentemente as
tragédias, recorremos ao filósofo grego Aristóteles, em sua obra Poética, apresenta três versões
para o surgimento da tragédia.
A primeira versão argumenta que a tragédia, e o teatro, nasceram das celebrações e ritos
a Dionísio, o deus campestre do vinho.
A segunda versão relaciona o teatro com os Mistérios de Eleusis, uma encenação anual do
ciclo da vida, isto é, do nascimento, crescimento e morte.
A terceira concepção para o nascimento da tragédia, e a aceita por Aristóteles, é de que o
teatro nasceu como homenagem ao herói dório Adrausto, que permitiu o domínio dos Dórios sobre
os demais povos indo-europeus que habitavam a península. O teatro seria a dramatização pública
da saga de Adrausto e seu triste fim.
Para Aristóteles, a tragédia não era vista com pessimismo pelos gregos e sim como
educativa. Tinha a função de ensinar as pessoas a buscar a sua medida ideal, não pendendo para
nenhum dos extremos de sua própria personalidade. Para o filósofo, entretanto, a função principal
da tragédia era a catarse, descrita por ele como o processo de reconhecer a si mesmo como num
espelho e ao mesmo tempo se afastar do reflexo, como que "observando a sua vida" de fora.
Com um salto de doze séculos depois da análise aristotélica sobre o Teatro, no século das
luzes inicia-se um discussão sobre a instauração de um Teatro na República de Genebra, na
Enciclopedie entre 1751 a 1772, onde o Filósofo Denis Diderot e Jean Le Rond d’Alembert
discorre sobre uma companhia de comédia, onde os genebrinos teriam bons costumes e
refinamento de gosto com os espetáculos instaurados.
Em contrapartida, O filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau publica a Carta a
d’Alembert em 1758, onde crítica o Teatro como uma forma de arte inadequada para a República
de Genebra. O iluminista analisa os espetáculos sob o ponto de vista da questão moral que este irá
ocasionar, e sob o teor do conteúdo a ser apresentado. Segundo Rousseau, os espetáculos causam
uma ruptura entre o homem e seus aspectos políticos e morais.
Rousseau afirma que o teatro não tem função de educar os cidadãos para ter bons costumes
ou moralidade, como propõe d’Alembert. Uma peça de teatro, deve assumir o seu papel de apenas
entretenimento para o público, sendo jamais confundido ou misturado com uma função
pedagógica-moral.
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Em defesa de Genebra, Rousseau discorre também sobre como os espetáculos poderá


ampliar os vícios e submetê-la a corrupção, pois sendo Genebra uma República que preserva os
bons costumes e hábitos virtuosos, aceitar uma companhia de teatro poderá ter consequências
negativas aos genebrinos.
Assim, o tema principal da Carta consiste na exposição de argumentos, questões sociais,
econômicas e patriotas da burguesia da República e vai contra a sugestão de d’Alembert no verbete
Genebra, considerando a sugestão altamente prejudicial, na perspectiva rousseauniana.

A PROPOSTA DO TEATRO EM GENEBRA E AS CONSIDERAÇÕES


ROUSSEAUNIANAS

Diante do progresso iluminista do século XVII com suas ideias de Liberdade, Fraternidade
e igualdade. A República de Genebra considerada como modelo de estrutura política dada como
esclarecida está voltada para querela sobre o teatro através dos filósofos D’Alembert e o genebrino
Jean-Jacques Rousseau. Em virtude de um verbete Genebra publicado no tomo VII da
Enciclopédia onde o filósofo D’Alembert ressalta a companhia de teatro, mais precisamente o de
comédia, na republica, com intuito de refirmar o gosto, os sentimentos até a educação dos jovens
genebrinos, pois uma república sábia e esclarecida como a pequena cidade de Genebra, deveria
permite os espetáculos. Segundo D’Alembert:
Genebra teria espetáculos e bons costumes, e gozaria de ambos; as
representações teatrais educariam o gosto dos cidadãos, e lhes dariam uma finura
de tato, uma delicadeza de sentimento muito difícil de adquirir sem esse auxílio;
a literatura lucraria com isso sem que a libertinagem fizesse progressos, e
Genebra reuniria a sabedoria da Lacedemônia à polidez de Atenas.
(D’ALEMBERT, 2015, p. 180)

Em vista disso, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, o cidadão de Genebra, discorre através


de uma carta ao D’Alembert sobre a proposta do teatro, na obra intitulada a carta a D’Alembert
sobre os espetáculos, destacando que a Republica esclarecida deve ser preservados, reprovando o
teatro como serventia para melhorando dos costumes da sociedade, pois o teatro não tem a função
pedagógica para os cidadãos a não ser o de divertimento, podendo nunca passar disto. Cito
Rousseau:
Lançando um primeiro olhar sobre essas instituições, vejo inicialmente que o
espetáculo é um entretenimento; e se é verdade que o homem precisa de
entretenimentos, V.Sa. há de convir pelo menos que eles são permitidos enquanto
necessários, e que toda diversão inútil é um mal, para um ser cuja vida é tão curta
e o tempo tão precioso.(ROUSSEAU, 2015, p.44)

Para elucidar essa questão do teatro, vale lembrar que o filósofo Genebrino é observador
do homem e da sociedade que permeia praticamente em todas as obras que levaram os conflitos
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para o período. Além de questionamento para posterioridade sobre questão como a emancipação
do homem pelas luzes do uso da racionalidade.
Nesse sentido, que Rousseau considera afirma que o teatro como função pedagógica para
ensinar os bons costumes constitui um grande equivoco, bem como, em só afirmar que os
espetáculos são bons ou maus em si mesmos por uma pergunta que não analisar seus efeitos para
quem os espetáculos de comédia foram feitos.
Dessa forma, Rousseau explica que esse teatro consiste em representar os costumes que
estão em sociedade, para tal afirmação remete atenção para os autores dos espetáculos, todo autor
quer público, neste caso, representará somente nos palcos aquilo que agradar o público, visto que
é perceptível o gosto do próprio espectador no teatro e os espetáculos resultam do gosto do povo,
de cada nação como o teatro da grande Paris.
O Teatro, em geral, é um quadro das paixões humanas, cujo original está em
nossos corações; mas se o pintor não se preocupasse em adular essas paixões, os
espectadores logo iriam embora e não mais quereriam ver-se sob uma luz que os
levaria a se desprezarem a si mesmos. Pois, se ele dá cores detestáveis a algumas
delas, isto ocorre somente com aquelas que não são gerais e que são naturalmente
odiadas. Assim o autor não faz com isso mais do que acompanhar o sentimento
do público; e essas paixões desprezadas são sempre usadas para ressaltar outras,
senão mais legitimas, pelo menos ao gosto dos espectadores. (ROUSSEAU,
2015, p. 46-47)

Partindo dessa consideração, em que os homens estivesse controle das paixões saberia
dominar-se diante dos espetáculos e o palco não teria esse poder sobre os sentimentos e os
costumes, faz necessário entrar nos objetivos que nortear este trabalho, que é compreender de
como o filósofo observa a comédia e a tragédia estabelecida no século XVIII para que possa não
elucidar a compreensão do seu pensamento, mas voltar a pensar acerca dessas instituições que
rodea o homem com intuito dos que os iluministas apontam como o progresso do homem, e
Rousseau apresenta como degeneração da sociedade.

SOBRE AS COMÉDIAS NA REPÚBLICA E CONSIDERAÇÕES ARISTOTÉLICA


Sobre a comédia, D’Alembert ressalta para cidade genebrina como finalidade de corrigir
os vícios dos homens através dos exageros dos risos e da aproximação da cena no teatro e o do
mundo. Rousseau afirma que essa comédia pode muito mais espalhar esses costumes do que
corrigi-los, mostrando os homens piores do que são, ou seja, longe daquilo que é próximo da
natureza, pois representa o ridículo e os vícios acabam por seus fomentados. Como explica
Rousseau na passagem da Carta:
A comédia pretende ensinar a amar a virtude, mas na verdade ensina apenas a
temer o ridículo: ora, o ridículo só pode ser evitado através do vicio, portanto, a
comédia acaba fazendo exatamente o contrário do que pretende. (ROUSSEAU,
2015, p. 20-21)
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Rousseau ressalta que a comedia proporcionar “ser uma coisa e parecer outra, dizer isto e
fazer aquilo, renunciar a si próprio e atentar muito para a opinião”, pois o ridículo (....) “é a arma
favorita do vicio”. Assim, como descreve sobre o dramaturgo Molíere quando tentou corrigir o
teatro cômico não ocasionou nada que pudesse ter alguma repulsa ou interesse do público, pois
houve uma tentativa de enfrentar o gosto geral “atacando as modas, os ridículos; mas sem nem
por isso chocou o gosto do público”, por isso salienta Rousseau, o antigo teatro chocava o gosto
do público e não teatro do século polido, em vista de que” todo autor que quer retratar os costumes
estrangeiros toma, no entanto, grande cuidado para harmonizar a sua peça com os nossos próprios
costumes. Sem essa preocupação nunca se tem êxito, e o próprio sucesso dos que tomaram esse
cuidado não raro tem causas bem diferentes das que supõe um observador superficial”.
(ROUSSEAU, 2015, p.42)
No segundo Discurso247, aquilo que progride com a razão e a civilização é algo não por
acaso negativo: a desigualdade. Na Carta, a mesma degradação reaparece na história do teatro: a
tragédia antiga se abre para toda a cidade grega, ao passo que o teatro clássico francês é
“exclusivo”, feito para uma minoria, exibindo em toda parte os sinais da mesma desigualdade.
Quando se fala sobre teatro e representação, vêm à tona as aclamadas tragédias gregas,
onde se dá uma forma de dramatização caracterizada por sua seriedade, dignidade e a presença da
representação de deuses, do destino ou de contextos da sociedade.
Para Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) na obra titulada Poética, a tragédia é uma arte
mimética, uma forma específica de imitação, de uma ação de caráter elevado que, suscitando o
terror e a piedade, tem por efeito a purificação, a cartase, dessas emoções.
Sendo assim, quando trás essa tragédia, esse sofrimento, esse sentimento de súplica ou
pena, o espectador se prende aos personagens, chora com eles, sofrem com eles, ficam tensos no
embate “Vilão X Mocinho”, e foca no orgulho dos heróis quando finalmente derrotam o mal e
perpetuam paz e segurança.
Diferente da comédia, que imita homens inferiores com o objetivo de fazer uma
sátira ao comportamento de homens dessa categoria, a tragédia tem como
protagonistas homens nobres e ilustres, cujas ações refletem a grandeza e a
elevação moral desses personagens (CAMPOS, 2012, p. 35).

Na Poética, Aristóteles escreve:


A tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão,
numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes,
que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor,
provoca a purificação de tais paixões. (ARISTÓTELES, op. cit., 2007, p. 47.

247
Discurso sobre a Origem e os fundamentos da Desigualdade entre os homens (1755)
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Ao procurar descrever o impacto causado pela tragédia no público, Aristóteles encontra no


terror e na piedade a resposta para a finalidade de tal representação. A tragédia imita ações por
meio dos personagens que, por sua vez colocam em evidencia tipos diversos de caráter, como o
caráter nobre do herói suscitando terror e piedade no público que, assim, passa por uma purificação
destas duas paixões.
Para Aristóteles, o poeta trágico deve procurar fazer despertar no seu público as duas
emoções: o terror e a piedade (2008, 1453b e ss.), que por sua vez irão produzir a catarse.
Sensibilizando-se com o horror dos acontecimentos em cena, a tragédia suscita
no espectador, simultaneamente, um sentimento de compaixão pelo herói, devido
ao destino que lhe foi reservado; e de grande horror (terror) diante das mortes,
ferimentos e dores que se narram em cena (CAMPOS, 2012, p. 24).

Nas narrativas trágicas a catástrofe caracterizava um dos pontos altos do espetáculo e por
meio do qual o poeta despertava comoção e pavor no público que acompanhava a trajetória de
algum célebre herói.
A imitação das ações representadas revelam diferenças de caráter dos homens e expressa
seus pensamentos através de suas diferentes formas de agir. Com isso a tragédia apresenta o
protagonista na situação de agente, geralmente em situações de conflito e diante de uma decisão
que precisa tomar.
Na tragédia ação e destino estão intimamente relacionados e representa a inevitável
dependência do destino em relação ao caráter do herói. “A perspectiva da ação humana mediante
o destino funesto imposto pelas divindades é o pano de fundo da narração trágica” (CAMPOS,
2012, p. 31).
Diante do conflito do herói, o público lamenta o fim do personagem cuja vontade de bem
agir revelava seu bom caráter. E é nesse momento que o espectador do teatro se compadece do
herói e, assim, o poeta, coloca seu espectador diante da condição humana, estabelecendo uma
relação de identidade entre o herói e o público.
As tragédias exploram os aspectos da ação humana relacionados com o destino, a
catástrofe, o trágico, o infortúnio e explora os inúmeros reveses que ocorrem inclusive com as
pessoas de bom caráter.
Assim, Rousseau ratifica que o efeito geral dos espetáculos é de reforçar o caráter nacional,
acentuar as inclinações naturais e dar novas energias a todas as paixões. Dessa maneira podemos
observar sobre a representação do amor seja pela tragédia ou a comedia no teatro.
O amor do belo é um sentimento tão natural no coração humano quanto o amor
de si mesmo; ele não nasce do um arranjo de cenas; o autor não o leva para lá,
mas o encontra ali; e desse puro sentimento que ele favorece nascem as doces
lágrimas que faz correr. (ROUSSEAU, 1993. p. 45)
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Esse amor representado consiste em nutrir apenas uma emoção passageira que não dura
apenas naquele momento do palco ao publico, como Rousseau observa ao trata do Diogenes
Laécio “o coração prefere comover-se como os males fictícios do que com os verdadeiros” às
vezes as imitações causam mais lagrimas do que aquelas que sejam puras sem ser sufocados pelas
paixões.
O que faz Rousseau perguntar “por que meios o teatro poderia produzir em nós sentimentos
que não teríamos, e nos fazer julgar seres morais do modo diferente do que nos mesmos
julgamos?”
O genebrino, dessa forma pondera o homem em suas palavras “nasceu bom”, em virtude
de que “está em nós e não nas peças a fonte do interesse que nos prende ao que é honesto e nos
inspira aversão pelo mal. Não há arte que produz esse interesse, mas apenas as artes que se valem
dele.” (ROUSSEAU, 2015, p. 52) Assim como, “Nas brigas em que somos meros espectadores,
tomamos imediatamente o partido da justiça, e não há ato de maldade que não provoque em nós
uma viva indignação, desde que não lucremos nada com ele: mas quando nosso interesse é
envolvido, nossos sentimentos logo se corrompem; e só então preferimos o mal que nos é útil ao
bem que a natureza nos faz amar.” (ROUSSEAU, 2015, p. 52).
Em vez que, ratifica Rousseau, o homem é uno, mas é modificado pelas religiões, pelos
governos, pelas leis, pelos costumes, pelos preconceitos e pelos climas torna-se tão diferente de si
mesmo (ROUSSEAU, 2015, p. 45) e que não se deve procurar o que é bom para os homens em
geral, como caso apresentar os espetáculos em Genebra, e sim o que é bom em tal tempo e em tal
lugar, pois” no fundo, depois que um homem foi admirar algumas belas ações fabulosas e chorar
desgraças imaginarias que mais se pode exigir dele? Não está ele contente consigo mesmo? Não
aplaude sua bela alma? Não está em dia com tudo o que deve à virtude, graças à homenagem que
acaba de lhe prestar? Que mais queriam que ele fizesse? Que ele próprio praticasse a virtude? Ele
não tem papel a representar: não é ator (ROUSSEAU, 2015, p.54). Assim o genebrino alega que
as representações no teatro não se aproximam dos homens, mas se afasta, pois na palavra do
filósofo seria uma loucura querer transportar seriamente para sociedade o que serve apenas para
alegrar o público no palco.
No último momento da Carta, observamos a seguinte conclusão: Genebra não é Paris e o
que vale para as leis vale para os espetáculos. Genebra tem geografia, clima, religião, costumes,
maneiras e leis próprias. E, principalmente, não é uma Monarquia, é uma República, à qual não
convém um teatro aristocrático, mas espetáculos que celebrem a igualdade. Por isso, Rousseau
dirige o seguinte apelo aos genebrinos, usando imagens que sugerem a analogia entre o teatro
moderno e a prisão:
Não adotemos esses espetáculos exclusivos que encerram tristemente um
pequeno número de pessoas num antro escuro; que as mantêm temerosas e
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imóveis no silêncio e na inação; que só oferecem aos olhos biombos, pontas de


ferro, soldados, aflitivas imagens da servidão e da desigualdade. Não, povos
felizes, não são essas as vossas festas! É em pleno ar, é sob o céu que deveis
juntar-vos e entregar-vos ao doce sentimento de vossa felicidade. (ROUSSEAU,
1995, p. 114)
Nesse sentido, Rousseau recusa a cena privada, afirmando que esta seria inútil e vaga
dentro de uma República e que a levaria ao ócio e tragédias. Afirma também que o teatro não tem
função pedagógica, não se pode confundir educação e divertimento, e o teatro é a apenas um fator
de diversão para os cidadãos.
Entretanto, como alternativa, o genebrino defende as celebrações públicas, reproduzidas
ao ar livre, em que os cidadãos de Genebra não precisaria ser um personagem ou um espectador,
diferente do Teatro, ao invés de encenações, eles viveriam o próprio espetáculo, um grande festa
para todos as cidadãos da República. A festa coletiva daria a todos a mesma importância. E a festa
jamais seria confundida como um aspecto educativo e sim lazer e distração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O teatro surgiu a partir do cotidiano do ser humano, através das suas necessidades. O
humano primitivo caçava e era selvagem, por isso sentia necessidade de dominar a natureza.
Nessas necessidades surgem o desenho e o teatro na sua forma mais primitiva.
Aristóteles percebeu o quanto o efeito visual, ou o espetáculo, era importante. E esse
espetáculo mostrava uma história diretamente a uma platéia. E o teatro grego fez uso abundante
do espetáculo.
Séculos depois a discussão acerca dos espetáculos veio a tona após um verbete publicado,
onde a proposta de instaurar uma companhia de teatro na republica genebrina causa espanto e
indignação. Visto em que, na visão do autor da proposta, Jean Le Rond d’Alembert, o teatro
causaria bem para Genebra, visando a educação e finura de tato aos cidadãos genebrinos. E apesar
de não se tolerarem comédias em Genebra, a solução apontada pelo filósofo é de leis para a boa
conduta dos comediantes e assim Genebra estaria livre de libertinagem e propícia à bons costumes.
Nesse sentido, Rousseau recusa a cena privada, afirmando que esta seria inútil e vaga
dentro de uma República e que a levaria ao ócio e tragédias. Afirma também que o teatro não tem
função pedagógica, não se pode confundir educação e divertimento, e o teatro é a apenas um fator
de diversão para os cidadãos.
Entretanto, como alternativa, o genebrino defende as celebrações públicas, reproduzidas
ao ar livre, em que os cidadãos de Genebra não precisaria ser um personagem ou um espectador,
diferente do Teatro, ao invés de encenações, eles viveriam o próprio espetáculo, um grande festa
para todos as cidadãos da República. A festa coletiva daria a todos a mesma importância. E a festa
jamais seria confundida como um aspecto educativo e sim lazer e distração.
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REFERÊNCIAS
ROUSSEAU, J-J. Carta a D’Alembert sobre os espetáculos. Tradução: Roberto Leal Ferreira,
Unicamp: São Paulo, 2015.
Diderot, D. e D’Alembert. Enciclopédia ou Dicionário Raciocinado das ciências, das artes e dos
ofícios. Volume: 4 política. Tradução: Maria das Graças de Souza, Pedro Paulo Pimenta. Thomaz
Kawauche. I ed. São Paulo: Editoria UNESP, 2015.
CAMPOS, Joyce N. Ação, Destino e Deliberação na Tragédia Grega e na Ética aristotélica.
Goiânia: Universidade Federal de Goiás – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2012.
(Dissertação de Mestrado)
ARISTOTE. La Poétique. Texte, traduction et notes par Roselyne Dupont-Roc et Jean Lallot.
Paris: Seuil, 1980.
______________. A Poética de Aristóteles. Tradução e notas de Ana Maria Valente, prefácio de
Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 200
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DE ESCRAVIZADA A ADVOGADA IMPOSSÍVEL: SENTIDOS EPISTEMOLÓGICOS,


JURÍDICOS E LINGUÍSTICOS NA PETIÇÃO DE ESPERANÇA GARCIA

FROM SLAVE TO IMPOSSIBLE LAWYER: EPISTEMOLOGICAL, LEGAL AND


LINGUISTIC MEANINGS IN THE PETITION OF ESPERANÇA GARCIA

Heridan de Jesus Guterres Pavão Ferreira – UFMA/IMEC


hguterres@gmail.com
Alexandre Moura Lima Neto, IMEC
alexandrenetoadv@hotmail.com
Elton David Pereira Nascimento – UFMA
eltonnascimento@live.com

Eixo Temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia.

Resumo: O gênero textual carta possui elementos que o diferem do texto denominado Petição
Inicial, comum na linguagem jurídica, sendo esta última a peça processual que instaura o processo
jurídico, levando ao Juiz-Estado, os fatos que compõem o direito, denominados causa de
pedir, fatos e fundamentos, bem como o pedido propriamente dito. Nas formas de Estado onde o
particular não pode realizar a autocomposição de seus conflitos em razão da não detenção do
monopólio da força, o sujeito busca a intervenção do Estado, a fim de solucionar seus conflitos,
especialmente quando estes não se resolvem por meio da negociação. Na discussão ora proposta,
tem-se como objetivos discutir a busca da resolução de conflitos vivenciados por uma mulher
escravizada, a partir da escrita de uma carta, descrevendo-se os aspectos jurídicos e
epistemológicos nela presentes, cujo destinatário foi o Governador da Província do Piauí (Sec.
XVIII); discutir o conceito e características de uma petição; verificar em que medida o gênero
textual carta pode ser considerado uma petição jurídica, mostrando ainda os caminhos que levaram
ao reconhecimento de Esperança Garcia como primeira advogada do Estado do Piauí. A discussão
tem como premissa o diálogo interdisciplinar, chamando a atenção para o fato de que uma petição
pode ser produzida por alguém do povo, ainda que este não tenha a formação específica na área
do direito. A mulher negra, ainda que escravizada, a despeito dos estereótipos com que via de
regra, é retratada, em obras diversas, sendo, muitas vezes, apresentada como submissa e passiva,
sempre se opôs à escravidão, buscando as mais diferentes estratégias para alçar sua liberdade.
Palavras-chave: Direito. Petição Inicial. Carta. Gênero textual

Abstract: The letter textual genre has elements that differ itself from the text called the Initial
Petition, common in legal language, the latter being the procedural document that establishes the
legal process, taking to the Judge-State, the facts that compose the law, called cause of asking,
facts and grounds, as well as the request itself. In the forms of State where the individual cannot
self-compose his conflicts due to the non-holding of the monopoly of force, the subject seeks,
State intervention in order to resolve his conflicts, especially when these are not resolved through
negotiation. In the discussion now proposed, the objectives are to discuss the search for the
resolution of conflicts experienced by a slave woman, from the writing of a letter, describing the
legal and epistemological aspects present in it, whose address was the Governor of the Province
of Piauí (Sec. XVIII); discuss the concept and characteristics of a petition; verify the extent to
which the letter textual genre can be considered a legal petition, also showing the paths that led to
the recognition of Esperança Garcia as the first lawyer in the State of Piauí. The discussion is
based on interdisciplinary dialogue, drawing attention to the fact that a petition can be produced
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by someone from the people, even if they do not have specific training in the area of law. The
black woman, even though enslaved, despite the stereotypes with which she is, as a rule, portrayed,
in different works, being often presented as submissive and passive, has always opposed slavery,
seeking the most different strategies to raise her freedom.
Keywords: Law. Inicial petition. Letter. Textual genre

1 INTRODUÇÃO

O gênero textual carta foi, ao longo dos anos, o principal meio de comunicação entre as
pessoas, sendo também conhecida como correspondência; já foi um dos mais aplicados na
comunicação do cotidiano. A principal característica desse gênero textual é a existência de um
emissor (remetente) e um receptor (destinatário). Os fatores de textualidade subjazem o gênero
textual carta, observando-se que a intencionalidade é o fator primeiro, pois, quem escreve uma
carta, tem uma intenção comunicativa que se realiza por meio desta. A situacionalidade é outro
fator que se identifica em uma carta. Ao produzir seu enunciado, o emissor o faz em um
determinado contexto, ou seja, em uma dada situação comunicativa.
O texto epistolar carta traz uma ou mais informações ao destinatário, inserindo-se, nesse
contexto a informatividade que está relacionada à previsibilidade do texto; assim, um texto
informativo deve conter informações que situem o leitor, mas, ao mesmo tempo, lhe traga
informações sobre fatos até então desconhecidos, o instigando a argumentar, ainda que
internamente com o emissor. Nela, o emissor se vale de seu conhecimento acerca do mundo para
verbalizar, produzindo seu discurso a um outro, que também o fará a partir do seu campo social.
Ou seja, ao enunciar, o emissor o faz a partir de das leituras prévias que o fez, sejam estas leituras,
em uma acepção freiriana, do mundo ou da palavra propriamente dita.
Nessa acepção, o emissor toma como referência outros textos, em uma relação de diálogos
com estes, a partir do fator denominado intertextualidade, o que implica pontuar que todo texto se
constitui um intertexto, haja vista advir de muitos diálogos produzidos entre aquele que enuncia e
outros textos. Ainda como fator de textualidade, situam-se a coesão e coerência textual,
considerados de extrema importância na enunciação e recepção de textos. Enquanto a coerência
diz respeito à harmonia de sentido entre o que é enunciado, a coesão refere-se à estrutura formal
da sequência linguística, o que ocorre por meio de conectivos. Tais fatores são bastantes relevantes
na aceitabilidade do texto pelo receptor, pois, este somente aceitará o enunciado, se este lhe fizer
sentido.
Considerando, pois, estes fatores, objetiva-se, por meio deste trabalho, discutir a busca da
resolução de conflitos vivenciados por uma mulher escravizada, a partir da escrita de uma carta,
descrevendo-se os aspectos jurídicos e epistemológicos nela presentes, cujo destinatário foi o
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Governador da Província do Piauí (Sec. XVIII); discutir o conceito e características de uma


petição; verificar em que medida o gênero textual carta pode ser considerado uma petição jurídica,
mostrando ainda os caminhos que levaram ao reconhecimento de Esperança Garcia como primeira
advogada do Estado do Piauí.
A discussão tem como premissa o diálogo interdisciplinar, que se evidencia no âmbito da
pesquisa qualitativa, de natureza descritiva bibliográfica, a partir da análise de textos e
documentos acerca do tema ora proposto, que se mostra relevante na medida em que discute a
violência da escravidão negra, no Brasil, bem como no sentido de desmistificar a imagem dos
negros escravizados, que via de regra, se apresentam como passivos e sem nenhuma inteligência.

2 CONTEXTUALIZANDO O TEMA

O Piauí foi colonizado a partir em meados do século XVII, na década de 1660, sendo seu
povoamento, de acordo com Mott (2010), ocorrido do litoral para o interior, possivelmente em
razão dos engenhos erradicados no litoral, o que inviabilizava a criação de gado, de forma
concomitante com o cultivo da cana de açúcar, o que faz com que se evidencie uma disparidade
em relação a outras capitanias, ou seja, a presença dos engenhos no litoral, impossibilitava a
presença do gado no mesmo território em que eram plantadas as lavouras de cana.
No que concerne à escravidão negra, homens, mulheres e crianças vindos da África,
passaram a trabalhar de forma forçada, sem qualquer tipo de ganho, nas fazendas ali presentes.
Havia, segundo França et al (2015, p. 24) dois grupos. Um deles pertencia à Coroa e outro grupo,
pertencente a particulares.

Os escravos pertencentes a Coroa são aqueles que residiam nas antigas fazendas de
Domingos Afonso Mafrense. Este resolveu sair do Piauí e deixou todos os seus bens aos
jesuítas. Porém, com a chegada do Marquês de Pombal, e a expulsão dos jesuítas, em
1760, tudo que pertencia aos padres missionários agora era de propriedade da Coroa.

Esta saída de Domingos Afonso Mafrense mudou a vida dos trabalhadores de suas
fazendas, ainda que os jesuítas não oferecessem uma vida mais leve a seus subordinados,
conforme afirma Souza (2009). Os padres jesuítas também tiveram em seu jugo, primeiramente
indígenas e, posteriormente, negros, que para estes trabalhavam na condição de escravizados.
Era preciso, pois, catequizar homens e mulheres, ensinando-lhes as primeiras letras, para
que estes, em função das leituras bíblicas aceitassem mais facilmente os fundamentos do
catolicismo cristão, ao mesmo tempo em que não se rebelassem contra seus senhores.
Foram, pois, muitos os que aceitaram a fé cristã, ao mesmo tempo em que cabe se destacar
o papel dos jesuítas na aquisição da leitura e escrita, bem como de que forma tal aquisição deram
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um diferencial em relação aos outros negros e negras que não dominavam a arte da leitura e da
escrita. A negra Esperança Garcia esteve entre o rol de escravizados que liam e escreviam,
conforme descreve Souza (2009, p. 2):

Alguns historiadores asseguram que, além de Esperança Garcia, haveria outros escravos
alfabetizados nas fazendas de gado da Província do Piauí, estas de propriedade e
gerenciadas pelos padres Jesuítas até a ascensão do Marquês de Pombal. Mas estudiosos
piauienses como o historiador Solimar Lima (UFPI) ponderam quanto à existência de
inúmeros cativos alfabetizados no Piauí, considerando-se a falta de provas materiais,
como a inexistência de outros documentos que tenham sido escritos por escravos neste
Estado, ou mesmo escolas que admitissem escravos ou os filhos destes durante a
administração colonial portuguesa. Os estudos acerca da educação ou do ensino das
primeiras letras ao trabalhador escravizado no Brasil e, particularmente, no Piauí, ainda
são muito restritos ou de difícil acesso.

Nessa acepção, observa-se a existência de escravizados, alfabetizados no Brasil colonial


do século XVIII, o que faz com que se destaque que ler e escrever, em um período marcado pela
escravidão negra, não era uma prerrogativa apenas dos filhos das famílias aristocráticas, mas de
alguns escravizados, que de forma excepcional, romperam com uma barreira linguística que via
de regra, distinguia cativos e senhores, tais como Luiz Gama (1830-1882), poeta baiano e sua mãe,
Luíza Mahim. (SOUZA, 2006).
Ressalta-se ainda que no que concerne ao Piauí, mais especificadamente de sua presença
no contexto da discussão ora apresentada, cujo protagonismo foi de uma mulher negra e cativa, as
terras ocupadas pelos padres jesuítas, lhes foi deixada pelo donatário Domingos Afonso Mafrense,
quando este sai do Piauí. (FRANÇA, et al, 2015).
À época, o declínio dos jesuítas já era evidente, especialmente pelo ódio que o Marquês de
Pombal tinha destes e que mais tarde, culminaria com a sua expulsão das terras brasileiras.
Após a expulsão dos jesuítas, em idos de 1759, as fazendas onde estes habitavam, passaram
a se chamar Fazendas do Fisco ou Fazendas do Real Fisco, sendo então de propriedade da Coroa,
com tudo que nelas havia, inclusive os escravizados, que ali viviam. (WOOLLEY, 2009).
Esperança Garcia nasceu na região onde atualmente é o município de São José do Piauí; a
cativa viveu com os padres jesuítas até quando estes deixam o estado do Piauí e a jovem mulher
passa a viver sob o jugo de administradores, ligados ao governo da província. Esses
administradores eram, de acordo com Brandão (1999) e Mott (2010), apud França et al (2015, p.
26-27), bastantes cruéis com os escravizados:

[...] o caráter violento em relação ao senhor e escravo no Piauí foi uma realidade. Era
necessário que houvesse ordem e disciplina, e os castigos físicos foram os meios
utilizados para garantir a organização. Havia resistência dos escravizados, eles
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almejavam por liberdade, porém, era mais provável surgir a alforria nos engenhos de
açúcar do que na zona pecuária. A média de vida dos escravos no século XVIII, no Piauí,
era de 35 anos em média.

Ainda que a vida entre os jesuítas não fosse necessariamente um viver sem trabalho e
obrigações, este era muito diferente agora sob o jugo da coroa, o que explica a longevidade dos
escravizados. Separada do marido e dos filhos mais velhos, Esperança Garcia passou a viver, com
seus companheiros, sob o jugo do Capitão Vieira Couto. Pode-se observar, em sua carta, o
sofrimento advindo do fardo que foi a escravidão negra, com toda a sorte de maus-tratos e castigos,
consumados à guisa de adestrar para o trabalho homens, mulheres e até mesmo crianças que
viviam na Fazenda, sob o jugo de seu administrador, o Capitão Antônio Vieira do Couto,
doravante Capitão Vieira do Couto.
Esperança Garcia, segundo Sousa et al (2017) escreve uma carta petição ao então
Governador da Província de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, a fim de
que este conhecesse a situação de abusos, castigos físicos e maus-tratos em que esta vivia com seu
filho menor e os outros negros e negras, a quem chama no texto de companheiros.
A escravizada usa como principal estratégia a religiosidade das autoridades, ratificada
pelos padres, durante o período em que estes residiram no Brasil, convindo ressaltar que muitos
desses povos que viveram na condição de escravizados, tinham a própria religião, geralmente
cultuadas em seus países de origem, mas para aliviarem seu jugo, assumiram a religião do
colonizador, tendo, inclusive, nela se batizado.

3 ELEMENTOS JURÍDICOS PRESENTES NA CARTA-PETIÇÃO DE ESPERANÇA


GARCIA

Para fins de reflexão acerca do texto produzido por Esperança Garcia, inserido inicialmente
no gênero textual carta e, posteriormente tendo sido este reconhecido como uma petição jurídica,
cabe inicialmente trazer à Segundo Mott (2010) a carta-petição de Esperança Garcia, cujo
destinatário foi o Governador da Província do Piauí, distingue-se de outros documentos da mesma
tipologia, qual seja, do gênero textual carta, em razão de seu teor, qual seja, uma denúncia de uma
autoridade a quem esta deveria ser submissa e obedecer sem contestações, enquanto escravizada.
Esperança Garcia, ao escrever para o governador da província, ao escrever para o
Governador da Província de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro expõe o
administrador da fazenda, Capitão Vieira do Couto, denunciando suas atrocidades, ao mesmo
tempo em que tal ato coloca em dúvida seu poder de mando, enquanto senhor e administrador de
uma fazenda da Coroa, pois, o teor da carta deixava explícito que este não tendo força para
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dominar uma mulher, certamente não teria poder de administrar uma fazenda inteira, com todos
os bens que esta possuía, inclusive os negros e negras que ali viviam, sob seu jugo.
À guisa de contextualizar a discussão, trazendo-a para os dias hodiernos, buscamos na
Carta Magna Brasileira o fundamento para ratificar o pedido feito ao governador da província,
ainda que se observe que o texto de Garcia fora redigido no ano de 1770, portanto, mais de
duzentos anos antes que o País, já uma república tivesse seu documento basilar, a Constituição da
República do Brasil (1988) e exatos cento e dezoito anos antes da assinatura da Lei Áurea, que
oficialmente declarou o término da escravidão negra no Brasil, o texto em questão demonstra que
a escravizada estaria à frente do seu tempo, sem imaginar os significados que subjazem seu escrito.
Esperança Garcia se coloca, ainda que sem o saber, no artigo 5º da CF, que dispõe que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade
ou abuso de poder;

É, pois, na busca pelo direito à própria vida; esta se vê ameaçada, assim como a seus
companheiros de infortúnio; na busca pela igualdade, ainda que se possa afirmar que nem mesmo
em mais de duzentos e cinquenta anos e três séculos depois, o direito das minorias, entre estas,
mulheres negras se possa dizer que haja igualdade entre os cidadãos brasileiros.
Foi, na tentativa de se sentir na segurança de seu lar, na acepção de que este seria onde
estava sua família (marido e filhos), E. Garcia escreve aquele que mais que uma simples carta,
seria um documento a ser reconhecido enquanto dispositivo jurídico e além de mostrar que a
escravidão negra não sufocou os ideais de liberdade e o senso de repulsa e revolta ao regime
escravocrata, imposto a negros e negras, ainda lhe conferiu o título de primeira advogada do estado
do Piauí.
Cabe, pois, chamar a atenção para o fato que, no tocante ao teor de sua carta, fazendo-se
uma análise desta, enquanto petição, a fim de discutir-se o fato de Esperança Garcia, em uma
época em que não havia advogadas, especialmente negras, expõe, com todos os elementos
imprescindíveis a uma petição jurídica, os fatos, a causa de pedir e o pedido, propriamente dito, o
que se fez a partir da análise de cada enunciado presente no texto epistolar enviado ao Governador
da Província do Piauí, como segue:

“Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto,
casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões,
aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal.
A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança
que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de
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pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus
escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma
criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu
valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a
fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.248
De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia”

Considerando os elementos a se fazerem presentes em uma petição jurídica, como já


mencionado anteriormente e considerando-se o que preconiza o Novo CPC249, a petição inicial se
constitui enquanto instrumento de uma dada demanda. Nessa acepção, a carta redigida por
Esperança Garcia atende à regra principal de uma petição, ou seja, se apresenta na modalidade
escrita. Ortega (2016) destaca que ainda que a petição possa ser produzida na modalidade oral,
esta, imprescindivelmente, deve ser, usando uma expressão comum à linguagem jurídica,
“reduzida a termo”, ou seja, redigida.
No endereçamento, a peticionária, ou seja, aquela que faz o pedido, identifica o
destinatário e o órgão jurisdicional competente, qual seja, o Governador da Província do
Piauí. No que concerne à qualificação das partes, a peticionária identifica-se, colocando nome,
endereço onde vive, qual seja, a casa do administrador, seu estado civil de casada e profissão
(escrava250).
No que diz respeito à causa de pedir, elemento que integra uma petição inicial, no
tocante à exposição dos fatos e fundamentos jurídicos do pedido, Esperança Garcia aponta a
separação da família (marido e filhos), os castigos frequentes e cruéis, impostos a ela e a seus
companheiros, como os acontecimentos que ensejaram seu texto, sendo principalmente a
separação entre esposa e marido, o argumento principal, haja vista que a separação seria
infundada, de acordo com as regras da religião católica, conforme afirma a peticionária, pois
para a igreja, marido e mulher devem ficar juntos.
No que concerne ao pedido propriamente dito, Esperança Garcia o expõe textualmente:
que o Governador da Província, mande o administrador da Fazenda, a devolvê-la para o lugar
onde esta residia com o marido e os filhos, a Fazenda Algodoes, usando como argumento a
necessidade de batizar sua filha menor.

248
Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi
adeministrar, q. me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde
nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe
fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do
sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar
a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.S. pello amor de Ds. e do seu Valimto.
ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver
com meu marido e batizar minha filha q. De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia. Texto transcrito em Português
arcaico.
249
Código de Processo Civil.
250
Ainda que não se trate de uma profissão, usou-se a identificação feita por Esperança Garcia, para designar suas
funções.
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3 CONCLUSÕES

Nos propusemos por meio deste trabalho discutir em que medida um texto epistolar,
inserido no gênero textual carta, enquanto documento escrito, pode ir além de seu propósito inicial,
circunscrevendo-se enquanto petição jurídica. O documento redigido por Esperança Garcia possui
do ponto de vista da estrutura, todos os elementos de textualidade necessários à composição de
um texto, tanto em sua forma, como em relação aos aspectos semânticos.
Ao mesmo tempo, trata-se de um documento, produzido na modalidade escrita da Língua
Portuguesa, que se classifica, a partir de todos os elementos apresentados como gênero textual
petição jurídica, não podendo, pois, ser classificado como simples carta. O texto contém todos os
elementos necessários a uma petição inicial, identificação da peticionária, o destinatário, a causa
de pedir e o pedido propriamente dito.
No que diz respeito à relação de poder, que emerge a partir da leitura da petição de
Esperança Garcia, esta se evidencia, quando a escravizada coloca em dúvida o poder de mando e
governança do Capitão Vieira Couto, cuja obediência de seus subordinados deveria ser
indubitável; ao ser contestado, o senhor de escravos acaba desmoralizado diante da sociedade local
e do próprio Governador da Província de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro.
O texto quebra estereótipos, construídos ao longo da história do Brasil, os quais mostram
a submissão dos sujeitos negros e negras escravizados; ao contrário, esses sujeitos buscaram
formas de sobrevivência e mesmo a busca de se rebelar contra a situação que se lhes apresentava,
buscando estratégias para conseguir o que desejavam, ainda que na maioria das vezes, muitas
dessas estratégias não tenha sido exitosa.
Ao reconhecer Esperança Garcia, como primeira advogada do estado, a Ordem dos
Advogados do Piauí, lhe concede o título, sendo o dia 06 de setembro, data da redação do texto,
instituído como o Dia da Consciência Negra, no Piauí.
Referências

BRANDÃO, Tanya Maria. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do


século XVIII. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 1999.
FRANÇA, João Vieira de, MOTA, José Monteiro, SILVA, Leandro Alves da e OLIVEIRA, Maria
Daise Cardoso. A CARTA DE ESPERANÇA GARCIA: UMA MENSAGEM DE
CORAGEM, CIDADANIA E OUSADIA. Conclusões acerca do projeto realizado no período
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http://afro.culturadigital.br/wp-content/uploads/2015/10/A-Carta-de-Esperanca-
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MOTT, Luiz. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina: FUNDAC - Coleção
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NUNES, Célis Portella e ABREU, Irlane Gonçalves de. Vilas e Cidades do Piauí. In: SANTANA,
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WOOLLEY, Patrícia Domingos. Os jesuítas nos setecentos europeus: autoridade, ensino e
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http://www.historia.uff.br/cantareira/novacantareira/index.php?option=com_content&v
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jan. /2020.
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EDUCAÇÃO E DIGNIDADE SEGUNDO IMMANUEL KANT

EDUCATION AND DIGNITY ACCORDING TO IMMANUEL KANT

Karoliny Costa Silva


Graduação/UFMA
Profª Drª Zilmara de Jesus Viana de Carvalho
Doutora/UFMA

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Na obra intitulada Sobre a Pedagogia, o filósofo prussiano Immanuel Kant aborda uma
educação prática, pautada na formação do caráter moral, ou seja, voltada para a personalidade.
Formação esta que prepara o educando-formando para agir mediante máximas, por meio do uso
de sua própria razão, em outras palavras, a servir-se de si mesmo, a fim de torná-las universais
segundo o imperativo categórico, bem como para a moderação através dos deveres consigo mesmo
e deveres para com os outros. Nestes, reside a noção de dignidade humana que consiste em saber
o próprio valor como pessoa, isto é, como fim em si mesmo, e, da mesma maneira, o respeito pelos
demais como pessoa também, e não apenas como meio para se atingir uma finalidade. Tal plano
pedagógico, que é imprescindível para o desenvolvimento da humanidade para o melhor - uma
sociedade moral - pretende que o homem cumpra seu dever diante das leis, pois sentiu antes a
coação destas, e foi podado a usar a liberdade de forma ponderada, a ter autonomia e a cultivar
uma boa vontade. Nesse sentido, o presente trabalho objetiva abordar a noção de dignidade do
homem e a moralidade por meio de um processo educativo, conseguindo atingir, assim, um reino
dos fins, que seria a expressão por excelência da dignidade do homem.
Palavras-chave: Educação. Moral. Liberdade. Dignidade. Deveres.

Abstract: In the work entitled About Pedagogy, the Prussian philosopher Immanuel Kant
addresses a practical education, based on the formation of the moral character, that is, focused on
the personality. Formation that prepares the student to act through maxims, through the use of his
own reason, in other words, to serve yourself, in order to make them universal according to the
categorical imperative, as well as for the moderation through duties to with myself and duties
towards others. In these, lies the notion of human dignity, which consists in knowing one's own
value as a person, that is, as an end in itself, and, in the same way, respect for others as a person
as well, and not only as a means to achieve a goal. Such a pedagogical plan, which is essential
for the development of humanity for the better - a moral society - intends that man fulfills his duty
before the laws, because he felt the coercion of them before, and was able to use freedom in a
considered way, having autonomy and cultivating goodwill. In this sense, this paper aims to
address the notion of human dignity and morality through an educational process, thus achieving
a kingdom of ends, which would be the expression par excellence of human dignity.
Keywords: Education. Moral. Freedom. Dignity. Duties.

A educação é uma arte que se aperfeiçoa através das gerações, cujo desenvolvimento se dá
não apenas no indivíduo, mas na espécie. Isso se deve pelo fato de que as disposições naturais do
homem não se desenvolvem por si mesmas, antes estão em germe, como uma semente que deve
ser cultivada, e que até então, não possui a nota da moralidade. Isto é, diferentemente dos animais,
o homem não possui instinto, logo, precisa de cuidados e proteção, bem como de instrução e
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formação. A dificuldade encontrada é que quem recebeu uma má educação, acaba não educando
bem sua posteridade. Nossos filhos levarão algo ou não desta geração, e acrescentarão algo a outra.
E, assim, a educação vai caminhando devagar à perfeição, como a um ideal difícil, mas não
impossível de realização.

Nesse sentido, o que confere a característica de ser tão árduo o caminho para se alcançar a
humanidade - destinação do homem - é justamente o que nele é inerente, por ser tanto um ser
sensível quanto inteligível, a saber, por meio da vontade e através da liberdade, o homem age de
maneira boa ou má, pela virtude ou pelos vícios. As crianças nascem com grande pendor à
liberdade, e se não forem disciplinadas, permanecerão selvagens e menores por toda sua vida. Ou
seja, com uma liberdade sem limites, farão o que der na telha, prejudicando o desabrochar de suas
disposições para a habilidade, para a prudência e para a moralidade.

Então, de que forma pode um ser dotado de liberdade se submeter a coação de leis? E como
se cultiva a liberdade sob coação? Como fomentar a consciência de uma dignidade humana? De
que maneira os vícios sepultariam o direito da humanidade? O papel da educação seria justamente
o de preparar a criança para conviver em sociedade, para se dar a própria lei, de ser livre nas suas
escolhas, a tratar os demais e a si mesmo como pessoa, fazendo florescer a moralidade.

Desse modo, faz-se necessário demonstrar como seria essa pedagogia. A educação é
dividida em dois tipos, a educação física, e a educação prática. A primeira, é negativa e diz respeito
à disciplina, com o intuito de transformar a mera animalidade em humanidade tanto no indivíduo
quanto na sociedade, isto é, da selvageria ou liberdade sem limites, a sentir a coação das leis. Diz
respeito ao cuidado, proteção e subsistência. Aqui, o educando é passivo, e ainda menor - depende
de outro- e não segue máximas. Não iremos abordar inteiramente a educação física, mas vale
deixar claro que esta precede a educação prática, e é assaz importante, pois segundo Kant: “O
descuido da disciplina é um mal maior que o descuido da cultura, pois esta pode ser recuperada
posteriormente; o elemento selvagem, porém, não pode ser removido, e um engano na disciplina
nunca pode ser reparado.” (KANT, 2012, p.12.)

A educação prática ou moral, diz respeito ao que está relacionado com a liberdade, e
através da formação instrui o aluno a agir livremente, a ser hábil, prudente e moral. Esta é
caracterizada como ativa, uma vez que o educando se pauta em máximas, age por si mesmo e não
pela direção de outrem. A ação boa aqui não é tida pelo hábito, mas simplesmente pelo bem, por
máximas alicerçadas por princípios do dever. Dessa maneira, o homem deve ser cultivado,
obtendo habilidades ou aptidões, as quais o torna capaz de realizar quaisquer fins. A prudência
pressupõe a qualidade de ser hábil, e é a capacidade de usar todas as habilidades para se alcançar
um fim determinado. É caracterizada pelo verbo civilizar.
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A última, a moralidade, na qual vamos nos debruçar, se refere ao caráter, e consiste em


saber que o ser humano não deve ser apenas hábil, sagaz e prudente em relação aos seus fins, mas
que, diante de toda sorte de fins, saiba escolher os bons e que possua uma boa vontade. Isto é:

Discernimento, argúcia de espírito, capacidade de julgar e como quer que possam


chamar-se os demais talentos do espírito, ou ainda coragem, decisão, constância
de propósito, como qualidades de temperamento, são sem dúvida a muitos
respeito coisas boas e desejáveis; mas também podem tornar-se extremamente
más e prejudiciais se a vontade, que haja de fazer uso destes dons naturais e cuja
constituição particular por isso se chama caráter, não for boa. (KANT, 1980, p.
111.)

A característica de se ter um caráter é justamente a posição de escolher bons fins que se


configuram como aqueles que servem para todos, segundo o imperativo categórico. Uma vez que
deve-se criar e aperfeiçoar o caráter, faz-se necessário princípios - o imperativo- e uma formação
para podar a vontade a eleger bons fins. A educação prática é pautada justamente na formação
desse caráter moral, ou seja, voltada para a personalidade, preparando, assim, o educando-
formando, para agir mediante máximas, ou melhor, a acolher máximas boas, por meio do uso de
sua própria razão e servindo-se de si mesmo, universalizando-as, bem como para a moderação da
vontade através dos deveres consigo mesmo e deveres para com os outros.

Na Antropologia de um ponto de vista pragmático, Kant discorre sobre o caráter por duas
vias, tanto sobre o caráter físico quanto o caráter moral. O primeiro, o físico, afirma que o homem
possui este ou aquele caráter e refere-se ao que é sensível neste; o segundo, o caráter moral, que
diz respeito a um caráter em geral, ou é único ou não é nenhum, relaciona-se com a liberdade, e,
nesse sentido, diferencia o homem dos demais animais, fazendo jus a um ser racional e capaz de
escolha, atentando ao que este faz de si mesmo.

Assim, o caráter moral é pautado por princípios morais, destituído de qualquer móbil ou
influência de inclinações ou paixões, conferindo um homem com a índole moral e com uma boa
vontade. O filósofo prussiano demonstra em Sobre a Pedagogia que o caráter é resistente e nos
habitua a respostas demolidoras, e, sobretudo, impede que inclinações se tornem paixões. Como
bem diz o dito da divisa estoica citado pelo autor: Sustine et abstine - Aguenta e abstém-te. Para
Sêneca, e nesse ponto assemelha-se ao que Kant quer mostrar, não se trata apenas de se abster em
face dos sentimentos mais corrosivos ou das emoções que nos assolam, mas de aprender a não
ceder a estes, a não se deixar levar. Em lugar de abster-se (que seria uma espécie de covardia em
face dos desafios com que nos deparamos cotidianamente), o conselho é conter-se. Para
demonstrar isso de uma melhor forma, Kant cita Horácio: Vir propositi tenax, “O homem é justo
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e tenaz no seu propósito/em sua firme mente não se perturba com o furor dos cidadãos impondo
a injustiça/nem com o vulto do ameaçador tirano.”(HORÁCIO, 2008, livro III).

“Se prometo algo a alguém, tenho de o cumprir, independentemente de me vir assim


prejudicar. Pois um homem que se propõe a algo, mas não o faz, já não pode mais confiar em si
mesmo.” (KANT, 2012, p. 67). Exemplo: proponho-me de levantar cedo todos os dias, às 5:00
horas da manhã para estudar. Mais tardar, não consigo levantar no horário, e, assim, procuro
inúmeras desculpas para atrasar meu compromisso comigo mesmo, seja qual for, devido ao clima
quente, chuvoso, etc. Desta forma, adia-se o propósito dia após dia, e, consequentemente, já não
se pode confiar em si mesmo.

Nesse sentido, um homem que sempre viveu viciosamente e quer se converter de uma hora
para outra, tornando-se de uma só vez igual àquele que se aplicou o bem em toda sua vida, é
inviável. No entanto, pode-se sim, em um processo gradual, que este possa vir a agir por uma boa
vontade, uma vez que possui disposições originárias para o bem, que não podem ser enxertadas,
e o mal não deriva daí como uma raiz. Em outras palavras, este pode se transformar, porque possui
liberdade para poder mudar um estado de coisas no mundo. “Donde se segue que a formação
moral do homem não deve começar pela melhoria dos costumes, mas pela conversão do modo de
pensar e pela fundação de um caráter.” (KANT, 2008, p.57).

Vale salientar que uma boa vontade é aquela cuja ação é ilimitada e absolutamente
genuína, ou seja, é em si mesma e possui valor absoluto, desprovida de qualquer móbil ou
inclinação, ou até mesmo da soma destes. A razão, como faculdade prática, influi sobre a vontade,
pelo princípio do querer, e, dessa forma, esta vontade não será apenas boa para se alcançar algo,
mas também será boa em si mesma. Neste conceito de vontade boa, está contido o conceito de
Dever. A relação entre os dois está na ação, no que confere o princípio do querer, e o valor, pelo
princípio da vontade, esta se vê “colocada contra a parede”, entre seu principio formal que é a
priori; e o que é material, isto é, ao móbil, que é a posteriori. Caso a ação seja praticada por dever,
a vontade é determinada, assim, segundo o principio formal do querer em geral, o qual apenas é
a priori, sem materialidade. “Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação
das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade.” (KANT, 1980, p. 123). Essa
vontade não é apenas influenciada pela razão objetivamente, possui também móbiles que influem
subjetivamente. Nesse sentido, a determinação da vontade segundo leis objetivas é obrigada pelo
Dever, que também chama-se mandamento ou imperativo. “Quer dizer, a relação das leis objetivas
para uma vontade não absolutamente boa representa-se como a determinação da vontade de um
ser racional por princípios da razão, sim, princípios esses porém a que esta vontade, pela sua
natureza, não obedece necessariamente.” (KANT, 1980, p. 124).
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Nessa esteira argumentativa, o dever, ou imperativo, é formal, e demonstra uma relação


entre as leis objetivas e o princípio subjetivo do querer - a máxima - da vontade humana. Estes se
diferenciam entre imperativos hipotéticos e imperativo categórico, e se distinguem em relação a
imposição obrigante à vontade. Os primeiros, possuem condição subjetiva, e podem falar para este
ou aquele; o segundo, o categórico, é um mandamento, e deve ser seguido mesmo contra móbiles
e inclinações, é, portanto, necessário. Iremos, todavia, nos ater apenas ao categórico, a fim de
mostrar sua relação com a dignidade humana.

O filósofo prussiano discorre tanto na Fundamentação da metafísica dos costumes quanto


na Metafísica dos costumes - Doutrina da virtude - acerca dos deveres para consigo mesmo e dos
deveres para com os outros, estes dividem-se em deveres perfeitos e imperfeitos. Assim, estamos
falando de um único e mesmo sujeito sob sentidos diferentes que obriga e é obrigado, e se vê tanto
do prisma de um ser sensível, quanto de um ser inteligível, mas que possui liberdade, e, por isso,
obriga a si mesmo, ou seja, a humanidade em sua própria pessoa.

Há, pois, uma divisão dos deveres consigo mesmo: a divisão objetiva dos deveres para
consigo mesmo - formal e informal -; e a divisão subjetiva dos deveres para consigo mesmo
(deveres perfeitos), especialmente como ser moral, a qual iremos nos aprofundar nesse texto. Essa
divisão subjetiva diz respeito ao homem visto como um ser animal e moral, ou somente moral.
Tanto em um como no outro há virtudes e vícios. No que se refere à animalidade, quanto à virtude:
preservação do ser humano; conservação da espécie e guardar o desfrute dos prazeres da vida;
quanto aos vícios: o suicídio, não naturalidade sexual e gula sobre alimentos e bebidas. O suicídio,
por exemplo, como Kant dá o exemplo na Fundamentação, é contraditório, pois que vai contra a
natureza, uma vez que matar a si mesmo é destruir a vida, da qual a lei é a sua conservação,
consequentemente demonstrando a não universalização do mesmo pelo imperativo categórico.
Isso é, segundo Höffe: um dever para consigo mesmo como dever perfeito que é a proibição do
suicídio, e como dever imperfeito, a “proibição do não-desenvolvimento das capacidades
próprias.” (HÖFFE, 2005, p. 209).

O dever do homem consigo mesmo como ser moral, a saber, caracteriza-se “no que é
formal na harmonia das máximas de sua vontade com a dignidade da humanidade em sua pessoa.”
(KANT, 2003, p. 262). Tem como virtude o amor à honra; e tem como vícios a mentira, a avareza
e o servilismo, os quais batem de frente com a moral, ferindo a dignidade homem e tornando-o
uma mera coisa desprezível. Sendo assim, todos esses vícios possuem algo em comum, a saber:
violação da dignidade humana, conferindo a si como objeto de desprezo. O servilismo, por
exemplo, refere-se fortemente quanto à dignidade da humanidade dentro de nós, e mostra que a
verdadeira humildade está em comparar-se a lei moral, e não ao outro. Podemos ver isso quando
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Kant menciona a respeito da educação das crianças, que educá-las baseando-se em mostrar por
meio de exemplos que este ou aquele é melhor que ela não lhe ensinará nada, apenas alimentará
inveja e hipocrisia, antes deve-se formá-las segundo a razão.

Os deveres para com os outros residem no amor e no respeito pelos demais, que se realizam
através do amor em particular: dever de beneficência, de gratidão e de solidariedade. E os vícios
do ódio aos homens: a inveja, a ingratidão, a malícia; do respeito: a moderação ou humildade. Dos
vícios acarretados por violação desse dever: soberba, detratação e escárnio. E, por fim, a união do
amor com o respeito: a amizade.

A veneração e respeito pelo direito dos homens têm de lhe ser ensinados
muito cedo, e tem de se velar muito para que os ponha em prática; por
exemplo, se uma criança encontrar uma outra criança pobre e a empurrar
orgulhosamente para fora do caminho ou simplesmente afastar de si com
um tal empurrão, ou lhe bater, etc., não se lhe deve dizer: não faças isso,
isso dói, sê compassivo! É uma criança pobre, etc., deve-se antes fazer-
lhe o mesmo tão orgulhosamente e com a mesma força, porquanto a sua
conduta repugna ao direito da humanidade. (...). (KANT, 2012, p. 69).

Destarte, para tanto, precisa-se ter autonomia, e o seu conceito consiste em dar a si sua
própria lei, sendo dela o próprio autor. De acordo com a comentadora Soraya Nour: “(...) a
autonomia faz de um ser racional, que se relaciona consigo próprio dando-se sua própria lei, uma
pessoa, conferindo-lhe “dignidade”.”(NOUR, 2013, p. 12).

A dignidade humana está ligada ao verbo dever, isto é, ao imperativo categórico,


consequentemente, aos deveres. O imperativo categórico é exposto na seguinte fórmula: Age
apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal,
correspondente à universalidade da forma da vontade, a unidade. É, pois, coercitiva, de caráter
determinante.

A segunda fórmula relaciona-se com a pluralidade dos fins, eis a forma: Age de tal
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre
e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. O homem não é taxado como um
mero preço, que pode ser trocado ou comprado, mas sim um valor que confere a este a capacidade
de se dar fins e de ser fim em si mesmo, e não meio para outra finalidade. É considerado, assim,
como pessoa, e possui um valor interno absoluto, isto é, uma dignidade. Põe-se então em
igualdade com os demais seres humanos, por meio do respeito mútuo e por respeito à lei moral.

A humanidade em sua pessoa é o objeto do respeito de sua parte exigível de todo


outro ser humano, mas que ele, por sua vez, também não pode perder. Por
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conseguinte, ele pode e deve valorar-se tanto por um baixo padrão quanto por
um alto padrão, dependendo de se vê a si mesmo como um ser dotado de sentidos
(em termos de sua natureza animal) ou como ser inteligível (em termos de sua
predisposição moral). (KANT, 2003, p. 277)

Segundo Kant, além de se ver como pessoa, deve-se enxergar como ser humano, e sempre
sobrepor a sua razão diante de sua animalidade, de forma que não a deixe prejudicar sua dignidade,
cumprindo os deveres e buscando sempre seus fins, um fim em si mesmo, não de forma servil,
mas com auto-estima.

Sendo assim, a autonomia e, por conseguinte, a dignidade, estão ligadas ao conceito de


reino dos fins no que tange a relação dos homens uns com os outros, como pessoa, mostrando-se
como participantes de uma totalidade. O reino dos fins é pluralidade vista como unidade,
consoante descrito na Fundamentação do filósofo de Königsberg:

(...) a ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns. (...)
se se fizer abstração das diferenças das pessoas entre os seres racionais e de todo
o conteúdo dos seus fins particulares, poder-se-á conceber como um todo do
conjunto dos fins (tanto dos seres racionais como fins em si, como também dos
fins próprios que cada qual pode propor a si mesmo) em ligação sistemática (...).
(KANT, 1980, p. 139).

Em vista disso, a educação seria uma condição de possibilidade para a formação de um ser
humano autônomo, livre, moral e esclarecido, que pensa por si mesmo, sem a muleta de outrem
ou de um livro. A educação prática possibilita a realização de um reino dos fins, que está
intimamente ligado a seres humanos conscientes de seus respectivos valores e de sua própria
dignidade. Isso se dá através do desenvolvimento de todas as disposições naturais, por meio de
orientação e instrução, uma vez que a virtude é algo a ser adquirido, isto é, não é inata. “A virtude
é produto da pura razão prática, na medida em que esta ganha ascendência sobre tais inclinações
com percepção de sua supremacia (fundada na liberdade).” (KANT, 2003, p. 319). Ademais, a
virtude deve ser ensinada e cultivada, assim como o caráter moral nas crianças deve ser formado,
a fim de que estas possam escolher bons fins para toda sociedade. Ao aprender as máximas, saberá
que deve agir segundo o dever e a lei moral, e não apenas por hábitos, exemplos, ou por temor a
Deus. Através dos deveres para consigo mesmo, e para com os outros, vê uma maneira de se
regular pela razão.

A relação entre a educação e a dignidade é justamente que, somos todos dignos, pois temos
dentro de nós a lei moral, no entanto, essa se vê como possibilidade - a dignidade-. Como nossas
potencialidades estão em germe e devem ser desenvolvidas por meio da liberdade e da vontade, a
educação seria a efetivação da dignidade humana, através da formação do caráter moral. Caráter
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esse que é da espécie, que com a realização de uma sociedade moral, o potencialmente digno se
tornaria de fato digno. Pois que uma sociedade que desenvolveu suas habilidades e é civilizada,
ou seja, teve um progresso técnico-científico, não quer dizer que chegou a um progresso moral.

REFERÊNCIAS

KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução de Clélia Aparecida


Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.
____________. A religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão.
LusoSofia: press. Universidade da Beira Interior. Covilhã, 2008.
____________. Fundamentação da metafísica dos costumes. Traduções de Tania Maria
Bernkopf, Paulo Quintela, Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
____________. Sobre a Pedagogia. Tradução de João Tiago Proença. Lisboa: Edições 70,
2012.
____________. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas: Edson Bini.
São Paulo: EDIPRO, 2003.
HORÁCIO, Odes, III, 3. Tradução de Pedro Braga Falcão. Livros Cotovia. Lisboa: 2008.
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Tradução de Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.
NOUR, Soraya. À Paz Perpétua de Kant - Filosofia do Direito Internacional e Das Relações
Internacionais. 2ª Edição, 2013. Wmf Martins Fontes.
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ELAS (RE)ESCREVEM A LITERATURA DE CORDEL: AUTORIA FEMININA NA


COLEÇÃO CENTENÁRIO (JUAZEIRO DO NORTE-CE)251

THEY (RE)WRITE THE CORDEL LITERATURE: FEMALE AUTHORSHIP IN THE


“COLEÇÃO CENTENÁRIO” (JUAZEIRO DO NORTE-CE)

Everton Grangeiro Gonçalves


Graduando em Biblioteconomia pela
Universidade Federal do Cariri - UFCA

Vitória Gomes Almeida


Doutoranda em Ciência da Informação pela
Universidade Federal da Paraíba - UFPB
Professora do Departamento de Biblioteconomia
da Universidade Federal do Cariri - UFCA

Germano Araújo Sampaio


Mestre em Biblioteconomia pela
Universidade Federal do Cariri - UFCA

Deise Santos do Nascimento


Doutora em Ciência da Informação pela
Universidade Federal da Paraíba - UFPB
Professora do Departamento de Biblioteconomia
da Universidade Federal do Cariri - UFCA

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Aborda aspectos de gênero, autoria feminina, memória e oralidade, considerando a


perspectiva androcêntrica presente nos discursos sobre autoria de cordéis. Refletindo sobre o
espaço dado a mulher na produção e divulgação de seus cordéis, cabe perguntar: Como se dá a
autoria feminina na literatura de cordel e quais temáticas são trabalhadas nessas obras? Objetiva
analisar a presença da autoria feminina no corpus de cordéis da “Coleção Centenário”, lançada em
2016 em alusão aos cem anos da cidade de Juazeiro do Norte-CE. A escolha do lócus e do objeto
da pesquisa dá-se pela cidade supracitada já ser referendada por sua diversidade cultural,
manifestada através das expressões religiosas, artísticas e culturais, tendo na coleção apoio
institucional para a publicação de cordéis que versam sobre temas diversos, porém limitados,
quando pensamos o aspecto da autoria feminina. Para tanto, utiliza-se como metodologia a
pesquisa bibliográfica, e analisa tematicamente sobre quais assuntos elas escrevem na referida
coleção. Por fim, evidencia-se a atuação da mulher enquanto produtora da cultura e autoras de
cordéis, fazendo uso de diferentes temáticas e projetos editoriais, rompendo dessa forma com o
silenciamento e exclusão a que foram submetidas nos discursos e história oficial, e que faz emergir
novas memórias e poéticas.
Palavras-chave: Literatura de cordel. Autoria feminina. Crítica Feminista. Memória.

Abstract: It addresses aspects of gender, female authorship, memory and orality, considering the
androcentric perspective present in the discourses on the authorship of cordéis. Reflecting on the
space given to women in the production and dissemination of their cordéis, it is worth asking:

251
Esse artigo é resultante das pesquisas e trabalhos desenvolvidos no âmbito do grupo de pesquisa Saberes -
Informação, Cultura, Patrimônio Cultural e Sustentabilidade, da Universidade Federal do Cariri (UFCA).
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How do women's authorship in the literature of string and what themes are worked on in these
works? It aims to analyze the presence of female authorship in the corpus of cordéis of the
"Coleção Centenário", launched in 2016 in allusion to the hundred years of the city of Juazeiro do
Norte. The choice of locus and the object of research is given by Juazeiro do Norte already be
endorsed for its cultural diversity, having in the collection of institutional support for the
publication of cordéis which deal with various topics, many linked to the figure of, but limited,
when we think about the aspect of female authorship. The bibliographic research is used as a
methodology, and thematically analyzes what subjects they write in that colecion. Finally, the
performance of women as a producer of culture and authorof cordéis is evidenced, making use of
different themes and approaches, thus breaking with the silencing and exclusion to which they
were submitted in the discourses and official history, and which brings new memories and poetics
to emerge.
Keywords: Cordel literature. Female authorship. Feminist Criticism. Memory.

1 INTRODUÇÃO

Quando falamos sobre literatura de cordel, somos remetidos a elementos intrinsecamente


ligados à memória e à oralidade. Esse documento de memória, reverenciado como uma das
literaturas mais importantes do Nordeste, conhecido também como folheto, apresenta-se também
instrumento de representação artística de eventos políticos, econômicos e sociais. A partir dos
folhetos muitos desses relatos são reproduzidos como manifestações de vivências coletivas
inerentes à história, saberes e fragmentos identitários do poeta ou de um grupo.
O folheto destacou-se por muito tempo como o grande “jornal” do sertão e tinha como
objetivo informar acontecimentos da época. Por essa razão, o folheto configura-se tanto um
documento de memória como também como fonte de informação e pesquisa.
Desde muito tempo, foi negado às mulheres a manifestação de ideias, sendo que muitas
lutaram, e ainda lutam, para conquistar seu espaço, sendo a Literatura uma das primeiras
ferramentas utilizadas para quebrar as barreiras impostas pelo sistema patriarcal. No contexto do
cordel, mais precisamente no início do século XIX até meados do século XX, eram escassos os
folhetos de autoria feminina, fato que começa a mudar a partir da década de 1970, quando as
mulheres gradativamente conseguem publicar seus versos. Atualmente, relevantes estudos e
pesquisas, vêm contribuindo com este debate, buscando entender como se deu a invisibilidade de
muitas cordelistas na cena pública e, concomitantemente, resgatar essas memórias literárias. Nesse
segmento, essa pesquisa tem como objetivo analisar a presença da autoria feminina no corpus de
cordéis da “Coleção Centenário”, lançada em 2011 em alusão aos cem anos da cidade de Juazeiro
do Norte/CE.
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Esse estudo é embasado nas reflexões sobre uma nova historiografia do folheto na qual se
inclui a presença feminina (Santos, 2009)252 de modo que falar hoje desse documento de memória
pressupõe pensar também as mulheres nessa seara. Nessa perspectiva, cabe-nos indagar: Como se
dá a autoria feminina na literatura de cordel e quais temáticas são trabalhadas em suas obras?
Analisando, especificamente, o corpus de cordéis “Coleção Centenário” de Juazeiro do Norte.
A metodologia é composta por levantamento bibliográfico e análise temática, visando
pleitear autoria feminina nos estudos da cultura popular, mais precisamente no cordel, verificando
as produções na coleção em tela e as temáticas utilizadas pelas autoras.
Para melhor compreensão acerca do objetivo proposto, as seções estão organizadas da
seguinte forma: breve reflexão sobre memória e oralidade, exposição dos cordéis de autoria
feminina na referida coleção, destaque das temáticas abordadas nas obras por intermédio de
termos identificadores e, por fim, contemplar a atuação da mulher enquanto produtora da cultura,
mormente a literatura de folhetos.

2 MEMÓRIA E ORALIDADE: REFLEXÕES NO ÂMBITO DO CORDEL

A voz, com seus usos e concepções, já foram temas de estudo de inúmeras pesquisas e,
diante de tantas reflexões, há um consenso de ser um território volante e movediço, ligado aos
aspectos das mudanças culturais, das poéticas orais e das hibridações (oralidade-escrita), sendo
possível de verificar, de certa forma, como os processos históricos agem em sua estrutura, bem
como em suas significações e relações (produtor-receptor-pesquisador).
Por razões oriundas da própria dinamicidade da voz, Zumthor (1997) considera que esta
ultrapassa a palavra. “[...] A voz não traz a linguagem: a linguagem nela transita sem deixar traço”.
Por meio de suas explanações, podemos compreender as poéticas orais como obras de caráter
sonoro, proferidas através da voz, ao mesmo tempo, que se constituem como expressão do
coletivo, pois representam as histórias, saberes e identidades dos lugares por onde vive e transita
o poeta, que os apresenta para um público.
Considerando esses elementos, Alcoforado (2007) considera que o texto oral é
simultaneamente um texto artístico e um texto etnográfico, mantido na memória do seu
transmissor, que o ajusta ao universo cultural do seu grupo.
Esses e outros elementos podem ser percebidos no momento da performance. Segundo
Zumthor (1997), essa corresponderia a uma ação complexa pela qual a mensagem poética é

Tese (Doutorado em Literatura e cultura) “Novas cartografias no cordel e na cantoria: desterritorialização de


252

gênero nas poéticas das vozes”, Francisca Pereira dos Santos (2009).
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transmitida e percebida, redefinindo os eixos da comunicação social, ao unir o locutor ao autor e


a situação à tradição.
Esse processo não se encontra dissociado da memória na qual Zumthor (1997) identifica e
enumera uma sequência de operações composta por cinco fases presentes na performance: 1 –
produção, 2 – transmissão, 3 – recepção, 4 – conservação e 5 – repetição, na qual todas
correspondem a operações orais-auditivas, com exceção da quatro que é unicamente memorial; as
fases dois e três equivalem a formas de transmissão oral (porque acontece no presente da
performance) e as fases um, quatro e cinco correspondem a tradição oral (porque o foco está na
duração).
Nesse sentido, vejamos algumas considerações: primeiramente, na performance, corpo,
voz e público constituem elementos com uma rica carga semântica, dando à poética oral
apresentada dinamicidade e continuidade, decorrente da interação existente entre esses elementos,
que a atualiza e a enriquece a cada apresentação.
A segunda consideração evoca aspectos da tradição e da memória, já que, conforme
Zumthor (1993), a função primária da voz é reunir na performance o real, onde a necessidade da
memória se coloca como essencial duplamente: coletivamente, como fonte de saber, e para o
indivíduo, enquanto aptidão, para esgotar e enriquecer.
Tal assertiva nos leva à terceira observação: concluímos que não podemos falar da voz
sem falar em memória, que existente na memória individual e fortalecida na memória coletiva
como coloca Zumthor (1997), compõe-se ao longo do tempo, enquanto tradição (oral).
No tocante ao cordel, enquanto parte de uma tradição, a ideia compartilhada no senso
comum e na visão de alguns pesquisadores conservadores é a de que essa poética deveria se manter
pura e autêntica, na qual os eruditos rejeitam como impuras e desviantes, as formas e expressões
do folheto que não correspondem ao modelo parado no tempo (LEMAIRE, 2010).
Em decorrência disso, a propagação de um discurso conservador, o qual concebe a
tradição como um vestígio do passado e considera todo progresso ou mudança como um processo
de dessacralização da sabedoria popular, destacou-se nos estudos sobre o cordel, excluindo na
contemporaneidade formas variantes do cordel, que apresentam mudanças em seu conteúdo,
estrutura ou em seu projeto de editoração.
Esse discurso conservador transcende a hibridação (voz-escrita) e a variação de formatos
contemporâneos atribuídos a essa manifestação, além de desconsiderar por muito tempo, a autoria
feminina. Seguindo as considerações de Santos (2009), as pesquisas e publicações referente ao
campo do cordel excluíram da historiografia a mulher como cantadora, cordelista e testemunha
desse universo poético.
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Essa exclusão pode ser chamada de “Memoricídio”, no qual podemos compreender como
o “nome deste apagamento deliberado da história das mulheres, promovido pelo corporativismo
masculino de professores, editores, jornalistas - intelectuais de maneira geral" (DUARTE, 2019).
Para compreender a exclusão promovida pelo corporativismo masculino de diversos
intelectuais, devemos enfatizar a existência de um sistema patriarcal, assunto tratado em diversas
pesquisas em âmbitos acadêmicos e sociais. O referido sistema, incorporado pela sociedade e
instituições, gera discursos androcêntrico arraigados de exclusões, de apagamentos e de
silenciamento das mulheres.
Contudo, atualmente podemos ver movimentos e edições de cordéis nos quais as mulheres
participam ativamente, a exemplo da “Coleção Centenário”. Essa presença mais veemente das
mulheres na historiografia dos folhetos é impulsionada por fatores que podem ser associados com
a tipologia de mudanças estruturais abordada por Hall (2000) que pauta a notoriedade de
transformações nas sociedades modernas no final do século XX. A tipologia em questão foi
responsável por levantar e trazer à cena outros sujeitos sociais, em exemplo se faz imprescindível
salientar o movimento feminista, sendo responsável por deslocar identidades culturais nacionais
e tradicionais em diversos âmbitos, bem como na seara poética.

3 GÊNERO E AUTORIA FEMININA NA COLEÇÃO CENTENÁRIO

A literatura de cordel com seu universo de particularidades oriundas das contadoras e dos
contadores de histórias, é permeada por lendas, memórias e rimas que nos direcionam para as
formas de narrar histórias na percepção das cordelistas.
Seguindo essa concepção, a escolha do lócus e objeto da pesquisa dá-se pelo fato de
Juazeiro do Norte já ser referendada por sua diversidade cultural, manifestada através das
expressões religiosas, artísticas, culturais e ambientais. Pautas visíveis também nas produções de
cordéis na região do Cariri Cearense253.
A Coleção Centenário nasce como parte das ações comemorativas aos 100 anos de
Juazeiro do Norte, em 2011, e obteve apoio institucional para a publicação de cordéis que versejem
sobre temas que referendem a cidade, suas histórias, seus agentes e personagens fundadores.
A referida coleção é dividida em duas seções: Cordéis Clássicos (volumes 1 e 2) e Cordéis
Contemporâneos (volumes 3 e 4), totalizando 100 cordéis (o número faz alusão ao centenário da
cidade). Grande parte dos cordéis contemplam a figura do Padre Cícero e a fundação do município

253
Cariri Cearense é uma região localizada no Estado do Ceará, no Nordeste do Brasil. O Cariri é formado por 31
(trinta e uma) cidades e se encontra no Sertão nordestino. Considerado um dos grandes polos culturais do Nordeste,
também conhecido pela religiosidade, acompanhada pela devoção aos santos, e tendo grande ênfase em seus
artesanatos, mestres e diversas manifestações culturais. Juazeiro do Norte é a principal cidade dessa região.
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de Juazeiro do Norte. Segue na tabela 1 abaixo, a exposição do demonstrativo dos cordéis de


autoria feminina:

Tabela 1: Exposição dos cordéis de autoria feminina da Coleção Centenário:

Cordéis de Autoria Feminina: Coleção Centenário

Cordéis Clássicos

Autora Título do Cordel: Subtítulo Páginas

Josenir Lacerda Padre Cícero e o homem com diabo no corpo 16p.

Maria Lindalva Síntese dos principais acontecimentos 12p.


Machado Ribeiro históricos de Juazeiro: (história em
quadrinhos)

Maria Rosário Lustosa Padre Cícero do Juazeiro e...: Quem é ele? 12p.
da Cruz
Padre Joaquim de Alencar Peixoto: O baluarte 16p.
da emancipação política de Juazeiro

Maria Rosimar Araújo Os três maiores momentos da história do 12p.


Juazeiro: A chegada do Pe. Cícero, o milagre
e emancipação política

Cordéis Contemporâneos

Autora Título do Cordel: Subtítulo Páginas

Ângela Maria Pereira Promessas ao Padim Ciço 12p.

Antônia Rodrigues Centenário de Juazeiro do Norte 16p.


Ferreira

Cícera Viana Recortes de Nossa História 20p.

Francisca Pereira dos Padre Cícero e a vampira 36p.


Santos (Fanka)

Josenir Lacerda Juazeiro do Norte: um século de progresso e 16p.


Maria de Fátima Gomes História de Juazeiro 16p.

Maria Rosimar Araújo Sonho e Realidade 12p.

Nezite Alencar O Santo de Juazeiro 16p.

Rosângela Tenório Notícia do Centenário causa rebuliço no Céu 12p.

Maria do Rosário Assunção Gonçalves: A dama do Juazeiro 12p.


Lustosa centenário
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Salete Maria Embalando Meninas em tempo de violência 08p.

Sebastiana gomes de Padim Ciço abençoa o Juazeiro: Nos 100 anos 12p.
Almeida (Bastinha) de vida gloriosa

Fonte: Tabela elabora pelos autores com base na “Coleção Centenário”, 2011.

A partir da tabela 1, observamos que a coletânea em estudo possui 17 (dezessete) cordéis


de autoria feminina, o equivalente a apenas 17% da coleção. Não exposto na referida tabela, é
importante enfatizar que a coleção possui 78 (setenta e oito) cordéis de autoria masculina, 4
(quatro) de autoria desconhecida e um possui formato editorial de folheto, porém o seu conteúdo
é em prosa.
Os cordéis da tabela acima resultam na presença de 13 (treze) mulheres cordelistas, com
ênfase para a juazeirense Maria do Rosário Lustosa, autora de três cordéis intitulados de “Padre
Cícero do Juazeiro e...: Quem é ele?”, “Padre Joaquim de Alencar Peixoto: O baluarte da
emancipação política de Juazeiro” pertencentes ao volume de Cordéis Clássicos, e “Assunção
Gonçalves: A dama do Juazeiro centenário” localizada no volume de Cordéis Contemporâneos.
Destaque também para as poetisas Josenir Lacerda e Maria Rosimar, ambas com dois
cordéis na coleção. A primeira com os cordéis “Padre Cícero e o homem com diabo no corpo”,
Cordéis Clássicos, e “Juazeiro do Norte: um século de progresso e fé”, Cordéis contemporâneos.
e a segunda com “Os três maiores momentos da história do Juazeiro: A chegada do Pe. Cícero,
o milagre e emancipação política”, Cordéis Clássico, e “Sonho e Realidade”, pertencente aos
Cordéis Contemporâneos. As demais autoras possuem um cordel na coleção, deste modo,
totalizando os 17 cordéis elencados na tabela.
O número de cordelistas mulheres parece pequeno quando observamos a disparidade entre
os cordéis de autoria feminina e masculina, mas essa quantidade significa uma melhora na
representatividade para as mulheres na seara poética caririense e, também, nacional. Entretanto a
diferença ainda é muito perceptível, indicando um largo espaço e caminho que precisamos avançar
para reduzir essa disparidade entre autores e autoras nessa manifestação.
Essa representatividade corrobora com Santos (2009) que sugere que antes da década de
1970 pouquíssimas poetisas tinham seus cordéis publicados e a visibilidade para as mulheres no
campo poético era escasso, muito pouco em comparativo com os dias atuais. Isso se levarmos em
consideração apenas sua assinatura como autora, editora ou xilógrafa. Mas sua contribuição,
mesmo no anonimato, ou apenas nos meios onde aconteciam as cantorias, já foi pauta de diversos
estudos e pesquisas, evidenciando a contribuição das mesmas para essa poética.
Observando a autoria feminina na coleção centenário, somos direcionados a questionar:
Sobre o que essas poetisas escrevem? Quais as suas temáticas? As mulheres são apontadas como
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elemento importante para história de Juazeiro do norte? As autoras abordam algum conteúdo
feminista?
Tendo como objetivo visualizar os assuntos trabalhados pelas autoras, foram atribuídos
termos para os cordéis. A atribuição realizada após a leitura dos folhetos, pelos autores da
pesquisa, visa facilitar a compreensão e enfatizar a produção feminina para a Coleção Centenário.
Os termos utilizados buscam expressar as temáticas abordadas pelas poetisas.
Além disso, trazemos informações que descrevem as xilogravuras das capas dos folhetos
como meio de contribuir com a análise das temáticas abordadas no cordel, a partir da atribuição
de termos sobre a poética e também sobre as capas.
Deste modo, a xilogravura, como arte de gravar em madeira, pode ser apontada como
objeto que complementa, ao mesmo tempo que dá movimento e se apropria como um dos
elementos fundamentais no conjunto desta linguagem poética. Possibilitando assim que seu
significado se faça em concordância com os poemas escritos sobre a história de Juazeiro do Norte,
podemos assim dizer “a literatura de cordel se apresenta como fenômeno dos mais singulares e
relevantes da cultura do povo nordestino[...]” (LOPES, 1982. p.07). Segue na tabela 2 abaixo, a
exposição dos termos identificadores atribuídos para os cordéis da Coleção Centenário:

Tabela 2: Exposição dos termos extraídos dos cordéis de autoria feminina da Coleção Centenário:
Cordéis de Autoria Feminina: Coleção Centenário

Cordéis Clássicos

Autora Título do Cordel: Termos Capa


Subtítulo

Josenir Lacerda Padre Cícero e o Padre Cícero-santo; Xilogravura com a


homem com diabo no Assunção Gonçalves - figura do Pe. Cícero
corpo artista plástica; com uma mão
Exorcismo; Milagre. levantada e a
outra segurando o
chifre de um
homem abaixado a
sua frente

Maria Lindalva Síntese dos principais História de Juazeiro do Xilogravura com


Machado Ribeiro acontecimentos Norte; Taboleiro Grande; duas metades: uma
históricos de Padre Cícero; Beata representando a
Juazeiro: (história em Maria; Milagre da Hóstia; Beata Maria de
quadrinhos) Floro Bartolomeu; Araújo, no
Coronel Franco Rabelo; momento da
Padre Joaquim Peixoto de Comunhão e a outra
Alencar; João Bezerra; representando um
Adauto Bezerra. homem
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atirando em outro.

Maria Rosário Padre Cícero do História do Padre Cícero; Xilogravura com a


Lustosa da Cruz Juazeiro e...: Padre Cícero-santo; figura do Pe.
Cícero, segurando
Quem é ele? Milagre; Caldeirão; Beato
um cajado,
Zé Lourenço
sob um tracejado
indicativo dos 70
anos e a sua
assinatura.

Padre Joaquim de Padre Joaquim de Alencar Xilogravura com


Alencar Peixoto: O Peixoto; dois homens sendo
baluarte da um de costas
História de Juazeiro do
emancipação política
Norte; Joazeiro do Cariry. que segura um
de Juazeiro
papel para o outro
que está de frente.

Maria Rosimar Os três maiores História do Padre Cícero; Xilogravura com


Araújo momentos da história Padre Cícero-santo; traços de uma figura
do Juazeiro: A masculina com
Floro Bartolomeu; José
chegada do Pe. chapéu entregando
Marrocos.
Cícero, o milagre e algum objeto para
emancipação política uma figura
feminina.

Cordéis Contemporâneos

Autora Título do Cordel: Termos Capa


Subtítulo

Ângela Maria Promessas ao Padim Padre Cícero-santo; Padim XIlogravura da


Pereira Ciço Ciço; Milagre. cabeça de um
homem de costas
com um livro
aberto.

Antônia Centenário de Taboleiro Grande; Xilogravura de


Rodrigues Juazeiro do Norte Emancipação de Juazeiro vários homens
Ferreira do Norte; Padre Cícero; trabalhando na
Floro Bartolomeu; construção, com
Sedição de Juazeiro; sol, casas e árvore
Juazeiro do Norte-Terra ao fundo.
Santa

Cícera Viana Recortes de Nossa História de Juazeiro do Xilogravura da


História Norte; Taboleiro Grande; estátua do Padre
Padre Cícero; Joaseiro; Cícero no Horto,
Capital da Fé; Beata Maria com romeiros e um
de Araújo; Frei Damião; pé de Juazeiro.
Padre Murilo; Pau da
Bandeira; Basílica Menor;
Crato; Salesianos.
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Francisca Pereira Padre Cícero e a Padre Cícero / Padim Xilogravura de


dos Santos vampira Ciço; Vampira; Copolla; Padre Cícero
(Fanka) Anne Rice; Beata Maria segurando um
de Araújo; Papa; Roma; cajado que usa para
Vaticano; Zé Limeira; atacar uma figura
Sertão; Freud. feminina com asas e
presas de vampira.

Josenir Lacerda Juazeiro do Norte: Centenário de Juazeiro do Xilogravura que


um século de Norte; vinte e dois de julho representa a capela
progresso e fé de 2011; Três pés de (hoje Basílica
Juazeiro; Padre Cícero- Menor) da Mãe das
santo; missão; Horto. Dores, os três pés de
juazeiro e três fiéis
a contemplar o
cenário descrito.

Maria de Fátima História de Juazeiro História de Juazeiro do Xilogravura da


Gomes Norte; Capela da Mãe das representação de
Dores; Padre Pedro um vilarejo
Ribeiro; Caldeirão de composto de 3
Santa Cruz; Floro casas, uma igreja,
Bartolomeu; Padre árvore e sol.
Alencar Peixoto.

Maria Rosimar Sonho e Realidade História de Juazeiro do Xilogravura


Araújo Norte; Três pés de representando
Juazeiro; Padre Pedro Padre Cícero em
Ribeiro; Rio Salgadinho; oração com Jesus
Taboleiro Grande; Cristo a sua frente.
Basílica Menor; Padre
Cícero.

Nezite Alencar O Santo de Juazeiro Padre Cícero-santo; Xilogravura da


Capela da Mãe das Dores; estátua de Padre
Milagre da Hóstia; Roma. Cícero no Horto.

Rosângela Notícia do São Pedro; Céu; Padim Xilogravura que


Tenório Centenário causa Cíço; Juazeiro do Norte. representa Padre
rebuliço no Céu Cícero e São Pedro
(que está segurando
uma chave) e o
número 100 ao
fundo.

Maria do Rosário Assunção Gonçalves: Assunção Gonçalves- Xilogravura de


Lustosa A dama do Juazeiro artista plástica; Juazeiro Assunção
centenário antigo; Monsenhor Gonçalves
Murilo.

Salete Maria Embalando Meninas Violência contra a mulher; Xilogravura de um


em tempo de Feminicídio casal hétero com
violência feições sérias que
parecem estar
brigando
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Sebastiana gomes Padim Ciço abençoa História de Juazeiro do Xilogravura de


de Almeida o Juazeiro: Nos 100 Norte; Centenário de Padre Cícero sob a
(Bastinha) anos de vida gloriosa Juazeiro do Norte; representação da
Romeiro; Monsenhor vila de Taboleiro
Murilo; Cultura Popular; Grande
Cordel; Reisado;
Folguedo; Romaria;
Devoção.

Fonte: Tabela elabora pelos autores.

As autoras retratam através de seus versos os principais acontecimentos de Juazeiro do


Norte com descrições do processo de evolução da cidade, citando personagens importantes como
o Pe. Cícero, Beata Maria de Araújo, Floro Bartolomeu, entre outros. Assim, fazem um “passeio”
pela construção/evolução da cidade que mescla diversas narrativas da história oficial e não-oficial.
Deve-se enfatizar que grande parte das poetisas centralizam o Padre Cícero como figura
maior para o Juazeiro em detrimento da figura da Beata Maria de Araújo, cujo protagonismo no
milagre da hóstia já tem sido sobrelevado em diversas pesquisas. As autoras mencionam-no como
“Padre Cícero-Santo”, “Padrinho”, “Padim Ciço”, termos esses ligados a uma ideia de milagres,
devoção, fiéis, peregrinação dos romeiros, além de acontecimentos políticos, culturais, e marcos
importantes.
É inegável a importância do Padre Cícero como fundador, precursor econômico, religioso
e cultural não só para Juazeiro do Norte, mas também para o Cariri cearense. Em decorrência,
revela-se uma centralização a sua figura que resultam no apagamento ou memoricídio de outros
personagens importantes para a história da cidade, os quais não são tão mencionados nos cordéis
em tela.
Pautando a visibilidade feminina nos cordéis de autoria feminina em destaque, apenas três
citações possuem maior ênfase: Beata Maria de Araújo, Assunção Gonçalves e a escritora Anne
Rice. A Beata Maria de Araújo é, entre as mulheres, a mais citada. As menções estão ligadas ao
milagre da hóstia ocorrido em Juazeiro do Norte, no qual a hóstia consagrada por Padre Cícero
teria se transformado em sangue na boca da beata. A segunda figura feminina de maior visibilidade
é a Assunção Gonçalves, tendo ênfase em dois cordéis; “Padre Cícero e o homem com diabo no
corpo”, da autora Josenir Lacerda, e “Assunção Gonçalves: A dama do Juazeiro centenário”, de
Maria do Rosário Lustosa. O primeiro cordel cita a Assunção como narradora, a autora sugere sua
presente em um “exorcismo”, que teria sido realizado pelo Padre Cícero. Já o segundo cordel
retrata sobre a história, feitos em Juazeiro, bem como sua devoção ao Padre. A terceira citada nos
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cordéis em análise é Anne Rice254, retratada em um diálogo com o Padre Cícero no folheto “Padre
Cícero e a Vampira”.
Apenas um cordel de autoria feminina tem conteúdo feminista: “Embalando Meninas em
Tempos de Violência” de Salete Maria que denuncia a violência contra a Mulher e o Feminicídio,
sobretudo em Juazeiro do Norte, com versos elaborados a partir de uma releitura das tradicionais
cantigas de roda. Vejamos alguns versos do folheto citado, permeados de lirismo e denúncia
social:

“’O amor que tu me tinhas


Era pouco e acabou’
Mas teus pés nas costas minhas
Deixou mascas, tatuou
Comentei com a vizinha
Pois era o que me convinha
E por isto, então ficou.”

Apesar dessa centralização afetar veemente as mulheres ocasionando em invisibilidade


feminina, é possível notá-la, mais discretamente, na referência a alguns homens, como o Beato Zé
Lourenço. Percebe-se que figuras históricas como Pe. Cícero, Floro Bartolomeu e o governador
Franco Rabelo são muito citados nos cordéis, enquanto Beato Zé Lourenço aparece como
coadjuvante, quando mencionado, não ocorrendo a devida ênfase ao papel histórico do beato e
do movimento em torno do Caldeirão da Santa Cruz no Crato-CE, termo também citado nos
cordéis, transcende o eixo Juazeiro do Norte/Cariri.
Nota-se que as temáticas são expressões oriundas do popular e carregam a cultura do
cotidiano juazeirense e das poetisas, assim descrevendo de modo lúdico acontecimentos, crenças
e mitos. Deste modo, os cordéis da coleção popularizam fatos, pessoas e histórias de Juazeiro do
Norte.

4 “MULHERES FAZEM CORDÉIS”: reflexões finais

“Mulheres fazem história


Fazem o tempo parar
Fazem perder a memória
Fazem morrer e matar
Mulheres fazem o dia
Fazem da dor alegria
Fazem ferir e sarar”

Salete Maria255

254
Escritora norte-americana, autora de séries de terror e fantasia.
255
Trecho do cordel “Mulheres Fazem” de Salete Maria. Disponível em:
http://cordelirando.blogspot.com/2008/06/mulheres-fazem.html
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A partir do corpus de estudo da pesquisa, constatamos dos cem cordéis na “Coleção


Centenário” uma relativa presença de autoras: dezessete cordéis escritos por treze mulheres. Por
trazerem em seus versos uma representação da memória coletiva de uma comunidade,
compreende-se que estas mulheres cordelistas produzem narrativas através dessa poética que
evocam memórias, elementos históricos, religiosos, culturais e identitários de Juazeiro do Norte-
CE.
Em específico ao Padre Cícero, quando descrevem os seus milagres e relatam outros
acontecimentos que marcaram a história da cidade por influência do mesmo, elas também estão
descrevendo e reiterando discursos da história juazeirense, bem como da região do Cariri.
Nas representações sobre as origens de Juazeiro do Norte, nota-se que os pés de Juá são
mencionados como árvores míticas, ligadas ao mito fundante da cidade. Pe. Cícero, Floro
Bartolomeu, Padre Alencar Peixoto e o governador Franco Rabelo são constantemente
mencionados, representam as figuras históricas mais citadas nos cordéis de autoria feminina em
estudo. O Beato Zé Lourenço aparece como um "detalhe" na história da cidade, apesar da
importância do movimento pra história não só do Nordeste/Brasil.
Apenas duas figuras históricas femininas da região são mencionadas nesses cordéis:
Assunção Gonçalves e a Beata Maria de Araújo, todavia ambas aparecem como sombras dos
homens, no máximo coadjuvante, e não como protagonistas no desenvolvimento de Juazeiro do
Norte. Fora desse contexto histórico da região caririense, uma escritora da cultura pop é citada:
Anne Rice.
Pelo exposto, constata-se que mesmo sendo de autoria feminina, a grande maioria dos
cordéis elencados ainda reverberam valores do sistema patriarcal, deixando à margem a mulher
como agente social. Apenas um cordel aborda uma temática mais feminista: “Embalando meninas
em tempos de violência” da escritora Salete Maria.
Atualmente, a mulher cordelista busca por novos espaços na Literatura e, a partir do seu
lugar de fala, pode traçar caminhos para que outras se vejam representadas e incentivadas a irem
além, falta ainda, no caso em estudo, um discurso que rompa com a ideologia imposta pelo
patriarcalismo.

REFERÊNCIAS

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Clássicos. Editora IMEPH, Fortaleza/CE. 2012. v. 1.

FUNDAÇÃO MEMORIAL PADRE CÍCERO et al. (Org.). Coleção Centenário: Cordéis


Clássicos. Editora IMEPH, Fortaleza/CE. 2012. v. 2.
Página 1132 de 2230

FUNDAÇÃO MEMORIAL PADRE CÍCERO et al. (Org.). Coleção Centenário: Cordéis


Contemporâneas. Editora IMEPH, Fortaleza/CE. 2012. v. 3.

FUNDAÇÃO MEMORIAL PADRE CÍCERO et al. (Org.). Coleção Centenário: Cordéis


Contemporâneas. Editora IMEPH, Fortaleza/CE. 2012. v. 4.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da


Silva, Guaracira Lopes Louro- 4ed.- Rio de Janeiro, 2000.

LEMAIRE, Ria. Tradições que se refazem. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea


nº 35, janeiro/julho de 2010, p. 17-30. (Dossiê Poéticas da Oralidade).

LOPES, José de Ribamar - org. Literatura de Cordel; antologia. Fortaleza: BNB. 1982. p. 07

OLIVEIRA, Letícia Fernanda Da Silva. De Mártir A Meretriz: Figurações Da Mulher Na


Literatura De Cordel (1900-1930). Dissertação (Mestrado em Literatura e Vida Social).
Faculdade De Ciências E Letras De Assis – UNESP, Assis – SP. 2017.

SANTOS, Francisca Pereira dos. Novas cartografias no cordel e na cantoria:


desterritorialização de gênero nas poéticas das vozes. Tese (Doutorado em Literatura e cultura).
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. 2009.

SEMINÁRIO “LEITURAS & AÇÕES FEMINISTAS” CONSTÂNCIA LIMA


DUARTE. Movimento Quem Ama Não Mata, s/a. Disponível em: <
https://www.sympla.com.br/seminario-leituras--acoes-feministas-constancia-lima-
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SILVA, Salete Maria da. Embalando meninas em tempos de violência. Editora IMEPH,
Fortaleza/CE. 2012.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a Voz: a ―literatura‖ medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.

ZUMTHOR, Paul. Introdução a poesia oral. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.
Página 1133 de 2230

ENTRE O COMEDIANTE E NARCISO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PIEDADE, O


SER E O PARECER, A PARTIR DA CARTA A D’ALEMBERT SOBRE OS
ESPETÁCULOS

BETWEEN COMEDIAN AND NARCISO: CONSIDERATIONS ABOUT PITY, BEING


AND OPINION, FROM D'ALEMBERT'S LETTER ON SPECTACLES

Edilene Pereira Boaes Corvêlo: Me. (PROF-FILO – UFMA)


Luciano da Silva Façanha: Drº. (Defil, PGcult – UFMA)
Maria do Socorro Gonçalves da Costa: Me. (UFBA/UFMA)
Genildo Ferreira da Silva: Drº. (PPGFIL – UFBA)

Eixo 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: A crítica de Jean-Jacques Rousseau aos espetáculos aponta para algo mais sério, que
termina por abranger conceitos-chaves de suas obras, como a piedade –, um sentimento natural
que se altera como a sociabilidade do homem, sendo o teatro um dos meios para essa alteração; o
ser e o parecer –, conceitos complementares e opostos que a cena teatral não parece bem distinguir,
criando assim, confusão ao entendimento da plateia. Deste modo, o presente trabalho se propõe
expor a correlação entre o comediante a partir da leitura da Carta a D‘Alembert sobre os
Espetáculos, obra de Jean-Jacques Rousseau e Narciso, mais especificamente, a crítica de Luiz
Roberto Salinas Fortes, sobre o tema do comediante e sobre o simulacro de Narciso, no texto
“Teatro e Narcisismo”, em que Salinas Fortes apresenta uma minuciosa análise sobre o
personagem da peça Narciso ou o amante de si mesmo, também escrita por Rousseau, e a maneira
como o comediante, ator de quem Rousseau emprega parte da Carta a analisar o ofício e o talento
do mesmo, enquanto executa seu trabalho na cena teatral, e Narciso, personagem da peça, escrita
por Rousseau em sua juventude. Quando Narciso se traveste de um personagem fictício, põe em
xeque a piedade, o ser e o parecer. Assim, iremos perceber que tanto o comediante, aquele que
atua no palco dando vida a outrem que não ele mesmo, e Narciso, aquele que se traveste de um
ser imaginário com vista à vaidade, põem em questão a verdadeira piedade, aquela originária do
estado de natureza, que, segundo Rousseau, cada homem a tem, ainda, gravada em seu coração,
bem como fica evidente o encanto das pessoas por parecerem o que não são. Ademais, a instalação
de um Teatro em Genebra, tornou-se o ponto crucial para estas reflexões de Rousseau e, dentre
outros objetivos, alertar para que o parecer (ou o amor-próprio) não fosse ainda mais exaltado
através da encenação de peças teatrais: a tragédia e a comédia.
Palavras-chave: Rousseau. Comediante. Narciso. Piedade.

Abstract: Jean-Jacques Rousseau's criticism of the shows points to something more serious,
which ends up covering key concepts of his works, such as piety -, a natural feeling that changes
like the sociability of man, with theater being one of the means for that change; the being and the
opinion - complementary and opposing concepts that the theater scene does not seem to
distinguish well, thus creating confusion for the audience's understanding. In this way, the present
work proposes to expose the correlation between the comedian from the reading of the Letter to
D'Alembert on the Spectacles, work of Jean-Jacques Rousseau and Narciso, more specifically, the
criticism of Luiz Roberto Salinas Fortes, on the the comedian's theme and the Narcissus
simulacrum, in the text “Teatro e Narcisismo”, in which Salinas Fortes presents a detailed analysis
of the character of the play Narciso or the lover of himself, also written by Rousseau, and the way
the comedian , actor whose Rousseau uses part of the Letter to analyze his craft and talent, while
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performing his work in the theatrical scene, and Narciso, character of the play, written by
Rousseau in his youth. When Narcissus dresses up as a fictional character, he puts piety, being
and opinion in check. Thus, we will realize that both the comedian, the one who acts on the stage
giving life to someone other than himself, and Narcissus, the one who wears an imaginary being
with a view to vanity, call into question true piety, that which originated in the state of nature,
which, according to Rousseau, each man still has engraved in his heart, as well as the charm of
people for looking like they are not evident. In addition, the installation of a Theater in Geneva,
became the crucial point for these reflections by Rousseau and, among other objectives, to warn
that the opinion (or self-love) was not further exalted through the staging of theater plays: tragedy
and comedy.
Keywords: Rousseau. Comedian. Narcissus. Pity.

O verbete Genebra está inserido, por Rousseau, na Carta a D’Alembert. Ele contém
várias considerações de D’Alembert sobre a cidade de Genebra256: religião, a falta de gosto dos
genebrinos por não terem na cidade um Teatro, as leis que seriam incapazes de corrigir os maus
costumes da juventude, incluindo-se também a licenciosidade dos comediantes, ou seja, dos atores
das companhias de teatro, comuns na Europa, à época . É assim, que o talento e a profissão de
comediante se torna um dos temas que compõe as digressões desenvolvidas por Rousseau na
Carta, levando a uma discussão que chega aos mesmos princípios de sua filosofia, no que se refere
à antropologia filosófica, o pressuposto da bondade natural e a degeneração do homem primitivo,
a qual o teatro se tornara um condutor da mesma.
A problemática do teatro (o teatro clássico francês ou a comédie), lembremos, surge
quando o filósofo D’Alembert257 publica no volume de número VII da Enciclopédie, o verbete
Genebra. Afora os elogios à cidade e seus habitantes, o verdadeiro interesse do acadêmico é o de
que Genebra pudesse à época, comportar um Teatro que pudesse “educar o gosto dos habitantes e
lhes dar uma finura de tato”. Além do que, Genebra se tornaria agradável aos franceses, caso
deixasse de privar-se aos espetáculos, pois se tornaria mais prazerosa aos homens que a ela se
destinassem, como o eram a filosofa e a liberdade do lugar.
Eis o ponto de que Rousseau parte para tratar não só dos males que o teatro traria à
pequena república de Genebra, como para fazer uma verdadeira análise das tragédias e das
comédias, naquilo que estas representaram para os gregos tanto quanto destes mesmos gêneros
nos autores modernos do ponto de vista do enredo e da encenação, o estilo dos autores e a

256
Um dos benefícios que favorecia Genebra era a sua localização, tendo tornado-se um importante centro comercial,
cuja geografia do local beneficiava a economia. “(Sua localização privilegiada fará dela um importante cruzamento
de grandes vias que ligavam os quatro cantos da Europa, ao mesmo tempo que sua bacia hidrográfica possibilitará o
estabelecimento de amplas relações comerciais desde a época romana” (PISSARA, et al., 2006, p. 11)
257
Jean le Ron d’Alembert (1717-1783) fora matemático e filósofo francês, também é o autor do Discurso preliminar
da Enciclopédia do ano 1751. A questão de Rousseau com D’Alembert, dentre outras, se devia ao fato de Rousseau
ser colaborador da Enciclopédia e cidadão de genebrês e não ter sido o escritor do verbete Genebra.
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adequação à realidade e atualidade das peças258; deixando claras as referências aos poetas trágicos
gregos e à Poética de Aristóteles.
Para além destas e outras questões discutidas de forma pormenorizada (como, os
personagens de algumas tragédias e comédias do período, a exemplo do Misantropo de Molière),
o que Rousseau enfatiza em primeiro lugar é a forma como o homem em sua essência, isto é, as
virtudes, os sentimentos, os vícios e as paixões são tratados na cena teatral pelas tragédias e as
comédias, na medida em que ambas não retratam o homem em sua forma real, pois o tornam ou
superior – na tragédia, ou inferior – na comédia naquilo que realmente não são259. Enquanto a
tragédia demonstra poderes que o homem não tem, portanto, superior; a comédia o ridiculariza
por ser virtuoso, logo, o inferioriza; isto influenciaria de maneira direta e indireta o espectador ali
presente, por seu efeito ser momentâneo. Pois, por se tratar da imitação de atos e atitudes que não
condizem com a realidade, em tal caso, em nada reforçam a ideia pedagógica e de correção de
maus costumes, com que pretendiam D’Alembert e Diderot. Pois, nas palavras de Rousseau:
O teatro é um quadro das paixões humanas cujo original está em nossos corações;
mas se o pintor260 não se preocupasse em adular essas paixões, os espectadores
logo iriam embora e não mais quereriam vê-se sob uma luz que os levaria a se
desprezarem a si mesmos (ROUSSEAU, 1993, p.41).

Então, algo que venha distorcer os sentimentos originais que no homem é herança de seu
estado de natureza, tudo muda de direção. Todo o perigo reside aqui, quando o teatro encena os
vícios e as paixões humanas, pois, no pensamento idealizado de Rousseau, os genebrinos seriam
o povo que mais dispõe das atribuições do estado de natureza em meio à civilização. Ademais, na
visão do filósofo, o teatro tem a função de entreter e divertir. Conforme assevera Franklin de
Matos:
O teatro clássico francês, cena ilusionista que separa radicalmente o palco e a
plateia, é o grau máximo de afastamento em relação à unidade da Natureza,
enquanto a festa cívica espartana é a aproximação máxima, pois cada espectador
é ao mesmo tempo ator e, portanto, o próprio espetáculo (MATOS, 1993, p. 12).

258
Rousseau é veemente em afirmar que os espetáculos devem se adequar à realidade de cada povo, por isso mesmo,
uma tragédia grega não teria o mesmo efeito sobre os genebrinos assim como tivera para os gregos. Ou seja, para
cada espaço-tempo, espetáculos adequados. Por isso, a defesa e proposição de Rousseau para que em prevalecesse a
festa cívica em espaço aberto ao invés da cena fechada do teatro.
259
“O grande efeito provocado pela tragédia não é propriamente despertar em nós a piedade, mas lisonjear nosso
amor-próprio, fazendo com que nos acreditemos melhores do que realmente somos [...]. Em outros termos, o que ele
diz é o seguinte: a comédia pretende ensinar a amar a virtude, mas na verdade ensina apenas a temer o ridículo: ora,
o ridículo só pode ser evitado através do vício; portanto, a comédia acaba fazendo exatamente o contrário do que
pretende. Entre a intenção virtuosa do autor (...) e o resultado vicioso da obra, o aparato cômico provoca um desvio
radical de percurso.” (MATOS, 2015, p. 20-21).
260
Essa ideia de Pintor é desenvolvida melhor por Rousseau em Da Imitação Teatral, em que compara os Pintores
com o Poetas, ambos imitam sem de fato possuírem a ideia verdadeira das coisas e conceitos como a possuem o
Artífice e o Filósofo.
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Essa é a tese do libelo rousseauniano. Aqui, é importante ressaltar que Franklin de Matos
estabeleceu uma escala cuja Natureza é a ideia reguladora para a representação, a representação
política e os espetáculos. Como se escala fosse uma régua e a régua a natureza, então, com relação
aos espetáculos, se fosse possível medir nessa escala, o ideal é a festa cívica espartana e o oposto
disso, ou seja, a festa corrompida, o teatro clássico francês. Ou seja, quanto mais próximo o
homem demostrar ações de seu estado de natureza primitivo, mais original será.
Assim, salvaguarda para os genebrinos para não serem ainda mais expostos pela cena
teatral aos danos da corrupção dos costumes e valores está na linha antecessora ao que de mais
capital pode afetar de forma pessoal os cidadãos desta República, a imitação do que não se é, no
que consistiria numa representação nada benéfica tanto para o indivíduo, como para a sociedade,
pois há, no teatro, duas espécies de representação, as coisas representadas – o conteúdo; as cenas
dos personagens representantes, em outras palavras, os personagens que os comediantes levam ao
palco podem influenciar diretamente sobre seu caráter e indiretamente sobre o caráter da plateia.
A defesa de Rousseau é para que tanto o comediante enquanto ator, quanto o espectador, sejam o
mais possível parecido consigo mesmo, íntegro e não queira ser o que não é, porque isso tem uma
implicância notadamente política.
Se o ser e o parecer, o amor de si e o amor-próprio, as paixões humanas e os vícios são
discutidos e analisados do ponto de vista do teatro, outro conceito que vem à tona é a pitié,
sentimento natural no homem, que o teatro faz uma falsa representação. O teatro, além de excitar
os vícios e as virtudes do homem de bem; o amor de si exaltar o amor-próprio, também enfraquece
o verdadeiro sentimento de piedade. Pois, a piedade que o teatro fomenta, não dura para além do
término das peças. A piedade enquanto sentimento natural que dá ao homem e aos animais a
capacidade de se pôr no lugar do outro, de imaginar o sofrimento do outro como se em si fosse, é
reforçada pela encenação apenas artificialmente ou, imediatamente, pois não passa daquele
momento. Se não reforça, o espectador não se torna responsável ou sensível aos fatos encenados.
“Pois”, diz Rousseau, “não somos capazes de nos pôr no lugar de quem de modo algum se parece
conosco” (Rousseau, 1993, p. 42).
A tragédia, seguindo o viés aristotélico da Poética, levaria à compaixão teatral, diz,
Rousseau, mas, que piedade é essa? “Uma emoção passageira e vã, que não dura mais do que a
ilusão que a produziu; um resto de sentimento natural sufocado pelas paixões; uma piedade estéril
que se nutre de algumas lágrimas e nunca produziu o menor ato de humanidade” (Rousseau, 1993,
p. 46). E continua:
Respondo que, mesmo que assim fosse, a maior parte das ações trágicas, sendo
apenas puras fábulas, acontecimentos que sabemos serem da invenção do poeta,
não produzem uma grande impressão sobre os espectadores; de tanto lhes mostrar
que queremos instruí-lo, não os instruímos mais. Respondo também que essas
punições e essas recompensas sempre agem através de meios tão pouco usuais
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que não esperamos nada de parecido no curso natural das coisas humanas.”
(ROUSSEAU, 1993, p. 49).

A PIEDADE EM RELAÇÃO A NARCISO E AO COMEDIANTE

A peça Narciso ou o amante de si mesmo, uma comédia261, é composta por 1 ato e 18


cenas; segundo Salinas Fortes, é um quiprocó, algo que está no lugar de outra coisa; ainda não
temos a tradução oficial por nenhuma editora, a não a tradução feita por Maria Constança Peres
Pissara, Luciano da Silva Façanha e Helderson Mariani. Na peça, a irmã de Valério, Lucinda, lhe
prega uma peça com a ajuda de sua dama de companhia, Marton; a irmã quer curar Valério de sua
excessiva vaidade. Para isso, Lucinda pega um retrato do irmão e o enfeita ao ponto de parecer
uma mulher. Valério, impressionado pela beleza do retrato, mesmo prestes a se casar com
Angélica, quer conhecer a moça do retrato, por quem se apaixona. “Trata-se, diz Salinas, “de curar
Valério-Narciso do seu excessivo amor-próprio, que se materializa através de uma imagem
fictícia, um retrato, um espelho. Tomar a si mesmo como um outro: eis o que nos faz refletir sobre
a ulterior elaboração do ‘narcisismo’; centrada na oposição ‘amor-próprio/’amor-de-si” (Salinas,
1997, 169).
No final, Valério acaba descobrindo tratar-se dele mesmo, ou seja, Valério se apaixona
por si mesmo mediante tanta beleza e por ser vaidoso. Rousseau atinge seu fim, ao descrever as
consequências da troca de lugares e desejar ser o que não é. Está montada assim, a ideia que quer
transmitir, ser e parecer em que se inclui aí amor-próprio, amor se si e piedade. Aquilo que se faz
presente na Carta, efetiva-se na peça Narciso.
De acordo com a análise de Salinas Fortes sobre o tema, Valério, assim como a plateia,
são incapazes de se pôr no lugar do outro de forma duradoura e autêntica, levados, dessa maneira,
a exercitarem a falsa piedade. Pois, segundo Salinas:
O homem do amor-de-si e a pitié põem-se imaginariamente no lugar do outro,
mantendo-se na realidade em seu lugar próprio. Ao contrário, Narciso é aquele
que usurpa o lugar do outro, que, ao invés de se transportar empaticamente em
direção ao Outro, mantendo a alteridade, visa no limite a supressão da alteridade,
fazendo do Outro mera projeção de si mesmo. (FORTES, 1997, p. 172).

Por outro lado, Salinas aponta para o fato de que o narcisismo é posto em cena pela figura
do comediante/ator no momento em que este se traveste de um personagem para expor-se no
palco, podendo ocorrer o mesmo em sociedade.
Ora, narcisista de Jean-Jacques Rousseau realiza o comediante: mascara-se,
traveste-se, brilha pela aparência e vive um personagem, que neste caso, é apenas
uma idealização de si, Ego ideal, eu supervalorizado. O comediante, pondo-se
imaginariamente no lugar de um personagem fictício, busca fazer-se passar por
outro, mas por mero jogo. O narcisista é aquele que usurpa os lugares, que tira o

261
Peça esta escrita por Rousseau aos dezoito anos de idade. A Coleção Os Pensadores, traz apenas o prefácio desta
obra de filósofo.
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outro de dentro de si mesmo e cuja imaginação patológica é incapaz de levá-lo


para fora do seu próprio círculo, impedindo-o de medir os seus limites e
constituindo-se no princípio da destruição de toda vida comunitária efetiva.
(FORTES, 1997, p. 172-173).

Vale ressaltar, que os atores, ou seja, os comediantes foram duramente criticados por sua
profissão e talento, sendo mesmo acusados de licenciosidade e de maus exemplos, sugerindo
D’Alembert que somente leis mais severas poderiam corrigi-los, estendendo-se também à
juventude; a aplicação das leis a eles é falaciosa, porém, sua profissão é mal vista, pelo fato de,
como Valério-Narciso, representarem o que de fato, não são: virtudes que não possuem, paixões
superficiais, “ridicularizar a bondade e a simplicidade”, o que pode, enfim, influenciar a plateia a
imitar em sociedades tais atitudes, por “ter como profissão o talento de enganar os homens, e de
exercer hábitos que, só podendo ser inocentes no teatro, em todos os outros lugares servem apenas
para fazer o mal.” (Rousseau, 1997, p. 92).
Que é o talento do comediante? A arte de imitar, de adotar um caráter diferente
do que se tem, de parecer diferente do que se é, de se apaixonar com serenidade,
de dizer coisas diferentes das que se pensam com tanta naturalidade como se
realmente fossem pensadas, e, enfim, de esquecer seu lugar, de tanto tomar o
lugar do outro. Que é a profissão do comediante? Um ofício pelo qual ele se dá
como espetáculo em troca de dinheiro, de submeter à ignorância e às afrontas de
que se compra o direito de lhe fazer, e põe publicamente sua pessoa à venda.
Desafio a todo homem sincero a dizer se não sente no fundo da alma que nesse
comércio de si mesmo há algo de servil e de baixo. (ROUSSEAU, 1997, p. 92)

Percebemos que em Da Imitação Teatral 262 Rousseau torna mais enfática a discussão.
Pois ao retomar Platão com relação à questão da imitação em relação às ideias e objetos
verdadeiros e sua representação pela pintura, reprodução ou elaboração de um conceito, fica ainda
compreensível o que está em jogo do ponto de vista da cena teatral e dos atores, sendo a ação de
Valério enquanto Narciso, uma consequência. Tanto que Rousseau é enfático em afirmar que o
mesmo princípio adotado por Platão quanto trata da imitação em relação ao mundo das ideias,
deve ser empregado para a representação teatral. Segundo Rousseau:
A cena representa os homens agindo voluntariamente ou por força, estimando
suas ações boas ou más, segundo o bem ou o mal que eles pensam ali haver e
diversamente afetados, por causa delas, de dor ou de volúpia. Ora, pelas razões
que já discutimos, é impossível que o homem deste modo representado esteja
jamais de acordo com ele mesmo; e como a aparência e a realidade dos objetos
de suas ações, segundo estejam afastados ou próximos, conformes ou opostos às
suas paixões; e seus julgamentos, móveis como elas colocam sem cessar em
contradição seus desejos, sua razão, sua vontade e todas as potências de sua alma.
(ROUSSEAU, 1995, p. 10).

262
Esse texto é, segundo Rousseau, um complemento da Carta. Nele, retoma a discussão platônica sobre a imitação
da arte enquanto o artista/pintor está a três graus do objeto verdadeiro. Rousseau pede que se aplique a mesma ideia
de Platão, no livro X da República ao Teatro, enquanto arte imitativa das paixões humanas.
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Ao fazer uma análise detalhada do que são as tragédias e as comédias modernas em


relação às antigas, destas em si com relação à exaltação dos costumes e de como isto poderia pela
encenação teatral afetar direta ou indiretamente o homem de sociedade de modo geral (o quadro)
e de modo particular os genebrinos (o retrato), o filósofo engloba desse ponto de vista, a discussão
universal que é a representação, seja no teatro, seja na política, seja do indivíduo para si mesmo.
A carga política inserida em sua análise se entrecruza com todas as outras temáticas, por
isso, o representar está inserido em todos os temas da sua reflexão, desde a sua primeira obra O
Discurso Sobre as Ciências e as Artes, os binômios ser-parecer, igualdade-desigualdade, estado
de natureza-estado civil, etc., podemos perceber que há necessidade de mostrar o que se é.
Premente para o filósofo genebrino, pois, apesar da sua escrita debutar sua figura para uma
sociedade de sua época, o autor traz a sua verdade, sua singularidade, para o momento da
sociedade que encena a realidade. E a realidade da política traz suas várias faces, pois a
democracia para Rousseau seria direta, um recurso dos povos antigos, lembrança afetiva de sua
memória, remontando sua pátria, Genebra, de sua infância, dos jogos, das festas cívicas.
Ponto em que é fixado os valores carregados em toda a vida pelo genebrino, pois
representar não seria a opção para a vida em sociedade, mas o ser humano ao sair do estado de
natureza, deixa a liberdade irrestrita para adentrar a sociedade civil, regida por suas e leis regras
para se viver nesse novo plano, o social. Dentro do Contrato social Rousseau assevera:
O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos
membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada [...].Os
deputados do povo não são nem podem ser seus representantes; não passam de
comissários seus, nada podendo concluir em termos definitivos. É nula toda a lei
que o povo não ratificar diretamente; em absoluto não é lei [...] a partir do
momento em que o povo consente ser representado deixa de ser livre: deixa de
existir. (ROUSSEAU, 1978, cap.III, p. 114).

O ser humano com o passar do tempo e os passos dados no social o faze se perder dentro
de um mundo paralelo de falas e atos, supostamente artificiais, e mesmo dentro desse ambiente,
dito “real”, verifica-se a perda da virtude. As letras e as artes, e até mesmo a política existem agora
para que as pessoas evitem males piores.
A representação ou imitação seja teatral, seja sobre o artista que escreve fabulações com
vista a agradar ao público, seja para o indivíduo que quer ser outro, tem suas raízes gregas e
Rousseau atualiza no século XVIII. Como um dos grandes temas em sua filosofia, reverbera
diretamente em outros conceitos como a piedade e o amor de si, pois, são diretamente opostos à
representação.

REFERÊNCIAS
DENT, N.J.H, Dicionário de Rousseau. Tradução: Álvaro Cabral. Editora Jorge Zahar, Rio de
Janeiro, 1996.
Página 1140 de 2230

FORTES, Luis Roberto Salinas. Teatro e Narcisismo. In: Paradoxo do Espetáculo: política e
poética em Rousseau. São Paulo: Discurso editorial, 1997.

FAÇANHA, Luciano da S. Teatro, um quadro das paixões humanas: crítica ao


etnocentrismo, corrupção do gosto e degeneração dos costumes em Rousseau. Dois pontos:
Curitiba, São Carlos, volume 16, número 1, p. 214-235, agosto de 2019.

MATOS, Franklin de. Introdução: teatro e amor-próprio. In: Carta a D’ Alembert sobre os
Espetáculos. 2ª Edição. Tradução: Roberto Leal Ferreira. Campinas, São Paulo: Editora da
Unicamp, 2015.

NASCIMENTO, Milton Meira do. A farsa da representação política. São Paulo: Discurso
Editorial, 2016.

PLATÃO. A República. Tradução: Maria Helena da R. Pereira. Fundação Calouste Gulbenkian,


5ª edição, Porto, 1987.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a D’ Alembert sobre os Espetáculos. Tradução: Roberto


Leal Ferreira. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 1993.
_________________. Emílio ou Da Educação. Tradução: Sérgio Milliet, 3ª edição. Rio de
Janeiro: Bertand Brasil, 1995.
__________________. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens. Tradução: Lurdes Santos Machado. Introdução e notas de Paulo Arbousse-Bastide e
Lourival Gomes Machado, 2ª edição. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultura, 1978.

____________________. De l’Imitation Théâtrale. Da Imitaçã. OC V. Paris: Pléiade,


Gallimard, 1995.
_____________________. Narcisse ou L’amant de Lui-même OC V, Paris: Pléiade,
Gallimard, 1995.
_______________________. Ensaio Sobre a Origem das Línguas. Do Contrato Social. Tradução:
Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

___________________. Carta Escritas Da Montanha. Tradução e notas: Maria Constança


Peres Pissarra, et al. São Paulo: EDUC; UNESP, 2006.
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ESTUDOS AFRODECOLONIAIS E SUAS REFLEXÕES SOBRE GÊNERO E RAÇA: O


PROJETO MAFROEDUC

AFRODECOLONIAIS STUDIES E THEIR REFLECTION ABOUT GENDER AND


RACE: MafroEduc Research Project

Simone Cristina Silva Simões


Mestranda em Educação - Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Raimunda Nonata da Silva Machado
Docente Adjunto
Departamento de Educação II e Programa de Pós-Graduação em Educação/Universidade Federal
do Maranhão (UFMA)
Agência de fomento: FAPEMA

Eixo Temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Nos estudos de perspectivas feministas, tem-se direcionado o holofote à produção crítica
das dimensões de poder, cujo sistema enfatiza a dominação via aspectos sexológicos presentes nas
relações socioculturais, logo, na construção da consciência (ESTEBAN 2010). Em linhas gerais,
evidenciam denúncias quanto a falta de liberdade das mulheres em se expressarem sem que sejam
subjugadas na esfera da opressão masculina dominante. Esse arcabouço teórico centrado nas
diferenças sexuais tem sido questionado, a partir de perspectiva que valorizam as experiências
“nativas” ou princípios do pan-africanismo, desenvolvendo diferentes conceitos analíticos como:
amefricanidade (GONZALEZ, 1998), feminismo negro (CARNEIRO, 2001; RIBEIRO, 2018),
mulherismo africana (HUDSON-WEEMS, 2012), dentre outros. Esse novo modo de pensar as
relações de gênero, compreende o racismo como eixo estruturador das relações sociais. São os
estudos afrocêntricos e decoloniais, ancorados no território da teoria Pós-Crítica, que vem sendo
utilizado na análise das experiências de mulheres afrodescendentes, reinventando metodologias
de investigação que se afastam da padronização existente em perspectivas que tentam replicar a
mesma metodologia para diferentes objetos de estudo. É a partir da análise do Projeto de Pesquisa:
Mulheres Afrodescendentes no Magistério Superior: vozes epistêmicas (MafroEduc), criado em
2017, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA), que discutimos as possibilidades de construção teórica e metodológica dos
estudos afrodecoloniais a partir dos princípios da afrocentricidade (ASANTE, 2009) e
Decolonialidade (GROSFOGUEL, 2010; 2016). O estudo tem centralidade nas epistemologias de
mulheres afrodescedentes professoras universitárias e tem como resultado a produção de práticas
e reflexões educativas em redes interculturais, mediante a crítica aos saberes hegemônicos,
alicerçando novos olhares na ótica das mulheres afrodescendentes. São desenvolvidos estudos que
fazem arqueologia das memórias de gênero, raça, sexualidade ampliando as produções para, de e
com mulheres negras, além de possibilitar a criação de novas e possíveis linguagens
metodológicas crítico-reflexivas e contra-hegemônicas que priorizam os estudos latinos,
africanos, femininos e, de modo interdisciplinar, articulam áreas como a Música, Psicologia,
Direito, Pedagogia e Tecnologias.
Palavras-chave: Estudos Afrodecoloniais; MafroEduc; Produção do Conhecimento; Movimento
contra-hegemônico.

Abstract: The feminist perspective studies have been put spotlight in a critical production about
social power dimensions whose system emphasizes domination by sexual aspects existing in
social and cultural relationships, therefore, in conscious construction (ESTEBAN, 2010).
Basically, this studies put in evidence a complaint that talks about restriction of women liberty to
express themselves without be submitted by a oppressive masculine domination context. This
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theoretical structure, focused in sexual differences has been questioned, based in another
perspective that values “natives” experiences , or, pan-africanism elements developing some
concepts, for example: Amefricanity (GONZALEZ,1998) , Black feminism (CARNEIRO, 2001;
RIBEIRO, 2018), Africana womanism (HUDSON-WEEMS, 2012) and others. This new way to
think about gender relationships understands racism like a axis that structure social relationships.
The Afrocentric and decolonial studies, grounded in post critical theoretical territory have been
uses in black women experiences’ analysis, recreating investigation methodologies that depart
existing patterns in research perspectives that tries to apply a same methodology in many different
study objects. The authors discuss theoretical and methodological construction possibilities of
decolonial studies based in elements how Afrocentricity (ASANTE, 2009) and decoloniality
(GROSFOGUEL, 2010; 2016) by Research Project: Afrodescendant Women University Female
Professors: epistemic voices (MafroEduc), analysis. It was created in 2017 and has attachment
which Maranhão's Federal University Education Postgraduate (UFMA), focusing its studies in
epistemologies which treat about Afrodescendant women university professors and presents as
result educational practices ans reflections in a intercultural network, building new viewpoints
about Afrodescendant women conceptions. In this research project has been developed studies
which produce a gender, race and sexuality memory archaeology, raising academical and
theoretical production of, to and with black women, as soon, making possible the creation of new
and realizable methodological languages of critical-reflective and counter-hegemonic speech that
prioritize Latin studies, African studies, female studies, articulating areas how Music, Psychology,
Law, Pedagogy and Technologies in a interdisciplinary way.
Keywords: Afrodecolonial Studies; MafroEduc; Knowledge Production; Counter-Hegemonic
Movement.
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Perspectivas Feministas – Análise das Relações Sociais de Dominação

A perspectiva teórico-metodológica feminista, segundo Esteban (2010), tem seu foco na


produção crítica dos aspectos sexológicos relacionados a produção do conhecimento, dando
ênfase à consciência do agente na compreensão dos processos de dominação.
Em linhas gerais, a teoria feminista sustenta estudos que fazem denúncias de diferentes
modos de opressão e que ajuda no processo de conscientização do reconhecimento da falta de
liberdade das mulheres em se expressarem, sem serem subjugadas na esfera da opressão masculina
dominante e naturalizada.
Meyer (2003), aos propor os estudos feministas, como um campo de estudos, aponta que
seu movimento é de origem multicultural e heterogêneo, tendo em vista a multiplicidade das
mulheres que existem e as diferenças entre elas e suas reivindicações, advindas de processos
históricos e políticos. Todavia cabe reiterar que o início do movimento nasce no bojo das lutas por
igualdade de cunho hierárquico e normativo, dando destaque às demandas de mulheres brancas
com forte inspiração eurocêntrica. Discutir e questionar a ausência das experiências africanas,
afrodescendentes e latino-americanas nesse projeto inicial engendram outros caminhos que
passaram a ser abertos, mediante a explicitação dos limites existentes.
Os estudos feministas oferecem contribuições para denunciar as opressões sofridas pelas
mulheres em sistemas sociais organizados sob a ótica da hegemonia masculina e universal.
Também subsidiam a construção de formas que podem gerar a emancipação das mulheres em
relação ao uso e escolhas sobre: seus corpos, prazeres, direitos, participação e representatividade
política em quaisquer espaços de poder, autonomia econômica, trabalho, educação, visando criar
ferramentas contra o fim das impunidades e violências.
Nesse sentido, o desenvolvimento de teorias e ações de perspectiva feminista procura
refletir sobre diferentes ações mobilizadoras de justiça social, cuja ética e política estejam
presentes. Afinal, o enfrentamento da estrutura patriarcal e machista pode gerar mudanças reais e
significativa, mediante a constante produção de um saber crítico e analítico (TIBURI, 2018).
Por exemplo, os debates feministas atuais reconhecem a branquitude presente nas
representações de gênero combatidas e o quanto, em certa medida, a história do movimento
feminista se ocupou, majoritariamente, de demandas que não atendem as necessidades de grupos
sociais como: mulheres negras, indígenas, quilombolas, árabes, africanas, etc.
Portanto, novos eixos de discussão vem sendo construídos, a fim de se (re)pensar o
feminismo para além de uma mulher universal. Essa atitude epistêmica considera que o interesse
dos debates feministas não pretende somente ocupar/participara um lugar de hegemonia masculina
e eurocêntrica, mas também apontar os danos que esta forma de pensar gera, inclusive, para e
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entre os homens. É um convite para análise de relações sociais e das distribuições dos agentes nos
espaços sociais estruturados via opressões e determinações sobre o outro via diferenças sexuais,
raciais, de classe, geração, dentre outras. Nessa ótica, discutiremos:
a) as contribuições dos estudos pan-africanos, cuja inspiração vem produzindo
conhecimento e prática em relação a mulher e a sociedade negra e o seu modo de
positivar a construção dos saberes históricos, filosóficos, econômicos da humanidade e
suas consequências nas opressões geradas pelo racismo, em África, nas Américas,
viventes do processo colonizador, e em outras partes do globo.
b) As contribuições de algumas formas de pensamentos alimentadas pelo movimento pan-
africano, a exemplo dos estudos sobre: Amefricanidade, Feminismo Negro e
Mulherismo Africana, que ampliam os estudos feministas tornando-os afrodecoloniais,
considerando as experiências afrodiaspóricas, a coletividade na negritude e sua
importância no debate atual.

Estudos Pan-Africanos - movimento de intelectuais afrocentrados

O movimento pan-africano foi construído nos alicerces do pensamento afrocentrado do


século XIX. Na diáspora, tem como marco a primeira Conferência Pan-Africana que ocorreu no
início do século XX. Nesta, W. E. B. Du Bois – um dos principais expoente desse movimento –
pronunciou que o século XX tem como problema a linha de cor (FINCH III; NASCIMENTO,
2009).
O conceito de pan-africanismo se apresenta como um movimento social, histórico, político
e econômico cujo objetivo visa gerar a união dos povos negros, mediante a valorização dos
princípios de coletividade e solidariedade entre negros vítimas de racismo. Tem como prerrogativa
a positivação das características e identificações que definem a negritude em África e na diáspora
africana, compreendida enquanto comunidade negra (BARBOSA, 2011/2012).
O movimento aborda historicamente, dentro do núcleo da visibilidade da negritude,
diferentes perspectivas em relação aos modos de se compreender a produção dos racismos. Na
formação do Pan-Africanismo, a intelectualidade negra tinha raízes no pensamento de tradição
ocidental, seja no marxismo ou no liberalismo capitalista, orientadora tanto das linguagens
europeias, quanto as instituições as quais pertenciam, como igrejas, universidades, espaços
artísticos, etc (BARBOSA, 2011/2012). São expoentes deste movimento Pan-Africano, ativistas
como Marcus Garvin (1887-1940), Edward Blyden (1832-1912) e William E. B. Du Bois (1868-
1963).
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Garvin, político jamaicano, nacionalista negro, criador da Associação Universal para o


Progresso Negro (AUPN)263, foi precursor de um propósito de retorno das pessoas negras para
África, seu território de origem. Desacreditava que houvesse possibilidades de desenvolvimento
da população negra na América, a fim de que pudessem usar seus conhecimentos técnicos
modernos em prol do desenvolvimento continental. Em vida, Marcus Garvin visitou diversos
países observando as condições de vida da negritude (BARBOSA, 2011/2012; FREIRE, 2019).
Blyden foi um educador, diplomata e político natural das Ilhas Virgens. Defendia uma
independência política e econômica dos países africanos, trazendo à tona o reconhecimento das
populações ancestrais. Sobre as semelhanças entre africanos e afrodescentes, particularmente os
estadunidenses, argumentava que ambos participam de uma mesma personalidade, dita “africana”.
Desse modo, contrariava as colocações de alguns contemporâneos, crente na superioridade de
pessoas negras norte-americana em comparação a africana.
Du Bois, diferentemente dos anteriores, é nascido nos Estados Unidos e teve sua formação
intelectual em Fisk, Harvard – universidades norte-americanas – e também na Alemanha.
Inicialmente, sua produção foi voltada para dois grupos de pessoas negras que tinham consciência
comunal da negritude e outra de seu próprio território (estadunidense). Reflexão ampliada para
compreensão da história e cultura negra fora do continente de origem, africano (BARBOSA,
2011/2012). Nesta ótica, Du Bois:

[...]interpretava este dilema tendo, por premissa, a dicotomia clássica da filosofia


romântica alemã: cultura x civilização. Dizia, neste sentido, que o negro possuiria
uma essência (cultural) que se contrapunha à lógica materialista e temporal da
civilização ocidental. Por isto, postulava que, longe de ser algo temerário, isto
seria algo que os negros de todo o mundo deveriam se orgulhar. Pois aí residia a
fonte da originalidade e criatividade perdida pelo Ocidente. Seu apelo era para
que esta alma negra fosse incorporada como um valor positivo à civilização
ocidental. Só assim, esta poder-se-ia reivindicar, de fato, patrimônio democrático
da humanidade (BARBOSA, p. 139, 2011/2012).

Essa primeira geração de pensamento Pan-Africano travou uma luta pela formação
comunal dos negros contra os impactos do colonialismo, racismo e imperialismo europeu. A
segunda geração, formada a partir de 1920, apresenta heterogeneidade de pensamentos sobre as
relações do escravagismo com a construção do estado moderno. O liberalismo capitalista, ao lado
do debate marxista da época, secundarizavam as questões vinculadas aos problemas da
discriminação racial. Cheikh Anta Diop (1923-1986) surge com produção acadêmica africanista
entre os principais pensadores.

263 Em inglês UNIA – Universal Negro Improvement Association.


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O movimento se expande e, no âmbito cultural da produção de artes e literatura, Paris e


Nova Iorque são alguns dos lugares de maior exibição de seus intelectuais, escritores e artistas do
período. As produções de Josephine Baker, Jean Toomer e estilos como jazz, samba, etc,
evidenciam o cenário conhecido como “modernidade negra”. Diop desenvolve estudos de
valorização da produção africana, recoloca o Egito no continente africano e influencia outro olhar
para a negritude que gerou, por exemplo, movimentos como a juventude francófona em Paris, na
década de 1950, levando a negritude a um patamar cultural de renome, a partir de artistas de países
como Caribe, Antilhas e EUA (BARBOSA, 2011/2012).
O Pan-africanismo contribuiu na construção permanente de teorizações para se pensar a
descolonização dos países de África em relação colonizadores europeus. A ideia de uma
identidade representada pela coletividade entre as pessoas negras, produziu modos de
conscientização da dinâmica de opressão violenta exercida pelo fenômeno do racismo sobre
agentes africanos e afrodiaspórico.
Em conclusão, este movimento conceitual ou afroepistêmico tem um marcador
significativo na construção do pensamento negro, influenciando geração de intelectuais que
desenvolvem estudos sobre suas próprias experiências de opressão e resistência. Essa geração
sustentou-se em formas afrocentradas de valorização da população negra, procurando o
fortalecimento e, onde for preciso, o (re)estabelecimento da ideia comunal de negritude, refletindo
a responsabilidade social de sua intelectualidade e sobre a colaboração dos estudos na construção
da identidade negra africana e diaspórica.
Essa atitude afrocentrada nos instigou refletir sobre: o modo pelo qual o projeto de
pesquisa: Mulheres Afrodescendentes no Magistério Superior: vozes epistêmicas, conhecido
como MafroEduc produz seus discursos sobre a mulher afrodescendente, particularmente, sobre
as trajetórias educacionais da professora universitária, refletindo acerca dos efeitos do racismo nas
suas vivências. Para tanto, discutiremos alguns conceitos que consideramos essenciais na
compreensão das formas de ascensão social e mobilidade da mulher afrodescendente em estruturas
ancoradas na supremacia branca e masculina eurocentrada.

Amefricanidade, Mulherismo Africana e Feminismo Negro - pensar a opressão a partir do


racismo

A ideia de amefricanidade tem suas bases na estrutura geográfica de formação das


Américas que dá primazia tanto às experiências africanas, afrodiaspóricas e indígenas. É um termo
utilizado por Lélia Gonzalez (1935-1994), para questionar, numa ótica freudiana, a formação
inconsciente do processo permanente de negação de si, bem como a estrutura política e histórica
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do Brasil sob um viés totalmente branco e europeu, que tangencia toda/os as/os representantes que
lhes indiquem o contrário (pessoas negras) e afirma a inexistência de um processo racializador
opressivo (racismo – democracia racial). O contrário disso, o país é uma América Africanizada.
As manifestações culturais de África geraram mudanças profundas na forma como os
agentes, que hoje habitam países da América caribenha e Brasil, se comunicam. Gonzalez (1988b)
aponta que, nesse primeiro local, as línguas inglesa, francesa e espanhola passaram por mudanças
devido as inserções feitas pelas linguagens africanas. Da mesma forma, no Brasil, essa dinâmica
foi registrada com o uso do “pretoguês”, “que nada mais é do que marca de africanização do
português falado no Brasil” (GONZALEZ, 1988b, p.70, grifos nossos), afinal, pretos eram os
escravos africanos e os nascidos em terras brasileiras eram “crioulos”.
Outras experiências como a dança, a comida, as crenças, as religiosidades, também são
mascaradas pelo apelo do branqueamento com adjetivações do tipo: populares, nacionais, típicas.
Esse ato performativo minimiza a importância significativa da participação da negritude na
formação social desses países (GONZALEZ, 1988b).
Adiante, Gonzalez (1988b) entende que o racismo se apresenta sobre os moldes da
colonização de duas formas. A primeira, característica de colonizadores, como Holanda,
Alemanha e Populações anglo-saxônicas, vem da manutenção da pureza branca (apesar da
evidência de estupros). Nessa ótica, são segregados aqueles cujo sangue tem traços da negritude,
mantendo a separação de corpos negros de não negros nesses espaços. A segunda, própria da
América latina, reconhece o racismo disfarçado, ou racismo por denegação que, influenciado pelas
ideias de miscigenação, assimilação e democracia racial, acobertam a lógica de opressão e
manutenção da superioridade branca evidente, esquecendo-se que temos muito mais uma América
de índios (ameríndia) e africanos/as (amefricana) eurocentrados pelo imperialismo colonial.
O racismo latino-americano apresenta um nível apurado de sofisticação, mantido sobre
uma ideia de branqueamento e hegemonia do pensamento europeu. Com isso, povos negros e
indígenas são postos e mantidos sobre uma condição de populações subalternas na estrutura social,
classes exploradas. Esse discurso é reforçado pelas mídias, literatura, educação, com autoridade
eminente para afirmar aquilo que é representado pelo branco. Isto cria um sistema de valorização
eurocêntrica, no qual a cultura negra e indígena não tem potência de alcance.
A única verdade aceitável para o Ocidente é a branquitude. Uma vez fortalecida, esta lógica
estraçalha, enfraquece e alija a identidade racial, produzindo uma consciência coletiva de
embranquecimento, expressa na transformação das características originárias (cabelo, olhos, boca,
nariz), na inserção dos sistemas de crenças (religiões ocidentais) e, por fim, na negação se si
próprio, pela negação da própria raça e cultura.
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Enquanto ao norte da América a lógica do racismo explícito força o negro a se reconhecer


enquanto tal desde sempre a reivindicar seus espaços e direitos – a exemplo o Movimento Negro
(MN) nos Estados Unidos que conseguiram obter mais direitos sociais e políticos em comparação
aos da América Latina – aqui, no Brasil, o racismo por denegação cria resistências à formação da
negritude, exigindo militantes intelectuais como expoentes dos discursos de emancipação e
reconhecimento positivo da ideia de raça social.
Nos Estados Unidos da América o pensamento puritano dos colonizadores reprimiu
duramente quaisquer manifestações de tentativas de manutenção da cultura africana. Ações
conservadoras, como a KlanKluxKlan e a Guerra Civil norte americana são formações da violenta
e ideológica guerra aos negros. Nesse sentido, negras/os norte-americanos admitiram e rejeitaram
termos sobre si como “Coloured, Negro, Black, Afro-American, African-American”. Sobre as
dissonâncias desses dois últimos é que Gonzalez (1988b) se debruça para pensar a amefricanidade.
Esses termos refletem a manutenção de uma visão imperialista. Subtende-se como
americano, aquelas (es) nascidos nos Estados Unidos, legitimando-os pertencentes a única
América possível, a única que teve imigração forçada de pessoas negras de África.
Amefricanidade cria um sentido de coletividade do povo negro ao corresponder a todas/os
aquelas/es vindos da terra mãe viventes nas Américas (norte, sul, central e insular). Gera tomada
de consciência da importância de nos desvincularmos de uma linguagem racista e imperialista
(GONZALEZ, 1988b).
Assim, a amefricanidade considera aspectos culturais, políticos e sociais porque quebra
barreiras geográficas, territoriais, linguísticas e ideológicas, partindo para um conhecimento mais
profundo sobre as Américas, onde acontecimentos e interações se manifestam caracterizadas pela
adaptação, resistência, reinterpretação e a reinvenção de formas diferentes de existência.
Metodologicamente, permite o resgate culturas construídas historicamente dentro das
diversas sociedades, dialogando com as criações de hoje e antepassadas. Tem inspiração em
modelos africanos, abrangendo negras/os escravizadas/os de África e também aquelas/aqueles
originários da própria América. A experiência amefricana na diáspora representa a necessidade de
reconhecimento e conhecimento da história desses povos e da compreensão do racismo e suas
ferramentas cruéis de opressão, negação e invisibilidade.
Histórica e culturalmente, as experiências negras vividas nas Américas e em África são
diferentes. A amefricanidade aponta a localidade, demarca a criação de uma sociedade alicerçada
na herança africana como fonte de resistência e força na criação da vida na diáspora. Reaviva os
marcos de memória desse processo, quais sejam, a própria resistência, o sofrimento, exploração,
etnocídios, humilhações, o que evita a perda da identidade. Também considera todo processo de
reinvenção negra no continente americano descendente, criando possibilidade de desmistificação
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e idealização da África, e, na mesma medida, volta o olhar para as/os amefricanas/os e sua
realidade.
Nessa direção, o feminismo negro, ao tratar das condições das mulheres negras, corpos
violentados no processo de exploração de trabalhos forçados, denuncia relações desumanizadoras
e de manutenção do controle pelo medo, denuncia identidades alicerçadas sob o mito da
democracia racial, fortalecendo assim, os argumentos posteriormente apresentados sobre a
necessidade de um feminismo enegrecido.
Às mulheres negras foi negado lugar institucionalizado de luta contra sua desumanização,
contra a coisificação de seu corpo que se tornou alvo do erotismo e dos estupros romantizados.
Afinal, a violência sexual perpetrada às mulheres negras também é liga da hierarquização de
gênero e raça existente na sociedade brasileira (CARNEIRO, 2011).
Esses elementos diferenciam-se daqueles protagonizadas pelas mulheres brancas. As
identidades das mulheres não podem ser refletida com o mesmo espelho. Quando tratamos da
questão da fragilidade e delicadeza feminina, o corpo negro não se enquadra porque sua história
retrata séculos de trabalhos forçados e violações sobre o corpo, depois, trabalho casas brancas e
nas ruas vendendo quitutes, não sendo, portanto, tratadas como frágeis. Hoje, a lógica de trabalho
doméstico e manutenção do próprio lar se mantém no cotidiano de muitas. Como regra social,
assumem, majoritariamente, trabalhos sem prestígio social e com vulnerabilidade às múltiplas
violências.
Seus traços físicos foram e continuam sendo reforçados como feios e indesejáveis,
contraditoriamente, para satisfação sexual, seu corpo é lugar de performance quente e submissa a
qualquer desejo do parceiro, ou de erotização como produto de exportação para prostituição e
exposição. Essa recusa pela aparência desdobra-se na negação de suas capacidades intelectuais,
destinando-lhes os cargos subalternos, o assédio no ambiente de trabalho e as disparidades nos
ganhos salariais (CARNEIRO, 2011).
O feminismo não pode ficar centrado apenas na lógica que questiona a supremacia
masculina, nesse sentido:

Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente,


demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão
racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na
caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do
conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência
sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir
a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência
sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas
públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no
mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os
privilégios entre as mulheres brancas e negras (CARNEIRO, 2011, p. 2)
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Os debates dentro do Feminismo Negro permitem ampliar os estudos acerca das


experiências das mulheres, com atenção às demandas específicas das mulheres negras. Promovem
consciência crítica da negritude, das diferenciações de opressões em África e na diáspora, já que
nem todas as sociedades são estruturadas pelo gênero ou com base na família nuclear e patriarcal.
A sociedade Yorubá do sudoeste da Nigéria tem como princípio fundamental a senioridade,
secundarizando a marcação de gênero (OYĚWÙMÍ, 2019).
Considerando essa interconexão diaspórica dentro e fora da África, o mulherismo
africana é uma proposta de base afrocêntrica e Pan-Africana que valoriza a agência das mulheres.
Não é uma complementação do feminismo, não é um feminismo negro e nem mulherismo de Alice
Walker. Tem como prioridade a cultura africana, a família e o empoderamento da raça e não da
mulher (HUDSON-WEEMS, 2012).
Conceito de criado por Cleonora Hudson-Weems, em 1987, a primeira diferenciação
evidente da teoria é exatamente a crítica em relação as opressões geradas por mulheres sobre
outras mulheres, podendo ocorrer em diversos contextos, como por exemplo, em um movimento
de ascensão social, de trabalho ou nas próprias relações de poder.
A irmandade entre as mulheres constituí um dos dezoito pilares que organizam os pilares
do mulherismo africano; dentre as demais, podemos citar a importância da mulher em nomear-se
e definir-se, ser forte junto aos homens na luta, flexibilizar os papéis no jogo social, respeitando
espiritualmente os homens, os mais velhos, se adaptando, sendo materna e fonte de nutrição.
A categoria foi pensada e organizada para mulheres de ascendência africana. tecendo
críticas em relação aos conflitos existentes entre as diferentes expressões do feminismo (as
feministas tradicionais, a feminista preta, a feminista africana, e Africana Womanist).
Nessa lógica, não faz sentido as mulheres negras falarem sobre gênero sem lidar com as
opressões e apagamentos gerados pelo racismo, que afeta toda sua comunidade nas relações de
gênero e de classe. Os racismo mantém uma construção hierárquica de opressão, os acessos são
negados e negligenciados para as pessoas negras, exigindo projetos e agendas políticas que
localizem a agência das mulheres na produção de suas experiências e produção histórica.

O Projeto MafroEduc e a Produção De Saberes Decoloniais

O projeto de pesquisa Mulheres Afrodescendentes no Magistério Superior: vozes


epistêmicas (MafroEduc), foi criado em 2016, no Departamento de Educação II, sob a
coordenação da Profa. Dra. Raimunda Nonata da Silva Machado. Atualmente, o projeto está
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do
Maranhão (UFMA).
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O objetivo principal do MAfroEduc é investigar como se dá o ingresso e a participação de


professoras afrodescendentes no magistério superior da Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). Com ênfase na abordagem decolonial, que privilegia a voz dos agentes sobre suas
próprias experiências, analisa as práticas acadêmicas, por meio da elaboração de narrativas sobre
as trajetórias das professoras afrodescendentes.
Trata-se de pesquisa com foco em epistemologias de subversão (feminismo, gênero,
sexualidade, geração, etnia, afrodescendência, dentre outras) como uma maneira de problematizar
as vicissitudes dos códigos culturais prescritos em territórios ocidentais e hegemônicos.
Tem como inquietação os processos de produção científica na universidade, questionando:
como eles ocorrem? Quem produz o quê? Por que produzem? Quem são as mulheres professoras
negras? Quais são as suas “maneiras de fazer” na universidade?
As pesquisas desenvolvidas com este projeto têm refletido sobre as diferenciações
presentes nos campos epistemológicos dos estudos feministas e das relações raciais e
afrocentradas como vimos, anteriormente. A partir das discussões do movimento Pan-Africano e
das elaborações conceituais da amefricanidade, do feminismo negro e do mulherismo africana,
priorizam-se propostas teórico-metodológicas que pretendem olhar criticamente para as
particularidades das mulheres negras.
Nesse sentido, os estudos ampliam as discussões e reflexões teóricas acerca das de como
é possível produzir epistemologias afrodecoloniais que deem primazia às maneiras como mulheres
negras estruturam seus sucessos educacionais e de docência universitária. Concebe o MAfroEduc
como espaço de valorização de práticas afrocentradas para e com as mulheres negras, instigando
o debate das inter-relações entre as diversas áreas do conhecimento, como a Pedagogia, o Direito,
a Psicologia e as Tecnologias por meio de estudos realizados por alunas na graduação e pós-
graduação.
A partir dessa compreensão, estudos sobre e com mulheres negras ultrapassam os debates
do feminismo clássico, já que seu repertório teórico não é suficiente para questionar, criticamente,
as relações sociais de sujeição das mulheres negras aos homens e às mulheres brancas.
As pesquisas têm sido desenvolvidas com apoio do Programa Institucional de Iniciação
Científica (PIBIC), na concessão de bolsas à alunas do curso de Pedagogia da UFMA, cujo tema
central: mulheres professoras afrodescendentes no magistério superior, se desdobra em subtemas
que discutem: as memórias de resistências de mulheres afrodescendentes; suas práticas educativas,
identidades étnico-raciais, seu envolvimento em movimentos sociais, sistemas de poder
interseccionados por relações raciais e de gênero, destacando a questão das territorialidades
femininas.
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Esses estudos tiveram como desdobramento o desenvolvimento de Trabalhos de


Conclusão de Curso (TCC), dissertações de mestrado em andamento, além de artigos científicos
na área da educação. O quando 1, apresenta de maneira sistematizada os trabalhos oriundos do
Projeto MafroEduc:

Quadro 1 – Produções resultantes do Projeto MafroEduc


Tipo produção Título Discentes/autoras Período

Saberes discentes:
concepções de Sexualidade Simone Cristina Silva
Dissertação 2018-2020
e Gênero no curso de Simões
Pedagogia UFMA - Codó

Políticas educacionais e
transversalidade de Gênero
Dissertação Ana Carla de Melo Almeida 2018-2020
na inclusão de mulheres no
mercado de trabalho.

Perspectivas de professoras
afrodescendentes no Glaucia Santana Silva
Dissertação 2019-2021
magistério superior da Padilha
UFMA

Educação e Sexualidade da
mulher negra escravizada
Dissertação no Brasil: o que dizem as Mariana Fernandes Brito 2019-2021
representações femininas na
historiografia brasileira?

Compositoras Maranhenses
Dissertação Fernanda Silva da Costa 2019-2021
afrodescendentes

LA FRONTERA:
Professoras
Glaucia Santana Silva
TCC Afrodescendentes no 2019
Padilha
Magistério Superior da
UFMA

A ESTRADA: professoras
afrodescendentes
TCC universitárias entrecruzam e Walquíria Costa Pereira 2019
entrelaçam memórias de
resistências

As identidades étnico
Samyra do Nascimento
Iniciação Científica raciais de professoras 2018-2019
Moraes Gomes
afrodescendentes na UFMA

Arqueologia de resistência
Iniciação Científica de memórias femininas aos Thays Coelho França 2018-2019
sistemas de poder

Arqueologia das memórias


de professoras
Iniciação Científica Walquíria Costa Pereira 2018-2019
afrodescendentes no
magistério superior
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Práticas educativas de
mulheres professoras
Glaucia Santana Silva
Iniciação Científica afrodescendentes no 2018-2019
Padilha
magistério superior na
UFMA

Pedagogias afrocentradas na
Alexia Tomásia Ferreira
Iniciação Científica prática de professoras 2019-atual
Cavalcante
afrodescendentes

Professoras
afrodescendentes Vitória Raíssa Holanda da
Iniciação Científica 2019-atual
universitárias em Silva
movimento

Produção: Simone Cristina Silva Simões

Do ponto de vista conceitual, os estudos localizaram práticas educativas afrocentradas no


magistério superior, especialmente da UFMA. Além disso, o próprio projeto MAfroEduc vem se
tornando um projeto afrocentrado constituindo-se espaço motivador do protagonismo afrocêntrico
das mulheres negras na docência universitária.
As produções de Iniciação Científica, Monografias e Dissertações produzem análises que
reconhecem e valorizam as experiências educacionais das professoras universitárias negras e sua
incursão pelos princípios da Afrocentricidade. Isto nos leva a constatar que o Projeto MAfroEduc
está desenvolvendo possibilidades de estudos afrodecoloniais e de pedagogia afrocentradas.

Considerações

Os estudos de perspectivas feministas enquanto conjunto de movimentos políticos, sociais


e econômicos é importante, pois, vem ao longo de seu desenvolvimento procurado atingir,
reflexiva e praticamente, a igualdade de direitos e acesso entre homens e mulheres,
desestabelecendo a lógica vigente de superioridade do homem sobre a mulher. Todavia, se fez
necessário colocar os olhares sobre formas de opressão que deslegitimam sociedades como um
todo, justificando um sistema de controle ideológico, físico, emocional, e psicológico baseado na
inferioridade, infantilização e erotização desses corpos, o racismo.
Nesse sentido surgem movimentos intelectuais e políticos de homens e mulheres desses
grupos, procurando positivar seus lugar de fala e colocar a sociedade a par da contribuições
significativas a construção da sociedade hoje existente. Aqui falamos sobre a sociedade negra e
alguns movimentos representativos da retomada do lugar da pessoa negra enquanto agente de
direitos, intelectualidade e representatividade.
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A Amefricanidade, proposta por Gonzalez (1988b) vem refletir acerca das interferências
dos povos africanos trazidos as Américas nos período de escravização, como a linguagem, e a
relevância de se pensar essas similaridades dessas pessoas negras das Américas; O feminismo
negro, que nessa discussão foi pensado a partir de Carneiro (2011), pensando o movimento no
Brasil e o Mulherismo Africana, pensado por Hudson-Weems (2012), voltado para uma ideia de
construção social dos povos negros africanos, que pensa a coletividade, a mulher enquanto agente
ativo e relevante na estrutura social e importância de retomada desse lugar.
Ao longo de seus quatro anos de existência, o Projeto MafroEduc vem buscando olhar para
a mulher compreendendo suas experiências, especialmente nas práticas de magistério superior,
considerando tanto as estratégias de opressão social, mas também na hegemonia branca e
masculina existente no ambiente universitário. A fim de ampliar seus debates, vem buscando nos
estudos decoloniais desconstruir a perspectiva eurocentrada ainda evidente na formação
acadêmica. Desta forma, as produções apresentadas evidenciam os resultados desse processo de
descolonização das mentes, produzindo para, com e a partir das negritudes, pautando na
construção de uma epistemologia afrocentrada e uma metodologia pós-crítica, de diálogo
constante com a pesquisa e suas/seus participantes.

Referências

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(Org). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. Selo Negro, São Paulo,
2009.

BARBOSA, Muryatan Santana Barbosa. Pan-africanismo e teoria social: uma herança crítica.
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CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A situação da mulher negra na América Latina a


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Página 1156 de 2230

ÉTICA E DIGNIDADE HUMANA: UMA PERSPECTIVA KANTIANA

ETHICS AND HUMAN DIGNITY: A KANTIAN PERSPECTIVE

João Gabriel Costa Ferreira Maia – graduando em Filosofia –


UFMA.
Franciscleyton dos Santos da Silva – Mestre em Cultura e
Sociedade – IFAP.
Zilmara de Jesus Viana de Carvalho – Doutora em Filosofia
– UFMA

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Objetiva-se apresentar a relação entre ética e dignidade humana no pensamento prático
kantiano, uma vez que para Kant o estabelecimento de um princípio puro da ética, livre de toda
influência empírica, figura como um fundamento sólido e consistente, para tratar o homem sobre
uma perspectiva universal, a saber, a da humanidade, sendo esta, bem como a moralidade as únicas
realidades que têm dignidade, pois o homem, como ser racional, existindo como fim em si mesmo,
isto é, como pessoa, cumpre sua finalidade, que é ser em si mesmo humano e sujeito moral,
independente de qualquer coerção externa. Para tanto, pautar-se-á a referida abordagem na análise
crítico-interpretativa da obra Fundamentação da metafisica dos costumes.
Palavras-chave: Kant. Dignidade. Moralidade. Pessoa. Humanidade

Abstract: The objective is to present the relationship between ethics and human dignity in
practical Kantian thought, since for Kant the establishment of a pure principle of ethics, free from
all empirical influence, appears as a solid and consistent foundation, to treat man on a universal
perspective, namely, that of humanity, being this, as well as morality the only realities that have
dignity, because man, as a rational being, existing as an end in himself, that is, as a person, fulfills
his purpose , which is in itself human and moral subject, independent of any external coercion. To
this end, this approach will be guided by the critical-interpretative analysis of the work
Foundations of the metaphysics of customs.
Keywords: Kant. Dignity. Morality. Person. Humanity

Introdução
O trajeto ético percorrido por Kant para chegar ao estabelecimento de uma compreensão e
consolidação da Dignidade Humana (como veremos ao longo desta comunicação) se dá,
primeiramente, na busca pelo conceito de dever fora da experiência, ou seja, no estabelecimento
de uma lei universal legisladora na esfera da própria razão que ordena a ação humana (esse projeto
ético-moral é inovador a partir de Kant). A dignidade humana não é um conceito empírico, pois a
experiência humana não fornece um aparato universal, dada as suas contingências, essa clareza é
trazida na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (de 1785). Como justifica Kant (2007, p.
40): “Na realidade, é absolutamente impossível encontrar na experiência com perfeita certeza um
único caso em que a máxima de uma acção, de resto conforme ao dever, se tenha baseado
puramente em motivos morais e na representação do dever”.
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Fundamentação Teórica da Comunicação


No enfrentamento ético, pode-se supor que ao agir não estamos reproduzindo somente
atributos de fatores condicionados aos aspectos fisiológicos e mecânicos, pois, a ação humana
carrega toda a vitalidade da razão. Então, “quando se fala de valor moral, não é das acções visíveis
que se trata, mas dos seus princípios morais” (KANT, 2007, p. 40).
A intenção do sistema ético kantiano está no estabelecimento de uma lei para todos os
homens, e não apenas para um único indivíduo, mesmo porque a própria noção de lei reivindica
apoditicidade, o que significa: universalidade e necessidade. Esse ponto é peculiar no pensamento
de Kant, pois o filósofo sempre visa à busca pela dimensão do homem relacionado à espécie
humana (natureza humana), de forma coletiva, como uma comunidade universalmente racional.
A ótica ética redimensiona-se para uma integralização da espécie humana, na prerrogativa de uma
crítica e desconstrução de toda forma de segregação moral e consequentemente política, os quais,
historicamente, têm se consolidado de maneira excludente e antagônica.
Kant estabelece que a realização de um sistema ético que busque o encontro e a
investigação do princípio de nossas ações, dado pelo dever, é uma investigação filosófica pelo o
amor a Humanidade. Para o filósofo, pautar um sistema moral no dever é defender que a espécie
humana se desenvolva conforme um plano para o melhor, onde os indivíduos coletivamente
caminham para a resolução de seus conflitos, podendo nas suas ações encontrar a vida digna em
meio às contingências do mundo.
O Eu, como protagonista do dever, da ética enraizada na razão, é a preocupação da filosofia
kantiana. Isso implica dizer que, mesmo não encontrando no mundo a felicidade, é possível se
deparar com o que há de mais importante, a saber: o sentimento de respeito para com a lei e a
tentativa de uma ação fundamentada pelo valor moral, possibilitadora da esperança de si ser digno
da felicidade. Em outras palavras, o itinerário de uma lei capaz de determinar os indivíduos nas
suas ações diante da tenuidade da esfera sensível, dadas as circunstâncias de sua natureza, é algo
absolutamente passível de realização, muito embora possa, por vezes, considerando-se os próprios
exemplos empíricos contrários a esta, parecer inexequível.
A proposta kantiana se baseia rigorosamente em uma ética deontológica (do dever ser) e
independe do mundo fenomênico e de suas contingências, já que esse não é o elemento
fundante/necessário para o dever, mas apenas o espaço de realização da lei manifesta nas ações
humanas, haja vista que o ser humano tem seu habitar no mundo e é nele que se mostra sua
existência.
Kant retorna de forma consistente à ideia de inteligibilidade ética, a qual corresponde a
uma moral racional formal, que estabelece a lei universal para o comportamento humano. Dito
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isso, a vontade livre é sustentada pela ideia da lei moral, onde não cabe o atributo mimético como
fundamento da ação. Por esse motivo, os exemplos não servem como regra universal para a
humanidade, segundo os critérios elencados pelo filósofo, dentre outras coisas, porque aquilo que
é proveniente da experiência possui um alcance subjetivo e contingente. Se o exemplo tem alguma
utilidade e/ou função, será, nesse caso, apenas o de encorajar. Assim, do ponto de vista intelectivo,
faz-se necessário a investigação em torno do princípio capaz de fundamentar a ação moral.
A abordagem é única e exclusivamente de uma fundamentação da metafísica dos costumes,
isto é, do estabelecimento dos princípios racionais puros que orientam a ética kantiana. Em síntese:

[...] a pura representação do dever e em geral da lei moral, que não anda misturada com
nenhum acrescento de estímulos empíricos, tem sobre o coração humano, por intermédio
exclusivo da razão (que só então se dá conta que por si mesma também pode ser prática),
uma influência muito mais poderosa do que todos os outros móbiles que se possam ir
buscar ao campo empírico. (KANT, 2007, p. 46).

O estabelecimento de um princípio puro da ética, livre de toda influência empírica, figura


como um fundamento sólido e consistente, para tratar o homem sobre uma perspectiva universal,
a saber, a da humanidade. A partir disso, essa compreensão pode estabelecer conexão com a esfera
sensível, seja no campo antropológico, do Direito e/ou de qualquer outra ciência que se proponha
à investigação do comportamento humano.
O parâmetro fundante para que se estabeleça a justificação metafísica da ação moral é a
prerrogativa de que tudo na natureza age segundo leis. Isso faz com que Kant (2007, p. 47) entenda
(no caso do homem) a existência de um ser racional agindo segundo a representação de leis, ou
seja, segundo princípios. Dizer, portanto, que o homem age conforme princípios é conferir-lhe
singularidade e presteza, enquanto ser distinto da esfera puramente natural, pela faculdade da
vontade, da razão prática. Com efeito, reguladas por tal faculdade suas ações são subjetivamente
e objetivamente necessárias. Nesse sentido (ao menos no plano metafísico), o homem só escolhe
aquilo que a razão lhe manda e a vontade realiza. Independente das contingências e inclinações
humanas, este sabe e reconhece necessariamente o que é bom, pois sua capacidade racional assim
o faculta.
Kant entende que o fato do homem ter consciência do dever, isto é, da lei moral, não
impede que ele esteja empiricamente contingenciado e dado às inclinações. Visto que, nem sempre
age segundo o princípio regulador da razão. Daí a necessidade de um princípio da razão por meio
de lei que obrigue objetivamente a vontade, a saber: um imperativo, ou seja, um mandamento.
A pretensão kantiana é fundamentar filosoficamente um sistema moral puro, a partir da
noção de dever incondicionado, noção testemunhada pelo juízo moral vulgar. Nessa perspectiva,
o filósofo de Königsberg entende que a vontade posta no campo da necessidade e da contingência
precisa obedecer ao mandamento que o obriga ao agir moral
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Os imperativos como ordem (dever) podem ser hipotéticos ou categóricos. São hipotéticos
os imperativos que estão no campo da ação possível, uma projeção dada aos critérios de ordem
como meio para chegar a um fim pretendido na esfera do querer. A título de exemplo, se o querer
ordena determinada ação, existe uma ordem hipotética que formula o meio de obter a necessidade
pretendida, então, necessariamente ele está correlacionado ao caráter finalístico de uma ação
desejada. O imperativo categórico não carrega a dimensão da finalidade da ação por ser necessário
em si mesmo; o dever, nesse viés, é uma ordem a ser cumprida e realizada, independente de
qualquer relação circunstancial.
Crendo na impossibilidade de eleger máximas universais advindas da experiência, como
fórmula deontológica, é fundamental que o caráter apodítico do imperativo categórico seja
evidenciado, pois este, independente das contingências e da realização do querer, determina a
vontade através do dever de alcançar o bem em si. Quanto à sua formulação, Kant elenca três das
quais se concretiza e fundamenta o princípio determinante da vontade e, por assim dizer, a própria
dignidade moral e humana. Esta é uma pretensão concreta e audaciosa da ética apresentada pelo
filósofo transcendental, visto entender a autonomia como elemento fundante da humanidade ética
(moral).
De acordo com Kant (2007, p. 59), há apenas um único imperativo categórico:

Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne
lei universal. De sorte, dele demais imperativos podem ser exprimidos: ‘age como se
máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza.

Tem-se na regulamentação da máxima, enquanto lei universal da natureza, um princípio


prático que se estabelece de forma apodítica em analogia à lei de natureza. Outra formulação do
imperativo categórico, o qual enaltece a humanidade, é: “age de tal maneira que uses a
humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente
como fim e nunca // simplesmente como meio” (KANT, 2007, p. 69).
O imperativo categórico só pode ter como fundamento um ser cuja existência tenha em si
mesmo um valor absoluto, que possua um fim em si mesmo. Esse ser é o homem – aliás, diz Kant,
não apenas o homem, mas todo ser racional.
A fundamentação de uma metafísica dos costumes em máximas principiológicas direciona
a certeza humana do reconhecimento da dignidade imputada em uma ação incondicionada a todos
os homens. Kant, portanto, inaugura em grande escala uma mudança paradigmática, pois a
dignidade humana não é mais apenas um valor capaz de ser trocado, deixado para trás,
relativizado. A dignidade passa a ter uma legitimação moral universal, cuja base é a razão,
independente de fatores contingentes, tangenciados pelo mundo externo.
A dignidade como imperativo moral universal possibilita a concepção de uma humanidade
voltada para o bem da espécie. Indiretamente, poder-se-ia dizer, inclusive, do planeta, onde todos
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devem ser respeitados e valorizados por aquilo que são e não como meio para uma determinada
demanda. O homem não pode ser visto simplesmente como meio, tampouco sua dignidade pode
ser evidenciada por fatores empíricos, isto é, pela sua situação social, econômica, credo e tantas
outras que outrora segregavam os indivíduos.
Em Kant (2007, p. 77), “aquilo, porém, que constitui a condição só graças à qual qualquer
coisa pode ser um fim em si mesmo, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um
valor íntimo, isto é dignidade”. Torna-se evidente que a humanidade e a moralidade para o
pensamento kantiano são as únicas realidades que têm dignidade, pois o homem cumpre sua
finalidade, que é ser em si mesmo humano e sujeito moral, independente de qualquer coerção
externa. Como o ser racional existe com um fim em si mesmo, denomina-se pessoa.
O ápice de toda a fundamentação metafísica dos costumes exposta por Kant (2007, p. 79),
colocando o homem como um fim em si mesmo, é a ideia de autonomia, que “é, pois, o
fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional”. Por essa ideia, uma
vontade de tal forma submetida à lei, isto é, uma vontade incondicional, que exclua de si todos os
interesses e que se autodetermine, deve ser considerada como autolegisladora, como autora da lei.
Esse princípio é o da autonomia da vontade.

Conclusão
Tendo estabelecido as bases para a dignidade humana a partir da Fundamentação da
metafísica dos costumes, através da autonomia da vontade, ou seja, de uma vontade
autolegisladora, que se reconhece naquilo que a razão ordena, Kant, em sua Doutrina do Direito,
estabelece no plano jurídico a pessoa humana enquanto instância garantidora de Direitos.
O que aparecerá no cenário da segunda metade do século XX (pós segunda guerra mundial)
é a unidade, evidenciada por Kant, em dignidade humana e direito da pessoa humana, ou seja,
uma máxima moral dada por princípios universais respaldadas deontologicamente pelo direito.
Conferir uma dignidade humana é apresentar do ponto de vista jurídico a exclusão das hostilidades
vividas pela esfera global, respaldando um cenário de paz pela via do direito baseado na
hospitalidade universal.
Tendo realizado o percurso aqui apresentado, a partir da Fundamentação da Metafísica
dos Costumes – obra que antecedendo a Metafísica dos costumes e, por conseguinte, a Doutrina
da Virtude, destina-se a exposição dos fundamentos a priori da ética –, à guisa da sistematização
do conceito de “dignidade humana” utilizado por Kant, fechar-se-á o corolário pacifista, que pauta
seu projeto de paz eterna por meio da Doutrina do Direito. Com isso, estabelece-se no campo
ético a fundamentação para um princípio que se serve de um imperativo categórico, o qual está
fundamentado na dignidade da pessoa humana.
Página 1161 de 2230

Referências

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Edições 70, Ltda. Tradução
Paulo Quintela. 2007.
Página 1162 de 2230

FILOSOFIA, LINGUAGEM E A CRISE DA VERDADE: DA ORIGEM, SEGUNDO A


PERCEPÇÃO ROUSSEAUNIANA, E OS DIAS ATUAIS

PHILOSOPHY, LANGUAGE AND THE CRISIS OF TRUTH: OF ORIGIN,


ACCORDING TO ROUSSEAUNIANA PERCEPTION, AND THE PRESENT DAY

Luciano da Silva Façanha264


Lussandra Barbosa de Carvalho265
Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Recentemente, é perceptível um rebaixamento do discurso em diálogos e debates que


resultam diariamente em mal entendidos que servem para propagar o ódio, sobretudo, nos polos
da esfera política. Objetiva-se analisar o modo com que esse processo nos torna simultaneamente
vítimas e algozes do ato de comunicar e de que forma a linguagem se adequa a tal fenômeno
embasando-se em obras do filósofo Jean-Jacques Rousseau que reflete sobre a origem da
Linguagem bem como de outros pensadores, como Márcia Tiburi, que dialogam sobre o provável
destino da mesma.
Palavras-chave: Filosofia; Linguagem; Origem; Verdade; Rousseau.

Abstract: Recently, a reduction of the discourse in dialogues and debates is perceived that result
daily in misunderstandings that serve to propagate hatred, above all, in the poles of the political
sphere. The objective of this paper is to analyze the way in which this process simultaneously
makes us victims and executioners of the act of communicating and how language adapts to this
phenomenon based on the works of the philosopher Jean-Jacques Rousseau who reflects on the
origin of Language as well as well as other thinkers, like Márcia Tiburi, who reflect on the
probable destiny of the same.
Keywords: Philosophy; Language; Source; Truth; Rousseau.

INTRODUÇÃO:
As reflexões acerca da linguagem, sua origem e evolução mantêm-se sempre atuais,
uma vez que é um processo que marca e acompanha a evolução humana pois é a partir dela, da
Linguagem, que o ser humano passa a comunicar-se com o próximo e, somente assim, tornou-se
possível a vida em sociedade. Atrelada a essa temática, surge também a questão da verdade
proferida pelos discursos (ou não).
No século das Luzes, o filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau fomenta sua teoria
da Linguagem na obra Ensaio sobre a origem das línguas, onde ele expôs o que impulsionou o
homem a se comunicar. Percebe-se, então que, para Rousseau, não foram as necessidades que
fizeram o homem estabelecer a comunicação com seu próximo, como se pensou antes dele e até

264
Doutor em Filosofia (PUC-SP). Professor do Departamento de Filosofia da UFMA.
265
Mestra em Cultura e Sociedade (UFMA). Professora de Linguagens, códigos e suas tecnologias (SESI).
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mesmo tempos depois, mas sim as paixões, as emoções, os sentidos. O despertar da língua não
surgiu através das necessidades, mas das paixões, e são estes sentimentos que evidenciam gestos
e códigos que desembocam na comunicação que não se restringe apenas às palavras. Segundo
Rousseau, é através
dos sentidos que se desenvolveu a primeira forma de comunicação. “A palavra distingue os
homens dos animais; a linguagem as nações entre si – não se sabe de onde é um homem antes de
ter ele falado” (ROUSSEAU, 1978. p. 159). Antes de existir a fala, o homem não tinha consciência
de si mesmo, ele passa a ter essa consciência a partir do reconhecimento do outro. Ele precisou do
outro, de seu próximo, para construir moradias, para fixar grupos que favorecessem sua
sobrevivência, e é dessa relação com o outro que surgem as paixões. Das paixões, surge a
necessidade de conhecimento que leva o homem ao progresso. Esse progresso não é bem visto por
Rousseau, porque, nele, o homem não desenvolve suas virtudes, mas sim a indiferença e o egoísmo
em relação ao seu próximo. Neste ponto, a ideia de imaginação tem um papel importante para
elucidar as reflexões de Rousseau, porque também é através dela que, segundo o genebrino, que
chegou-se à razão. Ao ver o outro numa situação de perigo, o homem imagina-se no lugar dele,
chegando até a sentir piedade de seu próximo, mas instintivamente põe-se em fuga, pois ainda não
há o reconhecimento de si pelo outro.
Rousseau anuncia, de forma geral, o que viria a ser a sua filosofia política, as questões
morais, educacionais e de caráter memorialístico ao qual lhe asseguraria lugar entre os grandes
pensadores de todos os tempos. Jean-Jacques faz um alerta de como a linguagem humana se
“desenvolverá” ou “desenrolará” desde sua origem, apontando que a “evolução” da linguagem
está associada às transformações do homem e da sociedade.

LINGUAGEM: da origem, segundo Rousseau

Na primeira parte do Segundo Discurso, Rousseau investiga não somente as condições


em que se deram os primeiros progressos do espírito humano mas as faculdades que colaboraram
para o desenrolar de tal processo. Ele dedica-se a construir a história hipotética da Linguagem e
da vida em sociedade a partir da piedade, da perfectibilidade e da liberdade, faculdades
características do homem. Essas faculdades fizeram com que o homem superasse e dominasse o
próprio instinto, elas fizeram com que o homem desenvolvesse a comunicação, um dos processos
que o diferencia dos outros animais e, sem o qual, a evolução humana permaneceria estagnada.

Para Rousseau, a criação da linguagem também está na origem da fundação da sociedade


civil, na origem e na constituição das formas públicas de organização da vida a partir de uma
análise das diferentes formas de comunicação como o gesto e a fala. O genebrino reflete sobre o
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problema do tempo, da saída do estado de natureza, do devir e da aparência, como a história das
línguas.
Segundo o genebrino, o homem era independente antes de estabelecer qualquer vínculo
com o próximo, o que delimitava a distância entre o estado de natureza e a vida em sociedade. A

linguagem permitiu que a vida em continuidade fosse possível e, sem ela, os homens

estariam próximos do estado de pura animalidade assim como os humanos selvagens

dos primeiros tempos, seriam incapazes de se organizar coletivamente e de formar juízos

além daqueles que respondessem às primeiras necessidades. Segundo Jean-Jacques, a fala


é “primeira instituição social, só a causas naturais deve a sua forma”. Para ele, os homens,
“sentiram antes de falar e, somente então, depois de inventarem as palavras, aprenderam a pensar”
(ROUSSEAU, 1989, p.146). A linguagem nasceu, a princípio, para comunicar paixões e,

consequentemente, para preencher uma ausência: “Como os primeiros motivos que

fizeram os homens falar foram paixões, suas primeiras expressões foram tropos. [...] A

princípio só se falou pela poesia, só muito tempo depois é que se tratou de raciocinar”.
Em A transparência e o Obstáculo, Jean Starobinski afirma a importância da reflexão
sobre a linguagem desenvolvida por Rousseau, tal reflexão ocupa um lugar relevante na vida e
obra do genebrino. Pois, de um lado, sua teoria leva em conta a história da sociedade e também
leva em consideração a educação do homem moderno e a investigação do problema da
comunicação, “a escolha dos meios de expressão preocupa em Rousseau o músico, o artista, o
romancista e, no supremo grau, o autobiógrafo” (STAROBINSKI, 2011, p. 409).
Jacques Derrida, em sua obra Gramatologia assegura que o Discurso sobre a
desigualdade quer “marcar o começo”, por isso aguça e radicaliza os traços primeiros

no estado de pura natureza. Rousseau também intencionaria “fazer sentir os começos”, o


“movimento pelo qual os homens dispersos sobre a face da terra se subtraem continuamente, na
sociedade nascente, ao estado de pura natureza” (DERRIDA, 1973, p. 308).

Para Rousseau, linguagem e sociedade estão tão ligadas que, admite-se que o homem
de não sociável tornou-se sociável, é preciso igualmente conjecturar que o homem, de não falante,
tornou-se falante. A linguagem, por sua vez, não é uma faculdade que o homem soube exercer de
imediato, foi necessário um longo processo de aperfeiçoamento. Assim como a “instituição
social”, a linguagem é um efeito tardio de uma faculdade primitiva, neste caso, é o resultado de
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um processo postergado. Não podemos, portanto, esquecer de que a linguagem é um processo


natural.

Rousseau, ao assegurar no primeiro capítulo do Ensaio que “a palavra é a primeira


instituição social, deve ela sua forma apenas às causas naturais” está com isso admitindo que a
língua nasce no exato momento em que os homens se organizam em sociedade. Sendo assim,
damo-nos conta de que para Rousseau a evolução da linguagem “não está separada da história do
desejo e da sexualidade, ela se confunde com as etapas da socialização; mantém relações estreitas
com os diversos modos de subsistência e de produção” (STAROBINSKI, 2011, p. 417). Não há,
portanto, instituição social antes da linguagem, “esta não é um elemento da cultura entre outras; é
o elemento da instituição em geral; compreende-se e constrói toda a estrutura social” (DERRIDA,
1973, p. 268).

Assim, a origem das línguas é, para Rousseau, uma das questões mais essenciais para
se compreender a formação da sociedade. Na trajetória da humanidade, a linguagem ganha forma
e se torna algo necessário para o homem social.

LINGUAGEM E FAKE NEWS NA ATUALIDADE

Mundialmente, resultante dos efeitos da evolução tecnológica, as mídias digitais e


redes sociais têm permitido o acesso em tempo real às notícias locais, nacionais e internacionais.
O receptor que, antes, somente recebia as informações, agora, também interage em tempo real.

As redes permitem que o usuário acompanhe as notícias e se faça notícia, tal qual o seu
gosto, naquela “exposição de máscaras” em que as pessoas “pintam-se” como querem ser vistas,
mencionada por Rousseau no século XVIII ao se referir aos salões parisienses. Tudo em nome da
inserção num meio, de um status que as possa inserir no ambiente a que se aspira e, para isso, não
podendo ser elas próprias, representam, criando personagens para si a fim de agradar a outrem.
O amor a si mesmo, que só a nós diz respeito, satisfaz-se quando nossas necessidades
estão satisfeitas; mas o amor-próprio, que se compara, nunca está satisfeito e não poderia
estar, porque tal sentimento, em nos preferindo aos outros, exige também que os outros
nos prefiram a eles; o que é impossível (ROUSSEAU, 1989, p.236-237).

Assim, as relações baseadas na ternura e nas afeições provêm do “amor a si mesmo”, e as


paixões irascíveis, baseadas no ódio e na repugnância, surgem do “amor-próprio”, segundo
Rousseau.
Atualmente, principalmente no tocante ao campo político, geralmente, dividido em dois
polos, as notícias têm sido recebidas e julgadas, de acordo com o que se acredita, e não como as
coisas são ou foram. Desta forma, a notícia é propagada, em tempo real, como notícias falsas ou
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“fake news”.
O historiador Robert Darnton conta que as notícias falsas são relatadas desde a Idade
Antiga, do século VI: “Procópio foi um historiador bizantino do século VI famoso por escrever a
história do império de Justiniano. Mas ele também escreveu um texto secreto, chamado
“Anekdota”, e ali ele espalhou “fake news”, arruinando completamente a reputação do imperador
Justiniano e de outros. Era bem similar ao que aconteceu na campanha eleitoral americana”, diz
Robert Darnton ao jornal Folha de São Paulo.
Em 2016, o mundo estava “de olho” nas eleições presidenciais dos Estados Unidos,
quando notícias falsas foram disseminadas sobre os dois candidatos mais populares: o republicano
Donald Trump, eleito naquele ano, e a democrata Hillary Clinton. No monitoramento de notícias
falsas, os economistas Hunt Allcott e Matthew Gentzkow concluíram que as postagens pró-Trump
foram compartilhadas 30 milhões de vezes, enquanto as pró-Hillary 8 milhões. Naquele mesmo
ano deu-se o início da “era da pós verdade”, ou seja, o início de um período em que os fatos são
cada vez mais desvalorizados, enquanto que as paixões e as crenças ganham força. Para Francisco
Rozales, no texto Pós verdade, a era da mentira:
as sociedades, deslumbradas com o discurso e com a propaganda, deixam de lado a
verificação e a análise dos fatos, para, mansamente, aceitar como

válidas as mensagens de líderes, políticos e aventureiros. Na realidade, a pós-verdade


deturpa os princípios básicos da convivência humana, como o culto à verdade e à
honestidade, e favorece as atitudes que se valem do engano e da mentira ou das meias-
verdades para que prevaleçam seus interesses e vontades. A verdade é ou não é. Não
existe a meia--verdade nem mesmo a verdade subjetiva (ROZALES, 2017, p.50)

Segundo Rozales, com a necessidade de voltar ao culto dos princípios e normas como a
honestidade e a verdade, a sociedade universal – agora tão integrada – deverá rejeitar e condenar
o engano e a mentira – a pós-verdade –, que facilitam a proliferação dos regimes autoritários e
corruptos. E também as práticas privadas, cujo único objetivo é o dinheiro, sem reparar nos meios
utilizados para obtê-lo.
Em 2018, o Brasil mergulhou na proliferação de notícias falsas, que ganharam impulso
durante a eleição presidencial. Muitos brasileiros só passaram a ter conhecimento do termo “fake
news” durante as eleições. A rede social que protagonizou a disseminação de notícias falsas foi o
Whatsapp. Em especial, a campanha de Jair Bolsonaro destacou-se pela utilização de notícias
falsas nessa rede social, como a notícia sobre um ‘kit gay’ supostamente distribuído pelo MEC
sob o comando do partido da oposição.
Nunca o ódio, a mentira (considerados paixões pelo cidadão de Genebra) e o
desrespeito ao próximo estiveram tão em evidência na história brasileira. Os discursos estão sendo
estruturados para fazer da destruição o seu fim, todavia, como bem pontua Márcia Tiburi em seu
texto Consumismo da linguagem: sobre o rebaixamento dos discursos afirma: “O processo das
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brigas entre partidários, candidatos, ou desafetos em geral, é inútil do ponto de vista de avanços políticos
e sociais, mas não é inútil a quem deseja apenas o envenenamento e a destruição social” (TIBURI, p.1,
2015).

A linguagem está sendo diminuída à distribuição da violência pelos meios de


comunicação, sobretudo, as redes sociais. Márcia Tiburi usa o exemplo do caso Dilma Rousseff
durante o processo de impeachment em que fez pensar “na diferença entre crítica a um governo
criticável – como qualquer governo – e o rebaixamento da crítica pela pura violência verbal
manipulada por setores diversos.” Neste ponto, a escritora refere-se ao “o ato de xingar, o “joga
pedra na Geni”, é muito mais complexo, porque, tanto mostra a impotência para uma crítica
concreta, quanto uma estratégia de destruição.

Nesse processo de rebaixamento dos discursos, do debate e do diálogo presenciados em


escala nacional, surgem maledicências e mal-entendidos que se entrelaçam formando o processo
que a escritora chamou de “consumismo da linguagem”, que envolve meios de comunicação em
geral, sobretudo, as redes sociais e grande parte da imprensa, em que ideologias e indivíduos
podem se expressar livremente sem limites de responsabilidade , “estabelecem compreensões
gerais sobre fatos que passam a circular como verdades apenas porque são repetidos (ignorando
fatos históricos registrados em documento e nos livros, comprovados em seu referido período).
Para Tiburi, quem sabe manipular o círculo vicioso e tortuoso da linguagem, seja por e-mail ou
whats app, ganha em termos de poder. Está havendo uma eliminação do elemento político da
linguagem pelo incremento do seu potencial tirânico mascarado de expressão particular, de direito
à livre expressão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Rousseau investigou as primeiras razões que impulsionaram os progressos iniciais do


espírito humano. Investigou as faculdades que levaram o homem a progredir e a viver em
sociedade, tendo concluído que a linguagem teve papel determinante para que o homem se
inserisse e vivesse em sociedade. Segundo Rousseau, a Linguagem surge das paixões que fizeram
com que o homem se comunicasse e se inserisse em sociedade. Por meio dela, o homem tem
reconhecimento da sua própria existência através de outrem, do próximo, demarcando uma
transição do “homem natural” para um homem em um processo inicial de integração social.

Uma vez ciente da importância do papel da linguagem para a construção da vida em


sociedade, levantou-se uma análise sobre o desenrolar de seu surgimento segundo o parecer do
Página 1168 de 2230

genebrino. Após isso, analisou-se a atual situação do caminho que a vida em sociedade tem
ofertado à linguagem através do fenômeno das “fake news”.

Percebe-se que, na atualidade, com a era da “Pós-verdade” ou manipulação da verdade,


a linguagem está sendo “destruída” pelas próprias paixões. O sentimento de ódio, sobretudo, tem
feito com que a verdade seja manipulada de acordo com as vontades do emissor, que manipula os
fatos distanciando a mensagem do que realmente ocorre ou ocorreu, e essa modificação da
verdade, através da “linguagem do ódio e do desespero” tem provocado impactos negativos na
vida em sociedade. Decisões importantes ao redor do mundo, como as eleições dos Estados
Unidos, em 2016, e as eleições do Brasil, em 2018, que foram baseadas na disseminação de “fake
news”, e isso pode trazer efeitos irreversíveis em ambos países. A manipulação da verdade através
do mal uso da linguagem pode ser capaz de levá-la à destruição. Assim sendo, seguindo a linha
de pensamento de Márcia Tiburi, somos levados ao irresistível questionamento que, talvez,
somente à História caberá a resposta: se a linguagem nos tornou seres sociais, sua destruição nos
tornará o quê?

REFERÊNCIAS:

DERIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro.


São Paulo: Perspectiva, 1973.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
(Coleção Os Pensadores).

____________, Discurso sobre a Origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.


Brasília. Editora Universidade de Brasília, São Paulo, Ática, 1989.

STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2011.
Entrevistas/Artigos online

DARTON, Robert – entrevista Folha de S. Paulo; “Fake news viraram um grande negócio”.
2017. Disponível em: htps://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859726-noticias-
falsas-existem-desde-o-seculo-6-afirma-historiador-robert-darnton.shtml. Acesso em:
01/02/2020.

MERELES, Carla; MORAES, Isabela. Notícias falsas e pós-verdade: o mundo das fake news
e da (des)informação (2017). Disponível em: https://www.politize.com.br/noticias-falsas-pos-
verdade/. Acesso em: 01/02/2020.
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ROZALES, Francisco. Pós verdade, a era da mentira. Revista Uno. número 27.
2017.Disponívelem:https://www.revista-uno.com.br/wp-
ontent/uploads/2017/03/UNO_27_BR_baja.pdf.

TIBURI, Márcia. Consumismo da Linguagem. Revista Cult. 2015. Disponível em:

https://revistacult.uol.com.br/home/consumismo-da-linguagem-sobre-o-rebaixamento-dos-
discursos/ Acesso em: 01/02/2020.
Página 1170 de 2230

GEOGRAFIA HUMANISTA CULTURAL: EPISTEMOLOGIA DO MUNDO VIVIDO

CULTURAL HUMANIST GEOGRAPHY: EPISTEMOLOGY OF THE LIVING


WORLD

Danielle de Assis Araujo Alves


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade – UFMA

Danielle Gomes Mendes


Mestre pelo Programa de Graduação em Letras – UFMA
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade – UFMA

Gabriel Vidinha Corrêa


Mestrando no Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade - UFMA

Maria do Socorro Nascimento da Costa


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade - UFMA

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: As reflexões sobre o espaço geográfico permearam as sociedades de diferentes épocas


e culturas, pois o homem sempre carregou consigo a necessidade de conhecer e explorar o espaço
em que vive e retira sua subsistência. Foi durante o Renascimento, a partir dos incipientes estudos
sobre a descrição das formas presentes na superfície da Terra que surgem as primeiras ideias do
que mais tarde seria denominado como Geografia tradicional. Concomitante a essa Geografia
Tradicional desenvolvia-se uma ramificação dos estudos geográficos, qual seja, a Geografia
Cultural, de base fenomenológica, que procura valorizar as experiências do homem e dos grupos
sociais com o mundo vivido e sua relação com o espaço. Esse trabalho busca apresentar os
principais conceitos epistemológicos que servem como base para a Geografia Humanista Cultural,
enfatizando as ideias dos autores considerados como pilares dessa vertente geográfica. Para tanto
será utilizada a pesquisa bibliográfica dos temas e autores referentes ao assunto abordado. Diante
disso, compreendemos que entender o espaço, a paisagem, o lugar a partir das percepções, ou seja,
de modo a expressar sentimentos e valores, ainda é um desafio. Entretanto, acreditamos que
através dos debates e discussões sobre o tema serão desenvolvidas novas qualidades e ampliados
os horizontes dessa forma de conhecimento que se baseia na sensibilidade do sujeito para a sua
própria compreensão.
Palavras-chave: Geografia Humanista Cultural. Fenomenologia. Mundo Vivido. Espaço.

Abstract: Reflections on geographical space have permeated societies of different eras and
cultures, since man has always carried with him the need to know and explore the space in which
he lives and withdraws his subsistence. It was during the Renaissance, from the incipient studies
on the description of the shapes present on the surface of the earth that the first ideas of what
would later be called traditional geography arise. Concomitant with this Traditional Geography, a
branch of geographic studies was developed, namely, Cultural Geography, based on
phenomenology, which seeks to value the experiences of man and social groups with the lived
world and its relationship with space. This paper seeks to present the main epistemological
concepts that serve as the basis for the Humanist Cultural Geography, emphasizing the ideas of
the authors considered as pillars of this geographical aspect. For this purpose it will be used the
bibliographical research of the themes and authors related to the subject. Given this, we understand
that understanding the space, the landscape, the place from the perceptions, that is, in order to
express feelings and values, is still a challenge. However, we believe that through the debates and
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discussions on the subject new qualities will be developed and the horizons of this form of
knowledge that is based on the subject's sensitivity to his own understanding will be broadened.
Keywords: Cultural Humanist Geography. Phenomenology. Lived World. Space.

1 INTRODUÇÃO
Na verdade, só estranhei até agora o silêncio da casa – uma velha
casa de família, que lembra muito a meia-morada que deixei em
São Luís, cenário sempre lembrado de minha infância e juventude,
como a mesma sala de visitas, a mesma alcova, a mesma sala de
jantar, dois quartos de correr, banheiro, cozinha ampla, e ainda
uma nesga de quintal cimentado, com um tanque de lavar, um
limoeiro e um banco de pedra.
(Josué Montello – Um rosto de menina)

Na Antiguidade, principalmente, nas grandes civilizações greco-romanas, o pensamento


geográfico estava ligado, sobretudo aos relatos de viagens, a confecção de mapas, as
representações cartográficas e as descrições regionais. Foi no Renascimento, durante a revolução
científica, a partir dos incipientes estudos sobre a descrição das formas presentes na superfície da
Terra que surgem as primeiras ideias do que mais tarde seria denominado como Geografia
tradicional. Esses estudos preocupavam-se em descrever as paisagens e os acidentes geográficos,
bem como, valorizavam os relatos dos viajantes, no entanto não se importavam com a história e
cultura dos autóctones encontrados nas diferentes regiões.
A partir da metade do século XIX, com os estudos dos naturalistas Alexandre von
Humboldt e Carl Ritter, as bases do saber geográfico enquanto ciência começam a surgir. Esses
estudiosos tentavam reunir ideias iluministas (racionalistas) com o Romantismo. Nessa
perspectiva, a Geografia investigava a natureza e era uma ciência de síntese pautada no
positivismo, havia abandonado as ideias clássicas e adotado as ideias modernas. Dessa maneira, a
ciência geográfica interessava-se nos fenômenos de aspectos visíveis, palpáveis e materiais.
Concomitante a essa Geografia Tradicional desenvolvia-se uma ramificação dos estudos
geográficos, qual seja, a Geografia Cultural, que estava ligada a Geografia humana. Essa vertente
importava-se com as relações existentes entre o homem e o meio ambiente, no entanto,
inicialmente, estava mais interessada nos aspectos materiais da cultura, somente mais tarde em
meados do século XX, a Geografia Cultural passou a investigar a cultura como fator fundamental
da realidade humana. Essa vertente da ciência geográfica não recebeu imediato prestígio no
âmbito acadêmico como aconteceu com a vertente tradicional.
Interessava à Geografia Cultural, principalmente, as sociedades tradicionais e a relação
estabelecida entre natureza e sociedade. Assim, essa vertente valorizava a paisagem e as
transformações realizadas pelo homem para transformá-la em seu habitat.
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O professor e geógrafo, Eric Dardel, publicou em 1952 a obra O Homem e a Terra:


natureza da realidade geográfica. Esta é considerada a obra precursora de uma geografia
fenomenológica e existencialista. Influenciado, sobretudo pelos pensamentos do filósofo Gaston
Bachelard, a obra de Dardel traz à tona para reflexão a relação visceral existente entre o Homem
e a Terra.
A perspectiva adotada pelo geográfico, contribuiu sobremaneira para o surgimento da
Geografia Humanista, que se desenvolveu no mundo anglo-saxão nas décadas de 1960 a 1980.
Apesar da obra de Dardel apresentar uma perspectiva inovadora, não recebeu mérito imediato,
ficando abandonada nas prateleiras por longos anos. Possivelmente por apresentar uma abordagem
fenomenológica, o que não interessava em suma à comunidade positivista.
Os estudos de Dardel representam uma contribuição imprescindível para os postulados da
Geografia no que se refere a compreensão de que o espaço não se constitui somente por uma
estrutura geométrica, mas também por uma relação criativa, existencial que se materializa por
meio da experiência humana. Assim sendo, ele origina uma “geografia em ato”. Ao ser
redescoberta em 1970 serviu como pressuposto para a Geografia Humanista.
Diferente da Geografia Tradicional, a Geografia Humanista, de base fenomenológica,
procura valorizar as experiências do homem e dos grupos sociais com o mundo vivido e de que
forma esses se relacionam com os espaços que habitam e transitam. Samir Rocha (2007, p. 21),
ao comentar sobre a definição dessa vertente dos estudos geográficos, afirma que:

[...] a Geografia Humanista é definida por bases teóricas nas quais são ressaltadas e
valorizadas as experiências, os sentimentos, a intuição, a intersubjetividade e a
compreensão das pessoas sobre o meio ambiente que habitam, buscando compreender e
valorizar esses aspectos.

Nessa perspectiva, a investigação da Geografia Humanista busca compreender melhor a


cultura, os valores e os comportamentos humanos, valorizando as subjetividades dos indivíduos e
sua relação com o meio.
Diante disso, o presente trabalho busca, através do levantamento bibliográfico, apresentar
os principais conceitos epistemológicos que servem como base para a Geografia Humanista
Cultural, de base fenomenológica, enfatizando as ideias dos autores considerados como pilares
dessa vertente geográfica. Incialmente pelas ideias do filósofo Gaston Bachelard e sua “poética
do espaço”, por considerarmos o maior influenciador dos principais geógrafos humanistas
culturais.
Em seguida serão abordadas as ideias de Eric Dardel e seu conceito de geograficidade a
fim de refletir sobre a relação profunda e inerente entre o homem e terra, os estudos do geógrafo
sino-americano Yi-Fu Tuan, especialmente, suas principais constatações sobre espaço, lugar,
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topofilia e topofobia. Por fim, será tratado sobre o geógrafo canadense Edward Relph e seus
conceitos sobre lugar e lugares sem-lugaridade.

2 ESPAÇOS DA INTIMIDADE EM GASTON BACHERLAD

Na tentativa de apresentar os princípios epistemológico do mundo vivido na perspectiva


da Geografia Humanista Cultural, para este trabalho, traçamos um percurso bem linear sobre
estudos do espaço - paisagem - e/ou mundo vivido, e os frutos desses estudos, ademais,
apresentaremos como cada estudioso elaborou sua teoria e de que princípio ele partiu. Em Vista
disto, iniciamos com algumas considerações sobre a obra noturna do filósofo Gaston Bachelard e
quais as suas contribuições para a Geografia Humanista e, consequentemente, na confluência entre
outras áreas do saber.
É importante ressaltar que Gaston Bachelard não é um geografo, mas sim um filósofo, que
contribui significativamente para os estudos e aprofundamento das teorias sobre o espaço na
Geografia Humanista Cultural. Gaston Bachelard nasceu em Bansur-Aube em 1884, epistemólogo
francês e filósofo da ciência. 1913 obteve sua licença em Matemática e Ciências e se tornou um
professor de Física e Química na Faculdade de Bar-sur-Aube, antes disso era funcionário dos
serviços postais. Doutorou-se em Letras 1927, e por volta de 1930 tornou-se professor de Filosofia
na Universidade de Dijon. Foi professor na Universidade de Sorbonne, em Paris, entre os anos
1940 a 1954. Em 1961 recebeu o Prêmio Nacional das Letras, falecendo no ano seguinte, 1962.
Dito isto, o pensamento bachelardiano é dividido em duas fases: diurna e noturna. A diurna
corresponde a fase clara e objetiva, no qual o filósofo apresenta um trabalho epistemológico,
voltado para a ciência, como por exemplo, a obra A formação do espírito científico. Já a obra
noturna do filosofo, é fase em que seu trabalho é mais voltado para a poética e a imaginação-
sonho, psicanálise, como exemplo dessa fase podemos encontrar obras como: A poética do espaço,
A água e os sonhos, A psicanálise do fogo, todas também de cunho filosófico.
A obra mais influenciou os teóricos da GHC é A poética do espaço (2008), correspondente
aos seus estudos tidos como 'subjetivo' e/ou de 'conhecimento obscuro'. Diante disto, nessa obra
específica percebemos como Bachelard se propõe a apresentar as diversas e variadas
possibilidades de percepção do espaço versus a intimidade, tendo um trabalho voltado
especificamente para a psicanálise - “eu interno” o “interior do eu”. Através de um estudo
fenomenológico das imagens, o filósofo apresenta nessa obra as variadas relações que o homem
estabelece com o espaço, privilegiando um espaço específico para desenvolver toda sua tese, a
casa. Nessa análise, o filosofo nos apresenta os espaços íntimos da casa, e as relações estabelecidas
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e/ou desenvolvida entre o ser humano e esses espaços íntimos ligados a ela; nos apresentando
como isso contribui para o desenvolvimento de nossa subjetividade.
Para atingir isso, inicialmente, o filósofo apresenta uma concepção de imagem e
imaginação-imagem poética. Desse modo, para explicar essa imagem poética filosoficamente, ele
garante que isso só seria possível através da fenomenologia da imaginação, que resumidamente
seria: “[...] um estudo do fenômeno da imagem poética quando a imagem emerge na consciência
como produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade”
(BACHELARD, 2008, p. 2).
Assim, amparado seus estudos sobre o espaço, especificamente a primeira casa - a da
infância- Bachelard nos mostra a influência da nossa casa na constituição da nossa subjetividade,
analisando diferentes tipos de casas e recantos dessa casa (ninho, concha, porão, sótão, armários,
gavetas, entre outros) mostrando seus diferentes significados, que a priori seriam somente espaços
geométricos, frios e calculados. Portanto, a casa:

[...] é uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os


sonhos do homem [...] na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus
conselhos de continuidades. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o
homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o
primeiro mundo do ser humano (Bachelard, 2008, p.26).

Para sustentar suas teorias, o filósofo cunha alguns termos e se apropria de alguns métodos
científicos. No que diz respeito ao primeiro, ele cunha o termo topofilia266 e topoanálise267; no
tocante ao segundo, ele se apropria da fenomenologia, especificamente, do método
fenomenológico. Logo, a casa é a forma que Bachelard encontra de personificar suas teorias em
relação aos espaços íntimos, como podemos perceber no excerto supracitado - utilizando o método
fenomenológico no intuito de atestar essas suas ideias. Assim, em A poética do espaço, os
neologismos topofilia e topoanálise ganham sentido a partir de produções literárias escolhidas por
Bachelard, no qual ele afirma que elas só podem ser analisadas por meio do método
fenomenológico, para que, enfim, as relações estabelecidas entre espaço e o homem sejam
exemplificadas.
Partindo da afirmação de Bachelard de que memória e imaginação não se dissociam, ambas
se aprofundam mutuamente, é que a GHC se apropria das concepções de espaço, intimidade,
imaginação e memória, estabelecendo finalmente uma relação plausível entre a ciência e a arte.
Para tanto, os trabalhos sobre espaços de geógrafos como Dardel, Tuan, Relph, por exemplo, se
aproximam bastante das ideias de espaço de Bachelard, tais como topofilia e espaço vivido. Como

266
Seriam todos os laços afetivos construídos pelos seres humanos com o meio ambiente, também chamado de “espaço
feliz”, “espaço de posse” ou “espaço amado”.
267
Trata-se de um estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida intima, na intenção de entender nosso ser
íntimo. (BACHELARD, 2008)
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consequência disto, finalmente um espaço objetivo é abandonado por esses geógrafos, sendo agora
substituído pela ideia de um espaço subjetivo, carregado de afeto: a expressão do lugar.

3 A GEOGRAFICIDADE EM ERIC DARDEL

Os trabalhos do geógrafo francês Eric Dardel somaram-se com grande valia aos estudos
da GHC, pois graças a ele reflexões filosóficas emergem a priori para o saber geográfico. Suas
reflexões serviram para os caminhos epistemológicos de Tuan e Relph, devido à proposta
existencial que liga o homem à Terra. Décadas se passaram desde a publicação de seu clássico O
Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica, no entanto continua atual para as discussões
que envolvem a compreensão da realidade geográfica e as questões humanas, via aporte
fenomenológico.
Como comenta Holzer sobre a obra de Dardel (2015, p. 141): “Seu objetivo é o de fazer
uma análise fenomenológica da relação visceral que o homem mantém com a Terra”, para
entender sua existência e essência no que diz respeito ao elo que liga o homem ao mundo.
A geografia é, para Dardel, não um conhecimento fechado e disciplinar, antes um saber
que engloba a realidade vivida e as experiências que relacionam o homem com o meio.
Dardelutiliza-se de outras áreas para entender a realidade geográfica, como em alguns renomados
autores da literatura como Baudelaire, Rimbaud, Saint-Exupéry e Victor Hugo. Vale-se também
da filosofia existencial de Heidegger e Kierkegaard e da fenomenologia de Gaston Bachelard.
Sobre as questões essenciais que envolvem a tese de Dardel, Jean-Marc Besse comenta
sobre a categoria “paisagem”: “Dardel pretende indicar que a paisagem constitui uma totalidade
própria que responde à inserção do homem no mundo” (BESSE, 2015, p. 139), logo suscitamos
que, para o homem se estabelecer, faz-se necessário situá-lo em determinado lugar.
A principal contribuição de Dardel para a GHC foi, principalmente, o estudo da
geograficidade e os fenômenos por ela percebidos. A geograficidade é a cumplicidade existencial
que liga o Homem à Terra, sentimento original que condiciona as atitudes, valores e demais ações
humanas:

Conhecer o desconhecido, atingir o inacessível, a inquietude geográfica precede e


sustenta a ciência objetiva. Amor ao solo natal ou busca por novos ambientes, uma
relação concreta liga o homem à Terra, uma geograficidade (geographicité)do homem
como modo de existência e de seu destino. (DARDEL, 2015, p. 1, grifos do autor).

Nessa passagem, compreendemos o objetivo central do autor a partir de sua exposição


sobre a condição do espaço como determinante do destino, o que materializa em essência o dever
da geografia, pois, na subjetividade do homem com o espaço, mora esse saber. Logo, esse
conhecimento revela ao homem sua condição enquanto tal.
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Nesse sentido, medo, admiração, simpatia, amor, entre outros sentimentos colocam em
totalidade nossa subjetividade essencial para viver, pois nos fixamos em um lugar por atingir a
geograficidade sentida a partir da vivência que, por conseguinte, se configura como essência de
permanecer e pertencer ao lugar, como assegura Dardel, “[...] a experiência geográfica, tão
profunda e tão simples, convida o homem a dar à realidade um tipo de animação e de fisionomia
em que ele revê sua experiência, humana, interior e social” (2015, p. 6). Ainda para o autor, “[...]
a geografia pode assim exprimir, inscrita no solo e na paisagem, a própria concepção do homem,
sua maneira de se encontrar, de se ordenar como individual ou coletivo”. (DARDEL, 2015, p. 31).
Entendemos, assim, que o homem é fruto da ligação entre o Homem e a Terra, relação
fundamental para o equilíbrio existencial desde a infância, pois esse elo consolida a identidade, a
cultura e todos os sentimentos que envolvem os indivíduos. Conhecer e agir sobre a Terra é um
pré-requisito para o ser-no-mundo.
Diante dessas predicações, Dardel (2015, p. 33) nos assegura que “a ciência geográfica
pressupõe que o mundo seja conhecido geograficamente, que o homem se sinta ligado à Terra
como ser chamado a se realizar em sua condição terrestre”. De todo modo, para o autor, a imagem
da Terra é a condição para o homem se encontrar e sentir-se realizado.
Nessas circunstâncias, Dardel comenta sobre o lugar da paisagem em potencialidade nas
relações humanas:

A paisagem se unifica em torno de uma totalidade afetiva dominante, perfeitamente


válida ainda que refratária a toda redução puramente científica. Ela coloca em questão a
totalidade do ser humano, suas ligações existenciais com a Terra, ou, se preferirmos, sua
geograficidade original: a Terra como lugar, base e meio de sua realização. Presença
atraente ou estranha, e, no entanto, lúcida. Limpidez de uma relação que afeta a carne e
o sangue. (DARDEL, 2015, p. 31, grifo do autor)

A geograficidade reverbera ainda nas condições psicológicas do homem. O mundo do


inconsciente e, por extensão, do consciente se unem para expressar também o fenômeno do lugar,
por meio das sensações, lembranças, sonhos e fantasias. Esses elementos também estão presentes
em Bachelard, quando da expressão poética no diálogo fronteiriço entre a imaginação ativa e a
realidade fantasiosa, que emergem na forma do devaneio, para explicar, principalmente, as
relações espaciais.
Todas as experiências humanas emergem por meio das relações com a Terra, com os
costumes, os valores, os sonhos, a fantasia, a cultura, a língua e a história, a fim de encontrar a
geograficidade original.
O elo com a Terra é a mais importante ação para o homem, pois a ela é confiada a existência
humana e por meio dela ainda podemos dinamizar as imagens do passado, resgatar e revivê-lo. A
Terra cria sentimentos de pertencimento, tornando-nos gente do lugar. Por meio da geografia, “[...]
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o homem realiza sua existência, enquanto a Terra é uma possibilidade essencial de seu destino”
(DARDEL, 2015, p. 89).

4 PERCEPÇÃO, EXPERIÊNCIA E VALOR EM YI-FU TUAN

Yi-Fu Tuan é um geógrafo chinês que contribuiu de forma significativa nos estudos da
geografia humanistas, conforme Nascimento e Costa (2016), amante das leituras de Maurice
Merleau-Ponty, é reconhecido como um dos autores fundadores da tendência humanista utilizando
a abordagem fenomenológica nos estudos da geografia.
As obras de Tuan são constituídas por conceitos como espaço, lugar, topofilia, topofobia,
cuja base de seus estudos são a experiência e a percepção. Cabe ressaltar, segundo Nascimento e
Costa (2016), que as obras de Tuan são fundamentalmente baseadas pela fenomenologia e pelo
existencialismo e tem como principal escolha o “lugar”, conceito espacial que mais atendia aos
seus propósitos, sendo apropriado para os estudos propostos por este autor.
Na década de 70 do século XX, Tuan juntamente com a autora Anne Butttimer foram
fundamentais contribuintes na busca por uma identidade própria para a geografia humanista,
ambos foram pioneiros no uso dos conceitos de lugar e de mundo vivido auxiliando na construção
de novas perspectivas metodológicas acerca da geografia (NASCIMENTO e COSTA, 2016).
Nos estudos de Tuan destaca-se a linha de estudo da geografia que traz a fenomenologia
como um de seus pressupostos: “[...] a Geografia Humanista procura um entendimento do mundo
humano através do estudo das relações das pessoas com a natureza, de seu comportamento
geográfico bem como dos seus sentimentos e ideias a respeito do espaço e do lugar (1982, p.
143)”.
O autor considera em sua obra Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência (1983), o
espaço e o lugar como termos familiares entre si que indicam experiência comum. O lugar
significa segurança, afeto e vínculo, enquanto o espaço representa a liberdade, as relações e
movimento. O espaço transforma-se em lugar quando cria-se vínculo e sentimento de afetividade
(TUAN, 1983).
Tuan também afirma que a partir do momento que se está no lugar consegue-se perceber a
amplitude do espaço, pois, o lugar é segurança e espaço é como estar livre pelo mundo, não limites
e nem vínculo afetivos. Desse modo, o autor pontua que o lugar seriam as pausas do espaço,
dotados de experiência, percepção e o valor que é atribuído a esse lugar (TUAN, 1983).
Na concepção de Tuan (1979, p. 387), entende-se lugar com:
[...] o lugar é uma unidade entre outras unidades ligadas pela rede de circulação; [...] o lugar, no entanto,
tem mais substância do que nos sugere a palavra localização: ele é uma entidade única, um conjunto
‘especial’, que tem história e significado. O lugar encarna as experiências e aspirações das pessoas. O
lugar não é só um fato a ser explicado na ampla estrutura do espaço, ele é a realidade a ser esclarecida
e compreendida sob a perspectiva das pessoas que lhe dão significado.
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Portanto, para Tuan espaço e lugar determinam a natureza da ciência geográfica,


entretanto, o lugar tem uma maior importância para a tendência humanista, constituindo um
conjunto complexo e simbólico, que pode ser analisado a partir da experiência pessoal de cada
indivíduo. Ou seja, para compreender o lugar, necessita-se compreender os sentimentos do
indivíduo que o vive, podendo ser de afeto ou repulsa, resultado de experiencias afetivas ou
traumáticas.
Desse modo, Tuan baseado nos estudos de Bachelard, utiliza-se do temo Topofilia que
consiste no sentimento de apego, de boas lembranças, o sentimento bom que o lugar traz a quem
o vivencia. Enquanto a Topofobia, significa o contrário, a aversão, o sentimento ruim, e a falta de
afetividade, por exemplo, um lugar resultante de um trauma.

5 A CONDIÇÃO DE LUGAR PARA EDWARD RELPH

Edward Relph é um geógrafo humanista, contemporâneo de Yi-Fu Tuan e considerado


uma figura importante para os estudos da GHC, sobretudo, devido às conferências
fenomenológicas que incorpora à ciência geográfica. Seus trabalhos tomam como centro a
autenticidade do lugar e, por conseguinte, nos fenômenos que o rodeiam, trilham os caminhos do
espaço e da paisagem.
Influenciado pelos trabalhos de Heidegger, Relph se vale, em seu arcabouço teórico, de
reflexões filosóficas que afastam a geografia do caráter pragmático positivista, quando elucida as
condições fundamentais para a existência efetiva por meio do espaço que ocupamos e também os
sentidos e construções dos lugares. Ratificamos essas afirmações com as palavras de Marandola
Jr. quando tece comentários sobre a teoria de Relph:

Se o lugar é a principal categoria ou essência que expressa as consequências e


possibilidades da Geografia Humanista para o conjunto do pensamento geográfico, isso
se deve muito à revisão que Edward Relph fez do termo, colocando no centro de uma
investigação geográfica, o que provavelmente não havia sido feito até então. Sua tese,
defendida na Universidade de Toronto (Canadá), em 1973, tinha como título The
phenomenonofplace, e é provavelmente a primeira dedicada a buscar fundamentos
fenomenológicos para a Geografia. Relph, fez isso pela ideia de lugar, entendendo como
fenômeno. (MARANDOLA JR., 2016, p. 7, grifos do autor)

No artigo “Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar”(2014), Relph


pontua sobre as contribuições dessa nova abordagem não só para a geografia, mas também para a
sociologia, psicologia, literatura, arquitetura e outras áreas do conhecimento, ganhando maior
notoriedade nos anos 90 do século XX, descortinando as muitas faces do lugar. O lugar é, pois,
para o autor seu maior fruto em relação às questões espaciais, carecendo de novos olhares
epistemológicos. Para ele, “Uma vez que o lugar é o fenômeno da experiência, era apropriado que
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ele fosse explicado por meio de uma rigorosa abordagem fenomenológica que havia sido
desenvolvida por Husserl e Heidegger” (RELPH, 2014, p. 20).
Cada lugar carrega em si vários atributos de valor, constituindo territórios de significado
para os indivíduos, comunidades e para a própria cultura, o que possibilita o homem desfrutar de
todas as qualidades que o lugar oferece, seja nas formas de pertencimento, da emoção, da
memória, do fator social, entre outras.
Nessa perspectiva o estudo do lugar se desdobra em várias formas, sejam elas: localização,
sentido, enraizamento, lar, reunião, fisionomia, simbolismo, lugaridade. Pela interpretação do
lugar, podemos entender as maneiras como o homem se relaciona com o mundo, pois o seu sentido
está ligado à capacidade que tem de aprender e apreciar suas qualidades. Algumas pessoas, por
exemplo, não se sentem à vontade ou não se sentem atraídas por determinados lugares, mas isso
pode ser alterado à medida que nos pormenores encontrem virtudes que lhe chamem a atenção.
Esse pensamento se aproxima muito da concepção de topofilia proposta por Tuan.
Pensar o lugar como enraizamento se configura para Relph a partir da experiência
cotidiana: “Lugar é muitas vezes entendido como o onde se tem nossas raízes, o que sugere uma
profunda associação e pertencimento, mas também imobilidade” (RELPH, 2014, p. 24). Frente a
isso, compreendemos que a intersubjetividade é bem presente no fenômeno do enraizamento. O
lugar passa ser a primazia da existencialidade; talvez por isso, sobretudo, idosos, crianças e alguns
exilados têm dificuldades de deixar seu lugar, seja a cidade, o bairro ou a rua, pois o sentimento
de pertença é um fator da existência.
Pensando ainda na experiência do habitar, trataremos das qualidades que os lugares
possuem a partir da sua lugaridade, que são as inúmeras particularidades autênticas que geram
sentimentos de ligação, apego e admiração que condicionam o bem-estar sobre o lugar. É
importante ressaltar que “Sempre que a capacidade do lugar de promover a reunião é fraca ou
inexistente temos não-lugares ou lugares-sem-lugaridade. Essas ideias são importantes porque
permitem entender o lugar pela ausência, tanto quanto pela presença” (RELPH, 2014, p. 25). O
lugar-sem-lugaridade se caracteriza, assim, como um fenômeno de desinteresse pelo lugar,
motivado por diferentes situações que coloquem em desequilíbrio a relação ser/habitar. Já os não-
lugares são espaços planejados que, em essência, não foram criados para gerar sentimentos de
ligação existencial com as pessoas, como, por exemplo, supermercados e aeroportos.
Por tudo isso, intentamos dizer que o lugar para Relph tem características próprias, sendo
potencial para despertar sentimentos na condição humana, pelo fato de o seu sentido se
desenvolver a partir da experiência; experiências que precisam ser contínuas para renovação e
reforço do lugar. Em seu conceito mais significativo, o lugar se estende:
Página 1180 de 2230

[...] em suas ligações inextricáveis com ser, com a nossa própria existência. Lugar é um
microcosmo. É onde cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se
relaciona conosco. O que acontece aqui, neste lugar, é parte de um processo em que o
mundo inteiro está de alguma forma implicado. Isso é muito existencial e ontológico.
(RELPH, 2014, p. 31).

Compreendemos que os trabalhos de Edward Relph dão prioridade aos estudos dos
sentidos e fenômenos que permeiam o lugar, emergindo categorias importantes, como a
lugaridade, o lugar-sem-lugaridade e o não-lugar. Assim como Yi-Fu Tuan, Relph incorpora a
temática da experiência para explicar o lugar e as relações existenciais estabelecidas a partir dele.
Deste modo, o lugar pode se configurar como reunião de pessoas, identidade individual e cultural.
Pode ser fruto íntimo na forma do Lar, podendo estar em todos os lugares e não estar em lugar
nenhum, no entanto, no sentido mais ontológico, pode carregar todas as formas existenciais da
humanidade, pois, para existir, é necessário ocupar um lugar.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do tempo a Geografia se constituiu como ciência e se ramificou em diversas


vertentes como a Geografia Crítica, Geografia Pragmática, entre outras incluindo a Geografia
Humanista Cultural que se mostrou como um campo do conhecimento que busca constantemente
a compreensão do mundo e suas relações com a sociedade, analisando a apropriação e uso do meio
ambiente.
Essas vertentes distintas da Geografia auxiliam na construção de diferentes modos de
perceber, pensar e refletir os fenômenos sócio-espaciais, gerando linhas metodológicas as quais
são fundamentais no processo de construção do conhecimento da ciência geográfica. A Geografia
Humanista surge como uma possibilidade de superação do paradigma até então vigente na
Geografia, cujo estudo da natureza e da sociedade eram considerados conhecimentos distintos e
que não se relacionavam.
Desse modo, a GHC busca relacionar ambos os conhecimentos, compreendendo as
relações entre o homem e o espaço no qual ele vive, estabelecendo seus laços afetivos e sociais,
construindo sua história, sua cultura e seu modo de vida. O espaço, o lugar, a paisagem, o mundo
vivido, entre outros, são palco das ações humanas e influenciam de forma significativa na
construção da essência do indivíduo ou do grupo.
Neste trabalho, analisamos as contribuições dos autores como Bachelard, Dardel, Tuan e
Relph, com a elaboração de conceitos, e consequentemente, obras que foram significativas para a
construção e a permanência dessa vertente da geografia. Bachelard deu os primeiros passos nos
estudos do espaço atrelado as obras literárias, a este atribuiu a essência e a pureza da alma humana.
Através dos estudos de Bachelard, não seguindo uma ordem cronológica de contribuições, mas de
Página 1181 de 2230

influência dos autores, Tuan elabora seu conceito de topofilia e dá início a estudos que expressam
a experiência, a percepção e o valor do espaço para o sujeito.
Dardel, em sua obra O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica, considerada a
precursora da GHC e também influenciada pelos estudos de Bachelard, inaugura a totalidade da
existência humana através da vivencia do espaço a que ele se refere como Terra, ou seja, traz a
relação intima entre homem e espaço, destacando os sentimentos do homem e a forma como o
espaço o influencia, trazendo em uma linguagem poética e sensível. Relph, através dos estudos de
Dardel e sendo um dos responsáveis pela divulgação da obra de Dardel, constrói também diversos
conceitos, dentre estes destaca-se o lugar, a lugaridade e o lugar-sem-lugaridade, buscando
vivenciar e sentir as qualidades do lugar.
Portanto, percebe-se as contribuições significativas desses autores para a GHC, que
atualmente compreende o aumento das pesquisas nessa vertente, mas que considerando os demais
ramos da Geografia as produções ainda são menores e dada também menos prestígio. Entender o
espaço, a paisagem, o lugar a partir das percepções, ou seja, de modo a expressar sentimentos e
valores, ainda é um desafio que se apresenta. Entretanto, acredita-se que através dos debates e
discussões sobre o tema serão desenvolvidas novas qualidades e também ampliados os horizontes
dessa forma de conhecimento que se baseia na sensibilidade do sujeito para a sua própria
compreensão.

REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo Martins
Fontes, 2008.

BESSE, Jean-Marc. Geografia e Existência: a partir da obra de Eric Dardel. In: DARDEL, Eric.
O Homem e a Terra: a natureza da realidade geográfica. Trad. WertherHolzer. São Paulo:
Perspectiva, 2015.

DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: a natureza da realidade geográfica. Trad. WertherHolzer.


São Paulo: Perspectiva, 2015.

MARANDOLA JR., Eduardo. Identidade e Autenticidade dos Lugares: o pensamento de


Heidegger em PlaceandPlacelessness, de Edward Relph. Geografia, Rio Claro, v. 41, n. 1, p. 5-
15, jan./abr. 2016.

MONTELLO, Josué. Um rosto de menina. São Paulo: Difel, 1983.

NASCIMENTO, Taiane. COSTA, Benhur. Fenomenologia e geografia: teorias e reflexões.


Geografia, Ensino & Pesquisa, Vol. 20, n.3, 2016.

RELPH, Edward. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência de lugar. In:


MARANDOLA JR; HOLZER, Werther; OLIVEIRA, Lívia de (Org). Qual o espaço do lugar?
São Paulo: Perspectiva, 2014.
Página 1182 de 2230

ROCHA, Alexandre Samir. Geografia humanista: história, conceitos e o uso da paisagem


percebida como perspectiva de estudo. In: Ra’ega – O Espaço Geográfico em Análise.Curitiba,
n. 13, 2007.

TUAN, Yi-Fu. Space and place: humanistic perspective. In: GALE, S. OLSSON, G. (orgs.).
Philosophy in Geography. Dordrecht: Reidel, 1979.

______. Geografia Humanística. In: CHRISTOFOLETTI, Antonio (Org.). Perspectivas da


Geografia. São Paulo: Difel, 1982.

______. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo:
Difel, 1983.
Página 1183 de 2230

HANS JONAS E O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE: O PROGRESSO TÉCNICO


COMO RAZÃO DA NATUREZA MODIFICADA DO AGIR HUMANO

HANS JONAS AND THE PRINCIPLE RESPONSIBILITY: TECHNICAL PROGRESS


AS A REASON FOR THE MODIFIED NATURE OF HUMAN ACTION

João Ferreira da Páscoa Filho


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Ensino da Educação Básica
(PPGEEB), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Viviane Moura da Rocha
Professora Doutora, do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Ensino da Educação Básica
(PPGEEB), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Eixo Temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Hans Jonas e o Princípio Responsabilidade: o progresso técnico como razão da natureza
modificada do agir humano. Aqui, procuramos analisar a necessidade da presença da
responsabilidade de forma ampla na atual sociedade. O próximo passo é mostrar os processos que
levaram a tal necessidade, como: o anuncio de um novo paradigma; O contexto moderno como
pressuposto inicial para a sobreposição do homo faber: Bacon e Descartes; Do homo sapiens ao
homo faber: de senhor a servo; De criador à criatura: a técnica como efeito do homem sobre si
mesmo; Vácuo ético: a técnica como reflexo de impotência ética. Por último, teceremos as
considerações finais.
Palavras-chave: Natureza. Técnica. Gênero Extra-humano. Homo Faber. Homo Sapiens. Vácuo
ético.

Abstract: Hans Jonas and the Principle Responsibility: technical progress as a reason for the
modified nature of human action. Here, we seek to analyze the need for the presence of
responsibility broadly in today's society. The next step is to show the processes that led to such a
need, such as: the announcement of a new paradigm; The modern context as an initial assumption
for the overlap of homo faber: Bacon and Descartes; From homo sapiens to homo faber: from lord
to servant; From creator to creature: technique as the effect of man upon himself; Ethical vacuum:
technique as a reflection of ethical impotence. Finally, we have made the final considerations.
Keywords: Nature. Technique. Extra-human genus. Homo Faber. Homo Sapiens. Ethical
vacuum.

Introdução

A civilização moderna encontra-se imersa em vários perigos que a cada passo dado pela
supremacia tecnológica tornam-se mais ameaçadores e manifestos. O processo completo de
extinção do gênero humano e não-humano, torna-se cada vez mais claro e possível.
O progresso científico, tornou-se uma espécie de “prometeu irresistivelmente descontrolado”,
cuja enorme capacidade de ação continua a aumentar, com regras menos capazes de controlá-la.
A técnica tomou nas mãos as “rédeas” do destino da humanidade, transformando-a em uma nova
Página 1184 de 2230

civilização. A tecnologia assumiu o comando, ou melhor, a “tecnologia moderna se converteu em


ameaça”, deixando assim, a visão do homem ofuscada para visualizar os fins, isto é, o possível
trajeto que a humanidade deveria percorrer para a benesse ou emancipação da civilização
planetária.
A percepção de tal diagnóstico nos leva a visualizar que a relação, outrora, harmoniosa entre
homem e natureza foi rompida por uma visão mecanicista e utilitarista da realidade, onde tudo
que importa agora é somente a intervenção desmedida e irresponsável do homem sobre seu habitat
e sobre si mesmo, a partir do comando técnico.
Agora, com a visualização de tal cenário, o homem não pode mais abster-se de lançar sobre
sua relação para com a natureza um novo olhar que leve a reflexões de ordem ética e moral. Tal
relação de harmonia se desfez diante de uma cosmovisão elevada pela concepção de uma nova
humanidade – a moderna. Modernidade esta de matrizes antropocêntricas, surgida a partir do
pensamento de Francis Bacon e René Descartes, tendo como pano de fundo uma hermenêutica
judaico-cristã.
Hans Jonas enfatiza em sua análise a falência dos fundamentos das éticas tradicionais, que
outrora, preocupavam-se somente com o aqui-e-agora e, não conseguem dar mais conta dos efeitos
causados pela supremacia técnica no cenário atual. É necessário fundar uma nova ética, que
vislumbre o tempo presente e contemple aqueles que ainda não se fazem presentes - as gerações
futuras.
É inevitável não enfatizar o conceito de Responsabilidade. Conceito este que na história do
pensamento moral não representa algo novo como fenômeno, entretanto, é importante enfatizar
que o novum que se faz presente aqui, mostra a responsabilidade junto a um objeto nunca antes
tratado por ela, fazendo assim com que a reflexão ética trilhe por outros caminhos. Agora, a teoria
ética passa a dá importância necessária a relação entre homem e natureza, rompendo assim, com
a pouca atenção de outrora.

Necessidade da ampla responsabilidade hoje: de um cenário pré-tecnológico a um cenário


tecnológico.

A sociedade mundial está passando por um momento chamado por alguns estudiosos de crise
civilizacional, onde o que está em jogo merece ser discutido de forma mais profunda que qualquer
outra ameaça que já houvera sido colocada em pauta nas discussões a nível planetário, como as
crises econômicas, políticas, sociais, religiosas, e até mesmo as doenças que se transformaram em
epidemias e pandemias, pois todas as crises citadas só ofereciam perigo direto ao gênero humano.
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No entanto, a ameaça que se presentifica merece ser discutida com certa urgência e cuidado. O
ecossistema ou bioreino está clamando por ajuda e anunciando seu real “atestado de óbito”, isto
em razão de tamanha gravidade está sendo causada por um ser humano antropocêntrico, voraz e
extremamente racional. Sobre isso nos acrescenta os autores que,
Surda para ouvir a voz de Gaia, por causa de uma tradição racionalista e
antropocêntrica, a humanidade precisa repensar a civilização que transformou os
6,2 bilhões de habitantes da terra em indivíduos vorazes e cobiçosos de viver
segundo um estilo tido como “de Primeiro Mundo”, baseado no uso
indiscriminado da tecnologia e no consumo desenfreado. (OLIVEIRA;
BORGES, 2008, p. 28)

Agora, o que está em risco não é somente o artefato da cidade - a polis - traduzida como ordem
menor, mas o todo, a ordem maior.
Hoje com o aumento do poder da técnica, a ação humana não se restringe somente à cidade,
mas ao equilíbrio maior. O paradigma da sobrevivência está sendo ameaçado de tal forma que nos
faz pensar não mais em uma “época de mudanças, mas em uma mudança de época”, isto em razão
de uma nova discussão ser colocada em cenário mundial. As discussões e preocupações estão
voltadas agora para um provável ecocídio, isto é, a destruição total do ecossistema que poderá
dizimar todos os seres humanos e também aquela categoria de seres que Hans Jonas classifica
como extra-humana268. Esta realidade que é causada pelo próprio homem comandado pela
técnica, seria uma forma de suicídio velado. É cada vez mais clara e conclusiva a total invasão e
o total domínio científico e técnico perante os olhos humanos e que se torna parte integrante, como
nos acrescenta o autor:
Numa progressão sempre crescente, o homem moderno se vê cercado cada vez
mais dos produtos e artefatos da ciência. A ponto de o físico alemão Werner
Heisenberg escrever que num futuro não muito distante os aparelhos e
instrumentos técnicos serão partes integrantes do homem, como a teia é parte da
aranha e a concha do caramujo. (LEÃO, 2002, p. 11)

Os gregos concebiam a natureza como uma ordem inviolável a que o homem devia se
submeter, e mesmo ele criando a cidade num primeiro momento como tentativa de rompimento
com esta submissão, não foi possível tal empreendimento pelo fato da técnica não conseguir
ultrapassar o reino da necessidade. No entanto, atualmente tais relações não se procedem mais
desta forma. Não é mais a ordem da natureza que legisla as leis da cidade, agora são as leis da
polis que estão no controle do destino da natureza. O espaço dos homens – a cidade, não está mais
envolvida pelo mundo natural, este envolvimento fica agora a cabo da cidade, ou seja, ao controle
do mundo artificial da polis. É a natureza que se encontra sob o domínio da técnica. Pois,

268
São todos os seres que fazem parte do ecossistema planetário, mas que, no entanto, estão fora do círculo
de relações do homem visto pela idade moderna como ser autônomo e racional. Estes seres até então não faziam
parte das reflexões éticas empreendidas pelos homens.
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na cidade, a natureza só pode viver graças à assistência técnica, a mesma que um


dia comprometeu a natureza como paisagem habitual e, com isso, modificou a
existência do homem e a sua troca orgânica com a natureza (GALIMBERTI,
2006, p. 542).

Outro fator que modificou a relação entre homem e natureza foi a percepção judaico-cristã
acerca da natureza como terra que devia ser dominada. Neste sentido, a natureza é vista como
criatura de Deus. A bíblia nos mostra que a natureza passou a existir como vontades: vontade de
Deus e vontade do homem, o qual foi feito a sua imagem e semelhança e a quem Deus entregou a
natureza sob sua inteira responsabilidade. Ainda acerca de tal afirmação, nos enfatiza o autor
citando o livro do Gênesis que,
Depois Deus disse: ‘façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa
semelhança: domine sobre os peixes do mar e sobre os pássaros do céu, sobre
os animais domésticos, sobre todos os animais da terra e sobre todos os repteis
que se arrastam sobre sua superfície. (GALIMBERTI, 2006, p.515)

Neste sentido, há uma ruptura com a cosmovisão de mundo no que tange a natureza, pois esta
não se expressa mais como uma ordem imutável e inviolável, mas agora está sob o domínio de
uma vontade. Ocorre uma mudança de paradigma: passa-se de um significado cosmológico a um
significado antropo-teológico, isto é, o homem tem total liberdade para violar e interferir na ordem
natural e isso graças a uma vontade superior a sua – a vontade de Deus. Neste sentido a vontade
humana é secundária. No entanto, são vontades que estão de comum acordo quando se trata da
subjugação da natureza. Sobre tal questão religiosa acrescenta:
Até o dogma cristão emprestou seu apoio, observa a moral planetária. Em artigo
publicado em 1967 na revista Science (“Les Racines historiques de La crise
écologique), o historiador Lynn Whyte focalizava as desastrosas conseqüências
da teologia bíblica. Segundo ele, a doutrina da criação instituiu um dualismo
pernicioso entre o homem e a natureza. Deus criou a natureza não para si mesma,
mas para o bem-estar do homem. Tirou o ‘encanto” do meio ambiente, que deixou
de inspirar um sentimento de respeito religioso. A partir daí,o reino da indiferença
para com as coisas naturais podia ter início e nossos instintos predadores sentiram-
se livres. Segundo Lynn Whyte, o grande erro do cristianismo foi ter legitimado
com antecedência todos os excessos tecnocientificos. (LACROIX, 1996, p. 96)

É preciso que tomemos consciência das mudanças de tal cenário, que nos transforma cada vez
mais numa civilização de tecnocratas, e ampliemos nossa cosmovisão de mundo, possibilitando
desta forma, ultrapassarmos o espaço da polis e nos voltarmos para o bioreino, refletindo agora,
acerca de questões éticas a partir de uma responsabilidade ampliada, estendendo-se dos muros da
cidade dos homens ao espaço natural, do presente ao futuro. “Na sociedade tecnocientífica,
todavia, é preciso incluir na ação de agora o pensamento sobre a condição de integridade da
humanidade como um todo no futuro”. (SGANZERLA; OLIVEIRA, 2009, p. 265)
Página 1187 de 2230

Nossa casa é toda natureza. Esta última não é mais vista como algo separado, fragmentado,
distante do artefato da cidade, mas como um organismo conjunto e vivo que engloba a tudo e a
todos. Passa-se de uma visão de ação “intra-humana” a uma visão que abrace “toda comunidade
de vida” como dito por Oliveira e Borges. Neste sentido, a vida extra-humana e natureza
empobrecidas traduz-se também numa vida humana empobrecida.
Nunca no decorrer do processo histórico o homem teve tanto poder para interferir na realidade,
na natureza, e por efeito, em sua própria existência, colocando em risco não somente o seu habitat,
mas todo o ecossistema, afetando assim, também os outros seres vivos. Tal ameaça não contempla
somente as gerações presentes, mas esta possibilidade que se faz tão real, projeta-se para outras
gerações que não fazem parte nem do espaço e nem do tempo presente, do aqui-e-agora, mas estão
para além, no futuro, onde, no entanto serão diretamente afetadas no sentido de não poderem
exercer seu direito de vir a existir, e mesmo de habitarem uma realidade propícia à vida. Isso por
estarem submetidas a decisões e ações de gerações presentes, podendo correr o risco de não
realizarem a passagem que está ligada a duas categorias aristotélicas, que fazem daquilo que é
futuro tornar-se presente - ato e potência ou o devir.
Tudo supramencionado foi causado pelo agir humano unido à técnica, em um estágio de poder
hiperespecializado, tomando assim, rumos que levaram a dimensões catastróficas, fugindo do
controle humano, como nos é asseverado:
O progresso científico, de fato, transformou a técnica numa espécie de
‘prometeu irresistivelmente descontrolado’, cuja enorme capacidade de ação
continua a aumentar e com sempre menos regras capazes de exercer um controle
sobre ela. Ciência e tecnologia deram à razão um poder desmedido, mas fizeram
isso numa condição de profundo ‘vazio ético’. (MANCINI, 2000, p. 29)
A técnica como criação, ganha tal autonomia sobre seu criador – o homem – sendo
transformado em produto de sua própria criação, como sublinhado:
[...] Parece que se invertem os papéis, ou seja, o homem ‘cede’ seu lugar de
sujeito a ‘expedientes’ tecnológicos que operam sob forma de um processo
integrado e integrador; esses ganham vida própria e passam a posição de
comando – um processo autônomo que dita normas e maneiras de como o
homem deve proceder. [..] Jonas denuncia então que, o homo faber se colocou
acima do homo sapiens, visto que o triunfo do homo faber sobre seu objeto
externo significa, ao mesmo tempo, seu triunfo na constituição interna de homo
sapiens, da qual, outrora, ele costumava ser uma parte servil. (FONSECA, 2008,
p. 74).

O aquecimento global, deslizamentos de terra, epidemias, pandemias, furacões, inundações,


enchentes, etc., são situações onde percebemos a incomensurabilidade entre nossas intervenções
e consequências diante da natureza, isto é, nossa incapacidade de fazer previsões e de impedirmos
desastres que afetem ao todo da natureza. Por outro lado, estas situações são formas da natureza
se comunicar conosco, tendo como foco principal deste diálogo nos alertar acerca das
consequências causadas pela exacerbação do poder e da autonomia deliberada de maneira
Página 1188 de 2230

equívoca e irresponsável à técnica, que vem se sobrepondo ao homem que se tornou também
parte desta engrenagem, contribuindo diretamente para com o interferir de forma desastrosa sobre
a natureza, modificando assim, não somente esta última, mas o próprio agir humano e suas
relações.
Este domínio da técnica vem travestido de boas intenções e tentativas de melhoria para o
planeta, mas na verdade são percebíveis sintomas que profetizam a falência do domínio da técnica
sobre o planeta, como nos é advertido:
[...] Essa tentativa de dominação técnica travestida da intenção de melhoramento
tem confluído numa série de fenômenos sociais e naturais que talvez indiquem
para o fracasso de seu mandato. Ao tentar melhorar o mundo o homo faber tem
contribuído para o agravamento das condições de indigência e de
enfraquecimento da vida como um todo [...] O ruído dos motores da civilização
tecnicista tem destruído o meio ambiente e ensurdecido o ser humano, incapaz
agora de ouvir a voz de Gaia [...] As práticas ecologicamente destrutivas e a
exclusão social ( que tem levado milhares de famílias às áreas de maior
vulnerabilidade) são os fatores óbvios que favorecem a gravidade dessa
situação.( OLIVEIRA; BORGES, 2008, p. 53)

É importante levarmos em conta que nem sempre foi assim, antes, nos primórdios da
civilização, o homem já se revestia de poderes técnicos que o ajudavam a tentar sobreviver diante
das peripécias da natureza. Entretanto, não tinha tanto poder de interferência, isto é, seus
conhecimentos técnicos não eram tão desenvolvidos como atualmente. Sendo assim, seu poder de
intervenção e modificação eram “inofensivos”. É a partir destas afirmações que iremos entender
o porquê da responsabilidade nunca ter estado no centro das teorias éticas até então. É exatamente
sobre esta e outras questões que iremos nos ocupar de agora em diante, tentando dar ênfase aos
pontos importantes que fundamentam este capítulo.

O anúncio de um novo paradigma

Diferente do animal que já nasce “preparado” para as condições ambientais que o esperam,
o homem tem que fabricar ou construir suas próprias condições de sobrevivência. Neste sentido,
entra em cena a cultura, que somente o homem pode produzir. Esta não é atribuída ou dada a priori
ao homem, mas é a posteriori, é trazida à realidade com a experiência. É a cultura que dá os
delineamentos, as coordenadas, ou melhor, as técnicas que propiciarão ao homem criar um
ambiente que o permita sobreviver diante das peripécias da natureza. Tal ambiente é chamado
também cultural.
Ao falarmos em cultura aparecem duas visões de mundo: a mitológica e a religiosa, que como
partes da cultura foram como que duas partes complementares de um mesmo objeto – “uma
bússola” - e tinham como função coordenar os passos do homem diante da natureza. Estas foram
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mais que uma bússola, pois não somente davam as coordenadas, mas determinavam ou davam as
indicações de como o homem devia intervir no meio natural, o que se pode fazer e o que se deve
deixar de fazer, deixar intocável. Destas duas cosmovisões, a atividade humana recolhia o caráter
do imodificável, da limitação e da impotência. Isto quer dizer que havia um caráter de
distanciamento do homem para com as intervenções, fazendo com que uso e aprimoramento da
técnica fossem realizados a passos lentos, senão quase sem utilidade.
Como mudar tal cenário? Como o homem irá fazer para que a técnica ganhe espaço diante
do intocável, imutável e imodificável mundo da natureza?
A solução para tais questionamentos, é agora, a substituição da interpretação de mundo do
viés religioso pela interpretação de mundo da técnica. É a técnica que depois do “desencantamento
do mundo”269 e da ineficiência da religião em seus aspectos de interpretação e de prescrições de
comportamento, vai passar a criar manifestações religiosas, este seria o remédio a impotência
técnica, como nos é suscitado:
O remédio a impotência técnica. [...] De fato, é natural não se resignar com a
morte e, portanto, construir representações do além, é natural cobrir com a
fantasia o intervalo que existe entre o que é controlável, assim como é natural
entregar-se, em relação ao que não é controlável, àquelas entidades superiores
que as religiões chamam de Deus, deuses ou destino. [...] Portanto, se a religião
esgotou a sua função como interpretação do mundo e como prescrição dos
comportamentos, mas não como remédio à impotência, então também a religião,
longe de ser uma expressão do espírito, está, em todos os seus aspectos, inscrita
na lógica da ação técnica, que gera expressões religiosas toda vez que a
transformação do mundo encontra o próprio limite. (GALIMBERTI, 2006, p.
114)
Na idade moderna, iremos ter Francis Bacon e René Descartes como aqueles que irão ser os
criadores de novas expressões religiosas, e que darão condições para que surja uma nova dimensão
humana. Sai de cena o homo sapiens e entra em cena o homo faber.

O contexto moderno como pressuposto inicial para a sobreposição do homo faber: Bacon e
Descartes.

Com a troca de paradigma ou a mudança de posição entre o homo faber e o homo sapiens,
que ocorreu com a época moderna não há mais como conservar a mesma concepção de agir
intelectual pensado pelos gregos como teoria ou mesmo como os latinos que a concebiam como
contemplação. Esse agir intelectual não é mais pensado como fim último, tendo como subordinado

269
Processo citado e descrito por Max Weber como “racional”, ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens
religiosas do mundo, criou uma cultura profana. As ciências empíricas modernas, as artes tornadas autônomas e as
teorias morais e jurídicas fundamentadas em princípios formaram esferas culturais de valor que possibilitaram
processos de aprendizado de problemas teóricos, estéticos ou prático-morais, segundo suas respectivas legalidades
internas. (cf. discurso filosófico da modernidade p. 3-4)
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o agir prático, mas agora é o agir operacional que prevalece sobre o agir intelectual. Nos é
acrescentado que,
Razão significa, para os modernos, a capacidade de classificar e deduzir,
independentemente, de ordenar meios adequados para a efetivação dos fins
escolhidos. A essa racionalidade não interessa a investigação sobre o em-si das
coisas, pois sua preocupação básica está na capacidade de intervir eficazmente
no mundo. O conhecimento deixou de ser a presentificação do sentido das coisas
ao ser humano e transformou-se num mecanismo que permite ao sujeito
subordinar o mundo a si. (OLIVEIRA, 2000, p. 203-204)
Francis Bacon foi um dos primeiros filósofos a contribuir para com a inversão mencionada
acima. Pois com sua famosa máxima “conhecer é poder” já traduz todo o seu programa. O saber
em Bacon ganha outra conotação que não a dos gregos ou latinos, mas sim como poder. Sua
intenção é subjulgar, modificar a natureza, e desta forma refutar seu caráter de imutabilidade.
Agora o homem é “a medida de todas as coisas” como prescrito por Protágoras. Para os modernos
a natureza só é imodificável enquanto suas leis não são conhecidas pela razão humana.
Bacon se fundamenta para tal empreendimento na tradição judaico-cristã que prevê que Deus
colocou o homem na terra para dominar toda a natureza, e a partir desta atitude de dominação
fosse reproduzida ou refletida obras de verdade que, por consequência, modificar-se-ia o conceito
de alétheia por ‘emet, como mostrado:
Não mais a verdade na acepção grega de alétheia, que significa ‘desvelamento’
das leis imutáveis da natureza, função que cabe à theoria, mas a verdade na
acepção de ‘emet, que significa ‘fazer’ o que Deus prescreveu para o homem.
Uma verdade, pois, que não se contrapõe ao ‘erro’ ou à falsidade, mas à
‘infidelidade’ ao mandamento de Deus, ou à ‘preguiça’. Diferentemente da
verdade grega, a verdade hebraica não é algo que se conhece, mas algo que se
pratica ao se observar a lei de Deus. (GALIMBERTI, 2006, p. 319)
Aqui, a verdade grega não tem mais razão de ser, pois a contemplação foi subtraída pelo fazer,
que reflete a verdade hebraica. Este fazer tem em suas mãos, a partir do conhecimento cientifico,
tanto o controle sobre a natureza como os condicionamentos históricos que permitem modificar o
modo de ser ou estado de vida do homem.
Bacon, a partir da concepção judaico-cristã de ciência, funda a ideia de progresso. Quando
Bacon rompe com a ideia grega de aletheia – Verdade desvelada, contemplação, e troca pela ideia
de verdade construída, fazer, tentando levar a humanidade a um melhoramento, emancipação, de
fato, passa a existir a ideia de progresso, de modificação, de construção. Tal ideia foi cunhada na
visão cristã do termo schaton que abre uma concepção de futuro, mas, no entanto, se difere da
visão de schaton de Francis Bacon, como advertido:
Com Bacon, o conteúdo escatológico é separado da sua matriz religiosa. A utopia
da Nova Atlântida se resolve na imanência futura; mas o futuro foi aberto pela
idéia escatológica propagada pelo cristianismo. A essa idéia farão referência
todas as utopias seguintes, das científicas às revolucionárias, em cuja base é
sempre possível encontrar a idéia cristã do ‘homem novo’, destinado a viver em
‘novos céus e novas terras’ que já não estão projetados para a transcendência,
mas para um futuro imanente. Esse futuro não é para ser esperado, mas
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construído, em conformidade com o principio operativo do progressivo domínio


do homem sobre a natureza. (GALIMBERTI, 2006, p. 325-326)

Aqui, a visão mítico-religiosa sai de cena, é subtraída. Isso decorre também em um


distanciamento pelas perguntas relacionadas às causas primeiras. Não se pergunta mais pelo que
é, mas pelo como fazer. Não mais pelo porquê, mas pelo para que. Ficam somente as perguntas
pelas causas segundas, de raízes mecanicistas, que são verificadas de forma empírica, dentro de
um espaço e um tempo específicos.
Tal mudança que reflete a saída do paradigma de perguntas pelas causas primeiras à perguntas
pelas causas segundas, isto é, de um caráter orgânico-vitalista à um caráter mecânico, possibilita
ao homem ter não mais uma visão qualitativa, mas quantitativa, que se traduz em cálculo, medida,
peso, deslocamento, transferência, tendo como auxilio, pressupostos matemáticos. Isso é
traduzido no homem que agora é criador de seu próprio mundo e de seu próprio futuro, ou melhor,
passa-se do reino de Deus ao reinado dos homens.
Para os gregos o cosmo era entendido como caráter de perfeição e organização, onde, a partir
dos olhos e do entendimento do ser racional, o infinito, o eterno e subsistente, aquilo que está fora,
é matéria não conhecida, que na escala dos valores não é digna de cognoscibilidade.
Esta era a cosmovisão dos gregos que foi desfeita pela sobreposição de uma nova
hermenêutica ou interpretação, de uma nova concepção de mundo – a judaico-cristã. Neste
sentido, a partir deste novo entendimento do cosmo, pode-se pensar: Se o mundo é causado por
uma causa que é Deus, conclui-se que tudo que existe deve ser digno de cognoscibilidade. Nada
pode ficar a margem do pensamento e do conhecimento. Aqui o conhecimento está no nível do
moldar, do modificar e até mesmo do repensar os pensamentos do próprio Deus. Esta matéria que
outrora não estava no nível cognoscível, agora na visão judaico-cristã passa a ter cognoscibilidade.
Aqui, assim como Bacon que moldou sua filosofia e teoria cientifica a partir da visão judaico-
cristã, entra outro influente filósofo que também fundou seu método científico, e assim pôde
penetrar de forma perspicaz no reino da natureza à procura de desvendar todos os seus enigmas e
segredos – René Descartes.
Descartes, por meio do método da dúvida hiperbólica , onde de tudo duvida, somente tem
uma certeza: que pensa. Pois até mesmo para duvidar que de fato pensa, tem que estar no nível do
pensar. Descobrir que pensa é descobrir que existe. É fundar a existência no pensamento. É a partir
do cogito – pensamento, que Descartes desligado do mundo físico, e da realidade das relações
humanas, dá prioridade para a subjetividade pensante, tornando o homem semelhante a Deus.
Como idealista, Descartes defendia a teoria de ideias inatas, e que entre estas estariam
hospedadas no cogito, as matemáticas, fundamentais para a subjugação da physis, e também
aquela ideia que se refere a um ser absoluto, subsistente que o homem sendo um ente criado não
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poderia ter deliberado a si mesmo, mas somente teria partido de um ser que o criou a sua imagem
e semelhança. Aqui, a natureza perde sua potencialidade, pois o homem agora é privilegiado. A
natureza não é mais a physis originária como pensavam os gregos, mas apenas ordem a qual foi
estabelecida por Deus para conduzir as coisas criadas. “A própria distinção cartesiana entre res
cogitans e res extensa reproduz a distinção cristã entre interioridade da alma e exterioridade do
mundo” (GALIMBERTI, 2006, p. 329). Por isso, Descartes bebe na fonte ou da concepção
judaico-cristã, pois, sua constante dúvida acerca da realidade só teria fim com a existência de
Deus. O mundo físico só passaria a existir de fato e sem erros, a partir da prova da existência deste
ser absoluto que é bom e perfeito.
O homem é biblicamente concebido como imagem e semelhança de Deus, por isso,
próximos. Homem e Deus têm uma relação de proximidade maior que o homem e o mundo. O
conhecimento do homem sobre Deus ou sobre sua substância é realizado a partir de si mesmo, por
vias da mente, internamente, pois a ideia de Deus é inata. Além disso, o homem é sua imagem e
semelhança. O mundo externo, os sentidos não têm nenhuma relevância nesta relação.
Entretanto, o mais interessante disso tudo é perceber que Deus foi trazido ao sistema
cartesiano apenas por questão de método, depois de ter se achado trancafiado em uma prisão
construída por seu método que de tudo duvidava, a única saída seria trazer Deus para dentro de
seu sistema. Deus aqui serve apenas como forma pura de argumentação. Pois, no sistema em geral
foi subtraído, não tendo nenhuma relevância a não ser a já supramencionada. O centro do sistema
não era Deus, mas a razão absoluta que deu total liberdade ao homem para ser criador da realidade.
Deus perdeu seu trono, deixando de ser o criador por excelência.
Descartes foi de suma importância para a idade moderna, onde a partir de seu método, tendo
a dúvida como fundamento, determina de forma irrefutável um princípio, que tem como meta
elevar o poder da razão humana tanto sobre os sentidos quanto sobre a tradição como
transmissora de conhecimento. Faz uma verdadeira virada de paradigma, como nos é advertido:
A importância desse momento de virada cartesiana na filosofia, com a
centralização na ideia de consciência, está no fato de Descartes, com isso, ter
encaminhado toda a filosofia moderna para um entusiasmo racionalista,
possibilitando um alicerce sobre o qual se instauraria uma nova ordem de valores,
fazendo o mundo e a natureza passíveis de ser dominados. Há, portanto, uma
dissociação entre sujeito e o mundo, entre o homem e a natureza, numa
perspectiva antropocêntrica, segundo a qual a razão humana tudo pode.
(OLIVEIRA; BORGES, 2008, p. 79)

Surgiria ainda nesta concepção, a ideia de que na natureza não existem forças sobre-humanas.
Pensar desta forma, é reverter toda a natureza em matéria que pode ser controlada pelo viés da
razão. Daí surgiria o lema: “tudo pode ser conhecido”. Pode ser revertido em vontade – vontade
do homem.
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Foi a partir destes dois filósofos, importantes contribuintes para o estabelecimento da idade
moderna, Bacon e Descartes, que o homem passa de homo sapiens a homo faber. Quando a
natureza, passa de ordem originária a ordem subjugada. Da cosmovisão grega à cosmovisão
judaico-cristã.

Do homo sapiens ao homo faber: de senhor a servo


O conhecimento técnico tem em seu bojo, uma razão de caráter calculável, uma razão que
calcula. Pela técnica, o homem se transforma em senhor, senão criador de expedientes que não
são meros acasos e nem casualidades, mas são expedientes criados à luz de cálculos e reproduções.
Sobre tais questões é asseverado que,
Esse novo poder foi adquirido entusiasticamente com as revoluções industriais e
técnicas da era moderna e deixou de ser um mero ‘atributo à necessidade’, para
representar ‘a mais significativa tarefa humana’, fazendo com que o homo faber
(o homem que faz) tenha adquirido o primado sobre o homo sapiens.
(SGANZERLA; OLIVEIRA, 2009, p. 265)

No contexto tecnológico é conhecido o domínio do homo faber, que se desvencilha do


controle do homo sapiens, tendo agora sobre si os aspectos do projetar, fabricar e do realizar de
sua obra. Quer dizer, aqui há uma atividade que perde os elos e aspectos que antes levavam a um
fim ou a um telos.
A técnica liberta o homem das amarras da divindade. Ele está livre. A despedida da tutelaria
dos deuses data o início do nascimento do conhecimento humano como sabedoria técnica. Com a
técnica, os homens têm em mãos o conhecimento instrumental, e com isso, a capacidade de
reverter ou adequar os meios aos fins. Nota-se, que o homem com sua nova dimensão de criador
e inventor, perdeu aquela dimensão que era capaz de dar direcionamento ou mesmo escolher os
fins – o homo sapiens. A técnica possibilitou à humanidade a escolha dos meios em detrimento
dos fins. É aí que mora o perigo, onde depois da vitória do homo faber, a humanidade perdeu a
consciência dos fins.
A humanidade está voltada para o mundo da técnica, onde há a sobreposição do homo faber
em detrimento do homo sapiens.
Antes a humanidade via a técnica apenas como um meio que lhe daria condições ou subsídios
para alcançar determinados fins e soluções para algumas intempéries trazidas pelas leis da
natureza. Destarte, a técnica não é mais vista como “um tributo cobrado pela necessidade, mas um
fim escolhido pela humanidade e claramente definido”.
Na antiguidade, antes da civilização tecnológica e da ascensão da técnica como valor
imprescindível para a humanidade, às éticas antigas o fundamental não era a técnica, mas outros
valores como a virtude e a sabedoria - a valorização do homo sapiens.
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Na era da civilização tecnológica, o poder de comando, a entrega das rédeas do progresso,


entendido como fins, fica por conta do homo faber, que passa a ser visto como sujeito de ações
coletivas, cujo os efeitos de tais ações é sine qua non que a natureza esteja submissa aos fins
humanos.
Pelo seu poder de intervenção, modificação e novas descobertas, são criadas em torno do
homo faber novas expectativas que alcançam maiores correspondências, tendo mais
possibilidades de serem realizadas, ao contrário do homo sapiens e, por efeito, eleva a técnica de
meio a fim em si mesmo, como nos é suscitado:
Do homo faber se espera muito mais do que do homo sapiens, seu poder é
infinitamente maior; dele se espera a felicidade humana sobre a terra,
paralelamente a técnica deixa de ser considerada como simples meio ou
instrumento e passa a se determinar, enquanto progresso tecnológico, como fim
em si. (JUNIOR, 2000, p. 203)

A sobreposição do homo faber ao homo sapiens significa, o homem que faz, o homem
técnico, o ser radicado na consciência (alma, razão) soberana e suprema capaz de dominar – na
equivocada interpretação do sujeitar – tornar objeto nas mãos do sujeito; submeter, subjugar,
sufocar, atrair para prevalecer, vencer, predominar. O domínio torna-se predomínio e subjugação,
próxima mesmo da vingança do homem contra a natureza.
Entretanto, os dias do homo faber como realeza estavam contados, pois a sua criação
conseguiu ultrapassar o seu criador que agora passa a ser objeto ou parte de uma gigantesca
engrenagem. No início, podemos dizer que o homo sapiens e o homo faber caminhavam juntos,
onde aquele que pensava era o mesmo que agia, o poder técnico era subjugado por ambos. Agora
este poder ganhou vida. Não é mais um meio que colabora para um fim, mas é um fim em si
mesmo, em que o homem dentro desta cadeia de relações é um simples aparato que contribui para
o domínio técnico que está com as rédeas do comando do “progresso”. Tanto o homo faber como
o homo sapiens foram subjugados. Tal cenário é traduzido numa frase de estória de bruxas: “o
feitiço virou contra o feiticeiro”. O homo faber tinha a falsa ideia de que estava na direção, no
entanto, esta dimensão do homem, tornou-se mais uma das partes desta imensa engrenagem que
se chama técnica. Mas, o mais perigoso disso tudo, é que este poder técnico que domina o homem
não sabe aonde vai. Não tem consciência dos fins e nem mesmo se interessa por eles.

De criador à criatura: a técnica como efeito do homem sobre si mesmo


Aqui, é importante falarmos de uma mudança de paradigma no que diz respeito a ciência. A
promessa da modernidade e com ela da ciência moderna é a de controlar a natureza, dominá-la.
Hoje vem sendo superada por uma espécie de superação de um estilo de funcionamento do próprio
conhecimento científico, onde a ciência moderna rompe com uma forma de ciência prometeica.
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Podemos dizer que tudo que o homem faz ainda é efeito da história natural. Mas há uma
grande diferença, é que agora essa é a primeira espécie, a nossa, que produz ela própria caminhos
voluntariamente escolhidos para sua evolução. Tal evolução podemos chamar de pós-biológica,
onde se refere a essa capacidade que a ciência atualmente exibi ou pelo menos propaga de poder
superar os limites que a natureza impôs não só a nossa espécie, mas a toda forma de vida
conhecida. Agora, somos autores da seleção natural, somos os sujeitos enquanto espécie daquilo
que vai ser a nossa descendência, o nosso futuro.
Neste sentido, se coloca imediatamente questões de ordem ética e moral que são de difíceis
soluções.
A ciência não pensa mais a tecnologia como a mera extensão das capacidades humanas, mas
pensa a tecnologia como uma maneira de aprimorar a espécie humana, de reformar a humanidade,
de fazer por meio da genética aquilo que a ideologia política, reformas sociais não conseguiram
fazer.
Jonas fala que atualmente estamos lidando com forças que nunca antes foram conhecidas, e
que por consequência de tal desconhecimento, fazemos questionamentos que enveredam pelo
mesmo patamar de novidade, isto é, que nunca foram feitas antes.
Tais questionamentos, surgem em um cenário de domínio e avanço por parte da biotecnologia
que cada vez mais interfere na natureza. As éticas que vieram antes, não faziam estes tipos de
questões que todos os dias se renovam com o desenvolvimento tecnológico e que aumentam em
rápida escala o campo da ação humana, como nos explica Jonas:
O homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar
inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto. Essa culminação de
seus poderes, que pode muito bem significar a subjugação do homem, esse mais
recente emprego da arte sobre a natureza desafia o último esforço do pensamento
ético, que antes nunca precisou visualizar alternativas de escolha para o que se
considerava serem as características definitivas da constituição humana.
(JONAS, 2006, p. 57)

Esta questão é problematizada por Jonas de forma pormenorizada em três pontos. O primeiro
versa sobre o prolongamento da vida. Pois, certos progressos da medicina celular nos dão
subsídios para modificarmos os processos químicos responsáveis por nosso envelhecimento e
desta forma adiarmos nossa finitude. No entanto, a questão não é tão simplória, haja vista, que
isso pode modificar o equilíbrio entre morte e procriação. Outra questão a ser colocada é quem
deve participar de tais benefícios? Quem pode pagar? Ou todos que precisarem? A este respeito,
nos fala Netto em seu artigo ‘longevidade: desafio no terceiro milênio’, que “ todos os problemas
dos idosos, sejam médicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, psicológicos representam
desafios que deverão ser enfrentados no terceiro milênio”. Devemos nos atentar para tal questão
também no que diz respeito à demografia, pois a fronteira deslocável que se impôs com o
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progresso da biomedicina e da tecnologia, afeta diretamente o retardamento do envelhecimento e,


por consequência, da mortalidade, da reposição ou a presentificação de vidas novas dentro do
mundo da vida, acarretando na diminuição de uma população juvenil e no aumento de uma
população de idosos, como nos atesta:
A notável transição demográfica que vem ocorrendo em todo o mundo está
demonstrando que o ritmo de crescimento do número de idosos é muito maior
que o de outras faixas etárias. Segundo algumas previsões, o percentual de
pessoas com idade igual ou superior a 60 anos no mundo em 2050 passará de
10% a 21%; paralelamente, o percentual do número de crianças terá uma redução
de 30% para 21%. Em alguns países desenvolvidos, o número de idosos será mais
que o dobro de crianças. (NETTO, 2006, p. 260-261)

Para Jonas, “ter de morrer liga-se ao ter nascido: mortalidade é apenas o outro lado da fonte
duradoura da natalidade”. Neste sentido, a abolição da mortalidade implica diretamente na
abolição da procriação, já que a morte é a resposta da vida à procriação, ou seja, é no ato de morrer
que nos surge a promessa contínua e renovada da novidade, da “imediaticidade e do ardor da
juventude e ao mesmo tempo uma permanente oferta de alteridade”.
Outro aspecto ainda a ser considerado segundo Jonas, refere-se ao memento mori - (momento
da morte), que com seu prolongamento pode ser afetado. Além disso, talvez seja necessário um
limite imodificável de nossa expectativa de vida para nos motivar a “contar os nossos dias e fazer
com que eles contem para nós”, como nos assevera baseado na obra “Intermitências da morte”,
do autor português, José Saramago, o então professor:
Mas o que seria a vida sem o seu final? O que aconteceria se, de uma hora para
outra, os homens parassem de morrer? O que pode significar não morrer? [...]
‘No dia seguinte ninguém morreu’[...] De repente, num país qualquer,
simplesmente não se morre mais. O curioso é que o ocorrido, que a primeira vista
poderia prenunciar um tempo feliz, ou antes, uma eternidade feliz daquelas
pessoas que não mais morreriam, provoca as maiores tribulações e desarranjos;
a ponto de muitos desejarem que se volte a morrer naquela terra. Com perdão do
arranjo de palavras, a ausência da morte torna a vida funesta. (SANTIAGO,
2008, p. 14-17)

Por último, coloca Jonas que sua tese é a de que o presente que nos é posto hoje como
perspectiva sublinha questões,
que nunca foram postas antes no âmbito da escolha pratica, e de nenhum
principio ético passado, que tomava as constantes humanas como dadas, está à
altura de respondê-las. Contudo, essas questões devem ser encaradas, eticamente
e conforme princípios, e não sob a pressão de interesses. (JONAS, 2006, p. 59)
O segundo ponto versa sobre o controle de comportamento. Que segundo Jonas é uma questão
menos hipotética que a questão anterior, sendo que estas questões éticas se fazem menos
profundas. Contudo, estas entram numa relação direta com a concepção moral do homem,
passando da aplicação médica a aplicação social. Hoje, tornou-se realidade possível o controle do
comportamento por vias do desenvolvimento da medicina psicossomática; onde agentes químicos
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podem levar ao controle de processos psíquicos, alterando assim, o ritmo de aprendizagem,


aliviando ou até mesmo desaparecendo com sintomas dolorosos de doenças de ordem psíquica,
da mesma forma como elétricos, desenvolvidos por eletrodos colocados nas regiões ditas
cerebrais, podendo vir a ter como consequência a modificação monitorada de como os indivíduos
devem se comportar socialmente, eliminando desta forma os comportamentos indesejáveis, dando
como exemplo, as ações constituídas de agressividades. Ainda nos é dito sobre tais questões que,
Segundo Francis Fukuyama em seu livro recente “Nosso futuro pós-humano:
conseqüências da revolução da biotecnologia”, a reforma da humanidade, o
aprimoramento da espécie humana, agora vem por meio da genética. Aquilo que
reforma social, ideologia, política não conseguiram fazer. Acabaremos com
miséria, problemas como violência, agressividade, crimes, a partir não mais da
educação, ideologia, reforma social, política, solidariedade etc., mas da
intervenção biológica que as tecnologias nos permitem agora a partir do seu alto
grau de desenvolvimento. (GALIMBERTI, 2006, p. 823)

Do que foi supracitado, surge um questionamento que envereda pelo saber se aquilo que se
encontra estabelecido como ameaça não seria apenas a antítese entre o agir autônomo, maioridade,
e completa tutelagem; precisamos saber também se determinantes opostos e ambiguidades
fundamentais, como aquelas que falam da normalidade e patologia, agressividade e independência
não estão ligadas as condições que constituem o que Jonas chamou de “vida humana autêntica no
mundo.”
É importante considerarmos um enorme risco e de grandes proporções as mudanças de
direção, no que diz respeito às descobertas tecnológicas da ciência biomédica e de seu uso para
fins sociopolíticos, tendo como intuito, ações que visem ao controle e a manipulação de
comportamentos indesejáveis pela “sociedade”. Nos é acrescentado ainda que:
A funcionalidade social, seja qual for a sua importância, é apenas um lado da
coisa. Decisiva é a questão sobre que tipo de indivíduos tornam valiosa a
existência de uma sociedade como um todo. Ao longo do caminho da crescente
capacidade de manipulação social em detrimento da autonomia individual, em
algum lugar se deverá colocar a questão do valor, do valer-a-pena de todo
empreendimento humano. Sua resposta deve buscar a imagem do homem, da
qual nos sentimos devedores. Devemos repensá-la à luz do que hoje podemos
fazer com ela ou fazemos a ela e que nunca pudemos fazer
anteriormente.(JONAS, 2006, p. 60)

O terceiro ponto a ser problematizado é o da manipulação genética. Esta é uma tecnologia


que se volta diretamente ao homem e ao controle genético dos homens das gerações futuras
segundo Jonas. Sobre linhas anteriores complementa Moser enfatizando acerca da reprodução
assistida:
Para os entusiastas este é o sinal mais evidente do êxito das experiências
conduzidas em sofisticados laboratórios para criar um ser humano á sua própria
imagem [...] Nos últimos decênios do século passado, progressivamente os
mistérios da transmissão da vida foram sendo desvendados e colocados ao
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alcance das mãos. Em vez das surpresas ligadas à gestação e ao nascimento e que
excitava a mente dos pais e mães num passado não muito distante, agora vai se
impondo uma fria certeza: cada um tem o filho ou a filha que quiser, quando
quiser, com quem quiser e de maneira que quiser. (MOSER, 2004, p. 143- 144)

Atualmente, a seleção natural de Darwin vem dando lugar a seleção artificial, após a
descoberta feita pelos cientistas por meio do projeto genoma que tinha por missão conseguir o
mapeamento do gene humano. A partir daí foi aberta a porta para se evitar doenças hereditárias,
mas também para que os pais possam escolher, por exemplo, o sexo do bebê. Empresas
futuramente possam contratar somente aqueles que mais se adaptem a sua lógica empresarial e os
mais ágeis, os que irão adoecer menos. Tudo isso pode ser feito pelo mapeamento do gene. Como
toda revolução, essa promete incontáveis benefícios – e muitos questionamentos éticos.
Outro ponto a ser enfatizado dentro da problemática da manipulação genética é a questão
muito presente hoje no meio cientifico e que pode se tornar se não tivermos prudência, um dos
maiores desastres para a humanidade, podendo superar até mesmo a bomba atômica; estamos
falando da clonagem que com o avanço da ciência e da técnica pode agora além da clonagem de
animais, clonar também os seres humanos. No século passado, no ano de 1997, uma experiência
com ovelhas, realizado por um grupo de pesquisadores escoceses, criou Dolly, clone de uma
ovelha que continha as mesmas características de sua matriz. Essa possibilidade pode viabilizar o
desejo de reproduzir seres vivos iguais, o que permitiria, por exemplo, multiplicar um grande
número de vacas que produzem muito leite. Entretanto, o perigo da clonagem está justamente na
sua vantagem. Muitos pesquisadores alertam para o fato de que gerações idênticas de animais e
plantas ficariam muito suscetíveis a doenças. Uma simples bactéria, que venha tomar com um
indivíduo, poderia proliferar ameaçando toda a população.
Outra questão perigosa a ser observada é quanto à possibilidade de expor a espécie humana a
micro-organismos desconhecidos. Os pesquisadores alertam para o perigo de eles poderem vir,
até, a gerar doenças ainda desconhecidas, provocando a morte de muitos seres humanos. Além
disso, é um grande risco podendo fazer surgir super-homens, semelhantes aos idealizados pela
Alemanha nazista, ou até mesmo criar seres humanos em laboratório para serem banco de órgãos
vivos, como aqueles enfocados no filme “A Ilha”. Sobre tais questões é acrescentado que,
Ultrapassar esta barreira seria o mau uso que, somado às técnicas de engenharia
genética, permitiria realizar os desvarios da fantaciência:reproduzir
seletivamente gênios ou andróides ou mesmo seres que funcionassem apenas
como “ banco vivo de órgãos” para eventual transplante em favor de seus clones
recíprocos que tivessem sido levados à evolução como sujeitos racionais. Há que
se perceber aqui dois lados dessa evolução: um que assusta ou mesmo repugna
pelos possíveis maus usos e devastadores resultados atingindo a dignidade
humana; e outro que pode entusiasmar pelas possibilidades que abre exatamente
em favor da qualidade da vida humana.(PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2006,
p. 126)
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Aqui entra em cena o sonho do homo faber de tomar em suas mãos as rédeas de sua própria
evolução, contudo, sua intenção não é de conservação da espécie, mas de manipular, melhorar,
modificar, de acordo com seu próprio plano. Para o autor a questão agora é,
Saber se temos o direito de fazê-lo, se somos qualificados para esse papel criador.
[...] Quem serão os criadores de “imagens”, conforme quais modelos, com base
em qual saber? Também cabe a pergunta sobre o direito moral de fazer
experimentos com seres humanos futuros. Essas perguntas e outras semelhantes
[...] mostram de forma contundente até que ponto o nosso poder de agir nos
remete para além dos conceitos de toda ética anterior. JONAS, 2006, p. 61)

Estes pressupostos tornam clarividentes a mudança quanto as relações tradicionais entre homo
sapiens e homo faber. Para as éticas antigas a técnica sempre fora um meio, rumo as satisfações
humanas. Agora com a vitória do homo faber os rumos da humanidade estão sob o comando da
hiper-especialização técnica que faz o homem assumir o papel ilusório de “criador” de acordo
com as coordenadas ditadas pela técnica.
Neste contexto supramencionado, percebemos a crise dos paradigmas éticos tradicionais. Este
novo cenário, intimamente tecnocrata, consegue de certa forma, cooptar os pressupostos éticos,
senão, torná-los impotentes diante de tal poderio.

Vácuo ético: a técnica como reflexo de impotência ética


Na civilização tecnocêntrica, os pressupostos éticos são dissolvidos, ou celebrados como
impotentes. Não é mais capaz de intervir no fazer técnico, de controlar seu poder, de guiar seus
fins. A antiga convicção grega, que dava total liberdade de comando a ética, deliberando e
controlando os fins, e à técnica ficando somente a contribuição como meio que era adicionado
para a realização destes, foi supra-consumida pelo poder técnico que assumiu o comando do
destino da humanidade, onde, aqui, os fins se encontram condicionados pelos resultados da
operacionalidade técnica. São as normas e o saber moderno que irão tendo como pano de fundo
as ciências naturais, dar ordem as normas – forma esta de estabelecimento que destruiu os próprios
fundamentos de norma como outrora era concebido. Saber este que subtraiu o valor da natureza e
em seguida faz o mesmo com o seu criador – o próprio homem, seu grande inventor. O mundo
agora está imerso em um grande vazio ético, após a derrocada das grandes metanarrativas que
legitimavam a sobreposição ética sobre outros discursos como o da técnica. Sobre tais questões
nos é advertido que,
[...] O movimento do saber moderno na forma das ciências naturais -, em virtude
de uma complementaridade forçosa, erodiu os fundamentos sobre os quais se
poderiam estabelecer normas e destruiu a própria idéia de norma como tal. [...]
Primeiro, esse saber ‘neutralizou’ a natureza sob o aspecto do valor; em seguida
foi a vez do homem. Agora trememos na nudez de um niilismo no qual o maior
dos poderes se une ao maior dos vazios; a maior das capacidades, ao menor dos
saberes sobre para que utilizar tal capacidade. (JONAS, 2006, p. 65)
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As finalidades técnicas não são escolhidas, são resultados advindos de seus procedimentos.
São resultados que não tem qualquer influência por parte da ética. Como tais, não prescindem de
reflexões éticas ou do agir ético. Se outrora, a ética teve alguma relevância perante a técnica,
moldando, modelando ou até mesmo controlando, agora a questão se inverteu. O braço do oleiro
que antes modelava, a partir de pressupostos éticos, mudou de lado. Isso significa dizer, que neste
cenário é a técnica que dá impulso à ética. E esta relação de inversão não se dar mais em uma
realidade natural, mas artificial que foi plasmada pela técnica a exemplo do demiurgo platônico.
Não importa de que forma a ética se posicione, ela não consegue impedir a técnica de continuar a
plasmar, transformar a realidade. Neste sentido, há a dissolvição do agir como reflexo dos fins em
detrimento do fazer como reflexo do produzir resultados, não importando mais sob o prisma de
quais fins.
Na Grécia antiga quando se falava em agir como práxis e em fazer como téchne havia uma
diferença no que tange as reflexões em que o homem estava no centro, e neste é percebido duas
capacidades: uma de contemplar como theoria e outra de produzir como poíesis. Por poíesis, os
gregos traduziam tanto a técnica como produção de artefatos, objetos, quanto a ética como
produtora de atos. Estas duas formas de produção tinham a natureza como justo meio, ou melhor,
como modelo para tais fins. Visualizando nesta também suas limitações. As transformações da
natureza servem à técnica como aprimoramento para o ato de produzir. Já à ética, o que lhe é útil
é o ordenamento da natureza que se traduz pela medida e pela ordem. Ambas, técnica e ética
partem da imitação daquilo que ocorre na physis para se desenvolverem.
Foi pautado nesta relação do homem como dimensão do produzir - produção tanto de atos
como de artefatos, tendo como coordenadas de desenvolvimento a natureza, que o aspecto de
produzir objetos, ou seja, a atividade técnica do homem, conseguiu se estabilizar de maneira sólida
deixando para trás a dimensão ética. Os motivos de tal ultrapassagem estão relacionados com a
mutabilidade e imprevisibilidade dos atos humanos como nos contado:
Desde então a técnica adquiriu uma estabilidade mais solida do que a ética
porque, não tendo de fazer outra coisa senão corresponder á regularidade da
natureza, a técnica podia estabilizar as regras do fazer num saber que,
oportunamente codificado, era possível transmitir como ciência (epistéme). Isso
não era possível para o agir, cujas regras, para serem eficazes, deviam adaptar-
se á mutabilidade das circunstancias, cuja imprevisibilidade, em vista do tempo,
do espaço, da sorte, da natureza dos agentes, exigia escolhas e decisões que
comportavam, ou uma readaptação das regras em uso, ou a invenção de novas
regras, que então resultavam difíceis de codificar e, portanto de transmitir.
(GALIMBERTI, 2006, p. 520)

Não era possível a ética adequar as leis da natureza aos aspectos contingentes e circunstanciais
dos homens. Não era possível fazer uma abordagem mecanicista dos atos humanos como fora
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possível fazer por vias técnicas. Não há uma lei geral que possa corresponder aos casos
particulares como feito na natureza. Além disso, a técnica é intimamente estruturada pelo cálculo,
pela matematização das coisas. Técnica e matemática têm ambas uma intima relação, senão, faces
de uma mesma “moeda”. Neste sentido, este aspecto da técnica que é a matemática também
explica o porquê da técnica ter ultrapassado a ética. O próprio Aristóteles em sua ética a Nicômaco
já sublinhava esta relação de distanciamento entre técnica como matematização do mundo e ética
como atos práticos contingentes, chamando a primeira de operações matemáticas de cálculo e a
segunda de operações matemáticas práticas, como nos sublinha o autor:
[...] pode-se facilmente extrair elementos suficientes para afirmar que Aristóteles
admitia uma profunda estranheza, se não até mesmo um contraste, entre as
operações matemáticas de cálculo e as práticas. Os mundos da matemática e da
ética parecem estar nos antípodas: uma é cientifica, puramente racional,
necessária, universal, verdadeira, rigorosíssima, desvinculada da natureza do
devir e da vida vivida – e é uma “coisa de jovens”; a outra não é demonstrativa,
relaciona-se com as paixões, é contingente e aproximativa, na melhor das
hipóteses tem valor em termos gerais e se mostra correta, mas apóia-se sempre
em casos particulares e na experiência de vida – e por isso é uma “coisa de
homens maduros”. ( CATTANEI, 2008, p. 22-23)

A abordagem grega no que diz respeito aos atos produzidos pela ética era diferente dos
objetos produzidos pela técnica, pois estes primeiros não poderiam, não se enquadravam dentro
daquilo que os gregos chamaram de epistéme ou ciência, pois nesta perspectiva, os atos não podem
ser vistos ou classificados como falsos ou verdadeiros, que conforme as habilidades do fazer
técnico se convertem em eficazes ou ineficazes, mas pelo contrário, em vez de serem analisados
a partir da epistéme, são analisados a partir de uma leitura da phrónesis que se traduz por
sabedoria, onde os atos se enquadram dentro de uma perspectiva de bem ou de mal.
No contexto das ações não há estabilidade. Nenhuma regra que se diga estável ou mesmo fixa,
mas pelo contrário, cabe ao agente dar importância aquilo que é apropriado. Aqui, não estamos
dizendo que a ética não tem consistência como discurso válido diante da realidade. O que estamos
tentando dizer é que os atos humanos não podem ser lidos a partir de leis gerais, mecânicas,
reproduzidas na physis, como outrora, tentaram fazer as ciências naturais, mas que por serem
inconstantes, são frutos de constantes reflexões éticas.
Como já mencionado, tal contexto em que a técnica dominará de fato a ética, é o mundo
moderno, que traz consigo a ciência e a técnica que serão faces de uma mesma cosmovisão. Este
cenário muda completamente a antiga visão cosmológica, pois agora a natureza é vista como um
centro laboratorial em que o homem experimenta seus objetivos. Agora, “saber é poder”. Este
lema de Bacon nos mostra que agora, o agir intelectual ou teoria não dita mais as coordenadas dos
fins e a técnica não é mais um meio para tal, mas um fim em si mesma. Um fim sem fim. Tal
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afirmação soa aos nossos ouvidos de forma paradoxal. Não há uma preocupação com os fins a
serem seguidos, mas somente com as intervenções sobre o mundo, sobre a natureza.

Considerações Finais
Em sua obra “O princípio Responsabilidade” Hans Jonas faz uma importante análise acerca da
sociedade mundial e, conclui que esta encontra-se dominada pela técnica, por isso, a denomina de
“civilização tecnocêntrica”.
Sua análise parte de um cenário pré-tecnológico, período antigo, em que a responsabilidade
para com a natureza não era necessária, a um cenário agora tecnológico, com suas várias nuances
ou fases, enfocando a contribuição dos pressupostos bíblicos, a partir de uma leitura dos modernos,
da ciência moderna e seus idealizadores como Bacon e Descartes e, concretizando-se na
contemporaneidade, que agora anseia pela responsabilidade de forma ampla e urgente.
Para Jonas a técnica chegou a um estágio tão avançado que conseguiu neutralizar as reflexões
éticas antigas, tradicionais, no seu dizer. As éticas tradicionais e seus pressupostos não conseguem
dar conta do novo paradigma que está posto à civilização – a técnica. Neste sentido, o autor
anuncia que somente uma outra ética, com novos pressupostos que vislumbrem, contemplem
novos atores afetados pela hiperespecialização técnica poderá reverter os efeitos catastróficos
causados.
Ele traz de volta em sua reflexão a dimensão do cuidado à vivência humana, da prudência, da
precaução, a percepção do alter, do outro em sua forma mais profunda e real que nos faz visualizar
novamente aquela relação existente de outrora em que homem e natureza caminhavam de forma
harmoniosa e respeitosa. Busca dialogar e modificar o agir humano, ou melhor, controlar o estágio
de poder hiperespecializado em que a técnica chegou. Técnica esta que transformou a civilização
em uma civilização intimamente tecnocêntrica, onde as relações entre os próprios homens
modificaram-se em proporções nunca antes imaginadas, ampliando-se para a natureza e, por
conseguinte, ameaçando até mesmo as gerações futuras.
Seu pensamento não direciona o olhar apenas para nossos contemporâneos, mas é um olhar de
tamanha radicalidade que se projeta aqueles que virão depois de nós, para que assim possamos
propiciar seu relacionamento com o ambiente propriamente humano e extra-humano, semelhante
ao que tivemos contato.
A partir da reflexão Jonasiana, podemos concluir que nem todo o conhecimento traz benefícios
para a humanidade e seu habitat. Precisamos acordar diante do perigo real acerca da perda de
controle sobre seus efeitos. Fatalmente, estamos caminhando para um momento em que a história
aponta em direção a necessidade de “proteger o homem de si mesmo e proteger do homem a
natureza e a sua própria natureza humana”
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REFERÊNCIAS

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tradicionais (Antropocêntricas). Revista eclesiástica brasileira (REB), Petrópolis. V. 68, FASC.
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2006.

HABERMAS, Jurgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes,


2000. (Coleção Tópicos).

JONAS, Hans. O principio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização


tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC – Rio, 2006.

JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Hans Jonas: O principio responsabilidade, ensaio de uma ética para
a civilização tecnológica. Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea - (Org.)
OLIVEIRA, Manfredo A. de. Petrópolis - RJ: Vozes, p. 193-206, 2006.

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(col. – atualidade em destaque), 1996.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar. Vol. 1. 5 edição. Vozes: Petrópolis – RJ,
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MOSER, Antonio. Biotecnologia e Bioética: para onde vamos? Petrópolis – RJ: Vozes, 2004.

MANCINI, R.; AIMONE F.; et. al. Èticas da Mundialidade: O nascimento de uma consciência
planetária. São Paulo: Paulinas – (col. – ética e sociedade), 2000.

NETTO, Matheus Papaléo. Longevidade: desafio no terceiro milênio. O MUNDO DA SAÚDE


- São Paulo, ano 29 v. 29 n. 4 out./dez. 2005.
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OLIVEIRA, Joelson; BORGES, Wilton. Ética de Gaia: ensaios de ética socioambiental. São
Paulo: Paulus – ( col. Ethos), 2008.

OLIVEIRA, Manfredo Araujo de. Diálogos entre Razão e Fé. São Paulo: Paulinas, 2000 –
(coleção: pensamento filosófico).

PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Fundamentos da Bioética. São


Paulo: Paulus – (col. – nova práxis cristã), 2006.

___________. Bioética e longevidade humana. São Paulo: Centro Universitário São Camilo:
Loyola, 2006.

SANTIAGO, Homero. A morte é o ponto de partida. Discutindo Filosofia, São Paulo – SP, Ano
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SIEBENEICHLER, Flávio Beno. A filosofia perante os desafios da ética num mundo globalizado:
ética da preservação versus ética do discurso. ETHICA – Cadernos Acadêmicos. Rio de Janeiro,
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SGANZERLA, Anor; OLIVEIRA, Joelson Roberto de. Jonas: para uma ética da Responsabilidade
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HISTÓRIA, POLÍTICA E MORAL EM KANT

HISTORY, POLITICS AND MORALS IN KANT

Bruno Bogéa – Graduando em Filosofia UFMA, vinculado ao GEPI/KANT/UFMA/CNPQ


Zilmara de Jesus Viana de Carvalho
Orientadora – Professora do DEFIL e do PGcult UFMA

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: O presente trabalho tem por intuito explicitar a perspectiva da historia humana a luz da
filosofia da historia Kantiana, e, outrossim, observar como ocorre seu direcionamento para o
progresso, haja vista que - uma vez se aperfeiçoando as disposições naturais para o uso da razão,
que, por sua vez, estão em germe em tal faculdade – há de se conceber tal melhoramento humano,
uma vez que o homem estaria extraindo de si as potencialidades que são as suas, isto é, libertando-
se do estado de rudeza. Destarte, consta-se que somente em uma sociedade civil, por conseguinte,
uma sociedade onde as leis jurídicas garantiriam a coexistência das liberdades, que poder-se-ia
pensar em uma perspectiva de progresso social, pois somente em tais condições a “sociável
insociabilidade” poderia elevar os homens acima da animalidade.
Palavras - chave: História. Política. Progresso. Moral. Kant.

Abstract: The present work aims to explain the perspective of human history in the light of the
philosophy of Kantian history, and, moreover, to observe how it is directed towards progress,
given that - once the natural dispositions for the use of reason are perfected, which, in turn, are
germ in such a faculty - such human improvement must be conceived, since man would be
extracting from himself the potentialities that are his own, that is, freeing himself from the state
of rudeness. Thus, it appears that only in a civil society, therefore, a society where legal laws
would guarantee the coexistence of freedoms, that one could think of a perspective of social
progress, because only in such conditions the “sociable insociability” Could elevate men above
animality.
keywords: History. Politics. Progress. Moral. Kant.

É indubitável, que o progresso da espécie humana é uma das questões principais da


filosofia do pensador alemão Immanuel Kant, haja vista que é somente em tal sociedade que se
pode constatar uma perspectiva de progresso humano; fora de tal estado, portanto, em um estado
de natureza – onde á um exercício da liberdade de forma ilimitada, não tendo nenhuma instituição
jurídica-política que possa servir de anteparo à este, isto é, leis que possa garantir a liberdade
comum a todos – não infere-se tal possibilidade de progresso, dado que a liberdade é Barbara.
Nesse sentido, é necessário que homem desenvolva suas disposições naturais para o uso da razão,
portanto, elevando-se acima da animalidade, destarte, no estado de rudeza não se tem instâncias
que possa promover o desenvolvimento de suas disposições. Assim, é somente em uma sociedade
com leis que se pode assegurar o aperfeiçoamento humano, pois, embora a animalidade permaneça
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– uma vez que essa é um traço natural no homem – esta pode ser mediada pela educação. Ora, se
à animalidade é um traço natural no homem e mesmo vivendo em sociedade ainda se terá conflito,
disso se inferi, que já no estado de natureza existe sociabilidade, entretanto, esta é limitada, e,
mediante o exercício da liberdade de forma irrestrita, tal condição social não seria possível de
desenvolver-se. Cumpri ainda salientar, que o conflito se expressa de forma necessária, dado que
é produtivo, pois é mediante esse que pode-se tirar o homem da condição de tranqüilidade e
preguiça, nessa perspectiva, as leis jurídicas, segundo o filosofo, teriam o propósito de administrar
a perpetuação dos conflitos em sociedade, por conseguinte, ter-se-á um aperfeiçoamento humano.
Dessa forma, a sociável insociabilidade do homem, isto é, à inclinação do homem para
está em sociedade, entretanto, à disposição para isolar-se quando não tem o seu “amado-eu”
satisfeito ao seu gosto, é o que promoverá a criação da arte e da ciência, as relações sociais e
morais, bem como as instituições jurídicas, assim, surge à característica insocial, como diz Kant,
“de querer dispor de tudo ao seu bel prazer, e, por conseguinte, espera resistência de todos os
lados, tal como sabe por si mesmo que, de sua parte, sente inclinação para exercitar a resistência
contra os outros”, nesse sentido, é tal resistência social que despertará no homem o interesse, bem
como a força para querer ultrapassar à inclinação para preguiça. Do mesmo modo, movido pelo
domínio de posse, interesse e dominação, com o objetivo de alcançar uma posição similar ao outro,
que, nesse sentido, considera seu adversário. Assim, tem-se os primeiros passos imediatos de
rudeza, para à cultura; que segundo Kant “Consiste no valor social do homem”, nesse sentido,
pouco à pouco desenvolve-se os talentos que já estavam em germe na razão, assim, começa-se a
desdobrar uma forma no modo de pensar, que, com o tempo, converterá a rudeza disposição
natural em princípios práticos, por conseguinte, na moralidade.
Nesse sentido, é graças ao interesse, à disposição para mandar, à ânsia de posse, etc. Que
aos poucos o homem consegue ultrapassar o estado de natureza, pois sem tais características, as
disposições da humanidade permaneceriam em um doce sono de Juno. Assim, o homem quer
concórdia; mas à natureza sabe o que é bom para á sua espécie, e quer discórdia, conforme a
ideia de uma historia universal, (quarta proposição), portanto, o homem quer ficar acomodado,
tranqüilo, bem como no estado de rudeza, pois em tal circunstância não existe o trabalho e o
desempenho - condições que elevariam o homem a acima do estado de animalidade – mas apenas
repouso, condição, por sua vez, que emergiria o homem cada vez mais à brutalidade, assim, como
a natureza sabe o que é bom para a espécie quer que este mergulhe no trabalho e na contradição
para que possa vir livrar-se com discernimento desse estado de acomodação.
Sendo assim, todas as disposições naturais devem ser desenvolvidas de acordo com um
fim, pois, esta, segundo o filósofo da Prússia, é a intenção da natureza, ou seja, que à humanidade
realize seu fim, desse modo, em uma sociedade civil, portanto, onde existe uma constituição civil
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justa que possa tornar à liberdade comum à todos. Uma vez realizando tal telos, poder-se-ia
realizar o plano oculto da natureza, portanto, de desenvolver o homem em função do seu
aperfeiçoamento humano. Cumpre reiterar, que o homem ainda é possuidor de inclinações, pois
este tem uma dimensão sensível, assim, é somente em uma sociedade civil que tais inclinações
produzem o melhor resultado, conforme, por analogia, diz Kant, “Como as arvores em um bosque,
justamente por cada uma procura tirar à outra o ar e o sol, se esforçam por buscá-los por cima de
si mesmas e assim conseguem um belo porte, ao passo que as que se encontram em liberdade e
entre si isoladas estendem caprichosamente os seus ramos crescem, deformadas, tortas e
retorcidas”, portanto, dentro de uma sociedade civil os homens não podem viver uns com os outros
mediante uma liberdade Barbara, mas conforme já pontuado, pela coexistência da liberdade
garantida pela constituição civilmente justa.
No mesmo sentido, cumprir-se-á explicitar a liberdade irrestrita que existe entre os estados,
portanto, o mesmo processo que encaminhou os homens à realizarem um plano da natureza, isto
é, á transitar do estado de natureza onde havia um exercício da liberdade de forma selvagem, para
um estado civil, por conseqüência, onde à coexistência das liberdades, realizar-se-á entre os
estados para que se torne possível uma comunidade civil mundial. Sendo assim, cada estado, para
atingir o objetivo de tranqüilidade e segurança entre as federações, é impulsionado por um
antagonismo inevitável, isto é, à tendência para atingir o cosmopolitismo, entretanto, de forma
conflituosa, pois com diz o filosofo de Kognisberg, “A natureza compele-os, primeiro, a tentativas
imperfeitas e, finalmente após muitas devastações, naufrágios, e até esgotamento interno geral das
suas forças, ao intento que a razão poderia ter inspirado, mesmo sem tantas e tão tristes
experiências, a saber: sair do estado sem leis dos selvagens e ingressar numa liga de povos” dessa
forma, seria como “A teoria atômica de Epicuro, portanto, das causas eficientes” isto é, mediante
vários choques acidentais, se chega sempre à uma forma, até, que, por caso, se consiga chegar a
uma forma que mantenha à sua forma. Assim, cada estado, por mais pequeno que seja, teria a
segurança, o direito, não do poder ou da decisão jurídica própria, mas da potencia unificada da
federação de nações.
Nesse sentido, as guerras que ocorrem entre os estados, nada mais são do que uma forma
de atingir o aperfeiçoamento das mesmas, por conseguinte, outros meios de atingir-se novas forma
de relações entre as nações, que, cabe salientar, não é a intenção dos homens, mas a realização do
propósito da natureza, pois a natureza persegue seu curso regular, a saber, o de conduzir
gradualmente a nossa espécie, desde o estado inferior, por conseguinte, o de rudeza, até o Maximo
de humanidade. Nessa perspectiva, uma vez que os estados tentem ultrapassar à sua liberdade
Barbara já fundada, isto é, por meio de armamentos contra os outros, e, por conseqüência, em
grandes devastações que a guerra configura, grandes males podem advir constrangendo à espécie
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à encontrar resistência, mediante outros estados, um estado, que seja saudável em si, fruto da
liberdade, portanto, não totalitário. Nesse sentido, enquanto os estado preocupam-se apenas com
uma visão ofuscada de expansão de seus territórios de forma violenta e danosa, ao invés de
esforçar-se para formar os seus cidadãos, e, estes, por sua vez, irem desenvolvendo um modo de
pensar, não configurar-se-ia o aperfeiçoamento humano, o estado deve aos poucos, através da arte
e da ciência, moldando à espécie humana, assim, constatar-se-ia um cosmopolitismo, portanto,
uma sociedade civil mundial. Do mesmo modo, algumas interpretações pode nos conduzir à inferir
que tal proposta Kantiana se configura como uma vã quimera, no entanto, como o filosofo mesmo
observa, isso é apenas um ideal à ser perseguido, tal visão seria uma teleologia prospectiva
empreendida pelo filosofo da Prússia.
Nesse sentido, à historia da espécie humana é pensada segundo Kant a partir de um ideia
racional, é imediato inferir, que tal proposta poderia se assemelhar a um romance ficcional, no
entanto, tal ideia poderia, sistematicamente, nos servir de fio condutor, se tomarmos em conjunto,
as pluralidades de ações humanas, portanto, sem um planto, assim, constatar-se-á um fio condutor
racional que perpassou as eras mediante o aperfeiçoamento intelectual, por conseqüência,
humano, a primeira constituição civil republicana em Roma, que absorveu a postura políticas dos
gregos aperfeiçoando-as, que, por sua vez, influenciaram os bárbaros, os mesmos que destruiriam
o estado de Roma, assim, todo o conhecimento que a posteridade desenvolveu, teve seu inicio, e
fora legado pelos esclarecidos para o futuro, mesmo com certas deficiências que ainda
permanecem enquanto germe em tal legado, poder-se-á aperfeiçoar pelo nome de revoluções.
Porém, Kant negará tal historia empírica em detrimento de uma historia a priori, portanto, uma
historia que tem como orientação a razão, por conseguinte, uma reflexão filosófica.
Nesse sentido, o filosofo observa que, mediante uma historia empírica, muitos documentos
se perderam, e outros foram reestruturados de acordo com posições que glorificavam um individuo
ou um grupo, sendo assim, diz Kant, “Juntamente com à ânsia de gloria dos chefes de estado e
dos seu servidores, para os encaminhar em direção ao único meio que lhes pode assegurar
recordação gloriosa em um tempo futuro, pode proporcionar um pequeno motivo para intentar
semelhante história filosófica”.
Sendo assim, uma vez entendendo à historia não em função do progresso da espécie, mas
uma historia do primeiro desenvolvimento da liberdade a partir da disposições originarias.
Portanto, não se trata, de empreender uma historia por conjecturas sobre os feitos humanos, mas
um primeiro começo, isto é, que não era nem pior e nem melhor do que nos encontramos,
conforme diz Kant, “Uma pressuposição que é conforme à analogia com a natureza não traz
consigo nenhum risco”. Nessa perspectiva, em começo conjectural da historia humana, opúsculo
de 1786, o filosofo da Prússia propõem um teleologia retrospectiva, desse modo, o pensador se
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submete à uma viagem, que, antes de ser, como uma andorinha em época de verão, é antes, um
retorno ao inicio, para tanto, o filosofo usa um documento histórico autêntico como mapa, e a
razão como fio condutor, uma vez feito isso, Kant propõe aos leitores um exercício concomitante,
a saber, abrir o livro sagrado e deixa ser guiado, passo -a – passo, investigando se o mesmo
caminho que a filosofia realiza mediante conceito à história constata. Cumpre observar que o que
Kant se propõem à fazer não é uma teologia da historia, mas uma analise filosófica da historia,
desse modo, o pensador abstrai todo o conteúdo místico de seu projeto.
Desse modo, para não devanear sobre certa conjectura, faz-se necessário tomar um
começo, aquilo que a razão humana já mais pode derivar de uma causalidade natural. Sendo assim,
admitir-se-á existência de um casal, de idade adulta, para que este reproduza sua espécie; nesse
sentido, infere-se que já no estado inicial da historia da liberdade mediante o desenvolvimento das
disposições originais, já existe, ainda que limitada, uma sociabilidade. Aos poucos forma-se uma
união familiar, o que, segundo o filósofo, fora o maior fim destinado à humanidade, em seqüência,
domina-se as ferramentas para caçar, pescar e plantar, assim, mediante á técnica e o trabalho as
disposições que já estão em germe na razão que proporciona - à habilidade de servir das suas
forças o eleva à cima da sua natureza rude - vão desdobrando-se, começa-se a desenvolver uma
forma de pensar, posteriormente à fala, começar, andar, condições essas que este teve que adquiri
por si só, pois à experiência corrobora tal condição; surge a necessidade de proteger o seu plantio
contra ameaças de predadores, assim, cria-se um Etos, ou seja, a sua morada fixa, por
conseqüência, à repetição do mesmo processo pelos seus congênitos, tem-se o surgimento das
primeiras vilas. Assim, com á ampliação das vilas para as cidades, criou-se leis para que pudessem
assegurar uma relação harmônica em sociedade.
Do mesmo modo, na sua condição primaria poder-se-ia comparar o homem á um animal
instintivo, pois este tem inclinações para o sexo bem como para alimentação, no entanto, logo
aparece a razão, manifestando-se como reguladora de tais aspectos instintivos, desse modo, o
primeiro homem que – vivendo tranquilamente em um jardim, ao se perceber fisicamente, usará
à folha de figo, tal circunstância expressa a primeira manifestação da razão, por conseguinte, os
primeiro passos para determinar as inclinações, ou seja, afastando-a de qualquer objeto dos
sentidos.
Nessa perspectiva, o presente esboço explicita a passagem do homem do seu estado de
rudeza, portanto, de natureza, para o estado de humanidade, estado este, onde há o exercício da
liberdade, ou seja, como diz Kant: “Se o homem ganhou ou perdeu com essa mudança isso deixa
de ser uma questão quando consideramos à destinação sua espécie que consiste em progredir
para á perfeição”. Portanto, a passagem da determinação da natureza para o estado de liberdade,
ou seja, da muleta do instinto para à condução racional, tal condição proporcionou o
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encaminhamento para o progresso da espécie, por mais que as primeiras tentativas para se alcançar
tal perfeição tenham sido vãs, isto é, mal sucedidas, no entanto, esse é um progresso na espécie
do pior para o melhor, para os indivíduos ao contrario, não é exatamente o mesmo. Assim, antes
da razão iniciar o seu reinado, por assim dizer, os homens mergulhavam na satisfação do bel-
prazer, por conseqüência, os males surgiam. Sendo assim, em uma sociedade civil, tendo um poder
político que possa apelar, bem como à educação para podar à animalidade, começar-se a tornar
possível o progresso da espécie, portanto, o aperfeiçoamento humano se positiva.

Referências
KANT, Immanuel. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita.
Ed. Bilíngue Alemão/Português. Tradução de Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
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IDENTIDADE E MEMÓRIA EM O LARGO

IDENTITY AND MEMORY IN THE WIDE

Lussandra Barbosa de Carvalho270


Priscila de Oliveira Silva271

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a brusca chegada da modernidade e suas
implicações a uma vila portuguesa no conto O Largo do escritor português Manuel da Fonseca.
Para tanto, serão analisados os conceitos de memória e identidade e como estas se relacionam
entre si, o que nos fornecerá uma "explicação" do que ocorre entre os personagens e nas relações
sociais no conto, recorrendo a aportes teóricos de pensadores da atualidade como Tomaz Tadeu e
Judith Butler.
Palavras-chave: Memória. Identidade. Relações socais.

Abstract: This article aims to analyze the sudden arrival of modernity and its implications for a
Portuguese village in the short story O Largo by Portuguese writer Manuel da Fonseca. To this
end, the concepts of memory and identity and how they relate to each other will be analyzed,
which will provide us with an "explanation" of what happens between the characters and in the
social relationships in the story, using theoretical contributions from current thinkers such as
Tomaz Tadeu and Judith Butler.
Keywords: Memory. Identity. Social relations.

INTRODUÇÃO
(...) Veio o comboio e mudou a Vila. As lojas encheram-se de utensilios que,
antes, apenas se vendiam nos ferreiros e nos carpinteiros. O comércio
desenvolveu-se, construiu-se numa fábrica. As oficinas faliram, os mestres-
ferreiros desceram a operários, os alvanéis passaram a chamar-se de pedreiros e
também se transformaram em operário. Apareceu a Gaurda, substituiu os
pachorrentos cabos de paz, e prendeu os valentes. As mulheres cortaram os
cabelos, pintaram a boca e saem sozinhas. O senhores tiram agora os chapéus uns
dos outros, fazem grandes vénias e apertam-se as mãos a toda hora. Vão à missa
com as mulheres, passam as tardes no Clube, e já não descem ao Largo. Apenas
os bêbados e os malteses se demoram por lá nas tardes de domingo(...)

O trecho acima de O Largo de Manuel da Fonseca já nos coloca em situação de tensão


e conflito. Havia um "antes" do comboio que se contrapõe ao "depois" do comboio. O narrador
aponta que a chegada do comboio foi o marco crucial para que "tudo" mudasse. Se, após a chegada
do comboio, os alvanéis e os mestre-ferreiros foram chamados de pedreiros e transformados em
operários, o que eram antes? Se as mulheres só passaram a cortar os cabelos, a pintar as unhas e

270
Mestra em Cultura e Sociedade PGCult/UFMA. Licenciada em Letras, professora de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias-SESI/FIEMA.
271
Mestra em Cultura e Sociedade PGCult/UFMA. Licenciada em Filosofia, professora de Filosofia da UFMA.
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saírem sozinhas após a chegada do comboio, como se comportavam antes? Não saíam sozinhas?
Não pintavam as unhas e nem cortavam os cabelos? Qual era a base identitária para tais ações? E
o que ocorreu para que mudasse?
Pensando nessas perguntas e tentando respondê-las, é que o artigo se desdobrará nas
discussões sobre identidade e memória. Que todos nós temos memória não duvidamos. Mas, como
ocorre o processamento de vestígios passados, como armazenar tantos acontecimentos? Mais
ainda, qual a influência da memória à identidade? A identidade é fixa ou mutável?
Para tentar responder tais questões, recorreremos a autores como Michal Pollak,
Kathryn Woodward, Tomaz Tadeu da Silva e Judith Butler.

MEMÓRIA E IDENTIDADE

"Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje, é apenas um cruzamento de


estradas (...)". (FONSECA, 1982, p.23) Assim se inicia em tom melancólico o conto O Largo de
Manuel da Fonseca. Aliás, a melancolia, a nostalgia e o apego desesperado ao passado permeia
todo o conto. O narrador-personagem descreve e analisa as relações sociais das personagens antes
da vida se mudar para o outro lado da Vila, bem como a metamorfose dessas mesmas relações
quando o "comboio" chega ao Largo:

O comboio matou o Largo. Sob o rodado de ferro morreram homens que eu


supunha eterno. O senhor Palma Branco, alto, seco, rodeado de respeito. Os três
irmãos Motenegro, espadaúdos e graves. Badina, fraco e repontão. O Estroina,
bêbado, trocando as pernas, de navalha em punho. O Má Raça, rangendo os
dentes, sempre enraivecido contra tudo e todos. O lavrador de Alba Grande,
plantado ao meio do Largo com a sua serena valentia. Mestre Sobral. Ui Cotovio,
rufião, de caracol sobre a testa. O Acácio, o bebedola do Acácio, tirando retratos,
curvado debaixo do grande pano preto. E, lá ao cimo da rua, esgalgado, um
homem que eu nunca soube quem era e que aparecia subitamente à esquina,
olhando cheio de espanto para o Largo. (Ibid., p. 23-24)

Nesse primeiro momento do conto, o narrador-personagem nos possibilita entender


por qual motivo o Largo era o centro do mundo. Antes do "comboio" chegar, as faias estavam
presente em todos os grandes acontecimentos. Os palhaços, habilidosos e dançantes, faziam
peripécias às sombras das faias. Também à sombra das faias, os valentes batiam-se. O tronco de
uma delas foi testemunha da morte de António Valmorim, o qual os homens tinham medo e as
mulheres, amores. Assim se apresentava o centro da Vila.
As notícias chegavam através dos diligentes viajantes que paravam no Largo, e era
por meio deste que havia comunicação entre os moradores e o mundo. Mesmo quando faltava
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notícias,

sempre se inventava algo que se assemelhava com a verdade, e ao passo que o tempo passava,
acabava se tornando uma verdade indestrutível. Ora, veio do Largo, e este era como que um
atestado de veracidade. E assim o Largo era o centro do mundo.
Quem dominasse o Largo, dominava a Vila inteira, e os mais espertos e inteligentes
logo tratavam de dominá-lo. No Largo, os bêbados riam, cambaleavam e caiam de cara no chão
sem se importar com plateia. Lá, no "centro do mundo", "os homens se sentiam grandes em tudo
que a vida dava, quer fosse a valentia, ou a inteligência, ou a tristeza." (Ibid., p.24) Também lá, os
senhores da Vila falavam de igual para igual com os mestres alvaneis, os mestres-ferreiros.
Se antes as notícias chegavam vagarosamente através de viajantes, agora, chegam a
toda hora de qualquer lugar do mundo, bastava só entrar nos diversos cafés e vendas que se
instalaram na Vila. As telefonias informavam tudo o que acontecia no mundo, desde as
profundezas do oceano até o céu. Os moradores imediatamente sabiam qualquer coisa que
acontecesse em qualquer lugar, e logo formavam um julgamento sobre. Nada no mundo já é
desconhecido, todos sabem sobre tudo e se interessam sobre tudo. Mas a Vila dividiu-se.
Cada clientela vai ao café que corresponde às suas condições de vida. O lugar onde
todos iam e sabiam só o que lhes interessavam, estava morto: o Largo. Os grupos de homens
dividiam-se de acordo com as necessidades e os interesses. Discutem o que dizem as telefonias e
os jornais e sentem cada vez mais que algo está acontecendo.
As crianças também se separaram: só brincam entre si somente se tiverem a mesma
condição, e esperam à porta nos cafés que os pais ou irmãos mais velhos frequentam. O Largo,
agora, pertencia a todo mundo. Lá vão as crianças, as mulheres e os homens, ao passo que "No
outro Largo, só os bêbados e os madraços dos malteses - e aqueles que não querem acreditar que
tudo mudou. O certo é que ninguém já liga importância a esta gente e a este Largo." (Ibid., p. 27)
O relato melancólico do narrador-personagem nos evoca a um passado glorioso que
não mais existe, mas que está cravado na memória não só dele, mas de outros personagens.
Logo no primeiro parágrafo de Memória e Identidade, Michael Pollak (1992) já define
qual problema tratará, que é o problema da relação entre memória e identidade social no âmbito
da história oral, o qual iremos apenas investigar e analisar o que nos interessa para o conto O
Largo.
Pollack afirma que, a priori, a memória parece se apresentar como um fenômeno
individual e íntimo. Porém, ainda que concordando com Maurice Halbwachs (2006) em seu livro
A Memória Coletiva, no qual afirma que a memória é fenômeno coletivo e social, e por isso, é
marcada por transformações e mudanças frequentemente, Pollak ressalta que há pontos invariantes
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na memória.
Através de entrevistas pela história oral, é possível perceber que as pessoas ao
contarem histórias voltam frequentemente aos mesmos acontecimentos, como se certos aspectos
da memória estivessem tão "calcificados" que fossem impassível de mudanças. Por outro lado,
muitos acontecimentos e fatos mudam de acordo com os interlocutores. Dessa forma, pergunta
Pollak, quais elementos que constituem tanto a memória individual quanto a coletiva? Ele inclui
três elementos:

Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo


lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de 'vividos por tabela', ou seja,
acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente
pertencer. (Ibid., p. 201)

Esse primeiro critério da memória diz respeito aos acontecimentos que nem sempre
são vividos pela pessoa, mas que está tão forte em seu imaginário que passa a servir de referência
em toda sua vida. Mais ainda, nos acontecimentos vividos por tabela, a pessoa chega a ter um
nível muito alto de identificação, sendo quase não possível de saber se os viveu ou não. Pollak
afirma ainda que é possível através da "socialização política, ou da socialização histórica, ocorra
um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos
falar numa memória quase herdada." (Id.)
O segundo elemento constituinte da memória são pessoas, personagens. Novamente,
afirma Pollak, aqui também podemos falar de personagens que realmente tiveram participação em
nossa vida, ou apenas viveram por tabela, mas que impregnaram tanto nossa memória que
passaram a ser pessoas quase que conhecidas. Há ainda personagens que não viveram
necessariamente no mesmo espaço e lugar da pessoa, como exemplifica Pollack "no caso da
França, não é preciso ter vivido na época do general De Gaulle para senti-lo como um
contemporâneo." (1992, p. 202)
Finalmente, além dos acontecimentos e personagens, a memória também é constituída
por lugares. Na memória, encontramos lugares com forte ligação tanto a uma lembrança pessoal
quanto a uma que não segue um tempo cronológico. Pode ser uma lembrança ligada a um lugar
de férias da infância, sem necessariamente ter uma ligação com a data específica em que ocorreu.
E há aqui, mais uma vez, os lugares vividos por tabelas, tanto na memória coletiva quanto a
individual, pois conforme Pollak, "Locais muito longínquos, fora do espaço-tempo da vida de uma
pessoa, podem constituir lugar importante para a memória do grupo, e por conseguinte da própria
pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento a esse grupo." (1992, p. 202)
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Pollak nos relata as impressões de várias entrevistas que fez com pessoas que viveram na época
da guerra da Normandia, invadida por tropas alemãs em 1940, e que deviam ter nesse tempo entre
15, 16, 17 anos e tinham lembranças de soldados alemães com capacetes pontudos (casques à
pointe). Encontramos aqui, segundo Pollak, um caso de transferência por herança, pois os
"capacetes pontudos", apelido dado aos soldados alemães, são da época da Primeira Guerra
Mundial, utilizados até 1916, 1917. Certamente, essas pessoas projetaram na Segunda Guerra
Mundial a memória herdada de pais que viveram no tempo em que a Alemanha ocupou a Alsácia
e Lorena na Primeira Guerra. (POLLAK, 1992, p. 202). O mesmo ocorre com João Gadunha em
O Largo, que se apega desesperadamente à uma memória herdada.
Nas grandes faias que ainda rodeiam o Largo, João Gadunha, o bêbado, ainda insiste
em continuar a "tradição" de frequentar o Largo como o centro do mundo, mas todos zombam
dele e se afastam. Ele,

fala de Lisboa, onde nunca foi. Tudo nele, os gestos e o modo solene de falar, é
uma imitação mal pronta dos homens que ouviu quando novo.
- Grande cidade, Lisboa! - diz ele. - Aquilo é gente e mais gente, ruas cheias de
pessoal, como numa feira!
Gadunha supõe que em Lisboa ainda há largos e homens como ele conheceu,
ali, naquele Largo marginado pelas velhas faias. (FONSECA, 1982, p.27)

Ainda animado, João Gadunha continua:

- Querem vocês saber? Uma tarde, estava eu no Largo do Rossio... (...) Estava eu
no Largo do Rossio a ver o movimento. Vá de passar o pessoal para baixo,
famílias para cima, um mundo de gente, e eu a ver. Nisto, dou com um tipo a
olhar-me de esguelha. Cá está um larápio, pensei eu. Ora se era!... Veio-se
chegando, assim como quem não quer a coisa, e meteu-me a mão por baixo da
jaqueta. Mas eu já estava à espera!... Salto para o lado e, zás, atiro-lhe uma
punhada nos queixos: o tipo foi de gangão, bateu com a cabeça num eucalipto e
caiu sem sentidos! (Ibid., p. 28)

"Um eucalipto?", lhe perguntaram. E esse pequeno detalhe fez com que todos rissem
dele. Se fosse na época antes do comboio chegar, todos ouviriam em silêncio. Agora, entretanto,
todos sabem de tudo. Mesmo após a zombaria, João Gadunha insiste: "Vocês já viram um largo
sem eucaliptos, ou faias, ou outra árvore qualquer?" (Id.) Com a história sem sucesso, João
Gadunha fica só e triste:

Os olhos arrasam-se-lhe de água, a bebedeira dá-lhe para chorar. Agarra-se às


faias, abraça-as, e fala-lhes carinhosamente. Aperta-as contra o peito, como se
tentasse abarcar o passado. E suas lágrimas molham o tronco carunchoso das
faias. (Ibid., p. 28- 29)
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Além de projeções e transferências relacionadas a eventos, lugares e personagens, há


o problema da seletividade da memória. Em outras palavras, em função da experiência de vida da
pessoa, a memória ora assimila certos aspectos do passado, ora os separam como se fossem menos
importantes do que os primeiros, e Pollak apresenta mais um exemplo para esse aspecto da
memória. Durante as entrevistas com donas de casa da Normandia que passaram pela guerra, desde
a ocupação até à libertação, Pollak percebeu que elas possuiam com maior exatidão datas que
tinham relação com suas famílias, como datas de nascimento de filhos, primos, sobrinhos e
sobrinhas. Porém, essa exatidão perdia completamente força quando relacionada à vida pública e
política. Num outro pólo, Pollak supõe que se a entrevista ocorresse com personagens públicas,
era a vida familiar e particular que tomaria o lugar de imprecisão na memória, e as datas
relacionadas à política estaria em evidência. Eis, então, a primeira característica da memória, ela
"(..) é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado.". (Pollak, 1992, p. 203) Por isso,
a memória é flutuante e nos leva a mais uma característica: é organizada em função às
preocupações pessoais e políticas do momento. Nesse sentido, conforme Pollak,
a memória é um fenômeno construído. Quando falo em construção, em nível
individual, quero dizer que os modos de construção podem tanto ser conscientes
como inconscientes. O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra,
é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização. (1992, p.
204)

Se a memória é, em partes, herdada, Pollak afirma que é possível admitir a ligação


entre a memória e o sentimento de identidade. A noção de sentimento de identidade adotada por
Pollak consiste na imagem de si, para si e para os outros. (1992, p. 204) Ou seja, é

a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a
imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na
sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer
ser percebida pelos outros. ( POLLAK, 1992, p. 204)

Pollak afirma que na construção da identidade há três elementos: a unidade física, isto é, o
sentimento de possuir fronteiras físicas tanto no corpo quanto ao pertencimento de um grupo,
como em um coletivo; a continuidade dentro de um tempo físico, moral e psicológico; e
osentimento de coerência que consiste na unificação dos diferentes elementos constituintes do
sujeito. O rompimento desse sentimento de continuidade e unidade pode desencadear fenômenos
patológicos. Nesse sentido, é possível afirmar que a memória é um elemento constituinte do
sentimento de identidade na medida em que é fundamental para o sentimento de coerência e
continuidade do indivíduo ou grupo. (POLLAK, 1992, p. 2004) Entretanto, há um elemento que
escapa ao indivíduo: o Outro. Esse sentimento de continuidade e unidade é perdido no personagem
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de Ranito.
O Largo vai morrendo cada vez mais. Aos domingos é mais solitário, tendo como
companhia as faias silenciosas, já que todos ou estão no cinema, ou no campo, ou nos cafés. É em
dias assim que o velho Ranito sai às ruas amargurado. Antes era mestre-artífice e as pessoas o
respeitavam.
Agora, é tomado pela pobreza e desprestígio. Se enche de vinho e vai ao Largo
enfrentar os valentões que não mais existem. Dá golpes contra o ar, desafia homens que já
morreram, luta com fantasmas, até que finalmente se cansa do combate que ele mesmo forjou, e
tropeça "de tanta bebedeira e desilusão, não aceita que o Largo já morreu, (...) já não pode ver que
Largo é o mundo fora daquele círculo de faias ressequidas. Esse vasto mundo onde qualquer coisa,
terrível e desejada, está acontecendo. (FONSECA, 1992, p 30)
É nesse sentido que Pollak afirma:

Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação,


de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um
fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de
aceitabilidade, de credibilidade, e que se faz por meio de negociação direta com
outros. Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser
negociadas, e não são fenômenos que devem ser compreendidos como essências
de uma pessoa ou de um grupo. Se é possível o confronto entre a memória
individual e a memória dos outros, isto mostra que a memória e a identidade são
valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em
conflitos que opõem grupos políticos diversos. (POLLAK, 1992, p. 204-205)

É nesse sentido de disputa entre memórias, identidades e o Outro, que é preciso


aprofundar na análise da construção de identidade como algo não fixo e permeado de
instabilidades.
IDENTIDADE E OS SISTEMAS CLASSIFICATÓRIOS: UMA QUESTÃO DE PODER

Kathryn Woodward (1997) em Identidade e diferença: uma introdução teórica e


conceitual explica que uma das discussões centrais sobre a identidade é o confronto entre a
perspectiva essencialista e não-essencialista. O essencialismo pode se basear tanto na história
quanto na biologia. Na biologia, seguindo o exemplo que a própria autora coloca, a maternidade
é um exemplo de "verdade biológica" cuja intenção é definir fixamente uma identidade. Outro
exemplo de "verdade biológica" é a que tenta definir as identidades sexuais.
Em relação à perspectiva essencialista baseada na história, as identidades são
fundamentadas em histórias ou culturas passadas, como ocorre em movimentos étnicos,
nacionalistas ou religiosos. Há um apego à "verdade" da tradição de uma "realidade" passada que
estaria encoberta e que fosse necessário revelá-la. Tanto a perspectiva histórica quanto a biológica
tem em comum a concepção de que a identidade é um núcleo fixo.
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Ora, definir a identidade materna como uma única possibilidade, a heterossexual,


exclui automaticamente o não-ser heterossexual. Ou, um movimento nacionalista que exalte sua
identidade nacional, por exemplo, como ser brasileiro, também simultaneamente exclui todas as
outras nacionalidades. Ou seja, a identidade só existe e se afirma em referência ao Outro, à
diferença. De acordo com Woodwar, essas marcações de diferença ocorrem por meio de sistemas
simbólicos de representação e por exclusão social, isto é, por meio de classificações:
A identidade, pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da
diferença. Nas relações sociais, essas formas de diferença - a simbólica e a social
- são estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas classificatórios.
Um sistema classificatório aplica um princípio de diferença a uma população de
uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em
ao menos dois grupos opostos - nós/eles (...); eu/outro. (WOODWAR, 1997,
p.40)

É por meio de sistemas classificatórios que os significados são construídos e dão


ordem à vida social através de rituais e símbolos. É o que ocorre na religião, exemplificado por
Durkheim em A formas elementares da vida religiosa, quando o pão pode ser um simples alimento
comido em casa, ou quando é preparado especialmente para ser o próprio corpo de Cristo. O que
Durkheim quer nos dizer é que as coisas podendo ser polarizadas entre sagradas e profanas, só os
são porque são simbolizadas e representadas de tais maneiras, e não porque são essencialmente
assim.
De acordo com Woodwar (1997, p. 46), essa configuração sugere que a ordem social
é sustentada através de oposições binárias, como as divisões "locais" (insiders) e "forasteiros"
(outsiders). A garantia do controle social é assegurada graças à produção de sentido do status de
"forasteiro" em relação à ordem social vigente. Mais uma vez vemos aqui como a identidade
depende da diferença: o "forasteiro" existe em relação ao "ao habitante local" e vice-versa. Aquele
que está associado ao perigo e transgressão é excluído da sociedade convencional. Dessa forma,
a oposição binária também é uma questão de hierarquia, de poder.
Em termos dicotomizados há sempre um que é mais valorizado ou mais forte do que
o outro, ocasionando inevitavelmente um desequilíbrio de poder entre eles. Para exemplificar esse
necessário desequilíbrio de poder entre termos polarizados, Woodwar (Ibid., p. 50-51) recorre à
escritoria feminista Hélène Cixous que foca a desigualdade nas divisões de gênero:

Onde está ela?


Atividade/passiv
idade Sol/Lua
Cultura/Natureza
Dia/Noite
Pai/Mãe
Cabeça/coração
Inteligível/sensív
el
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Homem/Mulher

Nesse trecho de Cixous recortado por Woodwar, as mulheres estão associadas com a
natureza, com a emoção e com o coração, e não com a cultura, com a cabeça e com a racionalidade.
No Largo, é possível perceber a relação dicotômica entre mulheres/vida doméstica e homens/vida
pública.
No Largo, não havia distinção de classes: os donos do comércio, os camponeses, os
empregados da Câmara, os malteses, os misteriosos e arrogantes vagabundos se tratavam de igual
para igual. Lá, no Largo, também havia a melhor escola das crianças. Elas aprendiam as artes
observando os mestres artífices. Aprendiam ou a ser valentes, ou bêbados ou vagabundos. Tudo o
que aprendiam era vida, e o Largo estava cheio dela, dos valentões e das tragédias. E de
inteligência também. Já às mulheres, a instrução era outra. Percebemos aqui que poderia não haver
distinção de classe, mas é evidente que existe de gênero.
Às mulheres, pertencia a casa. Viviam para os homens e eram submissas a eles. Seus
afazeres consistia em pentear as tranças, fazer a comida e a cama. Sequer podiam sair sozinhas à
noite. Afinal, eram mulheres. Se queriam sair, precisavam sempre de um homem da família para
acompanhá-las. Quando visitavam as amigas, os homens deixavam-nas até o local pretendido e
esperavam em alguma loja perto enquanto aguardavam que saíssem para poder levá-las de volta
às suas casas. Até às missas iam sozinhas, porque os homens não entravam em lugar onde fossem
obrigados a tirar chapéu, já que eram homens que mandavam no Largo. Porém, depois que o
comboio chegou tudo mudou.
Ivan Domingues em O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação
das ciências humanas refaz toda a trajetória epistemológica do período clássico à modernidade.
Segundo o autor, desde do começo da filosofia, a base do saber estava assentada em duas ideias
distintas, porem complementares: o espírito de sistema e a metafísica.
O espírito de sistema, ideia de construir um sistema de conhecimento totalizante, na
qual as partes estão profundamente ligadas entre si quanto os corpos do universo formam um todo
ordenado. A metafisica, ideia de erguer um saber total da realidade em sua totalidade, de modo
que funde a si mesma e fazendo derivar as demais disciplinas particulares como pertencentes ao
todo. Existe, portanto, uma unidade que liga essas duas ideias que comporta uma ontologia de
princípios e lógica da identidade, de tal forma que todos os saberes, comportamentos, ideias,
devam estar subordinados a esse sistema. Essa ideia aparece também na crítica que Judith Butler
faz à metafísica da substância em Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade:

O que é a metafísica da substância, e como ela informa o pensamento sobre as


categorias de sexo? Em primeiro lugar, as concepções humanistas do sujeito
tendem a presumir uma pessoa substantiva, portadora de vários atributos
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essenciais e não essenciais. A posição feminista humanista compreenderia o


gênero como um atributo da pessoa, caracterizada essencialmente como uma
substância ou um “núcleo” de gênero preestabelecido, denominado pessoa,
denotar uma capacidade universal de razão, moral, deliberação moral ou
linguagem. (2003, p. 18)
Ao problematizar a categoria de ''mulheres'' como representativa política, Butler
afirma que a insistência numa "unidade" implica ainda mais numa norma excludente. Aliás, é
necessário abandonar um essencialismo, pois só assim será possível construir um espaço de
significados contestados, livre de forças coercitivas.
A problematização da identidade de gênero, segundo Butler, traz uma possibilidade
de subversão da linguagem e da norma heteronormativa ao considerar que o gênero é de uma
totalidade sempre adiada, cuja identidades são instituídas e abandonadas alternadamente, segundo
as condições emergentes da vivencia de cada pessoa. Gêneros inteligíveis, são aqueles
que de certo modo mantem relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, pratica
sexual e desejo, ou seja:

os espectros de descontinuidade e incoerência, eles próprios só concebíveis em


relação a normas existentes de continuidade e coerência, são constantemente
proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais
ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente
constituído e a “expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação do desejo
sexual por meio da prática sexual. (BUTLER, 2003, p. 38)

Não é uma simples relação de polaridades, entre heterossexuais/não heterossexuais,


mas a determinação a quem é dado o poder. Em A produção social da identidade e da diferença,
Tomaz Tadeu da Silva (2000) explora mais acerca da relação de poder na construção da
identidade:

Não se trata, entretanto, apenas do fato de que a definição da identidade e da


diferença seja objeto de disputa entre grupos sociais assimetricamente situados
relativamente ao poder. Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa
mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação
da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes
grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos
bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com
relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não
pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença
não são, nunca, inocentes. (SILVA, 2000, p. 81)

Dessa maneira, podemos afirmar que a diferenciação é marcada pelo poder. A


diferenciação, segundo Silva, "é o processo central pelo qual a identidade e a diferença são
produzidas." (Id.) Esse processo de diferenciação é traduzido de várias maneiras, como relações
de inclusão/exclusão (determinadas pessoas pertencem a tal grupo, outras não); de demarcação de
fronteiras (nós/eles); de classificação (bom/mau, puro/impuro, civilizado/primitivo,
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racional/irracional); e de normalização ( normais/anormais)


A divisão e a classificação do mundo social entre "nós" e "eles" não significa apenas
demarcar as fronteiras entre grupos e classes socais, mas de hierarquizar as identidades, pois
"Deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores
aos grupos assim classificados." (Ibid., p. 82) Na normalização, o processo de diferenciação é tão
sutil que a identidade sequer é pensada como uma identidade, mas como a identidade. As outras
identidades é que são consideradas "umas" identidades em relação à normal.
Mesmo que a norma tente imperar recusando, oprimindo e marginalizando outras
possibilidades de identidades e organizações sociais, é sempre possível desestabilizá-la e subvertê-
la, pois é permanentemente ameaçada pelo seu Outro. No Largo, por exemplo, houve uma
subversão e desestabilização nas identidades e relações sociais vigentes.
Os utensílios que antes apenas se vendiam nos ferreiros e nos carpinteiros, agora, as
lojas estavam cheios deles. Com o comércio desenvolvido e a construção de uma fábrica, as
oficinas foram à falência, os mestres-ferreiros viraram operários, e os alvanéis chamados de
pedreiros. Os mornos cabos de paz foram substituídos pela Guarda, que prendeu os valentões. As
mulheres também mudaram. Pintaram a boca e cortaram o cabelo, e saem sem homem algum para
acompanhá-las. Os homens vão com elas às missas, e tiram os chapéus uns dos outros. Passam as
tardes no Clube, e não mais no Largo. Aliás, no Largo só vão os bêbados e os malteses.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que a narração de O Largo começou como um lamento. O narrador-


personagem lamentava o fim de um passado que parecia ser eterno. O sentimento de identidade
nos traz a sensação de sermos intocáveis em nosso interior. Acontece que até a intimidade mais
profunda de nosso ser está vulnerável à ação do Outro. A respeito disso podemos fazer algumas
considerações.
Em primeiro lugar, vimos que a memória possui três critérios, que são acontecimentos,
personagens e lugares. Todos esses critérios podem ser vividos concretamente, ou por tabela
através de projeções e transferências. Dessa forma, é possível que um evento no qual nós não
tenhamos participado nos afete tão profundamente que o assumimos como se tivéssemos. É o caso
de Antônio Gaduno.
Antônio Gaduno, o bêbado, tinha uma memória herdada que o fez lembrar de lugares
que não foi, de sentir saudade de personagens que não conheceu, de lamentar acontecimentos que
não viveu. Isso ocorre, como sabemos, porque a memória, seja ela herdada ou não, afeta
diretamente o sentimento de identidade que temos de nós mesmos, dos outros e do mundo, pois é
ela que influencia no sentimento de coerência e continuidade.
Além disso, foi mostrado que a construção da identidade é inseparável da relação de
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poder que provoca. A afirmação da identidade necessariamente exclui outra, e essa exclusão,
como vimos, nunca é inocente, mas possui privilégios ao definir o que pode o não ter valor.
Ruanito sentiu e enlouqueceu devido a uma virada hierárquica, isto é, à perda de privilégios.
Antes do comboio chegar tinha status e poder, era mestre-artífice, importante e
respeitado. Sua identidade era poderosa em relação a outras. Porém, depois que o comboio chegou,
essa relação foi subvertida e passou a ser o termo mais fraco. Agora, era pobre e beberrão.
Provavelmente era só mais um operário.
Algo interessante que destacamos no Largo é que os personagens que enlouqueceram
e sofreram com as mudanças foram justamente homens, e não mulheres. Nos parece que a
reclamação de uma suposta perda ou crise de identidade ou o abandono de uma suposta tradição
ocorre mais com quem perde privilégios, isto é, o termo até então considerado mais forte, do que
com o termo mais fraco. Pelo menos nesse conto.
Enfim, discussões sobre como a memória e a identidade se constroem são inúmeras,
mas podemos considerar no final desse trabalho que seus elementos e propriedades não são fixas
e estão sempre em negociação com o Outro que se apresenta e nos interpela.

REFERÊNCIAS

• BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de


Renato Aguiar. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

• DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das


ciências humanas. São Paulo: Edições Loyola, 1999

• FONSECA, Manuel da. O Largo in O Fogo e as Cinzas, obra completa. Lisboa: Editorial
Caminho, 1982.

• POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, n.
10, 1992.

• SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.), HALL, Stuart., WOODWAR, Kathryn. Petrópolis, RJ: Vozes,
2000.
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LEITORES E PRÓLOGOS, “PROVOCAÇÕES”: INDUSTRIAS Y ANDANZAS DE


ALFANHUÍ, DE RAFAEL SANCHEZ FERLOSIO – DOIS PARATEXTOS

READERS AND PROLOCKS, “PROVOCATIONS”: INDUSTRIAS Y ANDANZAS DE


ALFANHUÍ, BY RAFAEL SANCHEZ FERLOSIO - TWO PARATEXTS

Paulo Henrique Carvalho dos Santos


Graduado em Linguagens e Códigos- Língua Portuguesa
Edimilson Moreira Rodrigues
Doutor em Estudos da Literatura- UFF
Universidade Federal do Maranhão- UFMA

Eixo 2 – Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar os efeitos da estética da recepção em dois
prólogos que antecedem duas edições do escritor espanhol Rafael Sánchez Ferlosio, Industrias y
Andanzas de Alfanhuí (1951), escritos por dois leitores críticos em épocas diversas: Agustín
Cerezales (1951), Juan Beneti Goitia (1970). A corrente crítica literária surge no horizonte da
década de 60, associada principalmente a Hans Robert Jauss, recepcionada no Brasil por Regina
Zilberman (1989), que acentua um processo dinâmico e dialético entre o leitor e a obra
mediatizada pelo autor. Nessa perspectiva dialógica, propõe-se que o valor estético e histórico da
obra se reconfigura a cada novo encontro com diferentes leitores que demandam de diferentes
épocas, isso porque ela, a obra de arte literária “não é um objeto que exista por si só, oferecendo
a cada observador, em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a revelar
monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância
sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência
atual” (JAUSS, 1994, p.25).
Palavras-chave: Leitores. Estética da Recepção. Prólogos. Industrias y Andazas de Alfanhuí.

Abstract: This work aims to analyze the effects of reception aesthetics in two prologues that
precede two editions of the Spanish writer Rafael Sánchez Ferlosio, Industrias y Andanzas de
Alfanhuí (1951), written by two critical readers at different times: Algustín Cerezales (2001), Juan
Beneti Goitia (1970). The current literary criticism appears on the horizon of the 1960s, associated
mainly with Hans Robert Jauss, received in Brazil by Regina Zilberman (1989), which emphasizes
a dynamic and dialectical process between the reader and the work mediated by the author. In this
dialogical perspective, it is proposed that the aesthetic and historical value of the work is
reconfigured at each new meeting with different readers who demand it from different times,
because it, the literary work of art “is not an object that exists by itself, offering each observer, in
each season, the same aspect. It is not a monument to reveal its timeless Being monologically.
Rather, it is like a score focused on the ever-renewed resonance of reading, freeing the text from
the material of words and giving it a current existence ” (JAUSS, 1994, p.25).
Keywords: Readers. Aesthetics of Reception. Prologues. Industrias y Andazas de Alfanhuí.

1 INTRODUÇÃO
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Este trabalho é parte de uma pesquisa monográfica intitulada A Estética da Recepção nos
Prólogos de Agustín Cerezales e Juan Benet Goitia em Indústrias y Andanzas de Alfanhuí, de
Rafael Sánchez Ferlosio, apresentada ao curso de Licenciatura em Linguagens e Códigos – Língua
Portuguesa, da Universidade Federal do Maranhão, UFMA Campus São Bernardo.
Tivemos como principal objetivo analisar os efeitos da estética da recepção em dois
prólogos que antecedem duas edições do escritor espanhol Rafael Sánchez Ferlosio, Industrias y
Andanzas de Alfanhuí (1951), escritos por dois leitores críticos em épocas diversas: Algustín
Cerezales (1951), Juan Beneti Goitia (1970). Nossa pesquisa se justifica pela relevância de estudar
os efeitos da estética da recepção em prólogos de obras voltadas ao público infantil, visto que não
identificamos durante as buscas de material produzido em sites de pesquisa acadêmica,
repositórios de monografias, teses e dissertações, resultados sobre respectiva corrente estudada a
partir dessa perspectiva.
Para tanto, nos fundamentamos nos estudos de Jauss (1994), principal expoente desta
corrente crítica literária; Zilberman (1979), que recepcionou os estudos da Estética da Recepção
no Brasil. Fundamentamo-nos ainda na pesquisa de mestrado de Ribeiro (2011), entre outros
autores que nos auxiliaram no processo da construção da pesquisa. Para discutirmos sobre os tipos
de leitores, recorremos as definições de Tasende (2000) e Calderón (2000), no intuito de
compreender o papel exercido por eles, isto é, os leitores, no processo de leitura do texto literário.

2 ALGUNS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS SOBRE A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

A estética da recepção é uma corrente teórico crítica da teoria literária que surgiu em
meados da década de 60, tendo como marco inicial do seu surgimento, a conferência de abertura
das atividades do ano letivo, proferida pelo então professor da escola de Constança, na Alemanha,
Hans Robert Jauss, percussor desta vertente teórica.
A estética da recepção teve como principal objetivo ressignificar a história da literatura,
oferecendo um leque de possibilidades para se trabalhar outros métodos de análise sobre a
historicidade da obra de arte literária. Entretanto, os efeitos provocados por este novo esboço
excederam para além dos objetivos primariamente propostos, contribuindo para as áreas de
estudos sobre literatura comparada, teoria crítica literária e ensino de literatura.
Essa nova vertente da teoria literária surge como uma crítica e provocação à história da
literatura que, demasiadamente, tenta através da história de uma obra literária, explicar de forma
absoluta o sentido/significado dela por si mesma. A crítica feita por Hans Robert Jauss, na
conferência de 1967, vai em direção à história da literatura porque estava fossilizada e presa,
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restritamente, às metodologias de análises que se tonaram padrões oriundos de outras críticas


literárias, tais como: o marxismo e o formalismo.
Inspirado em seu ex professor – Hans George Gadamer272 – Jauss propõe novos olhares
para uma nova Hermenêutica Literária, contribuindo significativamente para com a história da
literatura, providenciando um esquema de organização metodológica dividida em três etapas: a de
compreensão do texto, decorrente da experiência da primeira leitura e percepção estética que a
obra desperta no leitor; da interpretação quando o sentido se constrói e se reconstrói a partir do
horizonte de experiência que o leitor dispõe e da aplicação de interpretações prévias trabalhadas
e medidas na história de seus efeitos.

Minha tentativa de superar o abismo entre literatura e história, entre o


conhecimento histórico e o estético, pode, pois, principiar do ponto em que
ambas aquelas escolas pararam. Seus métodos compreendem o fato literário
encerrado o círculo fechado de uma estética da produção e da representação. Com
isso, ambas privam a literatura de uma dimensão que é componente
imprescindível tanto de seu caráter estético quanto de sua função social: a
dimensão de sua recepção e de seu efeito.” (H. R. Jauss, 1994, p.22)

Desse modo, a estética da recepção se difere das outras correntes críticas pois concebe a
literatura enquanto manifestação e função social. Tendo como ponto de partida a relação dialética
existente entre o leitor e o texto, mediatizado pelo autor, a estética da recepção permite ao leitor
exercer um papel que é propriamente seu, ou seja, de atribuir ao texto literário a significação e
historicidade.
Assim sendo, as significações dadas aos texto por seus respectivos leitores se configuram
na dinamicidade de sentidos e valores tanto históricos quanto estéticos. Para tanto, considera-se
como relevantes as experiências de mundo vivenciadas antes do ato da leitura. É nesta perceptiva
que encontramos diferentes categorias de leitores, os quais se diferem durante a leitura, uma vez
que desfrutam de diferentes experiências de leitura, tanto de texto quanto de mundo.

3 OS LEITORES

272
Hans Georg Gadamer em “Ler é traduzir”, traz discussões sobre leitura e interpretação. O autor afirma que o ato
de ler um texto e interpretá-lo e semelhante ao processo de tradução de um texto de uma língua materna para uma
segunda língua. Se apropriando de uma passagem expressa por Friedcrich Schegel, que afirma que para compreender
alguem, é preciso ser tão inteligente como o autor, mais do que o autor, como também ser tão “burro” quanto o outro.
Assim, aduz “não é suficiente que se compreenda o sentido propriamente dito de uma obra confusa melhor do que o
autor a compreendeu. É preciso que se possa também conhecer, caracterizar e construir a própria confusão até os seus
princípios” (Gadamer, 2010, p. 126) Assim como não existe uma tradução fiel às palavras do autor de um texto, do
mesmo modo acontece com a interpretação da leitura. “O ler e o traduzir têm de superar uma distância” (Gadamer,
2010, p. 127), e esta distância, que não é apenas um distância temporal, é permeada de diferentes discursos de épocas,
experiências de vida entre outros aspectos condicionam e comprometem a significação do texto, que resulta na perda
ou ganho de informações uma vez contidas neles.
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Seguindo a perspectiva de alguns estruturalistas e semiólogos, Calderón (2000, p.311)


define a leitura de um texto literário como “una realidad y un mensaje abiertos, que necesitan del
lector para que se desarrollen todas sus virtualidades de significación.” Para Barthes (in Calderón
2000) o texto é um sistema de signos, alguns são cerrados quanto ao seu significado, outros,
porém, convidam o leitor a utilizar distintos “códigos” para descobrir as diversas vozes que podem
estar inseridas na mensagem textual; para Umberto Eco (in Calderón 2000), o texto exige do leitor
a colaboração dele para o processo de produção de sentidos e para explicação das suas
potencialidades.
Na perspectiva da estética da recepção, Wolfgang articula que

Las experiencias de vida de cada intérprete o lector son las que dan origen a
diferentes lecturas de un determinado texto literario. Y es que los mismos textos
se prestan, a su vez, a esas diversas lecturas, ya que presentan, en su enunciación,
<huecos> o <lagunas> que el intérprete debe rellenar. Así, cuando alguien va
adentrando en la lectura de un texto, el sentido del relato se va transformando
paulatinamente.” (Wolfgang Iser in Calderón, 2000, p321)

Desse modo, as diferentes interpretações de um mesmo texto literário feito por distintos
leitores diz respeito as experiências pré-vivencidas por cada um deles, isto é, o leitor mediante ao
ato da leitura. Estas leituras são configuradas gradualmente durante o processo de decodificação
da palavra escrita.
Nesta perspectiva de distintos leitores, Tasende (2000), em Diccionário del Términos
Literários, apresenta-nos algumas categorias desses leitores. Detemo-nos, entretanto, a definição
de apensas um tipo, a saber: leitor empírico e leitor implícito.
O leitor ou leitor empírico, segundo a definição de Tasende (2000), é receptor externo da
obra literária escrita. Sem ele, o texto não goza do estatuto de obra literária, pois é ele “que da
vida a la obra y la convierte em la literatura”; (Tasende, 200, p.421) a presença do leitor é inerente
ao processo de recepção que o autor propõe à sua obra. Diferente da obra, que se apresenta
enquanto imutável em seu aspecto físico, o leitor manifesta-se variável.

Cada lector es distinto y su lectura diferente a la de cualquier otro, ya que depende


de los condicionamientos propios de su época, su cultura, su competencia, su
situación, sus experiencias e incluso su estado de ánimo. Estas circunstancias,
total o parcialmente, pueden variar a lo largo de la existencia de un lector, por lo
que la lectura de una obra es diferente en más o menos matices aunque quien la
realice sea el mismo individuo. (Tasende, 2009, p.421)

Essa dinamicidade existente no ato da leitura, possibilita os mais diversos significados, já


que as projeções que o leitor realiza para o texto depende das circunstancias vividas por ele, o
leitor; “todas las obras presentan un campo abierto a la imaginación del lector, a su capacidad
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comprensiva e interpretativa.” (Tasende, 2000, p.421) e para uma mesma obra, temos tantos
leitores, de tantas outras épocas diversas.
O leitor implícito é um conceito, segundo Tasende (2000, p.423), “introducido em
Narratología por W. Iser. Se trata de un ente abstracto, inherente a la obra literaria, un lector
supuesto y necesario para su existencia en cuanto que resulta un complemento interno
indispensable de su creación”; pressupondo a existência desse leitor, o autor se apropria da
linguagem - principalmente nos níveis fônico, sintático e semântico – para construir o seu texto:
“em ella las elipsis, las indeterminaciones, los juegos irónicos y metafóricos y otros recursos y
técnicas no podrían ser usados sin la presuposición de um lector implícito.” (Tasende, 2009, p.423)
Iser (1996 apud Ribeiro 2012) define leitor implícito como o espaço que habita entre o
leitor real e o texto. Trata-se de um elemento que é presente na construção obra escrita, isto é, da
obra de arte literária. O autor quando idealiza o leitor implícito, ele o transcreve para o texto e a
presença deste é percebida pelo leitor real – empírico – durante o ato da leitura. Partindo disso, o
leitor implícito é reconhecido como componente pertencente à estrutura do texto.

A concepção do leitor implícito designa então uma estrutura do texto que


antecipa a presença do receptor. O preenchimento desta forma vazia e estruturada
não se deixa prejudicar quando os textos afirmam por meio de sua ficção do leitor
que não se interessam por um receptor ou mesmo quando, através das estratégias
empregadas, buscam excluir seu público possível. Desse modo, a concepção de
leitor implícito enfatiza as estruturas de efeitos do texto, cujos atos de apreensão
relacionam o receptor a ele.” (ISER, 1996, p. 73 apud Ribeiro, 2012, p.25)

À luz das concepções iserianas, as perspectivas do texto vão em direção um campo de


referências. Estas referências, no entanto, não são dadas tal qual elas são; elas precisam serem
imaginadas; “é nesse ponto que o papel do leitor delineado na estrutura do texto” – leitor implícito
– “ganha seu caráter efetivo. Esse papel ativa atos da imaginação que de certa maneira despertam
a diversidade referencial das perspectivas da representação e reúnem no horizonte de sentido.”
(ISER, 1996, p. 65 apud Ribeiro, 2012, p.24) É por meio do leitor implícito que o leitor real aguça
as suas projeções para com o texto no ato da leitura: “O cumprimento do papel do leitor implícito
se dá a partir de atos de imaginação, os quais conferem caráter transcendental à obra literária.”
(ISER, 1996, p. 65 apud Ribeiro, 2012, p.24)

4 ANÁLISES

Propusemo-nos agora, analisar os dois prólogos que antecedem a obra espanhola do


escritor Rafael Sánchez Ferlosio, Indrustrias e Andanzas de Alfanhuí (1951), um escritor por Juan
Benet Goitia (1970), o outro escritor por Agustín Cerezales (2001).
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Gérard Genette (2009, p.09) conceitua os elementos paratextuais como um “meio do qual
um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores”, um tipo de ‘vestíbulo’ que direciona
tanto à uma melhor acolhida (recepção) quanto a uma leitura mais pertinente. São elementos que
assumem, portanto, a função de apresentá-lo e tornar possível sua presença no mundo enquanto
livro. Parte integrante que se apresenta como ponte de mediação entre o leitor e o texto.
O paratexto compõe-se, pois, empiricamente, de um conjunto heteróclito de
práticas e de discurso de todos os tipos e de todas as épocas que, em nome de um
grupo de interesse, ou convergência de efeitos, que me parece mais importante
do que sua diversidade de aspecto, eu reúno sob este termo. (Genette, 2009, p.10)

Na perspectiva de Genette, o paratexto constitui-se não somente de aspectos visíveis à


percepção estética, mas também se constitui como um campo de discursos ideológicos,
Os dois prólogos são instancias prefaciais alógrafas, autênticas, que segundo as definições
de Genette (2009) trata de instâncias prefaciais escritas por um terceiro escritor que não seja autor
do texto referenciado, no qual a autoria sobre a instancia prefacial seja autentica. Os dois prólogos
são do tipo narrativo: discurso redigido em prosa.
Os dois prólogos apresentam aspectos relacionados ao contexto da narrativa referenciada,
não como elas são de fato, mas por meio de pistas que faz reverberar no leitor, o desejo de conhecer
a obra em si, induzindo-o ao ato da leitura. A partir de interpretações críticas, as quais são
apontadas texto abaixo, implicitamente, os autores recomendam a obra de Ferlosio e direcionam
os leitores conhecerem-na: “vayamos al encuentro del maestro taxidermista, de doña Flora, de la
abuela, del buey Caronglo y de doz Zana, del Jardín de la luna e del jardín del sol. Estamos a las
puertas de un amanhecer, de un despertar de los sentidos. Y del corazón.” (Cerezales, 2001)

4.1 O prólogo de Cerezales (2001)

Para Cerezales, Alfanhuí desperta no leitor uma nova percepção das coisas, através da sua
doce curiosidade:

Alfanhuí es, ante todo, una mirada limpia. Lo cual no significa aqui solamente
sin doblez, inocente y pura, que también, sino limpia en el sentido físico del
término, y además, informada por genuina y apacible curiosidad que la empuja
hacia la realidad más real de las cosas, aquella que se nos esconde y a la vez nos
brinda en las evidencias mismas, ese ‘otro lado’ ‘de donde no viene nunca el
conocimiento de las otras cosas; transpuestos el primer día, por detrás del último
muro de la memoria, donde nace la otra memoria: la memoria de las cosas
desconocidas’. (Cerezales, 2001)

No ato da leitura, a percepção da existências das coisas não reveladas - “de las cosas
desconocidas” - são alcançadas a partir de um sistemas de referência que o leitor constrói mediante
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a sua experiência de leitura Ao analisarmos o prólogo escrito por Cerezales, e meditarmos nas
considerações tecidas sobre a obra de Ferlosio, percebemos que ele assume o papel de leitor
denominado empírico.
La prosa de Ferlosio estrena aquí su prodigiosa precisión, su generosa abundancia y ese
buen todo característico que le permite incorporar giros arcaicos, tropos diversos, sin desmedro
de su concinidad y lozanía.” (Cerezales, 2001)

4.2 O prólogo de Goitia (1970)

A obra de Rafael, divide-se em duas partes: “las industrias”, que e a fase de descobertas e
experimentos, “hasta la muerte del maestros en tierras de Guadalaja”; parte esta que segundo a
perspectiva de Goitiniana, é predominante o aspectos da história fantástica, e que é narrada a partir
de perspectiva autobiografada. Para Juan Benet, esta primeira parte está permeada pelo tom
oriental de inventividade,

Las cosas que había en el jardín de la luna, las visiones que tuvo Alfanhuí el dia
de viento, el castaño y los pájaros de colores – cuya mejor aspiración es, al
parecer, la descripción de una naturaleza genérica y morfológicamente
diferenciada de la del hombre y cuyo más alto exponente, em nuestro caso, es
esa admirable flauta en la que ‘en lugar de ser, como en las otras, el silencio
fondo y el sonido tonada, em ésta el ruído hacía de fundoy el silencio daba
melodía’. (Goitia, 1970, p. 13)

A segunda parte é constituída pelas andazas do menino que passou a viver como emigrante
nas terras de Madrid. Tal passagem rompe com as expectativas do leitor pois o tom muda e a prosa
passa a ser lida em um tom mais sério.

Con la muerte del maestro, el paisaje y el tono cambian; el joven Alfanhuí se ve


obligado a suspender su afición a la expeculativa y a la experimentación de los
colores y, teniendo que reingresar y a la natura, se va a vivir a Madrid, como
emigrante más del campo de Guadalaja. (Goitia, 1970, p. 13)

Um leitor experiente, ao ler a passagem das industrias para as andanzas, percebe o


rompimento da linguagem melódica e poética, o qual Goitia destaca, para uma linguagem mais
rustica e próxima do real: “inevitablemente, el lector, más familiarizado con el objeto descrito,
cree reconocer certo cambio de estilo, como si el manejo sintáctico fuera diferente em uno y outro
caso.” (Goitia, 1970, p. 13) Aduz ainda: “pero lo que en uno es dispensable, en otro es manifesto,
haciendo patente mediante la verificación aquella regla de que la exactude del poeta sólo se podra
encontrar com la imaginación.” Percebemos a solicitação da presença de um leitor, para que a
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precisão e essência do poeta sejam encontradas. Este é o leitor denominado implícito que
manifesta-se nas entrelinhas da estrutura do texto, imaginado pelo autor no ato da escrita.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto nas exposições acima, a leitura destes dois leitores críticos apresentam-se
como diferentes, pois cada um dos autores tiveram diferentes experiência de leituras e como o
autor; ao que condiz com Tasende (2000, p.421) “cada lector es distinto y su lectura diferente a la
de cualquier otro, ya que depende de los condicionamientos propios de su época, su cultura, su
competencia, su situación, sus experiencias e incluso su estado de ánimo” e Calderón (2000, p321)
“las experiencias de vida de cada intérprete o lector son las que dan origen a diferentes lecturas de
un determinado texto literario.”
Os dois prólogos, além de apresentarem e recomendarem o romance ferlosiano, expressam
determinada postura crítica sobre a obra referenciada. Desse modo, os prólogos analisados
assumem o estatuto instância prefacial bem sucedida, pois como aduz Borges (in Genette 2009,
p.328), o prefácio “quando bem sucedido [...] é um modo lateral de crítica.”

Referências

CALDERÓN, Demetrio Estébanez. Breve diccionario de términos literarios. Alianza Editorial,


Madrid, 2000.

FERLOSIO, Rafael Sánchez. Industrias y Andanzas de Alfanhuí. Madrid, Aliança Editorial,


1970.

FERLOSIO, Rafael Sánchez. Industrias y Andanzas de Alfanhuí. Madrid, Bibliotex, 2001

GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. Trad. Álvaro Faleiros – Cotia, SP: Ateliê Editorial,
2009.

JAUSS, H. R. A História da literatura como provocação à teoria literária. Tradução Sérgio


Tellaroli. São Paulo: Atica,1994. (1.a ed. em alemão em 1967)

RIBEIRO, Valdir Guilherme Alves. Recepção literária: a interação entre o texto literário e o leitor.
2011, p.76 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura)-Universidade da
Amazônia, Manaus, 2012.

TASENDE, Ana Maria Platas. Diccionário del términos literários. Madrid: Espasa Calpe, 2000.
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LINHAGENS ANTROPOLÓGICAS: A PAIXÃO PELA ETNOGRAFIA

ANTHROPOLOGICAL LINEAGES: THE PASSIONS FOR ETNHOGRAPHY

Amanda Gomes Pereira273


Doutora em Ciências Sociais PPCIS/ UERJ
Docente Adjunta Sociologia UFMA – Campus São Bernardo

Eixo Temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Ao seguir o percurso de uma tradição antropológica inspirada pelo espírito da


etnografia, e por considerar o método etnográfico basilar no processo de construção desse campo
científico, o intuito deste artigo é destacar os processos de elaboração de um olhar antropológico
caudatário dos estudos urbanos. Nesse aspecto, o trabalho de campo e o texto etnográfico se
inserem em um devir, um fluxo, em que teias de relações se estabelecem de maneira criativa a
partir de dinâmicas de reconhecimento, bem como de reflexos especulares. Em processos espirais
de intersubjetividades que se encontram em relações vivenciadas em campo, um brilho do olhar
constrói pontes, aparentemente, intransponíveis, borrando fronteiras simbólicas. Nessa formação
de subjetividades, relacionalmente, os corpos – principalmente os delineados nas margens –
ocupam um papel protagonista. Gênero, corpos e sexualidades se entrelaçam na busca pela
compreensão da ampliação sobre o humano. Desse modo, o objetivo é demonstrar a importância
da etnografia não apenas como método, mas como consolidação de um campo de saber cujos
caminhos de aproximação do outro revelam a apreensão e a construção de conhecimentos –
abertos ao inesperado, ao incacabado e ao imponderável da vida.
Palavras-chave: Corpos. Etnografia. Gênero. Intersubjetividades. Olhar antropológico.
Sexualidades.

Abstract: When following an anthropological tradition inspired by the spirit of ethnography, and
considering the basic ethnographic method in the process of building this scientific field, the
purpose of this article is to show the processes of carrying out an anthropological examination of
urban studies. In this aspect, fieldwork and ethnographic text can be inserted into a becoming, a
flow, in which web of relationships are established in a creative way based on recognition
dynamics, as well as specific reflexes. In the spiral processes of intersubjectivity that show the
relationships experienced in the field, an inspired looking builds apparently insurmountable

273
Doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro/ UERJ. Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal de Juiz de Fora/ UFJF. Bacharel em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela
Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente, atua como Professora Adjunta de Sociologia no Curso de Ciências
Humanas, Campus São Bernardo, da Universidade Federal do Maranhão/UFMA. Coordenadora do Grupo de Estudos
de Gênero e Educação Chita/ Gitã. Prestou consultoria para o escritório da ONU em assentamentos urbanos na
América Latina, ONUHabitat, de setembro de 2012 a março de 2013. Atuou como Agente de Suporte Acadêmico do
Curso de Formação de Gestores Escolares SEB/ MEC 2009 e da Especialização - Gestão e Avaliação da Educação
Pública/ Ceará, ambos oferecidos pelo Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/ FADEPE/
UFJF), nos quais teve a oportunidade de orientar alunos de Pós-Graduação e participar de bancas avaliadoras dos
trabalhos de conclusão de curso. Atuou como tutora a distância do Curso "Educação em Direitos Humanos",
UFF/PROEX.
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bridges, blurring symbolic boundaries. In this formation of subjectivities, relational, the bodies -
mainly those outlined on the margins - play a leading role. Gender, bodies and sexualities are
intertwined in the search for expansion of consciousness about the human being. In this way, we
seek in this work to demonstrate the importance of ethnography not only as a method, but to
consolidate a field of study wherein paths of approximation to other may reveal of apprehension
and construction of knowledge – open to the unexpected, to the unfinished and to the life’s
imponderables.
Keywords: Anthropological look. Bodies. Ethnography. Genre. Intersubjectivities. Sexualities.

Introdução
A antropóloga norte-americana Sherry Ortner (2011), em seu esforço de empreender uma
reflexão sobre as abordagens teóricas das diferentes tradições antropológicas que emergiram e se
consolidaram no século XX, ressalta: “A tentativa de ver outros sistemas com os pés no mesmo
chão dos nativos é a base, talvez a única base, da contribuição propriamente antropológica para as
ciências sociais” (ORTNER, 2011: 439). As análises aqui esboçadas comungam com essa
perspectiva e propõe, sem a pretensão de abarcar em amplitude o campo da antropologia e as
contribuições do método etnográfico, destacar o quanto o trabalho de campo – em minúcias e
detalhes da vida cotidiana que foge ao nosso controle – nos obriga a promover um movimento
constante de desconstrução e desnaturalização das nossas próprias categorias.
Para tanto, presto também uma homenagem as linhagens antropológicas que contribuíram
para a minha formação, em especial para o refinamento do olhar antropológico, tão necessário a
antropologia. Sem esses ensinamentos e os apoios – vindos de maneiras distintas, cercados de
muito afeto, acolhimento e encontros acadêmicos –, as linhas aqui escritas não existiriam. A “fé
no trabalho de campo” e a formação etnográfica são ensinamentos repassados que modificaram a
minha percepção acerca da profissão. Dessa forma, entendo que:
É essa nossa capacidade, sobretudo desenvolvida no trabalho de campo, de adotar a
perspectiva do povo em terra firme que nos permite aprender qualquer coisa — mesmo
na nossa própria cultura — para além do que nós já sabemos (de fato, enquanto um
número crescente de antropólogos está fazendo trabalho de campo nas culturas
ocidentais, inclusive nos Estados Unidos, a importância de manter a capacidade de
perceber a alteridade, mesmo aqui perto, está cada vez mais clara). É essa nossa
localização “no chão” que nos permite ver as pessoas não simplesmente como
reprodutores e reagentes passivos a um “sistema”, mas como agentes ativos e sujeitos da
sua própria história (ORTNER, 2011: 439).

É pela paixão que me faz fincar os pés “no chão” na tentativa de compreender as relações
de alteridade que, a seguir, procuro traçar percursos que relacionam a etnografia como basilar para
a construção do conhecimento antropológico. Para tal, pretendo destacar sua importância no
processo de produção de aproximações interpretativas, simbólicas, discursivas e práticas das
relações humanas, destacando a importância da antropologia brasileira na formação de etnógrafos
dedicados a pensar o outro não tão distante, nem por isso próximo (VELHO, 1978). Trajetórias
traçadas que tecem diálogos entre métodos, como a observação participante e a história oral.
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Como forma de organização do argumento, este artigo esta dividido em seções em que
destaco o surgimento da observação participante com o Malinowski, bem como diferentes
percepções sobre esse método – suas possibilidades e alcance na capacidade de compreensão das
relações sociais. Na segunda seção, faço um breve diálogo entre os métodos etnográfico e a
história oral como recursos para acompanhar e descrever trajetórias de vida. Na terceira parte,
dados da minha pesquisa de campo, executada durante a realização do mestrado, são apresentados
para destacar o quanto somos afetados em campo e o quanto esse processo é transformador das
nossas trajetórias pessoais e profissionais. Por fim, apresento algumas conclusões que representam
um convite para a continuação do diálogo quanto ao método etnográfico, suas contribuições e
centralidade na antropologia.

Etnografia: reflexões acerca do método


No processo de criação e consolidação da antropologia, a etnografia se consolida como
modo de distinção da disciplina dentro das Ciências Sociais e Humanas – o método tornou-se um
definidor de identidade. Malinowski foi o principal responsável por essa junção, como lembra
James Clifford (2011).
Malinowski (1976), em seus textos, busca apontar caminhos a serem trilhados na
realização de uma pesquisa de campo. Para o autor, pontos importantes estão entrelaçados ao fazer
etnográfico como: estar atento aos mínimos fatos da vida tribal, não deixando escapar nada à
observação; evitar ideias pré-concebidas, apoiando-se sempre em arcabouço teórico capaz de
auxiliar o pesquisador em suas indagações sobre o comportamento nativo; perscrutar a cultura
nativa a totalidade de seus aspectos; estudar um fenômeno a partir de uma exaustiva coleta de
dados sobre inúmeras manifestações desse; montar quadros sinópticos de análise; documentar de
a organização da tribo e a anatomia da cultura; registrar num diário de campo os “fatos
imponderáveis” da vida nativa, coletados através de observações detalhadas e minuciosas que só
são possíveis através do contato íntimo com a vida nativa; e, por último, o corpus inscriptionum”.
(MALINOWSKI, 1976: 37).
Se as condições de pesquisa dadas a nós hoje diferem muito das condições de Malinowski
nas Ilhas Trobriand, uma vez que não há recurso nem tempo hábil para elaboração das nossas
pesquisas de campo, seus ensinamentos permanecem como um guia, mostrando-nos a demasiada
importância de se levar a sério os nativos, quaisquer que sejam as condições de pesquisa que nos
forem dadas – talvez seja esse um dos nossos grandes desafios.
No caso de quem estuda a própria sociedade, há uma falsa percepção de que a língua não
é um entrave – visto que tanto o pesquisador, como o pesquisado compartilham de um mesmo
código linguístico (FONSECA, 1999).
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Contudo, em campo percebemos que um elemento importante para se estranhar o


supostamente familiar é constatar que os significados não são os mesmos quando utilizamos um
determinado significante. Afeto e desejo não possuem o mesmo significado para mim e para os
sujeitos que compõem a pesquisa.
Assim, mesmo que vários desses pressupostos tenham sido reavaliados, a dedicação e
empenho na compreensão do outro pela observação participante permanece como inspiração para
muitos antropólogos e antropólogas. Advém da perspectiva malinowskiana, a fé de muitos colegas
de profissão na etnografia e o anseio de aprender o ponto de vista dos nativos, seu relacionamento
com a vida, sua visão de mundo a partir da utilização desse método (MALINOWSKI, 1976).
Após esses primeiros ensinamentos, nos especializamos no “olhar, ouvir e escrever, como
destaca Cardoso de Oliveira (1996). “Olhar e ouvir”, disciplinados pelas teorias antropológicas,
estão incluídos na primeira parte do processo de pesquisa, o estar lá. Olhamos e ouvimos porque
participamos por um período da vida nativa, em busca de uma hierarquia estratificada de estruturas
de significantes que subjaz no discurso nativo e que se confrontam no cotidiano das relações
sociais com as práticas e as ações (GEERTZ, 1989). Essas práticas e ações só ganharão
efetivamente sentidos durante o ato da escrita. Desse modo, atos corriqueiros e banais que são
executados e repetidos inúmeras vezes, tabulados, mapeados e registrados pelo olhar atento do
antropólogo, e inscritos em sua principal ferramenta de trabalho – o diário de campo – passam a
compor um texto cuja autoria é fruto de relações e negociações estabelecidas em campo. Um
“ouvir” e um “olhar” aguçados e treinados pelo arcabouço teórico que adquirimos ao longo de
nossa formação acadêmica.
A intersubjetividade é outro fator importante na elaboração de uma pesquisa etnográfica.
A relação social que se estabelece entre antropólogo e “nativo” não se resume apenas às
explorações psicológicas de pessoas que trocam suas experiências pelo diálogo, nem a um
encontro empático de almas, mas há um processo árduo, moroso e conflitante em que o
pesquisador se expõe na tentativa de compreender as camadas de significados que subjaz ao
universo dos sujeitos. Em busca de suas perguntas, o antropólogo dirige-se ao “outro” para saber
como esse responde a questionamentos similares.
Como o objetivo da antropologia que eu me identifico é o “alargamento do universo do
discurso humano” (GEERTZ, 1989), as informações obtidas não podem versar ou a “Mulher” –
sujeitos eternos e ahistóricos. Nossos nativos devem ser de “carne e osso” com histórias de vida
específicas, cor, classe social, idade, gênero, escolaridade, todo um mapa sociológico que nos
permite inseri-los numa trama de relações sociais – e não isolá-los como indivíduos – assim como,
utilizarmos categorias analíticas comparativas. Como lembra Cláudia Fonseca: “A insistência –
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na visão antropológica – no aspecto social do comportamento leva à procura por sistemas que vão
sempre além do caso individual.” (FONSECA, 1999: 59).
A antropóloga Sherry Ortner (2011: 458) enfatiza que:
“as versões modernas da teoria da prática, de outro lado, são únicas em aceitar os três
lados do triângulo de Berger e Luckmann: que a sociedade é um sistema, que o sistema
é poderosamente constrangedor, e mesmo assim que o sistema pode ser feito e desfeito
por meio da ação e da interação humanas”.

Em um exercício constante de se aproximar das estruturas de significado dos nativos, o


antropólogo estabelece uma “descrição densa”, em contraponto às “descrições superficiais” que
confundem atos semelhantes com possuindo o mesmo significado – como, por exemplo,
piscadelas e tiques nervosos. É o olhar atento e informando pelo arcabouço teórico do etnógrafo
que permite que fatos concretos da vida cotidiana dos nativos sejam conhecidos semanticamente
e não confundidos e misturados por olhares autoreferenciados e etnocêntricos. Qualquer um que
se aproxime de uma cultura diferente vai achar que está diante de um “caos” e de uma “desordem”.
É em busca de compreender este “caos” que o antropólogo se “relaciona, seleciona informantes,
transcreve textos, levanta genealogias, elabora mapas do campo, mantém um diário, ou seja,
pratica etnografia”. (GEERTZ, 1989: 4).
Ao “Escrever” o antropólogo procura hierarquizar o universo simbólico dos nativos,
através de como ele comunica sua experiência. Lê os mapas, as anotações de campo, as
genealogias, todo o material levantado procurando interpretá-los, encontrar “sentidos” existentes
atrás dessas informações. Em um processo nomeado por Dilthey de “círculo hermenêutico”, o
antropólogo:
salta continuamente de uma visão de totalidade através das várias partes que a compõem,
para uma visão das partes através da totalidade que é a causa de sua existência, e vice-
versa, com uma forma de moção intelectual perpétua, buscando fazer com que uma seja
explicação para a outra. (GEERTZ, 2001: 105).

Além dessa estratégia de compreensão e construção do texto etnográfico, a narrativa em


primeira pessoa é outro recurso textual utilizado pelo pesquisador. Como a escrita etnográfica é
marcada pelo “estar aqui”, o antropólogo depois de um período de convivência na aldeia retorna
para o seu lócus e, junto com colegas de profissão em um ambiente acadêmico, tece seu texto
distante dos que anteriormente detinham a “fala”. Ao invés da perspectiva especular, existe um
“scholar” solitário que detém o conteúdo das informações e descreve os fatos da vida cotidiana,
com suas peculiaridades e meandros. A etnografia é um método com princípios, modos e etapas
a serem realizados:
1) estranhamento (de algum acontecimento no campo), 2) esquematização (dos dados
empíricos), 3) desconstrução (dos esteriótipos preconcebidos), 4) comparação (com
exemplos análogos tirados da literatura antropológica), 5) sistematização (do material em
modelos alternativos) (FONSECA, 1999: 66).
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As implicações do método etnográfico vão muito além, visto que os pressupostos teóricos
da disciplina antropológica baseiam-se no situar-se em campo, nas formas de se chegar ao nativo,
no contato, no “estar lá”, nas discussões sobre alteridade que promovem o diálogo entre
pesquisador e pesquisado – fator que possibilita que essa disciplina se renove sempre, seguindo
os fios necessários para entrar e sair de seus labirintos. Aqui cabe uma ressalva que o estar lá
representa muito mais uma construção discursiva do que distâncias e fronteiras geográficas.
Outros aspectos a serem destacados vinculam-se as nossas tentativas de acompanhar as
trajetórias e circuitos dos sujeitos, seguindo-os com perguntas obtusas. Traçar essas trajetórias
requer um diálogo acerca das metodologias utilizadas pela “História Oral”.

O entrecruzamento de métodos: método etnográfico e história oral


Narrar uma história, é pensar a própria vida a partir de uma linearidade que, muitas vezes,
se apresenta como ilusória (BOURDIEU, 2006). Sob esse prisma, produzir uma história de vida,
tratar a vida como uma história, isto é, “narrá-la como um relato coerente de uma sequência de
acontecimentos com significação e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica,
uma representação comum da existência que toda uma tradição literária, não deixou e não deixa
de reforçar” (BOURDIEU, 2006: 185).
Outros pesquisadores que utilizam a metodologia de história de vida, mesmo não
negligenciando a perspectiva de Bourdieu, atentam para outros aspectos. Joseph Goy (1980)
define história de vida como um arquivo entrelaçando o verdadeiro, o vivido, o adquirido e o
imaginado (GOY, 1980). Assim o ato de narrar a vida e de percebê-la como uma história faz com
que os discursos produzidos pelos sujeitos, muitas vezes, tenham contradições, e que eles se
contradigam em diversos momentos. Segundo Laurence Bardin (1997), “o discurso não é o
produto acabado, mas um momento num processo de elaboração, com tudo o que isso importa de
contradições, de incoerências e imperfeições” (BARDIN, 1997: 170). A vida, enquanto uma
experiência caótica, com vários eventos ocorrendo de maneira aleatória, é transposta para o
discurso nas incoerências das narrativas, bem por isso o sujeito deixa de ordená-la temporalmente,
selecionando fatos, contando para si a história de sua vida. “Fatos orais contam-nos o lado
psicológico emocional do povo, ressaltando não só que fez, mas o que queria fazer, o que
acreditava estar fazendo e agora pensa que fez” (PORTELLI, 1997: 31).
A narrativa das histórias de vida é uma prática que configura e dá sentido ao self. Como
descreve Charles Taylor (1997): “condição básica do processo de encontrar sentido em nós
mesmos é a de que compreendamos nossa vida numa narrativa”. (TAYLOR, 1997: 22). Ou,
segundo Berger & Luckmann: “A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada
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pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo
coerente”. (BERGER & LUCKMANN, 1985: 35). Desse modo, o self, ao narrar sua história de
vida, opera símbolos que a torna significativas, permitindo avaliá-la segundo seus próprios
valores.
As narrativas, para Taylor (1997) estão intimamente ligadas, no Ocidente, ao processo de
construção de identidades. Este processo se dá entre os indivíduos modernos pelo o
reconhecimento do que Taylor denominou de avaliações fortes:
[...] envolve discriminações acerca do certo ou errado, melhor ou pior, mais elevado ou
menos elevado, que são validadas por nossos desejos, inclinações ou escolhas, mas
existem independentemente destes e oferecem padrões pelos quais podem ser julgados.
Assim, embora não possa ser julgado um lapso moral o fato de eu levar uma vida que na
verdade não vale a pena nem traz realização, descrever-me nesses termos é, de certo
modo, condenar-me em nome de um padrão, independente de meus próprios gestos e
desejos, que eu deveria reconhecer (TAYLOR, 1997: 16 e 17).

A relação construída durante a pesquisa de campo é, antes de tudo, uma relação social,
com todos os componentes que a constituem – poder, status, hierarquia. O conhecimento
antropológico, como lembra Viveiros de Castro: “é imediatamente uma relação social, pois é
efeito das relações que constituem reciprocamente o sujeito que conhece e o sujeito que ele
conhece, e a causa de uma transformação (toda relação é uma transformação) na constituição
relacional de ambos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 114). Toda narrativa pressupõe a escuta
e, assim, ao narrar suas histórias, encenam para si mesmo os próprios elementos que dão sentido
a sua vida. É uma busca por permanecer pelas palavras e pelo olhar do outro.

A paixão pela etnografia: os imponderáveis dos afetos em campo


Ao analisar as possibilidades de produção do conhecimento pelo método etnográfico,
compartilho de uma tradição iniciada pela antropóloga norte-americana Claudia Fonseca –
docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul há 30 anos – de que o fazer antropológico
se aprende fazendo, e não apenas ouvindo sobre.
Desse modo, por pertencer a essa linhagem antropológica – uma vez que tive o privilégio
de ser orientada por Jurema Gorski Brites, que foi orientada pela Claudia – aprendi o ofício sendo
levada ao campo com Jurema e com outros pesquisadores, tendo a oportunidade de estabelecer
conexões, durante a realização do trabalho de campo, diferente das vivenciadas nos momentos de
solidão das minhas pesquisas de mestrado e doutorado. A confusão desses múltiplos olhares e os
ruídos estabelecidos em um contexto árido de campo, voltado para o estudo dos efeitos da
violência armada na cidade do Rio de Janeiro, permitiu-me pensar o estar lá como processo crucial
para constituir-me enquanto pesquisadora. O campo, com seus desafios, embaralha nossas
certezas e faz emergir aspectos da nossa subjetividade desconhecidos e aflorados nas dinâmicas
de tentativa de compreensão dos outros – tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximos.
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Assim, faço parte da tradição inciada por Claudia Fonseca e replicada por seus orientandos
e orientandas, espalhados em diferentes instituições pelo país, de repassar a formação etnográfica
indo a campo com suas alunas e seus alunos. Um fazer antropológico engajado, que se estabelece
nas margens em diálogos estabelecidos nas dobras do estado (DAS, 2004).
Sob esse aspecto, a pesquisa se torna também um ato político e rompe com a ideia de
neutralidade epistemológica, presente no surgimento da observação participante. Olhar é assumir
uma perspectiva e, nesse sentido, todo ponto de vista é orientado por trajetórias que se cruzam nas
relações estabelecidas em campo. Porque, durante nossas andanças, “há questões que despertam
nossa curiosidade, que necessitam da nossa atenção, que nos comovem, que nos dão a
oportunidade de pensar de outra maneira, meio de surpresa, meio desorganizada, meio rebelde,
meio detetive, meio artesão” (SCHUCH, 2016: 394). A partir de um encontro e de uma busca de
uma maneira de pensar, se estabelece um constante colocar e recolocar-se em campo.
Ao estudar relações afetivas e de trabalho de garotas de programa, foi o mistério que me
fez experimentar uma relação de intersubjetividade com as pessoas que conheci em campo. Para
adentrar os silêncios que povoam as vivências cotidianas, é preciso afetar-se pelas emoções e
lógicas presentes nas relações sociais postas em jogo no campo, aceitando ocupar espaços que
rompem com qualquer tentativa de neutralidade científica – pressuposto hierárquico e
colonizador. Como ressalta Jeanne Favret-Saada:
[...] aceitar, participar‟ e ser afetado não tem nada a ver com uma operação de
conhecimento por empatia, qualquer que seja o sentido em que se entende esse termo...
segundo a primeira acepção a empatia supõe distância: é justamente porque não está no
lugar do outro que se tenta imaginar o que seria estar lá, e quais “sensações, percepções
e pensamentos” ter-se-ia então. Ora, eu estava justamente no lugar do nativo, agitada
pelas “sensações, percepções e pelos pensamentos” de quem ocupa um lugar no sistema
de feitiçaria. Se afirmo que é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de imaginar-se lá, é pela
simples razão de que o ali se passa literalmente inimaginável, sobretudo para um
etnógrafo, habituado a trabalhar com representações: quando se está em um tal lugar, é
se bombardeando pelas intensidades específicas (chamemo-las de afetos), que
geralmente não são significáveis. Esse lugar e as intensidades que lhe são ligadas têm
então que ser experimentados: é a única maneira de aproximá-los. Uma segunda acepção
de empatia insiste, ao contrário, na instantaneidade da comunicação, na fusão com o outro
que se atingiria pela identificação com ele. Essa concepção nada diz sobre o mecanismo
de identificação, mas insiste em seu resultado, no fato de que ela permite conhecer os
afetos de outrem. Afirmo, ao contrário, que ocupar tal lugar no sistema de feitiçaria não
me informa nada sobre os afetos do outro, ocupar tal lugar afeta-me, quer dizer, mobiliza
ou modifica meu próprio estoque de imagens, sem contudo instruir-me sobre aqueles
meus parceiros (FAVRET-SAADA, 2005: 159).

A minha curiosidade pelo tema da prostituição, trouxe o inesperado em minha vida


(SCHUCH, 2016). Meu interesse pela temática não foi fruto de uma percepção de que essas
mulheres eram reféns de uma situação degradante e humilhante e que, por isso, ocupam o lugar
de vítimas de um contexto de opressão. Ao contrário, em minhas idas e vindas a campo, a alegria
e a vivacidade daquelas mulheres me entusiasmavam profundamente.
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Durante a noite, com o movimento intenso da boite, os jogos de sedução entre as garotas
de programa, os clientes e os outros funcionários eram inúmeros. Múltiplos estímulos eram
emanados por todos e, assim, contribuíam para aguçar os sentidos das pessoas envolvidas nessa
atmosfera. O corpo, com seus gestos e suas comunicações não verbais, é o principal agente da
comunicação, construindo o campo semântico da sedução e da manifestação do desejo.
Os estudos sobre antropologia do corpo têm demonstrado como a corporalidade é a forma
primária pela qual experimentamos o mundo, representando fonte de expressão social de sentidos
e sentimentos não verbalizados. Em um processo de tradução da sociedade, o corpo, pelas
emoções, reage às regras, normas e preceitos sociais. Ao permitir a transgressão, ele cria o erótico.
Bourdieu concebe o “habitus como um corpo socializado, resultado de uma história coletiva que
se inscreve nas posturas, nos movimentos, nos gostos, que educa os sentidos e marca distinções
que são tão significantes quanto menos passíveis de se tornarem objeto de reflexão.”
(BOURDIEU, 1996: 56) Thomas Csordas, pelo conceito de corporificação, consolida essa
percepção do corpo a partir de experiência. “Corporificação, no sentido que estou usando, é um
ponto de vista metodológico no qual a experiência corpórea é entendida como sendo base
existencial da cultura e do eu e, portanto, um valioso ponto de partida para a análise deles.”
(CSORDAS, 1994: 2)274. Foi pelo meu corpo e suas características que adentrei nesse ambiente,
uma mulher, jovem, que se permitiu ser desejada, paquerada e aprendeu o poder do mistério como
elemento da sedução.
Durante os três anos em que me dediquei a pesquisa, tive que conviver com situações de
constrangimento e questionamento em variados espaços que me fizeram pensar as possibilidades
de escolha e de agenciamento destinados a essas mulheres. Dessas situações, para mim as mais
inusitadas foram as interlocuções com os meus professores da universidade em que tinha que
defender minha pesquisa. Para alguns dos meus professores, a vida daquelas garotas de programa
só era interessante para mim, antropóloga. Elas não possuíam consciência da situação degradante
em que viviam e, se tivessem, não estariam no lugar onde estavam. Em suas falas, havia sempre
um julgamento moral que as definiam como “menos humanas” – conceito desenvolvido por
Cláudia Fonseca – não tendo autonomia nem sobre o próprio corpo, nem sobre o prazer que ele
proporciona. Além disso, segundo eles, as situações de miserabilidade que elas viviam não
permitiam a elas refletirem sobre a realidade na qual estavam inseridas e eu, olhar de fora, teria o
papel de denunciar os abusos que elas sofriam, assumindo uma postura “salvadora”. Outros
professores e colegas de curso reiteradamente me indagavam sobre meu tema de pesquisa tentando
descobrir razões psicológicas “encobertas” para a minha escolha. Estes diálogos eram marcados
por comunicações nem sempre verbais de que eu estaria à procura de algo ou de experiências

274 Trecho com tradução livre da autora deste artigo.


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acerca da minha sexualidade. Para essas pessoas, uma pergunta pairava sem ser verbalizada em
seus termos diretos, que era se eu me prostituía – sendo esse o motivo pelo qual resolvi realizar a
pesquisa.
Contudo, foram essas situações que me fizeram ter a dimensão, pelo menos parcial, do que
as pessoas que trabalham nessa casa de prostituição passavam. Foi a partir dessas situações pelas
quais passei durante o período da pesquisa, que ascendeu em mim uma luz para várias reflexões:
o quanto conviver em um ambiente de prostituição deixa cravado um sinal, quase impossível de
ser removido, e que faz com que seja tão difícil para quem trabalha ali deixar de trabalhar ou
vivenciar esse mundo. Os pés estão tão bem atados que desfazer os nós requer bem mais que uma
simples disposição, vontade, ou mesmo uma decisão pragmática oriunda de uma escolha racional.
Assim, como destaca Sherry Ortner (2011) ao citar Raymond Williams (1977):
Dizer que os homens definem e moldam as próprias vidas é verdade só em abstrato. Em
qualquer sociedade atual existem desigualdades específicas nos meios e, portanto, na
capacidade de realizar esse processo... Assim Gramsci introduz o necessário
reconhecimento da dominação e da subordinação em algo que, no entanto, ainda tem que
ser reconhecido como um processo integral (WILLIANS apud ORTNER, 2011: 445).

Dessa forma, para compreender as relações assimétricas e como essas se entrelaçam com
os símbolos e significantes que fazem operar os sistemas culturais em determinados contextos
sociais é importante ressaltar que, ao narrarmos às histórias das pessoas, elas não percam
materialidade, tornando-se abstrações do humano. Por isso o processo de afetar-se é necessário,
pois nos mostra as consequências de ocupar determinados lugares.
A pesquisa em alguns contextos torna-se um desafio profissional e pessoal para muitos
pesquisadores, sendo a desigualdade de gênero um fator que perpassa a pesquisa. Se não fosse
mulher, dificilmente seria indagada, mesmo que de forma velada, sobre as minhas práticas e
interesses. Minha sexualidade, meus desejos e minhas condutas não seriam alvo de um escrutínio
moral. Porém, foi essa entrada específica e o fato de ser mulher, jovem que me fez perceber os
efeitos da prática da prostituição nas rotinas e histórias dessas mulheres.
As limitações postas pelas nossas entradas e pelas nossas subjetividades durante a
realização da pesquisa – uma vez que tornar-se pesquisadora é um processo constante de
amadurecimento na compreensão de si e das relações estabelecidas com os outros – faz com que
as pesquisas se constituam como inacabadas, necessitando de retornos aos cadernos de campo.
Aspectos antes negligenciados pelo nosso olhar passam a ganhar novas dimensões. Nesse sentido,
a pesquisa etnográfica requer uma paixão que faça-nos voltar sempre aos locais subjetivos da
memória para experienciar novamente o campo, mesmo quando a distância espaço-temporal não
permite retornar fisicamente a esses lugares – como ressalta o antropólogo João Biehl em
entrevista concedida a antropóloga Patrice Schuch (2016):
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Reconhecer e abraçar o incerto e o desconhecido incentiva uma antropologia mais


experimental e ajuda a manter nossa teoria mais realista e sensata e os nossos modos de
expressão menos figurativos e mais prontamente disponíveis para rupturas, outros
caminhos e desvios (SCHUCH, 2016: 421).

Como uma obra aberta ao inesperado e aos imponderáveis da vida que invadem a pesquisa,
a etnografia se constitui como um método de pesquisa cujo objetivo é elucidar, descrever e
compreender as relações humanas, suas potencialidades e os jogos especulares intersubjetivos
estabelecidos em campo. Enredar-se nesses caminhos não é uma tarefa fácil, porém sem a
disposição ao estranhamento, a pesquisa torna-se inviável, estabelecendo-se lacunas e ruídos
comunicacionais.
“As mulheres se ofereciam por acreditarem em um deus e os marujos as aceitavam por
terem esquecido a sua existência” (SAHLINS, 1990: 26). Esta frase de Sahlins é demonstrativa
das considerações dos trabalhos que desenvolvi, e aqui cito mais especificamente a minha
dissertação de mestrado. Nesse trabalho citado, demonstrei que uma mesma prática, o intercurso
sexual, possui significados e sentidos diferentes para as pessoas que as praticam. Desejo, afetos e
amor são sentimentos e sensações que não encerram relações em si, mas criam sentidos diferentes
que perpassam conexões construídas localmente. No estabalecimento de prostituição em que
realizei minha pesquisa, é possível perceber uma economia da sedução em que o sexo oferecido
pelas garotas de programa aos seus clientes, não é o mesmo sexo oferecido aos seus namorados/as.
Como destacado por elas, a entrega é diferente. Todavia, é o sexo – feito de diferentes formas –
que é trocado por essas garotas por afeto, proteção e cuidado com seus namorados/as e por
dinheiro com os clientes. Nessas intricadas relações, circulam os eixos dinheiro e afeto
distribuídos pelas garotas.
Ao descrever as relações estabelecidas em uma rede de reciprocidade pelas garotas, tive
por intuito narrá-las para além dos termos tradicionais vinculados a prática da prostituição –
cliente, garota de programa, cafetão e gigolô – demonstrando que esses termos são limitados
quando procuram definir de antemão relações sociais. Seus significados são relacionais e
construídos simultaneamente no momento em que são construídas as relações entre os diferentes
atores. Dessa forma, o caráter histórico, social e contextual dos encontros estabelecidos durante
uma pesquisa são aspectos que não podem ser negligenciados, visto que a sociedade encontra-se
em constante mudança e que todo conhecimento produzido é datado – mesmo que parte das
análises seja profícua o suficiente para estimular novas pesquisas e retornos ao campo.

Conclusão
Ao empreender um retorno afetivo aos locais da memória, fruto das minhas experiências
em campo para a elaboração da minha dissertação de mestrado, meu intuito aqui foi destacar a
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importância da etnografia para uma tradição antropológica. Para tal, parto do pressuposto de que
compreender um sistema é, desse modo, “penetrar no funcionamento das relações assimétricas”
e, assim, perceber os encalços que perpassam as teias sociais e que são atravessados por dinâmicas
de poder (ORTNER, 2011). Tais nós não são facilmente percebidos, principalmente quando
estamos enredados em nossas relações cotidianas. A dimensão das relações sociais que são
reproduzidas a partir de naturalizações escapa ao olhar descuidado dos que vagam pelas ruas,
seguindo suas rotinas. Cada coisa em seu lugar, tudo bem ordenado e classificado, não parece
estranho aos que seguem o fluxo de suas atividades.
Assim, por mais que haja um consenso acerca da capacidade de categorizar objetos, e até
mesmo pessoas, o modo como diferentes culturas e atores classificam e ordenam o mundo a sua
volta faz com que antropólogos e pesquisadores de distintas regiões realizem movimentos –
espaciais, afetivos e simbólicos – na direção do outro. Ao empreender esse movimento, a
existência do método etnográfico é a nossa âncora para entrarmos e sairmos de espaços,
transpormos barreiras, desnudando as gramáticas que perfazem práticas e discursos que
configuram as relações sociais estabelecidas em campo e inseridas em dados contextos sócio-
históricos. Como dito anteriormente aqui, detalhar os passos dados é crucial para auxiliar futuros
pesquisadores e contribuir para o surgimento de diálogos profícuos quanto aos limites e
possibilidades de compreensão do outro e de exercício da alteridade.
Esse texto representa uma tentativa de compreensão dos processos empreendidos por mim
durante minhas pesquisas de campo, em que me utilizei dos passos dados durante a dissertação de
mestrado por acreditar que a distância tempo-espaço me permitiu rever o texto e as experiências
de campo por um novo olhar. Um olhar consciente dos limites das pesquisas feitas seguindo prazos
e com a dificuldade de obter recursos suficientes para sua realização. Além do fato de, hoje, os
assédios sofridos no período não prejudicarem tanto e servirem mais ao meu interesse de análise.
Dito isso, quero ressaltar que há sempre limites pessoais que fazem parte do fazer antropológico.
Não deixamos de existir com nossos medos, anseios, problemas pessoais e toda dor e delícia de
ser. São essas dores que aguçam nossas curiosidades, nossas angústias e aflições que nos fazem
sair de nossas casas e enveredar-nos por trilhas desconhecidas. Cabe a nós o compromisso ético
de detalhar nossas escolhas metodológicas, refletir sobre nossas entradas em campo, apontando
sistematicamente as estratégias de pesquisa – tendo o suporte teórico como o guia para as nossas
reflexões.
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LITERATURA, CENSURA E RESISTÊNCIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DE A


FESTA: ROMANCE, CONTOS, DE IVAN ÂNGELO

LITERATURE, CENSORSHIP AND RESISTANCE: an analysis from A Festa:


Romance, Contos, by Ivan Ângelo

Marcos Vinicius Ferreira Trindade – Mestrando em História PPGHIST/UEMA


Orientadora: Profª Drª Carine Dalmás – PPGHIST/UEMA

Eixo Temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: O presente trabalho analisa o uso da literatura como fonte histórica profícua para o
estudo da resistência política e cultural durante a Ditadura Civil-Militar Brasileira. Tomamos
como objeto e fonte de investigação a obra A Festa: Romance, Contos, de Ivan Ângelo, publicada
originalmente em 1976. Partimos do pressuposto de que esta obra constrói representações com
vistas a legitimar certas interpretações sobre o período, a partir da categoria representação, de
Roger Chartier (1990) que estabelece que o texto literário não é uma descrição imediata do real,
mas sim um produto cultural que tem raízes no social. Sendo assim, também pretendemos
demonstrar como o viés histórico presente nas obras literárias utilizadas nesta pesquisa torna-se
fonte para a construção de saberes históricos na sala de aula da educação básica.
Palavras-chave: Ditadura Civil-Militar Brasileira. Literatura de Resistência. Representação e
Censura. História e Literatura.

Abstract: This paper analyzes the use of literature as a useful historical source for the study of
political and cultural resistance during the Brazilian Civil-Military Dictatorship. We take Ivan
Ângelo's work A Festa: Romance, Contos, originally published in 1976, as the object and source
of investigation. We start from the assumption that this work builds representations with a view
to legitimizing certain interpretations about the period, based on the representation category, by
Roger Chartier (1990) who establishes that the literary text is not an immediate description of the
real, but a cultural product that has roots in the social. Therefore, we also intend to demonstrate
how the historical bias present in the literary works used in this research becomes a source for the
construction of historical knowledge in the basic education classroom.
Keywords: Brazilian Civil-Military Dictatorship. Resistance Literature. Representation and
Censorship. History and Literature.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Escola dos Annales trouxe a renovação historiográfica para que o século XX vivenciasse
a transformação na concepção de documento e na relação deste com o Historiador, atravessando
a ideia da defesa da interdisciplinaridade sem sair do campo da História. A concepção renovada
de documento e de seu uso em sala de aula parte do pressuposto de que o trabalho com diferentes
fontes e linguagens pode ser o ponto de partida para a prática do Ensino de História.
Esse diálogo não é fácil, mas extremamente interessante. No caso da Literatura como
documento para a História, percebe-se que existem vários motivos pelos quais a Literatura precisa
ser lida por Historiadores. O primeiro deles é fazer a leitura da Literatura por meio da História
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Social, interessando ao Historiador entender as experiências dos sujeitos em determinada


sociedade e principalmente entender os comportamentos sociais de determinada época. Outro
motivo a se destacar permeia pela compreensão de lugar social, uma vez que o tempo em que se
escreve permite diferenciais e não se pode escrever algo sem pensar o contexto de tempo, espaço
e socioeconômico da produção.
Assim, a Literatura deve ser percebida como fonte de representação social. Esta ao
reproduzir as mais diversas experiências humanas – sejam elas físicas ou psicológicas – dentro de
determinada sociedade, propicia à História compreender os sujeitos de determinada época. Ao se
recuperar aspectos históricos por meio de escritos literários, percebe-se a Literatura também como
documento histórico, levando ao Historiador/Professor de História mudar a possibilidade de
pesquisar/ensinar através destas novas abordagens.
A Literatura, portanto, revela-se como um campo valioso e com múltiplas linguagens para
ajudar na construção da História. Partindo da premissa que cada autor escreve de determinado
lugar social, analisar a História através da Literatura leva a problematização das ferramentas
utilizadas no processo de ensino-aprendizagem e perceber a História Cultural como a História que
“formula as perguntas e coloca as questões, enquanto a Literatura opera como fonte”
(PESAVENTO, 2003, p. 82).
Corroborando com este pensamento, o Historiador britânico Arthur Helps diz que “se você
pretende compreender a sua própria época, leia as obras de ficção produzidas nela. As pessoas
quando estão vestidas em fantasias falam sem travas na língua”, (HELPS apud SEVCENKO,
2004, p. 514), demonstrando assim a Literatura como um documento histórico possível para a
investigação das representações sociais. A História na Literatura acontece em distintas dimensões
e interessa ao Historiador ler a obra para colocá-la em relação com o seu entorno, como
contrapartida do pensamento do século XIX que dizia, conforme aponta Antonio Celso Ferreira,
que “a literatura não documenta o real nem constitui representação semelhante ao discurso
científico, filosófico, político, jurídico ou outros” (FERREIRA, 2013, p. 66).
Deste modo, debater a relação entre História e Literatura e a renovação deste campo é
também perceber que a investigação sobre os objetos culturais são documentos, são testemunhos
e todo documento é um monumento. Ao incluir a Literatura como um documento possível para o
estudo histórico e compreender que ao escrever uma narrativa literária o autor também está
inserido no seu contexto social, dessa forma, “[...] fala ao historiador sobre a história que não
ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela
é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos” (SEVCENKO,
2003, p. 30). É importante perceber que “hoje o método seguido pelos historiadores sofreu uma
mudança. Já não se trata de fazer uma seleção de monumentos, mas sim de considerar os
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documentos como monumentos” (LE GOFF, 2003, p. 525). Destarte, a Literatura além de possuir
seu fator cultural, sendo instrumento de conhecimento ao homem, também é formadora de críticas,
reflexões e ideologias.

A INTERDISCIPLINARIDADE ENTRE HISTÓRIA, LITERATURA E A SALA DE AULA


Partindo do pressuposto que nos últimos anos o uso de outras linguagens nas aulas de
História tornou-se uma temática fecunda de investigação, principalmente no que se refere à práxis
pedagógica e ao Ensino de História pautado na formação crítica dos indivíduos, observa-se que
um itinerário formativo circunscrito em uma formação crítica é imprescindível à
instrumentalização do uso destas linguagens à reflexão da sua práxis e a constituição de uma
identidade profissional forjada, também, na experiência docente.
Em um contexto atual de intenso questionamento do lugar e o papel da escola e das áreas
de Ciências Humanas há que demarcar que o Ensino de História no Brasil e a História enquanto
disciplina curricular é imprescindível para a formação crítica dos cidadãos e como profissionais
da área não podemos perder de vista e nem a defesa de que uma educação crítica prescinde dos
conhecimentos históricos. Desta feita, estamos em um cenário formativo que requer um repensar
sobre o Ensino e reafirmar a área da História. Para tanto, a constituição de itinerários formativos
que possibilite a ressignificação do usos das mais variadas linguagens para o Ensino de História
deve ser pensada já na graduação para ser verdadeiramente colocada em exercício no âmbito da
educação básica a serviço de uma formação cidadã e crítica.
No que se refere ao papel desempenhado pelo docente de História universitário, percebe-
se que este atua em um fazer docente ancorado na historiografia que constituem saberes
acadêmicos que nem sempre sofrerão a transposição didática com vista a entrada no contexto da
escola básica, já que os docentes da educação básica tem se configurado apenas como meros
transmissores dos conhecimentos didatizados nos livros escolares. Além dos desafios referentes
aos saberes acadêmicos e saberes escolares, que quase sempre são vistos como dicotômicos, nos
dias atuais, deparamos com os desafios e demandas que estimulem a atração pela aula de História,
que se configura como uma ação complexa, sobretudo quando se reflete a respeito do tripé: papel
do docente, função social da disciplina e uso de novas linguagens para o Ensino de História.
Como essas mudanças sociais e educacionais são marcadas por essa temporalidade referida
como pós-modernidade em marcas como a fluidez, a volatilidade e a superficialidade de
informações e conhecimentos que têm afetado o cotidiano das pessoas de uma forma geral e assim
proporcionado ao profissional da História a aprender a se reinventar e a lidar com essas novas
demandas, muitas vezes ainda desconhecidas mas, profundamente, desafiadoras. Soma-se a esse
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processo de mudanças societárias o enfrentamento a um cenário de desprestígio social da História


e a desvalorização profissional em várias dimensões.
Os tempos contemporâneos de desfiguramento da escola e da História tem nos forçado a
pensar no Ensino de História perfazendo uma reflexão sobre a historicidade dessa formação que
em um passado não muito distante, em especial dos anos de 1970 para cá, configurava muito numa
dimensão mais tecnicista, com foco em treinamentos baseados em estudos dirigidos e abordagem
de conteúdos de forma decorativa com pouco espaço e práxis reflexiva dos sujeitos e seus entornos
sócio-histórico. Uma vez que a questão central deste modelo era a organização racional dos meios,
no qual o planejamento, elaborado por especialista, era o centro do processo pedagógico e o
docente e os discentes eram relegados a posições secundárias, na medida em que não se valorizava
a relação professor-aluno, pois o discente devia se relacionar com a técnica de ensino.
Esse modo de ensino-aprendizagem com ênfase à reprodução do conhecimento onde
valorizava o treinamento e a repetição para garantir a assimilação dos conteúdos, tinha-se a
consciência de que o problema da educação era, fundamentalmente, um problema de método: a
suposta neutralidade científica implicava em não se questionar as relações entre educação e
sociedade, pois, não havia espaço para a contradição, ou seja, para o pensar crítico. As produções
acadêmicas no campo da História têm valorizado muitas mais as pesquisa voltadas para os eventos
históricos do que para o ensino, a didática, a práxis pedagógica e as políticas educacionais.
Continua, assim, este desafio na produção acadêmica e nos cursos de licenciaturas sobre o Ensino
de História na Educação Básica.
A complexidade ao se interpretar um documento literário para o Historiador se dá pela
necessidade de se compreender o conceito de representação e saber aplicá-lo. Sobre este conceito,
entende-se, conforme Roger Chartier que:

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem


estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma
autoridade à custa de outros, por elas menosprezadas, a de legitimar um projeto
reformado ou a de justificar para os próprios indivíduos as suas escolhas e
condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como
estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos
desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de
representações têm tanta importância como as lutas econômicas para
compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua
concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio. Ocupar-se
dos conflitos de classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-se do
social – como julgou durante muito tempo uma história de vistas demasiado
curtas –, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento
tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais. (CHARTIER,
1990, p. 59).
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Opera-se com a interpretação das representações, que articula três pilares: questões do
tempo do escritor, suas ideologias e a sua forma de escrever. Nicolau Sevcenko aponta que

[...] todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma
vez que os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou
sugeridos pela sua sociedade e seu tempo – e é destes que eles falam. Fora de
qualquer dúvida: a literatura é antes de mais nada um produto artístico, destinado
a agradar e a comover; mas como se pode imaginar uma árvore sem raízes, ou
como pode a qualidade dos seus frutos não depender das características do solo,
da natureza do clima e das condições ambientais. (SEVCENKO, 2003, p. 20).

Aqui é importante salientar que é necessário perceber que o texto literário não é uma
descrição imediata do real, mas sim um produto artístico que tem raízes no social. Percebendo esta
possibilidade interpretativa que o texto literário oferece, nota-se que as diferentes linguagens e
fontes devem estar associadas a uma metodologia de ensino que tome por base a problematização
do conhecimento histórico, o aluno esteja apto a ler o mundo e refletir sobre a relação presente-
passado.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), por exemplo, incorporaram grande parte
do debate e apontam que fonte histórica é tudo o que é registrado pelo homem, portanto, o Ensino
de História atual deve ser pensado para motivar os estudantes na compreensão do conteúdo,
fortalecendo o processo de ensino-aprendizagem como construtor do conhecimento crítico. Ao
utilizar a Literatura, um dos objetivos enunciados nos PCN’s propõe para o quarto ciclo do Ensino
Fundamental durante o processo de ensino-aprendizagem da disciplina de História,

[...] são favorecidos os trabalhos com fontes documentais e com obras que
contemplam conteúdos históricos [...] O confronto de informações
contidas em diversas fontes bibliográficas e documentais pode ser
decisivo no processo de conquista da autonomia intelectual dos alunos.
Pode favorecer situações para que expressem suas próprias compreensões
e opiniões sobre os assuntos, investiguem outras possibilidades de
explicação para os acontecimentos estudados. (BRASIL, 1998, p. 65).

Ao contextualizar o conteúdo trabalhado por meio da Literatura, o Professor de História


adquire condições para a análise histórica, visto que “ela é uma forma de expressão, isto é,
manifesta emoções e visão do mundo dos indivíduos e dos grupos” (CÂNDIDO, 2011, p. 178). A
Literatura intermediando o processo do saber histórico faz com que o processo de ensino-
aprendizagem seja privilegiado pela reflexão sobre como as linguagens estão diretamente ligadas
à História, uma vez que a sala de aula não se configura “apenas onde se transmite informações,
mas onde uma relação de interlocutores constroem sentidos. Trata-se de um espetáculo
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impregnado de tensões em que se torna inseparável o significado da relação teoria e prática, ensino
e pesquisa.” (SCHMIDT, 1997, p. 57).

A FESTA E A RESISTÊNCIA
Publicado originalmente em 1976, A Festa: Romance, Contos permite ao leitor adentrar o
quadro político ditatorial do Brasil dando a dimensão política e percorrendo as denúncias político-
sociais da época, por meio dos nove capítulos que compõem a obra. Já no 1º capítulo é apresentado
fragmentos de depoimentos dos personagens dados ao Departamento de Ordem e Política Social
– DOPS) e a percepção que o romance percorrerá as denúncias político-sociais da época. Temas
como as diferenças entre classes, militância do movimento estudantil são palavras-chave que Ivan
Ângelo expõe para analisar a sociedade e o governo autoritário no cotidiano dos personagens e as
diversas faces que a sociedade brasileira assumiu. Em pleno governo militar, o autor por meio de
uma linguagem simples, soube focar no significado social que essa obra se propunha a trazer.
Ressalta-se a relação entre censura e resistência cultural, uma vez que a Literatura durante
a Ditadura Militar, também serve para transmitir ideias, posicionamentos e também irá sofrer com
a censura imposta. Deste modo, a partir de 1964 a força da censura foi multiplicada e nunca vista
desta forma antes no país e esteva, sobretudo, voltada para as questões políticas, avaliando de
forma subjetiva o que colocasse em xeque a unidade/segurança nacional, como por exemplo, a
Lei de Segurança Nacional, que servia de norte para elencar as diretrizes da censura. Esta lei de
1967 definia as ameaças à ideia construída de nação pelo regime, principalmente no que se referia
à desobediência da ordem político-social. Além deste viés, os campos de produção cultural e
acadêmica também passou por restrições, pois eram dois espaços que contestavam o status quo,
em contrapartida do entendimento moralizante que deveria ser adotado nestas duas esferas.
Esperava-se a resistência à censura durante a década permeada pelo contexto sociopolítico
de repressão. Por resistência, sobretudo seu conceito, é importante ressaltar que o uso de um
conceito deve atentar para a teoria e metodologia que ele será empregado e aqui nos apoiaremos
nos estudos do Historiador alemão Reinhart Koselleck sobre a História dos Conceitos, campo que
ganhou destaque a partir da década de 1950. Desta maneira, para uma palavra ser um conceito,
necessário se faz que ela “a respeito do qual poder-se-ia conceber uma história” (KOSELLECK,
1992, p. 134) e estar dentro de um contexto histórico. Ainda segundo o autor,

De forma evidentemente simplificada podemos admitir que cada palavra


remete a um sentido, que por sua vez indica um conteúdo. No entanto,
nem todos os sentidos atribuídos às palavras eu consideraria relevantes do
ponto de vista da escrita de uma história dos conceitos (KOSELLECK,
1992, p. 135).
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Percebe-se, assim, que é imprescindível a existência da semântica política circundando a


palavra, com fundamento nas relações políticas e sociais, uma vez que “todo conceito é não apenas
efetivo quanto fenômeno linguístico; ele é também imediatamente indicativo de algo que se situa
para além da língua” (KOSELLECK, 1992, p. 136) e que “todo conceito está imbricado em um
emaranhado de perguntas e respostas, textos/contextos” (KOSELLECK, 1992, p. 137). Dessa
forma, aponta-se para a Literatura de resistência, com viés pautado na inquietação que passava
pela sociedade, com a ficção transmitindo ideias, posicionamentos e também sofrendo com a
censura imposta, conforme destaca-se no fragmento a seguir:

Do próprio seio do meu povo sinto elevar-se o apelo: protege-nos, faz algo por
nós para que termine essa nova angústia, esse novo fanatismo, a loucura mística
dos jovens. Estávamos tão confortáveis com a Nova Ordem, tão seguros no nosso
trabalho, certos da queda da inflação, da alta da Bolsa, da vitória na Copa, do
aumento da renda per capita, do desenvolvimento do Nordeste – e vem essa
grande conspiração de fanáticos perturbar nossas certezas. Já não podemos
acordar às seis horas da manhã com a certeza de que dormiremos após a novela
das dez. Já não podemos ver televisão sem que apareça um dos nossos filhos
correndo nas ruas com cartazes obscuros nas mãos. [...] Não podemos apelar para
as leis, porque não há nada nas leis que nos proteja da nova ameaça. Só o poder,
só a autoridade pode nos salvar, apela meu povo. (ÂNGELO, 2004, p. 109).

Percebe-se a alternância da composição do texto, ora se utilizando da veracidade, ora de


textos fictícios, conferindo verossimilhança à obra. Ivan Ângelo também se preocupa em criticar
a modernidade vivenciada na década de 1970, conforme salienta Renato Franco ao dizer que a
obra é “uma crítica contundente à ideia de progresso, uma vez que sublima, na visão dominante,
a permanência do horror e da barbárie na estrutura social” (FRANCO, 1998, p. 171).
Assim, conforme salienta Tânia Pellegrini, a ficção na década de 1970 de modo geral
“estabelece um diálogo com a censura, no qual esta representa o polo mais forte da comunicação.
O traço predominante parece ser, à primeira vista, a referencialidade imediata, o que inclui todas
as formas de realismo: fantástico, alegórico, jornalístico” (PELLEGRINI, 1997, p. 94-95), o que
revela o quão plural se mostrou o desenvolvimento da Literatura e de seus gêneros narrativos,
adotando novos meios para o trabalho literário, traduzidos em textos ousados e fora do habitual
até então, como é o caso de A Festa: Romance, Contos, de Ivan Ângelo, com o intuito de assegurar
seu lugar ante a produção cultural do período.
Dessa forma, a memória é também produzida por aquilo que se observa depois e a
Literatura como forma de resistência deve ser compreendida e analisada como expressão que
representa um instrumento para refutar determinados aspectos da sociedade, como contra conduta,
possuindo uma função social que verse revelar, denunciar e ler a sociedade em que estamos
inseridos, servindo de discurso para entender aquilo que informava e qual era a intenção do autor,
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propondo interpretações através da articulação entre um entendimento sobre a relação entre


passado, presente e subjetividade.
Como a obra é repleta de recortes de jornais, dando essa característica de possuir um
documentário em mãos, Ivan Ângelo se destaca na Literatura Contemporânea no mesmo momento
que esta se compromete com o processo histórico no qual vive o Brasil e faz com que o público
veja por trás de sua escrita, quase decodificada, a representação dos grupos, emoções e situações,
- quer seja nos âmbitos social, econômico, político ou cultural - do Brasil durante a década de
1970.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se considerarmos a premissa que ensinar não é tão somente transmitir conteúdos à outra
pessoa, um dos papéis ao se ensinar sobre as entre História e Literatura de forma integradora e até
mesmo como a Literatura serviu como válvula de escape para o período do Regime Militar, é
permitir que os estudantes construam conhecimentos, tanto aqueles elencados na legislação
educacional quanto aqueles que são proporcionados pela Historiografia que o Professor de
História elege para ministrar suas aulas, uma vez que as escolhas historiográficas definem o lugar
do professor ante o conteúdo.
Para que este posicionamento ocorra cabe ao docente, no processo de ensinar, envolver e
criar condições de efetivação do ensino e aprendizagem e através destas perspectivas se
compreenda o ato de ensinar não somente como um processo técnico e sim como algo que, para
além de apenas estabelecer objetivos, é posto com a necessidade de apropriação, pois, segundo
Freire (1993, p. 27) “[...] não existe ensinar sem aprender e com isto eu quero dizer mais do que
diria se dissesse que o ato de ensinar exige a existência de quem ensina e de quem aprende”.
Analisar como as categorias censura e resistência cultural são abordadas na obra de Ivan
Ângelo permite conceber o entendimento sobre como o tema ainda é recorrente nos mais diversos
espaços e necessita de debates. Dessa forma, continuemos posicionados de forma coerente acerca
do tema, visando a emancipação humana e percebendo a exigência do debate com qualidade para
ser a resposta às necessidades econômicas, políticas, sociais e culturais da sociedade.

REFERÊNCIAS
ÂNGELO, Ivan. A Festa: Romance, Contos. 3.ed. São Paulo: Summus, 1978.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: História.


Brasília: MEC/SEF, 1998.
Página 1253 de 2230

CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro
Sobre Azul, 2011.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:


DIFEL, 1990.

FERREIRA, Antonio Celso. A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi. LUCA, Tania Regina
de. (Orgs.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2013.

FRANCO, Renato. Itinerário político do Romance Brasileiro pós-64: A Festa. São Paulo:
UNESP, 1998.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos
históricos. v. 05, n. 10, 1992.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ª ed. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2003.

PELLEGRINI, Tânia. Cultura e Política em anos quase recentes: cinco cenas e algumas
interpretações. Departamento de Sociologia, UNESP – FCL, 1997.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2ª Edição. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora. A formação do professor de história e o cotidiano da sala de aula.


In: BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997,
pp. 55-66.

SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica ritmos e ritos do rio. IN: NOVAIS, Fernando;
SEVCENKO, Nicolau (Orgs.). História da vida privada no Brasil: República: da belle époque
à era do rádio. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

__________________. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na


Primeira República. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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MEMÓRIAS DE PROFESSORAS AFRODESCENDENTES – PRÁTICAS


ENTRECRUZADAS E ENTRELAÇADAS

MEMORIES OF AFRICAN TEACHERS - INTERRUCTED AND INTERLATED


PRACTICES

Walquiria Costa Pereira


Licenciada em Pedagogia
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Raimunda Nonata da Silva Machado


Docente Adjunto
Departamento de Educação II e Programa de Pós-Graduação em Educação/Universidade Federal
do Maranhão (UFMA)
Agência de fomento: FAPEMA

Eixo temático 2 – Gênero, literatura e filosofia

Resumo: Esta pesquisa aborda como as memórias de professoras afrodescendentes são


construídas nas produções científicas da área da educação e o que revelam sobre as práticas
educativas, enquanto “maneiras de fazer” em universidades brasileiras. Apresenta uma discussão
sobre as memórias, identidades e experiências de docentes afrodescendentes e universitárias,
sustentando-se nos estudos da Nova História (LE GOFF, 2003) e dos movimentos da
Colonialidade (QUIJANO, 2010) e Decolonialidade (GROSFOGUEL, 2016). Faz uso da
arqueologia (FOUCAULT, 2012), garimpando memórias (POLLAK, 1989; KENSKI, 1997; LE
GOFF, 2003) em produções científicas – teses e dissertações, por meio do estado da arte. Analisa
o que as memórias revelam sobre as “maneiras de fazer” (CERTEAU, 2009) destas professoras
em universidades brasileiras. Destaca a necessidade de se ampliar a produção de conhecimentos
sobre a temática, sobretudo na área de educação; a importância social, política, pedagógica,
epistemológica e científica desses estudos na produção das identidades raciais femininas;
memórias enquanto narrativas de experiências de professoras afrodescendentes universitárias
produzidas em suas trajetórias de lutas e enfrentamentos dos racismos e sexismos; as memórias
de resistências que se entrecruzam e entrelaçam umas com as outras; situações vivenciadas durante
suas trajetórias de vida que contribuem na elaboração de suas maneiras de fazer enquanto práticas
educativas nas universidades, elaborando saberes e experiências, mediante a apropriação e
(re)apropriação dos espaços acadêmicos com a produção de experiências geradoras de Práticas
Educativas Afrocentrada.
Palavras-chave: Professoras afrodescendentes. Arqueologia. Memórias. Práticas Educativas

Abstract: This research addresses how the memories of Afro-descendant teachers are constructed
in scientific productions in the area of education and what they reveal about educational practices,
as "ways of doing" in Brazilian universities. It presents a discussion about the memories, identities
and experiences of Afro-descendant and university professors, based on the studies of New
History (LE GOFF, 2003) and the movements of Coloniality (QUIJANO, 2010) and Decoloniality
(GROSFOGUEL, 2016). It makes use of archeology (FOUCAULT, 2012), panning memories
(POLLAK, 1989; KENSKI, 1997; LE GOFF, 2003) in scientific productions - theses and
dissertations, through the state of the art. It analyzes what the memoirs reveal about the “ways of
doing” (CERTEAU, 2004) of these teachers in Brazilian universities. Highlights the need to
expand the production of knowledge on the subject, especially in the area of education; the social,
political, pedagogical, epistemological and scientific importance of these studies in the production
of female racial identities; memories as narratives of experiences of Afro-descendant university
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teachers produced in their trajectories of struggles and confrontations of racism and sexism; the
memories of resistance that intertwine and intertwine with each other; situations experienced
during their life trajectories that contribute to the elaboration of their ways of doing as educational
practices in universities, developing knowledge and experiences, through the appropriation and
(re) appropriation of academic spaces with the production of experiences that generate Afrocentric
Educational Practices.
Keywords: Afro-descendant teachers. Archeology. Memoirs. Educational Practices

Introdução

A história das mulheres na sociedade é permeada por processos de discriminações e


exclusões ao longo dos anos. Em se tratando das mulheres afrodescendentes, essas situações levam
a uma segregação ainda muito maior, uma vez que enfrentam múltiplas formas de desigualdades
como as de gênero, raça e classe.
As mulheres que nos debruçaremos para refletir sobre suas experiências são as professoras
afrodescendentes universitárias. Grupo que ocupa lugar de prestígio social, rompendo com
paradigmas de exclusão ao se apropriarem do trabalho acadêmico que historicamente não vem
sendo pensado para elas. Essa presença das mulheres afrodescendentes nas universidades
brasileiras entendemos como sendo um movimento decolonial de resistência epistêmica.
Olhar esse tipo de resistência epistêmica nas experiências educacionais de mulheres
afrodescendentes universitárias nos inquietou investigarmos as suas memórias de professoras.
Para tanto, recorremos as teses e dissertações, no sentido de averiguar se estas produções
científicas contribuem para dar visibilidade ao movimento de resistência epistêmica que estas
mulheres realizam em suas práticas educativas acadêmicas.
Apoiadas no conjunto das teorizações pós-críticas, buscamos as contribuições da Nova
História transversalizando com os movimentos da Colonialidade e Decolonialidade, por nos
permitir dar visibilidade aos sujeitos e suas experiências, historicamente postos em situação de
exclusão.
Com este olhar, que parte da história de sujeitos que lutam por reconhecimento e
visibilidade, realizamos uma arqueologia de suas memórias garimpando teses e dissertações nos
programas de pós-graduação em Educação, partindo do Banco de Teses e Dissertações da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
Com o uso da arqueologia buscamos “definir não os pensamentos, as representações, as
imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios
discursos, enquanto práticas” (FOUCAULT, 2012, p.169) que nos dão pistas acerca das lutas,
resistências que as professoras acionam, em suas práticas educativas contra os marcadores de
opressão como gênero, raça e classe social.
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Fizemos nosso levantamento, utilizando os seguintes descritores: professoras


afrodescendentes; mulheres afrodescendentes na docência superior; mulheres negras; professoras
negras; professoras negras no ensino superior. Obtivemos como resultado dessas buscas: dez
trabalhos, sendo cinco dissertações e cinco teses, defendidas entre 2008 e 2015. Vejamos:

QUADRO 1: arqueologia das produções científicas

PRODUÇÕES CIENTÍFICAS (2008 a 2015)


Teses Dissertações
1. Trajetórias de mulheres 1. Mulher negra: trajetórias e narrativas da
negras, professoras que atuam docência universitária em Sorocaba – São
no ensino superior: as histórias Paulo
de vida que as constituíram.
2. Tornar-se negro: trajetórias 2. A cor na Universidade: um estudo sobre
de vida de professores identidade étnica e racial de
universitários no Ceará. professores/as negros/as na Universidade
Federal do Maranhão no Campus do
Bacanga.
3. Gerando eus, tecendo redes e
3. Professoras Negras na UERJ e
trançando nós: ditos e não ditos
cotidianos curriculares a partir dos
das professoras e estudantes
primeiros tempos do acervo fotográfico J.
negras nos cotidianos do curso
Vitalino
de pedagogia
4. Enfrentamentos ao racismo e
discriminações na educação 4. Mulher afrodescendente na docência
superior: experiências de superior em Parnaíba: memórias da
mulheres negras na construção trajetória de vida e ascensão social
da carreira docente
5. Mulheres negras no cotidiano 5. Vidas de mulheres negras, professoras
universitário: flores, cores e universitárias na Universidade Federal
sentidos plurais de Santa Maria
Fonte: produzido pelas autoras com base nas teses e dissertações analisadas

Com o procedimento da arqueologia pontuamos que as pesquisas sobre memórias de


professoras afrodescendentes contribuem para dar visibilidade a esse grupo social, evidenciando
suas lutas e enfrentamentos para se afirmarem como intelectuais que resistem e persistem em um
espaço altamente elitista.
Também, proceder essa arqueologia nos possibilitou compreender como as memórias
sociais e educacionais, contribuem no fortalecimento da atuação dessas professoras no âmbito
acadêmico.
Nesse texto, buscamos compreender como as memórias de professoras afrodescendentes
são construídas nas produções científicas da área da educação e o que revelam sobre as práticas
educativas, enquanto “maneiras de fazer” em universidades brasileiras.
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Com a intenção de responder a esse questionamento, apresentamos o estudo da seguinte


forma: no primeiro momento, que abrange a parte introdutória do texto situamos nossa intenção
de pesquisa destacando o percurso metodológico escolhido e apresentando o resultado da
arqueologia realizada.
No segundo momento, em “Arqueologia de memórias: aproximação com as professoras
afrodescendentes universitárias", evidenciamos a presença de professoras afrodescendentes na
docência superior, apresentando quem são as docentes que participam deste estudo.
No terceiro momento, em “Professoras Afrodescendentes Universitárias: memórias
entrelaçadas e entrecruzadas”, apresentamos as experiências dessas docentes e as considerações
acerca de suas práticas educativas. Nas considerações finais, retomamos os principais aspectos
discutidos no texto.

Arqueologia de memórias: aproximação com as professoras afrodescendentes universitárias

As mulheres afrodescendentes pertencem a um grupo social segregado e invisibilizado por


um pensamento hegemônico que as coloca em desvantagem social e profissional, entretanto “há
um grupo que está conseguindo superar os desafios das diferenciações triplicadas e atingir alguma
mobilidade de ascensão” (BOAKARI, 2010, p. 1).
As professoras afrodescendentes universitárias ao se apropriarem do espaço acadêmico
realizam um movimento de subversão a esta lógica eurocêntrica, que não as reconhecem como
mulheres intelectuais, possibilitando o “rompimento com o silencio instituído para quem foi
subalternizado” (RIBEIRO, 2017, p. 90)
Os caminhos trilhados por estas mulheres estão permeados por enfrentamentos a diferentes
formas de opressão impostas e reproduzidas em sociedades moldadas no viés sexista, racista,
patriarcal e eurocêntrica. Esse estudo, “é a melhor maneira de avaliar os avanços em conquistas
de cidadania pelos integrantes do grupo historicamente mais explorado” (BOAKARI, 2010, p.2),
pois, o reconhecimento das mulheres afrodescendentes, que atuam na docência universitária,
evidencia suas trajetórias de lutas e afirmações.
Assim, se faz necessário, também, mapear inicialmente quem são as professoras
afrodescendentes, presentes nas teses e dissertações analisadas, no intuito de que possamos
identificar, posteriormente, suas práticas educativas.

QUADRO 2: professoras afrodescendentes nas produções científicas

Autoras Professoras participantes


TESES
(2008 a
2014)

Maria Clareth Gonçalves Reis Abayomi; Helena; Mônica; Dayse; Mariana


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Maria Auxiliadora de Paula Gonçalves Holanda Luiza; Rejane; Dandara; Melissa


Margareth Maria de Melo Severina; Cristiane; Maria; Margareth
Maria de Lourdes Silva Alika; Núbia; Thulane; Tobega
Maria Aparecida dos Santos Crisostomo Violeta; Margarida; Orquídea; Girassol
Autoras(es) Professoras participantes
DISSERTAÇÕES

1. Maria Aparecida dos Santos Crisostomo MM; MA; ES


(2008 a 2015)

Raimundo Nonato Silva Junior Mauritânia; Mali; Nigéria; Quênia


Isabel Machado Maria José da Silva Oliveira
Maria do Rosário de Fátima Vieira da Silva Kora; Ghaita Africana; Lira Africana; Kalimba
Taiana Flores de Quadros Maria
Fonte: produzido pelas autoras com base nas teses e dissertações analisadas.

Abayomi, Helena, Monica, Dayse e Mariana pertencem a famílias de origem social


pobre que desde a infância reforçaram a construção da identidade racial, influenciando na
participação, dessas mulheres, em movimentos sociais. Suas famílias lhes orientavam na
superação de situações preconceituosas e discriminatórias, enfrentadas durante suas trajetórias de
vidas. Vivenciaram diferentes discriminações de gênero e raça durante suas trajetórias sociais,
educacionais e profissionais.
Luiza, Rejane, Dandara e Melissa, são professoras autodeclaradas negras que viram, na
docência, a possibilidade de ascensão econômica. Enfrentaram diferentes situações de
discriminações de gênero e raça, vivenciando o racismo em suas famílias, entretanto, a percepção
quanto aos preconceitos só foi desenvolvida tardiamente por ocasião do ingresso na universidade.
Severina, Cristiane, Maria e Margareth são professoras de origem familiar pobre, que
enfrentaram diferentes manifestações de gênero e raça durante suas trajetórias educacionais e
profissionais. Essas docentes, também tiveram participações ativas na militância social,
reconhecendo a docência como possibilidade de ruptura com o destino de ser lavadeiras ou
domésticas como seus familiares.
Alika, Nubia, Thulane e Tobega, possuem a identidade racial feminina formada desde a
infância. Cresceram em um ambiente familiar que lhes orientavam a não se rebaixarem diante das
situações de preconceito, discriminação e racismo a que eram submetidas. Para elas, à docência
foi se constituindo como oportunidade para obterem ascensão econômica, embora, estejam
constantemente enfrentando questionamentos no que diz respeito às suas capacidades intelectuais.
Violeta, Margarida, Orquídea e Girassol, durante suas trajetórias docentes, também são
questionadas quanto suas capacidades intelectuais. Para elas, a docência foi um instrumento para
conseguirem ascensão econômica e para enfrentarem, durante suas trajetórias de vida, diferentes
discriminações por serem mulheres afrodescendentes.
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MM, MA e ES são de origem pobre e seus pais possuem pouca instrução formal e viam,
na educação, a possibilidade de acender socialmente e economicamente. Rememoram diferentes
situações de racismo, preconceito e discriminação no âmbito das universidades, dentre os quais,
o fato de serem questionadas quanto as suas capacidades intelectuais.
Mauritânia, Mali, Nigéria e Quênia possuem, em suas trajetórias de vida, experiências
com diferentes discriminações quanto ao gênero, raça e classe. Embora tenham alcançado cargos
de poder nas instituições que trabalham, também são questionadas quanto as suas capacidades
intelectuais e profissionais.
Maria José Oliveira criou o laboratório de Programa de Culturas Populares cujo foco de
discussões eram as contribuições dos negros, índios e brancos para a cultura. Defendia que a
comunidade deveria estar presente na universidade e buscava evidenciar a importância dos
afrodescendentes na construção da sociedade brasileira.
Kora, Ghaita Africana, Lira Africana e Kalimba são militantes dos movimentos sociais
e estudantes de escolas públicas. Elas também entendem a docência como uma forma de ascensão
econômica e ruptura com o destino familiar de ser lavadeira ou empregadas domésticas. Durante
suas trajetórias enfrentaram diferentes formas de discriminações e preconceitos.
Maria é de uma família de classe média, tendo sua trajetória educacional vivenciada em
instituições privadas. Dá ênfase ao fato de ter vivenciado diferentes situações de discriminações
de gênero.
A arqueologia, dessas memórias em produções cientificas (teses e dissertações),
evidenciou que as trajetórias das professoras afrodescendentes universitárias são permeadas por
preconceitos e discriminações, cujos obstáculos são enfrentados, principalmente, no que se refere
as dimensões sociais de gênero, raça e classe.
Desse modo, compreendemos que as memórias sociais e educacionais, dessas professoras,
contribuem na sua atuação pedagógica e científica dentro do espaço acadêmico, uma vez que a
memória “constitui a única possibilidade de fazer fluir o passado e dar visibilidade aos excluídos”
(MOTTA, 2003, p. 119).
Além disso, as contribuições de Jacques Le Goff, nos mostra a memória como “um dos
meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a
memória está ora em retraimento, ora em transbordamento. (2003, p.422).
Nessa ótica “legoffiana”, ao realizar a atividade de rememorar e registrarem suas histórias,
as professoras afrodescendentes universitárias refletem sobre si e sobre o outro, registrando ou
visibilizando diferentes experiências. Contar suas histórias significa um movimento de
(re)apropriação de seu “lugar de fala” (RIBERO, 2017), relatando e protagonizando as suas
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experiências sociais, afinal, “há lembranças que esperam o momento propício para serem
expressas” (POLLAK,1989, p.5).
O protagonismo, dessas experiências educacionais, faz emergir tudo “aquilo que “nos
passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente
o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação” (LARROSA, 2002, p.
26).
Com base nessa afirmativa, os acontecimentos vividos formam e transformam a vida
dessas docentes, uma vez que as suas narrativas de experiências revelam, ainda, o quanto exercem
influência na atuação dessas mulheres no espaço acadêmico. Afinal, ao narrarem suas histórias,
as docentes afrodescendentes universitárias “se movem para cima e para baixo nos degraus de sua
experiência” (BENJAMIN, 1994, p.215).
Outro elemento importante, a considerar, é a construção da identidade racial dessas
docentes. Em sendo uma categoria complexa que está em constante processo de construção,
formada e transformada diariamente (GOMES, 1995), pois, ser professora, ser afrodescendente e
ser profissional do magistério superior é um processo de luta por valorização e reconhecimento
deste lugar identitário, sobretudo, quando se trata da população fenotipicamente afrodescendente
e de ascendência sulsaariana. Logo, é uma forma de subverter saberes estereotipados sobre este
grupo. Este é o movimento decolonial que chamamos de resistência epistêmica!
Essas questões ampliam nosso debate acerca da opressão racial. Para Cunha Junior, por
exemplo, “a identidade afrodescendente não é construída pelos caracteres fenotípicos, como
muitos acreditam. É constituída por conjuntos amplos, complexos de motivações e condições
culturais, sociais, econômicas e políticas” (2005, p.257).
Logo, o movimento de resistência epistêmica passa pelo processo de conscientização da
opressão racial, indagando a construção das identidades dessas professoras afrodescendentes
universitárias, a partir de suas próprias experiências sociais e educacionais desenvolvidas durante
suas vidas, cuja trajetória, influenciam inclusive na construção de suas práticas educativas e
acadêmicas, mostrando o quanto as suas memórias se entrelaçam e entrecruzam, como veremos a
seguir.

Professoras Afrodescendentes Universitárias: memórias entrelaçadas e entrecruzadas

As professoras afrodescendentes universitárias, se constituem como intelectuais que


“produzem um conhecimento que tem como objetivo dar visibilidade a subjetividades,
desigualdades, silenciamentos e omissões em relação a determinados grupos sociorraciais e suas
vivências” (GOMES, 2010, p.495).
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As suas experiências são acontecimentos vividos, os quais são representados por


dificuldades, contradições e conquistas (POLLAK,1989) que, ao serem rememorados,
possibilitam inovações na academia, impulsionadas pela presença/particpação dessas professoras.
Configurar esses acontecimentos como memória é, de acordo com Kenski (1997, p.142): “algo
mais complexo e que exige do sujeito um conjunto de operações mentais ampliado e
diversificado”.
Sem esquecer dessas complexidades que, também, singularizam os sujeitos, destacamos,
nesta arqueologia de memórias, algumas regularidades presentes nos discursos das professoras
afrodescendentes universitárias acerca de suas experiências na docência universitária. Com
Foucault (2012, p.176), compreendemos regularidade discursiva como sendo “o conjunto das
condições nas quais se exerce a função enunciativa que assegura e define sua existência”.
Com este entendimento, vimos que as docentes afrodescendentes universitárias possuem
narrativas cujas histórias se entrecruzam e entrelaçam umas com as outras. Ao rememorar suas
trajetórias, elas evidenciam suas lutas, superações e resistências ao padrão eurocêntrico que
privilegia as relações de poder existentes na sociedade.
A maioria das professoras (sujeitos das pesquisas) são de origem familiar pobre, que viam
na educação uma possibilidade na ascensão social e econômica, destacando que as trajetórias
educacionais foram realizadas em escolas públicas.
As trinta e quatro docentes presentes nas produções científicas analisadas, enfrentaram
durante suas trajetórias de vida situações que envolveram discriminações de: gênero, raça e classe.
Temos professoras que estiveram inseridas, desde a infância, em famílias que se
preocupavam com as questões raciais, fortalecendo a construção de seu sentimento de
pertencimento racial. Por outro lado, temos docentes que enfrentaram dentro da própria família
situações que envolvem discriminação racial.
Destacamos que todas as professoras vivenciaram situações de questionamentos quanto
suas capacidades intelectuais e competência docente, enfrentando questionamentos de alunas/os e
principalmente de outras/os professoras/es.
Com as narrativas foi possível evidenciar que: a escolha do magistério foi uma “tática”
(CERTEAU, 2009) escolhida por estas mulheres para superar/vencer as dificuldades enfrentadas
pelos sujeitos marginalizados e subalternizados, uma vez que “À medida que a mulher negra se
fizer mais presente na universidade em posições sociais e profissões em que antes não lhe era
permitido, promoverá transformação nas expectativas da sociedade” (CRISOSTOMO, 2014,
p.80):
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Sobre isso, nos alerta bell hooks275 (1995, p. 468):

[...] toda a cultura atua para negar às mulheres a oportunidade de seguir uma vida da
mente, torna o domínio intelectual um lugar interdito. Como nossas ancestrais do século
XIX, só através da resistência ativa exigimos nosso direito de afirmar uma presença
intelectual. O sexismo e o racismo, atuando juntos, perpetuam uma iconografia de
representação da negra que imprime na consciência cultural coletiva a ideia de que ela
está neste planeta, principalmente, para servir aos outros (HOOKS, 1995, p. 468).

De fato, ao ingressar nesse espaço, que historicamente não foi pensado para elas, estas
professoras afrodescendentes, realizam um movimento de subversão a essa lógica epistêmica
moderna cujo discurso hegemônico está substanciado pela colonialidade do poder e saber
(QUIJANO, 2010).
Ao se (re)apropriarem desse espaço, realizam um movimento de “desobediência
epistêmica” (MIGNOLO, 2008), e, ao desenvolverem uma prática educativa de valorização da
história e cultura africana, rompem com a colonialidade de poder, de ser e de saber buscando a
“decolonização do pensamento” (GROSFOGUEL, 2016).
A participação de militância dessas professoras no âmbito dos movimentos sociais,
contribuiu na construção de “maneiras de fazer” próprias, dentro da academia, possibilitando que
desenvolvam práticas educativas de valorização do sujeito afrodescendente, ou seja, práticas
educativas afrocentradas como sendo uso de conteúdos e estratégias que valorizam e reconhecem
as contribuições dos conhecimentos africanos na formação da sociedade brasileira e demais
diásporas africanas.
Essas maneiras de fazer “constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam
do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural” (CERTEAU, 2009, p. 41). Dentre
essas milhares de práticas estão as afrocentradas. Assim, as maneiras de fazer das professoras
afrodescendentes universitárias, são táticas afrocentradas para se apropriarem da universidade, por
meio de suas práticas educativas, e mais, abrem caminhos para estruturação de uma outra lógica
epistêmica que inclui a população afrodescendente em espaços de prestígio social.
Considerando que as práticas educativas possuem intencionalidade, logo, não são neutras,
quando estas promoverem o ensino e a valorização da história e cultura africana, por meio de
discussão nas disciplinas, em orientações de artigos, monografias e atividades em grupos de
estudos e pesquisas, estão questionando a lógica epistêmica eurocentrada, dando visibilidade aos
“saberes subalternizados” (MIGNOLO, 2003).

275
Embora do ponto de vista da gramática normativa os nomes próprios sejam grafados com iniciais maiúsculas, a
autora Glória Jean Watkins exige que seu pseudônimo bell hooks, escolhido em homenagem aos sobrenomes da
mãe e da avó, seja grafado com letras minúsculas
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Por isso, compreendemos as maneiras de fazer das professoras, a partir dos princípios da
Afrocentricidade, ou seja, “um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos
como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com
seus próprios interesses humanos” (ASANTE, 2009, p.93).
Com suas maneiras de fazer afrocêntricas, as docentes subvertem estigmas e preconceitos
estabelecidos na sociedade brasileira, ainda bastante excludente. Assim, argumentamos que estas
professoras afrodescendentes possuem uma prática educativa afrocentrada, uma vez que a
afrocentricidade “gira em torno da cooperação, da coletividade, da comunhão, das massas
oprimidas, da continuidade cultural, da justiça restaurativa, dos valores e da memória como termos
para a exploração e o avanço da comunidade humana” (ASANTE, 2016, p. 12).
As professoras afrodescendentes deste estudo são mulheres que possuem posicionamento
racial e reconhecem a necessidade e importância da discussão sobre as questões raciais na
universidade, assim, realizam um movimento subversivo para se afirmarem nesse espaço,
buscando contribuir para que os sujeitos se reconheçam dentro de sua própria história.

Considerações Finais

Historicamente, as mulheres enfrentam diferentes situações de discriminações, exclusões


e silenciamento, cujo destaque estão as mulheres afrodescendentes que fazem parte de um grupo
social mais segregado e invisibilizado.
Evidenciar as memórias de professoras afrodescendentes universitárias é uma
possibilidade de ruptura com a lógica eurocentrada, que desvaloriza os saberes e experiências de
sujeitos subalternizados.
As professoras afrodescendentes universitárias que compõem nosso estudo, são mulheres
afrocentristas que desafiam a lógica epistêmica de desvalorização da história e cultura africana e
afrodescendente, ao se apropriarem e, continuadamente, lutarem por manter a apropriação de um
espaço historicamente não pensado para elas.
Esse movimento de (re)apropriação do espaço universitário se dá mediante as suas próprias
experiências sociais e educacionais como docentes no magistério superior. Estas são utilizadas
como instrumento para se posicionarem e divulgarem a importância do reconhecimento e
discussão das questões raciais no âmbito acadêmico.
As professoras, em sua maioria são oriundas de famílias pobres que viram na docência
uma possibilidade de ascensão econômica. São mulheres que precisam sempre lutar para se
afirmarem nesse espaço (movimento de reapropriação), pois mesmo que tenham titulações,
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precisam sempre comprovarem que possuem capacidades intelectuais, uma vez que são
questionadas devido a “colonialidade do ser e poder” existente nos discursos acadêmicos.
Com esse estudo foi possível destacar:
 A necessidade de se ampliar a produção de conhecimentos sobre a temática,
sobretudo na área da educação, uma vez que só encontramos dez produções (teses
e dissertações) que discutem sobre a presença de professoras afrodescendentes na
docência superior;
 A importância social, política, pedagógica, epistemológica e científica desses
estudos na produção das identidades raciais femininas;
 As memórias enquanto narrativas de experiências de professoras afrodescendentes
universitárias produzidas em suas trajetórias de lutas e enfrentamentos dos
racismos e sexismos;
 As situações vivenciadas durante suas trajetórias de vida que contribuem na
elaboração de suas maneiras de fazer enquanto práticas educativas nas
universidades, elaborando saberes e experiências, mediante a apropriação e
(re)apropriação dos espaços acadêmicos com a produção de experiências geradoras
de Práticas Educativas Afrocentrada;
As trajetórias de vidas das professoras afrodescendentes universitárias, presentes nas
produções analisadas, são permeadas de lutas contra os estereótipos estabelecidos por uma
sociedade hegemônica branca e masculina, que desvaloriza suas capacidades intelectuais e
competência docente. Essas mulheres estão sempre resistindo e persistindo para se posicionar e se
afirmarem nesse espaço que historicamente não foi pensado para elas. Eis alguns modos de
construção da resistência epistêmica, práticas educativas afrocentradas e movimentos de
reapropriação de reconhecimento identitário!!!!

Referências

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CERTEAU, M. de. A Invenção do cotidiano: artes de fazer. 16ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

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MOVIMENTO LGBTQI+: ANALISE DA COMUNIDADE LGBTQI+ DA CIDADE DE


IMPERATRIZ-MA

LGBTQI + MOVEMENT: analysis of the LGBTQI + community in the city of Imperatriz-


MA

Fernando Brasil Alves


Graduado em Ciências Humanas/Sociologia, pós graduado lato sensu em ensino de sociologia e
filosofia
Orientador: Edson Ferreira da Costa
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará
Prof. assistente da Universidade Federal do Maranhão, campus de Imperatriz
Instituição: Universidade Federal do Maranhão, Campus Imperatriz-MA
E-mail: brasilfernando03@gmail.com e edsonferreiradacosta@gmail.com
Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Ao nos debruçarmos sobre o movimento LGBTQI+, nos deparamos dos grandes desafios
que ainda existe no cenário para combater e minimizar os impactos em que os membros da
comunidade LGBTQI+ como todo tem perante a sociedade civil brasileira. Enquanto o movimento
a nível de Brasil avançava, a nível municipal/regional o movimento regrediu ou estagnou-se,
ficando invisível a sua atuação (...). A proposta deste artigo é trabalhar/problematizar a partir da
coleta de dados dos LGBTQI+ que vivem na cidade de Imperatriz-MA e a realidade em que
encontra-se a comunidade destes integrantes que ainda consta marginalizado ou “dentro do
armário” diante da sociedade conservadora que reprimi e padroniza as relações sociais aceitas pelo
viés heteronormativo. Entretanto, é visível, que existe uma comunidade LGBTQI+ que consume,
alimenta-se culturalmente e sobressai diante do preconceito “velado” em que são submetidos os
LGBTQI+ locais, como alguns eventos corriqueiros e casamentos LGBTQI+, por exemplo. Foi
trabalhado como referencial teórico Joao Silvério TREVISAN (2002) a obra “Devassos no
paraíso” e “Abaixo do equador” do autor Richar PARKER (2002), além de outros autores que
trabalham o movimento LGBTQI+ como todo. Nos objetivos gerais foi abordado como está o
movimento LGBTQI+ da cidade de imperatriz que partindo de três vieses que são: os preconceitos
do cotidiano, politicas LGBTQI+ locais e por fim, questões afetivas – partindo desses elementos,
foi usado como método qualitativo de pesquisa que utilizou entrevistas com os alguns personagens
da comunidade LGBTQI+, tendo como pano de fundo, os eventuais eventos que ocorreram na
cidade de Imperatriz. Foi constatado, alguns signos sociais que questiona a atuação política do
movimento LGBTQI+ local, ficando perceptível que politicamente não existe um movimento
LGBTQI+ próprio com identidade própria, mas a atuação em lutas dos direitos civis LGBTQI+
parte de alguns outros movimentos sociais que militam pelo mesmo – além deste, também foi
perceptível que existe uma barreira no imaginário social local em que trava uma articulação maior
dos próprios LGBTQI+ em torno de um movimento que aglutina, a priori, que partem deles e para
eles. Nas considerações finais percebe um silenciamento por parte da sociedade civil local e assim
como também, de alguns LGBTQI+ em dialogar/refletir a respeito da comunidade LGBTQI+ de
Imperatriz. Lembrando que a cidade nos anos 80 e 90, possuía grupos específicos que militavam
em prol dos seus membros.
Palavras-chave: LGBTQI+. Movimento social. Politica. Visibilidade. Respeito.

Abstract: As we look at the LGBTQI + movement, we are faced with the great challenges that
still exist in the scenario to combat and minimize the impacts that the members of the LGBTQI +
community as a whole has before Brazilian civil society. While the movement at the level of Brazil
was advancing, at the municipal / regional level the movement has regressed or stagnated, making
its performance invisible (...). The purpose of this article is to work / problematize from the data
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collection of LGBTQI + who live in the city of Imperatriz-MA and the reality of the community
of these members who are still marginalized or “inside the closet” in the face of conservative
society that repressed and standardized the social relations accepted by the heteronormative bias.
However, it is visible that there is an LGBTQI + community that consumes, nourishes itself
culturally and stands out in the face of the “veiled” prejudice to which local LGBTQI + are
subjected, such as some common events and LGBTQI + weddings, for example. The work
“Devassos no paraíso” and “Below the equator” by the author Richar PARKER (2002), as well as
other authors who work with the LGBTQI + movement as a whole, was worked on as a theoretical
framework Joao Silvério TREVISAN (2002). In the general objectives, the LGBTQI + movement
in the city of Empress was approached, starting from three biases that are: everyday prejudices,
local LGBTQI + policies and finally, affective issues - based on these elements, it was used as a
qualitative research method that used interviews with some characters from the LGBTQI +
community, against the background of any events that occurred in the city of Imperatriz. It was
found, some social signs that questions the political action of the local LGBTQI + movement,
being noticeable that politically there is no own LGBTQI + movement with its own identity, but
the performance in LGBTQI + civil rights struggles + part of some other social movements that
militate for the same - in addition to this, it was also noticeable that there is a barrier in the local
social imaginary where there is a greater articulation of the LGBTQI + themselves around a
movement that brings together, a priori, that comes from them and for them. In the final remarks,
he perceives a silence on the part of the local civil society and, as well as, some LGBTQI + in
dialoguing / reflecting on the LGBTQI + community in Imperatriz. Recalling that the city in the
80s and 90s, had specific groups that militated on behalf of its members.
Keywords: LGBTQI +. Social movement. Politics. Visibility. Respect.

INTRODUÇÃO

A comunidade LGBTQI+ de Imperatriz tem passado por questionamentos que resultaram


uma observação acerca do movimento que ocorre dentro da comunidade LGBTQI+ da cidade.
Ficando perceptível que na cidade temos uma comunidade que consome, trabalha, pagar os seus
impostos municipais – mas a mesma comunidade, não tem um movimento ou articulação política
própria para os membros da comunidade LGBTQI+ local.
O artigo visa analisar a comunidade LGBTQI+ e em seguida compreender que marcadores
sociais impede uma formação de militância em prol dos direitos civis já conquistados no Brasil
para a população LGBTQI+.
Ficou notório que a cidade de Imperatriz, tem um pequenos grupos formado por pessoas
LGBTQI+ que se divertem, consomem, brincam, e em alguns momentos se solidarizam-se, mas
uma vez questionado a respeito de formação de um grupo político com protagonismo LGBTQI+
que possa lutar por espaços civis locais, fica o silencio no ar.
Foi usado o método qualitativo de pesquisa, com observação dos Gays, Lésbicas,
Transgêneros, Travestis, Transexuais, não-binário, Bissexuais, Drag Queen, Binário, Intersexual
e outras identidades de gênero que se propuseram participar desta pesquisa. Além da observação,
também foi utilizado entrevistas formais e informais para os LGBTQI+ assumidos ou não. Para
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saber qual relevância da comunidade LGBTQI+ versus movimento LGBTQI+ na cidade e na


região Tocantina.
Na sequência, dentro do método qualitativo, foi construído uma breve linha do tempo dos
acontecimentos isolados (congressos, encontros e palestras) que tratam a respeito que questões
políticas voltadas para a comunidade LGBTQI+ de Imperatriz, nos últimos 5 anos da história local
– e o resultado foi bastante interessante para o levantamento desta breve linha de tempo.
Como referencial teórico foi trabalhado autores que já demostra essa preocupação social
a respeito da comunidade LGBTQI+ brasileira – autores como Joao Silveiro TREVISAN (2002),
a obra “devassos no paraíso” e a obra “na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao
LGBT” dos autores, Júlio Assis SIMOES e Regina FECCHINI (2009).
Falar de movimento LGBTQI+ na segunda maior cidade do estado do Maranhão, nos
remete um desafio no campo de investigação social que encontra-se visível para o objeto desta
pesquisa. No decorrer da observação e entrevistas formais e informais – foi percebido um
sentimento coletivo que construir algo que pudesse aglutinar os LGBTQI+ locais, mas a esfera do
preconceito que é sentido na cidade, “trava” para a construção para agregar a luta para o
movimento LGBTQI+ de Imperatriz-MA.
DESENVOLVIMENTO
Cabe refletir um pouco sobre a atmosfera cultural e política do Brasil na década de 1070,
que se inicia sob o signo da ditadura escancarada, imposta no final de 1968 com a
promulgação do ato institucional nª 05. A primeira metade da década corresponde aos
nossos anos de chumbo, o período mais violento de perseguições, torturas e assassinatos
cometidos pelos órgãos da repressão política. Um braço dessa repressão fazia seu peso
sobre os costumes, nutridos as atividades paralelas em todas as cidades, então conhecidas
como “esquadrões da morte”. Os territórios ampliados de sociabilidade homossexual
eram alvo regular de incursões policiais e parapoliciais desse tipo, a pretexto de combate
à vadiagem e ao tráfico de drogas (SIMOES & FACCHINI 2009, p. 75).

O movimento LGBT no Brasil tem passados por grandes desafios e questionamentos que
transcende toda um conjuntura de debate nacional a respeito dos direitos civis LGBTQI+ já
conquistados e os que estão na pauta nacional do movimento LGBTQI+ como todo, como o pauta
pela criminalização da homofobia pelo viés legislativo – apesar que houve no ano de 2019 a
equiparação dos casos de homofobia aos casos de racismo pelo viés judiciário276.

276
Decisão: O Tribunal, por maioria, conheceu do mandado de injunção, vencido o Ministro Marco Aurélio, que não
admitia a via mandamental. Por maioria, julgou procedente o mandado de injunção para (i) reconhecer a mora
inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha
a legislar a respeito, a Lei nº 7.716/89 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação
sexual ou identidade de gênero, nos termos do voto do Relator, vencidos, em menor extensão, os Ministros Ricardo
Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente) e o Ministro Marco Aurélio, que julgava inadequada a via mandamental.
Plenário, 13.06.2019.
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Na esfera estadual, no ano de 2006 foi aprovado a lei de nª 8.444 de 31 de julho277 do


mesmo ano que trata e dispõe “sobre penalidades a serem aplicadas à pratica de discriminação em
virtude de orientação sexual, e da outras providencias.
Na cidade de Imperatriz, localizado na região sul do Maranhão, houve presença de grupos
organizados politicamente com identidade LGBTQI+ locais nas décadas de 80 e anos 2000.
Grupos esses que tentaram lutar e aglutinar forças para resistir ao preconceito a população
LGBTQI+.
Na linha temporal da história local, o primeiro grupo LGBTQI+ com identidade própria
foi o grupo “AGIR”, associação gay de Imperatriz e da região Tocantina – que teve uma forte
atuação política e de entretenimento nos anos 70 e 80, e resistindo na primeira metade da década
90. O grupo, segundo uns relatos de membros e outros que transitavam pelas reuniões do grupo,
estava mais focado em momentos festivos da cidade, como carnaval e momentos esportivos.
A respeito de formação de base para agregar novos membros, como também para combater
o preconceito que os LGBTQI+ enfrentava na época – não havia algo construído que possuía como
foco esclarecimento a respeito da identidade LGBTQI+ ou questões civis.
No imaginário local da cidade, mesmo nos tempos atuais, uma parcela da sociedade civil
local, ainda detém uma imagem pejorativa dos LGBTQI+ que a qual o movimento LGBTQI+
nacional vem tentando combater e descontruir a imagem negativo que os Gays, Lésbicas,

277
LEI Nº 8.444 DE 31 DE JULHO DE 2006
Dispõe sobre penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em virtude de orientação sexual, e dá
outras providências.
O GOVERNADOR DO ESTADO DO MARANHÃO,
Faço saber a todos os seus habitantes que a Assembleia Legislativa do Estado decretou e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Fica estabelecida a aplicação de penalidades, nos termos desta Lei, a toda e qualquer manifestação atentatória
ou discriminatória praticada contra qualquer cidadão em virtude de sua orientação sexual, no âmbito do Estado do
Maranhão.
Art. 2º Consideram-se atos atentatórios e discriminatórios aos direitos individuais e coletivos dos cidadãos
homossexuais, bissexuais ou transgêneros, para os efeitos da presente Lei:
I – submeter o cidadão, conforme a sua orientação sexual, a qualquer tipo de ação violenta, constrangedora,
intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica;
II – proibir o ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou privado, de acesso
público;
III – praticar atendimento selecionado que não esteja devidamente determinado em Lei;
IV – preterir, sobretaxar ou impedir a locação, compra, aquisição, arrendamento ou empréstimo de bens móveis ou
imóveis de qualquer finalidade;
V – preterir quando da ocupação e/ou imposição para pagamento de mais uma unidade em hotéis, motéis ou
estabelecimentos congêneres;
VI – praticar o empregador, ou seu preposto, atos de demissão direta ou indireta, em função da orientação sexual do
empregado;
VII – inibir ou proibir a admissão ou o acesso profissional em qualquer estabelecimento público ou privado em função
da orientação sexual do profissional;
VIII – proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero,
sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos.
Art. 3º São passiveis de punição o cidadão, inclusive os detentores de função pública, civil ou militar, e toda e qualquer
organização social ou empresa, com ou sem fins lucrativos, de caráter privado ou público, instaladas em território do
Estado do Maranhão, que intentarem contra o que dispõe a presente Lei.
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Transgêneros, Transexuais, Travestis, Intersexual, Bissexuais e outras identidades sexuais em


voga.
Ao tentar entrar contato com os ex integrantes desse grupo, houve uma omissão em não
querer participar da pesquisa. Depois muita conversa formais, encontros e desencontros, uns dos
membros, decidiu participar da pesquisa dando a sua participação para a pesquisa.
“O agir foi um grupo que deixou profundas marcas para muita gente. Naquela época nós
estávamos mais focado em diversão, se é que me entende. Não tínhamos uma
preocupação maior a respeito da política que estivesse voltada para nós, para os gays
sabe? Hoje com a cabeça que eu tenho, vejo que o AGIR, errou e errou muito. Nós era
para ter um grupo forte mesmo hoje. Atuando. Combatendo o preconceito e lutando
mesmo nessa cidade interiorana. O resultado é que você ver hoje, uma cidade grande que
ainda tem um certo medo da nós. E os gays e lésbicas que tem hoje, não querem lutar,
pois o preconceito assusta e mata. (Entrevista concedida no dia 1 de agosto de 2018).

O AGIR, encerrou as suas atividades na primeira metade da década de 90 – deixando de


atuar e ficando um espaço de lutas que para a população LGBTQI+ local.
Nos anos 2000, um grupo de universitário, organizado pelo movimento social “coletivo
rua”, organizaram-se e passaram a reunir-se com fins de entender a ausência de um movimento
que viesse lutar pela população LGBTQI+ local. Nascendo assim o grupo “FRENTE LGBTQI+
de Imperatriz” – grupo este formado por jovens universitários que estudavam questões de gênero,
identidade de gênero, direitos civis e outros assuntos relacionados a comunidade LGBTQI+ da
cidade.
O grupo também teve um breve momento de atuação, porém, agiu de forma significativa
de atuação e agregando membros pela causa LGBTQI+ local. O grande marco de atuação do
movimento foi o encontro de formação política LGBTQI+ que ocorreu em maio de 2016, com
participação de 200 pessoas e voluntários no evento que ocorreu no auditório de uma universidade
local.

Autor: ALVES, 2016


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No ano seguinte, a FRENTE LGBTQI+ de Imperatriz começou a desarticular-se e os


membros com o tempo foram assumidos outras atividades e o grupo resultou no fechamento do
mesmo. Ficando mais uma vez uma lacuna na luta pela população LGBTQI+ local.
O AGIR e a FRENTE LGBTQI+, foram dois movimentos de grande importância que a
cidade tinha, mas os mesmos não conseguiram lançar bases que pudesse dar uma sustentação ao
movimento LGBTQI+ na cidade de Imperatriz-MA. Caindo em esquecimento no decorrer dos
anos.
No decorrer da pesquisa foi constatado uma dualidade de signos que gira em torno dos
LGBTQI+ da cidade a respeito da comunidade LGBTQI+ versus movimento LGBTQI+. Como
foi citado acima, a cidade tem visivelmente uma comunidade LGBTQI+ que consome e transita
em várias esferas civis da cidade. Assim como também, na cidade, possui lugares propriamente
LGBT’s a qual os mesmos se encontram para se entreter; que são 01 boate que está localizado na
avenida Beira Rio, e mais 03 bares que estão localizados em pontos estratégicos da cidade. Além
destes pontos fixos, ocorre quinzenalmente, segundo alguns relatos, festas fechadas aonde os seus
frequentadores são majoritariamente LGBT’s. Festas essas que ocorrem em clubes fechados que
são amplamente divulgados pelas mídias sociais.
Nas conversas informais com os “LGBT’s” que frequentam esses ambientes, quando
foram questionados a respeito do “movimento LGBT”, as respostas foram mais inusitadas a
respeito deste questionamento.
“Para que movimento LGBT na cidade? Os gays não quer lutar pelos seus direitos. Difícil
lutar pelos seus direitos morando numa cidade que não dá a mínima para nós. O
preconceito é visível. Para mim, é uma perca de tempo lutar pelos direitos LGBT numa
cidade que não dar a mínima para nós” (Entrevista concedida no dia 01 de outubro de
2018).

Também é visível uma série de informações desencontradas dentro dos membros da


comunidade LGBTQI+ a respeito de lutar pelos direitos civis locais. No decorrer das conversas
informais a palavra “preconceito” foi citada várias e várias vezes como uma espécie de
justificativa que impedia uma articulação maior e com protagonismo LGBTQI+ local.
Partindo de outro ponto da pesquisa, no decorrer da observação, foi perceptível que a luta
pelos direitos LGBTQI+ estava sendo suscitado por outras bandeiras de outros movimentos
sociais locais, em especial o movimento de mulheres, o AFIM, Articulação Feminista de
Imperatriz, e movimento de combate HIV/AIDS, com um núcleo de atuação na cidade.
Falar em movimento social com protagonismo LGBTQI+ de Imperatriz nos remete
nuances de analises e situações que agregam mais valor a pesquisa exploratória a respeito dos
LGBTQI’s locais.
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No decorrer da pesquisa, ficou perceptível que a cidade nos últimos 05 (cinco) anos da sua
história local; realizou eventos com pauta LGBTQI+ com a debate e discussão acadêmica e
política a respeito para agregar e difundir mais a “causa LGBTQI+” na cidade. Na linha do tempo
dos últimos cinco anos temos os seguintes eventos ocorridos e organizados por pessoas que
demostram interesse pelo tema ou pesquisam o mesmo com a finalidade de coletar dados para
suas perspectivas pesquisas.
Em 2016, como foi já foi mencionado, os membros da FRENTE LGBT de Imperatriz
realizou 1 encontro de formação política da comunidade LGBTQI+ de Imperatriz. Realizado num
espaço de uma universidade local com a participação de 200 pessoas. Evento que houve uma co-
parceria da Defensoria Pública e do Ministério Público da cidade.
Em junho do ano de 2017, mês do orgulho LGBTQI+ foi realizado exibições de filmes
com temática LGBTQI+ no projeto “Cinema no Teatro”. Todas as segundas feiras do mês de
junho, foi exibido os filmes e em seguida, pós filme, era feita o debate com os participantes que
prestigiava os filmes LGBTQI+. Uma das sessões que deu um público considerável, foi a exibição
do filme “Orações para Bob”, a qual gerou uma comoção com os participantes desta especifica
sessão a respeito do preconceito em que enfrenta no seio familiar os LGBT’s.

Autor: ALVES, 2016

No ano de 2018, um grupo de acadêmicos com a participação de professores do curso de


pedagogia da UFMA – organizaram a realização do evento “I seminário gênero e educação na
escola” que ocorreu no auditório da cidade.
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FONTE: ASCOM/UFMA

A comunidade LGBTQI+ de Imperatriz apresenta uma estrutura contraria as lutas que


visam pelos direitos civis LGBT’s locais. A causa LGBTQI+ é levantada não pelos próprios
LGBT’s da cidade e sim por outras bandeiras de outros movimentos sociais que solidarizam com
a luta LGBTQI+. Na fala de uma das organizadores do AFIM, Articulação Feminista de
Imperatriz, diz
“Mais é assim que eu vejo, que os movimentos sociais, movimento de esquerda. E em
sua maioria, e principalmente os movimentos puxados por mulheres, não digo por
homens. Mas movimento que tem mulheres na frente, elas se solidarizam com o
movimento LGBT de Imperatriz. Inclusive quando tem pauta e questões na câmara que
envolvem público LGBTQI+ quem está lá, são as mulheres. São Feminista puxando do
que até o próprio movimento LGBTQI+ de Imperatriz. Se existe, já são dentro de grupos
que já existe, entendeu? Eu ainda não tenho conhecimento se existe um grupo forte
consolidado, aqui na cidade. Exclusivamente que trate as questões LGBTQI+ aqui em
Imperatriz” (entrevista concedida no dia 28 de novembro de 2019)
Ainda nesta linha de pensamento, a fala do coordenador do movimento de combate
AIDS/HIV que faz um trabalho social com as travestis e garotos e garotas de programa ao longo
da rodovia que corta a cidade de Imperatriz. Diz a respeito da comunidade LGBQI+ de Imperatriz,
“Aqui não há movimento social LGBT certo, os movimentos que nós temos, o
movimento DST HIV AIDS. Movimento LGBT não existe. Nenhuma pessoa, não tem
nenhuma ong que trabalhe especificamente a população LGBT” O próprio meio LGBT
de Imperatriz, eles não se articular e a própria população em si, não se assume que é gay,
que é lésbica, entendeu? Fica sempre somente na obscuridade, nos guetos. Difícil alguém
ir na mídia e assumir que sou gay, que eu vou levantar a bandeira, é complicado, porque
a cidade em si é muito preconceituosa. (Entrevista concedida 28 de novembro de 2019).

Apesar que historicamente a cidade já teve em sua conjetura grupos organizados


politicamente por LGBT’s, mas a qual não trabalhou um pensamento de classe que pudesse lançar
formações mais profundas nos demais membros da comunidade LGBTQI+ local. Faz ficar
estagnado o movimento político com protagonismo LGBT local e no seu lugar resulta uma lacuna
a qual favorece o preconceito local em que a comunidade passa e vem sofrendo ataques
homofóbicos que ocorre no cenário local.
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A cidade, que foi relatado por um dos entrevistados, assim como também, por conversas
informais com outros indivíduos da comunidade LGBTQI+ e outros pesquisadores. Descreve que
a cidade de Imperatriz apresenta uma forte resistência em relação aos LGBT’s. Acreditando, que
esse particular, é um empecilho que trava uma boa parte dos LGBT’s em formar e aglutinar um
grupo próprio que lute de forma organizada e em conjunto a pauta LGBTQI+ de Imperatriz.
Mesmo havendo uma comunidade LGBTQI+ visível que frequenta os espaços ou guetos LGBT’s
pela cidade.
No decorrer da coleta de dados e no processo de observação deste referido trabalho. Ficou
perceptível a existência de pequenos grupos com “identidades LGBT’s” (formado por 4 ou 8
pessoas ou até mais em alguns momentos próprios) que reúne-se com a finalidade da diversão e
socializar momentos comuns entre si. Grupos esses que se reúne na Avenida Beira Rio ou em
outros ambientes da cidade. Ficando visivelmente forte, uma cultura de entretimento LGBT para
esse público afim. Reforçando que a comunidade LGBQI+ de Imperatriz é heterogênea.
Ou seja, é comunidade dinâmica e polarizada em questões culturais e estruturais, mas a
respeito da pauta LGBT nacional – a cidade fica na condição de estagnada, devido não haver um
grupo forte que trabalhe e lute pelos membros, como todo, para que os direitos civis já
conquistados a nível nacional possam ser aplicados na cidade. Como o uso do nome social278 para
as pessoas transgêneros e transexuais e a união civil279 para as pessoas do mesmo sexo.
No ano de 2019, ocorreu outros eventos de cunho LGBTQI+ que foram amplamente
divulgados pelos organizadores e também combatidos por pessoas contrarias à realizações dos
eventos.
No primeiro semestre do ano, houve a apresentação do espetáculo “Quem Tem Medo de
Travesti”, organizado e dirigido pelo ator Silvério Pereira – o mesmo, também palestrou num
evento com a participação de aproximadamente 200 pessoas ou até mais num auditório local. O
coletivo cearense, “as travestidas” visa debater e socializar experiências LGBTQI+ no palco.
Levando em conta preconceito, resistência e sororidade entre os LGBTQI+ por onde passam.

278
DECRETO Nº 8.727, DE 28 DE ABRIL DE 2016
Art. 1º Este Decreto dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas
travestis ou transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Parágrafo único. Para os fins deste Decreto, considera-se:
I - nome social - designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida; e
279
RESOLUÇÃO Nº 175, DE 14 DE MAIO DE 2013
Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão
de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.
Art. 2º A recusa prevista no artigo 1º implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as
providências cabíveis.
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FONTE: SENA, 2019

Em seguida, no Salão do Livro de Imperatriz, SALIMP, ocorreu também uma mesa com
tema “A comunidade LGBTQI+ de Imperatriz: entre avanços e desafios”. Ocorrido no decorrer
da feira literária, o debate tratava-se de debater quem são/eram os LGBTQI+’s que moram na
cidade de Imperatriz.
Na mesa estavam presente as pessoas, segundo as suas orientações sexuais que se
propuseram debater e refletir esse tema e uma das situações ficou bem claro o debate, foi o
questionamento a respeito de políticas públicas voltadas para a comunidade LGBTQI+ da cidade.
Politicas essas que são silenciadas pelo sistema político local ou ainda não demostraram interesse
em lidar com essa realidade social vigente local.
Um outro ponto de grande questionamento, foi a respeito do forte conservadorismo e
preconceito que gira em torno dos LGBT’ que vivem na cidade e ao mesmo tempo, isso reflete na
estagnação que impede uma aglutinação e formação de um grupo que milite por LGBQI+ com
protagonismo LGBTQI+.
Ficando subentendido que para haver lutas para uma comunidade LGBTQI+ deve partir
dos próprios membros desta comunidade. Entretanto, essa luta ou bandeira, vem sendo travada
por outros movimentos sociais – situação essa que foi citado neste trabalho acadêmico.
Na cidade de Imperatriz fica bem claro que a mesma tem uma comunidade LBTQI+
entretanto, não tem um grupo organizado politicamente que luta pelos direitos civis e combate a
homofobia local na cidade por próprios LGBT’s.

FONTE: ALVES, 2019


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Nas conversas formais e informais, no percurso deste trabalho, foi visitado os lugares em
que os mesmos se encontram, os “guetos ou ambientes LGBTQI+”, e a justifica a respeito de não
haver um grupo articulado politicamente por gays, lésbicas, transgêneros, transexuais, bissexuais,
intersexual, pansexuais, binário e outras identidades de gênero e sexual, é o preconceito que tem
na cidade. Assim como também, foi perceptível que uma boa parte dos próprios LGBTQI+ não
sabia aonde recorrer, caso sofresse um crime de homofobia na cidade.
A respeito de formação política/base ou a respeito da militância LGBTQI+ desconhecia
ou pouco importava-se com a luta ou não a respeito dos direitos civis já conquistados por e para
os LGBT’s no nível federal e estadual por exemplo.
São muitas e muito rápidas as transformações que atravessam o movimento LGBT no
momento atual. Novos sujeitos, novos discursos, pluralidade de visões, novas formas de
atuação, diversos tipos de disputas e tensionamentos. Para procurar entender o cenário
contemporâneo, voltamos às tensões que ganham força após a passagem dos anos 1990
para os anos 2000. (FACCHINI & RODRIGUES, 2018, p. 249).
As lutas do movimento homossexual, enfrentou várias situações e desafios – além da
perseguição do regime militar e do senso comum enraizado no imaginário de uma parcela da
sociedade brasileira como todo. Se tratando do preconceito, cidade de Imperatriz é ímpar neste
debate a respeito da comunidade e movimento LGBQI+ - em comparação com outras cidades no
mesmo porte desta, como as cidade de Araguaína no Tocantins e Marabá no Pará. Cidades estas
que possuem um coletivo atuante que atua em parceria com órgãos públicos, para combater o
preconceito e lidar com situações problemas que gira em torno da população LGBTQI+, como
campanhas de prevenção ao suicídio, a prevenção das IST’s, renda e trabalho e outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, falar de movimento LGBQI+ na cidade de Imperatriz é falar e citar somente do


movimento, mas antes é falar da comunidade LGBQI+ que tem na cidade e os seus respectivos
movimentos de transição que vem passando. Desde o surgimento do primeiro e extingo grupo de
articulação LGBTQI+, o AGIR, passando pelo o segundo grupo, A FRENTE LGBTQI de
Imperatriz, transitando pelos eventos de cunho LGBTQI+ que ocorrem na cidade, como chamativa
para agregar e reativar o movimento, palestras, cafés literários, e os outros movimentos sociais
que puxam a causa LGBTQI+ para si.
Ser LGBQI+ no interior de um país que segrega direitos e obriga deveres para as minorias
sociais é um desafio social constante a qual refuta no dia a dia das minorias sociais. Situações
essas que reflete não somente na população LGBQI+, mas também nas comunidades quilombolas,
nas nações indígenas e outros que vivem fora da norma padrão da sociedade brasileira.
A respeito da comunidade LGBQI+ de Imperatriz versus movimento que leva o seu nome,
na cidade tem um campo que tende a se expandir e se solidificar, mas, é o preconceito e as suas
Página 1279 de 2230

raízes e consequências que travam o movimento local. O “conservadorismo” e a “moral”,


elementos presentes e fortes no cenário local são os signos significativos que afastam uma
aglutinação maior dos LGBT’s para a consolidação do movimento na cidade.
Entendemos que essa problemática ainda apresenta uma ideia inconcluso o andamento
desta pesquisa e a qual somente uma consciência de classe para a comunidade LGBTQI+, os seus
membros, possa levantar a bandeira, e por fim, a militância em prol dos direitos civis já
conquistados na esfera nacional e que possam ser aplicados na esfera local. Buscando lançar bases
para uma atuação e protagonismo LGBTQI+ no sertão sul maranhense.
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MULHERES NA CIÊNCIA: A PERCEPÇÃO DOS DISCENTES DO ENSINO MÉDIO


DE ESCOLAS PÚBLICAS DE PINHEIRO – MA SOBRE SUA INSERÇÃO NA
CIÊNCIA

WOMEN IN SCIENCE: THE PERCEPTION OF HIGH SCHOOL STUDENTS FROM


PUBLIC SCHOOLS IN PINHEIRO - MA ABOUT THEIR INSERTION IN SCIENCE

Antony Ruan Rodrigues


Graduando do Curso de Licenciaturas em Ciências Naturais Pinheiro da Universidade Federal
do Maranhão – UFMA
antonyrodrigues.of@gmail.com
Iandra Regina França Pereira
Graduanda do Curso de Licenciaturas em Ciências Naturais Pinheiro da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA
iandrar19@gmail.com
Isabele Rodrigues Brito
Graduanda do Curso de Licenciaturas em Ciências Naturais Pinheiro da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA
isabritorodrigues.27@gmail.com
Maria Francisca Soares
Graduanda do Curso de Licenciaturas em Ciências Naturais Pinheiro da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA
soaresmaria970@gmail.com
Hellen José Daiane Alves Reis
Professora da Coordenação do Curso de Licenciaturas em Ciências Naturais Pinheiro da
Universidade Federal do Maranhão – UFMA
Mestra em Ensino de Ciências e Matemática
hellendaianereis@gmail.com
Eixo Temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Quando se pensa na presença da mulher no mundo da ciência é tão expressivo e as suas
contribuições científicas se manifestam nas mais diversas áreas do conhecimento. Por muito
tempo, com exceções, as mulheres não puderam desenvolver pesquisas nem mesmo como
auxiliares, já que, até em meados do século XIX eram impedidas de frequentar as instituições de
ensino. Diante da situação histórica da inserção das mulheres na ciência, buscou-se analisar as
contribuições das mesmas para despertar o interesse de discentes de ensino médio de escolas
públicas de Pinheiro – MA para o meio científico. A pesquisa em questão caracteriza-se como de
abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso, onde para obter os dados realizou a aplicação de
questionários de caráter misto. A escola por ser formadora de cultura, ela deveria possibilitar os
alunos e alunas a se apropriarem da mesma. Na exploração do material, notamos uma grande
divergência quanto aos interesses pelas ciências exatas, naturais, humanas e linguística, nas
escolas A, B, C e D, por exemplo, é grande o número de dificuldade encontrada pelas meninas
nas disciplinas que contemplam as ciências exatas e da natureza sendo essas com 156 relatos, já
para ciências humanas e linguagens contabilizamos 27 relatos. Percebe-se ainda, alguns resquícios
da educação tradicional nas justificativas dos questionários, das quais destacamos, os fatos da
rigidez dos professores em sala e da grande quantidade de conteúdos para serem “decorados”.
Palavras-chave: Escola; Mulheres na Ciência; Educação básica; Discentes.
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Abstract: When one thinks about the presence of women in the world of science is so expressive
and her scientific contributions manifest themselves in the most diverse areas of knowledge. For
a long time, with exceptions, women could not develop research even as auxiliaries, since until
the mid-19th century they were prevented from attending educational institutions. Given the
historical situation of women's insertion in science, we sought to analyze their contributions to
arouse the interest of high school students from Pinheiro public schools – MA for the scientific
environment. The research in question is characterized as a qualitative approach, of the case study
type, where to obtain the data performed the application of mixed questionnaires. The school
because she is a culture trainer, she should enable students and students to appropriate it. In the
exploration of the material, we noticed a great divergence regarding the interests of the exact,
natural, human and linguistic sciences, in schools A, B, C and D, for example, the number of
difficulty encountered by girls in the disciplines that contemplate the exact sciences and nature
being these with 156 reports, already for humanities and languages we counted 27 reports. It is
also noticed, some remnants of traditional education in the justifications of the questionnaires, of
which we highlight, the facts of the rigidity of teachers in the classroom and the large amount of
contents to be "decorated".
Keywords: Women in science; Insertion; Basic education; Students.

1. INTRODUÇÃO
Analisando a história, nota-se que a Ciência era uma atividade voltada para os homens.
Conforme Leta (2003, p. 1),

A mudança nesse quadro inicia-se somente após a segunda metade no século XX, quando
a necessidade crescente de recursos humanos para atividades estratégicas, como a
ciência, o movimento de liberação feminina e a luta pela igualdade de direitos entre
homens e mulheres permitiram a elas o acesso, cada vez maior, à educação científica e à
carreiras, tradicionalmente ocupadas por homens.

Mesmo diante dessas mudanças ocorridas por parte das mulheres, a representação de
quem faz e pode fazer Ciência ainda é masculina, fazendo com que as mulheres sejam minoria
nessa área. Atualmente, observa-se o número considerável de mulheres em muitas
universidades do país e instituições de pesquisa, entretanto, apesar dessa crescente
participação feminina no mundo científico, ainda é verificado que tal participação vem
ocorrendo de maneira dicotimizada, aquém da presença masculina em determinadas áreas.

Foram muitos os confrontos e conflitos, mas, atualmente, as mulheres ocupam cargos


importantes na Ciência, apesar de não haver uma condição de igualdade. Esse fato se dá pela
educação desigual, por isso há, ainda, essa divisão de gênero nas áreas de conhecimentos,
fazendo acreditar que as mulheres devem se concentrar em “coisas de mulheres”, em
profissões de menor status social, reconhecimento e remuneração.
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Enquanto os meninos recebem mais estímulos para lidar com instrumentos associados
ao mundo masculino, como ferramentas, máquinas, computadores e outros, as meninas passam
por um processo de socialização diferenciado onde elas são estimuladas a lidarem com
assuntos que envolvem mais as áreas de saúde, educação e bem-estar, que acabam fazendo
parte dos seus interesses futuros. Toda essa formação acontece por meio da educação informal
estabelecida pela família, mídia e relações sociais. Como ressalta Silva e Ribeiro (2014).

Na construção das suas carreiras, as mulheres também se defrontam com a necessidade


de conciliarem as responsabilidades familiares com as exigências da profissão. A
profissão científica tornou-se, sem dúvida, um tipo muito particular de profissão
“moderna”, a qual possui uma cultura específica no processo de aquisição dos requisitos
básicos para pertencer à comunidade científica. Tal cultura está centrada em valores
masculinos que se impõem, em certa medida, como obstáculos para a efetiva participação
das mulheres na ciência.

No início do século XX, a Ciência era culturalmente definida como uma carreira
imprópria para as mulheres, como ressalta Carvalho e Casagrande (2011, p.23) “[...]as
mulheres eram proibidas de frequentar lugares públicos, entrar em bibliotecas, universidades,
publicar resultados de suas pesquisas ou discutir em posição de igualdade sobre seus
conhecimentos com os cientistas. ”

Tais conflitos, acabam implicando na integralidade da mulher com o meio científico.


Segundo Silva, Ribeiro (2014, p. 451)

A trajetória das mulheres na ciência é formada numa cultura baseada no “modelo


masculino de carreira” que envolve compromissos de tempo integral para o trabalho,
produtividade em pesquisa, relações academicamente competitivas e a valorização de
características masculinas que, em certa medida, dificultam, restringem e direcionam a
participação das mulheres nesse contexto. Nessa perspectiva, é muito mais difícil para a
mulher seguir uma carreira científica numa sociedade ainda de caráter patriarcal e em
que as instituições sociais capazes de facilitar o trabalho da mulher ainda são uma
aspiração a conquistar.

Apesar de tantos desafios, muitas mulheres, “traindo a própria natureza” participaram


da produção do conhecimento científico, algumas delas alcançaram lugar de destaque um dos
primeiros nomes que surge em nossa mente é o da física polonesa Marie Curie (1867-1934),
que recebeu dois Prêmios Nobel de Ciência, o Nobel de Física em 1903, juntamente com Pierre
Curie e Henri Becquerel, e o Nobel de Química em 1911, pela descoberta do Polônio e do
Rádio e pela contribuição no avanço da química (CHASSOT, 2004). Além de Marie Curie,
outras mulheres destacaram-se na área da Ciência, pois ela não foi a única mulher que deixou
seu registro na comunidade científica.

No que diz respeito as mulheres na Ciência no cenário brasileiro, Melo e Rodrigues


(2013) em seu Livro intitulado Pioneiras da Ciência no Brasil fizeram uma homenagem para
aquelas que romperam barreiras e quebraram tabus, conquistando um espaço até então,
ocupado pelo sexo oposto, incentivando dessa maneira, futuras cientistas brasileiras e de todo
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o mundo. No livro, elas citam Bertha Maria Júlia Lutz (1894-1976), uma brasileira zoóloga,
política e diplomata. Figura de destaque no movimento feminista pan-americano e no
movimento de direitos humanos. Ela foi fundamental para a obtenção sufrágio feminino no
Brasil e representou seu país na Conferência das Nações Unidas sobre Organização
Internacional, assinando seu nome na Carta das Nações Unidas. Fora o seu trabalho político,
ela era naturalista no Museu Nacional do Brasil, especializada em sapos venenosos.

Elisa Frota Pessoa, foi outra pioneira no mundo científico, nascida no ano de (1921 –
2018), a mesma era física experimental brasileira. Sendo ela, uma das primeiras mulheres a se
formar em física no Brasil, em 1942, e membro fundadora do Centro Brasileiro de Pesquisas
Físicas. “Suas contribuições mais importantes na pesquisa em física foram: introduziu a
técnica de emulsões nucleares no Brasil e a aplicou em vários campos, como física nuclear,
biologia, partículas elementares[...]” (MELO, RODRIGUES, 2013, p.18).

Essas mulheres e muitas outras fizeram a grande diferença no mundo da Ciência, pelo
fato de viverem numa época em que, para se ter sucesso em matemática, Ciências ou
engenharia, as mulheres precisavam de coragem, determinação além de inteligência e, é claro
que elas se encaixavam nesses requisitos, porém não foi fácil e não é fácil. A conquista de
prêmios nas áreas de Física, Química e Matemática - Ciências Exatas - é um evento positivo,
pois tende a motivar as mulheres que trabalham em tais áreas, sendo elas a minoria
(CASEIRA, 2016).

Com base no exposto, Melo e Rodrigues (2006, p.1) argumentam que,

“[...] a inclusão das mulheres nas profissões cientificas tem acontecido de forma
muito lenta e em número muito pequeno quando comparado ao número de
homens nas áreas das Ciências Exatas, tais com Matemática, Física e
Engenharias, porém as mulheres aparecem em maioria nas áreas ligadas às
Ciências Humanas e Sociais.”
Vale enfatizar, que as mulheres ainda sofrem enorme preconceito nessas áreas, pelo
fato de serem áreas consideradas “masculinas”. “A condição biológica foi utilizada para
justificar as inaptidões conforme o sexo e foram e ainda são determinantes para colocarem as
mulheres em formações consideradas apropriadas a sua condição física e psíquica.” ALVES
(2017, p.9). Além de serem rotuladas como sendo o sexo inapto para algumas áreas do
conhecimento, ainda precisam lidar com o impasse da vida acadêmica e da atenção que devem
atribuir à sua família, isso, quando optam pela carreira científica. Muitas de fato, até tentam,
mas acabam desistindo da profissão ou porque precisam dedicar seu tempo à família ou porque
são desestimuladas.

Sobre isso, Colling (2004, p.31-32) afirma que,


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A mulher foi construída com uma natureza - “a natureza feminina”. Ao delimitar


o espaço privado e doméstico, a função de esposa e mãe como única alternativa
digna e possível ao feminino, enclausura-se a mulher no lar, sem acesso à palavra
(a palavra pública, do poder) e cria-se a representação de “anjo e rainha do lar”,
figura e lugar santificado que a mulher interpretou como uma homenagem do
homem à sua companheira.
Percebe-se, que houve e ainda há uma ausência de apoio à essas mulheres que
desejavam e desejam fazer Ciência, claro que não tão veemente quanto nos anos passados, o
fato é que ainda existe, e isso reflete diretamente na vida delas. Quanto a essa realidade, é
importante salientar que nem o homem e nem a mulher nasceram conhecedores de rotulações,
estas nas quais determinam que a mulher “é a rainha do lar” e o homem é o “homem da casa”,
aquele que tem como obrigação trabalhar para custear os gastos da família, porém eles
cresceram tendo como base essa cultura, que refletiu na vida das mulheres de maneira
negativa, pois elas foram reprimidas por um longo tempo de muitas coisas, uma delas foi
expandir seus conhecimentos científicos. É claro que o cenário começou a mudar, ainda lento,
mas as mulheres começaram a conquistar o reconhecimento pelos seus trabalhos,
demonstrando aos homens que além de serem mulheres elas ainda são mulheres cientistas.
Nesse sentido, Caseira e Magalhães (2015, p.1528) afirmam que,

[...]não se nasce mulher/homem cientista com aptidões para ciência, mas são os diversos
espaços pelos quais transitamos que constituem nossas múltiplas identidades, que nos
ensinam modos de viver e definir as masculinidades e feminilidades, bem como as
atribuições de quem é legitimado para produzir conhecimento com aquelas características
que são designadas como necessárias para fazer ciência – racionalidade, neutralidade,
entre outras.

Nessa perspectiva, a escola como formadora de cidadãos, que contribui com o


desenvolvimento de seus valores culturais, sociais e cognitivos, possui um papel importante
para a construção do conhecimento científico, ou melhor dizendo, para o processo de
“enculturação científica”, na qual os alunos serão inseridos a uma cultura denominada cultura
cientifica, tal processo acontece no ensino de Ciências. Nesse ensino, os alunos precisam
compreender não somente o conteúdo em si, mas entender que o ensino de Ciências é para
todos e vai além do gênero ou das hierarquias sociais.

Os estudos de gênero devem ser inseridos nas discussões sobre Ensino de Ciências não
só pela presença das mulheres em atividades científicas que são mais evidentes hoje em
dia, mas também porque a Educação preocupa-se não só com os processos de
aprendizagem em sala de aula, mas também dos aspectos subjetivos e sociais. O papel da
escola e do Ensino de Ciências dentro de uma sociedade que ainda ressalta as diferenças,
os estereótipos e hierarquiza homens e mulheres em se tratando de aprendizagem deve
ser discutido. (SANTOS, 2013, p. 2).

Na escola, tanto de ensino fundamental quanto de ensino médio, os alunos e as alunas


precisam compreender o papel da Ciência, pois essa compreensão os ajudará a entender melhor
o universo do qual fazem parte. Além disso, necessitam de sensibilização para que seja
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quebrado esse tabu de que apenas os homens podem fazer Ciência, e dessa forma, consigam
construir uma nova visão de oportunidades para as meninas e/ou mulheres que poderão vir a
ser futuras cientistas. De acordo com Santos (2013, p.4),

Os estudantes do Ensino Básico, quando tem oportunidade de participar do processo de


pensar, realizar e apresentar dados de uma pesquisa está sendo preparado para criticar o
conhecimento que lhe é ofertado. Além disso, a criação de um grupo de pesquisa que
envolva as Ciências e que tenha participação das meninas, apresenta-se como um espaço
que procura, conforme discutido acima, diminuir a exclusão feminina que muitas vezes
é corroborado pelas disciplinas de Química, Física e Matemática. Através da criação de
um grupo de pesquisa em Ciências nas escolas, as meninas se sentem incentivadas a não
temer estas ciências e, independente das escolhas profissionais que fizerem, ter a
oportunidade de experimentá-las e pensar sobre elas.

Sabendo que tais fatores podem servir de estímulos para a inclusão dessas meninas
e/ou mulheres em áreas nas quais são minorias (Química, Física, Matemática e entre outras),
os docentes precisam estar preparados, para contribuírem na construção de conhecimento
científico, incentivando singularmente a participação das alunas nos grupos de pesquisas,
despertando assim, o interesse contínuo do estudo da Ciência para além da sala de aula. Além
disso, por ser o ambiente no qual a importância dos progressos das mulheres no meio científico
deve ser evidenciada a escola tem o poder de influenciar nas mudanças de atitudes das meninas
no sentido de fazer as mesmas acreditarem em seu potencial como futuras cientistas,
exploradoras, inovadoras e inventoras.

São por esses motivos dentre tantos, que esta pesquisa se torna relevante quando visa
salientar o papel da mulher no campo científico, ressaltando o quão marcante foram as suas
conquistas até os dias atuais. Visto que, no decurso de um tempo, tinham algumas das suas
vontades privadas, por questões sociais relacionadas ao “ser mulher”. Por mais que os homens
atualmente tenham maior reconhecimento profissional, percebe-se que aos poucos algumas
conquistas de grande relevância são alcançadas por elas. Conquanto, espera-se maior destaque
ao trabalho delas, uma vez que, além de fazerem Ciência ainda lideram alguns dos seus
principais campos.

Diante disso, esta pesquisa tem como finalidade, potencializar a visibilidade da mulher
na Ciência, enfatizando seu papel dentro da área, no intuito de trazer incentivo e o interesse
dos discentes para o meio científico, analisando possíveis motivações para o porquê dos alunos
e alunas não expressarem interesse na carreira científica. Sendo papel da escola, despertar
nestes, independente de gênero, a curiosidade e a consciência de que conhecer o universo é
uma atividade que a torna mais rica como ser humano. Com base nisso, algumas questões se
colocam: Qual a contribuição da escola no papel de enculturação científica? Qual o interesse
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dos discentes para a área das Ciências? Por que as Ciências não são um atrativo para os
discentes seguir uma carreira profissional?

2. METODOLOGIA
O trabalho tem como base uma abordagem de natureza qualitativa, consistindo em um
método subjetivo para análise das percepções e motivações relacionadas com grupos individuais
e problemas específicos, neste tipo de pesquisa o ambiente é o objeto de estudo em questão, deve-
se manter em contato direto com o pesquisador não dando prioridade para medições e nem
numerações (PRODANOV E FREITAS, 2013, p. 70). Além disso à abordagem qualitativa,
responde as questões particulares, se preocupando com o grau de realidade que não pode ser
quantificado, uma vez que trabalha com um universo de significados, motivações, crenças, valores
e atitudes, correspondentes a um espaço em que as relações dos processos e fenômenos são mais
profundas (MINAYO, 1995, p. 21-22).

Tal análise caracteriza-se como um estudo de caso que visa expor a realidade e explicar
como e porque ocorre o tema em questão, pois segundo Gil (2008, p. 57 – 58) é um tipo de “(...)
estudo profundo e exaustivo de um ou poucos objetos, de maneira a permitir o seu conhecimento
amplo e detalhado (...)”. Que “tem por objetivo proporcionar vivência da realidade por meio da
discussão, análise e tentativa de solução de um problema extraído da vida real.” (GODOY, 1995,
p.25).

Este trabalho foi realizado em quatro escolas localizadas na cidade de Pinheiro – MA.
Após nosso primeiro contato com a direção de cada escola foi nos permitido aplicação dos
questionários com os sujeitos da pesquisa. Para preservar o anonimato dos sujeitos e das escolas
utilizou-se de códigos alfa numéricos, para isso, usou-se a letra “S” para indicar sujeito, “A, B, C
e D” como os indicadores das escolas e “01, 02, 03 ... 0n” referindo-se à sequência dos sujeitos.
Com relação aos questionários, Chizzotti (2003, p. 130) afirma que “(...) é um instrumento para
coleta de dados formado por questões previamente elaboradas com a finalidade de obter respostas
dos sujeitos”. Em seguida, foi explicada em cada turma o porquê da pesquisa, e a importância da
mesma no nosso processo de formação enquanto discentes de ensino superior.

A pesquisa em questão obteve os dados a partir da aplicação desses questionários de caráter


misto, contendo perguntas abertas e fechadas, tais como: “Quais disciplinas você mais sente
dificuldade? a) Física; b) Química; c) Matemática; d) Biologia; e) História; f) Geografia; g)
Sociologia/Filosofia; h) Língua Portuguesa. Qual a dificuldade? Justifique. Para a aplicação, os
campos de pesquisa adotados foram as Escolas A, B, C e D. Conforme a Tabela I, estabelecemos
o quantitativo de alunos matriculados no ensino médio regular e no 3º (terceiro) ano.
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TABELA I - Matrículas dos Alunos


MATRÍCULA MÁTRICULAS
ESCOLAS NO ENSINO
NO 3º ANO
REGULAR
Escola A 895 257
Escola B 871 335
Escola C 299 64
Escola D 644 *
* Turmas divididas por módulos

Quanto aos sujeitos da pesquisa, foram escolhidos discentes do 3º (terceiro) ano, uma vez
que já estavam prestes a concluir o ensino básico e posteriormente, ingressarem no ensino
superior. Isto porque a pesquisa visa o estudo das dificuldades encontradas pelos os discentes em
seguir carreiras cientificas.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES
Foram aplicados 150 (cento e cinquenta) questionários em apenas uma turma do 3º
(terceiro) ano de cada escola, sendo a mesma escolhida de forma aleatória. De acordo com a
Tabela II, descreve-se o quantitativo de mulheres e homens que participaram da pesquisa em cada
escola.

TABELA II - Quantitativo dos Questionários


TOTAL DE
ESCOLA MULHERES HOMENS
ALUNOS
Escola A 29 12 17
Escola B 28 14 14
Escola C 15 6 9
Escola D 19 13 6
Total 91 45 46

No total obtivemos 91 (noventa e um) questionários respondidos aptos, para análise


levamos em consideração o método de Bardin (1977, p. 95 - 102). Esse método consiste na técnica
de organização dos dados coletados de forma sistematizada, utilizando os indicadores para
compreender a mensagem, o mesmo é constituído por três etapas. Na primeira, a pré análise,
fizemos a leitura sucinta para seleção dos questionários que nos fornecesse todos os dados
solicitados, na segunda, exploração do material, notamos uma grande divergência quanto aos
interesses pelas Ciências exatas, naturais, humanas e linguística, nas escolas A, B, C e D, por
exemplo, é grande o número de dificuldade encontrada pelas meninas nas disciplinas que
contemplam as Ciências exatas e da natureza sendo essas com 156 (cento e cinquenta e seis)
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relatos, já para Ciências humanas e linguagens contabilizamos 27 (vinte e sete) relatos,


provenientes de 2 (dois) questionamentos levantados na pesquisa.

Enquanto isso na terceira e última etapa, o tratamento dos resultados, inferência e


interpretação, na escola C houve um número expressivo de meninos que se identificam com as
áreas da Ciência naturais e exatas em especial na Física e Matemática, todavia onde obtivemos o
maior desinteresse das meninas. Comprovando ainda o desconhecimento da área de estudo do
componente curricular Física na seguinte fala de um dos sujeitos ao ser questionado do porquê se
identificar com a área:

“Porque eu amo esportes e eu quero trabalhar nessa area” (SC01).

Ainda sobre elas ressaltamos a afinidade particular da área de naturais para o componente
curricular Biologia. É importante ainda destacar a não existência de dificuldades nas áreas que
contemplam as Ciências humanas e linguagem. Para Fourez (2003, p. 111) a crise no ensino de
Ciência é mundial, essa expressa nos jovens um gatilho para o não interesse na carreiras científica,
ou melhor até desperta interesse, entretanto esses não buscam a dedicação para uma Ciência
imposta nas quais não são capazes de responder suas próprias perguntas, visto que os professores
não estão prontos para desenvolverem tais papeis, pois foram e ainda são formados aos moldes
tradicionalistas.

Na escola A, as meninas apresentam afinidade no componente curricular Biologia o que


não acontece quando se analisa os meninos. Muitas das justificativas estão relacionadas à grande
quantidade de definições, por não compreender os assuntos e envolver compostos químicos. Na
escola B foi a única escola onde presenciamos uma grande dificuldade na área de linguagem, isso
se evidencia por meio das justificativas das falas de alguns sujeitos:

“Por que não gosto de todo tempo ficar explicando a mesmas regras”
(SB04)

“O acordo ortografico mudando e as regras também” (SB05)

“Por conta de algumas regras eu acho muito complicado comprender


essas matérias” (SB08)

“Confundo algumas regras” (SB02)

Tais falas estão associadas as questões da dinâmica das normas e acordos ortográficos que
estão em constantes mudanças. Salvo a escola A, onde obtivemos uma igualdade para essas
variáveis.
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Na escola D observamos a predominância das meninas com interesse na área da


Matemática, em contrapartida, nela é onde os meninos apresentaram maior dificuldade. Percebeu-
se ainda, alguns resquícios da educação tradicional nas justificativas dos questionários, como por
exemplo:

“Apesar de eu entender as questões eu não consigo memorizar todos os


caúculos” (SA24)

“Não me identifico, e pelo professores muito rigidos ao ponto de não


estudar por querer, mas por temer” (SD07)

“Por mais que o professor explique, algumas vezes é impossivel entender


tudo de uma vez só” (SB19)

Tais justificativas, de forma geral, explicitam os fatos da rigidez dos professores em sala e
da grande quantidade de conteúdos para serem “decorados”, essas se fazendo uma das principais
explicações para o desencadeamento das dificuldades entres as áreas. Para Tchaicka e Serra (2017,
p. 14) “a grande maioria dos professores ainda opta pela aula expositiva, tradicional, onde o aluno
é mero arquivo de informação”, ainda segundo elas as justificativas para tais ações estão
relacionada a formação insuficiente do educador, distanciamento da universidade em relação a
escola, desmotivação dos professores pelos baixos salários e más condições de trabalho
(TCHAICKA; SERRA 2017, p. 12).

Para justificativas das afinidades quase que predominante das Ciências naturais com
relação à componente Biologia estavam relacionadas a questões de se tratar do cuidado da natureza
e com corpo humana visando a importância desses para a vida:

“Porque gosto de estudar sobre a natureza e o corpo humano” (SA23)

“Eu amo essas paradas de corpo humano e ambiente natural” (SB21)

“Por mostrar tudo sobre a saúde entre outras” (SB16)

O interesse proveniente das áreas de humanas e linguagem são a maiorias das vezes
voltados para as discussões nas aulas e por essas promoverem a visibilidade dos fenômenos ou
aplicações em seu cotidiano:

“Porque além de serem interessante, fazem parte da nossa vida do dia-a-


dia e são legais” (SB19)

“Pelo fato historico do nosso mundo e como ele vem evoluindo” (SA10)
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“Poís envolve um mundo novo de descobertas e invençoes importantes”


(SB26)

A partir da análise dos alunos, podemos introduzir a história das mulheres na Ciência,
correlacionando com o contexto atual. Mediante a isso, fragmentamos algumas biografias que
podem ser utilizadas no trabalho docente.

Rosalind Elsie Franklin (1920 - 1958) por exemplo, foi uma química britânica que
contribuiu para o entendimento das estruturas moleculares do DNA, RNA, vírus, carvão mineral
e grafite. Embora seus trabalhos sobre o carvão e o vírus tenham sido apreciados em sua vida, suas
contribuições para a descoberta da estrutura do DNA tiveram amplo reconhecimento póstumo.

Maria Goppert-Mayer (1906 - 1972) foi uma física teórica estadunidense nascida na
Alemanha. Com Eugene Paul Wigner e J. Hans D. Jensen, recebeu o Nobel de Física em 1963,
por propor um novo modelo do envoltório do núcleo atômico. Foi a segunda mulher a ser laureada
nesta categoria do Nobel, precedida por Marie Curie.

Amalie Emmy Noether (1882 – 1935) foi uma matemática alemã, conhecida pelas suas
contribuições de fundamental importância aos campos de física teórica e álgebra abstrata.
Considerada por David Hilbert, Albert Einstein, Hermann Weyl e outros como a mulher mais
importante na história da matemática, ela revolucionou as teorias sobre anéis, corpos e álgebra.
Em física, o teorema de Noether explica a conexão fundamental entre a simetria na física e as leis
de conservação.

Dessa forma, deixa-se evidente neste trabalho que a Ciência independe do gênero, mas
depende de coragem, e o que pudemos observar até então, foi demonstração do poder feminino,
no qual fica expresso que as mulheres aos poucos estão conquistando espaço na história da Ciência
e deixando legados, que servem e servirão de estímulo para as atuais e futuras cientistas que ainda
se encontram em sala de aula.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observamos que em todo decorrer da história as mulheres não tiveram um papel muito
visível no campo das Ciências. Atualmente, percebe-se um incentivo maior as mulheres para as
carreiras científicas. Ao incentivá-las de que toda ideia e teoria proposta por elas deve sim serem
levadas em consideração, motivando-a, isso pode se abrir um espaço maior nos campos da
Ciências e tecnologias. Mediante a isso, continua sendo um desafio, principalmente aos
educadores, levar esse incentivo para o âmbito escolar.
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É notório a importância do debate sobre gênero envolvendo homens e mulheres, pois é


papel de ambos discutir ideias que contribuem para a construção de uma sociedade igualitária

e justa. Mas para isso deve-se apresentar soluções concretas para se melhorar a equidade
no que diz respeito não só no campo das Ciências e tecnologia, mas sim de um modo geral.

Concluindo, ações, soluções, existem uma série de fatores que devemos observar, mas, só
assim podemos chegar à solução, é importante estimular as meninas desde cedo para que elas se
vejam inteligentes, e não somente bonitas. Que acreditem que são capazes de fazerem descobertas
científicas e que podem ser, sim, tão inteligentes quanto seus colegas rapazes. Incentivando
meninas mais novas a serem cientistas é o primeiro passo para que tenhamos cada vez mais
referências femininas na área e, quem sabe, possamos chegar aos 50% dos reconhecidos pelo
prêmio Nobel.

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Página 1294 de 2230

MULHERES PROFESSORAS: ENFRENTANDO RACISMO E SEXISMO NO


MAGISTÉRIO SUPERIOR?

TEACHING WOMEN: FACING RACISM AND SEXISM IN THE HIGHER


MAGISTERY?

Ana Carla de Melo Almeida


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE)
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Raimunda Nonata da Silva Machado


Docente Adjunto
Departamento de Educação II e Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE)
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Agência de fomento: FAPEMA

Eixo temático 2 – Gênero, literatura e filosofia

Resumo: A participação feminina no mercado de trabalho ainda continua marcada por profundas
desigualdades sociais, que tem como fundamento a estrutura organizacional do Estado
notadamente influenciada por visões sexistas e racistas. Essa reflexão têm apoio nos estudos que
analisam a trajetória de professoras negras nas universidades como: Silva (2007), Crisostomo
(2014), Santos (2015), Quadros (2015), Oliveira (2006), Machado (2013). No que diz respeito às
questões de gênero tivemos apoio em Scott (1995), Safiotti (2004), Louro (2014) e Oyěwùmí
(2004) e sobre as questões raciais, especificamente, no espaço acadêmico temos: Munanga (2006),
Carvalho (2005) e Coelho (2003), Machado (2013), Cunha Jr. (2005, 2013), Boakari (2010, 2015),
Lélia Gonzalez (1984), Sueli Carneiro (2003), Angela Davis (2015), bell hooks (1995, 2013),
Patrícia Hill Collins (1997, 2000). Aponta o modo pelo qual as desigualdades raciais e de gênero
permanecem como um dos grandes problemas a serem combatidos no mundo do trabalho, sendo
relevante a análise e discussão bibliográfica e documental da inserção histórica da mulher no
mercado de trabalho, considerando: a) a questão da divisão sexual do trabalho que engloba as
desigualdades de gênero e racial no uso do tempo para dedicação à profissão, aos cuidados com a
família, a imposição de uma dupla jornada de trabalho; b) o fato de que a luta das mulheres por
acesso e participação no mercado de trabalho também está associada as suas trajetórias
sociocultural e educacional, embora o processo de escolarização não se constitua, geralmente,
como fator preponderante nas conquistas e sucessos de sua inserção na ordem produtiva; c) a
análise de indicadores sociais ao apontar que, apesar das mulheres possuírem maior grau de
escolarização que os homens, sobretudo, em cursos de graduação, isto não se reflete,
necessariamente, no mercado de trabalho. A compreensão deste fenômeno tem relação com a
divisão sexual do trabalho, pois ainda que as mulheres alcancem níveis educacionais mais
elevados que os homens, elas permanecem como as principais responsáveis pelas tarefas
domésticas e o cuidado das crianças (BARRETO, 2014). Também, a indicação de que existe
segregação espacial combinada à segregação étnico-racial e de gênero no Brasil possibilita uma
futura discussão sobre a possibilidade de existir territórios e/ou lugares femininos negros na
sociedade, seja em limites demarcados, seja simbolicamente instituídos a partir de seus lugares de
vivência e ligação com os demais atores/atrizes sociais, evidenciando as dificuldades de
feminização do magistério superior. Diferentemente da educação básica, as mulheres, sobretudo
as afrodescendentes (pretas e pardas), são minoria no trabalho docente da educação superior.
Palavras-chave: Relações de gênero. Raça. Mercado de Trabalho. Mulheres Professoras

Abstract: Female participation in the labor market is still marked by profound social inequalities,
which are based on the organizational structure of the State, notably influenced by sexist and racist
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views. This reflection is supported by studies that analyze the trajectory of black teachers in
universities such as: Silva (2007), Crisostomo (2014), Santos (2015), Quadros (2015), Oliveira
(2006), Machado (2013). With regard to gender issues, we had support from Scott (1995), Safiotti
(2004), Louro (2014) and Oyěwùmí (2004) and on racial issues, specifically, in the academic
space we have: Munanga (2006), Carvalho ( 2005) and Coelho (2003), Machado (2013), Cunha
Jr. (2005, 2013), Boakari (2010, 2015), Lélia Gonzalez (1984), Sueli Carneiro (2003), Angela
Davis (2015), bell hooks ( 1995, 2013), Patrícia Hill Collins (1997, 2000). It points out the way
in which racial and gender inequalities remain as one of the major problems to be tackled in the
world of work, with a relevant bibliographic and documentary analysis and discussion of the
historical insertion of women in the labor market, considering: a) the issue of the sexual division
of labor that encompasses gender and racial inequalities in the use of time for dedication to the
profession, to care for the family, the imposition of a double working day; b) the fact that women's
struggle for access and participation in the labor market is also associated with their socio-cultural
and educational trajectories, although the schooling process is not usually a major factor in the
achievements and successes of their insertion in the productive order; c) the analysis of social
indicators by pointing out that, although women have a higher level of education than men,
especially in undergraduate courses, this is not necessarily reflected in the labor market. The
understanding of this phenomenon is related to the sexual division of labor, because even though
women reach higher educational levels than men, they remain as the main responsible for domestic
tasks and child care (BARRETO, 2014). Also, the indication that there is spatial segregation
combined with ethnic-racial and gender segregation in Brazil allows for a future discussion about
the possibility of black female territories and / or places in society, either within demarcated limits
or symbolically instituted from their places of experience and connection with the other social
actors / actresses, showing the difficulties of feminization of higher teaching. Unlike basic
education, women, especially those of African descent (black and brown), are a minority in the
teaching work of higher education.
Keywords: Gender relations. Breed. Labor market. Women Teachers

Introdução
A participação feminina no mercado de trabalho continua atravessando profundas
desigualdades, que tem como fundamento a estrutura organizacional do Estado. Nessa
perspectiva, verifica-se que a desigualdade de gênero continua a ser um dos grandes problemas a
serem combatidos no mundo do trabalho.
É importante se discutir a inserção histórica da mulher no mercado de trabalho, com
atenção na questão da divisão sexual do trabalho que engloba as desigualdades de gênero no uso
do tempo para dedicação à profissão, aos cuidados com a família, a imposição de uma dupla
jornada de trabalho.
A luta das mulheres por acesso e participação no mercado de trabalho também está
associada as suas trajetórias sociocultural e educacional, embora o processo de escolarização não
se constitua, geralmente, como fator preponderante nas conquistas e sucessos de sua inserção na
ordem produtiva. Afinal, indicadores sociais têm apontado que, apesar das mulheres possuírem
maior grau de escolarização que os homens, sobretudo, em cursos de graduação, isto não se reflete,
necessariamente, no mercado de trabalho.
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Segundo Barreto (2014), uma possibilidade de compreensão deste fenômeno diz respeito
à divisão sexual do trabalho, pois ainda que as mulheres alcancem níveis educacionais mais
elevados que os homens, elas permanecem como as principais responsáveis pelas tarefas
domésticas e o cuidado das crianças.
A indicação de que existe segregação espacial (ocupação de espaços de prestígio social)
combinada à segregação étnico-racial no Brasil incita-nos à discussão sobre a possibilidade de
existir territórios e/ou lugares femininos negros na sociedade, seja em limites demarcados, seja
simbolicamente instituídos, a partir de seus lugares de vivência e ligação com os demais
atores/atrizes sociais. Dentre estes possíveis territórios, encontra-se o ambiente escolar, tão
importante na revelação sobre as trajetórias das professoras negras.
A atual situação da mulher afrodescendente, dentro do contexto social brasileiro, é fruto
de um processo histórico que se arrasta desde os tempos da colonização e permanece ainda hoje,
com novas feições.
A (não)presença da mulher negra, em alguns espaços, reforça a segregação social e racial
sofrida por ela ao longo da história. Alguns espaços são, simbolicamente, acolhedores da
“sociedade branca” (SANTOS, 2002) em detrimento da população negra, como as Universidades
e, nesse sentido, as relações raciais apresentam uma certa dimensão espacial. tornando para a
mulher negra a relação mais restrita e inflexível.
Partindo desses dados, a problemática central se trata de desvendar quais as contribuições
do trabalho docente feminino nas políticas públicas implementadas pelo Estado, visando enfrentar
as desigualdades de gênero e raça e as diferentes taxas de inclusão no mercado de trabalho, em
especial na docência do curso de Direito.
Além dessas inquietações, outras surgiram: é possível que essa diferença de tratamento nas
relações de trabalho sejam um traço cultural, determinado pela forma de construção do papel da
mulher na sociedade? Como a educação das relações raciais e de gênero pode aproximar o debate
sobre a reparação às minorias? Como o conceito de feminismo pode ressignificar a visão que se
tem da mulher e de seu papel em sociedade, especificamente no mercado de trabalho da docência
universitária?
Na tentativa de responder a esses questionamentos, esse texto propõe apresentar alguns
caminhos metodológicos e possíveis resultados oriundos de discussões mais centradas nas
literaturas sobre docência feminina e suas formas de opressão.

Um labirinto na trilha do racismo e sexismo na docência universitária


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A compreensão da inserção da mulher na docência superior indaga como elas poderiam


contribuir no enfrentamento do sexismo e racismo na formação dos discentes, implicando na
mudança das políticas públicas estatais.
Essa atitude nos leva a pensar sobre: a história educacional das mulheres na sociedade
brasileira, com ênfase na docência superior; aprofundar os estudos sobre como a transversalidade
de gênero e raça impacta diretamente nas relações de trabalho; analisar o percurso de ingresso e
permanência de mulheres professoras na docência superior; compreender o seu papel na formação
dos alunos e como isto pode produzir mudanças na criação de políticas públicas de enfrentamento
ao sexismo e racismo na sociedade brasileira.
A escolha desse estudo nasce a partir do envolvimento pessoal com as questões sociais
ligadas à mulher e sua luta por reconhecimento social, especialmente no que diz respeito às
questões trabalhistas, por ser professora do ensino superior, mulher, e no decorrer de minha vida
profissional ter sentido na pele as desigualdades vivenciadas diariamente pelas mulheres no
ambiente formal do trabalho.
A relevância dessa discussão, dada suas implicações no âmbito social e educacional,
constitui na possibilidade de demostrar como as relações de poder foram construídas e como a
mulher tem sido inferiorizada. Dessa forma, espera contribuir para o enfrentamento de situações
de violações dos direitos das mulheres, que são em uma escala maior direitos humanos,
evidenciando o papel do Estado em promover a diminuição de tais diferenças através de políticas
públicas de reparação, bem como da prestação jurisdicional do Estado brasileiro.
É um estudo que dialoga com literaturas sobre trajetórias de professoras afrodescendentes
universitárias, identificando como foi a história de vida delas, destacando o enfrentamento de
questões relativas à sua presença no espaço acadêmico, como o sexismo e o racismo.
A intenção é verificar esses fenômenos de exclusão no curso de Direito, refletindo sobre
como as docentes conseguem contribuir para que estas questões sejam visibilizadas no processo
de formação dos futuros profissionais do Direito, implicando em uma possível mudança na
estrutura da formação de Políticas Públicas estatais referentes ao enfretamento ao racismo e
sexismo no ambiente de trabalho.
O caminho metodológico utilizado neste tipo trabalho inicia-se com o levantamento da
literatura dos conceitos relevantes para a pesquisa, como gênero, raça, classe, educação superior,
trabalho, feminismos. Com uma abordagem qualitativa dialogamos com estudos sobre a temática
e, de forma contextualizada, buscamos conhecer as experiências vividas na docência superior, por
meio de estudo bibliográfico.
A ideia do estudo não é só buscar entender como se dá o acesso destas mulheres ao
mercado de trabalho da docência, mas também como ocorrem modificações nas estruturas sociais,
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ao ponto de “ressignificar as práticas existentes e inventar nossos percursos com base nas
necessidade trazidas pelo problema de pesquisa que formulamos”, Meyer; Paraíso (2012 p. 42).
Nesse movimento de produção de novos significados, pode ser visto, na visão de Mignolo
(2008) como desobediência epistêmica, de sujeitos invizibilizados pela ciência ocidental, um
modo de pensar e enxergar pelo ponto de vista dos sujeitos subalternos, possibilitando para o
pesquisador aprender a desaprender os conceitos incluídos e enraizados nas epistemologias
ocidentais.
Nessa direção, Machado e Boakari (2013) argumentam que: promover discussões sobre
gênero e raça causa um desconforto e diversas tensões entre os interlocutores, e às vezes, a própria
academia desmerece estes estudos e não os enxergam como ciência. Além disso, demonstra como
os saberes ancestrais, das culturas silenciadas e consideradas inferiores historicamente, são tão
importantes e tão ciência quanto qualquer outra, e que este processo de apagamento só contribui
ainda mais para a opressão desses sujeitos.
Questionar, e colocar em debate a docência universitária exercida por mulheres
afrodescendentes, é uma forma epistêmica de lhes dar visibilidade, de reconhecer a importância
de suas memórias e experiências plurais, de refletir sobre suas trajetórias sociais e profissionais
como docentes no magistério superior.
Ao traçar aspectos acerca das discussões de gênero e pontuar a diferença de tratamento
entre homens e mulheres no mercado de trabalho, importa salientar de início sobre o princípio da
igualdade, previsto na Constituição Federal brasileira.
No âmbito trabalhista, tal princípio busca a igualdade substancial e real entre as partes com
a proteção do empregado, que sempre é a parte mais vulnerável na relação. Na atualidade,
promover a igualdade é um meio de eliminar todas as formas de discriminação, entre elas a que
ocorre no tratamento entre homens e mulheres.
No mercado de trabalho, apesar dos notáveis avanços nos últimos anos no que se refere à
redução das desigualdades entre homens e mulheres, muito ainda há que se avançar no que diz
respeito a salários, produtividade e participação feminina.
Apesar de as mulheres ocuparem cada vez mais postos no mercado de trabalho, elas ainda
são maioria dentre os desempregados, possuem salários menores que dos homens, tem mais
dificuldade em conseguir um cargo de gestão, e são quase que as únicas responsáveis pelos
cuidados do lar.
Assim, é visível a necessidade de uma legislação protecionista à mulher no mercado de
trabalho. Ocorre que, não basta que as condições de trabalho sejam mais vantajosas na lei, é
preciso uma mudança de pensamento, passando pela educação desde à infância, para que seja real
a igualdade entre os sexos.
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A análise da construção social do papel da mulher no mercado de trabalho perpassa na


questão da divisão sexual do trabalho280. Tal divisão é uma conceituação social, comportamental
e cultural, que entende a íntima relação entre a mulher e o trabalho doméstico, e a todas as formas
de trabalho que demandam serviços de cuidado. Esta compreensão, fundamentada por conceitos
históricos e religiosos, estabelece a ligação entre a mulher e a maternidade, mantendo a mulher
presa neste papel.
Embora se tenha notícia de diversas reivindicações da mulher por mais espaço social,
Duarte (2015) aponta que foi somente no século XX, com alteração nos costumes e liberação
política, que ocorreu um marco na luta feminista, especialmente no momento pós-guerra.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, inovou ao trazer diversas disposições quanto às
reinvindicações formuladas pelas mulheres. A conquista do movimento de mulheres, quanto aos
avanços constitucionais é evidenciado pelos dispositivos constitucionais que, dentre outros,
asseguram:
a) a igualdade entre homens e mulheres em geral (Art. 5º, I) e especificamente no âmbito
da família (Art. 226, §5º); b) a proibição da discriminação no mercado de trabalho, por
motivo de sexo ou estado civil (Art. 7º, XXX, [...]); c) a proteção especial da mulher no
mercado de trabalho, mediante incentivos específicos (Art. 7º, XX); d) o planejamento
familiar como uma livre decisão do casal, devendo o Estado propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito (Art. 226, §7º); e e) o dever do
Estado de coibir a violência no âmbito das relações familiares (Art. 22, §8º).281

Apesar de o texto constitucional ser claro no que diz respeito à igualdade de gêneros, e
proteger especificamente a mulher no mercado de trabalho, uma mudança de paradigma não se
faz apenas com legislação, mas sim com mudança de consciência social. Assim, ainda é notável
que há uma clara divisão sexual de trabalho, incitada desde a infância, onde meninos são
incentivados a brincar com carros, materiais de construção, peças de montar e encaixe, e as
meninas com bonecas e utensílios domésticos.
Melhorar a participação feminina no mercado de trabalho requer uma abordagem
multidimensional, e aqui se inclui a importância da análise do problema de forma transversal,
incluindo nessa abordagem políticas focadas no equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho e na
eliminação da discriminação de gênero além de criação e proteção de empregos de qualidade no
setor da saúde.
A questão da desigualdade no mercado de trabalho vai além da equiparação salarial e dos
aspectos das representações sociais da participação feminina nos espaços sociais, visto que um
outro ponto merece destaque, que materializa-se no reconhecimento das diferenças naquilo que as

Aqui entendida como a atribuição de tarefas naturalmente femininas ou masculinas.


280

Piovesan, Flávia, “Direitos humanos das mulheres no Brasil: desafios e perspectivas”, em Penido, Laís de Oliveira
281

(Coord.); Laís de Oliveira (Coord.), A igualdade de gêneros nas relações de trabalho, Brasília, Escola Superior do
Ministério Público da União, 2006, pp. 205-212.
Página 1300 de 2230

torna semelhantes, visto que, quanto mais se aprofunda nas questões de gênero, trazendo de forma
transversal outros aspectos da diversidade como raça, orientação sexual e religião, aumenta-se a
lista de desafios maiores e mais complexos: mulheres brancas com alto nível de escolaridade não
enfrentam os mesmos desafios das mulheres negras com alto nível de escolaridade; mulheres
brancas com alto nível de escolaridade e lésbicas enfrentam desafios que mulheres brancas ou
negras heterossexuais desconhecem, e assim por diante.
Nesse sentido, estudar a mulher afrodescendente e a sua trajetória no mercado de trabalho
docente é de extrema relevância. Estas fazem parte de grupos socialmente desvalorizados:
mulheres, negras e professoras, discriminadas pelo seu pertencimento étnico-racial, na grande
maioria das vezes interligadas à vulnerabilidade socioeconômica e também, menos prestigiadas
em sua intelectualidade e profissão. Há fortes indícios de que essas situações se mantêm e se
reforçam também na Educação Superior com graduandas, pós-graduandas e docentes.
Sabe-se que são inúmeros os obstáculos para que sejam legitimamente efetivadas as
Políticas Públicas de promoção da igualdade. O processo para a reversão de estereótipos negativos
e preconceitos com relação à população negra levará bastante tempo para ocorrer. Ele acontecerá
após um longo processo de transformações, considerando a construção ideológica existente no
Brasil.
Assim, defende-se a ideia da mulher como sujeito fundamental das políticas de emprego,
reconhecendo o trabalho produtivo feminino. A implementação de políticas públicas transversais
de inserção social da mulher através do trabalho formal, apresenta-se como uma das formas mais
adequadas para promoção de igualdade de gênero nas questões laborais, contribuindo de maneira
eficaz nas políticas de inclusão social e redução da pobreza.
Por transversalidade de gênero nas políticas públicas entende-se a ideia de elaborar um
seguimento capaz de encaminhar a sociedade para uma nova visão de competências (políticas,
institucionais e administrativas), além de uma responsabilização dos agentes estatais em relação à
superação das diferenças de gênero, nas mais deferentes esferas do governo, garantindo uma ação
conjunta e sustentável entre todos os setores públicos, aumentando a validade das políticas
públicas, especialmente no que diz respeito às mulheres.
Portanto, é fundamental pontuar junto à sociedade e seus atores para apoiar novos padrões
sociais e empresariais, a fim de promover uma nova política transversal de igualdade e trabalho
através da responsabilidade compartilhada entre os diversos setores do Estado, da sociedade e do
mercado econômico.

Algumas considerações que incitam mais debates nesse labirinto


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Pesquisar mulheres negras em um contexto social de estrutura hierarquicamente


organizada, como as Universidades brasileiras requer uma abordagem multidisciplinar, analisando
eventos econômicos, comportamentos culturais, atitudes políticas, entre outros, de modo que
possamos ter um norte para compreender o acesso e participação das mulheres neste espaço
acadêmico.
Tratar sobre gênero não é tarefa simples nem rápida, e nos limites desse texto, buscamos
teorizações como as de Louro (2014) que nos elucida o uso da noção de gênero distint de sexo, a
partir dos estudos feministas anglo-saxãs, pontuando um caráter social para fazer essa separação,
e para isso, não nega a biologia da sexualidade humana, mas deixa em destaque “a construção
social e histórica produzida sobre as características biológicas” (p. 26).
É necessário trazer essa discussão ao campo social, pois é nele que se constroem as
relações entre os sujeitos, relações estas bastante desiguais, uma vez que “as justificativas para as
desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas, mas sim nos arranjos
sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de
representação” (LOURO, 2014, p. 26).
Estudar a mulher no ambiente de trabalho, específico na docência superior, exige-nos
entender como os elementos sociais estruturantes de gênero são utilizados para justificar a enorme
presença dela no ensino infantil, estereotipado como extensão do trabalho materno, e sua pouca
presença no ensino superior, local de maior prestígio e maiores salários.
Interligando a categoria gênero com as questões étnico-raciais, é possível analisar como
estes marcadores interferem na vida das professoras negras e como o acesso e a sua permanência
no magistério siperior, tão segregado, desconstroi os significados de ser mulher, afrodescendente
e professora, estritamente, associado a feminização da docência na educação infantil e séries
iniciais do ensino fundamental.
Dá ênfase a análise da divisão desigual do saber, do poder e do trabalho entre homens e
mulheres, entre negros e não negros nos faz enxergar como essa estrutura perpetua as práticas de
desvalorização da mulher negra, situação esta que pode ser observada na participação docente no
Ensino Superior. Sobre isso, Munanga, citado por Quadros (2015, p.20) apresenta que:
A discriminação da qual são vítimas acontece até no ambiente institucional onde atuam
como docentes e pesquisadoras e provém de seus alunos, colegas e dirigentes
universitários brancos, independentemente do sexo. A manifestação do preconceito e da
discriminação nesse ambiente assume várias formas veladas e abertas: desconfiança de
sua capacidade profissional ou intelectual; espanto ou surpresa de aluno (a)s ao se
depararem pela primeira vez com uma professora negra na sala de aula; desigualdade
salarial comparativamente à do (a)s colegas branco (a)s de formação igual e ocupando
posições iguais; desigualdade de oportunidades de financiamento das pesquisas e de
mobilidade na carreira.

Pensar a atuação da mulher em diferentes espaços, coloca em debate a sua história como
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história silenciada, como história de negação aos aos espaços de poder, bem como o direito a ter
sua voz ouvida. Nesse sentido, Boakari (2010, p. 2), afrima que: “os estudos sobre as mulheres
como sujeitos servem de perspectiva rica para analisar como uma determinada sociedade trata da
sua maioria silenciada e esquecida”.
A mulher afrodescendente, junto ao sexismo presente na história das mulheres, tem de
conviver com o duplo marcador social de raça, que a silencia e a afasta ainda mais dos espaços
sociais de disputa de poder. A trajetória de vida das mulheres afrodescendentes é marcada por
estigmas e estereótipos, que a colocam em posição de subalternidade e inferiorização frente a
todos os outros sujeitos sociais.
Assim, falar sobre racismo em instituições de Ensino Superior requer entender a presença
do racismo institucional no espaço acadêmico como perpetuador desse sistema com pouca ou
quase nenhuma presença de professoras afrodescendentes no curso de Direito da UFMA, que seria
nosso universo de interesse, dada a formação de uma das autoras nesta área. Uma vez que tivemos
dificuldade de localizá-las, não significa que elas não estejam lá, entretanto, nos fez enxergar a
estrutura que se move contra o acesso destas mulheres a lugares como estes entendendo ser
extremamente necessário discutir e visibilizar tal situação.
Pudemos nesse estudo que as bibliografias discutidas conversam entre si, demonstrando a
imbricação entre gênero, raça e classe, não sendo possível discutir a presença da mulher no
mercado de trabalho docente sem pontuar a grande discriminação racial sofrida pelas professoras
afrodescendentes, vítimas de um racismo estrutural que as coloca para fora dos espaços de poder
e privilégio.
Esse movimento estrutural se impõe perante a carreira destas mulheres, e ao mesmo tempo,
é motivador, também, de mecanismos de defesa e resistência, visualizando como as que lá estão,
conseguiram furar a bolha do sexismo e racismo. Este é um estudo em andamento, logo, ainda
permanecem muitas indagações entre nós:
₋ É possível inferir que a diferença de tratamento nas relações de trabalho seja um traço
cultural, determinado pela forma de construção do papel da mulher na sociedade, que
possui profundas influências na estrutura da divisão sexual do trabalho, do imperialismo
colonial e das diferentes formas de manifestação dos racismos e sexismos?
₋ Como a educação das relações raciais e de gênero enquanto referencial ético e
transformador pode aproximar o debate sobre o dever de reparação às minorias em sala
de aula?
₋ Como introduzir o conceito de feminismo para melhorar a visão que se tem da mulher
e do seu papel em sociedade, especificamente no mercado de trabalho da docência
universitário, de modo a contribuir para a aplicação de políticas públicas de
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enfretamento ao racismo e sexismo?


₋ Como o empoderamento da mulher é construído, visando a representatividade feminina
no mercado de trabalho, em especial, no caso deste estudo, na docência do curso de
Direito da Universidade Federal do Maranhão?
Portanto, a luta pelo fim das desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho, aqui
especificamente a docência no Ensino Superior, se articula com a necessidade de mudança de
mentalidade, (re)distribuição de privilégios de classe social, de gênero e étnico-racial, entre outros,
sendo fundamental, ainda, apoiar novos padrões sociais, culturais, empresariais e de governança
pública, a fim de promover uma nova política transversal de igualdade, na educação e no trabalho,
através da responsabilidade compartilhada entre os diversos setores do Estado, da sociedade e do
mercado econômico.

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QUADROS, Taiana Flores de. Vida de mulheres negras, professoras universitárias na


Universidade Federal de Santa Maria. Dissertação de mestrado – 2015. Disponível em:
https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/7228/QUADROS%2C%20TAIANA%20FLORES
%20DE.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 29 de out 2019.

SANTOS, Milton. Ser negro no Brasil hoje. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a
cidadania. São Paulo: Publifolha, 2002, pp.157-161.

THOMPSON, P. A voz do passado: História Oral. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
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O PROJETO DO FILÓSOFO COMO MÉDICO DA CIVILIZAÇÃO, COM BASE EM


NIETZSCHE

THE PHILOSOPHER'S PROJECT AS A CIVILIZATION’S DOCTOR, BASED ON


NIETZSCHE
Alyssa Crysthyne Lima da Silva
Graduanda do curso de Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas/Filosofia - UFMA
Campus Pinheiro – Bolsista FAPEMA – alyssa-crys@hotmail.com
Flávio Luiz de Castro Freitas -Orientador
Prof. Dr. na Universidade Federal do Maranhão – f_lcf@hotmail.com
Eixo Temático 2 – Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: O presente trabalho visa mostrar resultados preliminares do projeto de pesquisa e do


plano de trabalho iniciado em agosto de 2019, com o intuito de apresentar o projeto do filósofo
como médico da civilização, tal qual é concebido Friedrich Nietzsche. Trata-se de uma pesquisa
bibliográfica, teórico, qualitativa que objetiva analisar três obras relevantes acerca da temática, a
quais são “ O livro do filósofo (1872-1875) ”, “A Gaia Ciência (1882) ” e a autobiografia do autor
intitulada “ Ecce Homo (1908) ”, explicitando a solução para a “cura” da civilização, as
necessidades de uma civilização e o papel do filósofo e da filosofia para essa civilização. Sendo
assim, Friedrich Nietzsche mostra o papel da filosofia como acessória de uma civilização, na qual
o mesmo afirma que não é possível criar uma civilização, mas sim conservá-la, prepará-la ou
moderá-la. Desse modo, ele conclui o indispensável percurso de um filósofo em um âmbito
cultural e civilizatório.
Palavras-chave: Nietzsche; filósofo; médico da civilização; filosofia.

Abstract: The present work aims to show preliminary results of the research project and the work
plan started in August 2019, in order to present the philosopher's project as a civilization’s doctor,
as Friedrich Nietzsche is conceived. It’s a bibliographical, theoretical and qualitative research that
aims to analyze three relevant works on the theme, which are “The philosopher's book (1872-
1875) ”, “The Gay Science (1882) ” and the author's autobiography entitled “Ecce Homo (1908)
”, explaining the solution to the “cure” of civilization, the needs of a civilization and the role of
the philosopher and philosophy for that civilization. Thus, Friedrich Nietzsche shows the role of
philosophy as an accessory to a civilization, in which it affirms that isn’t possible to create a
civilization, but to preserve, to prepare or to moderate it. In this way, he concludes the
indispensable journey of a philosopher in a cultural and civilizing ambit.
Keywords: Nietzsche; philosopher; doctor of civilization; philosophy.

INTRODUÇÃO
O propósito deste trabalho é analisar pesquisas recentes na área do projeto de pesquisa e
do plano de trabalho iniciado em agosto de 2019, com o intuito de apresentar o projeto do filósofo
como médico da civilização, tal qual é concebido Friedrich Nietzsche. Trata-se de uma pesquisa
bibliográfica, teórico, qualitativa que objetiva analisar três obras relevantes acerca da temática, a
quais são “O livro do filósofo (1872-1875) ”, “A Gaia Ciência (1882) ” e a autobiografia do autor
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intitulada “ Ecce Homo (1908) ”, explicitando a solução para a “cura” da civilização, as


necessidades de uma civilização e o papel do filósofo e da filosofia para essa civilização.

Sendo assim, na segunda parte da obra “O livro do filósofo” intitulado “ O filósofo como
médico da civilização”, Nietzsche visa detalhar a sua atuação na compreensão de uma conexão
interna e a necessidade de toda civilização, traçando um método de análise, dividido em quatro
partes: plano, preparação, parte principal e conclusão que visa responder alguns questionamentos
e explicitar a sua principal temática.

Através dessa pesquisa pode-se extrair a relação entre a filosofia com a civilização, a arte
como forma de valorização do próprio eu, o surgimento dos valores humanos, o espirito de artista
(relatando o papel da arte em uma civilização) e a relação da filosofia com a saúde (que é
denominada como a capacidade vital de se transformar) na qual trabalha a área em que o mesmo
problematiza que a doença possivelmente foi inspiração para o filósofo, além da terapia filosófica
contra um mal identificado como doença cultural, ressalvando as mudanças que ocorreram com o
passar do tempo em cada uma dessas áreas até levar a filosofia para um caráter insignificante.

Com base nisso, Friedrich Nietzsche mostra o papel da filosofia como acessória de uma
civilização, na qual o mesmo afirma que não é possível criar uma civilização, mas sim conserva-
la, prepara-la ou modera-la. Desse modo, ele conclui o indispensável percurso de um filósofo em
um âmbito cultural e civilizatório.

1. O projeto do filósofo como médico da civilização

A obra “O livro do filósofo” é dividida em quatro partes escrita em forma de prosa,


aforismas e esquemas, além de ser separada em distintos períodos, meados de 1872 a 1875. Além
disso, ela pode ser considerada uma obra do “jovem Nietzsche”, em função da fase do
desenvolvimento de suas pesquisas.

Além disso, é na segunda parte desse texto que Nietzsche apresenta o projeto
esquematizado e dividido em quatro partes: plano, preparação, parte principal e conclusão,
ressaltando assim a tese primordial do projeto do filósofo como médico da civilização, como é
esquematizado abaixo:

Plano. O que é um filósofo?


Qual a relação entre um filósofo e a civilização?
E especialmente entre ele e a civilização trágica?
Preparação: Quando as obras desaparecem?
As fontes. a) Para a vida. b) Para os dogmas.
A cronologia. Verificada através dos sistemas.
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Parte principal. Os filósofos com parágrafos e digressões.


Conclusão: A posição da filosofia quanto à civilização. (NIETZSCHE, 2004, p. 56).

Nos fragmentos apresentados na obra O livro do filósofo (1872-1875) precisamente na


segunda parte intitulada “O Filósofo Como Médico da Civilização” dada na primavera de 1873, o
autor ressalta a relevância de mostrar a propriedade falsificadora e imprecisa da ciência, tal como
o seu dogmatismo que é um instinto incontrolado do conhecimento que busca dar valor a vida
conforme o grau (maior ou menor) de certeza, presumindo-a conforme os parâmetros morais que
tendiam preservar a vida do homem através do afastamento daquilo que retrata transformações ou
pretende ser, representado como ordem de aparência. Isso também provocava uma rejeição as
coisas que refere-se ao corpo, como as sensações e os sentidos, ou seja, uma recusa do homem à
vida.

Em todo percurso processual, as ciências modificam a natureza do homem, levando ao


prescindível e para uma vida de aparências, contribuindo para degenerações surgidas em diversas
áreas (históricas, geográficas), problemas relacionados ao processo de aprimoramento e aos
antropomorfismos, dentre outros.

É através das ciências que surge uma camuflagem de todas as limitações e as transfigura,
levando aquilo que é de virtudes familiares a um certo mau, a exemplo dos instintos de
conhecimento sem limites e sem discernimento que representa um sinal de inferioridade. Sendo
assim, as ciências geram um círculo vicioso. Baseado nisso Nietzsche visa analisar a relação entre
o filósofo e a civilização com o intuito de perceber como a filosofia representaria uma alternativa
de saída desse problema em questão e mostrar que é impossível construir uma civilização baseada
no saber.

É importante frisar que o papel do filósofo de acordo com Nietzsche é reconhecer as


necessidades do problema eternos da existência e o papel do artista é criar esse problema, a qual
existe uma atuação em conjunto entre ambos. Alem disso, a nossa vivencia propicia termos um
conhecimento superficial o que tende a vivermos da arte a cada instante. Como o autor afirma:

Nossa visão nos prende às formas. Mas se somos nós próprios aqueles que educamos
essa visão, vemos também reinar em nós mesmos uma força artista. Vemos até mesmo
na natureza mecanismos contrários ao saber absoluto: o filósofo reconhece a linguagem
da natureza e diz: "Temos necessidade da arte" e "só precisamos de uma parte do
saber". (NIETZSCHE, 2013, p. 17)

Desse modo, o filósofo vem ser um harmonizador dos problemas que surgem com a
velocidade em que o tempo passa. Nietzsche problematiza ressalvando que possivelmente a saúde
e a doença foram inspiração para o surgimento do filósofo, a qual um age de acordo com a Vontade
em constante progresso e no outro existe uma necessidade de se segurar em algo já que este tem
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um corpo fraco e efêmero. Como afirma o autor, “o filósofo só se encontra absolutamente afastado
do povo por uma exceção: a Vontade também quer algo dele. A intenção é a mesma da arte: sua
própria transfiguração e sua própria redenção. ” (NIETZSCHE, 2004, p. 2)

Mediante essa capacidade do indivíduo de saber viver tudo que a vida propicia (conquistas,
sofrimento, dor, etc.) e de superar-se é que vem a filosofia, como o autor afirma no segundo
prólogo de “A Gaia Ciência” que “de fato admitindo que cada um de nós seja uma pessoa, tem-se
necessariamente a filosofia de sua pessoa” (NIETZSCHE, 2008) e em “Ecce Homo”, onde o autor
contrasta de forma processual como a maneira de ser saudável, adoecer e retornar a saúde é a
prova de que alguém luta pela própria vida, através da vivência e consciência do que venha ser
uma pessoa saudável:

Em se tratando de Ecce Homo, de 1908, o tema da saúde é exposto e problematizado em


vários momentos, sobretudo nas três primeiras partes, em que a articulação de Nietzsche
adota como ponto de partida sua própria constituição paradoxal enquanto ser decadente
e seu oposto, bem como aquele que morreu, tal qual o pai, e que ainda vive e envelhece
como a própria mãe. (FREITAS, 2019, p. 68)

Tendo esse projeto como base percebe-se que segue uma linearidade para o surgir do
filósofo, onde a configuração de médico antecede o papel do filósofo, que só surgirá e atuará após
ter uma “automedicação”. É importante frisar que o mesmo diferencia de forma sensível o
papel que a saúde e a doença propiciam a filosofia de cada indivíduo:

Num homem, são os defeitos que sustentam os raciocínios filosóficos, no outro, são as
riquezas e as forças. O primeiro precisa de sua filosofia, seja para se apoiar, para se
acalmar, se cuidar, se salvar, se elevar ou se esquecer; no segundo, a filosofia é luxo, no
melhor dos casos é volúpia de um reconhecimento triunfante que acaba por sentir a
necessidade de se inscrever em maiúsculas cósmicas no céu das ideias. (NIETZSCHE,
2008, p. 17)

A saúde para Nietzsche é a capacidade vital de se transformar, sendo assim o problema


gerado pelas ciências vem ser “curado” através do filósofo. Vale ressaltar que o mesmo afirma
que “a arte da transfiguração é a filosofia” (NIETZSCHE, 2013). Para ele, essa transfiguração
seria experimentar a doença, com o intuito dessa pessoa poder alterar-se de forma digna para
adquirir uma grande saúde, como o filósofo apresenta no capítulo “ Porque sou tão sábio” de “
Ecce Homo”:

Vê-se que eu não gostaria de despedir-me ingratamente daquele tempo de severa


enfermidade, cujo benefício ainda hoje não se esgotou para mim: assim como estou
plenamente cônscio das vantagens que a minha instável saúde me dá, em relação a todos
os robustos de espírito. Um filósofo que percorreu muitas saúdes e sempre as torna a
percorrer passou igualmente por outras tantas filosofias: ele não pode senão transpor seu
estado, a cada vez, para a mais espiritual forma e distância precisamente essa arte da
transfiguração é filosofia (NIETZSCHE, 2013, p. 18)
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Desse modo, delineia-se essa “arte da transfiguração” como um processo de alternância de


uma não realização do acontecimento de pauperização e simplificação da vida. O corpo se “abre”
e se conhece a doença, porém faz-se necessário um direcionamento para uma espiritual distância,
a qual essa passagem é a reiteração de eventualidade ou de “arte da transfiguração”. E esse
caminho seguido pela transfiguração concerne a uma filosofia experimental, ou seja, uma real
vivência da vida.

A filosofia mostra-se com o papel de administrar o impulso incontido de conhecimento


não para contradizer ou extinguir a ciência, mas com a intenção de dominá-la. “A filosofia
dominante deve considerar também a questão de até que ponto pode desenvolver-se a ciência: tem
que determinar o valor” (NIETZSCHE, 2004, p. 5). Essa função determinante está conectada as
forças da arte, visto que segundo Nietzsche a particularidade da filosofia encontra-se na relação
entre a arte e a ciência onde existe uma intercalação em sua atuação (ora uma, ora outra) ou na
combinação de ambas as qualidades.

Há uma grande dificuldade para saber se a filosofia é uma arte ou uma ciência. É uma
arte em seus fins e em sua produção. Mas tem o meio, a representação em conceitos, em
comum com a ciência. É uma poesia. Não se pode classifica-la: é por isso que devemos
encontrar uma categoria e caracterizá-la. (NIETZSCHE, 2004, p. 15)

De acordo com Nietzsche (1882) a civilização de um povo revela-se na unificação


dominante dos instintos deste, pois a filosofia domina o instinto de conhecimento, a arte domina
o instinto das formas e o êxtase, o Ágape domina o Eros etc. Outra área importante para esclarecer
essa relação filosófica (entre arte e a ciência) é a reconsideração da linguagem já que a mesma é
crucial para a formação da vida humana, pois ela atua na criação do pensamento metafisico e
cientifico intencionada pelo poder de persuasão. E a música também terá papel imprescindível na
atuação de inspiração e suplemento da linguagem, já que ela contribuía de forma direta para os
impulsos e excitações dos indivíduos.

Considerações Finais:

Portanto, o processo que decorre do projeto do filósofo como médico da civilização está
atrelado no reconhecimento de que o adoecer da civilização foi apenas um instante de retrocesso,
constrição a qual levou um seguimento mutuo de diversas áreas que negavam as transformações
e teve seu decaimento ao surgir uma nova ciência, uma gaia ciência, que reconhece seu caráter
errôneo e falsificador, onde ocorre um processo de renovação e expansão no âmbito cultural e
civilizatório, mostrando que a vontade de saber do homem pode ser substituído pela vontade de
não saber, vontade de incerteza não como refutação, mas como aperfeiçoamento.

De acordo com o desenvolver de todo projeto e após o diagnóstico do problema da


civilização, a filosofia tem como papel de acessória dela. Nietzsche afirma que o papel do filósofo
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e da filosofia não é aniquilar tudo que já existe no âmbito civilizatório e criar uma “nova
civilização”, mas prepará-la, conservá-la ou moderá-la com o intuito de fazer uma quebra dos
excessos culturais e civilizatórios já enraizados no meio. Ou seja, é uma porta para possibilidades
através primordialmente da arte, que é considerada a única a ser sincera e através da dominação
da ciência, levando em consideração que o filósofo deverá reconhecer e remediar os problemas
oriundos da civilização.

É mediante a destruição da secularização, dominação dos efeitos bárbaros do instinto do


impulso de conhecimento, luta contra a história errônea e contra os eruditos proletários que
ocorrerá uma cura civilizatória.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

NIETZSCHE, Friedrich; O livro do filósofo. – Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. – 6ª Ed. –
são Paulo: Centauro, 2004.

__________________; ECCE HOMO: Como alguém se torna o que é? – Trad. Paulo César
Lima de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

__________________ A Gaia Ciência – Trad. Antônio Carlos Braga. – 2ª Ed. – São Paulo: Escala
Editora, 2008.

FREITAS, Flávio Luiz de Castro. O filósofo como médico da civilização e o materialismo do


sábio. Revista de Ética e Filosofia Política – São Paulo: Poliética, 2019.
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POLÍTICA E COSMOPOLITISMO: UMA INTRODUÇÃO À IDEIA DE PAZ


SEGUNDO IMMANUEL KANT

POLITICS AND COSMOPOLITANISM: AN INTRODUCTION TO THE IDEA OF


PEACE ACCORDING TO IMMANUEL KANT

João Gabriel Costa Ferreira Maia – graduando em Filosofia –


UFMA.
Zilmara de Jesus Viana de Carvalho – Doutora em Filosofia
– UFMA

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: o presente artigo tem como objetivo analisar conceitos fundamentais da filosofia política
do filósofo prussiano Immanuel Kant. Trata-se de uma pesquisa introdutória ao tema da paz, que
é o sustentáculo do pensamento político do autor. Buscar-se-á com isto entender a relação dialética
dos homens em sociedade, bem como dos Estados entre si e dos homens com os estados. Há, neste
sentido, uma proposta que vigora rumo ao que Kant indica ser o objetivo central da política, a
saber, a fundação e a produção da paz. Pensar tal objetivo político é, sobretudo, pensar a paz
enquanto realização efetiva do próprio direito. Ou seja, remete ao convívio em sociedade
articulado nos moldes de uma constituição civil legal que, por sua vez, almeja o progresso da
humanidade. Ora, para Kant, o processo histórico-político que está diretamente ligado ao
progresso depende não do julgamento do que é ou não moral, mas se constitui na tentativa de
“conduzir a humanidade à realização de um objetivo moral devido, a saber, a convivência
pacifica em sociedade”. Destarte, tendo por base os textos À Paz Perpetua e Metafísica dos
Costumes, busca-se explicitar as condições para a paz no pensamento kantiano.
Palavras-chave: Paz; Sociedade; Direito; Política.

Abstract: This article aims to analyze fundamental concepts of the political philosophy of the
Prussian philosopher Immanuel Kant. This is an introductory research on the theme of peace,
which is the basis of the author's political thinking. This will seek to understand the dialectical
relation of men in society, as well as of the States between themselves and of the men with the
states. There is, in this sense, a proposal that runs towards what Kant indicates to be the central
objective of politics, namely, the foundation and production of peace. To think of such a political
objective is, above all, to think of peace as an effective realization of one's own right. In other
words, it refers to living together in a society articulated along the lines of a legal civil constitution
that, in turn, seeks the progress of humanity. For Kant, the historical-political process that is
directly linked to progress depends not on the judgment of what is moral or not, but is an attempt
to "lead humanity to the realization of a moral objective due to the coexistence peaceful in
society." Thus, based on the texts To Perpetual Peace and Metaphysics of Customs, it seeks to
make explicit the conditions for peace in Kantian thought.
Keywords: Peace; Society; Right; Politics.

A presente comunicação tem como objetivo analisar conceitos fundamentais da filosofia


política do filósofo prussiano Immanuel Kant. Trata-se de uma pesquisa introdutória ao tema da
paz, que é um dos pilares do pensamento jurídico-político do autor. Buscar-se-á com isto entender
a relação dos homens em sociedade, bem como dos Estados entre si. Há, neste sentido, uma
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proposta que vigora rumo ao que Kant indica ser o objetivo central da política, a saber, a fundação
e a produção da paz.
Pensar tal objetivo político é, sobretudo, pensar a paz enquanto realização efetiva do
próprio direito. Ou seja, remete ao convívio em sociedade articulado nos moldes de uma
constituição civil legal que, por sua vez, almeja o progresso da humanidade.
Ora, para Kant, o processo histórico-político que está diretamente ligado ao progresso
depende não do julgamento do que é ou não moral, mas se constitui na tentativa de “conduzir a
humanidade à realização de um objetivo moral devido, a saber, a convivência pacifica em
sociedade”. Destarte, tendo por base o texto À Paz Perpetua, e mais especificamente os artigos
preliminares da obra, busca-se explicitar as condições para a paz no pensamento kantiano.
Tratar de tal tema é, de modo mais genérico, relatar questões que envolve três tipos de
relações; são elas: entre os indivíduos de uma sociedade; relações destes com os Estados e; dos
Estados entre si. Desta forma, a paz se constitui na filosofia kantiana como um projeto, não só
filosófico, mas, também, e, sobretudo, político. É a partir dela que Kant lança o olhar para a
construção de uma ordem mundial que visa o pacifismo nas relações, sejam elas quais forem.
Além disso, cito Nodari: “[...] segundo Kant, um dos objetivos da política, se não o
principal, é a fundação e a produção da paz.” Segundo Kant, a paz é o fim a ser alcançado através
da condução da política para com os indivíduos e os Estados.
Sendo assim, há que se tentar realizar a paz na vida do homem em sociedade, uma
característica que se deriva do que Kant propõe na Metafísica dos Costumes: a efetivação prática
do direito, sua realização – que é fruto de princípios racionais a priori. Assim, a busca pelo
progresso da humanidade que se dá numa relação entre o direito e sua realização. Cito-o:

Pode-se dizer que essa instituição universal e duradoura da paz não é apenas uma parte,
mas constitui o fim terminal <Endzweck> total da Doutrina do Direito nos limites da
simples razão, pois o estado de paz é o único estado que assegura, sob leis, o meu e o seu
em um conjunto de homens avizinhados, portanto unidos numa constituição cuja regra,
porém, não deve ser extraída, enquanto norma para outrem, da experiência daqueles que
tenham tido as melhores condições até aqui, mas sim a priori, por meio da razão, do ideal
de uma união jurídica dos homens sob leis públicas em geral. (KANT, 2017, p. 159-160)

Acerca desse projeto de progresso da humanidade, não há, no aspecto do processo


histórico, algo que fundamente a busca pelo que é moral e pelo que não é, mas uma tentativa de
“conduzir a humanidade à realização de um objetivo moral devido, a saber, a convivência
pacífica em sociedade”. Outrossim, a paz no pensamento kantiano apresenta um caráter político-
moral e, neste sentido, o filósofo de Königsberg apresenta continuidade no pensamento quanto ao
conceito; bem como, uma renovação, ou, mudança de pensamento acerca do mesmo. Isto é, pensar
a paz é fazer o mesmo com as relações dos homens e dos Estados. É desta forma que, para Kant,
a paz deve ser fundamentada no direito.
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Portanto, o direito, além de fundamentar a paz, deve fazer o mesmo com a justiça como
forma de alicerçar e garantir a vida de cada um dos homens. Por conseguinte, essa premissa
política kantiana é constituída em defesa da paz e em oposição à justificação da guerra. Com isso,
o prussiano rompe com a proposição creditada “se queres paz, prepara-te para a guerra” e
estabelece como válida a seguinte: “se queres paz, preocupa-te com a justiça”. O filósofo
contribui – ao inovar, de modo genuíno – estabelecendo uma relação entre a guerra, a paz e o
direito. Com isso, o filósofo traz à tona a ideia de que não podemos mais coadunar com a tese de
que para proteger o nosso povo e fortalecer o nosso Estado, precisemos produzir mais armas de
guerra, e, por conseguinte, justificar as guerras, ou, ainda, nomeá-las como justas.
Ao contrário, devemos justificar a paz na tentativa de realizá-la, uma vez que “a paz
perpétua é, por assim dizer, o mais elevado bem político”. Neste sentido, a paz é um processo de
construção humana. Para Kant, é necessário que o homem abandone o estado de natureza uma vez
que este não apresenta seguridade jurídica. Desse modo, com a ideia de uma constituição civil
legítima pautada na união livre dos homens sob o julgo das leis do direito, pode-se pensar em uma
condição legal que indique para a possibilidade de, efetivamente, viver pacificamente. Ora,
seguindo este princípio a tese kantiana acerca da paz estaria, hodiernamente, em aporia ou sob
suspeita de ameaça? Por hora entendo que, os primeiros passos apresentados por Kant em À Paz
Perpétua que se constituem enquanto artigos preliminares para a paz perpétua entre os Estados
nos serão válidos para responder tal questão.
Sobre os artigos Kant escreve que são leis objetivamente proibitivas que tem por premissa
básica uma cláusula intencional aos que detêm o poder à medida que busca gerir com eficácia –
umas mais que as outras – pelas condições “que obrigam imediatamente a um não-fazer”.
Passemos, ainda que suscintamente, a tais artigos:
Primeiro artigo: “Não deve considerar-se como válido nenhum tratado de paz que se
tenha feito com a reserva secreta de elementos para uma guerra futura”.
Sobre este primeiro, Kant entende que um tratado de tal modo tende a ser um tratado que
visa adiar as hostilidades, mas não buscar a paz, pois, as causas que determinam uma futura guerra
– seja conhecida ou não – ofuscam, originalmente, um tratado de paz. Desta forma, o mesmo se
constituiria, por assim dizer, como uma justificativa para a guerra, que o autor lê como irrevogável
e necessariamente combatível.
Quanto a isso, observe-se o que escreve Nodari: “O tratado de paz não é um pacto de
paz, pois este dá fim a uma situação circunstancial de guerra. [...] para Kant, é inaceitável sentar
à mesa e assinar tratados de paz com reservas secretas para proveitos em guerras futuras”.
Portanto, é um dever moral incondicionado e inegociável falar a verdade. Um mandamento da
razão.
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Segundo artigo: “Nenhum Estado independente (grande ou pequeno, aqui tanto faz)
poderá ser adquirido por outro mediante herança, troca, compra ou doação”.
Deste segundo, entende-se que um Estado não é um patrimônio que possa ser adquirido
por outro, mas uma sociedade de homens que o constituem como tal, isto é, o homem – um ser
livre, das gentes – ao deliberar por uma constituição legal que fundamente o convívio com os
demais, se faz símbolo caracterizador e primordial de tal instituição política. Sobre o Estado diz
Kant:

É uma sociedade de homens sobre a qual mais ninguém a não ser ele próprio tem de
mandar e dispor. Enxertá-lo noutro Estado, [...] significa eliminar sua existência como
pessoa moral e fazer desta última uma coisa, contradizendo, por conseguinte, a ideia do
contrato originário, sem o qual é impossível pensar direito algum sobre um povo. [...]
Um reino hereditário não é um Estado que possa ser herdado por outro Estado; é um
Estado cujo direito a governar se pode dar em herança a outra pessoa física. O Estado
adquire, pois, um governante, não é o governante como tal (isto é, que já possui outro
reino) que adquire o Estado. (KANT, 2008, p. 5)

Segue-se, pois, que, neste, bem como em outros artigos, Kant assina-la para um aspecto
genuíno que fundamenta a tese de sua filosofia politica, a saber, a soberania, ou, autonomia dos
Estados.
Terceiro artigo: “Os exércitos permanentes devem, com o tempo, de todo desaparecer”.
Acerca disto, o filósofo entende que a formação da instituição militar como instituição
que constitui o Estado é uma ameaça permanente aos outros Estados, ou ainda, ao próprio, uma
vez que estão de prontidão e sempre preparados para a guerra. Desta forma, o autor compreendeu
que “os Estados incitam-se reciprocamente [...] e visto que a paz, [...] se torna finalmente mais
opressiva do que uma guerra curta, eles próprios são a causa de guerras ofensivas para se
libertarem de tal fardo”.
Com relação a este artigo, o comentador é categórico ao afirmar: “A lógica da guerra é
a lógica de quem é mais forte, e, neste sentido, os Estados buscam, indubitável e incessantemente,
superarem-se uns aos outros no quesito arsenal e das condições favoráveis de armamento”.
A exemplo disto pode-se constatar que mesmo depois de mais de 200 anos que Immanuel
Kant escreveu À Paz Perpétua a produção bélica e os exércitos recebem grandes investimentos.
Após o dia da morte do líder da Al-Qaeda, Osama Bin Laden, no Paquistão, no dia 2 de maio de
2011, soldados norte-americanos foram condecorados pelo então presidente Barack Obama. Isso
se segue comprovando o que indicara a lógica estabelecida por Nodari sobre se dizer que “o ‘poder
de fogo’ de determinado exercito assinala o poder de um Estado, ou vice-versa”.
Quarto artigo: “Não se devem emitir dívidas públicas em relação aos assuntos de política
exterior”.
Segundo Kant, movimentar a economia de um país através de relações comerciais entre
os Estados não gera suspeitas. Porém, alguns mecanismos de movimentação financeira que
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trabalham com sistemas de créditos, são crescentes e, quando usados para opor-se a outras
potências se apresentam como perigosos, ou seja, “é um tesouro para a guerra”. Acerca disso,
diz Kant: “Esta facilidade para fazer a guerra, unida à tendência dos detentores do poder que
parece ser congênita à natureza humana, é, pois, um grande obstáculo para a paz perpétua”.
Quinto artigo: “Nenhum Estado se deve imiscuir pela força na constituição e no governo
de outro Estado”.
Neste penúltimo artigo preliminar, pode-se dizer que Kant fundamenta um princípio que
passeia no campo de sua filosofia política. Ao “condenar” a ingerência dos Estados face à
constituição legal de outros, o prussiano assinala para o caráter autônomo que uma Nação deve
ter quanto as suas próprias leis. Desta forma, não ferir a legitimidade do direito de outros povos é,
de certo modo, garantir a soberania de seu próprio povo. Interferir na política interna de outro
Estado colocaria em perigo a autonomia de todos os demais. Porém, ainda que Kant fundamente
essa tese em À Paz Perpétua, na Metafísica dos Costumes ele indica que:

O direito dos Estados em sua relação mútua [...] é aquele que temos de considerar sob o
nome de direito das gentes, no qual um Estado, considerado como pessoa moral, diante
de outro Estado em situação de liberdade natural – consequentemente também em estado
de guerra permanente –, propõe-se como questão em parte o direito à guerra, em parte o
direito na guerra, em parte o direito de obrigar uns aos outros a saírem desse estado de
guerra, e ainda, portanto, uma constituição que funda uma paz duradoura, isto é, o direito
depois da guerra. (KANT, 2017, p. 148-149)

Quero dizer com isso que, ainda que o princípio da soberania dos Estados seja
imprescindível para o pensamento político do autor, quando um povo está em guerra – que é uma
condição não-jurídica –, ainda que os demais não possam ingerir em sua vida, podem exigir-lhes
a volta à condição de paz.
Sexto artigo: “Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir tais hostilidades que
tomem impossível a confiança mútua na paz futura, como exemplo, o emprego no outro Estado
de assassinos (percussores), envenenadores (venefici), a ruptura da capitulação, a instigação à
traição (perduellio), etc”.
Deste último artigo – que é uma ordem – depreende-se que o objetivo da guerra pode ser
uma condição de transição para a paz e, que, os Estados não devem permitir que as circunstâncias
de tal conflito possam ser uma ameaça à confiança de se efetivar a paz futuramente. Se em um
momento a guerra afasta os povos, põe-los em conflito; em outro ela os faz unir e juntarem-se sob
leis civis.
Para concluir, por hora, lancemos nossos olhares especificamente a este sexto e último
artigo preliminar. Nele, Kant deixa claro que mesmo na guerra deve haver uma certa confiança,
isto é, ainda que sob ameaça de outrem, o Estado, sendo uma pessoa moral, tem a responsabilidade
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ética para com o(s) outro(s). Caso contrário, não seria possível se falar em convivência pública,
bem como eliminaria qualquer possibilidade de uma paz perpétua. Cito-o:

Todos os tipos de meios de defesa são permitidos ao Estado contra o qual se faz guerra,
exceto aqueles cujo uso tornaria os súditos do mesmo incapazes de ser cidadãos, pois
nesse caso ele se tornaria ao mesmo tempo incapaz de valer, na relação entre os Estados
segundo o direito das gentes como uma pessoa [...] (KANT, 2017, p. 153)

Tendo por base todos esses artigos apresentados por Kant para fundamentar a paz como
uma condição política, voltemos à pergunta que outrora fora feita: a tese kantiana acerca da paz
estaria, hodiernamente, em aporia ou sob suspeita de ameaça?
Para responder tal questão, vejamos a atual conjuntura geopolítica mundial. No último
dia 23/03 aviões da força aérea russa aterrissaram sob solo venezuelano trazendo consigo cerca
de 35 toneladas de material bélico e, aproximadamente 100 tropas. O país latino-americano é
tratado como alvo de uma possível intervenção militar norte-americana – e, aqui, nada disso nos
diz respeito. Desta forma, sob a perspectiva aqui tratada tal fenômeno se constitui como um futuro
e possível estado de guerra denotado por Kant em sua obra. Com isso, conclui-se que o projeto
político de paz proposto pelo autor, se mostra, em nossos dias, sob ameaça ou, por assim dizer,
longe de ser atingido. Porém, isso não nos permite dizer que seja impossível fundá-lo.

Referências:

KANT, Immanuel. A Paz Perpétua. Um Projeto Filosófico. / tradutor: Artur Morão; Coleção Textos
clássicos de filosofia. Covilhã, 2008
KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes / Immanuel Kant ; tradução [primeira parte] Clélia
Aparecida Martins, tradução [segunda parte] Bruno Nadai, Diego Nosbiau e Monique Hulshof – Petrópolis,
RJ: Vozes; Branganca Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2013. – (Coleção Pensamento
Humano); 3ª reimpressão, 2017.
NODARI, Paulo César. Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant / Paulo
César Nodari – São Paulo: Paulus, 2014 (Coleção
Ethos).https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/03/24/avioes-da-forca-aerea-russa-aterrissam-na-
venezuela-carregando-tropas.ghtml
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POSITIVISMO EM FUNDAÇÃO: A EXPRESSÃO DO PROJETO DE COMTE NA


OBRA DE ASIMOV

POSITIVISM IN FOUNDATION: THE EXPRESSION OF COMTE’S PROJECT ON


ASIMOV’S OPUS

Yuri Gabriel Lopes Fernandes


Mestrando em Cultura e Sociedade pelo PGCult, UFMA
Flávio Luiz de Castro Freitas –
Orientador, Professor do PGCult/UFMA.

Eixo Temático 2 – Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Explicitação dos aspectos do projeto positivista de Comte na trilogia Fundação de


Asimov. Composto de três etapas: descrição da proposta de Comte, que se baseia na lei dos três
estados e no estabelecimento da filosofia positiva como método definitivo para o conhecimento.
Esta possibilitaria o estabelecimento da física social, uma ciência baseada no método experimental
matemático que seria capaz de elaborar leis sobre o ser humano e suas sociedades. A segunda
etapa consiste na análise da trilogia de Asimov, que retrata a decadência do grande Império
Galáctico que, após 12 mil anos de estabilidade, se fragmenta devido à estagnação em que se
encontra. Para evitar 30 mil anos de barbárie, um grupo de cientistas utiliza a psico-história (uma
ciência fictícia capaz de calcular estatisticamente o comportamento de seres humanos) para
executar um plano que diminuiria tal período para apenas mil anos. A última etapa consiste na
relação entre ideias comteanas e elementos de Fundação, sendo as principais as duas que seguem:
a correspondência entre a lei dos três estados (teológico, metafísico e positivo) e as organizações
políticas de Fundação (barbárie, Império e Fundação); e a correlação entre a física social proposta
por Comte e a psico-história concebida por Asimov.
Palavras-chave: Ficção Científica. Positivismo. Comte. Fundação. Asimov.

Abstract: Explanation of aspects of Comte's positivist project in the Asimov Foundation trilogy.
It’s composed of three stages: description of Comte's proposal, which is based on the law of three
states and the establishment of positive philosophy as the definitive method for human knowledge.
This would enable the establishment of social physics, a science based on the mathematical
experimental method that would be able to make laws about the human being and its societies.
The second stage consists on the analysis of the Asimov trilogy, which portrays the decay of the
great Galactic Empire, which, after 12,000 years of stability, is fragmented due to the stagnation
in which it finds itself. To prevent 30,000 years of barbarism, a group of scientists uses psycho-
history (a fictional science capable of statistically calculating the behavior of human beings) to
execute a plan that would shorten that period to just a thousand years. The last stage consists on
the connexion between comtean ideas and elements in Foundation, the main two being the
following: the correspondence between the law of the three states (theological, metaphysical and
positive) and the political organizations in Foundation (barbarism, Empire and Foundation); and
the correlation between social physics proposed by Comte and psycho-history conceived by
Asimov.
Keywords: Science Fiction. Positivism. Comte. Foundation. Asimov.

1. Introdução
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Este trabalho tem como objetivo investigar o seguinte problema: em que medida há
características do positivismo de Auguste Comte na obra Fundação de Isaac Asimov? Para
desenvolver essa questão, postulamos a possibilidade de explicitar relações entre as ideias de
ambas as obras, tomando como base duas conjecturas: primeiramente, a influência dominante do
positivismo na cultura ocidental desde sua origem até meados da Primeira Guerra (REALE e
ANTISERI, 2005, p. 287); e, em segundo lugar, a divisão da saga Fundação em duas partes com
propostas diferentes: a trilogia original do jovem Asimov e as sequências e prequelas do professor
Asimov – mais de trinta anos separam a publicação dos primeiros e dos últimos livros, dando aos
dois conjuntos argumentos distintos (WILCOX, 1990, p. 55 e PEREIRA, 2018, p. 94).
Silvino (2007, p. 280), mesmo reconhecendo que a paradigma científico não é positivista,
atesta a predominância histórica do mesmo, que se alastra até a atualidade: “A obra de Auguste
Comte, por ser um marco do positivismo, pode auxiliar a entender as características que
influenciaram alguns preceitos que são encontrados (de forma hegemônica) nas ciências até hoje”.
Wilcox (1990, p. 55) aponta a diferença entre as obras de Asimov dos anos 40 e 50 e as obras dos
anos 80, responsabilizando as mudanças políticas e sociais do mundo real, que levaram ao
amadurecimento dos argumentos e posições sociopolíticos em seus livros. Pereira (2018, p. 94)
aponta também a diferença de idade e formação do escritor: “O Asimov que escreveu a Trilogia
da Fundação não era o que finalizaria a saga, o jovem Asimov havia dado lugar ao Professor
Asimov”.
Desta forma, limitamos nossa análise aos três livros originais da trilogia (Fundação,
Fundação e Império e Segunda Fundação), esperando confirmar a hipótese de que o jovem
Asimov, por conta de sua formação282, concebeu várias ideias advindas de Comte ou mesmo de
forma paralela283, devido ao contexto científico de sua época ter sido fortemente influenciado pelo
positivismo. Mais tarde, entretanto, o Professor Asimov criaria, em seus livros tardios, tramas que
criticariam estas mesmas ideias. Assim, considerando o tamanho limitado deste trabalho,
justificamos tal delimitação, deixando a análise da saga como um todo para trabalhos futuros.

2. O projeto de Comte

O positivismo comteano é um projeto com um objetivo claro, mundano e secular, que


sintetizou as ideias revolucionárias de pensadores do século XVII em um sistema que garantiria o

282
Quando escreveu o primeiro conto da trilogia Fundação, Asimov contava 22 anos e era estudante do curso de
Química da Universidade de Columbia.
283
Paralelas por terem sido desenvolvidas de forma independente – não há provas documentais de que Asimov tenha
sido leitor direto de Comte. Consideramos aqui apenas a influência deste no paradigma científico no qual aquele foi
educado.
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avanço contínuo da gnose humana. Comte denominou tal saber “filosofia positiva” – uma filosofia
que se utilizava das ideias epistêmicas renascentistas para delinear um método definitivo para o
crescimento perpétuo do conhecimento:
[...] indicarei a data do grande movimento impresso ao espírito humano, há dois séculos,
pela ação combinada dos preceitos de Bacon, das concepções de Descartes e das
descobertas de Galileu, como o momento em que o espírito da filosofia positiva começou
a pronunciar-se no mundo, em oposição evidente ao espírito teológico e metafísico.
(COMTE, 1983, p. 8).
Desta forma, assevera-se que o projeto comteano é constituído por uma “díade filosófica”
composta por uma política e uma epistemologia que se retroalimentam, constituindo bases uma
para outra, a fim de guiar tanto o desenvolvimento das sociedades quanto do saber humano. Em
tal projeto, não há interesse por buscar verdades últimas, de forma que ontologias e metafísicas
são (ao menos pretensamente) deixadas de lado, uma vez que não se submetem ao método
experimental: não podem levar ao aumento de conhecimento positivo. Deste modo, Comte
preocupou-se com o desenvolvimento de um conhecimento que pudesse ser instrumentalizado,
para servir para o progresso da sociedade de acordo com os moldes previstos pela sua política.
Assim, destacamos que o
caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis
naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível
constituem o objetivo de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente
inacessível e vazia de sentido para nós a investigação das chamadas causas, sejam
primeiras, sejam finais. (COMTE, 1983, p. 7).
Esta elaboração comteana se baseia em sua percepção sobre a evolução das sociedades de
sua época, que o mesmo exprimiu na forma da lei dos três estados: toda sociedade humana passa
por três estágios de conhecimento, sendo o primeiro (e mais primitivo) o teológico, o segundo (e
de transição) o metafísico e o terceiro (e definitivo) o positivo.
É importante notar a ideia de progresso histórico linear contida nesta concepção: ela nasce
em um momento em que, de acordo com Reale e Antiseri (2005, p. 288), aconteceram revoluções
políticas e epistêmicas que levaram a Europa a se firmar como grande metrópole mundial,
colonizando praticamente todo o mundo. Assim, do ponto de vista da filosofia positiva (que
reconhece o valor do conhecimento através da aplicabilidade do mesmo), os estágios de
pensamento de povos dominados são mais primitivos e menos válidos que o tipo de conhecimento
que levou os europeus a desenvolver tecnologias que os permitiram dominar o resto do mundo284.

284
Os Estados Unidos, país em que Asimov cresceu, foi uma das muitas colônias da Europa e recebeu diversas ondas
de imigrantes europeus até o século XX. Por conta disso, foi fortemente influenciado pela cultura europeia, devendo
muito de seu desenvolvimento a aplicação de noções da metrópole, como a industrialização e a valorização da
pesquisa científica e tecnológica.
Página 1320 de 2230

Em resumo, os três estágios podem ser definidos como se segue: no estágio teológico, os
seres humanos buscam as causas definitivas de tudo o que há, explicando-as através da existência
de agentes sobrenaturais, que agem para provocar este ou aquele fenômeno. É o estágio em que,
segundo Comte (1983, p. 4 e 5) estão as sociedades primitivas, as crianças e as pessoas incultas,
que se atêm à imaginação para esclarecer seus mundos.
O estágio metafísico, por sua vez, marca o surgimento da razão no pensar, alterando o
estágio anterior na medida em que forças abstratas substituem as entidades sobrenaturais no papel
de explicações dos fenômenos. A procura pelas causas definitivas ainda persiste, mas se dá através
do exercício da lógica, responsável por alinhar e alocar entes teóricos, de forma a elaborar modelos
de mundo que correspondam satisfatoriamente à realidade. É o estágio em que se encontram
sociedades desenvolvidas, porém pré-científicas (como a Grécia Antiga). Comte (1983, p. 7)
considera que o estágio metafísico é necessário para que haja a transição para o próximo, uma vez
que a razão é um importante elemento da filosofia positiva.
O último estágio, chamado de positivo, alia os preceitos do empirismo (fundados por
Bacon), a razão instrumental/matemática (sintetizada por Descartes) e a reprodução de
experimentos em laboratório (como formulados por Galileu). É chamado de positivo porque tem
como objetivo o aumento contínuo de um arcabouço de conhecimento, mediante a busca por leis
gerais que governam todos os fenômenos através do estudo de casos particulares. Este crescimento
perpétuo do saber é possível por conta de dois pressupostos: em primeiro lugar, o reconhecimento
de que é impossível chegar a noções absolutas através do método positivo. Este busca (e buscará,
para sempre) apenas o aperfeiçoamento de suas teorias, mediante estudo de experimentos,
submetendo-os à razão lógico-matemática e aproximando-se assim das leis gerais que regem todo
o Universo. Em segundo lugar, o positivismo tem como postulado a existência de uma unidade
universal, um logos do qual tudo faz parte e, portanto, a existência de um padrão fenomenológico
do qual podemos nos aproximar. Comte (1983, p. 4) considera o ápice do estágio teológico a
concepção de um Deus uno e o ápice do estágio metafísico o conceito da Natureza também una,
o que demonstra sua ideia de uma realidade verdadeira única, à qual todos os seres e fenômenos
estão subordinados.
Paralelamente, a perfeição do sistema positivo à qual este tende sem cessar, apesar de ser
muito provável que nunca deva atingi-la, seria poder representar todos os diversos
fenômenos observáveis como casos particulares do único fato geral [...]. (COMTE, 1983,
p. 4).
Em resumo, por considerar que há uma verdade única, porém impossível de ser alcançada
pelos meios humanos, a filosofia positiva alia experimentação controlada e razão matemática para
criar um movimento inerente a ela mesma em direção ao aumento de seu volume de conhecimento.
Entretanto, este movimento é uma busca sem fim, uma aproximação contínua da verdade
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impossível de se alcançar (como num limite de uma função algébrica, que se aproxima sempre de
um valor, sem nunca o atingir).

2.1. A física social

De acordo com Reale e Antiseri (2005, p. 289), na época de Comte (1798-1857) as ciências
naturais já estavam bem estabelecidas como um conhecimento com corpo próprio e independentes
das filosofias metafísicas e teológicas que imperou na Europa durante a Antiguidade e a Idade
Média. Com a Renascença, veio a revolução copernicana, além das descobertas de grandes
cientistas como Galileu, Kepler, Newton e Lavoisier. Estas levaram a Astronomia, a Física e a
Química a um novo patamar. Não tardaria e A Origem das Espécies de Darwin seria publicada,
revolucionando também a Biologia. Ainda conforme Reale e Antiseri (2005, p. 289), depois de
tais revoluções, o que era apenas conhecimento para eruditos passou a ser informação a ser testada,
reproduzida e instrumentalizada, gerando novas tecnologias e a ascensão da Europa sobre o resto
do mundo.
Em apenas dois séculos, este novo tipo de saber – não transcendental e sem pretensões
ontológicas – geraria mais benefícios materiais do que dois milênios de metafísicas e teologias
que buscavam a verdade absoluta ou o paraíso em outra vida. O sucesso do método experimental
matemático posto em prática285, aliado ao pressuposto já mencionado acima (tudo no universo
pertence a um mesmo logos, uma mesma lei geral, ainda que impossível de se atingir) levou Comte
a sugerir a criação de uma ciência que estudasse as sociedades humanas a partir dos mesmos
princípios metodológicos:
Pois seria evidentemente contraditório supor que o espírito humano, tão disposto à
unidade de método, conservasse indefinidamente, para uma única classe de fenômenos,
sua maneira primitiva de filosofar, quando uma vez chegou a adotar para todo o resto
novo andamento filosófico, de caráter absolutamente oposto. (COMTE, 1983, p. 9).
O alerta é bem simples: não se deve colocar os seres humanos (ou qualquer outro
fenômeno) à parte de todos os outros seres, pois estes obedecem às mesmas leis universais que
aqueles. Desta forma, o ser humano deveria ser estudado da mesma maneira que os outros seres,
não devendo seu estudo ser relegado às primitivas filosofias metafísicas ou teológicas.
À ciência que seria responsável por estudar os seres humanos através do método
experimental matemático, Comte deu o nome “física social”. O filósofo reconheceu desde o
princípio a dificuldade de tal empreendimento, dada a enorme complexidade de tal objeto, além

285
Apesar de o positivismo como doutrina filosófica ter surgido apenas com Comte, a Europa já colhia frutos da
revolução científica/tecnológica desde a época do Renascimento, dois séculos antes.
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da óbvia dificuldade de o sujeito ter a si mesmo (ou a um de sua própria espécie, ou uma
comunidade na qual está inserido) como objeto de estudo.
Entretanto, tais dificuldades não seriam suficientes para que Comte recuasse de sua
proposta, por dois motivos principais: em primeiro lugar, a pressuposição do Universo único que
determina o subjugo de todos os fenômenos a uma unidade de leis. Este se alia aos princípios
civilizatórios da política positiva que apregoavam o progresso através da ciência: “O
conhecimento das leis dos fenômenos, cujo resultado constante é fazer com que sejam previstos
por nós, evidentemente pode nos conduzir, de modo exclusivo, na vida ativa, a modificar um
fenômeno por outro, tudo isso em nosso proveito” (COMTE, 1983, p. 23). A física social teria
assim uma justificativa para sua existência e um objetivo: guiar a humanidade para a ordem social,
gerando um perene progresso tanto político quanto científico.

3. A trilogia Fundação

A série Fundação é composta, ao todo, por sete livros: Prelude to Foundation (1988),
Forward the Foundation (1993), Foundation (1951), Foundation and Empire (1952), Second
Foundation (1953), Foundation’s Edge (1982) e Foundation and Earth (1986)286. Como já
justificamos, neste trabalho analisaremos apenas a trilogia original que, diferentemente dos
romances dos anos 80, foi publicada originalmente na forma de contos na revista Astounding
Science Fiction, entre 1942 e 1950 (PEREIRA, 2018, p. 23), para só depois serem agrupados em
livros. Ressaltamos novamente a idade e formação de Asimov à época, que era um estudante dos
22 aos 30 anos, ainda inatingido pelas críticas epistemológicas do século XX (e.g. as ideias de
Popper287, Kuhn, Lakatos, Feyerabend e Bachelard). Por conta disso, sua constituição acadêmica
e científica era acentuadamente positivista, apesar disso ter mudado ao longo de sua vida.
Asimov alterou suas histórias pelo menos duas vezes, primeiro quando os contos foram
transformados na trilogia e depois quando fez a retcon de sua obra, corrigindo datas, fatos e
atitudes de personagens, para unir em um só Universo as séries Robôs, Império e Fundação
(ASIMOV, 2014a, locais do Kindle 40-43). Por conta disso, decidimos utilizar a versão mais
recente, respeitando a vontade do autor e visando maior coerência com futuros trabalhos que
analisem um conjunto maior da obra.

286
No Brasil, Prelúdio à Fundação, Crônicas da Fundação, Fundação, Fundação e Império, Segunda Fundação,
Limites da Fundação e Fundação e Terra. Citamos títulos e datas de publicação originais para ressaltar a diferença
entre a ordem cronológica dos livros e a ordem em que foram publicados.
287
Asimov no mínimo conhecia Popper, tendo escrito o prefácio de In Pursuit of Truth (1982), uma obra em
comemoração ao 80° aniversário do filósofo.
Página 1323 de 2230

3.1. Fundação

O primeiro livro narra a situação da humanidade cerca de vinte mil anos no futuro,
dominando a galáxia e ocupando cerca de vinte e cinco milhões de planetas que são regidos por
um único Império Galáctico. Tal Império é responsável por governar um quintilhão de seres
humanos a partir de um centro burocrático que ocupa um planeta inteiro, Trantor. Esta estrutura
política se manteve intacta ao longo de 12 mil anos, trazendo geralmente paz e prosperidade à
maioria. Entretanto, um cientista chamado Hari Seldon, tendo desenvolvido uma ciência
matemática capaz de prever estatisticamente o comportamento de seres humanos (a psico-
história), alerta para o iminente fim do Império, ao qual se seguiriam 30 mil anos de barbárie e
decadência.
Segundo Seldon, as leis da psico-história são tão infalíveis quanto as leis da química ou
da física, e de maneira alguma a queda do Império poderia ser evitada. No entanto, a mesma
ciência psico-histórica apontava uma solução: diminuir a duração de tal idade de trevas de trinta
para apenas mil anos, através da preparação de uma “Enciclopédia Galáctica” que salvaguardaria
todo o conhecimento da raça humana. Sob esse pretexto, cem mil pessoas são enviadas para
Terminus, um planeta inabitado nos confins da galáxia, a fim de fundar uma cidade responsável
pela elaboração da Enciclopédia. Assim nasce a Fundação, uma colônia de cientistas físicos que
evoluiria para uma nação e seria responsável pelo advento do Segundo Império, dali a mil anos.
Uma Segunda Fundação foi formada em segredo, para continuar desenvolvendo a psico-história
e proteger o andamento do Plano Seldon, poupando a humanidade de 29 mil anos de caos e
sofrimento.
A história avança pondo à prova a sobrevivência da Fundação e são narradas as “crises
Seldon”, ou seja, um impasse sociopolítico previsto pela psico-história. Depois de cada crise, uma
imagem do próprio Hari Seldon aparece no “cofre do tempo”, um projetor holográfico com
mensagens gravadas que explicam a natureza da crise e relembram que a Fundação deve sair
necessariamente vitoriosa, uma vez que sua existência fora planejada pela psico-história. Além
disso, por conta do pretexto inicial para sua formação – a elaboração da Enciclopédia, era a nação
detentora do arcabouço de conhecimento das ciências físicas, enquanto seus vizinhos decairiam
para a barbárie ao se desligarem do Império.
São narradas ao todo três crises Seldon que revolucionam a estrutura política da Fundação:
a primeira se consuma num golpe de estado que usurpa o poder dos enciclopedistas ainda
subordinados ao Império, cinquenta anos após o estabelecimento em Terminus. Salvor Hardin, o
líder do golpe, torna a Fundação (que até então era apenas uma colônia de cientistas subserviente
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ao imperador) uma nação independente, ao mesmo tempo em que lida com a ameaça dos reinos
vizinhos (recém libertos do Império), se tornando assim o primeiro prefeito do planeta.
A segunda crise se passa trinta anos após a primeira e tem como problema principal a
hostilidade dos reinos vizinhos, agora alimentados pela tecnologia provinda da Fundação,
desejando tomá-la como um de seus domínios. Mais uma vez, Hardin “salva” a Fundação, tendo
estabelecido uma “religião da ciência” junto com o fornecimento de tecnologia, fazendo parecer
aos planetas vizinhos que os aparatos tecnológicos eram milagres operados por sacerdotes (que
eram técnicos e cientistas). Assim, a vitória de Terminus foi assegurada novamente.
A terceira crise acontece em decorrência da segunda: depois que os governantes dos
planetas próximos notaram que a Fundação estava dominando todos os vizinhos através da
sedutora oferta de tecnologia acompanhada de domínio religioso, surgiu (nos mundos ainda não
dominados) uma desconfiança de tudo que vinha de Terminus, alimentada pelos líderes políticos
receosos de perderem seus domínios. Por conta disso, surge a classe dos comerciantes, que levam
os produtos tecnológicos da Fundação para os mundos mais distantes sem levar junto o culto
religioso.
Por volta do ano 175 E.F.288, se passa a história de um desses comerciantes, Hober Mallow,
que é enviado para investigar três naves da Fundação desaparecidas no território de Korell, uma
república suspeita por conta de seu avançado desenvolvimento tecnológico. Durante sua
empreitada, Mallow convence o governante korelliano a comprar tecnologia da Fundação, tendo
descoberto a presença de relíquias tecnológicas do Império, alimentadas por energia atômica que
só a Fundação (e o que sobrou do Império) possuíam. Entretanto, ele nota também a falta de
técnicos e manutenção para os equipamentos, marca de uma sociedade decadente que vivia de
recursos do passado. Retornando a Terminus, é acusado de traição por causa da venda de
tecnologia dissociada da disseminação do culto religioso. No entanto, numa reviravolta retórica
em seu julgamento, Mallow consegue se livrar das acusações e, mais tarde, ser eleito prefeito.
Entretanto, movido pelo seu líder beligerante e alimentado por uma réstia da tecnologia militar do
Império, Korell finalmente ataca a Fundação, que não revida e apenas aguarda o povo korelliano,
agora dependente dos artigos domésticos vendidos pelos comerciantes fundacionistas, sofresse
com a privação de tecnologia e depusesse seu governo, acabando com a guerra.

3.2. Fundação e Império

O segundo livro da trilogia é formado por duas partes, sendo a primeira intitulada “O
General”. Esta narra a quarta crise Seldon: o embate entre a Fundação e o decadente, porém ainda

288
Era da Fundação, considerando a chegada em Terminus como o ano zero.
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perigoso Império, agora sob o governo de Cleon II. Terminus já foi há muito esquecido por
Trantor, dada a distância colossal entre os dois e a rebelião de praticamente todos os mundos da
periferia da galáxia. Entretanto, Bel Riose, general imperial extremamente capaz e popular, ouve
falar que nos confins da Galáxia há uma nação desenvolvendo tecnologias avançadíssimas e
expandindo cada vez mais seus domínios. Após explorar a galáxia em busca de tal mundo,
descobre a localização de Terminus e ouve falar no plano Seldon, agora espalhado na forma de
lendas sobre a invencibilidade da Fundação. Movido pelo desejo de realizar um grande feito numa
época marcada pela estagnação, Riose decide conquistar a Fundação, utilizando-se de uma frota
de naves de combate para encurralar Terminus num cerco. Apesar da decadência, o Império ainda
é superior em recursos e homens, sendo uma séria ameaça: entrava-se uma batalha entre o
brilhantismo militar de Riose e a ainda vulnerável Fundação, que tem apenas a “Mão Morta de
Seldon” para defendê-la.
Os governantes da Fundação tentam subornar o general, mas sem sucesso. Após algum
tempo de impasse na guerra, principalmente por conta da cautela de Riose, este pede reforços ao
Império para garantir totalmente sua vitória. Enquanto isso, Lathan Devers, um comerciante da
Fundação, viaja até Trantor para tentar convencer o imperador a ordenar a retirada de Riose.
Devers, no entanto, é incapaz de chegar até o imperador por conta da infindável burocracia que o
cerca. Sua empreitada se mostra desnecessária, entretanto: o sucesso em batalhas e a popularidade
de Bel Riose foram sua ruína, pois alertaram o imperador que tão competente líder militar poderia
ser perigoso, podendo ser o líder de um golpe de estado um dia. Assim, Cleon II ordena o a retirada
das tropas e a execução do general, sob a (falsa) acusação de traição.
Esse episódio demonstra a atuação das “forças da psico-história”, que agem pela
inevitabilidade da vitória da Fundação. Outras possibilidades não ameaçariam a continuidade do
plano Seldon: se o imperador fosse fraco e um general, forte, este teria muito mais a ganhar
conquistando Trantor do que numa busca por regiões longínquas para conquistar. Um general
fraco nunca ameaçaria a Fundação, pois mesmo se o imperador fosse forte, este não poderia se
ausentar da capital por muito tempo sem gerar intrigas na corte e perigo para seu trono. Quando
aconteceu de ambos serem fortes, o interesse do general se voltou para as fronteiras, gerando
perigo para a Fundação. Entretanto, um imperador forte jamais deixaria ser sublimado pelas
glórias de outrem, limando qualquer um que ficasse poderoso demais. Em qualquer um dos casos,
a vitória da Fundação seria inevitável e o Império continuaria a desmoronar sobre si mesmo.
A segunda parte do livro, intitulada “O Mulo”, se passa cerca de cem anos após a batalha
de Riose. Após a morte de Cleon II, o que restava do Império se deteriorou rapidamente, tendo
Trantor sido saqueado por frotas de bárbaros e a capital transferida para o planeta Delicass
(renomeado Neotrantor). O Império, que em seu auge chegou a governar todos os milhões de
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planetas habitados da galáxia, agora se resumia a apenas vinte mundos agrícolas, praticamente
esquecidos pelos seus vizinhos.
A Fundação tomara o caminho oposto: tornou-se a maior potência da galáxia, dominando
diversos mundos através de sua teia mercante de tecnologia. Entretanto, o governo de Terminus
deixara de ser democrático era agora hereditário, estando na terceira geração de ditadores. Por
conta do despotismo e alta taxa de impostos dessa administração, os planetas da periferia da
Fundação começam a conspirar uma revolta, liderados pelos mercadores, cansados de ceder a
maior parte de seu lucro para o governo.
É nesse contexto que surge o Mulo, um grande conquistador que vem reunindo sob seu
domínio os reinos que sobraram da fragmentação do Império. Utilizando-se das grandes naves da
época imperial dos mundos conquistados, o Mulo se volta contra a Fundação, derrotando cada
planeta sem luta. A liderança da Fundação, confiante no Plano Seldon, nada faz a não ser esperar
pela abertura do Cofre do Tempo que, no entanto, revela a primeira falha da psico-história para o
espanto e desespero do povo de Terminus, que há muito acreditava no Plano como seu destino
praticamente divino. Quando a imagem de Hari Seldon aparece, ele fala sobre a crise dos
mercadores e da guerra civil contra o governo, mas não menciona nada sobre a conquista do Mulo:
a psico-história, afinal, só podia prever os movimentos de grandes massas humanas, e o Mulo era
claramente uma anomalia, pois era um indivíduo que conseguia manipular as massas. É revelado
então que o Mulo é um mutante, capaz de influenciar nas emoções das pessoas com o poder de
sua mente.
Após a abertura do Cofre, Terminus é derrotado e posta sob o domínio do Mulo, mas quatro
pessoas conseguem fugir do planeta: Toran Darell (filho de um dos líderes dos mercadores), Bayta
Darell (cidadã da Fundação e esposa de Toran), Ebling Mis (cientista da Fundação que tentou
estudar psico-história de maneira independente, tendo sido capaz de prever a data da abertura do
Cofre do Tempo) e Magnífico Giganticus (bobo da corte do Mulo, que conseguira fugir e fora
“adotado” pelo casal Darell). Os quatro partem e, em sua fuga, decidem buscar pela ajuda Segunda
Fundação que, ao contrário da Primeira especializada em ciências físicas, teria se especializado
todo esse tempo em ciências mentais, representando uma esperança para tentar derrotar o Mulo.
Assim, Ebling Mis decide que eles devem ir até a Biblioteca de Trantor, em busca de informações
sobre a localização da Segunda Fundação.
Chegando lá, Mis trabalha sem parar por semanas, reunindo informações registradas em
livros-filmes. Depois de muito tempo pesquisando sem descansar, a saúde do cientista se deteriora,
deixando-o à beira da morte. Em seus momentos finais, quando está para revelar a localização da
Segunda Fundação para seus companheiros, Bayta atira nele e o mata. Ela revela que Magnífico
é na verdade o Mulo disfarçado, influenciando todos os acontecimentos para que ele mesmo
Página 1327 de 2230

encontrasse a Segunda Fundação e os derrotasse. O Mulo, por sua vez, confessa não ter
influenciado mentalmente Bayta (como fez com todos que encontra, inclusive Toran e Mis), por
ter gostado pela afeição natural que ela sentia por ele, coisa inédita por conta de sua aparência
deformada. Depois dessa derrota, o Mulo deixa o casal Darell em Trantor e retorna para a
Fundação, para comandar seu império ainda em expansão e tentar outros meios de localizar a
Segunda Fundação.

3.3. Segunda Fundação

O último livro da trilogia também é dividido em duas partes (correspondentes aos contos
publicados originalmente), sendo a primeira “A busca do Mulo”. O mutante, agora ditador da
Fundação e de seus reinos conquistados, continua sua busca pela elusiva Segunda Fundação,
tentando a todo custo destruí-la para eliminar qualquer ameaça ao seu domínio. Para executar tal
missão, o Mulo envia dois dos melhores homens à sua disposição: Han Pritcher (ex-capitão da
Fundação, agora convertido pelo controle mental) e Bail Channis (um militar não convertido,
porém competente, ambicioso e apoiador do Mulo). Por conta de uma fala antiga de Hari
Seldon289, Channis suspeita que a Segunda Fundação esteja escondida no planeta Finstrel290,
levando os dois homens para seguir para Rossem, um planeta agrícola controlado por Finstrel.
Lá chegando, Pritcher se convence de ter encontrado a Segunda Fundação, confrontando
Channis, que ainda insistia em ir para Finstrel. No entanto, o Mulo havia seguido os dois homens
e apareceu no meio da discussão. Ele declara que Bail é um agente disfarçado da Segunda
Fundação, o que explicaria sua competência e rápida ascensão em sua carreira militar, mesmo
sendo um não convertido. O Mulo então revela que já enviou suas naves para destruir o planeta
Finstrel mas, em sua batalha mental contra Channis, desconfia que haja mais algum engodo por
parte dele. O mutante então força o agente a revelar que Rossem é a Segunda Fundação na verdade,
e Finstrel apenas uma distração.
Nesse momento, aparece o líder da Segunda Fundação, chamado de Primeiro Orador, que
explica que nenhum dos dois planetas é a localização verdadeira e que a mente de Channis havia
sido alterada para fazê-lo acreditar que o local secreto era Rossem. Além disso, o Primeiro Orador
conta que agentes da Segunda Fundação haviam sido enviados para libertar todos os convertidos
da Fundação, fazendo ruir o reinado do Mulo. Este, tomado por fúria e desespero, baixa a sua
guarda mental momentaneamente, porém tempo suficiente para o Primeiro Orador, o mais

289
“um refúgio científico será estabelecido em Terminus. E outro será estabelecido na outra extremidade da
Galáxia, digamos assim – e ele sorriu –, no Fim da Estrela”. (ASIMOV, 2014a, Locais do Kindle 664-667)
290
Tazenda, no original. A alteração na tradução brasileira se dá porque o nome do planeta deve lembrar a
expressão Fim da Estrela (Star’s End).
Página 1328 de 2230

habilidoso mentalista e psico-historiador da galáxia, pudesse entrar na mente do mutante e alterá-


la, tornando-o um déspota benevolente e fazendo-o esquecer da existência da Segunda Fundação
pelo resto de sua vida.
A segunda parte do livro é intitulada “A busca da Fundação” e se passa mais de cinquenta
anos depois da morte do Mulo. Nesta época, a Primeira Fundação já está praticamente recuperada
da dominação do Mulo, porém o povo agora está plenamente consciente de que há realmente uma
Segunda Fundação poderosa o suficiente para ter vencido o mutante, feito que eles mesmos foram
incapazes de conseguir. Há um ressentimento pairando sobre os cidadãos, que antes acreditavam
ser os herdeiros de Seldon e protagonistas na ascensão do Segundo Império. Agora, tem
consciência de que a Segunda Fundação não apenas protege a Primeira, mas a manipula e
provavelmente será a governante, uma vez que tem o domínio da psico-história e a habilidade de
manipular mentes. Por causa disso, alguns cientistas da Fundação passam a se interessar pelas
ciências mentais, tentando desenvolver aparatos tecnológicos para se defenderem da Segunda
Fundação em caso de necessidade.
Um desses cientistas é o Dr. Toran Darell, filho do casal Darell responsável pela derrota
inicial do Mulo. O dr. Darell reúne um grupo de “conspiradores” que investigam a Segunda
Fundação, entre eles Pelleas Anthor, aprendiz de um velho amigo neurocientista e Homir Munn,
bibliotecário especialista na história do Mulo. Enquanto os conspiradores se reúnem, a filha de
catorze anos do dr. Darell, espiona as reuniões, planejando participar da conspiração sem que
ninguém saiba. Eles decidem que Munn deve ir a Kalgan, planeta em que o Mulo estabeleceu a
capital de seu reinado e onde viveu seus últimos dias, enquanto os outros permanecem em
Terminus. Arkady, excitada pela aventura, viaja escondida na nave de Munn, se envolvendo em
diversas situações complicadas e perigosas no caminho.
Ela acaba por se ver perdida em Kalgan, após ter fugido por perceber que a consorte do
governante do planeta, Lady Callia, é uma agente da Segunda Fundação. recebendo ajuda de
Preem Palver e sua esposa, ambos agricultores trantorianos. Temendo ser descoberta pelos agentes
da Segunda Fundação, Arkady vê-se obrigada a fugir e aceita ir com os dois para Trantor, já que
Kalgan estava em guerra com a Fundação. Enquanto isso, o dr. Darell havia desenvolvido um
aparelho de “estática mental”, que bloqueava e causava dores torturantes em qualquer um com
mentalismo desenvolvido. Assim, ele consegue revelar a real identidade de Anthor: agente da
Segunda Fundação. Impelido por uma mensagem de Arkady (“um círculo não tem fim”), o dr.
Darell revela ainda que descobriu a localização da Segunda Fundação: ela estava o tempo todo em
Terminus, o lugar mais próximo de onde podiam administrar e manipular a Primeira Fundação.
Com a ajuda do aparelho de estática mental, o governo descobre outros cinquenta mentalistas no
planeta, os quais são condenados à prisão perpétua ou a morte.
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Contudo, em Trantor, Preem Palver revela sua verdadeira identidade: Primeiro Orador da
Segunda Fundação. Todos os acontecimentos foram planejados por eles, inclusive a guerra de
Kalgan contra a Fundação e o sacrifício dos cinquenta agentes, tudo para que o Plano Seldon,
prejudicado pelo surgimento do Mulo, voltasse aos trilhos. Para isso, era necessário que a Primeira
Fundação recuperasse sua fé no Plano e esquecesse a existência da Segunda. Ao final, Palver dá
a última explicação para a polêmica frase de Hari Seldon: este, sendo um cientista social e não
físico, considerava Trantor o extremo oposto de Terminus, uma vez que cada um tinha uma
situação sociopolítica inversa à do outro. Por causa do Império, que ainda representou perigo para
a Fundação por alguns séculos, não havia lugar mais adequado para a Segunda Fundação se
estabelecer do que na própria capital.

4. Aspectos positivistas na trilogia Fundação

Depois deste resumo, resta demonstrar as relações entre as ideias positivistas de Comte e
as noções epistêmicas e políticas presentes na trilogia de Asimov. Ressaltamos novamente o
caráter insólito de nossos postulados, uma vez que defendemos a influência indireta de Comte
sobre Asimov, partindo do ponto que este teve sua educação científica num contexto
predominantemente positivista.
A primeira relação que apontamos é a presença, nas obras dos dois autores, da ideia de que
o conhecimento científico é a fonte de conhecimento mais confiável, superior às demais (COMTE,
1983, p. 8). Como exemplo, temos a previsão da queda do Império que, por ter sido feita pela
prodigiosa matemática da psico-história, é considerada um fato isento de preconceitos morais e,
portanto, a melhor fonte de informação que os seres humanos dispõem:
[...] uma previsão que é feita pela matemática. Não faço julgamentos morais. [...]
Entretanto, a queda do Império, cavalheiros, é uma coisa sólida e não será fácil evitá-la.
Ela é ditada por uma burocracia em ascensão, um dinamismo em declínio, um
congelamento de castas, um represamento da curiosidade... e uma centena de outros
fatores. Já vem acontecendo, como eu disse, há séculos, e é um movimento por demais
majestoso e maciço para ser interrompido. (ASIMOV, 2014a, Locais do Kindle 405-409).
Seldon afirma ainda que a causa da queda do Império é que o conhecimento parou de
progredir, o que nos leva a uma segunda relação: demonstra-se a noção positivista de que
progresso de uma sociedade está necessariamente atrelado ao seu desenvolvimento científico,
ideia que se faz presente na trilogia como um todo. A própria ideia de Hari Seldon – estabelecer
Página 1330 de 2230

Fundações que preservem a ciência para evitar que a galáxia sucumba à “barbárie” – ilustra essa
noção:
A soma do saber humano está além de qualquer homem individualmente; mesmo de mil
homens. Com a destruição de nosso tecido social, a ciência se quebrará em um milhão
de pedacinhos. Os indivíduos saberão muito das facetas incrivelmente pequenas do que
existe para se saber. Eles estarão indefesos e inúteis por si mesmos. [...] Serão perdidos
entre as gerações. Mas, se prepararmos agora um gigantesco resumo de todo o
conhecimento, ele jamais será perdido. As gerações futuras serão construídas com base
nele e não terão de redescobri-lo por si mesmas. (ASIMOV, 2014a, Locais do Kindle
426-431).
Seldon alerta que o principal perigo da queda do Império é a perda do arcabouço científico
acumulado: o conhecimento, por estar atrelado ao bem-estar e ao progresso tecnológico, é mais
importante ainda do que a democracia (como fica claro pelo objetivo das Fundações de criar um
segundo Império) ou de valores como liberdade e respeito à diversidade. Este último é, pelo menos
em relação à cultura, praticamente inexistente na trilogia. A maior virtude é a inteligência lógico-
matemática e a maioria dos costumes culturais é retratada como idiossincrasias aleatórias que
grupos humanos desenvolvem de tempos em tempos.
A terceira ideia positivista presente na trilogia Fundação é a lei dos três estados, ainda que
de maneira lírica e com alguns desdobramentos que levam a diferenças. Expliquemos: como já
mencionamos, segundo Comte (1983, p. 3-5), as sociedades humanas passam necessariamente por
três estágios de conhecimento, sendo o mais primitivo o teológico (que busca explicações causais
definitivas através do sobrenatural), o de transição o metafísico (que trabalha através da razão para
chegar ao conhecimento categórico) e o definitivo, o estágio positivo (onde se busca, através do
método experimental matemático, generalizar fenômenos para gerar conhecimento preditivo). Na
saga de Asimov, essa lei é retratada na forma da queda do Império e ascensão da Fundação por
conta da oscilação do arcabouço científico e tecnológico da galáxia.
A tão temida ruína que levaria a galáxia a barbárie nada mais é do que o decréscimo da
tecnologia (exemplificado na forma da perda da energia nuclear e volta ao uso dos combustíveis
químicos). Os planetas assolados por esse mal tendem cada vez mais a se voltar para a religião,
de forma que a Fundação se aproveita disso, em seus primeiros anos, para dominar os reinos
vizinhos através de seu forjado culto religioso:
A religião... que a Fundação fomentou e incentivou, vejam vocês... é construída sob
linhas estritamente autoritárias. Os sacerdotes têm controle exclusivo dos instrumentos
da ciência que demos a Anacreon, mas eles aprenderam a lidar com essas ferramentas
apenas empiricamente. Eles acreditam inteiramente nessa religião, e no... ahn... valor
espiritual do poder com que lidam. Por exemplo, há dois meses um idiota mexeu com a
usina nuclear no Templo thessalekiano... um dos maiores. Ele contaminou a cidade, claro.
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Isso foi considerado vingança divina por todos, incluindo os sacerdotes. (ASIMOV,
2014a, Locais do Kindle 1883-1888).

A maioria dos personagens de planetas desenvolvidos tecnologicamente demonstra


ignorância ou perplexidade frente a noções sobrenaturais, ao passo que a falta de conhecimento
tecnológico parece estar ligada ao pensamento religioso. Assim, postulamos a verossimilhança
entre a noção de barbárie de Asimov e o conceito de estágio teológico de Comte. Entretanto,
ressaltamos que Asimov apresenta-nos um movimento oscilante entre os estágios: como a galáxia
está em decadência, o conhecimento está regredindo até o advento da Fundação, que retoma o
progresso da ciência; Comte (1983, p. 4), por sua vez, prognosticou apenas o movimento linear
dos estágios de conhecimento, uma vez que o estágio positivo é tido como definitivo.

Do mesmo modo, no entanto, que o estágio metafísico atua como estágio de transição entre
o teológico e o positivo, em Fundação podemos identificar um estágio intermediário entre o
progresso e a barbárie, majoritariamente na forma da lenta queda do Império, num movimento
que vem das fronteiras para o centro de seu território. Nos planetas que ainda detém resquícios da
antes grandiosa tecnologia imperial, nota-se a estagnação do conhecimento científico e o
crescimento da dependência ao conhecimento técnico baseado em antigos repositórios e manuais:

Ora, eles sequer compreendem seus próprios colossos, agora. As máquinas funcionam de
geração a geração automaticamente, e os responsáveis são uma casta hereditária que
ficaria indefesa se um único tubo-d em toda aquela vasta estrutura queimasse. (ASIMOV,
2014a, Locais do Kindle 3430-3435).

Hober Mallow, o primeiro comerciante a se tornar prefeito da Fundação, nota tal situação
quando viaja para um planeta a meio caminho entre Trantor e Terminus. Lá, os técnicos viraram
uma casta privilegiada da sociedade, cujo conhecimento se baseava nos antigos manuais de seus
equipamentos. A ideia de progresso há muito foi esquecida, tornando impossível o aumento do
conhecimento e precária a manutenção da tecnologia, deixando a população numa decadência da
qual só seria salva quando entrasse em contato com a Fundação. Situação semelhante ocorre com
os “cientistas” do Império:

– Por que não ir a Arcturus e estudar os vestígios por si mesmo?


Lorde Dorwin ergueu as sobrancelhas e aspirou apressado uma pitada de rapé. – Ora,
para quê, meu caro amigo?
– Para obter as informações em primeira mão, claro.
– Mas qual a necessidade disso? Parece um método anormalmente enrolado te se chegar
a algum lugar. Escute aqui, eu tenho as obras te todos os velhos mestres: os grandes
arqueólogos do passado. Eu comparo uns com os outros, equilibro as discordâncias,
analiso as afirmações conflitantes, decido o que provavelmente se conecta e chego a uma
conclusão. Este é o método científico. Pelo menos – disse, de modo condescendente –,
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como eu o vejo. Como seria incrivelmente primitivo ir a Arcturus, ou a Sol, por exemplo,
e sair passeando por lá, quanto os velhos mestres já cobriram os territórios de modo muito
mais eficiente do que poderíamos possivelmente esperar.291 (ASIMOV, 2014a, Locais do
Kindle 879-886).
Lorde Dorwin é um alto funcionário do Império, muito interessado pela “questão da
origem292”. Ao falar um pouco sobre o assunto, é questionado por Salvor Hardin, que sugere uma
pesquisa de campo para colher dados e tirar suas próprias conclusões. O paradigma científico do
Império, entretanto, despreza tal método, pois está tão acostumado com a contínua decadência que
prefere se basear no conhecimento já estabelecido “pelos mestres do passado”. Aqui postulamos
a semelhança com o estágio metafísico de Comte, com a ressalva de que a ausência do método
experimental se dá por conta da decadência geral e não por ainda não ter sido estabelecido. Este
fato gera ao menos uma diferença entre o cenário de Asimov e a teoria de Comte: nesta, a base do
conhecimento é a razão, a construção de ideias metafísicas bem estruturadas para explicar o
mundo; naquele, a razão é baseada na confiança no conhecimento já estabelecido, o que causa a
aceitação e engendramento da decadência, pois aceita que o passado era mais competente que o
presente poderia vir a ser.
Por fim, o último estágio, o positivo, corresponde ao estado de desenvolvimento perene
das duas Fundações. Ambas, cada uma em seu campo, primam pelo crescimento contínuo de seus
domínios e de suas ciências. A estagnação é vista como decadência e o progresso, o estado ideal
para as sociedades. No entanto, a Primeira Fundação, por ser ainda subordinada ao Império em
seus primórdios, precisou ser lembrada de que este estava decaindo e métodos diferentes
precisavam ser adotados. O principal responsável por isso foi o primeiro prefeito, Hardin, que
tomou o poder dos enciclopedistas que insistiam em apenas colher e catalogar o conhecimento do
passado:
[...] Durante esse tempo todo, vocês invariavelmente confiaram na autoridade ou no
passado... e nunca em si próprios, [...] Não são só vocês. É toda a Galáxia. [...] Lorde
Dorwin achava que ser um bom arqueólogo era ler todos os livros sobre o assunto...
escritos por homens que morreram há séculos. Ele achava que a forma de resolver
enigmas arqueológicos era comparar as autoridades opostas. [...] Vocês não estão vendo
que há algo de errado nisso? [...] Ficamos sentados aqui, achando que a Enciclopédia é
tudo o que há. Consideramos que o maior objetivo da ciência é a classificação de dados
passados. É importante, mas não há outros trabalhos por fazer? Estamos regredindo e
esquecendo, não veem? Aqui na Periferia, eles perderam a energia nuclear. [...] Vocês não

291
Lorde Dorwin é um personagem com problemas de fala, de forma que na tradução de Fábio Fernandes, ele troca
algumas letras, como V por F, B por P, D por T etc. Optamos por corrigir as palavras nessa citação para evitar
desentendimentos dos leitores.
292
A localização do planeta de origem do ser humano. Na época da queda do Império, mais de 20 mil anos no futuro,
a história do ser humano em tempos anteriores às viagens espaciais já foi esquecida, sendo chamada de Pré-história
em algumas ocasiões. A Terra, há muito esquecida e inabitada, no máximo aparece em algumas lendas antigas.
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veem? Isso abrange toda a Galáxia. É um culto ao passado. É uma deterioração... uma
estagnação! (ASIMOV, 2014a, Locais do Kindle 1021-1036).
Após o governo de Hardin, a Fundação continuou no caminho do progresso político e
científico, alastrando seu domínio pela galáxia na mesma medida em que se desenvolvia
tecnologicamente. Aqui, a semelhança entre o estágio descrito por Comte e o cenário criado por
Asimov é praticamente plena: ambos pregam que o progresso político advém do progresso da
ciência, no sentido de que se há interrupção do movimento, há decadência. Assim, postulamos a
verossimilhança entre o estágio positivo comteano e o cenário político e epistêmico da Fundação,
na medida em que ambos sustentam o mesmo objetivo e se apoiam nos mesmos pressupostos.
Por fim, a última relação que postularemos é a verossimilhança entre a física social
proposta por Comte e a psico-história imaginada por Asimov. Esta não tem uma definição clara e
distinta na obra de Asimov, aparecendo sempre na forma de uma ciência que se apoia numa
matemática avançadíssima, tendo seus pormenores ocultos pela narrativa:
Gaal Dornick, utilizando conceitos não matemáticos, definiu a psico-história como o
ramo da matemática que trata das reações dos conglomerados humanos a estímulos
sociais e econômicos fixos... Implícita em todas essas definições está a suposição de que
o conglomerado humano que está em foco é suficientemente grande para um tratamento
estatístico válido. O tamanho necessário de tal conglomerado pode ser determinado pelo
Primeiro Teorema de Seldon, que... Uma suposição necessária posterior é que o
conglomerado humano esteja ele próprio inconsciente da análise psico-histórica para que
suas reações sejam verdadeiramente aleatórias... A base de toda a psico-história válida
baseia-se no desenvolvimento das Funções Seldon, que exibem propriedades
congruentes com as de forças sociais e econômicas como... (ASIMOV, 2014a, Locais do
Kindle 274-281).
Pereira (2018, p. 137) chama este tipo de narrativa de “efeito de caixa preta”, o que ajuda
a justificar a ciência presente no livro sem, entretanto, explicar maiores detalhes de algo que
(ainda) não é possível na realidade. Apesar disso, tendo como base apenas a trilogia estudada no
presente trabalho, podemos resumir a psico-história como a seguinte noção: uma ciência com
bases matemáticas que pode calcular e prever os movimentos sociopolíticos de massas humanas,
desde que estas sejam de proporção suficiente e estejam inconscientes de tais previsões. Ora, a
física social proposta por Comte tem praticamente o mesmo conceito: uma ciência baseada no
método experimental matemático que estuda as sociedades humanas. Excetuando-se as condições
para o funcionamento da psico-história (quantidade mínima de humanos e ignorância das
previsões), ambas são idênticas tanto em suas bases quanto em seus objetivos. Assim, afirmamos
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que Asimov, de certo modo, emula a ideia de Comte em sua obra: a psico-história é uma imagem
do que a física social poderia ser, caso os pressupostos epistêmicos positivistas estejam corretos.
Por fim, observemos o Plano Seldon, principal fruto da psico-história: é um projeto que
tem como objetivo fundamental a diminuição do sofrimento dos seres humanos através da
preservação do progresso científico, de maneira análoga à ideologia positivista, que se apresenta
como uma doutrina regeneradora da sociedade através do desenvolvimento tecnológico (COMTE,
1983, p. 98). Aqui, podemos enxergar claras conexões de Asimov com o positivismo, cujo objetivo
é generalizar a “ciência real” e sistematizar a “arte social” (COMTE, 1983 p. 98). Tal ciência real,
para Comte, seriam as ciências que superaram as tendências teológicas ou metafísicas da Filosofia,
concentrando-se apenas no método experimental matemático: assim como no universo de Asimov,
onde a Fundação, por possuir ciência e tecnologia superiores, supera todas as nações rivais que
detém outros tipos de conhecimento, tidos como primitivos ou desnecessários.

5. Considerações Finais

Retornemos ao problema que guiou este trabalho: em que medida há características do


positivismo de Auguste Comte na obra Fundação de Isaac Asimov?
Nossa conjectura inicial se baseou na influência preponderante do positivismo no contexto
científico no qual Asimov estava imerso quando escreveu sua trilogia. Confirmamos tal concepção
na obra de Reale e Antiseri, o que nos forneceu segurança para prosseguir aos quatro postulados
apresentados: a ideia positivista presente na trilogia Fundação de que o conhecimento científico
é o mais evoluído; a verossimilhança entre as noções positivistas e asimovianas de que o progresso
científico está atrelado ao progresso sociopolítico; a presença (ainda que de forma disforme) da
lei dos três estados na trama de Asimov; e, por fim, a quase equivalência entre a proposta da física
social e a psico-história, na medida em que ambas são ciências experimentais matemáticas que
tem por objeto de estudo as sociedades humanas, sendo a segunda uma “imagem emulada” da
primeira, alimentada pela imaginação futurista de Asimov.
Assim como o positivismo surgiu muito próximo do advento do método científico, Asimov
escreveu sua trilogia ainda muito jovem, quando ainda não haviam surgido os grandes
epistemólogos críticos do método científico no século XX. Por conta disso, há um certo otimismo
ingênuo nos escritos de sua juventude, advindo de sua educação científica fortemente positivista.
Procuramos descrever essas ideias de forma não-crítica neste artigo, mas esperamos continuar o
trabalho num futuro próximo, procurando explorar críticas às ideias aqui expostas, tanto por parte
do próprio Asimov (em seus livros tardios) quanto por parte de epistemólogos independentes,
responsáveis por levar adiante a crítica da ciência ao longo dos séculos XX e XXI.
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Referências

ASIMOV, I. Fundação [livro eletrônico]. Tradução Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2014a.
ASIMOV, I. Fundação e Império [livro eletrônico]. Tradução Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph,
2014b.
ASIMOV, I. Segunda Fundação [livro eletrônico]. Tradução Marcelo Barbão. São Paulo: Aleph,
2014c.
COMTE, A. Curso de Filosofia positiva; Discurso sobre o espírito positivo; Discurso preliminar
sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. Traduções José Arthur Giannoti e Miguel
Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
PEREIRA, M. C. J. Histórias de uma psicologia do futuro: representações de ciência e tecnologia
em Fundação, de Isaac Asimov. 2018. 250p. Dissertação de Mestrado - UTFPR, Curitiba, 2018.
REALE, G. ANTISERI, D. História da Filosofia, 5: do romantismo ao empiriocriticismo.
Tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2005.
SILVINO, A. M. D. Epistemologia positivista: qual a sua influência hoje?. Psicologia: Ciência e
Profissão., Jun 2007, vol.27, no.2, p.276-289.
WILCOX, C. The Greening of Isaac Asimov: Cultural Changes and Political Futures.
Extrapolation, v. 31, n. 1, 1990.
Página 1336 de 2230

PROTAGONISMO POLÍTICO E SUB-REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES: ÀS


INTERFERÊNCIAS DO PATRIARCADO NAS RELAÇÕES DE GÊNERO

POLITICAL PROTAGONISM AND SUB-REPRESENTATION OF WOMEN: TO THE


INTERFERENCE OF PATRIARCHY IN GENDER RELATIONS

Maria Mary Ferreira


Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e
Departamento de Biblioteconomia da Universidade Federal do Maranhão/Brasil, doutora
em Sociologia UNESP/FCLAr. Pós-doutora em Comunicação e Informação na
Universidade de Porto. Ex-bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento
Científico e Tecnológico do Maranhão - FAPEMA. E-mail: mmulher13@hotmail.com

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: As eleições municipais de 2016 no Maranhão demonstram as dificuldades que as


mulheres enfrentam para ultrapassar os muros do mundo doméstico para se inserirem no espaço
público. Os resultados apontam a permanência da sub-representação quando observamos que o
número de vereadoras eleitas foi de 447 mulheres (17%), enquanto os homens ocupam 2.140 das
cadeiras das câmaras municipais, ou seja, (83%). Ao refletir sobre esses dados na pesquisa
“Mulheres, Relações de Gênero e Protagonismo Político: estudo, formação feminista e informação
como estratégica de mudança na sociedade patriarcal”, realizado em cinco municípios observa-se
que em todos as câmaras municipais investigadas as mulheres estão sub-representadas o que
expressa desigualdades e exclusão das mulheres dos espaços de decisão, fato que é notório em
todo o território nacional. Estas desigualdades reforçam os papéis de gênero e não favorecem a
inserção das mulheres nos lugares de decisão. Financiada FAPEMA esta pesquisa foi realizada
em cinco municípios maranhenses: São Luís, Morros, Duque Bacelar, Turiaçu e São João dos
Patos. Nesta comunicação apresentamos os resultados no intuito de apontar caminhos que possam
nortear mudanças na representação feminina nos espaços de decisão no Maranhão.
Palavras-chave: Representação Política. Gênero. Mulheres. Maranhão.

Abstract: The 2016 municipal elections in Maranhão reinforce the idea that women are not
interested or are not used to politics, as stated by Rousseau in the 18th century, in view of the
results: the number of elected councilors was 447 women (17%) and 2,140 men (83%) for the
municipalities and municipalities of Maranhão. When reflecting on these data in the research
“Women, Gender Relations and Political Protagonism: study, feminist education and information
as a strategy for change in patriarchal society”, carried out in five municipalities, it is observed
that in all of them women are underrepresented. which expresses inequalities and exclusion of
women from decision-making spaces, a fact that is evident throughout the national territory. These
inequalities reinforce gender roles and do not favor the insertion of women in decision-making
places. FAPEMA financed this research was carried out in five municipalities in Maranhão: São
Luís, Morros, Duque Bacelar, Turiaçu and São João dos Patos. In this communication we present
the results in order to point out paths that can guide changes in female representation in decision-
making spaces in Maranhão.
Keywords: Political Representation. Genre. Women. Maranhão.

1 INTRODUÇÃO
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Os papéis atribuídos às mulheres, matéria de debate constante no cenário político, revelam


os conservadorismos impregnados na sociedade que atribui às mulheres dedicação prioritária à
vida doméstica e ao lar293, os cuidados com família e o lugar de subalternidade no mundo público.
Estes papéis reforçam e reproduzem as relações de submissão traduzidas nos indicadores sociais
no campo da política formal, e desse modo compreende-se que a sub-representação feminina no
Congresso Nacional revela as marcas de uma esfera pública na qual as mulheres são apenas 77
entre os 513 deputados. No Senado, são 12 senadoras entre os 81 representantes da câmara alta do
País.
Ao refletir sobre os avanços consideráveis processados no período que corresponde aos
anos de 2003 a 2015 em termos de recomposição dos déficits sociais retratados nos inúmeros
indicadores de educação, cultura, habitação, segurança pública e na melhoria do poder aquisitivo
dos brasileiros, observamos, porém, que, no que se refere às mulheres, estes avanços não alteraram
as estruturas patriarcais de participação feminina nos espaços de poder para que a democracia
pudesse alcançar patamares de maior inclusão desse segmento majoritário no País, embora sejam
visíveis as políticas públicas implementadas no sentido de alterar estas estruturas.
A sub-representação de mulheres no poder expressa, por um lado, a exclusão das mulheres
dos espaços de decisão, entre os quais os judiciários, os executivos e os legislativos e, por outro,
retrata a dificuldade do País em construir uma democracia plena na qual as mulheres possam ser
vistas como protagonistas.
O tratamento discriminatório que as mulheres enfrentam na sociedade e, principalmente, nas
estruturas historicamente masculinas (sindicatos, partidos, igrejas, judiciário, entre outros), é fruto
da educação patriarcal que ainda permanece na sociedade e que tem como resultado a dominação
masculina que retrata as hierarquias das inter-relações sociais contribuindo para transformar as
diferenças sexuais em desigualdades. Estas desigualdades, por sua vez, reforçam os papéis de
gênero que, dadas a educação e a socialização diferenciadas de meninos e meninas repassadas na
escola e reproduzidas na família, pela mídia e pelas estruturas sociais ao veicularem a cultura
dominante, não favorecem a formação das mulheres para assumirem lugares de decisão.
Ao pensar estes dados que nortearam este estudo, buscamos com estas reflexões, ora
apresentadas, construir mecanismos que ultrapassassem os caminhos da investigação formal
imbricando-os com ações de extensão capazes de interferir mais diretamente na vida das mulheres,
sujeitos e objeto deste estudo em cinco municípios maranhenses.

293
Bela, recatada e “do lar”, assim foi retratada a ex-primeira dama do País Marcela Temer por uma das principais
revistas semanais do Brasil. Nesta matéria, a Revista Veja ressalta que a primeira dama é Bacharel em direito sem
nunca ter exercido a profissão. “Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho (seu filho) da escola, cuidar da
casa, em São Paulo”. Com esta matéria a Revista Veja estabelece como modelo de mulheres aquelas que se dedicam
ao lar e não trabalham. (MARCELA, 2016).
Página 1338 de 2230

Os dados das últimas eleições nos âmbitos municipais, estaduais e federal desnudam a
contradição da democracia brasileira ao apontarem que dos 57.337 candidatos a vereador na
eleição de 2012, apenas 7.648 mulheres foram eleitas, contra 49.689 homens. (FERREIRA, 2015).
As mulheres representam 13,3% dos vereadores espalhados nas 5.568 câmaras dos municípios do
Brasil. Houve um aumento simbólico em relação à eleição de 2008, porém esse aumento não
superou os 19%, fato que aponta os muitos desafios para construir paridade de gênero na política.
Este estudo, fruto de pesquisa realizada com o apoio da FAPEMA/Edital igualdade de gênero,
cujo objetivo:
[...] contribuir com o processo de empoderamento de mulheres por meio de informações,
troca de conhecimentos e produção de dados que permita às maranhenses construírem
processos de mudanças e ações visando à transformação das relações de gênero e étnico
raciais no Maranhão. (FERREIRA, 2016, p. 7).

Nesta comunicação apresentamos de forma breve os resultados parciais da pesquisa


buscando responder questões que interferem no exercício político e cidadania das mulheres
refletindo sobre categorias como representação, sub-representação e patriarcado, esta última, por
sua vez tem um papel relevante de explicar os processos de subordinação das mulheres ao longo
da história. Por se tratar de um estudo qualitativo, e perspectiva dialética, as categorias permitem
analisar o processo de exclusão das mulheres, demonstrando a partir de dados como estes retratam
uma realidade que no Brasil ainda carece de debates, para criar incômodos nas instituições, a
exemplo dos partidos políticos que mantêm estruturas patriarcais e hierarquizadas que refletem na
sub-representação femininas, bem como na ascensão de segmentos historicamente excluídos, a
exemplo dos negros e indígenas.

2 REPRESENTAÇÃO E SUB-REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NA POLITICA NO


BRASIL: reflexo de uma cultura patriarcal

A exclusão das mulheres no mundo social e político foi construído pela sociedade através
da cultura ao internalizar a inferiorização das mulheres legitimando as normas impostas pelo
patriarcado que negou as mulheres o direito de se expressar, de representar e muitas vezes o direito
à existência. No livro As bruxas e o Calibã, Silvia Frederici nos reporta às muitas formas de
interdição das mulheres e como os seus saberes foram ignorados pela ciência e apropriados pelo
capitalismo, fato que explica em grande parte sua exclusão social, política. Sua interdição no
mundo público pode ser mensurada pela sub-representação nos espaços de decisão que contribuiu
para seu cerceamento, seu silenciamento, seu enclausuramento e sua retirada da cena pública e na
naturalização da violência contra esse segmento social. Importante ainda lembrar as palavras de
Silvia Frederici (2017, p.146):
Página 1339 de 2230

[...] a separação entre a produção e a reprodução criou uma classe proletárias de mulheres
que estavam tão despossuídas como os homens, mas, que, diferente deles, quase não
tinham salários. Em uma sociedade que estava cada vez mais monetizada, acabaram
sendo forçadas à condição de pobreza crônica, à dependência econômica e à
invisibilidade como trabalhadoras.

O processo de exclusão das mulheres não apenas da ciência, mas da vida social, econômica
e política, reflete nos dias atuais na sub-representação, em sua pouca autonomia, seu pouco
reconhecimento, cujos reflexos podem ser observados nos números ínfimos de mulheres em
cargos de representação no País. Essa constatação também é considerada por Costa (2012, p. 17)
quando afirma que:
A maioria das mulheres ainda não pode decidir sobe suas próprias vidas, não se
constituem enquanto sujeitos histórico e político, não exerceram ou exercem o poder,
seguem oprimidas vivenciando as mais diversas formas de opressão.

A sub-representação política feminina segundo Ferreira (2019) está relacionada aos


números ínfimos de mulheres eleitas nos pleitos para os diversos cargos de poder e representação.
É um conceito que denota a discrepância entre eleitorado feminino e número de mulheres eleitas.

A sub-representação é reflexo das condições que precedem os pleitos eleitorais: está nas
relações patriarcais em que convivem os partidos internamente. É visto como. fator
determinante para desestimular a presença das mulheres nos campos de decisão
partidária, está também na cultura do silêncio que lhes foi imposta e na educação de
gênero, que impõe às mulheres assim como aos homens, valores que subestimam as
mulheres, desqualificam sua opinião e desestimulam seu exercício de cidadã.
(FERREIRA, 2019. p. 42).

É importante destacar ainda segundo a autora que sub-representação reforça a ideia de


subalternidade e incide de forma discriminatória sobre as poucas eleitas “[...] que se sentem
tolhidas e muitas vezes intimidadas no espaço de poder, dados a exigência de um modelo e o uso
de recursos da oratória, para o que as mulheres não foram educadas e treinadas. (FERREIRA,
2019. p. 43).
Vale ainda lembrar que a sub-representação viola o princípio democrático dos cidadãos e
em especial das cidadãs, na medida em que se observa os dados eleitorais que evidencia uma
distinção entre o voto dado as candidaturas femininas e masculinas, fato que o processo de escolha
obedece a visões patriarcais marcada pelos estereótipos de gênero.
Esses fatos implicam e explicam o porquê do percentual de mulheres nos espaços de poder
brasileiros, não tem seguido a mesma proporção de muitos países da América Latina a exemplo
de Bolívia (53,1%), Equador (41,6%), Costa Rica, com 37% de mulheres na Câmara alta, e
Argentina, com 36,8% de mulheres no legislativo. O Brasil está nos últimos lugares, abaixo de
países como Peru (24,1%), Nicarágua (23,9%). Nesses países a presença de mulheres em cargos
de decisão ampliou-se consideravelmente nos últimos dez anos com a implantação de cotas para
as mulheres na política. (FERREIRA, 2019).
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O percentual de presença de mulheres nos espaços legislativos brasileiro não se elevou


como se observou nos países mencionados, fato que traduz as contradições da democracia nesse
país. Ao avaliar o número de mulheres eleitas para a Câmara Federal nos últimos 22 anos,
conforme tabela I, observamos que apenas 245 mulheres foram eleitas, num universo de 3.321
homens.
Tabela I – REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BRASIL – 1995-2018

PERÍODO MULHERES HOMENS PERIODO MULHERES HOMENS TOTAL


LEGISLATIVO LEGISLATIVO
2015-2018 51 462 2003-2006 42 471 513
2011-2014 45 468 1999-2002 28 485 513
2006-2010 45 468 1995-1998 34 479 513

Para compreender como estas relações se mantêm na política brasileira trago algumas
reflexões sobre o conceito de patriarcado que explica a permanência de relações desiguais,
hierarquizadas e a naturalização da violência contra as mulheres, que perpassa a vida privada e se
insere na vida pública cerceando o direito das mulheres de exercerem a cidadania.

2.1 Patriarcado: uma categoria que explica a exclusão de mulheres na Política

A categoria patriarcado, vem desde os anos noventa sendo discutido com grande interesse
pelas pesquisadoras e estudiosas feministas e tem provocado inúmeros debates nos movimentos
feministas em virtude de ser um conceito estratégico para explicar a permanência das relações de
subalternidade que mantém as mulheres subordinadas às relações de violência, subjugadas a
relações de opressão, muitas das quais com grande dificuldade de romper as relações opressoras.
Seus reflexos, entretanto, perpassam essas esferas para se inserir na vida pública, nos
condicionantes que interferem nas relações de trabalho que incide sobre os salários desiguais e no
pouco reconhecimento, criando mecanismos que irão excluir as mulheres dos espaços de decisão
e de poder.
Ao buscar um entendimento de como o patriarcado se proliferou no mundo ocidental, se
alimentou e se mantém vivo nos dias atuais, encontramos nos estudos da Mary Wollstonecraft
algumas explicações, que merece uma atenção maior de nossa parte. Quando escreveu seu livro
“Reinvindicação dos Direitos das Mulheres”, a autora já nos alertava sobre o problema, no Século
XVIII. O livro reflete como as mulheres foram excluídas da vida social e vida pública na
Inglaterra. No debate apresentado a autora faz severas críticas ao pensamento de Jean Jacques
Rousseau que considerava as mulheres incapazes de exercer cargos na vida pública, sua visão
sobre as mulheres é extremamente conservadora e patriarcal, vejam o dizia a autora:
[...] Rousseau declara que uma mulher não deveria, nem por um momento, sentir-se
independente, que ela deveria ser governada pelo temor de exercitar sua astúcia natural
Página 1341 de 2230

e feita uma escrava coquete, a fim de tronar-se um objeto de desejo mais sedutor, uma
companhia mais doce para o homem, quando este quiser relaxar. [...] Que bobagem!
Quando surgirá um grande homem com força mental suficiente para dissipar a névoa que
o orgulho e a sensualidade têm espalhado sobre o assunto? (WOLLSTONECRAFT,
2016, p. 47).

A autora traz elementos importantes de análises depois trabalhado por autoras como
Simone de Beauvoir (1986), contestando a natureza feminina das mulheres. Em seus
questionamentos a Rousseau, aponta que:
[...] se as mulheres são por natureza, inferiores aos homens, por virtude devem ser as
mesmas em relação à qualidade, senão ao grau, ou então a virtude é uma ideia relativa;
consequentemente, sua conduta deveria ser fundamentada nos mesmos princípios e ter os
mesmos objetivos. (Mary Wollstonecraft. Reinvindicação dos direitos das mulheres, 1792)

Como podemos observar a partir da crítica de Wollstonecraft, a visão da sociedade sobre


as mulheres, expresso nas palavras de Rousseau, era vista como um ser inferior que tinha como
única função servir aos desejos dos homens, entretê-los, obedecê-los, sofrer calada as injustiças:
[...] Os homens dependem das mulheres somente por conta de seus desejos; as mulheres dependem
dos homens em virtude tanto dos desejos como de suas necessidades, Nós poderíamos viver
melhor sem elas, do que elas sem nós. [...] A primeira e mais importante qualificação em uma
mulher é uma boa natureza ou a suavidade de caráter: formada para obedecer a um ser tão
imperfeito como o homem, frequentemente cheio de vícios e imperfeições, ela deve aprender cedo
até mesmo a sofrer injustiças e suportar os insultos de um marido sem se queixar; não em
consideração a ele, mas a si própria, ela deve ter um temperamento aprazível (ROUSSEAU apud
WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 109-113).

As falas deste pensador, considerado um dos grandes intelectuais do Século XVIII, autor
de obras de referência como “O Contrato social” reflete o olhar conservador da sociedade sobre
as mulheres. Seus escritos aprofunda a visão patriarcal e preconceituosa que foi forjada sobre as
mulheres ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX e se espraia no Século XXI tendo em vista os
indicadores de violência de gênero e a sub-representação das mulheres na política que refletem o
lugar da mulher na sociedade.
Ao analisar a situação das mulheres nas esferas públicas observamos que muitos países vem
alterando as relações patriarcais no âmbito dos espaços de poder e decisão, principalmente nas
esferas dos legislativos, porém, é visível que a sociedade concentrou o poder nas mãos dos
homens, são eles que dominam a economia e a política na maior parte dos países do mundo,
embora tenhamos exceções em alguns países como Alemanha, cujo comando político está sob a
responsabilidade de Angela Merkel há mais duas décadas.
O patriarcado se manifesta na política, quando são os homens que assumem os principais
cargos de decisão no mundo público: deputado, senador, vereador, gerente de loja, reitor das
universidades, secretários de estado, donos dos grandes empreendimentos econômicos, gerente
dos postos de gasolina e dos supermercados, ou seja, os homens estão à frente da maior parte dos
negócios, empreendimentos, das decisões políticas, assim como na vida privada ao assumir a
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posição de “dono”, “senhor”, julgam-se proprietários das mulheres, assim como dos filhos, das
suas empresas e dos bens que possui. No privado a palavra final em geral é dada ao homem que
decide os destinos da família. Assume como enfatiza Saffioti (1996, p.37) “a posição de caçador,
comportam-se como sujeito desejante em busca de sua presa”. É o seu desejo e vontade que
prevalece, e as mulheres, em muitas situações, se submetem.
Esse comportamento desviante, não foi adquirido com o nascimento, porque os homens não
nascem violentos, dono da verdade, e senhor das mulheres, enfatiza Saffiotti (1987). Esse senso
de dominador, foi desenvolvido pela cultura patriarcal que ensina aos meninos desde cedo a ter
posições de mando, desde cedo são ensinados a serem determinados e a dominar, inclusive as
mulheres. É por meio desse tipo de cultura que a sociedade incute nos homens e nas mulheres os
valores da dominação, da submissão e da subordinação, conforme enfatiza Biroli (2018, p. 43).
As relações de autoridade que produzem a subordinação das mulheres são tecidas por
múltiplos fatores. A dupla moral sexual, a tolerância à violência que as atinge por serem
mulheres, a ideologia maternalista e os limites para o controle autônomo de sua
capacidade reprodutiva são alguns deles. A divisão sexual do trabalho apresenta-se como
variável específica (ainda que não independente), determinante para compreensão de
como se organizam as hierarquias de gênero.

A situação de subalternidade das mulheres forjada na sociedade patriarcal contribuiu para


que sua voz não tenha ressonância. Suas falas e expressões aparecem apenas quando estão sob
delegação de algum cargo de poder, (reitora, senadora, deputada, vereadora, delegada, gerente,
chefe de setor), ainda assim, é com muito esforço que suas vozes repercutem. O machismo
exacerbado impede que as mulheres sejam ouvidas, consideradas iguais e com capacidade e
determinação para definir rumos, caminhos para a sociedade. É como se estivessem sempre
seguindo a sina descrita na fala de Pitágoras quando declara: “uma mulher em público está sempre
deslocada”.
Essa situação de subalternidade incide sobre as atribuições sociais das mulheres
contribuindo para que o masculino se sobreponha ao feminino. O exemplo mais claro desta
situação foi o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, usurpada de seu mandato por um golpe,
capitaneado por homens, brancos e ricos que ocupam a maior parte das cadeiras do Congresso
Nacional sob a justificativa de um “crime” denominada de “pedaladas fiscais” que todos os ex-
presidentes que a antecederam já haviam cometido e o mais grave ainda, o presidente que a
sucedeu legalizou o “crime” em uma clara afronta a inteligência dos brasileiros e brasileiras. A
violência sofrida por Dilma Rousseff, reflete em todas as mulheres. Não é por acaso que os índices
de estupros, feminicídios, aumentaram assustadoramente após o golpe.
O conceito de patriarcado explica a sujeição das mulheres tendo como princípio o exercício
do poder dos homens, construído a partir das relações de dominação. Pode ser compreendido como
um sistema de dominação e exploração das mulheres pelos homens desde o controle de sua
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sexualidade, perpassando os espaços públicos e privados a partir das estruturas de poder que
coisificam a mulher, anulando sua importância no contexto social e político.
Ao discutir esta categoria Weber (2005) em seu livro Economia e sociedade enfatiza que
o patriarcado retrata uma situação em que a dominação é exercida por uma só pessoa, em geral o
pai, chefe de família que de acordo com regras estabelecidas hereditariamente e fundamentada na
maioria das vezes pelo domínio da condição econômica, este pai ou chefe de família, mantém uma
relação de total domínio e poder sobre os demais membros da família ou sobre a comunidade em
que vive.
Weber nos explica ainda que esta dominação se mantém apoiada em bases jurídicas onde
se funda a legitimidade. Nas mulheres esta dominação também se sustenta nos preceitos religiosos
que dependendo da interpretação do grupo ou tendência religiosa, reforça a submissão das
mulheres e seu enclausuramento no mundo doméstico.
Por fim, é importante ressaltar que a dominação patriarcal se sustenta na crença da
supremacia masculina, nos poderes senhoriais dos homens, vistos como senhores que ordenam e
súditos que aprendem desde cedo a obedecerem a partir de uma tradição forjada na cultura, na
educação das crianças, passado de geração em geração. (WEBER, 2005, p.184).
Uma boa contribuição para o debate sobre patriarcado vem das teorias de Patemam (1993)
no seu livro: “O contrato sexual”. A autora traz as concepções dos liberais contratualistas, de que
os homens nascem livres e são iguais entre si, são indivíduos dotados de direitos políticos que têm
discernimento e, portanto, podem fazer suas escolhas através da razão, não mais por explicações
místicas como era nos regimes patriarcais em que o poder do patriarca era justificado pela tradição,
sendo então o patriarcado abolido pelas sociedades modernas capitalistas de forma gradativa.
Porém, Pateman, (1993) afirma que isso não se sucedeu uma vez que o patriarcado se restabeleceu
na sociedade moderna se reconstituindo nas relações afetivas e no confinamento das mulheres ao
mundo do privado.
No seu livro Patemam (1993) critica o contrato social de Jean Jacques Rousseau ao dizer
que a história do contrato social é apresentada como uma história de liberdade, em que os homens
no estado natural trocam as inseguranças pela liberdade civil salvaguardada pelo Estado. No
contrato sexual de Pateman a autora reflete a história da sujeição, dominação dos homens sobre
as mulheres, no qual o direito masculino se efetiva no livre acesso aos corpos das mulheres, no
cerceamento de sua liberdade civil que se traduz nos limites impostos pelos liberais que desde
princípios limitou os direitos das mulheres não o universalizando.
A história do contrato sexual é sobre relações (hetero) sexuais e sobre mulheres
personificadas como seres sexuais. A história nos ajuda a compreender os mecanismos
através dos quais os homens reivindicam os direitos de acesso sexual e de domínio dos
corpos das mulheres. Além disso, as relações heterossexuais não estão limitadas à vida
privada. (PATEMAN, 1993, p. 36).
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Ou seja, perpassa a vida privada e se insere na vida pública interferindo nos destinos das
mulheres. Desse modo podemos então afirmar que o conceito de patriarcado explica os processos
de exclusão e dominação das mulheres na sociedade e ajuda a compreender como a diferença
sexual tem sido convertida em diferença política para naturalizar a sujeição das mulheres. Explica
também como a condição de dependência econômica das mulheres contribui para mantê-las
subjugadas ao marido, ou companheiro. Através do patriarcado é possível compreender como os
homens constroem suas relações de domínio sobre as mulheres na medida em que se representam
acima das mesmas, anulando suas iniciativas e suas singularidades. Para Beauvoir (1986, p.13):
O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos ”os homens”
para designar os seres humanos, tendo-se assimilado ao sentido singular do vocabulário
vir o sentido geral da palavra homo. A mulher aparece como negativo, de modo que toda
determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade.

As ideias expressas por Beauvoir (1986) permitem compreender o processo de


impedimento da presidenta Dilma Rousseff coordenado por homens que sempre dominaram o
cenário político brasileiro. São homens que representam a elite conservadora que não concebem
as mulheres como sujeito político.
3 ELEIÇÕES MUNICIPAIS NO MARANHÃO: e as interferências da cultura patriarcal
na representação feminina nos espaços de poder

Nas últimas eleições municipais realizadas em outubro de 2016, o número de mulheres


que se candidataram a prefeita no Maranhão foi na ordem de 22% contra 78% de homens. Nesta
eleição em especial devem ser levados em consideração o impeachment de Dilma Rousseff e a
campanha difamatória que a expôs na mídia de forma a desqualificar sua atuação política como
presidente. Para Ferreira (2018, p, 779):
O processo que culminou com o golpe que destituiu a presidenta eleita foi coberto de
falhas, fazendo emergir um discurso conservador, patriarcal e machista. Observou-se que
a mídia nacional se encarregou de criar uma imagem negativa da presidenta, em muitas
situações retratada de forma pouco convencional ou mostrando desequilíbrio,
insegurança.

O impeachment da presidenta Dilma Rousseff fez emergir o debate sobre o


patriarcado e as dificuldades das mulheres em ascender ao poder. A desqualificação da principal
representante do País recaiu sobre o imaginário social reforçando juízo de valores de que as
mulheres não estão aptas a gerenciar o País, os estados e os municípios. Por esta razão, a discussão
apresentada nesse item nos permite compreender esse processo.
Proporcionalmente se elegeram mais homens, uma vez que foram eleitos apenas 19% de
mulheres e 81% de homens (Gráfico 1A). Os gráficos abaixo mostram que, embora o número de
mulheres que se candidataram às prefeituras de seus municípios represente 22% do total dos
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candidatos, entretanto apenas 19% foram eleitas (Gráfico 1B), e isso apenas reforça as assertivas
dos estudos de Ferreira (2010, 2015), Alvares (2012) e Costa (1998) que afirmam que não basta
às mulheres se lançarem candidatas, pois a cultura patriarcal que atravessa a sociedade em
diferentes dimensões interfere na projeção das mulheres para os espaços de poder.
Gráfico 1: A) Total de candidatos à prefeitura de seus munícipios eleitos; 1B) Total de
candidatos à prefeitura de seus municípios.

A B

Fonte:TRE/MA 2016

Na Tabela 2, que retrata a eleição de prefeitas e prefeitos no Maranhão, de 2004 a 2016,


conforme dados do TRE, observa-se que o quadro de mulheres nos executivos municipais ampliou
no período que compreende 2004 a 2012, passando de 24 prefeitas eleitas em 2004 para 40 eleitas
nos 217 municípios maranhenses em 2012. No pleito de 2012, entretanto, as 40 prefeitas
correspondem a apenas 18,44% do total de eleitos. Em 2016, o número de mulheres eleitas sofre
um revés, tendo em vista que foram eleitas apenas 35 prefeitas.
Tabela 2: Total de Prefeitos (as) Eleitos(as) (2004-2016)
Fonte: 2016 2012 % 2008 2004 %
Mulheres 35 40 18,44% 34 15,27% 24 11,05%

Homens 182 177 81,56% 183 84,73% 193 88,95%

Total Total 217 100,00% 217 100,00% 217 100,00%


Elaborada por Mary Ferreira a partir de dados do TRE, 2016.

Nas eleições de 2016, o município de Senador La Roque no Maranhão se destacou no


cenário nacional em virtude da eleição de sete mulheres entre os onze vereadores eleitos, dado
que vem se mantendo nas quatro últimas legislaturas (2004-2016). É uma das cidades brasileiras
com maior proporção de mulheres eleitas em câmaras municipais. A maioria das vereadoras estão
filiadas a pequenos partidos. Em estudo realizado no município, entrevistamos a população e as
vereadoras para analisar com mais cuidado o fenômeno a fim de perceber se existem
particularidades na ação política das eleitas. O olhar da população revela elementos importantes
para pensar o poder das mulheres, vistas como mais cuidadosas e mais atentas aos problemas
sociais. “Embora reconheçam o aprisionamento a um trabalho assistencialista, as vereadoras
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reconhecem seus limites de alterar esta situação em um município marcadamente pobre”.


(FERREIRA, 2017).
Senador La Roque é uma exceção, não somente no cenário maranhense, como no cenário
brasileiro, tendo em vista o número ainda desigual de cadeiras ocupadas por mulheres nas câmaras
municipais.
Observando os resultados das três últimas eleições no Maranhão, as mulheres ocupavam
em 2004 um total de 16,455% das cadeiras de vereadores nos 217 municípios. Observa-se pela
Tabela 4 que houve um pequeno aumento nas eleições de 2012, tendo em vista a ampliação para
18,44%. Mesmo com esse aumento, as mulheres continuem sendo sub-representadas,
considerando que os dados eleitorais comprovam que os homens são 81,56% dos vereadores
eleitos, representando, portanto, a maioria da população dos municípios maranhenses
(FERREIRA, 2015).

Tabela 3: Vereadores(as) eleitos(as) no Maranhão de 2004 a 2012


2012 2008 2004
Qntd. % Qntd. % Qntd. %
MULHERES 435 18,44% 334 16,82% 253 16,55%
HOMENS 1.923 81,56% 1.652 83,18% 1.275 83,45%
TOTAL 2.358 100,00% 1.986 100,00% 1.528 100,00%
Fonte: Elaborada por Mary Ferreira a partir de dados do TRE/MA, 2012, 2016.

Nas últimas eleições municipais realizadas em 2016 no Maranhão, o que foi observado é
que, desde o recrutamento das candidaturas, as mulheres são visivelmente minorias. Segundo
dados do Tribunal Regional Eleitoral – TRE, dos 16.132 candidatos, apenas 5.137 eram do sexo
feminino, o que representa 32% (Gráfico 2A). Destas, apenas 17% foram eleitas (Gráfico 2B), o
que denota que não elegemos nem mesmo os 30% determinados pela Lei Eleitoral, que estabelece
30% de candidaturas por sexo
Gráfico 2: A) Candidatos (as) ao cargo de vereador(a); B) Candidatos(as) eleitos(as) ao cargo de
vereador(a).
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A B

Fonte: TRE, 2016.

Ao analisar a partir da Tabela 4 e Gráfico 3, os partidos que mais lançaram mulheres nas
eleições municipais de 2016, percebe-se que foi o Partido Comunista do Brasil – PCdoB. Foram
441 candidatas e 34 eleitas. Mas, proporcionalmente, foi o Partido Democrático Trabalhista – PDT
que mais elegeu mulheres, tendo em vista que lançou 297 candidatas e elegeu 34 vereadoras,
seguido do PTB, que lançou 133 candidatas e elegeu 17. Os números revelam a necessidade de
discutir a inserção das mulheres nos partidos e instaurar o debate sobre candidaturas, de modo a
ampliar o número de mulheres nas câmaras municipais.

Tabela 4: Candidatas lançadas e eleitas por partido em 2016


PARTIDO Candidatas p/ Partido Candidatas Eleitas
PCdoB 441 34
PMDB 297 26
PDT 279 34
PRB 252 21
PSB 252 14
PP 229 19
PR 218 15
PT 205 18
PV 202 18
PROS 177 13
SD 173 11
PHS 165 9
PEN 159 5
PTC 135 5
PTC 135 5
PPS 133 0
PTB 133 17
PMN 130 13
PSL 121 6
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PRP 112 17
DEM 108 10
PRTB 101 9
PRTB 101 9
PSOL 100 0
PMB 88 5
PSC 84 9
PTN 80 8
PTN 80 8
PT DO B 79 3
PPL 53 0
PPL 53 0
REDE 44 2
PCB 12 0
PCB 12 0
PSTU 3 0
Fonte: TRE/MA 2016

Fonte:TRE/MA 2016
Na tabela 5 é possível avaliar o investimento feito pelos partidos nas candidaturas
femininas. Observamos que muitos partidos nem ao menos cumpriram a Lei das Cotas. É
importante destacar que a política de cotas no Brasil, adotada através da Lei 9.096/95, estabelecia
cota mínima de 20% para a candidatura por sexo. Em 1996 esta Lei sofre alteração, através da Lei
9.504/96, ampliando para 30%, no mínimo, e máximo de 70% para candidaturas de cada sexo, o
que foi denominado de cota de gênero. Em 2009 essa legislação sofre outra alteração. Desta feita,
a nova lei assegura a escolha e registro de candidatos estabelecendo que o cálculo do percentual
deva ser feito com base no “número de vagas requeridas” e não mais no número de vagas a
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preencher. Mesmo com as mudanças na legislação, observa-se que muitos partidos no Maranhão
não cumpriram a legislação. Partidos como PSDB, PSC, PTB, DEM, PSD, PTN, PDT, REDE,
PPS, PRB lançaram menos de 30% de candidatas, fato que denota o não cumprimento da
legislação. Pelos dados do Tribunal Regional Eleitoral, o partido que mais lançou mulheres nas
eleições de 2016 foi o PSTU, entretanto, nenhuma das candidatas foi eleita. Em seguida, destacam-
se PMN, PSOL, Solidariedade, PMDB, PP e PT.
Tabela 5: Eleição 2016 - Número e Percentual de Candidatos(as) por Partido

Total de Total de
Total Total Candidatos
Partido Candidatos ELEITOS Candidatas ELEITAS
Masculino Feminino totais
Masculinos Femininas
PSDB 707 72% 160 279 28,3% 32 986
PSC 214 72% 42 85 28,4% 9 299
PTB 333 71% 68 136 29,0% 17 469
DEM 269 71% 79 110 29,0% 11 379
PSD 521 71% 98 215 29,2% 26 736
PTN 192 71% 30 80 29,4% 8 272
PDT 707 70% 191 296 29,5% 40 1003
REDE 107 70% 8 45 29,6% 2 152
PPS 323 70% 40 137 29,8% 6 460
PRB 600 70% 122 256 29,9% 21 856
PROS 414 70% 56 178 30,1% 13 592
PSL 285 70% 44 124 30,3% 7 409
PSDC 222 69% 32 98 30,6% 10 320
PRTB 226 69% 38 101 30,9% 9 327
PCdo B 1030 69% 217 465 31,1% 40 1495
PR 493 69% 122 225 31,3% 16 718
PMN 287 68% 49 132 31,5% 14 419
PEN 354 68% 42 163 31,5% 5 517
PCB 26 68% 0 12 31,6% 0 38
PRP 245 68% 51 114 31,8% 17 359
PSB 548 68% 100 259 32,1% 17 807
PV 438 68% 83 210 32,4% 22 648
PTdoB 168 67% 30 81 32,5% 3 249
PTC 278 67% 28 135 32,7% 5 413
PPL 109 67% 8 53 32,7% 0 162
PHS 333 67% 0 167 33,4% 9 500
PT 410 66% 73 208 33,7% 19 618
PP 459 66% 97 236 34,0% 22 695
PMDB 582 65% 134 309 34,7% 30 891
SD 322 65% 58 175 35,2% 12 497
PSOL 191 65% 0 104 35,3% 0 295
PMB 134 60% 7 90 40,2% 5 224
PSTU 5 56% 0 4 44,4% 0 9
Fonte: TRE/MA 2016
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Os dados apresentados acima revelam um fenômeno que se repete, segundo Ferreira


(2015), na maior parte dos municípios brasileiros, sem que o Estado brasileiro crie medidas mais
orgânicas para mudar o atual quadro. As propostas de reforma política em andamento no
Congresso Nacional poderiam alterar este quadro, porém, há forte resistência das bancadas
conservadoras quanto a mudanças do atual quadro.
Apesar das legislações criadas no Brasil, conforme mencionado, os indicadores apontam a
permanência da sub-representação das mulheres em cargos legislativos. Observamos que as
mudanças efetivadas em outros países, a exemplo de Costa Rica, México, Argentina, Equador e
Bolívia, garantiram alterações substanciais, conforme se percebe no aumento da representação
feminina nas últimas eleições. O exemplo mais significativo é na Bolívia onde, nas eleições de
2012, as mulheres representavam 12% e nas eleições de 2017 constituíram mais da metade das
representantes eleitas naquele país. O que diferencia o Brasil da Bolívia, Costa Rica, Argentina?
Por que a Política de Cotas não funciona no Brasil, e em especial no Maranhão? A diferença está
basicamente no sistema que é adotado. Na Argentina, por exemplo, é adotado o sistema de listas
fechadas, ou seja, nesse país os eleitores devem optam por uma lista ordenada de candidatos sem
dispor da possibilidade de expressar preferências nem de modificar a posição dos mesmos. As
listas são elaboradas pelos partidos, que definem a composição e organizam os candidatos de
acordo com sua prioridade de eleição. Borner (2007, p. 69) esclarece que:
[...] não existe um acordo entre os expertos acerca das vantagens das listas fechadas para
fomentar a participação de mulheres nos organismos de representação política, no caso
argentino, essa modalidade de votação constitui um fator chave para explicar a notável
eficácia conseguida pela Lei de Cota Feminina.

Vejamos o exemplo da Costa Rica, que nas últimas eleições alcançou patamares elevados
de presença feminina, fato que se deve, segundo Sagot (2009), ao êxito do sistema de cotas
implantado a partir de definição e procedimentos claros e precisos para garantir sua eficiência.
Para a pesquisadora, o sistema de cotas só funcionou na Costa Rica porque foram incluídas
sanções para quem não cumprisse a legislação, e se garantisse assim sua eficácia. A autora
enumera e destaca três fatores que considera fundamentais para o funcionamento da Lei: “1. Que
seja parte da legislação eleitoral; 2. Que exista clareza quanto aos mecanismos de aplicação; 3.
Que o órgão eleitoral esteja envolvido na garantia do cumprimento do sistema”. (SAGOT, 2009,
p.59). Considera que os esforços das mulheres para transcenderem o papel meramente reprodutivo
nos processos sociais e políticos e para ocupar espaços nas esferas do tradicional poder masculino
começam a render frutos nas últimas décadas nesse país.
Esses pontos apresentados da experiência na Argentina e Costa Rica não são adotados no
Brasil, razão porque a Lei das Cotas não funciona, seu exercício não é fiscalizado pela Justiça
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Eleitoral, contribuindo desse modo para que os partidos tenham regras próprias de deliberação
interna, porque sabem que não há sansões para o não cumprimento da legislação. O exemplo mais
concreto é que a maior parte dos partidos no Brasil não cumpriu a Lei das Cotas na eleição de
2016, mas todos continuam concorrendo nas eleições de 2018.
É certo, então, afirmar que no Brasil: a ineficiência da aplicabilidade da Lei das Cotas
constitui uma das dificuldades das mulheres para superar as desigualdades de gênero na política,
explicando a permanência da sub-representação. Porém, outras razões são apontadas por Romero;
Figueiredo; Figueira e Álvares (2012) e Ferreira (2015). Para essas autoras, a cultura patriarcal no
Brasil e a cultura de elite são marcas profundas que atravessam todo o sistema político brasileiro,
fazendo emergir os racismos, os machismos e os preconceitos contra mulheres que exercem cargos
eletivos ou em outras esferas de poder. Estes estudos demonstram as muitas formas de interdição
das mulheres na política formal, fato que explica, em grande parte, sua pouca inserção em
campanhas e em disputas eleitorais.
É importante enfatizar que, apesar de esses dados já terem sido largamente discutidos e a
sub-representação ter sido bastante denunciada pelos movimentos feministas, são poucos os
estudos no Brasil (em particular, no Maranhão) que trazem elementos para pensar este fenômeno.
A ausência de estudos neste campo contribui para que a presença das mulheres no mundo público
e as ações e mediações que têm notabilizado sua presença na política sejam invisibilizados.
A realidade apresentada nos cinco municípios investigados nos capítulos subsequentes -
São Luís, Morros, Duque Bacelar, Turiaçu e São João dos Patos - com as lideranças indicadas em
cada um dos municípios revela que as mulheres estão preocupadas com a sub-representação;
revela ainda que a maioria das mulheres entrevistadas têm interesse em participar da disputa
eleitoral, mas chamam a atenção para a falta de apoio dos partidos que pouco ou nada fazem para
alterar essa situação. Nos Gráficos 4 e 5 apresentamos alguns indicadores que demonstram a sub-
representação feminina nos cinco municípios onde foi desenvolvido a Pesquisa.

Gráfico 4: Número de candidatas à prefeitura.

Nº DE CANDIDATAS À PREFEITURA
Nº DE CANDIDATAS

1900ral

1900ral 1900ral 1900ral

DUQUE SÃO JOAO DOS TURIAÇU SÃO LUIS


BACELAR PATOS
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Fonte: TRE/MA 2016

Gráfico 5: Número de candidatas por partido.

Fonte: TRE/MA 2016

Pelos dois gráficos (4 e 5) apresentados, observamos que, nos cinco municípios, apenas
6 mulheres se candidataram a prefeita. Os partidos que mais lançaram mulheres no pleito de 2016
nestes cinco municípios foram o PDT, partido que durante décadas foi liderado pelo ex-
governador Jackson Lago e atualmente está sob a liderança do recém-eleito senador Weverton
Rocha, e o PMDB, que em décadas passadas era considerado um partido de centro-esquerda,
comandado por Renato Archer, Epitácio Cafeteira, Haroldo Saboia, Ana Rita Botão e muitas
outras lideranças. Atualmente o partido é liderado pelo grupo Sarney.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados apresentados refletem o olhar da pesquisadora que durante dois anos vem se
debruçaram nesta pesquisa refletindo sobre as falas das mulheres e da população para assim
entenderem os protagonismos e a sub-representação das mulheres no Maranhão. A pesquisa
realizada em cinco municípios iniciando por São Luís, seguido de Morros, Turiaçu, Duque Bacelar
e São João dos Patos apontam para a sub-representação que por sua vez reflete a cultura patriarcal,
impregnada nos partidos e nas instituições, dificultando maior inserção as mulheres nos espaços
de decisão. Cada município apresenta particularidades que merecem ser analisados para assim
entender os protagonismos das mulheres no Maranhão, porém, os dados se repetem, as
dificuldades das mulheres se reproduz silêncios que mostram a permanência das estruturas
Página 1353 de 2230

patriarcais que subordinam e oprimem as mulheres, o que se constitui como é um empecilho para
que a democracia se concretize de fato, uma vez que a mulher ainda não está incluída de forma
igualitária. A questão da sub-representação das mulheres expressa a exclusão nos espaços de poder
e decisão, e as dificuldades que enfrentam para transgredir o atual quadro de desigualdade, visando
construir uma sociedade em que sejam reconhecidas como sujeitos políticos. Na Câmara
Municipal de Duque Bacelar por exemplo essa exclusão é percebida claramente tendo em vista
que existe apenas uma mulher que compõe o quadro dos nove vereadores de deste Município,
situação que se repete em Turiaçu.
As mulheres começam a ocupar os partidos políticos de forma tímida, muitas já se colocam
como candidatas para disputar as eleições, mas na maioria das vezes, quando ocupam lugar nos
partidos, é apenas para o preenchimento das cotas. Mesmo quando ocupam os lugares de poder,
não são reconhecidas por suas ações. Percebe-se que a igualdade de gênero ainda está distante da
realidade dos partidos políticos na maioria dos municípios maranhenses. A baixa
representatividade feminina nesse espaço de poder reflete a necessidade urgente de discutir
estratégias de superar o problema para contribuir na articulação e atuação das lideranças no
referido município. Isso porque a participação das mulheres é importante para a promoção da
igualdade de gênero, para contribuir com o empoderamento das mulheres e fortalecer seu
protagonismo a fim de que as mulheres possam alterar a realidade social dos seus bairros, cidades,
das organizações em que estão incluídas e das quais participam no município.

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Página 1356 de 2230

REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS E A PRODUÇÃO DAS (A)NORMALIDADES NO


FILME CORINGA (2019)

DISCURSIVE REPRESENTATIONS AND THE PRODUCTION OF


(AB)NORMALITIES IN JOKER (2019)

Imaíra Pinheiro de Almeida da Silva


Mestranda do PGCULT/UFMA,
bolsista CAPES. E-mail: imairapinheiro@gmail.com.

Profª. Drª. Sandra Maria Nascimento Sousa


Pós-Graduação em Ciências Sociais do PPGCSOC/UFMA
Programa de Pós-Graduação Cultura e Sociedade – PGCult/UFMA
E-mail: sandraufma@gmail.com.

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: No presente estudo, eu desenvolvo reflexões sobre a última produção cinematográfica


de um dos personagens mais conhecidos da editora DC Comics: o Coringa. Em Coringa 2019,
conta-se a história de Arthur Fleck e como ele se torna O Coringa, um personagem extremamente
violento e que destoa de padrões sociais. Nessa produção, especificamente, é apresentada uma
proposta de origem para o personagem e momentos de sua vida, que transitam entre doenças e
dramas, pontos que me propuseram o questionamento: como a experiência de viver em um cenário
de caos pode contribuir para a formação de um sujeito anormal? Afastando a ideia de insanidade
crônica do personagem ou questionamentos sobre a sua crueldade, aproveito o filme para, a partir
dele, refletir e construir pontes interdisciplinares a partir de inspirações advindas de autores como
Foucault (2009; 2014a; 2014b), Butler (2017; 2018), Lauretis (1994) e Spivak (2014) para
problematizar os cenários, os discursos, as tecnologias do gênero e processos de saúde-doença; os
dispositivos de controle e possibilidade de agência dos sujeitos; e como a sociedade e o Estado se
mostram como relações dinâmicas de sistemas de diferenciação e de discriminação.
Palavras-chave: Gênero. Pós-estruturalismo. Normalização. Processo de saúde-doença. Coringa
2019.

Abstract: In the present study, I develop reflections on the latest film production of one of the
most well-known characters from the publisher DC Comics: the Joker. In Joker 2019, the story of
Arthur Fleck is told and how he becomes The Joker, an extremely violent character that clashes
with social standards. In this production, specifically, a proposal of origin is presented for the
character and moments of his life, which move between diseases and dramas, points that proposed
the question: how the experience of living in a chaos scenario can contribute to the formation of
an abnormal subject? Moving away from the character's idea of chronic insanity or questions about
his cruelty, I use the film to reflect on and build interdisciplinary bridges based on inspirations
from authors like Foucault (2009; 2014a; 2014b), Butler (2017; 2018), Lauretis (1994) and Spivak
(2014) to problematize the scenarios, discourses, gender technologies and health-disease
processes; the control devices and possibility of agency of the subjects; and how society and the
State show themselves as dynamic relations of differentiation and discrimination systems.
Keywords: Gender. Post-structuralism. Normalization. Health-disease process. Joker 2019.

1 EU E MINHAS ESCOLHAS
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Refletir sobre relações de gênero contempla verificar os múltiplos aspectos conectados às


suas configurações, discursos que constituem e atravessam sistemas, dispositivos e representações
nos mais diversos cenários, inclusive nas produções artísticas. Pude fazer essa assertiva e me
proponho a desenvolver esse estudo a partir dos desdobramentos ocasionados e inspirados pelas
leituras e discussões na disciplina de “Tópicos Especiais em Sociologia II: identidades, produções
discursivas e desconstruções”. Disciplina esta ministrada pela minha orientadora no mestrado,
Profª. Drª. Sandra Nascimento Sousa, oferecida no 2º semestre de 2019 pelo Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da UFMA.
Durante a experiência apontada, pude ter contato com obras de autores caracterizados
como pós-estruturalistas, como Michel Foucault (2009; 2014a; 2014b), Gilles Deleuze (1991;
2008) e Judith Butler (2017; 2018). Eles me impulsionaram a refletir sobre a produção de
anormalidades, processos de subjetivação e abjeção, políticas públicas, condições sociais e
dispositivos de controle. Esses autores começaram, então, a participar fortemente de um momento
de diálogos e divergências com perspectivas que, há um tempo, vêm me chamando atenção, em
destaque, a de “tecnologias de gênero”, apresentada por Teresa de Lauretis (1994) e a de “sujeito
subalterno”, da autora Gayatri Spivak (2014).
À época da disciplina, a produção Coringa 2019 estreou nos cinemas e, como amante das
produções cinematográficas e das obras baseadas em histórias em quadrinhos (HQ’s), fui logo
prestigiá-la. Minha corrida para entrelaçar a oportunidade de assistir em meio às influências que
os estudos me propuseram, fizeram eu perceber que os filmes se mostram como um campo fértil
para discussões, muito disso pelos seguintes motivos: enquanto produções sociais, possuem um
poderio de alcançar diversos públicos; além disso, exercem uma grande influência mercadológica
para a sua produção. Esses aspectos trazem consigo vários pontos que podem ser problematizados,
discutidos e analisados, tanto em relação à sua influência na sociedade, quanto na expressão e
representação tanto da subjetividade humana quanto em relação a como a sociedade vem se
compreendendo frente aos dilemas contemporâneos.
Construo o presente artigo com base nas inspirações pós-estruturalistas e nos estudos de
gênero para apontar e problematizar discussões sobre normalidade e anormalidade,
performatividade de gênero, subalternidade/subalternos, vulnerabilidade/vulneráveis e
precariedade. Por isso, viso propor uma discussão sobre o papel que esses termos exercem na
sociedade e as consequências destes na construção de atores sociais e discursos sobre padrões
comportamentais em âmbitos múltiplos, sejam eles econômicos, sociais, pessoais. Destacando,
nessa proposta, tanto questões de âmbito conceitual, quanto impressões do filme Coringa (2019).
Tá...! Tudo bem! Você deve estar pensando que eu ainda não expliquei bem sobre o porquê de
trazer o Coringa e não algum outro personagem, ou de ter escolhido esse filme e não outro desse
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mesmo personagem, ou, ainda, dos motivos que eu escolhi essa e não outra temática, porém, eu
te peço calma! Mais para frente, tentarei explicar melhor!
Aqui, nesse momento do estudo, eu aproveito para elencar para você que iniciei por meio
do estopim de uma problemática que me veio à cabeça, “de cara”, ao ter contato com esse filme.
Eu poderia ter escolhido vários outros aspectos, mas optei por discutir sobre cenários de caos
versus processos de saúde-doença. E o que eu compreendo como caos? Em que consiste o
elencado processo de saúde doença?
Caos, para mim, nessa pesquisa, é um cenário que insere o sujeito ao ponto de ser
questionada a sua própria consciência e realidade enquanto sujeito. Participando dessa discussão,
sobre processo de saúde-doença, aponto que, aqui, afasto uma percepção restrita de naturalização
sobre o desenvolvimento de doenças e me aproximo de aspectos que analisam a o
desenvolvimento de doenças por meio do questionamento central: como a produção e
determinação de diferenças podem ser declaradas como fatores de desigualdades e injustiças
sendo um vetor para o encadeamento de doenças? Elencando, durante o desenvolvimento, vários
questionamentos secundários que participarão do processo de problematização e do convite para
pensarmos juntos sobre a obra fílmica e dos autores que foram chamados para o diálogo.
Para desenvolver a discussão sobre a problemática apontada, penso que é interessante,
inicialmente, contextualizar, reunindo informações e impressões sobre o filme, relacionando este
com os HQ’s, porque, pode ser que, você, que me acompanha agora, não seja uma pessoa
apaixonada nem por filmes, nem por quadrinhos. Sem problemas! Em um segundo momento,
discuto sobre a capacidade de agência, autonomia dos sujeitos frente a cenários de caos e a sua
relação com o processo de saúde-doença, através de justaposições de ideias presentes na obra dos
pensadores já elencados.
Além disso, aproveito para considerar os processos de abjeção e normalização praticados
por atores como a sociedade e o Estado. Tentando, nesse processo, como fruto de uma pesquisa
básica e exploratória, acionar várias fontes, livros, artigos, filmes, sítios especializados em filmes
e histórias em quadrinhos. Para, desse modo, explicar a metamorfose de Arthur Fleck em Coringa
e os diversos assuntos que permeiam essa transformação.
2 CORINGA (2019): entre HQ’s e cinema

Considero filmes, o cinema, representações e possibilidades de acesso à informação,


documentos que passam a contribuir para o desvelamento da leitura sobre a sociedade. E, dentro
dessas produções artísticas e culturais, o cinema vai muito além da disputa das classificações de
produção mainstream versus produção alternativa. Mas, afinal, o que separa uma produção
mainstream de uma produção alternativa?
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Mainstream, em uma tradução da língua inglesa para o português, ao pé da letra, derivaria


de duas palavras: main (principal) e stream (corrente), ou seja, significaria corrente principal. Essa
classificação, adaptada para este contexto, comumente, é utilizada para designar uma postura
adotada por produções que visam acompanhar os direcionamentos do mercado e que, geralmente,
diante dessas adequações, tornam-se mais populares. Em contrapartida, apresentariam-se as
produções alternativas, também conhecidas como independentes, que, como apresenta Maria
Angela Gomes Rama (2006, p. 09), seriam aquelas “que muitas vezes questionam – por conta de
sua relativa ‘independência editorial’ – o status quo social dominante.
Aproveitando esse impasse, usufruo a perspectiva de Teresa de Lauretis, ao afirmar que o
gênero se mostra como um produto das diversas tecnologias sociais, tais como: internet, rádio, tv,
cinema, jornais; das múltiplas epistemologias e práticas críticas institucionalizadas e das ações
cotidianas. Em seu estudo, a autora vem reafirmando que o gênero não se configura como algo
próprio do corpo, mas, sim, como um complexo de efeitos que são ocasionados nos corpos por
comportamento e relações sociais (LAURETIS, 1994). Nas produções mainstream e
independentes também?
Nesse cenário, será que não é possível que as produções mais populares nos façam imergir
em um contexto de debates sobre a sua narrativa e como elas se manifestam na trajetória dos seus
personagens? Como é representada a narrativa do personagem Coringa nessa produção? Quais
aproximações e distanciamentos são encontrados entre ficção e realidade? Quais pontos podem
ser destacados para pensarmos como a obra representa a relação sujeito e sociedade? Será que
problemas sociais justificam a violência? Até que ponto a classificação desses filmes pode
contribuir para a formação de mais um discursos sobre quais filmes, locais são considerados e
aptos para refletir sobre a sociedade e quais nãos devem assumir essa tarefa?

2.1 Encontrando e ultrapassando os quadrinhos: a metamorfose de Arthur Fleck para


Coringa

Tentando pensar sobre os questionamentos anteriores, eu apresento, para você, os porquês


de eu ter escolhido tanto o personagem Coringa quanto a obra cinematográfica lançada em 2019.
Bem, primeiramente, vejo como necessário relembrar o contexto da criação do personagem, e,
para isso, é interessante destacar que, no ano citado anteriormente, o personagem Batman,
arquirrival do Coringa, completou 80 anos. Sua primeira aparição se deu em 1939, na edição n.
27 da história em quadrinhos Detective Comics, em um contexto de sucesso da editora DC Comics,
que buscava mais um personagem que se relacionasse com o público, através da empatia
(CARVALHO, 2019).
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Essa empatia, tão desejada pela editora, pode ter sido alicerçada em vários aspectos. Posso
apontar que, pelo o fato do personagem Batman, mesmo usando capa, como muitos outros super-
heróis, não possui poderes especiais, tais como: voar como o Super-homem, velocista como o
Mercúrio, algo que destoa do perfil dos super-heróis, mas o aproxima de uma pessoa comum.
Além disso, ele se mostra como uma figura sombria e afetada por um drama familiar - seus pais
são assassinados tendo ele como testemunha - e obtendo como principal referência familiar, depois
da morte dos seus pais, seu tutor legal Alfred Pennyworth, o mordomo da família, seu fiel ajudante.

Esta identificação de Batman com seus leitores talvez se deva, principalmente, ao fato
dele ser um homem “comum”, sem superpoderes inatos ou adquiridos. O cidadão Bruce
Wayne (alter ego de Batman) possui, no entanto, o que a maioria das pessoas almeja
numa sociedade capitalista: muito dinheiro para satisfazer seus desejos. (RAMA, 2006,
p. 66)

Esse ponto elencado no fragmento anterior é fundamental para a construção do


personagem. Já que, diante dos seus dilemas, da grande herança deixada pelos seus pais e o
sentimento de revolta e justiça contra a criminalidade, ele desenvolveu habilidades físicas e
intelectuais diferenciadas e potencializadas. Elas o favoreceram no objetivo de se tornar um
defensor de Gotham City, uma cidade fictícia cenário de várias HQ’s. A história desse personagem
é marcada por discussões sobre sua origem e adaptações para jogos, filmes, desenhos animados e
séries. Demonstrando, desse modo, a amplitude que o personagem alcançou ao longo dos tempos.
Entretanto, dessas produções, das mais memoráveis e populares, geralmente, encontramos a
participação do personagem Coringa. Mas por que o Coringa possui tanta popularidade?
Na produção fílmica Coringa (2019), primeira obra nos cinemas em que o personagem
possui aparição solo, sem outros vilões do mundo DC, mais do que isso, a obra se destaca por
apresentar uma proposta sobre a sua origem. O personagem chega aos cinemas com roteiro
inspirado nas histórias em quadrinhos, pensado por Scott Silver e Todd Phillips, que também
dirige a produção, e sendo interpretado por Joaquin Phoenix. Tendo como uma das características
colocar em foco o paradoxo entre o riso e o choro em um contexto de uma Gotham City, na década
de 1970, em meio a desemprego, violência e corte de verbas a serviços públicos de atendimento à
população, dentre eles, os de saúde. Nessa versão, em vez de cair em um tanque de produtos
químicos, como apresentado em algumas outras narrativas sobre a sua origem (CARVALHO,
2019), nesta, o Coringa se configura como reflexo de uma sociedade tóxica, que exige o riso
mesmo diante do sofrimento. Porém, tolhe esse riso quando ele a incomoda.
A obra conta a história de Arthur Fleck, através da perspectiva do próprio personagem, e
vai apresentando, ao desenvolver o roteiro, pontos, anseios, angústia e indícios sobre a sua história,
em destaque, sobre a sua paternidade, até então, desconhecida para ele. Fleck trabalha para uma
agência como palhaço, mora com a mãe doente e dependente dos seus cuidados, Penny, e possui
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o sonho de ser comediante, em um estilo ao que chamamos hoje de stand-up294, tendo como
inspiração o apresentador Murray Franklin (representado por Robert de Niro). Entretanto, vários
acontecimentos, ao longo de sua vida, vão proporcionando que um homem que, aparentemente,
poderia ser considerado bom para determinados padrões sociais – bom filho, empregado,
responsável, mesmo diante da pobreza e do sofrimento mental – pudesse se transformar em uma
pessoa que não respeita limites sociais, como matar alguém.
Durante o filme, ocorre uma sucessão de fracassos e tragédias que se entrelaça com a
realidade que muitos de nós, fora das telas do cinema, poderíamos viver. Por um âmbito, Arthur
Fleck exerce suas atividades em um local de trabalho onde sempre é desrespeitado por seus
colegas e chefe; é vítima de violência física por um grupo de pessoas na rua, enquanto trabalhava
como palhaço; vivencia uma cidade em crise econômica, com alto índice de criminalidade, com
os serviços públicos sendo negligenciados e, mesmo dependendo de tratamento, não possui
atendimento com qualidade e sempre conflita à assistente social, Debra Kane, que o assiste,
dizendo que ela não o ouve. Acompanhamento, com medicação, que, por causa dos cortes nas
verbas públicas, acaba sendo cortado.
Por outro âmbito, ao abrir uma das cartas que sua mãe enviava ao seu antigo patrão,
Thomas Wayne, candidato à prefeitura de Gotham, pai de Bruce Wayne, ele lê que a mãe teve um
caso com o seu ex-chefe enquanto trabalhava para ele e que Fleck é filho de Wayne. A partir daí,
Fleck procura Wayne para indagar sobre a sua ausência enquanto pai, em contrapartida, é recebido
de forma áspera, e o homem, em sua defesa, relata que tudo não passa de devaneios decorrentes
do transtorno mental de Penny. Diante da dúvida sobre quem falava a verdade ou não, Athur Fleck
vai em busca dos dados da sua mãe, do período que ela esteve internada no Asilo de Arkham -
local destinado para os considerados criminalmente insanos - e descobre que Penny passou por
vários problemas mentais e que ele foi adotado por ela enquanto criança. Fatos que o fazem
relembrar da sua infância e da série de violências que sofreu de companheiros de sua mãe, mas
que nunca foram impedidas por ela. Nesse contexto, ainda encontramos Fleck como um
personagem com uma estranha relação com mulheres, principalmente, com a sua vizinha, pela
qual nutre uma paixão por Sophie, sua vizinha, mas que nunca conseguiu que, realmente,
acontecesse (MELLI, 2019).
Ao experienciar o filme, no mínimo, podemos perguntar: como esses comportamentos,
fatos, instituições, fracassos e dramas vividos por Arthur Fleck puderam contribuir para a explosão
violenta, transformando-lhe em Coringa? Como os padrões comportamentais, seletivamente, vão
escolhendo aqueles que se encontram como aptos para viver ou não? Quais são aqueles que
possuem possibilidade de serem enxergados pela sociedade ou não? Quais relações atravessam a

294
Levantar-se. Termo utilizado para designar apresentações de comediantes feitas em pé.
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constituição, percepção de formas adequadas de vida, que se propõem a ditar o que somos ou que
deveríamos ser? Há formas de lutar contra esse processo? Até que ponto poderíamos relacionar a
violência exercida por Coringa uma masculinidade doentia e de uma cidade que se tornou doentia?
Poderíamos afirmar a existência de uma crença na possibilidade de lutar contra padrões
tanto de pensamento como de comportamentos, que acabam caracterizando o que é bom ou mau.
Entretanto, a impossibilidade de nos livrarmos das relações de poder que constituem e atravessam
a configuração desses precedentes, é o que aponta Michel Foucault, em sua obra. Para ele, o poder,
em si, não se exibe. Ele não se constituiria apenas em determinados locais, sujeitos, instituições,
ou como algo que pode ser cedido por meio de atos como a confecção de contratos jurídicos ou
políticos. O poder se apresentaria enquanto relações de poder trazendo à baila a concepção de
força (FOUCAULT, 2009; 2014c). Nesse aspecto, Deleuze (2008 p. 112), apresenta que:

O poder é precisamente o elemento informal que passa entre as formas de saber, ou por
baixo delas. Por isso ele é dito microfísico. Ele é força, e relação de força, não forma. E
a concepção das relações de forças em Foucault, prolongando Nietzsche, é um dos pontos
mais importantes de seu pensamento.

Pelo apresentado anteriormente, podemos compreender que a ideia sobre o que é poder
estaria diretamente interligada a uma compreensão do que seria força. Deleuze (1991, p. 78)
também apresenta um conceito para “força”, ao conceber que ela se mostra que não pode ser
percebido isoladamente, visto que, possui como marca se encontrar em relação com outras forças.
Ao ponto que, ao falarmos de força, automaticamente, estaríamos discorrendo sobre relação, ou
seja, poder. Portanto, a força não teria caracteres como objeto ou sujeito diferentes de si própria.
As relações de poder se expõem nos dispositivos, que se apresentam como “um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas (FOUCAULT, 2000, p. 27). Além disso, atravessa os discursos,
que possuem efeitos de verdades e ditam formas de viver, pensar, ser. Desse modo, com a
possibilidade de agência nas práticas sociais, da ramificação e expressão em micropoderes, não
só participam direta e indiretamente da constituição dos sujeitos mas conduzem a sociedade por
meio do saber. (FOUCAUT, 2000; 2014a; 2014b). Mas será que essas relações de poder, os
dispositivos, os discursos se encontrariam da mesma forma em todos os cenários?
Gayatri Spivak faz uma crítica a Foucault e Deleuze visto que, para ela, eles se centraram
na concepção de um sujeito absoluto e único e das relações de poder de modo imparcial às
diferenças vividas em outras partes do mundo, já que considera que as perspectivas desses autores
se centraram na realidade da Europa. Por isso, ocultaram as multiplicidades de cenários, realidades
e vivências existentes fora desse território, tendo como consequência disso o desprestígio das
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dificuldades, dilemas e impasses da perspectivas contra-hegemônicas. Ponto que se torna crucial


para, a partir da representação, ela desenvolver o conceito de sujeito subalterno.

É impossível para os intelectuais franceses contemporâneos imaginar o tipo de Poder e


Desejo que habitaria o sujeito inominado do Outro da Europa. Não é apenas o fato de
que tudo o que leem ― crítico ou não ― esteja aprisionado no debate sobre a produção
desse Outro, apoiando ou criticando a constituição do Sujeito como sendo a Europa
(SPIVAK, 2014, p. 58).

Para a autora, os subalternos seriam aqueles das camadas mais baixas, determinadas e
configuradas pelas leis dos mercados e das formas de representação política e legal, além das
formas, das modalidades e das hipóteses de comporem o as camadas sociais dominantes. Eles são
silenciados a todo momento e, nesse processo, umas das formas de silenciamento seria a
representação (SPIVAK, 2010, p. 11-14). Por sua vez, não seria qualquer representação. Ela
recorre à Marx para apresentar duas modalidades: vertretung e darstellurg (SPIVAK, 2014, p.
52).
A primeira forma, “falar por”, seria a representação baseada na conduta de alguém ao
tentar representar um grupo. Nessa primeira modalidade, há uma inadequada concepção de
representação, pois aqueles que deveriam falar são cerceados dessa possibilidade por essa pessoa
ou instituição política elencada como representante, tendo como alicerces argumentos como: a
incapacidade de autorrepresentação diante de um suposto conhecimento e a detenção de uma
capacidade de representação, tal como o direcionamento feito a Thomas Wayne, quando ele faz
discursos ratificando a sua candidatura a prefeito de Gotham. Em outro âmbito, a segunda
modalidade de representação se trata da representação dramática, quase teatral, vinculada ao
âmbito estético e da encenação (SPIVAK, 2014, p. 52), estilo próximo ao exercido pelos palhaços
da agência na qual Arthur Fleck trabalha.
Entretanto, a alusão feita por Spivak ao tratar sobre a determinação de locais aos
subalternos, que preenchem determinados requisitos, de cor, gênero, condição social e, por isso,
possuem locais demarcados de modo ideológico, citando as mulheres pobres e negras, retoma a
postura de análise do processo de neutralização do “Outro” (SPIVAK, 2014, p. 110).
Inviabilizando, expropriando a sua capacidade de representação. Isso por meio de negociação de
sentidos, por meio de violências epistêmicas, de silenciamentos. Pontos que se evidenciam na
metamorfose de Athur Fleck para Coringa à medida que, imerso no caos, seu corpo se tornava
“abjeto” para o sistema.
A perspectiva de processos de abjeção, é desenvolvida em várias obras da autora Judith
Butler (2017; 2018). Em seu pensamento, a filósofa se encontra com o conceito de abjeção de
Julia Kristeva (1982) e enfatiza: “o abjeto para mim não se restringe de modo algum a sexo e
heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas ‘vidas’
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e cuja materialidade é entendida como ‘não importante” (PRINS; MEIJER, 2002, p. 161). Ou seja,
ela quebra possíveis barreiras de isolamento, contra campos bem traçados e delimitados para se
trabalhar discursos sobre gênero, sobre política, sobre arte, e destaca as relações de poder que
atravessam e constituem os processos de abjeção. Estas participam, inclusive, de desdobramentos
sociais, políticos e econômicos, que circundam a performatividade de gênero.
Mas o que seria isso performatividade de gênero nesse cenário? A performatividade de
gênero se mostra como uma perspectiva para pensar o gênero e o corpo, que considera que a
produção da identidade de gênero não se concebe no âmbito privado – já que isso depende, para
a sua concretização, da relação com o outro, ou seja, é necessária uma ratificação de práticas para
que alguém perceba. Apresenta a autora:

Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou substância


interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de ausências
significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio organizador da identidade
como causa. Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são
performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem
expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros
meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que
ele não tem status ontológico separado. (BUTLER, 2017, p. 196).

Por isso, a performatividade de gênero se encontra concomitantemente interligada com as


questões de âmbito público. Visto que, essa experiência, de composição do sujeito, que constitui
o gênero, não o constitui somente, ela, também, constitui qualquer identidade política, já que, toda
identidade política é constituída para ser vista e é experimentada em um determinado cenário de
aparição. De outro modo, de uma performatividade pública.
Nessas obras, o conceito sobre vulnerabilidade também é questionado e, para isso, Butler
expõe diversos contextos nos quais este conceito vai se ressignificando. Para isso, ela faz uma
associação entre vulnerabilidade, violência, poder e reconhecimento, e discute que a
vulnerabilidade pode ser um instrumento para problematizar a noção liberal moderna do sujeito
individualista e soberano para substitui-la por uma noção baseada na interdependência e na
responsabilidade (2018, p. 80); tal como propõe um questionamento sobre afirmações que podem
se tornar imutáveis e definidoras sobre vulnerabilidade, impulsionando ações paternalistas de
poder, como os que caracterizam a vulnerabilidade social das mulheres (2018, p. 121).
Entretanto, diante do abordado por Butler (2018), pensar em vulnerabilidade possui
conexão direta com pensar em formas de resistência. Visto que, elencar que existe uma disposição
as influências dos poderes instituídos nos mais diversos espaços e de formas diferentes não se
configura na defesa de que tais influências se autorrealizam. Mas, nesse cenário, existiria um
molde para exercer a resistência?
Diante do explanado, a resposta que ofereço é: não! Outras tantas formas poderiam ser
exercidas para ir em confronto a uma cidade caótica. Mas se torna bem mais fácil elencar que pode
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ocorrer possibilidades de alimentar o caos, quando todos os componentes são propícios para isso.
A metamorfose de um homem fracassado, esquecido pelo sistema, em um assassino em série,
ovacionado por uma cidade, demonstram que uma sociedade e uma cidade marcadas pelo
abandono, pela violência, pela decadência não só construíram um Coringa, como o tarjaram como
símbolo de luta contra o sistema e sintoma das doenças sociais. Já que foi pela violência, do
choque ao sistema, diante da transformação de Arthur Fleck para Coringa, que ocorreu a
notabilidade, que aconteceu a saída da insignificância, a saída da subalternidade e vulnerabilidade
para o apogeu em uma Gotham que, apesar de ter sido retratada em um passado, não se mostra
não tão distante de várias cidades ao redor do mundo, que também se mostram doentes.

3 COMENTÁRIOS FINAIS

A partir do momento que me propus a desenvolver esse estudo, relacionando o filme


Coringa (2019) com as obras que vêm acompanhando meus processos de reflexão, pude perceber
o quão as temáticas representadas no cinema, levando em consideração sua forma de linguagem e
produção, mesmo que alicerçadas pelo caráter ficcional, possibilitam uma ótica sobre a sociedade
na qual são produzidas. Mas enfatizo que esse estudo não se assentou em possíveis moldes
advindos dos sabes da área da comunicação, ao ponto de eu não possuir como foco pensar o filme
em si, estritamente, e, sim, as temáticas, conceitos percebidos por mim que atravessam a obra,
durante a minha experiência com o filme e com as histórias em quadrinhos.
"Ver e interpretar filmes implica, acima de tudo, perceber o significado que eles têm no
contexto social do qual participam" (DUARTE, p. 107, 2002). Essa foi uma das premissas iniciais
para o desenvolvimento desse estudo e, diante dele, pude me envolver nas discussões que
transitavam desde apontamentos sobre boa produção do filme, agressividade apresentada nele,
questionamentos sobre a sociedade, sobre conceitos que me encontro estudando em meio a
contextos de crises, econômicas, políticas, de instituições. Problematizações que me fizeram
questionar, inclusive, até que ponto fica claro quem são os vilões e os super-heróis das histórias.
Acredito que a escolha pela produção Coringa 2019 fez com que eu pudesse refletir e
propor a discussão sobre como é instável a categorização polarizada de categorias. Para esse
esteio, acredito que trazer à baila autores como Foucault, Deleuze, Lauretis, Spivak e Butler foram
interessantes não para delimitar ou criticar esses autores, mas para apresentar aproximações e
distanciamentos que, mesmo assim, alocam-se na tentativa de colocar os sujeitos, os cenários, os
discursos e dispositivos em foco. Tentando, desse modo, colocar em voga a multiplicidade e a
diferença, quesitos que se mostram não só como contribuições do estudo, como limitações, já que
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se mostra bastante complexo trazer em um artigo discussões tão amplas, mas, também, como
possibilidades para, em outras oportunidades, desenvolver reflexões sobre eles.
Diante disso, aspectos servem como alertas, sintomas e denúncias. Isto, pois, a ascensão
da figura do Coringa, na minha compreensão do filme apontado, foi despertada em meio ao caos.
Além disso, fez um sujeito se encontrar no que é considerado como irracional: na violência
extrema, na ultrapassagem de limites, na fuga de padrões, pode se encontrar de modo mais comum
do que em telas de cinema. Ao ponto de verificarmos até que medida a desistência de se adequar
a normas de uma sociedade que nunca o viu enquanto alguém que merecia respeito, dignidade,
uma vida e só passa a enxergá-lo quando ele começa a atacar a tudo e a todos que contribuíram
para o seu sofrimento.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa
de assembleia. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. E-book (219 p.).

______________. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 15. ed. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

CARVALHO, Breno. Batman: a jornada de 80 anos do cavaleiro de Gotham. In: Algomais: a


revista de Pernambuco, 26 set. 2019. Disponível em:
<http://revista.algomais.com/colunistas/breno-carvalho/batman-jornada-de-80-anos-do-
cavaleiro-de-gotham>. Acesso em: 18 dez. 2019.

DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1991.

_______________. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2008.

DUARTE, Rosália. Cinema e educação: refletindo sobre cinema e educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002. p. 126.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

___________. A ordem do discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24. ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2014a.

___________. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução: Maria Thereza da


Costa Albuquerque. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014b.

___________. Sobre a história da Sexualidade. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal,
2000. p. 243-277.

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. In: HOLANDA, Heloisa Buarque de


(Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
p. 206-242.
Página 1367 de 2230

PRINS, BAUKJE; MEIJER, IRENE COSTERA. Como os corpos se tornam matéria: entrevista
com Judith Butler. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 155-
167, jan. 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2002000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 28 dez. 2019.

QUINTAS, Francisco. Descubra a origem misteriosa do Coringa, o Rei Palhaço do Crime. In:
Aficcionados, 15 jan. 2017. Disponível em: <https://www.aficionados.com.br/origem-coringa/>.
Acesso: 29 out. 2019.

RAMA, Maria Angela Gomez. A representação do espaço nas histórias em quadrinhos do


gênero super-heróis: a metrópole nas aventuras de Batman. 2006. Dissertação (Mestrado em
Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2006. doi:10.11606/D.8.2006.tde-17072007-112019. Disponível em:
<https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-17072007-112019/pt-br.php>. Acesso
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RIBEIRO, Antônio Luiz. Coringa. In: Guia dos Quadrinhos, 05 mar. 2007. Disponível em:
<http://www.guiadosquadrinhos.com/personagem/coringa-/196>. Acesso: 29 out. 2019.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2014.
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RESUMOS ACADÊMICOS EM ENGENHARIA: COMO ESCREVEM OS


PESQUISADORES

ABSTRACTS IN ENGINEERING: HOW RESEARCHERS WRITE

Lucas Rafael Vasconcelos Silva


Acadêmico do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia
UFMA/ PIBIC-UFMA/CNPq
José Gabriel Sampaio Campos
Acadêmico do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia
UFMA/PIBIC-UFMA/FAPEMA
Valéria Angélica Ribeiro Arauz
Doutora. Professora Adjunta do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia
CCCT-UFMA/ CNPq/ FAPEMA

Eixo temático 2 – Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Os artigos científicos são a principal maneira de produzir, divulgar e pesquisar em meios
acadêmicos. Como forma de apresentação prévia do conteúdo, principalmente em bases de
pesquisa, os pesquisadores encontram no resumo o conhecimento necessário para decidir se o
texto completo poderá corresponder às suas necessidades; por isso é tão importante a produção de
um resumo acadêmico de qualidade. Tendo em vista esses aspectos, este trabalho investiga o que
a teoria dos Gêneros Textuais diz acerca da produção de resumos em artigos acadêmicos e
relaciona os padrões observados na literatura com a análise feita em uma amostra de vinte resumos
obtidos em revistas de classificação Qualis B1(on-line) na área de Engenharias I (Capes),
nomeadamente de engenharia civil e engenharia ambiental, tendo como base os movimentos
retóricos segundo Swales (1981, 1990, 2004), Santos (1995) e Motta-Roth (2008). Como
resultado, os artigos de engenharia civil apresentaram 72% de movimentos presentes nos textos,
cuja única discrepância ocorreu nos movimentos 4 e 5, o que indica a deficiência de apresentação
de um resultado e discussão/conclusão mais explícitos nos resumos. Nos resumos da engenharia
ambiental, os movimentos foram bem distribuídos em 84% dos textos, com exceção do
movimento 1; porém, neste caso, a estrutura presente nos resumos contém informações suficientes
para que o leitor decida se a leitura do trabalho inteiro se faz pertinente. Como demonstram os
resultados, a maioria dos resumos de artigos publicados em revistas obedeceram às normas
estabelecidas quanto à estrutura, porém foram insuficientes quando analisados sob ótica teórica,
por não demonstrarem conhecimento das estratégias relacionadas aos movimentos retóricos
conforme proposto pelos autores citados.
Palavras-chave: Resumo acadêmico. Movimentos retóricos. Engenharia Civil. Engenharia
Ambiental.

Absctract: Scientific articles are the main way of producing, disseminating and researching in
academic circles. As a form of prior presentation of the content, mainly in research bases,
researchers find in the abstract the necessary knowledge to decide if the full text may correspond
to their needs; that is why the production of a quality academic abstract is so important. In view
of these aspects, this work investigates what Genre theory says about the production of abstracts
in academic articles and relates the patterns observed in the literature with the analysis made in a
sample of twenty abstracts obtained in classification journals Qualis B1 (on-line) in the area of
Engineering I (Capes), namely civil engineering and environmental engineering. The study based
on the rhetorical movements according to Swales (1981, 1990, 2004), Santos (1995) and Motta-
Roth (2008). As a result, the civil engineering articles presented 72% of movements present in the
texts, whose only discrepancy occurred in movement 4 and 5, which indicates the deficiency
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presentation of results and a more explicit discussion/conclusion of the abstracts. In the


environmental engineering abstracts, the movements were well distributed in 84% of the texts,
with the exception of movement 1; however, in this case, the structure present in the abstracts
contains enough information for the reader to decide if the reading of the entire work is relevant.
As the results show, most of the abstracts of articles published in journals obeyed the established
norms regarding structure, but they were insufficient when analysed from a theoretical standpoint,
because they did not demonstrate knowledge of the strategies related to rhetorical movements as
proposed by the cited authors.
Keywords: Abstract. Rhetorical Movements. Civil Engineering. Environmental Engineering.

1 INTRODUÇÃO

A escrita surgiu como uma forma organizar, guardar dados, contar coisas, e firmar acordos
entre pessoas que antes só utilizavam meios orais para veicular tais informações. Esses registros
palpáveis possibilitaram um armazenamento das informações referentes às atividades antrópicas,
permitindo que as histórias e conquistas não se perdessem no tempo nem sofressem deturpações,
mesmo que inconscientes. Para documentar toda e qualquer informação, se faz necessário que o
autor domine várias formas de expressar suas ideias, concepções, conclusões sobre o que está
sendo produzido para que os objetivos do texto sejam alcançados, resultando, no caso da
informação científica, em uma forma de compreensão da realidade e dos fenômenos que a
envolvem.
Com o desenvolvimento da ciência, a maneira como os pesquisadores passaram a trocar
informações também ganhou um maior suporte por meio da escrita. Desde o século XVII, quando
surgiram as primeiras revistas científicas, os cientistas passaram a adotar uma maneira cada vez
mais padronizada de apresentar suas descobertas à comunidade295 científica e à sociedade
(SWALES, 1990). Assim, o conhecimento construído e estabelecido desde então passou a se
preservar de maneira sistematizada por meio dessas publicações, principalmente os artigos
científicos e as monografias, dissertações e teses.
Dentre esses gêneros mais recorrentes no campo da ciência, os primeiros são os mais usuais
e que apresentam um maior impacto na vida da comunidade científica, por causa da sua atualidade
e da facilidade de circulação das informações. No entanto, como parte dos Artigos Científicos, os
resumos ganharam maior destaque por causa de sua capacidade de circular como um gênero
independente. Neste caso específico, o que ocorre é a difusão ampla e gratuita dos resumos dos

295
John Swales (1990) compreende o discurso como parte indissociável de uma ação retórica, a qual depende das
formas de interação de uma comunidade, denominada por ele Comunidade Discursiva. Esta é descrita por ele segundo
as características listadas a seguir: a) metas comuns; b) mecanismos participativos; c) trocas de informações; d)
estilos/gêneros específicos; e) terminologias especializadas; e f) níveis de especialização. A comunidade de
pesquisadores, aqui designada como “comunidade científica” ou “comunidade acadêmica” corresponde a uma
comunidade discursiva.
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trabalhos (abstract) em plataformas de busca e bases de pesquisa acadêmica, e por meio desses, é
possível selecionar e acessar o material integral do Artigo.
O estudo dos resumos, portanto, adquire relevância por um duplo aspecto: para que os
cientistas obtenham êxito em suas pesquisas é necessário que eles possuam um senso crítico,
primariamente, sobre outros textos científicos produzidos, para determinar o que será capaz de
contribuir, ou não para o seu próprio trabalho, e consequentemente auxiliar mesmo que
indiretamente na produção de ciência como base para iniciação de testes das hipóteses
(estabelecimento de bases teóricas). Para isso é preciso que eles tenham acesso a um número
extenso de resumos, dentre os quais poderão selecionar os trabalhos de acordo com a sua
relevância para o tema pesquisado. Por outro lado, os pesquisadores precisam escrever bons
resumos de seus artigos e trabalhos científicos para que possam alcançar um maior número de
leitores qualificados e cujo interesse venha a ser motivado para o acesso à integra dos textos e o
início de um diálogo cooperativo na produção científica. Assim, diante da necessidade de quem
está lendo o texto acadêmico, é imprescindível que o Resumo tenha uma ideia sucinta sobre o
assunto, porém com objetividade, clareza e que apresente resultados fiéis àqueles obtidos ao final
do experimento, respeitando uma estrutura válida.
Na análise de textos do gênero Resumo de Artigos Científicos, são utilizados termos comuns
em cada área, que têm papel fundamental para a compreensão de atividades relacionadas, que
prosseguirão até a vida profissional do indivíduo e o auxiliarão na comunicação entre os
profissionais de áreas análogas. O principal motivo da análise de gêneros de resumo, portanto, é
o fato de que, quando o pesquisador/estudante procura artigos para se orientar na hora de iniciar
os trabalhos acadêmicos e se depara com o texto que de certa forma apresenta/divulga o artigo
final. Assim, para que o uso do gênero resumo seja eficaz, o texto deve possuir critérios que, se
bem executados, o tornarão válido e de certa forma serão reduzidas as dúvidas sobre o assunto e
levarão o leitor a adquirir o texto acadêmico na íntegra.
Para analisar as produções acadêmicas foi necessário estabelecer critérios e métodos. No
caso, foi adotada a abordagem de observação dos movimentos retóricos próprios do gênero
Resumo, conforme estabelecido por Swales (1990; 2009), Santos (1995) e Motta-Roth e Hedges
(1996). Esses trabalhos, fundantes na área de estudos dos Gêneros Acadêmicos, ainda são
relevantes porque contêm as bases para a escrita de resumos, preservadas até hoje como
convenção. Além disso, possuem os principais conceitos, explorados e expandidos em pesquisas
nos anos posteriores.
Assim, os resumos em artigos acadêmicos são essenciais para a compreensão e interesse
prévio acerca da íntegra de cada trabalho, pois aborda brevemente os objetivos e as possíveis
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soluções e conclusões obtidas nas pesquisas. Conforme Bhatia (1993, p. 78), seus elementos
principais devem responder às seguintes perguntas:
1. O que o autor fez?
2. Como o autor fez?
3. O que o autor encontrou?
4. O que o autor concluiu?

Trata-se, portanto, de um gênero textual cuja produção deve seguir normas, assim como
ocorre em toda a escrita científica. No entanto, nem sempre isso acontece, o que leva à questão a
respeito de como os pesquisadores e acadêmicos dessa área elaboram seus resumos, em
comparação às convenções estabelecidas para o gênero. Parte-se da hipótese de que, na
engenharia, há problemas na hora da construção do resumo em um artigo, pois o autor muitas
vezes ignora as etapas a serem seguidas na composição. Isso ocorreria pelo simples fato de não
ser uma produção textual muito abordada durante sua formação, o que levaria a dificuldades na
pesquisa e colaboraria para um menor sucesso no meio científico na produção de material
relevante em termos de conhecimento e inovação tecnológica
O objetivo deste trabalho é, portanto, investigar, de acordo com a teoria, a elaboração de
Resumos Acadêmicos na área de Engenharias I, de modo a perceber possíveis padrões de escrita
dos engenheiros e acadêmicos na divulgação de suas pesquisas. Tem como objetivos específicos:
a) Observar a clareza dos periódicos quanto às exigências de padronização dos Resumos
Acadêmicos; b) Verificar a presença dos movimentos retóricos nos resumos; c) Quantificar a
presença dos movimentos teóricos, de modo a evidenciar o grau de conhecimento dos autores
quanto a sua necessidade; d) Explicitar as estruturas linguísticas recorrentes para a realização dos
Movimentos Retóricos.
Para tanto, foi procedida uma análise quantitativa e qualitativa de 20 resumos de artigos
publicados em periódicos on-line que possuem classificação Qualis B1, todos correspondentes à
área de conhecimento Engenharias 1 (Engenharia Civil, Engenharia Sanitária, Engenharia de
Transportes) conforme classificação da CAPES (2017). Os periódicos consultados são: Revista
Ibracon, Revista Ambiente Construído, Escola de Minas, Revista Árvore, Revista Engenharia
Ambiental e Sanitária e Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental. O trabalho teve
como estratégia confrontar a disposição da estrutura dos resumos com os modelos propostos pelos
principais estudos acerca da estrutura dos Resumos Acadêmicos (Abstracts) para observar
tendências na escrita desses pesquisadores, de modo a nortear futuros trabalhos que possam
assumir uma função prescritiva ou didática para aperfeiçoar a escrita de autores.
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2 GÊNEROS TEXTUAIS

Os gêneros textuais surgiram a partir do momento em que os seres humanos sentiram a


necessidade de se comunicar, e por meio deles podemos adequar o nosso tipo de discurso a uma
determinada situação, seja ela oral ou escrita. Para Swales, “os gêneros discursivos são veículos
de comunicação para atingir um objetivo” (1990, p.46). Contar os tipos de gêneros textuais
existentes é uma tarefa árdua já que, além de estarem em constante mudança, sempre surgirão
novos tipos de gêneros aliados à trajetória cultural de uma sociedade.
Confusões acerca da distinção entre texto, gênero e discurso em sua plenitude ocorrem pelo
fato das palavras estarem próximas no domínio da linguagem e em processos comunicativos, pois
suas definições se complementam, visto que até nas unidades mais básicas de texto, mesmo de
uma simples interjeição, (Pare!) seja de uma frase ou fala de personagem, dotadas de um contexto,
consegue cumprir a finalidade enunciativa, a partir de que a situação parte de uma comunicação
entre os interlocutores (ARANHA, 2004).
Segundo Mikhail Bakhtin (2003), a comunicação ocorre por meio de diálogos e é
intertextual, ou seja, o interlocutor nunca está só, pois sempre tem que haver outro individuo para
ocorrer interação. Para ele, nenhum discurso é original, pois nasce das interações prévias. Por
outro lado, os gêneros sempre estariam em mutação, uma vez que as necessidades dos usuários
provocariam novos usos e a criação de novas estruturas.
Bakhtin, que primeiro elaborou essa noção de gêneros textuais ainda no início do século
XX, estabeleceu que os gêneros precisam ser considerados em sua estrutura, composição e estilo
(BAKTHIN, 2003). Ele afirmava que os gêneros dos discursos são infinitos e nunca acabarão,
pois, em cada área da vida, um dado gênero do discurso sempre estará em desenvolvimento
produzindo conteúdo. O estudioso também elaborou uma classificação para os gêneros de discurso
dividindo em dois tipos: gêneros discursivos primários e os gêneros discursivos secundários.
Os gêneros discursivos primários correspondem àqueles que são mais simples e utilizados
no cotidiano, são produzidos dentro de grupos de atividades humanas como um diálogo informal
do dia-a-dia, bilhetes ou até mesmo uma carta. Já os gêneros discursivos secundários são mais
elaborados e formais, são geralmente produzidos na escrita da língua e comumente presente em
ambientes que exijam alguma formalidade, como o meio científico, por exemplo. Os gêneros
secundários são construídos a partir da combinação de gêneros primários em novos contextos. Em
suma, são eles o romance, conferências acadêmicas, dramas, relatórios de pesquisas cientificas,
entre outros (BAKHTIN, 2003).
Analisando o percurso histórico da comunicação humana, as pinturas rupestres foram uma
das primeiras formas que o homem encontrou para transmitir o que pensava, logo após o jornal, a
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carta e assim por diante. Hoje vivenciamos a era da tecnologia, quando as redes sociais podem ser
caracterizadas como suportes para novos gêneros textuais, podemos notar até uma regressão
textual visto que voltamos as nos comunicar “por figurinhas”. Esta análise nos permite perceber
que o conceito de gênero textual é de tal complexidade que muitos pesquisadores mostram visões
diferentes acerca do assunto como para Bazerman, que afirma: “os gêneros não são apenas formas.
Gêneros são formas de vida, jeito de ser. Eles são molduras da ação social.” (1997, p.59).
Porém, como o principal objetivo deste trabalho é análise de resumos de artigos acadêmicos,
iremos nos aprofundar na análise sociorretórica do estudo de gêneros conforme proposto por
Swales (1990; 2004):
Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos membros
compartilham um certo conjunto de propósitos comunicativos. Esses propósitos são
reconhecidos pelos membros especializados da comunidade discursiva original e desse
modo passam a constituir a razão subjacente ao gênero. A razão subjacente delineia a
estrutura esquemática do discurso e influencia e restringe as escolhas de conteúdo e
estilo. O propósito comunicativo é um critério privilegiado que opera no sentido de
manter o escopo do gênero, conforme concebido aqui, estreitamente ligado a uma ação
retórica comparável (SWALES, 1990, p. 58).

O autor afirma com isso, então, que o propósito comunicativo é de suma importância para a
identificação do gênero, pois é através dele que utilizaremos a linguagem verbal nas situações
denominadas por ele de “eventos comunicativos” (SWALES, 1990).
Trazendo esta explicação para os textos acadêmicos, notamos que cada um desses se
diferencia pelo uso de estruturas e termos – científicos ou técnicos – específicos de uma dada
agremiação, na qual os autores tentam se inserir ao aceitar o propósito comunicativo já aprovado
anteriormente pelos membros mais experientes desta comunidade. Porém Swales (2004), com o
avanço de seus estudos, notou que o proposito comunicativo exclusivamente determinado não é
tão eficaz na identificação do gênero apresentando então o procedimento textual e o procedimento
contextual.
No procedimento textual, deve-se analisar a estrutura, conteúdo e estilo, no que abrange os
aspectos textuais e linguísticos, além do proposito comunicativo e então assim chegar à definição
de gênero. Após este estudo, o autor orienta que se avalie o contexto no qual o gênero está posto,
para confirmar ou redefinir o proposito comunicativo.
No procedimento contextual, o reconhecimento do gênero se inicia por meio do contexto,
ou seja, identifica-se primeiramente a comunidade discursiva no que tange seus valores, objetivos,
condições materiais, ritmos de trabalho, expectativas, repertórios de gêneros e normas
comportamento. Após o gênero ser identificado de acordo com a comunidade discursiva, é
redefinido o propósito comunicativo, fazendo a identificação de suas características.
Bonini (2004) apresenta nova definição de gênero, propondo a ideia de que o gênero tenha
um propósito previamente concebido na comunidade discursiva. Assim, “[o] gênero demarca,
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mediante proposito e forma convencionada em uma comunidade discursiva, uma unidade textual
que pode se constituir de uma ou várias ações enunciativas” (BONINI, 2004, p.06). Esse conceito
aproxima o gênero ao texto, uma vez que, para o autor, o discurso concebe uma atividade
discursiva, constituída de texto com finalidade, contexto e interlocutores.
Todas essas percepções acerca dos gêneros textuais mostram que, além de manifestações
textuais escritas, os resumos precisam ser considerados também de acordo com o seu propósito
comunicativo e a partir da aceitação da comunidade que os utiliza. Escrever um resumo, portanto,
é uma atividade discursiva que pressupõe o uso adequado do gênero, segundo sua composição,
estrutura e estilo, para atender a um propósito estabelecido pela comunidade acadêmica: o de
veicular amplamente as informações de um artigo.

3 O GÊNERO RESUMO E SEUS MOVIMENTOS RETÓRICOS

Como já explanado, para Bakhtin (2003), a língua é o meio de transmissão de todas as


práticas realizadas pelo homem. No meio acadêmico não seria diferente e, apesar de
constantemente surgirem novos gêneros textuais, os artigos acadêmicos são os principais veículos
de divulgação de pesquisas e ideias elaboradas por cientistas. Segundo Swales (1990) e Aranha
(1996; 2004), a elaboração de artigos surge a partir da necessidade de pesquisadores difundirem
suas teses buscando reconhecimento dentro da comunidade acadêmica na qual estejam inseridos
ou naquela em que buscam entrar.
A produção de um artigo, porém, depende de um certo conhecimento, não somente a
respeito do objeto de pesquisa, mas acerca do gênero textual que abrange a escrita cientifica e
também da comunidade discursiva na qual o autor está inserido, já que as comunidades científicas
apresentam termos próprios que podem dificultar a leitura para um leigo em dado assunto por
exemplo.
Como afirma Swales (1990), os indivíduos podem pertencer a várias comunidades
discursivas variando somente os gêneros compartilhados, e isto significa que cada autor precisa
conhecer os acordos linguísticos de todas as comunidades discursivas de que faz parte, para que
possa transitar por elas com desenvoltura e, em alguns casos mais restritos, como na comunidade
acadêmica, possa ser incluído como um de seus membros.
De acordo com Aranha (1996), o discurso acadêmico é sobredeterminado pelo fator social
e cada pesquisador quer seu trabalho reconhecido. Assim, a porta de entrada de um artigo
científico é o resumo; e, para Bhatia (1993), o abstract deve dar ao leitor uma ideia exata e concisa
do artigo completo. O resumo acadêmico deve então ser elaborado minuciosamente a fim de se
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retratarem todas as principais partes da obra completa de uma forma pretensamente transparente,
facilitando a leitura e então captando a atenção do leitor.
Para Nida (1992), o abstract deve apresentar, além da discussão gerada pelo o artigo, os
principais pontos de relevância do assunto discutido facilitando a vida do leitor a decidir se o
artigo interessa ou não.
Assim, pode-se definir “resumo” de duas maneiras. A primeira, de forma geral, define o
processo de sumarização de conteúdo, com a função de expor fatos, assuntos, acontecimentos, de
maneira abreviada, contudo sem perder os principais pontos e fatos para que não haja tamanha
discrepância do texto original, tudo isso de forma sintética evidenciado as informações cruciais e
principalmente devem conter os resultados e/ou conclusão de tal acontecimento. O resumo
obrigatoriamente deve-se manter inalterável em questão de sentido e resultados, contudo não deve
conter transcrições do texto original e responder perguntas de maneira implícita que auxiliam a
organizar os fatos deixando o texto fluido (SANTOS,1995). Já o resumo acadêmico (abstract, em
inglês) é um gênero textual próprio do ambiente acadêmico, que assume as características do
processo de resumir, mas também adota uma estrutura própria, convencionada pelos seus usuários
e normatizada por algumas instituições responsáveis pela circulação dos textos acadêmicos.
É interessante notar a evolução dos estudos linguísticos no que se refere à produção do
gênero resumo/abstract. Em 1981, Swales apresentou, a partir do estudo de introduções de artigos
científicos, seu primeiro modelo, conhecido como CARS: Creating A Research Space296 (Criando
um espaço de pesquisa), no qual esquematizava movimentos que poderiam ser usados pelo autor
do artigo para, a partir da apresentação da pesquisa na introdução, estruturar a produção do seu
resumo. Este foi o marco inicial que incentivou diversas pesquisas nessa área e aperfeiçoou o
modelo CARS, a partir do qual cada pesquisador buscou aprimorar os resumos de acordo com as
análises feitas em diferentes áreas de estudos.
Um exemplo claro acerca disso foi o modelo apresentado por Santos (1995), no qual, a
partir do CARS, foram esquematizados submovimentos que constituíam os movimentos originais
e davam uma espécie de direção para elaboração de cada um. A seguir, na Tabela 1 está
demonstrado o modelo proposto por Santos (1995) a partir da análise de 94 resumos de artigos:
Tabela 1: Os cinco movimentos segundo Santos
F
Movimento 1 Situando a pesquisa
Sub-mov. 1 - apresentando conhecimento corrente
Sub-mov. 2 - citandos pesquisas prévias
Sub-mov. 3 - estendendo pesquisas prévias
Sub-mov. 4 - apresentando um problema

296
O modelo CARS foi concebido a partir da observação da estrutura das Introduções dos artigos científicos, as quais
eram a parte do texto em que se apresentava a pesquisa, seus objetivos, método e síntese dos resultados. Em seguida,
essa estrutura foi aplicada à elaboração e análise de resumos.
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Movimento 2 apresentando a metodologia


Sub-mov. 1 - indicando características principais
Sub-mov. 2 - indicando o objetivo principal
Sub-mov. 3 - levantando hipóteses

Movimento 3 descrevendo a metodologia

Movimento 4 sumarizando os resultados

Movimento 5 discutindo a pesquisa


Sub-mov. 1 - elaborando conclusões
Sub-mov. 2 - fazendo recomendações

Fonte: Santos, 1995, p.40.

O modelo de Santos foi tão bem aceito na comunidade acadêmica que também foi objeto de
estudo para outros pesquisadores como Motta-Roth e Hedges (1996), que, a partir da análise de
resumos em inglês e português, utilizando o segundo modelo de Swales (1990) aliado ao modelo
proposto por Santos (1995), reelaboraram o modelo CARS para resumo de artigos de pesquisa
conforme apresentado na Tabela 2:
Tabela 2: Modelo Reelaborado por Motta-Roth e Hedges

Movimento 1
Sub-função 1A - Estabelecer interesse profissional no tópico
Sub-função 1B - Fazer generalizações no tópico
Sub-função 2A - Citar pesquisas prévias
Sub-função 2B - Estender pesquisas prévias
Sub-função 2C - Contra argumentar pesquisas prévias
Sub-função 2D - Indicar lacunas em pesquisas prévias

Movimento 2 apresentar a pesquisa


Sub-função 1A - Indicar as principais características e/ ou
Sub-função 1B - Apresentar os principais objetivos e/ ou
Sub-função 2 - Levantar hipóteses

Movimento 3 descrever a metodologia

Movimento 4 sumarizar os resultados

Movimento 5 Discutir a pesquisa


Sub-função 1 - Elaborar conclusões

Fonte: Motta-Roth e Hedges, 1996, p.59.

Por meio das análises das tabelas, nota-se que cada autor se preocupou em produzir uma
estrutura de resumo ideal, a partir de suas análises e de pesquisas anteriores, aprimorando e
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facilitando cada vez mais a forma de se produzir um resumo de qualidade. Contudo, o que se
percebe na prática é que, fora da idealização dos modelos, esta parte do artigo é aquela que parece
receber menos atenção em empenho dos autores. Vale ressaltar que o resumo é a peça chave
responsável pela divulgação de um artigo, por exemplo, pois é com base nele que se julga a real
necessidade de adquirir a obra completa.
Neste trabalho, optamos por considerar o modelo de Motta-Roth e Hedges como parâmetro
para análise, por ser mais completo e apresentar mais possibilidades de execução dos movimentos
retóricos. Os textos analisados se encontram designados pela letra “A”, de “abstract” seguida pelo
numeral correspondente à posição do resumo na análise.
4 O GÊNERO RESUMO EM ARTIGOS DE ENGENHARIA

Dentro do ambiente discursivo das engenharias, os resumos nos artigos sempre se


mostraram uniformes, demonstrando como se obtiveram os dados que possivelmente seriam úteis
ao leitor e a relevância desses dados para a sua comunidade. Como elementos mais recorrentes,
fica notória a presença de elementos mais técnicos como porcentagens e/ou valores exatos de
medida, por exemplo, ao se tratar da metodologia. No entanto, a ausência de alguns movimentos,
mesmo sem comprometer a clareza do texto, denota a menor importância dada a elementos que
poderiam enriquecer a busca pelos artigos, como a motivação e a contextualização da pesquisa.

4.1 As normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas

No Brasil, os textos acadêmicos são normatizados pela Associação Brasileira de Normas


Técnicas - ABNT. O principal intuito da ABNT é padronizar requisitos e condições para a
elaboração, circulação de textos, com finalidade de informar priorizando os argumentos relevantes
e que o gênero possa emitir ao leitor o objeto de estudo de forma sucinta e que apresente
conclusões ao final do texto. Para padronizar os resumos, foi escrita a NBR 6028/2003, que
“estabelece os requisitos para redação e apresentação de resumos (ABNT, 2003, p.1):
Para a ABNT, com base no conteúdo e o que deseja informar ao leitor, existem três formas
de produzir resumos:

2.3 resumo crítico: Resumo redigido por especialistas com análise crítica de um
documento. Também chamado de resenha. Quando analisa apenas uma determinada
edição entre várias, denomina-se recensão.
2.5 resumo indicativo: Indica apenas os pontos principais do documento, não
apresentando dados qualitativos, quantitativos etc. De modo geral, não dispensa a
consulta ao original.
2.6 resumo informativo: Informa ao leitor finalidades, metodologia, resultados e
conclusões do documento, de tal forma que este possa, inclusive, dispensar a consulta ao
original (ABNT, 2003 p.1).
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Segundo essa distinção prevista pela norma, para ser redigido o resumo crítico, o autor deve
ter um conhecimento prévio e incisivo sobre o assunto para que possa debater e analisar o
documento de forma consistente; para a escrita do resumo indicativo, o autor faz uma análise
prévia, selecionando os principais argumentos do texto original sem apresentar algum dado ou
conclusão sobre o assunto abordado; e, no resumo informativo, é apresentada toda a estrutura
básica do texto original de forma sucinta dispensando a consulta do trabalho completo, mas
conduzindo o leitor até o texto original. Observe-se, ainda que, embora a norma aponte somente
três tipos de resumo, há um provável erro de digitação que salta aquele que seria o item 2.4.
Neste trabalho, observamos que o tipo de resumo que usualmente acompanha os artigos e
serve como referência nas plataformas de busca é o resumo informativo, ou seja, apesar de conter
as informações gerais sobre o texto original, ele é bastante sucinto em descrevê-las e não dispensa
a consulta ao original, mas conduz o leitor até ele.
A NBR 6028/2003 também detalha a forma de apresentação do resumo quanto à sua
estrutura e ao seu conteúdo:
Os resumos devem ser apresentados conforme 3.1 a 3.3.
3.1 O resumo deve ressaltar o objetivo, o método, os resultados e as conclusões do
documento. A ordem e a extensão destes itens dependem do tipo de resumo (informativo
ou indicativo) e do tratamento que cada item recebe no documento original.
3.2 O resumo deve ser precedido da referência do documento, com exceção do resumo
inserido no próprio documento.
3.3 O resumo deve ser composto de uma sequência de frases concisas, afirmativas e não
de enumeração de tópicos. Recomenda-se o uso de parágrafo único.
3.3.1 A primeira frase deve ser significativa, explicando o tema principal do documento.
A seguir, deve-se indicar a informação sobre a categoria do tratamento (memória, estudo
de caso, análise da situação etc.).
3.3.2 Deve-se usar o verbo na voz ativa e na terceira pessoa do singular.
3.3.3 As palavras-chave devem figurar logo abaixo do resumo, antecedidas da expressão
Palavras-chave: separadas entre si por ponto e finalizadas também por ponto.
3.3.4 Devem-se evitar: a) símbolos e contrações que não sejam de uso corrente; b)
fórmulas, equações, diagramas etc., que não sejam absolutamente necessários; quando
seu emprego for imprescindível, defini-los na primeira vez que aparecerem.
3.3.5 Quanto a sua extensão os resumos devem ter:
a) de 150 a 500 palavras os de trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e outros) e
relatórios técnico-científicos;
b) de 100 a 250 palavras os de artigos de periódicos;
c) de 50 a 100 palavras os destinados a indicações breves. Os resumos críticos, por suas
características especiais, não estão sujeitos a limite de palavras (ABNT, 2003, p.2)

Note-se que há a preocupação de sistematizar e prescrever a escrita dos resumos em detalhes,


inclusive quanto ao uso de parágrafo único, tempos verbais aceitáveis e até quanto ao número de
palavras de acordo com o tipo de documento a que o resumo acompanhará.
No entanto, apesar de existir essa norma geral que norteia o trabalho dos pesquisadores
brasileiros, é comum que cada meio técnico-científico de publicação possua um estilo ou modelo
da estrutura para o artigo a ser publicado, tomando como base as NBR ou outras normas
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estrangeiras, devendo ser categoricamente seguido para adequar-se às normas editoriais de cada
periódico. Seguem algumas orientações fornecidas por revistas brasileiras da área de engenharia.

4.2 Resumos segundo a Revista Ambiente Construído

A revista Ambiente Construído é uma publicação voltada para a área do conhecimento


denominada Tecnologia do Ambiente Construído, que abrange concepção, projeto, produção
operação, manutenção, demolição reciclagem ou reutilização de edificações. O conselho editorial
desta publicação determina que o resumo seja escrito da seguinte maneira:
O resumo deve apresentar clara e sucintamente o contexto, o problema de pesquisa,
objetivo, uma descrição sucinta do método, e resultados alcançados, caracterizando a
contribuição para o conhecimento científico. Palavras-chave: termos que identifiquem os
principais assuntos tratado no artigo, sendo no mínimo três e no máximo cinco separados
por ponto.
[...]
Texto em português entre 100 a 200 palavras, em bloco único. Os títulos, resumos e
palavras-chave tanto em português quanto em inglês devem ficar em apenas uma página
(AMBIENTE CONSTUÍDO, [20??], p. 1).

As indicações desta publicação quanto ao resumo são bastante próximas daquelas


apresentadas pela ABNT. Há o detalhamento quanto ao número aceitável de palavras e a
observação quanto aos idiomas em que deve figurar o texto.

4.3 Resumos segundo a Revista Escola de Minas

A Revista Escola de Minas é uma revista técnica voltada para as áreas de mineração e
metalurgia e especializada na publicação de artigos referentes às engenharias Civil, Geológica,
Metalúrgica e de Materiais, Mecânica e Energia e Mineração. Ela refere o seguinte a respeito da
escrita dos resumos:
Resumo em inglês. Cada artigo deve ser precedido por um resumo, apresentando os fatos
contidos no artigo, palavras-chave, fatos importantes fatos e conclusões. Esse resumo
deve ter, cerca de, 150 a 250 palavras, e não deve conter referências, figuras ou tabelas
(REVISTA ESCOLA DE MINAS, [20??], online).

A revista aconselha uma estrutura básica para a produção de resumos, com informações
escassas e sem diferenciações previstas pela NBR 6028/2003. Observa-se, ainda, a preferência do
texto do resumo escrito em língua inglesa.

4.4 Resumos segundo a Revista IBRACON


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A Revista IBRACON, atualmente subdividida em duas publicações (Estruturas e Materiais),


tem intenção de divulgar os desenvolvimentos e progressos nas áreas de estruturas e materiais de
concreto, materiais cimentícios, estruturas mistas, concreto estrutural, em geral, campos cruciais
na construção civil. Ela apresenta as seguintes recomendações para envio dos resumos:
Texto com no máximo 10 linhas ou 300 palavras que deve ser redigido em português ou
espanhol. O resumo deve fornecer ao leitor uma ideia clara sobre o assunto tratado no
artigo e sobre a sua abordagem. Deve ser sucinto e conter as seguintes informações:
objetivo do trabalho, descrição resumida da metodologia usada no trabalho destacando
os principais aspectos, principais resultados obtidos e conclusão ou considerações finais
(REVISTA IBRACON DE MATERIAIS, [20??], online).

As recomendações desta revista mostram-se bastante análogas às indicações da NBR


6028/2003, sobretudo quanto à implicação de informações que devem estar contidas no trabalho.
No entanto, excede a quantidade máxima de palavras quanto aquela referida pela norma geral.

4.5 Resumos segundo a Revista Sanitária e Ambiental

A Revista Sanitária e Ambiental tem o objetivo de contribuir para o desenvolvimento do


saneamento e promover atividades técnico-cientificas para a melhoria da qualidade de vida das
pessoas com ética e comprometimento. A única menção ao resumo dá conta de que ele deve ser
produzido como um “Texto em português e em inglês, de 100 a 250 palavras (conforme a NBR
14724/2011)” (ABES – RJ. Revista Sanitária e Ambiental, on-line, p. 3).
Em suas instruções para publicação de artigos, é referido bem sucintamente em relação ao
resumo e somente em relação a quantidade de palavras citando a NBR 14724/2011, que diz
respeito à normatização de artigos científicos, ou seja, os editores da revista sequer mencionam a
norma específica para a produção de resumos.

4.6 Resumos segundo a Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental

A revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental é voltada para assuntos no que se


refere ao uso e manejo do solo e da água bem como a gestão e o controle ambiental no contexto
da agropecuária.

Os autores deverão informar, nos itens Resumo, Abstract e Material e Métodos, o período
e local (incluindo coordenadas geográficas) de realização da pesquisa, e, no caso de
pesquisa com experimento, o delineamento experimental, os tratamentos e o número de
repetições, texto com no máximo 250 palavras e não ter abreviaturas. (AGRIAMBI – SP.
Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental, on-line, p. 2-6).
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A revista indica instruções próximas às da NBR 6028/2003, acrescentando somente algumas


exigências que julgam ser importantes para as informações iniciais do artigo.

4.7 Resumos segundo a Revista Árvore

A revista florestal é um canal de divulgação científica e tem como objetivo ser o principal
veículo de disseminação da ciência florestal. Na aba de orientação aos autores consta a seguinte
prescrição para a escrita dos resumos:
[...] texto com 280 palavras, em caso de nomenclatura botânica, os nomes científicos das
espécies devem ser submetidos com o(s) autor(es) do nome (por exemplo, Pinus
sylvestris L.) na primeira vez que são mencionados.
O texto deve ser estruturado da seguinte maneira:
Contexto: O resumo deve começar com o Contexto, apresentando os argumentos que
justificaram a pesquisa.
Originalidade / contribuição / lacuna / inovação: os autores devem indicar que o
manuscrito traz uma inovação, nova contribuição ou destina a preencher uma lacuna
existente na Ciência Florestal.
Objetivo: deve indicar claramente o que o autor pretendia realizar. Metodologia: Este
tópico deve incluir uma breve descrição dos materiais e métodos da conduta do estudo.
Resultados: deve resumir uma descrição sistemática dos resultados, destacando para o
leitor os dados mais relevantes.
Conclusões: as conclusões devem estar ligadas ao objetivo que fornece respostas,
explicações, principais achados do estudo com base no resultado e na discussão.
Conclusões, também, podem resumir as potenciais implicações. As referências e
abreviaturas não são aceitas neste tópico.” (SIF. Revista Árvore, on-line, p.11).

As determinações para a produção de resumos da revista arvores são bem exigentes, levando
em consideração vários termos técnicos científicos utilizados no trabalho e detalham quesitos
presentes na NBR 6028/2003, inclusive com divergências à norma geral, como, por exemplo,
quanto ao número de palavras.

4.8 Observações gerais quanto ao resumo nas revistas de engenharia

O processo de editoração de uma revista científica é parte crucial para a preservação da


qualidade do conteúdo divulgado e influencia inclusive em seu fator de impacto em determinado
campo de estudos. Por isso, sabe-se que esse processo passa por um rígido controle, desde as
normas estabelecidas pelos conselhos editoriais até a validação de material pela revisão por pares.
Pode-se notar, no entanto, que nem sempre esse rigor se aplica às exigências quanto ao
resumo dos artigos. Basicamente, o resumo direcionado a publicações em revistas possui uma
estrutura semelhante, tanto em tamanho e quanto em conteúdo, devendo responder informações
sobre o texto original, com coesão e clareza ideias. Contudo, é fácil perceber que não existe uma
orientação detalhada e prescritiva quanto à utilização de modelos ou convenções, inclusive aqueles
já previstos pela norma brasileira. Estas indicações geralmente vagas, por sua vez, não permitem
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criar um modelo para os autores que de fato levariam o leitor a perceber o conteúdo do texto
integral, esclarecendo as dúvidas, para que ele pudesse decidir se o texto completo o auxiliaria em
seus estudos.

5 OS RESUMOS DE PESQUISADORES DA ENGENHARIA

A metodologia de análise do material coletado tomou como base as estratégias usadas no


trabalho de Ministher (2016) a respeito de teoria e análise do gênero resumo em artigos científicos.
Assim como aqui proposto, essa autora também fez uma revisão sistemática de diversos resumos
a partir dos movimentos retóricos criados por Swales (1990), que tinham como finalidade a
definição de um modelo para a elaboração do gênero que auxiliasse os pesquisadores a
construírem uma trajetória bem definida dando continuidade na produção nos artigos científicos.
Santos (1995), ao aprimorar os estudos do modelo CARS, adaptou as ideias que
inicialmente se aplicavam à introdução dos artigos e percebeu que este gênero outrora
desprestigiado pela comunidade acadêmica, seria o responsável por dispor estratégias que
auxiliariam o autor expressar o conteúdo da pesquisa. O gênero e a sua estruturação a partir dos
movimentos retóricos foi aprimorado com o decorrer do tempo por diversos autores e, no Brasil,
Motta-Roth e Hedges reelaboraram o modelo para produção de resumos cuja configuração foi
utilizada como base para esta pesquisa.
O escopo do trabalho constitui-se de uma amostra de resumos de 20 artigos, distribuídos
equitativamente entre resumos de engenharia civil e engenharia sanitária297, sendo oriundos de
publicações em periódicos. É importante ressaltar que a amostra é produzida por pesquisadores já
consolidados na área, o que pode mostrar uma tendência a respeito do conhecimento e uso dos
resumos por esses profissionais.
O início da seleção dos resumos ocorreu em periódicos on-line, com auxílio da Plataforma
Sucupira, que é uma plataforma do governo brasileiro via Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq)
para classificar a produção científica no âmbito de artigos científicos, na qual foram aplicados
filtros para ajustar as buscas. Foram eles: área de atuação: Engenharias I; classificação: B1298; e
período de publicação: periódicos avaliados no quadriênio 2013-2016. O resultado dessa primeira
busca forneceu periódicos com tais qualificações, facilitando a utilização de outra plataforma, a
Scielo - Scientific Electronic Library Online (Biblioteca eletrônica científica online), que é outro

297
Embora a Capes nomeie somente a engenharia sanitária como subárea de Engenharias I, consideramos também
os periódicos e textos que se referiam à engenharia ambiental.
298
Não foi possível a utilização de periódicos na faixa de classificação A1 ou A2, aqueles de maior impacto segundo
a Capes, porque nessa faixa, na área de atuação escolhida, não há revistas publicadas em língua portuguesa.
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portal que organiza e publica textos completos de revistas na internet, de onde conseguimos filtrar,
a partir da instituição publicadora, os textos acadêmicos.

5.1 Análise quantitativa – presença dos movimentos retóricos

Para demonstrar a eficiência de se basear em uma linha de análise dos movimentos retóricos,
surge a necessidade de analisar a presença de elementos que darão uma dimensão para a pesquisa
acerca das informações distribuídas no texto analisado, no caso, os Resumos. Dentro do contexto
do presente trabalho, tornou-se importante mensurar a quantidade movimentos retóricos para que
tivéssemos uma ideia sobre a qualidade da estrutura dos resumos dos artigos de engenharia.
Em seguida, são apresentados na forma de tabela os dados quantitativos e distribuição dos
movimentos retóricos nos resumos coletados. A tabela 3 mostra como foram selecionados os
textos em cada área e por revista:

Tabela 3: Distribuição de resumos por área de atuação e revista.


Área de Estudo Periódicos - Qualis B1 Quantidade de Resumos
Revista IBRACOM 2
Revista Ambiente Construído 6
Engenharia Civil
REM. Revista Escola de Minas 2
Revista Sanitária e Ambiental 6
Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e
Engenharia Sanitária 3
Ambiental
Revista Árvore 1
Fonte: Elaborada pelos autores.

A exploração consistiu pela busca dos artigos publicados em periódicos online o que nos
permitiu analisar os resumos presentes em artigos de somente seis revistas, contudo devido a uma
ótima periocidade destas, o espaço amostral não foi prejudicado.
Os artigos de engenharia civil, em geral obtiveram 72% dos movimentos presentes nos
textos, o que é uma boa porcentagem, visto que a única discrepância ocorreu no movimento 4 e 5
com 50%, que indica a deficiência em de resultados e discussão/ conclusão mais contundente no
final do texto. As tabelas 4 e 5 mostram as distribuições dos movimentos nos resumos das áreas
de engenharia civil e sanitária, respectivamente:
Tabela 4: Ocorrência de movimentos retóricos em 10 resumos na área de
Engenharia Civil.
Movimentos Retóricos Ocorrências dos movimentos Porcentagem %
Movimento 1 9 90%
Movimento 2 8 80%
Movimento 3 9 90%
Movimento 4 5 50%
Movimento 5 5 50%
Total de ocorrências 36 72%
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Fonte: Elaborada pelos autores

Tabela 5: Ocorrência de movimentos retóricos em 10 resumos na área de


Engenharia Sanitária.
Movimentos: Ocorrência dos movimentos Porcentagem %
Movimento 1 6 60%
Movimento 2 10 100%
Movimento 3 10 100%
Movimento 4 7 70%
Movimento 5 9 90%
Total de ocorrências 42 84%
Fonte: Elaborada pelos autores.

Constatou-se nos resumos analisados da área de engenharia sanitária e ambiental que todos
os movimentos foram bem distribuídos com exceção do movimento 1, porém a estrutura presente
nos resumos se mostra com informações suficiente para que o leitor decida se o trabalho inteiro
se faz interessante na sua concepção.
Na tabela 6, apresentada a seguir, são mencionadas as quantidades de palavras nos
resumos, de acordo com a solicitação de cada periódico:

Tabela 6: Média de palavras de artigos publicados por revista e quantidades recomendadas.

Quantidade indicada de acordo


Revista Média de palavras presentes
com a revista
IBRACOM 153 300
Ambiente Construído 168,86 100 a 200
REM :Revista Escola de minas 181 150 a 250
Revista Sanitária Ambiental 213,33 100 a 250
Revista Brasileira de Engenharia Agrícola
179,6 250
e Ambiental
Revista Árvore 198 280
Fonte: Elaborada pelos autores.

Os valores demonstram que a extensão dos resumos já se encontra padronizada e não parece
ser um problema para os autores. Isso provavelmente se deve ao limite restrito de páginas para as
publicações e à explicitação da regra por meio das equipes editoriais das revistas. Não foram
encontrados resumos truncados ou cortados pelo excesso de texto, porém as médias apontam para
uma preocupação dos autores em se manterem dentro do limite de palavras, escrevendo textos
bem menores que aqueles exigidos, o que pode levar à supressão de movimentos, isto é, os autores
deixariam de descrever seções do artigo pelo receio de exceder o limite de palavras.
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A tabela 7 apresenta uma média geral do uso dos movimentos em todos os resumos, por
área:
Tabela 7:Quantidade e média de movimentos retóricos por área de atuação
Área de atuação Quantidade de movimentos retóricos Média de movimentos retóricos
Eng. Civil 36 7,2
Eng. Ambiental 42 8,4
Fonte: Elaborada pelos autores.

Com base nas informações obtidas de cada publicação, foi verificado se os textos possuem
os requisitos exigidos pelas revistas e estão de acordo com a NBR 6028/2003. De fato, constatou-
se que apenas a Escola de Minas, quanto ao intervalo de 150 a 250 palavras, e a Revista Brasileira
de Engenharia Agrícola e Ambiental, quanto ao total de vocábulos, estabeleceram a mesma
instrução da NBR 6028/2003. Assim, em extensão, os resumos obedeceram às normas da revista
dispostas na tabela 6 e ao ponto 3.3.5 b) da NBR 6028/2003 que estabelece de 100 a 250 palavras
em artigos de periódicos.

5.2 Análise qualitativa – estruturas linguísticas

Nos textos analisados foram encontradas estruturas comuns que permitiram identificar
claramente a maioria dos movimentos, com exceção do movimento 1 que é basicamente um
preâmbulo para exemplificar/demonstrar um problema existente e por conseguinte será descrito
para a tratativa de elaborar uma hipótese para cogitar uma solução.
Já no movimento 2 observou-se a ocorrência de expressões que utilizam pronomes
demonstrativos para apresentar à pesquisa, como é notável nos resumos A1 e A3; “Este trabalho
avalia”.
Intuitivamente, a maneira utilizada para encabeçar a metodologia foi o emprego de
expressões verbais para determinar as ações adotadas durante a realização do trabalho, conforme,
por exemplo, nos resumos A8, A16, A20 que utilizaram expressões como: “identificaram-se”,
“utilizaram-se” e “verificou-se".
De maneira análoga ao movimento 2, os resultados apresentaram sentenças semelhantes
como observado nos resumos A1, A7, A14: “os resultados obtidos, os resultados alcançados”.
Na discussão dos resultados dos resumos nos artigos, notou-se uma mescla de todas as outras
estruturas linguísticas utilizadas nos outros movimentos descritos acima como verifica-se em A13
com o emprego do verbo “verificou-se” mas também em A2 aplicando a expressão “o que é
constatado”.
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No geral, os textos também apresentam a clareza e concisão exigidos pela norma: “O resumo
deve ser composto de uma sequência de frases concisas, afirmativas e não de enumeração de
tópicos. Recomenda-se o uso de parágrafo único (ABNT, 2003, p.2). Quanto ao uso dos verbos,
também a norma é atendida: “Deve-se usar o verbo na voz ativa e na terceira pessoa do singular”
(ABNT, 2003, p.2). Isso permite que se consiga observar a objetividade dos dados apresentados
em cada pesquisa e aumente o poder de decisão do leitor quanto ao acesso ao texto original.
A ocorrência majoritária dos movimentos 1 e 3 nos resumos de engenharia civil indica uma
preocupação dos autores em contextualizar a pesquisa, mostrar a sua necessidade e situar o leitor
quanto aos procedimentos metodológicos adotados. Quanto à contextualização, nota-se que ela
ocorre basicamente de duas maneiras, atendendo às sub-funções A1 (estabelecer interesse
profissional no tópico) e A2 (fazer generalizações no tópico), como se observa a seguir:
O diafragma externo na ligação entre viga metálica de seção I e pilar metálico tubular de
seção circular tem por objetivo o aumento na eficácia da transferência dos esforços. A
proposta é dar alternativas ao uso desse sistema estrutural, reduzindo a limitação imposta
por sua simples ligação ao se adicionar esse elemento, similar a um anel, que envolve o
pilar e é conectado à mesa da viga (A2).

Os sistemas de drenagem na fonte vêm ganhando espaço como soluções de


desenvolvimento de baixo impacto implantadas em edifícios urbanos. Apesar disso, são
poucas as pesquisas que avaliam a influência das condições das instalações dos sistemas
prediais de águas pluviais sobre seu desempenho (A3)

Nesse momento em que a Engenharia civil vem passando por uma fase onde os projetos
estruturais têm sido elaborados com sistemas estruturais compostos por elementos
diferenciados e complexos, alguns critérios e métodos são utilizados com a finalidade de
avaliar aspectos importantes no que diz respeito à estabilidade global e local (A6).

A passagem de tubulações em elementos estruturais ainda merece atenção especial dos


projetistas, principalmente quando o modo de ruptura dos mesmos pode ser alterado
devido às mudanças em seus comportamentos (A7).

Esse tipo de estrutura é amplamente empregado em coberturas de grandes vãos, como as


de supermercados, centros de distribuição, etc. O programa indica ao projetista as
soluções mais econômicas para uma combinação de parâmetros de vão, cargas, entre
outros (A9).

Nos exemplos mencionados, fica claro que a sub-função A é a estratégia utilizada nos
resumos A3, A6 e A7, quando os autores fazem referência àqueles estudos na área de engenharia
civil, ou seja, nos interesses profissionais da área, como respaldo para a realização da pesquisa.
Note-se a expressão “merece atenção especial dos projetistas” em A7. Já a sub-função B está
presente nos resumos A2 e A9, quando os autores descrevem aspectos técnicos que levarão o leitor
a entender a proposta explicitada nos movimentos seguintes.
O movimento 3 pode ser visto nos seguintes fragmentos:
A abordagem é baseada em um cenário hipotético em que transportes motorizados
estariam impossibilitados de ocorrer por restrições diversas. Portanto, apenas os modos
a pé e bicicleta foram considerados para este exercício teórico. As viagens foram
inicialmente classificadas em dois grupos, de acordo com sua adaptabilidade ou [sic]
transformabilidade, sendo as do primeiro grupo consideradas resilientes. Uma terceira
Página 1387 de 2230

categoria teve que ser introduzida, no entanto, para representar outro conjunto de viagens
resilientes. Estas são as viagens excepcionais, isto é, viagens a pé ou de bicicleta que são
mais longas do que as Distâncias Máximas Possíveis (DMP) definidas para a avaliação
da resiliência (A4).

As lajes foram moldadas e ensaiadas no Laboratório de Engenharia Civil da UFPA e


apresentaram dimensões de 1.800 mm x 1.800 mm x 150 mm, sendo submetidas a
carregamento central em placas quadradas que simularam pilares com 120 mm de lado.
O material inerte entre as nervuras foi o EPS e o espaçamento entre as mesmas foi de 250
mm, com largura média de 75 mm e altura 130 mm (A7).

Essa riqueza de detalhes na apresentação da metodologia pode demonstrar algum grau de


consciência dos autores sobre o fato de que os possíveis leitores de seus textos serão atraídos pelos
métodos e procedimentos adotados no trabalho. Esses dados explicitados seriam uma maneira de
dar certeza a esse leitor de que ele encontrará, na íntegra do artigo, as informações necessárias
para proceder de forma semelhante em suas pesquisas.
Os resumos de engenharia sanitária, por sua vez, dão atenção total aos movimentos 2 e 3.
Isso mostra uma necessidade de expor a finalidade daqueles trabalhos e também a metodologia de
maneira mais detalhada. Seguem alguns exemplos quanto ao movimento 2:
Em virtude disso, este estudo teve como objetivo detectar áreas contaminadas pela
disposição de resíduos sólidos em Paço do Lumiar (A13, grifo nosso).

Este trabalho teve como objetivo fazer um levantamento junto aos pequenos
agricultores de cinco municípios da região semi-árida, quanto à utilização das técnicas
voltadas para a captação e o armazenamento de água de chuva (A14, grifo nosso).

O trabalho teve como objetivo avaliar economicamente, com o auxílio do modelo


SISDRENA, a melhor combinação entre profundidade e espaçamento de valas [...] (A15,
grifo nosso).

[...] o presente estudo buscou identificar as espécies arbóreas utilizadas ao longo de ruas
com túneis verdes e avaliar as condições desta vegetação em Porto Alegre, RS. A relação
entre porte da árvore versus condições do tronco foi investigada, buscando-se estimar
uma possível relação de conflito entre exemplares de grande porte e redes de serviços
aéreas (A17, grifo nosso).

Este trabalho avaliou a satisfação dos consumidores a respeito dos serviços de


saneamento básico gerenciados diretamente pelas prefeituras em 21 municípios do estado
de Goiás (A1, grifo nosso).

Nesta pesquisa realizou-se a caracterização pluvi fluviométrica da Bacia do Rio das


Fêmeas em São Desidério (BA) e avaliaram se as modificações das vazões, considerando
a presença de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) e as alterações na cobertura do
solo (A20, grifo nosso).

A recorrência de estruturas que explicitam os objetivos do trabalho mostra que essa é uma
questão consolidada para os pesquisadores. Eles demonstram acreditar que é necessária a
informação aos leitores acerca dos seus objetivos de maneira direta e clara.
Outra observação a ser feita, referente ao movimento 3 (também presente em 100% dos
resumos analisados), é que muitas vezes ele se funde ao movimento 2, ou seja, eles são
apresentados conjuntamente em uma única frase, como pode ser visto nos exemplos a seguir:
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Em virtude disso, este estudo teve como objetivo detectar áreas contaminadas pela
disposição de resíduos sólidos em Paço do Lumiar com base na metodologia do Manual
de Gerenciamento de Áreas Contaminadas do projeto CETESB/GTZ (1999), utilizando
os compartimentos ambientais solo e água superficial como objetos de análise (A13).

O trabalho teve como objetivo avaliar economicamente, com o auxílio do modelo


SISDRENA, a melhor combinação entre profundidade e espaçamento de valas,
implantados em três tipos de solo, com condutividades hidráulicas de 1,0, 0,5 e 0,1 m d-
1. As profundidades simuladas variaram de 0,20 a 2,00 m, com intervalos de 0,05 m,
enquanto os espaçamentos oscilaram de 5 a 100 m, com intervalos de 5 m (A15).

Existem poucos estudos sobre a quantificação dos impactos ambientais relacionados ao


gerenciamento de resíduos da construção civil (RCCs) e, portanto, neste trabalho foi
avaliado o desempenho ambiental dos SMGRCCs dos municípios da Região
Metropolitana de Campinas (RMC), a partir da metodologia de avaliação do ciclo de vida
(ACV). O estudo de ACV foi modelado no software SimaPro 8.2.0; para a avaliação dos
impactos ambientais, foi utilizado o método CML baseline 2000, considerando as
categorias aquecimento global, toxicidade humana, oxidação fotoquímica, acidificação e
eutrofização (A17).

Note-se que no último exemplo há indícios dos movimentos 1, 2 e 3 em uma única frase, o
que permite entender que o pesquisador conhece a necessidade de oferecer essas informações ao
leitor, mesmo que não o faça de modo explícito e compartimentado.
O oposto também ocorre. No caso do resumo A5, os autores entenderam como função do
texto apresentar a pesquisa a partir de sua herança histórica e sua necessidade. Assim, traçam um
panorama e encerram o resumo apresentando questões de pesquisa (que sequer são apropriadas
para o gênero), fixando-se, portanto, somente no movimento 1.
A análise demonstra, portanto, que não há escassez de espaço (quantidade de palavras) para
que esses autores pudessem apresentar todos os aspectos envolvidos na pesquisa, representados
nos cinco movimentos. Por outro lado, a maioria dos pesquisadores entendem a necessidade de
expor os pontos essenciais da pesquisa para seus leitores, o que permite que os resumos
desempenhem suas funções discursivas sem grandes problemas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observou-se nos resumos analisados que a maioria desses de artigos publicados em revistas
obedeceram às normas estabelecidas quanto à estrutura proposta na norma ABNT NBR
6028/2003, porém foram insuficientes quando analisados sob ótica teórica, não se sustentando nos
modelos de estruturação do gênero resumo propostos pelos diferentes autores estudados nesta
pesquisa.
Desse modo, percebe-se que a ausência de conhecimento das propostas teóricas e, em alguns
casos da própria norma, prejudica a elaboração e sobretudo posteriormente o entendimento acerca
do conteúdo apresentado nos artigos por causa da ausência das informações necessárias no
resumo.
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Destaca-se ainda a baixa qualidade de informações para os autores se basearem durante


elaboração do resumo, uma vez que nem todas as equipes editoriais das publicações são claras e
específicas quanto às normas e estrutura exigidas, induzindo os pesquisadores a seguir estratégias
próprias e intuitivas quanto ao ordenamento de dados, problemática, metodologia, resultados e
discussões.
Em geral, os textos tomam como ponto de partida a principal função do resumo, que é
apresentar uma visão sintética do conteúdo dos artigos e, de certa forma, cumprem o seu papel,
mesmo que nem sempre apresentem informações suficientes para se julgar a importância da
íntegra do documento.

REFERÊNCIAS

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Química. 1996. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas) Pontifícia
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Página 1391 de 2230

ROUSSEAU E A APROPRIAÇÃO DO FENÔMENO DA METÁFORA: UMA


PERSPECTIVA A PARTIR DA TEORIA DE PAUL RICOEUR

ROUSSEAU AND THE APPROPRIATION OF THE METAPHOR PHENOMENON: A


PERSPECTIVE FROM PAUL RICOEUR'S THEORY

Francyhélia Benedita Mendes Sousa299


Rita de Cássia Oliveira300
Luciano da Silva Façanha301

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Objetiva-se, no presente artigo, fomentar uma análise da ocorrência bem como das
consequências do uso do fenômeno da metáfora no pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-
1778) com base na teoria da metáfora desenvolvida por Paul Ricoeur (1913-2005) em sua obra de
filosofia da linguagem Metáfora Viva. Para tanto, duas obras específicas tornam-se fundamentais:
Ensaio sobre a origem das línguas e Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens, nas quais encontramos dados que sinalizam que Jean-Jacques Rousseau, filósofo
iluminista, já observava na linguagem, o grande potencial a ser trabalhado em prol da filosofia,
utilizando-se, ao longo do percurso, de célebres metáforas a partir das quais intenciona-se analisar
a relação da linguagem figurada com o mito do bom selvagem, abordando a alegoria da estátua de
Glauco e de como se dá essa apropriação do fenômeno da metáfora na filosofia de Rousseau.
Palavras-chave: Metáfora1. Filosofia2. Linguagem3. Discurso4. Transposição5.

Abstract: The goal is, in this article, promoting an analysis of occurrence and the consequences
of the use of the phenomenon of metaphor in the thought of Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)
based on metaphor theory developed by Paul Ricoeur (1913-2005) in your work of philosophy of
language Metaphor Alive. To this end, two specific works become fundamental: essay on the
origin of language and discourse on the origin and basis of inequality among men, in which we
found data that indicate that Jean-Jacques Rousseau, enlightenment philosopher, already observed
in the language, the great potential to be worked in favour of philosophy, and, along the way,
famous metaphors from which you intend to analyze the relationship of body language with the

299
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PGCult) – Mestrado Interdisciplinar da
Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão.
Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa Interdisciplinar Jean-Jacques Rousseau UFMA, vinculado ao CNPq. Foi
bolsista do PIBIC/CNPq referente ao Projeto de Pesquisa: FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E LINGUAGEM: da natureza
poética ao reconhecimento das paixões, da memória, da imaginação e de Outrem em Rousseau. E-mail:
francyhelia_sousa@outlook.com
300
Doutora em Filosofia pela PUC/SP. Atualmente é Professora Associada I da Universidade Federal do Maranhão.
Membro do GT Hermenêutica da Associação de Pós-Graduação em Filosofia - ANPOF. Coordenadora do Grupo de
Pesquisa em Filosofia Francesa da UFMA. Consultora ad hoc da FAPEMA. É Professora Permanente do Mestrado
em Letras-PGLetras, com linha de pesquisa em Hermenêutica e Literatura. Tem experiência na área de Filosofia, com
ênfase em Filosofia Francesa Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: Hermenêutica, Literatura,
Memória, Tempo, História, Metáfora, Educação e Ensino. E-mail: rcoliveira30@yahoo.com.br
301
Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professor do
Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA. lucianosfacanha@hotmail.com
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myth of the noble savage addressing the allegory of the statue of Glaucus and of how this
appropriation of the phenomenon of metaphor in philosophy of Rousseau.
Keywords: Metaphor1. Philosophy2. Language3. Speech4. Transposition5.

Filósofo do século XVIII, Jean-Jacques Rousseau apresenta uma filosofia diversificada


abrangendo os campos da Linguagem, Educação, Estética e Política. Sua filosofia sempre teve o
traço marcante de uma polaridade conceitual: a língua e a linguagem, o selvagem e o civilizado,
a melodia e a harmonia, a natureza e a sociedade. O que abre caminho para o recorrente
aparecimento de metáforas em suas obras.

Toda metáfora não somente a palavra ou o nome único, cujo sentido é deslocado, mas o
par de termos, ou o par de relações, entre os quais a transposição opera. Como disseram os
autores anglo-saxões (...) são necessárias sempre duas ideias para fazer uma metáfora.
(RICOEUR, 2000, p. 39).

É a partir dessa concepção que se trabalhará o fenômeno da metáfora na filosofia de Jean-


Jaques, relacionando as obras Ensaio Sobre A Origem das Línguas com ênfase no capítulo III, De
como a primeira linguagem teve de ser figurada e Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens, através da alegoria da Estátua de Glauco, pelo viés da teoria da
metáfora de Paul Ricoeur. Ao qual trabalha a questão da metáfora302 como um fenômeno que
percorre tanto o discurso poético quanto o discurso retórico, assim como a linguagem metafórica
pode desempenhar tanto a função poética, quanto a função retórica.
Vejamos agora como se dá o fenômeno da metáfora, se por substituição, tensão ou por
analogia; qual a função em cada caso, se poética ou retórica e qual o caráter do discurso que essa
transposição ocorre.
Mas antes, faz-se necessário ressaltar que a ocorrência e apropriação da metáfora será
analisada a partir de uma relação entre o filósofo e o bom selvagem; entre Rousseau e o
personagem hipotético do Ensaio: este representa o homem natural e aquele representa o homem
civilizado. Assim, Rousseau é o homem moderno que já está em processo de perfectibilidade, que
dito de outra forma, já dispõem de ferramentas aos quais lhe possibilitará a utilização conveniente
da metáfora; que se contrapõe aqui ao seu próprio personagem303: o selvagem que ainda
desprovido de razão, metaforiza sem saber, ao passo que transpõem a ideia304.

302
Ricouer se embasa nos escritos de Aristóteles, sendo este o primeiro a fundamentar a problemática da metáfora.
303
O termo personagem está posto apenas para dizer que o selvagem é participante central da metáfora no contexto
que se segue.
304
Aristóteles denomina metáfora como qualquer transposição de termos. Rousseau, a classifica no presente contexto,
como a transposição da ideia, já que não há ainda um termo próprio e verdadeiro para ser transposto.
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No Ensaio Sobre A Origem das Línguas Rousseau fomenta sua teoria da linguagem, sob
um pano de fundo da poética305 (música). Essa obra seria na historicidade da evolução do homem
a preparação para a comunicação, partindo sempre da origem, do mais simples para o mais
complexo. Descrevendo assim, como e por que surgiram, se formaram, desenvolveram, e o que
ocasionou a degeneração das primeiras línguas. Mas, interessará aqui penas o capítulo III, no qual
o autor expõe de como a primeira linguagem teve de ser figurada (metafórica), uma vez que ainda
não existia sentido próprio ou literal.

Como os primeiros motivos que fizeram o homem falar foram as paixões, suas primeiras
palavras foram tropos. A primeira a nascer foi a linguagem figurada e o sentido próprio foi
encontrado por último. Só se chamaram as coisas pelos seus verdadeiros nomes quando
foram vistas sob sua forma verdadeira. A princípio só se falou pela poesia, só muito tempo
depois é que se tratou de raciocinar. (ROUSSEAU, 1983, p. 164).

Está subtendido aí que também a primeira a nascer, além da linguagem poética, foi a
função poética da metáfora. Ora, se em sua teoria Rousseau está expondo que no primeiro
momento da fala onde o selvagem ao se encontrar com outros não lhes reconhecera pelo simples
fato de ainda não ter despertado para a razão, então esse homem natural apenas estaria
descrevendo aquilo que se punha diante de seus olhos sem a intenção de convencer. Portanto, a
primeira função da metáfora, nesse contexto, é poética.

Um homem selvagem, encontrando outros, inicialmente ter-se-ia amedrontado. Seu terror


tê-lo-ia levado a ver esses homens maiores e mais fortes do que ele próprio e a dar-lhe o
nome de gigantes. Depois de muitas experiências, reconheceria que, não sendo esses
pretensos gigantes nem maiores nem mais fortes do que ele, à sua estatura não convinha a
ideia que a princípio ligara à palavra gigante. Inventaria, pois, um outro nome comum a
eles e a si próprio, como, por exemplo, o nome homem e deixaria o de gigante para o falso
objeto que o impressiona durante a ilusão. (ROUSSEAU, 1983, p. 164).

Assim, se ainda não havia racionalidade, imaginação ou a reflexão em detrimento dessa,


também ainda não há o reconhecimento do outro como seu semelhante. O outro ainda não era
outro, mas apenas gigante, que pelo não reconhecimento da similitude, salta aos olhos como uma
imagem assustadora, a imagem do gigante era então a própria epífora que transparecia ao primeiro
contato despretensioso, à paixão que fascina aos olhos, ao passo que essa noção de epífora traz
consigo uma informação e uma perplexidade (RICOEUR, 2000, p.30). O selvagem fazia do
gigante a própria metáfora viva: a imagem de algo assustador que amedronta ou que é maior do
que ele por não ter a ciência do próprio “eu”, portanto do outro. Nesse sentido, o gigante é aqui

305
A poética para Rousseau é a música. Essa obra evidência a origem da língua. Que para Rousseau é o canto
apaixonado, a poética, portanto a música.
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apenas uma projeção imagética, não sendo ainda a coisa mesma, mas a própria transposição da
ideia.
Rousseau inaugura uma historicidade da apropriação da metáfora na linguagem. Se
primeiro o homem metaforizou, sem plena racionalidade, passando e evoluindo do estado de
natureza para o homem civilizado, ao se utilizar da imaginação e despertar para a razão, transpõem
significados e palavras, não mais pela falta do sentido próprio, mas pela necessidade de esclarecer
o discurso ao qual está explicitando, além da intenção de convencer por meio desse
“esclarecimento”306. Para tanto, no contexto da primeira linguagem a metáfora se comporta apenas
como uma descrição, ao passo que a gramatização já é evidente, a metáfora toma para si a função
de preencher uma lacuna semântica deixada pela própria linguagem. E a metáfora de acordo com
a necessidade de quem a utiliza, se presta ao papel ora de descrever ora esclarecer e persuadir. De
modo que no decorrer do Discurso, Rousseau se utiliza tanto de uma quanto da outra.
Feito a análise através da semiótica do termo gigante e por meio da semântica do próprio
contexto metafórico, conclui-se que o sentido da metáfora, enquanto primeira linguagem, seria
um empréstimo (...) que o sentido emprestado expõem-se ao sentido próprio, isto é, pertinente
originalmente a certas palavras (RICOEUR, 2000, p.30). Assim, a função poética no Ensaio se
evidencia ao passo que Rousseau tenta descrever como que a primeira linguagem teve de ser
metafórica. Quanto a função retórica, na tentativa de convencer por meio da descrição, faz-se
menos evidente nesta primeira análise, ganhando mais nitidez na próxima obra a ser trabalhada.
Mas, se o mito do bom selvagem foi estudado a partir da semiótica “gigante“, que se refere
ao efeito de sentido no nível da palavra isolada. Isso porque se ainda não há raciocínio, elocução
ou atos de fala, também ainda não há retórica, a que tal análise ocorre de fato ao nível da linguagem
poética. A metáfora propriamente dita representada pela Estátua de Glauco será analisada ao nível
da semiótica, correspondendo a uma teoria da tensão e referindo-se (...) à produção de metáfora
no seio da frase tomada como um todo (RICOEUR, 2000).
No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, a
apropriação da metáfora da Estátua de Glauco evidencia-se muito mais em detrimento da função
retórica que por uma função poética. A alma humana simbolizada pela estátua vai perdendo suas
características originais no processo de aprimoramento do homem dentro da sociedade. Se, como
muito já enfatizado no presente trabalho, a função poética é descrever o real a partir do ficcional,
a função retórica é convencer o interlocutor a partir do desvio do termo. Assim, a função poética
no Discurso rousseauniano evidencia-se no selvagem que transpõem a ideia sem dar-se conta
disso, enquanto a retórica concerne o bom usa da transposição a fim de persuadir. Pois se do
contrário, seria contraditório descrever através da ficção, algo que o filósofo está o tempo todo

306
A metáfora teria como uma de suas funções preencher a lacuna semântica deixada pela linguagem.
Página 1395 de 2230

apontando: o estado de natureza (...) não existe mais, nunca existiu, e provavelmente jamais
existirá.
Segundo Aristóteles, retórica é a “faculdade de descobrir especulativamente a que, em
cada caso, pode ser próprio para persuadir“ ou provar (ARISTÓTELES, 1993), temos então a
evidência da função retórica da metáfora no Segundo Discurso, a partir da Estátua de Glauco. Em
que o autor escolhe persuasivamente, não outra, mas adequadamente essa metáfora afim de
legitimar sua hipótese quanto à transfiguração do original a partir das características adquiridas ao
longo do processo que constituiu a sociedade. Cito:

E como o homem chegará ao ponto de servir-se tal como o formou a natureza, através de
todas as mudanças produzidas na sua constituição original pela sucessão do tempo e das
coisas, e separar o que pertence à sua própria essência daquilo que as circunstâncias e
seus progressos acrescentaram a seu estado primitivo ou nele mudaram? Como a estátua
de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries tinham desfigurado de tal modo que se
assemelhava mais a um animal feroz do que a um Deus, a alma humana, alterada no seio
da sociedade por milhares de causas sempre renovadas, pela aquisição de uma multidão
de conhecimentos e de erros, pelas mudanças que se dão na constituição dos corpos e
pelo choque contínuo das paixões, por assim dizer, mudou de aparência a ponto de tornar-
se quase irreconhecível [...] (ROUSSEAU, 1978, p. 227).

Desse modo, a metáfora da Estátua de Glauco não seria, como o mito do bom selvagem,
uma ideia de substituição ou de empréstimo, mas uma metáfora proporcional, em que B está para
A, como D está para C: as intempéries do tempo e a ação do mar estão para a transfiguração em
sociedade, assim como a estátua de Glauco está para a alma humana. Assim, segundo Aristóteles,
a metáfora teria como uma de suas funções, preencher uma lacuna semântica, pois se bem
percebemos, como pode algo que “é” (a alma humana) transfigurar? Nesse sentido essa mudança
seria aqui entendida a partir da descrição da metáfora, como aquisição de novas características, as
quais (...) “mudou a aparência a ponto de tornar-se quase irreconhecível” (ROUSSEAU, 1978, p.
227).
Depois de analisarmos como o fenômeno se adequa a cada caso_ função poética e função
retórica_ vejamos agora o discurso que ela percorre.
Segundo Ricoeur a metáfora em Aristóteles perpassa tanto o discurso poético quanto o
retórico. Em Rousseau, a metáfora se concerne apenas ao domínio Retórico. Pois, se na medida
em que o poeta tem o intuito apenas de descrever fatos reais por meio da ficção, ao passo que a
transposição é viva no sentido de ampliar-se o seu sentido, o filósofo, porém, ao se utilizar de uma
transposição morta, a qual cabe uma interpretação limitada, não quer apenas descrever como tal
fato ocorreu_ essa função é do narrador_ mas convencer de que aconteceu da maneira que está
sendo dita (escrita), que tal ou tal coisa funciona daquela maneira. É assim que aqui a metáfora
se faz presente em um discurso retórico: o poeta quer descrever, o filósofo quer convencer.
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Mas a Retórica representada no discurso rousseauniano, é apenas parte da grande retórica


aristotélica, que chega até a modernidade como uma disciplina amputada. O que Ricoeur
considera ser uma causalidade possível do declínio da retórica. Assim expõem que essa perda é
irremediável:

Havia retórica porque havia eloquência, eloquência pública. A observação vai mais longe:
em primeiro lugar, a palavra foi uma arma destinada a influenciar o povo, diante do
tribunal, na assembleia pública, ou ainda para elogio ou panegírico: uma arma chamada a
dar a vitória nas lutas em que o discurso é decisivo (RICOEUR, 2000, p.18).

Se no espírito da polis grega foi forjado a filosofia em sua forma mais sublime
(VERNANT, 2011) nos palcos da publicidade da polis se fazia retórica em sua completude de
elocução, argumentação e composição do discurso. O moderno, destituído do palco público,
limita- se a denominação desviante e resume-se à teoria das figuras do discurso ou teoria dos
tropos. Assim, “a grande retórica de Aristóteles” foi amputada em seu declínio ao limitar-se à
apenas um de seus campos: a elocução.

A história da retórica é a história da pele mágica. Uma das causas da morte da retórica
está aí: ao reduzir-se a uma de suas partes, a retórica perdeu ao mesmo o tempo o nexus
que a vinculava à filosofia por meio da dialética; perdida essa ligação, tornou-se a retórica
uma disciplina errática e fútil. A retórica morreu quando o gosto de classificar as figuras
excedeu inerentemente o sentido filosófico que animava o vasto império retórico. Que
mantinha unidas suas partes e vinculava o todo ao Organon e à filosofia primeira.
(RICOEUR, 2000, p.18).

Ricoeur explica ainda melhor na citação seguinte:

A retórica dos gregos não tinha somente um programa singularmente mais vasto que a
dos modernos; ela extraía de sua relação com a filosofia todas as ambiguidades de seu
estatuto. A origem “selvagem” da retórica explica bem o caráter propriamente dramático
desse comércio. O corpus aristotélico apresenta-nos somente um dos equilíbrios que
corresponde ao estado de uma disciplina que já não é simplesmente uma arma na praça
pública, mas que ainda não é uma simples botânica das figuras. ( RICOEUR, 2000, p.19)

Conforme Bento Prado Jr. (1998), o moderno que perdeu não só o espaço público e espírito
da vida púbica, perde também a força da voz, exatamente como procede Rousseau: “não ousei,
pois, falar, e não me podendo calar, ousei escrever” (ROUSSEAU, 1948, p. 263). Assim, não é
mais na palavra falada em praça pública que a eloquência se anuncia, mas o moderno o faz a partir
da palavra transcrita nos ensaios, discursos e tratados, ou seja, na palavra escrita.
Ora, se o que se tem na modernidade, segundo Ricouer, é senão uma retórica restrita a uma
teoria da elocução, que se apresenta em dois movimentos contrários, o que leva a retórica a liberar-
se da filosofia e esta: a que leva a filosofia a reinventar a retórica como um sistema de prova de
segunda ordem. Longe de querer encaixar o argumento acima em um leito de procusto, parece
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evidente que ao se apropriar do fenômeno da metáfora, Rousseau está aderindo ao movimento que
reinventa a retórica como sistema de provas.
Se assim é, Rousseau ao “bem” se apropriar da metáfora em sua filosofia estaria aqui
também se valendo de uma retórica. Como demasiadamente já frisado, o fenômeno da metáfora
que se apresenta tanto sob uma função poética quanto retórica, perpassa em Rousseau apenas o
discurso retórico. Se quem bem metaforiza, é o ser metafórico, Rousseau não seria então somente
retórico, mas metafórico ao passo que este que bem se utilizou da transposição da ideia, do
empréstimo da palavra, e da comparação entre elas, para assim dizer que no final tudo vai um dia
degenerar, é assim, o próprio gênio.

A metáfora torna-se verbo: metaforizar; o problema do uso é assim trazido à luz do dia, o
processo leva-o a esse resultado; b) em seguida, com o problema do emprego, vem o do
emprego “conveniente”: trata-se de “bem metaforizar”, de “servir-se de maneira
conveniente” dos procedimentos da lexis; do mesmo modo é designado quem usa o uso: é
ele que é chamado a esta “ coisa maior”, o “ ser metafórico”; é quem usa que pode aprender
ou não; c) ora, precisamente, não se aprende a bem metaforizar; é dom de gênio, isto é, da
natureza. (RICOUER, 2000, p.41)

Em suma, o relevante em estudar metáfora, como disse Aristóteles, é “bem saber descobrir
as metáforas, significa bem se aperceber das semelhanças”. Bem como perceber a relação dos
discursos com a própria metáfora. Como uma substituição do termo por analogias entre outros,
podem dar significação aos discursos, ao preencher as lacunas semânticas deixadas pela limitação
da linguagem. Outro sim, o selvagem que metaforizou sem saber, não reconhecendo a semelhança
que como o clássico/ moderno que bem metaforizou servindo-se da apropriação conveniente da
transposição. A metáfora em Rousseau se dá, em um selvagem que inaugura o neologismo, e o
civilizado que bem se apropria do termo para convencer. Pois parece, ingênuo conceber o
fenômeno da metáfora em Rousseau apenas por uma função poética. Uma vez que o intuito
evidente da apropriação e do “bem” apropriar-se é função retórica que a metáfora expressa, não
só aqui, mas em vários outros autores como o próprio Platão, que se utiliza de uma alegoria a fim
de esclarecer através de uma linguagem mais acessível ao grande público, porém, bem mais do
que isso, pretende por meio desse mecanismo convencer seus interlocutores, a fim de legitimar
sua teoria.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Poética. Tradução: Eudoro de Sousa. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

PRADO JR, Bento. A força da voz e a violência das coisas. In: Ensaio sobre a origem das
línguas. Tradução: Fúlvia. M. L. Moretto. Unicamp.1998.
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ROUSSEAU, J.-J. As Confissões. Volume único. Tradução: Wilson Lousada. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora, 1948.

__________. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Abril Cultural, 1978

__________. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.


São Paulo: Abril Cultural, pp 1978.

RICOEUR, Paul. Metáfora Viva. Tradução: Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola,
2000.
VERNANT, Jean-Pierri. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: Difel, pp. 53-72,
2011.
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UMA TEORIA DA DECISÃO: O DIREITO FUNDAMENTAL A UMA RESPOSTA


ADEQUADA À CONSTITUIÇÃO

A THEORY OF DECISION: THE FUNDAMENTAL RIGHT TO AN ADEQUATE


RESPONSE TO THE CONSTITUTION

José Leandro Camapum Pinto


Graduado em Direito - UFMA
Graduado em Letras – UFMA

Eixo Temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: A discussão sobre a possibilidade e a necessidade de respostas corretas, quando da


aplicação do Direito (Teoria da decisão adequada), faz-se necessária, nestes tempos de desmedido
ativismo judicial. Com efeito, necessária se faz a superação do paradigma juspositivista, hoje
dominante no imaginário jurídico, quanto à aplicação das normas jurídicas. Haja vista que o
Positivismo, em suas diferentes nuances, dá azo à ampliação da discricionariedade do
intérprete/aplicador do Direito. Neste ponto, entram em cena os professores Lênio Streck (com a
sua Crítica Hermenêutica do Direito), Ronald Dworkin (com a sua Teoria do Direito como
integridade e coerência e da Interpretação Construtiva), fundados no pensamento filosófico de
Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, em combate ao solipsismo do julgador, que hoje vige
no Direito brasileiro, com adendos de lições de Michel Foucault e Friedrich Nietzsche, acerca de
suas críticas às posturas metafísicas e sobre relações de poder.
Palavras-chave: Teoria da decisão adequada. Crítica Hermenêutica do Direito. Teoria do Direito
como Integridade e Coerência. Lênio Streck. Ronald Dworkin.

Abstract: The discussion about the possibility and the need for correct answers, when applying
the Law (Theory of proper decision), is necessary in these times of excessive judicial activism.
Indeed, ir is necessary to over come the juspositivist paradigma, now dominant in the legal
imaginary, as to the application of legal norms. It is seen that Positivism, in its different nuances,
gives rise to the widening of the discretion of the interpreter/applicator of Law. At this point, it
get on the scene teachers Lênio Streck (with his Critique of Hermeneutics of Law), Ronald
Dworkin (with their Theory of Law as Intergrity and Coherence and Constructive Interpretation),
based on the philosophical thinking of Martin Heidegger and Hans-Georg Gadamer, in combat to
the solipsismo of the judge, that today vige in the Brazilian Law, with the addendum of lessons of
Michel Foucault and Friedrich Nietzsche, on their criticisms of the metaphysical positions and
about relations of power.
Keywords: Theory of Right Decision. Critical Hermeneutics of Law. Theory of Law as Integrity
and Coherence. Lênio Streck. Ronald Dworkin.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho acadêmico visa ao escrutínio de como a Crítica Hermenêutica do Direito,


Teoria da decisão desenvolvida pelo professor Lênio Streck (Verdade e Consenso, 2017), a partir
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dos ensinamentos de Martin Heidegger (Ser e Tempo, 2016) e Hans-Georg Gadamer (Verdade e
Método, Vol. I e II, 2017), em suas respectivas obras, pode ser utilizada na interpretação/aplicação
do Direito, com os adendos da Teoria do Direito como Integridade, de Ronald Dworkin, em sua
obra O Império do Direito (2010).

Deveras, constatam-se atualmente, na aplicação do Direito brasileiro, conforme o


professor Lênio Streck relata em sua obra Verdade e Consenso (2017), uso equivocado da
chamada “discricionariedade”, ou “livre convencimento”, pelo intérprete do Direito. Senão
vejamos:

Há evidente abuso, no direito brasileiro, do denominado “ativismo judicial”. Observa-se o


crescente subjetivismo presente nas decisões judiciais hodiernas, graças ao lastreio na “moldura”
de aplicação kelseniana – positivismo normativo -, subsidiando, assim, arbitrariedades e decisões
“caricatas” de nossos Juízes. (STRECK, 2017a).

A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD), enquanto método adequado de interpretação


das normas jurídicas, pode servir como baliza para o desvelo e prevenção de eventuais relações
de poder, hoje provavelmente sustentadas pela ausência de um método hermenêutico adequado,
nas diversas decisões proferidas pelo Poder Judiciário brasileiro.

Pretende-se, primeiramente, investigar, de modo propedêutico, a relação entre os estudos


de M. Heidegger (e sua Filosofia Hermenêutica) as análises de seu discípulo Hans-George
Gadamer (e a sua Hermenêutica filosófica), – dos quais decorre a Crítica Hermenêutica do Direito,
desenvolvida pelo professor Lênio Streck, a qual conta, ainda, com os ensinamentos de Ronald
Dworkin, inscritos em sua obra O Império do Direito (2010) – com os estudos desenvolvidos por
Michel Foucault, em sua obra Microfísica do Poder (2012), acerca de suas críticas a concepções
metafísicas, apriorísticas, a partir de noções primevas também lançadas por Friedrich Nietzsche
(2005).

Ademais, pretendemos investigar, en passant, o modo como tal caminho hermenêutico


pode ser útil no combate a sutis relações de poder, com apoio nas lições de Michel Foucault,
eventualmente existentes em torno das decisões tomadas pelo juiz togado brasileiro.

2 AS BASES TEÓRICAS NECESSÁRIAS PARA UMA BOA TEORIA DA DECISÃO

Uma das bases do presente trabalho acadêmico é a obra Ser e Tempo, de Martin Heidegger,
a qual fornece as premissas de cunho filosófico para se alcançar a melhor hermenêutica, a qual
possa ser aplicada às decisões jurisdicionais. No decorrer deste trabalho acadêmico, serão
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expostos e defendidos os motivos por que o substancialismo, a partir da teoria existencialista


desenvolvida em Ser e Tempo (2016), em vez do procedimentalismo, por exemplo, defendido por
Jünger Habermas, conforme anota o professor Lênio Streck (Verdade e Consenso, 2017), pode ser
um guia mais adequado para as reflexões e elaboração de uma teoria da decisão adequada a ser
utilizada pelos intérpretes, notadamente do Direito.

Deveras, o professor Lênio Luiz Streck, em seu livro Dicionário de Hermenêutica (2017b),
no verbete “Filosofia hermenêutica”, corrobora tal afirmação inicial acerca do pensamento
heideggeriano:

Quando Heidegger identifica um duplo nível na fenomenologia (o nível


hermenêutico, de profundidade, que estrutura a compreensão, e o nível
apofântico, de caráter lógico, meramente explicativo, ornamental), abre as
possibilidades para a desmi(s)tificação das teorias argumentativas de cariz
procedimental. Na verdade, coloca em xeque os modos procedimentais de acesso
ao conhecimento, questão que se torna absolutamente relevante para aquilo que
tem dominado o pensamento dos juristas: o problema do método, considerado
como supremo momento da subjetividade e garantia da correção dos processos
interpretativos. (STRECK, 2017b, p. 80)

Dessarte, partindo-se de Ser e Tempo, pretende-se fazer uma análise crítica da teoria da
decisão hoje impregnada no imaginário jurídico, quanto à aplicação da justiça, contando com a
ajuda do desvelamento realizado primeiramente por F. Nietzsche e, em sequência, por Michel
Foucault, respectivamente, nas obras Além do Bem e do Mal (2005) e Microfísica do Poder (2012),
dos reais interesses, na sociedade, pela manutenção de velhas práticas que sedimentam o status
quo vigente.

“Não se pode pular a própria sombra”, conforme bem diz o posfácio de Emmanuel
Carneiro à obra Ser e Tempo, haja vista que “todo pensamento se dá algo que não somente não
pode ser pensado como, sobretudo e em tudo que se pensa, significa pensar, isto é, faz e torna
possível o pensamento.” (HEIDEGGER, 2016, p. 550). Nota-se, portanto, que, em noções básicas,
segundo as considerações existenciais defendidas por Martin Heidegger (2016), há sempre algo,
um nada – o qual não é nem negativo, nem positivo – originário de todo pensamento e qualquer
representação: trata-se da realidade, das realizações, que só se desvelam no silêncio, daí
exsurgindo outra premissa essencial de que é necessário que a presença, liberta de preconceitos,
experimente cada contato singular com as coisas do mundo, para somente então percorrer o
caminho hermenêutico adequado para encontrar a resposta correta em sua interpretação.

As noções acima expostas por óbvio aplicam-se aos intérpretes do Direito, já havendo
teorias, notadamente a teoria do Direito como integridade e a teoria da Interpretação Construtiva,
de Ronald Dworkin, que parecem trilhar o mesmo caminho hermenêutico, ao porem em primeiro
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plano palavras-chave tais como tradição, história, experiência, realidade fática, enfim, elementos
necessários na construção de uma resposta correta pelos intérpretes do Direito (em especial pelos
Juízes, na teoria de O Império do Direito (2010)).

Deveras, no prefácio à obra O Império do Direito, destaca-se sinteticamente a essência da


ideia de raciocínio jurídico do intérprete como um exercício de interpretação construtiva no seio
da comunidade e enquanto aquele como participante desta.

Segundo esse ponto de vista, a estrutura e as restrições que caracterizam o


argumento jurídico só se manifestam quando identificamos e distinguimos as
diversas dimensões, frequentemente conflitantes, do valor político, os diferentes
fios entretecidos no complexo juízo segundo o qual, em termos gerais e após o
exame de todos os aspectos, uma interpretação torna a história do direito a melhor
de todas. (DWORKIN, 2010, p. I).

Destarte, tanto na obra O Império do Direito, como em outras obras de Ronald Dworkin,
é nítida a sua simpatia pela utilização de uma fenomenologia da decisão judicial, da presença da
facticidade na construção da decisão, nos termos apresentados por M. Heidegger e transcritos
acima, bem como o referido autor lança crítica ao que o positivismo jurídico defende como poder
discricionário do juiz.

Com efeito,

É importante o modo como os juízes decidem os casos. É muito importante para


as pessoas sem sorte, litigiosas, más ou santas o bastante para se verem diante do
tribunal. [...] A diferença entre a dignidade e ruína pode depender de um simples
argumento que talvez não fosse tão poderoso aos olhos de outro juiz, ou mesmo
o mesmo juiz no dia seguinte. (DWORKIN, 2010, p. 3).

A segunda obra-base deste trabalho acadêmico é a obra do autor brasileiro Lênio Luiz
Streck, Verdade e Consenso (2017a), na qual desenvolve a sua Crítica Hermenêutica do Direito,
a partir de reflexões críticas sobre as ideias (algumas já acima mencionadas) de autores como
Heidegger, Gadamer e Jünger Habermas, bem como, em paralelo, faz análise do ordenamento
jurídico brasileiro e sua aplicação pelos órgãos julgadores (em especial, da Constituição), de modo
que aponta equívocos quanto ao caminho hermenêutico hoje predominante na aplicação da justiça
pelo Poder Judiciário brasileiro.

Segundo Lênio Streck, logo nas primeiras páginas de sua referida obra, o primeiro
problema que se detecta no “ambiente jurídico brasileiro” é a incorporação de uma mistura de
“tradições”, a saber, há um quid - em nossa forma de aplicação do Direito no Brasil - do Common
Law inglês, também da herança codificadora francesa, bem como traços do Direito historicamente
desenvolvido na Alemanha. Segundo o mencionado autor “(...) parece claro que esse ecumenismo
jurídico tem graves consequências no plano da operacionalidade.” (2017, p. 32). Anote-se um
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interessante e esclarecedor exemplo do citado “sincretismo” que ocorre no âmbito do processo


civil brasileiro, o qual, em síntese do pensamento do autor, mesmo

Depois de uma intensa luta pela democracia e pelos direitos fundamentais, enfim,
pela inclusão das conquistas civilizatórias nos textos legais-constitucionais nos
textos legais-constitucionais, deve(ría)mos continuar a delegar ao juiz a
apreciação do Direito material em conflito, atribuindo às partes um papel
secundário na dinâmica processual, como se o juiz fosse o dono do processo?
Volta-se, sempre, ao lugar do começo: o problema da democracia e da
(necessária) limitação do poder. (STRECK, 2014, p. 33).

Dessarte, o autor Lênio Streck, em sua obra Verdade e Consenso (2017a), aponta a crítica
de Dworkin (2012) ao que aquele chama de “ponto cego” do positivismo, a saber, os limites da
lei em cobrir todos os fatos da realidade e daí a inevitável recorrência à discricionariedade do juiz,
a saber, “decidir, segundo os critérios que lhe parecerem mais convenientes, a questão posta.”
(2017a, p. 50). Destarte, para Dworkin, quando a lei não é clara, ou quando há interpretações
divergentes “haveria, também aqui, a necessidade de se observar que tais decisões aderem a
padrões normativos obrigatórios.” Em outras palavras, Lênio Streck traduz o pensamento de
Dworkin: “mesmo nos casos em que a interpretação dos direitos que conformam o caso não seja
‘fácil’, que não exista regra clara, (...), não estaria o julgador livre para decidir segundo os critérios
extrajurídicos que achasse mais convenientes para o caso.” (2017a, p. 47).

O professor Lênio Streck tem como ponto central de sua CHD – Crítica Hermenêutica do
Direito – a tese de que os princípios constitucionais atuam, não como panaceia aberta à
discricionariedade do intérprete do direito, mas, ao contrário, enquanto limite pragmático (porém,
não no mesmo sentido existente no chamado “realismo jurídico”), histórico-cultural, para qualquer
decisão judicial adequada à Constituição. Em outras palavras, os princípios instalam o mundo
prático faltante nas regras de um ordenamento jurídico. Videlicet:

Em suma, cabe registrar que esses elementos que permeiam o conceito de


princípios constitucionais, embora projetem maior luz para o fenômeno da
decisão judicial, não podem ser tidos como permissivas para livre criação
jurisprudencial do Direito. O dever de fundamentação das decisões somente é
plenamente é plenamente satisfeito na medida em que as decisões se apresentam
adequadas à Constituição. Os princípios constitucionais oferecem espaços
argumentativos que permitem controlar os sentidos articulados pelas decisões.
Ademais, o conteúdo dos princípios constitucionais não é pré-definido por lei,
muito menos pode ser livremente determinado pelos tribunais, isso porque eles
são manifestação histórico-cultural que se expressa em determinado contexto de
uma experiência jurídica comum. (STRECK, 2014, p. 242).

Outrossim, conforme aponta Lênio Streck, quando se fala em positivismo, seja inclusivo
ou exclusivo, fala-se de um paradigma filosófico que se sustenta originariamente no conceito;
antes dele não há nada, sendo que o Direito somente é reconhecido pelo que é a partir de sua fonte,
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a autoridade que o cria, bem como que o juiz faz simplesmente um enquadramento do fato à lei,
nas palavras do mencionado professor “uma adequação da coisa ao intelecto, uma verdade
correspondencial.” (STRECK, 2017a, p. 53). Por outro lado, quando se fala em pós-positivismo,
o mesmo autor aponta a Filosofia Hermenêutica (Heidegger), bem como a Hermenêutica
Filosófica (Gadamer), nascedouros da sua Crítica Hermenêutica do Direito, um dos objetos de
discussão do presente trabalho acadêmico.

Por outro lado, Lênio Streck critica a tentativa de neutralidade na delimitação do Direito,
haja vista que factualmente é impossível partir-se do que o autor chama de “grau zero de sentido”,
havendo sempre uma pré-compreensão “como instância originária de abertura ao mundo”. Aqui,
vê-se um nítido diálogo com M. Heidegger, em Ser e Tempo. Com efeito, o referido autor aponta
ainda para a discricionariedade, o livre convencimento do julgador como elementos típicos da
chamada “Filosofia da Consciência”, a qual se estabeleceu no século XX e na qual recai o próprio
Positivismo quando admite o protagonismo do juiz quando da impossibilidade da lei em cobrir
todos os fatos do mundo real. Contra esse pensamento dominante, o professor Lênio Streck expõe,
em seu Dicionário de Hermenêutica, no verbete “Fusão de horizontes”, as ideias do importante
discípulo de Heidegger, Hans-George Gadamer, acerca de um “novo significado de círculo
hermenêutico”, verbi gratia:

Toda a compreensão hermenêutica pressupõe uma inserção no processo de


transmissão da tradição. Há um movimento antecipatório da compreensão, cuja
condição ontológica é o círculo hermenêutico, que nos liga à tradição em geral e
à do nosso objeto de interpretação em particular. Daí Gadamer fala de um novo
significado de círculo hermenêutico a partir de Heidegger: a estrutura circular da
compreensão manteve-se sempre, na teoria anterior, dentro do marco de uma
relação formal entre o individual e o global ou seu reflexo subjetivo: a
antecipação intuitiva do conjunto e sua explicitação posterior no caso concreto.
Segundo esta teoria, o movimento circular no texto era oscilante e ficava
superado na plena compreensão do próprio texto. A teoria da compreensão
culminava em um ato adivinhatório que dava acesso direto ao autor e a partir daí
expungia do texto tudo o que era estranho e chocante. Contrariamente a isto,
Heidegger reconhece que a compreensão do texto está determinada
permanentemente pelo movimento antecipatório da pré-compreensão.
(STRECK, 2017b, p. 83).

Visitando novamente Verdade e Consenso, interessante ainda é a afirmação do professor


Lênio, quando observa, em relação ao sujeito, “em Nietzsche que a vontade se torna fundamento,
e essa vontade não tem fundamento se não ela mesma, culminando no absoluto relativismo.”
(2017a, p. 60). Mais ainda, que esse sujeito “dono dos sentidos” é o que parece dominar no cenário
jurídico atual.

Deveras, F. Nietzsche (2005), no prólogo de sua obra Além do Bem e do Mal, desvela a
derrota de uma vontade de verdade com base simplesmente em conceitos, senão vejamos:
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Supondo que a verdade seja uma mulher – não seria bem fundada a suspeita de
que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco
de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até
agora se aproximaram da verdade, foram os meios inábeis e impróprios para
conquistar uma dama? É certo que ela não se deixou conquistar – e hoje toda
espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo. Mais adiante,
Nietzsche aponta o quê de necessário para que uma filosofia meramente
sustentada em conceitos logre algum êxito: [...] quão pouco bastava para
constituir o alicerce das sublimes e absolutas construções filosofais que os
dogmáticos ergueram – alguma superstição popular de um tempo imemorial
(como superstição da alma, que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje
causa danos), talvez algum jogo de palavras, alguma sedução por parte da
gramática, ou temerária generalização de fatos muito estreitos, muito pessoais,
demasiado humanos. (NIETZSCHE, 2005, p. 7).

Nos excertos de Nietzsche acima transcritos, podemos identificar a falha de uma filosofia
da consciência ou do sujeito, com suas abstrações da realidade e generalidades, em descarte a uma
construção interpretativa a partir do contato do indivíduo com o mundo, o qual experimenta as
coisas nele contidas, bem como tal “filosofia metafísica” não tem em conta a antecipação da pré-
compreensão do sujeito em suas construções interpretativas. Aqui, pois, observamos um diálogo
com M. Heidegger e Lênio Streck.

Deveras, Nietzsche, logo no primeiro capítulo de Além do Bem e do Mal, expõe ideias que
delineiam o mesmo pensamento que Martin Heidegger, em Ser e Tempo. Formulando sua crítica
aos adeptos da “Metafísica”, aquele autor afirma que:

Este modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser
reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por
trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a partir desta sua “crença” que eles
procuram alcançar seu “saber”, alcançar algo que no fim é batizado solenemente
de “verdade”. A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de
valores. (NIETZSCHE, 2005, p. 9).

Um pouco mais adiante, Nietzsche parece fazer um prenúncio do que seria anos mais tarde
desenvolvido por Martin Heidegger como sua Fenomenologia Hermenêutica:

Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem


valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a
preservação de uma determinada espécie de vida. [...] A questão é em que medida
ele promove ou conserva a vida, conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva
a espécie; e a nossa inclinação básica é afirmar que os juízos mais falsos (entre
os quais os juízos sintéticos a priori) nos são os mais indispensáveis, que, sem
permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade com o mundo
puramente inventado do absoluto [...]. (NIETZSCHE, 2005, p. 10- 11).

Nietzsche continua sua crítica implacável àqueles que ele chama filósofos da metafísica
em busca da “verdade”, dizendo:

Todos eles agem como se tivessem descoberto ou alcançado suas opiniões


próprias pelo desenvolvimento autônomo de uma dialética fria, pura,
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divinamente imperturbável [...]: quando, no fundo é uma tese adotada de


antemão, uma ideia inesperada, uma intuição, em geral um desejo íntimo tornado
abstrato e submetido a um crivo, que eles defendem com razões que buscam
posteriormente – eles são todos advogados que não querem ser chamados assim,
e na maioria defensores manhosos de seus preconceitos, que batizam de
‘verdades’. (NIETZSCHE, 2005, p. 12).

Até que finalmente F. Nietzsche, em Além do Bem e do Mal, toca em uma questão que
possibilita, neste momento do presente trabalho, remeter-se à obra Microfísica do Poder (2012),
de Michel Foucault, a partir do qual pretendemos analisar o poder discricionário do juiz, seu livre
convencimento, como fruto de relações de poder devido a não aplicação (ou mesmo ainda rara
aplicação) de um caminho hermenêutico adequado.

Senão vejamos:

Mas esta é uma antiga, eterna história: o que ocorreu então aos estóicos sucede
ainda hoje, tão logo uma filosofia começa a acreditar em si mesma. Ela sempre
cria um mundo á sua imagem, não consegue evitá-lo; filosofia é esse impulso
tirânico mesmo, a mais espiritual vontade de poder, de ‘criação do mundo’, de
causa prima [causa primeira]. (NIETZSCHE, 2005, p. 15).

Nessa perspectiva, logo na introdução de Microfísica do Poder, escrita por Roberto


Machado, na qual se faz um apanhado geral de algumas obras de Michel Foucault, observa-se de
plano a intenção deste autor e sua sintonia com a verve crítica do presente trabalho acadêmico, no
sentido de que

Só pode haver ciência humana [...] a partir do momento em que o aparecimento


de ciências empíricas (...) e das filosofias modernas, que têm como marco inicial
o pensamento de Kant, privilegiaram o homem como objeto e como sujeito de
conhecimento, abrindo a possibilidade e um estudo do homem como
representação [...], consistia em descrever a constituição das ciências humanas a
partir de uma inter-relação de saberes, do estabelecimento de uma rede conceitual
que lhes cria o espaço de existência [...]. (FOUCAULT, 2012, p. 10).

Conforme nos alerta Michel Foucault, no primeiro capítulo "Verdade e Poder", de


Microfísica do Poder, no qual o próprio autor mencionado se intitula como "antiestruturalista",
anota a descontinuidade da história, ou seja, não se pode eliminar, por meio de conceitos,
estruturas ("aquilo que é pensável"), dialética ("como lógica da contradição"), tampouco da
semiótica ("como estruturas de comunicação"), aquilo que não se subjuga à "mecânica e no jogo
da análise, pelo menos na forma que tomaram no interior do estruturalismo.": o acontecimento.
(FOUCAULT, 2012, p. 40).

O referido autor vai além ao aduzir que o acontecimento engendra mudanças e


transformações, as quais os enunciados correspondentes e "aceitos cientificamente" acompanham
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e por aquelas sofrem metamorfoses para serem aceitos como verdadeiros. Vejamos a assertiva do
próprio autor:

O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como eles se regem
entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis cientificamente e,
consequentemente suscetíveis de serem verificadas ou infirmadas por
procedimentos científicos. (FOUCAULT, 2012, p. 39)

Porém, segundo Foucault, o que mais importa em sua investigação não são os fatores
externos que influenciam mudanças nos conceitos aceitos como científicos, mas o “regime interior
de poder” que vige entre os enunciados científicos e que impõe a sua modificação, às vezes, de
modo global. Com efeito:

Em suma, problema de regime, de política do enunciado científico. Nesse nível


não se trata de saber qual é o poder que age do exterior sobre a ciência, mas que
efeitos de poder circulam entre os enunciados científicos; qual é o seu regime
interior de poder; como e porque em certos momentos ele se modifica de forma
global. (FOUCAULT, 2012, p. 39).

Neste ponto acima descrito, observa-se um diálogo de Foucault com o professor Lênio
Streck. Observemos a passagem em que Lênio Streck interpreta o pensamento de uma filósofa
contemporânea (Susan Haack) acerca da criação de um mundo por “convenção científica”, perigo
já alertado por Foucault e também por Nietzsche, transcrições acima, a saber:

Uma filósofa contemporânea como Susan Haack (2015) não pode ser enquadrada
nesse modelo consequencialista característico do pragmatismo. Haack
responsabiliza – corretamente – determinadas posturas dentro da matriz
pragmatista como vulgares, uma vez que perdem a dimensão de verdade e de
objetividade. Nesse sentido, é possível concordar com Haack na medida em que,
para ela, temos de construir a ideia de que o mundo possa vir a ser uma ficção,
pois a verdade não é somente uma questão de convenção científica; há também
um elemento de base objetiva, uma espécie de ‘mínimo é’ do qual é condição de
possibilidade para a existência da própria ciência e suas verdades. (STRECK,
2017b, p. 225).

Prosseguindo a análise acerca dos estudos de Michel Foucault, Microfísica do Poder, o


referido autor aponta a história como uma rede de acontecimentos, confrontos, guerra entre
relações de força, relações de poder, com incidência aleatória e aberta, embora inteligível. Por
essa razão, da impossibilidade de análises metafísicas, apriorísticas, pretensamente realizadas na
seara meramente simbólica ou no “campo das estruturas significantes”, a saber, o uso da dialética
hegeliana, v.g., como “uma maneira de evitar a realidade aleatória e aberta da inteligibilidade,
reduzindo-a ao esqueleto hegeliano;” e a semiologia como “uma maneira de evitar o caráter
violento, sangrento e mortal, reduzindo-a à forma apaziguada e platônica da linguagem e do
diálogo.” (FOUCAULT, 2012, p. 41).
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Após, quando Foucault começa a discorrer sobre a palavra “repressão”, este autor consigna
que a lei é a faceta jurídica do poder. No entanto, a mecânica do poder, desde o século XVI,
conforme demonstrado em sua outra obra Vigiar e Punir (1975), deixou de ser meramente
negativa, repressiva, um castigo dado para servir de exemplo, mas também passou a um poder que
“produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma
rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que
tem por função reprimir.” (FOUCAULT, 2012, p. 45).

A saber:

Essas novas técnicas são, ao mesmo tempo, muito mais eficazes e muito menos
dispendiosas (menos caras economicamente, menos aleatórias em seu resultado,
menos suscetíveis de escapatórias ou de resistências) do que as técnicas até então
usadas e que repousavam sobre uma mistura de tolerâncias mais ou menos
forçadas (desde o privilégio reconhecido até a criminalidade endêmica) e de cara
ostentação (intervenções espetaculares e descontínuas do poder cuja forma mais
violenta era o castigo “exemplar”, pelo fato de ser excepcional). (FOUCAULT,
2012, p. 45).

Assim, o referido autor aponta a lei, v.g., como mecanismo de poder que permite
“distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; (...) o
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.” (FOUCAULT,
2012, p. 52). Nesse diapasão, acrescente-se a observação do professor Lênio Streck, no seu
Dicionário de Hermenêutica, verbete “Princípios jurídicos”, que a ruptura de paradigma e sua
descontinuidade, no que diz respeito a regras e princípios, sua diferenciação, distanciamento e
ensejo à discricionariedade dos intérpretes do Direito, implica em um giro da legitimidade da fonte
criadora da lei latu sensu, para a análise da fundamentação do Direito a partir da Constituição. A
saber: “Nesse sentido, estão os conceitos de ‘direitos fundamentais’, das chamadas ‘cláusulas
gerais’, dos ‘enunciados abertos’ e, evidentemente, dos ‘princípios’. Todos estes elementos – que
passam a ser constitutivos da normatividade – são reconhecidos independentemente da lei ou
apesar dela.” (STRECK, 2017b, p. 241).

Pari passu, infere-se um diálogo entre Foucault e Streck, no qual se pode afirmar que o
solipsismo de um juiz togado advém, além da falta de uma teoria da decisão adequada, da
produção da verdade por meio de múltiplas coerções, a partir da “política geral” de verdade
acolhida pela sociedade e feita funcionar como discursos verdadeiros, videlicet:

Em nossas sociedades, a “economia política” da verdade tem cinco


características historicamente importantes: a verdade é centrada na forma do
discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma
constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a
produção econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas,
de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de
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educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente


grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é produzida e transmitida
sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos
políticos ou econômicos (universidade, Exército, escritura, meios de
comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas
‘ideológicas’). (FOUCAULT, 2012, p. 52).

Nessa esteira, adicione-se, a latere, o comentário relevante da professora Leyla Perrone-


Moisés, estudiosa do professor Roland Barthes, contemporâneo de M. Foucault, quando diz, no
posfácio da obra “Aula” (2013), daquele autor:

Esta é a grande questão de um ensino artístico, e, no caso, de Barthes, de um


ensino escritural: aberração, se ele for entendido como a transmissão de um
konw-how, pois o know-how da arte é irrepetível; mas possibilidade, se se
entender esse ensino como a aprendizagem de uma postura ou de uma
impostação artística. A suspeita de impostura paira, é claro, sobre tal ensino. Pois
a ética subentendida no ensino institucional exige a repetição (para a manutenção
do sistema, como já apontara Nietzsche), e a repetição implica uma
responsabilidade do modelo, isto é, do mestre. (BARTHES, 2013, p. 55-56).

Neste momento, em que inserimos os estudos da aplicação do Direito, ou seja, de uma


teoria adequada da decisão, no âmbito da ciência que é o Direito, doravante torna-se oportuno
tratar sobre as primeiras páginas da obra de R. Dworkin, O Império do Direito, em diálogo com
as ideias supra do professor Lênio Streck, nas quais aquele autor revela que o objetivo de seu livro
é tratar sobre os “fundamentos apropriados do Direito”. Ou seja, segundo Dworkin, visa-se a uma
análise da força dos argumentos que levam os juízes togados a decidirem como decidem. Portanto,
uma perspectiva interna sobre o Direito:

Este livro adota o ponto de vista interno, aquele do participante; tenta apreender
a natureza argumentativa de nossa prática jurídica ao associar-se a essa prática e
debruçar-se sobre as questões de acerto e verdade com as quais os participantes
se deparam. (DWORKIN, 2010, p. 19).

Neste ponto, vale acrescentar a observação do Professor Dimas Salustiano, quanto à


importância da inserção da facticidade na interpretação jurídica, em sua Dissertação de Mestrado
na Universidade Federal do Paraná (1996), ao citar Friederich Müller:

O trabalho dos juristas já não pode negligenciar como se não existissem


problemas reais em um país como o Brasil. Sim, é dessa forma, haja vista o
caráter do trabalho realizado pelos operadores jurídicos e pela doutrina, pois o
‘Estabelecimento de regras jurídicas, a aplicação de regras, a sua interpretação,
a valoração jurídica, a decisão e a discussão configuram trabalho... que deve ser
pesquisado liminarmente a partir do seu contexto social, a partir da sua relação
com outras tarefas,causadas e formuladas pelo convívio social. Em outras
palavras: também o trabalho dos juristas é estruturalmente compreensível a partir
da divisão social do trabalho, ou, formulando de modo mais preciso, a partir do
trabalho social. (DIMAS, 1996, p. 34).
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Continuando com as lições de Dworkin, em O Império do Direito, anote-se que os


“participantes” de Dworkin referem-se a “Todos os envolvidos nessa prática [prática
argumentativa]” e “compreendem que aquilo que ela permite ou exige depende da verdade de
certas proposições que só adquirem sentido através e no âmbito dela mesma; a prática consiste,
em grande parte, em mobilizar e discutir essas proposições.” (2010, p. 16) De modo que
“participantes” são todos os cidadãos que criam e reivindicam direitos, notadamente os que criam
e legitimam uma Constituição.

Segundo Dworkin:

[...] Serão perversas as teorias que, em nome de questões supostamente mais


amplas de história e sociedade, ignorarem a estrutura do argumento jurídico. Por
ignorarem as questões sobre a natureza interna do argumento no direito, suas
explicações são pobres e incompletas, como as histórias da matemática se
escritas na linguagem de Hegel ou de Skinner. (2010, p. 18).

Em outro trecho, parece cabível o endereçamento de uma crítica de Dworkin ao


Positivismo normativo, de cariz kelseniano, a saber:

Um bom entendimento do direito como fenômeno social exige, na opinião desses


críticos, uma abordagem mais científica, sociológica ou histórica, que dê pouca
ou nenhuma atenção às complicações da doutrina sobre a correta caracterização
do argumento jurídico. (DWORKIN, 2010, p. 16-17).

Anote-se, ainda, que Dworkin, após narrar casos em que membros de Tribunais Superiores
ingleses divergiam, não quanto à questão de fato, mas quanto à natureza do Direito aplicável em
cada caso, descrito por aquele autor em seu livro O Império do Direito, aponta o positivismo
jurídico enquanto “teoria semântica que sustenta o ponto de vista do direito como simples questão
de fato e a alegação de que o verdadeiro argumento sobre o direito deve ser empírico, não teórico.”
(2010, p. 46) Por isso, Dworkin (2010, p. 46) conclui:

Se o positivismo está certo, então a aparente divergência teórica sobre os


fundamentos do direito, no caso Elmer, no caso McLoughlin, no caso do
snaildarter e no caso Brown, é de certo modo enganadora. Nesses casos, as
instituições jurídicas precedentes não haviam decidido expressamente a questão
de nenhuma maneira, e os advogados que usavam corretamente a palavra
‘direito’, segundo o positivismo teriam concordado quanto a não haver direito
algum a descobrir.

Por outro lado, quando Dworkin indica a existência de uma “defesa sofisticada do
positivismo” enquanto teoria semântica, o referido autor apontará que, em vez de um fundamento
empírico, relegando a discussão do direito a um mero “fingimento”, o positivista colocará a
discussão no campo teórico, sobre o conteúdo do direito, porém uma divergência puramente
semântica, tal como sobre o significado da palavra “direito”, ou da palavra “casa”. Daí que
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Dworkin fará vislumbrar de onde nasce a discricionariedade do julgador, quando há divergência


entre conceitos não aceitos como unânimes por todos os envolvidos na elaboração da decisão.

De modo que os juízes, em casos difíceis, estariam criando direito novo. Ou seja, “De nada
adianta dizer que advogados e juízes são capazes de se enganar porque, na verdade, estão
discutindo uma outra questão, a questão política de se o ministro deve ter esse poder, ou se os
estados devem ser proibidos de praticar a segregação nas escolas.” (DWORKIN, 2010, p. 50)

Assim, lendo as páginas seguintes, parece claro que R. Dworkin quer mostrar, nos referidos
casos julgados descritos em seu livro, que, ao contrário do que afirmaria um positivista, conforme
descrito acima, a real divergência entre os julgadores era sobre os fundamentos do Direito, sobre
“aquilo que torna uma proposição jurídica verdadeira, não somente na superfície, mas em sua
essência também.” A saber:

Suas divergências sobre a legislação e o precedente eram fundamentais; seus


argumentos mostravam que eles divergiam não só quanto à questão de se Elmer
deveria ou não receber sua herança, mas também sobre a razão pela qual qualquer
ato legislativo, inclusive as leis de trânsito e as taxas de tributação, impõe os
direitos e deveres que todos reconhecem; não apenas sobre a questão de indenizar
ou não a sra. Mcloughlin, mas sobre como e por que as decisões judiciais
anteriores alteraram a lei do país. (DWORKIN, 2010, p. 52).

Nessa perspectiva, prosseguindo a discussão em O Império do Direito, em seu segundo


capítulo, “Conceitos de interpretação”, impressiona a explanação de Dworkin a respeito do tipo
de divergência que realmente importa, no campo do Direito, em contraste com os argumentos aos
quais o professor Lênio Streck também denomina, em diferentes passagens de seu Dicionário de
Hermenêutica (2017a), de “senso comum teórico”, e que estão presos ao que Dworkin chama de
“Aguilhão Semântico”, a saber:

“a menos que os advogados e juízes compartilhem critérios factuais sobre os


fundamentos do direito, não podendo haver nenhuma ideia ou debate
significativos sobre o que é o direito.” (DWORKIN, 2010, p. 54)

Deste modo, segundo Dworkin (2010), o erro do senso comum teórico, em seu apego ao
chamado “aguilhão semântico”, está notadamente, na sua aplicação “aos conceitos jurídicos, ao
conceito de direito”, em que, ou há um ceticismo que acredita que as divergências existem por
que adotam critérios diferentes, ao divergirem, no plano semântico, sobre o significado de um
mesmo signo, ou as pessoas presas ao aguilhão semântico “tentam identificar as regras
fundamentais ocultas que ‘devem’ estar contidas, mas não reconhecidas, na prática jurídica. Eles
produzem e discutem as teorias semânticas do direito.” (DWORKIN, 2010, p. 55/56)

Sem embargo, Dworkin indica que a parte relevante da divergência em Direito é teórica,
em vez de empírica. De modo que há um engano grosseiro quanto ao que deve ser a divergência
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por correntes filosóficas de cariz positivista. Quando Dworkin, em O Império do Direito, expõe
sobre o ato de interpretar enquanto uma hermenêutica construtiva, este autor indica que, em vez
de critérios compartilhados meramente semânticos, formais, quiçá metafísicos, a divergência
genuína diz respeito às melhores interpretações debatidas e compartilhadas no seio da
comunidade.

Nesse momento, ainda no início do seu 2º capítulo (O império do Direito), Dworkin


explana acerca de um exemplo de uma comunidade que segue “regras de cortesia”. Ocorre que, a
partir do momento que os participantes da comunidade fictícia passam a questionar sobre a
importância, real valor e a finalidade legítima das referidas regras, tornam a fazer,
conscientemente, aquilo que o professor Lênio Streck, inspirado em Gadamer, chama em seu
Dicionário de Hermenêutica (2017), de “Applicatio”, em concomitância a sua respectiva
interpretação e compreensão. Isso, porém, agora não mais espraiados em mera relação de
confiança, mas, doravante, no despertar de cada participante para a sua autenticidade, nos termos
desenvolvidos pelo sociólogo Anthony Guidens, em sua obra Identidade e Modernidade (2003).

Somente assim, os participantes poderão sair da “caverna” (platônica) e enxergar possíveis


relações de poder nas entrelinhas de interpretações meramente semânticas, bem como o modo
como se dão as coerções fruto das microfísicas do poder sobre a atitude interpretativa, no caso do
Direito, do órgão julgador.

Nessa esteira, observa-se a ideia proposta por Dworkin: “As pessoas agora tentam impor
um significado à instituição – vê-la em sua melhor luz – e, em seguida, reestruturá-la à luz desse
significado.” (2010, p. 58). Outrossim, o professor Lênio Streck, no verbete “Coerência e
integridade”, de seu Dicionário de Hermenêutica corrobora, neste ponto, Dworkin, ao aduzir:

A tese de que o Direito deve ter coerência e integridade é o do jusfilósofo norte-


americano Ronald Dworkin, que foi um dos grandes críticos do positivismo
jurídico. O grande diferencial do conjunto de sua obra, escrita, dentre outros
aspectos, com a pretensão de ruptura com o juspositivismo, está no
reconhecimento do Direito como uma atividade interpretativa (conceito
interpretativo) sem que isso represente a defesa de posturas relativistas no
julgamento dos casos. Ao contrário, a percepção de uma dimensão interpretativa
do fenômeno jurídico parte da divergência – que, por sua vez, representa a parada
reflexiva sobre determinada prática jurídica – para afirmar a existência de
respostas corretas no Direito, constituídas no esforço de, diante da divergência,
encontrar a melhor interpretação possível para determinada controvérsia. Neste
processo o que está em jogo é o valor/sentido da própria prática. Ou seja, sendo
o Direito a prática social que garante legitimidade para o uso da força pelo
Estado, a melhor interpretação será aquela que articule coerentemente todos os
seus elementos (regras, princípios, precedentes, etc.) a fim de que a decisão
particular se ajuste ao valor que é a sua razão de ser. Dito de outro modo, a
divergência é resolvida com a melhor justificação. (STRECK, 2017b, p. 33).
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Dessarte, Dworkin ressalta que, antes de se interpretar o Direito enquanto prática social,
deve-se buscar um genuíno conceito de interpretação, a saber, “uma teoria da interpretação é uma
interpretação da prática dominante de usar conceitos interpretativos.” (DWORKIN, 2010, p. 60).

Ab initio, Dworkin afirma que quando se interpreta o Direito enquanto prática social, esta
interpretação se dá em apenas um dos contextos ou “ocasião” de interpretação. Daí, o referido
autor diferencia as situações de interpretação por meio de exemplos dos referidos contextos: a
conversação, a interpretação científica e a interpretação artística. Conforme ressalta Dworkin
(2010, p. 61):

A forma de interpretação que estamos estudando – a interpretação de uma prática


social – é semelhante à interpretação artística no seguinte sentido: ambas
pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta
delas, e não o que as pessoas dizem, como na interpretação da conversação, ou
fatos não criados pelas pessoas, como no caso da interpretação científica.

A seguir, Dworkin toca em um ponto central para o deslinde de sua teoria interpretativa: a
questão da “intenção” do interlocutor. Com efeito, a primeira grande indagação que o mencionado
autor, ao falar sobre a perene pertinência da “intenção do orador”, é a seguinte:

Podemos afirmar que todas as formas de interpretação têm por finalidade uma
explicação intencional nesse sentido, e que essa finalidade estabelece uma
distinção entre a interpretação, enquanto um tipo de explicação, e a explicação
causal em sentido mais amplo?. (DWORKIN, 2010, p. 61).

Ao fazer a mencionada diferenciação entre a interpretação causal e a criativa, Dworkin


explana sobre a inadequação de uma interpretação que perscruta a intenção metafórica do próprio
objeto a ser interpretado ou quando intenta, como saída, buscar da intenção do autor do objeto
interpretando. Para Dworkin, a melhor solução é a de que “a interpretação criativa não é
conversacional, mas construtiva.” (DWORKIN, 2010, p. 63) Em outras palavras, o propósito, em
vez da mera causa, é o que deve guiar o intérprete tanto com relação a obras de arte, quanto no
que atine a práticas sociais, notadamente o Direito.

Até que Dworkin chega ao ponto fulcral de sua teoria da interpretação construtiva até aqui
discutida: os limites que a linguagem pública impõe ao intérprete na construção de sua
interpretação ótima. O que é diferente da coerção proveniente das microfísicas de poder,
denunciadas por Foucault. Aquela é fruto da história, da prática da comunidade, do melhor
propósito da intepretação. Esta provém da dominação de classes, da instituição da delinquência,
da manutenção do status quo social desigual, enfim, da fabricação contínua de operários
obedientes – uma conspiração de forças não estatais – esse é o enfoque de Foucault (2012) – que
medem e dominam os indivíduos. Neste caso, sobressaem as relações de confiança (e.g, a era dos
“coachings”), em detrimento à busca de um ser autêntico em cada um de nós. (GUIDENS, 2003).
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A saber:

Em linhas gerais, a interpretação construtiva é uma questão de impor um


propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da
forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam. Daí não se segue,
mesmo depois dessa breve exposição, que um intérprete possa fazer de uma
prática ou de uma obra de arte qualquer coisa que desejaria que fossem; que um
membro da comunidade hipotética fascinado pela igualdade, por exemplo, possa
de boa-fé afirmar que, na verdade, a cortesia exige que as riquezas sejam
compartilhadas. Pois a história ou a forma de uma prática ou objeto exerce uma
coerção sobre as interpretações disponíveis destes últimos, ainda que, como
veremos, a natureza dessa coerção deva ser examinada com cuidado. Do ponto
de vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de interação entre
propósito e objeto. (DWORKIN, 2010, p. 63-64).

Conforme bem salienta o professor Lênio Streck, podemos afirmar que o desenvolvimento
da interpretação construtiva de Dworkin segue o que Hans-George Gadamer denomina de “Fusão
de horizontes”:

Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo que é visível a partir e
um determinado ponto’, diz Gadamer (2012, p. 399). Mas, então, como é possível
liberdade em relação a esse horizonte? Gadamer responde a essa pergunta,
oferecendo a fusão de horizontes como o modo de desarticular as camadas de
sentido inautênticas que constituem o horizonte de sentido. [...] O ponto de
inflexão, portanto, não é teórico-abstrato, mas prático-concreto, ligado à
realidade de onde se busca a inspiração e para onde convergem as possibilidades
abertas pela conversação, onde está em jogo não o exato, mas o contingente, o
mutável e o variável, próprio do acontecer humano na sociedade. A isso Gadamer
vai denominar ‘fusão de horizontes’, termo chave na sua léxica. (STRECK,
2017b, p. 81).

Avançando, e em sintonia com o acima já analisado, para o segundo capítulo de


Microfísica do Poder, “Nietzsche, a Genealogia e a História”, Foucault descreve a genealogia,
termo utilizado também por Nietzsche, em algumas de suas obras, e que se refere ao estudo da
história autêntica das coisas, como um “indispensável esperar”, haja vista “a singularidade dos
acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e
naquilo que é tido como não possuindo história – os sentimentos, o amor, a consciência, os
instintos;”. (FOUCAULT, 2012, p. 55) Deste modo, a linearidade da história, a sua cadente
evolução, torna-se algo ilusório, de modo a originar notadamente – e nesse ponto o referido autor
converge com as ideias de Nietzsche – a recusa a uma pesquisa da “origem” no sentido de “acolher
a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida
em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo.”
(FOUCAULT, 2012, p. 58) Dessarte:

[...] como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua direção,
as ideias sua logica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse
conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. (2012, p. 55)
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[...] Procurar uma tal origem [metafísica] é tentar reencontrar ‘o que era
imediatamente’, o ‘aquilo mesmo’ de uma imagem exatamente adequada a si; é
tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido todas as
máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira. Ora, se o genealogista
tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que
ele aprende? Que atrás das coisas há ‘algo inteiramente diferente’: não seu
segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência e sem
data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída
peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu
de uma maneira inteiramente ‘desrazoável’ – do acaso. (2012, p. 58).

Na verdade, Foucault aponta, neste segundo capítulo de seu livro, como Nietzsche satiriza
a concepção de que no início, na origem das coisas, há a perfeição, uma “alta origem”, fruto de
um exagero metafísico. Ambos os autores vêm a denunciar que tal delírio da origem de algo sem
mácula, perfeito e divino não condiz com o efetivo desenrolar da história humana. A saber,
vejamos o tom satírico de Nietzsche no trecho transcrito por Foucault (2012, p. 59) a seguir:

Procura-se despertar o sentimento de soberania do homem mostrando seu


nascimento divino: isto agora se tornou um caminho proibido; pois no seu limiar
está o macaco.’ [Humano, demasiado humano] O homem começou pela careta
daquilo em que ele ia se tornar; Zaratustra mesmo terá seu macaco que saltará
atrás dele e tirará o pano de sua vestimenta.

Anote-se ainda, em destaque, a sintonia de Foucault com a ideia de “falação” expendida


na obra Ser e Tempo, de Martin Heidegger, quando aquele critica a “origem” metafísica como o
lugar da verdade, e sua fatal recaída a uma verdade do discurso, uma “tagarelice”, que a recobre,
obscurece e a perde. Segundo Foucault, em Microfísica do Poder (2012, p. 60):

Enfim, o último postulado da origem, ligado aos dois primeiros: seria o lugar da
verdade. Ponto totalmente recuado e anterior a todo conhecimento positivo ela
tornará possível um saber que contudo a recobre e não deixa, na sua tagarelice,
de desconhecê-la; ela estaria nesta articulação inevitavelmente perdida onde a
verdade das coisas se liga a uma verdade do discurso que logo a obscurece, e a
perde.

Visitando Ser e Tempo, no parágrafo 35, “A falação”, Heidegger (2016) afirma que já há
uma “compreensibilidade mediana” inerente à linguagem falada, a qual não exige qualquer
esforço do ouvinte para uma compreensão originária daquilo de que a fala trata. “Tem-se em mente
a mesma coisa por que se compreende em comum o dito numa mesma medianidade.” (2016, p.
232) Desse modo, Heidegger assevera que, neste caso, não há referência ontológica originária, ou
primária, visto que a escuta e o compreender já aderiram previamente à fala comum, dando origem
a “repetir e passar adiante a fala”.

Senão vejamos:

O falado na falação arrasta consigo círculos cada vez mais amplos, assumindo
um caráter autoritário. As coisas são assim como são porque é assim que delas
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(impessoalmente) se fala. Repetindo e passando adiante a fala, potencia-se a falta


de solidez. Nisso se constitui a falação. A falação não se restringe apenas à
repetição oral da fala, mas expande-se no que escreve enquanto “escrivinhação”
(N58). Aqui, a repetição da fala não se funda tanto no ouvir dizer. Ela se alimenta
do que se lê. A compreensão mediana do leitor nunca poderá distinguir o que foi
haurido e conquistado originariamente do que não passa de mera repetição. E
mais ainda, a própria compreensão mediana não tolera tal distinção, pois não
necessita dela, já que tudo compreende. (HEIDEGGER, 2016, p. 232).

Outra passagem interessantíssima em que Heidegger, fazendo ainda considerações sobre a


“falação”, medianidade, impessoal e interpretação a partir daquela, define bem, a nosso ver, a
condição humana desde sempre:

Este tipo de interpretação própria da falação já se consolidou na presença. É dessa


maneira que aprendemos e conhecemos muitas coisas. É dessa maneira ainda que
não poucas coisas jamais conseguem ultrapassar uma tal compreensão mediana.
A presença nunca consegue subtrair-se a essa interpretação cotidiana em que ela
cresce. Todo compreender, interpretar e comunicar autênticos, toda redescoberta
e nova apropriação cumprem-se nela, a partir dela e contra ela. Não é possível
uma presença, que não sendo tocada nem desviada pela interpretação mediana,
pudesse colocar-se diante da paisagem livre de um “mundo” em si, para apenas
contemplar o que lhe vem ao encontro. O predomínio da interpretação pública já
decidiu até mesmo sobre o modo fundamental em que a presença é tocada pelo
mundo. O impessoal prescreve a disposição e determina o quê e como se “vê”.
(HEIDEGGER, 2016, p. 233).

Eis um caldo teórico proposto no presente trabalho acadêmico, para que se resgate, da
Filosofia para o Direito, noções essenciais de compreensão para a elaboração de uma Teoria da
decisão adequada, que sirva de base aos intérpretes do Direito, quando de sua aplicação, em
superação aos métodos juspositivista e pós-positivistas (Positivismo normativo kelseniano, Teoria
da Argumentação alexyana, Teoria Consensual/procedimental harbermasiana), vigentes entre os
intérpretes do Direito brasileiro, que se lastreiam/admitem a discricionariedade do julgador.
(STRECK, 2017a).

Anote-se, porém, que os trechos acima das diferentes obras citadas são apenas um aperitivo
da imensurável profundidade dos referidos autores, pensamentos dos quais, a nosso sentir,
deságuam, em nosso caso, aqui no Brasil, na Teoria da decisão do professor Lênio Streck,
denominada Crítica Hermenêutica do Direito.

3 CONCLUSÃO

Na presente monografia, no decorrer de seus capítulos, tentamos, propedeuticamente, fazer


uma análise de uma Teoria da decisão que seja um caminho hermenêutico adequado e seguro,
para que o intérprete do Direito a utilize em sua aplicação.
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A este ponto de presente trabalho acadêmico, já é clara a nossa escolha, como método
hermenêutico adequado, pela Crítica Hermenêutica do Direito, desenvolvida pelo professor Lênio
Streck, por todos os critérios básicos desta Teoria da decisão que tentamos expor no decorrer desta
Monografia.

A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) tem sua ênfase na facticidade, no modo prático
de ser-no-mundo, o qual direciona a atividade compreensiva. A saber:

[...] abrindo espaço para a construção de respostas adequadas hermeneuticamente


à Constituição, insistindo na perspectiva de verdades conteudísticas, entendidas
a partir da perspectiva fenomenológica, isto é, de que esta se afere como correção
que tem por base um texto constitucional que resgata o ideal de vida boa, que
também pode ser compreendido, aqui, como o mundo prático que fora deixado
de fora do mundo das regras do positivismo. (STRECK, 2017a, p. 108).

Anote-se, porém, que eventuais críticas e discordâncias com as teorias de cunho


procedimental/argumentativo não retira destas teorias sua valiosa contribuição para a reflexão em
temas sociais, jurídicos e políticos e mesmo para o enriquecimento dos debates e críticas. Nada
obstante, registre-se e frise-se a crítica de que não se pode eliminar, por meio de puros métodos,
o elemento hermenêutico, a pré-compreensão, a facticidade, que precede a teoria do
conhecimento, ou epistemologia.

O que pretendemos diferenciar, de forma nítida, é que o Brasil é um país com


desigualdades sociais e econômicas e, por isso, precisamos que os direitos fundamentais
individuais e sociais, previstos na Constituição, sejam aplicados e tornados efetivos, por meio de
cada decisão judicial, sem resvalar, porém, em ativismo judicial desmedido, tal vem ocorrendo
com frequência no Direito brasileiro.

Portanto, é preciso estabelecer critérios para que os princípios constitucionais sejam


limitadores da discricionariedade do intérprete do Direito, tal como defende a Crítica
Hermenêutica do Direito, alinhada à crítica de R. Dworkin ao decisionismo do julgador, nesta
quadra da história; critérios dos quais alguns já foram analisados em cada capítulo desta
monografia. É certo que, para este autor que ora escreve, este trabalho acadêmico é apenas o início
de uma pesquisa e estudos acerca das já referidas e analisadas bases teóricas, que lastreiam a
Crítica Hermenêutica do Direito.

Porém, de já, é gratificante trazer à discussão, no espaço acadêmico da Universidade


Federal do Maranhão, uma análise sobre uma Teoria da decisão, proposta como método
hermenêutico que supera o vetusto (porém, ainda predominantemente aplicado) Positivismo, e
suas várias nuances; bem como, uma Teoria que exsurge enquanto critérios seguros, para que o
intérprete do Direito encontre uma resposta adequada à Constituição de 1988.
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REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França,
pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. São Paulo: Cultrix, 2013.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada


em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF, 1988.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 25. ed. São Paulo: Edições Graal, 2012.

GADAMER, Hans George. Verdade e Método. São Paulo: Vozes, 2017. 2v.

GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)Pensando a pesquisa
jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

HEIDDEGER, Martin. Ser e Tempo. 6. ed. São Paulo: Vozes, 2016.

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia


científica. 5. ed. São Paulo; Atlas, 2003.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso De Direito Administrativo. 33. ed. São Paulo:
Malheiros, 2018.

NIETZSCHE, Friederich. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Martin Claret, 2005.

SILVA, Dimas Salustiano da. Constituição Democrática e Diferença Étnica no Brasil


Contemporâneo: um exercício constitucional-concretista face ao problema de acesso à terra pelas
comunidades remanescentes dos quilombos. 1996. Dissertação (Mestrado em Direito)-
Universidade Federal do Paraná, 1996.

STRECK, LÊNIO LUIZ. LIÇÕES DE CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO. PORTO


ALEGRE: LIVRARIA DO ADVOGADO, 2014.
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STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teoria discursiva. 2.


ed. São Paulo: Saraiva, 2017a.

STRECK, Lênio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas Fundamentais da Teoria do


Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Ed. Casa do Direito, 2017b.

STRECK, Lênio Luiz. 30 Anos da CF em Julgamentos: uma Radiografia do STF. São Paulo:
Forense, 2018.

TAVARES, Oliver. O confronto radical entre Nietzsche e Heidegger em relação à superação da


metafísica. Controvérsia, v. 8, n. 3, p. 12-32, set./dez., 2012.
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VERDADE E POESIA: UMA INTERPRETAÇÃO DA VERDADE METAFÓRICA A


PARTIR DE RICOEUR NO GUESA DE SOUSÂNDRADE

TRUTH AND POETRY: AN INTERPRETATION OF THE METAPHORIC TRUTH


FROM RICOEUR IN THE GUESA OF THE SOUSÂNDRADE

Carla Karine da Silva Barros, graduanda, UFMA.


Gênero, Literatura e Filosofia
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rita de Cássia Oliveira

Eixo temático 2: Gênero, Literatura e Filosofia

Resumo: Neste trabalho pretendemos apresentar e discutir o pensamento do filósofo francês Paul
Ricoeur (1913-2005) sobre o desenvolvimento da narrativa que atravessa a linguagem humana,
em seu aspecto de linguagem plena, como aponta o autor, isto é, a linguagem das metáforas e das
simbologias. N’A metáfora Viva, o autor apresenta essa figura de linguagem como alvo de
investigação analítica e objeto de interpretação. Vemos o pensador reconhecer e legitimar a
metáfora, partindo de um espaço inovador semântico, como referencial do uso da linguagem
metafórica, que se funda numa estrutura de relação entre poesia e mundo. Ou seja, compreende-
se, com Ricoeur, que a poesia lance no mundo um quê estrutural ontológico, um espaço ontológico
e dialético. Agigantando-se sobre os postulados de Aristóteles, na poética, vemos Paul Ricoeur
expandir o uso da metáfora, apontando para o uso que fazemos dela e da relação que esta figura
tem conosco em nossas ações mais cotidianas – fazemos essa análise em passagens do poema O
Guesa. À luz da metodologia hermenêutica fenomenológica que enxerta a primeira ciência na
segunda, é que se pretende investigar e analisar a verdade metafórica existente na supracitada obra
do poeta maranhense Joaquim de Sousândrade. Assim, portanto mostramos que a metáfora tem o
poder de transportar de um âmbito já constituído de sentido para outro completamente novo os
significados, com um novo espaço referencial e, que essa dinâmica é possível graças à vastidão
de horizontes de sentido que detém essa figura de linguagem. Para tanto, mostraremos como os
significados primários abrem espaço para o aspecto ontológico, além de apontar como suas
características de variabilidade e dinamismo os tornam não estáveis, isto é, tornam possível a
ampliação de horizontes semânticos bem como a exploração de outros referenciais. O que, por sua
vez, torna impossível a solidificação do significado.
Palavras-chave: Ricoeur. Hermenêutica. Poesia. Guesa.

Abstract: In this work we intend to present and discuss the thought of the french philosopher Paul
Ricoeur (1913-2005) on the development of the narrative that crosses human language, in its
aspect of full language, as the author points out, that is, the language of metaphors and
symbologies. In the Viva metaphor, the author presents this figure of speech as the target of
analytical investigation and object of interpretation. We see the thinker recognizing and
legitimizing the metaphor, starting from an innovative semantic space, as a reference for the use
of metaphorical language, which is based on a relationship structure between poetry and the world.
In other words, it is understood, with Ricoeur, that poetry throws on the world something
ontological structural, an ontological and dialectic space. Looming over Aristotle's postulates, in
poetics, we see Paul Ricoeur expand the use of metaphor, pointing to the use we make of it and
the relationship that this figure has with us in our most everyday actions - we do this analysis in
passages of the poem O Guesa. In the light of the phenomenological hermeneutic methodology
that grafts the first science into the second, it is intended to investigate and analyze the
metaphorical truth existing in the aforementioned work by Maranhão poet Joaquim de
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Sousândrade. Thus, therefore, we show that metaphor has the power to convey meanings from an
already constituted sense to another, with a new referential space, and that this dynamic is possible
thanks to the vastness of horizons of meaning that this figure holds. language. For this purpose,
we will show how primary meanings open space for the ontological aspect, in addition to pointing
out how their characteristics of variability and dynamism make them non-stable, that is, they make
it possible to expand semantic horizons as well as explore other references. Which, in turn, makes
it impossible to solidify meaning.
Keywords: Ricoeur. Hermeneutics. Poetry. Guesa.

A linguagem poética é interpretada a partir de dois movimentos, articulados da composição


de uma lógica de constituição de a síntese da linguagem poética ser linguagem plena, aquela dos
símbolos, das metáforas e dos mitos. Eles são: por um lado, a ideia de ser a linguagem poética
hermética, o que exige a análise do sentido dos valores diferenciais das palavras no sistema
simbólico que é a própria língua. Por outro lado, Ricoeur concebe uma interpretação em que o
sentido transcende o signo e a referência, por considerar a subjetividade como o lugar de
emergência da significação enquanto intenção de um sujeito. Neste ponto, Ricoeur coloca-se fora
da posição estruturalista que entende a significação sem pertencer ao âmbito da intencionalidade
do sujeito. Segundo Ricoeur, a metáfora cria uma outra semântica, quando deslocada da palavra,
mais precisamente atribuída ao nome, na teoria da significação, para a frase, na teoria da Filosofia
da Interpretação, sendo a frase considerada como primeira unidade de significação. A metáfora
atribuída ao nome é concebida como um tropo, por ser um desvio que afeta a significação da
palavra. Na teoria aristotélica, a metáfora possui dupla função: poética e retórica, localizando-se
na quarta parte da léxis, isto é, no nome, que é definido como um som completo dotado de
significação. Resulta que a teoria da significação primou seu centro na denominação, interferindo
na arte da persuasão como um discurso que valoriza a palavra ornamentada, por se tratar de uma
elocução fundamentada na teoria dos tropos. Essa teoria baseia-se na premissa de que certos
nomes pertencem às coisas como próprios e, quando falta esse termo, quer por ausência, quer por
escolha de caráter estilístico, recorre-se a um recurso de uso de um termo impróprio, para
preencher a lacuna lexical; então, usa-se um termo impróprio ou figurado para substituir a palavra
ausente. Esse termo utilizado é a metáfora que, tanto por ausência como por opção estilística,
ornamenta o discurso sem proporcionar uma verdade, o que implica a falta de qualquer informação
nova, ou seja, a metáfora não ensina e tem uma função meramente decorativa, tornando a Retórica
um discurso belo, mas vazio de sentido e sem referência. Na linguagem poética, a palavra, quando
transporta a metáfora, pulveriza o seu efeito de sentido em toda a frase, com repercussão em toda
a narrativa. A metáfora é vista como um fenômeno da linguagem, por introduzir a subjetividade
na narrativa. Para Ricoeur, a narrativa poética correlaciona uma história e o caráter temporal da
experiência humana sob a forma de necessidade transcendental, na medida em que a vida
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pressupõe o contar dela própria, para se autofazer como história e transformar o tempo em tempo
humano por meio da voz narrativa que introduz a subjetividade na temporalidade.

A metáfora no poema O Guesa

A narrativa poética refigura a realidade por meio da composição da história em um ponto


de intersecção que combina metáfora, mythos e mímesis, segundo uma experiência que solicita o
entendimento na constituição de uma forma de identidade pela palavra, a qual Ricoeur denomina
de identidade narrativa. A partir desses princípios que compõem a teoria hermenêutica de Paul
Ricoeur que analisaremos determinadas categorias filosóficas, identificadas na constituição da
narrativa do poema O Guesa, de Sousândrade (1833-1902). Primeiro, apontaremos o sentido da
metáfora no referido poema, porque esta transmite uma experiência por meio de uma presença
inarticulada de um poder de sentido que impulsiona uma dinâmica, arrancando os significados já
constituídos na sua situação ordinária e transferindo-os para um novo campo referencial. As
significações são libertadas da sua primeira fixação para um referente “desconhecido”, outorgando
à intenção semântica a “veemência ontológica”. As significações não são formas estáveis. Elas
são, na realidade, dotadas de uma capacidade de variação e de um dinamismo que lhes possibilitam
servir a outros referentes e cooperar na inovação semântica. Como é o caso desta passagem, no
Canto Primeiro, em O Guesa, no qual Sousândrade utiliza primeiramente a metáfora do Lethes,
que na mitologia grega representa o rio do esquecimento. Ora, o Lethes é, pois, um rio da morte,
já que quem bebia das suas águas adentrava no reino das sombras, porque perdia a lembrança e a
consciência.

Contemplação nas sombras

“Não fostes ainda o Lethes... Aqui, d’onde


Veloz gavião-real, predendo a cobra
Que esfuzia e debate-se, desdobra”
No ar as azas serenas e respondendo
“Com grita ovante ao s’escorjar violento
Do réptil, sobre o espaço ora sedento
E lívido o seguindo e o retomando”
“À dor sua abraçada, no martyrio
Do que dobra ao bater do pensamento
E não pré-sente vir-lhe o esquecimento
Nem dos céus, nem da morte ou do delírio”
“O homem descansa. Uma ave se desata
E desdenha ao rochedo; e elle ahi, preso
Pelas cadeias do seu próprio peso
Une-se à terra... condição ingrata!”
“Oh, ironia!” O fazem miserável
E abrem-se os olhos! Para que? (SOUSÂNDRADE, 2003, p. 125).
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Sabe-se que o rio Solimões, em cujas margens o Guesa se encontra, não é o Lethes, por
isso não possibilita o esquecimento dos atos de violência aos quais estão sendo submetidos os
índios pela colonização espanhola. Então, levantamos a questão: o que Sousândrade buscava
esquecer? E fazemos isso na interpretação, indagando sobre os aspectos subjetivistas do poema,
uma vez que Sousândrade era adepto do regime republicano e tinha uma proposta de política
educacional para o povo autóctone. A interpretação hermenêutica abre muitas variantes de
interpretação que enriquecem a leitura sem, no entanto, perder o lastro metodológico de análise
dos símbolos presentes no texto poético de cunho hermético.

Na metáfora viva, Ricoeur diz que as imagens poéticas não se destacam apenas pelas
qualidades vívidas. Quaisquer que sejam as metáforas usadas, por meio delas, facilmente se
perceberá que as imagens poéticas servem não apenas de simples ornamentação, são também,
todas elas, destinadas a exprimir os melhores sentimentos que não carecem de um longo
desenvolvimento. O que leva a pensar que a metáfora poética merece ser estudada por si mesma
e tem identidade própria em razão de sua exterioridade significante. Continua Ricoeur: não há
nada mais clássico que essa teoria “econômica” da metáfora, que prega ser ela uma figura da
linguagem que detém uma riqueza de sentido numa única palavra e, por isso, possibilita a
economia de um longo desenvolvimento do discurso. Com efeito, a metáfora e outras figuras,
notadamente a comparação, seriam homogêneas, não poderiam ser distinguidas pelo grau de
ampliação do seu sentido. A mais breve das figuras de palavra, a metáfora, seria também a mais
geral e responsável pela economia de todas as outras figuras de palavras. Essa teoria pode ser
creditada a Aristóteles. No entanto, Ricoeur concorda ser a comparação (ou imagem: eikôn)
também uma metáfora; a diferença é mínima, porque, segundo ele, quando Homero, ao falar de
Aquiles, diz “que este se move como um leão”, ele faz uma comparação (eikôn); quando ele diz
que “é um leão” que se move de um lugar a outro, é uma metáfora. Ricoeur diz que o propósito
de Aristóteles não foi explicar a metáfora pela comparação, mas, explicar a comparação pela
metáfora, e acentua que a metáfora por comparação não é uma formulação simples, como quando
chamamos “Aquiles de leão”: a simplicidade da comparação, por contraste com a complexidade
da proporção de quatro termos, a mesma para que tende a metáfora proporcional como quando
dizemos: “O escudo é a taça de Ares”. Dessa maneira, a metáfora por analogia tende a identificar-
se ao eikon, e a supremacia da metáfora sobre o eikon é, se não invertida, pelo menos modificada.

Em Sousândrade, identifica-se a metáfora por analogia no uso do pronome relativo


“qual”, em que a comparação é estabelecida por relação de identidade, como ocorre no seguinte
verso: “Negra, negra eu sou, mas formosíssima / Qual as tendas brilhantes de Kedar!” (2003, p.
95). Para Ricoeur, o traço determinante da comparação é o seu caráter discursivo, porque, para
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comparar, são necessários dois termos igualmente presentes no discurso. Ricoeur diz que o
linguista I. A. Richards conceitua a metáfora como uma construção resultante de duas ideias: tenor
e vehicle, equivalendo, respectivamente, à “ideia original” e à “ideia tomada de empréstimo”, ou
seja, aquilo que está sendo dito ou pensado e aquilo com que está sendo comparado. A interação
daquilo que é designado e do veículo geraria um novo sentido, diverso daquele que cada ideia
apresenta isoladamente; e a medida de sentido se imporia como resultante de características
comuns a ambos os sentidos, resultando na construção da metáfora. Porém, a análise gramatical
da comparação assegura a sua dependência em relação a metáfora em geral, apenas diferindo uma
metáfora da outra pela presença ou pela ausência do termo da comparação. Para Aristóteles, a
ausência do termo de comparação na metáfora não implica que essa seja uma comparação
abreviada, mas, pelo contrário, que a comparação é uma metáfora desenvolvida. Ora, a
comparação diz “isto é como aquilo”; e a metáfora diz “isto é aquilo”.

Em Sousândrade, a comparação, por exemplo, entre o nascer do dia com o reflexo da luz
através de uma porcelana ocorre novamente por meio do pronome relativo “qual”, para imprimir
na ideia tomada de empréstimo o sentido da ideia original, constituindo uma imagem rica de
associações, como nos versos do Canto Segundo: “Qual um vaso de fina porcelana / Que de
através o sol alumiasse, / Qual os relevos da pintura indiana / É o oriente do dia quando nasce”
(SOUSÂNDRADE, 2003, p. 35). Já a metáfora aparece como uma contenção de ideias em que se
torna necessário o conhecimento da significação:

(Ruge do coração do Guesa a história)


Os captivos choravam da Victoria,
Quando voz de consolo ouvi de meu irmão:
‘Porque desesperar? Filho do império,
Temos nós um monarcha verdadeiro,
Das lettras protector, um grande coração.
“De um palácio as escadas eu subindo,
Bem vi publicamente destribuindo
Moedas de oiro e úa mão sabendo que outra dá:
Eu quis voltar; e andando, andei p’rá deante.
Veiu então paternal, o ar elegante,
Deu-me a mão... ‒ será Fomagatá...? (SOUSÂNDRADE, 2003, p. 138).

A metáfora em Sousândrade é necessária. Ela é concebida como um processo radical em


que são atadas as relações internas da poesia. Para o poeta, a metáfora é a atualização das potências
contidas na faculdade imaginativa, porque, pela metáfora, ele quebra a simplicidade fatual da
linguagem, dimensionando-a para um “dizer” poético que redescreve a ação humana. Assim, o
elemento comum à metáfora e à comparação é a assimilação que funda a transferência de uma
denominação, isto é, a identidade captada na definição de dois termos. Aristóteles diz que é a
apropriação do gênero por meio da semelhança que torna a metáfora instrutiva. E o que define o
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espaço atribuído à metáfora na transferência de uma ideia primitiva para uma ideia nova é a
semelhança.

Considerações finais

Em Aristóteles, a poesia é a imitação da ação humana. A contextualização dessa imitação


em arte, no entanto, exige a passagem pela criação de uma fábula, de uma intriga que envolva
paixão e desatinos sobrepujantes aos dramas quotidianos da vida. A ação humana, assim, reveste-
se de metaforicidade. Esse caráter da poesia lhe é dado pela mímesis. Essa transmutação da ação
em poesia por meio da mímesis foi muito bem elaborada por Sousândrade, ao elevar para o plano
do poético a dimensão mítica da lenda dos índios da Colômbia, os Muíscas. A lenda apresenta a
estrutura do arquétipo da América na mais antiga concepção mítica de um povo, que é da
transmigração da alma pelo sacrifício da inocência em oferenda a um deus. A lenda do Guesa
compõe-se da magnitude e do mistério contidos no mito de todas as culturas arcaicas, o que
dimensiona o poema O Guesa numa perspectiva universal, cósmica, em que o maravilhoso se
afigura nos símbolos da natureza, segundo uma representação moral do bem e do mal, nas
peripécias dos atos do herói na sua longa trajetória. A lenda narra a peregrinação do ritual vivido
pelo Guesa. Sousândrade inicia o seu poema O Guesa com a citação da lenda. O enlace entre o
plano do maravilhoso e o plano do histórico na lexis poética ocorre por meio da “epífora do nome”,
já dizia Aristóteles. A epífora é a noção de movimento que decorre quando se emprega o
deslocamento “de... para”. Em Aristóteles, a epífora é a metáfora, pela transposição de sentido
que o deslocamento de uma dada palavra proporciona, quando é retirada do seu lugar linguístico
original para outro lugar linguisticamente diferente. A epífora demanda uma informação e afeta o
sentido da admiração, por acrescentar, como extensão maior ao sentido do termo, a noção de
perplexidade. O nome é a primeira das entidades enumeradas dotadas de significação. A teoria
da lexis pela sua análise em partes tem o objetivo, em Aristóteles, de destacar o núcleo semântico
comum a todas as outras partes e de acentuar aquela que seria a parte central, isto é, o nome, por
ter este a função. Aristóteles questiona: “Qual o nome corrente, ou nome insigne, ou metáfora, ou
nome de ornamento, ou nome formado pelo autor, ou nome alongado, ou nome encurtado ou nome
modificado?” (1973, p. 220). E responde que a metáfora é algo que acontece ao nome, e dois são
os traços que a caracterizam, o primeiro é chamado de “desvio”, e o segundo, por postular o
“processo”, permite um uso livre. Porém, chama-se atenção para o fato de que um desvio imposto
pela língua, um uso forçado, não fará jus ao nome de metáfora, pois a noção de desvio traz consigo
o sentido de extensão da expressão, quer esta seja palavra, frase ou discurso. E o uso livre, por um
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lado, implica o afastamento das expressões do seu sentido próprio, por outro, supõe que a
expressão própria está disponível e pode ser substituída por outra de livre escolha.

Assim, nota-se a presença da epífora do nome em Sousândrade com o próprio emprego


da palavra Guesa, que é uma metáfora e significa o “errante”, o “sem lar”; carregando a simbologia
da lenda de um índio escolhido desde a infância para, aos quinze anos de idade, cumprir a missão
de garantir a continuidade de sua estirpe pelo sacrifício da própria vida. O poeta faz o primeiro
deslocamento de sentido da palavra Guesa quando altera o significado original, um menino índio
órfão que vai viver longe dos pais, para o sentido que personifica todos os índios da América que
viviam inocentes e felizes até serem despojados do seu paraíso natural com a invasão dos
conquistadores europeus. O segundo deslocamento remete para o “processo”, com o acréscimo ao
poema da história pessoal de Sousândrade, que, também órfão, passa a vida vagando pelo mundo,
em eterno estado de incompreensão e solidão, procurando realizar o sonho de construção de uma
república redentora em que vingassem a harmonia e a felicidade geral como missão de um “último
guesa”.

O mito do Guesa tem como traço fundamental o caráter de organização e disposição,


refletindo na composição dos versos do poema, apresentando um eco em toda a discursividade da
ação, do caráter e do pensamento. O mito Guesa tem a exteriorização e a explicitação da sua ordem
interna, por meio da lexis que apresenta a mímesis. E a função mimética na poesia é dada pela
metáfora, constituída por uma dupla tensão, quando a mímesis representa as melhores ações:
submissão à realidade e invenção fabulosa, por um lado, e restituição e sobrelevação ao
maravilhoso, por outro. Agora, considerada formalmente enquanto desvio, a metáfora é somente
uma diferença no sentido. E, enquanto vista de modo abstrato, fora da função mimética, a metáfora
esgota-se na sua capacidade de substituição e dissipa-se no ornamento. Ricoeur observa que não
se poderia ligar ao traço da elevação do sentido, próprio da mímesis, uma relação de conveniência
com o deslocamento de sentido próprio da metáfora, que se exerce a depender da função da
palavra. Para o filósofo, o conceito de mímesis serve de indicador para a situação do discurso,
porque lembra que todo discurso insere a nossa pertença ao mundo. É pela mímesis que a lexis é
enraizada. Todo discurso, segundo Ricoeur, está no mundo por perseverar a função referencial do
discurso poético. A mímesis, assim, é o outro lado da poesia, porque revela a sua referência.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Editora Ltda, 2015.

ABEL, Olivier; PORÉE, Jérôme. Vocabulário de Paul Ricoeur. Combra: Minerva Coimbra,
2010.
Página 1427 de 2230

CAMPO, Augusto; CAMPOS, Haroldo. Re visão de Sousândrade. São Paulo, Perspectiva, 2002.

LOBO, Luiza. Épica e modernidade em Sousândrade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.

RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. 3 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

SOUSÂNDRADE, Joaquim de. O Guesa. In: LOBO, Luiza (org). Rio de Janeiro: Editora Panteio,
2012.
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Os conteúdos dos Trabalhos completos do III SIICS são de inteira responsabilidade dos autores.

Eixo 3: Cidades,
Patrimônio Cultural e
Sociedade
Organizadora do Eixo: Profa. Dra. Conceição de
Maria Belfort de Carvalho
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A DANÇA DAS CADEIRAS: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO DA IGREJA PARÓQUIA


SANTUÁRIO SÃO BERNARDO EM SÃO BERNARDO -MA

CHAIRS DANCE: AN ETHNOGRAPHIC STUDY OF THE SÃO BERNARDO PARISH


CHURCH IN SÃO BERNARDO –MA
Richardes Lima Souza
Graduando do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas/Sociologia
Universidade Federal do Maranhão-UFMA. Bolsista PIBIC/UFMA
Ana Caroline Amorim Oliveira
Doutora em Antropologia
Docente do Curso de Ciências Humanas/Sociologia
Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade-PGCULT
Universidade Federal do Maranhão-UFMA.

Eixo temático 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: Por que pobres e ricos não se sentavam no mesmo banco da igreja? O problema se
constitui em compreender como se constrói os estereótipos sociais de “superioridade” social dos
grupos “dominantes” e de “inferioridade” social dos grupos menos favorecidos na sociedade
bernardense. As relações sociais entre pessoas que possuem influência política e/ou poder
econômico revelam os mecanismos de exclusão da participação na vida política da cidade.
(ELIAS,2000). Foram realizadas entrevistas com pessoas que frequentam a igreja católica da
cidade de São Bernardo desde os anos 70, advindas de distintas posições sociais, profissões,
idades, raça e orientação sexual. Muitos entrevistados relatam que a posição privilegiada se dava
devido consenso de que os “ricos” eram “católicos de verdade”, eram os únicos dignos de ocupar
aquele espaço. Segundo os interlocutores, “pobres” que se sentavam nos bancos da frente, eram
retirados por outros “pobres” para dar lugar aos “ricos”, em razão daquele espaço ser de uso
exclusivo daqueles. Pois, seria uma ousadia “pobres” ocupando o espaço “dos ricos. Identificamos
que o fazer político em cidades “provincianas” sempre foi um tema conflitante, no entanto,
pesquisar questões sócio-políticas no contexto da Igreja Católica, traz elementos para
compreender as relações sociais na cidade.

Palavras-chaves: Religião. Etnografia. Conflitos. Diferenciação social.


ABSTRACT:Why didn't the rich and poor sit on the same pew? The problem is to understand
how the social stereotypes of social “superiority” of “dominant” groups and social “inferiority” of
less favored groups in bernardine society are constructed. Social relations between people who
have political influence and/or economic power reveal the mechanisms for excluding participation
in the political life of the city. (ELIAS, 2000). Interviews were conducted with people who have
been attending the Catholic Church in the city of São Bernardo since the 1970s, coming from
different social positions, professions, ages, race and sexual orientation. Many interviewees report
that the privileged position was due to the consensus that the "rich" were "real Catholics", they
were the only ones worthy to occupy that space. According to the interlocutors, "poor" who sat in
the front seats, were removed by other "poor" to make room for the "rich", because that space was
for their exclusive use. For, it would be a boldness "poor" occupying the space "of the rich. We
identified that political activity in “provincial” cities has always been a conflicting theme,
however, researching socio-political issues in the context of the Catholic Church, brings elements
to understand social relations in the city.
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Key words: Religion. Ethnography. Conflicts. Social differentiation.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é compreender os significados sociais, simbólicos,


econômicos e raciais que estão presentes no ato de sentar nos bancos de uma igreja católica na
cidade de São Bernardo estado do Maranhão. O lugar que cada indivíduo ocupa nos bancos de
uma igreja representa uma diferenciação social e racial nessa cidade (ELIAS, 2000).

Essa questão gerou uma reflexão sobre os motivos que levavam a esse tipo de
comportamento social. Várias questões surgiram, como o medo, o simbolismo, as estruturas
sociais, etc. O ato de fazer essa pesquisa talvez se encaixe perfeitamente no que Roberto Da
Matta(1978) fala em sua obra “O ofício de etnólogo, ou como ter Anthropological blues”: “Vestir
a capa de etnólogo é aprender a realizar uma dupla tarefa que pode grosseiramente ser contida nas
seguintes fórmulas: (a) transformar o exótico em familiar e/ou (b) transformar o familiar em
exóticos”. (DaMatta, 1978, p. 4).

Essa citação expressa a presente pesquisa e de seu pesquisador, pois inicialmente, a


partir de um problema aparentemente banal e naturalizado pode-se compreender como funciona
as relações sociais, políticas, raciais e econômicas da cidade de São Bernardo.

Inicialmente tive certa dificuldade para aplicar os métodos de descrição densa


ensaiados por Geertz(1989), sentia-me um estranho, embora isso não transparecia para os
observados, mantive sempre uma postura de um “bom católico praticante”. Nesse aspecto em
particular, não tive grandes dificuldades, dado que já estava há um bom tempo frequentando o
campo que observei, participando de seus ritos e de seus costumes, comecei a compreender o
mundo da Igreja de São Bernardo, de dentro para fora.

Por mais que tentemos “mergulhar’ no mundo em que estamos observando, adentrar
ao máximo nesse outro mundo participando de seus rituais, crenças, etc. sempre seremos
estranhos, outsiders para o nosso “pesquisado”. Como aponta Alba Zaluar em sua análise sobre o
trabalho do antropólogo: “Os etnólogos que estudaram tribos primitivas poderiam até se
considerar “adotados” ou socializados como crianças na cultura tribal, mas tiveram consciência
de que seriam sempre outros, estrangeiros” (Zaluar, 2009, p. 563).

No entanto, com um olhar mais apurado e usando os métodos acadêmicos, mais


especificamente, os métodos antropológicos, pude perceber toda uma estrutura de significados,
com seus códigos, e sanções sociais. Tudo estava bem aos olhos de todos, mas devido à
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“naturalidade” do fato, ninguém se incomodava ou buscava entender tal atitude rotineira. Ao


tomar a atitude de buscar entender essas atividades nada convencionais, eu acabei vestindo a capa
de antropólogo, e acabei adentrando num mundo totalmente novo, comecei a ver coisas novas e a
perceber detalhes, que quase sempre nos passam despercebidos.

Realizei essa pesquisa fazendo a observação participante, realizando conversas


informais e entrevistas livres com os interlocutores selecionados durante as missas dominicais
noturnas. Entrevistei 10 pessoas que frequentam a igreja paroquial de São Bernardo, durante os
meses de junho à novembro de 2019. Escolhi 3 pessoas que frequentam a igreja desde os anos 70,
sendo elas, Maria307, João e Madalena, 3 pessoas que frequentam desde os anos 90, Pedro, Claudio
e Ester, e 4 pessoas que começaram a frequentar a partir da década de 2000, Paulo, Tiago, Bruno
e Marta.

As observações participantes ocorreram durante as missas dominicais noturnas que se


iniciavam às 19h308 onde me sentava no mesmo lugar, no terceiro banco da terceira fileira. Os
entrevistados eram advindos de variadas posições sociais, profissões, idades, raça e orientação
sexual. Para as entrevistas foram utilizadas as entrevistas semiestruturadas, conversas informais e
observação participante. O campo de observação, a Igreja Santuário São Bernardo, na cidade de
São Bernardo-MA, foi escolhido devido a prática de separação entre ricos e pobres nos bancos da
Igreja. Essa prática é considerada como uma “tradição”, um costume, presente na paróquia. Mas
que estar em processo de transformação como analisaremos adiante no presente artigo.

A Paróquia de São Bernardo criada em 31 de outubro de 1816 (Silva, 2017) faz parte
do cotidiano da população local. Seus hábitos diários estão entrelaçados com os da igreja. A igreja
é paroquial e, também, um santuário diocesano, cujo o orago é São Bernardo de Claraval, de estilo
neogótico, muito imponente e com sua torre una, dando o sentimento de grandiosidade.

Foi numa dessas missas que ao conversar com uma amiga309, ela me relatou que nos
tempos passados “Não era todo mundo que se sentava no primeiro banco da igreja, eram só os
ricos, os pobres se sentavam atrás”. Daí surge a dúvida que me leva a fazer essa pesquisa, “Por
que pobres e ricos, não ocupavam o mesmo banco da igreja?”.

O que pode, aparentemente, ser algo banal mostra-se quando se pesquisa a fundo, um
emaranhado de redes de significação cultural, como afirma Geertz (1989, p.4): “O homem é um

307
Por questões éticas, preferi não usar os nomes dos entrevistados, optei por nomes fictícios.
308
As missas na igreja paroquial ocorrem de terça à domingo pela manhã e de terça a domingo pela noite.
309
Faço uma referência a obra de Márcio Goldman que expressa o porquê opto por chamar meus interlocutores de
amigos-interlocutores, pois no decorrer da pesquisa, em alguns casos, desenvolvemos uma relação de amizade. “Da
mesma forma, jamais tomei notas na frente de meus “informantes” Por um lado, porque em geral eles também são
meus amigos e eu me sentia constrangido em agir como “pesquisador” (Goldman, 2003, p. 455).
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animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”, com todas as regras e códigos
estabelecidos, com atitudes que perpassam as ações matérias e físicas, abrangendo até o campo
psíquico.

A pergunta motriz dessa pesquisa expressa as questões sociais envolvidas numa,


aparentemente, simples missa dominical, onde pessoas com baixo prestígio social não ocupam o
primeiro banco das fileiras de assentos da igreja, e as pessoas que possuem prestígio na cidade,
ocupam de forma “natural” o primeiro banco dos assentos.

Apresento esse trabalho de maneira que o leitor consiga identificar a relação de “ricos’
e “pobres”, para melhor compreender essas castas (Dumont, 2008) que são os elementos principais
desse trabalho. Em seguida, identifico as razões pelas quais os dois grupos não sentarem no mesmo
banco, procurando demostrar como esse simples ato, o de sentar-se ou não juntos, revela todo um
conflito social velado na cidade de São Bernardo-MA. No tópico seguinte aponto como a fofoca
é uma poderosa aliada para a obtenção de informações para a construção dessa pesquisa e, por
último, demonstro como esse contexto de conflitos é na verdade uma dança-das-cadeiras, onde
uns saem e outros ocupam o lugar deixado.

“Porque pobres e ricos não sentavam no mesmo banco da igreja?”: as


diferenciações sociais na cidade de São Bernardo-MA

Poderíamos considerar, a partir das falas dos entrevistados, que o ato de se sentar nos
bancos da frente como algo simbólico, uma marcação de território, pois sentar-se na frente é o ato
de afirmar para todos e para si mesmo a pertença à uma classe social, a dita rica. O ato de sentar-
se atrás, ao contrário do ato dos “ricos” não seria uma marcação de território, mas sim o ato de
ocupar o que lhes restou.

Esta prática teve início por volta do século XIX pois a igreja da cidade se tornou
paróquia em 1816. Atualmente essa diferenciação pelo sentar no banco da frente estar em desuso,
desde o final da década de 1990, esse hábito começou a deixar de ser praticado310. Entretanto, a
memória ainda é forte e presente entre os frequentadores da igreja.

No início da observação participante, sentei-me no terceiro banco da fileira ocidental


da nave principal do santuário de São Bernardo. Ao meu lado, no mesmo banco, dividia o espaço
com quatro senhoras idosas. No banco da minha frente a mesma coisa, e assim, em quase todos
os bancos da igreja. Nos bancos da frente, que eram meu foco, ninguém de muito rico sentava-se,

310
As razões das mudanças dessa prática serão apresentadas e analisadas mais à frente no presente artigo.
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inclusive, só havia duas pessoas em cada fileira de banco, algo que me chamou a atenção, dado
que era de se imaginar, que esses bancos fossem disputados.

No segundo dia de observação participante, uma missa de domingo (assim como todas as
missas que observei) cheguei cedo, por volta das 18h30, fui o primeiro “fiel” a chegar e sentar nos
bancos da igreja, sempre no mesmo banco, o terceiro, da fileira ocidental da nave principal.
Comecei a notar algo interessante, as mesmas pessoas também se sentavam nos bancos de sempre,
notei que cada idoso sentava no mesmo banco e quase sempre nas mesmas posições dos bancos.
Como afirma uma amiga-interlocutora, Maria, de 76 anos: “eu não sei quando
começaram a fazer isso, acho que é dos tempo dos escravos, os pretos não podiam se sentar com
os brancos, eu acho que começou assim”. Seu João, de 62 anos, aponta a relação com a política
local: “eu acho que isso começou com os políticos, porque eles se sentavam na frente pra se
mostrar, pros outros ver que ele era mais importante”. Essas falas revelam muito sobre a questão
dos bancos da igreja, pois demostram o provável surgimento dessa prática discriminatória, por
conta do racismo, como se vê na primeira fala, e a outra é por questões políticas, dado que o
racismo é uma prática política.

A primeira fala, percebemos que há uma rememoração para os tempos da escravidão,


onde de fato, negros e brancos não ocupavam o mesmo banco nas igrejas. Em algumas cidades,
havia igrejas exclusivamente para os negros, para que não participassem das missas junto aos
brancos. Esse relato, que D. Maria nos deu, pode revelar o aparecimento dessa prática no âmbito
histórico.

Já o relato dado por sr. João, revela outra relação de distinção: dos políticos e seus
eleitores. Pois, quando um político escolhe se sentar na frente para “se mostrar”, ele está dando
um uso diferente a prática de excluir todos os que não fizessem parte de seu eleitorado naquele
espaço. Uma prática de distinção social com várias camadas de diferenciação reafirmado
hierarquias sociais e políticas.

Observa-se que ainda há lugares “reservados” nos bancos da igreja, os pobres não
costumam sentar em lugares diferentes, e ricos também não gostam de variar. Numa de minhas
entrevistas, perguntei o porquê desse hábito, a entrevistada, Rosa, aposentada de 79 anos,
respondeu quase de maneira imediata, que isso se dava por conta de gosto, “as pessoas gostam de
se sentar nos mesmos lugares”.

Numa entrevista com uma antiga funcionária da igreja, Antônia de 81 anos, perguntei
se era costume da igreja reservar os bancos da frente para as pessoas abastadas, tanto de poder
político, e/ou de poder simbólico, ela respondeu que não, nenhum banco era reservado. Salvo em
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dias festivos, que alguns bancos deviam ser reservados para o clero e seus afins. Isso demonstra
que não havia “salvo-conduto”, ou seja, a igreja não apoiava essa prática de diferenciação social
através dos bancos da igreja, pelo menos, não de forma direta.

Acredito que seja correto afirmar que a igreja, enquanto instituição, sabia dessa
prática, embora não pudesse apoiar de forma aberta, ela apoiava pelo ato de não fazer nada em
relação à essa prática discriminatória. Vale ressaltar que, a maioria das pessoas que participavam
da casta dos ricos, tinham prestígio dentro da igreja. Isso se demonstra pelo hábito de sentarem no
banco da frente, pois trata-se, além do fator de diferenciação social, um lugar privilegiado, pois
desses bancos, pode-se ver melhor a celebração da missa, e também, os que ocupam esses bancos
são os primeiros a participarem da comunhão, além do fato que, sentados nesses bancos, todas as
outras pessoas podem enxergá-las, revelando assim um espaço de destaque.

Entretanto, ocorreu uma mudança nesse ato de sentar-se na igreja católica. As


gerações mais novas não estavam mais mantendo essa distinção social, simbólica e econômica no
ato de sentar. Através de todas as entrevistas, pude notar que, essa mudança começou a ocorrer a
partir dos anos 90, dado uma série de fatores que permitiram tal mudança. Uma hipótese para a
mudança desse hábito pode-se perceber na fala que uma amiga-interlocutora me deu

eu acho que eles (os ricos), pararam de se sentar na frente porque os pobres não estavam
gostando mais disso, quem gostava eram os velhos, que já estavam acostumados com
isso, nós que era jovem, não gostamos não. Muitos ricos ali era político, precisava de
voto, e quando viram que muita gente não tava gostando daquela atitude (de se sentarem
na frente e os pobres se sentarem atrás) eles pararam de fazer isso, porque se não eles não
se elegia mais. (Ester, 45 anos, 27 de agosto de 2019, às 16h00 h).

Em algumas entrevistas, com a dúvida latente, estava direcionando as perguntas para


tentar descobrir como se deu o processo de transição, processo ao qual os ricos deixaram de ocupar
os bancos da frente e os pobres passaram a ocupá-los. Um entrevistado relatou que “no início dos
anos 1990, quando as irmãs311 estavam muito presentes na igreja, os pobres começaram a tomar
coragem, eles começaram a se sentar nos bancos da frente”.

O processo de transição entre o hábito de sentar-se atrás, praticado pelos pobres, para
passarem a sentar-se na frente se deu, segundo um entrevistado, por alguns adventos, primeiro,
foi a chegada de um vigário que trouxe as ideias da “Teologia da libertação312”, pregando a

311
As irmãs referidas, são religiosas da congregação “Irmãs de Caridade de Montreal”, que chegaram à paróquia de
São Bernardo no ano de 1989, ficando nessa paróquia até o ano de 2004. (Silva, 2017, p. 115)
312
A Teologia da libertação nasceu na década de 1960, após o Concilio Vaticano II e a Conferência Episcopal
realizada em Medelín como resposta à realidade latino-americana em razão da realidade vivida na América latina da
época, onde se presenciava governos autoritários e a grande injustiça social. Como afirma Sandro Ramos Ferreira da
Silva “A Teologia da Libertação tem características autônomas e surgiu como resposta à realidade latino-americana”
(Silva, 2006, p. 36).
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igualdade entre as pessoas, incentivando a participação dos pobres na vida da igreja, pois até então,
os espaços que os leigos poderiam ocupar dentro da igreja era ocupado por ricos, ou seus filhos.

Esse vigário recebeu a ajuda de um grupo de religiosas que contribuíram para a


pregação dos ideais libertacionistas, colocando em prática atos revolucionários até então, como
por exemplo o fato de, numa encenação da paixão de Cristo, Jesus fora interpretado por um negro.
Esse acontecimento gerou muitos comentários afirmou o entrevistado. Com a criação de vários
grupos para a inserção dos leigos na vida da igreja, pouco-a-pouco os pobres foram ocupando os
espaços detidos pelos ricos, grupos de jovens, grupos de orações, participação como ministros da
eucaristia, tudo isso contribuiu para a ocupação do poder simbólico. (Bourdieu, 1989).

Como nos mostra os relatos esse processo de transição não foi pacífico, numa
entrevista, que, foi quase involuntária, o entrevistado relatou que uma senhora rica da cidade, nos
tempos em que a “paz de cristo”313 era no fim da missa, ela saia antes, para não ter que
cumprimentar seus vizinhos de banco. Percebe-se uma resistência pelos ricos, e engraçado,
houve/há resistência por parte dos pobres também, os pobres de “moral” que se consideram “meio-
termo”. São pobres com espírito de ricos, no sentido de status. Pode-se observar que também não
se sentem muito à vontade quando vêm um pobre ocupando um lugar de destaque na igreja, isso
obviamente revela muito do conflito simbólico existente.

Isso demonstra que houve um “combate social”, não foi algo pacífico, como se
observa na seguinte citação da fala duma entrevistada “os ricos olhavam torto para os pobres que
se sentavam na frente, olhavam como se estivessem vendo um fantasma, assustados, muita gente
pobre também olhava feio, como se os pobres que se sentavam na frente estivessem fazendo algo
feio”. Podemos ver que houve um estranhamento, uma ruptura de um código social e racial entre
os grupos que compunham a cidade de São Bernardo, pois o grupo das pessoas consideradas
pobres, se dividiu entre os que tomavam a coragem de se sentar com os ricos, e os que censuravam
tal ato.

Percebe-se que o fato do abandono dessa prática social muito comum até os fins dos anos
1990, se deu por vários motivos, políticos, sociais e econômicos, mas o grupo das pessoas “ricas”,
já acostumada com essa diferenciação social, não abandonaram as práticas discriminatórias,
apenas encontraram outra forma de se distinguirem dos meros “pobres”.

Percebendo que, o fato de sentar no banco da frente da igreja já não bastava, e vendo que
pessoas do grupo “inferior”, os “pobres” já começavam a ocupar o espaço que até então era

Ato de saudar os fiéis com um aperto de mão falando “paz de cristo”, geralmente acontecia no fim da missa, hoje
313

em dia acontece no meio do ritual.


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ocupado somente por eles, os integrantes da casta dos “ricos”, migraram, já não era interessante
para eles continuarem com a antiga prática.

No entanto, percebi um fato “curioso”, como agora os “ricos” já não ocupam mais os
bancos da frente, há um pequeno número de “pobres” que querem continuar com a prática dos
“ricos”, essas pessoas que fazem parte da casta dos pobres, e que possuem funções dentro da
igreja, seja na Liturgia ou como ministro da eucaristia, passam a ocupar os bancos da frente, como
se na ausência dos “ricos”, o lugar, naturalmente, seria ocupado pelos “pobres médios”, ou seja,
os pobres que acreditam estar num estágio de transição da casta de pobres para a casta de ricos,
uma espécie de “classe média” à brasileira.

2 “RICOS” E “POBRES” na cidade de São Bernardo-MA

A cidade de São Bernardo nasce devido ao aldeamento jesuítico em 1724. Os padres


jesuítas, instalam-se às margens de um rio, ao qual batizam de “Buriti”, e logo aldeiam o povo
Anapuru314 que viviam nas proximidades como intuito de catequização desse povo. Esse
aldeamento serviu como núcleo originário da cidade de São Bernardo. A pequena vila logo se
torna a matriz de todas as missões jesuíticas da região, o que revela a grande relevância política e
de poder da igreja na cidade, desde os tempos coloniais.

Atualmente, a cidade que conta com aproximadamente 26.476 habitantes, desses


habitantes, 21.929 se declaram católicos, segundo o IBGE (2010). São Bernardo conta com uma
população fiel às tradições, principalmente as tradições religiosas, e dentre essas, se destaca a
participação às missas de domingo que ocorrem pela manhã e pela noite, sendo a participação
massiva pela noite.

São considerados “pobres” pessoas negras e morenas, que não possuem renda elevada,
nem tampouco uma profissão considerada de destaque, como os cargos de vereador, prefeito,
secretário em alguma secretaria municipal, ou um comerciante, por exemplo.
Os ricos eram basicamente compostos por pessoas brancas e com considerável fortuna,
mas não ficava contido nesses quesitos, para pertencer a casta dos ricos, a pessoa devia possuir
também prestígio, deveria ser reconhecido enquanto “ricos” pela casta dos pobres, para só assim
pertencer de fato à essa casta.

314
O Povo Anapuru, ou Anapurus, foi um povo originário, que estava assentado no ao norte da região Leste do que
hoje é o estado do Maranhão. Esse povo pertencia ao tronco linguístico Tupi, são considerados grandes ceramistas e
hábeis pescadores e agricultores. O último registro acerca desse povo se deu no início do século XIX. (Lima; Aroso,
1991).
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Algumas famílias identificadas como “ricas” detêm terras, plantações e criações de


animais, em especial, bovinos, porém, o observado e os relatos dos entrevistados afirmam é que,
para receber o título de “rico”, não é necessário possuir grande fortuna, mas sim, partilhar dos
mesmos códigos sociais de um determinado grupo social.

Uma entrevistada, Madalena, de 85 anos, relatou que “nem sempre eles tinha muito
dinheiro, era mais o respeito, sabe? Tinha que ser respeitado”. Em continuação às indagações,
questionei o que era “ser respeitado” para ela, “respeitado naquele tempo era ser de boa família,
não sair em conversa, ir pra igreja, andar arrumado, não andar em bagunça, não ter amizade errada,
tudo isso era coisa de gente respeitada” afirma Madalena.

Nessa resposta, Madalena revela algumas características do grupo de pessoas que


eram consideradas “ricas”, todas as atribuições que a pessoa deveria possuir para poder ser
enquadrado no referido grupo. Percebemos que não era só o dinheiro que contava, mas também
toda uma conduta “adequada” para poder participar do restrito grupo de “ricos”.

Podemos comparar os “ricos” da cidade de São Bernardo com o que Norbert


Elias(2000) denomina de estabelecidos, em sua obra “Os estabelecidos e os outsiders”:

Um establishment é um grupo que se autopercebe e que é reconhecido como uma "boa


sociedade", mais poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma
combinação singular de tradição, autoridade e influência: os established fundam o seu
poder no fato de serem um modelo moral para os outros. (Elias, 2000, p. 07).

Elias fala do “establishment” enquanto um grupo que se auto intitulava como um


modelo moral para toda a sociedade da vila de Wiston Parva. Ao relacionar com a cidade de São
Bernardo, podemos considerar ricos, aqueles que se auto percebem como uma referência moral
para as demais pessoas, e acima disso, esse seleto grupo social era reconhecido como tal, embora
também, esse título esteja fundamentado na tradição, autoridade e influência, tal como em Wiston
Parva.

Em São Bernardo, os “pobres” são aqueles que não possuem influência social, não são
dotados do código social de “ricos”. A grande maioria das pessoas que são enquadradas nesse
grupo, são negros, enquanto que a grande maioria das pessoas enquadradas no grupo dos ricos,
são pessoas brancas.

É verdade que a fortuna tem um peso na balança na hora de determinar a casta do


indivíduo, mas em evidência fica todo o simbolismo por traz dos quesitos, a família da pessoa, o
grau de influência político-econômico, etc. Louis Dumont (2008) caracteriza as castas a partir do
princípio da hierarquia. “As castas nos ensinam um princípio social fundamental, a hierarquia”
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(Dumont, 2008, p. 50), mostrando como esse modelo de divisão e segregação social funciona
através da hierarquização da sociedade.

Embora possa se pensar que esses dois grupos sociais estão separados e em conflito,
se analisarmos a fundo, pode-se perceber que na verdade esses dois grupos estão em uma relação
de dominação, pois são interdependentes, pois não basta ser ter uma grande quantidade de dinheiro
para fazer parte da casta dos “ricos”, a pessoa deve ser reconhecida como merecedora, para só
então ser enquadrada na casta dos “ricos”. Embora seja a casta dos “pobres” que legitima o
enquadramento dos membros do grupo dos “ricos”, estes ainda são subjugados pelos ricos, deve-
se salientar que há uma relação de dominantes e dominados.

Numa das primeiras entrevistas que realizei, minha amiga-interlocutora, Maria de 76


anos, relatou quando perguntava o porquê dos “ricos” poderem se sentar nos bancos da frente e
os “pobres” não, ela respondeu de forma quase ríspida “eles sentavam no banco da frente porque
eles era católico de verdade, naquele tempo não tinha muito católico de verdade”. Percebe-se que
havia uma distinção clara, uma espécie de superioridade atrelada à casta dos “ricos”, enquanto
percebe-se uma inferioridade atribuída ao grupo dos “pobres”.
Quando tentei aprofundar a questão, fui mais direto, perguntei a minha amiga-
entrevistada, o que ela entendia por “católico de verdade”, ela, mais ponderada respondeu
“católico de verdade era o pessoal que não andava em festa dançante, não usava qualquer roupa,
as mulheres usavam vestido de manga até os cotovelos, os homens vinham de calça e camisa de
botão. Era gente comportada que não andava por aí à toa”.

Nessa resposta pode-se perceber que há uma questão econômica entrelaçada nas
condições dos participantes da casta dos ricos. Como se observa na seguinte resposta dada pela
mesma entrevistada, quando perguntei como eram as roupas usadas durante as missas “ah meu
filho, aquelas roupas eram caras, não era qualquer um que podia ter não, tinha que mandar fazer.
A gente que era pobre tinha só uma ou duas muda de roupa, usava e já lavava pra guardar”. Revela-
se uma clara distinção econômica entre as castas que se articula com a esfera social e racial sob o
manto da postura religiosa.

No tópico seguinte iremos apresentar um dos elementos centrais para a obtenção dos
dados etnográficos, bem como, da inserção no campo de pesquisa: a fofoca. O ato de fofocar fala
muito dos que estão fofocando, e dos que estão sendo “comentados” pela comunidade.

A fofoca como um “dado” social

As observações no campo têm revelado muitos detalhes fascinantes, coisas que só são
perceptíveis à um olhar etnográfico, detalhes que nos passam despercebidos, coisas rotineiras e
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aparentemente sem sentido, mas ao aplicar métodos etnográficos, dá-se a entender todo o universo
de significados que pode haver dentro de uma simples igreja.

No ato de fofocar pode-se ter acesso às informações valiosas, que geralmente não se
obteria por meios tradicionais de coleta de informações. Como cita Pedro Paulo Oliveira (2010,
p.03), “As fofocas não podem ser vistas como fenômenos independentes. Elas dependem das
normas e crenças coletivas e das relações e interações entre os agentes”, ou seja, a fofoca não é
um passatempo, ou um ato involuntário, a fofoca possui uma série de normas que a credenciam,
tornando o ato de fofocar, um instrumento valioso para o pesquisador.

O ato de fofocar é comum em São Bernardo. Percebi que geralmente o ato de fofocar
está restrito às senhoras de certa idade, mulheres que se sentem como referência moral e ética para
os demais. Tive a oportunidade de entrevistar uma dessas personagens da cidade: uma antiga
funcionária da Igreja e uma viúva que se ocupa nos seus afazeres diários domésticos e ir à igreja.

Muitos em São Bernardo acreditam que o ato de fofocar se dá pelo fato de “não ter o
que fazer”. Entretanto, a partir da pesquisa foi possível compreender que fofocar está para além
de passatempo. Fofocar é marcação de território, é um manifesto sobre si mesmo em relação aos
outros. A partir das conversas com a entrevistada percebi uma ramificação na classificação
“´pobres”, pois mesmo essa senhora sendo pobre(a partir das características apresentadas
anteriormente), ela não sentava nos bancos de trás, sentava-se no meio, entre os pobres e ricos.

Ao perceber esse detalhe em relação as fofocas em São Bernardo, detalhe que percebi
no decorrer das minhas observações e das minhas inúmeras interlocutoras-amigas, que me faziam
o favor de repassar as fofocas da cidade.

O que significa sentar no “meio”? Entre “ricos” e “pobres” na igreja? Quais os


sentidos dessa zona cinza ou mestiça? Comecei a indagar o porquê desse ato, comecei a perceber
o quão simbólico são os assentos da igreja: ricos sentam-se na frente não porque são mais
católicos, pobres sentam-se atrás não porque são menos católicos, mas é pela diferenciação social,
econômica e racial. Ricos à frente, pobres atrás, ricos tem destaque, pobres devem ficar às
escondidas. Isso simboliza que os bancos na verdade são aparelhos de status, sentar-se na frente é
demostrar status, poder; sentar-se atrás é demonstrar o não-status, sujeição. Mas como fica o caso
das pessoas que são consideradas “pobres” e que tem certo “respeito”, certa influência na igreja?

Essas pessoas sentarão no “meio”, são o meio termo, são pobres, mas possuem certa
influência, ou pelo menos imaginam que possuem, principalmente dentro da igreja, são referência
moral e ética para os pobres, e possuem certa consideração por parte dos ricos.
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Considerações finais

Como o ato simples de sentar num banco de uma igreja simboliza essa diferenciação
de classes? Seria o ato de sentar-se na frente ou atrás, fator determinante para ser considerado rico
ou pobre? Ou, é a pertença à uma dessas classes que determina o banco que esses indivíduos irão
ocupar?

A resposta para essas questões, ao qual tenho observado, é complexa e possui várias
ramificações teóricas, dado a interdisciplinaridade do tema em questão. Podemos analisar essa
questão supracitada, através das lentes das várias áreas que se dedicam ao estudo da sociedade,
como as ciências sociais e ciências humanas, incluindo a Antropologia e a Sociologia, áreas que
foram referência para o desenvolvimento dessa pesquisa.

Atualmente, os “ricos” nem sempre se sentam na frente. Na verdade, estar raro ver um
“rico” na igreja, talvez porque a diferenciação social já tenha migrado do espaço dos bancos da
igreja, e tenha se alocado num novo espaço da cidade. Isso é apenas uma hipótese, uma
consideração preliminar (já que a pesquisa ainda estar em andamento) e quando vão, sentam-se
na frente, mas tendo que dividir com os pobres, ora, não existe vácuo no poder, se um espaço
disputado é abandonado, logo outro grupo irá ocupar.

Podemos falar que acabou o conflito de classes dentro da igreja de São Bernardo?
Arrisco-me a falar que, os “ricos” perceberam que a contestação dos sentidos acerca de “ocupar
os bancos da frente”, migraram para outro espaço simbólico que demarcasse sua posição,
procuraram um lugar em que os pobres não ameaçassem tomar seus lugares. O conflito foi
resignificado, ele ainda está em São Bernardo, porém em outros espaços sociais315.

Percebemos no decorrer da pesquisa, que várias questões foram levantadas, questões


de racismo, politicagem, conflitos sociais, poder simbólico, castas e redes de significação, tudo
atrelado à prática de sentar ou não num banco da igreja. O hábito de sentar no banco da frente
duma igreja, criando condições de exclusão, pelo plano simbólico, na verdade revela a constante
busca de diferenciação social buscada por uma elite escravocrata e elitista.

Deixo como última provocação, os “meio-termo”, os “pobres” com espírito de ricos,


estão ocupando os lugares em que os ricos ocupavam. Penso que há uma rotatividade social, um
grupo sai, e o que está na fila logo atrás assume o posto, criando uma verdadeira, dança das
cadeiras.

315
Esses novos espaços sociais de diferenciação social estão sendo o objetivo atual da pesquisa.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 15 Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: O sistema de castas e suas implicações. Trad. Carlos
Alberto da Fonseca, 2 ed, São Paulo, EDUSP, 2008.
SILVA, Felipe Costa. Matriz de São Bernardo: De capela a santuário. Fortaleza, Imprece,
2017.
SILVA, Sandro Ferreira. Teologia da Libertação: Revolução e reação interiorizada na Igreja.
Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2006.
ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os Outsiders: Sociologia das relações de poder a partir
de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989.
DAMATTA, Roberto. O ofício de etnólogo, ou como ter Anthropological blues. Rio de Janeiro,
Nova Série, 1978.
ZALUAR, Alba. Pesquisando no perigo: Etnografias voluntárias e não acidentais. Rio de
Janeiro, MANA, 2009.
LIMA, Olavo Correia; AROSO, Olir Correia Lima. Pré-história Maranhense. São Luís: Instituto
Histórico e Geográfico do Maranhão. Gráfica Escolar S/A, 1991.
OLIVEIRA, Pedro Paulo. Sociologia da Fofoca: nota sobre uma forma de narrativa do cotidiano.
Anais do 34º Encontro Anual da ANPOCS. Disponível em:
https://anpocs.com/index.php/encontros/papers/34-encontro-anual-da-anpocs/st-8/st32-2/1676-
poliveira-sociologia/file. Acesso em: 20 jan.2020.
GOLDMAN, Marcio. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia,
antropologia e política em Ilhéus, Bahia. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-
77012003000200012. Acessado em: 20 jan.2020.
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A INFLUÊNCIA DA DIRECIONALIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NA


INFRAESTRUTURA URBANA: O CASO BRASILEIRO A PARTIR DE 2001

THE INFLUENCE OF DIRECTIONALITY OF PUBLIC POLICIES ON URBAN


INFRASTRUCTURE: The Brazilian case since 2001

Camila Alves Carvalho Lima


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico Universidade
Federal do Maranhão – UFMA
Eixo temático 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: A desigualdade da urbanização das cidades brasileiras coloca em evidência o


crescimento baseado na valorização do capital em detrimento do social. A primeira consequência
de tal conjuntura é a segregação socioespacial. Como característica de segregação, é adotado o
conceito de direito a cidade, o qual é negligenciado pelo Estado e minimizado pelo mercado
imobiliário, resultando na separação de localização nas cidades baseada na renda demonstrando o
caráter capitalista que molda as cidades, e a exclusão que os mais pobres enfrentam quando têm
seus direitos negados. Garantias básicas como saneamento básico, transporte e moradia adequada,
assim, se tornam privilégios. Além da grande variação da oferta de serviços e equipamentos
públicos, a cidade apresenta um considerável déficit habitacional, que é alvo de proposição de
soluções através dos programas de habitação popular, onde o caráter segregacionista mais uma
vez se impõe. Como um dos principais modificadores do espaço, o mercado imobiliário possui
influência nos longos deslocamentos diários, no número de domicílios vagos, na exclusão social
e presença de moradias inadequadas.
Palavras chave: Financeirização Urbana; Habitação; Direito a Cidade;

ABSTRACT: The inequality of urbanization in brazilian cities highlights growth based on capital
appreciation at the expense of the social. The first consequence of such a situation is the socio-
spatial segregation. As a characteristic of segregation, the concept of the right to the city is
adopted, which is neglected by the State and minimized by the real estate market, resulting in the
separation of location in cities based on income, demonstrating the capitalist character that shapes
cities, and the exclusion that poorest people face when their rights are denied. Basic guarantees
such as basic sanitation, transportation and adequate housing thus become privileges. In addition
to the wide variation in the supply of services and public facilities, the city has a considerable
housing deficit, which is the target of proposing solutions through popular housing programs,
where the segregationist character is once again imposed. As one of the main modifiers of space,
the real estate market has an influence on long daily trips, the number of vacant homes, social
exclusion and the presence of inadequate housing.
Keywords: Urban Financialization; Housing; Right to the City;

INTRODUÇÃO

A união dos conceitos ‘economia e cidade’ parte da formação dos aglomerados


urbanos e é característica das relações humanas desde os primórdios. O próprio surgimento das
cidades traz consigo as implicações relacionadas às vantagens econômicas, que abrangem o
compartilhamento entre os indivíduos, possibilidade de encontros mais produtivos no mercado de
trabalho, e a interação entre as pessoas.
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O Brasil passou por diversas fases em suas políticas de habitação e sua expansão é
intrínseca aos conjuntos habitacionais. Quando houve uma explosão no crescimento e atratividade
de pessoas gerada pela indústria, vimos se agravar a questão da habitação e a estrutura das cidades
passou por significativa reestruturação. Hoje, o Minha Casa Minha Vida trouxe um novo
arcabouço e novos pontos críticos, que farão parte da análise desse trabalho. Os alarmantes índices
relacionados a moradia demonstram o caráter arbitrário dado ao tema, com soluções ainda
insuficientes para conter a raiz do problema, afinal, não se elimina o déficit habitacional apenas
com novas construções.

Para além disso, há a necessidade de avaliar e compreender o papel das políticas públicas e como
elas interferem na prática, para neutralizar os efeitos do mercado no cenário brasileiro, tanto no
passado (para levar a atingir as configurações urbanas vigentes) quanto no presente (para perceber
seus futuros direcionamentos.)

A ESPECULAÇÃO E ESPOLIAÇÃO URBANA

A economia de mercado surge quando existe interação entre agentes econômicos em


um local, principalmente voltada para suprir necessidades através de trocas. A complexidade
dessas relações cresce com o desenvolvimento dos produtos e serviços oferecidos nas cidades,
onde o mercado adquire novas características de acordo com seu aprimoramento. Para Abramo
(2007, p.44) o mercado imobiliário se comporta de uma maneira diferente dos outros tipos de
mercado da economia, sendo que as características que o fazem diferenciado são: “a imobilidade
territorial do bem imobiliário; o seu alto valor individual e o seu longo período de depreciação”.

Para Botelho (2005, p.33) o setor imobiliário vai muito além da construção civil, de
forma que abrange também os sub-setores da indústria produtora de materiais de construção e o
setor terciário. As atividades terciárias, estão ligadas à “incorporação e o loteamento, compra,
venda e aluguel de imóveis”. É importante destacar o emprego do loteamento nesse setor, que é a
prática da parcela do solo para que possa ser comercializado conforme sua viabilidade e possíveis
vantagens econômicas dos proprietários. Dessa forma a gestão da terra, através do capital
imobiliário, produz o espaço urbano, ou seja, a organização urbana adquire características
moldadas pela atribuição de um determinado valor a uma determinada área. Como Abramo (2007,
p.44) destacou, o mercado imobiliário se comporta de uma maneira diferente, e o preço segue esse
padrão, de forma que, segundo o autor, esse mercado não determina um valor baseado nos custos,
lucro, e investimentos, mas sim através da capacidade financeira da demanda.
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Do ponto de vista habitacional é possível analisar o emprego e diferenciação desses


valores da terra sem uma lógica econômica mercadológica, por exemplo. Paul Singer explica a
influência das vantagens locacionais para chegar ao preço estabelecido, que são:

Determinadas principalmente pelo maior ou menor acesso a serviços urbanos, tais como
transporte, serviços de água e esgoto, escolas, comércio, telefone, etc., e pelo prestígio
social da vizinhança. Este último fator decorre da tendência dos grupos mais ricos de se
segregar do resto da sociedade e da aspiração dos membros da classe média de ascender
socialmente. (SINGER, 1998, p.27)

Logo, o valor do solo urbano está vinculado a sua localização e por sua vez determina
níveis de urbanidade que segundo Burnett (2008, p.100) é “um fator decisivo da equação montada
para decidir o destino de investimentos imobiliários”. Com tais investimentos em evidência, é
interessante observar o papel da especulação imobiliária na formação de pontos “favoráveis”,
tanto no sentido do acesso a pontos que futuramente serão explorados, quanto na implementação
por parte do Estado de melhorias de infraestrutura capazes de elevar o valor do imóvel
substancialmente.

No sentido mais amplo do termo Especulação Imobiliária encontra-se a retenção


deliberada de lotes em busca de uma valorização capaz de elevar o valor inicial do terreno, seja
na própria ocupação do loteamento e consequente urbanização, seja pela implementação de
serviços específicos em pontos estratégicos (RODRIGUES, 2001, p.21). Rodrigues cita ainda
outra forma de especulação, onde se deixa uma área vazia entre dois loteamentos para utilização
futura, após a ocupação dos terrenos vizinhos, quando haverá uma maior necessidade,
concorrência e consequente elevação dos preços da terra. Em ambos os casos é possível notar o
espaço ocioso objetivando o lucro, onde haverá uma nítida segregação de classes, pois o preço a
ser pago limita o acesso tanto à terra quanto aos serviços oferecidos.

Esse processo gera uma limitação de locais para moradia, principalmente para a
população de baixa renda. Quando as áreas mais valorizadas são ocupadas, a parcela da população
que não possui recursos para a compra de residências nesses pontos é obrigada a habitar regiões
periféricas na cidade, de forma que se inicia um processo de espraiamento, no qual a expansão da
cidade segue o fluxo ditado pelo mercado imobiliário e se molda em áreas sem atratividade,
serviços e infraestrutura. Fica claro a relação entre a oferta de serviços públicos e a localização de
moradores pela sua renda, de forma que a quantidade e qualidade de serviços prestados é
proporcional a renda dos moradores do local (SINGER, 1998, p.35).

2.1 Financeirização do mercado imobiliário brasileiro


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Para Ribeiro e Santos (2011, n.p) “A cidade brasileira contemporânea resulta da


combinação de dois mecanismos complementares: a livre mercantilização e a perversa política de
tolerância com todas as formas de apropriação do solo urbano. ” Essa afirmação provém da análise
tanto do processo de urbanização quanto da realidade atual das cidades brasileiras, onde a
mercantilização é relacionada ao processo capitalista visto no mercado imobiliário e comércio, e
a apropriação de terras através de ocupações e informalidade de propriedade. Quando se põe em
foco a questão urbana, Ribeiro e Santos (2011, n.p) destacam o papel da questão democrática
(substituição do processo de acumulação por garantia do direito a cidade) e da distributiva
(rompimento com a exclusão social ao acesso a serviços públicos), de forma que tais
características trazem o debate acerca da gestão democrática e políticas urbanas que mascaram os
interesses privados nos planos de renovação urbana, por exemplo, e continuam a intervir na
dinâmica das cidades.

Nesse ponto de vista, se vê a cidade como mercadoria, que pode ser explorada, onde
por um lado há procura por garantia de qualidade de vida e de outro as vantagens de acúmulo
financeiro. O capital, então, é um dos agentes mais significativos na produção do espaço, o que
traz a necessidade de compreensão da financeirização da cidade em contradição à garantia dos
direitos fundamentais dos cidadãos.

O termo empresariamento urbano utilizado por Harvey, ilustra esse caráter capitalista
predominante nas cidades brasileiras a partir do início da globalização, o qual o define de forma
resumida:

Principalmente pela parceria público-privada tendo como objetivo político e econômico


imediato muito mais o investimento e o desenvolvimento econômico através de
investimentos imobiliários pontuais e especulativos do que a melhoria das condições em
um âmbito específico (HARVEY, 1996, p.53)

Existe, portanto, processos destinados à atração de pessoas para determinado local em


determinada cidade, onde é vista a procura constante da valorização de qualidades locais que leva
a uma competição interurbana fomentada por melhorias direcionadas dentro das cidades. E nesse
contexto o desenvolvimento econômico é resultado de uma lógica empresarial bem pensada, com
foco em interesses privados que direcionam inclusive a localização de investimentos importantes
com benefícios e rentabilidade garantidos, de forma que conseguem atrair mais investimento e
multiplicar o processo especulativo (ARAÚJO, 2011, p.03).

É necessário avaliar o processo de envolvimento público-privado no sentido do


empresariamento urbano, onde é visto uma separação nítida dos detentores dos gastos e dos
benefícios advindos dessa parceria. Acontece que os custos são compartilhados entre as partes,
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mas acontece com frequência a apropriação privadas dos benefícios, ao passo que os riscos dos
projetos executados estão nas mãos do Estado, caso falhem. (BOTELHO, 2004, p.114). Tal
separação acontece durante o processo da chamada renovação urbana, presente nos planos
estratégicos amplamente difundidos, e busca a dinamização das cidades transformando-as
prioritariamente em um local de consumo.

3. O DIREITO À CIDADE NAS POLÍTICAS HABITACIONAIS


O direito a cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade,
à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade
participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no
direito à cidade (LEFEBVRE, 1991, p.135).

Vale ressaltar que o direito a cidade não é um direito além dos que já existem, é um
direito para garantir o cumprimento dos mesmos (MATHIVET, 2010, p.22) A Carta Mundial de
Direito a Cidade traz conceitos e premissas que complementam esse termo e esclarece suas
reivindicações. Nela fica esclarecido que o direito a cidade:

[...] É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis
e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus
usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre
autodeterminação e a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente
a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente,
e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e
ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos.
(Carta Mundial de Direito a Cidade, 2006, Art.01)

3.1 O Programa Minha Casa Minha Vida


O programa foi implementado pelo Governo Federal em 2009 com o objetivo de
garantir o acesso à moradia própria para famílias com renda menor que três salários mínimos
através de subsídios e para a faixa de famílias com renda até 5 mil reais com maiores facilidades.
O plano habitacional é implementado em parceria com os municípios e têm o seu recurso operado
pela Caixa Econômica Federal.

Vale lembrar que embora o PMCMV cumpra a sua função de garantia do direito à
moradia, ele ainda possui problemáticas relacionadas ao direito a cidade. Conforme pautado no
Estatuto da Cidade, deve ser priorizado a função social da cidade e da propriedade, de forma que
a produção habitacional em larga escala não se torne mais uma forma de exclusão da população
de baixa renda. Mesmo que os beneficiados com o programa passem a receber uma nova moradia
adequada, percebe-se que ela não está inserida no contexto urbano, pois os serviços necessários
(creches, transporte público, postos de saúde, comércio...) não existem nas proximidades e por
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vezes até mesmo infraestrutura básica como saneamento, asfalto e iluminação pública não estão
presentes.

A diferenciação expressa pela precariedade de serviços é reflexo da própria existência


da periferia no processo de urbanização no Brasil, como um local de espoliação urbana
(KOWARICK, 1979, p.59). O próprio sistema capitalista vigente destaca a aplicação e
continuação dos efeitos do colonialismo e urbanização desigual, e instiga o aumento da
desigualdade urbana pelos constantes processos de valorização do capital. A consequência está
presente em itens já citados, como o crescente déficit habitacional, falta de infraestrutura urbana
e oferta de serviços, que são concentrados de acordo com a localização das elites. A
direcionalidade dos investimentos públicos e privados podem surgir como causa e resultados
desses movimentos, onde adquire aspectos de especulação imobiliária em uma valorização prévia,
ou agrega valor posterior através de novas construções em áreas consolidadas.

Se for considerado o primeiro caso, referente à especulação, se insere o raciocínio do


planejamento nesses pontos. Uma vez que um terreno está localizado ou um imóvel é construído
em uma área repleta de infraestrutura ou com potencial para desenvolvimento a curto prazo, esse
local se torna ponto estratégico para a atuação do mercado imobiliário ao extrair o máximo de
capital dessa “mercadoria”. A espera pela maior valorização em relação ao tempo faz com que
sejam criados vazios urbanos em localidades pontuais voltado, geralmente, para o mercado de
camadas com maior poder aquisitivo. Essas regiões já possuem equipamentos e serviços
suficientes para a quantidade de imóveis ofertados e conseguem oferta-los de forma proporcional
ao seu custo.

3.2 Impactos da financeirização na justiça espacial


A concentração de investimentos públicos e privados provoca o aumento das
desigualdades e acentua os problemas sociais presentes nas periferias e na zona rural, de forma
que a precariedade dos serviços traz desgastes tanto econômicos quanto relacionados a saúde dos
habitantes das regiões excluídas. Historicamente, a segregação socioespacial se faz presente no
Brasil através do privilégio pela renda, cor, classe social e etc. Com o capitalismo tal separação
ainda existe notadamente com a forte atuação espoliativa do mercado, que molda a cidade com
vantagens diretamente proporcionais à renda dos moradores. A consequência é a determinação e
fixação de “direitos” exclusivos baseados na localização residencial.

Já no caso de urbanização em novas áreas, representados por um lado pelos


condomínios fechados e por outro pelas ocupações populares desordenadas, acontecem como
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resultado da urbanização crescente. Em ambos os casos é necessário um investimento público


voltado para garantia de infraestrutura em um novo ponto da cidade, e geralmente o mercado
imobiliário é capaz de ditar a priorização da área ocupada pela camada social detentora de maior
capital. A diferenciação nesse contexto não está mais associada às centralidades versus periferia,
mas exclusivamente ao caráter influente da renda sobre os poderes públicos e privados, que
conseguem gerar esforços para “equipar” o novo bairro com os elementos necessários quando
outros bairros em condições semelhantes de localização ainda necessitam do básico de
investimentos. A própria facilidade de acesso (vias, asfaltamento, iluminação pública,
calçamento...) demonstra a capacidade do alcance das políticas públicas de forma unilateral, não
somente levando em consideração os condomínios fechados, mas empreendimentos de grande
valor com interesses particulares envolvidos.

Essa forma evidente de segregação pode ser especificada em sua forma voluntária e
involuntária, conforme Villaça (2011, p.141), onde uma forma acaba gerando a outra e camadas
mais altas são beneficiadas em detrimentos das mais baixas, mesmo em um ambiente onde as
camadas ricas são a minoria expressiva. Dessa maneira, a capacidade de escolha de habitação pela
classe social mais alta faz com que as classes mais baixas sejam direcionadas para áreas de
exclusão, ou menos valorizadas, de acordo com o seu rendimento.

Mesmo com a clara prioridade dada aos bairros e conjuntos com renda mais alta, é
possível observar movimentos de “expulsão” dos moradores de bairros menos valorizados para
periferias ainda mais distantes do centro. O fenômeno conhecido com gentrificação acontece
quando áreas da cidade, antes desvalorizadas, passam por um processo de revitalização e ganham
novos usos e vida com a recuperação de seus espaços urbanos, o que gera um movimento reverso
com a atração de novos empreendimentos, serviços e pessoas. O local antes habitado por uma
camada mais pobre da população passa receber maior fluxo e retorno de uma classe acima
(geralmente classe média) que se depara com a valorização imobiliária do local. Ou seja, os
investimentos voltados para melhorias urbanas para os moradores são de fato aplicados, mas os
mesmos não são totalmente beneficiados, uma vez que cedem à pressão de sair do imóvel por um
preço mais alto que o normal e voltam a habitar pontos periféricos em moradias inadequadas.

O espraiamento gera ocupação de áreas periféricas que podem assumir características


relacionadas à população mais pobre, que se estabelece em localidades distantes do centro como
alternativa e em busca de terrenos mais baratos, e a população com alta renda que escolhe morar
em regiões afastadas em busca de um padrão de vida distante do ritmo dos centros (insegurança,
congestionamentos, poluição). Em ambos os casos é possível notar a falta de infraestrutura nas
novas áreas, que implicam em maiores investimentos públicos, uma vez que são áreas longínquas
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que necessitam de uma expansão considerável dos serviços já existentes (equipamentos urbanos,
saneamento, iluminação pública, asfaltamento).

Para Milton Santos (1993, p.95) as grandes cidades espraiadas brasileiras são repletas
de vazios, onde existe uma relação das características espaciais como: “tamanho urbano, modelo
rodoviário, carência de infraestruturas, especulação fundiária e imobiliária, problemas de
transporte, extroversão e periferização da população”. Dessa maneira, a especulação incide
diretamente no tamanho das cidades, de forma que os seus vazios se tornam alvos posteriores à
urbanização fundiária. Como um efeito em cascata o setor imobiliário conduz o espraiamento, que
conduz a uma nova urbanização, esta com carências de serviços, que conduz a uma valorização
espacial diferenciada, como consequência há novamente periferização e o aumento do tamanho
das cidades, de modo que uma retenção especulativa dos vazios urbanos conduziu a uma nova
periferização, conforme observa Santos (1993, p.112). Produzem-se novos vazios urbanos, ao
passo que a população necessitada de habitação, mas sem poder pagar pelo seu preço nas áreas
mais equipada, deve deslocar-se para mais longe, ampliando tal movimento.

Dentre os principais efeitos diretos do espraiamento pode-se citar o aumento da


necessidade de investimentos públicos (gastos ligados ao aumento da infraestrutura urbana), o
surgimento ou aumento dos congestionamentos (quando os moradores das localidades periféricas
precisam se deslocar para o trabalho), problemas ambientais (relacionado ao desmatamento,
exploração e urbanização de áreas com características rurais), e o impacto na dinâmica social das
famílias (que passam a vivenciar um novo ritmo de vida, com carência de ofertas de serviços e
equipamento urbanos, e menor número de vizinhança).

A vacância residencial surge como resposta à atuação do mercado, pelos moldes da


especulação e necessidade de maximização dos lucros ao longo do tempo. A taxa de vacância é
calculada pela quantidade de domicílios vagos em relação ao total de domicílios de determinado
local, o que sugere um erro na previsão ou de demanda ou oferta na região. Esse contexto é de
grande importância ao ser avaliado pois retrata números necessários para a compreensão do real
valor do déficit habitacional. Segundo a definição dada pelo IBGE os domicílios vagos são os que
estavam sem morador na data de referência e os vagos de uso ocasional são os utilizados
ocasionalmente, durante férias, finais de semana ou outro fim, de forma que não são a residência
principal de seus proprietários.

A segregação assume duas formas opostas em sua gênese, a voluntária e involuntária,


onde as duas contribuem para a existência dos mesmos efeitos para a cidade, mas de forma
diferenciada para os moradores dependendo do ponto vista adotado. Na involuntária, como a
denominação torna óbvio, o morador não tem escolha, habita áreas distantes por falta de capital
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para arcar com as despesas de um imóvel localizado em áreas centrais. No caso da segregação
voluntária os moradores possuem condições para habitar regiões periféricas e precárias de serviços
sem influenciar no seu padrão de vida, aproveitando as externalidades positivas como maiores
áreas disponíveis e segurança (ofertada pelos condomínios fechados).

O mercado imobiliário direciona os movimentos de pessoas baseado em interesses


privados, onde a população de maior poder aquisitivo é considerada como prioridade. As
localizações de moradia, com tais premissas é definida e cabe aos mais pobres se adequarem ao
sistema vigente, o que ocasiona a existência e aumento constante de moradias inadequadas,
ocupações de áreas de preservação ou de ris Mais do que a divisão da cidade baseada em classes,
a cidade agindo com mercadoria é campo propício para aumento das desigualdades já existentes
e piora dos padrões conforme mais pessoas são marginalizadas. A evolução desse modelo abrange
políticas públicas que tentam remediar o problema real, mas sem evitar a constante necessidade
de novos planos, programas, e projetos até que algum consiga compreender a real necessidade da
população, que vai além de um teto em terrenos distantes.

Existe, assim, um ciclo de investimentos e valorização dos imóveis que se utiliza da


atuação de serviços públicos para especulação, e passa a beneficiar as áreas urbanas de acordo
com esse “potencial” que é pré-estabelecido por um setor que coloca o capital em prioridade, em
detrimento do benefício coletivo, e ideal de uma cidade democrática e, infelizmente, utópica.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em diversos momentos é possível observar a relação entre a direcionalidade da
implementação das políticas públicas como uma forma de motor para expansão do mercado
imobiliário. Esse caráter é acompanhado da lógica capitalista onde a cidade é considerada um
negócio a ser gerido de forma empresarial, com a utilização de ferramentas que valorizam a
economia e o valor de troca dentro das cidades (GUIMARÃES, 2013, p.192). Desse modo se vê
a valorização de uma economia política em detrimento do território como supracitado e
explicitado por Harvey (1996, p.53) ao caracterizar e definir o novo modelo de empresariamento
urbano.

É importante compreender também o caráter local da aplicação desse modelo


estratégico, afinal, existem os mais diversos exemplos bem e malsucedidos para caracterizá-lo. A
sua implementação é caracterizada pelos objetivos principais do Estado e iniciativa privada que o
apoia, onde uma intervenção pontual ou renovação urbana são capazes de promover uma melhoria
significativa na qualidade de vida da vizinhança e até mesmo melhorar a imagem de uma cidade,
ou apenas contribuir para uma valorização imobiliária acentuada e trazer benefícios privados, onde
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as consequências atingem a população local através de problemas como a gentrificação ou


alterações negativas na dinâmica urbana dessas localidades.

Dessa forma a questão urbana necessita ser tratada em todas as suas faces e
especificidades para entendimento geral do seu papel na configuração das cidades. Para Rolnik
(2002, p.56) existe a necessidade do entendimento da cidade como um todo, de forma que se pense
globalmente em suas problemáticas e não considerar apenas as áreas com prioridade de
necessidade de melhorias. Tal pensamento é primordial ao se tratar das causas e consequências da
exclusão urbana que hoje afeta a grande maioria das cidades brasileiras, principalmente do ponto
de vista, e Rolnik (2002, p.56) destaca ainda que para desfazer tal segregação é necessário usar
uma correta estratégia da distribuição dos investimentos, uma regulação urbanística e a gestão
urbana.

Conforme fundamentado anteriormente esses três elementos já existem e são


utilizados nas cidades, porém de forma negativa, com ênfase no benefício de poucos e pautados
na exclusão social e territorial. A reversão da utilização de tais fundamentos, conforme expressado
por Rolnik, são a solução para alcançar a mudança de paradigmas imprescindível na construção
de cidades democráticas.

A segregação urbana presente nas cidades pode ser demonstrada de diversas formas,
tanto espacialmente como estatisticamente. A diferenciação entre índices básicos como renda,
infraestrutura, densidade são capazes de informar quais são os bairros favorecidos pela
especulação e consequentemente com maior estrutura urbana e valor por metro quadrado. As
relações econômicas existentes dentro de uma área da cidade podem ser capazes de dinamizar o
território ou aumentar seu nível de segregação, o qual cria barreiras sociais que acabam por
caracterizá-los.

A direcionalidade dos investimentos públicos e privados seguem esse aspecto e


contribuem para a consolidação cada vez mais segregacionista dos padrões delimitados pelo
mercado. Fica evidente a capacidade de influência do setor imobiliário ao determinar parâmetros
inalcançáveis para a maioria da população. Dessa maneira tanto a moradia adequada quanto o
direito a cidade são realidades distantes para muitos, pois existe a obrigação da renda para,
ironicamente, poder acessar direitos básicos.

Dessa maneira, conforme destacado por Villaça (2001, p.141) a segregação é


primordial na composição da estrutura espacial intra-urbana, de forma que as lutas de segregação
dentro das cidades são na verdade lutas de classes. Essas lutas derivam das configurações urbanas
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relacionadas aos poderes políticos e econômicos, de tal forma que estabelecem uma distribuição
desigual dos investimentos e define a estrutura interna das cidades.

5. REFERÊNCIAS

ABRAMO, Pedro. A cidade com-fusa a mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura


urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos
Regionais. Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 25-54, nov, 2007.

ARAÚJO, Flavio Faria de. Empresariamento Urbano: concepção, estratégias e críticas. In: CODE
2011, 2011, Brasília. Anais do I Circuito de Debates Acadêmicos. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/code2011/chamada2011/pdf/area7/area7-artigo7.pdf>. Acesso em 03
nov. 2019.

BOTELHO, Adriano. O financiamento e a financeirização do setor imobiliário: uma análise


da produção do espaço e da segregação sócio-espacial através do estudo do mercado da
moradia na cidade de São Paulo. 2005. 360 f. Tese (Doutorado Geografia Humana). Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo.

BURNETT, F. L. (2008), Urbanização e Desenvolvimento Sustentável. A sustentabilidade dos


tipos de urbanização em São Luís do Maranhão, Editora UEMA, São Luís, 2008.

GUIMARÃES, Maria Clariça Ribeiro. A questão urbana na dinâmica de reprodução capitalista.


Argumentum, Vitória (ES), v. 5, n.1, p. 180-196, jan./jun. 2013

HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração


urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos. São
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KOWARICK, Lúcio. A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991b. [1968]

MATHIVET, C. 2010. “O direito à cidade: chaves para entender a proposta de criar “Outra
cidade possível”. In:SUGRANYES, A.; MATHIVET, C. (orgs.). Cidades para todos: propostas
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RIBEIRO, Luiz Cesar; SANTOS, Rolando Jr. Desafios da questão urbana. Texto originalmente
publicado na versão impressa e eletrônica do Le Monde Diplomatique Brasi, ANO 4, n. 45, abr.
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RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras. São Paulo: Contexto,2001. 72p.

ROLNIK, R. É possível política urbana contra a exclusão? Serviço Social e Sociedade, São
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SANTOS, Milton. Urbanização Brasileira. Editora Hucitec, São Paulo, 1993.

SINGER, Paul. Economia política da urbanização. 3º ed. São Paulo: Brasiliense, 1998.
Página 1454 de 2230

A MATRIZ AFRO-RELIGIOSA NO MARANHÃO: TURISMO ÉTNICO, CULTURA E


ETNICIDADE

THE AFRO-RELIGIOUS MATRIX IN MARANHÃO: ETHNIC TOURISM, CULTURE


AND ETHNICITY

Andressa Cristina de Souza Nunes


Graduada em Turismo – UFMA
Pós-Graduanda na Especialização em Supervisão, Gestão e Planejamento Educacional
Instituto de Ensino Superior Franciscano (IESF).
Graduanda em História – UFMA
Membro do Grupo de Estudo e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPaC-UFMA).
andressasounes@gmail.com

Izenilde Ferreira Santos


Graduada em Turismo-UFMA
Pós-Graduanda na Especialização Metodologia do Ensino Superior – UFMA
Membro do Grupo de Estudo e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPaC-UFMA)
izenilde.avelar@hotmail.com.

Maria da Graça Reis Cardoso (Orientadora)


Professora do Departamento de Turismo e Hotelaria da UFMA
Mestra em Educação/UFMA
Membro do Grupo de Estudo e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPaC – PGCult/UFMA)
Membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB/UFMA)
gracabanto@bol.com.br.

Eixo 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: Estudo sobre a religiosidade africana no contexto do turismo maranhense. Com esse
trabalho pretende-se discutir a prática da atividade turística em São Luís, coexistindo a matriz
afro-religiosa. Para tanto, vale-se da segmentação turística - turismo étnico -, bem como estudos
sobre etnicidade e a cultura, a fim de compreender os indivíduos na qualidade das suas práticas
culturais construídas junto ao seu grupo étnico. Desta forma, o estudo tem a intenção de fomentar
a discussão sobre a relação do turismo com os terreiros na cidade de São Luís, sobre uma
perspectiva de sustentabilidade social, econômica, ambiental e cultural, analisando os impactos
do turismo para as comunidades de terreiro, a fim de que não se espetacularize as práticas do
terreiro, promovendo conhecimento acerca da religiosidade africana na cidade. Trata-se de um
estudo bibliográfico e pesquisa de campo para coleta de dados a partir das casas de culto mais
antigas em São Luís, como a Casa das Minas-Jeje, Casa de Nagô e Terreiro do Egito, pela sua
historicidade e herança cultural presentes na dinâmica cultural local. Por se tratar de uma pesquisa
em construção não se tem resultados a apresentar.

Palavras-chave: Religiosidade Africana, Turismo Étnico, Etnicidade, Cultura

ABSTRACT: Study on African religiosity in the context of Maranhão tourism. With this work it
is intended to discuss the practice of tourist activity in São Luís, coexisting the Afro-religious
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matrix. There it is used by the tourist segmentation - ethnic tourism - as well as studies on ethnicity
and culture, in order to understand individuals in the quality of their cultural practices built with
their ethnic group. Thus, the study intends to foster discussion about the relationship between
tourism and terraces in the city of São Luís, about a perspective of social, economic, environmental
and cultural sustainability, analyzing the impacts of tourism for the communities of so that the
practices of the yard are not spectacular, promoting knowledge about African religiosity in the
city. This is a bibliographic study and field research for data collection from the oldest houses of
worship in São Luís, such Casa das Minas-Jeje, Casa de Nagô and Terreiro do Egito, for its
historicity and cultural heritage present in the local cultural dynamics. Because this is a research
under construction, there are no results to be presented.

Keywords: African Religiosity, Ethnic Tourism, Ethnicity, Culture

1 INTRODUÇÃO

A prática do turismo no mundo revela que o ato de viajar, além do deslocamento por
motivações variadas, implica na construção de experiências por meio do contato com pessoas e
territórios distintos, um fenômeno social complexo que pode “ser definido como a ciência, a arte
e a atividade de atrair e transportar visitantes, alojá-los e cortesmente satisfazer suas necessidades
e desejos” (McINTOSH E SHASHINKANT APUD IGNARRA, 2003, P. 12).

Isto é, uma rede de relações entre pessoas, culturas e lugares, distribuídas por
segmentações que abrangem as motivações das viagens, entre elas o turismo étnico, reconhecido
por valorizar as etnias em relação às origens e representações sociais, para assim, trabalhar as
especificidades de um grupo étnico específico de forma planejada e organizada - para este estudo,
a matriz afro-religiosa. Por isso, agrega-se à discussão a etnicidade e a cultura, para melhor
compreensão da matriz afro-religiosa no Maranhão.

Portanto, para debater essas questões o tópico seguinte apresenta uma abordagem
sobre o turismo e a atividade turística, com vistas à segmentação Turismo Étnico, bem como o
contexto histórico e as especificidades da religiosidade africana na cidade de São Luís; para tanto,
têm-se a trajetória da Casa das Minas, Casa de Nagô e Terreiro do Egito - espaços sagrados em
São Luís e a influência destes para a continuidade da matriz afro-religiosa na historicidade africana
na cidade.

Por fim, para complementar a pesquisa, na última sessão utiliza-se a conceituação


etnicidade objetivando a partir de terminologias específicas, discutir a forma como a cultura é
interpretada, tal como qualifica os indivíduos e suas organizações sociais; e diante disso, as
implicações desta análise para o entendimento acerca do sagrado na matriz afro-religiosa. Com
isso, tentará se distanciar do imaginário das crenças dos terreiros de uma idealização folclorizada
ou espetacularizada aos olhos do turista.
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2 O TURISMO NO CONTEXTO AFRO-RELIGIOSO

A experiência turística é composta por pessoas que a partir de uma origem, escolhem
um destino para viagem, no qual os turistas e visitantes buscam os atrativos que possuem mais
afinidade ou até mesmo que tenham curiosidade em diversos aspectos, sejam eles por lazer,
negócios ou para enriquecimento intelectual. Assim, os mesmos podem chegar ao destino com
uma finalidade e ser atraídos por outra, ampliando sua visão sobre o local visitado.

Por essa razão, o planejamento turístico “deve considerar todas as formas possíveis de
contribuição ao bem-estar dos moradores e desenvolvimento integral do destino” (PETROCCHI,
2009, P. 07), ou seja, predeterminar ações para o futuro do destino, amparada por objetivos
capazes de serem aplicados e/ou adaptados à uma oferta turística, capaz de contemplar os turistas
e a comunidade que irá recebê-los. Em função disso, planejar o turismo com foco na cultura afro-
religiosa faz-se necessário devido à representatividade da religiosidade africana denominada
Tambor de Mina em São Luís, em que os terreiros demonstram ser espaços de dedicação ao
sagrado e manutenção de saberes ancestrais.

Dado isso, a experiência nesses lugares varia de acordo com o perfil do turista, desde
alguma ligação com essa prática cultural, uma forma para obter conhecimento científico, ser
adepto do Tambor de Mina, afinidade com os terreiros ou mesmo presenciar parte dos ritos
sagrados. Alguns turistas também buscam por suas raízes, sua identidade, de uma forma ou outra
se identificam com a experiência de vida africana seja pela espiritualidade, por sua cor ou
referência familiar.

Daí um planejamento turístico alinhado à dinâmica dos terreiros, de modo geral,


poderia evitar algum mal-estar durante uma visita com fins turísticos; afinal, não se trata algo
simples, mas um conjunto de práticas complexas que regem a vida cotidiana. Mesmo assim, é
perceptível a ausência de políticas públicas direcionadas à matriz africana, a fim de contribuir com
suas práticas religiosas (promovem uma espécie de festejo para celebrar ancestrais divinizados) e
alguns projetos desenvolvidos junto às suas comunidades. A crença no sagrado da matriz africana
expressa a fé e confiança nos ancestrais.

Então, por meio do Turismo Étnico é possível conhecer “as atividades turísticas
decorrentes da vivência de experiências autênticas em contatos diretos com os modos de vida e a
identidade de grupos étnicos” (MINISTÉRIO DO TURISMO, p.17-18, 2005). Esta segmentação
propicia contemplar os terreiros que existem, e a partir de elementos como, raça, religião e a língua
- essenciais na formação processos históricos edificados - uma herança cultural comum,
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considerando o território, a noção de pertencimento e ainda a vida coletiva; diferentemente do


Turismo Cultural que é mais generalista, no qual, o atrativo “é um aspecto da cultura humana, que
pode ser a história, o cotidiano, o artesanato, ou qualquer dos aspectos abrangidos pelo conceito
de cultura” (BARRETO, 2007, P.87).

Portanto, o turismo com sua capacidade real de desenvolvimento cultural e


econômico, pode ser um fator importante colaborando com a manutenção dos terreiros, nos quais
durante suas festividades expressam criatividade, organização, vestimentas específicas para os
ritos no cumprimento dos fundamentos religiosos, entorno de uma forma de organização social.
Lembrando sempre do cuidado e responsabilidade desse planejamento para não tornar a religião
de matriz africana um espetáculo ou parte do folclore (generalizações).

2.1 A Religiosidade Africana em São Luís

Compreender a religiosidade implica no conhecimento sobre o ser humano e suas


crenças ao longo da história, para Almeida; Boaro (2016, p.11) “O homem abre uma fenda no
universo através da fundação do espaço sagrado. [...] Seu corpo, que é finito e limitado, dá espaço
a deuses atemporais, que só morrerão se os homens deixarem de acreditar neles”, isto é, a crença-
fé que fundamenta a existência humana no universo para a matriz africana, ocorre pelo transe -
momento em que a pessoa apresenta uma forma divina - seja um Vodun, Orixá, Encantado, entre
outros no panteão afro-religioso.

De acordo com Ferretti, M. (2001, p. 19)

O Maranhão aparece geralmente nos estudos afro-brasileiros como "a terra do Tambor
de Mina" - manifestação religiosa dominante em São Luís, que tem como principais
representantes a Casa das Minas-Jeje (dahomeana) e a Casa de Nagô (iorubana), abertas
por africanas em meados do século XIX. De acordo com as informações disponíveis, o
Tambor de Mina foi levado da capital para outras cidades maranhenses [...].

À vista disso, os espaços dedicados à prática do sagrado são pontos de referência física
para o desenvolvimento da atividade religiosa, as casas de mina ou os terreiros são elementos
fundamentais para as reuniões onde a fé é exercida e as entidades são manifestadas nos rituais de
reafirmação da fé. Logo, apesar da matriz afro-religiosa apresentar elementos em comum na sua
prática, possui casas e espaços distintos, a exemplo da Casa das Minas, Casa de Nagô e Terreiro
do Egito, considerados os mais antigos e tradicionais em São Luís, ainda que estes espaços
sagrados não sejam mais ativos para a prática religiosa, porém continuam sendo referência na
cidade devido à sua historicidade.
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Primeiramente, a Casa das Minas também chamada de Querebentã de Zomadônu ou


terreiro de Zomadônu, nome das divindades protetoras de suas fundadoras. Acredita-se que a Casa
das Minas tenha sido fundada pela africana daomeana Nã Agotimé, rainha do Daomé, mãe do rei
Ghezo, vendida como escrava, bem como toda a sua comitiva pelo rei Adandozan.

No documentário intitulado “Atlântico Negro na rota do Orixás”, o pan-africanista


Alberto da Costa e Silva afirma que Pierre Verger teria encontrado Nã Agontimé no Maranhão,
na Casa das Minas.

[..] o rei Ghezo, ao assumir o trono, enviou embaixadas à procura de sua mãe em Cuba e
no nordeste do Brasil. Verger constatou que entre as divindades cultuadas os nomes de
diversos membros da família real do Daomé anteriores a Adandozan [..]. Conforme
Verger, fora do Daomé o culto daquelas divindades só era conhecido no Maranhão.”
(FERRETTI, 198, p.2011)

Com isso, a Casa as Minas Jeje, é de origem Fon do antigo Daomé no Continente
Africano. Desta casa não se originaram outros terreiros em São Luís seguindo seus preceitos, o
porquê é uma incógnita. Assim como muitos mistérios ou fundamentos que cercam a história da
Casa das Minas. Em entrevista cedida à coleção Memória de Velhos, o etnógrafo Nunes Pereira
falou da relação com a Casa e uma das mães mais famosas da casa, que foi mãe Andresa. “Mãe
Andresa, com reservas, porque compreendem, a Casa das Minas tinha estrutura secreta, como de
várias sociedades na África, na Ásia, enfim, no campo religioso. [...] ‘meu filho, eu posso te
adiantar algumas coisas, outras eu não posso dizer” (MARANHÃO, p. 77, 1997).

Ainda na entrevista, Nunes Pereira fala de uma possível relação entre a casa das Minas
e sacerdotes africanos durante o século XIX. Para ele eram homens que “vinham da África e se
dirigiam imediatamente à Casa das Minas, homens que tinham, não só o dever de estimular a
prática daqueles atos religiosos, das festas, mas de esclarecer uma filosofia do próprio culto”.
Atualmente, a Casa das Minas realiza apenas a festa do Divino Espírito Santo, além de ser lugar
para agradecimentos e devoção no dia de São Pedro (29 de junho) pelos grupos de Bumba Meu
Boi; sua administração é feita por zeladores - também cumprindo uma missão religiosa.

Por conseguinte, a Casa de Nagô, está localizada na rua Cândido Ribeiro, próxima à
Casa das Minas no tempo e no espaço. A data e sua fundação não se sabe ao certo. De acordo com
pessoas mais velhas no culto aos Voduns, as africanas fundadoras da casa chegaram ao Maranhão
depois de 1830. Logo, a sua fundação ocorreu após a fundação da Casa das Minas, “mas com
pouco tempo de diferença, apenas o intervalo no porto entre a chegada de um navio e outro nos
portos do Maranhão” (SANTOS, 2001, p. 47).
Página 1459 de 2230

De acordo com a autora, a Casa de Nagô foi fundada por africanas de nação malungos
que contaram com a solidariedade da já existente Casa das Minas para sua fundação. “[...] Josefa
e outras foram ajudadas por Maria Jesuína, que fundou a casa Jeje e que era muito amiga do
pessoal que fundou a casa de Nagô” (SANTOS, 2001, p. 47).

A origem da Casa de Nagô também foi registrada através das memórias de dona Maria
Lucia de Oliveira, nascida em 1905, já falecida. Mas teve suas memórias registradas na coleção
Memórias de Velho. Dona Lúcia teve a maior parte de sua vida dedicada como filha de santo da
Casa de nagô, em suas memórias fala das fundadoras africanas de nomes Josefa e Joana e relembra
de outas filhas que comandaram a casa, a exemplo de Dona Joaninha, Nhá Brígida, Honorina,
Maria Cristina e Vitorina.

Essa relação de solidariedade e semelhanças entre a Casa de Nagô e a Casa das Minas
foi lembrada também por Nunes Pereira quando indagado sobre as diferenças entre as casas ele
respondeu que não conseguia identificar tantas diferenças, mas identifica algumas,

Ah! Eu não consegui identificar isso. Até no cerimonial, há uma série de atitudes, não só
religiosas, mas atitudes políticas, as disposições. A maneira de trajes é diferente,
extraordinariamente, entre a Casa das Minas e a Casa de Nagô. Eu nunca consegui nunca
identificar essas diferenças. (MARANHÃO, p. 82, 1997)

A autora Mundicarmo Ferretti, (2001, p. 03) também aponta diferenças desde a sua
fundação. “Conforme um dos mitos de origem, a Casa de Nagô matriz iorubana no tambor de
Mina, teve uma angolana entre suas fundadoras e integrou desde o princípio, uma entidade
cabocla, o que talvez explique a diferença”. No entanto, são diferenças percebidas pelos autores,
não propriamente princípios descritos pelas casas, uma vez que, não se trata de fazer comparações
entre as casas de Tambor de Mina, mas apontar a diversidade afro-religiosa através de processos
históricos construídos a partir da diáspora, estabelecendo semelhanças e diferenças.

Por meio da Casa de Nagô, por exemplo, originaram-se várias casas afiliadas,
fundadas por filhas que após uma preparação religiosa assentaram suas próprias casas, na sua
maioria, já extintas. A literatura aponta algumas delas como: o Terreiro de Vó Severa; Cota do
Barão, Noêmia Fragoso dentre outras. Na atualidade a Casa de Nagô não possui mais dançantes,
é coordenada por uma comissão que realiza apenas a festa do Divino Espírito Santo e um Boi de
Encantado - cuja festa acontece dia 29 junho dia de São Pedro.

Por fim, o terceiro espaço sagrado de interesse desta pesquisa é o Terreiro do Egito,
que diferente da Casas das Minas e Casa de Nagô, não possuiu espaço edificado localizava-se na
área rural da Ilha de são Luís, denominada Cajueiro, próximo ao porto do Itaqui. Foi fundado pela
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africana Basilia Sofia de nome privado no culto aos Voduns de Massinocô Alampong. De acordo
com a literatura, ela foi a primeira Vondunsi a ocupar o território do Cajueiro e fincar seu
assentamento. Além de espaço sagrado, assim como a maioria dos Terreiros era também um
espaço de resistência política no período da escravidão.

Este terreiro é um lugar sagrado muito antigo do Maranhão, foi ocupado pela
população negra maranhense desde o tempo do cativeiro. Suas matas abrigaram escravizados
fugidos e, durante mais de um século, foi local de reunião e de realização de rituais religiosos de
grande número de pessoas ligadas a diversos terreiros de São Luís e de outros municípios
maranhenses (FERRETTI, 2016, p. 02). A origem do terreiro do Egito está na memória de vários
filhos de santos que possuem sua formação religiosa a partir de seus iniciadores que foram
preparados pelas Vodunsis do Terreiro do Egito no século XX, sob a coordenação da Vodunsi
Mãe Pia.

Sua antiguidade, atestada pela população local, foi registrada em depoimentos


publicados por vários pais-de-santo preparados ali ou que acamparam em suas terras no tempo de
Mãe Pia, principalmente no mês de dezembro, quando ali se realizava o ritual do Baião, no dia de
Santa Luzia, em homenagem a Bela Infância, uma das principais entidades espirituais de Nhá Bá
(Basília Sofia ou Massinokô Alapong), a primeira vodunsi a chegar ali e a assentar encantados
naquelas terras (FERRETTI, 2016, p.02)

Em outras memórias, são relatadas episódios de encantaria durante as festas ocorridas


em momentos aéreos do Terreiro do Egito. “Participantes dos rituais avistaram o navio encantado
de Dom João, que surgia no início da festa e desaparecia nas profundezas do mar após o seu
encerramento”. Neste terreiro também lugar de realizações rituais considerados tradicionais
“como Baião e o Canjerê, além de lugar de culto de linhas da encantaria como família de Dom
Miguel da Gama e a linha de Botos e Marinheiros. (FERRETTI, 2016, p.02).

O Terreiro do Egito tem sua dinâmica interrompida após a morte de mãe Pia, sua
última Yalorixá; alguns filhos e filhas com raízes no terreiro se esforçaram para mantê-lo, mas
não conseguiram conciliar suas atividades em suas casas e no Terreiro do Egito. Vários donos de
terreiros tiveram sua formação no Terreiro do Egito. As atuais casas denominadas Casa Fanti-
Ashanti (Terreiro de Candomblé) e Terreiro de Yemanjá foram fundadas por Babalorixás que
tiveram sua origem no Terreiro do Egito, respectivamente: Euclides Meneses e Jorge Itacy de
Oliveira, ambos falecidos. Entretanto os terreiros continuam em atividade e são considerados,
sobretudo o Terreiro de Yemanjá um dos mais tradicionais no culto ao Tambor de Mina no
Maranhão.
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De acordo com memórias dos mais velhos, o Terreiro do Egito era um espaço aberto.
Durante as festas era construído um barracão de palha. O lugar era e é tido como um lugar sagrado,
guardião da memória afro-religiosa no Maranhão. Na atualidade essa memória e o território este
ameaçado em função da apropriação de uma empresa de capital internacional. Os moradores da
Comunidade do Cajueiro travam uma batalha judicial para não terem sua história destruída em
nome do lucro do capital internacional.

3 ETNICIDADE E TURISMO NA CULTURA MARANHENSE

Uma dinâmica social possui inúmeros conceitos que buscam explicar suas
singularidades, um destes conceitos é o de cultura, reconhecido popularmente por representar
hábitos e costumes do ser humano, tornando-se capaz de englobar inúmeras denominações que
apresentam os contextos socioculturais e as relações expressas entre os indivíduos na sociedade.
Assim, o processo de entendimento sobre a cultura revela a transformação e construção de
identidades, bem como a forma de pensar que lugares os indivíduos ocupam no mundo.

O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um


longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas
numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse
patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto
da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade
(LARAIA, 2001, P.48).

Sendo assim, a sociedade dispõe da cultura como uma dimensão capaz de compor
identidades, nas quais os indivíduos identificam-se por aspectos culturais em comum, ou seja, um
conjunto de expressões características de um grupo social no tempo e no espaço. Isto posto, “a
cultura está em um estado de fluxo constante. Não há a possibilidade de estagnação nos materiais
culturais, porque eles estão sendo constantemente gerados, à medida que são induzidos a partir
das experiências das pessoas (BARTH, 2005, p.17)”.

Como supracitado, a cultura permite a análise de várias particularidades em sua


interpretação prática, a exemplo da definição cultura popular que habitualmente ressignifica a
forma de ver as práticas culturais de grupos distintos, ou seja, de modo simplista seria a cultura
das camadas populares, opondo-se às práticas culturais da elite - contrastando hábitos e costumes
em um determinado território, atribuindo valor e noções diferentes sobre pertencimento. Ainda
assim, a riqueza da cultura popular pode ser vista nas crenças e tradições de uma comunidade,
fruto da vivência de seus membros, além de favorecer uma visão global sobre as organizações
sociais.
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Desse modo, à medida em que se estuda a experiência de vida humana, outras


denominações são utilizadas para descrever as organizações sociais, a exemplo dos estudos étnicos
e da etnicidade, um recorte para explicar valores construídos e/ou uma identidade étnica
fundamentada pelo pertencimento às práticas culturais de um grupo étnico, e assim, partilhada
entre as gerações objetiva (composição física dos sujeitos) e subjetiva (composição imaterial dos
sujeitos) de forma significativa e simbólica.

Para tanto, faz-se necessário compreender de forma introdutória o uso da conceituação


etnicidade e desta interpretação na cultura maranhense, uma vez que, “as identidades étnicas só se
mobilizam com referência a uma alteridade, e a etnicidade implica sempre a organização de
agrupamentos dicotômicos Nós/Eles” (POUTIGNAT, 1998, p. 152). Uma análise complexa,
porém, correspondente a um tipo de organização social fundamentada pelos indivíduos, pois é
construída diariamente a partir das relações interpessoais em cada grupo étnico como uma unidade
capaz de estruturar sistemas socioculturais.

Uma atribuição categórica é uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa em
termos de sua identidade básica mais geral, presumivelmente determinada por sua origem
e seu meio ambiente. Na medida em que os atores usam identidade étnicas para
categorizar a si e aos outros, com objetivos de interação, eles formam grupos étnicos
neste sentido organizacional (POUTIGNAT, p. 193-194).

Nessa perspectiva, as formações sociais africanas são mediadas por processos


societários, estabelecendo a organização de grupos sociais com práticas culturais em comum,
afinal “valores culturais e normas sociais como estas, junto com os valores espirituais e a estrutura
familiar, são compartilhados pelos africanos em todo o continente” (KHAPOYA, 2015),
distinguindo-se através dos significados atribuídos pela ação dos sujeitos, justificando em partes
a pluralidade religiosa no Brasil, em especial a afro-religiosa.

Assim, os grupos étnicos são compostos por uma teia de sentidos, em que seu valor e
relevância são aferidos principalmente pelos que compõem e identificam-se com suas
características, e deste modo veem-se representados por uma comunidade ou um grupo de pessoas,
organizadas pela sua etnicidade. Logo, para fins desse estudo essa análise refere-se à religiosidade
em conformidade à atividade turística.

Com isso, ao remeter-se a religiosidade africana faz-se referência a um elemento


qualificador de um grupo étnico - dotado de atributos específicos capaz de gerar sentido e
significado entre aqueles que compartilham seus fundamentos - a fé, a crença no místico
inseparável da experiência de vida humana para quem acredita, vista sobre a ótica da etnicidade.
Conforme aponta Oliveira (2006, p. 26),
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A questão étnica, na medida em que envolve interrogações sobre identidades assumidas


enquanto o fenômenos de etnicidade, guarda íntima relação com o contexto sobre o qual
os povos e os indivíduos que os constituem se movimentam: se for no interior de seu
próprio território - de um povo determinado -, a noção de etnicidade (nele) não se
aplicaria, ainda que a de etnia poderia ser tolerada, se bem que pouco precisa. A ênfase
no termo território explica sua importância na configuração da etnicidade e, por via de
consequência, a fecundidade do uso analítico do conceito.

À vista disso, o deslocamento promovido pela atividade turística promove por


territórios diferentes, permitindo ao turista buscar por satisfações pessoais, espirituais, etc., nas
quais as viagens articulam o convívio turista-grupo étnico gerando simultaneamente troca de
experiências entre turistas e a comunidade. Por isso, conciliar através da etnicidade - turismo e
religiosidade africana - fornece base para ver a realidade deste grupo étnico em seu próprio
território - a natureza afro-religiosa, para assim compreender o significado das crenças durante a
vida para o bem-estar social.

3.1 O papel do Turismo no contexto afro-religioso

Nesta fase teórica da pesquisa, os estudos marcam a inquietude com os impactos do


fluxo turístico para as comunidades de terreiro, salientando a existência da matriz africana anterior
e independente ao turismo, e, portanto, carente de organização e planejamento turístico. Com isso,
intenta-se desconstruir um sagrado folclorizado (uma visão preconceituosa e reducionista), afinal
a experiência de vida dos grupos étnicos de descendência africana - nas quais estão inseridas as
crenças ao sagrado - são construídas no segredo, dedicação e cuidados com o corpo e o espírito,
logo, a noção de cultura popular e folclore em domínio público distanciam a religiosidade africana
do seu significado.

Desta forma, a menção ao papel do turismo referindo-se ao contexto afro-religioso


por meio da etnicidade, ocorre em função deste transformar territórios em produtos turísticos a
partir de um conjunto de atividades econômicas; convertendo assim, territórios e culturas à
dinâmica da atividade turística, absorvendo de formas distintas as comunidades junto às suas
práticas culturais. Por isso, a importância de se planejar o destino turístico, afim de melhor adequá-
lo às condições do meio envolvente (PETROCCHI, 2009).

Ainda de acordo com Petrocchi (2009, p. 21)

O planejamento estratégico [do turismo] busca realizar uma mudança na unidade de


tempo. Projeta a migração para um futuro desejado. O presente é caracterizado pelo
diagnóstico da situação atual, e o futuro é representado pelo estabelecimento de objetivos
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a alcançar. A mudança é impulsionada por estratégias, que são escolhas de meios e


alternativas favoráveis, e por um conjunto de programas de trabalho, as ações.

Para tanto, o turismo vale-se da segmentação como uma forma de contemplar as


motivações/intenções de viagem dos turistas. Logo, essa caracterização da atividade turística
relacionada a etnicidade, considera os grupos étnicos através da religiosidade africana em São
Luís, além de evidenciar a necessidade de inserir no planejamento turístico a matriz afro-religiosa
para promover conhecimento acerca do espaço sagrado dos terreiros tanto para turistas quanto
para estudiosos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise apresentada nesse estágio do estudo considera a discussão da temática no


Turismo como uma forma de desenvolver um saber acadêmico sobre a religiosidade africana na
cidade de São Luís, afinal apesar da historicidade dos povos africanos na cidade, as comunidades
de terreiro seguem recebendo rótulos genéricos que desvalorizam hábitos e costumes, e fazem da
matriz africana um ‘espetáculo’ exótico sob a visão do outro, por isso, a continuidade dos estudos
fornece incentivo ao planejamento turístico, na pretensão de desmistificar conceitos pré-
estabelecidos na sociedade.

Desse modo, a abordagem teórica inicialmente propôs conhecer uma realidade


complexa, a partir do turismo e da etnicidade, na qual cultura e etnicidade não devem ser
analisados separadamente, mas, como complementares, pois enriquecem a análise dos grupos
étnicos para o turismo – permitindo uma visão construída por um grupo étnico, fundamental para
compor o planejamento turístico, pois a partir do momento em que se considera a existência das
comunidades de terreiro (centenárias) é possível pensar a atividade turística com base na
organização e interesse dos terreiros, uma vez que, estes espaços transcendem aspectos físicos,
pois através das pessoas são lugares que possibilitam interpretar e dar sentido e significado a vida.

Por isso, ao longo do trabalho são apresentados aspectos que atestam a ancestralidade
e contemporaneidade do Tambor de Mina no Maranhão, em que passado e presente dialogam para
a manutenção dos saberes ancestrais, despertando interesse principalmente de turistas, acerca dos
mistérios e fatos que envolvem os terreiros e mantém estes como espaços guardiões da memória
afro-religiosa.

REFERÊNCIAS
Página 1465 de 2230

ALMEIDA, Rogério; BOARO, Júlio Cesar Nogueira. Arte, mito e educação entre os fons do
Benim: a estátua de GU. IN. Revista do Instituto Estudos Brasileiros. São Paulo/USP. Nº 63,
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BARRETO, Margarita. Cultura e Turismo: Discussões contemporâneas. Papirus. Campinas, São


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BARTH, Fredrik. Etnicidade e Cultura. Tradução: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Rio de
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content/uploads/2015/03/BARTH-F-ETNICIDADE-E-CULTURA.pdf> Acesso em: 15 ago.
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FERRETTI, Mundicarmo DESCEU NA GUMA: O caboclo do Tambor de Mina no processo de


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FERRETTI, Mundicarmo; ROCHA, Maria. Encantaria de “Barba Soeira”: Codó, capital da


magia negra?. São Paulo: Siciliano, 2001.

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RJ:Pallas, 2011.

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LARAIA, Roque de Barros. CULTURA: um conceito antropológico. Jorge Zahar Editor, 14ª
edição. Rio de Janeiro, 2001.

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Filho. Memória de Velhos: Depoimentos: uma contribuição à memória oral da cultura
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<http://www.turismo.gov.br/sites/default/turismo/o_ministerio/publicacoes/downloads_publicac
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Editora UNESP. São Paulo, 2006.

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POUTIGNAT, Philippe. Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de


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SANTOS, Maria do Rosário Carvalho. O Caminho das matriarcas Jeje-nagô, São Luís, 2001
Página 1467 de 2230

A MULTICULTURALIDADE NO CURSO DE FÍSICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL


DO MARANHÃO

MULTICULTURALISM IN THE PHYSICS COURSE OF THE FEDERAL


UNIVERSITY OF MARANHÃO
Erika Santos da Costa
Licenciada em Física
Universidade Federal do Maranhão
Jackson Ronie Sá-Silva
Doutor em Educação
Universidade Estadual do Maranhão
Silvete Coradi Guerini
Doutora em Física
Universidade Federal do Maranhão
Eixo temático 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: O trabalho busca anunciar o multiculturalismo existente no corpo docente do curso


de Física Licenciatura e Bacharelado da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), por meio
de análise em documentos que explicitam a presença de culturas diversificadas na academia. Na
investigação, foram registrados 24 docentes ativos. Desse total, 11 professores são nativos do
estado do Maranhão, quatro são estrangeiros, e nove provenientes de diferentes estados brasileiros.
O reconhecimento de diversas identidades no espaço escolar tem incentivado o desenvolvimento
de pesquisas associadas a experiência do professor no fazer docente, possibilitando melhor
compreensão e fortalecimento do multiculturalismo uma vez que o professor tem sua cultura
indissociável da práxis docente (MOTA, BARROS e SILVA, 2017).
Palavras-chave: estudos culturais; multiculturalismo; prática docente; professor.

ABSTRACT: The paper seeks to announce the multiculturalism existing in the faculty of the
Physics Degree and Bachelor course of the Federal University of Maranhão (UFMA), through
analysis of documents that make explicit the presence of diverse cultures in Academy. In the
investigation, 24 active teachers were registered. Out of this total, eleven teachers are native to the
state of Maranhão, four are foreigners, and nine are from different Brazilian states. The recognition
of different identities in the school environment has encouraged the development of researches
associated with the teacher's experience in teaching, enabling better understanding and
strengthening of multiculturalism since the teacher has his inseparable culture of teaching praxis
(MOTA, BARROS and SILVA, 2017). We believe that the documentary analysis developed and
the results presented in this research can contribute to the clarification of previously obscure,
camouflaged and neglected issues.
Keywords: cultural studies; multiculturalism; teaching practice; teacher.

INTRODUÇÃO
Os primeiros traços dos Estudos Culturais foram evidenciados no período pós-guerra
na Inglaterra com o fenômeno de migração. A abrangência em diversos campos do conhecimento
(etnias, política, sociologia, filosofia), e a clarificação de significados requestou o reconhecimento
de diferentes grupos étnicos culminando para expansão deste estudo no mundo (STUART HALL,
2006).
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Os Estudos Culturais tem a incumbência de estabelecer a valorização da cultura


nacional, identidade do cidadão, criação de modelos de alfabetização e vocabulários universais
atenuando as diferencias sociais. Ultrapassando as fronteiras territoriais, este conhecimento vem
apresentando as nações o multiculturalismo, promovendo o reconhecimento de grupos
depreciados, o valor igualitário a cultura e em especial o reconhecimento de povos e culturas
existentes no mundo (JACQUES D'ADESKY, 1997).

O reconhecimento das identidades nacionais tem possibilitado que inúmeras questões,


antes invisíveis, sejam visibilizadas e debatidas. Neste sentido autores como, Renato Ortiz e
Jacques d'Adesky buscam clarificar os Estudos Culturais no território brasileiro, haja vista que o
Brasil não possui uma unidade disciplinar exclusiva para a transposição deste conhecimento
(ORTIZ, 2004).

Para melhor compreensão da presente pesquisa, julgamos ser necessária aduzir alguns
termos pouco conhecidos ou divulgados na língua portuguesa. Palavras como, multiculturalismo,
pluralismo cultural, interculturalismo, pluriétnica, são constantemente usadas de forma
equivocadas. Entendemos que a má interpretação dos significados destas palavras vem
contribuindo para o seu desuso e para o analfabetismo funcional, além disso, a carência dessas
palavras no dia a dia provoca o empobrecimento do vocabulário brasileiro. Acreditamos que, por
meio da compreensão do significado destes termos, o cidadão poderá identifica-se neles e
reivindicar o reconhecimento do seu grupo étnico ou cultural.

No Dicionário Aurélio é possível encontrar a definição da palavra “multicultural”


como a união de diversas culturas, já o termo “multiculturalismo” o dicionário reserva o
significado de “coexistência de diversas culturas numa sociedade” (FERREIRA, 2010).

Para Coelho (1997) o pluralismo cultural é a convivência igualitária em espaço-


temporal congênere de diferentes culturas “modos eruditos ao lado de populares, modos de
minorias étnicas ao lado das tendências dominantes, etc” (p, 291). O autor ressalta que para uma
discursão menos superficial do pluralismo cultural “[...] é preciso que as diferentes culturas de
grupos, meios sociais, classes e segmentos de classes mantenham, cada uma, sua especificidade
ao mesmo tempo que entram em equilíbrio com as demais, sem que se possa registrar entre elas
uma relação de dominância” (1997, p. 291).

Coelho retrata o contexto histórico do multiculturalismo nos Estados Unidos da


América (EUA) e sua chegada ao Brasil. Seu discurso versa nesses dois países por apresentarem
amplo registro de imigração o que contribui para uma diversidade racial, étnica e religiosa. Em
1960, o EUA recebeu um grande número de imigrantes onde a maioria era nativos europeus, para
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a inclusão da cultura desse grupo, o país desenvolveu um modelo de políticas públicas migratórias
denominado “Assimilacionismo” que sugere a assimilação entre os grupos, a fusão de diferentes
culturas numa única identidade.

No modelo assimilacionistas, a cultura de grupos minoritários como os negros


nascidos na América e os nativos indígenas eram sucumbidas pela cultura de grupos dominantes
como, por exemplo, os imigrantes europeus. Após anos na invisibilidade, os negros americanos e
os nativos indígenas reclamaram mudanças no modelo cultural vigente que não comtemplava seus
direitos civis, etnia, cultura e religião. O autor faz relação do termo pluralismo cultural com o
multiculturalismo, evidenciando o enfoque do multiculturalismo nas lutas de grupos raciais
menosprezados em busca de acesso à cidadania, em favor de política de igualdade e de espaço
para sua voz na sociedade.

Reconhecendo a diversidade étnica e diante da premência de criar políticas públicas


para grupos depreciados (negros, latino-americanos, homossexual, entre outros) o país
desenvolveu um novo modelo denominado “Multiculturalismo”. No modelo multiculturalista,
diferentes culturas eram respeitadas, incentivadas e reconhecidas, haja vista que:

[...] a pluralidade de vozes que compõem um país deve ser ouvida para que sua cultura
se entenda de modo não estereotipado e para que se faça da diversidade uma forma de
ampliar-se o conhecimento da espécie humana, una do ponto de vista biológico mas
ricamente diversificada do ponto de vista cultural” (COELHO, 1997, p. 262).

Na visão do multiculturismo de Coelho, existem dois aspectos que o diferencia, o


multiculturalismo como resultado que discorre da coexistência, este modelo é próprio de países
heterogêneos com diversas culturas como, por exemplo, o Brasil e os EUA. A ação concreta da
cultura é a característica principal desse modelo de multiculturismo. E o modelo de
multiculturalismo como programa, que se propõe a gerar um paralelismo cultural, este modelo é
típico de países fechado e homogêneo como o Japão que durante décadas fechou as portas para os
povos estrangeiros, impedindo que outras culturas, etnias e religiões adentrassem em seu território
modificando seus costumes e cultura. Neste viés, a visão de multiculturalismo como programa
tenciona inserir novas culturas, ou instrumentalizar culturas de grupos oprimidos como forma de
repara o tempo em que o multiculturismo era invisível (COELHO, 1997).

Este trabalho busca anunciar o multiculturalismo existente no corpo docente do curso


de Física (licenciatura e bacharelado) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) por meio
de análise em documentos que dão veracidade a presença de culturas diversificadas. Discutimos,
ainda, a relevância dos Estudos Culturais como elemento para a valorização das diferentes
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identidades culturais em uma práxis docente heterogênea como forma de potencializar e dar
visibilidade ao multiculturalismo.

Acreditamos que o reconhecimento de culturas diversificadas, dentro da


Universidade, pode oportunizar reflexões que contribuem para compreensão do multiculturalismo
como princípio educativo. Por meio do reconhecimento da identidade cultural de diferentes grupos
sociais é possível oferecer uma inclusão do sujeito da pesquisa (professor) à academia. Neste viés,
a Universidade tem o desafio de favorecer, além do reconhecimento o auto-reconhecimento dos
valores sociais, culturais, religiosos do outro. Conjeturamos a premência que as Instituições de
Ensino Superior (IES) tem de oferecer um espaço escolar que reflete a sociedade desigual,
multifacetada e multicultural (MOTA, BARROS e SILVA, 2017).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Ao abordamos a temática, Estudos Culturais, faz-se necessário apresentarmos os
transcritos da Constituição Brasileira de 1988, para melhor entendimento das leis que tratam do
reconhecimento do cidadão que compartilha a mesma nação. Diante desta questão, discutir os
Estudos Culturais exige discutir políticas que potencializam o respeito à diversidade cultural, a
condecoração ao multiculturalismo e a sociedade pluriétnica.

A Constituição Brasileira versa sobre os Estudos Culturais e o multiculturalismo com


enfoque nos princípios básicos dos direitos culturais e na política de reconhecimento da
pluralidade cultural. No Brasil, existem leis que asseguram o reconhecimento, a preservação e o
exercício de manifestação das diferentes culturas que estabelece uma democracia igualitária à
pluralidade cultural:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas
e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional.
(BRASIL, 2017, p.79).
O reconhecimento de uma nação pluriétnica permitiu a criação de um ambiente
jurídico para atender diferentes grupos. Visando o respeito à sociedade pluralista, no ano de 2005
o governo brasileiro acrescentou ao artigo 215 o parágrafo terceiro, assegurando no inciso V o
dever à “valorização da diversidade étnica e regional” (BRASIL, 2017, p.79). Neste viés, torna-
se relevante a disseminação dos Estudos Culturais no país em que novas perspectivas sobre étnica,
religião e cultura vêm cooperando para o enriquecimento intelectual da nação (JACQUES
D'ADESKY, 1997).
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Jacques d'Adesky salienta que a Constituição defende o respeito a diversidade étnica


e o pluralismo cultural protegendo a igualdade dos cidadãos que dividem o mesmo território,
independente do sexo, raça e religião, uma vez que o conceito de nação possui semelhança com o
de etnia quando “baseado na raça e na língua, nos laços pessoais hierarquizados e na aceitação
dessa hierarquia num dado território” (1997, p. 165). Entretanto, o autor apresenta duas
características, político-jurídicas, que cooperam para que a nação tenham supremacia sobre a etnia
“o que distingue formalmente a etnia da nação moderna é o privilégio da soberania concedido a
esta e, paralelamente, ao povo, e também a personalização jurídica que lhe é conferida por
intermédio do quadro institucional do Estado” (1997, p. 165).

O autor evidencia ainda que os grupos depreciados cobram mais do que o


reconhecimento da sua identidade, eles almejam a condecoração do status do seu grupo étnico ou
cultural. A junção desses dois reconhecimentos pode ofertar aos sujeitos do grupo uma existência
não-alienada, além de transmitir uma percepção mais propícia da imagem do grupo ao qual o
indivíduo pertence, haja vista que “a má percepção de um grupo pela sociedade pode engendrar
em seus membros um complexo de inferioridade” (1997, p. 171). A diversidade cultural, no
ambiente de ensino, enriquece a nação com perspectivas culturais e intelectuais diferenciadas
(JACQUES D'ADESKY, 1997).

O reconhecimento de diversas identidades no espaço escolar, tem incentivado o


desenvolvimento de pesquisas (MOTA, BARROS e SILVA, 2017) associadas a experiência do
professor no fazer docente, possibilitando melhor compreensão e fortalecimento do
multiculturalismo uma vez que o professor tem sua cultura indissociável da práxis docente. Essas
pesquisas levantam reflexões que perpassam sobre o direito do cidadão de ter e exercer sua cultura
no contexto social e buscam oferecer um melhor entendimento dos impactos que uma práxis
docente multicultural pode conceber.

[...] o fazer docente está muito além da mera ocupação de um posto profissional,
encontrando-se incluídos neste fazer, uma sobrecarga de compromisso social, político e
cultural, com outras várias condicionantes ligadas às significâncias e sentidos que
ultrapassam as demarcações estatais e a normatização institucional (MOTA, BARROS e
SILVA, 2017, p. 149).

Neste contexto, surge a premência de relacionar a docência com a prática multicultural


dentro das IES garantindo o respeito aos interesses dos grupos que a constituem. Essa
problemática atravessa a dimensão técnica da atuação docente, alcançando a dimensão social,
ética e cultural do trabalho docente (MOTA, BARROS e SILVA, 2017). Para Mota, Barros e
Silva, a crescente discursão em torno da prática pedagógica heterogenia nas IES, possibilita o
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trabalho docente sob novas perspectivas multiculturais, facultando o rompimento com olhares
essencialistas.

[...] um dos desafios da contemporeneidade para a docência fundada numa perspectiva


multicultural se coloca como desenvolver práticas docentes que considerem as diversas
culturas a partir da valorização das diferenças como elemento constituinte de cada sujeito
e responsável pela construção dos processos de intersubjetividades dos grupos
minoritários (MOTA, BARROS e SILVA, 2017, p. 157).

Esses debates podem gerar mudanças na relação entre o sujeito que ensina e o sujeito
da aprendizagem, na seleção dos conteúdos, nas metodologias de ensino, na prática pedagógica,
no reconhecimento e valorização de inúmeras identidades, uma vez que o ambiente de ensino e
aprendizagem se configura no contexto multifacetado (MOTA, BARROS e SILVA, 2017).

METODOLOGIA
Nos processos metodológicos da pesquisa, buscamos junto ao Departamento do curso
de Física (licenciatura e bacharelado) da UFMA, documentos que nos auxiliasse na divulgação
verídica dos dados. Salientamos que o Departamento de Física teve ciência dos objetivos do estudo
e compreendeu sua relevância para o conhecimento da diversidade cultural no curso de Física.
Ressaltamos que o estudo não tem a intenção de representar em seus dados professores substitutos,
apenas professores que obtiveram aprovação em concursos, ou que lecionam há mais de vinte
anos.

Para os métodos de análise, desenvolvidos neste estudo, tomamos como base o


trabalho de Bardin (2011). Destacamos que as unidades de registro, são os documentos concedido
pelo Departamento de Física. Na fase de organização da análise, dividimos o processo
metodológico em pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados e interpretação
desses resultados.

Na pré-análise desenvolvemos a leitura flutuante do material, esta etapa fundamenta-


se na necessidade de o pesquisador conhecer e se familiarizar com o material. Após a leitura
flutuante, iniciamos o tratamento e interpretação do material o que possibilitou a categorização.
Como enfatiza Bardin “A categorização é uma operação de classificação de elementos
constitutivos de um conjunto por diferenciação e, em seguida, por reagrupamento segundo o
gênero (analogia)” (2011, p. 147). Para a fase de averiguação do multiculturalismo construímos
duas categorias de análise: docente nascido no estado do Maranhão e docentes provenientes de
outros estados ou países. A etapa de enumeração, ou seja, a quantização da frequência propiciou
a apresentação dos resultados.
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Em nossa análise documental, a respeito do multiculturalismo no corpo docente do


curso de Física, evidenciamos uma heterogeneidade que permitiu confirmamos o multiculturismo.
Esta constatação implica em estudos mais amplos sobre os impactos que uma práxis docente
heterogênea pode proporcionar ao aluno por meio da transposição e recepção do conhecimento.

REPRESENTAÇÃO DO MULTICULTURALISMO

Atualmente, o departamento de Física possui 24 (vinte e quatro) docentes ativos, desse


total, 11 (46%) professores são nativos do estado do Maranhão, quatro são estrangeiros, e nove
provenientes de diferentes estados brasileiros. Não podemos afirmar que o grupo de docentes que
não nasceram no Maranhão tenha sofrido opressão, nem tão pouco que foram inferiorizados, ou
que seus direitos civis foram negados, nem ao menos podemos denominá-los de grupo minoritário,
haja vista que eles representam 54% do total de docentes. O que podemos apresentar são apenas
fatores que possam ter contribuído para que estes professores deixassem seu lugar de origem.

O reconhecimento da uma nação multicultural exige efetivação de políticas públicas


no âmbito da educação que assegure a disseminação dos Estudos Culturais e garanta o livre
exercício à manifestação cultural. Renato Ortiz ressalta que na contemporaneidade “conceber a
esfera da cultura como um lugar de poder significa dizer que a produção e a reprodução da
sociedade passam necessariamente por sua compreensão” (2004, p. 126).

Sobreviver em um país com tamanha desigualdade social como o Brasil, exigi muitas
das vezes que famílias inteiras deixem seu lugar natural em busca de melhores condições de vida.
Conjecturamos que a luta por melhores condições de vida tenha sido o principal motivo que levou
estes professores retirantes a deixarem sua cidade/país e permanecerem no estado do Maranhão.

O aumento na criação de novos campi e cursos nas universidades do Maranhão na


última década, a grande concorrência por vagas em cidades da região sul e sudeste também são
considerados fatores que contribuíram para os dados apresentados previamente na pesquisa.
Precisamos considerar também, a influência da área de pesquisa uma vez que muitos docentes são
atraídos para outras universidades para colaborarem em grupos de pesquisas de mesma linha de
conhecimento. Essa prática é muito comum na área do conhecimento de Física, haja vista que
grande parte dos docentes desta ciência divide sua vida na transposição de aula e na pesquisa, ou
seja, são professores pesquisadores.

Para melhor compreensão do fenômeno estudado, construímos o Quadro 1 que oferece


uma visão geral da nossa pesquisa e possibilita melhor compreensão do estudo. Os resultados
obtidos na investigação, permitiu a comprovação do multiculturalismo do corpo docente do curso
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de Física da UFMA. Salientamos que em alguns países, a divisão territorial é feita em províncias,
distritos ou cidades o que o diferencia da divisão territorial do Brasil.

Quadro 1- Apresentação do corpo docente do curso de Física da UFMA


Número de docentes Estados/Cidades Países
11 Maranhão Brasil
5 Ceará Brasil
2 Piauí Brasil
1 Brasília Brasil
1 Rio Grande do Sul Brasil
2 Lima; Chimbote Peru
1 Moscou Rússia
1 Bade-Vurtemberga Alemanha
Fonte: Autora (2019)
Diante da confirmação de um corpo docente heterogêneo, buscamos elementos que
potencialize a diversidade cultural no espaço escolar e a valorização da pluralidade cultural na
prática docente. Neste sentido, propomos que o professor retirante tenha sua identidade cultural
reconhecida, que seu modo de vida, de ser e de ver o mundo seja respeitado. Concernente às
questões já mencionadas, sugerimos que a IES (UFMA) inclua o Estudo Cultural no projeto
pedagógico do curso de Física (licenciatura e bacharelado) facultando espaço para a transposição
de conhecimentos sobre multiculturalismo e sua relevância para a sociedade, uma vez que este
aprendizado contribui para atenuação da desigualdade social e garante a (re)significação da
realidade incentivando reflexões que propiciam o (re)conhecimento de si e do outro (MOTA,
BARROS e SILVA, 2017).

Conjecturamos a efetivação de pesquisas mais amplas inerentes à formação docente,


a construção de um projeto pedagógico multiculturalista, a mudanças no currículo considerado
hegemônico, aos impactos ocasionados pela pluralidade cultural na práxis docente e a criação de
espaços, no curso de Física que levante reflexões a respeito do:

[...] multiculturalismo com vista à (re)organização de propostas curriculares, atendendo


às demandas dos diversos grupos sociais, tomando como pressupostos as subjetividades,
compreendendo que os valores mudam de acordo às questões culturais e se reestruturam
de maneira dinâmica (MOTA, BARROS e SILVA, 2017, p.149).

Na contemporaneidade, a formação docente tem por desafio produzir uma prática


pedagógica que considere a identidade de diversas culturas e a “valorização das diferenças como
elemento constituinte de cada sujeito” (MOTA, BARROS e SILVA, 2017, p.157). A formação
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docente é um processo contínuo que percorre caminhos multidimensionais, quando desenvolvida


alinhada à valorização do meio sociocultural podem ofertar maior visibilidade as Práticas
Multiculturais no cenário educacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso tensionar inúmeras questões históricas, culturais e sociais que foram


desconstruídas ao longo do tempo visando o favorecimento de grupos dominantes. Essas
abordagens devem perpassar a superficialidade para que seja evitado o enfraquecimento dos
grupos minoritários que também são sujeitos construtores de cultura e portadores de
conhecimento. Neste sentido, essas discussões acentuam a igualdade de valor entre as diferentes
culturas, enfatizando que uma sociedade democrática tem o dever de ofertar o respeito, e não
reprimir, a diversidade cultural existente no mesmo território e encorajar suas manifestações
objetivando sua preservação.

Acreditamos que a análise documental desenvolvida e os resultados apresentados


nesta pesquisa podem contribuir para o clareamento de questões antes obscuras, camufladas e
negligenciadas. Considerando a relevância do Estudo Cultural para a transposição de assuntos
essenciais como, o multiculturalismo, pluralismo cultural e para o reconhecimento da diversidade
cultural no curso de Física da UFMA, reclamamos que a instituição de ensino superior (UFMA)
polissêmica e multifacetada favoreça discussões que tencionem o contexto multicultural.

REFERÊNCIAS

ADESKY, J. E. F.D´; MUNANGA, K. Pluralismo étnico e multiculturalismo - racismos e


anti-racismos no Brasil. Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 165-182, 1997.

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Edição revista e ampliada, São Paulo, Brasil: Edições 70,
2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 51. ed. Brasília: Edições Câmara,
2017.

FERREIRA, A. B. H. Mini aurélio: minidicionário da língua portuguesa. 8. ed. Paraná:


Positivo, 2010.

CELHO, T. Dicionário Crítico de Política Cultural-Cultura e Imaginário.2. ed. São Paulo:


Editora Iluminuras LTDA, 2004.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva,


Guaracira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

ORTIZ, R. Estudos culturais. Revista Tempo Social, vol.16, n.1. São Paulo, jun. 2004.
Página 1476 de 2230

MOTA, C. M. A; BARROS, N; SILVA, A. L. G. Docência em Contextos de Diversidade:


profissionalidades e práticas multiculturais. Revista Profissão Docente, v. 17, n. 37, p. 145-
158. Uberaba, ago.- dez. 2017.
Página 1477 de 2230

A RELEVÂNCIA DAS BIBLIOTECAS PARA A EDUCAÇÃO PÚBLICA DO ESTADO


DO MARANHÃO

THE RELEVANCE OF LIBRARIES FOR PUBLIC EDUCATION IN THE STATE OF


MARANHÃO

Prof. Me. Felix Barbosa Carreiro


Universidade São Francisco – (USF) PPGSSE
Doutorando em Educação – Campus Itatiba (SP)
E-mail: felix.carreiro@mail.usf.edu.com.br;
Profª. Me. Margareth Santos Fonsêca
Secretaria Municipal de Educação de São Luís do Maranhão (SEMED)
E-mail: margarethsfonseca@gmail.com
Profª. Esp. Nilsen Maria Almeida Costa
Secretaria Municipal de Educação de São Luís do Maranhão (SEMED)
E-mail: nilsenmac@gmail.com

Eixo temático 3 – Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: As ameaças à qualidade do ensino público maranhense são históricas. Destacamos a


ineficiência das políticas educacionais voltadas para a melhoria do aprendizado escolar, que nos
últimos anos se apresenta estagnado em algumas etapas da educação básica. A prova disso são os
elevados índices de evasão escolar, a dificuldade de acesso à escola na educação infantil, o
analfabetismo, a deficiência da formação inicial e continuada dos professores, a escassez de
recursos e materiais didático-pedagógicos e, em muitos casos, a precariedade de infraestrutura
física escolar. Para superar esses e outros desafios o governo ponderou unir esforços, perseguir
objetivos e buscar parcerias. Desta forma, a ajuda vem do governo federal que sensibilizado com
a questão maranhense e também, devido ao compromisso assumido com a educação no país ao
considerar o ano 1996, como o “Ano da Educação”, firmou parceria como o Governo do Estado
do Maranhão por intermédio da Secretaria de Estado da Educação do Maranhão (SEDUC-MA),
buscando incentivar e estimular através da criação de inúmeros programas e projetos de ações
inovadoras na área pedagógica, como por exemplo: o Programa Nacional de Informática na
Educação (PROINFO), Aceleração de Estudos, Educação de Jovens e Adultos, Oficinas
pedagógicas, Bibliotecas Farol da Educação, entre outros, com objetivos de melhorar e
transformar a qualidade do ensino nas escolas da rede estadual. Assim, constitui objeto desse
trabalho a pesquisa sobre implantação desse último projeto, por apresentar objetivos ousados:
socializar o livro nas comunidades onde se encontram implantado, destacando-se a comunidade
estudantil da educação básica; estimular a leitura e o prazer pelo texto através de obras literárias
e contribuir para a melhoria do processo ensino-aprendizagem nas escolas do bairro ou município.
Interessa-nos reconhecer que a criação das bibliotecas públicas tem a potencialidade de pensar no
conhecimento como um meio de formação da consciência crítica, ou seja, conhecer como uma
forma de libertar-se. Ademais, constatamos enquanto professores da educação básica que os
alunos frequentes na biblioteca obtêm melhor rendimento escolar. Consequência, sem dúvida, do
hábito da leitura que, dentre outros benefícios favorece a escrita por aumentar o vocabulário e
nutrir a imaginação. Vale elogiar as premiações que são oferecidas nas escolas públicas aos alunos
assíduos em pesquisas nas bibliotecas, como incentivo à formação do aluno-leitor. Nesse sentido,
as Bibliotecas Faróis da Educação se destacam haja vista que são democráticas e adequadas para
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o aprimoramento do conhecimento humano. Talvez esses espaços necessitem de revitalização e


atualização do acervo de modo a contribuírem eficazmente para a melhoria do aprendizado
escolar. Essa investigação é primordialmente bibliográfica tendo como fontes de dados revistas
eletrônicas, plataformas de buscas e sites confiáveis da internet.
Palavras-chave: Faróis da educação; Biblioteca; Escola pública; Formação cultural.
ABSTRACT: The threats against the quality of public education in Maranhão are historical. We
highlight the inefficiency of educational policies aimed at improving school learning, which in
recent years has been stagnant in some stages of basic education. The proof of this is the high
school dropout rates, the difficulty of access to school in early childhood education, illiteracy, the
initial and continuing deficiency training of teachers, the scarcity of resources and didactic-
pedagogical materials and, in many cases, the precariousness of school physical infrastructure. To
overcome these and other challenges, the government considered joining efforts, pursuing
objectives and seeking partnerships. In this way, the aid comes from the federal government who
was sensitized to the Maranhão issue and also, due to the commitment assumed with education in
the country when considering the year 1996 as the “Year of Education”, has established a
partnership with the State Government of Maranhão through the Maranhão State Secretary of
Education (SEDUC-MA), seeking to encourage and stimulate through the creation of innumerable
programs and projects of innovative actions in the pedagogical area, such as: the National Program
for Informatics in Education (PROINFO), Studies Acceleration, Youth and Adult Education,
Pedagogical Workshops, Farol da Educação (Lighthouse of Education) Libraries, among others,
with the objective of improving and transforming the quality of teaching in state schools. Thus,
the object of this work is research on the implementation of this last project, as it presents bold
objectives: socializing the book in the communities where it is located, highlighting the student
community of basic education; stimulate reading and pleasure in the text through literary works
and contribute to the improvement of the teaching-learning process in schools in the neighborhood
or municipality. We are interested in recognizing that the creation of public libraries has the
potential to think of knowledge as a means of forming critical awareness, that is, knowing as a
way of freeing oneself. Furthermore, we found that as teachers of basic education, students who
attend the library obtain better school performance. Undoubtedly a consequence of the habit of
reading, which, among other benefits, favors writing by increasing vocabulary and nourishing the
imagination. It is worth praising the awards that are offered in public schools to assiduous students
in research in libraries, as an incentive for the training of the student-reader. In this sense, the
Faróis da Educação (Lighthouses of Education) Libraries stand out because they are democratic
and appropriate for the improvement of human knowledge. Perhaps these spaces need
revitalization and updating of the collection in order to contribute effectively to improving school
learning. This investigation is primarily bibliographic with electronic journals, search platforms
and trusted sites.
Keywords: Lighthouses of education; Library; Public school; Cultural formation.
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INTRODUÇÃO
Dentre os estudos sobre as políticas de incentivo à leitura proficiente na educação
básica, ousamos destacar as ações educativas do projeto “Faróis da Educação”316, desenvolvido
na perspectiva de uma prática social orientada para incrementar as habilidades leitoras dos
estudantes que frequentam essas minibibliotecas. Tendo a potencialidade de despertar naqueles
que as frequentam o pensamento crítico, possibilitando a transformação de si mesmo e da
sociedade. Portanto, contribuindo assim ao processo formativo do educando. Desse modo,
concordamos que a alfabetização é um ato político no sentido do pensamento de Freire (2001).
Em tempos de flagrante desprezo à cidadania, vale problematizar o quanto as políticas
educacionais têm sido insuficientes para garantir uma alfabetização de qualidade. Questiona-se
em que medida o Programa de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) têm elevado o aprendizado
na educação infantil pública brasileira. O diagnóstico do Sistema de Avaliação da Educação
Básica (SAEB), sobretudo da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), não seria indicativo
de fracasso escolar? Se isso ocorre, havemos de admitir violação do direito humano e jurídico de
aprendizagens de qualidade ao impedir o educando de conviver dignamente na sociedade e de
aprimorar seus conhecimentos.

O projeto “faróis do saber”, objeto desse estudo, tem a preocupação em formar leitores
ao incentivar nos frequentadores das minibibliotecas o hábito da leitura. Não encontramos
evidências sobre a compreensão do ato de ler enquanto interpretação do texto, não restrito à
codificação e à decodificação do mesmo. Contudo, por serem públicas, pressupomos a integração
da comunidade e da família no processo de formação de estudantes leitores. É possível que se os
pais forem leitores os filhos tendem a imitá-los. Além de outros exemplos simples como aproximar
a criança do livro visitando livraria, biblioteca pública, banca de revistas, sebos ou, até mesmo,
levando-os a uma feira do livro. É interessante que se dê oportunidade a criança de escolher o
livro de sua preferência, pois, a paixão pela leitura ocorre gradativamente e se inicia quando o
leitor principiante ler o que gosta de ler. Em relação ao aprender pelo exemplo, o mesmo diríamos
dos professores. E cabe a questão: qual o interesse dos professores pela leitura e a pesquisa?

Associada a essa questão, observamos o quanto às políticas de formação docente


negligenciam o incentivo à leitura e à autoformação. Afora o Livro do Professor, a distribuição
gratuita de livros em conformidade com a formação e a atuação do professor, ainda é precária. O
desejável seria que o professor investisse em sua própria formação profissional instituindo sua
biblioteca particular. Para tanto, necessitamos de superarmos dois obstáculos: os altos preços dos
livros e os baixos salários dos professores. Enfatizamos que, sobretudo o professor alfabetizador,

316
“Faróis da Educação” e “Faróis do Saber” são denominações do mesmo projeto.
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atribui-se o papel de mediador entre os saberes escolares e a formação de habilidades leitoras.


Nesse sentido, asseveramos que é indispensável garantir aos professores da educação infantil uma
formação continuada sólida o suficiente que garanta o desenvolvimento de suas habilidades no
cotidiano da sala de aula.

Desse modo, pesquisamos a partir de dados bibliográficos o projeto “faróis da


educação” como estratégico na formação de habilidades leitoras. E também o compreendemos
como uma política de democratização da educação intra e extraesclar haja vista a possibilidade de
acesso universal às minibibliotecas. O objetivo desse estudo é, portanto, desvelar a viabilidade
social e educacional desse projeto como instrumento de melhoria da qualidade das aprendizagens
na educação básica, tendo como ação pedagógica precípua a formação de leitores. Daí que no
desenvolvimento desse trabalho focamos reflexões as ações educativas e culturais das bibliotecas
“faróis da educação” como espaços privilegiados de conhecimento precedido do incentivo ao
hábito leitura de obras literárias e livros didáticos, utilizando-se de atividades da cultura lúdica
como estratégia didático-pedagógica.

Seguidamente, à luz de estatísticas, ousamos justificar a relação que há entre o


aprendizado escolar e a prática da habilidade leitora, tendo por base autores referenciados na
temática. Nas conclusões advertimos sobre a urgência de políticas educacionais que valorizem as
bibliotecas escolares como estratégicas para a melhoria da qualidade das aprendizagens
significativas. Chamamos a atenção da necessidade de aprimoramento das minibibliotecas do
projeto “Bibliotecas Faróis do Saber”, no sentido de atualizar o acervo e modernizá-las. Além de
propor a expansão desse projeto a todas as escolas públicas do Maranhão, assumindo-o como
política de Estado.

DESENVOLVIMENTO
Inicialmente convém explicitar o entendemos por leitura. Por isso, compartilhamos do
que defende Furtado (2009, p. 1) “Entende-se por leitura não somente decifrar símbolos gráficos,
mas, essencialmente, a compreensão e a utilização da informação para o desenvolvimento do
conhecimento e como prática social e socializadora”. Observemos no pensamento da autora a
perspectiva emancipatória do ato de ler que se associa ao que diz Freire (2001, p. 9). “a leitura da
palavra é sempre precedida da leitura do mundo”. Por isso, os educadores ligados à alfabetização
necessitam compreender que, segundo Bourdieu, Cartier (2001), a leitura caracteriza-se por não
ser neutra, haja vista que a linguagem articula-se em um contexto cultural-ideológico.

A ideia de contextualizar a linguagem à prática da leitura parece permear o objetivo


do projeto “Faróis da Educação”, como apresentado em Da Costa (2013, p. 22),
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As bibliotecas “Farol da Educação” são entendidas, na concepção do seu projeto, como


um espaço que deve propiciar além de acesso à produção cultural da humanidade,
informação viva e presente. O objetivo é que o Farol, em especial no interior do estado,
funcione como um centro para a realização de eventos educativos, culturais e de lazer. E,
para atingir esse propósito, com a efetiva utilização desse acervo, deveriam ser planejadas
atividades de dinamização – direcionadas a vários segmentos da comunidade – tais como:
palestras, debates, concursos, jogos, gincanas, exposições, feiras, oficinas, cursos,
dramatização, desenho e pintura (Manual do auxiliar de biblioteca, 1997).

Implicitamente a autora reconhece na biblioteca também um espaço de incentivo à


leitura, esta como entretenimento e lazer. Esse pensamento da referida autora coaduna com o que
diz Furtado, (2001, p. 5) “entendemos por atividades lúdicas os jogos e brincadeiras dirigidas,
com uso de metodologia própria, respeitando “o mundo das crianças”, onde a descoberta,
criatividade e expressão são incentivadas, em um ambiente agradável e de prazer”.

O texto ora em estudo informa que a autora coordenou o Sistema de Bibliotecas


Escolares da Secretaria de Educação do Estado do Maranhão – SEDUC e, assim se expressa a
respeito do mesmo, implantado em1992,

O Sistema de Bibliotecas Escolares tem por objetivo: implantar e implementar


bibliotecas escolares, na Rede Estadual de Ensino, de forma sistêmica, assim como
também assegurar o funcionamento e dinamização dessas bibliotecas de forma integrada
com as escolas, a fim de contribuir efetivamente para o processo educativo
(MARANHÃO. Secretaria de Estado da Educação, 1992). (FURTADO, 2001, p.6)

Ainda segundo a autora, os objetivos do programa SBE não foram cumpridos


satisfatoriamente. Daí adotou-se a política de implantação do projeto “Farol da Educação”,
inspirado no projeto “Bibliotecas Farol do Saber” de Curitiba-PR. Dentre outros, os objetivos do
citado projeto do Maranhão, foram destacados os que se seguem:

Transformar as bibliotecas em uma efetiva instituição de apoio a educação formal e


informal, (...) democratizar o acesso ao livro, servindo à comunidade ou município onde
esta inserida (...) fornecer a comunidade um espaço destinado ao encontro com as artes,
com os bens culturais, enfim fazer das Bibliotecas Farol da Educação um Centro Cultural
(MARANHÃO. Secretaria de Estado da Educação, 1997). (Ibidem, p. 6).

A inauguração da primeira Biblioteca Farol da Educação Josué Montello ocorreu aos


28 de agosto do ano de 1998. No primeiro ano de funcionamento atendeu 2.450 consultas, donde
93,7% foram de alunos do ensino fundamental. Seguindo o espirito da cultura lúdica, foram
desenvolvidas ações nos espaços das bibliotecas, as quais eram antecedidas de um trabalho de
sensibilização “junto às escolas, associações, clubes, igrejas e outras entidades, para adesão às
atividades” (Ibidem, p. 8). Dentre as quais destacamos os “clubes de leitura”, que consistia no
seguinte:

Durante as férias de janeiro, as bibliotecas realizam atividades em torno do livro de


literatura, com a participação de crianças da comunidade. Os grupos eram formados pela
faixa etária, onde escolhiam os livros que iriam ler. As crianças comentavam sobre o
texto lido e em um painel iam emitindo anotações sobre o mesmo. Destacamos que não
havia imposição para que a criança se manifeste, mas os funcionários da biblioteca
faziam um trabalho de sensibilização sobre a importância da contribuição de cada
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participante. Assim, percebíamos que as crianças, tímidas no inicio, tinham um


comportamento diferente com o decorrer da atividade e conseguiam se expressar e emitir
opiniões e comentários de maneira descontraída (Ibidem, p. 8).

Ao analisar qualitativamente os resultados desse e de outros estudos sobre o impacto


das bibliotecas escolares na elevação do aprendizado dos alunos da educação básica, afirmamos
que o projeto “Biblioteca Farol da educação” é uma experiência educacional eficaz. Atribuímos a
ligação entre educação e cultura o fator primordial para alcançar essa condição. Percebemos, nas
entrelinhas de alguns textos pesquisados, o fascínio e o entusiasmo entre todos os participantes,
colaboradores e responsáveis pelo desenvolvimento do projeto. Ora, se crianças, adolescentes e
jovens sentiam-se atraídos e motivados em integrar as ações promovidas pelo projeto, seria porque
sentiam algum prazer na leitura ao incorporar elementos imaginários e simbólicos. Corroborando
com esse pensamento cito um estudo do Ministério da Educação (MEC) intitulado “Avaliação das
bibliotecas escolares no Brasil” em que trata das potencialidades dos espaços de leitura porquanto
propicia “a democratização do acesso às fontes de informação e cultura; o fomento à leitura e o
estímulo à atitude investigativa do aluno; e o apoio à atualização e ao desenvolvimento
profissional do professor”. (MEC, 2011, p. 6). Aliás, concordamos com esse documento ao
ponderar que “ler é uma das atividades mais completas, formativas e prazerosas a que podemos
dedicar o nosso tempo”. (Ibidem, p. 10). Referimo-nos ao citado estudo para trazer uma
compreensão de biblioteca a qual concordamos por coadunar com o espírito do projeto em
pesquisa,

O conceito de biblioteca escolar está presente no Manifesto IFLA/Unesco para Biblioteca


Escolar, segundo o qual essa biblioteca deve habilitar os estudantes para o aprendizado
ao longo da vida, desenvolvendo a imaginação e preparando-os para viver como cidadãos
responsáveis. É parte integral do processo educativo, sendo essencial a qualquer tipo de
estratégia de longo prazo no tocante ao desenvolvimento competente da leitura e da
escrita, ao acesso à informação e ao desenvolvimento social, cultural e econômico.
(MEC, 2011, p. 62).

Dialogamos sobre um período de efervescência das ações educacionais, sociais e


culturais do projeto em análise. Contudo, avançando nas pesquisas identificamos um período
sombrio. Referimo-nos ao site da Secretaria de Estado da Educação - SEDUC- MA ao informar
que o Governo do Estado, no ano de 2016, instituiu a Rede Estadual de Bibliotecas Faróis do Saberes
que estavam desativados desde 2013. Eles foram redimensionados para uma gestão compartilhada
pela Secretaria de Estado do Turismo - SECTUR - e SEDUC. Das 118 unidades, 24 ficaram sob
responsabilidade da SEDUC e 94 passaram para a coordenação da SECTUR.

Na verdade a informação refere-se à Lei nº 10.613, de 5 de julho do ano de que cria o


Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas do Estado do Maranhão. Vale destacar o artigo 1º que
coaduna com essa investigação, assim descrito “fica criado o Sistema Estadual de Bibliotecas
Públicas do Estado do Maranhão, com vistas a proporcionar à população o acesso a bibliotecas
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públicas racionalmente estruturadas e favorecer a formação do hábito de leitura, estimulando a


comunidade ao acompanhamento do desenvolvimento sociocultural do estado”. No contexto da
alfabetização, a aquisição da habilidade leitora é também compreendida como letramento que, de
acordo com o documento do MEC que analisa os resultados do Programme for International
Student Assessment - PISA significa “a capacidade de compreender, usar, avaliar, refletir sobre e
envolver-se com textos, a fim de alcançar um objetivo, desenvolver conhecimento e potencial, e
participar da sociedade” (MEC, 2019, p.22). E esse documento acrescenta

Uma pessoa letrada em Leitura não tem apenas as habilidades e conhecimentos para ler
bem, mas também valoriza e usa a Leitura para diversas finalidades. Portanto, um dos
objetivos da educação é cultivar não apenas a proficiência, mas também o envolvimento
com a Leitura. Envolvimento, neste contexto, implica a motivação para ler e abrange um
conjunto de características afetivas e comportamentais que incluem o interesse e o prazer
na leitura, a percepção de controle sobre o que é lido, o envolvimento na dimensão social
da leitura e as diversas e frequentes práticas de leitura (MEC/PISA, 2019, p. 46).

Notemos que a legislação vigente nos “decretos do livro” define como um dos
elementos da política de formação do hábito da leitura a parceria entre comunidade e estado.
Especificamente às “Bibliotecas Farol do Saber”, assim menciona a lei no artigo 4º da lei 10.613,

A Rede Estadual de Bibliotecas Faróis do Saber integrará o Sistema Estadual de


Bibliotecas Públicas, de forma a atender por meio do seu acervo e de seus serviços os
diferentes interesses de leitura e informação da comunidade em que está localizada,
colaborando para ampliar o acesso à informação, à leitura e ao livro, de forma gratuita e
que atenda todos os públicos, funcionando como um centro cultural para o referido
Município.

A pesquisa não conseguiu fontes bibliográficas que permitissem avaliar o


funcionamento atual das “Bibliotecas Faróis do Saber” conforme previsto em lei. É possível que
a revitalização não tenha alcançado plenamente em todas as unidades. Confirmamos essa realidade
em acordo com o depoimento de um dos autores desse artigo ao relatar que lecionou no ensino
médio noturno regular no ano letivo de 2018 numa escola pública estadual em cujo espaço estava
localizada uma “Biblioteca Farol do Saber”. Segundo o professor, a mesma se encontrava sempre
fechada.

Vale registrar, contudo, a publicação do jornal El País em edição digital do dia 14 de


julho de 2019 com reportagem do jornalista Breiller Pires, que discorre sobre a valorização do
atual governo às bibliotecas escolares no contexto do programa “Escola Digna”, enfatizando as
“Bibliotecas Faróis do Saber”. A respeito desse último projeto, o autor do artigo do referido
informativo espanhol assim se expressa, o governo revigorou em 2016 a rede estadual de
bibliotecas Faróis do Saber. O projeto é antigo no Maranhão, mas muitos espaços estavam
desativados antes da publicação de um decreto que estabelece parcerias entre Estado e municípios
para administração compartilhada dos equipamentos culturais.
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Consideramos legítimo acrescentar o que a reportagem informa sobre o investimento


do governo nas bibliotecas públicas no estado,

Do fim de 2017 até agora, foram inauguradas ou reabertas 45 bibliotecas públicas, cinco
delas em São Luís. Outras três devem começar a funcionar até o fim do ano na capital
maranhense, um caso raro entre as grandes cidades brasileiras. Com 63% de suas escolas
equipadas com bibliotecas, é a que apresenta maior diferença relativa ao índice de seu
estado comparado a outras capitais.

Perscrutando o site da SEDUC-MA, analisamos no acervo fotográfico (nota de


rodapé) e constatamos o encantamento de crianças e adolescentes ao folhearem os livros em
exposição. É provável que esse fascínio tenha brotado pelo fato dos livros serem novos, bem
ilustrados e temas adequados. Quando das reinaugurações de bibliotecas escolares e de
“Bibliotecas Faróis do Saber”, a referida fonte de pesquisa registrou depoimentos emocionantes
de alunos que rendiam homenagens de gratidão ao governo pelo feito. Inclusive promessas
esperançosas de que doravante a presença seria mais intensificada naquelas casas de leitura. Havia
também manifestações de falta de incentivo para frequentar a biblioteca. De fato, pouco adianta
bibliotecas tenham belas arquiteturas, sejam bem equipadas e servidas de bons profissionais se
quase ninguém as utiliza. Mesmo assim, as bibliotecas escolares ainda são insuficientes no
Maranhão. Segundo dados do Censo escolar 2018,

Em relação à infraestrutura, ao avaliar a disponibilidade de biblioteca ou sala de leitura


nas escolas, um recurso pedagógico essencial para o aprendizado dos alunos, percebe-se
que esse recurso é menos encontrado nas Regiões Norte e Nordeste do País, conforme
pode ser observado na figura em anexo, os estados que apresentam a menor proporção
de escolas com esse recurso são Acre, Maranhão e Amazonas. Outrossim, mais de 70%
das escolas do Distrito federal, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul dispõem de
biblioteca ou sala de leitura (MEC, 2018, p. 47).

Pesquisas sobre o comportamento do leitor explicam o quanto as políticas de incentivo


à leitura são insuficientes para tornar o Brasil um país de leitores. Citemos, por exemplo, o estudo
“Retratos da Leitura” do ano de 2016. Realizada pelo Ibope Inteligência por encomenda do
Instituto Pró-Livro, entidade mantida pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL),
Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares
(ABRELIVROS), a pesquisa ouviu 5.012 pessoas, alfabetizadas ou não, mesma amostra da
pesquisa passada. Isso representa, segundo o Ibope, 93% da população brasileira. Para essa
investigação, é leitor quem leu, inteiro ou em partes, pelo menos 1 livro nos últimos três meses.
Já o não leitor é aquele que declarou não ter lido nenhum livro nos últimos três meses, mesmo que
tenha lido nos últimos 12 meses. A respeito das bibliotecas, foco de nossa investigação, o estudo
diz o seguinte,

Apesar de 55% dos entrevistados informarem que sabem da existência de uma biblioteca
em sua cidade ou seu bairro (esse número era maior em 2011 (67%), 66% não
frequentam bibliotecas ou frequentam raramente (14%). Somente 5% da população
frequentam sempre, e 15%, às vezes. A biblioteca mais frequentada por quem frequenta
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sempre ou às vezes (55% de 20% dos entrevistados) é a escolar, seguida da pública


(51%). (FAILLA, 2016, p. 40).

Segundo especialistas, um dos resultados mais surpreendentes e, ao mesmo tempo,


animador, foi a descoberta de que entre as principais motivações para ler um livro, entre os que se
consideram leitores, os adolescentes entre 11 e 13 anos são os que mais leem por gosto (42%).
Por outro lado, é deveras preocupante o achado do professor. A repercussão esteve noticiada em
reportagem do jornal O Estado de São Paulo do dia 18 de maio do ano de 2016

A pesquisa perguntou a professores qual tinha sido o último livro que leram e 50%
respondeu nenhum e 22%, a Bíblia. Outros títulos citados: Esperança, O Monge e o
Executivo, Amor nos tempos do cólera, Bom dia Espírito Santo, Livro dos sonhos,
Menino brilhante, O símbolo perdido, Nosso lar, Nunca desista dos seus sonhos e
Fisiologia do exercício. Entre os 7 autores mais lembrados, Augusto Cury, Chico Xavier,
Gabriel Garcia Márquez, Paulo Freire, Benny Hinn, Ernest W. Maglischo e Içami Tiba.

Depreendemos desse dado que o professor, sobretudo da educação pública básica, é


pouco estimulado ao cultivo da habilidade leitora. Observemos que dentre os títulos citados não
existem obras de autores da literatura brasileira. E persiste o desafio da educação brasileira:
poderia o professor incentivar o aluno a ler se ele próprio, por diversas razões, não gosta de ler?
Por isso, defendemos que as bibliotecas escolas sejam também públicas, ou seja, disponíveis às
comunidades nos três turnos. De modo a acolher e formar os cidadãos, sobretudo os jovens
trabalhadores, que não pertencem aos sistemas escolares. Pesquisa do IBGE denominado “Síntese
dos Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira” publicou que
no ano de 2018 14,3% das pessoas de 15 a 17 anos não frequentavam a escola. IBGE (2019).

CONCLUSÃO
A pesquisa nos permitiu identificar nas políticas de incentivo à leitura uma perspectiva
cultural, associando-as ao direito humano básico de acesso ao conhecimento. Por isso, “os serviços
da biblioteca pública devem ser oferecidos com base na igualdade de acesso para todos, sem
distinção de idade, raça, sexo, religião, nacionalidade, língua ou condição social". FERREIRA
(2006, p.117). Ao pensar a comunidade quando do planejamento, o projeto “Bibliotecas Faróis da
Educação” ou “Faróis do Saber” prestaram um relevante serviço à educação pública maranhense.
Obviamente que os resultados foram qualitativos no sentido da impossibilidade de mensurar
quantos jovens, crianças e adolescentes adquiriram o gosto pela leitura.

Vale destacar as ações desenvolvidas no projeto em análise em prol da qualidade dos


mediadores da leitura, capacitando-os mediante cursos de formação. Uma política, sem dúvida,
estratégica para a eficácia do objetivo das “Bibliotecas Faróis do Saber”, que é a formação de
leitores e de neoleitores. O desafio é a continuidade do projeto, avançando no sentido de “elaborar
estratégias de acesso e incentivo à leitura mediante a criação e otimização de redes de bibliotecas”
(MARTINS, 2019, p. 15).
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Outro aspecto a ser considerado na política de revitalização das “Bibliotecas Faróis do


Saber” é a atualização do acervo, de modo que o aluno encontre o que busca na pesquisa. Ainda
mais considerando que a maioria dos estudantes das escolas públicas pertence a classes sociais de
condições socioeconômicas desfavoráveis. Os indicadores sociais do estado do Maranhão são
preocupantes e indicam crescimento da pobreza. É possível que o poder aquisitivo reduzido,
inviabilize ao maranhense o consumo de bens culturais, inclusive a aquisição de livros. Segundo
dados oficiais, a taxa de desocupação no MA registrou no ano de 2014 7,4% e passou para 14.4%
no ano de 2018. E ainda nesse ano, “os rendimentos médios do trabalho principal das pessoas
ocupadas nas Regiões Norte e Nordeste eram equivalentes a, respectivamente, 77,1% e 66,6% da
média nacional. Maranhão foi a Unidade da Federação que apresentou o menor rendimento médio
(R$ 1 249)” (IBGE, 2019, p. 29). E, em se tratando do rendimento domiciliar per capita mensal
do referido ano, o menor deles no Maranhão (R$ 607) IBGE, (2019).

Em conformidade com análises do Sistema Nacional de Avaliação da Educação


Básica – SAEB 2019, os alunos maranhenses apresentaram a menor proficiência média em Língua
Portuguesa no 5º ano (183,3 pontos) e no igualmente no 9º ano (233,1). Comparativamente a
outros estados de federação. Significa que as políticas sociais estão atreladas às educacionais.
Ampliar as ações do Projeto com políticas de inclusão e medidas de proteção social às famílias
envolvidas. Havemos de combater definitivamente essas deficiências na aprendizagem mediante
investimentos na educação infantil, com ênfase em projetos de leitura. Objetivamente, "chegamos
aos dias de hoje ainda com carências educacionais palpáveis apesar dos avanços conseguidos na
escolarização das camadas populares" (MEC/PISA, 2019, p. 50).

Referências

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Roger (Org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação liberdade, 2001.
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FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. ed. 41. São
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ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS E A MOVIMENTAÇÃO INTERNACIONAL DE


PESSOAS: UMA ANÁLISE A PARTIR DA TEORIA DA SOCIEDADE DE RISCO

CLIMATE CHANGE AND THE INTERNATIONAL MOVEMENT OF PEOPLE: AN


ANALYSIS FROM THE THEORY OF RISK SOCIETY

Autor (a): Suellen Souza Pereira


Bacharel em Direito, Membro do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Cultura e Sociedade
da Universidade Federal do Maranhão - PGCult/UFMA, Membro do Núcleo de Estudos em
Direito Internacional e Desenvolvimento - NEDID/UFMA.
suellensouzapereira@gmail.com

Orientador (a): Monica Teresa Costa Sousa


Doutora em Direito (UFSC). Professora Associada no curso de Direito da UFMA. Professora
dos cursos de mestrado em Direito e Instituições do Sistema de Justiça (PPGDir/UFMA) e
Cultura e Sociedade (PGCult/UFMA). Coordenadora do NEDID/UFMA
mtcostasousa@uol.com.br

Eixo Temático III: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: A sociedade ocidental moderna, ao dinamizar suas práticas – política, social e


industrial, imiscuídas no processo de globalização –, produz riscos que colocam em xeque a
sobrevivência planetária, conforme preconizado pela Teoria da Sociedade de Risco As alterações
climáticas, de influência antrópica, consequências de práticas contrárias à sustentabilidade,
incidentes num sistema social, tendem a ter como resultado danos que excedem a capacidade de
convivência dos afetados com os impactos, o que impossibilitaria a permanência nesses locus.
Observa-se neste processo levas de migrantes forçados, que traspassam limites transnacionais, se
tornando outsiders, carentes de uma definição do seu status no arcabouço jurídico internacional,
já que estes sofrem um deslocamento forçado de origem ambiental, não sendo açambarcados pelo
Estatuto dos Refugiados, de 1951, uma vez que o fenômeno do deslocamento ambiental passou a
ser averiguado a posteriori. Na investigação, de proposta interdisciplinar, segue-se o perfil
metodológico bibliográfico e documental que subsidiará o desenvolvimento textual; em relação
às outras classificações metodológicas esta será: básica, qualitativa e exploratória; o método
abordado será o hipotético-dedutivo.
Palavras-chave: Alterações Climáticas; Deslocados Ambientais; Sociedade de Risco; ACNUR.
ABSTRACT: Modern Western society, by boosting its practices – political, social and industrial,
imiscuídas in the process of globalization – produces risks that call into question planetary
survival, as recommended by the Theory of the Risk Society Climate change, of anthropic
influence, consequences of practices contrary to sustainability, incidents in a social system, tend
to result in damages that exceed the capacity of those affected to live with the impacts , which
would make it impossible to stay at these loci. In this process, there are leads of forced migrants,
who pass transnational boundaries, becoming outsiders, lacking a definition of their status in the
international legal framework, since they suffer a forced displacement of environmental origin,
not being hoarded by the Refugee Statute of 1951, since the phenomenon of environmental
displacement began to be investigated a posteriori. In the research, of interdisciplinary proposal,
the bibliographic and documentary methodological profile that will support textual development
is followed; in relation to the other methodological classifications this will be: basic, qualitative
and exploratory; the method addressed will be the hypothetical-deductive.
Keywords: Climate change; Environmental Displaced Persons; Risk Society; Unhcr.
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INTRODUÇÃO
As mutações sociais e físicas são uma constante na dinamização da humanidade. Seu
nascedouro encontra-se nas mais diversas razões o que pode tornar-lhes radicais e fora de qualquer
controle – a tal ponto que mudanças pujantes, oriundas desses processos, desnudem
idiossincraticamente tudo aquilo que é assolado por elas.

Como habitat das mais variadas formas de vida, os ecossistemas terrestres são
assolados por ações antrópicas praticadas de forma insustentável e que acarretam desequilíbrios
nos seus ciclos naturais. Imiscuído nesse processo, o homem, entendido aqui enquanto ser na
natureza, não tem condão para eximir-se das consequências advindas com diversas ordens,
resultados e níveis de intensidade.

Dessa forma, os desastres, como produtos de eventos externos – independentemente


de sua natureza, podem causar danos tão sérios e gravosos aos sistemas sociais onde incidem que,
como consequência, tornam impossível a convivência entre os afetados e o impacto, devido ao
grau de vulnerabilidades contraídas ou potencializadas naquele sistema receptor (UNISDR, 2019).

Diante deste cenário, foi proposta pelo sociólogo alemão Ulrich Beck o surgimento de
uma nova forma de teorização da construção social ocidental, com suas especificidades próprias,
relacionada ao modo como a Modernidade rompe com o que havia proposto em termos de
segurança para humanidade e que dá origem aquilo que ele nomeia como Sociedade de Risco – a
Modernidade acaba com a tradição das sociedades agrárias erguidas em fundamentos feudais e
estamentais, ao ser aprimorada dá origem, então, a sociedade industrial que, a sua vez, teria seus
desdobramentos numa nova composição social que seria uma etapa do seu desenvolvimento
ulterior, para além da previsão vislumbrada pela sociedade industrial. Na propositura desta
investigação, pretende-se identificar pontos interseccionais entre as alterações climáticas, que
culminam em situações catastróficas, nem sempre ocasionadas pelos ciclos naturais, mas
intensificadas pelo modo de ser e estar no mundo do homem moderno, que agravam tais ciclos e
produzem impactos que reverberam em todos os âmbitos da comunidade afetada e que tem como
resultado o deslocamento ambiental em nível internacional já que, devido ao supracitado, torna-
se impossível a permanência no locus de origem. Corolário de tal processo, têm-se hodiernamente
levas migratórias que transpassam limites nacionais, mas não se classificam enquanto refugiados
e não gozam das garantias protetivas previstas pela Convenção de Genebra, de 1951 ou Convenção
da ONU sobre o Estatuto dos Refugiados.

Populações são forçadas a deslocarem-se em busca da preservação de suas vidas. São


indivíduos, famílias, comunidades que saem de seus lugares de inspiração topofílica (TUAN,
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2012) para paisagens desconhecidas, culturas diversas, passando a ocupar a categoria do Outro e
a configurar o estigma do outsider (ELIAS, 2005), tendo que ressignificar seu ethos.

Como consequência deste ciclo, a movimentação internacional de pessoas como


característica, no contexto das alterações do clima, é um fenômeno social que carece de atenção.

Em relação à pesquisa, além do já posto, se percebe que questões que envolvem


alterações climáticas e seu imbricamento com a movimentação internacional de pessoas, são
tratadas de forma abrangente por diversas áreas das ciências, tais como Sociologia, Antropologia,
Direito. Isto é o que se vislumbra como ensejo desta investigação, a partir de uma vertente
interdisciplinar, para a propositura do tema. A interdisciplinaridade por si já é um desafio, haja
vista a pujança da territorialidade de cada disciplina, pois a ciência e a razão, tal qual as
conhecemos, a partir do século XVII, não são resultados de um conhecimento único, disciplinar,
mas transdisciplinar. Todavia, é necessário que se perceba que o saber científico deve passar por
etapas de reflexão e compreensão porque a ciência não se pratica pelo acúmulo de conhecimento,
mas pela transformação daquilo que é postulado como organização do conhecimento. Assim, a
proposta contemporânea acerca da transdisciplinaridade, é que exista uma comunicação entre os
saberes científicos sem que estes sejam reduzido apenas às leis gerais de um enunciado, deve
haver complexidade no pensamento (separação e associação) para que este atenda às urgências da
realidade, além, da percepção de que o conhecimento físico é parte pertencente de uma dada
cultura, de uma dada sociedade, que possui reminiscência antropossocial (MORRIN, 2005).

Frente ao panorama esboçado, faz-se a seguinte problematização: as alterações


climáticas consideradas a partir da Teoria da Sociedade de Risco são um fator de influência à
movimentação internacional de pessoas, mais especificamente, aos deslocados ambientais?

Como resposta, a hipótese correlata à problemática é de que, sim, as alterações


climáticas analisadas à luz da Teoria da Sociedade de Risco, são uma influência à movimentação
internacional de pessoas – ou seja, à caracterização do deslocamento ambiental.

Portanto, o escopo deste trabalho, como já referenciado, é refletir acerca da intersecção


entre as alterações climáticas e a movimentação internacional de pessoas, a partir de uma análise
do que é preceituado pela Teoria da Sociedade de Risco, perpassando por processos diversos como
o industrialismo e a globalização. Além de dar visibilidade à um fenômeno recente – o
deslocamento ambiental provocado pelas alterações climáticas oriundas de causas antrópicas que
tem afetado a ressignificação da vida, em todas as concepções, de tantos, a pesquisa científica
propõe apropriar-se da realidade com o escopo de analisá-la para o fomento de discussões no meio
acadêmico.
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Em relação à classificação metodológica desta investigação científica, esta segue


detalhadamente, levando-se em consideração os seguintes pontos: pela sua natureza, classifica-se
como básica, já que seu objetivo é adensar o conhecimento. Isto é verificável na temática proposta,
que visa analisar à luz da Teoria da Sociedade de Risco se as alterações climáticas são um fator
de influência à movimentação internacional de pessoas. Naquilo que concerne aos objetivos, num
primeiro momento, enquadra-se na categoria de pesquisa exploratória, haja vista que, inicialmente
ela busca traçar uma maior intimidade com o tema em estudado. Assim estão inclusos na pesquisa
exploratória o levantamento da bibliografia que embasará o trabalho, bem como a análise de
exemplos para melhor compreensão, exatamente o que foi feito durante a confecção deste projeto
de pesquisa. (GIL, 2010).

No tocante aos procedimentos, devido ao seu delineamento de mineração de dados,


qualifica-se primariamente como bibliográfica, uma vez que a busca se dará em material já
publicado. Incluem-se, aqui, os livros, teses, dissertações, artigos publicados em revistas
científicas e anais, bem como materiais da internet pesquisados em sítios confiáveis
(PRODANOV; FREITAS, 2013).

Numa segunda etapa relacionada aos procedimentos, caracteriza-se como documental,


já que se recorre à localização de fontes, obtenção de material, análise e interpretação de dados,
como aqueles relacionados à movimentação internacional de pessoal, deslocadas por razões de
alterações climáticas (GIL, 2010).

O método que norteará a pesquisa será o método hipotético-dedutivo que, nos tem
como ponto em comum com o método dedutivo, o procedimento de racionar a partir de preceitos
gerais para preceitos particulares. Optou-se, conforme exposto acima, por ter como ponto de
partida a constituição de uma hipótese viável de trabalho que será verificada no transcurso da
investigação. São as abordagens hipotéticas que servirão de aproximação com o objeto e de
resposta à problemática formulada (MEZZAROBA, 2009).

2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA SOCIEDADE DE RISCO


As sociedades, ao longo de suas transformações, criam hábitos e modos de vivências
que dependem do meio ambiente que por sua vez o afetam, direta ou indiretamente. Tais
dinamizações não são privativas de determinadas regiões do globo, elas ocorrem
independentemente dos limites fronteiriços e suas consequências perpassam por quaisquer tipos
de limites geográficos ou políticos sendo sentidos e vividos mais ou menos intensamente a partir
do contexto social de cada comunidade, povo ou nação.
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A estrutura social dos séculos que se seguiram ao período que foi convencionado a ser
chamado de Modernidade, pautou-se no impacto do surgimento da ciência e no estabelecimento
da racionalidade conforme disseminado, durantes os séculos XVII e XVIII, na Europa pelos
filósofos iluministas que queriam romper as amarras do pensamento religioso que vigorava até
então, desta feita, tudo o que é conhecido como cultura industrial alicerçou-se no Iluminismo, que
por sua vez, visava o desenvolvimento das formas de pensar e produzir com vistas ao controle do
futuro. Todavia, o mundo tal qual previsto e esboçado por eles não atingiu as expectativas. O
cotidiano tem revelado um total descontrole do homem, nem mesmo os aclamados: progresso,
racionalidade científica e tecnologia puderam garantir que a vida seja mais previsível ou segura.
As questões globais relacionadas às mudanças do clima bem como os riscos trazidos a reboque
exemplificam como as ações humanas influenciam diretamente o meio, seja através de
modificações radicais ou de agravamentos daquilo que é considerado natural como terremotos
incidentes em áreas habitadas, fortes chuvas que causam enchentes e deslizamentos, etc. Estes
riscos associados à falta de certeza quanto às dimensões de seus impactos acabam por acarretar
um certo alinhamento ou nivelamento nos afetados – não importa o privilégio e muito menos o
nível de carência, os riscos estão imbricados à globalização e seus efeitos, em menor ou maior
intensidade, são inerentes a todos (GIDDENS, 2007).

A força propulsora dessa transformação foi o capitalismo, com sua lógica de mercados
que abrangeria consumidores nos planos nacional e internacional, onde o que se mercantilizaria
não seriam apenas produtos, mas também a força humana do trabalho. Na ordem social capitalista
há como que uma inquietude, uma mobilidade baseada na tríade investimento, que tem por
resultado o lucro, que por sua vez, será convertido novamente em investimento. Pautado num
sistema de produção para mercados competitivos e que possui como cerne um sistema de classes,
o capitalismo baseia-se no vínculo estabelecido entre a propriedade privada e a mão de obra
assalariada (GIDDENS, 1991).

A ruptura entre os sistemas de produção havidos no período feudal e aquele trazido e


instaurado pelo capitalismo, deu-se a partir da diferenciação entre os modos de exploração da
propriedade e da forma como a servidão foi substituída pela mão de obra assalariada. Isto porque
no sistema feudal, o trabalho que se torna excedente na produção não pode ser mercantilizado, ele
passa a ser objeto de apropriação do senhor feudal através de uma relação não-econômica. (DOBB,
M.; SWEEZY, P. et. al, 1977).

Um outro aspecto, em relação ao uso da força de trabalho, pautada nas relações sociais
de classe vigentes nos sistemas estatais do período pré-moderno, reside no fato de que esta nunca
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era inteiramente econômica, uma vez que, o uso coercitivo e violento da força ou sua ameaça, pela
classe dominante composta ou com disponibilidade de guerreiros, imperava (GIDDENS, 1991).

Ainda nesse período de transição, as transformações ocorridas na sociedade de então


foram determinantes para que se deixasse a velha ordem feudal para trás, uma vez que, a visão
que se passa a ter do futuro está revestida do ideal de progresso que rompe totalmente com os
conceitos e temerosidades de ordem sobrenatural que assolavam o imaginário pré-moderno
passando a calcar homem e natureza em si mesmos. A secularização que consagra o Estado e faz
recuar o caráter eclesiástico, traz consigo a ampliação e consagração de teorias não só científicas
como também filosóficas pautadas na razão e no humanismo. Desta feita, a ideologia medieval
passa a dar espaço aos ideais da Modernidade carregados de individualismo e racionalismo à
revelia daquela, teológica e transcendente. En passant, as navegações ultramarinas impulsionadas
pelo colonialismo pioneiro ibérico fazem com que haja um acúmulo de riquezas na Europa,
ensejado pelos materiais preciosos explorados no Novo Mundo e nas colônias europeias situadas
na África e na Ásia, o que torna possível novas formas de desenvolvimento do comércio que tem
como parcela do mercado consumidor, cidadãos assalariados dentro de um contexto mercantil
pautado por taxas de juros e de ofertas antes não praticadas frutos também de um industrialismo
incipiente (FALCON,1994).

A emergência do capitalismo muda radicalmente as relações de classes naquilo que


pertine ao trabalho. A servidão feudal, de corpo inteiro, dá lugar à uma parcela semanal do trabalho
ou da produção, através de taxações. O contrato de trabalho abstrato, instrumentalizado pela
ordem capitalista, deixa de dispor do uso ao bel prazer da violência, já que esta prerrogativa de
monopolização dos meios violentos passa a ser das autoridades outorgadas pelo ordenamento
estatal (GIDDENS, 1991).

A revolução científica iniciada por Copérnico e Galileu ao destituírem a ideia clássica


de que o sol girava em torno da Terra inaugura um período em que a ciência imperaria como a
bússola que nortearia o caminhar da humanidade de forma racional e, acima de tudo, precisa,
através de leis e fórmulas imutáveis que delineariam os contornos, inclusive, das relações sociais.
Desta feita, o controle da natureza pelo homem tornou-se a prática vigente, justificada pelo
discurso da libertação do modo de vida teocêntrico – que havia exercido todo o seu domínio por
um vasto período. A título de exemplificação, pode-se mencionar o posicionamento de autores
como Francis Bacon que defendia a instituição de uma forma de governo, tal qual uma república,
porém, científica cuja gestão deveria ser feita com vistas à total dominação da natureza pelo
homem para o bem deste (BAHIA, 2012).
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O período renascentista, ao destituir a vigência da ordem teológica que regia a vida


nas sociedades pré-modernas, rompe com os paradigmas que definiam o sujeito em relação ao
mundo passando a centralizá-lo criando a subjetividade que viria a ser uma característica do
período moderno. Criam-se então dicotomias que irão regular a ordem social e política na
Modernidade, como aquela referente à subjetividade individual/coletiva. É o individualismo que
irá se projetar a partir da formação dos novos mercados e pela consolidação da propriedade privada
regulamentados pelo que virá a ser o Estado – essa super entidade centralizadora e detentora do
poder de império (SANTOS, 1993).

Foi Hegel quem primeiro dividiu de forma terminológica a sociedade Moderna de


modo a apartar o viés político do Estado da sociedade civil – que concebe o indivíduo como um
fim em si mesmo que, todavia, sem se relacionar socialmente com outros o seu fim ou o seu
objetivo não será atingido, até Hegel imperava o conceito kantiano de que a modernidade estava
indubitavelmente atrelada apenas à razão. A relação mercadológica moderna esboçada por Hegel
está subsidiada num sistema de interdependência universal onde se situam as necessidades, o
trabalho e a acumulação norteados pela propriedade e pelo direito, haja vista que, a subjetividade,
enquanto perspectiva da modernidade, dá ao sujeito cognoscente a liberdade de explorar sua
criatividade fazendo com que seja desenvolvida a economia e o mercado de forma diversa àquilo
que se praticava (HABERMAS,1990).

Assim, a Modernidade é uma organização social, um modo de vida, que nasce num
dado contexto histórico – conforme supracitado, geograficamente na Europa e que a posteriori
consagra-se mundialmente através de suas características e consequências universais que passam
a produzir diversos modos de vida que rompem com as ordens sociais tradicionais em diversos
níveis e se transformam continuamente na multidimensionalidade de suas instituições. Ainda
naquilo que pertine às sociedades cujos meios de produção é o capitalismo, pode-se destacar: a
essência de extrema competição e expansão que alavancam consigo a necessidade de inovação
tecnológica constante; o viés econômico, apesar de forte influência sobre as instituições é distinto
de outro viés social tal como o político; o isolamento entre Estado e Economia, uma vez que, a
propriedade privada dos meios de produção, ou seja, os investimentos são privados e pautados na
mutação do trabalho assalariado em mercadoria e na divisão de classes.

Corolário da sociedade capitalista, o industrialismo tem como característica o uso de


energia material como meio de produção de seus bens aliado ao uso de máquinas, entendidas como
artefatos que reproduzem tarefas através do uso de matrizes energéticas num contexto que envolve
coordenação dos processos de demandas, humana, técnica e de produção, o que por sua vez,
acarreta impactos de diversas ordens que vão desde a locação das atividades de produção à vida
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doméstica. Mesmo nas culturas mais desenvolvidas do período pré-moderno, as vidas eram
regidas de acordo com as manifestações da natureza, o homem e o meio ambiente estavam
imbricados de tal modo que o sustento das populações estava atado à prosperidade das colheitas,
da criação dos pequenos rebanhos destinados à subsistência e do acontecimento os não dos
desastres naturais.

Na modernidade, regida pela ciência atrelada ao uso de tecnologias, os ambientes são


criados e transforma-se a natureza de formas inimagináveis às gerações predecessoras, tendo o
homem como controlador não só de ambientes criados como do próprio meio físico natural. Os
processos de produção típicos do industrialismo estão associados às revoluções tecnológicas que
aceleram o modo de produção para que este contemple processos mais rápido e eficientes aos
interesses capitalistas que, por conseguinte geram riquezas e ganhos. A industrialização por conta
da interdependência econômica global e da distribuição mundial de produção, também se dá a
partir de fatores de influência regional, tais como: oferta de mão de obra especializada, acesso à
matérias-primas, nível de industrialização ou desindustrialização (GIDDENS, 1991).

3. A TEORIA DA SOCIEDADE DE RISCO, POR ULRICH BECK

O título original da sua principal obra, Risikogesellschaft (em alemão, 1986) Risk
Society (em inglês,1992), alçou Beck à categoria de um dos principais teóricos da atualidade.

Um dos motivos pelos quais houve tanta repercussão em torno da publicação vincula-
se à quase premonição da obra ao tratar de questões nucleares no ano do acidente ocorrido em
Chernobyl, o que impulsionou a análise sociológica da realidade “[...] baseada em fatores de
mudança estrutural assente no próprio conceito de sociedade e na força e na imanência dos
fenómenos sociais” (MENDES, 2015, p. 23).

Para Beck, o contexto da Sociedade de Risco é a Modernidade tardia ou reflexiva. No


entanto, para aclarar os conceitos que nortearão o presente tópico, vale citar o que nesta
perspectiva teórica, (2010, p.23):

Modernização significa o salto tecnológico de racionalização e a transformação do


trabalho e da organização, englobando para além disto muito mais: a mudança dos
caracteres sociais e das biografias padrão, dos estilos e formas de vida, das estruturas de
poder e controle, das formas políticas de opressão e participação, das concepções de
realidade e das normas cognitivas. (grifo do autor).

Partindo desse conceito inicial, a Teoria da Sociedade de Risco, passa a


desenvolver os seus pressupostos daquilo que é denominado de “vulcão civilizatório”, o que dá
um tom quase que lúgubre à obra.
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Isto porque as consequências do progresso expressas como desenvolvimento


industrial e científico, compõem todo um complexo de riscos, em todas as suas dimensões e sem
possibilidade de contenção. Isto porque existe quase que uma impossibilidade em se calcular as
formas de compensação de algo que reverbera temporal e espacialmente e com diversos impactos,
uma vez, que os danos não são estritamente ambientais, existem efeitos sociais como a
impossibilidade de existência ou permanência em determinados loci o aumento das desigualdades
sociais, dentre outros riscos (MENDES, 2015).

As contribuições dessa perspectiva assentam-se na teorização de que os riscos na


contemporaneidade, são organizadores. As transformações pelas quais a sociedade passa são o
resultado do período da modernidade em que estamos vivendo. Conforme supracitado neste
trabalho, a primeira fase da modernidade desenvolve-se a partir de uma expectativa otimista do
progresso que construiria um futuro a partir de decisões cientificamente abalizadas que norteariam
as decisões da humanidade com riscos legitimados, controlados pelo Estado e juridicamente
seguros apesar das incertezas dos riscos industrialmente produzidos; a segunda fase desse
processo da Modernidade traria um futuro assentado nos resultados negativos das decisões
tomadas no presente que tem por característica o industrialismo selvagem e incontrolável, sem a
linearidade de que o progresso pautado na técnica traria conforme proposto pela primeira fase da
modernidade (MOTTA, 2014).

Assim, caracteriza a modernidade tardia como o período onde: “[...] a produção social
da riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos”. Continua aduzindo
que esses riscos, “[...] São riscos da modernização. São um produto de série do maquinário
industrial do progresso, sendo sistematicamente agravados com seu desenvolvimento ulterior”
(grifo do autor) (BECK, 2010, p.23-26).

O excerto acima cita o processo de modernização reflexiva, termo muito utilizado


nesta teoria para referenciar contextualmente a Sociedade de Risco: “[...] Modernização reflexiva”
significa a possibilidade de uma (auto) destruição criativa de toda uma época: a da sociedade
industrial”. Isto implica que o sujeito desta dita destruição é a forma como a modernização havida
no ocidente expressa a sua vitória. Assim, a modernização reflexiva seria a radicalização da
Modernidade, o que romperia os contornos da modernidade industrial abrido uma senda à uma
outra modernidade (BECK, 2000, p.02-03).

A Sociedade de Risco propoe que existe um predomínio de ameaças advindas da


modernização industrial que leva ao questionamento do modelo vivido, além de determinar formas
de autolimitação em relação às estruturas de responsabilidade, delimitação, distribuição de
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consequências, etc. Todos esses fatores podem ser potencializados por fatores tais como a
globalização.

Esta pesquisa, propõe uma reflexão acerca das alterações climáticas e da


movimentação internacional de pessoas enquanto produto daquelas a partir dos preceitos da
Sociedade de Risco propostos por Ulrich Beck.

Neste diapasão, o próximo tópico apresentara o processo de globalização e como este


é tratado enquanto vetor de potencialização de fatores produzidos pela Sociedade de Risco.

4. SOCIEDADE DE RISCO E GLOBALIZAÇÃO: Intersecções


Essa desordem socioambiental causada por uma irresponsabilidade organizada teoriza
que o risco relativiza as fronteiras sociais e vincula-se à modernização como consequência da
globalização, ou seja, os riscos: “[..] possuem uma tendência imanente à globalização. A produção
industrial é acompanhada por um universalismo das ameaças independente dos lugares onde são
produzidas; [...] Essa tendência à globalização faz surgir suscetibilidades, que são por sua vez
inespecíficas em sua universalidade” (BECK, 2010, p.43).

Em relação à forma como a globalização é interpretada e sentida socialmente na


contemporaneidade, Zygmunt Bauman (1999, p.07), preconiza:

A “globalização” está na ordem do dia; uma palavra da moda que se transforma


rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma senha capaz de abrir as portas
de todos os mistérios presentes e futuros. Para alguns, “globalização” é o que devemos
fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos,
porém, “globalização” é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é
também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira.
Estamos todos sendo “globalizados” — e isso significa basicamente o mesmo para todos.

O excerto acima é muito elucidativo ao pontuar que o processo de globalização


poderia ser dicotômico a partir da experiência do indivíduo, no sentido de que este poderia ser
vivenciado através de aspectos positivos de acesso ou, por exemplo, de inserção no contexto
global e de aspectos negativos como a degradação ambiental oriunda da implantação e
implementação desse processo, todavia, h todos estão inseridos no mesmo contexto de
irreversibilidade.

Beck (1999, p. 46-47), ao tratar a respeito da globalização, conceitua o fenômeno


como:

Globalização significa a experiência cotidiana de ação sem fronteiras nas dimensões da


economia, da informação, da ecologia, da ciência, da técnica dos conflitos transculturais
e da sociedade civil, e também o acolhimento de algo a um só tempo familiar mas que
não se traduz em um conceito, que é de difícil compreensão mas que transforma o
cotidiano com uma violência inegável e obriga todos a se acomodarem à sua presença e
a fornecer respostas. Dinheiro, tecnologias, mercadorias, informações e venenos
“ultrapassam” as fronteiras como se elas não existissem. Até mesmo objetos, pessoas e
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ideias que o governo gostaria de manter no exterior (drogas, imigrantes ilegais, críticas à
violação de direitos humanos) acabam por encontrar seu caminho. Entendida desta
forma, a globalização significa o assassinato da distância, o estar lançado a formas de
vida transnacionais, muitas vezes indesejadas e incompreensíveis [...] (grifo do autor).

Faz-se necessária a menção de que, no que pertine às percepções acerca do processo


globalizado e globalizante que envolve a atualidade, pode-se destacar duas categorias de
posicionamento. A primeira, é composta por aqueles – céticos, que negam que a humanidade
esteja passando por um processo de mudança econômica global e que tudo segue como o de
costume, nada é diferente aquilo que já tenha ocorrido em épocas anteriores, aqui a globalização
não passa de ideologia para aqueles que buscam o livre mercado e almejam a diminuição do
Estado, por exemplo, nos sistemas previdenciários.

A segunda, tem como adeptos aqueles – radicais, que acreditam que, além de estar em
pleno desenvolvimento os efeitos da globalização podem ser sentidos em toda parte, haja vista, o
mercado global que além de indiferente às fronteiras físicas a cada dia que passa se torna mais
onipresente e desenvolvido. Para Giddens (2010), nenhum dos 2 posicionamentos sustentam-se,
uma vez que, a globalização não pode ser vista apenas sob os aspectos econômicos. Por ter sido
propulsada, a partir da influência dos sistemas de comunicação preocupados em disseminar
informações, o processo globalizatório é antes, cultural, político, tecnológico e, em igual peso,
econômico.

A comunicação em tempo real, alterou a forma com que a vida dá-se nos mais
diversos locais do globo, não importa a classe econômica, ou seja, a globalização não está do lado
de fora, nos grandes centros, ela está do lado de dentro, no dia-a-dia, influenciando a ordem, social,
familiar, íntima, causando transformações em todas as facetas da vida, não importa se urbana ou
campesina, se tradicional ou cosmopolita, numa complexa teia de processos que também se
tornam responsáveis pelo ressurgimento de várias identidades culturais, há muito perdidas.

Conforme o exposto acima se infere que globalização e risco são interseccionais


naquilo que abrange a disseminação dos riscos, seu alcance e sua potencialidade. Uma vez que
estes, ampliados por questões ligadas à modernização acabam por relativizar diferenças e
fronteiras sociais funcionando de forma equalizante em seu alcance.

Complementa-se o entendimento a respeito das implicações da globalização ao


demonstrar que (BECK, 1999, p.49):

Não é somente uma nova variedade de conexões e de relações entre Estados e sociedades,
que surge com a globalização em todas as suas dimensões; é o conjunto das suposições
fundamentais sob o qual todas as sociedades até hoje organizaram, viveram e apoiaram
a sua condição de unidades territoriais mutuamente separadas (grifo do autor).
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Pode-se exemplificar a questão da imanência dos riscos à globalização com as cadeias


alimentares que existem num sistema interligado que envolve a cada um a praticamente todos os
residentes do planeta. Assim como a acidez do ar que não coloca em risco apenas aqueles que são
perpassados por ele, são atingidos os patrimônios artísticos e históricos até limites além-fronteiras.
Mesmo em países e regiões setentrionais como Canadá e Escandinávia, é possível – segundo o
autor, que sejam averiguados a acidificação dos mares e a morte de florestas, é a chamada
universalidade de ameaças, que fazem com que existam suscetibilidades sem especificações que
estão linkadas à globalização, é como o pêndulo de um relógio que oscila em várias direções.

Riscos disseminados por questões ambientais têm diversas formas de incidência assim
como muito são suas formas de transmutação, a crise ecológica tem diversos desdobramentos e
um desses são as mudanças ou alterações climáticas causadas pelos processos de industrialização,
queima de hidrocarbonetos dentre outros.

.4. APONTAMENTOS ACERCA DAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS E DA MOVIMENTAÇÃO


INTERNACIONAL DE PESSOAS NO CONTEXTO DA SOCIEDADE DE RISCO
As climáticas, muitas vezes são o corolário da sociedade de risco, agravadas pela pelo
processo de globalização através de ações perpetradas contra o meio ambiente – conforme os
argumentos que supracitados que pautam a presente pesquisa.

Diante deste cenário de futuro incerto e ameaça civilizacional, visando a contenção e


a mitigação, organismos internacionais e Estados passaram a reunirem-se para discutirem questões
inerentes aos câmbios climáticos, inclusa nas pautas – de forma geral – a necessidade de uma
mudança na matriz energéticas dos combustíveis fósseis, que contribuem com os efeitos da
produção do aquecimento global, para matrizes energéticas limpas e renováveis, tais como a eólica
e a solar.

A base fundante dos marcos legais internacionais que passaram de fato a proteger e
tentar preservar o meio ambiente foi Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
Humano, em Estocolmo, no ano de 1972 porque foi ali que se estabeleceu uma agenda global de
ações voltadas para o uso dos recursos ambientais já que estes passaram a ser vistos como
esgotáveis, o que permitiu que viesse a lúmen novas percepções de crescimento econômico, além
de ter incluso a biosfera como algo que deveria ser cuidado.

Após isso, Tratados Internacionais foram firmados relacionados ao Clima ou à


atmosfera, entre estes, destacam-se: Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio,
1985; Protocolo de Montreal sobre substâncias que destroem a camada de ozônio, 1987;
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, 1992. Em relação à poluição
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atmosférica, foi Conferência realizada no Rio de Janeiro, em 1992, Rio-92 ou Eco-92, que
inaugurou esse capítulo com a noção de desenvolvimento sustentável, com seu tripé conceitual
que abrangia: meio ambiente, sociedade e economia. Após isso, vieram as Conferência das Partes
– COP´s e suas principais decisões, com destaque à COP III, que originou o Protocolo de Kyoto
– que inova ao preconizar o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL, que é um dos
principais meios utilizados para coibir a emissão de gazes do efeito estufa.

As consequências das alterações climáticas são de diversas ordens, o que contribui


diretamente com a permanência humana em determinadas áreas já que dentre as possibilidades
podem ser pontuadas a desertificação de áreas, o aumento do nível dos mares e oceanos o que por
sua vez podem acarretar o desaparecimento de ilhas e cidades costeiras, a salinização de áreas
aráveis e comprometimento dos serviços ecossistêmicos, impactando áreas já acometidas por
vulnerabilidades e riscos sociais, uma vez que, as desigualdades geradas pelos impactos
ambientais tem proporções diferentes que dependem de fatores pré-existentes em cada sociedade
afetada que estão atrelados a aspectos, sociais, geográficos, econômicos, políticos e humanos
(MILHOMEM DE SOUSA, 2011).

A movimentação internacional de pessoas caminha junto à história da humanidade.


Correntes migratórias, com caráter perene ou temporário, também são observadas hodiernamente,
todavia, os fatores que acarretam ou que influenciam essa situação mudaram com o passar do
tempo e com o evoluir da sociedade humana e das culturas.

A Organização Internacional das Migrações – OIM (2018), em linhas gerais, define


as migrações como um movimento de pessoas que independe de causas, tamanho ou motivações.
Compõe este grupo, os deslocados, refugiados, refugiados econômicos.

Dentre as consequências humanas das alterações climáticas, pode ser trazida à baila a
questão dos fluxos migratórios que reforçarão a movimentação internacional de pessoas oriundas
dos locais que deixaram de existir ou que se tornaram inóspitos à vida devido aos impactos
ambientais sofridos pelas alterações climáticas desencadeadas pela sociedade de risco e reforçada
pelos processos de globalização.

Um exemplo desses grupos migrantes, produto da sociedade hodierna, são os


denominados deslocados ambientais, que sofrem deslocamentos forçados, todavia não são
categorizados como refugiados ambientais, uma vez que não encontram-se no rol da Convenção
da ONU sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, são pessoas que possuem temor fundado por
motivos que vão da raça e religião à nacionalidade, que pertençam a grupos sociais e opiniões
políticas que não podem voltar a seus países devido a esse temor, sendo assim, são forçados porque
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essa distância não é fruto de uma escolha, “[...] e migrantes internacionais que cruzam fronteiras
políticas entre Estados para poderem ser elegíveis à proteção conferida pelo direito dos refugiados
e para serem protegidos pelo ACNUR (CLARO, 2016).

Ao migrarem, as vítimas sofrem com a chegada em comunidades diversas das suas e


com a resistência que essas comunidades oferecem ao recebê-los já que, em sua maioria, as
mesmas não estão preparadas para os impactos socioeconômicos que a chegada das levas
migratórias causam por conta de terem em seus territórios populações já inseridas em situações
de vulnerabilidade e risco social assim, muitas vezes é gerada uma certa resistência por parte da
população receptora.

Essa resistência é descrita como um estigma, carregado por aqueles que migram e que
ao chegarem às cidades acolhedoras deixam de ser vistos ou considerados em sua totalidade e
passam a ser diminuídos ou reduzidos a como que estragados, por não serem desejados ali,
conforme Goffman (2008 p.12): “Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu
efeito de descrédito é muito grande [...] e constitui uma discrepância entre a identidade social
virtual e a identidade social real”.

Ainda em relação àqueles que se movimentam forçadamente em razão das alterações


climáticas e que por conta do nível dos impactos não conseguem se manter em seus locais de
origem, Claro, (2016) conceitua e pontua:

Mas não é apenas o avanço dos mares e oceanos que pode causar a migração forçada por
motivos ambientais: refugiado do clima é toda e qualquer pessoa que se vê obrigada a
migrar do seu local de origem por quaisquer motivos relacionados à mudança e
variabilidade climáticas, sejam esses de início rápido (como ciclones, tornados, chuvas
intensas que causam enchentes, tsunamis, entre outros) ou de início lento (aumento
gradativo da temperatura do planeta, desertificação, degelo de calotas polares, etc.).
Somam-se aos efeitos climáticos também a interferência do homem no meio ambiente,
que tende a aumentar o risco de que populações inteiras tenham que migrar para
sobreviver, como nos casos de erosão do solo, derrubada de vegetação nativa, poluição e
qualquer outra situação que cause desequilíbrio ecológico temporário ou permanente.
Estimativas apontam que até 2050 o mundo terá entre 250 milhões e 1 bilhão de
refugiados do clima, mas já há quem afirme que na primeira década do século XXI esse
número mínimo já tinha sido ultrapassado em razão do aumento exponencial de desastres
ambientais no mundo todo. Nesse cenário, Bangladesh, país localizado no Oceano
Índico, com baixa altitude e que possui o maior delta do mundo em termos de vazão de
água, pode, sozinho, produzir um número de refugiados do clima maior do que o mundo
todo somado. Isso se deve principalmente ao fato de Bangladesh possuir alta densidade
demográfica e alta taxa de natalidade num território que recebe água do oceano, dos rios
que desembocam no seu delta (formado pela confluência de três grandes bacias
hidrográficas) e do degelo dos Himalaia.

Outra característica que marca esses que se movimentam internacionalmente por conta
dos deslocamentos forçados, é a transformação de características identitárias que carregam traços
culturais muitas vezes ligados ao local de ancestralidade, como por exemplo no que diz respeito a
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dialetos e costumes herdados por pertencerem ao locus e que se transformam devido à


especificidade do lugar ou devido à necessidade de integração nas sociedades de destino.

CONCLUSÃO
Entendeu-se que a partir da Revolução Industrial, os moldes de desenvolvimentos
da sociedade foram sempre pautados na exploração do meio ambiente como se este não estivesse
imbricado à sociedade e fosse inesgotável.

Esse tipo de desenvolvimento econômico, social e político passa a produzir riscos


para a existência civilizacional da humanidade, uma vez que, não existe diferenciação de seus
efeitos entre causador e vítima esses riscos nivelaram a sociedade no sentido desta não conseguir
fazer uma separação como na sociedade de classes, apesar de que os efeitos da sociedade de risco,
dependendo do nível de vulnerabilidade pode ser mais danoso para determinado povo ou
comunidade, agravadas pelo processo de globalização.

Exemplo disso são as situações causadas pelas alterações climáticas em suas mais
variadas formas. O meio ambiente só teve proteção internacional com relevo a partir da década de
70, com a Convenção de Estocolmo, que já tratava de questões ligadas à proteção da biosfera,
durante o decorrer do tempo outros normativos foram criados com vistas a envolver indivíduos,
Estados e Organismos Internacionais a promoverem o desenvolvimento sustentável em
consonância às transformações sociais.

Todavia, assim como os riscos se dissipam e se agravam, vão surgindo novos atores
nessas relações como é o caso daqueles que se movimentam internacionalmente por serem vítimas
das alterações do clima, os deslocados ambientais, estigmatizados como estrangeiros e sem
proteção jurídica no plano internacional

Desta feita entende-se, que as alterações climáticas vistas à luz da Teoria da


Sociedade de Risco, são uma influência à movimentação internacional de pessoas.

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AMIZADE, ESPAÇO PÚBLICO E A FORMAÇÃO DE SUBJETIVIDADES:


PENSANDO A INTERSUBJETIVIDADE NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

FRIENDSHIP, PUBLIC SPACE AND FORMATION OF SUBJECTIVES: THINKING


OF AN INTERSUBJECTIVITY IN THE CONTEMPORARY WORLD

Lucidalva Pereira Gonçalves


(Graduada em Ciências Humanas-Filosofia e mestranda em psicologia)
(Universidade Federal do Maranhão)

Prof. Drº. Almir Ferreira da Silva Júnior


(Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo)
(Universidade Federal do Maranhão)

Eixo temático 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: Este trabalho apresenta a discussão de uma pesquisa em andamento (projeto de


dissertação do mestrado acadêmico em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão) e seu
objetivo é refletir sobre o fenômeno da amizade em sua relação com a formação de subjetividades,
adotando como base epistemológica a teoria fenomenológica e existencial de Hannah Arendt.
Perpassa, primeiramente, pelo modo como a amizade se constituía enquanto Philía, nos
relacionando com a alteridade ao mesmo tempo em que baseava essa relação a partir da
familiaridade. Em seguida, evidencia de que modo a amizade fora cedendo espaço para a
fraternidade na Idade Moderna, período da história marcado pelas sociedades de massa e pela
supervalorização da esfera privada. Por fim, ressalta de que modo a amizade enquanto processo
de formação de subjetividades e de prática política pode ser entendida como uma proposta de
superação do esvaziamento da esfera pública, unindo as diferenças sociais e possibilitando que o
encontro com o diferente seja marcado pela produção de pensamentos e do “si mesmo”. Na
concepção arendthiana, “na esfera público-política floresce [...] uma ‘espécie de ‘amizade’’ do
tipo da philia politique aristotélica que considera ao mesmo tempo aqueles que estão próximos e
o mundo que se interpõe entre cada um e entre todos” (WAGNER, 2006, p. 100).

Palavras-chave: Amizade. subjetividades. Espaço público. Hannah Arendt.

ABSTRACT :This paper presents the discussion of an ongoing research (dissertation project of
the academic master's degree in Psychology by the Federal University of Maranhão) and its
objective is to reflect on the phenomenon of friendship in its relationship with the formation of
subjectivities, adopting the theory as an epistemological basis. phenomenological and existential
of Hannah Arendt. It goes through, first, the way in which friendship was constituted as Philía,
relating us to otherness at the same time that it based this relationship based on familiarity. Then,
it shows how friendship was giving way to fraternity in the Modern Age, a period of history
marked by mass societies and the overvaluation of the private sphere. Finally, it emphasizes how
friendship as a process of formation of subjectivities and political practice can be understood as a
proposal to overcome the emptying of the public sphere, uniting social differences and allowing
the encounter with the different to be marked by the production of thoughts and "yourself". In the
Arendthian conception, “in the public-political sphere [...] a 'kind of' friendship 'flourishes, like
the Aristotelian philia politique, which considers at the same time those who are close and the
world that stands between each and between all" (WAGNER, 2006, p. 100).
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Keywords: Friendship. subjectivities. Public place. Hannah Arendt.

INTRODUÇÃO

O trabalho a se desenrolar nestas linhas trata de uma discussão levantada e melhor


desenvolvida em trabalho de dissertação de mestrado ainda em andamento, que apresenta a relação
existente entre a amizade (pensada enquanto fenômeno do espaço público) e a produção de
subjetividades a partir da teoria política de Hannah Arendt. Sabemos que a sociedade se faz
estruturada pelo conjunto de pessoas que habitam o “mundo” comum ao qual pertencemos, sendo
este definido pela filósofa como sendo o espaço existente antes que os homens venham a habitá-
lo, espaço do artifício humano e, por isso, seu habitat artificial. Entretanto, com a modernidade a
dimensão política da ação humana perdeu a consideração por esse mundo, sendo a atividade do
agir humano reduzida à gestão pública dos assuntos humanos, a qual se limitou em elaborar e
administrar estratégias em função do progresso. A sociedade se vira, portanto, reduzida a formas
mecanizadas de se viver, pelas quais o trabalho (o labor) passou a ministrar todas as atividades
humanas (o estilo de vida dos indivíduos e o esvaziamento das relações interpessoais).

Com a Idade Moderna as esferas pública e privada passaram a sofrer um certo


“hibridismo”, pelo qual “[...] as atividades executadas privadamente passaram a ter importância
pública e o que era típico do público passou a ser um luxo. [...]” (AGUIAR, 2004, p. 10). O meio
social deixou, portanto, de se relacionar com a cultura e artifício humanos, passando a se preocupar
com a atividade da esfera privada e com a atividade que melhor aproxima o homem de sua
dimensão natural (ou animal). Pretendo neste momento evidenciar de que modo as relações
interpessoais se constituíram enquanto Philía nos primórdios da nossa civilização ocidental (sec.
VIII a. C.), ligando as diferenças sociais, o tratamento com o estrangeiro e de que modo a mesma
fora cedendo espaço na modernidade para a fraternidade (um modo de relação intersubjetiva
caracterizado pela decomposição da esfera pública), para o surgimento das sociedades de massa e
à repressão das diferenças sociais.
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A AMIZADE NA CONFIGURAÇÃO EMBRIONÁRIA DA PHILÍA


A amizade representa uma preocupação inerente à filosofia desde os tempos mais
remotos, uma vez que a própria prática filosófica por vezes é retratada em uma relação dialógica
com o outro. Segundo Joana Sampaio Primo (2015), a amizade apresenta um duplo movimento,
sendo considerada a manifestação particular de um discurso hegemônico, assim como a criação
de outros modos de experimentação e formas de relacionamento. Trata-se de uma prática
intersubjetiva, cujo desdobramento na história representa uma

[...] manifestação que não se comporta uniformemente no tempo e no espaço [...]. Assim,
assinala-se que, mesmo existindo uma tradição mais ou menos constante (e que pode ser
denominada de aristotélica-ciceroniana) de reflexão teórico-filosófica sobre a amizade
perfeita (teleia philía/amicitia vera), as práticas e o significado social da amizade mudam
constantemente (ORTEGA, 2002, p. 11-12).

Nesse contexto, acompanhar os desdobramentos das relações de amizade nos conduz


à semântica do conceito Philía que desde a Grécia Antiga apresentava uma pluralidade em seu
significado. “Não havia um único significado para a palavra Philía, mais do que isso, ela tinha
significados bem distintos: desde uma forma de amor, até um modo de relacionamento com o
estrangeiro” (PRIMO, 2015, p. 70). Para Ortega (2002), as várias formas de determinar as relações
com o estrangeiro nesse período nos remetem a um tratamento subordinado a leis de hospitalidade.
“Trata-se de um modelo conjugal, paternal e falogocêntrico. É o déspota familiar, o pai, o esposo,
o patrão, o dono da casa, que faz as leis da hospitalidade. Ele as representa e se subordina para
subordinar os outros [...]” (ORTEGA, 2002, p. 18).

Com o passar dos séculos surgiram os tratados filosóficos sobre a amizade, dos quais
se mantém na história do pensamento ocidental enquanto tradição o tratado aristotélico. Para
Arendt (2008), Aristóteles fora quem primeiro politizou a amizade, interpretando-a como aquilo
que torna as cidades e os cidadãos unidos entre si. Para o filósofo, a Philía “[...] parece também
manter as cidades unidas, e parece que os legisladores se preocupam mais com ela do que com a
justiça” (ARISTÓTELES, 1999, p. 153). De acordo com Arendt (2005) a vida na pólis enquanto
vida em comunidade era distinta da cidade-estado enquanto localização física. Tratava-se de uma
organização comunitária cuja característica a lhe conceder singularidade era o agir e o discurso,
e o verdadeiro espaço público situava-se entre as pessoas a viverem em conjunto. Nesse sentido a
pólis era entendida como “[...] espaço da aparência, [...] ou seja, o espaço no qual eu apareço aos
outros e os outros a mim; onde os homens assumem uma aparência explícita, ao invés de se
contentar em existir meramente como coisas vivas ou inanimadas” (ARENDT, 2005, p. 211). A
pluralidade dos integrantes da pólis era o que tornava a Philía-amizade a virtude capaz de unir as
diferenças.
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Conforme já ressaltado nestas linhas, a amizade fora se configurando na história


enquanto manifestação de discursos hegemônicos, assim como sempre conservou também a
experiência de estabelecer contatos com o diferente pela prática dialógica, por diversas vezes
dissociando-se do compromisso com a hegemonia de certas formas de existência. Entretanto, com
o passar dos séculos a tentativa de homogeneizar o meio social, reprimindo as diferenças passou
aos poucos a tornar os sujeitos submetidos a um modo padronizado de entender as relações sociais.
Desse modo, compreende-se que os sujeitos se constituem na sociedade como reprodutores da
ordem vigente assim como vítimas dessa mesma ordem que em nome da uniformidade reprime as
diferenças sociais. Com a emergência dos Estados modernos no século XVIII, essa repressão se
edificou na forma de regimes políticos totalitários.

SOCIEDADE E SUBJETIVIDADE NA IDADE MODERNA: A AMIZADE ENQUANTO


FRATERNIDADE

No contexto de um sistema capitalista em ascensão surgiu uma nova maneira de gerir


os homens, caracterizada pelo aumento da utilidade dos indivíduos e pelo seu enquadramento em
um sistema que ordena a subjetividade ao cumprimento de funções tecnicistas. Para Arendt (2005)
esse fenômeno se fez acompanhado por um constante processo de privatização do âmbito público,
onde atividades de domínio privado passaram a ser realizadas publicamente. Assim, o público se
tornara objeto do Estado, assim como a vida privada se distinguira enquanto espaço reservado às
relações íntimas e pessoais (sendo entendida também como sinônimo de felicidade). O Estado
passou a administrar os assuntos políticos tomando como referência a administração doméstica do
lar.

A Idade Moderna é, então, entendida como um processo de decomposição do espaço


público e de despolitização. Um elemento principal nesse processo fora a supervalorização da
família (burguesa) no século XIX como força normalizadora, detentora de poder moral mais
elevado que o âmbito público e representante de uma rede de proteção dos perigos da sociedade.
“Assim, a vida pública, o mundo compartilhado – o espaço de visibilidade para os antigos -,
tornou-se moralmente inferior diante da felicidade, prometida pela vida burguesa” (ORTEGA,
2002, p. 105). Nesse contexto, o vínculo dos Estados modernos com a família (a esfera privada),
o trabalho exaustivo nas indústrias e o isolamento dos indivíduos na vida íntima foram fatores que
motivaram os indivíduos a supervalorizarem a vida como bem supremo e a transformarem o retiro
solitário como expressão de sua mais alta relação com o meio circundante. Ocorreu nesse período
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o que Arendt (2005) definiu como triunfo do animal laborans, condição humana pela qual
entendemos que o homem passa a reger a sua vida em função da garantia de sua sobrevivência.

Os homens perderam, com isso, a sua preocupação pelo cuidado com o mundo
comum, favorecendo o surgimento de uma sociedade consumista, cuja preocupação se resume em
trabalhar (laborar) e consumir, mantendo-se distante das preocupações de ordem pública. Esse
contexto conduziu à crença inquestionável na razão instrumental, “[...] fomentadora de sistemas
técnico-burocráticos, que têm como finalidade permitir que forças necessárias de um processo
natural ou histórico sigam seu rumo sem nenhum impedimento” (PASSOS, 2014, p. 80) e ao
surgimento das sociedades de massa. Barros e Josephson (2007) apontam que as “massas” podem
ser entendidas enquanto multidão, ou seja, um agrupamento de grande número de pessoas a
exercerem influência mútua.

Nesse contexto, a sociedade de massa se faz distinta da concepção de manifestação


política dos homens, visto ser esta última associada à experiência com o mundo enquanto espaço
da pluralidade. Em outras palavras, nessas sociedades vivemos uns com os outros, mas não
estabelecemos um intercâmbio comunicativo a interligar as diferenças que nos definem enquanto
sujeitos (distintos entre si). Em virtude dessa diferença entre sociedade massificada e o mundo
enquanto espaço de atuação política, Arendt distinguiu os conceitos de Humanity (espécie
humana) e Humaness (humanidade). O primeiro faz menção à natureza compartilhada pelos
homens automaticamente, onde há o compartilhamento de várias atividades, mas não há a
articulação de um mundo entre os sujeitos; já o segundo corresponde à “[...] forma singular com
que cada homem divide o mundo com os outros através do discurso. Trata-se da maneira pessoal
de adentrar ao universo da linguagem e do mundo comum” (AGUIAR, 2011, p. 140). A
humanidade, nesse sentido, corresponde a uma qualidade que surge nas relações que os homens
estabelecem em conjunto.

No contexto da configuração consumista e mecanizada das relações interpessoais na


sociedade moderna, o vínculo estabelecido entre os homens passou a suprimir as diferenças sociais
e a configurar um modelo de amizade baseado na intimidade, baseado numa relação dialógica que
prioriza a igualdade, a semelhança e a comodidade de entender o outro como um “irmão”. A
amizade passa a ser entendida enquanto fraternidade, e seu sentido se faz carregado pelos valores
consagrados da época, na qual as diferenças sociais são encaradas como ameaças frente à ideologia
que norteia sujeitos em defesa de uma ordem. Assim, a fraternidade passou a substituir o sentido
da amizade enquanto experiência política, sendo sua característica principal a partilha da
intimidade ou da compaixão filantrópica. Na concepção arendthiana, “perde-se, deste modo, o
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sentido original mesmo de filantropia, amor e admiração pelas coisas humanas, deturpando-a em
caridade ou sentimentalismo em face da dor espetacularmente exposta” (AGUIAR, 2011, p. 137).

De acordo com Aguiar (2011) o fato do homem contemporâneo não apresentar


interesse em partilhar discursivamente a respeito do que está além dele mesmo ou daquilo que ele
não possa se apossar está na raiz da solidão, fenômeno muito comum na contemporaneidade.
Reduzido na sua capacidade de se associar aos outros através da ação e da fala, o homem iguala-
se a todos apenas pela capacidade de consumir objetos, signos e imagens. “A predominância da
amizade como intimidade aponta para um refúgio que, na verdade, é uma fuga ao processo de
massificação cujo preço é a privação dos outros do nosso raio existencial” (AGUIAR, 2011, p.
137).

Em contrapartida ao que a modernidade se configurou é que teóricos como Arendt


(2005) tem apontado para a superação de uma sociedade massificada e de um modo de ser
reduzido à supervalorização da vida privada, no qual o estranhamento frente à alteridade
desconsidera as diferenças sociais no processo de subjetivação. Nesse sentido, um processo de
superação da afirmação dos sujeitos a partir do isolamento na vida privada demanda um novo
modo de interpretar e vivenciar a amizade, desarticulando-a do sentido familialista presente no
sentido embrionário da Philía e na fraternidade da Idade Moderna, passando a ser entendida
enquanto experiência política e intersubjetiva que privilegia o contato com o outro.

Sendo assim, compete, então, perguntar: como entender a amizade enquanto prática
política e experiência intersubjetiva capaz de inventar outras formas de relacionamento e
subjetividades? Trata-se de um modelo de amizade, conforme destaca Ortega (2000), que
privilegia a pluralidade, a experimentação de estar na companhia dos outros, a liberdade e a
desterritorialização. Para ele, um discurso acerca da amizade que lhe afirme enquanto experiência
política e intersubjetiva capaz de afirmar as nossas diferenças sociais nos conduz a entende-la
como uma forma de amor mundi. Entender a amizade enquanto amor mundi na concepção de
Hannah Arendt nos conduz a análise de seu conceito de “mundo” e de que modo ele se constitui
enquanto palco dos processos de subjetivação. A sociedade habita um mundo, um mundo marcado
pela singularidade de um Ethos que se distingue da natureza. Nesse sentido, aquilo que singulariza
os homens é também condição do que lhes torna plural, visto ser na sociedade que formamos
nossos valores, ideias, sentidos e, consequentemente, nossos juízos. “Pode-se dizer, então, que os
múltiplos componentes de subjetividade se difundem como fluxos que percorrem o meio social,
dando-lhes movimento” (MANSANO, 2009, p. 111). O movimento das subjetividades a se
desenrolar no meio social ocorre no mundo que habitamos, a esfera pública. Para Arendt (2005,
p. 62),
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[...] o termo ‘público’ significa o próprio mundo, na medida em que é


comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Este
mundo, contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado
para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica.

O mundo pelo qual a filósofa se referiu não atende a formas unânimes de existência,
mas a modos distintos de subjetividades. Trata-se do artifício humano, que uma vez produzido
liberta o homem da natureza, relacionando-o com o conjunto de artefatos, instituições e leis criadas
por ele. Para Arendt (2005) esse artifício deve ser entendido como espaço adequado para a “ação
e o discurso”, condições pelas quais se constitui a pluralidade enquanto lócus da vida humana.
Conforme enfatizou Passos (2014, p. 128) “o mundo, na perspectiva arendtiana, é vislumbrado
pela ótica da pluralidade, [...] pois demonstra que o mundo não deve ser compreendido como lar
de um único povo, mas sim como a morada de uma multiplicidade de etnias e culturas”. Sendo
assim, podemos entender que para Arendt, a superação de uma vida eminentemente restrita ao
trabalho depende de um retorno do homem ao mundo (à atividade pela qual fabricamos os
artefatos que compõem o mundo objetivo) e à ação, pela qual criamos nesse mundo um espaço de
experiência política e intersubjetiva com os outros. O “amor” por esse mundo, diferentemente do
amor romântico e do amor fraternal, não faz referência a nós mesmos ou a nossa intimidade, mas
se constitui enquanto disposição e aprazimento em compartilhar de maneira discursiva as nossas
opiniões e os acontecimentos mundanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A amizade representa um fenômeno que estabelece um vínculo entre os sujeitos
envolvidos, sendo suas características principais a convivência, o compartilhamento de ideias e a
afeição pela relação intersubjetiva com o outro. Esse conjunto de atribuições conduz à ideia de
que a amizade nos liga àqueles “iguais” a nós, seja essa igualdade marcada por uma igualdade de
valores, crenças ou vínculos parentescos. Porém, a amizade pensada enquanto prática política se
propõe como experiência intersubjetiva que privilegia o contato com o diferente em uma relação
agonística. Em seu sentido embrionário a amizade deriva do antigo conceito de Philía, conceito
grego que além de contemplar as relações marcadas por vínculos sanguíneos, também
contemplava o tratamento com o “estrangeiro”. De modo diferente, a amizade na Idade Moderna
se distinguiu por seu intenso apelo ao contexto familiar, definindo assim o que Arendt denominou
por “sociedade intimista” ao tratar do esvaziamento da esfera pública na modernidade.
Considerando o contexto contemporâneo, percebemo-nos diante do desafio de fazer surgir
novamente o mundo entre-os-homens, resgatando o caráter público (distinto daquilo que é íntimo)
da esfera dos assuntos humanos. A amizade, nessa perspectiva, se distingue das relações íntimas
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e familiares e privilegia o outro em sua radical alteridade. Trata-se de um modo de conceber a


amizade enquanto experiência que se constitui no “espaço entre” os indivíduos, que “[...] acolhe
a diferença e a distância inerente àqueles que se relacionam a partir de algo que está entre eles
(inter-essa), aproximando-os e os distanciando” (AGUIAR, 2011, p. 138). Trata-se de um modelo
de amizade fundamentado na desigualdade ou diferença entre os sujeitos, que ao se encontrarem
conservam a experimentação e criação de novas imagens que definam nossas sociabilidades e
subjetividades.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de M. da G. Kury. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1999.

JACO-VILELA, Ana Maria. Concepções de pessoa e emergência do indivíduo moderno.


Revista Interações, vol.6, n. 12, pp.11-40, 2008.

BARROS, R. D. B.; JOSEPHSON, S. C. A invenção das massas: a psicologia entre o controle e


a resistência. In: JACÓ-VILELA, A. A. L. F.; PORTUGAL, F. T. (Org.). História da psicologia:
rumos e percursos. Rio de Janeiro: Nau Ed., 2007.

HANNAH, Arendt. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10ª ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2005.

______ . Homens em tempos sombrios. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.

ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000.
______ . Francisco. Genealogias da amizade. São Paulo: Editora Iluminuras, 2002.
AGUIAR, Odilio Alvez. A amizade como amor mundi em Hannah Arendt. O que nos faz
pensar, 28, p. 131-144.

PASSOS, Fábio A. O conceito de mundo em Hannah Arendt: para uma nova filosofia política.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
PRIMO, Joana Sampaio. Amizade, espaço de pensamento e alteridade: uma análise das cartas
de Freud a Fliess. São Paulo: PUC, 2015.
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CIDADE NA EMBLEMÁTICA: TESOURO DIFUSOR DA ERUDIÇÃO

CITY IN THE EMBLEMATICS: TREASURES DIFFUSING ERUDITION

Edmilson Moreira Rodrigues


Doutor em Estudos da Literatura- UFF
Universidade Federal do Maranhão- AXOLOT, FAPEMA

Eixo temático 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: Em Aristóteles (1997) lemos que “Uma cidade é constituída por diferentes tipos
humanos: pessoas iguais não podem fazê-la existir”, assim, uma cidade é também, constituída por
tipologias diferentes, e são esses distintos suportes textuais que proporcionam ambos (r)existirem.
A essa resistência chamamos manifestação artístico-literária produzida no Século de Ouro
Espanhol, o Emblemata. Assim, objetivamos investigar a cidade na literatura do Século de Ouro
Espanhol, tendo-a como tema em livros de emblemas, especificamente, donde o lema seja
explicito às questões da mesma. “El emblema consta de tres elementos: una imagen o figura
(pictura), un título en forma de breve sentencia (inscriptio) y una explicación más amplia del
contenido implícito en la imagen y en el título (suscriptio). La publicación en 1531 de la colección
que lleva por título Emblematum liber, del italiano Alciato, impulsó el emblema como género
didáctico-moral en toda Europa. Muchas obras barrocas, especialmente algunas de Quevedo y las
de Gracián, están influenciadas por la literatura emblemática”, Tasende (2000, p. 246). Ainda que
em muitos emblemas tríplex apareçam citadas o étimo cidade, outros trazem somente a pictura a
qual possibilita o estudo do tema. No livro de emblemas encontramos os mais variados temas, e
dentre esses, a temática citadina, todos eles com suas linguagens ideográficas as quais nos
permitem afirmar que “El emblema, medio de comunicación simbólica, es hoy un tema de
investigación interdisciplinaria que abarca las literaturas neolatinas y vernaculares, las artes
visuales y la cultura material” Peter M. Daly in Cull e Vistarini (1999, p. 07).

Palavras-chave: Literatura, Século de Ouro Espanhol. Emblemática. Cidade.

ABSTRACT: In Aristotle (1997) we read that “A city is constituted by different human types:
equal people cannot make it exist”, thus, a city is also, constituted by different typologies, and it
is these distinct textual supports that provide both (r) exist. We call this resistance artistic-literary
manifestation produced in the Spanish Golden Century, the Emblemata. Thus, we aim to
investigate the city in Spanish Golden Century literature, having it as a theme in emblem books,
specifically, where the motto is explicit to the issues of the same. “The emblem consists of three
elements: an image or a figure (picture), a title in the form of a brief sentence (inscriptio) and an
explanation of the content contained in the image and the title (suscriptio). The publication in 1531
of the collection that goes by title Emblematum liber, by the Italian Alciato, impelled the emblem
as a didactic-moral genre throughout Europe. Many Baroque works, especially some of Quevedo
and las de Gracián, are influenced by emblematic literature”, Tasende (2000, p. 246). Although in
many triplex emblems the last city is mentioned, others bring only the picture which enables the
study of the theme. In the book of emblems we find the most varied themes, and among them, the
city theme, all of them with their ideographic languages which allow us to affirm that neolatines
and vernaculars, visual arts and material culture” Peter M. Daly in Cull and Vistarini (1999, p.
07).

Keywords: Literature, Spanish Golden Century. Flagship. City.


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1 INTRODUÇÃO
A imagem da cidade, na emblemática, é univalente, um conceito que pode ser
entendido como recorrencial ao conjunto das produções de livros de emblemas no Século de Ouro
Espanhol. A imagem da cidade – enquanto discurso misto – é recorrente mesmo que não haja
intenção explicita no lema. A cidade, nos livros de emblemas é como percebemos, uma “res
significans”, sempre confirmante de que ela nos bonifica uma vida retirada – pela dualidade
campo/cidade – de um lugar de insegurança para um de refúgio, amuralhado, fortificado e
protegido dos pecados. Pois, o mundo natural, como era compreendido na época, estava imbuído
de sentido moral, mas também de insegurança e desamparo.

Através do corpo do emblema com sua composição tripartida, exigindo a presença da


inscriptio, pictura e suscriptio que são partes essenciais à produção do significado do emblema,
podemos, a cada momento da leitura, ir fundo na interpretação, realizando incursões de análises,
intertextuais, solícitos de novos direcionamentos, o que culmina à conclusão da leitura do
emblema com vista à interpretação geral. Aquela permite a compreensão de todo o corpo da
“palavra-emblema”, como epigrama-descritivo317. “Numa carta a Francisco Calvo (2 de
Dezembro de 1522), o jurisconsulto milanês narra como intitula “Emblemata” um certo livro seu
de epigramas descritivos, que procuravam significar algo diferente, agradável” (GOMES in
ARELLANO e PEREIRA, 2010, p. 217). Dito isto, vejamos, pois, as fontes da pesquisa e,
consequentemente, o objeto deste trabalho: analisar três emblemas da literatura emblemática do
Século de Ouro espanhol, tangenciando o estado da arte sobre cidades, quais sejam:

A) Emblema de Solórzano Pereira (1653), Príncipe perfeito – embelams de D. João


de Solórzano Pereira, parafraseada em português em (1790), Lema: Legum munia urbium
moenia:

B) Emblema de Marco Antonio Ortí, (1659), Flores de Miraflores. Hyeroglíficos


sagrados, verdades figuradas, sombras verdadeiras del mysterio de la inmaculada concepción de
la Virgen, y madre de Dios. Lema: Posuit illud in civitate sua;

C) Emblema de Nicolas de la Iglesia, (1654), Siglo quarto de la conquista de Valencia.


Lema: Civitas Refugii.

317
“Creo que una de las claves del éxito del género (y, en concreto, del volumen que aquí se presenta, paradigmas de
los libros de emblemas), más allá del compendio de saberes que mostraba, más allá de la revolución que supuso la
imprenta en el mundo de la cultura, o incluso de su empleo pedagógico, se halla en la libertad de interpretación de
esas imágenes, en ocasiones herméticas, en ocasiones de fácil identificación. A esto se puede objetar que el lema
(título que deviene en concepto) y el epigrama (poema que expresa el contenido del lema y el sentido de la imagen)
podrían, en principio, dejar escasos resquicios para una lectura personal de los emblemas” (ZAFRA, 2003, p. 07).
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Todos eles com suas linguagens ideográficas que nos apresentam o formato do
emblema tríplex: Imagem ou pictura gravada, lema ou mote (geralmente em Latim), epigrama
(versos que explicam o sentido de toda composição). Vale o destaque para o caso do emblema,
Legum munia urbium moenia, de Solórzarno parafraseado por António de Novaes Campos, pois
está ela, a obra em seu conjunto, e o emblema, acrescidos de colorido; algo inusitado para a
produção do emblema áureo, mas não para a produção do livro nos albores do século XVIII.

Temos ainda, a pretensão de elaborar, mesmo que brevemente, uma relação de


sentidos entre os emblemas – desenhos simbólicos – e os estudos interartes. Pondo em relevo o
emblema como campo de pesquisas voltadas aos estudos da tradução, mais definidamente, as três
espécies definidas por Jakobson (2000).

2 EMBLEMÁTICA – TESOURO DIFUSOR DO ESTUDO INTERARTES


Neste momento pretendemos defender um posicionamento de que os emblemas
possibilitam abordar o fenômeno pelo prisma dos estudos interartes, posto que, os mesmos são
produtos resultantes de práticas socioculturais, e deste modo, estão intimamente concatenadas aos
estudos culturais. Visto que eles também mantêm uma relação discursiva intermídia. “(...)
ilustrações de livros (como também emblemas e títulos de textos não-verbais) seriam exemplos
do discours multimédial (a justaposição de textos auto-suficientes compostos num sistema sígnico
diferente)”, (CLÜVER 1997, p. 46). Assim, a questão dos estudos interartes, que envolvem
intermidialidade, tradução e recepção serão discutidos aqui, com o fito de trazer à tona o estudo
do emblema como tesouro difusor primacial da relação imagem-texto, enfatizando o estudo deles
e suas relações intertextuais, dado seu grande desenvolvimento e proliferação em muitos suportes
interartes, (teatro curto: jácara, mojiganda, entremés, loas, bailes) e pictóricos (obras de artes
efêmeras, portais de recepção a reis, arquitetura, quadros e painéis artísticos), na sociedade barroca
europeia.

Como es conocido, la expresión emblemática se rastrea en todo el humanismo y barroco


y alcanza gran desarrollo, proliferando en multitud de libros especializados de emblemas,
empresas y jeroglificos. (ARELLANO e OLLETA in ARELLANO e PEREIRA, 2010,
p. 27).

Com esse sensível, insuperável sentido pedagógico dos homens renascentistas, a


produção do emblema fez com que se criasse um novo saber entre imagem e texto, tal a delicada
inventividade – a maior expressão verbo-visual do Século de Ouro Espanhol: a emblemática.
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Com a aparição do emblema, empresa, pegmas, escudos, hieroglíficos318, o elemento


verbo-visual, “faz uma exigência” de que o leitor o leia como uma verbalização de arte visual.

A criação e proliferação do emblema, como elemento verbo-visual, é exemplo criativo


da presença de intertextos – pictóricos no texto verbal. E o texto verbal dos emblemas, somando-
se às imagens, nos dão verdadeiros exemplos do significado de intertextualidade, tanto pelo que a
pictura revela como pelo que a inscriptio declara.

Para Clüver (1997, p.40)

Questões de intertextualidades podem fazer parte de textos literários objetos propícios a


estudos interartes – o que não vale apenas para textos literários ou simplesmente verbais.
Norman Bryson, entre outros, insiste que a leitura de textos visuais inevitavelmente
envolve recorrências a intertextos verbais”, (CLÜVER, 1997, p.40).

As pictura de muitos emblemas permitem diálogos interpretativos de textos clássicos


verbais, como ilustração ekphraseis. Pois, para Clüver (1997)

Como as ekphraseis, as ilustrações são, ente outras coisas, interpretações que necessitam
elas mesmas de interpretações; mas, como quer que as leiamos, elas afetarão o modo
como lemos os textos que ilustram, mesmo quando sua maneira de reescrita acaba na
verdade por subverter os textos”, (CLÜVER, 1997, p.44).

Para além destas questões, as ekphraseis, ainda que, em muitos momentos, sejam
fontes de inspiração e produção de textos não verbais, exige leituras e conhecimento dos desenhos
simbólicos, como são fontes aprofundadas de obras literárias e pictóricas. Isto porque, a sua
produção é mais que um diálogo intertextos, é uma produção de conhecimentos culturais,
profundamente harmônicos às questões da arte e da literatura áurea; e, consequentemente, a
interpretação e o saber sobre a tradução de algumas obras verbais em sistemas de signos não
verbais, bem como dos não verbais para os verbais exigindo um leitor qualificado e educado nas
práticas culturais de textos clássicos. Isto por entendermos a colaboração entre imagem e texto,
no Século de Ouro, existe, mas a mais profunda elaboração de imagens não exige palavras, e a

318
“Las posibles diferencias de los subgéneros y la terminología de lo que en sentido amplio denominamos
“emblemas” son muy discutidas por los tratadistas, pero la conclusión a la que se llega es que todas esta modalidades
se consideran esencialmente la misma cosa: ver Azanza y Zafra, 2000. Para cuestiones generales, ver Praz, 1989;
Campa, 1990; Maravall, 1990; Egidio, 1990; Cuadriello, 1974; Literatura emblemática hispánica… 1996; y los
clásicos Gallego, 1991; y Sebastián, 1981. Más reciente es el importante libro de Rodríguez de la Flor, 1995. Tal
modo de expresión no exige, naturalmente, la presencia de todas las partes constituyentes de un emblema tipo, esto
es, el mote, el elemento visual y la glosa. Incluso, como recuerda V. Infantes (1996) a propósito de la literatura,
abundan los loci emblemáticos por el texto sin que se corresponda necesariamente con una ilustración de tipo gráfico”,
(ARELLANO e OLLETA in ARELLANO e PEREIRA 2010, pp. 27 e 29).
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maior produção verbal não precisa se apoiar na imagem, são ambas, pois, produções resultantes
de práticas socioculturais, produzidas com e por modelos clássicos e outros deles derivados319,
refletindo práticas de traduções.

Vale o destaque para dizer com as palavras de Roman Jakobson (2000), o que
entendemos por tradução e, muito em particular, a inter-semiótica. Justamente porque sabemos
que o emblema está todo ele impregnado de questões relativas às três espécies de tradução –
intralingual, interlingual e inter-semiótica320. Isto porque, a tradução das suscriptio de um idioma
como o latim, para o espanhol, é uma área de estudos da tradução interlingual ou tradução
propriamente dita; enquanto que a tradução da inscriptio possibilita o estudo da tradução
intralingual, pois muitos signos do espanhol do século XVI precisam ser reformulados por outros
signos da mesma língua em séculos posteriores; e a pictura deixa albergar, a transmutação
enquanto tradução inter-semiótica aquela que consiste na interpretação dos signos verbais por
meio de sistemas de signos não verbais.

Os emblemas que vamos analisar mais adiante, todos eles contêm as pictura, nas quais
observamos a transmutação, no nosso caso em estudo, a tradução dos signos verbais em signos
pictóricos em preto e branco e colorido. As pictura em destaque são objetos de tradução do nível
verbal para o ilustrativo. Eis, pois, um duplo trabalho de tradução por parte de quem ilustrou os
emblemas. No caso muito em particular – há o que chamamos, por questão didática, tradução inter
semiótica/intralingual pois, no caso dos emblemas de Solórzano Pereira parafraseados por
António Campos e o de Mendo, os dois ilustradores foram às fontes verbais clássicas para realizar
suas ilustrações. Um em cores e o outro em preto e branco. O mesmo tipo de tradução, observamos
nos emblemas de Juan de Horozco y Covarrubias e o de Alciato, em cujo lema lemos: O dever
dos filhos para com os pais. Nesses emblemas as cidades em chamas, o trato das disposições das
personagens, a panorâmica da pictura é levemente diferente uma da outra. Houve uma
transmutação parcial em todas as ilustrações. Pois observamos alguns comunicantes que são
equivalentes – ainda que em cor, como a pictura de Solórzano. As de Juan de Horozco y
Covarrubias e as de Alciato, em preto e branco, bem como a de Solórzano, parafraseadas, mesmo

319
A estas questões é importante lermos o texto de René Wellek e Austin Warren (1971) – especialmente o capítulo
onde os teóricos são precursores na discussão dos estudos interartes: Literatura e outras artes (pp.159-176). Vale o
destaque para afirmar e confirmar que – “Depara-se-nos, por fim, este problema: certas épocas ou nações foram
extremamente produtivas apenas em uma ou duas artes, e mesmo estas completamente estéreis ou meramente
imitativas e derivativas de outras”, Wellek e Warren (1971, p.169).
320
Distinguimos três maneiras de interpretar um signo verbal: ele pode ser traduzido em outros signos da mesma
língua, em outra língua, ou em outro sistema de símbolos não-verbais. Essas três espécies de tradução devem ser
diferentemente classificadas: 1) A tradução intralingual ou reformulação (rewording) consiste na interpretação dos
signos verbais por meio de outros signos da mesma língua; 2) A tradução interlingual ou tradução propriamente dita
consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua; 3) A tradução inter-semiótica ou
transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais.
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que em cores, sofreram poucas modificações na panorâmica geral da tradução do verbo para as
imagens.

Podemos afirmar que os ilustradores realizaram um circunlóquio de motivos, pois os


equivalentes não são completos, ainda que ao final da leitura das imagens tenhamos a mesma
conclusão em ambos os emblemas (JHC e Alciato) tomando-os como modelos de substituição e
semiequivalências321. Houve assim, uma combinação equivalente entre os três emblemas, pelas
unidades de traços. Isto porque a eliminação de elementos verbais, na apropriação/interpretação,
deixa ambos os suportes fáceis de entender, ainda que com empregos de técnicas pictóricas
diversas. Ocorre assim, o que Clüver (1997) define como transposições de recursos estruturais e
estilísticos, bem como analogias formais.

Os emblemas de Solórzano, ao serem parafraseados, por Campos, sofreram assim,


duplos processos de tradução. O emblema – Legum munia urbium moenia, sendo já uma adaptação
de Solórzano ao de Mendo, ao ser apropriado por António Campos é, outra vez, traduzido a uma
recepção do século XVIII e, desta vez, em colorido e acrescido do soneto composto, deste modo,
por novos elementos ao corpo e alma do gênero didático-moral322.

Eis, pois, o motivo pelo qual afirmamos que este emblema, por si só, possibilita muitos
estudos interartes. O emblema de Mendo originou o de Solórzano que, por sua vez, o de António
Campos. O deste último, além do acréscimo da cor, da moldura diferenciada, apresenta outro
texto, ou seja, se compõe, portanto, quebrando a triunidade do emblema áureo, em quatro novas
partes. As pictura foram duas vezes revisitadas e o texto idem. Este sofreu duas traduções
interlingual. A primeira do latim para o espanhol do século XVI, e a segunda, deste para o
português do século XVIII. Temos, portanto, neste emblema, as três espécies de tradução de que
fala Jakobson (2000).

Muitos livros de emblemas como os Emblemas Morales, de Sebastián de Covarrubias


(1604), fazem uma incursão para compor o tema ou a sentença, nos adágios e nos refrãos clássicos,
o que deixa claro, de imediato, um diálogo interpretativo muito anterior à elaboração dos desenhos
simbólicos. O que também serve para justificar a relação existente entre este gênero didático-
moral, e a literatura da qual se serve e se abastece, como fonte constante de criação interartes.

321
“Ler um texto como tradução de outro texto envolve uma exploração de substituição e semiequivalências, de
posibilidades e limitações. No caso de traduções intersemióticas, alguns leitores fascinam-se com as soluções
encontradas, enquanto outros podem ver nisto a melhor demonstração das diferenças essenciais entre os varios
sistemas de signos”, (CLÜVER 1997, p.43).
322
“Composición de un dibujo simbólico que encierra una idea de sentido moral, político, social… y un lema, con el
propósito de captar los ánimos mediante representaciones gráficas. (…) la publicación en 1531 de colección que lleva
por título Emblematum liber, del italiano Andrea Alciato, impulsó el emblema como género didáctico-moral en toda
Europa”, (CALDERÓN 2000, p. 246).
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E, mais ainda, outras tantas revisitações, o que por si só, explica as espécies de
traduções, levando em consideração que a suscriptio de todo emblema, como era prática na época
dos tratadistas, é resultado da explicação mais amplas do conteúdo implícito na imagem – pictura
– e no título - inscriptio. O que significa afirmar que em cada caso, no de Solórzano para o de
Mendo e no de António Campos para o de Solórzano, encontramos muitos processos dialógicos
explicativos que se coadunam às formas novas de pesquisas, como esta, que enquadra a leitura, e,
consequentemente, a produção do emblema, no campo dos estudos da tradução – interlingual,
intralingual e inter-semiótica, tendo naquela modalidade de composição literária, novos campos
possível de pesquisas. O que ratifica a importância do gênero para os estudos culturais.

3 EMBLEMÁTICA – TESOURO DIFUSOR DA ERUDIÇÃO DA CIDADE


Pensando com Aristóteles (1997, p.261) quando afirma que “uma cidade é constituída
por diferentes tipos humanos: pessoas iguais não podem fazê-la existir”, deduzimos, pois, que
uma cidade é também, constituída por diferentes tipos de textos e são esses distintos suportes
textuais que proporcionam ambas (r)existirem. E tal resistência é o que chamamos de
manifestação artístico-literária por excelência, produzido no Século de Ouro Espanhol, o
emblema, por homens não tão diferentes entre si, mas similar no que tange ao homem sábio323.

Deste modo, a ele, o homem sábio do Século de Ouro, coube produzir obras tão
significativas que nos parece difícil chegar a um denominador comum sobre um tema tão eterno
e importante para as letras, se não nos valendo de prestimosos diálogos intertextuais324. O que nos
faz pensar em Benjamin (1986) sobre a alegoria da polis como escrita e também nos enigmas
textuais perfeitamente estruturados sobre a cidade no texto de Berardinelli (2007): Cidades
visíveis na poesia moderna, quando ambos falam de Baudelaire e Whitman, heróis lendários e
fundadores sobre a poesia moderna, em cujas obras rondam o tema da cidade. E, também, da polis
com o poder se deslocar, via ato de criação literária, para qualquer espaço, e, no nosso caso, menos
para o geográfico e mais para o da criação artística, mas com profundíssimas marcas para o poder,
como “exercício das imagens simbólicas da cultura”. (RAMA, 1985, p. 48)

323
Para maiores aprofundamentos acerca do sábio e, consequentemente, da categoria sabedoria, indicamos o livro -
Modelos de vida en la España del Siglo de Oro, Tom II, Arellano e Vitse (2007). Muito em particular o texto – El
hombre sabio es un caracol, una represntacion emblemática, de Bouzy.
324
Entendemos com Clüver (1997) que o diálogo intertextual é…e também, dentro da temática a cidade, para Zárate
in Azanza e Zafra (2000, pp. 225-234), no texto Imagen y poder, alegorías en emblemas, do qual retiramos este
excerto: “pero no podemos olvidar que el Emblema, como recurso intelectual, busca sus fuentes en la literatura clásica,
en bilblia, en la historia, en la historia, en la medalística, etc., y en muchas ocasiones, populariza ideas e imágenes
que ya la pintura o el grabado había universalizado con anterioridad (…) Es nuestro propósito hablar con ejemplos,
proponer al lector consideraciones puntuales donde la pintura o el grabado, imágenes parlantes, no son otra cosa sino
alegorais conocidas en su tiempo que se fundamentan en la tradición literaria”.
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O pensamento sobre a polis – como espaço de poder e de criação é o que nos faz pensar
que A cidade das letras de Rama (1985) é o locus constituído pelas trocas simbólicas, pelas lutas
dentro de processos ideológicos que fazem da “cidade-signo, uma semiologia social e literária”,
(ACHUGAR in RAMA, 1985, p.17). Constituída, pois, e construída como metáfora de criação,
definimos a cidade, pelo olhar dos emblematistas áureos, como tesouro difusor de erudição, e suas
produções sobre cidades, como já afirmamos noutro texto325, nos proporcionam confirmar que:

La ciudad en la literatura permite estudios variados e históricos, no sólo de los tipos


sociales, pero también de su propia transformación ciudadana, histórica y social,
constituyéndose, también, como literaturas de viajes que sirven para presentar las
ciudades en la literatura326. Más también, puedo decir que otra importante característica
a añadir acerca de la ciudad, es la ciudad literaria o la literatura de ciudades. Pues hay un
intercambio, desde hace mucho, muy corriente y nada ocasional de escritores que hablan
de ciudades como elemento esencial de la actividad creativa. Pues toda ciudad es un locus
de cambio, sea de información, sea de formación, pues hace parte del repertorio de
conocimiento donde el hombre se abastece de saberes. (RODRIGUES, 2019)

Os escritores áureos fazem surgir o loci emblemático, desvendando a polis como


projeto unificador de signo de criação, oferecendo a evolução do sistema simbólico ao
proporcionar uma conexão, através do livro de emblema, entre discurso literário e a trama da
sedução do leitor, via imagem e texto, na sociedade áurea, tão conturbada327. Tais estudos, e nossa
escolha, não permite afirmar que o emblema surgiu no Século XVI para alabar a cidade, mas se

325
Cárcel, lugar revelador de la ciudad como cultura visual en el teatro breve, no Colóquio Internacional sobre
Teatro e Cidade na Universidade de Varsóvia, no mês de Junho de 2019. (Artigo no prelo a ser publicado pela Revista
Hipogrifo da Universidad de Navarra).
326
Pensemos nas obras – Cidades Imaginárias, de Ítalo Calvino e na que a originou: As viagens de Marco Pólo. Na
edição Livros de Bolso Europa América, tradução de M. de Campos, no- 294. Cujo editor, Francisco Lyon de Castro
ao comentar a obra afirma: “Durante séculos, a mais variada imagem do Oriente foi-nos dada pela narrativa de Marco
Polo. Nenhuma outra obra gozou de tanta popularidade. Foi através dela, essencialmente, que o Ocidente conheceu
os palácios sumptuosos dos déspotas asiáticos, os rios e as cidades do Catai, os costumes e ritos dos Indianos, as
plantas e as espécies raras, os animais fabulosos. Com o seu livro, o modesto e prudente mercador veneziano procurara
dotar a Europa de uma espécie de grandioso guia destinado a revelar, com a maior fidelidade possível, um mundo
praticamente desconhecido. Tal facto não impediu, porém, de sobre ele recair a suspeita de exagero e de fanfarronice,
quando não mesmo de mistificação. É, na realidade, um singular paradoxo que um livro tão realista e positivo pudesse
ser considerado um conjunto de fábulas e de mentiras e, ao mesmo tempo, constituir um estimulante de sonhos e
miragens para conquistadores e poetas. Não se pode esquecer, por exemplo, que a sua leitura ajudou a fomentar em
Colombo a ilusão pertinaz, que nele continuou até ao fim da vida, de ter atingido não as praias cubanas, vanguarda
de um novo continente, mas as praias do misterioso Cipango, o actual Japão. (...) O tempo já fez justiça a Polo. O
veneziano impôs um passo gigantesco à consciência geográfica do seu tempo, destruindo muitas fantasias que a
Europa situava no inexplorado Oriente. Pode-se dizer que o livro de Marco Pólo abre as portas à literatura cientifica
moderna” Nota introdutória, Francisco Lyon de Castro, (s/d).
327
“El predominio de lo clásico suele coincidir con civilizaciones fuertes en las que el hombre que parece haberse
hecho dueño de las circunstancias, se afirma en la vida y el artista en su obra: aquélla es un presente que se ofrece
para exprimirlo y saborearlo, ésta intenta reflejar en su equilibrada plenitud, la perfección inmutable de la belleza
absoluta” (…) A la seguridad en sí mismo del hombre renacentista que confería a la vida un sentido de belleza y
placer dio paso la fugacidad del tiempo barroco. “Del coged hoy vírgenes, las rosas” se pasa al “Carpe Diem” en
donde la más preciada belleza ha de volver como el hombre, “en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada”,
como recuerda Góngora” (CARDONA 1999, p.06).
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aplica a muitos propósitos, pois a polivalência, o amplo campo de produção; assim como as
temáticas dos emblemas, facilitam incursionar em temas como este. O que não diminui, pelo
recorte temático, o valor e importância do livro de emblemas, muito menos o traduz naquilo que
ele realmente significa, no entanto, o presente trabalho proporciona confirmar que,

Originalmente destinados a um escol de intelectuais, em breve os livros de emblemas se


tornaram literatura de vulgarização, uma como que literatura de “quadrinhos”, sobretudo
depois que os Jesuítas e outros educadores se aperceberam das vastas perspectivas
pedagógicas da transmissão de ideias através da conjugação de uma curta sentença e de
uma figura (numa antecipação dos métodos audiovisuais, dentro das possibilidades da
época). (UREÑA PRIETO, 1985, p. 52).

Os estudiosos são unânimes em afirmar que essa produção é resultante do avassalador


modelo de livro emblemático produzido desde Alciato (1532) e sus Emblemas. Vejamos o que
nos declara Zafra (2003) sobre a produção do autor em cotejo.

Durante una época rica en obras decisivas para la cultura, apareció un volumen titulado
Los Emblemas de Alciato traduzidas em Rimas Españolas, versión castellana de la que
podemos considerar una de las obras más influyentes del Renacimiento. El Emblematum
liber alciatii dejó huellas en casi todos los campos del saber y del arte de su tempo y de
posteriores centuria. No sólo el elevado número de las ediciones que se sucedierón
durante los siglos XVI y XVII, cerca de 150, da prueba de ello. Escritores, pintores,
escultores e incluso predicadores y políticos hallaron en sus páginas un fabuloso tesoro
de saberes variopintos y, sobre todo, asequibles, asi como una codificación de símbolos
que resultó extraordinariamente novedosa en su formato de mote, grabado y epigrama.
(ZAFRA, 2003, p.05).

Dito isto, podemos afirmar que a cidade, na produção emblemática áurea, permite uma
erudição visual, pois a pictura é um aspecto implícito ainda que silencioso na manifestação
artístico-literária, isto porque a emblemática dedicou, também, esforço em transformar a cidade
em preceitos de reflexão e saber sobre o homem, suas ideias de e sobre a polis. Somente porque:

Estos emblemas, que intentan dar cuerpo a las ideas, son antes de todo el reflejo de una
tópica antigua submergida en lo que se suele llamar la “sabiduría de las naciones”, es
decir un conjunto de sentencias proverbiales cuya fuente a veces se olvida ya que muchos
de ellas se remontan a épocas anteriores a los estóicos. (BOUZY in ARELLANO e
VITSE, 2007, p. 127)

Depois desta pequena exposição, objetivamos continuar nossas investigações sobre a


cidade na literatura do Século de Ouro espanhol, neste amplo campo de pesquisa, a emblemática,
destacando, desta vez, a cidade em alguns emblemas, seguindo pistas linguísticas que se cruzam
em livros de emblemas, especificamente, e, muito reduzido, donde o lema seja explicito às
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questões da cidade. Ainda que saibamos que em muitos emblemas tríplex328, observamos o tema
da cidade, na sua composição de pictura, mas não trazem o lema sobre ela, mesmo que em alguns
casos, na suscriptio e na explicatio apareçam citadas, ou vice-versa.

4 EMBLEMÁTICA: TESOURO DIFUSOR DA LITERTURA DE CIDADE


Segundo nos orienta Rama (1985, p. 50),

O discurso barroco não se limita às palavras, mas as integram com os emblemas,


hieróglifos, empresas, apologias, cifras, e insere este enunciado complexo dentro de um
desenvolvimento teatral que apela à pintura, à escultura, à música, aos brailes, às cores,
proporcionando –lhes o fio vermelho que para Goethe fixava o significado da
diversidade. (RAMA, 1985, p. 50)

Neste cenário, como em todos onde o ser social está impregnado de símbolos e valores
da sociedade na qual vive, sentimos a presença das contradições sociais, das lutas consigo e com
o próximo, das adversidades que as artes oferecem a este mesmo ser, no qual ele é o objeto da
arte.

El hombre, según se piensa en el XVII, es un individuo en lucha, con toda a comitiva de


males que a la lucha acompañan, con los posibles aprovechamientos también que el dolor
lleva tras sí, más o menos ocultos. En primer lugar, se encuentra el individuo en combate
interno consigo mismo, de donde nacen tantas inquietudes, cuidados y hasta violencias
que, desde su interior, irrumpen fuera y se proyectan en sus relaciones con el mundo y
con los demás hombres. El hombre es un ser agónico, en lucha dentro de sí, como nos
revelan tantos soliloquios de tragedias de Shakespeare, de Racine, de Calderón.
(MARAVALL, 1975, p. 325)

328
Veja Rodrigues, Edmilson in Revista Infinitum v. 1, n. 1 jul/dez 2018 no artigo: Um tópico da tradição
emblemática: o leão e a estética de persuasão no palácio dos leões em São Luís: capital do Estado do Maranhão,
patrimônio de emblemas portugueses, donde o autor nos esclarece como está composto o emblema, o que para alguns
teóricos, como veremos, é classificado de Emblema tríplex. “El emblema consta de tres elementos: una imagen o
figura (pictura), un título en forma de breve sentencia (inscriptio) y una explicación más amplia del contenido
implícito en la imagen y en el título (suscriptio). El tema o sentencia recoge, a veces, un adagio o refrán, como sucede
en los citados Emblemas morales de Sebastián de Covarrubias, con lo que se evidencia la relación existente entre los
emblemas y la literatura de que se sirven y a la que nutren”, Calderón (2000, p. 158 e 159). Outra definição nos
esclarece Tasende (2000) no Diccionario de términos literarios: “Emblema composición de un dibujo simbólico que
encierra una idea de sentido moral, político, social… y un lema, con el propósito de captar los ánimos mediante
representaciones gráficas. El emblema o la empresa (ésta de carácter más abstracto y particular, aunque acabaron
confundiéndose) está formado por tres partes: un cuerpo, que es la figura o imagen (pictura), un título, lema o mote
(inscriptio), y una explicación (suscriptio), a veces en verso. La publicación en 1531 de la colección que lleva por
título Emblematum liber, del italiano Alciato, impulsó el emblema como género didáctico-moral en toda Europa. En
España hubo muchas colecciones. Son famosos, entre otros, los Emblemas morales (1589), de Juan de Horozco, y las
Empresas (1640), de Saavedra Fajardo. Muchas obras barrocas, especialmente algunas de Quevedo y la de Gracián,
están influenciadas por la literatura emblemática”, (TASENDE, 2000, p. 246).
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Somando se às artes, no conturbado período do Século de Ouro espanhol329, temos o


emblema, uma manifestação artístico-literário que enlaça imagem e texto, com o objetivo de
passar saberes a príncipes e governantes.

Nesta integração entre imagem e texto, saber e convencer, o emblema se torna um


instrumento de comunicação imprescindível no período áureo espanhol. Os trabalhos dos
emblematistas trazem à luz a importante tarefa da leitura330, num cenário em que as letras ainda
eram objeto de consumo de poucos.

Unas de las más importantes muestras de la literatura del extenso período comprendido
entre los finales del Renacimiento y el Barroco está constituida por los emblemas y
empresas, literatura nacida al amparo de un notable desarrollo de la minoría intelectual y
de la gran difusión que, por médio de la imprenta, alcanza la cultura occidental durante
el siglo XVII. (SORIA, 1975, p. 09)

Ao inserir este complexo enunciado textual no cenário de uma sociedade sedenta pelas
artes da cena – música, teatro, baile, muito mais que as visuais, proporcionada, pela atenção aos
ao texto escrito, e mais tarde impresso, e sua constante relação com os clássicos, podemos afirmar
que o emblema era produzido para e por uma pequena parcela da sociedade, que além de saber ler
e escrever podia recuperar os textos antigos.

Ahora bien, al recuperar las sentencias de la antigüedad para elaborar los lemas, la
emblemática se impone como un nuevo campo del saber humano, un campo donde
imperantes conceptos: tópica, braquilogía y taxonomía, por lo cual la joven ciencia – ars
emblemática – se estabelece en la cultura barroca como tesoro difusor de la erudicón.
(BOUZY in ARELLANO e VITSE, 2007, p. 119)

Diferentemente da música, do teatro, do baile que eram espetáculos coletivos, a cultura


do emblema exigia silêncio, concentração e saber apuradíssimo, de poucos, nessa comunidade
interpretante331, a este exercício de linguagem simbólica. Além de tudo isto, lembramos que o
acesso do latim, na sociedade áurea era também um entrave gigantesco.

329
“Los espectáculos de todo tipo adquieren en el Siglo XVII una importancia extraordinaria. No deja de ser chocante
que en una época de tan agudizada crisis social para España interior y la del Imperio la diversión y el ocio ocupen tan
privilegiado lugar en las relaciones del pueblo. Más que un contrasentido es, sin embargo, como señaló José María
Díez Borque, una constante histórica propia de las sociedades decadentes”, Jaime Lisavetzky Díez, en Ángel
Berenguer, Madrid en el teatro, 1994, p. VIII.
330
“O estudo de tais textos (textos intersemióticos que nesta altura do texto de Clüver ele denomina de estudos
culturais) requer uma competência específica, e a formação de leitores competentes para tanto (além da formação de
leitores equipados para lidar com intertextualidades interartes) é uma das funções dos estudos interartes”, (CLÜVER,
1997, p. 52).
331
Tais questões de intertextualidade preocupam-se mais com a produção e a recepção do que com os próprios textos:
os traços intertextuais que descobrimos e que nos remetem a uma miríade de pré-textos não dependem tanto do que
está “no texto”, e sim do nosso próprio repertório de textos e hábitos de leitura. Esses hábitos e convenções forma-se
nas comunidades interpretativas a que pertencemos. Um esforço académico para entender nossos hábitos de leitura
(isto é, o modo como atribuímos sentidos a textos) deverá atentar para os tipos de relações intertextuais que
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Deste modo, quando tinham acesso as obras, os homens de cultura media, liam mais
rapidamente os emblemas através da pictura, nesta integração, interessantíssima, entre texto e
imagem, fazendo, deste um tesouro difusor de saberes, com prioridades, objetivos e fins bem
delimitados, como aduz Sanchez Perez (1977):

Si estudiamos como ha sido utilizado el emblema desde un ponto “utilitário”,


descubrimos que las ventajas en el uso de mismo han sido varias. Algún autor ha dado
importancia al carácter enigmático y misterioso, otros han insistido en el carácter de
adorno, otros en las posibilidades didácticas, otros en el “juicio intelectual” o de ingenio...
Pero muy pocos se cifran en el aspecto artístico o, lo que es lo mismo, componen sus
libros de emblemas con la intención de crear una obra de arte. La armonización dibujo-
epigrama oferece, no obstante, elementos suficientes para ello. La pintura posee por sí
misma una notable capacidade expresiva; el epigrama es susceptible de encerrar en sí
toda la belleza y elegância que una poesía es capaz de alcanzar. De la conjunción
armoniosa de ambos elementos habría surgido la emoción por parte del lector.
(SANCHEZ PEREZ, 1977, p. 167-168)

No entanto, sabemos que esse tesouro não foi inventado, somente, para “educar” os
“incultos”, e informar saberes aos “cultos”. Os emblemas foram utilizados em várias áreas do
saber. “El emblema y empresas fueron también usados para la decoración simbólica de edificios.
El emblema ayudó a informar prácticamente todos los modos de la comunicación verbal y visual
durante los siglos XVI y XVII”, (PETE M. DALY in CULL e VISTARINI, 1999, p.08)

4.1 Linguagem simbólica da erudição – Legum munia urbium moenia

Fonte: Solórzano Pereira ([1953]1790)

costumamos estabelecer; quando essas relações intertextuais envolvem textos criados em outros sistemas de signos,
deve-se atentar para o modo de recepção desses tipos de textos”, (CLÜVER 1997, p.40).
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4.2 Compêndio de saberes – Posuit illudin civitate sua

Fonte: Ortí (1659)

4.3 Palavra-emblema – Civitas refugii

Fonte: Iglesia (1654)

5 CONCLUSÃO
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De qualquer modo, com ou sem a presença das teorias da cidade, no Século de Ouro
espanhol, a emblemática vale, se não intrinsecamente como obra de arte, visual e pedagógica, vele
como testemunho literário do livro como registro de interesses voltados às questões da sociedade
e, consequentemente, das políticas de condução das urbes ao patamar de cidades letradas; vale,
ainda, como documento da difusão, entre nós, da literatura emblemática com os temas assentes
nas questões de modelos de vida áureo que se alargam ao patamar da vida na sociedade atual;
vale, pois, como tesouro de consulta à história das mentalidades. Os livros de emblemas –
produzidos nos séculos áureo e reformulados no século XVIII, como o de António Campos
Novaes – servem como testamento de referência ao diálogo interdisciplinar entre literatura e
sociologia.

Podemos, pois, afirmar que o trabalho dos emblematista é uma arte produzida pela
inteligência que, através da criatividade do homem sábio áureo, contribuiu com sua arte e
sensibilidade, a instituir e constituir os parâmetros, da ordem social, tendo como eixo fulcral de
criação os saberes acumulados.

De certo modo, vários trabalhos e centenas de artigos com referências aos aspectos da
cidade – fortaleza, amuralhada, fortificada, pecadora, religiosa, vitoriosa, de refúgio, defesa do
catolicismo332, etc., – afirmam a continuidade de elementos e motivos constantemente
reatualizados dentro da tradição iconográfica em geral e na emblemática em particular. Vale
acrescentar que todos nós, profissionais das letras, necessitamos incursionar, como dialética
interior, nesse universo amplo de pesquisas que é a emblemática. Assim, foi o que pretendemos
demonstrar nesse trabalho, que teve como tema, os emblemas nos quais é percuciente e
instigadoramente validada a contribuição desta arte aos estudos culturais.

REFERÊNCIAS

ARELLANO, Ignacio & PEREIRA, Ana Martínez. Emblemática y religión en la península


Ibérica (Siglo de Oro). Iberoamericana/Vervurt, Frankfurt-am Main, 2010

332
Indicamos alguns emblemas coletados de Vistari & Cull (1999), cujos motes de ciudades estão ali marcados e
destacados, tais como: Ciudad nos. 40, 307, 308, 395, 396, 561, 910, 1095, 1202, 1234, 1258, 1525, 1549; ciudades,
no. 179; ciudad amurallada, nos. 324, 397, 398, 490, 573, 1061, 1187, 1395; ciudades en llamas, nos. 592, 1000;
ciudades sin muros, no, 1079; e muito em particular os emblemas: 1527 – Babilonia, cujo lema: ómnibus ídem (SCH
– Cent. 1, Emb. 8, f.8); 593 – Troia, e o lema: La piedad de los hijos para con los padres (Alciato, 128 na edição em
cotejo e 96 na edição de Zafra (2003, edição facsímil, ambas edições com picturas distintas). Estes emblemas e mais
o 11 do livro 3 de Juan Horozco y covarrubias nos dão uma mostra cabal da importancia e recorrência dos motivos
embelmáticos por vários autores de emblemas. E ainda, o emblema 400 – lema: Fulmen ab ore venit (Núñez de
Cepeda, Emp. 19, 303-4); emblema 281, da cidade de Sicilia, lema: Inimicus insuperabilis – (Soto, Emb. 43, f.90).
Assim, a pesquisa pode avançar com muitas outras obras e imagens de ciudades, quando levamos em consideração a
pcitura quere seja pela presenca de elementos como: igreja, praça, prédio, monumentos, palácio, ruas, etc., sirva para
concluir esta nota o emblema no. 486 sem lema, (Juan Horozco de Covarrubias, Emb. 28, Livro 3, f. 266r), donde a
imagem revela cidadãos na praça de Creta carregando sacos, supostamente cheios de suas misérias.
Página 1527 de 2230

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ZAFRA, Rafael & AZANZA, José Javier. Deleitando enseña: una colección e emblemática.
Universidad de Navarra, Servicio de Publicaciones, Pamplona, 2009.

ZAFRA, Rafael. Los emblemas de Alciato traducidos en Rimas españolas (1549). Ediciones
UIB, Universitat de les Illaes Balears, 2003.

Anexo 1
Página 1528 de 2230

Fonte: Iglesia (1654)


Página 1529 de 2230

CRISE DO CAPITALISMO E EMERGÊNCIA DA CULTURA DO


COMPARTILHAMENTO: NOVAS PRÁTICAS SOCIOECONÔMICAS E SEUS
IMPACTOS A PARTIR DE 2008 NO BRASIL

CAPITALISM CRISIS AND EMERGENCY OF SHARING CULTURE: new socio-


economic practices and their impacts from 2008 in Brazil

Railson Marques Garcez, Mestrando em Desenvolvimento Socioeconômico, UFMA.


Danielle de Queiroz Soares, Dra. Política Públicas, UFMA.
Eixo 3 – Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: O sistema capitalista está em constante e profunda reorganização, reestruturação e


reconfiguração, sendo este processo inerente à sua dinâmica. Esse fato denota, dentre outras
questões, que a sociedade vivencia uma crise estrutural do capital, bem como tentativas
incansáveis do próprio sistema capitalista em se ajustar e prolongar a sua dominação sobre o tecido
social contemporâneo. A crise de 2008 colocou em xeque a necessidade de reinvenção de muitas
economias sendo inconteste tais efeitos na cultura, uma vez que esta se mostra indissociável do
processo econômico. Como resposta ao período de crise do sistema, emergiram novas práticas
econômicas e sociais, dentre estas a Economia do Compartilhamento que, contemporaneamente,
demonstra ser uma de suas facetas mais facilmente percebida. Considerando esse panorama e as
crescentes discussões a respeito da cultura do compartilhamento, o objetivo deste artigo foi
compreender de que forma a crise se configura como elemento impulsionador para o surgimento
de novas práticas socioeconômicas e culturais e seus principais impactos.
Palavras-chave: Crise. Capitalismo. Cultura. Compartilhamento.

ABSTRACT: The capitalist system is in constant and profound reorganization, restructuring and
reconfiguration, this process being inherent to its dynamics. This fact indicates, among other
issues, that society is experiencing a structural crisis of capital, as well as the capitalist system's
own relentless attempts to adjust and prolong its domination over the contemporary social fabric.
The 2008 crisis has called into question the need to reinvent many economies, and such effects on
culture are undeniable, since culture is inseparable from the economic process. As a response to
the period of crisis in the system, new economic and social practices have emerged, among them
the Economy of Sharing, which, at the same time, proves to be one of its most easily perceived
facets. Considering this panorama and the growing discussions about the culture of sharing, the
purpose of this article was to understand how the crisis is configured as a driving force for the
emergence of new socioeconomic and cultural practices and their main impacts.
Keywords: Crisis. Capitalism. Culture. Sharing.
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INTRODUÇÃO
A dinâmica do sistema capitalista é marcada por crises estruturais e esse fato denota
que o sistema é falho em sua essência, porém, apresenta uma alta capacidade de regeneração. Essa
regeneração vem acompanhada de muitos processos de reestruturação e reconfiguração que
afetam todo o conjunto de funcionamento do sistema, principalmente na relação entre este e o
fator trabalho - uma relação historicamente determinada e de lutas. Observa-se, nesse sentido, uma
força de ajustamento que busca, sobretudo, prolongar a sua dominação sobre o tecido social
contemporâneo a partir da sujeição do trabalho e de um discurso e práticas mais neoliberais.

A crise de 2008 que eclodiu pelo estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos,
mas que afetou toda a economia global, trouxe à tona as fragilidades do sistema, a partir do então
em curso, processo de financeirização do capital. O cenário de crise estrutural e desemprego que
afeta muitas nações, tem provocado um efeito que dimana novas práticas socioeconômicas, a
despeito da Economia do Compartilhamento que tem se mostrado uma verdadeira febre mundial
e, principalmente no Brasil, considerando a atual conjuntura da economia e do mercado de
trabalho.

É por considerar esse panorama de crise estrutural, que se busca analisar, enquanto
objetivo principal desse estudo, como a crise mais recente do capitalismo contemporâneo originou
novas prática socioeconômicas, bem como os seus principais efeitos, principalmente no mundo
do trabalho a partir do surgimento e propagação, capitalizada, da Economia Compartilhada como
válvula de escape. Para buscar tais entendimento, utilizou-se o recurso metodológico teórico-
bibliográfico a partir de pesquisa em livros, artigos e publicações acadêmicas para subsidiarem a
problematização do tema em estudo.

CRISE DO CAPITALISMO NA CONTEMPORANEIDADE


Desde a gênese do modo de produção capitalista, no século XVIII, muitas
transformações aconteceram e continuam a acontecer no processo de reprodução do capital e nas
suas diferentes formas de dominação no processo de geração de valor e, sobretudo, mais-valia.
Esse processo de transformação e consequente desenvolvimento da formação econômica da
sociedade é simplesmente um processo histórico-natural (MARX, 2006).

Marx entende o movimento social pela sua particularidade que se configura como
histórico-natural e cujas implicações são diversas na intenção, consciência e vontade dos homens.
A instabilidade do próprio sistema é uma de suas facetas e que por conta de seu caráter intrínseco,
qualquer tipo de abalo promove alterações em suas forças produtivas. Em perspectiva histórica, o
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sistema apresenta-se em constante fragilidade, alternando momentos de calmaria com momentos


de turbulências. A despeito disso, é importante considerar que:

A teoria neoclássica tradicional e suas variantes mais modernas, os chamados “novos


clássicos” e “novos keynesianos”, acreditam, desde a década de 1970, que a estrutura e
dinâmica da economia capitalista, apesar de suas imperfeições, inflexibilidades e
desequilíbrios no funcionamento no curto prazo, apresenta harmonia e equilíbrio no
longo prazo (FILGUEIRAS; OLIVEIRA, 2013, p.77).

A crise do capitalismo não se mostra cíclica, mas estrutural e profunda, sendo inata do
próprio sistema, da sua própria dinâmica, e que afeta de forma mais generalizada o conjunto social
e, sobretudo, sua capacidade de adaptação para sobreviver às novas formas de controle do seu
metabolismo por parte capitalismo (MÉSZÁROS, 2000;2011). Dois pontos se mostram como
fundamentais a respeito da manifestação da crise no capitalismo contemporâneo: o primeiro, o seu
caráter inerentemente cíclico do processo de acumulação do capital e o segundo, a retórica cíclica
das crises no sistema de produção capitalista (CARCANHOLO,2011).

Reforçando, finalmente, essa lógica, entende-se que:

[...] a crise do capital que experimentamos hoje é fundamentalmente uma crise estrutural.
Assim, não há nada especial em associar-se capital a crise. Pelo contrário, crises de
intensidade e duração variadas são o modo natural de existência do capital: são maneiras
de progredir para além de suas barreiras imediatas e, desse modo, estender com
dinamismo cruel sua esfera de operação e dominação. Nesse sentido, a última coisa que
o capital poderia desejar seria uma superação permanente de todas as crises, mesmo que
seus ideólogos e propagandistas frequentemente sonhem com (ou ainda, reivindiquem) a
realização de exatamente isso. (MÉSZÁROS, 2011, p.795, grifo nosso)

Destarte, a crise representa um momento de ruptura no sistema capitalista que afeta,


de forma decisiva, os principais elementos constituintes do seu processo de produção e circulação,
colocando-os em estado de evidente perturbação e ajustamento. Crises como fenômenos
permanentes, intermitentes e cíclicos (MARX, 2006; MATTICK, 2010) ou como fenômeno
conotado de “ondas longas” na história do capitalismo (MANDEL, 1982), mostram-se
indispensáveis para a sobrevivência do próprio sistema e, portanto, inevitáveis.

A depressão é uma pré-condição da prosperidade, da mesma forma que a prosperidade


conduz à depressão, sendo, portanto, duas faces da mesma moeda. Ou seja, “a causa visível” da
crise é capacidade óbvia e consumir o que foi produzido, gerando dessa forma uma situação de
subconsumo e/ou sobreprodução que não se explicam por si próprios, contudo, devem ser
compreendidos no contexto da produção de capital (MATTICK, 2010). Segundo Mandel (1982),
o ciclo econômico consiste em movimentos ascendentes e descendentes, na aceleração e
desaceleração sucessivas da acumulação de capital, o que reforça a lógica dinâmica e cíclica de
vales e picos do sistema.
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A partir da crise mais recente, iniciada com o crash do mercado imobiliário norte-
americano de créditos hipotecários, em 2007, mas sentida com efeitos mais intensos e agudos em
2008, que se começou a observar um processo ainda mais acelerado não só de reconfiguração,
mas de reierarquização do capitalismo mundializado (CHESNAIS, 2013). Com uma arquitetura
nova, o capitalismo contemporâneo, um capitalismo mais neoliberal (FILHO 2011), tem
promovido processos de reestruturação produtiva com fortes impactos e desregulamentação,
sobretudo, do mercado de trabalho. Este age operando e reforçando, dessa forma, a sua lógica
interna de exploração e acumulação pelo aumento de mais-valia, tanto em países centrais, mas,
principalmente nos países periféricos com excesso de exército de reserva nos quais o mercado e
as condições inerentes deste encontram-se fragilizados. Sobre o processo regenerativo e ao
mesmo tempo autodestrutivo do sistema, considera-se que:

[...] o capital, como um sistema orgânico global, garante a sua dominação, nos últimos
três séculos, como produção generalizada de mercadorias. Através da redução e
degradação dos seres humanos ao status de meros “custos de produção” como “força de
trabalho necessária”, o capital pode tratar o trabalho vivo homogêneo como nada mais
do que uma “mercadoria comercializável”, da mesma forma que qualquer outra,
sujeitando-se às determinações desumanizadoras da compulsão econômica.
(MÉSZÁROS, 2000, p. 8)

A voracidade e compulsão do sistema, tem determinado e promovido experiências


cujo objetivo é promover o crescimento do próprio sistema, porém em detrimento dos
rebatimentos socioeconômicos. A economia do compartilhamento, categoria de análise nesse
estudo, mostrou-se como uma alternativa, desde que capitalizada, para difundir e disseminar o
modelo para novas e diferentes tipos de organizações dentro do sistema. Um movimento originado
e possibilitado por alguns fatores como: intenso progresso técnico a partir do surgimento e maior
disseminação das Tecnologias de Informação e Comunicações (TIC’s), da ampliação do
receituário neoliberal e do acirramento da competição intercapitalista.

NOVAS PRÁTICAS SOCIOECONÔMICAS: A CULTURA DO


COMPARTILHAMENTO
A conjuntura de crise global traz consigo importante oportunidade de reinvenção das
pessoas, de comunidades, da economia no seu sentido mais abstrato e mostra também a força
mutante do sistema capitalista em reorganizar a sua lógica de operação. Estamos em constante e
profunda mudança e sentimos, principalmente de forma cultural e socioeconômica, os efeitos
advindos com a evolução das tecnologias digitais e seus reflexos na digitalização da sociedade na
chamada Era da Inovação. Essa Era é compreendida como um novo patamar na história da
sociedade moderna e também um produto direto da significativa conectividade proporcionada pelo
crescimento e sofisticação do fenômeno da globalização. Por este fenômeno, entende-se que:
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Ocorre que a problemática da globalização se encontra ainda em processo de


equacionamento empírico, metodológico e teórico. Mais que isso, apenas começa a ser
percebida em suas implicações epistemológicas. Trata-se de uma realidade que pode ser
vista como uma totalidade em formação. Constitui-se como um jogo de relações,
processos e estruturas de dominação e apropriação, integração e contradição, soberania
e hegemonia, configurando uma totalidade em movimento, complexa e problemática.
Trata-se de um universo múltiplo, uma sociedade desigual e contraditória, envolvendo
economia, política, geografia, história, cultura, religião, língua, tradição, identidade,
etnicismo, fundamentalismo, ideologia, utopia. Nesse horizonte, multiplicam-se as
possibilidades e as formas do espaço e tempo, o contraponto parte e todo, a dialética
singular e universal. (IANNI, 1994, p.154)

A globalização não está acabada, pelo contrário, encontra-se em constante e intensa


transformação em suas várias multiplicidades. A sociedade global, assim sendo, pode ser vista
como um paradigma emergente, tanto porque encontra-se em constituição, quanto porque carece
em seu processo de determinação, de conceitos, categorias e interpretações (IANNI, 1994).
Paradigmas mais novos dimanados com a Era da Inovação transformam a relação capital-trabalho
e reforçam que o processo de desenvolvimento econômico se vincula de forma intensa às
condições em que a força de trabalho busca ajustar-se às necessidades do sistema capitalista
acompanhados em virtude do surgimento e crescimento dos processos de inovação tecnológica
(KON, 2016) que reflete sem precedentes na história da humanidade.

A emergência e a exponencialidade do progresso técnico nessa fase do capitalismo, se


reflete em modelos de negócios e discursos que colocam em debate a relação capital-trabalho,
considerando todo um um contexto estrutural de crise do sistema. Nesse sentido, surgem novas
práticas econômicas, novos delineamentos sociais a partir das novas práticas econômicas, afinal,
segundo Castells (2019, p.13), “o que nos chamamos de “economia” é constituído por práticas
humanas moldadas pelas instituições, estando práticas e instituições enraizadas em culturas
específicas...”.

O cenário de globalização333 e ao mesmo tempo de crises recorrentes do sistema,


despertam a capacidade de criação e ajustes à nova realidade marcada por quedas das taxas de
lucros e uma massa crescente de desempregados no capitalismo global. As pessoas e comunidades
resolvem usar com mais intensidade a prática da colaboração e do compartilhamento, uma prática
antiga e que faz parte da história do homem, para sobreviver a esse ambiente fragmentado pela
crise. Nesse sentido:

“A crise foi acompanhada por uma expansão notável das economias alternativas [...].
Elas são “alternativas” porque, de uma maneira ou de outra, em menor ou maior extensão,
desafiam os princípios básicos da produção capitalista, como propriedade privada,
trabalho assalariado e produção para troca.” (CASTELLS, 2019, p. 61)

333
“Da globalização da crise passamos à crise da globalização” (BRAGA, 2017, p.21)
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Ou seja: a crise aflora um sentimento mais comunitário e o poder que as redes podem
proporcionar como um movimento de resposta à conjuntura. As mudanças radicais de consumo
entre os séculos XX e XXI, ou seja, de um hiperconsumo e discurso de posse, a um consumo mais
colaborativo e um discurso de acesso (SUNDARARAJAN, 2018), promoveram novos ideais
sobre os rumos da economia e os ditames sui generis da lógica capitalista. Sobre isso é importante
ressaltar que:

O movimento de redes econômicas alternativas pode ser pensando como um


contramovimento, num sentido polanyiano, à mercantilização; uma alternativa de
“resgatar” e desmercantilizar o trabalho, a natureza ou o dinheiro, aumentando a
diversidade da economia e, em consequência, estabelecendo estruturas novas e
resilientes, alternativas à economia do dinheiro, propensa à crise. A saída da economia
tradicional que se expressou nas práticas alternativas foi tanto física, no sentido de cessar
de produzir, consumir e trocar visando ao lucro dentro do mercado, como também
cognitiva, baseada numa compreensão diferente do que é a economia e de como ela
funciona (CASTELLS, 2019, p.61-62)

No entanto, apesar da crise ter despertado o interesse da sociedade pelo


desenvolvimento de novas práticas econômicas, estas estão eivadas de vícios e de distopias como
é o caso do Economia do Compartilhamento. Mas o que é essa economia do compartilhamento?

A economia do compartilhamento é uma onda de novos negócios que usam a internet


para conectar consumidores com provedores de serviços para trocas no mundo físico,
como aluguéis imobiliários de curta duração, viagens de carro ou tarefas domésticas. Na
crista desta onda estão Uber e Airbnb, cada um com mostrando um crescimento
vertiginoso para sustentar a alegação de que estão desbancando as indústrias tradicionais
de transporte e hotelaria. Essas duas são seguidas por um batalhão de outras companhias,
que competem para se juntar a elas no topo do mundo da Economia do
Compartilhamento. Seus defensores em algumas ocasiões descrevem a economia do
compartilhamento como um novo tipo de negócio. Em outras, como um movimento
social. Seria uma mistura afetiva de comércio com causa no mundo digital. (SLEE, 2017,
p. 21)

Essa realidade parte do entendimento que o compartilhamento trata-se de uma forma


de intercâmbio social que se dá entre pessoas conhecidas umas das outras sem considerar nenhum
tipo de lucro, porém, quando o processo de “partilhar” é mediado pelo mercado, ou seja, quando
existe uma empresa intermediária entre consumidores que não se conhecem, o conceito de
partilhar já não pode ser entendido em sua completude. Nesse caso, os consumidores pagam para
ter o acesso a bens ou serviços que pertencem a outras pessoas por um tempo determinado
(ECKHARDT; BARDHI, 2015). Sobre isso, Tom Slee assevera que:

Existe uma contradição em torno do nome “Economia do compartilhamento” (sharing


economy). Nós pensamos no compartilhar como uma interação social, entre iguais, sem
caráter comercial. O conceito de “compartilhamento” sugere trocas que não envolvem
dinheiro, ou que são ao menos motivadas por generosidade, pelo desejo de dar ou de
ajudar. “Economia” sugere trocas de mercado – a autocentrada troca de dinheiro por bens
ou serviços. Já houve muito debate sobre se “Economia do Compartilhamento” é o nome
correto a se usar para descrever esta onda de negócios, e um bocado de outros nomes
foram aventados: consumo colaborativo (collaborative consumption), economia em rede
(mesh economy), plataformas igual-para-igual (peer-to-peer plataforms), economia dos
bicos (gig economy), economia da viração, serviços de concierge, ou – um termo cada
vez mais usado – economia sob demanda (on-demand econonomy) (SLEE, 2017, p.24)
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Destarte, o que se entende é que a ideia seminal de compartilhar transmuta-se em um


processo de mercadorização e mercantilização, típica do sistema capitalista que se consolida em
diversos tipos de economia. A economia do compartilhamento, nesse sentido, é vista não como
uma prática social, mas puramente uma troca econômica na qual seus usuários buscam um valor
de utilidade e não um valor social (ECKHARDT; BARDHI, 2015).

A economia compartilhada (sharing economy) ou capitalismo de multidão (crowd-


based capitalism), pode ser definido como um fenômeno contemporâneo, um sistema econômico,
que possui cinco caraterísticas fundamentais: 1 - é amplamente voltada ao mercado, ou seja, a
economia do compartilhamento cria mercados e atiça novas atividades econômicas; 2- é composta
de capital de alto impacto, ou seja, a partir dela novas oportunidades abrem-se com perspectivas
de mais plenitude em relação à utilização de recursos (pessoas, objetos, dinheiro, tempo, etc.); 3
– utiliza e atua sob redes de multidão, ou seja, existe oferta de mão de obra para realizarem as
trocas; 4 – indefinição entre as fronteiras do profissional e do pessoal, ou seja, a dinâmica peer-
to-peer torna-se realidade para comercializar e mensurar atividades; e por fim, 5- fragmenta a
fronteira existente entre o emprego pleno e casual, entre relação de trabalho com ou sem
dependência, entre trabalho e lazer, ou seja, há uma substituição de empregos integrais por outros
mais flexíveis (SUNDARARAJAN, 2018).

Ainda há muita nebulosidade em torno desse novo formato de economia. Promessas


como ajudar indivíduos em situação de vulnerabilidade a tomar controle de suas vidas a partir do
microempresariamento e ser uma alternativa sustentável para o comércio de grande circulação, a
partir do eficiente de recursos, antes subutilizados, estão no script da retórica do movimento
(SLEE, 2017). A economia do compartilhamento promete muitas coisas, porém, é falha nessas
promessas que não extrapolam o discurso midiático. Além dessa contradição em relação à
essência, a economia do compartilhamento tem trazido para a arena do debate as consequências
da utilização indiscriminada do termo para vender um ideário de flexibilidade e liberdade.

O capitalismo e seu caráter endógeno de exclusão, utilizam as tecnologias e inovações


para continuar promovendo, de forma disfarçada, a sua hegemonia sobre o processo e os meios de
produção. Essa realidade:

[...] Em vez de trazer uma nova fase de abertura e confiança pessoal às nossas interações,
está criando uma nova forma de fiscalização, em que os prestadores de serviços devem
viver com medo de delatados pelos clientes. [...] Em vez de libertar indivíduos para que
tomem controle direto sobre suas próprias vidas, muitas companhias da Economia do
Compartilhamento estão dando fortuna a seus investidores e executivos criando bons
empregos para seus engenheiros de programação e marqueteiros, graças à remoção de
proteção e garantias conquistadas após décadas de luta social e graças à criação de formas
de subemprego mais arriscadas e precárias para aqueles que se fato suam a camisa.
(SLEE, 2017, p.23-24)
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Assim sendo, o sistema capitalista, estrategicamente, lança mão das tecnologias e das
inovações para aproximar mais e mais áreas da vida social à sua órbita e caso não haja
confrontação à essa investida o que ocorrerá é uma opressão ainda maior sobre o trabalhador
(HUWS, 2017). Segundo Antunes (2019, p.20), “esses contingentes mais proletarizados,
especialmente no setor de serviços, participam cada vez mais (direta ou indiretamente) do
processo de valorização do capital”. A despeito disso, considera-se que:

Com o uso das novas tecnologias, o emprego se torna mais fragmentado. O trabalho tende
a se tornar cada vez mais flexível, tanto nas remunerações (concorrência dos baixos
salários asiáticos e efeitos da precariedade sobre os salários) quanto na polivalência das
tarefas, sem que as possibilidades de mobilidade social sejam suficientemente satisfeitas
em caso de demissão, sobretudo, para os assalariados das pequenas e médias empresas.
Em casos extremos, o trabalhador se torna seu próprio empregador e perde não apenas
sua liberdade, mas também seu sentimento de pertencer a um grupo. Ele fica sozinho
diante de obrigações que lhe escapam, que ele não domina: a nuvem e o big data. Ele se
“uberiza” (SALAMA, 2017, p.158)

A face contemporânea da Economia do Compartilhamento é ilustrada pelos


aplicativos em sua maioria de transporte e alimentação, um reflexo das mudanças de paradigmas
nos modelos de gestão, associadas ao progresso técnico e às mudanças nos comportamentos
socioeconômicos, principalmente quanto as mudanças no mundo do trabalho que tem passado por
um processo contemporâneo chamado “uberização”.334

A UBERIZAÇÃO DO TRABALHO E IMPACTOS SOCIOECONÔMICOS

As crises periódicas do sistema capitalista têm avultado, de maneira profunda,


oportunidades especiais de restruturação, principalmente no que diz respeito a experimentações
de formas cada vez mais sofisticadas de exploração da força de trabalho quanto ao seu uso e
remuneração (POCHMANN, 2016). O que se verifica no mundo do trabalho diante do capitalismo
contemporâneo é uma alteração na forma como o trabalho é visto e na sua manifestação enquanto
atividade social, a qual sofre um processo contínuo flexibilização e, consequentemente,
precarização.

De acordo com Antunes (2015, p. 123-124) a classe trabalhadora vem sofrendo


profundas mutações, tanto nos países centrais, quando no Brasil, o que pode ser entendido como
nova polissemia do trabalho, ou seja, uma nova morfologia, uma nova forma de ser, cujo elemento
mais visível é seu desenho multifacetado, resultado das mutações do capitalismo que, “em escala

334
Trata-se de um neologismo que usa, como raiz, a denominação da empresa de serviços de transporte, UBER, para
fazer referência a um novo padrão de reorganização produtiva e do trabalho.
Página 1537 de 2230

global, redesenha novas e velhas modalidades de trabalho – o trabalho precário – com o objetivo
335
de recuperar as formas econômicas, políticas e ideológicas da dominação burguesa” nas últimas
décadas.

A atual fase do capitalismo, um capitalismo digital-informacional financeiro


(ANTUNES, 2019), e a utilização do discurso que utiliza a inovação como justificativa, tem
delineado uma outra economia. O exército de reserva disponível e o contingente de trabalhadores
dispostos a acatar o discurso de inovação, mascaram as práticas flexíveis e precárias, endossando
o projeto capitalista de dominação e a ampliação de sua reprodução no espaço supranacional. Tem-
se esse cenário como novo padrão de desenvolvimento das formas de trabalho, que se fundam no
caráter precário e flexível. As investidas do capital e sua expansão feroz provocam verdadeiras
alterações sísmicas na divisão do trabalho (HUWS, 2017).

O vazio provocado pela desindustrialização e pelo advento da sociedade do serviço,


complementado com investidas e expansão do receituário neoliberal, tem trazido, nesse século,
dilemas e perspectivas novos em relação ao processo de mudança estrutural no mundo do trabalho
(POCHMANN, 2018). As oscilações de mercado, o crescimento econômico de setores
específicos, o humor de investidores e acionistas, bem como a dinâmica dos fluxos globais de
capitais tornam essas forças incontroláveis pelo trabalho, e que, sobretudo, o enfraquecem,
tornando-o suscetível e incerto (BENDASSOLLI, 2007). Segundo Salama (2017, p.151) “a
revolução digital transforma profundamente, nos dias de hoje, os comportamentos das empresas,
seu ambiente, os modos de consumo, e modifica a estrutura dos empregos e dos salários nos ramos
em que atua”.

Os principais movimentos que estão promovendo a desestabilização do trabalho


dentro do desenvolvimento do sistema capitalista assentam-se no elevado progresso técnico
observável pelo aumento do acirramento da competição intercapitalista, assim como pelo papel
do Estado no que tange à regulação do trabalho frente aos anseios e imposições do capital.
(POCHMANN, 2018). No entanto, Rifkin (2003) acentua que o processo de mudança tecnológica
diferentemente do que se havia defendido pelos teóricos da produtividade, não trouxe maiores
níveis de emprego, acentuando além disso o baixo poder aquisitivo que teria se alargado devido
aos diferentes níveis de desemprego tecnológico aplicado verificado na maioria dos países
industrializados.

É preciso destacar que a escalabilidade desse processo só é possível graças ao notável


desenvolvimento tecnológico em termos de softwares (os aplicativos) e hardwares (os

335
Id. Infoproletários. Boitempo Editora, 2009. p.233.
Página 1538 de 2230

dispositivos). As manifestações que promovem alterações, estão associadas ao progresso técnico


e ao potencial das inovações em invadir e determinar novas formatações laborais dentro do novo
capitalismo informacional-digital-financeiro. Evidentemente, a introdução das TIC’s não
objetivam abolir o trabalho, mas, pelo contrário, discipliná-lo e barateá-lo, dando forma a um novo
de tipo de fenômeno social e feição a esse trabalhador da Era da Inovação denominado de
cybertariado (HUWS, 2017). A economia do compartilhamento emerge nesse cenário como uma
força global massiva conectando, a partir de pontes digitais, pessoas que oferecem e que buscam
serviços, construindo assim, processos extrativos a partir das interações sociais (SCHOLZ, 2016).

Tais pontes digitais, foram e são possíveis, e se intensificam, graças ao notável


desenvolvimento técnico que está por trás da digitalização da economia cujos fatores que moldam
a nova economia são principalmente: a metamorfose de coisas em informações, ou seja, a
representação digital da informação; o crescimento exponencial do hardware, da banda larga, do
armazenamento e a miniaturização dos dispositivos digitais; e por fim, o aumento sustentado da
programabilidade (SUNDARARAJAN, 2018). De acordo com Pochmann (2016) é grande a
generalização da uberização do trabalho nesse início de século, bem como o avanço de uma a
gama de experimentos desse “método” no espaço supranacional, porém à margem da regulação
nacional de trabalho. Entretanto, é preciso compreender que:

A realidade é que as novas relações de trabalho têm um perfil diferente. É possível


trabalhar integrado em um sistema de teletrabalho, conectado online, ou em um sistema
que sequer necessita da presença física em qualquer país. Este mundo global não tem
mais a presença dos elementos que caracterizam a relação de emprego ou as
características do trabalho por conta própria na modalidade de prestador de serviços,
porque a funcionalidade do trabalho e da empresa descentralizados existe para facilitar o
processamento da produção objetivando lucro, rapidez e eficiência em todas as
circunstâncias. (ORLANDINI, 2019, p.250)

A flexibilidade336, nesse sentido, ganha força com crises econômicas e sociais (DAL
ROSSO, 2017), ou seja, em substituição à contratação tradicional, mais onerosa, e menos
competitiva, e diante da emergência do emprego flexível, que representa uma lógica de custos
mais interessante ao capitalismo, assiste-se uma intensificação e tendência do emprego flexível se
tornar o modelo de contratação vigente (PICCININI; OLIVEIRA; RUBENICH, 2006). A
intensificação do trabalho337, bem como ganhos minimizados, mecanismos da engenharia do
capital, constituem-se em elementos centrais da informalização do trabalho, que, ao ampliar o seu

336
Segundo Holzmann (2006, p.71), a flexibilidade tem representado precarização da vida e do trabalho dos
trabalhadores, aumento da insegurança, perda de direitos e benefícios conquistados em lutas históricas
337
O trabalho mais intenso consome mais energias do funcionário com vistas a obter maiores ou melhores resultados,
razão pela qual alguns autores passaram a denominar a intensificação de aumento da carga de trabalho. (DAL ROSSO,
2008, p.197)
Página 1539 de 2230

processo de valorização, desencadeia um importante elemento propulsor338 da precarização do


trabalho (ANTUNES, 2018).

Destarte, não há nada de moderno ou benéfico na economia do compartilhamento. O


que há na verdade, é uma atualização, através das tecnologias digitais, da precarização do trabalho
nesse capitalismo contemporâneo. Destaca-se que:

[...] além da era industrial representar apenas um piscar de olhos da história humana,
outras formas de troca, comércio e emprego associadas à economia compartilhada não
são nenhuma novidade. As tecnologias digitais na atualidade estão nos levando a
comportamentos familiares como compartilhamento, emprego autônomo e formas de
trocas dentro das comunidades que já haviam existido no passado. Tal aspecto sem
ineditismo, tanto na natureza das atividades, quanto na forma de trabalho, é importante
porque o formato aprimorado de algo que já nos é familiar ganhará adoção generalizada
muito mais rapidamente, além de ter um impacto econômico muito maior do que as
experiências de consumo ou modelos de emprego completamente inéditos
(SUNDARARAJAN, 2019, p.29).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O capitalismo contemporâneo enquanto resultado das metamorfoses e reflexo das
inovações é reflexo de um cíclico processo de reconfiguração que se expressa mais decisivamente
nos modos de produção pelo qual o sistema opera. A economia do compartilhamento, travestida
de “uberização”, representa uma realidade irreversível na economia. É importante analisar e,
sobretudo, compreender até que ponto, ou seja, qual é o limiar, para a adesão desse novo modelo
de economia e de utilização do trabalho, bem como os impactos da utilização dessas novas formas
de se construir negócios na precarização do mercado e da força de trabalho no Brasil, já calejada
por uma forte tendência de intensificação, flexibilização precedente ao movimento de uberização
da economia.

A reconfiguração tecnológica do trabalho vem carregada consequências severas


como: eliminação de funções, modelos de negócios e empresas que deixam de ser necessárias;
criação de novas funções e novos modelos de negócios, a partir de novas tecnologias que agregam
valor; e por fim, transformações sociais, que são reflexos diretos das consequências anteriores. As
transformações sociais, principalmente no âmbito do trabalho, são as mais discutidas na arena do
debate contemporâneo.

É necessário, portanto, pensar e refletir o fenômeno inovativo da uberização a partir


de seus impactos sociais, na formação de uma cultura e na identidade do trabalhador diante de um
cenário de crise estrutural. Pode-se também, pensar sob o espectro de uma modelo que atualiza o

338
O capitalismo operando em escala global ao criar cooperativas falsas como forma de precarizar ainda mais os
direitos do trabalho, quando não a sua destruição.
Página 1540 de 2230

formato de exploração da força de trabalho e assim, tem-se uma moderna precarização do trabalho
que se realiza a partir de dispositivos móveis, plataformas digitais, de agendas virtuais de trabalho
e de uma carga excessiva de trabalho “compartilhado”.

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Página 1543 de 2230

O PAPEL DA ODONTOLOGIA NA EDUCAÇÃO EM SAÚDE BUCAL, UMA


DISCUSSÃO NO CONTEXTO DE UMA UNIDADE DE SAÚDE

THE ROLE OF DENTISTRY IN EDUCATION IN ORAL HEALTH, A DISCUSSION IN


THE CONTEXT OF A HOSPITAL UNIT

Clayton Gabriel Pavão Ferreira


Graduando do Curso de Odontologia
Instituto Florence de Ensino Superior.
hpavao2000@yahoo.com.br

Margareth dos Santos Fonseca


Mestra em Gestão da Educação Básica, UFMA
Coordenadora do Projeto ABC Nefro
Profa da Rede Pública Municipal de Ensino do MA.
margarethfonseca1@hotmail.com

Heridan de Jesus Guterres


Orientadora. Doutora em Informática na Educação (UFRGS). Mestra em Saúde e Ambiente
(UFMA)
Docente do Curso de Letras Libras/UFMA
hguterres@hotmail.com

Eixo 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: O trabalho ora proposto, visa discutir a saúde bucal do paciente renal crônico, por
meio do diálogo entre a odontologia e a educação, tendo como locus um centro de nefrologia de
um hospital de média e alta complexidade na cidade de São Luís, Maranhão, a fim de elencar as
patologias bucais mais comuns aos pacientes com DRC e que medidas podem ser adotadas no
sentido de prevenir alguns problemas bucais que emergem nesse contexto, considerando o
currículo da área de ciências, de modo mais específico em relação à saúde bucal. A metodologia
adotada é a pesquisa qualitativa, de natureza descritiva, onde por meio da pesquisa bibliográfica
e de campo se apresentam os dados colhidos na pesquisa ainda em andamento, mas que evidencia
que faltam maiores informações sobre a saúde e higiene bucais, em uma perspectiva educacional.

Palavras-chave: Sociedade. Educação. Doença Renal Crônica. Saúde Bucal.

ABSTRACT:The work now proposed, aims to discuss the oral health of chronic kidney patients,
through the dialogue between dentistry and education, having as locus a nephrology center of a
medium and high complexity hospital in the city of São Luís, Maranhão, Brazil. in order to list
the most common oral pathologies for patients with CKD and what measures can be taken to
prevent some oral problems that emerge in this context, considering the science curriculum, in a
more specific way in relation to oral health. The methodology adopted is qualitative research, of
a descriptive nature, where through the bibliographic and field research the data collected in the
research still in progress are presented, but which shows that more information about oral health
and hygiene is lacking, in an educational perspective.
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Keywords: Society. Education. Chronic Kidney Disease. Oral Health.

1 INTRODUÇÃO
A sociedade atual vem passando por modificações de diferentes ordens, que fazem
com que mudem as concepções acerca do papel das profissões e dos espaços. Nesta acepção, o
espaço hospitalar vem sendo percebido para além da atenção e cuidado com a saúde humana, em
uma perspectiva de cura de patologias. Ao contrário, este considera a pessoa em tratamento em
sua totalidade, o que faz com que se considere outros aspectos ou áreas, tais como a educação e a
odontologia, por meio de um diálogo interdisciplinar que visem à recuperação e ao bem-estar do
paciente em tratamento, assim como a prevenção das doenças e patologias, tais como a doença
renal crônica.

Dados do IBGE (ano) apontam que existem em níveis mundiais, mais de três milhões
de pessoas com DRC, um aumento potencial de aproximadamente 8% por ano. No Brasil, esse
número é grande, sendo que aproximadamente 100.500 pacientes fazem hemodiálise, o que os
leva a ter uma redução na qualidade de vida, agravada pelo envelhecimento e tempo de tratamento.
(SETTE; ABENSUR, 2010).

Considerando assim, que o paciente, vítima de doença renal crônica, doravante DRC,
é, via de regra acometido por outras patologias, como problemas de saúde bucal, entre outras, o
que faz com que o profissional dentista e o educador tenham extrema importância em relação aos
cuidados e trabalho educativo para com o paciente em tratamento da DRC.

O paciente portador da doença renal crônica, precisa de um olhar diferenciado e equipe


multiprofissional, fazendo com que este tenha atendimento integral. Dessa forma, o cirurgião-
dentista é fundamental na conduta do tratamento geral desse paciente e, tendo em vista o grande
contingente de pessoas com doença renal crônica, vale lembrar que o cirurgião-dentista precisa
estar preparado e embasado a respeito dessa patologia, acompanhando as alterações principais que
são frequentes em pacientes com esse problema e alterações secundárias.

O trabalho ora apresentado teve como espaço um centro de nefrologia de um hospital


de média e alta complexidade na cidade de São Luís, Maranhão, tendo como objetivos enumerar
as patologias bucais que costumeiramente acometem pacientes com DRC; enumerar que medidas
podem ser adotadas no sentido de prevenir alguns problemas bucais que emergem nesse contexto,
considerando o currículo da área de ciências, de modo mais específico em relação à saúde bucal.
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No que concerne à metodologia adotada, trata-se de uma pesquisa qualitativa, de


natureza descritiva, tendo como base a pesquisa bibliográfica e de campo. Nela se apresentam os
dados colhidos na pesquisa ainda em andamento, mas que evidencia que faltam maiores
informações sobre a saúde e higiene bucais, em uma perspectiva educacional.

A relevância do tema discutido está em desvelar que aspectos devem ser observados,
do ponto de vista da saúde bucal, de pacientes com DRC, assim como, identificar de que forma as
doenças que acometem esses pacientes podem ser tratadas e mesmo combatidas, a partir de um
trabalho onde a saúde e a educação dialoguem entre si.

2 SAÚDE BUCAL NO CONTEXTO DA DRC

Hábitos de higiene são ensinados desde a mais tenra idade e, no que diz respeito à
saúde bucal, atividades como a escovação dos dentes são muito importantes, a fim de se evitar
problemas como cáries, bastantes comuns na vida de crianças e adultos. Escovação dos dentes
não são o único hábito para que se tenha uma boca saudável.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde bucal ocorre quando
a pessoa não apresenta:

[...] dores, desconfortos e alterações na boca e na face, abrangendo as condições de


câncer oral ou na garganta, infecções e ulcerações bucais, doenças e quaisquer distúrbios
que possam afetar a qualidade de vida, impedindo que o paciente coma, sorria, fale ou se
sinta socialmente confortável.

É então abrangente o cuidado com a boca, considerando que sua presença além do
bem-estar natural de um corpo bem cuidado, para além da estética e do ponto de vista social, este
é essencial para a saúde do indivíduo, pois a boca exerce importantes funções na saúde, razão
porque entre os hábitos de higiene a serem trabalhados, está a questão da saúde bucal. Idem (p.3)
chama a atenção para o fato de que um quantitativo bastante grande de brasileiros não é adepto de
hábitos frequentes de limpeza dos dentes:

Enquanto o fio dental, escova e creme dental são usados por apenas 53% da população,
segundo pesquisas do IBGE, 89% realiza a higienização menos de 2 vezes por dia. Os
dados refletem um sério problema que está relacionado não apenas às cáries ou mau
hálito. Muitos ainda desconhecem, mas a falta de cuidados com a saúde bucal pode trazer
danos a todo o organismo.
Página 1546 de 2230

Observa-se assim, que a despeito de todo e qualquer cuidado em relação à saúde bucal,
tema trabalhado no contexto da educação formal, desde os primeiros anos de escolarização, nem
todas as pessoas tratam da higiene bucal de forma adequada, chamando-se a atenção para o fato
de que se indivíduos saudáveis têm dificuldade em cuidar da própria boca, quando doentes, estes
cuidados caem ou são negligenciados potencialmente. A grande maioria dos pacientes com DRC
têm uma higienização bucal deficiente, que junto a fatores sistêmicos provenientes da doença,
impulsionam o aparecimento de outras patologias bucais.

A higienização bucal precária eleva o acúmulo de biofilme e placa bacteriana. Esses


dois fatores são importantes na evolução de doenças bucais, como: cárie e doença periodontal. É
importante então, o contato entre o dentista e o médico que acompanha o paciente, afim de
informar a natureza do tratamento odontológico e os fármacos que serão administrados. Segundo
Daugirdas (2011), citado por Castro et al (2017, p. 307):

A DRC é uma complicação fisiopatológica de causa variável e produto da deterioração


prolongada e irreversível da função renal, resultando no declínio progressivo da taxa de
filtração glomerular (TFG) para menos de 60 ml/min/1,73 m² e destruição dos néfrons,
num período de três meses. Ela pode levar à doença renal terminal, a qual a perda da
função renal é irreversível, necessitando de terapia de reposição permanente (diálise ou
transplante de rim) para evitar a uremia, ou seja, evitar o acúmulo de substâncias no
sangue que deveriam ser filtradas e excretadas pelos rins.

A DRC é vista como um grande problema de saúde pública, sendo uma das principais
causas de morte e de incapacidade. Sua incidência vem crescendo em brasileiros devido ao
aumento de pacientes hipertensos e diabéticos e pelo envelhecimento da população5-7.

No que concerne à DRC, esta se caracteriza, de acordo com Castro et al (2017, p. 308-
309) pela:

[...] pela perda lenta, progressiva e irreversível da função renal ou destruição dos néfrons,
podendo levar o paciente a um quadro de síndrome urêmica, devido ao aumento de
substâncias tóxicas no sangue que surgem pela incapacidade dos rins de desempenhar a
filtração glomerular, sem contar com a sua deficiência na produção de eritropoietina.

Inúmeros são, pois, os problemas que acometem o paciente com DRC, entre estes,
problemas bucais, resultantes da própria doença em si ou mesmo decorrentes das terapias
realizadas ao longo do tratamento de uma DRC.

Xie T, Yang Z, Dai G, Yan K, Tian Y, Zhao D et al. (2014) comentam acerca da
redução das idas ao dentista, especialmente por aqueles que fazem hemodiálise, o que potencializa
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maus hábitos de higiene e acometimento de lesões que, caso não tenham um tratamento adequado,
tendem a agravar o quadro do paciente e até mesmo o prognóstico da enfermidade.

3 RESULTADOS E ANÁLISES DOS DADOS

O doente renal crônico apresenta quadro de anemia e alteração do estado imunológico


alterado, que associado ao uso contínuo de medicamentos com ação antiplaquetária influenciam
diretamente na qualidade da saúde bucal. A maioria dos participantes deste estudo em
desenvolvimento, é oriunda do interior do Estado em áreas que não dispõem do adequado
atendimento da equipe de Estratégia da Saúde da Família e Saúde Bucal.

A presença do profissional odontólogo na equipe multiprofissional dos centros de


nefrologia é condição precípua no sentido de viabilizar o diagnóstico nos primeiros sinais de
alterações bucais nos pacientes. Segundo Sonis; Fazio; Fang (1996), várias situações bucais estão
diretamente associadas à insuficiência renal crônica. São bastante comuns a gengivite aguda e a
periodontite.

Outro fator, destacado é o uso de antibióticos para evitar infecção intravascular, a


exemplo – a tetraciclina (muito usada) e ainda os medicamentos com ações antiplaquetárias
(PRADO; HOHN; ALBUQUERQUE, 2004).

A fim de coletar dados a subsidiar a pesquisa ora em andamento, cujos objetivos são
identificar o uso de serviços odontológicos por indivíduos com Doença Renal Crônica (DRC) em
tratamento hemodialítico em uma Unidade de Saúde do Sistema Único de Sáude (SUS), elencando
as patologias bucais mais comuns aos pacientes com DRC e que medidas podem ser adotadas no
sentido de prevenir alguns problemas bucais que emergem nesse contexto, considerando o
currículo da área de ciências, buscou-se contato com o grupo de educação que integra um projeto
de extensão desenvolvido na unidade hospitalar, que atende pacientes com DRC, que fazem
hemodiálise na unidade.

O projeto em referência, trabalha com jovens e adultos, mais especificadamente com


alfabetização e aceleração escolar. Segundo dados coletados, os alunos-pacientes são atendidos
nas salas de hemodiálise da unidade hospitalar, em três dias por semana, em um trabalho cuja
premissa é a integração entre professores, coordenação do Projeto e equipe multidisciplinar que
ali desenvolve suas atividades voltadas para a saúde dos pacientes.

Buscou-se também, uma aproximação com 15 indivíduos, de ambos os sexos e com


idade superior a 18 anos, em atendimento no serviço de hemodiálise, onde a partir da aplicação
Página 1548 de 2230

de entrevista semiestruturada buscar-se respostas para questões que vão desde suas percepções
sobre o que seria a saúde bucal, que doenças lhes acometem e em que medida estas têm relação
com a DRC.

Foram coletados dados socioeducaionais, sobre higiene bucal e acesso ao serviço


odontológico. Um único examinador realizou o exame clínico intrabucal, segundo os
entrevistados.

Entre os resultados já coletados, aponta-se que a maioria dos participantes é do sexo


masculino (60%), com baixo nível de escolaridade (50%) e renda (70%). A doença de base tem
como predomínio a hipertensão arterial sistêmica (70%) e o diabetes mellitus. Em relação à
autopercepção dos problemas bucais, os participantes relataram com maior frequência a
xerostomia (55%), que diz respeito à baixa produção de saliva, seguida de halitose (30%), que
favorece a deposição de micro-organismos na boca e no caso da DRC está relacionado à diabetes.

Observou-se preliminarmente, a ocorrência de outras manifestações bucais, a


gengivite, que é a inflamação da gengiva que fica ao redor dos dentes, provoca sangramento,
assim como, a presença de cálculo dentário, mineralização da placa bacteriana ou biofilme
maduro, como prevalentes, com 66,2% e 56,2%, respectivamente e um caso de tumor marrom,
que é um HPT secundário e se constitui uma das complicações da insuficiência renal crônica. O
hormônio paratireoidiano é produzido em resposta a uma diminuição dos níveis séricos de cálcio,
situação decorrente da doença renal crônica.

A maioria dos indivíduos afirma não utilizar atendimento odontológico na rede


pública de saúde e que no município de origem não há cirurgião-dentista preparado para atender
e explicar o tratamento necessário.

Como resultados preliminares, ficou evidenciado que as principais alterações bucais


identificadas foram xerostomia, halitose, cálculo dentário e gengivite, e que a maioria dos
indivíduos tem dificuldade no acesso ao serviço odontológico público de saúde.

4 CONCLUSÃO

Com base na literatura pesquisada e discutida, relacionada ao atendimento


odontológico do paciente com IRC em tratamento de hemodiálise, bem como na pesquisa
realizada, conclui-se, ainda que preliminarmente que:
Página 1549 de 2230

A DRC é uma patologia cujo crescimento vem chamando a atenção das autoridades e
estudiosos que atuam no atendimento à saúde humana, em razão desta acometer um preocupante
quantitativo, tanto em termos mundiais, como nacionalmente, como é o caso do estado brasileiro.

A doença é responsável por um alto índice de mortalidade e internações, sendo a


hemodiálise o tratamento mais comum e bastante oneroso aos cofres públicos. No que diz respeito
à questão da saúde bucal, há uma relação bastante direta entre a enfermidade e a falta de cuidados
com a higiene bucal, o que vem causando o surgimento de patologias relativas ao trato bucal.

A abordagem odontológica inicial é de grande importância, pois o cirurgião-dentista


pode investigar através da anamnese os aspectos influenciam no estado de saúde do paciente; o
atendimento odontológico seguro, requer um plano de tratamento e a troca de informações com o
médico nefrologista que acompanha o paciente.

As complicações associadas à IRC devem ser consideradas com rigor, visto que muitas
vezes são elas que determinam o tratamento odontológico do paciente; é importante que o
cirurgião dentista esteja atento a problemas médicos que possam apresentar algum risco à
segurança do tratamento odontológico dispensado só paciente, sendo fundamental que o
profissional da odontologia esteja inserido nas equipe multiprofissional da nefrologia de modo a
prestar uma assistência à saúde bucal de qualidade, aos pacientes com DRC em tratamento
hemodialítico, assim como, conhecer sobre a doença de base e a condição de saúde geral do
paciente.

Foi evidenciado, a necessidade de um trabalho educativo de caráter interdisciplinar,


com linguagem acessível e que aborde questões básicas para o autocuidado dos pacientes com
insuficiência renal crônica. O que implicou, no redimensionamento dos objetivos desta pesquisa
em desenvolvimento.

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Página 1551 de 2230

ESCULPINDO MADEIRA, ENTALHANDO MEMÓRIAS: ARTESANATO NO


CENTRO DE CULTURA POPULAR MESTRE NOZA339

CARVING WOOD, CARVING MEMORIES: CRAFTS IN THE CENTER OF


POPULAR CULTURE MESTRE NOZA

Elianara Kelly Santos Bezerra, Graduanda,


Universidade Federal do Cariri
Daniela Maria Alves Daniel, Graduanda,
Universidade Federal do Cariri
Vitória Gomes Almeida, Doutoranda
Universidade Federal do Cariri
Germano Araújo Sampaio, Mestre,
Universidade Federal do Cariri
Deise Santos do Nascimento, Doutora,
Universidade Federal do Cariri

Eixo 3 – Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: Reflete sobre o artesanato como expressão cultural popular, abordando a discussão
de identidade cultural, a partir da cidade de Juazeiro do Norte-CE, localizada na região sul do
Estado do Ceará. Essa cidade, destaca-se como um centro de peregrinação religiosa no nordeste
do Brasil, tendo na figura histórica o Padre Cícero Romão Batista seu maior expoente. As
romarias, característica do catolicismo popular existente na cidade, fomentaram a circularidade
da cultura através da interação das diferentes identidades culturais que para lá confluem, através
dos romeiros, artistas, pesquisadores, artesãos e empresários, todos que visitam a cidade. Para
além da figura do Padre Cícero, destaca-se na região do Cariri Cearense um território marcado
pela presença da cultura negra, indígena e paleontológica, assim como pela biodiversidade da
Chapada do Araripe. Assim sendo, nesse território em que a circularidade das culturas se
faz presente numa troca contínua, a presente pesquisa coloca-se com o intuito de apresentar o
artesanato na cidade de Juazeiro do Norte a partir do Centro de Cultura Popular Mestre Noza. O
estudo justifica-se pela importância cultural do artesanato na cidade, neste contexto, a pesquisa
tem como objetivo geral discutir o artesanato enquanto uma expressão da cultura da cidade cidade
de Juazeiro do Norte-CE, a partir do citado centro. Nesse sentido, foram consideradas algumas
premissas, tais como, evidenciar o artesanato da Região do Cariri Cearense como uma referência
cultural, bem como veículo de transmissão da memória para as gerações futuras, além de
apresentar seus aspectos econômicos como o fato de ser fonte de renda e de fomentar o comércio
da região. Para tanto, realiza-se uma revisão de literatura, com ênfase na coleta de dados através
de observação participante, tendo como sujeitos os artesãos que trabalham no Centro de Cultura
Popular Mestre Noza. Ao analisar os fatos estudados, foi possível observar que o artesanato, como
elemento da cultura, possibilita o desenvolvimento econômico, além de perpassar por aspectos
políticos, identitários e sociais. Conclui-se que a cultura é um elemento determinante e ao mesmo
tempo determinado pelo meio social, e o artesanato, por fazer parte da chamada cultura popular,
muitas vezes visto como algo menor ou de baixo valor estético, quando comparado com a arte tida
como erudita, representa um papel proeminente na formação da história cultural do território.

Palavras-chave: Artesanato. Memória. Patrimônio Cultural.

339
Artigo produzido no âmbito do grupo de pesquisa SABERES - Informação e Cultura, Patrimônio Cultural e
Sustentabilidade da Universidade Federal do Cariri.
Página 1552 de 2230

ABSTRACT:Reflects on handicrafts as a popular cultural expression, addressing the discussion


of cultural identity, from the city of Juazeiro do Norte-CE, located in the southern region of the
State of Ceará. This city stands out as a center of religious pilgrimage in northeastern Brazil, with
the historical figure of Father Cícero Romão Batista as its greatest exponent. The pilgrimages,
characteristic of popular Catholicism existing in the city, fostered the circularity of culture through
the interaction of different cultural identities that converge there, through pilgrims, artists,
researchers, artisans and businessmen, all who visit the city. In addition to the figure of Padre
Cícero, the region of Cariri Cearense stands out in a territory marked by the presence of black,
indigenous and paleontological culture, as well as by the biodiversity of Chapada do Araripe.
Therefore, in this territory where the circularity of cultures is present in a continuous exchange,
this research is aimed at presenting handicrafts in the city of Juazeiro do Norte from the Centro de
Cultura Popular Mestre Noza. The study is justified by the cultural importance of handicrafts in
the city, in this context, the research has the general objective of discussing handicrafts as an
expression of the culture of the city of Juazeiro do Norte-CE, from the aforementioned center. In
this sense, some premises were considered, such as showing the craftsmanship of the Cariri
Cearense Region as a cultural reference, as well as a vehicle for transmitting memory to future
generations, in addition to presenting its economic aspects as the fact of being a source of income.
and to encourage trade in the region. To this end, a literature review is carried out, with an
emphasis on data collection through participant observation, having as subjects the artisans who
work at the Centro de Cultura Popular Mestre Noza. When analyzing the facts studied, it was
possible to observe that craftsmanship, as an element of culture, enables economic development,
in addition to permeating political, identity and social aspects. It is concluded that culture is a
determinant element and at the same time determined by the social environment, and handicrafts,
for being part of the so-called popular culture, often seen as something less or of low aesthetic
value, when compared to art considered to be erudite, plays a prominent role in shaping the cultural
history of the territory.

Keywords: Crafts. Memory. Cultural Heritage.

INTRODUÇÃO

A cidade de Juazeiro do Norte, localizada na região sul do estado do Ceará, destaca-


se como um centro de peregrinação religiosa no nordeste do Brasil, tendo na figura histórica do
Padre Cícero Romão Batista, ou simplesmente, “Padim Ciço”, como é carinhosamente chamado
por seus devotos, seu maior expoente.

As romarias, característica do catolicismo popular existente na cidade, fomentaram a


circularidade da cultura através da interação das diferentes identidades culturais que para lá
confluem, através dos romeiros, artistas, pesquisadores, artesãos, empresários, todos que a
visitam. Assim sendo, nesse território a circularidade das culturas se faz presente numa troca
contínua, nas suas mais diferentes esxpressões.

Nesse contexto, destaca-se a contribuição de Padre Cícero, que além de sacerdote, foi
um grande incentivador do desenvolvimento político, social e econômico dessa região,
reconhecendo na arte e na cultura um valor não só econômico, mas também social. Ele incentivou
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a produção artesanal como uma fonte de renda para as pessoas do Juazeiro e, promoveu a arte
juazeirense fora da região nordeste (WALKER, 1999).

A reputação do padre como “santo do povo” surge a partir do “milagre da hóstia” –


protagonizado pelo Padre Cícero e pela Beata Maria de Araújo (CORDEIRO, 2011).

Durante uma missa em 1º março de 1889, em uma sexta-feira da Quaresma, após


alguns anos de sua chegada a cidade, no momento de comunhão, uma beata de nome Maria de
Araújo teve a hóstia transformada em sangue na sua boca, se repetindo o mesmo fato por várias
vezes (NETO, 2009).

Diante disso começou a se disseminar o boato do milagre no povoado de Juazeiro e


ao ponto que se espalhava a notícia também aumentava o fluxo de pessoas curiosas querendo saber
sobre a veracidade do ocorrido e, assim, muitos acabavam fixando residência (NETO, 2009).

Em virtude do fenômeno do milagre, realizado pelo Padre Cícero, a cidade de Juazeiro


atraiu milhares de fiéis, tendo impacto maior na economia local, gerando desenvolvimento da
cidade, e expandindo a cultura local para além dos contextos do Cariri cearense. Essas expressões
culturais foram ganhando espaço e proeminência, sendo consolidadas e reconhecidas hoje em
âmbito nacional e internacional, pelo viés da arte e da cultura.

Os artesãos juazeirenses produzem inúmeras peças de diferentes temas, tamanhos e


cores, sendo bastante comum representações do Padre Cícero, nas quais procuram eternizar, na
madeira e em outros suportes, a imagem e feições daquele que é considerado a maior
personalidade do Cariri cearense.

Hoje, mais de 80 anos após a morte de Padre Cícero, as peças artesanais, que retratam
sua pessoa e seu modo de vida, continuam sendo as mais produzidas e mais vendidas pelos
artesãos locais, por serem as peças mais procuradas pelos romeiros e devotos que vêm a cidade,
assim os artesãos produzem também para atender a demanda na venda das peças, levando em
consideração o fator econômico.

Considerando o exposto até o momento, esse trabalho apresenta os resultados de


uma pesquisa que teve como lócus o Centro de Cultura Popular Mestre Noza, localizado na cidade
de Juazeiro do Norte, escolhido por ser um espaço importante de tradição artesanal e de
manifestação da cultura popular.

Esse centro de cultura homenageia em seu nome o Mestre Noza (Inocêncio Medeiros
da Costa) como é popularmente conhecido, um romeiro que chegou em Juazeiro do Norte em
1912, após caminhar cerca de 600 km ao vir do município de Quipapá (PE), local onde foi criado.
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Anos depois, a partir de 1930, começou a ficar conhecido como artista popular, imaginário
(escultor de imagens) e xilogravurista, na qual exploraremos mais detalhes de sua vida e atuação
nas seções posteriores do artigo.

Assim, o objetivo desta pesquisa é discutir o artesanato do Cariri Cearense enquanto


uma expressão da cultura local a partir do Centro de Cultura Popular Mestre Noza. Nesse sentido,
foram consideradas algumas premissas, tais como, evidenciar o artesanato da região do Cariri
cearense como uma referência cultural, bem como os aspetos de memória relativos a sua
transmissão para as gerações futuras e apresentar seus aspectos econômicos como o fato de ser
fonte de renda e de fomentar o comércio da região.

A metodologia adotada consistiu em uma revisão de literatura, com ênfase na coleta


de dados através de observação participante, tendo como sujeitos os artesãos associados ao Centro
de Cultura Popular Mestre Noza.

2. ARTESANATO: REFERÊNCIA CULTURAL, IDENTIDADE E MEMÓRIA


No cotidiano, as pessoas para suprir as necessidades de suas comunidades, sempre
produziram artefatos manualmente, como utensílios, ferramentas, adornos, armas, tecidos entre
outros.

Com o passar dos séculos muitos desses produtos da cultura material foram sendo
substituídos por produções industrializadas e as produções artesanais hoje, como o artesanato, se
configura como prática cultural popular que atende aos interesses da sociedade de consumo,
através de seu valor estético e simbólico (SILVA, 2016); ao falarmos desse aspecto simbólico,
cabe salientá-lo como patrimônio cultural por sua representatividade à cultura, memória e
identidade dos grupos sociais que os produzem.

De acordo com Maia (2003, p.1) cultura pode ser conceituada [...] como as diferentes
maneiras de viver de um povo, transmitidas de geração a geração recebidas por tradição. Nesse
sentido, o modo de falar, as crenças, o saber e o artesanato representam a forma do homem se
relacionar em sociedade.

Ao analisarmos o artesanato em Juazeiro do Norte observamos os elementos que


caracterizam e agregam valores a cultura e memória da sociedade. O patrimônio cultural, núcleo
da identidade coletiva, não só possibilita que nos reconheçamos, mas também que sejamos
reconhecidos; é ele que, contrastada e caracterizadamente, diferencia e distingue dos demais a
fisionomia física e moral de um lugar, uma cidade, uma região, um país [...] o património cultural
é, para a sociedade, o que a memória pessoal é para o indivíduo (MENDES 2012 p.17).
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Em vista disso Keller (2014, p. 330) destaca que o artesanato não pode se restringir
somente a um simples serviço manual. Apresenta em si a aptidão de esquematizar e de inventar
artefatos baseados em elementos da cultura, assim como a propriedade do saber/fazer, da técnica.

Nesse segmento Barroso (2002, p. 10) afirma que “[...] quem compra artesanato, está
comprando também um pouco de história. Nem que seja a sua própria história de viagens e
descobertas.” Desta forma o artesanato faz parte da cultura tradicional dos povos, já que as suas
origens remontam à época pré-industrial. Segundo Sebrae (2010, p.14) artesanato de referência
cultural se refere:

a produtos cuja característica é a incorporação de elementos culturais tradicionais da


região onde são produzidos. São, em geral, resultantes de uma intervenção planejada de
artistas e designers, em parceria com os artesãos, com o objetivo de diversificar os
produtos, porém preservando seus traços culturais mais representativos.

Ao pensarmos nessa prática no Cariri cearense, sua produção destaca-se através da


concentração dos tipos mais característicos do artesanato tradicional. Neste território,
encontramos santeiros que criam a partir do barro ou madeira, buscando inspirações nos grandes
personagens da cultura local e regional e nos mitos, na região caririense através de representações
de Padre Cícero, Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré, Mateu (figura do Reisado), Carrancas entre
outros ícones, que são entalhados a partir de cada artesão.

Este produto artesanal patrimonializado dentro do seu contexto local, possui diversos
valores que envolve as imaginações, afetos, crenças, as práticas. E para o turista destituído de um
vínculo pessoal e comunitário, o artesanato é apenas um bem cultural a ser consumido
(MENEZES, 2012).

Vergara e Silva (2007) reforçam a importância de estudar os núcleos de produção


artesanal como potencialidade para a valorização da cultura e identidade territorial e
desenvolvimento local.

É nesse sentido que aumenta o interesse em analisar as organizações artesanais e


contribuir para o debate do artesanato enquanto fenômeno organizacional. Como enfatiza Reis
(2008), a atividade artesanal traz a possibilidade do artesão viver daquilo que deseja: sua cultura.
O artesanato em segmentos populares fundamenta-se na experiência vivida e transmitida de
geração para geração, logo a tradição familiar tem enorme peso no processo criativo.

Pertencer a uma família de artistas ou crescer em meio artesanal é, geralmente, um meio


de não só ‘dar continuidade à categoria’, mas manter os vínculos afetivos, a memória, as
trocas simbólicas e os elos de solidariedade e dom necessários à gestão do cotidiano de
cada artesão (DIAS, 2007. p.49).
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Esta foi uma das primeiras confirmações que tivemos nas conversas com os artesãos,
“é um aprendizado passado de geração em geração, vi meu irmão esculpindo e logo quis aprender
e faço isso até hoje, 32 anos depois”, relata Beto. Como ressalta Silva (2009), a complexidade que
envolve os estudos sobre o artesanato decorre do fato de que este, na qualidade de elemento
componente do patrimônio cultural, incorpora-se ao conjunto de monumentos, documentos e
objetos que constituem a memória coletiva de um povo e, portanto, deve ser considerado do ponto
de vista social e cultural.

No entanto, a existência do artesanato com o avanço industrial não poderia ser


explicada se entendemos o artesanato como uma atividade que sobrevive ainda em sua forma
original e que, por preservar de forma inalterada técnicas e práticas antigas, assumiria o papel de
guardião da tradição. Conforme Fischer e Soares (2010), o artesanato insere-se como um dos
campos de representação da cultura popular, responsável por contribuir com a identidade cultural
de um dado território.

Nessa perspectiva, Santos (2012, p.16) diz que por ser uma referência cultural na
cidade, o Centro de Cultura Popular Mestre Noza tem demonstrado, através da sua arte, a
valorização da cultura regional, fomentando a difusão das tradições locais através do artesanato
em madeira com a representação de imagens que representam o contexto social em que estamos
inseridos, proporcionando ao público em geral informações referentes à nossa sociedadee uma
forma de representação da memória coletiva.

Apesar da atividade artesanal da região, ao longo do tempo, passar por processo de


fragilização, a cidade de Juazeiro do Norte continua sendo o maior polo de artesanato cearense
em quantidade, qualidade e diversidade, possuindo forte representatividade para a cultura popular
do Estado e do Brasil.

2.1 O Artesanato Na Região Do Cariri: fonte de renda, bem de consumo


Barros (2006) e Soares (2011) falam que a diversidade do artesanato brasileiro foi
influenciada por um conjunto de tradições diferentes, de povos com cultura e conhecimento
diversos, como os indígenas, africanos e europeus. É neste sentido que surge a capacidade
geradora de valor econômico, ocupação e renda para o progresso humano e sociocultural. Diante
disso, o artesanato apresenta-se como atividade potencializadora para fomentar a economia
criativa no país.

Esse cultivo do artesanato, conforme explica Lauer (1947, p. 82) “consiste na


articulação de meios para o desenvolvimento do mesmo como bem econômico e de exportação”.
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Nessa perspectiva Polanyi (2012) evidencia o artesanato como uma atividade produtiva que gera
renda, em grande parte complementar, para inúmeras famílias de baixa renda, assim como é uma
atividade que demanda determinadas habilidades e capacidades, manuais e criativas.

A atividade artesanal na contemporaneidade faz parte da sobrevivência social e


econômica de cada artesão, e também configura-se como salvaguarda das identidades culturais e
tradições. Por essa razão Keller (2014) destaca que as principais mudanças do artesanato na
sociedade contemporânea estão ligadas a processos de mercadorização do produto artesanal e de
internacionalização da venda de artesanato. Ainda nesse contexto Scrase (2003) ressalta o
mercado de artesanato é controlado firmemente por poucos agentes, é altamente explorador e os
ganhos são insignificantes para os artesãos individuais.

Os estudos voltados ao artesanato como fonte de renda pautam as características do


produto como bem de consumo, no qual seu valor simbólico e estético seja um forte potencial
para atender os interesses e necessidades da sociedade do consumo. Freitas (2006) coloca ainda
que se consideramos como peculiaridade principal da produção artesanal a sua capacidade de
oferecer ao mercado um produto feito à mão, a atenção dos programas e políticas intervencionistas
deveria estar voltada não só para o produto, mas também para o produtor, ou seja, o artesão.

Podemos perceber a partir da fala de Freitas (2006) que não basta valorizar o
produto, mas sim, o produtor: o artesão, que possui, na grande maioria das vezes, difíceis
condições para realizar seu trabalho, sendo que , na prática, seus métodos, modo de vida e
necessidades têm pouco espaço em um sistema capitalista. Logo os artesãos precisam de
implementações por parte do poder público para melhorias nas suas condições de trabalho. Diante
disso, vê-se a relevância de políticas públicas que abordem as particularidades tanto o produto
vendido, como também do produtor.

Nas pautas abordadas pela autora citada, observamos o discurso de revitalização que
os artesãos necessitam para melhorias das suas condições de trabalho e renda. Em conformidade,
Lima e Galvão (2006) ressaltam que a revitalização e implementação do artesanato consiste na
inserção de novos métodos de trabalho no processo produtivo dos artesãos, tendo como objetivo
sua adequação ao mercado.

Keller (2014, p. 326) afirma que há uma relativa carência de informações sobre a
atividade artesanal no Brasil e sobre seu real impacto cultural e econômico. O trabalho artesanal,
em geral, complementa a renda dos artesãos e de suas famílias, o autor ainda ressalta que o
trabalho artesanal tem valor no sustento da família e na reprodução da cultura local.
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Segundo Keller (2014, p. 332) a produção artesanal no mundo contemporâneo está


imersa em relações de produção, de comercialização e de consumo capitalistas, logo faz-se
necessári refletir, de forma conjunta, sobre o processo de trabalho, a produção de objetos
artesanais, integrando diversas atividades de trabalhos em uma cadeia produtiva, e o processo de
produção de valor, a produção artesanal enquanto produtora de objetos dotados de valores
socioculturais e simbólicos e de valores econômicos e mercantis. Neste segmento Canclini (2011,
p. 246) ressalta:

o que chamamos de arte não é apenas aquilo que culmina em grandes obras, mas um
espaço onde a sociedade realiza o visual. É nesse sentido amplo que o trabalho artístico,
sua circulação e seu consumo configuram um lugar apropriado para compreender as
classificações segundo as quais se organiza o social.

Associado a isto, percebemos que o artesanato fortalece cada vez mais a economia
da cidade de Juazeiro do Norte e região, trazendo um grande fluxo de pessoas de outros locais.
São milhares de pessoas por ano que chegam até a cidade em busca de conhecê-la e principalmente
explorar a cultura local, sendo que os artesãos estão os mais procurados por essas pessoas.

Já mencionamos o papel de Padre Cícero como incentivador do artesanato na região.


Esse incentivo deu resultado: atualmente o artesanato tem forte participação na economia do lugar,
que se tornou celeiro de artistas. Criatividade e habilidade unem-se e fazem surgir peças em
madeira, barro, palha, entre outros materiais. Podemos afirmar que a cidade chama a atenção dos
turistas não só pela fé, mas também por suas manisfestações artísticas e culturais.

Figura 1- Artesão na produção de escultura do Patativa do Assaré

Fonte: Arquivo dos autores (2019).


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Apesar das dificuldades econômicas, o artesanato ainda representa para a maioria dos
trabalhadores a única atividade produtiva exercida. Na região do Cariri cearense, a produção do
artesanato destaca-se e configura-se como principal, e muitas vezes única forma de sustento do
tabalhador. O artesanato da região em destaque além de ser conhecido no mundo todo e,
consequentemente, atrair pessoas de vários lugares interessadas em acompanhar inclusive o
porcesso de produção dos artesãos, ainda carrega consigo o valor histórico e memorial daquela
cidade, suas tradições, e, por último, garante o sustento à muitas famílias e associações.

Existem várias características que identificam o conjunto das atividades artesanais como
um arranjo produtivo local informal. São elas: a elevada informalidade, a forte tradição
familiar que marca todos os elementos estruturais da empresa, como as relações de
trabalho, a forma de apreensão e de transmissão de conhecimento, com reflexos na
dinâmica de inovação do produto (DINIZ e DINIZ, 2007).

A cidade de Juazeiro do Norte abriga artesãos nacionais e internacionais, que têm suas
peças expostas em museus; e artesãos mestres da cultura cearense que norteiam o ofício artesanal
e contribuem para permanência da cultura sertaneja. Conforme Grangeiro (2015), a princípio, o
alto grau de visibilidade das peças produzidas por um determinado grupo de artesãos apresenta-
se como um possível indicador de êxito profissional destes trabalhadores.

Figura 2- Esculturas de figuras do Reisado

Fonte: Arquivo dos autores (2019).

Colocando em pauta o contato com alguns artesãos do Centro de Cultura Mestre Noza
percebemos que cada artista possui um tempo diferente dedicado ao trabalho artesanal, em sua
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maioria tendo em vista às necessidades da renda para família. Vale relembrar que as
transformações que vêm ocorrendo com passar dos anos, como o desenvolvimento das redes
sociais e os novos processos de consumo e de produção, fez com que os artesãos buscassem novas
formas de expor a produção dos seus trabalhos.

Com isso, a Associação do Centro em estudo busca parcerias, principalmente com o


Governo do Estado do Ceará, desenvolvendo projetos, quais se beneficiarão, sobretudo os
artesãos, aprimorando seus instrumentos para realização das suas obras e exposição dos seus
trabalhos, consequentemente, favorecendo os turistas que frequentam o centro e a população do
município.

3 CENTRO DE CULTURA POPULAR MESTRE NOZA: memória e fonte de informação


Inocêncio Medeiros da Costa, o famoso Mestre Noza, considerado o primeiro artesão
da região, foi um grande escultor brasileiro. Nasceu na cidade de Taquaritinga do Norte, em
Pernambuco, em 1897. No ano de 1912, decidiu ir a pé como romeiro, junto com sua família, até
Juazeiro do Norte, no Ceará, percorrendo uma distância de 480Km. A partir desse trajeto, começa
a relação do artista com a cidade, onde se estabeleceu com sua família.

Inicialmente, ele trabalhou em diversas funções, como soldado, funcionário de estrada


de ferro e até funileiro.O trabalho com o artesanato começou através de pedidos de romeiros, para
os quais ele fazia pequenas esculturas de santos. Somente a partir de 1930, tornou-se conhecido
como artista popular, escultor de imagens e xilogravurista. Sua primeira escultura foi um São
Sebastião e sua primeira xilogravura, uma capa de literatura de cordel (PAMPOLHA, 2017).

No entanto, o grande sucesso de Mestre Noza começou em 1963, quando o artista


Sérvulo Esmeraldo deu a ele uma série de gravuras da Via Sacra e encomendou as matrizes em
madeira. O resultado do trabalho foi muito satisfatório, e Sérvulo resolveu levar as matrizes para
a França, em uma viagem que fez. Com elas, conseguiu produzir uma edição especial do folheto
da Via sacra, com apenas 22 exemplares, impressos à mão, lançado em Paris. Com o sucesso da
obra, publicou-se uma nova edição de mil exemplares, também esgotada rapidamente
(PAMPOLHA, 2017).

Desde então, Mestre Noza participou de diversas exposições com obras de escultura e
xilogravura em Crato-CE, Recife, Rio de Janeiro e em Paris, sendo considerado o grande artista
popular do Cariri cearense, como enfatizam muitos dos artesãos do Centro de Cultura. Alguns
trabalhos feitos por ele fazem parte do Museu de Arte do Ceará e do Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP).
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No ano de sua morte, 1983, através de projetos da Secretaria Municipal de Cultural


de Juazeiro do Norte, o antigo prédio da Polícia Militar do Ceará foi reformado e passou a ser
utilizado como prédio do Centro de Cultura Popular Mestre Noza. Assim, origina-se em junho
deste ano, o Centro de Cultura Popular Mestre Noza, a partir do Encontro de Produção de
Artesanato Popular e Identidade Cultural, uma iniciativa do Instituto Nacional de Folclore (INF)
do Ceará, é promovido pela Fundação Nacional de Arte (Funarte).

O Centro é considerado um dos locais mais importantes da cidade de Juazeiro do Norte


e de toda a região do Cariri, criado em homenagem a Inocêncio Medeiros da Costa (Mestre Noza),
considerado o primeiro artesão da região, abriga obras de mais de 100 artesãos do Cariri e funciona
como apoio para os artesãos da região, comprando as peças produzidas por eles e revendendo para
diversas localidades, com isso, o dinheiro arrecadado é investido no centro de cultura e na compra
de novas peças para o trabalho.

Figura 3- Sala de Exposições das Produções Artesanais do Centro

Fonte: Arquivo dos autores (2019).

A Associação dos Artesãos de Juazeiro do Norte é a entidade jurídica que representa


o centro, que em seu espaço possui uma diversidade de obras expostas. Em conformidade com
Costa (2016), o prédio onde o centro está localizado propicia uma experiência agradável ao
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visitante, que pode inclusive acompanhar o trabalho dos artesãos no local, o que se faz um
diferencial para turistas e pesquisadores. Hoje, a entidade conta com 103 associados, dos quais 12
trabalham diariamente no Centro Mestre Noza, os demais criam seus produtos em casa e expõe
no espaço cultural em estudo.

Com a fundação do centro, os artesãos associados deram continuidade ao trabalho


desenvolvido pelo Mestre Noza e puderam contar com um lugar de apoio para a produção dos
seus trabalhos. Hoje, a associação é formado por presidente, vice-presidente, tesoureira e artesãos
que buscam a cada dia evoluir nas suas produções e divulgações de seus artenasatos, além de
desenvolverem novos meios para aumentar a demanda no mercado de vendas.

Quando refletimos sobre esse espaço, nos vem à mente Marteleto (1995, p. 2) que
advoga acerca da relação natural que perpassam os conceitos de Cultura e informação.
Funcionando como uma memória, transmitida de geração em geração, na qual se encontram
conservados e reproduzíveis todos os artefatos simbólicos e materiais que mantêm a complexidade
e a originalidade da sociedade humana, é depositária da informação social.

A informação e a memória proporcionam ao indivíduo construir seus saberes ligados


à cultura, permitindo assim a criação de seus conceitos e valores os quais contribuem para a
formação de sua identidade . Segundo Silva (2006, p. 215), perceber o que é uma identidade
cultural, como ela se molda e até que instância ela atinge, faz o homem avaliar seus próprios
saberes, confrontando-os com seu meio cultural. Para que esse processo discursivo ocorra torna-
se necessário que o indivíduo tenha acesso à informação, saiba onde encontrá-la e como
identificá-la enquanto elemento de sua cultura.

Assim o artesanato pode ser compreendido como uma marca original de uma cultura
local, pois, ao construir suas peças, o artesão expressa, por meio de uma técnica específica, o seu
fazer, o seu conhecimento tácito, o qual foi acumulado das gerações passadas, uma expressividade
original que marca sua cultura e territorialidade.
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Figura 4- Escultura de Carranca produzida no centro

Fonte: Arquivo dos autores (2019).

Por conseguinte, Castilho (2013) destaca que a cultura está sempre enraizada com base
no território, proveniente da integração do homem para adequar-se às adversidades do local, e
assim construir a sua identidade.

Tal afirmativa é possível de visualizar no âmbito do Centro de Cultura Popular Mestre


Noza onde se fazem presentes elementos de memória existentes tanto no processo de criação
(práticas que os artesãos aprenderam e hoje transmitem) bem como, na memória existente nas
peças criadas, que são representações de elementos da cultura local (Pe. Cícero, Luiz Gonzaga,
Jaraguás, Brincantes de Reisado e outras figuras e elementos). Desse modo, observar, refletir e
analisar essa prática permite adentrar nas tessituras simbólicas e afetivas da cultura local e
compreender os complexos elementos que a compõe.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história do artesanato confunde-se com a própria história do homem, pois a


necessidade de se produzir bens de utilidades e uso rotineiro, e até mesmo adornos, expressou a
capacidade criativa e produtiva humana como forma de trabalho.

O artesanato constitui-se como fonte de informação e memória, quando seus meios de


aprendizado passam a transferir informações de uma pessoa para outra, de pai para filho, avós
para netos, sendo assim transmitida de geração em geração.

Juazeiro do Norte-CE, considerada uma das maiores expoentes de manifestação


cultural, tem como uma das principais atividades o artesanato, que possui grande participação na
economia da cidade, sendo o espaço Cultural Mestre Noza um grande polo de artesanato da região
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do Cariri caririense, chamando a atenção de muitos turistas e pesquisadores que podem


acompanhar no local o processo de confecção das obras.

O espaço em estudo representa dessa forma, tanto uma fonte de informação como um
lugar de memória local, onde as pessoas podem conhecer um pouco da história local e apreciar
obras cujo valor ultrapassam os paradigmas de um mundo industrial.

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ESPAÇO E PAISAGEM NA ÁREA DA “PENÍNSULA” DA PONTA D’AREIA, SÃO


LUÍS – MARANHÃO

SPACE AND LANDSCAPE IN THE PONTA D’AREIA “PENINSULA”, SÃO LUÍS -


MARANHÃO

Jamille Oliveira Sousa; Mestranda; PPGGEO, NEPA, UFMA

Danielle de Assis Araújo Alves; Mestranda; PGCULT, NEPA, UFMA

Antonio Cordeiro Feitosa; Professor doutor; PPGEO; PGCULT, NEPA, UFMA

Eixo 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

Resumo: A transformação dos ambientes pela dinâmica natural e interferência do homem tem
alterado a configuração dos seus elementos e os fluxos de energia, o que resulta em mudanças
profundas nas paisagens, alterando o estado de equilíbrio ambiental. O objetivo deste trabalho é
analisar as modificações da paisagem na área da “península” da Ponta d’Areia, a partir da década
de 1970, período de ocorrências mais intensas, com enfoque na evolução da paisagem, como
resultado de transformações impostas pelos agentes naturais e pelo homem. A área da Ponta
d’Areia era habitada em sua maior parte por pescadores, cujo modo de vida foi alterado a partir
dos anos 1970 em face da construção da ponte “José Sarney” que possibilitou o acesso de famílias
de classe média, residentes no centro histórico, tornando a Ponta d’Areia mais frequentada. Com
as diretrizes estabelecidas no Plano de Expansão da cidade de São Luís, em 1958, o Plano Diretor
de 1974 previa a expansão urbana com a criação de novos bairros, avenidas e ruas, além da
construção do Anel Viário e da urbanização dos “bairros” do São Francisco e Ponta d´Areia,
começando com o aterramento, em 1975, de parte do Igarapé da Jansen para a construção da
Avenida Maestro João Nunes, ligando-os e facilitando o acesso da população à praia da Ponta
d’Areia. A especulação imobiliária tem sido intensa desde os anos 2000, o que resultou na
diminuição gradativa de espaços naturais, dando lugar a prédios comerciais e residenciais,
restaurantes e hotéis. Outro fato que contribuiu para a alteração da paisagem local foi a construção
de um espigão litorâneo destinado a controlar o deslocamento natural de areia para oeste, e com o
propósito de conter a abrasão da orla e o assoreamento dos canais do Anil e do Bacanga. As
mudanças na paisagem da Ponta d’Areia ocorreram de forma acelerada, resultando na extinção da
antiga vila da Ponta d´Areia, devido à ausência de políticas de planejamento e gestão efetiva, a
fim de reduzir os impactos ambientais e sociais da área, mediante a proteção da população
tradicional e implantação do uso e ocupação racional do solo.

Palavras-chave: Evolução da paisagem; Ponta d’Areia; São Luís – Maranhão.


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Abstract: The transformation of environments by natural dynamics and human interference has
altered the configuration of its elements and energy flows, which results in profound changes in
the landscapes, altering the state of environmental balance. The objective of this work is to analyze
the landscape changes in the Ponta d'Areia “peninsula” area, from the 1970s onwards, a period of
more intense occurrences, focusing on the evolution of the landscape, as a result of
transformations imposed by natural agents and by man. The Ponta d'Areia area was mostly
inhabited by fishermen, whose way of life was altered from the 1970s onwards due to the
construction of the “José Sarney” bridge that enabled the access of middle-class families residing
in the center making Ponta d'Areia more popular. With the guidelines established in the Expansion
Plan of the city of São Luís, in 1958, the 1974 Master Plan provided for urban expansion with the
creation of new neighborhoods, avenues and streets, in addition to the construction of the Ring
Road and the urbanization of the “neighborhoods” from São Francisco and Ponta d´Areia, starting
with the grounding, in 1975, of part of the Igarapé da Jansen for the construction of Avenida
Maestro João Nunes, connecting them and facilitating the population's access to Ponta d'Areia
beach. Real estate speculation has been intense since the 2000s, which resulted in the gradual
reduction of natural spaces, giving way to commercial and residential buildings, restaurants and
hotels. Another fact that contributed to the alteration of the local landscape was the construction
of a coastal spike designed to control the natural displacement of sand to the west, with the purpose
of containing the abrasion of the shore and the silting up of the channels of Anil and Bacanga. The
changes in the landscape of Ponta d'Areia occurred at an accelerated rate, resulting in the
extinction of the old village of Ponta d´Areia, due to the absence of effective planning and
management policies, in order to reduce the environmental and social impacts of the area, through
the protection of the traditional population and implementation of the rational use and occupation
of the soil.

Keywords: Evolution of landscape; São Luís - MA; Ponta d'Areia.

1 INTRODUÇÃO

A configuração da superfície da Terra é constituída por elementos ambientais, cuja


interação reflete na modelagem das paisagens, relacionados com as diferentes intervenções do
homem e a cultura do local, variando de acordo com as suas características e necessidades dos
grupos humanos.
Página 1569 de 2230

A paisagem é composta por elementos do presente e do passado, dotado de aspectos


naturais e culturais, caracterizada por uma associação de elementos físicos, biológicos e
antrópicos, que a tornam um elemento importante para o entendimento das relações homem-
natureza. A evolução da paisagem está associada aos fenômenos naturais e às modificações das
ações humanas, as quais influenciam os aspectos relacionados com a cultura e valores de uma
determinada sociedade.

A área de estudo é a “penísula” da Ponta d’Areia, localizada na borda da baía de São


Marcos, mesorregião do norte maranhense, e na microrregião da aglomeração urbana de São Luís,
caracterizada por diversos cenários, como áreas costeiras com praia e dunas cobertas por
vegetação típica, em processo de modificação por processos geomorfológicos, erosivos e/ou
deposicionais naturais e da ação humana, que tem interferido na zona costeira, por ser a região de
interação entre o sistema continental e o marinho.

As alterações ocorridas nas paisagens natural da “penísula” são atribuídas, em sua


maior parte, à exploração contínua e sistemática dos variados recursos oferecidos nessa região:
pesca, turismo, expansão imobiliária, entre outros fatores que influenciam não só no
remodelamento do espaço, como também na vida dos habitantes, podendo ser observadas com a
construção de grandes empreendimentos na orla; interferência na dinâmica natural do ambiente,
evidenciando a necessidade de novos estudos para diagnosticar e analisar o estado atual da área,
para subsidiar a tomadas medidas de proteção socioambiental diante da alteração da paisagem.

O objetivo deste trabalho é analisar as modificações da paisagem na área da


“península” da Ponta d’Areia, entre as décadas de 1970 e 2010, período de ocorrências mais
intensas, com enfoque na evolução da paisagem, como resultado de transformações impostas pelos
agentes naturais e pelo homem, utilizando técnicas de sensoriamento remoto, pesquisa de campo
e diagnóstico para o uso racional dos recursos ambientais com a conservação da natureza.

2 METODOLOGIA

2.1 Métodos

A metodologia utilizada teve como base a observação e registro dos fatos relacionados
com a temática do trabalho, análise e classificação, além do apoio da orientação fenomenológica
(TUAN, 1980) na percepção e descrição do ambiente, com suporte nas técnicas qualitativas
(MARCONI; LAKATOS, 2003), para subsidiar os trabalhos de gabinete.

Edmund Husserl foi o principal precursor do conceito de fenomenologia e a define


como a “tentativa de descrever o fundamento da filosofia na consciência na qual a reflexão emerge
da vida irrefletida do começo ao fim” (HUSSERL, 2002, p. 26). A instrução fenomenológica é
Página 1570 de 2230

considerada em duas vertentes: a filosófica e a empírica, sendo que ambas partem do princípio da
realidade social do indivíduo e o objetivo é a sua concepção.

A aplicação dos conceitos da Fenomenologia à Geografia se manifestou a partir da


publicação do livro Topofilia de Yi Fu Tuan (1980), onde é proposto que a Geografia se volte a
um novo pensar sobre a relação do homem com o mundo em que vive, apresentando a paisagem
e percepção como processos e relações interdependentes.

Segundo Guerra (2014, p. 11), para alguns estudiosos das ciências sociais e humanas,
as abordagens quantitativas não seriam satisfatórias, e por isso novas técnicas qualitativas seriam
necessárias para a geração de conhecimento científico. “A pesquisa qualitativa não se preocupa
com representatividade numérica, mas, sim, com o aprofundamento da compreensão de um grupo
social, de uma organização, etc” (GERHARDT; SILVEIRA, 2009, p. 31).

2.2 Procedimentos metodológicos

Para alcance dos objetivos da pesquisa foram realizados métodos e técnicas que
subsidiaram nos seguintes procedimentos metodológicos:

Levantamento e análise da bibliografia referente ao tema e a área de estudo;

Levantamento de material cartográfico para identificar posição e situação geográfica;

Análise e processamento de imagens de satélite, através da utilização de


Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento a partir do Arcgis;

Trabalhos de campo para observação da paisagem, do ambiente, para coletas de dados


e registros fotográficos;

Análise e interpretação das informações obtidas durante o período de pesquisa.

3 CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO

De acordo com Araújo, Teles e Lago (2009, p. 4631), a ilha do Maranhão (Mapa 01)
está localizada no norte do estado, e é limitada ao norte pelo oceano Atlântico e baía de São
Marcos, ao sul com a baía de São José e o estreito dos mosquitos, a leste com a baía de São José
e a oeste com a baía de São Marcos, possuindo aproximadamente 834,83 km² de extensão,
constituída pelos municípios São Luís, São José de Ribamar, Paço do Lumiar e Raposa.

Mapa 01: Localização da ilha do Maranhão


Página 1571 de 2230

Fonte: Adaptado IBGE, 2010; CPRM, 2012

O município de São Luís, situado no oeste da ilha, possui 1.094.667 residentes,


equivalendo a 80% dos seus habitantes e a 15% da população do estado, conforme o IBGE (2018).
Esta situação ocorre em função da disponibilidade de recursos que o município oferece, e por ser
uma sede administrativa, onde se concentram várias instituições de ensino e empresas, além da
área industrial, a qual foi um atrativo em função da instalação de grandes empresas como Vale e
Alumar, resultando em uma aglomeração que causa impactos negativos aos sistemas naturais e
suas geoformas.

Localizada no “bairro” Ponta d’Areia, capital maranhense, a área de estudo é um


pontal arenoso, tendo sua nomenclatura substituída por “penísula” para atrair investidores na
expansão imobiliária. Situa-se (Mapa 02) na microrregião da aglomeração urbana de São Luís,
distante cerca de 3,5 km do centro de São Luís. Conforme Sousa et al. (2012, p. 03), é banhada
pela baía de São Marcos, no interior do Golfão maranhense, apresentando as seguintes
coordenadas geográficas: 2º29'41'' e 2º29'11'' de latitude sul; 44º17'45'' e 44º18'23'' de longitude
oeste.

Mapa 02: Localização da “penísula” da Ponta d’Areia, São Luís – MA


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Fonte: Adaptado IBGE, 2015; Google Earth, 2017

Segundo a Lei 3.253 (1992, p. 04), que dispõe sobre o zoneamento, parcelamento, uso
e ocupação do solo urbano e dá outras providências no município de São Luís, a área residencial
da Ponta d’Areia inicia-se no ponto de interseção da Av. Nina Rodrigues com a Av. Maestro João
Nunes, seguindo pela primeira até atingir a linha de preamar da praia da Ponta d'Areia, onde se
prolonga até interceptar a Rua das Verbenas, tomando rumo à direita, até atingir a linha limite de
fundos dos lotes lindeiros à Av. dos Holandeses, prosseguindo com rumo à esquerda por este
limite, até interceptar a Av. Maestro João Nunes, deslocando-se à direita desta avenida até atingir
o marco desta divisa.

A área turística da Ponta d’Areia, é dividida em 2 zonas: a primeira inicia-se no ponto


de interseção da Av. Atlântica com a Av. Maestro João Nunes, deslocando-se ao longo desta
última, com sentido à direita, incluindo todas as quadras e superquadras localizadas no lado direito
da citada avenida, até atingir a Rua das Verbenas, na linha limite dos fundos das quadras; e a
segunda, principia na interseção da Av. dos Holandeses com a Rua das Verbenas, seguindo pela
primeira, com rumo à direita, incluindo todos os terrenos lindeiros a esta avenida, pelo lado direito,
até o encontro desta com a Av. Maestro João Nunes, conforme a Lei 3.253 (1992, p. 11 e 12).

4 Evolução da paisagem da “penísula” da Ponta d’Areia

Para Santos, Dobbert e Feitosa (2010, p. 02), a transformação dos ambientes naturais
pela interferência do homem tem alterado os fluxos de energia e o nível de reversibilidade do
meio, o que resulta em mudanças profundas, diminuindo a qualidade ambiental para as espécies
Página 1573 de 2230

nativas e para a população local, transformando as condições favoráveis em inapropriadas à


sobrevivência de determinadas espécies, atingindo elevado grau de degradação.

As transformações ocorridas nas paisagens costeiras são habituais, seja por meio
natural, ou por ações antrópicas, geralmente para atender as necessidades do homem. Sousa e
Silva (2010, p. 01), afirmam que o valor do litoral se consolida por mediar relações econômicas
que dependem dos recursos da zona costeira, que corresponde a uma área, cujas potencialidades
vêm convergindo em um processo de ocupação, em ritmo cada vez mais acelerado, associado ao
desenvolvimento, industrialização, urbanização e a exploração turística.

Segundo Feitosa (1989, p. 57), o município São Luís resultou do crescimento


populacional, instalado junto ao forte construído por Daniel de La Touche, iniciando a colonização
pelo litoral e toda a planície costeira adjacente. Com o apogeu econômico em função do algodão
na segunda metade do século XVIII, e o surto da industrialização no século XIX, houve uma
acumulação de riqueza, tornando a cidade um lugar atrativo economicamente, o que aumentou o
número populacional.

A capital maranhense teve a sua ocupação espacial intensificada a partir da segunda


metade do século XX, principalmente com a utilização do solo, com políticas desenvolvimentistas
proposta pelo Governo Federal. De acordo com Tiers (2017, p. 10), no século XX, o atual “bairro”
Ponta d’Areia era habitado, em sua maior parte, por pescadores e pessoas que utilizavam a pesca
e extração de mariscos como fonte de renda complementar, extraindo caranguejos, sarnambis e
siris. Na época, para ter acesso ao centro da cidade, hoje o Centro histórico, eram usadas canoas e
pequenas embarcações como meio de transporte, sendo também uma forma de trabalho para
alguns moradores da região.

Conforme Pereira e Alcântara Jr. (2017, p. 981), o engenheiro Ruy Ribeiro de


Mesquita elaborou o plano de expansão da cidade de São Luís, publicado em 1958, em que
afirmava a implantação na cidade entre dois grandes rios, o Anil e o Bacanga, e a grande
quantidade de igarapés, que facilitavam a pequena navegação como um dos meios de transportes
mais favoráveis, mas o mar era um obstáculo para a chegada das navegações no porto da área
central da cidade. Dessa forma, cogitaram a construção das pontes sobre ambos os rios.

Assim o modo de vida tradicional da população do centro de São Luís foi alterado em
função da construção da ponte José Sarney (Figura 01) sobre o rio Anil, na década de 1960, o que
causou a saída de famílias de classe média do antigo núcleo central em direção ao que se chamou
de “Cidade Nova”, tornando a área da Ponta d’Areia mais frequentada.

Figura 01: Construção da ponte José Sarney, década de 1960, São Luís - MA
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Fonte: Marrapa.com, 2015

Segundo Coelho e Sales (2017, p. 20), o início da urbanização da área da Ponta d’Areia
foi impulsionado durante a gestão do prefeito Haroldo Tavares, engenheiro civil, entre os anos de
1971 e 1975, que antes de assumir a prefeitura, era secretário de Viação e Obras Públicas no
governo de José Sarney, sendo as suas medidas mais importantes, a criação de uma imobiliária
municipal, em 1971 chamada SURCAP (Sociedade de Melhoramentos e Urbanismo da Capital)
que recebeu da União as glebas que viriam a guiar a expansão da capital maranhense, dentre elas
na região da Ponta D’areia, as quais foram desmembradas em lotes residenciais e parcelas para
empreendimentos turísticos, dentre eles, presentes na Península está o Iate Clube de São Luís,
inaugurado em 1974, além É do aterro de parte da “península”, facilitando sua urbanização.

Com diretrizes estabelecidas no Plano de Expansão da cidade de São Luís em 1958, o


Plano Diretor de 1974 tinha como objetivo, estabelecer uma política adequada para o uso da terra,
e de acordo com Vieira (2013, p. 69 e 70), também previa a expansão urbana com a criação de
novos bairros, avenidas e ruas, além da criação do Anel Viário e a urbanização dos bairros do São
Francisco e Ponta d´Areia, começando com o aterramento, em 1975, de parte do Igarapé da Jansen
para a construção da Avenida Maestro João Nunes, ligando o bairro São Francisco à orla marítima,
facilitando assim, o acesso da população à praia da Ponta d’Areia. Tal processo deu origem a um
corpo hídrico, a Laguna da Jansen e legalmente conhecido como Lagoa da Jansen.

Nas décadas de 1980 e 1990, Tiers (2017, p. 11) afirma que a Ponta d’Areia passou a
ser um alvo das imobiliárias, em função da sua localização, sendo um atrativo para as classes que
possuem melhor poder aquisitivo. O que ocorreu foi o avanço da cidade em direção às praias e o
desmatamento da vegetação de mangue ao redor da Laguna da Jansen, expandindo o “bairro” em
questão, e tornando-o uma área caracterizada por condomínios de alto padrão.

Os primeiros prédios construídos na área da Ponta d’Areia tinham até cinco andares,
estabelecidos pelo Plano Diretor de São Luís de 1976, possibilitando a construção de uma
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cobertura. Mas com a mudança na Lei 3.253 de Uso e Ocupação do Solo (1992, p. 36) nas zonas
turísticas, os edifícios para usos de hospedagem passaram a ter gabarito máximo igual a 15
(quinze) pavimentos e, para os demais, igual a 12 (doze), atraindo mais investidores imobiliários.
“Essa dinâmica reconfigurou o espaço urbano da Ponta d’Areia, que gradativamente passou a ter
os terrenos mais caros da região metropolitana de São Luís e mais disputados pelos investidores
imobiliários” (VIEIRA, 2013, p. 73).

A especulação imobiliária na Ponta d’Areia tem sido intensa desde os anos 2000, o
que resultou na diminuição gradativa de espaços naturais, como as áreas de manguezais, dando
lugar a prédios comerciais e residenciais (Figuras 02 e 03), casas de veraneio, restaurantes, hotéis,
entre outros. Em relação aos antigos moradores, os pescadores e famílias de baixa renda, Tiers
(2017, p. 17) afirma que a maioria deles recuaram e migraram para “bairros” adjacentes como o
São Francisco e a Ilhinha.
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Figura 02: Prédios na orla marítima da praia Figura 03: Prédios no “espigão” da Ponta
da Ponta d’Areia, São Luís - MA d’Areia, São Luís - MA

Fonte: Dados da pesquisa, 2019 Fonte: Dados da pesquisa, 2019

Os processos responsáveis pela dinâmica costeira são representados por ações dos
elementos naturais, relacionados aos fatores oceanográfico e climático, os quais modelam a
paisagem na forma de depósitos sedimentares ou feições erosivas, causados geralmente pela ação
das ondas, chuvas, e dos ventos. “Entende-se como processos costeiros a ação de agentes que,
provocando erosão, transporte e deposição de sedimentos, levam a constantes modificações na
configuração do litoral” (MUEHE, 2012, p. 257).

As praias são os ambientes mais alterados em suas configurações espaciais, por serem
depósitos de sedimentos, acumulados pela ação eólica e de ondas, como o caso da praia da Ponta
d’Areia, uma área caracterizada por terraços de abrasão e afloramentos rochosos, amplamente
utilizados para o lazer.

Como ações naturais que continuam modificando esta região, podem-se citar as ondas,
as quais, conforme Feitosa (1989, p. 163), constituem o maior potencial morfogenético, em função
das condições climáticas e litológicas, manifestando-se de forma mais intensa nas proximidades
da costa, onde o relevo impede o seu desenvolvimento, onde ocorre a descarga total ou parcial de
sua energia, resultando em erosão.

A ação eólica é similarmente causadora das alterações do espaço na praia da Ponta


d’Areia, pois além de ser responsável pelas formações dunares, resultado da acumulação de
sedimentos arenosos, também possui a função importante de formar ondas e correntes, as quais
juntamente com as marés, constituem o padrão de circulação das águas marinha nas zonas
litorâneas e sublitorâneas, como afirma Christofoletti (1980, p. 130).
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Figura 04: Erosão em frente aos bares da praia da Figura 05: Enrocamento em frente ao Praia Mar
Ponta d’Areia, São Luís - MA Hotel na Ponta d’Areia, São Luís - MA

Fonte: Dados da pesquisa, 2018

Com a alteração da paisagem por ações antrópicas, como a construção de bares,


edifícios, residências, hotéis, entre outros, a erosão costeira se torna um problema devido à
possibilidade de devastação nessas áreas, o que pode ser observado em diversos pontos da praia
da Ponta d’Areia, onde é possível constatar a destruição da área onde ficam os bares (Figura 04),
e em frente a hotéis (Figura 05).

A construção do espigão da Ponta d’Areia em 2011 constitui uma barreira, a qual foi
instalada com o objetivo de conter o deslocamento natural de areia pela deriva litorânea de leste
para oeste, controlar a erosão de uma parte do “bairro” da Ponta d’Areia, e o assoreamento dos
rios Anil e Bacanga, mas o resultado esperado não foi almejado, já que os efeitos erosivos ainda
são constantes na área onde há bares, ao lado da Praça do sol.

Segundo a Secretaria Estadual de Infraestrutura (SINFRA, 2010) o espigão costeiro


de São Luís (Figura 06) tem 572 metros de extensão, a largura varia de 7 metros no início, a 13
metros no final, e a altura é de 4 metros a 14 metros. Sousa et al. (2012, p. 02), afirmam que a
obra foi planejada para melhorar a paisagem e evitar o avanço da erosão provocada pelas marés,
que poderiam comprometer a orla da área até o limite do rio Bacanga.
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Figura 06: Espigão costeiro na Ponta d’Areia, São Figura 07: Enrocamentos para evitar o avanço dos
Luís - MA sedimentos na Ponta d’Areia, São Luís - MA

Fonte: Dados da pesquisa, 2019

Após a construção do espigão, Sousa et al. (2012, p. 02), afirmam que na dinâmica da
paisagem ocorre intenso processo de sedimentação e erosão devido aos fatores exógenos,
destacando-se os de origem eólica. Na área é possível observar enrocamentos (Figura 07) para
refrear o acúmulo de material arenoso em função da ação dos ventos, sem sucesso; desgaste dos
assentos devido a ação eólica e salitre (Figura 08); além de riscos as pessoas que visitam o local
(Figura 09).

Figura 08: Assentos erodidos pela ação eólica Figura 09: Área do espigão sem grade de proteção

Fonte: Dados da pesquisa, 2019

A evolução da paisagem da Ponta d’Areia é afirmada a partir de imagens dos anos de


1956 (Figura 10) e 1975 (Figura 11), as quais permitiram constatar que, no primeiro ano, antes
das instalações da Ponte José Sarney e da Avenida Maestro João Nunes, não havia aglomeração
urbana na área, e sim uma extensa vegetação herbácia, enquanto na segunda, é possível identificar
a destruição do domínio vegetal, em função da divisão dos primeiros lotes a serem
comercializados.
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Figura 10: Área da “penísula” da Ponta d’Areia, Figura 11: Área da “penísula” da Ponta d’Areia,
São Luís, 1956 São Luís, 1975

Fonte: Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, 1956 Fonte: PMSL, 1975 apud Marques, 1996

A análise da cobertura e uso do solo de 1974 (Mapa 03 e Figura 12) destaca um


pequeno espaço urbano, concentrado a leste e uma extensa faixa de areia, onde já havia a divisão
de terrenos. Em 1984 (Mapa 04 e Figura 13) é perceptível a urbanização prevalecendo na
localidade, em função das políticas de desenvolvimento que tornou a Ponta d’Areia um alvo das
imobiliárias, evidenciado pelo aumento de construções na área.

Figura 12: Imagem de satélite de 1974 da


Mapa 03 “penísula” da Ponta d’Areia, São Luís - MA

Fonte: Adaptado NASA, 1974; IBGE, 2015 Fonte: NASA, 1974


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Figura 13: Imagem de satélite de 1984 da


Mapa 04 “penísula” da Ponta d’Areia, São Luís - MA

Fonte: Adaptado NASA, 1984 IBGE, 2015 Fonte: NASA, 1984

No ano de 1994 (Mapa 05, Figura 14), a urbanização já prevalecia em boa parte da
área de estudo, enquanto a faixa de areia diminuiu, dando indícios que a urbanização continuava
progressivamente. Em 2004 (Mapa 06, Figura 15), década na qual a especulação imobiliária na
Ponta d’Areia progrediu intensamente, a orla da praia está reduzida, em função das dinâmicas de
marés. As áreas de vegetação têm maior destaque que os anos anteriores, em função da reserva de
lotes para a construção de mais empreendimentos.

Entre os anos 2000 e 2017 (Mapa 07, Figura 16), a configuração espacial da Ponta
d’Areia foi alterada, afirmando o domínio de grandes empreendimentos imobiliários
verticalizados, tidos como uma saída para o crescimento populacional, havendo pouca vegetação
a oeste, mas com a mesma área de manguezal a leste. Na faixa de areia, houve um aumento em
toda orla, devido à construção do espigão costeiro, sendo este um resultado satisfatório para os
objetivos do empreendimento de aumentar a largura da praia.
Figura 14: Imagem de satélite da “penísula” da
Mapa 05 Ponta d’Areia, 1994

Fonte: Adaptado NASA, 1994; IBGE, 2015 Fonte: NASA, 1994


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Imagem 15: Imagem de satélite da “penísula” da


Mapa 06 Ponta d’Areia, 2004

Fonte: Adaptado Google Earth, 2004; IBGE, 2015 Fonte: Google Earth, 2004

Imagem 16: Imagem de satélite, Ponta d’Areia,


Mapa 07 2017

Fonte: Adaptado IBGE, 2015: Google Earth, 2017 Fonte: Google Earth, 2017

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução da paisagem da “penísula” da Ponta d’Areia nos últimos 50 anos evidencia


não só a intensidade progressiva das atividades antrópicas, com as políticas de expansão e
habitação, a partir dos anos 1960, mas também as ações causadas pelos agentes oceanográficos e
climáticos, principalmente na zona costeira, os quais modelam a paisagem na forma de depósitos
sedimentares ou feições erosivas, causados geralmente pela ação das ondas, chuvas, e dos ventos.

O espigão costeiro da Ponta d’Areia influenciou no processo de alargamento da faixa


de areia da praia, principalmente a sua barlamar, onde há interesses comerciais em relação aos
empreendimentos imobiliários na área, os quais estavam sendo afetados pela a erosão marinha, e
aos portos de São Luís, pois os canais de navegação estavam sendo assoreado com o acúmulo de
sedimentos, agora contidos pelo espigão costeiro. Mas ocorrências de erosão causadas pelas ondas
aumentaram a leste, em função dos altos níveis de marés.
Página 1582 de 2230

A construção de novos empreendimentos que dependam da autorização da Companhia


de Saneamento Ambiental do Maranhão (CAEMA) na “penísula” Ponta d’Areia foi proibida em
setembro de 2017, pois não há rede de esgotos suficiente para a quantidade de efluentes da região,
tendo como consequência vazamento de esgoto a céu aberto, despejos destes nos manguezais e
áreas de praias.

Como resultado da evolução da paisagem da área de estudo, pode-se perceber o


aumento da frequência de erosão costeira pelas ondas, as quais causam a perda de propriedades,
como bares, e condomínios; deposição de efluentes, diretamente na praia, afetando a
balneabilidade por contaminação; perda de recursos pesqueiros; da geodiversidade, do valor
paisagístico, e cultural, prejudicando o turismo, afetando economicamente esse setor.

Os impactos identificados na “penísula” da Ponta d’Areia têm sido uma problemática


ambiental e social, devido às dinâmicas das áreas costeiras, e por isso, é preciso entender essas
zonas do ponto de vista geológico, geomorfológico, oceanográfico, e também, as relações entre o
homem e a natureza, incluindo os aspectos sociais, econômicos e políticos, para que as decisões
sejam tomadas de forma que não afete a preservação do meio natural e o bem estar da sociedade,
com leis atualizadas que limitem o uso da área, já que a Lei de Zoneamento utilizada em São Luís
data de 1992; medidas voltadas para a preservação da área de manguezal ainda existente; e para
incentivar a proteção das poucas áreas naturais que ainda há na área de estudo.

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ESPAÇO MUSEAL E TURISMO CULTURAL: A GESTÃO DE MUSEUS DO CENTRO


HISTÓRICO EM SÃO LUÍS – MA

MUSEUM SPACE AND CULTURAL TOURISM: THE MANAGEMENT OF


MUSEUMS OF THE HISTORICAL CENTER IN SÃO LUÍS - MA
Clara Letícia Moreira Gomes/Graduanda/UFMA
Maria de Fátima Lima Soares/Graduanda/UFMA
Kláutenys Dellene Guedes Cutrim/Doutora/UFMA

Eixo 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: Museus são as instituições culturais mais antigas que existem, guardiões do
patrimônio e da memória que promovem a educação, lazer e entretenimento aos seus visitantes. E
o turismo, em específico o segmento cultural, é a atividade econômica destinada ao conhecimento,
valorização e a preservação do patrimônio cultural. Apresenta-se neste trabalho os museus do
Reggae e Arte Sacra, ambos situados no Centro Histórico de São Luís que demonstram em seus
acervos a riqueza da identidade cultural de seu povo. O objetivo deste trabalho é analisar os
espaços museais de São Luís como importantes atrativos a serem utilizados para o turismo cultural
na cidade e essa análise é pautada na visão dos gestores desses espaços.

Palavras-chave: Gestão. Museus. Turismo. Cultura.

ABSTRACT: Museums are the most ancient cultural institutions that exist, guardians of heritage
and memory that promote education, leisure and entertainment to their visitors. And Tourism,
particularly the cultural segment, is the economic activity intended to knowledge, valorization and
preservation of the cultural heritage. This project presents about the Reggae museum and the
Sacred Art museum, both placed in the historic city center of São Luís, which exhibit in their
collections the richness of cultural identity of its people. This project aims to analyze the museum
spaces in São Luís as important attractions to be used for cultural tourism in the city and this
analysis is based on the managers’ point of view from these spaces.

Keywords: Management. Museums. Tourism. Culture.

INTRODUÇÃO

São Luís possui uma forte identidade cultural presente nas mais diversas
representações culturais existentes. Toda essa representatividade pode ser vista em uma

ampla tipologia de museus que estão concentrados no centro histórico da cidade. Os


museus têm como uma de suas reponsabilidades preservar a memória de um determinado lugar,
ou seja, através de uma vista o turista tem a oportunidade de interagir verdadeiramente com os
costumes e história da população do lugar que está visitando. Antes os museus eram vistos como
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algo destinado apenas para as elites, porém esse conceito foi mudando e adquirindo diversos
significados ao longo dos anos, passando a incorporar a diversidade cultural.

O turismo cultural importante atividade econômica, constitui-se em vivenciar o


patrimônio cultural sendo considerado um forte impulsionador de desenvolvimento
socioeconômico as comunidades. No entanto, apesar de São Luís possuir um amalgama cultural
de grande magnitude, a cidade ainda não se destaca como destino voltado a essa segmentação,
estando o atrativo natural Lençóis Maranhenses percebido como o mais visitado no Estado.

De acordo com Mtur340 (Ministério do Turismo), os museus estão entre os atrativos


mais visitados do Brasil, um propenso estímulo ao desenvolvimento socioeconômico de São Luís
por meio da cooperação entre essas instituições e a atividade para a fruição turística na cidade,
com a inclusão em pacotes e roteiros turísticos pelas agências de turismo que recepciona os
viajantes, e ainda, que a gestão desses espaços podem contribuir para isso com a elaboração de
projetos inovadores que promovam essa fruição, trazendo para os museus um público
diversificado.

METODOLOGIA

Esta é uma abordagem qualitativa de natureza aplicada, de objetivo exploratório-


descritivo. Os procedimentos metodológicos utilizados são pesquisa bibliográfica para a
fundamentação teórica em livros, artigos e relatórios, e a descritiva com pesquisa de campo, onde
foram feitas observações e entrevistas com os gestores dos museus.

As pesquisas exploratório-descritivas são, de acordo com Marconi e Lakatos:

“Estudos exploratórios que combinados têm por objetivo descrever completamente


determinado fenômeno como, por exemplo, o estudo de um caso para o qual são
realizadas análises empíricas e teóricas. Podem ser encontradas tanto descrições
quantitativas e/ou qualitativas quanto acumulação de informações detalhadas como as
obtidas por intendido da observação participante” (MARCONI, LAKATOS, 2003,
p.188).

Para Gil (2002) os estudos de campo requerem a utilização de vários instrumentos de


pesquisa, entrevistas e questionários são alguns desses instrumentos utilizados, portanto, é
necessário testá-los antes de sua aplicação. Desenvolver procedimentos de aplicação, testar
vocabulário empregado nas questões, assegurar que as questões a serem feitas possibilitem medir
a variáveis que se pretende medir.

340
Os museus estão entre os atrativos mais visitados do Brasil. Ministério do Turismo; disponível em:
http://www.turismo.gov.br/últimasnotícias ; acesso em: 15 nov.2019
Página 1586 de 2230

Para os autores, (MARCONI, LAKATOS E GIL) é necessário que se faça o pré-teste


dos instrumentos a serem aplicados a comunidade para aprimorá-los e validá-los, o mesmo deve
ser testado em uma população de características semelhantes ao público-alvo escolhido, mas
nunca o mesmo.

Com o projeto ainda em fase de andamento, na elaboração deste artigo foram aplicadas
inicialmente entrevistas apenas aos gestores dos museus. Em seguida, os resultados
foram analisados e inclusos no texto.

REFERENCIAL TEÓRICO

O estudo do patrimônio acontece em uma temática de discussões vastas, estando


relacionado a história das sociedades, a memória e a identidade, ao turismo, ao desenvolvimento,
ao trabalho e ao lazer. Implica em legado, herança, transmissão de algo deixado de ascendentes a
descendentes (MENDES, 2009, p.12). É ainda, o conjunto de bens materiais e imateriais de
valores e interesses relevantes para a representação da identidade e da cultura de um povo. O
patrimônio é representante de determinadas sociedades está associado aos museus e ambos
possuem temáticas afins, pois estes são dedicadas a preservação e valorização do patrimônio
cultural e da memória, promovem o conhecimento e a educação por meio da autenticidade do
saber fazer culturais das populações autóctones, afirmando o sentimento de pertencimento e
contribuindo para a construção da identidade.

A noção de patrimônio em sua função representativa de sociedade está assentada às


raízes familiares, políticas, sociais, culturais, econômicas e jurídicas no tempo e no espaço, é
destinado ao usufruto comunitário, sendo constituído pelo contínuo acúmulo de bens materiais e
imateriais que se congregam por seu passado comum. (CHOAY, 2001).

Entretanto, conforme Funari (2006 p.9), “as coletividades são constituídas por grupos
diversos em constantes mutação, com interesses distintos e, não raro, conflitantes. Uma pessoa
pode pertencer a diversos grupos e, no decorrer do tempo mudar para outros”. O patrimônio
concebido como representatividade simbólica de identidade, a partir da seleção do entorno, pode
possuir valor para uns, porém, não necessariamente, tenha o mesmo significado para outros. O
patrimônio individual é a escolha daquilo que entendemos de valor que nos interessa, já o
patrimônio coletivo é algo mais distante que é escolhido para representar a coletividade, pode nos
interessar, ou não.

Os museus na função educativa para valorização do patrimônio e construção da


identidade, se revelam como lugares impregnados de reminiscências das sociedades ali
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representadas, tornando-se guardiões da memória do esquecimento, estando durante muito tempo


a disposição do poder dominante como reduto dos gostos das elites, não contemplando a
diversidade cultural existente. O domínio sobre as memórias tem demonstrado ao longo da história
a capacidade de determinadas sociedades em se beneficiar com a exploração e domínio de outros
povos na desconstrução de suas identidades, mácula e esquecimento de suas memórias. Para Le
Goff (1990, p.426) “essa é a grande preocupação das classes que dominam as sociedades históricas
tornarem-se senhores das memórias e do esquecimento”.

Segundo Chagas (2011), as instituições que tratam da preservação do patrimônio


como os museus, bibliotecas, arquivos e galerias de arte, apresentam um discurso sobre a realidade
do poder diante das memórias, é importante que se compreenda não só as falas e as lacunas, mas
observar o que é falado, de quem parte e de que lugar partem esses discursos, reconhecendo que
há uma seleção entre as memórias daquilo que deve ser preservado e o que deve ser esquecido.

“Indicar que as memórias e os esquecimentos podem ser semeados e cultivados corrobora


a importância de se trabalhar pela desnaturalização desses conceitos e pelo entendimento
de que eles resultam de um processo de construção que também envolve outras forças,
como por exemplo: o poder. O poder é semeador e promotor de memórias e
esquecimentos” (CHAGAS, 2011, p.36).

O tempo passou e os museus continuam a ser espaços destinados a preservação da


memória, mas com o novo conceito de cultura no final da década de 1960, o papel dos museus e
seus discursos começaram a ser questionados e os movimentos identitários culturais passaram a
reivindicar a inserção da diversidade cultural nas áreas da cultura e do conhecimento, fazendo
surgir a nova museologia que dava abertura as mais variadas tipologias de museus e
representações do patrimônio. “Nesses espaços buscou-se expor bens passiveis de representar
modos de ver e de viver de grupos diversos” (OLIVEIRA, 2008, p.146). E na década de 70, um
dos principais marcos na transformação do espaço museológico em museu integral, foi decidido
na mesa redonda da Unesco de 1972, em Santiago do Chile, enfatizando a dimensão social dos
museus para a transformação e desenvolvimento do ser humano.

Diante de todo o processo de transformação dos museus para atender as


reinvindicações da sociedade, percebe-se ainda, seu envolvimento também no processo de
desenvolvimento socioeconômico das comunidades. Considerados propícios atrativos a atividade
turística, os museus são potencializadores da atividade econômica dos destinos onde estão
inseridos.

Segundo a conferência das Nações Unidas sobre o comércio e desenvolvimento:

“O turismo é um dos principais impulsionadores da economia criativa, estimula o


crescimento da indústria de bens criativos e serviços culturais no mercado turístico. No
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mundo todo, o turismo é um negócio que totaliza $3 bilhões por dia, do qual
potencialmente podem usufruir países em todos os níveis de desenvolvimento. É a
principal fonte de câmbio estrangeiro para um terço dos países em desenvolvimento e de
metade dos países menos desenvolvidos, nos quais ele corresponde a até 40% do PIB”
(BRASIL, 2012. p.21).

O interesse pela cultura engloba conhecer o homem em todas as suas ações e relações
com o meio em que vive. O turismo vem nesse sentido, proporcionar ao visitante o interesse pela
cultura, história e vivências das comunidades visitadas. A segmentação turismo cultural é
direcionada ao patrimônio material e imaterial; a arquitetura, as memórias, o saber fazer, os
fenômenos culturais e sociais. De acordo com o Ministério do Turismo (BRASIL, 2010) “turismo
cultural compreende as atividades turísticas relacionadas à vivência do conjunto de elementos
significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo
os bens materiais e imateriais da cultura”.

Há vários autores que trabalham o conceito de turismo cultural, alguns deliberando


como segmentação destinada a preservação do patrimônio cultural. Barreto (2007) por exemplo,
diz que o turismo cultural é contrário ao turismo de massa, visto que este é estigmatizado como
sendo o grande vilão devorador do espaço turístico, já o primeiro, é o segmento em que o turista
prima pela preservação e valorização do patrimônio, do saber, do conhecimento e por experienciar
a autenticidade do cotidiano local. Ainda segundo a autora, “no turismo cultural o principal
atrativo não é a natureza, mas os aspectos relacionados à cultura humana, que pode ser a história,
o cotidiano, o artesanato ou quaisquer aspectos abrangidos pelo conceito de cultura.” (BARRETO,
2007, p. 87).

Para Costa (2009), o conceito de turismo cultural ainda continua indefinido, pois o
foco tem sido direcionado apenas para o objeto que motiva a visita. O conceito mais amplo de
turismo cultural estuda o fenômeno por completo, as motivações de seus participantes, as
características do objeto e de sua demanda, a interatividade, as experiências as relações com a
comunidade local, o que proporcionam a preservação e educação por meio do conhecimento do
patrimônio cultural.

No segmento ocorre a troca de conhecimento entre visitante e morador visando de


alguma forma o saber que se traduza em experiências interativas. Não há turismo cultural com
passividade, o turista procura em suas viagens se inserir, entrar em contato com as culturas locais,
conhecer a arquitetura, a gastronomia, os saberes e vivências populares, dessa forma o turismo
contribui com a preservação do patrimônio e de seus elementos tradicionais. Contudo, não nos
esqueçamos da comunidade que também engloba a atividade turística. Qual sua relação com
turismo na era da experiência? O que pensa sobre o turismo? É bom para os moradores? Será que
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a comunidade quer realmente essa aproximação mais direta com o turista? A atividade turística
muitas vezes é imposta a comunidade e como consequência percebe-se a mudança social do lugar
e o desaparecimento da cultura nativa, estando a atividade voltada ao turismo convencional de
luxo que transforma o lugar em local para residências de veraneio.

A padronização de produtos culturais. A preparação e elaboração do produto turístico,


com o propósito de otimizar a viagem do turista, acaba também por tornar-se uma ameaça,
principalmente nesse momento em que o viajante opta por novidade e interatividade. Quando se
insere produtos originários de outras partes do país, como atrativos de determinado lugar
descartando a autenticidade de seus produtos locais. Isso não entusiasma, nem chama a atenção
do turista que está sempre à procura de algo novo, ver paisagens inéditas nos lugares em que visita.
Pela dimensão continental do país e características diferenciadas entre as regiões, é possível
formatar um produto diversificado e autêntico, ampliando a permanência do turista agregando
valor a experiência, com a inovação da oferta e formatação dos produtos culturais diversificados.

Para Swarbrooke (2000):

“Muitas são as discussões em que profissionais sugerem que turismo cultural e turismo
sustentável são sinônimos, contudo, há vários aspectos que mostram a incompatibilidade
entre ambos. Dentre os aspectos estão as pressões sobre a diversidade cultural que podem
ser decorrentes da homogeneização da cultura, ocasionando a redução dessa diversidade
o que acarreta na diminuição do desejo de viajar do turista em vivenciar outras culturas.”
(SWARBROOKE, 2000, p.35)

O fator da homogeneização cultural perpassa pela anulação das culturas “inferiores”


com esforço em suprimi-las ou moldá-las em prol de uma cultura dominante, com isso perde-se o
caráter singular do lugar e vivencia-se a mesmice, não há intercâmbio, não existe troca de
conhecimento, não se adquire nada, pois o lugar não tem nada a oferecer que o visitante já não os
tenha visto e/ou vivenciado.

O turismo cultural ainda nas palavras de Swarbrooke (2000, p.39), “difere seu viés
sustentável quando o relacionamos com as mudanças ocorridas na educação da atualidade. Os
jovens, hoje em dia, estão aprendendo muito mais sobre negócios e tecnologia e menos sobre artes
e história, o conhecimento pelo homem comum, pela cultura está diminuindo”.

Entretanto, segundo Dias (2006, p.69) “os bens patrimoniais culturais constituem uma
importante ferramenta educacional, dando aos jovens a oportunidade de conhecer o passado como
forma de compreender o presente e consolidar valores que fazem parte do processo de construção
da identidade”. Porém, com a era tecnológica e a velocidade transitória e cambiante com que tudo
se transforma, se modifica, chamar a atenção do público, principalmente do público jovem e
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motivá-los a visitar museus, por exemplo, o patrimônio cultural existente, é um desafio, ainda
mais quando se percebe na gestão o receio em inovar e atender os anseios desse público.

Mas os museus passaram por processos e mudanças e continuam a se transformar com


o passar dos anos. Antes eram lugares destinados à contemplação de poucos privilegiados,
passaram então, a ser interesse do estado como representação da identidade nacional e instrumento
de educação. Consequentemente, em uma perspectiva sustentável, com a transmissão do legado
para atender as reinvindicações da sociedade, estão sendo acrescentados novos conteúdos, novos
significados e interpretações aos espaços museais de acordo com as atuais realidades
socioculturais.

Em São Luís, o grande desafio é tornar os museus produto para o turismo cultural,
inseri-los na atividade econômica para valorização da cultura e do desenvolvimento social. Os
atrativos culturais existentes somados a estruturação, divulgação e promoção, vêm a ampliar a
estada do turista que visita a cidade fora dos períodos de festas e abrevia sua estada a cidade por
não encontrar opções de entretenimento. Dessa forma, veem a cidade apenas como porta de
entrada rumo à cidade de Barreirinhas, o destino principal, onde está situada a atração maranhense
de grande visibilidade no país, o atrativo natural “Lençóis Maranhenses”.

Apesar de seu rico patrimônio cultural, material e imaterial, São Luís ainda não se
destaca como destino turístico voltado ao turismo cultural, uma segmentação que se encaixaria
perfeitamente aos moldes de sua diversidade. No centro histórico de São Luís estão concentradas
várias tipologias de museus com um enorme desafio: ampliar o número de visitantes a essas
instituições, embora, já se perceba algumas instituições sendo muito bem visitadas por seu
público.

Neste trabalho delimitamos nossa pesquisa a análise de dois entre os vários museus
existentes no centro histórico de São Luís: Museu do Reggae e o Museu de Arte de Sacra.

O Museu do Reggae
Está situado a Rua da Estrela, Praia Grande. É um espaço destinado a cultura musical
oriunda do Caribe, mais precisamente da Jamaica. O ritmo ganhou o gosto popular dos
ludovicenses e já faz parte da cultura Maranhense, incorporando a cidade o atributo de Jamaica
brasileira, sendo o primeiro Museu do Reggae idealizado fora da Jamaica. Foi inaugurado em
janeiro de 2018 e já é considerado a casa de cultura mais visitada da cidade, segundo o gestor, e
grande parte dos visitantes desse espaço são os próprios maranhenses. O museu está aberto ao
público de terça a domingo das 10h às 20h e a entrada é gratuita.
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Sobre a análise do espaço museal do reggae, destacam-se: políticas públicas,


ferramentas de gestão, mídias sociais e a relação com a atividade turística. A entrevista para o
fornecimento de tais informações com o gestor do Museu do Reggae foi realizada no dia 4 de
novembro por volta das 10h da manhã.

O primeiro tópico da entrevista foi sobre políticas públicas culturais voltadas a


instituição, em resposta, o gestor disse que considera a própria existência do museu do Reggae
uma concretização de uma política cultural do Estado voltada para o segmento, pois o Museu do
Reggae contempla uma população muito grande, a população do Maranhão que aprecia essa
cultura Reggae e que não tinha nenhuma política pública voltada pra ela.

Política cultural é a discussão sobre como a instituição quer agir e se relacionar com a
sociedade. Define o alcance social do museu em todos os seus aspectos, científicos e
comunicacionais, entendendo o museu como uma instituição preservacionista e de
comunicação. Assim, situa-se face ao patrimônio cultural e conceitua o seu público, para
então propor o seu papel nas construções da memória e identidade (MAST, 2009, p.38).

O museu é de grande importância para a população de São Luís ligada ao reggae, que
sempre foi muito marginalizada e discriminada, uma discriminação social e racial. Então, o poder
público, que durante muito tempo, mais de quatro décadas, reprimiu o reggae, hoje, reconhece
essa cultura e, não apenas reconhece como estimula e esse estímulo se dar exatamente com a
existência de programações anuais que valorizam essa cultura.

O museu do Reggae é um museu totalmente gerido com recursos públicos e utiliza


dentre as funções administrativas o planejamento no auxílio ao cumprimento para atingir metas e
objetivos das atividades realizadas dentro do museu, dando transparência da gestão aos parceiros
stakeholders e a comunidade, o entorno do museu.

O museu não possui canais de divulgação nas redes sociais ainda, mas está em pauta
como um dos objetivos a serem cumpridos na atual gestão. Em questionamento sobre a
passividade na utilização das redes sociais como veículo de comunicação e divulgação das
atividades realizadas, foi esclarecido que não há passividade, muito pelo contrário, em se tratando
de comunicação existe tanto interatividade nas relações virtuais quanto nas interpessoais e, que
uma não exclui a outra. Questionado ainda, sobre a relação museu e as tecnologias foi falado que
isso é uma grande evolução, não pode existir museu sem comunicação, e que os museus não
podem mais ser vistos como depositário de coisas velhas. Existem várias tipologias de museus, e
o nosso foco é a informação. A instituição contém relíquias como: guitarras, fotografias, discos
antigos etc, mas contém além de tudo informação. Possui monitores capacitados a dar
informações aos turistas objetivando uma visita agradável, que ao final deixam suas avaliações
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sobre essas visitas em um instrumento de avaliação que já é o mais preenchido entre as casas de
cultura na cidade.

Estando atualmente o Museu do Reggae como a casa de cultura mais visitada em São
Luís, questionamos a relação da instituição com a atividade turística na cidade, o gestor esclareceu
que os museus são sustentados pelo turismo. No caso especifico do museu do Reggae, este tem
um impacto muito forte, porque São Luís é a cidade considerada a capital do reggae no Brasil,
apelidada de Jamaica Brasileira, vindo a despertar a curiosidade de pessoas de outras cidades,
outros estados e até mesmo de outros países. Antes mesmo de completar 2 anos de existência a
instituição atingiu a marca de 100 mil visitantes e desses visitantes temos mais de 30 mil turistas.
Então, é um impacto grande e positivo do museu do reggae sobre a cadeia turística do Maranhão.

O museu é motivo de reportagens em revistas de bordo nas principais companhias


aéreas e nos principais veículos de comunicação do Brasil, como: Carta Capital, Jornal o Estado
de São Paulo, O Globo, a própria Rede Globo, sem falar nos veículos de comunicação local, que
praticamente temos reportagens todo mês. O museu também já foi matéria na BBC de Londres a
principal TV do mundo e CGTN na China com mais de um bilhão de expectadores, a maior TV
no mundo.

A relação museu do reggae e o turismo trazem a cidade de São Luís impactos e


benefícios profundos no próprio turismo, na cultura, na medida em que ele é reconhecido como
elemento cultural e na economia, pois o reggae gera trabalho e renda para milhares de pessoas em
diversas atividades, em som, luz, palco, djs, cantores, radiolas, etc, é uma cadeia produtiva muito
grande, nessa cadeia temos o pessoal da moda reggae, o artesanato, acessórios, as trancistas. O
trancismo hoje é uma atividade importante aqui no Maranhão, e é oriundo do reggae. Quando o
turista se depara com essa cultura ele vai também contribuir com o impacto econômico. Em uma
pesquisa a turismóloga Talice Ramos foi perguntado aos turistas hospedados aqui em São Luís,
qual atrativo era mais conhecido no estado do Maranhão? Em primeiro lugar está os Lençóis
Maranhenses e em segundo está o Reggae. Então o produto reggae é mais conhecido lá fora que
qualquer outro produto cultural do Maranhão.

Museu de Arte Sacra


O museu de Arte Sacra é anexo ao Museu Histórico e Artístico do Maranhão (MHAM)
e seu acervo está abrigado no palácio Arquiepiscopal desde 2014. A história do palácio está
intimamente ligada a presença jesuítica no Maranhão, pois fora sede do colégio jesuíta Nossa
Senhora da Luz. Está situado a praça Pedro II ao lado da igreja de Nossa Senhora da Vitória e
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aberto à visitação de terça à sexta-feira das 9h às 17h30h, sábado das 9h às 17h e domingo das 9h
às 13h e é totalmente gratuito.

O acervo em exposição permanente do MAS (Museu de Arte Sacra) contém uma vasta
coleção de peças de metal, precioso ou não, e imaginária, com exemplares de grandes movimentos
artísticos como o maneirismo, barroco, o rococó e o neoclassicismo” (MHAM, 2014). O museu
possui junto ao acervo a imagem de São Bonifácio com um relicário no peito em formato de flor
contendo fragmentos de ossos do mártir que dá nome a imagem. “Esta imagem simboliza a pedra
fundamental da missão da companhia de Jesus no Maranhão e Grão-Pará” (MHAM, 2014).

A entrevista com a gestora do Museu de arte Sacra não pode ser realizada devido a
sua atuação no espaço ser muito recente, contudo, conseguimos realizar tal façanha com a gestora
Museóloga do MHAM, a qual pode nos dá várias informações do anexo museu de Arte Sacra. A
entrevista realizou-se no dia 7 de novembro por voltas das 16h. Em análise a gestão do espaço, a
gestora museóloga do MHAM forneceu informações sobre políticas públicas culturais voltadas
aos museus do estado, inclusive o MAS, acessibilidade, planejamento e a relação dos museus com
o turismo no Maranhão.

Segundo a gestora, uma das políticas públicas culturais voltadas para os museus foi a
criação do Sistema Maranhense de Museus (SMM), a lei foi sancionada nesse segundo semestre
de 2019 e com esse sistema pretende-se pensar em políticas públicas culturais voltadas para o
setor museal do Estado do Maranhão.

Esse sistema pretende ser um apoio para as instituições tanto estaduais como
particulares e municipais em relação a consultoria sobre como se deve agir dentro dos espaços,
desenvolver atividades, desenvolver cursos de formação para os funcionários, mapear os museus
do Maranhão, dá apoio no que se refere a criação de museus comunitários e pequenos museus de
acordo com os objetos existentes nas cidades, pois sabe-se que existem muitas cidades que
possuem objetos significativos, mas que o povo não despertou para expor esses objetos como
acervo em um museu, e cidades que não tem condições de criar um espaço para exposição.

Os acervos museológicos são bens culturais de produção humana carregados de sentido.


Isolados, não apresentam importância, mas, uma vez trabalhados pela museologia,
adquirem significados diversos, levando o público a reconhecê-los como herança cultural
e a identificar a existência dos elementos imateriais neles contidos (MHAM, 2014, p.9).

Então, o SMM propõe esse apoio não só na capital, mas em todo o estado. Outra
política voltada aos museus foi em relação a gratuidade, esse ano foi sancionado um decreto do
governo do Estado em que todos os museus como o MHAM, museu de Arte Visuais, MAS e todos
as instituições culturais vinculados a secretaria de cultura do estado tivessem entrada gratuita.
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Antes pagava-se R$5,00 pra entrar no museu, mas havia a política de que criança de até 7 anos,
idosos e grupos de escolas públicas também não pagavam, o primeiro domingo do mês não era
pago.

Ainda, sobre política pública direcionada a questão da acessibilidade, o museu ganhou


um elevador que possibilita o acesso a deficientes físicos e de baixa mobilidade, muito embora, a
entrada principal não possua rampa, o visitante pode ter acesso ao museu pelos fundos da
instituição. Quanto a elaboração de rampas no espaço, a museóloga afirmou que se tem uma
contemplação muito grande de museus no centro histórico de São Luís e é preciso alinhar a
preservação do patrimônio com a lei do IPHAN, que diz que não se pode modificar a estrutura do
patrimônio, a acessibilidade.

O museu tem espaço destinado a exposição permanente e espaços destinados a ações


educativas com escolas e algumas exposições temporárias. Como o MAS é vinculado ao MHAM
tem-se o Projetos como: “Museu vai à escola”, “Museu vai a comunidade” que apresentam o
MHAM e seus anexos que são: o MAS, Artes Visuais, Convento das Mercês, Igreja do Desterro,
a Capela da Laranjeiras e Cafua das Mercês.

Em relação as ferramentas de gestão utilizadas no museu, a gestora forneceu


informações de que o museu está incluso no Plano Museológico que é cobrado pelo IBRAM, com
prazos para que todos os museus tenham seu plano museológico, esse plano é o que direciona as
atividades do museu MHAM e seus anexos. Anualmente é feito um planejamento das atividades,
não apenas voltado a programação cultural, mas envolve as atividades dentro do museu, que não
se resume apenas em receber o público, mas trata-se também de atividades em torno dos acervos,
que é de conservação, preservação, catalogação, documentação e pesquisa. O plano museológico
é uma ferramenta de gestão que tem que ser revisto e repensado anualmente.

Sobre o uso de tecnologias, o MAS possui há pouco tempo uma página interativa nas
redes sociais, no entanto, não se tem um diagnóstico sobre o fluxo de visitantes a partir da criação
desse status. Mas, de acordo com a gestora é importante que os museus estejam inseridos nas redes
sociais, pois amplia a visibilidade sobre as atividades que acontece na instituição.

Cada anexo tem seu gestor que fica responsável pela parte de comunicação do museu
e essa iniciativa de abrir uma página nas redes sociais partiu da gestão anterior do MAS. Os
museus ficam à disposição da secretaria de cultura do estado, que possui uma falha tremenda em
relação a comunicação e divulgação dos museus, pois não se têm profissionais direcionados a área
do marketing. “Os profissionais de marketing se envolvem na gestão da troca de diferentes tipos
de produtos: bens, serviços, eventos, experiências, pessoas, lugares, propriedades, organizações,
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informações e ideias” (Kloter; Keller, 2012, p.4). Nos museus é interessante que tenham
profissionais capacitados nas mais diversas áreas para melhor fruição de suas funções.

Falou-se também sobre a relação dos museus com o turismo em São Luís, segundo a
gestora há uma ausência de profissionais que atuem nessa questão de empenhar os museus
voltados a um público mais amplo. E considera o turismo um vetor de desenvolvimento para
cadeia econômica, sendo percebido uma mudança e que a cidade melhorou em muitos aspectos
sobre a atividade. Mas, que o turismo deve ser feito com planejamento e que em muitas cidades o
turismo é algo predador, as pessoas não se sentem mais felizes morando ali. Em Barcelona, por
exemplo, os moradores se sentem incomodadíssimos com a quantidade de turistas que visitam a
cidade, mas a atividade é importante para o desenvolvimento econômico. – Por que a vinda do
turista é boa pra cidade de São Luís? Porque ele vem gastar o dinheiro dele aqui, com restaurante,
com taxi, hotel e isso faz a economia girar e se o governo estiver atento a isso, vai fazer de tudo
para manter a vinda desse turista a cidade.

RESULTADOS

Na pesquisa bibliográfica procurando-se dar ênfase ao objeto a relação entre museus


e turismo, discorreu-se sobre a opinião de alguns autores que trabalham a temática associando a
questão: memória, identidade e o patrimônio, apontando os conceitos e divergências entre eles (os
autores). Logo em seguida a pesquisa bibliográfica para fundamentar o discurso da relação, partiu-
se para o trabalho de campo, que inicialmente arrolou-se por entrevistar apenas os gestores dos
museus citados na pesquisa: Museu do reggae e Arte Sacra. O primeiro, a comentar sobre o espaço
a partir das observações feitas, é um museu bem interativo em relação ao segundo. Pode-se
comprovar isso no relatar do gestor sobre o número de visitantes, já considerado o museu mais
visitado da cidade, percebendo-se aí, os anseios dos visitantes que optam por vivenciar a cultura
do lugar visitado.

No tocante ao uso de tecnologias, são ativos nas redes sociais, muito embora, dentre
os museus pesquisados apenas o Arte Sacra possua rede social própria, partindo da gestão anterior
a ideia de abarcar o público virtual para divulgação de suas atividades. Isso na visão dos gestores
amplia a visibilidade e alcança um público diversificado que desconhece o museu ou não pode
visitá-lo pessoalmente. Quanto ao uso de ferramentas de gestão, ambos enfatizaram o uso do
planejamento como principal meio de condução das ações a serem realizadas, demonstraram-se
alheios a tais ferramentas de gestão que poderiam auxiliá-los na administração dos espaços. Há
uma ausência de profissionais relativos a outras áreas que abrangem o setor museológico o que
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daria maior fruição quanto as funções que são exercidas apenas por um profissional que administra
o museu em específico, no caso, o museólogo.

Os gestores foram enfáticos e precisos quanto a relação museus e turismo


conceituando a atividade como dinamizadora da economia. Entretanto, os museus de São Luís não
são vistos como espaços apropriados ao lazer e entretenimento como se pretende apresentar, pois
não são lugares em que se sinta à vontade considerando dentre os quatro aspectos básicos do poder
disciplinador dos museus como se refere Carlos Chagas, o controle do tempo, a vigilância e a
segurança do patrimônio. Não propiciando ao visitante a alternativa de guiar a si próprio pelo
espaço museal.

Contudo, na visão dos profissionais sobre o turismo, é notável a dimensão significativa


dessa cadeia econômica, mas que há muito a se fazer em São Luís no sentido de se viabilizar a
inclusão nesses espaços e que os governantes devem estar atentos a isso tornando não só os museus
acessíveis a todos os tipos de público, mas a cidade como um todo para que venha a tornar-se
destino para o segmento turismo cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os resultados e discussões percebe-se que a relação de museus e turismo


é benéfica a São Luís levando aos que visitam a cidade o conhecimento sobre a diversidade
cultural do estado por meio das instituições museológicas. Os museus da cidade devem estar
inseridos nos pacotes e roteiros turísticos no que se propõe a utilização desses espaços para a
turistificação da cidade. E o turismo cultural que visa o conhecimento sobre o saber fazer cultural
de determinados povos é a segmentação que melhor atende a sua criatividade e diversidade
cultural.

Enfim, em exceção a algumas casas de cultura que são muito visitadas em São Luís,
esses espaços precisam ser lugares de contínua visitação, não existe museu sem seu público, isso
é fato! Contudo precisam de estratégias para atrair esse público, pois sendo instituições totalmente
geridas com recursos públicos deve haver uma maior articulação dentro desses espaços para maior
aproveitamento desses recursos e que não sejam destinados apenas aos turistas, mas que a
população do entorno os veja como sendo locais propícios ao lazer e entretenimento.

REFERÊNCIAS
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2007.

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Políticas de Turismo, Departamento de Estruturação, Articulação e Ordenamento Turístico,
Coordenação Geral de Segmentação. – Brasília: Ministério do Turismo, 2010. 170p.

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desenvolvimento. – Brasília: Secretaria da Economia Criativa/Minc; São Paulo: Itaú Cultural,
2012. 424 p.
CHOAY, Françoise. Alegoria do patrimônio. Tradução: Luciano Vieira Machado. São Paulo.
Ed. Unesp, 3ª ed. 2001. 282 p.
CHAGAS, Mário de Souza. Memória e poder: dois movimentos. 2011.
COSTA, Flávia Roberta. Turismo e patrimônio cultural: interpretação e qualificação – São
Paulo: Editora Senac São Paulo: Edições SESC SP, 2009.
DIAS, Reinaldo. Turismo e patrimônio cultural – recursos que acompanham o crescimento
das cidades. São Paulo: Saraiva, 2006.
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KLOTER, Philip. KELLER, Kevin Lane. Administração de marketing. Tradução Sônia Midori
Yamamoto; revisão técnica Edson Crescitelli. – 14. ed. – São Paulo: Pearson Education do Brasil,
2012. 747 p.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão [et al.] -- Campinas, SP
Editora da UNICAMP, 1990.

MARCONI, M. de A.; LAKATOS, E. M. Fundamentos de metodologia científica. - 5. ed. - São


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MHAM – Museu Histórico e Artístico do Maranhão. Intervenções estruturais e história


institucional – São Luís, 2014.

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Perspectivas. Organização de: Marcus Granato, Claudia Penha dos Santos e Maria Lucia de N.
M. Loureiro. — Rio de Janeiro: MAST, 2009.

MENDES, José Maria Amado. Estudos do patrimônio: museus e educação. Imprensa da


Universidade de Coimbra, 2ª ed. 2009. 231 p.

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SWARBROOKE, John. Turismo sustentável: turismo cultural, ecoturismo e ética, vol.5. trad.
Saulo Krieger – São Paulo: Aleph, 2000.
Página 1598 de 2230

EXPANSÃO URBANA: UMA ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS MIGRATÓRIAS NO


MUNICÍPIO DE VARGEM GRANDE – MA DOS ANOS DE 1980 AOS DIAS ATUAIS

URBAN EXPANSION: AN ANALYSIS OF MIGRATORY EXPERIENCES IN THE


MUNICIPALITY OF VARGEM GRANDE-MA FROM THE 1980S TO THE
PRESENT DAY

Eva Rosa do Lago


Mestranda em História
Universidade Federal do Maranhão – UFMA
Roseanne Márcia Silva Marques Monteiro
Mestranda em Educação
Universidade Federal do Maranhão – UFMA

Eixo 3 – Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

Resumo: O artigo analisa as experiências migratórias vivenciadas pelos habitantes do município


de Vargem Grande no Maranhão que presenciam mudanças significativas na dinâmica do
município, uma vez que se nota uma expressiva expansão da cidade orientada maciçamente pela
migração de moradores do campo ocorrida desde os anos de 1980 aos dias atuais. Nesta
perspectiva, com a saída dessas populações do campo para a cidade, fez encharcar seus arredores,
surgindo assim inúmeros bairros, em consequência disso, as povoações rurais foram esvaziando-
se. Neste sentido, objetiva-se uma análise crítica sobre a vida cotidiana na cidade de sujeitos
oriundos do campo, bem como compreender a dinâmica citadina a partir da adaptação dos novos
sujeitos, discutindo os impactos socioeconômicos da expansão urbana observada nos últimos
anos. A análise dessas mobilidades viabiliza ainda uma discussão acerca das relações de
interdependência entre os sujeitos do campo e da cidade. Metodologicamente utiliza-se a micro-
História como balizadora da pesquisa, uma vez que a mesma permite esse olhar mais próximo
das relações estabelecidas entre sujeitos e o espaço em que vivem. Assim, autores como Levi
(1992) Bensa (1998) Jacobs (2000) entre outros, norteiam a escrita do texto. Conclui-se que, o
processo de expansão da cidade no período supracitado se dá majoritariamente pela migração no
sentido campo-cidade, mobilidade esta que molda uma nova organização social a partir do
processo de adaptação dos sujeitos migrados que passam a conviver com experiências até então
não vivenciadas. Assim, o processo de adaptação dos sujeitos migrados é um processo que exige
novas formas de organização social que, oriundos do campo, necessitam refazer a vida na cidade,
descobrindo novas formas de trabalho que possibilitem a sobrevivência, entretanto, a vida na
cidade não anula sua ligação com seu local de origem, fato que implica uma nova socialização,
sempre buscando relações que se identifiquem com sua vida campesina. A cidade torna-se assim,
lócus privilegiado de novas relações sociais ao sabor de práticas heterogêneas.
Palavras-chave: Cidade. Experiências. Migração. Adaptação.

Abstract: The article analyzes the migratory experiences lived by the inhabitants of the
municipality of Vargem Grande in Maranhão, which witness significant changes in the dynamics
of the municipality, since there is an expressive expansion of the city driven massively by the
migration of rural residents that occurred since the 1980s to the current days. In this perspective,
with the departure of these populations from the countryside to the city, it drenched their
surroundings, thus creating countless neighborhoods, as a result of which, the rural settlements
were emptying out. In this sense, the objective is a critical analysis of the everyday life in the
city of subjects from the countryside, as well as understanding the city dynamics from the
adaptation of new subjects, discussing the socioeconomic impacts of urban expansion observed
in recenyears. The analysis of these mobilities also makes possible a discussion
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about the interdependence relations between the subjects of the countryside and
the city. Methodologically, micro-History is used as a beacon for research, since
it allows this closer look at the relationships established between subjects and
the space in which they live. Thus, authors such as Levi (1992) Bensa (1998)
Jacobs (2000), among others, guide the writing of the text. It is concluded that the
process of expansion of the city in the aforementioned period is mainly due to
migration in the countryside-city sense, mobility that shapes a new social
organization based on the adaptation process of migrated subjects who start to
live with experiences until then not experienced. Thus, the process of adaptation
of migrated subjects is a process that requires new forms of social organization
that, coming from the countryside, need to remake life in the city, discovering
new ways of working that enable survival, however, life in the city does not cancel
his connection with his place of origin, a fact that implies a new socialization,
always looking for relationships that identify with his peasant life. The city thus
becomes a privileged locus of new social relations based on heterogeneous
practices.
Keywords: City. Experiences. Migration. Adaptation.

INTRODUÇÃO

O município de Vargem Grande localiza-se às margens da BR- 222 atualmente possui


uma população estimada para 2019 de 56.510 habitantes de acordo com o IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) com uma área total de 1.957,751 Km² limita-se ao Norte
com os municípios de Nina Rodrigues e São Benedito do Rio Preto, ao Sul com os municípios
de Timbiras e Coroatá, ao Leste com Chapadinha e ao Oeste com Cantanhede e Pirapemas.
O mesmo é marcado historicamente por movimentos populacionais, uma vez que suas
primeiras histórias são contadas a partir da passagem de vaqueiros que conduziam boiadas

estas áreas rumo aos municípios de Icatu e Morros, partes destes sujeitos foram
instalando- se, formando pequenas povoações e, posteriormente vilas. A categoria de cidade foi
conquistada a partir da sua data de emancipação política datada do ano de 1935, quando o
município passa a sustentar-se politicamente, e a partir de então passa a vigorar sua autonomia
independente dos municípios vizinhos.
Os movimentos populacionais apresentam-se como uma das características humanas
mais remotas, pois desde os primeiros habitantes já havia formas de migração, atualmente os
deslocamentos populacionais apresentam-se com novas formas e motivações, porém algumas
características permanecem. Assim, a migração é a movimentação dos seres humanos nos
diferentes espaços. De acordo com Ianni (2004), o migrante é aquele que está sempre em busca
de novos ares, em constante movimento, que deseja encontrar novos modos de viver, arriscando-
se diante da possibilidade de emancipação. Neste sentido, a migração apresenta-se como essa
possibilidade de transformação de vida, na qual as pessoas que se aventuram nessa jornada estão
sempre em busca de melhorias de vida, uma vez que a mudança requer coragem
e determinação.
Neste contexto, a migração rural-urbana prevê uma mudança que traz em seu bojo uma
ressignificação dos movimentos populacionais uma vez que, em sua maioria são ocasionadas por
fatores de expulsão das populações do campo para as áreas urbanas. Portanto, a migração rural-
urbana é um dos fatores determinantes da mudança nos cenários urbanos e rurais, pois em
contraste ao esvaziamento do meio rural apresenta-se a cidade com uma população excedente
vivendo, muitas vezes, em condições precárias de sobrevivência.
Os movimentos populacionais em geral definidos como migração ganham diversos
conceitos, estes surgidos a partir das diferenças entre suas estruturas, pois depende de como essa
migração ocorre. Desta forma, quando o movimento de pessoas está condicionado ao
deslocamento destas em direção a outros países caracteriza-se como migração externa, sendo a
migração interna aquela em que se constitui numa mobilidade dentro do próprio país.
Segundo Mendonça (2015) e Gonçalves (2001) há outros movimentos caracterizados por
diversas situações de deslocamentos: tais como: o nomadismo (caracterizado por migrações em
que populações inteiras se deslocam em busca de alimentos e abrigo, é um movimento constante
e define as sociedades primitivas, estando, portanto, em extinção); migração urbano-rural
(caracterizada pela migração de pessoas de um setor urbano para os espaços rurais, sendo
atualmente bastante incomum); migração sazonal (define-se enquanto uma migração que é
estritamente temporária, pois tem como finalidade a mudança geralmente influenciada por
fatores naturais, onde populações migram de um determinado local, em determinado estação do
ano e retorna tão logo seja viável, define-se esta também como transumância - este tipo de
migração é comum entre os sertanejos no Nordeste brasileiro); migração pendular (uma migração
de caráter não permanente na qual, trabalhadores saem todas as manhãs de suas residências em
determinada cidade e só retorna ao final do dia, esta migração é típica das grandes cidades e
regiões metropolitanas); migração urbano-urbano (esta ocorre atualmente com muita frequência
e é caracterizada pela mudança de pessoas de uma cidade para outra); e migração rural-urbana
ou êxodo rural – foco do nosso estudo – (é marcado pela mudança de pessoas do espaço rural
para o espaço urbano, tendo diversos fatores de influência e sendo atualmente um dos grandes
pontos de discussão das migrações contemporâneas).
Sendo assim, a compreensão dos movimentos populacionais entre o meio rural e urbano
do município de Vargem Grande no Maranhão no período supracitado é viabilizada através de
uma análise ‘micro’ que nos leva a uma percepção ‘macro’ da problemática. Pois, segundo Levi,
A Micro-História tenta não sacrificar o conhecimento dos elementos individuais a uma
generalização mais ampla, e de fato acentua as vidas e os acontecimentos individuais.
Mas, ao mesmo tempo, tenta não rejeitar todas as formas de abstrações, pois fatos
insignificantes e casos individuais podem servir para revelar um fenômeno mais geral
(LEVI, 1992, p.158).

Neste sentido, a decisão dos sujeitos em migrar do espaço rural para o espaço urbano é
permeada por singularidades e ambiguidades que estão para além do que aparentemente se
observa. Sendo, portanto, uma investigação prenhe de significados que através da pesquisa
Micro-Histórica podemos esboçar algumas considerações relevantes acerca deste processo.
Assim, por meio do jogo de escala que segundo Bensa (1998) articula os processos ‘micros’ aos
processos ‘macros’ leva-nos a uma compreensão acerca das migrações ocorridas no município
de Vargem Grande-MA se considerarmos estes como parte de uma conjuntura maior na qual
aspectos singulares estão conectados a estruturas plurais. Diante disso, a riqueza sobre esse caso
mais especifico de migração, viabiliza uma análise mais ampla acerca deste fenômeno, pois as
mobilidades locais não se desligam de fenômenos mais gerais.
Face ao exposto, este estudo tem como foco uma análise dos movimentos migratórios de
sentido rural-urbana ocorrido na cidade de Vargem Grande - Maranhão a partir dos anos de 1980,
buscando analisar aspectos da vida cotidiana dos sujeitos oriundos do campo na cidade, bem
como uma compreensão da dinâmica da cidade a partir da adaptação dos novos sujeitos,
percebendo os impactos socioeconômicos da expansão da cidade nos últimos anos, objetivando
ainda uma discussão sobre as relações de interdependência entre o espaço rural e

o urbano. Nota-se que, essa mobilidade ocasionou transformações significantes nos


modos de vida dessas populações. Assim, a pesquisa prevê ainda, um olhar sobre as
consequências desta migração, tornando público um estudo focalizado da cidade e por vez deste,
sensibilizar a população para as condições históricas do esvaziamento da área rural e
consequentemente do encharcamento da área urbana, tornando estes conhecimentos fontes de
pesquisas para eventuais estudos posteriores.

A vida na cidade: adaptação

O quantitativo populacional Vargem-Grandense dos anos de 1980 a 2000 pode ser


observado na tabela abaixo, a qual apresenta um percentual de habitantes que vem caindo
deliberadamente no espaço rural e crescendo significativamente no espaço urbano, percebendo-
se uma taxa de urbanização bastante relevante para se pensar a relação rural- urbano e a
intensidade destes movimentos dentro do município de Vargem Grande.
TABELA 1 - População por situação de domicilio e taxa de urbanização em Vargem Grande – MA nos
anos de 1980, 1991, 2000.

POPULAÇÃO POR SITUAÇÃO DE DOMICILIO 1980, 1991, 2000.

POPULAÇÃ 1980 1991 2000


O
URBANA 8.834 12.194 17.116

RURAL 24.539 20.703 17.591


TOTAL 33.373 32.897 34,707

TAXA DE 26,5% 37,1% 49,3%


URBANIZAÇÃO*
Fonte: IBGE – censos demográficos 1980, 1991 e 2000.
*percentual da população urbana em relação à população total.

Como pode ser percebido na tabela acima, a partir dos anos de 1980, os movimentos
populacionais no município de Vargem Grande, em especial os de sentido rural-urbano
acentuaram-se significativamente. Neste caso, analisando a tabela, podemos perceber o
quantitativo populacional equivalente aos anos de 1980 a 2000 e encontramos a discrepância
entre ambos os números, ficando visível a saída do homem do campo, bem como o crescimento
relevante da população da cidade, sendo perceptível uma dinâmica de migração bastante forte
nestes anos.
Face ao exposto, é comum aos migrantes, primeiro a dor de deixar a vida no campo, em
seguida o processo doloroso de adaptação que, para muitos deles não se conclui, pois mesmo
morando há anos na cidade nunca deixam determinados comportamentos típicos do campo.
Diante do choque que se tem ao chegar a um local estranho, a nova vida passa por transformações
que abalam as famílias oriundas do campo na cidade. Os migrantes uma vez na cidade são
levados a aderir à organização do novo local de moradia, local este nem sempre digno para a sua
família.
Sendo assim, uma vez migrados estes indivíduos precisam se alocar em algum espaço na
cidade e desta forma surgem novos bairros e novas formas de ser e fazer a vida dentro desta nova
dinâmica, marcada por novas atividades para garantir a sobrevivência da família, onde os novos
habitantes da cidade precisam a todo custo se inserir nesta cultura que agora lhe cerca. Deste
modo, o sr. José Ribamar nos relata que,
Era pequena (a cidade), aqui não tinha casa, poucas casinhas, não tinha água, não tinha
luz aqui, né! A gente tinha que carregar água de onde tivesse, não tinha nada aqui, não
tinha açougue, né! Hoje, está igualmente cidade grande, porque tudo tem aqui, tem feira
de tudo enquanto tem, viu! Tem uma creche ali, né! Que isso aí foi uma benção que eles
construíram... (COSTA, 2019)

No relato, sr. José Ribamar nos apresenta o cenário que ele encontrou na cidade, ainda
pouco desenvolvida. O seu bairro, Baixa Grande, era distante e carente de serviços, sua adaptação
neste espaço foi lentamente uma vez que ele mesmo morando e com os filhos estudando na
cidade, ele ainda realizava atividades agrícolas em Veredas – área rural em que residia. Assim,
ele nos relata que,
Correria grande, ainda trabalhando no interior [...] não é querendo ser mais forte que todo
mundo, mas é como lhe falei, as pessoas que vieram pra cá, por causa da luta toda que a
gente já falou, não resistiram, desistiram, já delas, eu venci todas [...] não desistir de
nenhuma luta, cabeça fria, né! Tinha vez que a bicicleta estava quebrada eu ia de pé pro
interior não importava a hora que chegava lá, ia e voltava. (COSTA, 2019)
A adaptação paulatina expressada por ele, reflete a resistência do homem do campo em
abandonar seus laços, pois segundo Scott (2014, p.18) “a migração não é caracterizada por um
pleno rompimento com o lugar de origem”. Notadamente, a mudança para a cidade realizada
pelo sr. José Ribamar e sua família foi causada por fatores externos que circunstancialmente
impelem os indivíduos a buscarem novos ares.
Outrossim, a migração interna ocorrida no município demonstra a saída das pessoas do
campo e a vinda destas para a cidade, uma vez que há muitos relatos acerca deste movimento
ocorrido por motivações às vezes diferentes de abandono das áreas rurais, mas com destino
geralmente semelhantes que é o centro urbano. Neste sentido, a migração rural – urbano,
influenciou a dinâmica social do município, dando novas formas à estrutura física, econômica,
política e cultural da população Vargem-grandense.
Igualmente, deixar o campo e aventurar-se estabelecendo moradia na cidade permeia
diversas dificuldades que só conhece quem se arrisca a realizá-la, mesmo que sejam forçados a
tal. A chegada à cidade às vezes causa grandes desconfortos tanto para o migrante quanto para a
estrutura física da cidade, uma vez que quase todas estão despreparadas para receber grandes
contingentes de moradores oriundos do campo. Destarte, as aglomerações de moradias nos
arredores da cidade evidenciam uma urbanização descontrolada que foi especialmente
impulsionada pela migração rural-urbana no município.

A labuta do migrante: novas concepções de vida na cidade

A mobilidade aqui tratada como migração rural urbana no município de Vargem Grande,
apresenta traços da vida individual de sujeitos que migraram no período de 1980 a 2000 e que
tiveram transformações significantes em vários aspectos de suas vidas, especialmente no que se
refere ao trabalho, pois a partir da decisão de deixar o espaço rural e fixar residência na área
urbana, as atividades laborais outrora desenvolvidas, já não são mais possíveis neste novo
espaço. Diante disso, muitas foram as formas encontradas por essas populações para
desenvolverem atividades que pudessem adquirir alguma renda para ajudar a manter as famílias
na cidade. Neste sentido, o sr. José Ribamar relata sua experiência inicial,
Agora em agosto completou 20 anos, que eu comecei, era um bar quando eu morava na
residência lá embaixo. Aí, é assim: a gente faz uma coisa por vontade, não é porque
possa, não! Aí depois começamos com o comércio, botamos mercadoria, né! Aí, bota
aqui no comércio um pouquinho de mercadoria para começar, né! Eu achava que não
conseguia começar porque, como? Patrão não tinha, aposentado não era, dinheiro eu não
tinha, mas começou com esse lugar, tem crédito, começa a pegar algum negócio bom
também, pra começar o que a gente tem, começamos com pouquinho. (COSTA, 2019)

O esforço em adaptar-se à cidade e desenvolver formas outras de trabalho é uma prática


constante aos que migram. O sr. José Ribamar relata que iniciou com pequenas vendas de
bebidas em um bar e depois ele passou a trabalhar com o comércio, mesmo com pouco ou
nenhum dinheiro para o investimento.
Diante disso, percebe-se que para os sujeitos migrados, os primeiros anos de adaptação à
vida na cidade não é fácil, uma vez que estão acostumados a trabalhos mais voltados para o
campo, sendo que na cidade não há mercado de trabalho para estes trabalhadores, eles precisam
inserir-se no mundo do trabalho com outras atividades, muitas vezes autonomamente, outras em
trabalhos precários com proventos aquém do esperado.
As dificuldades encontradas são as mais variadas possíveis, desde o trabalho até
encontrar uma moradia que possa acolher toda a família. As moradias dos migrantes em Vargem
Grande são, em geral, nos bairros localizados nos arredores da cidade, em espaços que
conseguem com muito esforço, assim nos relata o sr. José Ribamar,
Nós conseguimos uma casa, uma casa mesmo comum, de barro, madeira e barro, até de
palha era coberta, casarão que eu vendi, que eu construir, mas já vendi e nós fazia tudo
pra dar certo, não ficar devendo ninguém, comprava nossos objetos quando dava pra nós
comprar, mas o que nós pudemos fazer, nós fizemos, foi uma vida de muito assim...
preocupação, trabalho! De muito interesse pra nós poder chegar no ponto que nós
estamos, porque muitos achavam difícil. (COSTA, 2019)

A percepção sobre as suas limitações é visível na sua fala, entretanto, o esforço pessoal
demonstrado traz em seu bojo toda uma conjuntura social que as populações estão sujeitas
quando do ato da migração em quaisquer que sejam as regiões. Entretanto, a despeito das
dificuldades, a cidade é um lugar onde reside grande número de populações rurais, que de uma
forma ou de outra conseguiram uma instabilidade ao sabor de grande luta que travaram para
encontrar seu espaço em um lugar alheio às suas raízes, mas atrativo no sentido de oferecer
serviços e possibilidades que a área rural ainda era carente.
Neste sentido, o choque cultural causado pelas situações novas, pela sensação de “um
estranho no ninho”, torna-se um desafio à aceitação das organizações da cidade, completamente
diferente do campo. A luta diária perpassa tanto pela adaptação quanto pela aceitação. A sedução
pela cidade traz em seu bojo mentalidades diferentes, linguagens estranhas ao homem do campo,
contato com jeitos diferentes de ser, todo esse conjunto de situações espera o migrante que se
desloca do campo para a cidade e nesta estabelece moradia. Neste sentido, Alves e Marra
apontam que,
A decisão de migrar é decisão da família. Ela avalia os ganhos e as perdas, incluindo-se
os riscos que toda mudança traz. Expectativas sobre salários, bem-estar da família,
desemprego, violência, programas do governo, aposentadorias, etc., baseadas no destino
e na origem, são cuidadosamente avaliadas. Influenciam-nas a opinião de amigos já
residentes no destino, como também a dos residentes na origem e o clima de otimismo
ou de pessimismo que vigora no destino (ALVES & MARRA, 2009, p.07).

As transformações ocorridas nos cenários, nos comportamentos e hábitos das pessoas que
migram tornam-se fatores que determinam a vida dos novos habitantes da cidade, diante disso,
esta decisão precisa ser analisada pelos sujeitos envolvidos. Nessa perspectiva, podemos
perceber o reflexo das migrações nos fatores sociais, culturais e psicológicos dos envolvidos.
Portanto, sair de seu lugar de origem exige certos cuidados que são analisados por aqueles que
decidem migrar, isto quando a migração não acontece de maneira forçada.

Relações de interdependência entre o rural e o urbano

A percepção sobre a migração ocorrida no município demostra a saída das pessoas do


campo e a vinda destas para a cidade, uma vez que há muitos relatos acerca deste movimento
ocorrido por motivações às vezes diferentes de abandono das áreas rurais, mas com destino
geralmente semelhantes que é o centro urbano. Neste sentido, a migração rural – urbano,
influenciou a dinâmica social do município, dando novas formas à estrutura física, econômica,
política e cultural da população Vargem-grandense.
Assim sendo, em meio a estas mudanças, vários setores são afetados, e sente-se o impacto
desse movimento migratório tanto nas áreas rurais (de saída) como nas áreas urbanas (de
chegada). Diante do exposto, exemplifica-se a partir da tabela abaixo:
TABELA 2 - Efetivo dos rebanhos (Galináceos) por tipo no Município de Vargem Grande – MA nos
anos de 1980 a 1988.

ANO TIPO DE REBANHO

Galináceos – galinhas

1980 104.719

1982 22.452

1984 23.580

1986 13.821

1988 15.084
Fonte: IBGE - Pesquisa Pecuária Municipal 1980-1990

Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/protabl.asp?c=3939&z=t&o=1&i=P>

A tabela apresenta um efetivo de criação de galinhas na área rural de Vargem Grande


durante alguns anos da década de 1980, demostrando uma oscilação decrescente na criação das
mesmas, apontando para uma redução da produção, logo uma das consequências da saída do
homem do campo, e abandono da criação destas aves, isso auxilia de forma indireta na elevação
do custo de vida nas cidades, afetando significativamente a economia do município. Quadro
semelhante apresenta-se na tabela a seguir, quanto à produção de arroz e milho, produções da
lavoura típicas da área rural do município de Vargem Grande.

TABELA 3 - Área plantada, quantidade produzida na lavoura temporária no Município de Vargem


Grande – MA (1990-2000).

ANO VARIÁVEL = LAVOURA TEMPORÁRIA

Área plantada (Hectares)

Arroz (em casca) Milho (em grão)

1991 6.000 5.500

1994 6.000 5.500

1997 3.731 2.150

1999 3.774 2.193

2000 3.812 2.215


Fonte: IBGE - Produção Agrícola Municipal 1990-2000

Disponível em: http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/protabl.asp?c=1612&z=t&o=1&i=P

Situação semelhante à tabela acima, esta última apresenta uma amostra da produção
realizada na década de 1990, na área rural. Neste sentido, também se pode encontrar uma queda
na produção agrícola destes produtos, visualizando assim uma queda no ritmo de produção no
que se refere à lavoura que são típicos de pequenos produtores.
Sendo assim, uma das implicações mais relevantes da saída dos indivíduos das áreas
rurais foi o impacto nas produções de base agrícola e criação de animais de pequeno porte, sendo
que estas ações afetam a estrutura econômica do município. Neste caso, temos um processo de
transição da economia de tipo agrícola para uma economia de serviços, assim, não somente o
espaço rural sente este impacto, mas também o espaço urbano. Face ao exposto, evidencia-se o
que Elias afirma sobre a interdependência dos sujeitos, pois, segundo ele,
“Esse arcabouço básico de funções interdependentes, cuja estrutura e padrão conferem a
uma sociedade seu caráter específico, não é criação de indivíduos particulares, pois cada
indivíduo, mesmo o mais poderoso, mesmo o chefe tribal, o monarca absolutista ou o
ditador, faz parte dele, é representante de uma função que só é formada e mantida em
relação a outras funções, as quais só podem ser entendidas em termos da estrutura
específica e das tensões específicas desse contexto total.” (ELIAS, 1994, p.22)

O autor sugere que os indivíduos seguem um padrão de interdependência, pois na


sociedade todos se ligam de alguma forma uns aos outros, pois em diversos contextos, decisões
individuais afetam conjunturas coletivas, que incidem em transformações sociais que implicam
novas socializações e novos concepções de vida. Diante disso, cabe salientar a fala de Elias
(1994, p.151) “a existência da pessoa como ser individual é indissociável de sua existência como
ser social”. Assim, a indissociabilidade dos indivíduos da sociedade que a cerca faz com que
situações mais especificas impliquem em consequências coletivas num determinado grupo
social. Pois, independentemente das relações de amizade ou parentescos, temos uma relação
social que nos interliga de maneira quase que imperceptível. Portanto, ainda segundo Elias (1994,
p.152) “não há identidade-eu sem identidade-nós. Tudo o que varia é a ponderação dos termos
na balança eu-nós, o padrão da relação eu-nós”.
Nesta perspectiva, uma vez que o sujeito que sai do campo, este necessita de moradia na
cidade, o que faz com que esta cresça de modo desordenado, deixando de assegurar serviços
básicos a estas populações, que em sua maioria alocam-se em áreas de risco e nas periferias da
cidade, contribuindo para um crescimento urbano, que por sua vez não assegura uma vida digna
a estes indivíduos. Pois, como afirmam Evangelista e Carvalho (2001, p.08) “de igual forma a
urbanização acelerada, desacompanhada da geração de empregos urbanos correspondentes, leva
ao crescimento das favelas, aumento da marginalidade e precarização das condições básicas de
saúde e habitação nas cidades”.
Portanto, quando se trata de migração rural-urbana as implicações deste movimento são
sentidas tanto de um lado quanto do outro (no campo e na cidade). Assim, a relação de
interdependência entre os indivíduos e consequentemente os espaços rural e urbano é inevitável,
pois segundo Jacobs em seu texto, “o tipo de problema que é a cidade”, destaca que
As grandes cidades e as zonas rurais podem conviver muito bem. As cidades grandes
precisam de zonas rurais próximas. E a zona rural – do ponto de vista do homem – precisa
das grandes cidades, com todas as suas variadas oportunidades e sua produtividade, de
modo que os seres humanos possam ter condições de prezar o restante do mundo natural
em vez de amaldiçoa-lo”. (JACOBS, 2000, p.498),
Portanto, estes processos históricos condicionados aos momentos da sociedade vigente
não implicam necessariamente uma desestruturação da cultura local em ambos os espaços, são
antes uma nova forma de conceber a realidade tempo-espaço, pautado nas condições impostas
aos sujeitos históricos.

O migrado e o campo: um elo mantido

Diante da migração rural-urbana em Vargem Grande, um caráter cultural persiste entre


os antigos moradores das áreas rurais, que mesmo encontrando-se na cidade, depois de longos
anos, ainda trazem consigo um sentimento de pertence que os levam a serem atraídos pelas
atividades rurais, sendo que muitos tentam reconstruir espaços aos quais estavam acostumados,
outros se sentem tentados a retornar ao campo, agora não mais por motivos econômicos, mas por
comodidade pessoal.
Assim, o desejo de alguns em retornar ao campo em busca agora de tranquilidade é
determinante num dado momento da vida de grande parte dos sujeitos migrados. Pois, mesmo
encontrando-se na cidade muitos não abandonam práticas rurais, e passam a criar animais de
pequeno porte na cidade, bem como realizar pequenas plantações. A conservação de aspectos da
cultura interiorana é comum aos migrados, uma vez que os mesmos não abandonam seus espaços
simplesmente porque desejam, mas geralmente por condicionantes externos. Nesta perspectiva,
Scott (2014), afirma que,
Na sua terra de origem, não cabe dúvida de que as pressões expulsoras resultantes de uma
política econômica que favorece o detentor do capital causam ou apressam a saída de
muitos que “ficariam se tivesse jeito”. Por isso não se pode confundir “emigração” com
ruptura dos laços com a família e com a terra de origem. (SCOTT, 2014, p. 10)

A presença de um elo com o espaço rural é muito forte entre os habitantes da cidade que
de lá vieram, sendo assim, o apego por seu espaço de origem atrai novamente este sujeito que
tendo as condições necessárias, depois de certa idade, tende a voltar a conviver na tranquilidade
oferecida pelo espaço rural, pois as motivações da saída atualmente não apresentam mais tanta
força e uma vez estabilizados na cidade, procuram agora novos modos de existência que lhes
ofereçam uma paz que, para eles a cidade não oferece.
Neste sentido, as relações estabelecidas entre os dois mundos rural e urbano giram em
torno de uma cultura que, para estes sujeitos não é fácil se desvincular, mesmo que para alguns
a vida na cidade tenha se tornado promissora, a vida no campo ainda é uma opção relevante.
Neste caso, enquanto que, para migrar para a cidade o tenham feito de forma instável, para
retornar ao campo precisam estar certos de que terão uma comodidade e estabilidade, pois
tempos diferentes exigem posturas diferenciadas.
Considerações finais

Diante da pesquisa realizada, nota-se que o processo de expansão da cidade no período


supracitado se dá majoritariamente pela migração no sentido campo-cidade, mobilidade esta que
molda uma nova organização social a partir do processo de adaptação dos sujeitos migrados que
passam a conviver com experiências outras, até então não vivenciadas. Nessa perspectiva, o
processo de adaptação dos sujeitos migrados é um processo que exige novas formas de
organização social destes que, oriundos do campo, necessitam refazer a vida na cidade,
descobrindo novas formas de trabalho que possibilitem a sobrevivência no espaço da cidade,
entretanto, a vida na cidade não anula sua ligação com seu local de origem, fato que implica uma
nova socialização, sempre buscando relações que se identifiquem com sua vida campesina. A
cidade torna-se assim, lócus privilegiado de novas relações sociais ao sabor de práticas
heterogêneas.

REFERÊNCIAS

ALVES, Eliseu. SOUZA, Geraldo da Silva e. MARRA, Renner. Êxodo e contribuição à


urbanização de 1950 a 2010. Revista de política agrícola. Ano XX – Nº2 – Abr./Maio/Jun.2011
Disponível em:
<http://www.alice.cnptia.embrapa.br/alice/bitstream/doc/910778/1/Exodoesuacontribuicao.pd
f > acesso em: 18 de agosto de 2019.

BENSA, Alban. Da micro-História a uma antropologia critica. IN: REVEL, Jacques (org.) Jogos
de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: fundação Getúlio Vargas editora, 1998.

BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e


Estatística. Contagem Populacional. Disponível em:
<https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ma/vargem-grande/panorama> acesso em 24 de julho de
2019.

COSTA, José Ribamar Silva. Entrevista concedida a Eva Rosa do Lago. Vargem Grande, 17
ago. 2019 [a entrevista encontra-se transcrita]

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

EVANGELHISTA, Francisco Raimundo. CARVALHO, José Maria Marques de. Algumas


considerações sobre o êxodo rural no Nordeste. Banco do Nordeste do brasil. disponível em:
<http://www.researchgate.net/publication/239534136_algumas_consideraes_sobre_o_xodo_r
ural_no_nordeste> acesso em: 14 de agosto de 2019.

GONÇALVES, Alfredo José. Migrações Internas: evoluções e desafios. Estudos Avançados


15 (43), Seminário sobre População e Pobreza. Brasília, 2001. Disponível em: <
http://www.revistas.usp.br/eav/article/viewFile/9830/11402>. Acesso em: 30 de julho de 2019.

IANNI, Octavio. Origens agrárias do estado brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 2004.

JACOBS, Jane. O tipo de problema que é a cidade IN: Morte e Vida de Grandes Cidades. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
LEVI, Giovanni. Micro - História. In: BURKE, Peter (org.) A escrita da História: novas
perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992.
MENDONÇA, Tibério. Os movimentos populacionais. Disponível em:<
http://www.tiberiogeo.com.br/texto/TextoUvaMovimentosPopulacionais.pdf> acesso em: 16
de agosto de 2019.

SCOTT, Russell Parry. Migrações interregionais e estratégia doméstica: nordestinos,


mobilidade e a casa até os anos 1980. Recife: Editora UFPE, 2014.
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FORMAÇÃO DE AGENTES CULTURAIS

TRAINING OF CULTURAL AGENTS

Diego Gomes de Santana; Graduando em Turismo - UFMA


Juniele da Rocha Freitas; Graduanda em Turismo - UFMA
Conceição de Maria Belfort Carvalho- Profa. Dra. Do Curso de Turismo UFMA

Eixo temático 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO:O projeto tem como objetivo central, constituir um núcleo de formação de agentes
culturais nas comunidades do Centro Histórico de São Luís, tornando-os multiplicadores de
informações sobre os aspectos históricos, culturais e turísticos. São utilizadas atividades como:
palestras, visitas técnicas, minicursos, oficinas, artesanato, fotografia, mostras de vídeos e
documentários, exposições sobre os aspectos naturais e culturais, resgate histórico e
antropológico sobre ao patrimônio cultura de São Luís. As atividades são desenvolvidas afim
de aproximar e promover a identificação com o espaço e o sentimento de pertencimento, para
que possam também mediar e interagir com a cultura, fortalecendo a preservação do patrimônio
cultural e o desenvolvimento do turismo.

Palavras-chave: Cultura. Turismo. Patrimônio Cultural. Agente Cultural. Preservação.

ABSTRACT: The project aims to constitute a nucleus of formation of cultural agents in the
communities of the Historic Center of São Luís, making them multipliers of information about
historical, cultural and tourist aspects. Activities such as: lectures, technical visits, short
courses, workshops, crafts, photography, video shows and documentaries, exhibitions on
natural and cultural aspects, historical and anthropological rescue on cultural heritage of St.
Louis. The activities are developed in order to approximate and promote identification with
space and the feeling of belonging, so that they can also mediate and interact with culture,
strengthening the preservation of cultural heritage and the development of tourism.

Keywords: Culture. Tourism. Cultural Heritage. Cultural Agent. Preservation.


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1 INTRODUÇÃO

O projeto reúne alunos com interesse de atuar como agentes e mediadores no espaço
cultural maranhense dessa forma, tem como objetivo geral, constituir um núcleo de formação
de agentes culturais nas comunidades do entorno da Universidade Federal do Maranhão –
UFMA e outras localidades, tornando-os multiplicadores de informações sobre os aspectos
históricos, culturais e turísticos de São Luís. São objetivos específicos: Estimular o interesse
dos jovens e adultos em conhecer os aspectos históricos, culturais e turísticos de sua
comunidade, por meio de investigações acerca da dinâmica cultural local; Despertar o
empreendedorismo comunitário, favorecendo articulações e a busca de soluções criativas e
inovadoras em prol da preservação do patrimônio cultural; Valorizar o patrimônio cultural da
cidade.

Diante do exposto, o presente artigo, traz num primeiro momento, a metodologia


utilizada, posteriormente, o referencial teórico sobre o assunto, seguido dos resultados do
projeto do Curso de qualificação profissional de Formação de Agentes Culturais, considerações
finais e referências.

2 METODOLOGIA

O projeto foi dividido em 4 módulos, sendo eles respectivamente, Introdução à


Formação de Agentes Culturais; Cultura, conceitos e noções gerais; Educação Patrimonial e
Museus, Economia Criativa e Elaboração de projetos culturais, a metodologia aplicada para o
desenvolvimento do projeto foi a utilização de atividades como: palestras, minicursos, oficinas,
artesanato, fotografia, mostras de vídeos e documentários, exposições sobre os aspectos
naturais e culturais, resgate histórico e antropológico sobre ao patrimônio cultura de São Luís.
Para ser mensurado o grau de satisfação dos participantes, foram aplicados questionários para
a avaliação sobre os itens do Curso. Nesse sentido, a pesquisa, foi feita de maneira quanti-
qualitativa, por trazer dados estatísticos e pelas pesquisas feitas em fontes bibliográficas.

3 REFERENCIAL TEÓRICO

O projeto Formação de agentes culturais propõe sensibilizar a comunidade para o


resgate dos elementos de memória e sua importância como ferramenta para o desenvolvimento
do turismo como instrumento de revitalização e valorização de um bairro. traz consigo o resgate
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de tradições memoráveis, retomando o acervo cultural do Centro Histórico de São Luís adquiriu
ao longo da história. Atualmente o turismo cultural é bastante forte e pode colaborar na
diversidade cultural em contraposição aos processos de homogeneização derivado do mundo
globalizado em que vivemos, visto que essa atividade turística se realiza em função do diferente,
do exótico, do curioso e, por isto, pode se constituir em um instrumento para o intercâmbio
entre culturas (BRITO, 2009, p. 231).

A presença do atrativo cultural numa localidade permite uma interatividade do


turista com a comunidade receptora, pois o ambiente que é voltado para o turista também é
voltado para o povo no seu momento de lazer, proporcionando aos turistas a oportunidade de
entender o passado da comunidade receptora, resgatando assim as suas referências históricas,
que remeterão as suas identidades. A compreensão de aspectos culturais e históricos a partir do
olhar da comunidade parte da interpretação da cidade e de seu patrimônio cultural, cujas
medidas devem instigar o interesse e provocar uma efetiva comunicação baseada na
compreensão sobre o que vê e, consequentemente, na geração de seu apreço e desfrute
(MARTINS, 2007, p. 99).

A valorização dos aspectos culturais e históricos por parte dos agentes culturais
contribuirá para o reconhecimento da sua identidade local, revelando significados. E a
sensibilização da própria comunidade em identificar suas origens desencadeia a vivência da
cultura, através do resgate das tradições e memorização coletiva. Conforme Martins (2003), a
identidade preserva de forma peculiar os fatos da sociedade.

A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade,


individual ou coletiva (LE GOFF, 1990, p. 476). Nesse sentido é que este projeto visa a
revitalizar a história oral da comunidade do Centro Histórico de São Luís e entorno, a fim de
estimulá-la, já que ela é o motor fundamental para desencadear o processo de identificação do
cidadão com sua história e sua cultura. O indivíduo recorre a essa memória para recuperar ou
manter a sua identidade, seu sentido de pertencer, resgatando a sua história. A definição da
própria identidade cultural implica em distinguir os princípios, os valores e os traços que a
marcam, não apenas em relação a si própria, mas frente a outras culturas, povos ou comunidades
(SANTOS, 2004, p.59). Memória e identidade estão interligadas, desse cruzamento, múltiplas
possibilidades poderão se abrir para a produção do imaginário histórico-cultural. Assim, a
identidade fortalece o sentido de pertencimento de uma comunidade, mantendo vivo o elo entre
o passado e o presente de um povo a fim de transmiti-la para as gerações futuras.
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4 RESULTADOS E DISCURSSÕES

O projeto obteve como resultado, a formação de 16 jovens e adultos na área da


cultura, como resultado final do projeto, foi possível saber por meio da aplicação de
questionários, sobre a percepção deles em relação ao curso, em relação a alguns itens sobre o
Projeto de Formação de agentes Culturais, como podemos observar nos gráficos, a seguir:

Quando os participantes do curso, perguntados sobre a infraestrutura do local aonde


as aulas aconteceram, a maioria, correspondendo a 56,3%, consideraram como sendo excelente,
37,5% consideraram bom e apenas, 6,2% disseram ser regular. Assim, as aulas ocorreram todas
as quartas-feiras, do período de 28 de agosto a 18 de dezembro de 2019, no auditório modular
A, da fábrica Santa Amélia, espaço este, reservado anteriormente por meio de oficio de
solicitação de sala para a realização do projeto, o espaço é amplo, com capacidade de receber
60 pessoas. Nesse sentido, o projeto iniciou com 60 inscritos, mas compareceram assiduamente
ao curso apenas 23 alunos, permanecendo até o final do projeto, apenas 16 alunos. Apesar disso,
as aulas eram bem dinâmicas, com visitas externas a espaços culturais da nossa cidade, sendo
estes, os nossos museus. E com elaboração de oficinas e palestras, além da apresentação de
seminários sobre as temáticas que abrangem a área da cultura com o foco empreendedor. Nesse
sentido, estudos mais recentes, mostram que grandes investimentos em infraestrutura escolar
estão associados a melhores indicadores de desempenho e frequência (NEILSON E
ZIMMERMAN, 2014, p. 2).
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Ao que tange a organização do curso, 56,3%, disseram ser excelente e apenas 43,8%
consideraram excelente. Fato este, que demostra uma sistematização em relação aos conteúdos
e comprometimento em relação aos horários em que ocorriam as aulas. Em relação ao horário,
as aulas foram realizadas das 14:00h às 17:00h, carga horaria está que deu o equivalente a 120
horas de duração de curso, que correspondeu a 4 meses. Este horário foi flexível para a maioria,
pois existiam alunos que tinham outros compromissos e tentavam compatibilizar o horário com
as suas outras atividades pessoais e profissionais.

Em relação ao conteúdo das aulas, muitos disseram que atingiu as suas expectativas,
correspondendo a 93,8%, e apenas, 6,2% disseram que não. O conteúdo do curso foi algo bem
extenso e ao mesmo tempo dinâmico, primeiramente fora trazidos conceitos sobre cultura,
gestão da cultura, a diferença do agente cultural para o gestor cultural, o perfil deste
profissional, economia criativa visando um foco empreendedor, e pra finalizar a elaboração de
projetos culturais, onde, primeiramente, foram realizadas as aulas e com a finalidade de colocar
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a teoria em pratica, foi elaborado um projeto cultural, sendo este, uma exposição com o tema:
ALÉM DA BELEZA: Identidade e Ritmos. Está exposição, foi realizada no dia 18 de dezembro
e teve duração de 8 horas, sendo realizada numa manhã e uma tarde, onde no turno da manhã
foi realizada a exposição e a tarde a parte das oficinas de dança, penteados e turbantes. Houve
um número significativo de público, por todo o planejamento feito anteriormente.
Demonstrando assim, sucesso na ação do projeto.

Sobre os recursos audiovisuais, todos concordaram que foram adequados. Porque


todas as aulas eram utilizadas estes equipamentos de áudio e vídeo, o que foi válido para a
absorção do conhecimento apresentado aos participantes do curso. Todos, demostraram
bastante interesse e atenção ao utilizar aulas expositivas por meio da tecnologia dos recursos
audiovisuais.
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Em relação ao horário do curso, a maioria considerou que este foi compatível com
os objetivos, sendo este, um total de 81,3%, e apenas, 18,8%, disseram que não foi compatível
o tempo disponível para a realização do curso com os objetivos do projeto. Por ser um curso de
curta duração, o projeto foi de acordo com os objetivos traçados, pois as aulas foram planejadas
de maneira em que o curso fosse algo dinâmico e consistente, contribuindo para uma formação
crítica e visando tornar estes alunos, futuros empreendedores da nossa cultura maranhense.

Quando perguntados sobre a sua avaliação sobre o curso, muito disseram ser bom,
correspondendo a 50% do total, 43,8%, disseram ser excelente e apenas, 6,2% disseram ser
regular. Este, foi considerado como bom e excelente, pois os objetivos propostos foram
alcançados e houve uma aprovação do público participante do projeto. Demostrando, assim,
que indicarão para outras pessoas e que utilizarão o certificado para exercerem a profissão em
seu bairro, município e estado, mostrando a quão rica e diversificada é a nossa cultura
maranhense, a partir do conhecimento que já tinham e obtiveram pelo curso.
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E por fim, o último item a ser avaliado, foi em relação aos monitores, a maioria
considerou que foram bons, correspondendo a 50%, enquanto 43,8% disseram ser excelente, e
apenas, 6,2% disseram ser regular. Fato este que coincidiu com os dados anteriores, em relação
a avaliação sobre o curso, como pode ser visto no gráfico anterior. Esse contexto, teve grande
representatividade para uma maior compreensão sobre a permanência ou não, dos alunos no
projeto. Resultado este, considerado bom e excelente em relação aos monitores do projeto. E
realmente, houve uma preparação por parte dos monitores, um planejamento das aulas,
agregamos valores obtidos através do curso de Turismo ao assuntos do curso e propomos as
aulas serem realizadas de maneiras dinâmicas e com bastantes discussões em sala de aula,
houve uma interação de todos os participantes em relação aos assuntos trabalhados em sala de
aula. A assiduidade dos alunos foi incrível e bastante satisfatória do ponto de vista dos
monitores, também.

Dessa forma o projeto promove aos participantes envolvimento e encantamento


pelos aspectos propostos, desenvolve também o caráter crítico sobre os mesmos, sendo capazes
de opinar e dar sugestões sobre o assunto antes mesmo do término do curso. Além de fortalecer
as relações com a cultura, o contato com o patrimônio material e imaterial da cidade de São
Luís oferece a todos os envolvidos, mais conhecimento prático e a possibilidade de interação
continua com o espaço. Direcionando aos monitores, o projeto motiva o desenvolvimento oral
e a capacidade de repassar as informações, de forma mais dinâmica, assim como a criatividade,
propiciadas com as diversas aulas e atividades dispostas no curso.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto promoveu aos participantes, um envolvimento e encantamento com os


aspectos propostos, desenvolve também o caráter crítico sobre os mesmos, sendo capazes de
opinar e dar sugestões sobre o assunto antes mesmo do término do curso. Apesar de ser
instigante e prazeroso, os assuntos e módulos abordados no projeto, podem se tornar um tanto
maçantes aos alunos, afim de que se evite a evasão, é sugerido que as aulas se tornem mais
dinâmicas, com uso de filmes e atividades por exemplo, provocando a interação entre eles e
com o assunto, e também a inclusão de mais visitas técnicas dentro do módulo de Educação
Patrimonial e Museus, onde pode se trabalhar melhor a familiaridade com o espaço. Assim pode
se dizer que o objetivo do projeto tem sido alcançado no decorrer das aulas, e a satisfação dos
que frequentam o curso também tem sido atingido.

REFERÊNCIAS

BRITO, M. Turismo cultural sustentável: certificação de destinos turísticos de dominância


patrimonial. In: CAMARGO, P. de; CRUZ, G. da. (Orgs.) Turismo Cultural: estratégias,
sustentabilidade e tendências. Ilhéus: Editus, 2009.
GOFF, J. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996.
MARTINS, José Clerton de Oliveira. Turismo, cultura e identidade. São Paulo: Roca, 2003.
MARTINS, Luís Saldanha. TERRITÓRIO, ORDENAMENTO E TURISMO – entre os
excessos da construção e os valores da conservação. Inforgeo, Julho 2007, 99-103.

NEILSON, Christopher A.; ZIMMERMAN, Seth D. The effect of school construction on test
scores, school enrollment, and home prices, Journal of Public Economics, vl. 120 (2014), 18 –
31.
SANTOS, Reinaldo Soares dos. O Encanto da Lagoa: O imaginário histórico-cultural como
elemento propulsor para o turismo cultural na Lagoa Encantada. Dissertação (Mestrado em
Cultura e Turismo) – Programa de Pós-Graduação em Cultura e Turismo, UESC/ UFBA,
Ilhéus-Ba, 2004.
Página 1620 de 2230

GESTÃO DE CIDADES E FEDERALISMO NO BRASIL: FUNDAMENTOS E


DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIAS

CITY MANAGEMENT AND FEDERALISM IN BRAZIL: FUNDAMENTALS AND


COMPETENCE DISTRIBUTION
Me. José Rui Moreira Reis
Prof.ª Dr.ª Salviana de Maria Pastor Santos Sousa
Universidade Federal do Maranhão
Eixo temático: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

Resumo: A forma de organização do Estado e as regras constitucionais influenciam


decisivamente no processo de gestão de cidades, uma vez que podem estabelecer diferentes
imposições legais para os três níveis de governo. Considerando esse cenário, neste artigo são
apresentados os fundamentos conceituais e históricos do federalismo no Brasil. Realiza-se uma
descrição da distribuição de competências entre os entes federados a partir da análise dos
dispositivos da Constituição Federal de 1988, que inovou ao alçar os municípios à qualidade de
entes da federação com autonomia idêntica aos estados-membros na elaboração de suas leis e
políticas e estabeleceu uma série de competências comuns aos entes federados.

Palavras-chave: Gestão de Cidades. Federalismo. Regras constitucionais.

Abstract : The form of organization of the state and the constitutional rules have a decisive
influence on the city management process, since they can establish different legal requirements
for the three levels of government. Considering this scenario, this article presents the conceptual
and historical foundations of federalism in Brazil. A description of the distribution of
competences among the federated entities is made based on the analysis of the provisions of the
Federal Constitution of 1988, which innovated by raising the municipalities to the quality of
entities of the federation with autonomy identical to the member states in the elaboration of
their laws and policies and established a series of competencies common to federated entities.

Key-words: City Management. Federalism. Constitutional rules.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo apresentar alguns aspectos do federalismo no Brasil,
visto que a decisão das unidades locais de governo (estados e municípios) pela implementação
de uma dada política pública está resguardada pelo princípio da soberania. Isto é, salvo
expressas imposições constitucionais, nada impede ou obriga que um dado município ou estado
venha a implementar uma política pública qualquer, assim a gestão das cidades é fortemente
impactada por esses dispositivos.
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As regras constitucionais normatizam a distribuição de competências entre os níveis


de governo, determinando procedimentos que facilitam ou impedem a emergência de
determinados desenhos institucionais, porque estabelecem diferentes regras do jogo para os
diferentes agentes (IMMERGUTT, 1996 apud ARRETCHE, 2011). Considerada uma dada
distribuição de competências na área social, as regras constitucionais influiriam decisivamente
no processo de gestão de cada política social, uma vez que podem estabelecer diferentes
imposições legais para os três níveis de governo.

Para compreender a configuração que a federação brasileira assume com a atual


Constituição Federal, se faz necessário apreender os fundamentos conceituais e recuperar
alguns elementos históricos da implantação do federalismo no país. Sem a pretensão de
contemplar todos os aspectos conceituais e históricos que condicionaram a adoção dessa forma
de organização do Estado, este artigo busca apresentar os aspectos centrais, de forma a
equacionar alguns elementos determinantes da adoção e funcionamento do federalismo no país
e seus impactos nas políticas públicas e na gestão de cidades.

O presente artigo está dividido em quatro seções além desta introdução, na seção
seguinte discorre-se sobre os fundamentos conceituais do federalismo, na terceira apresenta-se
um breve histórico do federalismo no Brasil, a quarta seção evidencia a distribuição de
competências entre os entes, na última seção tecemos nossas considerações finais.

FUNDAMENTOS CONCEITUAIS DO FEDERALISMO

A definição de federalismo está intrinsecamente ligada à forma de organização


político-territorial de um Estado. Assim, para estudarmos o pacto federativo é necessário
primeiramente diferenciar as formas de organização do Estado sobre um território. Além disso,
no caso brasileiro em que ao longo de sua história teve sete Constituições Federais, a evolução
deste pacto só pode ser bem compreendido por meio de uma breve descrição das constituições
anteriores a 1988. Isso porque as Constituições refletiram as decisões políticas e territoriais que
ocorreram ao longo da nossa história.

A Constituição de um país deve ser entendida como a lei maior, fundamental e


suprema de um Estado, que rege a sua organização político-jurídica, e deve dispor sobre a forma
do Estado e das entidades que integram sua estrutura, além de suas competências. Assim, a
Constituição é peça chave para se entender o pacto federativo e a repartição de competências
entre os entes da federação.
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A Federação é uma forma de organização político-territorial baseada no


compartilhamento tanto da legitimidade como das decisões coletivas entre mais de um nível de
governo. Distingue-se do chamado Estado unitário, pois neste último, o Governo central é
anterior e superior às instâncias subnacionais, e as relações de poder obedecem a uma lógica
hierárquica e piramidal (ABRUCIO; FRANZESE, 2007). O Estado é unitário quando existe um
único centro de poder político no respectivo território. Assim a centralização política em uma
só unidade de poder é a marca dessa forma de Estado (PAULO; ALEXANDRINO, 2009).

O Estado será federado (federal, complexo ou composto) se o poder político estiver


repartido entre diferentes entidades governamentais autônomas, gerando uma
multiplicidade de organizações governamentais que coexistem em um mesmo
território. O Estado federado é caracterizado por ser um modelo de descentralização
política, a partir da repartição constitucional de competências entre as entidades
federadas autônomas que o integram. O poder político, em vez de permanecer
concentrado na entidade central, é dividido entre entidades federadas dotadas de
autonomia (PAULO; ALEXANDRINO, 2009, p.254).

Conforme a literatura internacional sobre o federalismo, a característica primária


dessa forma de organização do Estado é a compreensão de que o poder é exercido por diferentes
níveis de governo, ou seja, emana de múltiplas instâncias.

O cerne da acepção do federalismo aparece na própria composição da palavra, como


esclarece Daniel Elazar:

O termo 'federal' é derivado do latim foedus, o qual (...) significa pacto. Em essência,
um arranjo federal é uma parceria, estabelecida e regulada por um pacto, cujas
conexões internas refletem um tipo especial de divisão de poder entre os parceiros,
baseada no reconhecimento mútuo da integridade de cada um e no esforço de
favorecer uma unidade especial entre eles (ELAZAR, 1987 apud ABRUCIO, 2005,
p. 4).

Neste sentido, de acordo com William Riker:

Federalismo é uma organização política na qual as atividades do governo são


divididas entre governos regionais e governo central, de modo que cada tipo de
governo tem algumas atividades sobre as quais ele toma as decisões finais (RIKER,
1975, p.101, apud CRUZ, 2009, p.48).

Deste modo, o federalismo pressupõe autonomia e soberania dos entes federados


para definição legal de algumas ações e políticas, uma vez que o pacto fundante do sistema
federal deve prever quais aspectos são da alçada de cada ente federado (CRUZ, 2009).

Gilda Araújo (2005) corrobora com esta ideia ao afirmar que a autonomia e
soberania dos entes federados prevista no pacto federativo, garantem que cada instância tenha
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poder de realizar suas próprias políticas, pois cabe aos governos subnacionais “autonomia para
gerir questões políticas e econômicas locais” (ARAÚJO, 2005, p.78-79).

Conforme aponta Fernando Abrúcio:

É claro que as esferas superiores de poder estabelecem relações hierárquicas frente às


demais, seja em termos legais, seja em virtude do auxílio e do financiamento às outras
unidades governamentais. O governo federal tem prerrogativas específicas para
manter o equilíbrio federativo e os governos intermediários igualmente detêm forte
grau de autoridade sobre as instâncias locais ou comunais. Mas a singularidade do
modelo federal está na maior horizontalidade entre os entes, devido aos direitos
originários dos pactuantes subnacionais e à sua capacidade política de proteger-se
(ABRUCIO, 2005, p.43).

No federalismo, os governos subnacionais têm instrumentos políticos para defender


seus interesses e direitos originários, quais sejam, a existência de cortes constitucionais, que
garantem a integridade contratual do pacto originário; uma segunda casa legislativa
representante dos interesses regionais (Senado ou correlato); a representação desproporcional
dos estados menos populosos (e muitas vezes mais pobres) na câmara baixa e o grande poder
de limitar mudanças na Constituição, criando um processo decisório mais intrincado, que exige
maiorias qualificadas e, em alguns casos, é necessária a aprovação dos legislativos estaduais; e
ainda, os princípios básicos da federação não podem ser emendados em hipótese alguma
(ABRUCIO, 2005).

O pacto federativo, característica chave dos estados federados, é um acordo capaz


de estabelecer um compartilhamento da soberania territorial, fazendo com que coexistam,
dentro de uma mesma nação, diferentes entes autônomos e cujas relações são mais contratuais
do que hierárquicas. O objetivo é compatibilizar o princípio de autonomia com o de
interdependência entre as partes, resultando numa divisão de funções e poderes entre os níveis
de governo (ABRUCIO; FRANZESE, 2007).

O princípio da soberania deve garantir a autonomia dos governos e a


interdependência entre eles. É importante ressaltar que os níveis regionais e locais detêm a
capacidade de autogoverno como em qualquer processo de descentralização, com grande raio
de poder nos terrenos político, legal, administrativo e financeiro. Mas sua força política reside
exatamente na existência de direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais –
sejam estados, províncias ou municípios, como no Brasil. Tais direitos não podem ser
arbitrariamente retirados pela União e são garantidos por uma Constituição escrita, o principal
avalista do pacto político-territorial (ABRUCIO, 2005).
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Deste modo:

Dois critérios devem ser atendidos para caracterizar uma nação como federalista: 1)
“o Estado deve conter subunidades políticas territoriais, cujo eleitorado seja
constituído pelos cidadãos dessas unidades; além disso, a constituição deve garantir a
essas unidades soberania na elaboração de leis e de políticas”; 2) “deve haver uma
unidade política de âmbito nacional, que contenha um poder legislativo eleito por toda
a população do Estado, e à qual caiba, por garantia constitucional a competência
soberana para legislar e formular políticas em determinadas matérias” (STEPAN,
1999, p.4 apud CRUZ, 2009, p. 49-50).

O federalismo moderno foi criado nos Estados Unidos, em 1787. As treze colônias,
até então fragilmente interligadas, abriram mão de parte de sua independência para que se
criasse uma nova esfera de governo – a União. Assim, elas se tornaram estados que, apesar de
constituintes de uma mesma nação, mantiveram boa parte de sua autonomia e estabeleceram
relações de interdependência – e não de simples hierarquia – entre si e com o Governo Federal
recém-constituído. Este pacto político-territorial foi garantido pela Constituição, o mais amplo
e originário contrato federativo (ABRUCIO; FRANZESE, 2007).

Com bem assinala Paulo e Alexandrino:

Não há subordinação hierárquica entre as entidades políticas que compõem o Estado


federado. Todas elas encontram-se no mesmo patamar hierárquico, para o exercício
autônomo das competências que lhes são atribuídas pela Constituição Federal
(PAULO; ALEXANDRINO, 2009, p.254).

Os países adotam o modelo federativo quando há uma situação federalista


caracterizada por duas coisas. A primeira é a existência de heterogeneidades numa determinada
nação, vinculadas à questão territorial (grande extensão e/ou enorme diversidade física), a
diferenças étnicas e/ou linguísticas, a disparidades socioeconômicas, ou então a diversidades
culturais e políticas entre as regiões de um país. A segunda condição que leva à escolha do
federalismo é a ação política baseada no ideal da unidade na diversidade, capaz de
concomitantemente manter unidas e autônomas as partes de um mesmo território (ABRUCIO;
FRANZESE, 2007).

Assim, qualquer país federativo é ou foi instituído para dar conta de uma ou mais
heterogeneidades. Se um país deste tipo não constituir uma estrutura federativa, dificilmente a
unidade nacional manterá a estabilidade social ou, no limite, a própria nação corre risco de
fragmentação. A coexistência destas duas condições é essencial para se montar um pacto
federativo (ABRUCIO, 2005).
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Portanto, um pacto federativo é estabelecido quando determinado país possui uma


ou mais diversidades sejam elas de cunho territorial, étnico, linguístico, socioeconômico,
cultural ou político, e ao mesmo tempo possui um interesse/desejo de se manter unido
respeitando as diversidades existentes em seu território.

FUNDAMENTOS HISTÓRICOS DO FEDERALISMO NO BRASIL

A primeira Constituição escrita do Brasil foi aprovada em 1824, após a


independência de Portugal. Essa Constituição delegou poderes administrativos às então 16
províncias. Embora as províncias não contassem com autonomia política formal ou informal,
essa delegação foi interpretada como abrindo o caminho para uma futura federação (SOUZA,
2005).

Conforme acentua Aspásia Camargo:

Desde o início, o ideal federativo empolgou lutas regionais pela Independência, mas
acabou sendo relegado por uma elite de letrados, formada em Coimbra, que temia os
riscos de desintegração do antigo território colonial. É certo que as diferentes
províncias, muito distantes umas das outras, sempre se comunicaram diretamente com
a Corte portuguesa e ainda não reconheciam um centro nacional de poder. Foi feita,
portanto, a opção inicial por um império unitário, descartando o federalismo e a
república que tanta instabilidade política e guerras entre províncias vinham
provocando na América espanhola (CAMARGO, 2001, p. 317).

Antes mesmo da promulgação da Constituição de 1824 já se percebia a relevância


dada aos municípios, conforme bem acentua Andrade:

Foi Portugal quem criou os municípios no solo da sua colônia sul-americana, como
imitação dessa instituição já existente na Europa há séculos. Até a independência
brasileira, em 1822, o município funcionava como “ponta de lança” para penetração,
sem nunca deixar de ser uma afirmação da soberania da coroa portuguesa. Foram eles
os verdadeiros detentores do poder de ordenação fática e decisão política. Na prática,
os governos locais — as câmaras — nessa época exerciam também funções que
formalmente eram da competência dos entes estatais superiores, das 12 capitanias
hereditárias. Essas entidades, contudo, eram na verdade subdivisões artificiais e
demasiadamente grandes no território colonial criadas por questões meramente
políticas (...). A vastidão do país, as dificuldades de transporte e a comunicação daí
resultantes levaram necessariamente a uma concentração do poder político fático nos
governos municipais. Eles constituíam verdadeiros centros de autoridade local,
subordinados, em tese, ao governo geral da capitania. No decorrer do tempo, a maioria
deles acabou se tornando praticamente autônomo, perfeitamente independente do
poder central. Foi por isso que o imperador d. Pedro I fez questão que as câmaras
municipais aprovassem solenemente a primeira Constituição do Brasil, de 1824, para
que a Carta Magna da Independência ganhasse mais legitimidade política
(ANDRADE, 2004, p.1125).

Andrade também esclarece que “No período imperial, o país era unitário, a
administração era centralizada e o repasse de competências se dava por outorga, isto é, o
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governo central decidia o que passar à competência provincial ou municipal, caso a caso”
(ANDRADE, 2004, p.1125). A Constituição da Independência brasileira de 1824 manteve, em
princípio, a organização municipal que tinha se formado durante os séculos em que o país era
colônia de Portugal, como assinala Andrade:

Desde então, competia aos órgãos políticos e administrativos locais (às câmaras) o
governo econômico das cidades e vilas (art. 167). Todavia, já em 1828 as câmaras
eram subordinadas aos governos das províncias e declaradas meras corporações
administrativas. (...)
Em 1º de outubro de 1828 foi expedida a Lei do Império, denominada Regimento das
Câmaras Municipais, que veio a reger o município durante todo o tempo anterior à
República. Nela, encontram-se as funções municipais (posturas policiais, ocupação de
vias públicas, regulamentação das construções, dispositivos sobre moralidade e
sossego públicos, trânsito e tráfego, animais, plantas, matadouros, feiras, espetáculos
públicos e medidas relativas à conservação dos logradouros), vedada qualquer
atribuição judiciária. A receita era oriunda da cobrança de valores que hoje poderiam
ser identificados como taxas (ANDRADE, 2004, p.1125-1126).

No final do século XIX, inspirado no modelo Norte-americano, foi introduzido no


Brasil, o sistema federativo para melhorar a organização administrativa do seu imenso território.
Tal sistema foi introduzido com a proclamação da República e a promulgação da Constituição
de 1891. Camargo explica que província de São Paulo liderou o movimento republicano e
federalista, descontente com a uniformidade excessiva do centralismo imperial, seu furor
regulatório e sua ganância fiscal. A província se insurgiu contra a situação de ter de entregar ao
poder imperial, os impostos de exportação arrecadados graças ao grande surto de expansão
cafeeira. Além disso, a autora indica que o dinamismo econômico da província se baseava em
uma população imigrante e no trabalho livre, que exigiam um processo de modernização e
investimentos mais vigorosos do que seria a disposição da elite imperial, comprometida com
velhas alianças nordestinas e fluminenses (CAMARGO, 2001).

Assim, apesar de inspirado na Constituição dos Estados Unidos da América, o


federalismo no Brasil nasceu de forma diversa do modelo Norte-americano. Como esclarece
Abrucio e Franzese:

A criação do modelo federativo no Brasil ocorreu de maneira oposta à experiência


norte-americana. Não resultou de um pacto entre unidades autônomas, mas de um
processo de descentralização de poder do centro para os estados, uma vez que em suas
primeiras décadas – quase 70 anos – o País fora regido por um Império bastante
centralizado (ABRUCIO; FRANZESE, 2007, p. 3).

Entretanto, apesar das diferenças históricas entre as duas nações, as estruturas


institucionais adotadas foram bastante semelhantes – Constituição Federal escrita, Senado
Federal como espaço de representação nacional dos estados e um Tribunal Superior responsável
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por julgar conflitos federativos e zelar pelo cumprimento do pacto fundante, isto é, da
Constituição Federal (ABRUCIO; FRANZESE, 2007).

De acordo com Andrade, o texto da Constituição de 1891 foi o primeiro a garantir


a autonomia municipal no Brasil, pois determinou no seu art. 68 que “os Estados organizar-se-
ão de forma que fique assegurada a autonomia dos municípios em tudo quanto respeite ao seu
peculiar interesse”. Na opinião de muitos juristas e políticos da época, porém, o modelo da
autonomia municipal da Carta republicana representava “uma criação engenhosa dos juristas e
dos militares, afastada da realidade política e social então existente”. O chamado “Pacto
Republicano” (repartição da competência policial, do fisco, do patrimônio, da Justiça) não alçou
o município à sede constitucional, organizado que era pelo respectivo estado, e não compunha
a Federação, formada pela união dos Estados, do Distrito Federal e dos territórios. Assim,
devido à falta de clareza na definição da autonomia local no texto constitucional, os governos
estaduais preferiram ver no município um elemento da própria autonomia estadual e logo
passaram a delimitar, na base do próprio entendimento, os moldes do peculiar interesse
municipal (ANDRADE, 2004).

Com a Constituição de 1891, promulgada após a República, os recursos públicos


foram canalizados para alguns poucos estados, mostrando que a federação brasileira nasceu sob
a égide da concentração de recursos em poucos estados e escassas relações existiam entre os
entes constitutivos da federação, caracterizando esse período como o de uma federação isolada.
Este isolamento só é interrompido em 1930, com o golpe em que Getúlio Vargas assume o
poder (SOUZA, 2005). Ainda no que diz respeito aos recursos públicos, Arretche esclarece que
a federação brasileira adotou já na Constituição Federal de 1891, o regime de separação de
fontes tributárias, discriminando impostos de competência exclusiva dos Estados e da União
(ARRECTHE, 2004).

A constituição promulgada em 1934, fruto do golpe de 1930 no qual Getúlio Vargas


assume o poder, introduziu a tendência à constitucionalização de questões socioeconômicas e
expandiu as relações intergovernamentais pela autorização para que o governo federal
concedesse às instâncias subnacionais recursos e assistência técnica. Aos municípios foram
assegurados recursos próprios, que seriam por eles coletados, passando também a receber
parcela de um imposto estadual (SOUZA, 2005).

Aventou-se pela primeira vez sua autonomia política (eleição de seus prefeitos e
vereadores), financeira (decretação de seus impostos, taxas e outras rendas) e administrativa
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(organização de seus serviços). Porém, não lhe coube menção quando da definição da forma
federativa, permanecendo os mesmos tópicos da primeira Constituição republicana
(ANDRADE, 2004).

Com um novo golpe em 1937, estabeleceu-se o Estado Novo, ápice do modelo


varguista. Neste período, a centralização de poder foi bastante intensa, chegando-se mesmo a
abolir o federalismo da Constituição, retirando-se a expressão “Estados Unidos do Brasil” de
seu texto (ABRUCIO; FRANZESE, 2007).

Celina de Souza ilustra bem o que ocorreu neste período em que foi outorgada a
Constituição de 1937:

Vargas fechou o Congresso Nacional e as assembleias estaduais e substituiu os


governadores eleitos por interventores. Existe um consenso de que uma das principais
razões do golpe seria neutralizar a importância dos interesses regionais a fim de
construir a unidade política e administrativa necessária para promover a chamada
modernização social e econômica do país. Um dos atos mais simbólicos de Vargas
contra os interesses regionais foi queimar todas as bandeiras estaduais em praça
pública. Os governos subnacionais perderam receitas para a esfera federal, mas a mais
importante medida foi delegar ao governo federal a competência para legislar sobre
as relações fiscais externas e entre os estados (SOUZA, 2005, p.108).

Com relação aos municípios, a Constituição de 1937 ficou composta como as cartas
anteriores, permanecendo o respeito à autonomia relativa ao peculiar interesse municipal, bem
como a eleição dos vereadores, o poder de decretar impostos e taxas e a prerrogativa de
organizar seus serviços. Porém a partir deste momento os prefeitos seriam nomeados livremente
pelo governador do estado (ANDRADE, 2004). Tolhendo-se assim a sua autonomia política.

A redemocratização do país consolidou-se com a Constituição promulgada em


1946. Nesta constituição a Federação permaneceu composta pelos estados, Distrito Federal e
territórios, sem incluir o município. Ao contrário da Constituição de 1937, a nova Lei Maior
negou à União a possibilidade de intervir nos estados, salvo em determinados casos, inclusive
para fazer valer o princípio da autonomia municipal que foi garantida no art. 28,
compreendendo seus aspectos políticos, administrativos e financeiros (ANDRADE, 2004).

Com a instalação de um novo regime, marcado pelas regras democráticas da


Constituição de 1946, o federalismo voltava a ser o fundamento político-territorial do País.
Como uma das novidades, houve uma preocupação com a distribuição horizontal de recursos
por meio da destinação de receitas federais a regiões menos desenvolvidas – notadamente Norte
e Nordeste. Em termos federativos, o cenário era duplo: de um lado, a União continuava sua
expansão em prol do projeto nacional desenvolvimentista; de outro, as elites regionais
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recuperaram poder, fortalecendo o Congresso Nacional e principalmente os governadores de


estado (ABRUCIO; FRANZESE, 2007).

Cabe destacar que a Constituição de 1946 introduziu o primeiro mecanismo de


transferências intergovernamentais da esfera federal para as municipais, excluídos os estados,
na tentativa de diminuir os desequilíbrios verticais de receita (SOUZA, 2005).

Já o final do período 1945-64 foi marcado por uma forte radicalização política, em
meio ao cenário da Guerra Fria e à falta de efetiva adesão das elites brasileiras ao processo
democrático. O resultado foi a realização de um golpe de estado, com apoio de líderes civis –
particularmente os governadores de São Paulo, Guanabara e Minas Gerais – e capitaneado pelos
militares. Instalou-se um regime político que durou cerca de 20 anos e teve forte impacto na
Federação e no pacto federativo (ABRUCIO; FRANZESE, 2007).

Conforme assinala Celina de Souza, apesar da centralização de recursos financeiros


no âmbito da União, são criados instrumentos de descentralização de recursos, os Fundos de
Participação dos Estados e Municípios:

O golpe de 1964 colocou o Brasil na rota dos regimes autoritários que passaram a
governar a América Latina nos anos 1960. Paradoxalmente, os militares não
promulgaram imediatamente uma nova Constituição, embora tenham feito várias
emendas à Constituição de 1946. A nova Constituição do regime só foi promulgada
em 1967 e em 1969 uma longa emenda constitucional foi editada. Como se sabe, a
Constituição de 1967-1969 e a reforma tributária de 1966 centralizaram na esfera
federal poder político e tributário, afetando o federalismo e suas instituições (...). No
entanto, apesar da centralização dos recursos financeiros, foi a reforma tributária dos
militares que promoveu o primeiro sistema de transferência intergovernamental de
recursos da esfera federal para as subnacionais, por meio dos fundos de participação
(Fundo de Participação dos Estados (FPE) e Fundo de Participação dos Municípios
(FPM)). O critério de distribuição abandonou a repartição uniforme entre os entes
constitutivos, passando a incorporar o objetivo de maior equalização fiscal pela
adoção do critério de população e inverso da renda per capita. No regime militar, as
esferas subnacionais também recebiam as chamadas transferências negociadas, que
cresceram significativamente no período (SOUZA, 2005, p.109).

No que tange aos municípios, a Constituição imposta em 1967 relativizou, em seu


art. 16, sua autonomia, especialmente no que concerne à escolha dos prefeitos, que poderia ser
feita tanto pelo voto popular quanto pelo governador do estado (capitais e municípios
considerados estâncias hidrominerais) e pelo presidente da República (municípios declarados
de interesse da segurança nacional, hipótese que se tornou instrumento de manipulação política)
(ANDRADE, 2004).

Durante o regime militar, embora, evidentemente, tenha havido o enfraquecimento


do princípio federativo, uma vez que o essencial foi abolido – como a eleição direta para
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governadores – formalmente não foram modificadas as bases federais do país, ao menos no


texto legal, sendo que, na visão de Stepan, “o federalismo manteve-se como fator politicamente
importante” no Brasil, mesmo durante esses regimes de exceção (STEPAN, 1999, p. 28 apud
CRUZ, 2009, p.84).

Na verdade, como esclarece Camargo:

No Brasil e no mundo, durante o período em que prevaleceu no país o modelo


desenvolvimentista, durante o qual predominou o Estado do bem-estar, a federação
como sistema de organização do Estado esteve fora de moda, passando pelo
purgatório de ser identificada com o liberalismo ultrapassado, com o caciquismo
político e o poder do latifúndio, e com o privatismo e particularismo dos laços
familiares, dos clãs políticos e dos interesses locais. Tida como incapaz de atender ao
interesse público, por um bom tempo foi posta na contramão do desenvolvimento e
do progresso. Na década de 1980, tudo mudou. O modelo desenvolvimentista e o
Estado corporativo entraram em crise profunda, acompanhando o surto liberal que
novamente se estendeu pelo mundo, acelerando a expansão das empresas
transnacionais, a integração dos mercados e o ingresso dos países desenvolvidos na
Era da Informação. Nesse contexto, a gestão descentralizada das empresas e dos
governos ganhou magnitude, generalizando-se por todos os continentes junto com a
promoção da sociedade civil e das organizações não-governamentais. Era o Estado
burocrático, promotor do desenvolvimento, transformando-se em Estado indutor e
coordenador de políticas públicas, cada vez mais submetidas à órbita da
regionalização e do poder local (CAMARGO, 2001, p. 316).

Em 1988, é promulgada uma nova Constituição fruto do processo de


redemocratização ocorrido no Brasil. Logo em seu primeiro artigo a Constituição Federal define
que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos estados e
municípios e do Distrito federal, constituindo-se em um Estado democrático de direito, já
anunciando o seu caráter marcadamente diferenciado das anteriores. Os constituintes atenderam
a várias proposições do movimento municipalista, entre as quais a que integrava como membro
efetivo da Federação, definida em seu art. 1º, o município, com autonomia idêntica à da União,
dos Estados e do Distrito Federal, a teor do art. 18.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos (...)
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil
compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos
autônomos, nos termos desta Constituição (BRASIL, 2013).

Também é importante destacar que os artigos 29 e 30, constantes no capítulo IV da


Constituição, que dispõe especificamente sobre os municípios, consagraram a capacidade do
município para elaborar sua lei orgânica, sem a interferência do estado, e estabelece uma série
de competências ao município, entre elas a de eleger seus agentes políticos, legislar, administrar
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suas rendas e, sobretudo, prestar uma gama de serviços de interesse da coletividade municipal.
Cabe ressaltar que descentralização de recursos públicos aos municípios começou antes mesmo
da nova Constituição, no início da década de 80, principalmente via aumento de transferências
federais por meio dos fundos de participação.

No que diz respeito à distribuição de competências legislativas e administrativas, a


Constituição de 1988 coloca os municípios também ao lado da União e dos estados. No
exercício das suas atribuições, ele atua em absoluta igualdade de condições com as outras
esferas governamentais. Os atos municipais independem da prévia autorização ou de posterior
ratificação de qualquer outra entidade estatal. Não existe nenhuma hierarquia formal entre as
leis da União, dos estados e dos municípios: cada um desses sistemas possui o seu próprio
espaço de soberania enquanto se desenvolve nos limites da sua competência constitucional.
Essa “trilogia federativa” da existência de três entes políticos internos e autônomos constitui
uma peculiaridade do Brasil em comparação com todos os outros países de organização
federativa (ANDRADE, 2004). De acordo com Abrúcio e Franzese, apenas Bélgica e Índia dão
ao poder local um status semelhante (ABRUCIO; FRANZESE, 2007).

Celina Souza faz um apanhado comparando as características da constituição de


1988 com as constituições anteriores:

Em algumas questões, a Constituição de 1988 contrastou com as anteriores,


principalmente nos seguintes aspectos: (a) na provisão de mais recursos para as
esferas subnacionais; (b) na expansão dos controles institucionais e societais sobre os
três níveis de governo, pelo aumento das competências dos poderes Legislativo e
Judiciário e pelo reconhecimento dos movimentos sociais e de organismos não-
governamentais como atores legítimos de controle dos governos e (c) pela
universalização de alguns serviços sociais, em particular a saúde pública, antes restrita
aos trabalhadores do mercado formal, tendo como princípio diretivo a
descentralização e a participação dos usuários. No entanto, a Constituição de 1988
conservou certas características das constituições anteriores, tais como (a) a tendência
à constitucionalização de muitas questões, mantida nas emendas constitucionais
aprovadas posteriormente; (b) o fortalecimento dos governos locais vis-à-vis os
estados; (c) a tendência à adoção de regras uniformes para as esferas subnacionais,
em especial as instâncias estaduais, dificultando a adoção de políticas próximas de
suas prioridades, e (d) a impossibilidade de avançar em políticas voltadas para a
diminuição dos desequilíbrios regionais, apesar da existência de mecanismos
constitucionais que ou não foram operacionalizados ou são insuficientes para uma
efetiva política de equalização fiscal (SOUZA, 2005, p. 110).

Rosana da Cruz também destaca as inovações da nova constituição:

A Constituição Federal 1988 (CF/88) foi um marco na reorganização do federalismo


brasileiro, uma vez que definiu um sistema mais claro de transferências
constitucionais de recursos públicos entre as esferas governamentais, com vistas a
possibilitar que estados e municípios executassem políticas públicas para a garantia
do suprimento de necessidades básicas da população sob sua responsabilidade. Além
disso, trouxe como novidade o reconhecimento dos municípios como entes federados
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dotados de autonomia político-administrativa, com o mesmo status jurídico que


estados e União (CRUZ, 2009, p.86).

Além de “reestabelecer” o federalismo a nova carta, ainda alçou os municípios à


qualidade de ente da federação, sem distinções por tamanho ou desenvolvimento econômico,
refletindo uma longa tradição de autonomia municipal e de escasso controle dos estados sobre
as questões locais. Assim, a gestão das cidades passou a ser responsabilidade integral dos entes
municipais.

FEDERALISMO E DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIAS

As competências para realização das políticas públicas e prestação dos serviços


públicos, em um Estado do tipo federado, pressupõem a autonomia dos entes federados e a
repartição, constitucionalmente estabelecida, de competências administrativas, legislativas e
tributárias. A repartição de competências é a técnica que a Constituição da República utiliza
para partilhar entre entes federados as diferentes atividades do Estado federal, haja vista que a
autonomia dos entes federativos se assenta precisamente, na existência de competências que
lhe são atribuídas como próprias diretamente pela Constituição Federal (PAULO;
ALEXANDRINO, 2009).

Existem duas espécies de federalismo quanto ao modo de separação de


competências entre os entes que compõe a federação: o federalismo cooperativo e o federalismo
dual. O federalismo cooperativo é caracterizado por uma divisão não rígida de competências
entre a entidade central e os demais entes federados, caso da federação brasileira. O federalismo
dual é identificado por uma rígida separação das competências entre a entidade central (União)
e os demais entes federados, como é o caso da federação dos Estados Unidos da América
(PAULO; ALEXANDRINO, 2009).

Em seu trabalho sobre os estados de Bem-estar Social em países unitários e


federativos, Paul Pierson revela que no federalismo as ações governamentais são divididas entre
unidades políticas autônomas, as quais, porém, têm cada vez mais interconexão, devido à
nacionalização dos programas e mesmo da fragilidade financeira ou administrativa de governos
locais e/ou regiões (PIERSON, 1995 apud ABRUCIO, 2005), necessitando assim de
mecanismos de cooperação.

Seguindo essa mesma caracterização, Casseb esclarece que o modelo de


federalismo dual comporta uma “rígida separação entre o governo central e o local, tendo em
vista que um atua independentemente do outro no seu campo exclusivo” (CASSEB, 1999, p.10
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apud CRUZ, 2009, p. 87), um limitando a esfera de ação do outro. Já no modelo de federalismo
cooperativo “existe uma maior aproximação e entrelaçamento entre as esferas estadual e
federal, que passam a desenvolver competências comuns, havendo uma cooperação entre as
duas esferas e um nítido predomínio da União” (CASSEB, 1999, p.19 apud CRUZ, 2009, p.87).

Fernando Abrúcio faz a seguinte análise sobre os benefícios da cooperação no


federalismo:

O modus operandi cooperativo é fundamental para otimizar a utilização de recursos


comuns, como nas questões ambientais ou problemas de ação coletiva que cobrem
mais de uma jurisdição (caso dos transportes metropolitanos); para auxiliar governos
menos capacitados ou mais pobres a realizarem determinadas tarefas e para integrar
melhor o conjunto de políticas públicas compartilhadas, evitando o jogo de empurra
entre os entes. Ainda é peça-chave no ataque a comportamentos financeiros
predatórios, que repassam custos de um ente à nação, como também na distribuição
de informação sobre as fórmulas administrativas bem-sucedidas, incentivando o
associativismo intergovernamental (ABRUCIO, 2005, p.44).

Assim, em um Estado do tipo federado, deve-se estabelecer um determinado


equilíbrio entre os entes que o integrarão mediante a outorga a cada qual de um conjunto de
atribuições próprias, de modo que a esfera de atuação dos entes federados e as relações de
coordenação e colaboração entre eles estejam, desde logo, bem delineadas na Constituição. Essa
estruturação confere autonomia política aos entes federativos, e assegura isonomia entre eles,
uma vez que nenhum ente federado dependerá da decisão de outro quanto ao que lhe cabe, ou
não, fazer; o conjunto de atribuições de cada um está delineado desde o momento de
organização do Estado, compondo a própria estrutura política deste; cada ente federado atua
não por decisão, favor ou delegação de quaisquer outros, mas, sim, por lhe haver a própria
Constituição outorgado, diretamente, um conjunto definido de competências (PAULO;
ALEXANDRINO, 2009).

A Constituição Federal de 1988 adotou como critério para repartição de


competências entre os diferentes entes federativos, o princípio da predominância de interesses.
Esse princípio impõe a outorga de competências de acordo com o interesse predominante a
respectiva matéria. Partindo-se da premissa de que há assuntos que, por sua natureza, devem,
essencialmente, ser tratados de maneira uniforme em todo País e outros em que é possível ou
mesmo desejável a diversidade de regulação e atuação do poder público, ora em âmbito
regional, ora em âmbito local (PAULO; ALEXANDRINO, 2009).

Na República Federativa do Brasil temos um ente federado nacional (União), entes


federados regionais (estados) e entes federados locais (municípios). Logo, se a matéria
é de interesse predominantemente geral, a competência é outorgada à União. Aos
estados são reservadas as matérias de interesse predominantemente regional. Cabe aos
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municípios a competência sobre matérias de interesse predominantemente local


(PAULO; ALEXANDRINO 2009, p.308).

Assim, as competências da União, previstas nos artigos 21 e 22 da Constituição


Federal, estão relacionadas fundamentalmente a questões da política externa e da defesa
nacional assim como a questões de caráter econômico e de desenvolvimento nacional.

Conforme disposto no artigo 21 da carta magna de 1988, compete a União:

I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações


internacionais;
II - declarar a guerra e celebrar a paz;
III - assegurar a defesa nacional;
IV - permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras
transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente;
V - decretar o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal;
VI - autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico;
VII - emitir moeda;
VIII - administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza
financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de
seguros e de previdência privada;
IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de
desenvolvimento econômico e social;
X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;
XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os
serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos
serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;
XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:
a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens;
b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos
cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais
hidroenergéticos;
c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;
d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e
fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;
e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;
f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;
XIII - organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público do Distrito Federal
e dos Territórios e a Defensoria Pública dos Territórios;
XIV - organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros
militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal
para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio;
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XV - organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e


cartografia de âmbito nacional;
XVI - exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de
programas de rádio e televisão;
XVII - conceder anistia;
XVIII - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas,
especialmente as secas e as inundações;
XIX - instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir
critérios de outorga de direitos de seu uso;
XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação,
saneamento básico e transportes urbanos;
XXI - estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação;
XXII - executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;
XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer
monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a
industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os
seguintes princípios e condições:
a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins
pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;
b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de
radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais;
c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção, comercialização e utilização
de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas;
d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa;
XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;
XXV - estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de
garimpagem, em forma associativa (BRASIL, 2013).

O artigo supracitado expressa taxativamente as competências administrativas


exclusivas da União, determinando quais são suas atribuições no âmbito da federação, contudo
é importante também destacar as competências legislativas. Desta forma conforme disposto no
artigo 22 da Constituição Federal:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:


I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico,
espacial e do trabalho;
II - desapropriação;
III - requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra;
IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;
V - serviço postal;
VI - sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais;
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VII - política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores;


VIII - comércio exterior e interestadual;
IX - diretrizes da política nacional de transportes;
X - regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial;
XI - trânsito e transporte;
XII - jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia;
XIII - nacionalidade, cidadania e naturalização;
XIV - populações indígenas;
XV - emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros;
XVI - organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de
profissões;
XVII - organização judiciária, do Ministério Público do Distrito Federal e dos
Territórios e da Defensoria Pública dos Territórios, bem como organização
administrativa destes;
XVIII - sistema estatístico, sistema cartográfico e de geologia nacionais;
XIX - sistemas de poupança, captação e garantia da poupança popular;
XX - sistemas de consórcios e sorteios;
XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação
e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares;
XXII - competência da polícia federal e das polícias rodoviária e ferroviária federais;
XXIII - seguridade social;
XXIV - diretrizes e bases da educação nacional;
XXV - registros públicos;
XXVI - atividades nucleares de qualquer natureza;
XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as
administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as
empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;
XXVIII - defesa territorial, defesa aeroespacial, defesa marítima, defesa civil e
mobilização nacional;
XXIX - propaganda comercial.
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre
questões específicas das matérias relacionadas neste artigo (BRASIL, 2013).

No que diz respeito aos estados, a Constituição não enumerou expressamente suas
competências na prestação dos serviços públicos. Reservaram-se para os estados as matérias e
serviços que não tenham sido atribuídas taxativamente aos outros entes da federação,
caracterizando-se assim pela competência remanescente ou residual. As únicas exceções foram
as competências para instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; e
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a exploração direta, ou mediante concessão os serviços de gás canalizado. Conforme se pode


inferir da leitura do artigo 25 da Constituição Federal, transcrito abaixo:

Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem,
observados os princípios desta Constituição.
§ 1º - São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por
esta Constituição.
§ 2º - Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços
locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para
a sua regulamentação.
§ 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões
metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por
agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento
e a execução de funções públicas de interesse comum (BRASIL, 2013).

Embora não haja um detalhamento explícito das competências dessa esfera de


governo, é importante notar que tais competências são amplas, por que delimitadas pelo seu
contrário, ou seja, para essa esfera somente não cabe o que for expressamente vedado pela
Constituição Federal, conforme artigo 25 da Carta Constitucional. Tal condição parece apontar
para uma situação em que o estado, após a Constituição, ficou espremido entre União e
municípios, os quais passaram a relacionar-se diretamente na organização e implementação de
políticas – na maioria das vezes, sem qualquer articulação com a esfera intermediária de
governo: os estados.

A ênfase municipalista da Constituição de 1988 parece tomar mais consistência


quando se verifica as competências que cabem a tal ente federado, que perpassam pela
elaboração de legislação local pela possibilidade de instituir e arrecadar os tributos de sua
competência, por questões de organização territorial em sua jurisdição e pela oferta de educação
infantil, ensino fundamental e serviços de saúde pública, com apoio dos estados e União.

Art. 30. Compete aos Municípios:


I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas,
sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos
fixados em lei;
IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os
serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter
essencial;
VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas
de educação infantil e de ensino fundamental;
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VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços


de atendimento à saúde da população;
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a
legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual (BRASIL, 2013).

A Constituição Federal estabeleceu ainda em seu artigo 23 as competências comuns


à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, ou seja, atribuiu a todos os entes federados a
competência para atuar paralela e cumulativamente em determinadas políticas públicas, em
condições de igualdade sem qualquer relação de subordinação.

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios:
I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e
conservar o patrimônio público;
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras
de deficiência;
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e
cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros
bens de valor histórico, artístico ou cultural;
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;
IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições
habitacionais e de saneamento básico;
X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a
integração social dos setores desfavorecidos;
XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e
exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios;
XII - estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.
Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a
União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do
desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional (BRASIL, 2013).

Já no artigo 24 a CF estabeleceu as competências para legislar de forma concorrente


entre à União, Estados e Distrito Federal.

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente
sobre:
I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
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II - orçamento;
III - juntas comerciais;
IV - custas dos serviços forenses;
V - produção e consumo;
VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos
recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;
VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;
VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos
de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
IX - educação, cultura, ensino e desporto;
X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas;
XI - procedimentos em matéria processual;
XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;
XIII - assistência jurídica e Defensoria pública;
XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;
XV - proteção à infância e à juventude;
XVI - organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis.
§ 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a
estabelecer normas gerais.
§ 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a
competência suplementar dos Estados.
§ 3º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência
legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º - A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei
estadual, no que lhe for contrário (BRASIL, 2013).

De acordo com a professora Celina de Souza, as constituições brasileiras sempre


delinearam as competências dos três níveis de governo, embora a de 1988 seja a mais detalhada.
No que se referem às competências concorrentes, os constituintes fizeram uma clara opção pelo
princípio de que a responsabilidade pela provisão da maioria dos serviços públicos, em especial
os sociais, é comum aos três níveis (SOUZA, 2005), caracterizando dessa forma o federalismo
brasileiro como um federalismo de cooperação.

Colaborando com este raciocínio, Arretche destaca que os constituintes de 1988


optaram pelo formato das competências concorrentes para a maior parte das políticas sociais
brasileiras. Assim, qualquer ente federativo está constitucionalmente autorizado a implementar
programas nas áreas de saúde, educação, assistência social, habitação e saneamento.
Simetricamente, nenhum ente federativo está constitucionalmente obrigado a implementar
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programas nestas áreas. Esta distribuição de competências é propícia para produzir os efeitos
esperados pela literatura sobre federalismo e políticas públicas: superposição de ações;
desigualdades territoriais na provisão de serviços; e mínimos denominadores comuns nas
políticas nacionais. Estes efeitos, por sua vez, são derivados dos limites à coordenação nacional
das políticas (ARRETCHE, 2004).

A partir da análise do texto constitucional, percebe-se que as competências dos


entes, no que se refere à questão urbana, se situam no rol das competências
concorrentes/comuns dos entes federados, cabendo a todos eles executarem políticas e ações
nessa área, como a promoção de programas de construção de moradias e a melhoria das
condições habitacionais e de saneamento básico.

A professora Celina Souza (2005), no trabalho sobre o Federalismo, Desenho


Constitucional e Instituições Federativas, sistematizou as competências concorrentes das
entidades governamentais das três esferas de governo no que diz respeito a execução de
políticas e serviços público, conforme quadro abaixo:

QUADRO 1: Competências comuns das esferas de governo


ESFERA DE GOVERNO SERVIÇO/ATIVIDADE
Federal-estadual-local -Saúde e assistência pública;
(competências partilhadas)
-Assistência aos portadores de deficiência;
-Preservação do patrimônio histórico, artístico, cultural,
paisagens naturais notáveis e sítios arqueológicos;
-Proteção do meio ambiente e dos recursos naturais;
-Cultura, educação e ciência;
-Preservação das florestas, da fauna e da flora;
-Agropecuária e abastecimento alimentar;
-Habitação e saneamento;
-Combate à pobreza e aos fatores de marginalização social;
-Exploração das atividades hídricas e minerais;
-Segurança do trânsito;
-Políticas para pequenas empresas;
-Turismo e lazer;
Fonte: SOUZA (2005).
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Souza esclarece que apesar do grande número de competências concorrentes, na


prática existem grandes distâncias entre o que prevê a Constituição e sua aplicação. O objetivo
do federalismo cooperativo está longe de ser alcançado por duas razões principais: a primeira
está nas diferentes capacidades dos governos subnacionais de implementarem políticas
públicas, dadas as enormes desigualdades financeiras, técnicas e de gestão existentes; a segunda
está na ausência de mecanismos constitucionais ou institucionais que estimulem a cooperação,
tornando o sistema altamente competitivo (SOUZA, 2005).

No que se refere à gestão de cidades, na equação adotada pela Constituinte, caberia


aos municípios elaborar planos diretores municipais para planejar seu processo de urbanização,
delegando para este instrumento a explicitação da função social da propriedade e da cidade.
Entretanto, a responsabilidade sobre as políticas setoriais ligadas ao desenvolvimento urbano
(habitação, saneamento e infraestrutura) foi atribuída aos três entes federativos, de modo
concorrente.

A fim de evitar conflitos e superposição de esforços no âmbito da competência


comum é que a Constituição determinou no parágrafo único do artigo 23, que leis
complementares fixarão normas para cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e bem-estar em âmbito nacional.

No entanto, até o momento nenhuma lei foi proposta pelo poder Executivo ao
Congresso Nacional, com este objetivo. Compreendendo a complexidade da questão, Rezende
pondera que uma melhor definição das competências por meio da regulamentação do artigo 23
não é algo fácil, uma vez que envolve repensar o próprio papel do Estado e as responsabilidades
do setor público, destacando a impossibilidade de se definir um “rígido cardápio que estabeleça
em detalhes as responsabilidades da União, dos estados e dos municípios”, em virtude das
enormes disparidades socioeconômicas regionais (REZENDE, 1995 apud CRUZ, 2009).

Isso não significa, todavia, que as relações intergovernamentais são inexistentes.


Apesar do ápice da descentralização ter sido atingido na Constituição Federal de 1988, a
articulação de políticas públicas foi se consolidando apenas ao longo dos anos 1990, assumindo
variados ritmos, dependendo da área. Os governos subnacionais passaram a partilhar recursos
federais, os municípios partilham parcelas de impostos estaduais e federais, e existem várias
políticas sociais, destacadamente saúde e educação fundamental, que contam com diretrizes e
recursos federais, mas são implementadas principalmente pelos municípios (SOUZA, 2005).
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No entanto, com exceção das áreas de saúde e educação, as relações


intergovernamentais são altamente competitivas, tanto vertical como horizontalmente, e
marcadas pelo conflito, com estados e municípios competindo por recursos federais. Apesar de
a Constituição prover vários mecanismos que sinalizam no sentido do federalismo cooperativo,
tais como as competências concorrentes acima mencionadas, o federalismo brasileiro tende a
ser altamente competitivo e mecanismos de cooperação ficam a depender de iniciativas federais
(SOUZA, 2005).

No que diz respeito à coordenação necessária em um federalismo cooperativo


Fernando Abrúcio tece a seguinte análise:

Para garantir a coordenação entre os níveis de governo, as federações devem,


primeiramente, equilibrar as formas de cooperação e competição existentes, levando
em conta que o federalismo é intrinsecamente conflitivo (...). Daí toda federação ter
de combinar formas benignas de cooperação e competição. No caso da primeira, não
se trata de impor formas de participação conjunta, mas de instaurar mecanismos de
parceria que sejam aprovados pelos entes federativos (...). O desafio é encontrar
caminhos que permitam a melhor adequação entre competição e cooperação,
procurando ressaltar seus aspectos positivos em detrimento dos negativos (...). A
coordenação federativa pode realizar-se, em primeiro lugar, por meio de regras legais
que obriguem os atores a compartilhar decisões e tarefas – definição de competências
no terreno das políticas públicas, por exemplo. Além disso, podem existir fóruns
federativos, com a participação dos próprios entes – como os senados em geral – ou
que eles possam acionar na defesa de seus direitos – como as cortes constitucionais.
A construção de uma cultura política baseada no respeito mútuo e na negociação no
plano intergovernamental é outro elemento importante (...). O governo federal
também pode ter um papel coordenador e/ou indutor. Por um lado, porque em vários
países os governos subnacionais têm problemas financeiros e administrativos que
dificultam a assunção de encargos. Por outro, porque a União tem por vezes a
capacidade de arbitrar conflitos políticos e de jurisdição, além de incentivar a atuação
conjunta e articulada entre os níveis de governo no terreno das políticas públicas. A
atuação coordenadora do governo federal ou de outras instâncias federativas não pode
ferir os princípios básicos do federalismo, como a autonomia e os direitos originários
dos governos subnacionais, a barganha e o pluralismo associados ao relacionamento
intergovernamental e os controles mútuos (ABRUCIO, 2005, p.44-46).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos fundamentos do federalismo aqui levantados, verificou-se que nesta


forma de organização político territorial do Estado, o poder político é repartido entre diferentes
entidades governamentais autônomas, cada uma tendo responsabilidade sobre um mesmo
território e pessoas, assim como autoridade de realizar ações independentemente dos outros,
particularmente porque os entes devem ter autonomia na elaboração de leis e de políticas.

A Constituição Federal de 1988 inovou ao alçar os municípios à qualidade de entes


da federação responsáveis pela gestão das cidades com autonomia idêntica aos estados-
Página 1643 de 2230

membros na elaboração de suas leis e políticas e estabeleceu uma série de competências comuns
aos entes federados, posicionando o Brasil como um país de federalismo do tipo cooperativo.

No que concerne ao decurso histórico do federalismo no Brasil, notou-se que este


se caracterizou por movimentos pendulares, ora em maior evidência, ora em menor evidência.
De acordo com a Constituição de 1988, as principais políticas sociais, como saúde, educação,
habitação, saneamento, transportes, dentre outras se situam no campo das competências comuns
aos entes federados. Contudo, os mecanismos de coordenação e cooperação dessas políticas
públicas são escassos, quando não, inexistentes.

A literatura demonstra que em países que adotam o federalismo cooperativo é


necessário que haja regras claras de coordenação do campo das políticas públicas visando evitar
que as diferentes esferas de governo efetivem, ao mesmo tempo, iniciativas de políticas públicas
sem nenhuma integração, ou até mesmo em direções opostas, tal prática faz com que os recursos
públicos de cada ente federativo sejam aplicados isoladamente, atacando de maneira sobreposta
os mesmos problemas perdendo-se uma oportunidade de potencializar recursos que são
escassos e articular ações de maneira a gerar melhores resultados.

Outro ponto a ser destacado neste tipo de federalismo, é que este possibilita que
União, Estados e Municípios se omitam diante de algumas questões, e a população permaneça
sem uma ação governamental e não saiba, efetivamente, de quem cobrar se do governo
municipal, estadual e federal. Isso permite que cada esfera de governo culpe a outra pelo
problema, sem que nenhuma ação efetiva seja tomada.

A coordenação federativa deve realizar-se, em primeiro lugar, por meio de regras


legais que obriguem os atores a compartilhar decisões e tarefas, como a definição de
competências no terreno dessas políticas públicas.

REFERENCIAS

ABRUCIO, F. L. A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os


desafios do Governo Lula. Revista de Sociologia e Política. n.24. p. 41-67. Jun 2005.

ABRUCIO, F. L. ; FRANZESE, C. Federalismo e Políticas Públicas: o impacto das relações


intergovernamentais no Brasil. In: Maria Fátima Infante Araújo; Lígia Beira. (Org.). Tópicos
de Economia Paulista para Gestores Públicos. 1 ed. Edições FUNDAP: São Paulo, 2007.

ANDRADE, S. A. M. de. O novo pacto federativo brasileiro e seu efeito na prestação dos
serviços públicos: enfoque na segurança pública. In: Revista de Administração Pública. Rio
de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, v. 38, n. 6, nov.-dez 2004.
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ARAUJO, G. C. de. Município, federação e educação: história das instituições e das ideias
políticas no Brasil. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo. 2005.

ARRECTHE, M. T. S. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da


descentralização. São Paulo. Revam: FAPESP, 2011.

ARRETCHE, M. T. S. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação


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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:


Câmara dos Deputados, 2013.

CAMARGO. A. Federalismo e identidade nacional. In: SACHS, I.; WILHEIM, J.;


PINHEIRO, P. S. Brasil: Um século de transformações. São Paulo: Companhia das Letras,
2001. p. 306-357.

CRUZ, R. E. da. Pacto federativo e financiamento da educação: a função supletiva e


redistributiva da União - o FNDE em destaque. 2009. Tese de Doutorado. Universidade de
São Paulo.

PAULO, V; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado. 4. Ed.São Paulo:


Método, 2009.

SOUZA, C. Federalismo, desenho constitucional e instituições federativas no Brasil pos-


1988. Revista de Sociologia e Política, 24, junho 2005, p. 105-121.
Página 1645 de 2230

HISTÓRIAS QUE SE CONTAM: FORMAÇÃO CULTURAL E ECONÔMICA DA


MEMÓRIA DOS POVOADOS ARAÇÁ E BARREIRAS-MA.

STORIES THAT TELL: CULTURAL AND ECONOMIC FORMATION OF THE


MEMORY OF THE PEOPLE ARAÇÁ E BARREIRAS -MA.

Francisca Geysa Lopes Araújo. Graduanda em Ciências Humanas/Sociologia. Universidade


Federal do Maranhão-UFMA.
Aleilson Sales da Silva. Graduando em Ciências Humanas/Sociologia. Universidade Federal
do Maranhão-UFMA. Bolsista PIBIC.
Ana Caroline Amorim Oliveira. Doutora em Antropologia. Docente do Curso de Ciências
Humanas/Sociologia. Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Cultura e
Sociedade-PGCULT. Universidade Federal do Maranhão-UFMA.
Washington Tourinho Júnior. Doutor em História Social. Docente do Curso de Ciências
Humanas/Sociologia. Universidade Federal do Maranhão – UFMA
EIXO 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade.
Resumo: O presente artigo tem como ponto de análise e de reflexão a memória dos habitantes
do povoado Araçá e Barreiras localizados no município de Santa Quitéria, Maranhão.
Buscamos compreender como eles se identificam, enquanto pescadores, tendo como referência
a lagoa da Barreiras. A pesquisa possui uma abordagem interdisciplinar, historiográfica e
antropológica, para a qual foram realizadas entrevistas, conversas informais com os mais velhos
das comunidades, bem como, a observação participante. Atualmente os moradores dos
povoados lutam para defender seu território contra os grandes posseiros da região que por
inúmeras vezes tentam tomar posse de suas terras. Eles sentem-se esquecidos pelo poder
administrativo de seu município, por não desenvolver políticas que os protejam da ação dos
grileiros, que estão delimitando espaços de terra com arames farpados dentro da lagoa
impossibilitando a atividade pesqueira. Percebeu-se que a comunidade busca garantir sua
memória e suas tradições às gerações futuras, principalmente, pela pesca e da luta pela terra,
com a preservação do ambiente.
Palavras-chaves: Cultura, Memória, Identidade, Oralidade.
Abstract This article has as a point of analysis and reflection the memory of the inhabitants of
the Araçá and Barreiras village located in the municipality of Santa Quitéria, Maranhão. We
seek to understand how they identify themselves, as fishermen, with reference to the Barreiras
lagoon. The research has an interdisciplinary, historiographical and anthropological approach,
for which interviews, informal conversations with the elders of the communities were carried
out, as well as, participant observation. Currently, villagers are fighting to defend their territory
against the large squatters in the region who have repeatedly tried to take possession of their
land. They feel forgotten by the administrative power of their municipality, for not developing
policies that protect them from the action of land grabbers, who are delimiting land spaces with
barbed wires inside the lagoon, making fishing activity impossible. It was noticed that the
community seeks to guarantee its memory and traditions to future generations, mainly by
fishing and fighting for land, with the preservation of the environment.
Keywords: Culture, Memory, Identity, Orality.
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INTRODUÇÃO

A história dos povoados Araçá e Barreiras localizados no município de Santa


Quitéria, Maranhão, será contada, a partir de uma abordagem interdisciplinar, historiográfica e
antropológica, por meio da fala dos próprios integrantes das comunidades, usando suas
memórias como referência. A partir dessas memórias buscamos entender as “histórias”
relatadas por cada integrante das comunidades estudadas, permitindo o acesso das futuras
gerações à sua história, ou até mesmo, para o reconhecimento da existência da localidade
enquanto povoados que mantém sua singularidade.

Para isso usou-se os conceitos de memória de Joel Candau(2018), que nos


proporciona compreender os fatos contados e interpretá-los de acordo com o contexto
vivenciado pelo narrador; o olhar metodológico de François Hartog(2015) que trabalha as
formas de como o historiador pesquisador pode trabalhar a escrita dessas estórias, ajudando-
nos no momento da transcrição da mesma; e, a categoria de história oral Antonio Torres
Montenegro(1992) que trabalha com relatos, nos proporcionando o conhecimento e o
aprimoramento de um método que permita o trabalho adequado e contextualizado com as
entrevistas realizadas, a história oral.

Para melhor trabalhar essas memórias buscamos autores que nos proporcionassem
o conhecimento de trabalhos que nos ajudassem no momento tanto da interpretação, quanto da
transcrição. Assim, buscamos exemplos em obras de autores para somar em nosso trabalho e,
que trabalhassem com objetos de estudos próximos ao objeto aqui apresentado.

A pesquisa se debruçou sobre as memórias dos moradores dos povoados,


especialmente, dos mais velhos, que nos concederam entrevistas realizadas durante um longo
período de tempo. As idas à comunidade nos permitiram compreender ou, pelo menos tentar
compreender, as fascinantes histórias de vida trazida por cada um deles junto à lagoa da Barreira
que carrega consigo uma parte da identidade de cada integrante dessas comunidades.

Primeiramente, foi feito um reconhecimento de campo em março do ano de 2017


para que pudéssemos delimitar a quantidade de pessoas a serem entrevistadas por idade. Logo
depois de fazer esse reconhecimento fomos até a agente de saúde dos povoados, dona Joselina
Marques Lopes, sendo ela a responsável pelos atendimentos de saúde nos dois locais. Tivemos
acesso a ficha de cada morador através da funcionária. Mesmo com as fichas em mãos tivemos
o cuidado de visitar cada morador para que eles conhecessem o nosso trabalho de perto,
tentando ser o menos invasivo possível. Essas visitas foram feitas com o intuito de demonstrar
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interesse na história de vida daquelas pessoas, apresentando-lhes nossos projetos de pesquisas.


Essas visitas de reconhecimento duraram cinco meses por abranger os dois povoados.

Em setembro de 2017 desenvolvemos o roteiro das entrevistas e quem devíamos


entrevistar. Assim, foi decidido fazê-la com as pessoas que moravam há mais tempo na
comunidade. A partir daí começamos as entrevistas, tendo o cuidado de não nos apressarmos
no momento da escuta. Dessa maneira, os entrevistados sentiam-se mais à vontade para nos
contar todas as estórias por elas lembradas.

O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1996), leva a nós pesquisadores de


campo, a refletir sobre três pontos cruciais em uma pesquisa, que nos quais são: olhar, ouvir,
escrever. São por meio dessas faculdades de sentidos que passamos a conhecer os objetos
estudados, a partir do momento em que se conhece o “campo” cria-se uma ponte entre o “objeto
de pesquisa” e o pesquisador.

Evidentemente tanto o Ouvir quanto o Olhar não podem ser tomados como faculdades
totalmente independentes no exercício da investigação. Ambos se complementam e
servem para o pesquisador como duas muletas (que não nos percamos com essa
metáfora tão negativa...) que lhe permitem caminhar, ainda tropegamente, na estrada
do conhecimento. A metáfora, propositadamente utilizada, permite lembrar que a
caminhada da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas... (Cardoso de
Oliveira, 1996, p.18).

Devemos, portanto, nos atentar para que cumpramos esses objetivos para se ter
êxito no momento da transcrição dos relatos feitos por moradores das comunidades as quais
nos debruçamos a estudar, entendendo que nessas três habilidades- olhar, ouvir e o escrever-
um sempre vai complementar o outro. Como Cardoso de Oliveira (1996) alerta que a jornada é
difícil, mas que é possível desde que o pesquisador atente minimamente para os elementos
significativos que envolvem o objeto de pesquisa.

Dessa maneira, a pesquisa de campo nos proporcionou conhecer a realidade dos


moradores dos povoados estudados, levando-nos a compreender o seu modo de vida por meio
desse convívio no decorrer das entrevistas. Foi utilizado também o método de observação
participante com realização de conversas informais com os moradores mais velhos das
comunidades. Entre eles estão as senhoras Raimunda Lopes de Araújo341 90 anos, lavradora,
Joana Marques de Lima, 80 anos, lavradora, Lera Brito, 67 anos, lavradora, Rosa Marques de
Lima, 78 anos, lavradora, e os senhores Bernardo Araújo Lopes, 67 anos, pescador, Marcos

341
Vale ressaltar que a entrevistada atuou durante muito tempo como professora no povoado Araçá por ter
frequentado a escola básica repassando seus conhecimentos aos demais.
Página 1648 de 2230

Brito, 77 anos, pescador, Domingos Lourenço da Silva, 72 anos, pescador e Francisco das
Chagas Sardinha de Araújo, 54 anos, pescador.

O presente artigo estar dividido nos seguintes tópicos: primeiramente, iremos tratar
sobre as primeiras ocupações ocorridas no povoado Barreiras, que logo em seguida passa a dá
início a um segundo povoado denominado de Araçá. No segundo tópico será trabalhado as
transformações pelas quais a lagoa da Barreiras passa com o decorrer do tempo, e como as
famílias dependentes dela vivem quando ela passa pelo processo de erosão, dificultando a vida
de muitos sujeitos em seus cotidianos. No terceiro tópico dar-se-á continuidade as maneiras que
esses sujeitos vivem em seus cotidianos, mostrando suas atividades produtivas, apresentando
ao leitor como comunidades pequenas que vivem em locais “isolados” mantém a subsistência
dos grupos que ali residem. Por fim, as considerações finais a partir dos resultados preliminares
dessa pesquisa que estar em andamento.

Entre histórias e memórias – povoados Araçá e Barreiras

Santa Quitéria localizado na região do Baixo Parnaíba Maranhense fica a 365km da


capital do estado do Maranhão com estimativa de 29.551 habitante de acordo com o último
censo do IBGE (2010). O município estar dividido entre o centro comercial, que fica localizado
na sede do município, e seus anexos ou zona rural, onde estão os povoados aqui estudados.

Durante o processo de formação do município houve a migração de mais pessoas


para a região havendo a necessidade de se dividir a população para outras partes do município
dando origem há povoados que não ficavam muito longe do centro342.

Os povoados Araçá e Barreiras estão situados no município de Santa Quitéria do


Maranhão, há quatro quilômetros de distância do centro do município, com uma população de
250 habitantes no Araçá, e 500 habitantes no Barreiras343.

O povoado Barreiras, que fica a 6km de distância do centro de Santa Quitéria,


passou a receber algumas famílias que buscavam terras para se apossar, e delas tirar seu
sustento, dando início a construção dos povoados. As primeiras famílias que habitaram os

342
Local este que são desenvolvidas as atividades de fluxo comercial, educacional e saúde.
343
Levantamento feito durante a pesquisa de campo, assim como o povoado Barreiras tem uma estimativa de 500
habitantes. Ressalta-se que os números de habitantes dos povoados Barreiras e Araçá estão em constante
modificação. Os números apresentados são referentes ao início da pesquisa no ano de 2017.
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povoados Barreiras vieram da Santa Quitéria velha, onde ficava o antigo centro comercial da
cidade, mas que devido as circunstancias naturais do ambiente, como as enchentes do Rio
Parnaíba, tiveram que se deslocar para outros locais.

Segundo Marcos Brito, morador do povoado Barreiras, 77 anos, pescador, ao contar


sobre a história do surgimento do povoado Barreiras, relata que as primeiras famílias a se
estabelecerem no local foram responsáveis pelas nominações que hoje existem. Desse modo,
surgiu Barreiras, que passou a ter esse nome por estar situado em uma região de baixo nível
territorial. O local era propício para o plantio de arroz, e para a pesca artesanal proporcionando
aos colonos maneiras de manter a sua sobrevivência.

Aqui tudo era mato onde cada um ia morar que limpava, pra nós viver nós plantava
feijão, milho melancia, arroz, batata e outras coisa mais... e desde menino eu sempre
trabalhei de roça e pesca, o pessoal chamava meu pai de cilora eu não sei porque, mas
talvez seja porque o homem ao saia da lagoa e da roça. Eu não tenho lembrança do
meu pai sem fazer nada em casa, ele sempre tava trabalhando e nós também, era assim
que os pai de família tudim sustentava suas cria, era difícil nessa parte, e quando num
dava na roça de um a gente trocava, as pessoas se entendiam desse jeito e assim é até
hoje (Marcos Brito, 77 anos. Entrevista realizada por Francisca Geysa l. Araújo, e
Aleilson Sales em 28/11/2019, às 09:30 horas).

Em torno da lagoa, surge um novo povoado, conhecido por Araçá344. Os moradores


do povoado Barreira migraram de Santa Quitéria Velha345 (apresente a localização de Santa
Quitéria velha), situado a menos de 15 km de distância do novo povoado habitado (Araçá), pois,
além de estarem em processos de ocupação de terras, desejavam também aproximar-se cada
vez mais do centro comercial da cidade, facilitando o acesso à saúde e à educação.

Outro fator que contribuiu para a migração foram as enchentes do rio Parnaíba, que
por inúmeras vezes fez com que esses indivíduos perdessem seus pertences conquistados. Mas
o principal fator segundo compreendido nos relatos dos moradores do povoado Barreiras foi a
perda das lavouras quando aconteciam as enchentes, pois as plantações eram feitas geralmente
nas croas do rio.

344
Segundo o dicionário Houaiss araçá, termo de etimologia Tupi, é uma denominação comum a vários arbustos
e árvores dos gên. Psidium e Campomanesia e a alguns do gên. Myrcia, da família das mirtáceas, com o tronco
malhado e frutos bacáceos, semelhantes aos da goiabeira (Psidium guajava) e ger. Comestíveis. Existem três tipos
de sua espécie, o Araçá amarelo, vermelho e o verde.
345
Santa Quitéria velha, fica localizada nas proximidades do rio Parnaíba, a mais ou menos 15 km do povoado
Barreiras e Araçá. Ela é o antigo centro comercial do município. Devido a emancipação muitas pessoas passaram
a migrar para o novo centro e suas proximidades.
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Segundo os mais velhos, o povoado incialmente foi coabitado as margens da lagoa


por ser um lugar propício para a sobrevivência dos que ali estavam. Havia abundância em
peixes, e outros animais de caça, e além do mais, o acesso à água tanto para os humanos, como
também para seus animais de grande e pequeno porte, era facilitado por estarem próximos a
lagoa.

Os indivíduos que ali habitavam eram considerados nômades, pois mudavam-se de


acordo com a movimentação dos peixes e períodos de enchentes, e assim foram se apossando
das terras nas proximidades, principalmente, nas áreas mais altas do local, devido as grandes
enchentes da época, dando origem ao povoado, existente até os dias atuais.

Passaram a ser desenvolvidas dentro dos povoados as mais diversas formas de


vínculos, sejam eles individuais ou coletivas, construindo assim suas identidades de acordo com
o pertencimento ao local. Joël Candau (2018) exemplifica em sua obra “Memória e Identidade”,
que somos agentes de nossa história e formadores de nossas culturas, e isso nos permite
modificá-la de acordo com a memória de cada indivíduo em particular, permitindo assim a
escolha das lembranças, ou melhor, das memórias.

A memória ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada. Isso
resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se
nutrem mutuamente, e se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida,
uma história, um mito, uma narrativa. Ao final, resta apenas o esquecimento. (Candau,
2018, p,16).

Todas as histórias de uma sociedade são lembradas, ou esquecidas por alguma


razão, sejam elas as mais diversificadas formas de memórias. As lembranças que geralmente
não são esquecidas são aquelas que estão na parte da conquista, ou seja, um dos critérios para
essa memória não ser abandonada é que a mesma apareça no contexto heroico, como relata
François Hartog(2015) em sua obra “Regimes de Historicidade”, onde o autor explica sobre
essa necessidade de um povo se identificar com fatos “heroicos” já ocorridos há muito tempo,
servindo de base para a construção de uma identidade coletiva através do que se aprendeu
dentro do contexto social no qual esse “ser heroico” aparece, ou um dia já apareceu.

Não muito distante do objeto aqui estudado, podemos perceber que as pessoas que
habitam esses pequenos povoados, estão carregados desse tipo de simbologia, onde os
moradores geralmente exaltam um “nome” em específico. Para seguir dando continuidade a
esse sujeito, o “ser heroico” permitiu a divulgação dos objetivos traçados por esse alguém,
dando início a alguns tipos de acontecimentos em gerações passadas marcando sua época
Página 1651 de 2230

positivamente, sem ao menos se perguntar a si mesmo, se realmente o tal fato aconteceu, ou se


a narrativa não se passa apenas de uma história criada em sua mente.

O que importa para esses povos são os conhecimentos que foram adquiridos ao
longo de suas vidas, por meio das memórias de seus antepassados, sendo estas, postas antes
mesmo de seu nascimento ocorrendo, assim, a não delimitação do espaço de tempo onde ocorre
a “ação”, seja ela no presente, passado ou futuro.

Desse modo, as histórias surgem e, junto com elas, novos objetivos levando um
grupo a se transformar e expandir seus horizontes. Refiro-me aqui a expansão de território, visto
pelos moradores como um meio de proteger o maior bem da comunidade, a lagoa. As famílias
que habitam o local lutam para impedir a posse ilegal de seu território, como especificado na
introdução deste trabalho.

Os moradores dos povoados Barreiras e Araçá possuem uma renda relativamente


baixa. Inferior a um salário mínimo. No relato de seu Francisco das Chagas Sardinha de
Araújo346, assim como, de outros pescadores podem ser percebidos os valores arrecadados
mensalmente:

Tem dia que eu consigo 50,00 reais as vezes até menos depende dos quilos de peixe
que é vendido, eu acho que por mês eu consiga na faixa de uns 700,00 a 800,00 reais
no máximo, mas isso quando dá peixe, as vezes a gente não consegue nada durante
uma noite de pesca, porque é a melhor hora pra pescar, é a hora que os peixes estão
se mudando de lugar, hoje em dia tá tudo mais difícil pois já não tem mais muito peixe
nessa lagoa, porque não tem comida pra eles. (Senhor Francisco das Chagas Sardinha
de Araújo, 54 anos. Entrevista realizada por Francisca Geysa L. Araújo em
09/05/2018, às 16:00 horas)

No relato do senhor Francisco das Chagas pode ser verificado a informação já citada
acima quando apontamos a renda mensal das famílias que residem os povoados, sobrevivendo
com menos de um salário mínimo. O que nos leva a compreender as dificuldades enfrentadas
por cada família em particular, e a necessidade de proteger sua única fonte de subsistência, a
pesca na lagoa, além de elemento fundamental da sociabilidade da comunidade, agente de
inúmeras histórias vivenciada por toda a comunidade.

Essas informações quanto à questão da renda se perpetuam em todos os relatos


feitos pelos moradores dessas comunidades, assim como, também podem ser percebidas na fala

346
Francisco das Chagas Sardinha de Araújo 54 anos, pescador, gentílico quiteriense, residente do povoado Araçá
desde seu nascimento.
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do senhor Domingos Lourenço da Silva347 ao relatar sobre sua renda mensal “acho que no mês
todinho eu consigo uns 500 a 600 reais. Nessa faixa. Isso quando tem peixe na rede. Na roça
eu consigo no máximo uns 100,00 reais com a venda de feijão quando o pessoal vem comprar,
mas nós aqui sempre tivemos consciência de pegar só o que precisar, senão Deus castiga o olho
grande”.

Percebe-se então que a economia local gira entorno principalmente de dois fatores
principais de subsistência: a lagoa, conhecida como lagoa da Barreira348, responsável pelo
suprimento das necessidades dos pescadores, e, o plantio de roças que ajudam a manter a
economia de subsistência das famílias que habitam aquele espaço. Essa comunidade é
constituída por pescadores e lavradores349. A grande maioria dos pescadores, é registrada na
colônia de pescadores de Santa Quitéria do Maranhão, localizada na sede do município,
possibilitando o acesso a carteira profissional que os garante anualmente a uma quantia para
“manter-se” no período da piracema350 ou seja, o período de reprodução dos peixes. Mais
adiante aprofundaremos sobre esse assunto.

Não se sabe ao certo sobre a data de surgimento do povoado Araçá, pois desse local
não se tem registro em cartório. O que dificulta afirmar aqui, uma data específica de sua
primeira ocupação e, é exatamente, por tal motivo que procurou-se recorrer a memória dos
moradores dos povoados Araçá e Barreiras, especialmente dos mais velhos, pela sua memória
da história de formação dessa comunidade, seja essa aproximação por convivência ou relatos
de seus pais e avós.

Os moradores do povoado Araçá351 sentem-se pertencentes a essa comunidade


devido as características próprias que foram desenvolvidas no decorrer do processo de sua

347
Domingos Lourenço da Silva, 72 anos, pescador, nascido no bairro de Santo Antônio, na cidade de Santa
Quitéria do Maranhão, mudou-se para o povoado Barreiras aos seus 13 anos de idade para trabalhar com a pesca
artesanal, e a plantação de arroz.
348
A lagoa é conhecida como lagoa da Barreira devido a sua maior extensão nessa localidade, e também por
motivos de o povoado ter surgido antes do Araçá.
349
Para manter a subsistência das famílias é necessário que os sujeitos dessas comunidades acumulem mais de
uma função, temos aqui o pescador que também é lavrador, dividindo as tarefas do roçado durante o dia, e a
pescaria a noite, tendo uma árdua jornada de trabalho.
350
A piracema é um período natural de reprodução dos peixes de água doce, que ocorre em ciclos anuais no período
de chuvas. O período de restrição de pesca serve para garantir ciclo de vida dos peixes e assegurar a renovação
dos estoques pesqueiros para os anos seguintes.
351
O povoado Araçá é uma comunidade pequena, não pavimentada, possui estrada de terra, possui uma escola de
ensino fundamental menor, com apenas uma sala sendo ministradas as aulas do maternal, junto com alunos do
primeiro e segundo ano. O povoado não dispõe de posto de saúde, tem-se apenas uma agente de saúde tanto para
o povoado Barreiras como Araçá. As casas estão próximas umas das outras com menos de 5 metros de distância,
estando elas nas proximidades da lagoa, mais ou menos a 500 metros de distância. Essas informações nos foi
repassada pela agente de saúde Joselina Marques Lopes, a mesma reside no povoado Araçá.
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formação, com elementos criados a partir da perspectiva, tanto individual como também,
coletiva. Vale ressaltar aqui que as memórias vivenciadas por cada morador, especificamente
dos mais velhos, contribui de forma relevante para a construção da história do povoado a partir
das várias formas de reconhecimento simbólico, construindo, de forma prática o seu sentido de
pertença, conforme relato de D. Joana Marques.

Olha tudo que eu aprendi foi graças a Deus e também a tudo que minha mãe me
contava, até onde eu sei essas terras aqui não tem dono, mas alguns querem dizer quer
dizer que as terras são deles, mas nós mais velhos sabemos que não é. Porque nossos
pais quando vieram pra cá essas terras não tinham dono nenhum, e mesmo que tenha
isso, não vai mudar porque a minha história vem dessa terra, e o que eu sei eu digo
pra quem me pergunta, eu sou daqui e é a única coisa que me importa de verdade.
Meus pais viveram aqui então eu sou daqui. As brincadeira que eu sei é daqui, o jeito
que o pessoal se divertia, tudo isso eu sei, mas também sei que os tempos mudaram.
Eu vejo que os rapazes e moças já não são iguais e eu não vejo mal nenhum porque
no meu tempo de moça não era a mesma coisa do tempo da minha mãe, as coisas
mudam e a gente também né minha filha...(Joana Marques de Lima, 80 anos.
Entrevista realizada por Francisca Geysa l. Araújo no dia 06/03/2019, às 9:00).

Percebe-se que mesmo havendo a falta de registro documental sobre este povoado,
seus integrantes tratam de manter viva as histórias e tradições contadas por seus antepassados,
repassando para as gerações seguintes, fazendo com que se perpetue o conhecimento de suas
raízes, levando adiante sua cultura através da memória, sendo ela repassada para os que
demonstram interesse em conhecer a história de seu surgimento enquanto local de habitação e
de pertencimento.

A construção da identidade de cada indivíduo em particular está associada ao


contato com os acontecimentos no qual o indivíduo está envolvido, mesmo que esse contato
tenha sido feito indiretamente, bem como, como pode ser observado no relato acima. Caso esta
seja repassada por alguém através de seus ensinamentos (memória, ou tradição), ocorre a
absorção das práticas locais, permitindo ao indivíduo escolher e moldar sua identidade, ou
melhor dizendo suas identidades, pois ela é construída no processo de vivência no qual os
sujeitos estão submetidos diariamente, possibilitando assim, a essas identidades mudanças
comportamentais, culturais ou estruturais.

Stuart Hall (2000) apresenta como o indivíduo adquire sua identidade, apontando
alguns elementos, entre eles está o de pertencer a um determinado grupo, tomando para si
algumas características próprias do grupo que está inserido. Contudo, isso não quer dizer que
esse indivíduo necessariamente já formou sua identidade por completo, estando aberto a novas
experiências. O autor nos leva a compreender que estamos em constantes modificações que
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compõem as nossas “identidades”, enquanto pluralidade, sendo elas mutáveis, e que nunca
sessam de se readaptar, ou seja de se reconstruir.

A identificação é, pois, um processo de articulação, uma suturação uma


sobredeterminação, e não uma subsunção. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco”
uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade.
Como todas as práticas de significação, ela está sujeita ao ‘jogo” da différance. Ela
obedece à lógica do mais-que-um. E uma vez que, como num processo, a identidade
opera por meio da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a
marcação de fronteiras simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras” para
consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora o exterior que a
constitui. (Hall, 2000, p.106).

A memória emaranhada acerca da lagoa do Barreiras permite que essas


modificações aconteçam diariamente. Assim os integrantes das comunidades estudadas criam
e recriam suas identidades por meio das diferenças existentes sejam elas no individual ou
coletivo, permitindo–se conhecer novos meios que proporcionam melhorias de vida em
comunidade. Estas identidades são também construídas através das memórias de seus
antepassados, com modificações, que se interpõem sobre as lembranças ao longo dos anos,
porém sem perder seu significado originário.

Joel Candau(2018) nos alerta sobre a importância de escutar para compreender


essas memórias, e lembra que, “para tudo tem um tempo, o tempo de falar e o de calar-se”,
porém, a memória, sobressai-se o tempo inteiro não sendo ela esquecida, menos ainda
abandonada, fazendo-se ser ouvida e interpretada de maneira conveniente. De uma forma ou de
outra, a memória sempre é posta em análise, para que os indivíduos compreendam seus papeis
enquanto sujeitos pertencentes a determinados grupos, agindo de forma empoderada sobre sua
própria história de vida.

Se há um tempo para transmitir e um tempo para receber, há igualmente um “tempo


de calar e tempo de falar”. Ora, a memória, com frequência recusa calar-se.
Imperativa, onipresente, invasora, excessiva, abusiva, é comum evocar que seu
império se deve a inquietude dos indivíduos e dos grupos em busca de si mesmo.
(Candau, 2018, p.125).

Os sujeitos sociais e históricos possuem a necessidade de relembrar o nosso passado


para que venhamos a planejar o futuro, o qual é incerto. Acabamos então por cometer o erro de
não viver o presente da maneira que deveríamos. Ocorrendo, assim, o “esquecimento” dos fatos
vivenciados por nossos antepassados que um dia foram o “presente” de um certo alguém. Ao
dar continuidade diariamente a vida individual e coletiva do grupo, não se limitam ao já
acontecido, criando assim novas perspectivas ou lembranças que farão parte do presente de uma
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futura geração. O que possibilita aos demais viver seu presente, remodelando-o de acordo com
suas escolhas. Cabe a cada um escolher o que viver, e o que lembrar.

Contudo, isso não quer dizer que devamos apagar da lembrança, ou deixar de
praticar, o que foi vivido e transmitido por nossos pais e avós, mas sim, deixá-lo de lado por
um instante, ou melhor adormecido por um determinado tempo, surgindo mais tarde uma busca
incessante de reafirmação de si através dessas memórias vividas por gerações anteriores a nossa.
É exatamente quando buscamos em nossas memórias o vivenciado ou praticado por gerações
passadas que, de alguma forma, marcou aquela geração, que encontramos nas lembranças
marcas utilizadas como ferramenta de reafirmação de identidade do “eu” dentro da própria
comunidade no tempo presente.

Assim sendo, os moradores do povoado Araçá de uma certa forma, buscam em


suas raízes meios de se auto afirmar enquanto cidadãos pertencentes e praticantes da cultura
local. Para só a partir de então poder usufruir das conquistas feitas por suas gerações anteriores,
sejam elas quais forem tomando-as como referências em seu meio de habitação para melhor
compreender o presente no qual os mesmos estão inseridos, possibilitando aberturas de novas
perspectivas de vida. Tendo como princípio fundamental a “história do outro”, arquitetando sua
história através do que foi visto ou contado por alguém, orgulham-se em alguns casos de
conquistas dos seus antepassados, mesmo que o próprio não tenha como comprovar tais
conquistas.

A necessidade de recordar é, portanto, real, mesmo que apenas para que não nos
tornemos seres “podres e vazios”. Mas, realidade, mais do que necessidade de
memória, o que parece existir é uma necessidade metamemorial, ou seja, uma
necessidade da ideia de memória que se manifesta sob múltiplas modalidades nas
sociedades modernas. Essa necessidade é indissociável da busca pelo esquecimento,
que ocorre concomitante ao lembrar. (Candau, 2018, pág.126)

Os moradores dessa comunidade mantêm-se interligados diretamente um ao outro,


por meios das relações metamemóriais e também de parentesco que são desenvolvidas ali. Essas
relações podem ser percebidas em cada relato feito no decorrer das entrevistas pelos próprios
moradores dos povoados estudados. Deste modo, compreende-se que, desde as primeiras
povoações, as famílias que migravam faziam parte de um mesmo grupo familiar, como bem
expressa o seguinte relato da D. Raimunda Lopes:

Vieram pra cá três famílias que foi a do papai (Caetano), as dos Cabrinhas que era o
pai do Pedro, e também a família dos Lopes que é a da comadre Joana, vieram pra cá
pra aproveitar as terras, depois o pessoal foi tendo filhos, e os filhos cresceram e
começaram a se casar, e daí começou a chegar mais gente. Mas todos de uma mesma
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família. Passou muito tempo tendo só essas famílias. (Raimunda Lopes de Araújo, 95
anos. Entrevista realizada por Francisca Geysa L. Araújo no dia 08/10/2018 às 15:25
horas).

Levando em consideração o contexto atual, essa comunidade de pescadores busca


manter-se com seus costumes e práticas culturais, repassando de geração a geração seus
conhecimentos, tanto da formação e habitação como também das crenças e das tradições que
os moradores tratam de manter vivas, mesmo com muito sacrifico. Devido às transformações
ocorridas no ambiente, e do próprio sistema capitalista que impõe aos indivíduos uma jornada
árdua de trabalho, tornando exíguo o tempo de “sentar” e “escutar” o outro.

Devido a essas mudanças e aos avanços tecnológicos, o povoado tem “perdido” a


história vivenciada por seus primeiros integrantes, os pioneiros do povoamento. Os indivíduos
da comunidade, conforme relatos, “perderam” junto com o tempo a prática de contar os fatos
passados, consequentemente, “perdeu-se” uma parte da identidade adquirida por alguns
moradores que nasceram e cresceram ouvindo de seus pais inúmeras histórias, sendo elas uma
parte de sua trajetória, sendo esta trajetória direta, ou indiretamente construída. Como legado a
perda desta trajetória trouxe consigo o não cumprimento de algumas atividades ligadas à
tradição local.

Tradições estas passadas de geração a geração. Os moradores contam suas histórias


para que não se esqueça da identidade e do pertencimento de ser dos povoados. Entre elas, as
histórias que envolvem a lagoa e o aparecimento de seres encantados visto pelos moradores; as
brincadeiras realizadas, como as de rodas de dança do boi douradinho; as noites de rodas nas
casas dos vizinhos para contar o ocorrido ao longo do dia, e, as crenças em santos como Maria
mãe de Jesus, São Jorge, Santo Antônio, São Lázaro, entre outros.

Percebe-se que as histórias de vida tanto dos indivíduos como também da formação
dos povoados está ligada diretamente a existência da lagoa, não somente como fonte de
subsistência, mas como uma dádiva enviada por Deus para essas comunidades (Araçá, e
Barreiras), permitindo-lhes manter suas memórias de gratidão a esse lago, sendo ele o motivo
das atividades ali desenvolvidas.

Em todos os aspectos os moradores dos povoados se mantém organizados, de forma


que se pode perceber uma ligação fortíssima em relação ao parentesco, e é exatamente por tais
motivos que a comunidade até os dias atuais busca melhorias para o coletivo, sem perder a
identificação com o seu local de nascimento e pertencimento. Mesmo que, com o passar dos
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anos, muitas coisas tenham se modificado. Podemos dizer então que os moradores contam com
a ajuda uns dos outros para manter as práticas culturais de seus antepassados vivas.

A vida cotidiana e as atividades produtivas.

Os moradores do povoado Araçá mantem características próprias em relação a


cultura local, permitindo a seus integrantes variadas maneiras de se viver. A base econômica
do povoado é a pesca artesanal, e o plantio de roças, que em muito influência na forma de vida
dos seus habitantes desde sua fundação.

Como já mencionado anteriormente, o povoado Araçá tem uma população


relativamente pequena, 250 habitantes, considerando o número populacional de outras
localidades próximas. As famílias vivem somente da pescaria e plantio de roças. Devido ao
tamanho e à escassez de terras para o plantio, combinado com o desmatamento nas margens da
lagoa, essas famílias se sentem abandonadas pelas autoridades, em especial, o IBAMA352, que
não efetua as vigilâncias devidas para a proteção e manutenção do ecossistema da região.

A maioria da comunidade do Araçá e Barreiras é registrada em uma instituição de


pescadores que os dá aos mesmos acesso a uma carteira profissional como pescador,
possibilitando um recebimento anual de quatro salários mínimos. Vale ressaltar aqui que essa
quantia não abrange todos os pescadores e, menos ainda, a todas as famílias do local. Em alguns
casos eles não conseguem associar-se nessa instituição, ocorrendo assim, a necessidade de
praticar a atividade da pesca no período inapropriado353.

Os mais velhos acabam direcionando seus filhos às atividades da pesca e da


agricultura familiar dentro da região, uma vez que estas atividades consistem, segundo os
mesmos, no único meio de manutenção viável para os moradores dos dois povoados. A falta de
condições financeiras dos pescadores impossibilitava dos filhos se manterem nas escolas

352
O Ibama coloca-se hoje como uma instituição de excelência para o cumprimento de seus objetivos
institucionais relativos ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à autorização de uso dos
recursos naturais e à fiscalização, monitoramento e controle ambiental. Disponível em https://www.ibama.gov.br
› institucional › sobre-o-IBAMA.
353
O que provoca a captura de espécies em reprodução, ou até mesmo dos peixes que estão no processo de
ovulação, porém isso não é motivo para culpar o pescador de praticar tal ação, eles apenas buscam meios de
sobrevivência assim como os demais seres vivos o fariam.
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estudando até a universidade. Inúmeros filhos de pescadores deixam de estudar para dedicar-se
ao ofício de pescador ou lavrador, alguns chegam a cursar apenas o ensino fundamental
abandonando os estudos. O senhor Marcos Brito explica o porquê de seus filhos não terem
frequentado uma escola, o mesmo dizia: “meus filhos nunca estiveram em uma escola, nós num
tinha condição, então tinha que trabalhar na lagoa e na roça”354.

Tem-se dentro do povoado um número muito pequeno de pessoas com nível


superior, não por falta de capacidade ou conhecimento, mas sim, por falta de condições das
famílias em manter seus filhos nas universidades. Essa falta de condições financeiras levam os
jovens a “desistir” de seus objetivos, dedicando-se principalmente ao ofício passado por seus
pais355.

Eu tive que parar de estudar muito cedo, não porque eu queria mas porque eu tinha
que sustentar minha mãe e meus irmãos, depois que meu pai se separou dela, e
também eu quase nunca tinha tempo pra estudar e nem dinheiro pra comprar lápis pra
mim, então eu desisti nem sei se eu um dia pensei em ser um doutor ou coisa parecida,
porque eu via a situação era triste mas Deus ajudou nós, hoje meus filhos já estudam,
uns tem suas famílias já, outros estudando e pra mim isso já é uma realização, e pra
criar meus filhos eu também sofri, mas nunca essa lagoa me abandonou, eu sei que eu
errava assim como muita gente nós pescava quando peixe tava no período de desova,
eu sentia pena mas era eles ou eu, os camarada faziam as pesca só pra comer nesses
tempos, e pra entender alguma coisinha e comprar o arroz, ninguém denunciava
ninguém porque hoje podia ser eu, amanhã podia ser o que me denunciou. (Francisco
das Chagas Sardinha de Araújo, 54 anos. Entrevista feita por Francisca Geysa L.
Araújo, no dia 05/12/2019, às 7:30 horas.).

Percebe-se o companheirismo existente entre esses indivíduos, pois se entendia, e


conheciam as necessidades que ambos passavam. Dessa forma, a prática por parte do pescador
de ir em busca de alimento no período da piracema ocorre devido as condições impostas a ele
através do meio no qual o mesmo está inserido, no qual a falta de oportunidades de emprego
ou, até mesmo de escolas para seus filhos os leva a tais práticas irregulares perante a lei. O que
desencadeia assim futuros problemas para a própria comunidade como a falta de peixes na
lagoa.

Porém, essa atitude é compreensível aos olhos dos integrantes da comunidade, que
veem nessas ações o desejo de suprir as necessidades destes pescadores devido a inexistência

354
Marcos Brito, 77 anos. Entrevista realizada por Aleilson Sales, e Francisca Geysa L. Araújo, no dia 20/11/2019
às 9:30 horas.
355
Não é objetivo deste trabalho em momento algum menosprezar o ofício de pescador, mas salientar as
dificuldades enfrentadas pelas pessoas que dependem integralmente da pesca, sendo ela limitada ao ambiente.
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de uma renda regular para a manutenção de si e de sua família. Esta questão é pactuada entre
os membros da comunidade ocasionando a não intromissão dos outros na atividade
desenvolvida nos povoados com o objetivo de garantir a própria sobrevivência. Lembrando que
tal fato direciona-se, exclusivamente, à manutenção da atividade pesqueira durante a
piracema356.

Os moradores dos povoados Araçá e Barreiras demonstram sua preocupação com


as mudanças que ocorrem rapidamente, ao mesmo tempo, que concordam sempre há mudança,
atentamos como a identidade desses indivíduos está emaranhada com a territorialidade e esses
dois fatores são de grande importância quando atrelados a memória.

Lagoa da Barreira e suas transformações

No ano de 2017 a lagoa da Barreira, responsável pelo suprimento das necessidades


alimentícias dessas comunidades e, pela existência concreta das mesmas, passou por um
processo de seca acarretando diversos problemas de abastecimento. Pois, a lagoa era e é a
principal fonte econômica da região, ocasionando uma migração crescente, tanto para outras
regiões do estado, quanto para outros estados da federação. Conforme podemos observar no
depoimento a seguir da D. Lera Brito:

Ave Maria eu quase morri de desgosto quando fui lá ver com meus próprios olhos
aquela sequidão toda, os peixes tudo seco em cima da terra...eu chorei porque eu nuca
pensei que eu ia tá viva pra ver uma coisa dessas, me criei com essa lagoa, ela faz
parte da minha história. (Lera Brito, 67 anos. Entrevista feita por Aleilson Sales, e
Francisca Geysa L. Araújo no dia 17/11/2019, às 09:00hs.)

No relato da entrevistada pode ser percebido a importância da preservação dessa


lagoa, pois sua existência está para além de uma simples fonte econômica. Ela é colocada como
uma parte da identidade dos cidadãos que habitam nesses povoados. Em todas as entrevistas
feitas pudemos constatar essa atribuição de valor sentimental a esse lugar.

A identidade da própria comunidade está emaranhada nas formas de vida que foram
desenvolvidas no local devido ao valor simbólico da lagoa, observando-a como um símbolo de

356
O período da piracema acontece de acordo com cada região, dependendo da nascente do rio. O IBAMA divulga
os meses nos quais acontecem as desovas dos peixes, sendo repassado as instituições nas quais esses pescadores
associam-se. Sob o aviso os pescadores passam a cessar as pescarias até que os peixes tenham passado por tal
processo.
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vida e resistência, como é relatado por dona Joana, que diz ter conseguido manter seu grupo
familiar vivo graças a lagoa. Em todo o seu relato ela passa a agradecer a Deus pelo “presente”,
ressaltando que todos os moradores daquele local devem suas vidas a essa lagoa.

Eu desde mocinha sempre me virei, casei cedo e tive filho cedo também e quem me
ajudou a criar, a sustentar de verdade meus filhos foi essa lagoa. Cansei de sair meio
dia pra pescar eu levava tudim, nesse tempo eu era casada com o Dachaga, ele pescava
de um lado e eu de outro, e os menino ficavam na beira da lagoa com a Helena e a
caranguejo cuidando, aí nós chegava com o que pegava e lá mesmo passava o sal e
comia. Minha filha era bom demais apesar das dificuldades mas era bom, por isso eu
te tido que todo mundo desse lugar tem que arribar as mãos pro céu e agradecer a
Deus por essa lagoa, Deus já sabia que nós ia precisar dela pra viver, pena que o
pessoal num tá mais respeitando nada. (Joana, 80 anos. Entrevista feita por Francisca
Geysa no dia 06/03/2019, às 16:30 horas.)

No relado feito por D. Joana pode ser percebido tanto o sentimento de


pertencimento, como também o sentimento de revolta feita por uma senhora que desde seu
nascimento vive e sobrevive por meio da lagoa. Por isso que há um processo de resistência, por
parte dos moradores, para que se preserve aquele ambiente que envolve a lagoa da Barreira.

Quando digo resistência, refiro-me a luta contra os grandes posseiros de terras que
tem se apropriado de territórios dentro da comunidade. Sem apresentar documentos para os que
ali vivem, tomando para si principalmente as terras nas margens da lagoa da Barreira. Causando
assim o desmatamento de espécies nativas de plantas (araçá, jatobá, Axixá, e entre outras)
existentes nas margens da lagoa e também delimitando espaços de terras dentro da água com
arames farpados, trazendo riscos à saúde física tanto dos pescadores, quanto dos animais que
ali vivem.

Carla de Jesus Dias e Mauro W. Barbosa de Almeida (2004) apresentam uma série
de conflitos existentes em uma reserva de seringueiros que buscam afastar os olhares
ambiciosos de seu território, não permitindo a posse ilegal de terras dentro da reserva. O que
ocasiona a tensão e o conflito com muitos empresários do agronegócio. Os seringueiros
articulam seus costumes sem agredir a natureza usufruindo dos recursos da natureza, de forma
coletiva com responsabilidade.

As reservas extrativistas são legalmente unidas de conservação de uso direto e


definidas como “espaços territoriais destinados à exploração autossustentável e
conservação dos recursos naturais renováveis, por população extrativista”. Em
sistemas como esse é o caso das demais Unidades de Conservação de Uso Direto, fica
patente que gestão de recursos Vegetais, animais, lagos e rios existentes interessa não
só as comunidades que residem nessas áreas, mas à sociedade como um todo.
(Almeida; Dias, 2004, p.08)
Página 1661 de 2230

Não muito distante do objeto aqui estudado podemos relacionar esses habitantes da
reserva do Alto Juruá, com os moradores dos povoados Araçá e Barreiras, que buscam
desenvolver meios para afastar todos aqueles que querem destruir toda uma história, com a
posse de terras não autorizadas, e o desmatamento das terras as margens da lagoa, não se
importando com o todo. Contudo, o objeto em questão abrange toda a população da cidade na
qual esses povoados estão inseridos.

Devido aos ataques desses posseiros, os nativos têm buscado meios de se fazerem
ouvir. Assim os mais velhos procuram repassar seus conhecimentos adquiridos por meio de
suas tradições e da oralidade, para não ocorrer a perda do sentimento de pertença. Os “mais
velhos” veem nesse “contar” uma maneira de se fazer presente mesmo depois da morte,
resistindo a essas pessoas que decidiram tomar para si terras que, na concepção destes
moradores, “são para todos”. Segundo D. Joana Marques Lima:

Eu não tenho outra lembrança na minha vida de outros lugares, porque eu vim pra cá
muito pequena acho que eu não tinha nem cinco anos de idade quando o papai
resolveu se mudar, eu morava na Barreira, só me lembro disso, eu só sei que aqui eu
estou. Eu gosto de contar pra quem me pergunta como eu vivia, eu até estou feliz
porque vocês vieram aqui, até parece que sou importante. Mas deixa eu dizer minha
filha foi muita luta porque aqui não tinha nada quando nós chegamos tivemos que
construir tudo, primeiro vieram só umas poucas famílias que foi a da Raimunda Sarú
veio também a das cabrinhas que é pai do Pedro, e a nossa né. Olha eu já tô velha
daqui uns tempo eu vou morrer porque nós tudim vamos, mas antes de eu morrer eu
vou continuar contando minha história que é pra ver se alguém vai tomar consciência
de cuidar dessa lagoa que criou nós tudim aqui dessas redondezas, e por mais que eu
morra eu sei que alguém sempre vai lembrar de mim igual nós lembra dos nossos pais
e avós, fica na memória mesmo que agente num queira. Eu sou filha daqui e isso já
me basta, eu sou dessa terra. (Joana Marques de Lima, 80 anos, moradora do povoado
Araçá. Entrevista realizada por Francisca Geysa L. Araújo em 02/11/2018 às
14:30hs).

O sentimento expresso pela entrevistada faz com que compreendamos quão


importante é a preservação dessa lagoa, não somente por ser ela responsável pela subsistência
da maior parte dos integrantes das comunidades, mas também pela ligação com terra. “Sou filha
daqui” “Sou desta terra”. As lembranças de toda história de vida estar ligada diretamente ao
fato da existência desse bem natural. Os moradores através da oralidade buscam ser ouvidos
em prol da proteção desse território contra os posseiros de terra, que a todo momentos querem
se apossar da mesma.

Antonio Torres Montenegro (1992) faz uma abordagem sobre a questão de o


indivíduo se sentir pertencente a história local, devido a suas contribuições direta na construção
dessa história. Ressalta ainda que essas pessoas, principalmente as que possuem uma idade mais
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avançadas, os velhos, sintam a necessidade de contar, e recontar suas histórias individuais e


coletivas. Veem no passado meios de sentir-se vivo no presente por meio de seus relatos, e
buscam através dessas histórias salvar uma parte de sua identidade.

As transformações ocorridas no estado físico da lagoa tem sido motivo de


preocupação por parte dos mais velhos, que não se acostumam com a ideia de posse de terra
nas proximidades da lagoa. Desse modo, usam todas as ferramentas necessárias para convencer
as pessoas da importância da existência desse bem natural, lutando contra os grandes posseiros
através das histórias de vida salvas da fome por meio desse “presente” como os moradores
preferem chamá-la.

A preservação da lagoa da Barreira faz-se necessária para que junto com ela se
preserve as culturas ali desenvolvidas, os modos de vida, a memória dos seus primeiros
habitantes, mantendo viva assim suas identidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história de vida dos moradores, tanto do povoado Barreiras quanto do Araçá, está
emaranhada nas atividades que são desenvolvidas em seu meio, em especial, sua relação com
a lagoa do Barreiras. As práticas tradicionais desses moradores estão baseadas nos aspectos
socioeconômicos, simbólicos, culturais, vivenciados por eles. Assim é relevante considerar o
contexto para que se possa compreender sua cultura. No decorrer da pesquisa pode ser
percebido o anseio dos moradores em contar suas estórias para só assim não deixarem ser
esquecidas as formas de vidas dos primeiros moradores do local, permitindo as futuras gerações
entender quais as principais atividades praticadas por seus antepassados. E, como se deu o
processo de ocupação do território habitado, permitindo assim a perpetuação de seus
ensinamentos e, até mesmo de seus ofícios, pescadores e lavradores. Devemos compreender
memória como algo vivo que resiste a diferentes mazelas e estar em constante transformação.

Com o passar dos anos a lagoa do Barreiras passou por inúmeras modificações,
como apresentado no decorrer do texto, tanto em seu aspecto físico como também simbólico,
sendo motivo de preocupação por parte dos moradores mais velhos das comunidades que a
consideram como parte de sua identidade, levando-os a temer o seu total desaparecimento.

Até o momento a lagoa e esses indivíduos tem passado por inúmeras dificuldades
de resistir aos grandes posseiros que tem tomado para si as terras nesses locais. Logo vale
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enfatizar que está pesquisa ainda está em andamento, contudo buscamos até o momento
contribuir da maneira que podemos para a preservação dessas comunidades juntamente com a
lagoa como parte da identidade dos que ali se encontram.

Referências

ALMEIDA, Mauro W. Barbosa. DIAS, Carla de Jesus. A floresta como mercado: caça em
conflito na Reserva Extrativista do Alto Juruá-Acre. Revista Boletim Rede Amazônica.
2004. Disponível em: https://mwba.wordpress.com/extos-publicadospublished-texts/. Acesso
em: 23 jan.2020.
CANDAU, Joel. Memória e identidade. Tradução Maria Leticia Ferreira. – 1.ed., 4
reimpressões. São Paulo: Contexto, 2018.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever.
1. São Paulo. USP, 1996, v.39.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org. e
Trad.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes,
2000. p. 103-133.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentísmo e experiências do tempo. 1.
ed.; 2. reimp. —Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. – (coleção História e Historiografia).
IBAMA- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
Disponível em: http://www.ibama.gov.br/institucional/sobre-o-ibama. Acesso em: 24 jan.
2020.
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada.
São Paulo: Contexto, 1992. (Caminhos da história).
Página 1664 de 2230

INOVAÇÃO E SOCIEDADE: OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO


FOMENTO AO DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO DE UMA NAÇÃO

INNOVATION AND SOCIETY: THE IMPACTS OF NEW TECHNOLOGIES IN


FOSTERING A NATION’S SOCIOECONOMIC DEVELOPMENT

Eduardo Mohana Silva Ferreira


Mestrado em Desenvolvimento Socioeconômico
Universidade Federal do Maranhão

Eixo Temático 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: O presente trabalho propõe uma análise teórica sobre os impactos e/ou
consequências dispostas pela inovação no processo de desenvolvimento socioeconômico de
uma nação. Pretende-se, assim, averiguar a influência de mudanças nas técnicas industriais e
produção de novas tecnologias ao processo de exploração do trabalho no século XXI. Objetiva-
se, portanto, apresentar quais condições a classe trabalhadora vem se deparando frente ao
fomento da inovação no capitalismo contemporâneo.
Palavras-Chave: Inovação. Desenvolvimento. Tecnologias.
ABSTRACT: ABSTRACT: This paper proposes a theoretical analysis of the impacts and / or
consequences of innovation in the process of socioeconomic development of a nation. It is
intended, therefore, to investigate the influence of changes in industrial techniques and the
production of new technologies in the process of labor exploitation in the 21st century. The
objective, therefore, is to present what conditions the working class has been facing in terms of
fostering innovation in contemporary capitalism.
Keywords: Innovation. Development. Technologies.

INTRODUÇÃO

Afim de garantia por espaço no mercado competitivo, as empresas passaram a


adotar alguns métodos de operabilidade, visando o equilíbrio financeiro, a maximização
produtiva e o lucro. Um deles fora difundido afim de transformar de vez a forma de produzir
bens e serviços no capitalismo contemporâneo: a Inovação. No século XXI a ideia de inovar
passou a ser discutida e integrada às grandes indústrias, o que mais tarde acarretaria na mudança
em todo o cenário socioeconômico das potências mundiais.

A reestruturação industrial, baseou-se na concepção de novas técnicas produtivas


que passaram a ser implementadas, visando maior rentabilidade empresarial, porém acarretando
impactos substanciais à classe trabalhadora. Serão abordadas neste artigo as consequências da
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adoção da inovação no cenário industrial ao desenvolvimento socioeconômico de uma nação.


A análise da inovação objetiva gerar condições de discussão sobre as possíveis consequências
falhas desse método econômico na sociedade, como o aumento da exploração do capital
humano357.

A primeira parte deste trabalho se desenvolve com base na importância que a


Inovação tem no cenário do capitalismo contemporâneo. Destaca-se que, com a emergência do
neoliberalismo, o Estado vai perdendo a responsabilidade de solucionar a desigualdade social
e de fomentar o desenvolvimento. A segunda seção é exposta a visão de alguns autores acerca
da inovação e sua influência sobre o crescimento econômico, como Joseph Alois Schumpeter.
Já na terceira parte são abordados impactos que a reestruturação industrial acarreta à classe
trabalhadora, e assim, destacando o cenário socioeconômico encontrado a partir da
intensificação da inovação no capitalismo contemporâneo.

A emergência do neoliberalismo no capitalismo contemporâneo

A ideia do neoliberalismo apareceu logo após a II Guerra Mundial, tendo como uma
das principais bases teóricas a obra “O caminho da servidão” de Friedrich Hayek, em 1944. Seu
principal ideal era a forte resistência ao processo de intervenção racional e planejada na
economia por parte dos indivíduos e empresas. Para Hayek, “o acúmulo de informações e sua
aplicação na economia é fundamental” (Hayek, 1944, p.169).

As principais ideias neoliberais de Hayek são baseadas nas ideias de aliados como
Milton Friedman e Karl Popper. Foi a partir de então que a Sociedade de Mont Pélerin358 foi
fundada, tendo como base o combate ao keynesianismo. Segundo Friedrich Hayek, o papel do
Estado tem que ser totalmente oposto à engenharia social, ou seja, ao invés de solucionar a
desigualdade gerada pelo mercado, seu papel seria de proteger a ordem espontânea.

357
“A noção de ‘capital humano’, que se afirma na literatura econômica na década de 1950, e, mais tarde, nas décadas de
1960 e 1970 [...] Trata-se de uma noção que os intelectuais da burguesia mundial produziram para explicar o fenômeno
da desigualdade entre as nações e entre indivíduos ou grupos sociais, sem desvendar os fundamentos reais que produzem
esta desigualdade: a propriedade privada dos meios e instrumentos de produção pela burguesia ou classe capitalista e a
compra, numa relação desigual, da única mercadoria que os trabalhadores possuem para proverem os meios de vida seus
e de seus filhos – a venda de sua força de trabalho” (FRIGOTTO, 2006, p.10).
358
Sociedade de Mont Pélerin: foi fundada em 1947, logo após o final da segunda guerra, em Mont Pélerin, na Suíça. A
sociedade formou-se com o intuito de discutir o modelo de Estado e o destino do liberalismo na teoria e na prática, face
a experiência totalitária vivida em países como a Alemanha, Itália e União Soviética. Os princípios defendidos por este
grupo, formado inicialmente por historiadores, economistas e filósofos, se baseavam pontualmente na defesa do estado
do direito, democracia, liberdade de escolha, liberdade econômica, incluindo um mercado aberto e consequentemente
competitivo, assegurando desta forma, a liberdade em sua mais ampla e irrestrita forma (COIMBRA, 2012, p.31).
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Nos Estados Unidos e na Inglaterra, principalmente nas primeiras décadas de sua


implantação, os pressupostos neoliberais ficaram velados. A economia da época (décadas de 50
e 60) caminhava para a prosperidade do capitalismo, tendo a intervenção do Estado na
produção. Nesse período o mundo deixou de ser bipolar e os Estados Unidos se estabeleceram
como maior potência no planeta, e partir daí declararam a sua hegemonia em nível mundial.
Em 1972, segundo Perry Anderson, “todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e
profunda recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas
de inflação, mudou tudo. A partir daí as ideias neoliberais passaram a ganhar terreno”
(ANDERSON, 1995, p. 10).

Na Europa e nos Estados Unidos, na década de 70, o capitalismo se depara com a


crise das economias mais avançadas devido aos substanciais recessos, com médias e grandes
empresas operando bem abaixo de sua capacidade de produção. Baixas taxas de crescimento
econômico, seguido de um crescimento na inflação dessa mesma década, que, quanto mais alta,
mais propícia a expansão da política neoliberal. Esse contexto trouxe a implantação das
condições ideais para a adoção das teses neoliberais, principalmente com as eleições de
Margareth Teatcher (1979) na Inglaterra e Ronald Reagan (1980) nos Estados Unidos.

Dentre essas ideias, encontra-se o aproveitamento desse momento de recessão


econômica para enfraquecer o movimento sindical organizado. O equilíbrio da balança de
pagamento era outra meta da doutrina neoliberal, juntamente com a retirada da participação do
Estado na economia como agente produtivo. O Estado poderia, apenas, viabilizar reformas
fiscais como forma de incentivar os agentes econômicos.

O neoliberalismo também fomentou ideias de cunho social que atingiram


diretamente as classes sociais mais baixas, como a redução constante e progressiva dos gastos
públicos em áreas sociais, como saúde e educação, mais conhecidos como diminuição do
Estado de Bem-Estar Social359.

Foi diante da ascensão do capitalismo norte-americano que o Neoliberalismo foi


instaurado em boa parte do mundo, reforçando a chamada economia de mercado. Esse modelo
recebeu um grande destaque nas políticas econômicas implementares, sobretudo, nos países
menos desenvolvidos e endividados, na década de 90. Para Marcelo Carcanholo:

359
Estado de Bem-estar Social é uma perspectiva de Estado para o campo social e econômico, na qual a distribuição de
renda para a população, bem como a prestação de serviços públicos básicos, é visto como uma forma de combate
às desigualdades sociais (TODAMATERIA, 2016, p.04).
Página 1667 de 2230

“O Neoliberalismo, a expansão do capital fictício, a transferência do excedente


produzido na periferia para o centro (em especial para os EUA), são as marcas da
década de 90 que se mantêm neste início de século. Esse conjunto de fatores
constituintes da resposta que o próprio capitalismo deu àquela crise conforma o que
se convenciona chamar de capitalismo contemporâneo. Entre esses fatores
encontramos, dentre outros: a implementação das reformas neoliberais - no centro e
na periferia do sistema - como uma forma de elevar as taxas de mais-valia e incentivar
a retomada da lucratividade do capital; a exacerbação da transferência de recursos da
periferia para o centro, que permitem impulsionar a dinâmica de acumulação nos
principais países capitalistas; a expansão dos mercados, como forma de garantir novos
espaços de realização/valorização para o capital sobrante”(CARCANHOLO, 2008, p
17).

Com a nova era de acumulação de capital, o estado neoliberal atuou como a forma
estatal necessária, utilizando meios para concretizar seu ideal, como por exemplo a privatização
dos meios de produção e de algumas empresas estatais. Outra medida que este estado neoliberal
adotou foi a desregulamentação das atividades privadas, além da liberação do comércio externo
e dos fluxos econômicos. Esses meios só foram colocados em prática com apoio de
organizações externas, como o Fundo Monetário Internacional360 (FMI) e o Banco Mundial361,
o que levaram à aceleração do processo de acumulação de renda e da transferência do capital
dos países periféricos aos países centrais.

O neoliberalismo trouxe inúmeras consequências socioeconômicas, até mesmo nos


países mais ricos. O aumento do índice de desemprego, arroxo salarial, pobreza extrema, fome,
redução do poder aquisitivo da população e outras formas de violência estão diretamente ligadas
ao período neoliberal. Todos esses efeitos são provenientes do achatamento de mão de obra,
consequência esta da implantação da inovação nas fábricas e empresas.

A inovação, particularmente no período neoliberal, pode ocorrer em diferentes


campos. As inovações de gestão levam ao surgimento de novos produtos e processos nas
empresas; as inovações financeiras que podem ser definidas como as ações de criar e
popularizar novos instrumentos financeiros, com tecnologias que ampliam a importância da
esfera financeira e, ainda, as inovações tecnológicas que consistem em uma série de fases
necessárias para que se implementem melhorias ou desenvolvimento de um produto ou serviço.

360
O Fundo Monetário Internacional (FMI) é uma agência especializada das Nações Unidas que foi concebida na
conferência de Bretton Woods, New Hampshire, Estados Unidos, em julho de 1944. Oficialmente, o FMI trabalha para
promover a cooperação monetária global, garantir a estabilidade financeira, facilitar o comércio internacional, promover
o alto nível de emprego e o crescimento econômico sustentável e reduzir a pobreza em todo o mundo (ONUBR, 2015,
p.03).
361
O Banco Mundial é uma agência especializada independente do Sistema das Nações Unidas, é a maior fonte global de
assistência para o desenvolvimento, proporcionando cerca de US$ 60 bilhões anuais em empréstimos e doações aos 187
países-membros (ONUBR, 2015, p.07).
Página 1668 de 2230

O fato é que a inovação aparece como estimuladora da contenção de gastos.


Substituir funcionários por maquinarias para economizar trabalho, acarretou diretamente na
redução de salários e na transferência de renda da classe trabalhadora para a classe empresarial.

A redução de gastos estatais foi uma das características determinantes do período


neoliberal. Essa recessão acarretou em malefícios à sociedade, como a diminuição de políticas
sociais, com destaque às áreas da saúde, educação, esporte e lazer. Algumas questões
relacionadas aos Direitos Humanos362 também podem ser destacadas, como a exploração
trabalhista.

Além das consequências já citadas, o neoliberalismo desencadeou uma série de


conflitos. A intolerância às mulheres, o ódio aos imigrantes ou a qualquer cidadão com
características parecidas aumentaram nesse ambiente neoliberal. Esses efeitos se estabeleceram,
principalmente, em decorrência do incentivo à competição de mercado, provocado pelo próprio
sistema de poder, em especial o problema do desemprego, característica presente no sistema
capitalista.

Deparado com um conjunto de problemas oriundos do neoliberalismo, o Estado,


para encobrir os próprios equívocos e contradições do capitalismo, teve como resposta a
elevação da repressão às camadas mais pobres, por meio do aumento do poder policial, o que
gerou um aumento também na população carcerária. Assim, a povo tornou-se refém da
legislação, sendo pela falta de investimento por meio do próprio Estado ou pelas restrições dos
direitos sociais e trabalhistas.

A inovação como motor do crescimento econômico

Foi no início do século XX que autores começaram a dar importância à inovação


e redigiram obras para falar desse “novo” mecanismo. Um exemplo foi Joseph Alois
Schumpeter, que, ao observar o cenário econômico concorrencial da época, relatou o
surgimento de novos inventores-empresários criadores de grandes indústrias inovadoras que
“oligopolizaram” setores de produção, como, por exemplo, o de energia. Schumpeter concede
o papel de propulsoras de inovação às firmas devido ao exorbitante lucro obtido por essas
empresas, resultados da introdução de novas tecnologias no mercado. Para esse autor,
“inovação seria a introdução comercial de um novo produto ou uma nova combinação de algo
já existente criados a partir de uma invenção que por sua vez pertence ao campo da ciência e

362
Os Direitos Humanos são direitos básicos de todos os seres humanos e incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade
de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre e muitos outros.
Página 1669 de 2230

tecnologia” (SCHUMEPTER, 1997, p.12). Desde então, as inovações representaram e


representam um marco no mundo do empreendedorismo global, retratando crescimentos de
produção e desenvolvimento empresarial no capitalismo contemporânea.

Inovação foi a palavra usada por Schumpeter para descrever uma série de novidades
que “podem ser introduzidas no sistema econômico e que alteram substancialmente as relações
entre produtores e consumidores, sendo o elemento fundamental para o crescimento
econômico” (TORRES, 2011, p.03). Para Schumpeter, inovação seria a introdução comercial
de um novo produto ou “uma nova combinação de algo que já existe, criados a partir de uma
invenção que por sua vez pertence ao campo da ciência e tecnologia” (SCHUMPETER, 1997,
p.17).

O processo de inovação vem crescendo desde seu surgimento na sociedade


mediante sua adoção no ambiente empresarial econômico. A inovação tem papel essencial para
o desenvolvimento de uma empresa, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D),
por exemplo, garantem o aumento de fatores que estabeleçam essas empresas no mercado,
gerando crescimento econômico, aumento de renda por parte dos empresários, intensificação
do laboro e gerando a destruição do trabalho humano. Jorge Mattoso, por exemplo, traz essa
relação conturbada entre inovações técnicas e exploração trabalhista quando escreve que:

“A relação entre inovação e emprego sempre foi complexa, quando não conflituosa.
Mas nesse quadro econômico internacional, essa relação parece assumir uma forma
ainda mais complexa e conflituosa e, talvez por isso mesmo, sujeita a simplificações.
Não é de hoje a introdução da inovação tecnológica no processo produtivo e é
resultado da concorrência entre os capitais. Seu objetivo maior é elevar a
produtividade e reduzir o trabalho vivo diretamente envolvido nesse processo. (...) O
desemprego é, contraditoriamente, consequência do desenvolvimento do progresso
técnico, nas condições próprias ao funcionamento sem controle do modo de produção
capitalista. Em outras palavras, embora o móvel da inovação tecnológica seja a
dinâmica da acumulação na busca incessante da maior valorização possível do capital,
ela move-se contra os trabalhadores e a sociedade como resultado da sua apropriação
privada, de sua utilização unilateral e sem regulação social” (MATTOSO, 2000, p.06).

A grande questão do século XXI é o fato de que a dominação de novas tecnologias


e, assim, criação de novas técnicas industriais ou incremento das técnicas já existentes, que se
perpetuaram no contexto capitalista onde, junto com a globalização, são fatores preponderantes
no processo de crescimento econômico. A ideia de inovar nesse novo período não se limitou a
apenas especialização das empresas. A inovação ocorre tanto na classe operária, que não se
beneficia em nada com as reformulações desse processo, quanto na empresarial e também nas
transformações das maquinarias. Segundo Sérgio Prieb:
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“O processo de inovação técnico-científico, bem como as novas formas de


organização produtiva e empresarial, resultou em consequências nefastas à maioria dos
trabalhadores, pois terminaram aprofundando problemas inerentes ao modo de produção
capitalista, como o desemprego de caráter estrutural. Com a obtenção do mesmo ou até de maior
volume de produção, e com a diminuição dos gastos com capital variável, a lógica que norteia
os capitalistas tende a ser a do crescente alijamento do trabalho vivo no processo de produção.
Ao trabalho humano, passa a ser atribuído um papel secundário no processo de criação de
riqueza capitalista” (PRIEB, 2008, p.02).

Neste último século, a inovação tomou um novo sentido, o de recolher informações,


estudar mercados, adotar ideias, colocá-las em prática e criar novos produtos ou serviços.
Quijano afirma que “inovação não é uma mera acumulação de conhecimentos, mas o adequado
aproveitamento dessa acumulação para introduzir no mercado, com êxito econômico, um novo
produto ou processo” (QUIJANO, 2007, P.177). Essas transformações industriais mudaram o
cenário social e econômico das nações. De um lado o capitalista apontado como o responsável
pelo equilíbrio econômico do país e preventor de seu crescimento. Do outro o trabalhador que
desfruta apenas do seu salário e nele não é atribuído papel sequer na economia, se não de
consumidor.

Schumpeter destaca apenas um agente de relevante importância no papel que a


inovação tem no setor empresarial: o empreendedor ou empresário. O autor vê este agente como
único capaz de subsidiar este processo de criação, pois, é dele que os recursos financeiros são
concebidos, atribuindo ao empreendedor função preponderante no processo, mesmo não o
enxergando como agente responsável pelo aumento da exploração trabalhista. Segundo
Schumpeter:

“Ao longo do último século o capitalismo, que é por natureza uma forma ou método
de transformação econômica, tem baseado o impulso fundamental que o mantém em
movimento de inovação. Para garantir a reprodução de tal modelo de acumulação, em
escala global, tem-se recorrido, com frequência cada vez maior, a expedientes capazes
de permitir o monopólio dessas inovações como forma de estimular o espírito
empreendedor363” (SCHUMPETER, 1961, p.110).

O empresário torna-se grande propulsor de uma economia em expansão quando


decide inovar e executar o remanejo dos fatores de produção e reformulação das técnicas

363
Schumpeter (1961) chama “ato empresarial” à introdução de uma inovação no sistema econômico e “empresário” ao
que executa esse ato. A distinção entre “empresário” e simples “diretor” de uma firma é, pois, fundamental, ainda que
eventualmente as duas figuras coexistam na mesma pessoa. “Empreendedor”, para Schumpeter, é o capitalista que inova.
Página 1671 de 2230

industriais. Porém, a consequência desse processo, que é o crescimento econômico, não é


decorrente apenas das decisões que os empresários tomam, mas possivelmente:

"A feição característica do crescimento econômico é o crescimento das empresas,


isto é o aparecimento de um pequeno número de pessoas, investidores particulares ou
funcionários públicos, que utilizam grandes somas de capital e dão emprego a um grande
número de pessoas" (LEWIS, 1960, p.338).

Joseph Schumpeter foi um dos autores, por exemplo, que contribuiu para a teoria
do desenvolvimento econômico ressaltando a teoria do empresário. O autor, em sua teoria,
define o empresário como agente inovador, ou seja, um indivíduo que executa novas
combinações e assim, de forma criativa, permite a criação de novos produtos ou serviços no
mercado. Entretanto, ele também definiu o desenvolvimento econômico como a concretização
de novas combinações a partir dos fatores de produção, mas não abordou as condições para tal
“sucesso econômico”, deixando a classe trabalhadora totalmente de fora de sua teoria, focando
apenas no agente empresário.

Para Schumpeter “desenvolver é inovar, é recompor os fatores de produção, é pôr


em execução o progresso tecnológico, e quem inova é exatamente esse empresário”
(SCHUMPETER, 1997, p.30). Ora, se o empresário é o agente responsável por inovar e a
inovação é um instrumento que potencializa o grau de exploração trabalhista, como o
empresário não é responsável direto pela degradação e/ou destruição do trabalho? Schumpeter
não responde tal questionamento em sua tese por conta de sua limitação em não encarar o
trabalhador como integrante principal do processo econômico de uma nação, dando destaque
apenas ao empresário como um capitalista diferente, que inova para gerar crescimento
econômico.

A amplitude do seu conceito de inovação não impediu Schumpeter de restringir o


conceito de empresário a pessoas de negócio que simplesmente decidem inovar de forma
original. Diz ele que “Alguém é um empresário na medida em que executa novas combinações
e deixa de sê-lo assim que, depois de criar seu negócio, instala-se para administrá-lo da mesma
forma que outras pessoas administram seus negócios" (SCHUMPETER, 1997, p. 37).

Os empresários são indivíduos que observam as oportunidades, reorganizam os


fatores de produção no nível da empresa e inovam, o que acarreta no crescimento empresarial.
Portanto, para que haja desenvolvimento econômico em uma nação, segundo Schumpeter, a
Página 1672 de 2230

inovação deve tornar-se precedente essencial de capacitação, mesmo que seja preciso excluir a
classe base de todo o processo industrial que são justamente os trabalhadores.

Reformulação das técnicas industriais e o aumento da exploração trabalhista


A amplitude da abordagem do aumento da exploração mediante a intensificação da
inovação no cenário industrial de uma nação, se complementa na tese de Karl Marx, da medição
do grau de exploração por parte do empresário ao trabalhador, chamada de valor da força de
trabalho que, estaria embutida no processo de industrialização de mercadorias. Antes de
adentrar nos desencadeamentos da exploração da força de trabalho, precisa-se entender o que
Marx entende por “trabalho” que, segundo o autor, seria:

“(...) um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser


humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material
com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em
movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de
apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana.
Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica
sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao
seu domínio o jogo das forças naturais” (MARX, 1983, p. 95).

Segundo Marx, “todo o sistema de produção capitalista repousa no fato de que o


trabalhador vende sua força de trabalho como mercadoria” (MARX, 1984a, p. 48). Para o autor,
essa força de trabalho é uma espécie de mercadoria, que pode ser negociada com o capitalista,
mesmo se diferindo das demais criadas em produção. Marx, acerca da comercialização de força
de trabalho apresenta:

“O valor da força de trabalho, como o de toda outra mercadoria, é determinado pelo


tempo de trabalho necessário à produção, portanto também reprodução, desse artigo
específico. Enquanto valor, a própria força de trabalho representa apenas determinado
quantum de trabalho social médio nela objetivado. A força de trabalho só existe como
disposição do indivíduo vivo. Sua produção pressupõe, portanto, a existência dele.
Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua
própria reprodução ou manutenção. Para sua manutenção, o indivíduo vivo precisa de
certa soma de meios de subsistência. O tempo de trabalho necessário à produção da
força de trabalho corresponde, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção
desses meios de subsistência ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de
subsistência necessários à manutenção do seu possuidor” (MARX, 1983, p.141).

Na teoria marxista, os lucros (qualquer receita não convertida em salário) não


passam de deduções injustas do que realmente deveria ser proferido por direito ao trabalhador.
O princípio da exploração se dá por conta da disparidade entre a renda do capitalista e o salário
pago ao trabalhador visto que este último é o agente capaz de produzir em poucas horas os bens
necessários para ter a força e energia bastante para trabalhar em uma diária de produção.

A inovação, que é o instrumento utilizado para transformar o cenário industrial de


uma nação e, assim, gerar crescimento econômico, dispõe de mecanismos para reduzir custos
Página 1673 de 2230

e aumentar a produtividade, são eles as mudanças de tecnicidades que, nada mais são que a
realocação das técnicas industriais de produção de mercadorias. Nesse processo o trabalhador
sofre inúmeras consequências degradantes como, por exemplo, a substituição de sua força de
trabalho por maquinarias capazes de realizar seu laboro por menor custo e em menor período
de tempo. Esse processo de destruição de trabalho é cada vez mais presente com as políticas de
inovação industrial e tecnológica no século XXI.

O capitalista visa lucros a sua indústria, e não mede esforços para consegui-lo.
Ainda segundo Marx, uma combinação entre a ganância dos capitalistas e as forças que tendem
a reduzir o lucro em relação ao capital investido faz com que os capitalistas aumentem a taxa
de exploração.

“Toda empresa produtora de mercadorias toma-se, ao mesmo tempo, empresa de


exploração da força de trabalho; mas só a produção capitalista de mercadorias é que
se toma um modo de exploração que marca uma época, que, em seu desenvolvimento
histórico mediante a organização do processo de trabalho e o gigantesco
aperfeiçoamento da técnica, revoluciona toda a estrutura econômica da sociedade e
supera de maneira incomparável todas as épocas anteriores” (MARX, 1884, p.33).

Outra mudança nas técnicas de produção que merece destaque é a divisão


internacional de trabalho iniciada no século XVIII e perpetuada até os dias atuais. Essa manobra
industrial prioriza a produção em massa de mercadorias, gerando acumulação de capital por
parte do próprio capitalista. De acordo com Ernest Mandel, as novas formas de organizar os
processos técnicos de trabalho mostram-se em momentos de recessão apesar de nos períodos
de expansão se generalizarem. De acordo com o autor:

“Há crescente evidência de que cada uma das revoluções na organização do trabalho,
tornada possível pelas sucessivas revoluções tecnológicas, surgiu de tentativas
conscientes dos empregadores para solapar a resistência da classe trabalhadora a mais
aumentos na taxa de exploração364” (MANDEL, 1990, p.35).

A inserção técnica consistiu numa nova configuração de desenvolvimento


capitalista em que a produção de mais-valia365 (expressão exata do grau de exploração da força
de trabalho pelo capital ou do operário pelo capitalista) se centrou não no incremento da força
produtiva do trabalho, mas em certos mecanismos que tinham em comum o fato de que

364
MANDEL, Ernest. Long Waves of Capitalist Development, op. cit., p.35. “there is growing evidence that each of these
revolutions in labor organization, made possible through successive technological revolutions, grew out of conscious
attempts by employers to break down the resistance of the working class to further increases in the rate of exploitation”.
365
Embora expressão exata do grau de exploração da força de trabalho, a taxa da mais-valia não é expressão da magnitude
absoluta da exploração. P. ex., se o trabalho necessário = 5 horas e o sobre trabalho = 5 horas, o grau de exploração é =
100%. A magnitude da exploração é aqui medida por 5 horas. Se, pelo contrário, o trabalho necessário = 6 horas e o sobre
trabalho = 6 horas, o grau de exploração de 100% permanece inalterado, enquanto a magnitude da exploração cresce 20%,
de 5 para 6 horas.
Página 1674 de 2230

implicavam um desvio do preço da força de trabalho com respeito ao seu valor, fenômeno que
Marini denominou de superexploração.

Esses mecanismos significavam o aumento da jornada de trabalho, intensificação


do laboro e redução salarial inferior ao valor justo da força de trabalho. Nos dois primeiros
casos, a diferença entre preço e valor acarretaria no aumento do valor da força de trabalho,
relacionado ao crescimento do volume dos meios de subsistências, mesmo que o salário
aumente de forma desproporcional. No caso da redução salarial, este efeito proveria do
rebaixamento do salário mediante um valor constante da força de trabalho. De acordo com
Marini:

“O fenômeno da superexploração não estaria vinculado a uma etapa histórica


particular do capitalismo nos países latino-americanos, podendo, portanto, ser
superado em etapas superiores desse modo de produção. Antes, corresponderia a uma
característica permanecente do domínio do capital nesses países” (MARINI, 1979, p.
49).

Contudo, a superexploração da força de trabalho configurou-se como emergência


ao desenvolvimento do capitalismo na América Latina, mesmo não estando sob as mesmas
condições e padrões do desenvolvimento do capitalismo clássico, acentuando as relações de
subordinação dos países centrais sobre os países periféricos. Marini, enfim, escreve que “as
condições criadas pela superexploração da força de trabalho na economia dependente tendem
a obstruir seu trânsito da produção da mais-valia absoluta à de mais-valia relativa, enquanto
forma dominante nas relações entre o capital e o trabalho” (MARINI, 2000a, p.165).

Como visto, com a inovação nas técnicas industriais no fomento de novos produtos
e serviços no capitalismo contemporâneo, a exploração do trabalho aumentou tornando-se uma
realidade cada vez mais degradante no século XXI. Houve também destruição trabalhista,
resultado direto do implemento de maquinarias capazes de substituir a mão de obra humana.
Por fim o enxugamento salarial fora abordado como consequência da degradação e exploração
trabalhista por partes dos capitalistas donos dos meios de produção. Entretanto, outra
consequência direta acarretada pela utilização de novas técnicas industriais no capitalismo
contemporâneo é destacada por Claudio Katz: o Trabalho Informal. Para esse autor, “a
exaltação às condições precárias do trabalhador informal, consiste em sintomática confissão de
fracasso do neoliberalismo e de sua flexibilização trabalhista, um sistema destruidor de
empregos” (KATZ, 2016, p. 102).

Para conseguir condições de sobrevivência no cruel processo de capitalismo


contemporâneo atual, o trabalhador vem migrando para uma nova forma de inserção e
Página 1675 de 2230

permanência no mercado. O trabalho informal tomou nas últimas décadas proporções


alarmantes, sendo característica eminente deste derradeiro século. Esse processo é
acompanhado da precarização das condições trabalhistas, tal como suas consequências sociais:
aumento da jornada de trabalho, redução do poder de compra, incerteza salarial, etc.

Todas as consequências diretas acarretadas pelas mudanças nas técnicas industriais,


tendo como base a inovação, não vêm sendo assistidas pelo Estado de forma eficaz. O
neoliberalismo, que se implantou por parte do próprio Estado, impossibilita providências que
assegurem proteção à classe trabalhadora. Pelo contrário, o que é visto, principalmente no
século XXI, em países capitalistas, são governos incentivadores do crescimento econômico a
todo custo, ou seja, priorizados em reduzir investimentos em políticas públicas de proteção ao
trabalhador. Esses governos buscam, portanto, incentivar as grandes indústrias a se
estabelecerem no mercado. Por mais que, com incentivos ficais, por exemplo, essas empresas
acabem gerando novos empregos, o que é visto são situações de desigualdades sociais, tanto
em Relações Internas quanto nas Relações Externas.

As Relações Internas se referem às condições de exploração indireta do empresário


capitalista ao trabalhador assalariado, que, por mais que esteja utilizando de sua mão de obra
como mercadoria, acaba produzindo um excedente incompatível a sua remuneração que lhe é
justa, fazendo com que a o capitalista fique com a maior parte do excedente da produção, e,
assim, a disparidade social entre estes dois agentes econômicos é, cada vez mais, exacerbada.
Já as Relações Externas referem-se à relação de exploração de nações sobre outras nações.

As nações que investem em inovação e criação de novas técnicas industriais têm


vantagem sobre aquelas que não se modernizam, pois saem na frente na corrida por novos
mercados. Assim, dispõem de um alto grau de tecnologia que às capacita de concorrer com o
mundo todo, com baixo custo de produção e, assim, ter melhores preços e conquistar mercados.
É o que acontece com países como os Estados Unidos que detêm uma economia baseada em
inovação industrial eficaz a ponto de se estabelecer em outros países, ou seja, esse movimento
de levar filiais a outras nações para operarem com as mesmas técnicas industriais que operam
cede é cada vez mais presente no século XXI. Esse movimento se chama Globalização366, uma
tática empresarial que é, hoje, a principal causa de escoamento de capital dos países periféricos

366
“A globalização pode ser compreendida como uma nova condição e possibilidade de reprodução do capital surgida
principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando começaram a predominar os movimentos e as formas de
reprodução do capital em escala internacionais” (IANNI, 1996, p.37).
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aos países centrais e essa relação configura o mais preponderante quadro de exploração
econômica e trabalhista.

Com base nessas relações intrínsecas, o trabalhador se encontra desolado, sem


proteção e sem garantia alguma de valorização e dignidade em seu ambiente de laboro. Esse
agente torna-se, portanto, vulnerável ao sistema de conquista do lucro a qualquer custo,
premissa principal do capitalismo contemporâneo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise das consequências da adoção da inovação no âmbito produtivo, em


especial nas grandes empresas, mostrou que as mudanças nas técnicas industriais influenciam
diretamente os trabalhadores, visto que o empresário capitalista é o agente responsável pelo
elevado grau de exploração a esta classe.

Contudo, quanto maior a adoção de inovação na indústria, segundo a abordagem


schumpeteriana, maior capital excedente a empresa dispõe e mais passível uma nação é de
atingir o crescimento econômico, afinal a classe trabalhadora é totalmente excluída desse
processo, lhe restando apenas a função de consumidora de sua própria produção.

Também é visto que, segundo a análise crítica marxista, consegue-se adentrar mais
ainda ao assunto, podendo fazer-nos refutar tais aparatos como, por exemplo, as consequências
degradantes expostas ao trabalhador assalariado mediante tamanha mudança industrial com
base nas novas técnicas inovativas: aumento de jornada de laboro; destruição do emprego;
enxugamento de salário e exploração trabalhista.

Portanto, pode-se analisar o dilema que a inovação é capaz de trazer ao mercado no


capitalismo contemporâneo. De um lado, causando prosperidade econômica empresarial e, por
consequência, nacional e internacional; mesmo que de forma esdrúxula e irresponsável. Do
outro, a intensificação deste mecanismo é capaz de dizimar o trabalho, afetando sem piedade a
classe pilar de toda e qualquer economia, a classe trabalhadora.
Página 1677 de 2230

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INTERVENÇÃO URBANA: UM CONVITE A REFLEXÃO SOBRE OS PROBLEMAS


AMBIENTAIS NA CIDADE DE SÃO BERNARDO-MA

URBAN INTERVENTION: AN INVITATION TO REFLECTION ON


ENVIRONMENTAL PROBLEMS IN THE CITY OF SÃO BERNARDO-MA

Gabriela Oliveira Brito


Graduada em Linguagens e Códigos Língua Portuguesa pela Universidade Federal do
Maranhão UFMA
E-mail:gabriela.oliveira.brito@hotmail.com

Samira Amara Gomes Alves


Orientadora. Mestra em Museologia, pela Universidade Federal do Piauí-UFPI
E-mail:sam_amara@hotmail.com

Eixo 3 – Cidades, Patrimônio Cultural, Sociedade

RESUMO: Este trabalho apresenta um relato de experiência sobre a aplicação de um projeto


de intervenção urbana requerido por uma disciplina cursada no 7º período do curso de
Licenciatura em Linguagens e Códigos- Língua Portuguesa da Universidade Federal do
Maranhão, campus São Bernardo-MA. O projeto em questão objetivou a implantação de uma
proposição sócio-educativa inter-relacionada a Arte Ambiental, em uma área de lazer
característica da cidade de São Bernardo-MA, próxima ao centro comercial da cidade. A opção
por esta proposta que relaciona educação, meio ambiente e cultura é justificada pela intensão
de trabalhar questões voltadas aos aspectos naturais pertencentes ao ambiente fluvial.
Fundamentamo-nos teoricamente nos estudos de Silva (2005), Dias (2003), Boff (2015) e
Martins (2016). A metodologia desta proposta se constituiu por meio de três momentos. Desse
modo, no contato com a população observamos que o mesmo pode trazer importantes
contribuições sociais ao dialogar com a população. Além disso, possibilitará a ampliação de
experiências educacionais a futuros pesquisadores, a partir do desenvolvimento de um trabalho
colaborado e interventivo em um espaço que necessita de um olhar voltado para a complexidade
de problemas cotidianos, no qual estamos inseridos enquanto sujeitos sociais.

Palavras Chave: Questões Sociais, Educação Ambiental. Cultura. Ambiente Fluvial.

ABSTRACT: This work presents an experience report on the application of an urban


intervention project required by a discipline taken in the 7th period of the Licenciatura course
in Languages and Codes - Portuguese Language at the Federal University of Maranhão, campus
São Bernardo-MA. The project in question aimed at implementing a socio-educational
proposition interrelated to Environmental Art, in a leisure area characteristic of the city of São
Bernardo-MA, close to the city's commercial center. The option for this proposal that links
education, environment and culture is justified by the intention of working on issues related to
natural aspects belonging to the river environment. We are theoretically based on the studies of
Silva (2005), Dias (2003), Boff (2015) and Martins (2016). The methodology of this proposal
was constituted through three moments. Thus, in contact with the population, we observed that
it can bring important social contributions when dialoguing with the population. In addition, it
will enable the expansion of educational experiences for future researchers, based on the
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development of collaborative and interventional work in a space that needs a look at the
complexity of everyday problems, in which we are inserted as social subjects.

Keywords: Social Issues, Environmental Education. Culture. River environment.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho se constitui em um relato de experiência acerca da aplicação de uma


proposta de intervenção urbana. Nesse sentido, trata de um trabalho realizado, inicialmente, por
discentes do curso de Licenciatura em Linguagens e Códigos - Língua Portuguesa, da
Universidade Federal do Maranhão, no campus São Bernardo. Tal proposta teve como principal
objetivo: implantar uma proposição sócioeducativa inter-relacionada a Arte Ambiental em uma
área de lazer característica da referida cidade, próximo ao seu centro comercial.

O trabalho ocorreu como um dos requisitos a serem cumpridos na disciplina de


Educação e Meio Ambiente, cursada no 7º período do curso, no ano de 2018. A partir da
fundamentação nos vários conhecimentos construídos durante a disciplina foi proposto aos
alunos, como trabalho final de curso, a elaboração de um projeto que tendo como cerne a
Educação Ambiental inter-relacionasse a temática ambiental à Arte Ambiental como forma de
promover uma socialização dos conhecimentos construídos na academia com a população que
habita no entorno da universidade. Teve, portanto, como um dos objetivos, proporcionar um
retorno social ao contribuir com reflexões sobre a complexidade dos problemas ambientais em
que a cidade está imersa.

Assim, a proposta geral estava pensada para ações em pontos estratégicos da cidade,
seguindo o modelo de pequenas exposições que levantassem questionamentos sobre aspectos
diversos dentro da questão ambiental, conforme vivenciados pelos habitantes. Com este
objetivo final, diversos grupos de discentes ocuparam espaços específicos da cidade buscando
estabelecer diálogos com os transeuntes através de trabalhos de cunho artísticos-ambiental.
Deste modo, visando proporcionar aos indivíduos um olhar reflexivo sobre as problemáticas
ecológicas que permeiam o ambiente social.

Dentre esses trabalhos desenvolvidos de cunho socioeducativos, estava o desta


proposta interventiva, na qual consideramos como extremamente relevante pelo fato de poder
proporcionar um diálogo entre a comunidade bernardense sobre o grande impacto ambiental
causado por eles próprios. Além disso, poderá estabelecer um processo de empatia, no qual será
estabelecido no espectador uma reflexão sobre a preservação do Rio Buriti por meio de uma
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escultura ecológica, buscando trabalhar questões voltadas aos aspectos naturais pertencentes ao
ambiente. Segundo Silva (2005), a ecologia passou a se incorporar nesse tipo de linguagem
artística por volta dos anos de 1970, a partir de variados artistas que discutiam sobre questões
relacionadas a “recuperação ecológica e outras práticas de conservação da terra” (SILVA, 2005,
p. 59).

Assim, percebemos que esta obra artística pertence à arte pública, uma vez que, se
refere a um tipo de arte voltada para o povo, com o intuito de promover um movimento
dialógico com a população no contexto em que está inserida socialmente, bem como uma
consideração dos valores socioculturais, conforme sustentado por Silva (2005). Além do mais,
tem como principal característica o processo de interatividade, objetivando um ato reflexivo
por parte do transeunte com o objeto artístico. Desse modo, relacionando forma e conteúdo,
signo e significado.

Ademais, observamos ainda que esta proposição poderá trazer grandes


contribuições para o processo de construção e transformação de paradigmas relacionados, mais
especificamente a questão dos valores morais, sociais e culturais de uma determinada
civilização, nas quais serão convidados a refletirem por meio de uma escultura artística acerca
do expressivo impacto ambiental que vem causando no meio em que vivem e a partir dessas
percepções pressupomos que haverá possivelmente a quebra de atitudes consideradas negativas
em relação à preservação deste ambiente fluvial.

A metodologia desta proposta foi constituída a partir de um processo que envolveu


estudos teóricos, pré-estruturação do projeto e uma pesquisa de campo de cunho qualitativo, na
qual fomos a campo coletar dados para conclusão da proposta do projeto.

Desta maneira, veio ocorrer a partir de três momentos. No primeiro, realizamos


estudos teóricos acerca do que vinha a ser a Educação Ambiental e a Arte Ambiental,
objetivando conhecermos de forma mais aprofundada sobre os seus conceitos e principais
finalidades dentro de nossa sociedade, na qual passam a contribuir de forma significativa na
instrução do ser humano, em relação aos problemas ambientais que norteiam a esfera social,
para ai conscientiza-lo e sensibiliza-lo à prática de atitudes favoráveis em relação ao contexto
ambiental. Além disso, nesta mesma etapa fizemos uma montagem do anteprojeto desta
proposta inter-relacionando-a as duas áreas de estudo, a saber a arte e o meio ambiente.

No segundo momento, realizamos no entorno do local onde o trabalho deveria ser


implantado, uma breve exposição fotográfica de uma proposição do que viria a ser a obra
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artística. Isso, com o intuito de conhecer a opinião dos transeuntes e moradores que frequentam
rotineiramente o local. Visando assim, diagnosticar sua real importância naquele contexto.

O terceiro momento, constituir-se-á de uma apresentação da proposta de


intervenção a um órgão pertencente ao setor ambiental da cidade intentando sua possível
instalação no local almejado.

Utilizamos como base de fundamentação teórica percepções de autores como Dias


(2003), apresentando breves considerações a respeito do que vem a ser a Educação Ambiental
como meio socioeducativo, no que tange ao trato com os problemas ambientais recorrentes em
nosso contexto, ou seja, no qual vem priorizar questões concernentes a valorização e
preservação do ambiente social da qual fazemos parte. Trabalhamos ainda a partir da
perspectiva de Silva (2005), observando seu olhar acerca do papel adotado pela Ecologia como
um meio interventivo de amenização dos problemas ambientais que perpassam o ambiente. E
Boff (2015), destacando percepções sobre determinadas problemáticas devido o próprio
comportamento adotado pelo ser humano.

Dessa forma, este trabalho está organizado a partir de cinco tópicos, em que no
primeiro é feito uma abordagem sobre a importância da Educação Ambiental como um meio
de construção de novos paradigmas, ou seja, passa a ser pontuado sobre a Educação Ambiental
e sua finalidade no que tange ao sujeito enquanto ator social. No segundo, apresentamos
algumas discussões com relação a percepção sobre a questão ecológica do ambiente, no qual a
ênfase recai sobre o conceito de ecologia e seu papel inter-relacionado as práticas de
conservação da terra destacadas por Boff (2015).

No terceiro tópico, destacamos como se deu todo o procedimento metodológico de


desenvolvimento da proposta, partindo primeiramente de uma caracterização do local de
realização da pesquisa, ou seja, o ambiente fluvial escolhido para a instalação da proposição
escultórica. Além de ser promovido uma breve descrição da mesma, bem como dos materiais e
procedimentos que deverão ser utilizados para a sua produção e instalação.

No quarto tópico, fazemos um relato das experiências vivenciadas no decorrer do


andamento das etapas, levando em consideração as considerações levantadas pelos teóricos nas
discussões abordadas acima. Já no último tópico, apontamos algumas contribuições concebidas
no decorrer da aplicabilidade da proposta, assim como, breves compreensões a respeito dos
benefícios objetivados para as pessoas e o lugar.
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2- A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO MEIO DE


CONSTRUÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS

A Educação Ambiental foi um dos meios criados por diversos estudiosos com o
objetivo de garantir a todos os indivíduos o pleno conhecimento sobre aspectos voltados para
questão do ambiente humano. Além disso, de acordo com Dias (2003, p. 82) “[...] para o
desenvolvimento da Educação Ambiental é recomendado que se considerassem todos os
aspectos que compõem essa questão, ou seja, os políticos, sociais, econômicos, científicos,
tecnológicos [...]”.

Observamos que sua principal finalidade para com todo ser humano é promover um
amplo conhecimento intelectual, social e moral, através de uma forma instrutiva, intentando
desenvolver um processo de sensibilização para uma conscientização, mais especificamente
sobre as problemáticas ecológicas que o meio ambiente vive enfrentando, e tentar buscar
maneiras favoráveis para soluciona-las.

Como afirma o autor a Educação Ambiental (EA):

Teria como finalidade [...] proporcionar a todas as pessoas a possibilidade de adquirir


conhecimentos, o sentido dos valores, o interesse ativo e as atitudes necessárias para
proteger e melhorar a qualidade ambiental, induzir novas formas de conduta nos
indivíduos, nos grupos sociais e na sociedade em seu conjunto tornando-a apta a agir
em busca de alternativas de soluções para seus problemas ambientais, como forma de
elevação da sua qualidade de vida (DIAS, 2003, p.83).

Constatamos que segundo Dias a EA, deve ser promovida a todos os indivíduos
independentemente de faixa etária “[...] ou a todos os níveis na educação formal e não formal”.
Assim, podemos ver em plena contemporaneidade que a educação formal ocorre dentro do
contexto escolar. Já o ensino não formal ocorre, mais especificamente no exterior desses
ambientes, como por exemplo o próprio ambiente escolhido para a execução deste trabalho, a
saber na região denominada Cai N’água, próxima ao centro comercial da cidade.

Com relação aos paradigmas Kuhn apud Dias (2003), apresenta dois significados,
“o primeiro mais amplo tem a ver com toda constelação de opiniões valores e métodos
participados pelos membros de uma determinada sociedade [...] o segundo mais restrito deriva-
se do primeiro e significa as referências, as soluções concretas[...]”. Ou seja, entendemos que
esses conhecimentos sobre os paradigmas pontuados pelo autor, dizem respeito as mudanças
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de padrões considerados nocivos na conduta humana, no âmbito de questões que envolvem a


preservação do meio ambiente.

Destarte, compreendemos que a Educação Ambiental é um dos meios favoráveis de


se garantir as devidas mudanças de paradigmas. É por meio dela que os indivíduos reconhecerão
suas atitudes negativas, e poderão passar por um processo de conscientização sobre seus
comportamentos em relação ao ambiente ao qual pertencem. Podendo, possivelmente,
transforma-lo através de comportamentos que promovam a sustentabilidade ambiental.

2.1 A visão do homem sobre a questão ecológica do ambiente

Entendemos a Ecologia como uma área de conhecimento que compreende o


processo de interação entre os seres vivos de variadas espécies e o próprio ambiente. Como
afirma Haechel apud Boff (2015, p.18) “A ecologia é o estudo do inter-retro-relacionamento de
todos os sistemas vivos e não vivos entre si”.

É percebido em plena contemporaneidade um expressivo surgimento de diversas


problematizações relacionadas a questão do ambiente ecológico que vem de uma certa forma
se expandindo constantemente. Como afirma Boff (2015, p. 13) ao destacar que: “[...] entre as
noves dimensões centrais para a manutenção de condições de vida descentes para humanos e
para meio ambiente quatro foram ultrapassadas e as restantes encontram-se em estado avançado
de erosão”. Assim, verificamos que essas ultrapassagens ocorridas a partir da violação dos
limites das dimensões, vieram a ser ocasionadas pelo próprio ser humano, visto que ao invés de
se preocupar com as consequências que poderão surgir posteriormente e prejudicar sua
qualidade de vida, se atém em satisfazer seus próprios interesses econômicos, políticos, sociais
e entre outros aspectos.

Nesse sentido, para Boff (2015), a ecologia teve seu caráter ampliado ao deixar de
apenas seguir suas metas iniciais, pois estavam vinculadas somente a questões de proteção e
preservação de animais extintos. E passou a se integrar ao meio através de uma concepção
analítica ampliada, mais voltada para a sociedade contemporânea. Houve a necessidade de se
pensar o ser humano a partir de sua nova postura de se constituir enquanto ser “energívoro”.
Ou seja, seres que buscam destruir todas as energias naturais do ambiente. Seres vorazes, que
fazem uso insustentável do ambiente, primando por um consumo desenfreado das reservas de
energia do planeta. Como vem sustentar o autor [...] “a ecologia deixou seu primeiro estágio na
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forma de movimento verde ou de proteção e conservação de espécies, em extinção [...]


transformou-se numa crítica radical do tipo de civilização que construímos que é atualmente
energivoro e desestruturador [...]” (BOFF, 2015, p. 21).

3- METODOLOGIA

Este tópico objetiva apresentar de que forma foi estruturada a aplicabilidade da


proposta de intervenção intitulada: Intervenção urbana: um convite a reflexão sobre os
problemas ambientais na cidade de São Bernardo-MA. Desse modo, será apresentado uma
breve caracterização do município de realização da pesquisa, bem como os aspectos teórico-
metodológicos de seu desenvolvimento, a saber, sobre o tipo de abordagem adotada para sua
aplicação e possíveis aspectos a serem levados em consideração no decorrer das etapas de
execução.

Apresentaremos ainda uma breve descrição da escultura ambiental a ser implantada


no ambiente fluvial da referida cidade. Com isso, objetivaremos demonstrar o meio através do
qual buscaremos provocar reflexões a respeito da preservação do Rio Buriti.

3.1 Caracterização do local de desenvolvimento da pesquisa

São Bernardo é um dos municípios do Estado do Maranhão, localizado na porção


leste, mais precisamente na região nordeste conhecida como Baixo Parnaíba. De acordo com o
censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em
2019, a cidade de São Bernardo-MA possuí uma população estimada de 28.507 pessoas.

Além disso, é conhecida como uma das maiores cidades de seu entorno. Local este
onde está inserido o Rio Buriti, considerado segundo Martins (2016), como uma das principais
fontes de abastecimento de água para a população bernardense, nas quais, conforme o autor,
carrega sobre si um relevante papel:

[...] representa uma importância fundamental para os lugares por onde passa e mais
ainda para a vida das pessoas. Pois, além de servir a população com água canalizada
em suas residências, servi para irrigar as lavouras, para saciar a sede dos animais, para
pescar, navegar e muitas vezes para o lazer e diversão dos banhistas”. (MARTINS,
2016, p.50).
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3.2 Descrição da proposição escultórica a ser implantada na cidade de São Bernardo-MA


A escultura proposta faz referência a um pescador, a qual deverá ser implantada em
um local próximo ao centro comercial da cidade de São Bernardo-MA, uma área de lazer
conhecida como Cai N’água devido ao fato de estar situada às margens do Rio Buriti. Local
este muito frequentado pela comunidade bernardense e por turistas, principalmente em épocas
de carnavais, aniversário, festejos e datas afins.

O projeto então propõe um trabalho escultórico que possui em sua estrutura


características muito específicas quanto a sua forma e conteúdo. Devendo ser confeccionada
em material resistente a intempéries, visto que será implantada em espaço aberto, ela deverá se
constituir como uma figura humana, em tamanho natural e estar sentada sobre os degraus em
frente ao rio. Em suas mãos segurará uma vara de pesca em cuja extremidade da linha estará
afixado um saco com lixos. Seu conteúdo, portanto, buscará comunicar um dos problemas
ambientais vivenciados pela comunidade, o lixo. Trazendo uma reflexão sobre como ele afeta
o rio, seu ecossistema, e os diversos âmbitos da vida social. Assim, além da questão de tratar-
se de uma área de lazer, considera-se o fato de que parte da população desenvolve atividade de
pescas como meio para a subsistência de suas famílias. Deste modo a obra intentará um diálogo
com a população em geral convidando-a a uma reflexão acerca da preservação daquele
ambiente fluvial.

Os métodos a serem levados em consideração em seu processo de execução, serão


possivelmente modelagem e soldagem das peças. Os materiais compor-se-ão de chapas de
metal, tinta, solda, ferro e cimento. No que tange as suas dimensões, deverá ter uma extensão
máxima de um metro e oitenta centímetros de altura. Já a vara de pesca possuirá um metro e
cinquenta centímetros de comprimento. O objetivo é trabalhar com a escala humana como
padrão para se obter um diálogo frutífero com os transeuntes.

3.3 Aspectos teórico metodológicos de aplicabilidade da proposta de intervenção

A metodologia desta proposta foi constituída a partir de três momentos. No


primeiro, veio ocorrer baseado em todo um processo vivenciado durante a disciplina intitulada:
Educação e Meio Ambiente, no qual se procedeu por meio da realização de discussões sobre as
questões básicas inerentes a EA, processo de sensibilização, conscientização e construção de
conhecimentos. Em que, tivemos um contato com as teorias de Dias (2003), Boff (2015), Silva
(2005), e outros autores, bem como outras referências como legislações ambientais, etc.
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Pretendendo compreender de forma mais aprofundada, a respeito dos objetivos propostos nestas
áreas inter-relacionadas.

Munidos desses conhecimentos fomos convidados a desenvolver um projeto


socioeducativo escolhendo um dos aspectos elencados na lista de itens de degradação ambiental
apresentada por Dias (2003). Nela “reflete-se sobre a perda da qualidade de vida, por condições
inadequadas de moradia, poluição em todas as suas expressões, destruição de hábitats naturais
e intervenções desastrosas nos mecanismos que sustentam a vida na terra” (Dias, 2003, p. 96).

Nesse sentido, a proposta interventiva visou abordar os danos ambientais já


causados nos municípios escolhidos para realização desta proposição, a saber as cidades de São
Bernardo-MA e Santa Quitéria-MA, que no caso deste trabalho optamos por realiza-la na
primeira localidade. Tivemos, portanto, como objetivo contribuir para um processo de reflexão
e conscientização que conduza, a curto e longo prazo, a mudança de atitude para com o meio
ambiente.

Para tanto, estivemos no local realizando atividades participativas junto à


comunidade. Organizamos, então, exposições do projeto gráfico da proposta do trabalho a ser
implantado. Com isso, visávamos conhecer as visões dos transeuntes em relação a implantação
da escultura ecológica naquele ambiente fluvial urbano.

Assim, este primeiro momento de aplicação foi pensado, tendo em vista o trabalho
desenvolvido pelo o artista contemporâneo Richard Serra, mais precisamente da obra intitulada
“Tilted Arc”, de 1981. Uma placa de metal de grandes proporções, instalada em uma praça da
cidade de Nova York. Um trabalho que, por não considerar certas peculiaridades da dinâmica
social do local, teve que ser retirado. Isto devido a fatores como a falta de comunicação com a
população, e questões referentes a circulação das pessoas que frequentavam aquele ambiente.
Assim como o não consentimento da população em relação a sua implantação, entre outros
fatores (SILVA, 2005).

Dessa forma, levando em consideração esses aspectos, priorizamos conhecer as


percepções das pessoas em relação a obra que deverá ser instalada, de modo a não incorrermos
em questões semelhantes.

Além disso, a escolha para realização desta proposição escultórica teve como
inspiração, trabalhos desenvolvidos por diversos artistas do campo da arte urbana e ambiental.
Entre eles Eduardo Srur, artista brasileiro, que desenvolve intervenções voltadas as questões
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ambientais que permeiam o contexto social do qual faz parte. Nos inspiraram trabalhos como o
“Barco sobre um rio enterrado”, onde o artista busca proporcionar reflexões acerca da poluição
causada nos rios da cidade de São Paulo. Nos norteamos ainda por proposições de artistas como
Frans Krajcberg em seu incessante diálogo sobre a preservação ambiental. E nos diálogos com
a Land Art, como artistas como Robert Smithson, dentre outros.

O terceiro e último momento, pretende ser constituído a partir de uma apresentação


do projeto de intervenção a um órgão do município, a saber, na Secretaria de Cultura e Meio
Ambiente. Considerando a relevância do tema pretendemos apresentar a proposta enfatizando
os diversos aspectos que a envolvem, tal como descrevemos neste texto.

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Este tópico objetiva apresentar breves considerações acerca de como veio a ocorrer
a aplicação da proposição socioeducativa, voltada para as questões ambientais que envolvem o
Rio Buriti. Pretende pontuar compreensões de alguns sujeitos entrevistados, a respeito da
implantação dessa proposta naquele ambiente, e ainda abordará o andamento de sua última
etapa.

4.1 Experiências vivenciadas na aplicação da segunda etapa da proposta de intervenção

A aplicação da segunda etapa da proposta de intervenção deste trabalho ocorreu no


centro comercial da cidade de São Bernardo-MA. Nesta ação, foram feitas exposições de
imagens da escultura no entorno do local onde se pretende que seja instalada. Realizamos,
portanto, entrevistas com os transeuntes que circulavam pelo espaço, tendo como base a
utilização de entrevistas semi-estruturadas. Tais entrevistas foram organizadas por meio de
alguns questionamentos, os quais buscavam identificar a opinião das pessoas sobre as questões
ambientais do entorno, com enfoque nos aspectos relativos ao rio. Avançando, assim, para a
apresentação do projeto e coleta de dados sobre a percepção da população quanto a relevância
da implantação desta obra artística naquele ambiente fluvial.

Um dos entrevistados que inclusive é pescador local destacou que:

Pesca bastante lixo e o rio buriti como qualquer outro tem que ser preservado, tem que
ser cuidado. Ele é que nem uma criança [...] nós temos que cuidar muito bem, se não
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ele morre. E nós vamos ficar como sem rio? Aqui é praticamente o cartão postal da
cidade, é esse Rio Buriti (JOÃO, 2018).

Coletamos vários depoimentos semelhantes a este. Então, a partir destas falas,


observamos a manifestação de uma atitude positiva em relação ao processo de sensibilização
pensado no estabelecimento deste trabalho. Isto se sintoniza às compreensões apresentadas nas
discussões teóricas a respeito da Educação Ambiental, segundo Dias (2003), considerando-a
como um meio instrutivo de promover ao ser humano um processo de conscientização e
sensibilização a respeito das problemáticas ambientais.

Além disso, outras pessoas externaram seus pontos de vistas sobre a grande
relevância de se implantar um tipo de escultura como esta, uma vez que, segundo eles “o Rio
Buriti é considerado uma grande fonte de riqueza e se ele fosse bem preservado poderia trazer
grandes benefícios como, por exemplo: financeiramente, em que poderia ser um ambiente
agradável para o turismo” (JOSÉ, 2018).

Diante disso, podemos constatar que a implantação desta proposta é considerada


algo benéfico para promover um frutífero dialogo social em relação as problemáticas
ambientais enfrentadas naquele ambiente fluvial.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto constitui um relato da experiência desenvolvida no âmbito de uma


proposta de dialogar sobre as questões ambientais em que estamos imersos. Traz em si, a
inquietação com os problemas ambientais vivenciados na contemporaneidade. Além de
estabelecer uma proposta de reflexão, partilha de responsabilidades e busca por preservação
ambiental. Trata de um contexto específico, portanto pensa a partir de suas peculiaridades em
consonância com as reflexões dos mais atuais autores sobre o assunto no país.

Com isso, buscamos construir uma proposta em parceria com a comunidade.


Considerando, portanto, suas necessidades e concepções sobre o lugar. E objetivando uma
quebra de paradigmas, como por exemplo, atitudes não reflexivas em relação aos problemas
ambientais. Buscando, por conseguinte, contribuir de forma significativa ao processo de
sensibilização para uma conscientização, mediado pela Educação Ambiental. Área de
conhecimento indispensável nas práticas sociais de indivíduos enquanto participantes de uma
determinada esfera social.
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LUGAR MEMÓRIA E TURISMO CULTURAL: O BAIRRO DO DESTERRO EM


SÃO LUÍS DO MARANHÃO

PLACE MEMORY AND CULTURAL TOURISM: The Desterro Neighborhood in São


Luís do Maranhão

Maria de Fátima Lima Soares


Graduanda em Turismo – UFMA

Kláutenys Dellene Guedes Cutrim (Orientadora)


Curso de Turismo – UFMA

Eixo temático 3: Cultura, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: O Desterro é um dos bairros mais antigos da cidade de São Luís que reúne um
acervo patrimonial material considerável, percebendo-se ainda, a existência do patrimônio
imaterial inestimável, as memórias de seus moradores. As memórias são consideradas uma
atratividade a mais para o lugar e estimulam a curiosidade de visitantes interessados nas
vivências, costumes e saberes passados da comunidade. Em relação a atividade turística, os
testemunhos de memória dinamizam as relações e agregam valor ao espaço. O objetivo desta
comunicação é promover uma reflexão sobre a relação de lugar memória e turismo cultural no
Bairro do Desterro. Este estudo é uma pesquisa exploratória que se valeu de um apanhado
bibliográfico para fundamentação teórica, e descritiva, com instrumento de entrevistas com
idosos do lugar. Aliadas ao turismo as memórias podem e devem ser trabalhadas pelo
dinamismo das relações, agregando valor ao patrimônio e reforçando o sentimento de
pertencimento, promovendo assim, o intercâmbio cultural. Com os resultados e discussões
obtidos da pesquisa conclui-se que a relação memórias e turismo cultural é de grande
importância para compreensão e interpretação do patrimônio, criando-se vínculos entre
moradores e visitantes, trazendo benefícios como a preservação e valorização do lugar.

Palavras-chave: Memória. Identidade. Patrimônio. Turismo Cultural.

ABSTRACT Desterro is one of the oldest neighborhoods in the city of São Luís and brings
together a considerable material heritage collection, also realizing the existence of invaluable
heritage, the memories of its residents. Memories are considered an additional attractiveness to
the place and stimulate the curiosity of visitors interested in the experiences, customs and past
knowledge of the community. Regarding tourist activity, memory testimonies boost
relationships and add value to space. The objective of this communication is to promote a
reflection on the relationship of memory place and cultural tourism in the Desterro
Neighborhood. This study is an exploratory research that was used by a bibliographic survey
for theoretical, and descriptive foundation, with an instrument of interviews with the elderly of
the place. Allied to tourism memories can and should be worked by the dynamism of
relationships, adding value to heritage and reinforcing the feeling of belonging, thus promoting
cultural exchange. With the results and discussions obtained from the research it is concluded
that the relationship memories and cultural tourism is of great importance for understanding
and interpretation of heritage, creating links between residents and visitors, bringing benefits
such as preservation and appreciation of the place.
Keywords: Memory. Identity. Heritage. Cultural Tourism.
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INTRODUÇÃO

Os testemunhos de memória são uma atratividade que incrementa a atividade


turística com a simpatia e hospitalidade dos velhinhos que sentem prazer em compartilhar seus
conhecimentos e vivências sobre o lugar onde vivem, proporcionando ao visitante e/ou turista
experiências singulares. Aliadas ao turismo, as memórias podem e devem ser trabalhadas pelo
dinamismo das relações, agregando valor ao patrimônio e reforçando o sentimento de
pertencimento, promovendo assim o intercâmbio cultural.

Ambientes criativos e inovadores são o que o turista busca em suas viagens,


experienciar o incomum fora de seu cotidiano habitual. Os lugares de memória possibilitam o
desenvolvimento sustentável do turismo cultural por meio do interesse em conhecer o
patrimônio, objetivando sua preservação, o estreitamento de relações e vínculos com as pessoas
do lugar. Os lugares impregnados de reminiscências necessitam de políticas de preservação e
conservação do patrimônio e mecanismos de salvaguarda as memórias e as identidades dos
grupos sociais.

A esses lugares de memória cria-se o sentimento de pertencimento que dá início ao


processo de construção identitária surgindo a partir da integração entre população e sua relação
com meio em que vivem. Essas relações estão vinculadas às questões educacionais e norteiam
práticas futuras. E a relação com o turismo cultural vem dessa forma, promover a educação
voltada a preservação e manutenção desses espaços, deixando clara sua importância no
processo de desenvolvimento socioeconômico no envolvimento de turistas e visitantes que são
motivados a vivenciar as experiências locais, e os moradores, que tendem a compartilhar com
estes sua cultura.

Dessa forma, volta-se a atenção ao bairro do Desterro no sentido e que se


desenvolva a atividade turística na região, tendo em vista o grande potencial que possui, o
patrimônio preservado aliado as memórias dos residentes, os empreendimentos turísticos e o
aproveitamento e utilização de seus espaços com feiras e eventos para gerar emprego e renda,
provocando assim, o dinamismo e a valorização do lugar.

O objetivo desde trabalho é promover uma reflexão sobre a relação de lugar


memória e turismo cultural, envolvendo a questão de identidade e preservação do patrimônio
por moradores, turistas e visitantes. Esta é uma abordagem qualitativa de natureza aplicada, de
caráter exploratório e descritivo. Os procedimentos metodológicos foram pesquisas
bibliográficas em livros, artigos científicos e dissertações para fundamentação teórica. O
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instrumento metodológico utilizado na pesquisa de campo foi a entrevista aplicada a dois idosos
do bairro com idades entre 80 e 90 anos, que forneceram fatos e experiências passadas no lugar.
De posse das informações, descrevemos as lembranças dos entrevistados e percebemos
depoimentos semelhantes, a memória individual fazia parte da memória coletiva, a identidade.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os lugares de memória são locais síntese das memórias históricas de determinadas


sociedades, são dotados de simbolismos e referências as identidades construídas e/ou
descontruídas ao longo dos tempos. Os lugares de memória sofrem contínuos processos de
ressignificação, esses espaços passam a adquirir novos significados por meio de ações humanas
provocando o esfacelamento e esquecimento das memórias sociais construídas no lugar, na
maioria das situações tem o objetivo de apagar o passado, negar ou excluir a participação de
grupos sociais na construção histórica e cultural da nação.

De acordo com Nora (1993) existe a curiosidade pelos lugares de memória


justamente porque eles se mesclam aos acontecimentos históricos ocorridos com as sociedades,
e que, no decorrer da história as tentativas de romper com este passado e desintegrá-los só
coloca em evidência sua capacidade de reencarnar. “Os lugares de memória existem, porque
não há meios de memória”. Ainda para o autor, o domínio sobre as memórias com o objetivo
de forjar uma identidade é um ato muito antigo, o dominador se apropria dos bens patrimoniais
de outros povos, lhes dá novos significados e adequa a história ao modo que lhe convém julgar.

A memória se revela como mecanismo de dominação da sociedade, o domínio que


se tem sobre as memórias da coletividade, se tem sobre o percurso da história no tempo. O que
se conhece da historicidade é que ela pode ser manipulada por quem detém as memórias, dando
aos “vencedores” o poder de decidir o que deve ser enaltecido e o que deve ser esquecido,
tornando suas escolhas verdade única e válida a ser conhecida por todos. Em decorrência disso,
dá-se o subjugar das memórias dos “vencidos”.

Segundo Le Goff (1990, p.426), “uma das grandes preocupações dos indivíduos
que dominaram e dominam as sociedades históricas é tornarem-se senhores das lembranças e
do esquecimento. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses
mecanismos de manipulação da memória coletiva”. Para Halbwachs (2006, p.30) “Nossas
lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos
que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos”. Isso acontece porque
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somos indivíduos que fazem parte da coletividade, não estamos sós. Àqueles que participam de
nossas lembranças terão o que dizer dos acontecimentos que às vezes nós mesmos não nos
damos conta que existiram, sempre que precisamos nos lembrar de algo recorremos as
memórias dos outros.

De acordo com Candau (2012, p.21) Considerando a memória “[...] todo indivíduo
é dotado dessa faculdade que decorre de uma organização neurobiológica muito complexa”. O
autor classifica essa cognição humana em protomemória, memória e metamemória em suas
diferentes manifestações. A protomemória ou memória de baixo nível é a mais importante, a
memória individual, pois nela se enquadra aquilo que constitui o indivíduo, seus saberes e suas
experiências são resistentes e melhor compartilhadas pelos membros da sociedade, lembranças
do que se aprende cotidianamente e se utiliza sem a necessidade que se diga como se faz. A
memória, como um grande arquivo e a metamemória, uma reinvindicação da memória
esfacelada, esquecida (CANDAU, 2012).

Ainda de acordo com Candau (2012, p.59), “o sujeito que perde sua memória se
esvazia e vive somente do presente, perde suas capacidades conceituais e cognitivas. Sua
identidade desaparece”. O mecanismo memória faz parte da formação do indivíduo, perdê-la
significa negar a existência de tudo aquilo ao qual se fez parte. A construção que se achava
sólida, o conhecimento, as relações sociais, as experiências e vivências adquiridas ao longo do
tempo, não possuem mais significado ou valor, não existem mais. Vive-se apenas dos flashs
sem duração, sem raízes, perde-se a identidade, perde-se a personalidade.

Diante disso, entendendo o processo de construção da identidade individual, o


sujeito, segundo Hall (2006), não é formado de uma identidade única, estável, mas formado de
várias identidades, de fragmentos dependendo de sua necessidade sociocultural. Esse sujeito
não tem identidade fixa, essencial ou permanente, ele incorpora, associa, se apropria de todas
as identidades possíveis que encontra ao longo de suas vivências, mesmo que temporariamente.
“Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas
porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do
eu” (HALL, 2006, p.13). A identidade que construímos mesmo que temporariamente, nos
identifica por tempo indeterminado. A identidade que diz quem somos essa se constrói com o
sentimento de pertencimento, o pertencer julga-se maior. Mas diante dos trajetos que
percorremos o pertencer e a identidade se distanciam, se dissipam. A identidade tem relação
com o sentimento de pertencimento que precisa existir, e sua construção se deve a um processo
contínuo (BAUMAN, 2005).
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Para Bauman (2005, p.19) “as identidades flutuam no ar, algumas escolhidas por
nós mesmos, outras nos são infladas e lançadas por pessoas a nossa volta”. É preciso ter cuidado
com a dimensão de identidades que incorporamos, há ambivalências em torno do que se decide
escolher para construir uma identificação, é desesperador querer sentir-se parte de algo que nos
é alheio apenas pela provável sensação de sermos acolhidos.

De acordo com Pollak:

A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros,


em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e
que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale dizer que memória e
identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser
compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo (POLLAK, 1992,
p.204).

A identidade é dinâmica, assim como as identidades que acolhemos porque nos


identificamos, há as identidades que nos são impostas, como uma obrigação para fazermos parte
de um grupo, mesmo que não tenhamos o interesse de que façam parte de nós, não há na
consciência a sensação da necessidade de acolhermos ou sermos acolhidos, muito menos a de
pertencimento.

A criação de uma identidade nacional surgida na Europa a partir da Revolução


Francesa no século XVIII, e aqui no Brasil no governo de Getúlio Vargas, demonstra essa
assertiva, foi uma tentativa do estado de impor uma aceitação do que é comum a todos que
pertenciam a uma determinada nação, algo que identificasse o indivíduo enquanto parte de um
todo, mas não necessariamente significava que todos se sentiam parte desse acolhimento, que
pertencessem a essa construção identitária. Essa imposição de uma identidade nacional criada
pelo estado constituía-se um processo de homogeneização cultural que visava diminuir as
diferenças sociais, mas que na verdade era mais uma arbitrariedade para ignorar a diversidade
cultural.

Segundo Bauman:

A identidade nacional, [...] nunca foi como as outras identidades. Diferentemente


delas, que não exigiam adesão inequívoca e fidelidade exclusiva, a identidade
nacional não reconhecia competidores, muito menos opositores, cuidadosamente
construída pelo estado e suas forças [...] (BAUMAN, 2005, p.28).

A construção da identidade nacional imposta pelo estado com o nacionalismo


exacerbado tinha a possibilidade de educar o cidadão quanto a questão patrimonial e criar uma
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coesão social a partir do sentimento de pertencimento à proteção e valorização do patrimônio,


os bens coletivos.

Nesse sentido, para Funari e Pelegrini (2006, p.9), “O patrimônio individual


depende de nós que decidimos o que nos interessa. Já o coletivo é sempre algo mais distante,
pois é definido e determinado por outras pessoas, mesmo quando essa coletividade nos é
próxima”. Dessa forma, o que é considerado patrimônio para alguns, pode não o ser para outros.

O patrimônio coletivo como menção a identidade de um povo sempre atraiu olhares


visando sua admiração e estudo por diversos povos de diversas partes do mundo. Estando na
capacidade em atrair turistas uma de suas funções, a de trazer benefício socioeconômico as
sociedades que o detém. O turismo se apresenta como atividade profícua em relação ao
patrimônio material e imaterial de um determinado povo. Tendo em vista que, o patrimônio
cultural se insere em motivação do processo de deslocamento humano, que favorece por meio
do turismo, o desenvolvimento socioeconômico comunitário, além de participar ativamente na
educação patrimonial para proteção dos bens culturais.

Esse fenômeno coletivo que surge a partir das motivações para viajar, como
conhecer e vivenciar a cultura de determinados lugares, envolve diversos equipamentos como
transporte, alimentação, hospedagem e lazer. Esses serviços geram outros serviços que giram a
economia local, é o efeito multiplicador do turismo. Para Barreto (2003), o turismo é uma
prática social, onde múltiplas relações se estabelecem, os serviços criados a partir dessa prática
e os lugares visitados constituem um fenômeno turístico.

O turismo é uma da principais atividades impulsionadoras da economia criativa,


impulsiona a criação de bens e serviços culturais no mercado turístico, segundo dados da
Nações Unidas, sendo visto como positivo diante de atividades como a indústria e o
agronegócio que tem em suas forma de produção a degradação do meio ambiente para
aceleração do crescimento econômico tão contrárias às ações das atividades criativas benéficas
ao desenvolvimento socioeconômico. Gastal (2000) diz que o setor de serviços gera muito mais
empregos que a indústria, pois esta quando evolui, tende a substituir os trabalhadores pela
tecnologia. O turismo por sua vez, com a inovação de seus atrativos é capaz de gerar uma oferta
cada vez maior de postos de trabalho melhorando a renda da comunidade visitada.

Para o desenvolvimento da atividade turística em lugar de memória, a segmentação


turismo cultural é a tipologia que melhor representa a atividade diante da motivação de sua
demanda. O turismo cultural depende da motivação do turista em vivenciar o patrimônio
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histórico e cultural através de experiências e buscar conservá-los faz parte dessa atividade. O
turista dessa segmentação procura vivenciar experiências interagindo com a população
receptora, são mais exigentes e mais conscientes da preservação do patrimônio cultural do que
os chamados turistas de massa.

O turismo cultural está relacionado a eventos e viagens organizadas e direcionadas


para o conhecimento e lazer com elementos culturais: monumentos, museus, complexos
arquitetônicos e manifestações culturais e, influencia na proteção e conservação do patrimônio,
pois as autoridades passam a querer mantê-lo para atividade turística. E de acordo com MTur
“compreende as atividades turísticas relacionadas à vivência do conjunto de elementos
significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e
promovendo os bens materiais e imateriais da cultura” (BRASIL, 2010).

O patrimônio deste segmento é tudo aquilo que a comunidade sente como


pertencente e formadora de sua identidade. “No decorrer das últimas décadas, o turismo cultural
centrado em áreas patrimoniais tem se tornado uma indústria367 de crescimento acelerado em
muitos países, apoiado, entre outras coisas, pela Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO”
(BRASIL, 2012, p.21).

No segmento, o fenômeno turístico ocorre por completo com a troca de


conhecimento entre visitante e morador visando o saber que se traduza em experiências
interativas. Não há turismo cultural com passividade, o turista procura em suas viagens se
inserir, entrar em contato com a cultura local, conhecer a arquitetura, a gastronomia, os saberes
e vivências populares, dessa forma o turismo contribui com a preservação do patrimônio e de
seus elementos tradicionais.

Entretanto, para Swarbrooke:

Muitas são as discussões em que profissionais sugerem que turismo cultural e turismo
sustentável são sinônimos, contudo, há vários aspectos que mostram a
incompatibilidade entre ambos. Dentre os aspectos estão as pressões sobre a
diversidade cultural que podem ser decorrentes da homogeneização da cultura,
ocasionando a redução dessa diversidade o que acarreta na diminuição do desejo de
viajar do turista em vivenciar outras culturas. (SWARBROOKE, 2000, p.35)

O fator da homogeneização cultural perpassa pela anulação das culturas


“inferiores” com esforço em suprimi-las ou moldá-las em prol de uma cultura dominante, com

367
A indústria se caracteriza como setor secundário que transforma a matéria-prima em bens de consumo, já o
turismo é considerado pertencente ao terceiro setor, o de serviços, portanto, não pode ser considerado uma
indústria muito embora alguns autores o denominem dessa forma.
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isso perde-se o caráter singular do lugar e vivencia-se a mesmice, não há intercâmbio, não existe
troca de conhecimento, não se adquire nada, pois o lugar não tem nada a oferecer que o visitante
já não os tenha visto e/ou vivenciado. A padronização também consiste em uma ameaça
constante à atividade e ao produto turístico, pois quando se insere produtos originários de outras
partes do país, como atrativos de determinado lugar descartando a autenticidade de seus
produtos locais, isso não entusiasma nem chama a atenção do turista que está sempre à procura
de algo novo, ver paisagens culturais e criatividade inéditas nos lugares em que visita. Pela
dimensão do país e características diferenciadas entre as regiões, é possível com inovação,
formatar um produto diversificado e autêntico, ampliando a permanência do turista no lugar
visitado agregando valor e satisfação às suas experiências.

RESULTADOS E DISCUSSÕES – AS MEMÓRIAS DOS MORADORES DO BAIRRO


DO DESTERRO EM SÃO LUÍS

“Se habitássemos nossa memória não teríamos necessidade de consagrar lugares.


Não haveria lugares porque não haveria memória transportada pela história” (NORA, 1993,
p.8). De acordo com a fala do autor a valorização dos lugares de memória deve-se em grande
parte por serem considerados símbolos das reminiscências populares, ancoradouros de passados
históricos de determinadas sociedades, eles existem para dar continuidade a existência da
memória humana.

O bairro do Desterro foi cenário dos primeiros momentos da ocupação portuguesa


em São Luís. Está localizado no extremo oposto as construções iniciadas pelos franceses, se
ligando a estas pelas ruas da Palma e do Giz. Já aparece sinalizado na primeira planta da cidade,
datada de 1642, do engenheiro militar Francisco Frias de Mesquita, que foi chamado logo após
a expulsão francesa do Maranhão para fazer o traçado urbano da cidade. O bairro tinha
finalidade portuária, e a igreja, após sucessivas reconstruções passou a ter como patrono São
José do Desterro. O Largo do Desterro faz parte do conjunto arquitetônico e paisagístico de São
Luís que foi tombado pelo IPHAN.

O trabalho sobre lugar memória prossegue com os relatos dos idosos e foram
conferidos por meio de entrevistas. As entrevistas foram concedidas por dois simpáticos
velhinhos, um casal, mas residentes em endereços diferentes. Não foram interrogados sobre o
conhecimento da existência um do outro, mas talvez se conhecessem. Foram muito solícitos,
educados e não faziam cerimônia em contar abertamente suas memórias sobre as vivências que
tiveram no bairro em outras épocas. Nas entrevistas, foram percebidos fatos idênticos as
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memórias de ambos os entrevistados, talvez por aparentar quase a mesma idade e morarem a
bastante tempo no lugar, os idosos tenham vivido fatos semelhantes e construiram suas
memórias individuais fazendo parte de uma mesma coletividade, possibilitando dessa forma, a
construção identitária de ambos. Conforme Pollak:

Podemos, portanto, dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de


identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 204).

O processo de rememoração iniciou-se primeiro com a senhora de 80 anos que a


mais de 60 anos vive no bairro do Desterro. Uma frequentadora assídua das missas na igreja de
São José, ela nos relatou saudosista: “Hoje é uma noite que vou assistir o carnaval na Praça da
Flor do Samba, aí a gente vai pra lá... é muita gente, muitos amigos [...] o pessoal da comunidade
[...] mas também não tenho que dizer nada que nunca arranjei inimigo, graças a Deus”. O
Convento das Mercês primeiro [...] peraí, primeiro era um convento de padre e freiras [...]
primeiro, isso não era na época da gente. Aí depois foi um quartel de polícia muitos anos, aí
quando a polícia saiu daí voltou de novo o convento.

Convento das Mercês

Fonte: Fátima Soares


Quando indagada sobre indicar hospedagem e os atrativos do bairro: “Eu tô cansada
de ensinar, tem a Fonte das Pedras, tem o Reviver368 que tem hotéis, tem um bem aqui [...] na

368
Programa do governo federal de urbanização do centro histórico de São Luís, mas que faz parte na memória
dos moradores como suposto nome dado ao bairro Praia Grande.
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rua do giz tem um hotel muito bom. Quando o turista vem ao bairro eu indico a Igreja do
Desterro, o Mercado Central, a Fonte das Pedras [...] Para alimentação do turista/visitante o que
a senhora indicaria? “Um prato que eu indicaria: peixe”.

Ela relatou mais: “Quando eu cheguei aqui no bairro, morava num quartinho
alugado, meu pai já estava morando aqui [...] ele foi me buscar no interior mais meu marido, eu
tinha só uma filha pequena. Aí, nós fomos morar bem aqui atrás próximo ao Chagas e Penha
que era uma fábrica muito falada,[...] era, agora é Caema369 [...] lá era fábrica de sabão [...].
Minha filha a água do mar vinha bem aqui na minha casa, depois eles aterraram tudo, as
embarcação vinham bem pertinho da minha casa. Das embarcação tiravam coco, madeira, arroz
[...] a gente olhava lá de casa tudinho [...] Na nossa época era bonito pra gente, hoje em dia já
se acabou, não é mais.

Bairro do Desterro em 1951

Fonte: IBGE

Bairro do Desterro em 2019

369
Companhia de Água e Esgotos do Maranhão.
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Fonte: Fátima Soares


Martins diz que apenas o que o espaço físico proporciona não é suficiente para
condição especial de lugar, e que:

A própria percepção de especial é dada por quem percebe o lugar. Quem vê, avalia,
partindo desde seus sentidos e experiências. Mas o que de verdade dá sentido a um
lugar é o conjunto de significados, os símbolos que a cultura local imprimiu nele, e é
isso que leva o outro a sentir, partindo de seus valores, o lugar o qual se visita
(MARTINS, 2006, p.39).

De acordo com Martins é o morador quem dá sentido ao lugar, o preenche de


significado, a partir do momento em que o habita e o torna em espaço social e comunitário,
impregnando-o com sentimentos, vivências, realizações e manifestações. Dessa forma, os
lugares de memória são importantes lastros de projeções do passado, sao eles que dizem tudo
sobre as sociedades que o habitaram. Para o turismo, os lugares de memória são extremamente
importantes, principalmente para conhecer a cultura, história e o patrimônio dessas populações.

Como relata a moradora local, o mar foi decisivo para o desenvolvimento do lugar,
muito utilizado, muito mais que atualmente, São Luís possui um intenso recurso hidríco que
devia ser melhor aproveitado, até mesmo pela própria atividade turística. “As lanchas que
traziam as mercadorias [...] tinha 3 lanchas, era Sta Luzia, Sta Helena [...], mas me esqueci os
nomes das lanchas. Aí, não demorou muito passou essa avenidona (Avenida Beira Mar –
Vitorino Freire), “Ave Maria”, aí foi melhorando tudo. Olha tinha embarcação que passava um
mês pra chegar aqui”. Quando a senhora veio de Viana370, a senhora veio por terra ou de barco?
“Nem fala, que esse tempo não tinha nada pra vir por terra, eu vim de barco [...] de carro quando

370
Município da baixada maranhense.
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eu vim era 2 dias e meio, 3 dias pra chegar”. Nesses relatos percebe-se o desenvolvimento um
tanto tardio a constar pela data acima 1951 ainda não havia aterro nessa parte da cidade, estando
quase completando 4 séculos de fundação.

Sobre o tombamento do Patrimônio Histórico e o Desterro como parte desse


patrimônio, os casarões seculares de São Luís, ela disse: “A gente não pode fazer nada, mecher
nessas casas, você não pode fazer uma garagem na sua casa, você não pode fazer nada, é
patrimônio. Uma parte é bom, né? Uma parte não gosto muito não, eu não acho muito legal,
mas a gente não pode dá muita opinião nessa parte [...] a gente não pode falar muito essas
coisas”. E prosseguiu: “Nosso comércio era bem ali [...] passamos quase trinta anos. Aqui era
uma lanchonete, chamava “Bumba Lanche”, nós botamos aquela placa (apontou mostrando a
placa na parede dentro e aos fundos do comércio), aí foi proibido, tivemos que tirar”.
(Imposições segundo ela, feitas pelo IPHAN).

De acordo com o Orgão Federal: “O cidadão interessado em realizar intervenção


em bem imóvel tombado pelo IPHAN371 deverá, antes de iniciá-la, pedir autorização, conforme
Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 e a Portaria Iphan nº 420, de 22 de dezembro de
2010”. Para os moradores, é parte burocrática e rígida imposta pelo órgão com tem menos e,
flexível com quem tem mais, beneficiando quem tem recursos para investir em
empreendimentos de médio e grande porte, o que vem a contribuir com o abandono e venda de
imóveis e esvaziamento do bairro pela população local.

A entrevista continuou, dessa vez a entrevistada relatou alguns fatos curiosos e


interessantes de épocas passadas na velha cidade: “Essa rua que corta o bairro (Rua do Giz) que
é a rua principal do bairro e a mais famosa da cidade, já foi muito animada em outras épocas
por causa de seus bordéis de luxo. Esses bordéis eram frequentados por gente poderosa,
políticos influentes e fazendeiros locais. A rua possuía um muro invisível [...] as mulheres de
respeito [...] a gente não podia passar, tinhamos que cortar caminho pela rua da Palma. Os
homens não, podiam ir e vir quando bem quisesse. O bairro tinha muito comércio aqui era bem
movimentado, isso animava o lugar. Pra mim foi muito boa aquela época”. Sobre o carnaval,
as manifestações no bairro, isso aqui já se acabou, antigamente era bom, aqui já foi muito bom,
passava muito tambor372”.(Entrevistada 1)

371
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é uma autarquia federal vinculada ao Ministério
do Turismo que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro.
372
Tambor de Crioula – Manifestação popular típica do Maranhão.
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É possível notar o sentimento de pertença e de saudade no relatar de suas memórias


ao relembrar essa parte de sua vida e de convivência no bairro. As memórias são suporte de
cargas afetivas e identitárias que se confunde ao espaço territorial tornando indivíduos e
concreto parte de um todo.

De acordo com Santos:

A memória não pode ser entendida como apenas um ato de busca de informações do
passado, tendo em vista a reconstituição desse passado. Ela deve ser entendida como
um processo dinâmico da própria rememorização, o que estará ligado à questão de
identidade (SANTOS, 2004, p.59).

Assim, memória e patrimônio estão inter-relacionados, já que ambos fazem


referências aos grupos sociais, ao sentimento de pertença, ao afeto que surge por meio das
representações, uma junção constante de lembranças e sentimentos anexados para a formação
da própria identidade. A memória é a representação do passado, e a rememoração é a evocação
e atualização desse passado, a afirmação de algo ausente, assim como a construção da
identidade remonta o ciclo de todas as vivências. Rememorar é testemunhar o passado, este,
tido como algo grandioso, belo, instigante, o que nos faz pensar que outrora a vida era melhor,
junto aos relatos de quem conta, o saudosismo de algo que só existe na memória. Sentimos
como que pudéssemos viajar para um tempo distante não vivido por nós e sentíssemos as
vibrações desse tempo por meio lembranças contadas por outra pessoa. Para quem ouve os
testemunhos de memória não dá pra dizer se foi bom ou ruim, não se pode avaliar o que não se
viveu, mas entender o passado como forma de construção do presente por meio dos relatos das
memórias dos mais velhos pode ser uma fonte de compreensão, educação e edificação das
vertentes social e cultural, até caminho provável para a construção de um futuro melhor. A
memória tem um forte caráter pedagógico, aprender com os erros do passado para que não
sejam reproduzidos no presente.

Outro morador de 88 anos também relatou um pouco de suas memórias, ele falou
de uma época saudosa em São Luís, relembrou o bloco carnavalesco que hoje em dia é uma
escola de samba do bairro, Flor do Samba, da qual já foi presidente duas vezes e dos meios de
transportes que não existem mais, o difícil acesso por terra e o bairro como era antes do
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progresso: “A maré vinha até [...], num tem aquele prédio Nagib Haickel,373 a água vinha até
ali.

Museu da Memória Audiovisual do Maranhão - MAVAM

Fonte: Fátima Soares


Aqui tinha muito comércio, a gente chamava quitanda. Nessa época não tinha
transporte terrestre era só marítimo [...], essa parte ali do Portinho até a Praia Grande era só
embarcação [...] era barco. Aí eles chegavam e descarregavam mercadorias e passageiros”.

Sobre as festas no bairro, ele contou: “Nesse tempo não tinha escola de samba né,
chamava de bloco, a gente brincava os três dias de carnaval direto [...], aí do bloco originou a
escola de samba e hoje gente gasta um dinheirão pra brincar uma hora. Já fui presidente da
escola duas vezes [...], desde criança eu brinco na Flor do Samba. A escola primeiro chamava
Flor do Amor, aí depois foi que todo mundo reuniu... aqui surgiu uma morena, chamava ela de
Dona Flor... Nega Flor, aí teve uma reunião, ah, vamos vê esse nome, aí ficou Flor do Samba.
Era muito divertido, quando ainda era um bloco de carnaval de rua, todos podiam brincar. O
circuito de carnaval ia do bairro até a Praça Deodoro, mas tudo isso acabou. Agora, toda
animação fica no bairro da Praia Grande”.

373
Museu da Memória Áudio Visual do Maranhão – MAVAM. Nas marés cheias, o costado dessa sólida edificação
de alvenaria de pedra argamassada com cal de sarnambi e óleo de peixe, servia de ancoradouro às embarcações
que navegavam no Rio Bacanga transportando, açúcar, algodão, arroz, babaçu e passageiros. Prédio da Antiga
Companhia de Navegação Jaracati, depois pertencente a José Lemos da Costa e, por fim, entreposto comercial
de Nagib Haickel. Disponível em: http://www.fundacaoonagibhaickel.org.br/
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Escola de Samba Flor do Samba

Fonte: Fátima Soares


De acordo com Bomfim:
O sentido de patrimônio na modernidade, [...] surge como um artifício criado no sentido do
fortalecimento de uma pertença ao espaço simbólico, atribuindo uma transcendência a
determinados símbolos culturais que atestam o caráter singular de uma determinada
comunidade (BOMFIM, 2009, p.127).

O que podemos perceber é que o tempo não para, e que tudo vai se modificando,
com a globalização, a pressão pelo desenvolvimento das cidades, o crescimento acelerado, as
tecnologias, isso tudo ameaça a existência dos modos, dos saberes e das vivências culturais de
civilizações, no entanto, valorizar as memórias como fator de identidade cultural é de suma
importância, é por meio delas que sabemos quem somos e podemos eternizar os fatos e
vivências passados tornando-os memoráveis.

Ainda discorrendo das falas do morador, o Bairro do Desterro, mais precisamente


a Rua do Giz possuía muitos bordéis luxuosos e casas noturnas, assim como dissera a
entrevistada anterior, o local era ponto de encontro do público masculino da alta sociedade
ludovicense. De acordo com ele, a vida noturna no bairro “fervilhava”. Ele respondeu com um
sorriso quando perguntado o que indicaria para o divertimento do turista que quisesse conhecer
o Bairro do Desterro: “Pra se divertir se ia na zona [...], a Rua 28 de Julho chamava de Zona
que era só de mulher prostituta, que é a Rua do Giz, hoje. “O lugar melhor pra nós era o Largo
do Carmo era a praça mais movimentada e mais querida”.
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“Aqui tinha o bondinho a gente pegava na Praça João Lisboa, passava ali no
Mercado Central e ia até o Cemitério do Gavião, esse eu peguei muito. Caia muito [...] tiraram
o bondinho, até que foi um negócio muito bom, porque as ruas daqui é muito estreita não tinha
essas avenidas como tinha agora, a rua que a gente tinha aqui chamava Caminho Grande que
era a Rua Grande, aí esse bonde ia até o Anil. A gente também pegava o trem na RFFSA374 que
ia pra Teresina (PI), tinha uma parada no Marancanã e outra na Estiva [...], aí pegava o Campo
de Perizes e ia embora.

Alberti (2004, p.15) diz que o passado só permanece “vivo” através de trabalhos de
síntese da memória, que nos dão a oportunidade de revivê-lo a partir do momento em que o
indivíduo passa a compartilhar suas experiências, tornando com isso a memória “viva”. Já para
Le Goff (1990, p.250) “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura
salvar o passado para servir o presente e o futuro”.

Ainda descrevendo as memórias do morador do bairro do Desterro, dessa vez com


destaque para a hospitalidade, um componente intangível mais muito visível entre os
moradores. O morador comentou que no lugar há restaurantes que servem uma comida
deliciosa, foi perguntado ainda, o que ele indicaria para o visitante saborear na região dentre as
delícias da culinária maranhense, a resposta foi a mesma da entrevista anterior: “Um peixe no
leite de coco que é uma comida que eu gosto e que minha mãe preparava muito bem quando eu
era criança”

Contudo, apesar de expor com alegria suas memórias, o morador também relatou
sobre o Patrimônio Histórico (os casarões coloniais seculares) tombado pelo IPHAN, órgão que
foi muito citado por ele na questão da preservação do patrimônio, não de forma positiva, mas
como um entrave para reformas de fachadas e áreas internas das casas ( nota-se aí, outro
questionamento similar ao da entrevistada anterior) já que o bairro do Desterro desde sua

374
REDE FERROVIÁRIA FEDERAL SOCIEDADE ANÔNIMA – RFFSA – era uma sociedade de economia
mista integrante da Administração Indireta do Governo Federal, vinculada funcionalmente ao Ministério dos
Transportes. A RFFSA foi criada mediante autorização da Lei nº 3.115, de 16 de março de 1957, pela consolidação
de 18 ferrovias regionais, com o objetivo principal de promover e gerir os interesses da União no setor de
transportes ferroviários. A RFFSA foi dissolvida de acordo com o estabelecido no Decreto nº 3.277, de 7 de
dezembro de 1999, alterado pelo Decreto nº 4.109, de 30 de janeiro de 2002, pelo Decreto nº 4.839, de 12 de
setembro de 2003, e pelo Decreto nº 5.103, de 11 de junho de 2004. Sua liquidação foi iniciada em 17 de dezembro
de 1999, por deliberação da Assembléia Geral dos Acionistas foi conduzida sob responsabilidade de uma Comissão
de Liquidação, com o seu processo de liquidação supervisionado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, através do Departamento de Extinção e Liquidação – DELIQ.
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concepção sempre foi tido como bairro residencial. Segundo o morador, no centro histórico de
São Luís há vários prédios que necessitam de intervenção urgente, pois estão em risco de
desmoronamento, no entanto, os imóveis que os próprios donos querem reformar são impedidos
pela burocracia.

A revolta com os governantes: “Porque o governo não toma conta desses prédios
pra usar como colégio, uma repartição do Estado, porque o que mais usam é alugado, esses
prédios que funcionam coisa do estado, a prefeitura é tudo alugado [...] o governo devia tomar
conta que eles não pagam imposto, não pagam IPTU. “Minha revolta também é que esses
governos não continuam o trabalho do outro: aqui no Maranhão o candidato a eleição perdeu
esse ano, quem entra deve continuar o trabalho do outro. Tem hora que eu fico revoltado que
ninguém toma conta do patrimônio histórico é uma coisa tão bonita que nós temos [...], esses
prédios aí tudo esbandalhado. Você [...], hoje em dia esses prédios estão assim quem é o culpado
é o IPHAN, porque se você comprar um prédio desse aí e querer reformar ele, tu não pode, não
pode nem levantar ele pra reformar um andar, uma coisa, fazer [...] a frente, eles (o IPHAN)
arrumam, mas pra trás [...]. Você vê aquele prédio defronte ao Convento das Mercês, um alemão
tava reformando, aí veio o pessoal do IPHAN foi lá, só porque ele tava botando madeira em um
piso que ele ia fazer de laje, né, eles não autorizaram. Hoje, com esses prédios que estão fazendo
em outros bairros, aí o pessoal vai se mudando, compra um apartamento e se muda. Já tem
pouco morador aqui, antigamente aqui era uma beleza. “Se você entrar ali na Rua dos Afogados
até sair lá embaixo na Camboa [...], eu contei as casas que tem morador. Uma vez eu passei por
ali [...] é triste, as casas que estão abertas é porque tem comércio [...] uma coisa. Eu acho que
isso é por conta do IPHAN”. (Entrevistado 2)

No caso, segundo ele (o morador), “São exigidos documentação que leva tempo
para ser expedida, em seguida espero visita de um funcionário do IPHAN para analisar a
situação da casa, pois não se pode descaracterizar o imóvel. O órgão e autoridades deveriam dá
suporte aos que realmente desejam arrumar os imóveis”. Denotamos nas falas do morador que
existe a ausência e o desinteresse do poder público em criar políticas públicas voltadas as
reinvindicações das populações mais desassistidas que residem no Centro de São Luís, e,
segundo o morador, a burocracia e a ausência do poder público têm causado o aumento na
venda dos imóveis pelos moradores para proverem moradias em locais afastados do Centro.

De acordo com Burnett:


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Pela síntese histórica das transformações da área central de São Luís, se depreende
que o poder público sempre se voltou, da maneira mais pragmática possível, para o atendimento
das necessidades das camadas de alta renda, provocando com isso sucessivos processos de
abandono e degradação de bairros, outrora valorizados. (BURNETT, 2007, p.5)

O IPHAN desenvolveu em 1940 uma política de tombamentos na cidade, até que


em 1974 houve a consolidação dessa política com o Tombamento Federal do Conjunto
Arquitetônico e Paisagístico da Cidade de São Luís (Processo nº 454-T-57; inscrição n° 64 do
Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico), que incluíram os bairros da Praia
Grande, Desterro e Ribeirão.

É importante frisar a atuação do IPHAN na preservação e conservação do


patrimônio cultural e histórico de São Luís. Entretanto, os anseios pertinentes aos moradores
que residem nesse espaço urbano são tão ou mais importantes quanto, e devem estar inseridos
nos projetos de política públicas e planejamento urbano, pois o patrimônio não se conserva se
a população não for participativa e inclusa nesses projetos. É primordial que se assegurem a
permanência nesses territórios, seus moradores, pois são os que garantem vida e conservação a
partir do uso contínuo do espaço.

Tão importante quanto o uso do lugar para preservação do patrimônio, é o


testemunho e compartilhamento das memórias dos lugares de memória, que aliados a
interpretação e sinalização do patrimônio facilitam o entendimento e apreensão de mensagem
pelos visitantes e turistas. Entretanto, devemos destacar, que essa relação não deve incumbir
apenas em difusão de conhecimentos entre moradores e turistas que visitam a região, é
imprescindível que os mais velhos veem a importância em manter vivas suas memórias e
disseminá-las entre a população jovem, garantindo assim, seu envolvimento nas questões
culturais, sociais, econômicas e até políticas do lugar. Dessa forma, o desenvolvimento
socioeconômico com a implantação da atividade turística e o incentivo ao empreendedorismo
vêm a garantir emprego e renda para a população local. E o jovem morador engajado nas
questões culturais demonstrando interesse em valorizar e preservar os bens patrimoniais. “Os
bens patrimoniais culturais constituem uma importante ferramenta educacional, dando aos
jovens a oportunidade de conhecer o passado como forma de compreender o presente e
consolidar valores que fazem parte do processo de construção da identidade” (DIAS, 2006,
p.69).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As memórias sobre o bairro do Desterro e a cidade de São Luís são uma importante
atratividade que podem incrementar a atividade turística e desenvolver a economia local, pois
o ato de contar as memórias, lendas, histórias do lugar e de personalidades do lugar atiçam a
curiosidade e interesse de turistas e visitantes em conhecer o passado e as vivências culturais
de seu povo. Além disso, o bairro possui uma gente hospitaleira, equipamentos e atrativos
turísticos como: museus, igreja, mercados, áreas de lazer e restaurantes.

Abaixo imagens do Mercado do Peixe, Restaurante Porto Seguro, Cafua das


Mercês, Igreja do Desterro e Praça do Pescador.

Mercado do Peixe

Fonte: Fátima Soares

Restaurante Porto Seguro

Fonte: Fátima Soares


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Cafua das Mercês Igreja do Desterro

Fonte: Fátima Soares


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Praça do pescador

Fonte: Fátima Soares


O bairro, que segundo seus moradores, perdeu grande parte da movimentação que
tinha em outras épocas, pode, com planejamento turístico apropriado voltar a ser bem
movimentado, com a utilização de seus espaços para feiras e eventos. As memórias contadas
pelos velhos do lugar incentivam a preservação do patrimônio dando oportunidade aos jovens
do bairro, que adquirem dos pais e avós os conhecimentos e capacidade para tornarem-se
agentes propulsores da cultura e dos movimentos identitários, dessa forma, cria-se vínculos com
o patrimônio que conduzem ao respeito e valorização do mesmo.

O que se pode perceber nos relatos do morador é que o turismo se apropria dos bens
culturais da comunidade e torna a cultura local mundializada, homogênea, o que leva a perda
da autenticidade. O que o turista vê em outras partes do país poderá ver aqui, e o que pode
acontecer é que o destino perde sua originalidade, sendo isso considerado uma ameaça ao
produto no mercado turístico.
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O turismo pode sim ser uma atividade que traz benefícios à comunidade, proteção
ao patrimônio e ao meio ambiente, desde que se exija gestores capacitados que entendam da
atividade e da importância de seu planejamento, buscando benefícios sustentáveis, sabendo
porém, que toda atividade econômica gera algum tipo de impacto sobre o ambiente, mas que
os impactos negativos possam ser minimizados e os positivos, maximizados. E ainda, que a
identidade é uma manifestação flexível e mutável como a própria cultura, e que ao longo do
tempo vai incorporando fragmentos. É importante que se mantenha e preserve a cultura
tradicional inerente ao povo maranhense, sua singularidade, pois o Brasil é um país de
diversidades e manter essa essência é primordial como aceitação de nossas diferenças.

REFERÊNCIAS

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2004. In: Thaíse Sá Freire Rocha - Refletindo sobre memória, identidade e patrimônio: as
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BARRETO, Margarita. Manual de iniciação ao estudo do turismo. 13ª ed. Ver. E atual.
Campinas: São Paulo. – Papiros, 2003. 164p.

BAUMAN, Zigmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução, Carlos Alberto


Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 110p.
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In: CAMARGO, Patrícia de; CRUZ, Gustavo da. Turismo Cultural: estratégias,
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desenvolvimento. – Brasília: Secretaria da Economia Criativa/Minc; São Paulo: Itaú Cultural,
2012. 424 p.

BURNETT, Carlos Frederico Lago. O ESTADO E O PATRIMÔNIO CULTURAL:


políticas de elitização e popularização na área central de São Luís. III JORNADA
INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. São Luís – MA, 28 a 30 de agosto de 2007.

CANDAU, Joel. Memória e identidade. Tradução: Marta Letícia Ferreira. São Paulo:
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DIAS, Reinaldo. Turismo e patrimônio cultural – recursos que acompanham o


crescimento das cidades. São Paulo: Saraiva, 2006.
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FUNARI, Pedro Paulo. PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Patrimônio histórico e


cultural. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 77p.
GASTAL, Susana. Turismo: 9 Propostas para um saber fazer. Porto alegre. EDIPUCRS,
2000. 150p.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo:


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HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva,
Guaracira Lopes Louro.11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
IPHAN – Instituto Histórico e Artístico do Maranhão. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1164 Acesso em: 21 dez. 2019

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Disponível em: https://www.rffsa.gov.br Acesso em: 23 dez. 2019
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SANTOS, Reinaldo Soares dos. O Encanto da Lagoa: O imaginário histórico-cultural como


elemento propulsor para o turismo cultural na Lagoa Encantada. Dissertação (Mestrado
em Cultura e Turismo) - Programa de Pós-Graduação em Cultura e Turismo, UESC/UFBA,
Ilhéus-Ba, 2004.

SWARBROOKE, John. Turismo sustentável: turismo cultural, ecoturismo e ética, vol.5.


trad. Saulo Krieger – São Paulo: Aleph, 2000. 240p.
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O BUMBA MEU BOI EM IMAGENS: AS NOVAS CONFIGURAÇÕES


IMAGÉTICAS E SUAS FUNÇÕES SOCIAIS

BUMBA MY BOI IN IMAGES: THE NEW IMAGETIC CONFIGURATIONS AND


THEIR SOCIAL FUNCTIONS

Alex Silva Costa


Doutorando em História e Conexões Atlânticas da UFMA e bolsista CAPES

Eixo 3 – Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: Na pesquisa discorremos sobre as novas configurações e representações por qual


tem passado o Bumba meu boi tendo como foco o estudo das imagens a partir de novos códigos
representativos, percebemos alterações nos valores simbólicos destes brinquedos populares
através de novas linguagens sociais por meio da inserção de novos elementos da indústria
cultural. A apresentação desse novo universo confeccionou um cenário diferente das décadas
passadas. Atualmente, essas manifestações culturais estão assumindo a dimensão dos
espetáculos artísticos, onde o contexto ritualístico das manifestações, muitas vezes, são
deixados de lado por justamente não se adequarem em muitos aspectos às normas e padrões de
uma especularização. Nesse sentido, destacamos a política de apropriação cultural
desenvolvida pelo poder publico para promover as manifestações folclóricas e incentivar o setor
turístico do Estado. Para isso utilizamos da fundamentação teórica do historiador Roger
CHARTIER que tralha com os conceitos de prática e representação social. Estudamos ainda
importantes teóricos que na área de memória, identidade, discursos e relações de poder, este
último tema foi analisado a partir do pensador francês Michel FOUCAULT.

PALAVRAS-CHAVE: Bumba meu boi. Imagem. Patrimônio. Imagem

ABSTRACT: In the research, we talked about the new configurations and representations that
Bumba meu boi has been going through, focusing on the study of images from new
representative codes, we perceive changes in the symbolic values of these popular toys through
new social languages through the insertion of new ones. elements of the cultural industry. The
presentation of this new universe created a different scenario from the past decades. Nowadays,
these cultural manifestations are taking on the dimension of artistic spectacles, where the
ritualistic context of the manifestations is often overlooked because they do not fit in many
aspects with the norms and standards of speculation. In this sense, we highlight the cultural
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appropriation policy developed by the government to promote folkloric manifestations and


encourage the State's tourism sector. For this we use the theoretical foundation of the historian
Roger CHARTIER, who deals with the concepts of practice and social representation. We also
studied important theorists that in the area of memory, identity, speeches and power relations,
the latter theme was analyzed from the French thinker Michel FOUCAULT.

KEYWORDS: Bumba meu boi. Image. Patrimony. Image

INTRODUÇÃO

Primeiramente queremos informar que pretendemos fazer uma análise sobre as


novas configurações do Bumba meu boi no tempo presente. Não estaremos deixando de lado o
seu passado, ao contrário, estaremos a todo tempo estabelecendo um contraponto entre o ontem
e o hoje, entre o tradicional e o atual com suas novas apropriações. Para isso, utilizaremos
imagens com método de análise, imagens vistas sob o seu viés social, e não por uma via
meramente estética. Trabalharemos com o conceito de imagem-objeto de Baschet que destaca
a ampliação dos usos e atributos das imagens, onde ela seria instrumento ativo com função e
usos definidos. Assim, a imagem seria partícipe dos ritos, gestos e comportamentos sociais.
Mas antes vamos conhecer um pouco sobre o Bumba meu boi, seu contexto histórico de
negação e depois valorização para depois debatermos suas representações atuais.

Vamos destacar de início que para Costa, o nosso Bumba meu boi seria uma
“manifestação folclórica da cultura popular brasileira caracterizada como folguedo. No seu
universo simbólico de representação, existem vários elementos mitológicos, religiosos e teatrais
que permitem à brincadeira uma posição de destaque no imaginário popular nacional” (COSTA,
2015, p.31). Após os oitocentos, principalmente durante o movimento modernista brasileiro
identificou-se a presença de manifestações ligadas ao auto do bumba boi em quase todas as
regiões do Brasil. Então a própria intelectualidade brasileira, em busca da formação identidade
cultural do nosso país, compreendeu que o Brasil foi formado por meio do processo mestiçagem
do branco, do negro e do índio.

Temos ainda uma questão interessante, que segundo Camêlo (2010) foi quando
Mário de Andrade, ao pensar as danças dramáticas brasileiras, observara que os jesuítas
misturavam orações, curas de pajé, mitos africanos para tornar mais eficaz à evangelização. E
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classificou o “Bumba meu boi como o primeiro ato nacional de temática lírica, por misturar
todos os grupos étnicos, mesmo se tratando de uma dança de origem ibérica e europeia. O boi,
um animal presente em todo o território, seria uma metáfora da nacionalidade” (CAMÊLO,
2010, p. 66-67).

E em meio a essa constatação, “o Bumba meu boi, ganhou destaque, por ter em sua
composição e estrutura ritualística, elementos representantes da miscigenação brasileira e por
se fazer presente, de alguma forma, em todo o território nacional” (COSTA, 2015, p. 125).
Fatores como a presença da manifestação folclórica em vários estados como Rio Grande do
Sul, Maranhão, Pará, dentre outros, que fizeram o folguedo ser considerado a “dança-mãe” do
folclore brasileiro na interpretação de Mário de Andrade. Para Corrêa (2012), que estuda o caso
regional, esse pensamento da intelectualidade causou o processo de construção simbólica do
Bumba meu boi por ser o representante da tradição e da cultura maranhense. Por isso, cremos
que os estes processos só foram possíveis porque uma parte da intelectualidade brasileira
preocupou-se em elaborar pesquisas e promover debates acerca da composição das nossas
tradições e de seus agentes promotores. Em parte, a cultura popular respondeu a muitos
pesquisadores como se deu a nossa constituição cultural e social. Assim, podemos entender
como nos transformamos ao longo do tempo e de que forma nos apropriamos das mudanças e
as incorporarmos no tempo presente.

Ê BOI... É TU O PROTAGONISTA?

Foto: Alex Costa, 2019.


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Temos na imagem, o boi em destaque como figura central, apresenta-se imponente,


colorido e com um detalhe bordado em seu couro no lombo esquerdo que nos chama a atenção,
que nada mais é que a representação da Última Ceia de Leonardo da Vinci. Só que em nosso
caso, a representação obedece aos critérios e formas do (a) artista que confeccionou o couro do
boi. Não podemos ler a imagem como faceta ou imitação da obra consagrada de Leonardo da
Vinci, porque cada imagem obedece a um código de linguagem, a uma realidade social que
reflete no lado artístico, onde o produto final é uma soma de sentidos conferidos a própria
imagem, por isso, não é aconselhável ler a imagem com simulacro de outra porque cada uma
possui uma estrutura identitária com códigos e sentidos próprios que lhe diferencia. Às vezes,
vemos as imagens bordadas nos bois e não nos atentamos a mensagem que querem nos
transmitir, focamos às vezes apenas no nome do grupo cultural ao qual o boi é representante,
que no caso, é o do Bumba meu boi de Juçatuba.

Além disso, temos outra questão a ser tratada que é o caráter religioso que a imagem
carrega, já que dentro do universo simbólico do Bumba meu boi há elementos religiosos, tais
como o catolicismo, que são bastantes presentes na manifestação por meio da devoção aos
santos e pelo pagamento de promessas. No entanto, ele se faz presente também no couro do boi
que é o protagonista central do folguedo, devíamos dar uma atenção maior a ele, muitas vezes
esquecemos que ele é o centro da manifestação, o auto do Bumba meu boi deixa isso bem claro,
então não são índios e índias, vaqueiros e amos os protagonistas, mais sim o boi mais estimado
da fazenda, aquele que tem sua língua retirada e fica agonizando até que Pai Francisco solucione
a questão; vejamos uma versão do Auto dramático do Bumba meu boi.

Mãe Catirina e Pai Francisco é um casal de negros e são escravos de uma fazenda.
Quando a esposa fica grávida, ela tem o desejo de comer língua de boi. Empenhado
em satisfazer a vontade de Mãe Catirina, Pai Francisco com medo de o filho nascer
com cara de língua de boi, corta a língua do boi mais estimado do rebanho, o preferido
do fazendeiro. Ao notar a falta do boi no rebanho, o fazendeiro pede para seus
subordinados irem a sua procura. Eles encontram o boi quase morto, e descobrem que
Pai Francisco foi quem deixou o animal naquelas condições e se escondeu na mata, o
fazendeiro manda então índios guerreiros procurarem o escravo para prendê-lo e
castigá-lo. O fazendeiro então convoca o doutor veterinário, mas não resolve o
problema do boi. Depois chama curandeiros e pajés, daí o animal se recupera e tudo
vira festa. Noutras versões, o boi já está morto e com o auxílio de um pajé, ele
ressuscita375.

375
As narrativas do Auto do Bumba meu boi possui variadas versões a depender da região do país, e até mesmo
da localidade regional; nesse sentido, ela é rica em interpretações, fato que pode causar certas interpretações
conflitantes. No caso, podem-se citar versões em que o boi é reanimado ou ressuscitado com a intercessão
milagrosa de São João.
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Para Costa (2015), o auto do Bumba meu boi constituiria uma representação cênica
com um enredo central, que assume dimensões e características próprias em cada localidade.
“Essas mudanças estão no plano cênico dos encenadores e organizadores da manifestação
popular, das funções e da representação. Por isso, possui, em cada região, especificidades
próprias ao imaginário local. No entanto, o tema central do auto é sempre mantido”
(COSTA,2015,p. 34). No entanto, percebemos então que a figura central do enredo é o boi, e
temos como coadjuvantes do auto Pai Francisco e Mãe Catirina, por isso, na representação
folclórica eles devem continuar a ser o centro das atenções, sabemos que todos os demais
personagens são importantes, mas o núcleo são eles três, e não poderíamos de forma alguma
ficar a apreciar apenas as coreografias e indumentárias dos brincantes sem antes voltarmos os
olhos a estes três personagens. O boi é o princípio aglutinador da brincadeira, ele deve por isso
ocupar sempre o lugar principal, e ser juntamente com o casal de negros o centro das atenções,
negligenciar isso, seria ir contra o próprio auto, ir contra o próprio enredo da manifestação.
Além disso, estas dramatizações se constituíam como pontos máximos da brincadeira, onde o
riso, o lúdico, a reivindicação e a crítica se faziam presente na encenação dos brincantes. Tais
aspectos alimentavam a indignação das classes ridicularizadas no auto popular.

Foto: Alex Costa, 2019.

Então como debatemos é difícil não levar em consideração a figura emblemática do


boi, o animal reverenciado na brincadeira de forma lúdica e teatral, quem dá vida a ele é o miolo
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do boi, que nada mais é que um uma pessoa que dança embaixo da estrutura montada. Esse
brincante, em específico, é uma pessoa que leva tempo para conquistar a delicadeza dos passos
e giros que dão forma e interpretação ao animal. A figura do miolo antes era quase que
exclusivamente masculina, mas com as novas configurações e com a crescente valorização da
figura feminina em todos os segmentos sociais, felizmente podemos ver mulheres sendo miolos
de boi. Assim, além de demostrar que a manifestação folclórica é aberta a novas configurações
de personagens, também podemos ver o quão ela se faz presente nos debates atuais da sociedade
brasileira para que não haja mais inferiorização de gênero, de forma que a valorização feminina
se expanda para o âmbito cultural.

Foto: Alex Costa, 2019. Foto: Alex Costa, 2019.

Além disso, destacamos que a figura do boi está inserida no contexto do catolicismo
popular de forma bastante forte quando é realizado o “batismo do boi”, que na verdade é um
ritual no qual um padre asperge água com benta o animal sagrado aos brincantes, para isso
também são escolhidos padrinhos e madrinhas para poderem colaborar e apoiar na realização
da brincadeira durante o período junino. Esses que são escolhidos antigamente eram pessoas de
destaque nas comunidades e que ajudavam como podiam a manifestação. Mas atualmente
vemos representantes de variados segmentos sociais que se fazem presente no ritual para
justamente se promoverem eleitoralmente por meio da manifestação folclórica, há tempos que
a política percebeu que pode angariar votos por meio da cultura popular. Assim, “inventam-se
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novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado
da demanda quanto da oferta” (HOBSBAWM, 1984, p.12-13). Neste caso, o que devemos estar
atentos é que quanto maior for o status cultural da brincadeira popular maior será a aproximação
de pessoas interessadas no seu poder simbólico, por isso, vemos novos escolhidos que possuem
posições sociais totalmente diferentes dos escolhidos em tempos passados. Neste caso, há uma
apropriação cultural como via de mão dupla onde o grupo folclórico ganha mais apoio
financeiro por meio da pessoa privilegiada enquanto que o padrinho ou madrinha escolhidos
ganham respaldo e notoriedade política ou empresarial dependendo do caso por fazerem parte
deste jogo de trocas.

Fonte: De Jesus / Estado do Maranhão/ Divulgação.


Disponível in: GONÇALVES, Luciléa Ferreira Lopes. A
imagem como texto: reflexões sobre a festa do bumba meu
boi por meio da fotografia. Revista Vozes dos Vales, 2014.

Em fim o que queremos demostrar por meio das imagens é que são os seus agentes
sociais e suas funções nas manifestações culturais para podermos compreender que a cada dia
a cultura popular se renova, ela não fica inerte ao tempo, constantemente se apropria de novos
elementos visando à construção de uma coisa nova. Por isso, utilizamos o conceito de
apropriação como via de mão dupla que, sob a perspectiva de Chartier seria o fenômeno das
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apropriações culturais, em que, a priori, há um choque entre dois elementos distintos, para que,
no final, haja a composição de um elemento novo com características de ambos os elementos
que se encontraram. Assim, concebe-se “o popular com a capacidade de apropriação e
reelaboração dos discursos dominantes, cujas marcas são expressas em suas práticas e
representações” (CHARTIER, 1990, p. 33). De forma que a todo instante devemos estar
vigilantes as novas configurações para que não sejam danosas as estruturas ritualísticas das
manifestações culturais, para que a espetacularização também respeite os fundamentos tidos
com tradicionais e fundamentais para o organismo interno de sua realização. Às vezes inovamos
tanto que acabamos perdendo o elo como passado, então tenhamos em mente, quem realmente
são os verdadeiros protagonistas da brincadeira para que possamos ter um maior cuidado para
como a sua representação, que fique evidente que são as personagens mais importantes no
enredo dramático do auto do Bumba meu boi.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao logo do texto tentamos analisar os usos e funcionalidades das imagens por meio
do conceito de imagem-objeto para podermos pensar as novas configurações e representações
do Bumba meu boi tendo como foco o estudo da imagem-objeto como código informativo para
evidenciar alterações nos valores simbólicos da manifestação popular por meio do processo de
apropriação cultural. Vimos que a cultura popular se apropria continuamente de novos códigos
e posturas sociais inseridos novos personagens, tais como a miolo feminino na manifestação
com o intuito de valorizar o debate atual sobre papel social da mulher na sociedade. Baschet
(1996) afirma que a imagem-objeto se faz necessário para discernir os fenômenos de crença e
participação ritual através dos quais ela autoriza uma forma de presença às forças invisíveis.
Por isso, “somos, assim, levados a ligar estreitamente a análise das duas relações que a
representação entretém, de uma parte, com seu protótipo e, de outra, com o elemento-objeto
que funda sua inscrição em um dispositivo ligado ao ritual e à crença” (BASCHET, 1996, p.7).
Então vemos que o rito e o enredo do Bumba meu boi estão constantemente inseridos em novas
apropriações e ressignificações sociais onde o que está presente por meio das imagens revela o
quanto devemos está atentos as novas mudanças, refletir o quanto elas são importante para se
as manifestações adaptem frente ao tempo presente, e saber aplicá-las sem esfacelar de forma
drástica seus rituais e suas representações sociais. Seria segundo Mestre Patinho “o novo no
velho sem molestar raízes”.
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Por isso, é que trouxemos ao debate a figura cênica e emblemática do boi, para
podermos pensar que ele é o centro da brincadeira, sua gênese, é por meio dele que todo o
enredo se desenvolve, então não deve está submisso a outros personagens, deve ao contrário,
mostrar-se imponente e saltitante por meio de seu miolo, que muita das vezes não é visto porque
está sempre a dar vida cênica ao animal. Mas que mesmo não sendo visto por muitos dos
apreciadores nos arraiais juninos, são eles (os miolos) e ele (o boi) que conferem sentido a
manifestação cultural por meio do drama estabelecido pelo desejo de grávida de Mãe Catirina
e pela temeridade de Pai Francisco de ter um menino deformado por não ter atendido ao desejo
da mulher. Se entendemos de fato, a narrativa do auto perceberemos de cara que após ter sua
língua extraída, o movimento para reanimar o boi grande e com as mais variadas tentativas,
inclusive a de veterinários, mas que o fim da estória só tem graça e alegria porque o boi volta a
sua condição de animal imponente que dança e gira sem para pelo terreiro, talvez devêssemos
entender que sem a alegria e a dança do boi, a brincadeira não mais a mesma.

REFERÊNCIAS

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Jérôme.L'image. Fonctions et usages des images dans l'Occident médiéval. Paris: Le Léopard
d'Or, 1996.p. 7-26 (tradução: Maria Cristina C. L. Pereira).

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preservado: eis o segredo que o Estado do Maranhão quer Revelar. In-Pergaminho
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São Luís: Café e Lápis; Ed.UEMA, 2012.

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cultural do Maranhão. São Luís- EdUEMA, 2012.

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sobre as novas configurações do Bumba meu boi e do Tambor de Crioula. São Luís: Editora
UEMA, 2015.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações; tradução de Maria


Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: BERTRAND, 1990.
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FERRETTI, Sérgio Figueiredo (Org.). Tambor de Crioula: ritual e espetáculo. 3º ed. São Luís:
Comissão Maranhense de Folclore, 2002.

HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições. In- A Invenção das Tradições/ organização de
Eric Hobsbawm e Terence Ranger. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

MARQUES, Francisca Ester de Sá. Mídia e experiência estética na cultura popular: o caso do
bumba- meu- boi. São Luis: Imprensa Universitária, 1999.

VAUCHEZ, André. O Santo, in LE GOFF, Jacques (dir.), O Homem Medieval. Lisboa:


Editorial Presença, 1989, 211-230.
Página 1724 de 2230

O SOL NASCENTE NO MARANHÃO: MEMÓRIAS E IMPACTOS DA


EXPERIÊNCIA IMIGRATÓRIA JAPONESA NA DÉCADA DE 1960.

THE RISING SUN IN MARANHÃO: MEMORIES AND IMPACTS OF THE


JAPANESE IMMIGRATION EXPERIENCE IN THE 1960S.
Hemelita da Silva e Silva
Mestranda em História / PPGHIS-UFMA
Eixo temático 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: O presente artigo objetiva analisar as memórias acerca da experiência imigratória


japonesa ocorrida no Maranhão, no início da década de 1960, com a chegada de duas levas de
famílias nipônicas ao estado para a formação de colônias em que se dedicariam a atividades de
agricultura e avicultura. A primeira colônia foi instalada no município de Rosário, a 74Km da
capital, São Luís, constituída por um grupo de 20 famílias japonesas, cerca de 111 pessoas ao
todo. A segunda colônia situava-se no povoado de Pedrinhas, as margens da BR 135 na zona
rural de São Luís, formada por 11 famílias, aproximadamente 89 pessoas. A vinda de imigrantes
para o estado foi iniciativa de Newton Barros Bello, pretenso governador do Maranhão, ao que
se consolidaria em 1961, que entre suas metas de governo estava a modernização da agricultura
do Maranhão, ocupação de terras devolutas e resolver o desabastecimento de produtos
hortifrutigranjeiros de São Luís, as colônias japonesas atenderiam estas demandas. A atração
de famílias nipônicas foi possível através de convênio com o governo japonês, sob mediação
do consulado do Japão no Pará e da empresa Jemis – Assistência Financeira S.A. (Kaigai Ijuh
Jigyodan), cuja sucursal de Belém era responsável pela burocracia e assistência aos imigrantes
das colônias japonesas dos estados da chamada Amazônia Legal que compreendia a região
norte e o Maranhão. Tendo em vista a complexidade deste movimento imigratório, através da
memória e metodologia da História Oral, apresento um breve estudo acerca das ambiguidades
da presença japonesa no Maranhão, bem como as subjetividades nos relatos que as fontes
possibilitam entrever, confrontando-as com fontes impressas, sobretudo, jornais e
estabelecendo diálogo com a bibliografia acerca da temática da imigração, atentando as
singularidades e como a imigração vai constituir a identidade dos japoneses, assim como, quais
foram os impactos da experiência para o Maranhão.
Palavras-chave: Imigração japonesa; Memória; Maranhão; Identidade

ABSTRACT: This article aims to analyze the memories about the Japanese immigration
experience that occurred in Maranhão, in the beginning of the 1960s, with the arrival of two
waves of Japanese families to the state for the formation of colonies where they would dedicate
themselves to agriculture and poultry activities. The first colony was installed in the
municipality of Rosário, 74 km from the capital, São Luís, consisting of a group of 20 Japanese
families, about 111 people in all. The second colony was located in the village of Pedrinhas, on
the banks of BR 135 in the rural area of São Luís, formed by 11 families, approximately 89
people. The arrival of immigrants to the state was an initiative of Newton Barros Bello, would-
be governor of Maranhão, to which he would consolidate in 1961, which among his government
goals was the modernization of agriculture in Maranhão, occupation of vacant lands and solving
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the shortage of products fruits and vegetables from São Luís, the Japanese colonies would meet
these demands. The attraction of Japanese families was made possible through an agreement
with the Japanese government, under the mediation of the Japanese consulate in Pará and the
company Jemis - Assistência Financeira SA (Kaigai Ijuh Jigyodan), whose Belém branch was
responsible for bureaucracy and assistance to immigrants from Japanese colonies of the states
of the so-called Legal Amazon that comprised the northern region and Maranhão. Bearing in
mind the complexity of this immigration movement, through the memory and methodology of
Oral History, I present a brief study about the ambiguities of the Japanese presence in
Maranhão, as well as the subjectivities in the reports that the sources allow to glimpse,
confronting them with printed sources, above all, newspapers and establishing a dialogue with
the bibliography about the theme of immigration, paying attention to the singularities and how
immigration will constitute the identity of the Japanese, as well as, what were the impacts of
the experience for Maranhão.
Keywords: Japanese immigration; Memory; Maranhão; Identity

INTRODUÇÃO
A imigração japonesa no Brasil tem seu início no século XX quando desembarcou
no Porto de Santos o navio Kasato Maru com imigrantes para trabalhar nos cafezais paulistas.
“O Brasil já tinha uma tradição de imigração quando chegaram os primeiros japoneses em 1908,
pois durante quase todo o século XIX recebemos estrangeiros” (CARDOSO, 1995, p.29).
Assim como os imigrantes europeus que formaram as primeiras colônias de povoamento no
Brasil, vide alemães, italianos e poloneses; tiveram dificuldades de adaptação e sentiram-se
enganados no que concerne as expectativas de prosperidade no Brasil e o tratamento dispensado
a eles pelos fazendeiros; também os japoneses enfrentaram adversidades ao defrontar a
realidade das fazendas cafeicultoras de São Paulo. Uma vez que nem todos os nipônicos eram
agricultores e chegaram ao Brasil num momento economicamente não muito bom para o café.

Rute Cardoso, ao analisar a estrutura familiar e a mobilidade dos imigrantes


japoneses, assinala o por alguns considerado fracasso dos primeiros nipônicos chegados ao
estado de São Paulo, no entanto, a autora destaca que quantitativamente pode-se considerar que
houve uma fixação relevante de imigrantes, levando em conta também a mobilidade para os
centros urbanos, a ascensão social e a melhor escolaridade da segunda geração descendente
desses japoneses. Por imposição da política imigratória do Brasil, a população nipônica que
veio ao Brasil deveria ser constituída por famílias. “Isso fez com que não se encontrasse uma
população de tipo “colonial”, isto é, com marcada predominância masculina e de idade adulta”
(CARDOSO, 1995, p. 18).

Ainda sobre os motivos para os possíveis fracassos da primeira geração de


imigrantes é interessante pontuar o processo de dificuldade dos nipônicos de se adaptar as
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condições que foram submetidos pelos fazendeiros, o motivo de fuga dos imigrantes está na
situação de pobreza vivida por eles “devido ao velho sistema de extorsão praticado nas fazendas
(armazéns), tanto quanto ao regime de baixa remuneração que os obrigava a buscar
sobrevivência nas culturas intercalares” (HANDA, 1987, p.56). Outrossim, os japoneses que
integravam a frente pioneira de imigração no Brasil desejavam o enriquecimento, acreditavam
que o Brasil fosse lugar de prosperidade e que conseguiriam juntar um montante de dinheiro
para voltar ao Japão. Logo, deram-se conta das dificuldades de sobrevivência no novo país, e
dos desafios de regressar ao país de origem.

As companhias de imigração que instalaram atividades variadas também procuravam


fixar o imigrante na terra, afastando deles o projeto de conseguir um montante de
renda para voltarem ao Japão. Aos poucos, muitos foram se apercebendo das
dificuldades de retornar e abandonando seus planos originais. Percebiam também que
o Estado japonês não tinha intenções de promover a volta dos trabalhadores. Viam-
se, assim, postos diante da necessidade de desbravar outros caminhos para uma
ascensão econômica (KODAMA, 2007, p. 201).

Destarte, apesar do intuito de regresso ao Japão, no final dos anos 1950 a faixa
etária da comunidade japonesa estava distribuída de forma que indicava sua adaptação ao
Brasil. Pois, “a maioria desta população já é formada por descendentes de segunda, terceira ou
quarta gerações, concentrada nos grupos de idade mais baixa” (CARDOSO, 1995, p. 20),
atestando a fixação real dos nipônicos.

A chegada do navio Kasato Maru, em 18 de junho de 1908 é considerada o marco


oficial da imigração japonesa para o território brasileiro, depois de ampla negociação, pois, os
japoneses e chineses durante muito tempo foram rejeitados pela política de imigração do Brasil
que buscava substituir os braços escravos impulsionando a entrada de europeus, pois, “a
preferência racial das elites estava explícita na ideologia do branqueamento e no projeto de
fazer o Brasil um país civilizado” (KODAMA, 2007, p. 198).

Porquanto, só em 1892 foi aprovada a Lei 97 em que o governo brasileiro permitiu


a imigração japonesa e chinesa para o Brasil. Em 1895, Brasil e Japão assinaram em Paris o
Tratado de Amizade; de Comércio e Navegação e deram início a negociação da imigração
japonesa para o Brasil. Em 1897 os dois países passaram a ter relações diplomáticas.

No entanto, registra-se a presença de nipônicos na região norte do país desde os fins


do século XIX, japoneses provenientes do Peru “atravessaram a Cordilheira dos Andes e
chegaram ao Acre, atraídos pela opulência do ciclo da borracha e fixando-se em Xapuri, Rio
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Branco e Belém” (HOMMA; FERREIRA; 2011, p. 170), pela procedência ficaram conhecidos
como Peru Kudari e são considerados os primeiros imigrantes a se estabelecerem na Amazônia.

No início do século XX a região amazônica recebeu um grande fluxo de imigrantes


japoneses, com a crise da borracha, logo nas primeiras décadas, “grupos de empresários, com
capital privado e estatal, fundaram companhias para promoverem investimentos na região”
(ISHIZU, 2011, p.39). O Estado japonês que mantivera uma política de isolamento até a
segunda metade do século XIX em que não era permitido a sua população emigrar, com a
passagem do que se convencionou chamar de feudalismo japonês, ou seja, o fim do xogunato e
a volta do poder ao Imperador, a Reforma Meiji, marcou mudanças econômicas e políticas
como “a promulgação de uma nova constituição â luz das constituições modernas ocidentais”
(KODAMA, 2007, p. 198) e de desarranjo da população camponesa empobrecida que não
possuía qualificação para as novas ocupações nos centros urbanos em que o país passava a
investir.

Os primeiros imigrantes japoneses em caráter de oficialidade da região amazônica


chegaram em 1929 a cidade de Tomé-Açu, no Pará. É importante destacar que os imigrantes
nipônicos que não se adaptavam ao seu destino original continuavam migrando, mudavam de
um lugar a outro procurando um local que atendesse as suas aspirações, pois, não é incomum
que muitos encontrassem dificuldades no novo lugar e muitas das suas expectativas fossem
frustradas. Há registros que em 1950 japoneses oriundos de Tomé-Açu, “motivados por razões
de caráter pessoal, algumas famílias migraram para a Paraíba, em busca de novos lugares e
também para desenvolver a agricultura” (KYOTOKU, 2009, p. 13).

A presença japonesa no Maranhão corresponde ao período de imigração do Pós-


Segunda-Guerra. O Japão, antes da guerra, uma potência com apetites imperiais no extremo
Oriente e em franca industrialização, cuja economia dependia de importações oceânicas e sofria
com os embargos infringidos pelos Estados Unidos. A ação do Japão foi “perigosa e revelou-
se suicida” (HOBSBAWN, 1995, p. 21), o ataque a base naval americana, Peal Harbor, tornou
a Guerra Total e a resposta americana de bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki
deixaram o país em profunda crise.

Sendo assim, entendo a imigração japonesa para o Maranhão como uma parte de
uma estrutura que fora esfacelada. A imigração e a desagregação são fenômenos consequentes
da guerra, portanto, podem ser compreendidos como oriundos de um trauma. Conforme o
pensamento de Hartog acerca dos acontecimentos cujas marcas são sentidas como “fendas”
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numa temporalidade. O tempo da imigração japonesa para o Maranhão é uma das brechas no
tempo de crise vivido pelos sujeitos que foram compelidos ao desarraigamento de seu país.

Ainda conforme o autor que reflete a respeito dos regimes de historicidade, ou seja,
na maneira como os sujeitos históricos se relacionam com o seu tempo e entre si, de acordo
com a dialética que Hartog estabelece com Reinhart Koselleck em pensar o presente como
inquieto e dilatado, e, portanto, não conseguir responder nem “preencher a lacuna, no limite da
ruptura, que ele próprio não cessou de aprofundar, entre o campo da experiência e o horizonte
de expectativa” (HARTOG, 2014, p. 56). Sendo a condição de imigrante oriunda de um trauma,
a história oral pode captar fragmentos de memórias que podem reduzir o hiato que há na relação
experiência do vivido, que por ser traumático é difícil de se descrever; e o presente,
transformando-os em narrativa histórica.

Destarte, o contexto maranhense era de uma economia essencialmente agrária que


sofria com o desabastecimento de produtos básicos nas feiras e mercados da capital do estado,
São Luís. Ancorado ao discurso do atraso agrícola do estado, o candidato ao Governo do
Maranhão, Newton de Barros Bello, pertencente ao grupo da figura de articulação no cenário
político, o senador Victorino Freire, cuja atuação no “comando político maranhense” (COSTA,
2006, p. 36) se convencionou chamar de vitorinismo; tinha entre suas metas de plano de
governo a instalação de colônia agrícola japonesa na cidade de Rosário, a aproximadamente
74km da capital, onde seriam produzidos hortifrutigranjeiros que fazia parte de um discurso de
que o estado precisava sair do atraso e retomar a prosperidade que teria sido vivenciada no
século XIX, quando foi agroexportador do algodão. A meta referente a colônia agrícola tão logo
seria executada ainda por seu antecessor e apoiador, o governador Matos de Carvalho.

E assim o fez, visto que em 10 de julho de 1960, 20 famílias japonesas


desembarcaram no Porto de Itaqui, aproximadamente 111 pessoas que chegaram a bordo do
navio Kasato Maru, procedente do porto de Yokohama, Japão. A imprensa destacou a chegada
dos estrangeiros: “Os japoneses trouxeram todo o material indispensável para os trabalhos de
Lavoura, inclusive maquinário, esperando-se venham a prestar relevantes serviços à terra do
deputado Ivar Saldanha”376 (JORNAL PEQUENO, 11 julho. 1960. p. 01). Os nipônicos foram
conduzidos a cidade de Rosário onde fora instalada a colônia intitulada Morro de Alcântara.

376
O terreno localizado no município de Rosário destinado a formação da colônia japonesa intitulada Morro de
Alcântara fora adquirido em compra pelo Governo do Maranhão do deputado Ivar Saldanha, o que a imprensa de
oposição especulava que houvesse interesses escusos na aquisição, sobretudo, quando os japoneses passam a
fazer queixas acerca da infertilidade daquelas terras, algo ainda ser discorrido neste artigo.
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Alguns meses depois, em 04 de janeiro de 1961, chegava ao Maranhão a bordo do


navio Argentina Maru, proveniente da cidade japonesa de Osaka, a segunda leva de imigrantes
nipônicos para compor a colônia denominada Muruaí, localizada no povoado de Pedrinhas, as
margens da BR 135, em São Luís. A criação das respectivas colônias marca a iniciativa oficial
do Estado de uma política de imigração japonesa no Maranhão.

O imigrante japonês no Maranhão

A experiência imigratória japonesa no Maranhão é oriunda de uma medida oficial


do Estado, pois, para a formação das colônias agrícolas: Morro de Alcântara (Rosário) e Muruaí
(Pedrinhas / São Luís), o governo do Maranhão, com articulação de Newton Bello e o cônsul
do Japão no Pará, fez convênio com o governo japonês.

Em relação as políticas de imigração de outros estados em que já havia o trânsito


de nipônicos, o Maranhão foi um dos últimos destinos dos orientais no Brasil. A região
amazônica, como já fora mencionada anteriormente, recebera as primeiras levas de imigrantes
nipônicos desde 1929 e no pós-guerra a imigração tomou novo fôlego, tanto que em 1957 foi
criada a empresa Jemis – Assistência Financeira S.A. (Kaigai Ijuh Jigyodan), com sede em
várias capitais como o Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Porto Alegre e Belém. É importante
ressaltar que cabia a sede localizada em Belém cuidar de todos os trâmites necessários e auxílio
aos imigrantes que ingressavam nas colônias dos Estados da Amazônia Legal, que abrangia a
região Norte e o Maranhão. Dessa forma, competia também a Jemis de Belém, “além da
preparação dos imigrantes no Japão, a recepção e encaminhamento dos imigrantes às colônias
agrícolas” (MUTO, 2011, p. 243).

Haja vista a implementação do projeto de colonização de terras do Maranhão por


imigrantes japoneses, durante o processo de preparação da infraestrutura das colônias, por volta
de abril de 1960, o cônsul do Japão no Pará visitou os locais que seriam destinados aos
nipônicos. A visita aguçou a imprensa que muito especulou acerca da criação de colônias
noutros municípios e de que o “cônsul japonês ficou maravilhado com os Campos de Perizes,
tendo declarado o seu propósito de encaminhar sugestão ao seu país, objetivando o exame da
possibilidade de aproveitamento daquelas terras na produção do arroz, devendo para isso ser
convenientemente adaptadas. (O IMPARCIAL, 07 junho 1960, p. 14).
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Todavia, não foi dado prosseguimento a política imigrantista japonesa no


Maranhão. O acordo entre os governos do Maranhão e Japão consistia em o governo nipônico
custear todas as despesas da viagem marítima dos imigrantes e ao Governo do Maranhão,
através da Secretaria de Agricultura do estado, cabia dar todas as condições indispensáveis a
instalação dos nipônicos como a concessão dos terrenos, construção das casas, disponibilizar
caminhonetes e os insumos necessários para que iniciassem atividades agrícolas e avicultura,
além de ajuda de custo para que se sustentassem até que pudessem se manter do próprio
trabalho.

A política de colonização adotada no Maranhão foi semelhante à do estado de São


Paulo, as frentes pioneiras de imigração japonesa de núcleos constituídos por famílias. Neste
padrão de imigração familiar, os japoneses tiveram de usar de estratégias para conseguirem se
encaixar as imposições do governo brasileiro e sair do país, “os moços daquela época, que para
emigrar ou tiveram de casar-se às pressas ou precisaram registrar moças como esposas por
simples formalidade” (HANDA, 1987, p. 9, 10).

Dessa forma, nas experiências de imigração nipônica não era incomum que alguns
dos orientais recorressem a casamentos fictícios. No Maranhão, registra-se um caso de arranjo
matrimonial, note o relato de um nipônico cuja família, oriunda de Kochi-Ken, precisou recorrer
a este artifício: Minha mãe legítimo ficou no Japão. Eu acha que teve algum problema entre
eles dois. Meu mamãe não sabia se vai ou não vai. Vai ou não vai. Aí meu papai tinha de
arranjar uma mulher pra poder vir pra cá. Tinha que vir casal377.

Outra engenhosidade por parte de alguns imigrantes consistia em se colocarem


como agricultores mesmo quando não tinham prática de lavoura, pois, uma vez que a proposta
da imigração era de formação de colônias agrícolas e que se contava com as técnicas japonesas
consideradas modernas de plantio. Contudo, mais uma vez, verifica-se uma estratégia de
enquadramento e tiveram de se aventurar a desempenhar o plantio.

Os primeiros nipônicos a se instalarem no Maranhão, os colonos de Rosário


enfrentaram dificuldades logo no início das suas atividades. Pois, “na extensão territorial do
município se encontram solos como: Latossolos Amarelos, Argissolos Vermelho-Amarelos,

Sadame Tanabe, japonês colono de Rosário, chegou ao Brasil em 1960, aos 14 anos de idade com família
377

composta pelo pai, Isamu; os irmãos, Mié; Sayoku, Shoji, e Yukio; a madrasta, Masumi e sua filha Keiko e avó,
Horano.
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Plintossolos e Solos indiscriminados de Mangues. O que deriva a situação de dificuldade no


plantio, fato esse enfrentado pelos colonos nipônicos” (SIQUEIRA JUNIOR, 2015, p. 43).

Sendo assim, as primeiras safras de Morro de Alcântara não atenderam às


expectativas causando contrariedade aos imigrantes, logo, depreende-se que para quem não
possuía prática de lavoura, a pouca fertilidade daquelas terras fosse um problema maior. Atente
à narrativa do filho de uma família de colonos de Rosário em que descreve os transtornos
enfrentados pelo pai.

Muito ruim porque não era nada do que tinham dito a minha família. Eles vieram
enganado, pois, quando chegaram em Rosário a terra era muito ruim. Disseram que
a terra era muita, que era produtiva, boa pra trabalhar, mas era cheia de pedra.
Muito ruim [...] aí assim, muito difícil pra meu pai porque aqui não conhecia nada.
Lá no Japão meu pai tinha uma empreiteira. Trabalhava na engenharia naval. Não
entendia nada de agricultura não. Aqui que teve de apender, na marra!378

Todo sentimento de engodo perceptível na memória do colono evidencia o quanto


emigrar é um projeto arriscado, pois, não era possível a estes sujeitos antever os insucessos, as
dificuldades e todos os desalinhos que a transferência para o Maranhão poderia lhes infringir.
Maria Tereza Schorer Petrone pontua o descontentamento dos estrangeiros de origens mais
diversas ao longo da história da imigração no Brasil que passaram por frustrações ao chegar no
país. A imagem difundida pelas empresas de imigração do Brasil de lugar com abundância de
terras, onde o trabalho não era árduo e de enriquecimento fácil.A autora também ressalta que
muitos imigrantes vinham para trabalhar no campo, mas foram recrutados de espaços urbanos.
“Descontentes, desocupados e marginalizados apareceram sempre em todas as correntes
imigratórias. Muito proletário sonhava somente em se tornar proprietário e dono de sua própria
força de trabalho, mas não tinham aptidão para o trabalho na terra” (PETRONE, 1998, p. 71).

Os colonos de Rosário, já iniciaram os trabalhos em tempos não favoráveis a


agricultura, em razão de terem chegado ao Maranhão no período de estiagem das chuvas, que
tem duração de seis meses. Antes de tudo necessitavam de preparar o solo para o cultivo, e
relatam que logo detectaram que a terra era ruim. Pedra. Muito pedra379.

378
Relato de Roberto Kumihito Tasaka, nascido no Maranhão em 1961, cresceu no curso da imigração de sua
família que chegou ao Maranhão em 1960 para compor a colônia de Rosário. A época da emigração, a família
Tasaka era composta pelos pais de Roberto Kumihito, o casal Shizue e Genzo Tasaka, o irmão Yatochi Lucas e o
tio (irmão de Genzo), Sumiaki.
379
Memória de Sadame Tanabe.
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Além do já mencionado problema de infertilidade das terras de Rosário e o tempo


da seca, outras vicissitudes tinham de ser sobrepujadas. Havia problema no abastecimento de
água, recurso primordial para o plantio e a sobrevivência; a localização da colônia no município
era de difícil acessibilidade complicando o escoamento da produção. Sem contar o primeiro
revés que implicava na sociabilidade, o desafio da língua diferente que impunha outros
obstáculos. Em virtude dos problemas supracitados, muitos japoneses deixaram a colônia logo
nos primeiros anos e o movimento de migração contínua até que encontrassem um lugar que
atendesse suas necessidades para a fixação, conforme a explicação a seguir.

Meu pai ficou muito insatisfeito e não demorou muito tempo em Rosário, foi o
primeiro a deixar a colônia. Só depois que saiu da colônia foi que o negócio começou
a melhorar e viram que papai saiu, os outros colonos começaram a ir embora de
Rosário também. Teve muito amigo de papai que saiu da colônia e mudou de ramo,
tombaram pro comércio. Largaram esse negócio de plantação que eles não sabiam.
Meu pai se botou para aprender a plantar [...] Papai não sabia nada de português
brasileiro. Não conhecia o dinheiro daqui. Os filhos, a gente também não falava
ainda. Papai levava o produto e o freguês era que pagava do jeito que queria. Se ia
num comércio comprar alguma coisa, era enganado, não tinha troco ou vinha pouco.
E assim foi até que a gente começou a estudar, os filhos a aprender o português, que
aí a gente traduzia pra papai e começamos a questionar o valor da mercadoria. Foi
que aí a gente começou a pegar fôlego e a coisa começou a melhorar380.

A segunda colônia, Muruaí, situada no povoado Pedrinhas, em São Luís, apresentou


problemas logo na chegada, a construção das casas ainda não havia sido concluída. Logo, não
tinha lugar de acomodação para todos os nipônicos. Sendo assim, até que se concluísse as obras,
algumas famílias dividiram a mesma casa.

A produção das duas colônias tinha como principal demanda as feiras e mercados
da capital. De início, a produção da colônia Muruaí também foi abaixo da expectativa, há que
se levar em consideração a fase de adaptação dos japoneses e suas técnicas as terras e os
recursos que dispunham. Assim como a instalação das granjas e seu funcionamento careciam
de um tempo de preparação.

No entanto, os colonos de Pedrinhas lograram algum êxito mais rapidamente, pelo


fato do solo da região ser mais fecundo, a água era abundante, inclusive com vários rios e fontes
nas proximidades que facilitavam a irrigação, a data da chegada dos nipônicos, em janeiro de
1961 no período chuvoso foi favorável, localização de maior proximidade dos mercados da

380
Memórias de Roberto Kumihito Tasaka.
Página 1733 de 2230

capital, proximidade da comunidade; o que facilitou na contratação da mão de obra local


quando a produtividade da colônia começou a crescer.

Os produtos hortifrutigranjeiros eram inicialmente vendidos para pequenos


comerciantes, posteriormente em abril de 1962 foi inaugurado em São Luís o Mercado
do Produtor. Um local que seria um meio dos produtores (maranhenses e japoneses),
venderem seus produtos sem a figura do atravessador, o que elevava o valor do
produto final (SIQUEIRA JUNIOR, 2015, p. 46).

Com o tempo, com o uso contínuo dos terrenos, o solo da colônia Muruaí foi se
desgastando e os nipônicos tiveram de espalhar-se por vários povoados daquelas proximidades
onde arrendavam lotes, e iam agricultando até que as terras da colônia tivessem novamente
adequadas ao plantio. As granjas também se destacavam na produção e empregou as pessoas
da região, o que sinaliza que a presença japonesa num espaço rural e cujas práticas agrícolas
eram de subsistência, assim como pesca e caça; de algum modo dinamizou aquele espaço.
Notadamente expresso no relato a seguir de moradora da região que tivera experiências de
trabalho com os nipônicos.

Kasunari381 tinha horta de tudo, plantava de tudo. O forte era o tomate, mas tinha
também o pepino, pimentão, melancia, repolho, muita coisa. A casa dele era na Santa
Fé e as hortas numas terras que ele tinha arrendado na entrada do Rio dos Cachorros.
E a granja do seu Miaki era enorme, ficava na Santa Fé também, tinha pra mais de dez
galpões, produzia muito. Tinha muitos empregados. Mas tinha japonês por todo canto,
no Aracaua, Anajatiua, Pedrinhas, Rio Grande e Rio dos Cachorros382.

Além deste relato demonstrar que os nipônicos estabeleceram uma relação de


trabalho com as pessoas da região, conformiza-se com Siqueira Júnior que ao escrever sobre a
trajetória da imigração dos japoneses no Maranhão cita que alguns orientais ocuparam o
povoado Santa Fé quando seus terrenos em Pedrinhas já mostravam sinais de desgaste
(SIQUEIRA JUNIOR apud SIQUEIRA JUNIOR, 2014, p. 47), entretanto, verifica-se tanto em
falas de nativos da região quanto dos próprios nipônicos de que a Santa Fé não foi a única
localidade para qual os asiáticos mudaram.

381
Memória de Joana Vilar da Silva, moradora da zona rural de São Luís, nas circunvizinhanças da colônia de
Pedrinhas, que tivera contato com os japoneses desde a infância na escola e trabalhou para os nipônicos
Kasunari, agricultor e Miaki proprietário de uma granja.
382
As comunidades citadas por Joana são situadas nas proximidades de Pedrinhas. O povoado Santa Fé não
existe mais, pois, compreende a área onde anos mais tarde se instalaria a empresa ALUMAR.
Página 1734 de 2230

É importante ressaltar também que o dinamismo econômico que a presença dos


estrangeiros trouxe a região, bem como as vivências de trabalho, foram marcadas por tensões e
conflitos. Japoneses e maranhenses de formação cultural, política e de relação com o trabalho
completamente distintas, passaram a conviver sob um regime trabalhista que nem sempre foi
harmônica, havendo choque. Como pode ser verificado na narrativa do lavrador local383 que
prestou serviço aos nipônicos:

Era um trabalho pesado. Não tinha carteira assinada, nenhuma ajuda de custo. Nós
trabalhava por diária. Cinco cruzeiros custava a diária e nós recebia por semana, o
que dava trinta cruzeiros por semana. Nós trabalhava também por temporada. Nós
plantava a horta e aí dava um tempo, quando era o tempo de replantar ou da colheita,
Kasunari chamava nós de novo. Plantava de tudo lá. O forte dele era o tomate, mas
nós plantava pimentão, pepino, repolho, melancia, nabo, rabanete, muita coisa. No
começo nós achava ele esquisito, tudo diferentão, falavam só o necessário mesmo.
Era eles lá e nós aqui. E quando tinha um outro japonês junto, nós nunca sabia que
eles sabia que eles conversava já partiam só pra língua deles. Depois acabamo
acostumando com o jeitão deles [...] mas eu aprendi muito com eles, só que não quis
mais continuar porque nada era certo, não tinha compromisso, não tinha carteira
assinada.

Outrossim, o que pode ser depreendido é que os nipônicos não foram instruídos a
adotar as legislações trabalhistas do Brasil, de modo que as contratações eram feitas de forma
temporária e conforme suas necessidades e sem carteira assinada. É interessante analisar como
os imigrantes organizavam-se socialmente e em como o Estado participava e colaborava com
as colônias. Desse modo, exporei no tópico a seguir os debates acerca da imigração japonesa
no Maranhão, visto que a vinda dos asiáticos partiu de uma iniciativa do Governo do Maranhão
e que as colônias ficaram sob os auspícios da Secretaria de Agricultura do Estado, o que causou
expectativas de modernização e dinamização da principal atividade do Maranhão, a agricultura.
Tão logo, a chegada dos orientais despertou curiosidades e especulações, assim como uma
divisão política, pois, havia quem discordasse e problematizasse a atração de estrangeiros, cujo
reflexo pode ser percebido nas publicações dos jornais.

O imigrante e o lavrador local


A imigração japonesa para o Maranhão é atravessada por ambiguidades. A entrada
dos estrangeiros no estado dividiu posicionamentos, ao que pude verificar, no meio político e,
por conseguinte, refletia no que era noticiado pela imprensa. E há que se admitir que o debate

Manoel Vilar da Silva, morador da zona rural de São Luís, que trabalhou nas hortas do agricultor nipônico,
383

Kasunari Horiuchi.
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era interessante, pois, ao analisá-lo, é possível tentar vislumbrar os interesses, se havia a


imprescindibilidade de atração dos nipônicos, e a partir dessa reflexão conseguir entender que
experiência imigratória esses sujeitos viveram no Maranhão, e, por conseguinte suas
singularidades.

O projeto de colonização japonesa nos espaços rurais considerados devolutos


objetivando modernizar e ampliar a produção agrícola dividiu a opinião pública no Maranhão.
A noção que o Estado passava a partir do que fora idealizado era de que os nipônicos usariam
suas técnicas e cultivariam culturas escassas no estado, em contrapartida o governo “daria lotes
de 50 hectares de terra para cada família (que só passariam a pertencer a elas após três anos de
trabalho), além de disponibilizar ferramentas agrícolas e uma ajuda de custo para os primeiros
meses” (AZEVEDO, apud SIQUEIRA JUNIOR, 2015, p.32). Como já fora mencionado antes,
muito especulou-se de que o programa de imigração iria se expandir por outros municípios do
estado e pelo interior da ilha de São Luís, o que não se efetivou.

Destarte, no que concerne ao auxílio que o Estado deveria prestar aos imigrantes
para o sucesso das colônias, o exame das fontes mostra impressões destoantes acerca do
assunto. O tratamento dado aos nipônicos causou uma dualidade: a entrada de japoneses em
oposição ao homem do campo maranhense, um demonstrativo disto são os jornais alinhados a
oposição ao governo que destacavam as benesses e o capital investido nas colônias dos asiáticos
em detrimento dos lavradores maranhenses.

Contudo, as colônias apresentaram problemas. Sobretudo, Morro de Alcântara que,


notadamente, não teve sua localização planejada sob o ponto de vista da produtividade e bem-
estar dos imigrantes para que tivessem condições de render boas safras. Sendo assim, a forma
de aquisição dos lotes de Rosário foi posta em discussão pela imprensa que chegava a presumir
interesses suspeitos para que aqueles terrenos fossem escolhidos para a acomodação dos
japoneses.

Mesmo sem “base-ball”, mesmo sem quimonos e ventarolas, mesmo enfim, sem
quaisquer dessa infinidade de coisas que o governo do Estado propiciou, de mão
beijada para os súditos de S. Magestade e Mikado. Os amarelos, por outro lado,
também se dizem ludibriados em sua boa fé agrícola, alegando que, ao contrário do
prometido, não lhes deram a terra recomendada para sua labuta. Afiança-se, aliás, nos
próprios círculos do Palácio dos Leões, que esse negócio de colônia agrícola japonesa,
como a de Morro de Alcântara, em Rosário, nada mais foi que uma negociata das mais
escandalosas. Terras sem valor agrícola algum, adquiridas pelo deputado Ivar
Saldanha ao deputado Freitas Diniz, ao preço de 300 mil cruzeiros, foram mais tarde,
para instalação das colônias nipônicas, vendidas pelo prefeito de São Luís ao governo
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do Estado, pela quantia de 540 mil cruzeiros (CORREIO DO NORDESTE, 1962, p.


02).

Outrossim, a nota do jornal está em consonância com a memória dos japoneses,


explicitada anteriormente, de decepção com as terras de Rosário. Entretanto, a infertilidade dos
lotes a que foram destinados não é a única queixa dos nipônicos. Visto que também cabia ao
governo dar meios de sustento aos nipônicos enquanto a produção das lavouras e das granjas
ainda não lhes dava rendimentos, e de fornecer os insumos de que precisavam para trabalhar,
há relatos de que alguns provimentos foram negligenciados e nem todas as famílias receberam
o que fora acertado quando atraídos para o Maranhão.

Foi ele que chamou. Ele deu pra gente a casa, o terreno e o caminhão. Teve
dificuldade com sementes. Muito difícil. Governo não deu as sementes. Deu arroz,
milho, feijão pra comer, mas semente pra plantar verdura, não. E ferramentas, papai
trouxe algumas384.

Em vista disso, a dispersão dos colonos de Rosário não tardou. Várias famílias
abandonaram seus terrenos e se mudaram para São Luís ou para outros estados. Apesar dos
japoneses se sentirem enganados, do ponto de vista de quem vivia no Maranhão, principalmente
quando a análise se volta para a perspectiva do homem do campo cuja situação, segundo
manifestada pelos jornais, era de abandono.

O lavrador maranhense nunca recebe a menor ajuda econômica do Estado, um favor


sequer do Poder Público. Leva uma vida dura, lutando heroicamente para sobreviver
à fome. Não sabem nem se existe essa tal de Secretaria da Agricultura. Mandou buscar
japoneses para núcleo agrícola que estabeleceu em Rosário. A eles a Secretaria de
Agricultura proporcionou toda a assistência econômica. O Maranhão tem seus
lavradores, gente humilde que vive e trabalha nos vales férteis do Mearim, cultivando
a terra, cobrindo-a de verduras, sem recursos financeiros, contando só com Deus e
coragem de prosseguir na árdua labuta. Ao nosso homem do campo, sem escola para
os seus filhos, sem conforto, subnutrido e abandonado pelo governo, se nega tudo, até
mesmo o direito de sagrado de viver. O nosso trabalhador rural, que calejou as mãos
mourejando na lavoura, que enfrenta toda sorte de necessidades, tem contribuído para
a grandeza nacional, embora só. O governo importa japoneses para a agricultura,
relegando ao abandono os nossos lavradores, prova o seu indiferentismo criminoso
pelo destino e aproveitamento do homem maranhense (JORNAL PEQUENO, 3
setembro, 1960, p. 03).

Ainda que a imigração japonesa tenha sido um empreendimento do governo cujo


empenho seria a tão já alardeada modernização da agricultura e abastecimento de São Luís dos

384
Sadame Tanabe
Página 1737 de 2230

gêneros escassos no mercado, e que por isso custavam caro a população, não se pode perder de
vista - mesmo que as colônias tenham perdido fôlego e que com o tempo os nipônicos tenham
sido deixados de lado e a empresa agrícola da imigração abandonada pelo governo – que de
algum modo os japoneses, ainda que não tenha sido como esperavam ou por muito tempo,
contaram com determinado investimento do Estado, através da Secretaria de Agricultura. E,
confrontando com a vida da população local para onde foram destinados não se pode negar a
distinção social entre os nipônicos e a comunidade da região. A“função veritativa” da memória
cuja ambição é a fidedignidade, no entanto, confunde-se rememoração e imaginação, mas “nada
menos que memória para garantir que algo aconteceu antes de formarmos uma lembrança”
(RICOUER, 2007, p. 26). Logo, a oralidade dá indícios através de falas como a desta moradora
da zona rural que conviveu com nipônicos desde a infância.

Só deles chegar na escola de carro, já era lago que chamava atenção de todo mundo
porque nenhuma criança, naquela região, os pais podiam ter carro. Hoje eu penso
naquela época e lembro que era apenas uma caminhonete velha que os pais
trabalhavam carregando verdura, mas que pra gente era muito, pois, ninguém tinha
nada daquilo385.

A memória acima mostra claramente a percepção de uma distinção social entre o


sujeito que fala de seu lugar social e da condição dos japoneses. A História Oral “possui a
capacidade de instrumentalizar canais de comunicação para a consciência histórica e cultural,
uma vez que pode abranger totalidade do passado num determinado corte temporal” (DEEHL,
2002, p. 116).

A colônia Muruaí de Pedrinhas causou tumulto na Câmara Estadual de São Luís


na votação do projeto de nº 47 cuja matéria tratava da abertura do orçamento de 1961 para
crédito especial de 500 mil cruzeiros que deveriam ser destinados a construção das casas da
colônia Muruaí, pois, alguns deputados tinham objeções quanto a instalação das colônias.

Mais uma vez a questão dos lavradores maranhenses aparece nas fontes, uma vez
que um dos deputados, Alves Gondin, abriu a discussão ao votar contra o projeto argumentando
que enquanto casas seriam construídas para japoneses, os lavradores do Maranhão não tinham
auxílio do governo. O debate envolveu outros parlamentares, alguns concordavam com o
deputado Gondin, caso do deputado Vera Cruz Marques que ainda acrescentava que a vinda de
japoneses para o estado só seria plausível se viessem na condição de técnicos para ensinar suas
práticas aos agricultores maranhenses. O deputado Bacelar mesmo declarando que concordava,

385
Relato de Joana Vilar da Silva.
Página 1738 de 2230

em parte, com os argumentos de Gondin, lembrou-lhes de que as casas da colônia deveriam ser
construídas, pois, fazia parte do convênio estabelecido com o governo japonês e estava posto
em contrato que ensejou a vinda dos nipônicos para o Maranhão. Outro deputado, Euzébio
Trinta, adensou a querela, pois, teria proferido as seguintes palavras: “acontece que os nossos
lavradores não são de nada. Eles não querem trabalhar. Só querem é ser deputados ou conseguir
um lugar de funcionário público” (AUXÍLIO aos lavradores. Jornal Pequeno. São Luís, p. 05,
20 nov. 1960).

Apesar do malgrado de uma minoria que protestou e fundamentou posicionamento


contrário ao projeto, a maioria votou por sua aprovação. Mas, de todo modo é importante
destacar estas tensões, pois, estas possibilitam avistar em que medida a presença japonesa no
Maranhão tocou, e de como foi sentida nos mais diversos espaços da sociedade.

Os dissabores da imigração
A experiência da imigração tem por característica a ambivalência de ser marcada
pela necessidade do imigrante de prosperar, de vencer na nova terra e o risco de insucesso.
Interessante que se compreenda o imigrante, conforme pondera Abdelmalek Sayad,
inicialmente por uma ordem epistemológica, há que se lembrar que um fenômeno que é
chamado e tratado por imigração por uma sociedade e lugar é em outra sociedade e lugar
chamado de emigração. Logo, são “como duas faces de uma mesma realidade” (SAYAD, 1998,
p. 14).

Desse modo, não se deve ignorar que a bagagem do imigrante trazia mais que seus
pertences pessoais, ferramentas e a vontade de trabalhar. Há que se dar importância a toda uma
carga de vivências e valores que traziam consigo, pois, emigrar para cada sujeito é a uma ruptura
com a estrutura a qual está inserido. Deixar um país no Oriente e passar a um estado situado
num país ocidentalizado, duas nações historicamente constituídas diferentes, culturalmente
avessas em que esses indivíduos formados em espaços regidos por leis e costumes tão distintos,
onde os códigos são outros, língua e escrita completamente diferente.

Maranhão e Japão viviam realidades distintas, enquanto o estado do Brasil, pobre e


essencialmente rural, esperava do Estado que se cumprisse a promessa de retomada da
prosperidade e de que passaria a viver o tempo do progresso, tempo esse em que os japoneses
seriam de grande contribuição para a modernização agrária que se dizia pretendida. Por outro
lado, o Japão atravessava a crise de toda ordem que o Pós-Guerra poderia deixar. Faltava
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emprego e alimento no país. A memória do imigrante oriundo de Kochi-Ken expressa bem a


situação: Aquele tempo não estava muito bom não, porque é logo depois da guerra, né?
Segunda Guerra Mundial, e até a comida tava difícil.

A crise do Japão após a Segunda Guerra Mundial era agravada pelo crescimento
populacional no país, milhões de japoneses que viviam na Coréia, Taiwan, Filipinas, Manchúria
e de outros territórios que os nipônicos ocuparam durante a guerra foram repatriados e
amontoaram-se aos que já estavam no país e sofriam a falta de alimento e desemprego.

Para o soerguimento do Japão, a liga dos países hegemônicos impôs regras de


organização política, que incluía uma ampla reforma agrária, cuja desapropriação das terras
para fins de distribuição afetou muitas famílias tradicionais que possuíam propriedades
agrícolas estabilizadas. Nessa fase de organização do caos, a penúria era tamanha para todos e
sem perspectiva para a maioria, que os caminhos indicavam a imigração em massa como
solução, ou, pelo menos, para atenuar o sofrimento daqueles que permanecessem no país.
Assim, o governo japonês passou a estimular a imigração como parte da política nacional, e em
razão dessa diretriz, empenhou-se em reatar os acordos bilaterais por meio dos agentes
intermediários, subsidiando todas as passagens internacionais dos passageiros além-mar
(MUTO, 2011, p. 239).

A complexidade da imigração e de tudo que a envolve, para além da transferência


de um país a outro, está na subjetividade dos sujeitos que viveram esta experiência e no
amálgama de serem estrangeiros, tanto no sentido de forasteiros e estranhos, num lugar
igualmente estranho. A história de qualquer movimento imigratório que já fora produzida, dos
mais diversos grupos étnicos que chegaram ao Brasil, quase sempre, sublinham a trajetória dos
grupos que venceram, daqueles que se fixaram e adaptaram-se, exaltando suas contribuições na
economia e crescimento do país, e ainda que as perdas dessas jornadas sejam contadas, dando-
lhes até uma atmosfera épica, de todo modo, fica na memória o ponto de vista da imigração que
deu certo. Todavia, “a história do imigrante e da pequena propriedade não é feita apenas de
sucessos, de crescimento de população, de aumento de produção e ocupação de áreas
estratégicas, etc.” (PETRONE, 1982, p. 72). A realidade podia ser bem mais difícil, no caso
dos imigrantes nipônicos no Maranhão, a experiência aponta para o contrário, em vez de
crescimento, claramente, houve um arrefecimento da população japonesa nas colônias.
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Os desafios que as colônias maranhenses ofertaram aos japoneses, expostos


anteriormente, sobretudo, aos colonos de Rosário, Siqueira Junior ressalta que influenciaram
nos modos dos estrangeiros, e que por não suportarem as contrariedades o índice de nipônicos
que cometeram suicídio era significativo (SIQUEIRA JUNIOR, 2015, p.44). Além da situação
aflitiva que as dificuldades nas colônias, casos de suicídios por motivos de outra ordem e
acontecimentos de fim trágico também ocorreram com os japoneses. Na colônia Muruaí, situada
em Pedrinhas, houve caso de um lavrador local assassinado por um jovem nipônico de 14 anos
que, após o episódio, suicidou-se.

Após exaustivas buscas nas matas de Pedrinhas foi encontrado à tarde de ontem o
corpo do japonês Kazuo Otsuka, de apenas 14 anos, o qual domingo último
assassinara com violenta carga de chumbo o brasileiro Leônidas Alves, quando ambos
trabalhavam em uma roça, crime que ocorreu após forte discussão entre o brasileiro e
o japonês [...] o japonês após o crime evadiu-se nas matas de Pedrinhas, levando
consigo certa quantidade de veneno [...] o japonês, no interior das matas ingeriu o
veneno morrendo imediatamente, sendo encontrado o seu corpo em estado de
putrefação (JORNAL PEQUENO, 05 abril, 1968, p. 06)

Casos de desentendimentos entre japoneses e maranhenses sinalizam de que nem


sempre a convivência fora harmoniosa, que a relação entre os nipônicos e os nacionais foi
marcada, também por tensões. Um dos agricultores que as memórias o distingue como dos
mais bem-sucedidos, identificado por Kasunari Horiuchi, foi assassinado na feira do bairro João
Paulo, em São Luís. O nipônico foi realizar cobrança a um barraqueiro que lhe devia “a
importância de doze cruzeiros, dívida de uns tomates que o nipônico lhe vendera” (O
IMPARCIAL, 08 dez, 1960, p. 01), na discussão, foi esfaqueado pelo feirante.

Na vida familiar dos nipônicos verifica-se conflitos, pois, como Boris Fausto bem
destaca entre as características específicas do imigrante é a sua posição de outro, e do
cruzamento de olhares do estrangeiro para o nacional e deste para o estrangeiro. O imigrante
que é visto com admiração e estranhamento dos nacionais, em alguma medida até desprezo, por
parte dos imigrantes havia sempre o sentimento de que estavam em condição de “gente
devotada ao trabalho” (FAUSTO, 1998, p. 26). Tratando-se dos japoneses que emigraram para
o Maranhão, faz-se importante ressaltar sua característica endógena, algo muito comum entre
as comunidades nipônicas imigrantes, de tentar manter a homogeneidade do seu povo. Sendo
assim, seus filhos eram incentivados a contraírem casamentos entre filhos de famílias
igualmente nipônicas.
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Destarte, as relações amorosas entre japoneses e maranhenses, em alguns casos,


provocaram pressões internas no âmbito familiar dos nipônicos. Os padrões de obediência e
dedicação aos mais velhos profundamente inculcados através da socialização japonesa”
(CARDOSO, 1995, p. 112;113) foram abalados por situações de contrariedade a
relacionamentos de seus filhos. O primogênito da família Tasaka, Athuyochi Lucas, que
chegara ao Maranhão com apenas dois anos de idade, por seus pais não serem de acordo com
seu namoro com garota maranhense, cometeu suicídio por envenenamento. O relato do irmão
conta que foi paixão. Morreu por causa de namorada. Tava apaixonado por uma mulher,
brasileira. Meus pais não queriam de jeito nenhum e ele se matou. Tomou veneno e se matou.

Uma vez que os padrões dos mais jovens de acatar o recomendado pelos mais
velhos são afetados em virtude de sentimentos pessoais que contrariavam o estabelecido. Dessa
maneira, os descendentes dos nipônicos viam-se divididos entre seus desejos pessoais e
imposições sociais. Norbet Elias frisa que esse tipo de conflito é comum nas sociedades
familiares, “um abismo quase intransponível para a maioria das pessoas implicadas” (1994, p.
17). Pois, conforme o pensamento do sociólogo, a vida em comunidade “mais livre de
perturbações” possibilita a satisfação pessoal.

Contudo, alguns nipônicos quebraram as exigências sociais ao desafiar a família e


tais imposições. De certo que nem todos enfrentaram a mesma resistência, mas há ainda os que
abdicaram não só da vontade pessoal como da própria existência.

Uma maneira que o imigrante adota como uma alternativa de manter ligação com a
terra natal é a de se organizar em associações e reunirem-se com seus pares, manter o idioma
na intimidade e ensiná-lo as gerações posteriores, visto que

a imigração representa um profundo corte, com vários desdobramentos, no plano


material e no plano imaginário. O corte não é sinônimo de apagamento de uma fase
passada, na vida individual, familiar ou de grupo, integrando-se pelo contrário ao
presente com muita força (FAUSTO, 1998, p. 14).

Nas colônias do Maranhão, os japoneses reuniam-se com frequência, vestiam-se


com as roupas tradicionais de seu país, preparavam sua culinária peculiar, e ainda que
desligados das práticas de budismo, a maioria mantém seu altar com tábuas onde os nomes dos
ascendentes são grafados e acendem incensos. São momentos de uma espécie de retorno ao
Japão.
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Os colonos de Rosário e Pedrinhas foram beneficiados pela lei de terras assinada


pelo governador José Sarney, de Nº 3015, de 1969 em que receberam a posse definitiva das
glebas de Morro de Alcântara as famílias: Watanabe, Senda e Tanabe; em Muruaí as famílias:
Saiki, Tanaka, Yakamoto e Tani.

A colônia de Rosário foi constituída em 1960 com vinte famílias, e a colônia Muruaí
por onze famílias em 1961. Sendo assim, o número de famílias que receberam a posse dos
terrenos reforça a noção de como os japoneses, logo nos primeiros anos, abandonaram os lotes
para os quais o governo os destinou. Dessa maneira, o fluxo migratório não cessou depois que
chegaram ao Maranhão, e os nipônicos permaneceram mudando, alguns para localidades no
entorno das colônias ou para outros municípios do estado e teve ainda os que foram para outros
estados.

Outrossim, houve também quem permaneceu ou se mudou para a capital, São Luís,
ocupando espaços rurais da cidade onde continuam agricultando, muitos mudaram
completamente de atividade e passaram a trabalhar no setor de comércio e serviços e alguns
tornaram-se funcionários públicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Destarte, a experiência imigratória japonesa no Maranhão sob o ponto de vista do
que foi proposto pelo governo cuja iniciativa de atrair os nipônicos para o estado não foi
consolidada, pois, apesar de as colônias terem sido preparadas, os japoneses instalados e
recebido algum investimento do Estado, tiveram problemas e enfrentaram dificuldades.
Estruturalmente, os terrenos não se mostraram adequados e o planejamento mostrou
deficiências.

A presença de nipônicos no Maranhão em terras, mesmo não sendo as mais férteis,


aprofundou o debate sobre a questão latifundiária do estado, essencialmente agrário, e da
situação do lavrador maranhense. Logo, não faltaram críticas a acomodação de estrangeiros em
colônias agrícolas. Entretanto, os nipônicos se sentiam enganados em relação as condições de
adversidade em que foram submetidos avessa as suas expectativas. Até o final da década de
1980 dispersão paulatina dos japoneses, que teve início nos primeiros anos das colônias, já era
completa. Assim, os remanescentes desta experiência que permanecem pelo estado, no plano
individual e não mais de uma vida em comunidade ou colônias, lograram algum êxito
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386 387
econômico, os nisseis e sanseis possuem boa escolaridade e há ainda um trânsito entre
Maranhão e Japão, pois, muitos fazem a digressão a terra do sol nascente para trabalhar no setor
fabril, juntar capital e retornam ao Maranhão para investir em suas atividades autônomas.

Em suma, culturalmente, de certo não permaneceram incólumes aos modos e


práticas locais, contudo, continuam ligados a minúcias de seu país, “retém vínculos com seus
lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado” (HALL, 2014,
p. 520), tem uma identidade hibrida, estão no entremeio de várias “casas” e não pertencem só
a uma especificamente. Como experiência, a imigração japonesa no Maranhão tem a
ambivalência de ter de uma memória coletiva cujas vivências individuais cheias de
subjetividades ajudam na tessitura de uma narrativa histórica marcada pela alteridade.

FONTES

JORNAIS E IMPRESSOS

Correio do Nordeste (1962)


Diário Oficial do Estado do Maranhão (dezembro / 1969)
Jornal Pequeno (1960, 1961, 1968, 1973, 1974)
O Estado do Maranhão (1973)
O Imparcial (1960, 1961, 1973)
Os Sete discursos – Plano de Governo do Governador Newton de Barros Mello – 1960

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Edufma, 2006.

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SP, Edusc, 2002

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indvíduos. Rio de Janeiro: Zahar: 1994

386
Primeira geração de descendentes de japoneses.
387
Como são conhecidos os descendentes de japoneses a partir da segunda geração.
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55 anos. São Luís: Clube de Autores: 2015.
Página 1745 de 2230

OS PRODUTOS TURÍSTICOS COMERCIALIZADOS NO CENTRO HISTÓRICO


DE SÃO LUÍS E A APLICABILIDADE DO CONCEITO DE TURISMO DE
EXPERIÊNCIA

THE TOURIST PRODUCTS COMMERCIALIZED IN THE HISTORICAL CENTER


OF SÃO LUÍS AND THE APPLICABILITY OF THE EXPERIENCE TOURISM
CONCEPT

Jully Aparecida Campelo Fonseca


Graduanda em Hotelaria pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Vitória do Lago Nascimento


Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Conceição de Maria Belfort Carvalho


Professora do departamento de Turismo e Hotelaria
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Doutora em Linguística e Língua Portuguesa

Eixo 3 - cidades, patrimônio cultural e sociedade

RESUMO: O trabalho analisa as estratégias adotadas pelos prestadores de serviços na


concepção dos produtos turísticos comercializados em São Luís, mais especificamente no
Centro Histórico de São Luís, um espaço marcado fortemente por diversas atividades culturais
como rodas de tambor de crioula, feiras/mostras, apresentações teatrais, city tour, dentre outras.
Buscamos entender se as atividades levam em consideração as dimensões do conceito de
experiência na sua formatação e estruturação, perpassando pelo planejamento turístico,
marketing de destinos, criatividade e desenvolvimento local. A análise detalhada do processo
de pesquisa envolveu, além de pesquisa bibliográfica, pesquisa de campo por meio da coleta de
informações junto aos empreendimentos turísticos localizados na Praia Grande em São Luís.
Desta maneira, o estudo pretende contribuir com novas reflexões, assim como aprimorar os
produtos e serviços locais, inter-relacionando os elementos de criatividade, inovação,
experiência e emoções. Os benefícios da pesquisa incidem na qualidade da visitação e no nível
de atratividade e competitividade do destino turístico no mercado.

Palavras-chave: Mercado Turístico. Competitividade. Experiência Turística.

ABSTRACT : The paper analyzes the strategies adopted by the service providers in the
conception of touristic products sold in specifically in the Historic Center of which is a space
strongly marked by many cultural activities such as tambor de crioula fairs / shows, theatrical
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performances, city tour, and others. We seek to understand if the activities take into account the
dimensions of the concept of tourism of experience when they are created and developed, going
through tourism planning, destination marketing, creativity and local development. The detailed
analysis of the process of the research involved, in addition to bibliographic research, field
research through the collection of information from venues related to the activity of
tourism,located in the neighborhood of Praia Grande. Thus, the study aims to contribute with
new reflections, as well as to improve the local products and services, interrelating the elements
of creativity, innovation, experience and emotions. The benefits of the research focus on the
quality of the visitation and on the level of attractiveness and competitiveness of the tourist
destination in the market.

Keywords: Tourism Market. Competitiveness. Tourism Experience.

1 INTRODUÇÃO
O turismo é uma atividade social que se ajusta constantemente às demandas do
mercado. Por se tratar de um ramo que lida diretamente com diferentes perfis de público,
frequentemente nota-se mudanças que buscam cada vez mais atender às necessidades dos
consumidores, e tais mudanças são notórias perante um público que tem diferentes motivações.
Essa crescente exigência de melhores produtos e serviços traz consigo transformações que
visam agregar valor ao produto e serviço ofertado. Entende-se por valor, os benefícios que virão
no consumo dos bens, pois ao idealizar uma viagem o consumidor passa pela fase do
planejamento, assim como ressalta Kotler e Keller (2006, p. 139); os consumidores do produto
turístico “[...] procuram sempre maximizar o valor, dentro do limite imposto pelos custos
envolvidos na procura e pelas limitações do seu conhecimento, mobilidade e renda.”, ou seja,
isso implica dizer que desde o momento da decisão, o gasto é algo pré-analisado no
planejamento, visto que o turismo é uma atividade geradora de bens e serviços como reforça
Lastres e Cassiolato (2003), pois envolve uma série de negócios como: hospedagem,
alimentação e o entretenimento em geral.

Dessa forma quanto mais benefícios forem agregados ao produto menor será a
percepção de gasto do cliente, pois ele poderá sentir que valeu a pena ter pagado por um bem
ou serviço que lhe proporcionou uma experiência agradável ou até mesmo memorável. Tal
processo é conhecido mercadologicamente como turismo de experiência, pois através desse
novo modelo de ofertar produtos e serviços é possível realizar a imersão do turista ao ambiente,
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criando assim uma relação que estabelece uma comunicação, podendo ser direta (verbal) ou
indireta (não verbal).

Assim, o turismo de experiência tem ganhando destaque nesse cenário, pois busca
inserir o turista ao novo ambiente, fazendo com que esse indivíduo não seja só reativo e passivo,
como também se torne ativo. Pensando nisso, o trabalho que se segue é uma análise do conceito
de turismo de experiência e suas quatro dimensões segundo a perspectiva de Pine II e Gilmore
(1999).

A presente pesquisa caracteriza-se como bibliográfica e de campo com caráter


exploratório, na qual se buscou analisar conceito de turismo de experiência e como ele se difere
do turismo tradicional, desse modo, o objeto se apresenta na perspectiva de: Analisar as
estratégias adotadas pelos prestadores de serviços na concepção dos produtos turísticos
comercializados em São Luís, especificamente no Centro Histórico da referida cidade, tendo
como linha teórico-metodológica a perspectiva de Pine II e Gilmore (1999), Kotler e Keller
(2006), Pezzi (2013), entre outros, partindo do pressuposto de que uma experiência turística
será memorável para o turista quando ele se percebe inserido em um espaço que contenha as
quatro dimensões do Turismo de Experiência – entretenimento, educação, escapismo e estética-
do contrário ele terá memórias apenas de fatos isolados e terá participado de uma simples
vivência.

Com o intuito de abarcar os objetivos propostos elaboramos uma


matriz/questionário, onde foram identificados trinta indivíduos, quinze em cada
estabelecimento que foram: uma sorveteria e um bar/café localizados nos Centro Histórico de
São Luís. A análise visa compreender como essa nova oferta turística está sendo percebida no
mercado. Os conceitos explorados durante a pesquisa foram os conceitos de turismo, em uma
visão geral da atividade, e da experiência abordada principalmente a partir de uma ótica
antropológica dos autores Pine II e Gilmore (1999).

2 TURISMO DE EXPERIÊNCIA
O termo turismo é uma palavra que deriva de tour que significa viagem circular, ou
seja, regresso ao ponto de partida. Para que haja o turismo é necessária a articulação de alguns
elementos que compõem essa atividade, essas são: os turistas, as pessoas que praticam o ato de
deslocamento, o local para onde o turista irá se locomover, os prestadores de serviços locais
(interação com o ambiente) e a motivação pela qual a viagem está sendo realizada. Pezzi (2013)
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contribui ressaltando o turismo sob um viés social porque além de caracterizar-se como uma
pausa no cotidiano, o turista passa por situações em que ele procura algo único, diferente que
alcance ou supere suas expectativas sobre a viagem que planejou.

Mediante a perspectiva de Pezzi (2013) o turismo apresenta-se na decisão do


indivíduo de sair do seu habitat de forma espontânea, criando assim a ruptura do rotineiro, a
fim de buscar novas sensações e atingir as expectativas geradas. Outros autores como De la
Torre Padilla (1997, p. 16), seguem com a mesma linha de pensamento e afirmam que o turismo
configura-se como:

Um fenômeno social que consiste em um deslocamento voluntário e temporário de


indivíduos ou grupos de pessoas, predominantemente por recreação, lazer, cultura ou
saúde, eles são movidos, a partir de seu local de residência habitual para outro, no
qual não exercem qualquer atividade lucrativa ou remunerada, gerando múltiplas
inter-relações da vida social, econômica e cultural.

Entretanto, vale salientar que para os estudiosos do tema, a conceituação do turismo


é complexa, pois a atividade turística pode ser conceituada de várias formas devido a sua
complexidade, visto que tal campo envolve diferentes facetas devido às relações entre os
agentes econômicos (as relações de compra e venda) culturais que provém a partir da troca de
conhecimentos e relações sociais, políticos, pois há um viés chamado politica do turismo que
tem como principal objetivo proporcionar o máximo de benefício aos interessados de uma
determinada região, o que por consequência afeta o desempenho da atividade turística local que
está intimamente ligado a fornecer estruturas, criação de estratégias, podendo assim ser
conceituada como:

Um conjunto de regulamentações, regras, diretrizes, diretivas, objetivos e estratégias


de desenvolvimento e promoção que fornece uma estrutura na qual não são tomados
às decisões coletivas e individuais que afetam diretamente o desenvolvimento
turístico e as atividades diárias dentro de uma destinação (GOELDENER; RITCHIE;
MCINTOSH, 2002, p. 294).

O ambiental, também conhecido como Ecoturismo, que é caracterizado pelo


contato que o turista tem em ambientes naturais de forma sustentável e responsável, podendo
assim ser conceituada como:
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Ecoturismo é o segmento da atividade turística que utiliza, de forma sustentável, o


patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma
consciência ambientalista por meio da interpretação do ambiente, promovendo o bem-
estar das populações (BRASIL, 2010, p. 17).

E por fim podemos destacar a fenomenologia, essa tem um caráter mais relevante
para o presente trabalho, pois eleva o conceito de turismo, por se entender que a atividade
turística é transformadora do meio.

O turismo se destaca como algo peculiar porque nele o consumidor-turista tem que
se deslocar até o produto a ser consumido, o ‘lugar turístico’ que sofre transformações
para poder atender a essa atividade. Assim, a atividade turística possui relação direta
com o espaço geográfico (seu principal objeto de consumo) (CRUZ, 2000, p. 21).

Observa-se então que o conceito de turismo pode ser analisado por vários ângulos,
entretanto quando analisado pela perspectiva fenomenológica, se é possível discernir a
atividade turística da mera mercadoria. Embora seja indiscutível que a atividade turística gera
capital monetário para os prestadores de serviços envolvidos no processo, desde os restaurantes,
meios de hospedagem, aeroporto, agências de viagem, até os prestadores de serviços locais, que
oferecem produtos artesanais, é relevante analisá-lo não apenas nessa perspectiva, pois de
acordo com Vieira e Souza (2010, não paginado) “O Turismo na visão fenomenológica
extrapola sua faceta mercadológica [...]”, pois quando se para de analisá-lo apenas sob um viés
de negócio econômico, compreende-se que ao ser vendido um pacote de viagem, por exemplo,
está se vendendo “experiência humana”.

Quando se trata de experiências humanas, é preciso destacar que experiência pode


ser conceituada apartir de vários ângulos – sociológico, psicológico, antropológico – no que se
refere à experiência do ponto do vista psicológico, o termo é conceituado como “[...] um
conhecimento adquirido no mundo da empiria, isto é, em contato sensorial com a realidade [...]”
(AMATUZZI, 2007, p. 9). O social vivencia situações diferentes ou incomuns, as quais podem
provocar sensações de incômodo ou de prazer (TURNER, 1974; PEZZI; SANTOS, 2012).

Nota-se então que a semelhança entre elas é que todas estão correlacionadas a
memórias e a sensações, por isso que apesar de existirem fatores que possam interferir no
processo da atividade turística os autores Dunn Ross e Iso-Ahola (1991, não paginado) reforçam
que fatores sociológicos e condições socioeconômicas influenciam sim na conduta do turismo,
mas que eles não são determinantes na qualidade das experiências, logo, “[...] O que importa
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são as cognições e sentimentos do indivíduo sobre a experiência que está sendo realizada.
[...]”388.

Com o objetivo de potencializar esse deslocamento os empreendimentos hoteleiros


e turísticos estão buscando cada vez mais inserir o viajante em um novo contexto, usando o
turismo de experiência como diferencial competitivo. O turismo de experiência se difere do
turismo tradicional que conhecemos, pois ele busca inserir o turista ao novo ambiente,
tornando-o protagonista da sua experiência, através de emoções e sensações.

Dessa forma, esse novo olhar sobre as experiências turísticas vem inserindo o turista
no meio ao qual ele se torne um sujeito ativo, fazendo-o desenvolver reflexões, análises e
conceitos sobre o “choque” que sofreu. Através desse pensamento podemos entender que no
dia a dia a rotina é algo que faz parte de nossas vidas e em cada ambiente possuímos papéis,
seja na escola ou trabalho, esses papéis sociais fazem parte de quem nós somos. Mas quando
saímos dessa rotina, e somos introduzidos em um novo meio adquirimos um novo papel social
que será moldado a partir das experiências que serão sofridas ao longo de um dado período.
Graburn (1989) salienta que ao voltarmos para os nossos papéis sociais, esse regresso virá com
a sensação de “shock cultural”.

A denominação utilizada pelo autor é empregada para explicar o encontro entre as


culturas, à troca do contato humano, da forma de se relacionar diferentemente daqueles que
caracterizam a vida cotidiana do indivíduo. Turner (1986) caracteriza esse processo como
“drama social”. Tal processo traz consigo o rito de passagem, visto que o termo está
intrinsecamente ligado à transformação do estranho em algo familiar e ao mesmo tempo o
estranhamento de algo que já se é familiarizado.

Os autores ainda ressaltam que as experiências são choques de dor ou prazer


vivenciados por um determinado indivíduo, este por sua vez tentará encontrar um sentido para
o choque que sofreu, buscando assim um significado ou o ressignificado do ocorrido, e apartir
disso o indivíduo chega ao desfecho do que era esperado e o que foi vivenciado. Em caso de
não ocorrer o shock cultural, se conclui que o episódio turístico foi ineficiente e para chegar a
um desfecho positivo é preciso que todas as etapas do rito de passagem tenham sido atendidas.
Van Gennep (2011) propõe três fases, essas são: a ruptura ou separação, margem ou liminar e
a reagregação ou reincorporação.

388
Extraído da versão original: “[…] What matters is the individual's cognitions and feelings about the experience
being undertaken. […]” (DUNN ROSS; ISO-AHOLA, 1991, não paginado).
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A ruptura ou separação é o marco inicial, onde o indivíduo se afasta do que lhe é


comum para adentrar em uma nova fase o afastamento assim lhe permitindo o contato com o
desconhecido. A segunda fase é a margem ou liminar, nela o sujeito se encontra completamente,
perdido da sua rotina, momento da qual o sujeito se envolve plenamente no seu outro “eu” por
um dado período de tempo. A reagregação ou reincorporação caracteriza-se como o momento
de voltar ao “eu” anterior, e buscar o desfecho desse processo após o shock cultural.

Entende-se que o rito de passagem, no que diz respeito ao turismo de experiência é


composto por um momento prévio à viagem, onde o sujeito ainda está inserido no cotidiano,
ele está buscando agências de viagem, pesquisando possíveis lugares, ou seja, o momento do
planejamento. Logo em seguida temos o não cotidiano, onde o indivíduo está em viagem,
perpassando por novas emoções e se conectando com o seu outro “eu”, a fim de dá um novo
significado para experiências passadas e gerar novas, o sujeito é forçado antes do fim da viagem
se encontrar com o seu “eu” anterior, e em meio a isso, se tem o confronto das expectativas
geradas na fase do planejamento. Por fim, o regresso ao cotidiano, onde as experiências vividas
se penduram através das memórias, conversas e fotos.

Figura 1 – Rito de passagem

Fonte: Pezzi (2013).

Dessa forma Pine II e Gilmore (1999, p. 31) afirmam que “[...] a oferta de
experiência acontece quando uma empresa usa intencionalmente os serviços como um palco e
os produtos como suporte para atrair os consumidores de forma a criar um acontecimento
memorável [...]”.

Destacam também que os serviços conhecidos como commodities, que podem ser
armazenados, atrelados aos serviços, não são mais suficientes dentro de um mercado
competitivo; é preciso se adequar às necessidades dos clientes e superar suas expectativas.
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Mediante a essas concepções, entende-se que o turismo está intimamente ligado ao fato de
proporcionar as experiências, e para um melhor entendimento recorre-se a Pine II e Gilmore
(1999, p. 31) que analisam o turismo de experiência a partir de quatro dimensões:
entretenimento, educação, escapismo e estética.

As quatro dimensões da Economia da experiência constituem pilares essenciais na


construção do conceito de Turismo. É importante ressaltar que “[...] a primeira dimensão,
entretenimento, trata-se dos eventos nos quais as pessoas participam, geralmente, de forma
passiva, no entanto, [...] o envolvimento ativo é diretamente proporcional à percepção de
experiência memorável.” (PEZZI, 2013, p. 45). O referido autor complementa classificando o
entretenimento como aquele onde se “exige que as ofertas turísticas capturem e ocupem a
atenção dos turistas. As questões propostas pelos autores buscaram entender que os turistas
gostaram de assistir, se foi divertido e se foi cativante” (PEZZI, 2013, p. 47).

Outro fator considerado preponderante no desempenho do turismo de experiência


é a educação. Nesse contexto essa palavra assume uma importância determinante, Pezzi (2013,
p. 47) salienta que “[...] a participação ativa do indivíduo pode realmente incrementar seu
conhecimento ou desenvolver suas habilidades, os eventos educacionais devem engajar de
maneira ativa a mente quando se trata de educação intelectual [...]”. Além disso, o autor
acrescenta que:

Esta dimensão exige que as ofertas turísticas, capturem e ocupem a atenção dos
clientes para enriquecer a experiência. Os autores utilizaram as questões que
buscavam compreender se o turista havia desenvolvido maior experiência,
aprendizagem, curiosidade e melhora nas habilidades (PEZZI, 2013, p. 47).

O escapismo é a terceira categoria analisada por Pezzi (2013) e é decorrente das


experiências em que o “indivíduo envolve-se ativamente, ficando completamente imerso no
evento. Busca viver um papel diferente da sua vida cotidiana, podendo vir a ser, por alguns
momentos, uma pessoal, ou um personagem” (PEZZI, 2013, p. 45), em outras palavras o
referido autor complementa a partir do princípio que:

A dimensão que aborda o escapismo trata do envolvimento ativo do indivíduo e sua


plena imersão no evento. Tem relação com a busca momentânea das pessoas por outro
papel, diferente do que é comumente vivido no seu dia a dia. Isso porque, desejam,
durante o período do evento, suspender certas regras que conduzem normalmente as
suas vidas. (PEZZI, 2013, p. 79).
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A quarta categoria da economia da experiência aplica-se às situações em que o


contato visual é protagonista. “em que o indivíduo busca ao estar lá, olhando e apreciando, de
forma contemplativa e, portanto, nesse caso, o nível de envolvimento ativo, não é tão
determinante para a percepção da experiência memorável.” (PEZZI, 2013, p. 45). Trata-se da
estética, ou seja, o contexto que possibilita ao turista se envolver na experiência a ponto de
perceber quais são os “atrativos criados” e “herdados”. Nessa direção, Pezzi (2013, p. 47-48)
aponta:

Estética: entende-se que esta dimensão influencia a experiência em função das


características ambientais e da arquitetura diretamente envolvidas na ação do turista.
As questões buscam entender a harmonia, detalhes do design e do prazer aos sentidos.
Eles passivamente apreciam, ou são influenciados, não importando o nível de
autenticidade do ambiente de destino. Tais experiências são passíveis simplesmente
por deixá-los estar lá.

A principal proposta do autor ao ressaltar o termo memória inserido no turismo de


experiência é a sua particularidade como elemento essencial, pois ela é formulada de acordo
com as condições como as outras dimensões destacadas foram apresentadas aos turistas e se
estavam articuladas atribuindo ao proprietário e funcionários do estabelecimento a criatividade
para apresentar esses produtos turísticos a quem está visitando o Centro Histórico de São Luís,
podemos observar que (PEZZI, 2013, p. 48-50):

A memória é uma variável indispensável para que haja a possibilidade de


compreender os elementos capazes de tornar uma experiência memorável, na
percepção do turista [...]. O ser humano não possui um mecanismo que arquiva,
armazena e recupera dados de maneira tão fiel quanto a de um computador. Nossos
arquivos ou informações são gravados em “pastas mentais” que acabam se
misturando. Além disso, partes desses arquivos estão espalhadas em diversos lugares
do cérebro, fazendo com que as recordações sofram interferência de uma ampla gama
de variáveis, internas e externas.

Atendendo a essa nova disposição, os empreendimentos hoteleiros e turísticos estão


buscando inserir o viajante nas quatro dimensões do turismo de experiência, usando-o assim
como diferencial competitivo. Pine II e Gilmore (1999, p. 39) afirmam que “[...] a oferta de
experiência acontece quando uma empresa usa intencionalmente os serviços como um palco e
os produtos como suporte para atrair os consumidores de forma a criar um acontecimento
memorável [...]”. E destacam que os serviços conhecidos como commodities, ou seja, produtos
físicos que podem ser armazenados, atrelado aos serviços, não são mais suficientes dentro de
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um mercado competitivo, é preciso se adequar as necessidades dos clientes e superar suas


expectativas.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Através da metodologia usada no presente estudo, foi possível fazer a diferenciação


do turismo tradicional e turismo de experiência, onde a primeira se trata de uma atividade que
envolve o deslocamento de pessoas, mas não visa gerar valor aos produtos turístico ofertado no
mercado, e a segunda que tem como principal objetivo tornar o turista protagonista da sua
própria viagem, inserindo-o no ambiente e proporcionando assim momentos únicos e
memoráveis em que o indivíduo buscará um significado para a então experiência sofrida.

Com o objetivo de demonstrar na pratica como tal tendência funciona, foi realizado
a aplicação dos questionários sobre a perspectiva das 4 dimensões do turismo de Pine II e
Gilmore (1999), explorados no presente estudo, no Centro Histórico da cidade de São Luís em
2 empreendimentos com características de A&B, sendo um bar/café e uma sorveteria, e ambos
dos estabelecimentos carregam consigo suas particularidades, e dentre elas podemos destacar
suas arquiteturas, decorações e ambientação.

No caso do bar/café, sua edificação possui paredes rústicas, da formação original


que se mantém conservadas, e que chamam a atenção dos visitantes ao local, além disso, o
estabelecimento tem uma decoração bem maranhense, e esta se compõe desde a bandeira do
estado, até os objetos artesanais produzidos por artistas locais que são usados na decoração das
mesas. A iluminação do local também é agradável e estratégica, pois foi pensada para valorizar
algumas paredes da estrutura original. E por fim temos um palco onde é feito apresentações ao
vivo por parte de artistas regionais diversos. No que se refere à sorveteria, sua ambientação é
extremamente confortável, sua composição apresenta mesas normais e mine puffs feitos de
pallet, as paredes são decoradas com quadros e placas, mas não trazem nenhuma referência
local, entretanto sua fachada tem traços da estrutura original o que chama a atenção.

Durante o processo investigativo, quinze (15) pessoas foram entrevistadas em cada


um dos estabelecimentos, Além das perguntas básicas como: idade, cidade de origem e
identidade de gênero, foram feitas perguntas como: o motivo da viagem; se as expectativas
foram ou não atendidas; se o indivíduo conseguiu sair da sua rotina e o quão marcante foi a sua
visita ao empreendimento, dentre outras.
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Através do gráfico pode-se perceber que a cidade natal dos turistas contemplou as
cinco regiões do Brasil e uma turista de fora do país, mais especificamente Buenos Aires,
Argentina, podem notar também que a maioria dos turistas, 46,66% vieram da região sudeste,
enquanto os turistas que vieram das regiões norte, nordeste, centro-oeste, sul e outros países
empataram, com 3,66%:

Gráfico 1 – Regiões do Brasil – cidade Natal dos participantes

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Uma das perguntas da matriz questionava o “motivo da viagem” e de acordo com


os dados coletados, das quinze pessoas entrevistadas na sorveteria a maioria respondeu que veio
a São Luís por conta de trabalho e a uma pequena porcentagem veio realizar atividades que se
encaixaram em “outros”, devido sua singularidade. Os números dos gráficos representam a
quantidade exata de turistas que participaram da pesquisa e estavam frequentando os referidos
estabelecimentos, neste primeiro caso, na sorveteria:
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Gráfico 2 - motivo da viagem dos turistas que frequentam a sorveteria

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Da mesma forma, buscamos analisar a percepção dos turistas que visitaram São
Luís, especificamente no estabelecimento que identificamos como bar/café e nele observamos
as seguintes informações: a maioria das pessoas respondeu que a motivação para vir à ilha foi
a trabalho assim como na sorveteria, uma maior quantidade de pessoas em relação à sorveteria
frequentaram esse empreendimento e vieram à cidade por conta do turismo, o quesito férias
apareceu em menor proporção em relação à sorveteria, enquanto “estudos” e “outros” se
apresentaram em quantidade um pouco maior do que na sorveteria.

Gráfico 3 - motivo da viagem dos turistas que a frequentam o café

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Tabela 1 – Respostas referentes à percepção dos turistas sobre as Dimensões do Turismo de


Experiência
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Estabelecimento Sorveteria Café

Respostas Sim Não Total Sim Não Total


Entretenimento 14 (93,33%) 1 (6,66%) 15 (100%) 13 (86,66%) 2 (13,33%) 15 (100%)

Educação 7 (46,66%) 8 (53,33%) 15 (100%) 12 (80%) 3 (20%) 15 (100%)

Escapismo 14 (93,33%) 1 (6,66%) 15 (100%) 13 (86,66%) 2 (13,33%) 15 (100%)


Estética I 14 (93,33%) 1 (6,66%) 15 (100%) 13 (86,66%) 2 (13,33%) 15 (100%)

Estética II 1 (6,66%) 14 (93,33%) 15 (100%) 6 (40%) 9 (60%) 15 (100%)

Fonte: Tabela elaborada pelas autoras.

Entretenimento

A primeira pergunta referente às quatro dimensões do Turismo de Experiência da


matriz tinha como foco o entretenimento nos dois estabelecimentos: “O entretenimento no
estabelecimento correspondeu às suas expectativas?” na sorveteria 93% respondeu que sim e
apenas 6% respondeu que não. Quando questionamos o por quê de responderem que não o
turista afirmou que não se sentiu surpreendido, não encontrou nada de diferente em relação à
sua cidade natal. Enquanto isso no bar/café observamos que uma pessoa a mais respondeu que
o entretenimento não chamou tanto a sua atenção como esperava, a porcentagem de turistas que
respondeu positivamente a esta dimensão se manteve alta em 86%.

3.2 Educação

Para a segunda dimensão que foi observada na sorveteria e no bar/café elaboramos


a seguinte pergunta: “Você aprendeu algum valor cultural, alguma curiosidade sobre a cidade
ao visitar este empreendimento?”. Dos turistas que estavam na sorveteria, 46% respondeu que
sim aprenderam curiosidades relacionadas à gastronomia, cultura e história de São Luís,
enquanto 53% respondeu que não aprenderam nada. No café os dados demonstraram que a
maioria, 80% dos turistas aprenderam algumas coisas sobre a ilha, relacionadas à história,
cultura, gastronomia, música, arquitetura, entre outros. Esse resultado se deve pelo fato de que
no bar/café as dimensões do turismo estavam bem mais articuladas do que na sorveteria.
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Escapismo

A pergunta que se adequou para esta categoria foi: “Você conseguiu sair da sua
rotina?” os resultados foram positivos nessa parte da pesquisa porque a maioria respondeu que
sim, tanto na sorveteria quanto no café. No primeiro empreendimento, 93% respondeu que sim
e no segundo, respectivamente, 86% respondeu que sim. Ao questionarmos os turistas que
responderam “não”, observamos um padrão de respostas que girava em torno de respostas
como: “ a cidade se assemelha a minha, inclusive o design do local, então não me senti longe
da minha rotina”, afirmou um turista de Olinda.

Estética

Esta dimensão contou com duas perguntas desenvolvidas na matriz e identificamos


como “Estética I” e “Estética II”:

Estética I: “Algo lhe chamou atenção na estrutura local?” 93% dos turistas que
estavam na sorveteria respondeu que sim e afirmaram que ficaram encantados com a estrutura
com influências europeias, cores agradáveis; enquanto no bar/café o percentual ficou em 86%.

Estética II: “Foi possível aprender algo através da observação do ambiente?” nesse
último quesito verificamos que apenas 6% afirmou ter aprendido algo relevante sobre São Luís
visitando a sorveteria, enquanto no bar/café esse percentual foi de 40%, isso se deve pelo fato
de que na sorveteria os elementos construídos para agradar os “olhos” dos turistas são
previsíveis e comuns e pouco dizem sobre a cidade, enquanto no bar/café, aliado à música ao
vivo, cores e quadros que representam a cidade foram colocados em enquadramentos
estratégicos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O turismo como atividade social engloba uma série de fatores que afetam a
experiência do turista. O turismo de experiência tem como foco potencializar as experiências
turísticsa fazendo com que essas se tornem positivas, memoráveis e inesquecíveis. Foi possível
compreender a partir do estudo de campo atrelado aos conhecimentos bibliográficos adquiridos
que o mercado Ludovicense passou por uma série de transformações e ainda está sofrendo
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modificações em seu turismo, pois os empresários começaram a perceber que precisam atrair
a atenção do público de formas mais eficientes e eficazes, e passaram então a desenvolver
melhor a cultura local em seus negócios.

Dessa forma, por atender todos os pontos essenciais do turismo tradicional e ainda
gerar valor, os produtos e serviços ofertados, acabaram ganhando espaço no mercado, por ser
um diferencial competitivo dentro de um mercado monopolizado. Dessa forma os
empreendimentos hoteleiros e turísticos estão em constante adequação visando atender a esse
novo seguimento, objetivando assim a captação e fidelização dos seus clientes.

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PAISAGEM E GEODIVERSIDADE: RELAÇÕES ENTRE A PRODUÇÃO


ARTESANAL DE CERÂMICA NAS BORDAS LESTE E OESTE DO GOLFÃO
MARANHENSE

LANDSCAPE AND GEODIVERSITY: RELATIONS BETWEEN THE HANDMADE


POTTERY PRODUCTION IN LEST AND WEST EDGE OF GOLFÃO
MARANHENSE

Igor de Luccas Santos; Mestrando, PPGGEO/UFMA¹


Danielle de Assis Araujo Alves; Mestranda, PGCult/UFMA ²
Antonio Cordeiro Feitosa; Prof. Dr., PPGGEO/ PGCult/UFMA³
Eixo Temático 3: Cidades, Patrimônio e Sociedade
¹igorsantos.geografia@gmail.com
²d.araujoalves@hotmail.com
³acfeitos@gmail.com
Eixo temático 3: Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

Resumo: O Golfão Maranhense apresenta singularidade ambiental com intensa dinâmica da


paisagem, sobretudo pela atuação dos agentes modeladores do relevo, que propicia a
remobilização de materiais arenosos e argilosos, favorecendo o desenvolvimento de atividades
tradicionais, como a produção de cerâmica em Rosário e na comunidade de Itamatatiua –
Alcântara, situadas, respectivamente, nas porções leste e oeste desta reentrância costeira, cujas
particularidades motivaram reflexões acerca da relação e diferenças entre a paisagem e a
geodiversidade com a produção de cerâmica, através de uma abordagem sistemática, ancorada
nos pressupostos da Teoria Geossistêmica. Todas as etapas da produção de cerâmica são de
suma importância para a qualidade dos produtos, exigindo experiência e notório conhecimento
sobre as características da argila e da técnica laboral, que expressam a relação homem com o
meio, com semelhanças quanto ao ambiente de extração, mas diferenças na laboração
ceramista, como a predominância do gênero feminino e trabalho manual na produção em
Itamatatiua, enquanto que em Rosário o ofício é realizado majoritariamente por homens com
auxílio de maquinários. Infere-se que há notória relação da paisagem com a geodiversidade, a
cultura e a economia local, sobretudo pelo uso da argila na realização de atividades de produção
ceramista.
Palavras-Chave: Argila, Cerâmica, Rosário, Itamatatiua.

Abstract: The Golfão Maranhense presentes environmental singularity with intense landscape
dynamics, because the acting of refief modeling agentes, that provides the remobilization of
sandy and clay materials, favoring the development of traditional activities, how the pottery
prodution in Rosário and the on community Itamatatiua – Alcântara, lacated, respectively, in
the east and west portions of recess, whose peculiarities motivate reflections about the relation
between the landscape and the Geodiversity with the pottery prodution, through of a systemic
approach, related to the assumtions of the Geosystemic Theory. All stages of ceramic prodution
are of Paramount importance for the product quality, demand experience and notorious
knowledge about the clay characteris and labor tecnique that expresses the relation man with
nature, that similarities as extraction environment, but differences in the ceramista labo, like
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the predominance of feminine gender and handwork in the prodution at Itamatatiua, while in
Rosário the office is done mostly by men with the aid of machinery. It is infected that there is
notorius relation of the landscape with the Geodiversity, the culture and place economy, above
all about use of clay in the realization of activities of pottery prodution.
Keywords: Clay, Ceramic, Rosário; Itamatatiua.

1 INTRODUÇÃO
Os aspectos geomorfológicos da paisagem, por suas formas singulares, vêm
despertando o interesse em pesquisadores para o que hoje se entende por Geodiversidade,
possibilitando a abordagem desta categoria geográfica com a inclusão do conceito de
Geossistema, uma concepção teórico-metodológica que permite discutir a paisagem a partir da
combinação dinâmica dos elementos físicos, biológico e antrópicos, de maneira
interdisciplinar.
A abordagem de Geodiversidade está ancorada em uma visão crítica de análise dos
processos dinâmicos da natureza, com destaque para a importância dos elementos abióticos. O
conceito ganhou maior notoriedade a partir da divulgação da Avaliação Ecossistêmica do
Milênio (2005), Gray (2014), cujo sistema de classificação consistia na identificação de
serviços ecossistêmicos ligados à biodiversidade.
A partir da ciência geográfica, o estudo está ancorado na categoria paisagem, haja vista
que, conforme Bertrand (2004), a paisagem é produto de uma combinação dinâmica entre os
atores físicos, biológicos e antrópicos, ou seja, sempre em evolução, uma concepção que
considera as ações do homem no meio em que está inserido como agente de transformação da
paisagem, deixando sua marca através das manifestações culturais. A cultura tem papel
essencial na construção da paisagem, uma vez que a diversidade de expressões atribui valores
peculiares a elementos específicos do ambiente físico ou a da geodiversidade.

O estudo da geodiversidade e paisagem, permite analisar a natureza como patrimônio,


sobretudo no desenvolvimento de atividades tradicionais, como a produção ceramista em
Rosário e na comunidade de Itamatatiua – Alcântara, situados no Golfão Maranhense. A
singularidade ambiental da região do Golfão Maranhense é uma importante característica da
paisagem, principalmente pelo histórico de ocupação e a sua fragilidade ambiental. A
configuração ambiental singular do Golfão Maranhense, motivou a escolha da área de estudo
nos municípios de Alcântara e Rosário, localizado na borda leste Golfão.
As particularidades motivaram reflexões acerca da relação entre a paisagem e a
geodiversidade com a produção de cerâmica, e as diferenças nas duas áreas de estudo, através
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de uma abordagem sistemática, ancorada nos pressupostos da Teoria Geossistêmica. O trabalho


é resultado de dois anos de pesquisa de iniciação científica.

2 METODOLOGIA
A singularidade ambiental do Golfão Maranhense, com intensa dinâmica da paisagem,
devido a atuação dos agentes modeladores do relevo, propicia a remobilização de materiais
arenosos e argilosos, favorecendo o desenvolvimento de atividades tradicionais, como a
produção de cerâmica em Rosário e na comunidade de Itamatatiua – Alcântara, situadas,
respectivamente, na porção leste e oeste do Golfão, cujas particularidades motivaram reflexões
acerca da relação e diferenças entre a paisagem e a geodiversidade com a produção de cerâmica,
através de uma abordagem sistemática, ancorada nos pressupostos da Teoria Geossistêmica, a
partir das contribuições de Sotchava (1977) e Bertrand (2004).
Os procedimentos metodológicos utilizados no trabalho compreenderam: pesquisa e
análise da literatura relativa ao estudo da temática; levantamento e análise de materiais
cartográficos; trabalho de campo exploratório, para o estudo da paisagem e compreender as
apropriações da geodiversidade nas atividades de laboração tradicional de argila, além da
realização de entrevistas não estruturadas; análise das informações obtidas; produção de
material cartográfico; sistematização das informações e elaboração do trabalho.
As atividades de campo foram realizadas nos dois anos do projeto “O Golfão
Maranhense: Geodiversidade, Patrimônio e Sustentabilidade Socioambiental”. Foram
utilizadas imagens Landsat 5 (sensor TM) e Landsat 8 (sensor OLI), de cenas de órbita/ponto
220/062; 221/061; 221/062 e 221/063, através do site do INPE, seguido de mosaico para
representação do Golfão Maranhense e da confecção dos mapas de localização.

3 CONTEXTUALIZAÇÃO E LOCALIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO


Gray (2004) destaca que a diversidade dos aspectos abióticos do ambiente, como
aspectos geológicos, geomorfológico, pedológico e outros, são importantes para o pleno
funcionamento do ecossistema. Portanto, é necessário que a importância da Geodiversidade
tenha espaço nas agendas públicas, haja vista que na esfera política que a Geoconservação é
viabilizada (GRAY, 2014).
A área de estudo compreende parte dos municípios de Alcântara e Rosário situados na
região de abrangência do Golfão Maranhense, na mesorregião Norte Maranhense. O município
de Alcântara está localizada a 02°06’03” e 02°38’19” de Latitude Sul, 44°43’14” e 44°21’21”
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de Longitude Oeste, se limita ao Norte com o município de Guimarães, ao Sul com Bacurituba,
a Leste com São Luís e a Oeste com Bequimão, os principais acessos, partindo de São Luís,
são por barco ou catamarã, o acesso por automóvel é através da rodovia MA – 106 ou de ferry-
boat, até o povoado de Cujupe. A comunidade de Itamatatiua está situada no sudeste do
município.
O município de Rosário-MA está localizado entre as coordenadas geográficas
02°43'45" e 03°11'03" de Latitude Sul, 44°18'23" e 44°07'28" de Longitude Oeste, limita-se ao
Sul com o município de Santa Rita, a Leste com Axixá, a Oeste com Bacabeira, e ao Norte
localiza-se a baía de São Marcos (Figura 01).

Figura 01: Localização de Alcântara e Rosário no Golfão Maranhense.

Fonte: Acervo de pesquisa, 2019.

O Golfão Maranhense é uma unidade geomorfológica de planície litorânea que possui


singularidade ambiental (FEITOSA, 2006), como a “grande reentrância central do litoral do
Maranhão” situada entre os segmentos dos litorais Ocidental e Oriental do Maranhão
(AB’SÁBER, 1955, p. 01). A fragilidade das estruturas geológicas do Golfão favorece a
dinâmica da paisagem, sobretudo pela exposição aos agentes modeladores do relevo, onde
predominam a influência de agentes: climáticos, oceanográficos e hidrológicos (FEITOSA e
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TROVÃO, 2006). As características da geodiversidade de influência dos agentes climáticos e


dinâmica na área de estudo, favorecem a deposição de materiais arenosos e argilosos.

O município de Alcântara tem a geologia predominante de Formação Itapecuru e


Depósitos de pântanos e mangues, e a área da comunidade de Itamatatiua está situada na área
de predominância da Formação Itapecuru e Depósitos flúvio-lagunares (BANDEIRA, 2013),
registrando-se a ocorrência de depósitos argilosos de granulometria variada, utilizados para a
produção artesanal.

A geologia do município de Rosário é marcada pela situação entre a bacia sedimentar


do Parnaíba e de Barreirinhas, separadas pelo arco Ferrer – Urbano Santos, onde há
afloramentos de rochas graníticas, da suíte intrusiva Rosário (RODRIGUES, 1994). A
formação geológica superficial é predominantemente do grupo Itapecuru, do período Cretáceo,
com depósitos aluvionares, e a ocorrência do grupo Barreiras e depósitos eólicos continentais
antigos são minorias (BANDEIRA, 2013). Nas áreas d sedimentos aluvionares são encontrados
depósitos argilosos utilizados para a produção ceramista.

4 A PRODUÇÃO CERAMISTA EM ROSÁRIO E NA COMUNIDADE DE


ITAMATATIUA
A povoação de Rosário remente ao período colonial, por volta de 1620, relacionada à
edificação do forte do Calvário (SOUZA, 1885), enquanto que a história de povoação da
comunidade de Itamatatiua está ligada à existência de uma fazenda da Ordem Camelita, que
data de 1878 (BANDEIRA, 2017).
Apesar da antiguidade de sua povoação, a produção ceramista do município de Rosário
vem ganhando notoriedade há aproximadamente 60 anos (FERREIRA, 1959). E a importância
dessa atividade na comunidade de Itamatatiua ganhou destaque nas duas últimas décadas, com
apoio do SENAI em parceria com o Governo do Estado.
Embora no trabalho haja ênfase na produção artesanal de cerâmica, em Rosário há
também outros tipos de produção de argila, de forma artesanal e industrial, como a produção
de tijolos, telhas e demais produtos derivados da argila, assim como também há outros tipos de
produtos cerâmicos elaborados no município de Alcântara, como os tijolos de adobe.
Na olaria pesquisada em Rosário, os materiais são extraídos e armazenados após o
período chuvoso, no qual a argila “mais fina” é acondicionada de molho em tanque com água
(Figura 02a), já o material de característica (granulométrica) “mais grosseira”, fica exposta
(Figura 02b), cujas características são levadas em conta na laboração dos diferentes tipos de
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produtos, como argila fina para fazer panelas e argila grossa para jarros. O ofício dos oleiros
possibilita maior conhecimento sobre a argila e a utilidade na produção (SANTOS, 2019).

Figura 02: Materiais argilosos mais finos (a) e mais grosseiro (b), na produção em Rosário.

Fonte: SANTOS, 2019.

A extração da argila em Itamatatiua é realizada em uma grande área inundável, da bacia


hidrográfica do rio Aurá, no território da comunidade. Segundo informações locais, o material
retirado de maior profundidade serve para produção de panelas, por causa da granulometria
fina (Figura 03).
Todas as etapas da produção ceramista são de essencial importância para a qualidade
dos produtos, exigindo experiência e notório conhecimento sobre as características da argila e
da técnica laboral, que expressam a relação homem com o meio.

Figura 03: Extração de argila em Itamatatiua, a-local de extração; b- tipos de materiais

Fonte: Acervo de pesquisa, 2017.

A comunidade de Itamatatiua também é um exemplo da relação direta da comunidade


com os aspectos da geodiversidade local, o modo de organização do trabalho tradicional,
desde a extração da argila até a confecção de cerâmicas. A geodiversidade para as áreas de
estudo é dotada de valores, conforme a classificação de Gray (2004), haja vista que o substrato
sedimentar argiloso oferece suporte para o ambiente e realização das atividades de produção
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artesanal de cerâmica. Portanto, as características de provisão e valor econômico da argila tem


maior representatividade para a comunidade.

Há aproximadamente 8 olarias de artesanato atualmente em Rosário, cuja produção de


cerâmica é referência na região, com pontos de revendas também em municípios vizinhos
(Figura 04), além da produção ser vendida para estados como Piauí (SANTOS, 2018).

Figura 04: Olaria de produção e venda em Rosário (a); Venda em Bacabeira (b), na rodovia BR-135.

Fonte: SANTOS, 2019.

Em Itamatatiua, as etapas de produção e venda são realizadas no Centro de Produção


de Cerâmica (Figura 05), e a comercialização é majoritariamente local e regional, mas também
há vendas para outras localidades através do turismo.

Figura 05: Centro de Produção de Cerâmica de Itamatatiua, a – fachada; b – vista interna.

Fonte: SANTOS, 2019.

Os dois locais possuem semelhanças quanto ao ambiente de extração, mas diferenças


na laboração ceramista, pois este ofício, em Rosário, é realizado majoritariamente por pessoas
do gênero masculino com emprego de maquinário, ao passo que em Itamatatiua a figura
masculina é presente apenas na extração da argila, sendo as mulheres responsáveis pelas demais
etapas, realizadas majoritariamente por trabalhos manuais (Figura 06).
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Figura 06 - Representatividade do gênero laboração de cerâmica: a – predominância feminina em


Itamatatiua; b – predominância masculina em Rosário.

Fonte: Acervo de pesquisa, 2019.

Em relação aos modos de vida tradicional, Rosário apresentou grande influência do


modo de vida urbano, haja vista que a pesquisa foi realizada na sede municipal. Enquanto em
Itamatatiua, a identidade está bem atrelada aos antepassados, a origem e os costumes
tradicionais, embora pouca parcela da população jovem apresente interesse em prosseguir com
a cultura (ALVES, 2018). Em síntese, as diferenças mais significativas das peças de cerâmica
elaboradas nos dois locais dizem respeito aos modos de produção (Quadro 01).

Quadro 01 - Síntese das diferenças na produção ceramista nas áreas de estudo.


Característica Rosário Itamatatiua (Alcântara)

Forma de Produção Com auxílio de máquinas Predominantemente Manual

Gênero do ceramista Predominantemente masculino Predominantemente feminino

Quantidade Olarias Aproximadamente 8 1


Predominantemente Local e
Alcance das vendas Local, regional e interestadual regional

Local de extração Fluvial Flúvio-lagunar


Fonte: Organização dos autores, 2020.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Infere-se que há notória relação da paisagem com a geodiversidade, a cultura e a
economia, sobretudo pelo uso da argila. Entretanto, das principais diferenças das peças de
cerâmica elaboradas em Itamatatiua-Alcântara em relação às de Rosário dizem respeito às
formas de produção, e não aos da paisagem ou da geodiversidade.
Constatou-se, ainda, a estreita relação da geodiversidade com a cultura e economia local,
sobretudo pela exploração de argila, para fabricação artesanal, além da cultura de produção de
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filtro de água e tradições como o “quebra pote”, em Rosário, assim como o destaque econômico
da exploração mineral do granitóide, embora com potencial de degradação ambiental.

Recomenda-se que haja desenvolvimento de atividades educativas quanto a


geoconservação para a área pesquisada, bem como fomento público para incentivar a produção
nas áreas estudas, sobretudo com intuito de estimular a participação dos jovens na atividade
tradicional ceramista.

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Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae da Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, v.
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Paulo, 1977.
Página 1771 de 2230

PANORAMA DAS POLÍTICAS DE PATRIMONIALIZAÇÃO NA CIDADE DE SÃO


LUÍS: DO PAC CIDADES HISTÓRICAS AO PROGRAMA NOSSO CENTRO.

OVERVIEW OF PATRIMONIUALIZATION PROGRAMS IN THE CITY OF SÃO


LUÍS: FROM PAC CIDADES HISTÓRICAS TO NOSSO CENTRO PROGRAM.

Concilene Régia Nascimento Campos de Carvalho


Graduada em Turismo, UFMA
E-mail: concilenecampos@yahoo.com.br

Jaqueline Santos Costa Leite


Especialista Em Gestão Pública, UFMA
E-mail: jacknoodle@gmail.com

José Guilherme Guimarães Dos Santos Filho


Graduado em Turismo, UFMA
E-mail: filho.guilherme@gmail.com

Josiane Moraes Costa


Graduada em Turismo, UFMA
E-mail: jo20moraes@yahoo.com.br

Eixo 3 – Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade.

RESUMO: Até as décadas de 1960/1970, as Políticas de Preservação Patrimonial se


mostravam incipientes em São Luís, a necessidade de preservação estava latente e foi
desenvolvida através da atuação do poder público municipal, estadual e federal, com o apoio
da UNESCO. Nessa perspectiva, muitas outras ações foram desenvolvidas, culminando no
lançamento do “Programa Nosso Centro”. O objetivo principal desta pesquisa é Estudar os
efeitos das Políticas de Patrimonialização, “Programa de Aceleração do Crescimento – Cidades
Históricas” (PAC-CH) e “Programa Nosso Centro”, no Processo de Gestão Patrimonial da
Cidade de São Luís/MA e seus efeitos no Centro Histórico desta cidade, analisando os seus
pontos positivos e negativos a fim de traçar a sua conjuntura atual e suas perspectivas como
ferramenta para o desenvolvimento da preservação patrimonial nesta Capital do Maranhão. O
trabalho proposto no presente projeto de pesquisa pretende analisar o cenário atual das Políticas
Públicas na cidade de São Luís, utilizando como ferramentas de análise os Programas “PAC –
Cidades Históricas” e “Nosso Centro”, destacando a influência dos mesmos no processo de
valorização e preservação patrimonial dessa região. Para tanto, será necessário delimitar
conceitos mais abrangentes, como: patrimônio, gestão patrimonial e Políticas Públicas. Depois
conceitos mais específicos.

Palavras-chave: Patrimônio, PAC-Cidades Históricas, Nosso Centro, Patrimonialização.

ABSTRACT Until the 1960s/1970s, Heritage Preservation Politics were incipient in São Luís,
the need for preservation was latent and was developed through the performance of the
municipal, state and federal public authorities, with the support of UNESCO. In this
perspective, many other actions were developed, culminating in the launch of the “Programa
Nosso Centro”. The main objective of this work is study the effects of Heritage Policies,
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“Programa de Aceleração do Crescimento – Cidades Históricas” (PAC-CH) and “Programa


Nosso Centro”, in the Heritage Management Process of the City of São Luís/MA and its effects
in the Historical Center of this city, analyzing its positive and negative points in order to trace
its current situation and its perspectives as a tool for the development of heritage preservation
in this Capital of Maranhão. The work proposed in this research project intends to analyze the
current scenario of Public Politics in the city of São Luís, using the “PAC – Cidades Históricas”
and “Nosso Centro” programs as analysis tools, highlighting their influence in the process of
valuing and preserving heritage in this region. Therefore, it will be necessary to delimit some
more comprehensive concepts, focusing on the subject treated here, which are: heritage, asset
management and Public Politics. Then more specific concepts should be analyzed.

KEYWORDS: Heritage, “PAC-Cidades Históricas”, “Nosso Centro”, Patrimonialization.

INTRODUÇÃO

Até as tenras décadas de 1960/1970, as Políticas de Preservação Patrimonial se


mostravam incipientes na cidade de São Luís, tendo sua gênese a partir de constatações da
necessidade urgente de preservação e valorização do acervo arquitetônico desta cidade, feitas
através de relatórios encaminhados ao SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – criado em 1937).

As missões de dois enviados da UNESCO, Michel Parent, em 1966, e Viana de Lima,


em 1973, se não produziram efeitos imediatos, serviram para ajudar o Brasil (tanto as
autoridades federais quanto as do Estado do Maranhão) a tomar consciência da
dimensão urbana do patrimônio. Por outro lado, constatou-se que o patrimônio não
podia ser defendido unicamente pelo SPHAN, a partir do Rio de Janeiro e de Brasília,
que o patrimônio devia ser também uma questão dos habitantes e das autoridades
locais. Em 1996, a Superintendência do Desenvolvimento do Maranhão enviou ao
Governo do Estado um relatório sobre as “Medidas urgentes de proteção ao
patrimônio arquitetônico de São Luís”389

Nota-se que a necessidade de preservação estava latente e foi desenvolvida através


da atuação do poder público municipal, estadual e federal, com o apoio da UNESCO, tais
agentes, mesmo hoje, na década de 2010 ainda são preponderantes nesse processo. Nas décadas
de 1960/70 iniciou-se uma tomada de consciência sobre o patrimônio, que passou pela
implementação de vários programas, passando pelo PAC-CH – Programa de Aceleração do
Crescimento – Cidades Históricas, lançado no ano de 2007, tendo como idealizador o IPHAN
(Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), atuando em cerca de 40 cidades
históricas, que receberam recursos para o desenvolvimento de diversas obras de restauração e

389 DOSSIÊ UNESCO: Proposta de Inclusão do Centro Histórico de São Luís na Lista do Patrimônio
Mundial da UNESCO. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie%20SAO%20LUIS_pt.pdf. Acesso em: 21/07/2017.
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requalificação de obras patrimoniais, bem como diversos programas socioculturais atrelados ao


PAC-CH390.

Nessa perspectiva, muitas outras ações foram desenvolvidas, culminando no


lançamento, no mês de junho do ano de 2019, do “Programa Nosso Centro”. Projeto este que
prevê uma gama de atividades feitas diretamente para a comunidade residente no Centro
Histórico, bem como para os turistas e visitantes desse local, buscando valorizar o acervo
arquitetônico, histórico e paisagístico, também as expressões culturais aí presentes391.

Tem-se aqui, no Programa Nosso Centro, uma ferramenta exemplar para a


administração do Patrimônio material e imaterial da cidade de São Luís, que pode atuar
incentivando a restauração, a valorização, a divulgação e a redescoberta de toda essa riqueza
pela população local e turistas, fomentando também áreas afins.

O “Programa Nosso Centro” é um dos muitos Projetos implementados nesse recorte


patrimonial da cidade de São Luís/MA, reconhecido mundialmente. Dada a sua influência e
notável representatividade, torna-se imprescindível que se proceda uma análise mais
aprofundada do mesmo. Surgindo, assim, a necessidade de uma atenta reflexão sobre as
Políticas de Patrimonialização da capital maranhense, observando a sua evolução histórica,
aspectos conceituais, panorama atual e perspectivas. Ou seja, para que se possa entender a
influência de tais ferramentas na interação poder público, habitantes locais, turistas, indústria e
demais envolvidos nesse processo dinâmico.

A valorização patrimonial surge através do conhecimento e da vivência, estes só


podem ser desenvolvidos através do estudo aprofundado das peculiaridades de cada local e do
desenvolvimento de ações que envolvam todos os stakeholders determinantes da
patrimonialização. Para tanto, esta pesquisa se desenvolve, para estudar uma breve evolução
histórica das políticas de patrimonialização, compreendendo o fenômeno desde O “Programa
PAC – Cidades Históricas” até o “Programa Nosso Centro” e a relevância destes para a cidade
população ludovicense.

A motivação para a realização da presente pesquisa surgiu após a observação da


necessidade de se analisar o panorama da administração e gestão patrimonial na cidade de São

390 IPHAN, PAC Cidades Históricas. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/235.


Acesso em: 25/07/2019.
391 PREFEITURA DE SÃO LUÍS/MA: Programa Nosso Centro vai investir mais de R$ 100 milhões para o
Centro Histórico de São Luís. Disponível em: https://www.ma.gov.br/programa-nosso-centro-vai-investir-mais-
de-r-100-milhoes-para-o-centro-historico-de-sao-luis/. Acesso em: 27/06/2019.
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Luís/MA, destacando a atuação do “Programa Nosso Centro” e a Influência do “Programa de


Aceleração do Crescimento – Cidades Históricas”, posto que não foram observadas pesquisas
voltadas para a transversalização dos dois programas em estudo, especialmente em se tratando
dos efeitos sobre a Preservação Patrimonial de São Luís/MA, mais propriamente ditos. Por essa
razão pensou-se em investigar de maneira mais efetiva esse assunto, relacionando conceitos de
patrimônio, gestão, patrimônio, políticas públicas, etc.

Diante disso, esta torna-se uma pesquisa necessária, visto que busca traçar um
panorama sobre a conjuntura atual da identidade valorativa patrimonial na cidade de São
Luís/MA, considerando as principais influências do “PAC-CH” e do “Programa Nosso Centro”,
fazendo uma relação desses programas tratando-os como importantes políticas de
patrimonialização, atuando no recorte geográfico do Centro Histórico da cidade São Luís/MA.

Esta se mostra uma pesquisa viável, pois não necessita de muitos recursos materiais
para ser realizada, já que se baseia em pesquisas bibliográficas e entrevistas com moradores da
capital do Maranhão, área abrangida pelo projeto em estudo.

Portanto é indubitável a utilidade da pesquisa para engrandecer (quantitativa e


qualitativamente) o quadro de estudos realizados a esse respeito e influenciar no
desenvolvimento da Gestão Patrimonial local, notando sua aplicação na cidade e pontuando
seus pontos positivos e negativos. Dessa maneira fomentando tal atividade e agregando valores
sociais, culturais e econômicos para a cidade de São Luís/MA.

A problematização de uma pesquisa não se caracteriza apenas como um conjunto


de perguntas com respostas prontas, pré-formatadas. Consiste em uma sistematização da
investigação que se faz sobre um determinado problema (BERBEL, 1995).

Diante disso, levando-se em consideração a pesquisa aqui proposta, faz-se


necessária uma abordagem que possa relacionar os temas propostos, aplicando-os à realidade
através de uma correta coleta de dados organizada, com base em conceitos preestabelecidos.
Portanto observa-se a necessidade de investigar as relações entre preservação do patrimônio e
gestão.
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OBJETIVO DA PESQUISA

Estudar os efeitos das Políticas de Patrimonialização, “Programa de Aceleração do


Crescimento – Cidades Históricas” (PAC-CH) e “Programa Nosso Centro”, no Processo de
Gestão Patrimonial da Cidade de São Luís/MA e seus efeitos no recorte Centro Histórico desta
cidade, analisando os seus pontos positivos e negativos a fim de traçar a sua conjuntura atual e
suas perspectivas como ferramenta para o desenvolvimento da preservação patrimonial nesta
Capital do Maranhão.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A e pesquisa se desenvolveu em torno do objetivo de discorrer sobre o cenário atual


das Políticas Públicas na cidade de São Luís, no âmbito do Centro Histórico desta cidade,
utilizando como ferramentas de análise os Programas “PAC – Cidades Históricas” e “Nosso
Centro”, destacando a influência dos mesmos no processo de valorização e preservação
patrimonial dessa região. Para tanto, é necessário delimitar alguns conceitos.

O primeiro conceito a se entender é o de patrimônio, definido pelo Decreto-lei


25/1937, em seu Art. 1º, Capítulo I, da seguinte maneira:

Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e


imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. (BRASIL, 1937).

O patrimônio material consiste basicamente naquilo que é tangível fisicamente, já


o patrimônio imaterial possui uma definição mais profunda, sendo delimitado como um
conjunto de usos e costumes que representam e recriam o passado de um determinado recorte
social (CHOAY, 2001).

A valorização do patrimônio se dá pelos moradores locas e visitantes, que remetem


ao conceito de Turismo, definido por Barreto (2003) como “a atividade econômica mais
importante no mundo. Movimenta, neste momento, em nível mundial, mais dinheiro que a
indústria armamentista” (BARRETO, 2003, p.95). De acordo com as definições acima citadas,
nota-se que o fenômeno turístico é caracterizado como um conjunto de atividades, não apenas
uma ação isolada e que está em grande processo de expansão. Sendo uma opção na manutenção
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da identidade, da qual Bauman (2005), em sua entrevista com Benedetto Vecchi, chega a uma
definição muito interessante, defendendo que:

A política de identidade, portanto, fala a linguagem dos que foram marginalizados


pela globalização. Mas muitos dos envolvidos nos estudos pós-coloniais enfatizam
que o recurso à identidade deveria ser considerado um processo contínuo de redefinir-
se e de inventar e reinventar a sua própria história. É quando descobrimos a
ambivalência da identidade: a nostalgia do passado conjugada à total concordância
com a “modernidade líquida”. É isso que cria a possibilidade de transformar os efeitos
planetários da globalização e usá-los de maneira positiva (BAUMAN, 2005, p. 13).

Nota-se aqui, que a identidade é um processo de valoração, que sobrevive aos


efeitos da modernidade, fazendo com que as pessoas possam interagir com o seu passado para
transformar o seu futuro. Nesse pensamento, a identidade se relaciona com a preservação do
patrimônio, tanto material como imaterial. Paes (2017) afirma que:

Sabemos que o patrimônio histórico arquitetônico ganhou um papel de destaque como


instrumento de requalificação urbana [..], associado a uma nova forma de gestão
neoliberal do território, com a entrada das parcerias e dos investimentos dos poderes
públicos e de empreendedores privados locais, nacionais e estrangeiros; de órgãos de
comunicação; de grupos sociais organizados e urbanistas de renome internacional,
assim como por sua reprodução em série por várias cidades do mundo. A paisagem,
de fragmento da totalidade, ganhou maior poder analítico ao representar formalmente
esta nova tendência do urbanismo e do processo urbano mundial (PAES, 2017, p.
673).

Tem-se aqui, que o patrimônio deve ser gerido com muito empenho do poder
público, posto que sua sobrevivência e preservação dependem do desempenho de vários atores
privados e públicos, até mesmo para que os recursos conseguidos para esse fim de preservação
sejam administrados com efetividade. Portanto “Patrimônio cultural, turismo e renovação
urbana são vetores de um mesmo processo de reestruturação do território” (PAES, 2017, p.
678). Assim, “No contexto da política nacional, a patrimonialização surge enquanto uma ‘vontade
de verdade’, que se apoia em um suporte institucional, amparado juridicamente e que tende a
exercer sobre outros discursos uma pressão e como que um poder de coerção” (CHAVES, 2012, p.
32). Pensar a patrimonialização é pensar que esse processo perpassa pelo conceito de Política
Pública que é definida da seguinte forma:

As políticas públicas estão diretamente associadas ao Estado. Contudo, há outros


atores que agem na construção delas, tanto de cunho privado como público. Atemática
política pública tem sido construída e aperfeiçoada desde a década de trintado século
XX, mediante a contribuição de vários autores […]. Sua fundamentação preliminar
ocorreu a partir do termo policy analysis para agregar os conhecimentos científico e
acadêmico com as ações governamentais. (BARBOSA, et all. p. 1070).
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Vê-se que o Estado é o órgão regulador das Políticas Públicas, e gere os demais
envolvidos, assim, Barbosa et all continuam afirmando que:

As políticas públicas são então discutidas e estudadas enquanto um sistema que recebe
inputs dos partidos, da mídia e dos grupos de interesse, e que, por sua vez, influenciam
seus resultados e efeitos. (EASTON, 1965). São ponderadas como um campo dentro
do estudo da política que visa analisar o governo por meio de problemas de ordem
pública (MEAD, 1995); como um conjunto de ações governamentais que poderão
produzir efeitos peculiares (LYNN, 1980); ou como somatório das ações
governamentais realizadas por agentes políticos que atuam de forma direta,
influenciando a vida dos cidadãos. (BARBOSA, et all. p. 1070-1071).

O trabalho do Gestor Público deve sempre estar pautado na importância de sua


atuação para a sociedade, considerando que a gestão pública norteia os programas que vão atuar
setorialmente através das políticas públicas, visando o bem-estar social. Diante disso, aplicar
os conceitos de preservação patrimonial, através da análise dos programas em estudo aqui, é de
suma relevância para um maior entendimento da atuação das Políticas Públicas em execução
na cidade ludovicense.

4 OS PROGRAMAS

Para a valorização e manutenção dos monumentos patrimonializados brasileiro foi


criado o PAC cidades Históricas Implantando em 44 cidades de 20 estados da Federação, o
PAC Cidades Históricas conta com o investimento de R$ 1,6 bilhão para 425 obras de
restauração e requalificação de edifícios e espaços públicos, gerido e fiscalizado pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em São Luís (MA), são 44 ações
previstas, que contemplam igrejas, fortaleza, estação ferroviária, monumentos e imóveis.

Já o programa “Nosso Centro” foi Criado pelo Governo do Maranhão em 2019, por
meio da Secretaria das Cidades e Desenvolvimento Urbano e tem por objetivo desenvolver
várias obras no entorno do Centro Histórico de São Luís, contando com o apoio do Governo do
Maranhão, Prefeitura de São Luís e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan).

São Luís é uma referência em renovação e desenvolvimento sustentável,


preservando seu valor histórico e cultural ao mesmo tempo em que promove o Centro da cidade
em um espaço com um conjunto de ações que visa promover o turismo, movimentando a
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economia e valorizando áreas importantes para a preservação histórica, cultural e sustentável.


As estratégias de atuação do Programa consistem em:

I – Identificação e interligação de polos vocacionais na região central;

II – Redução dos vazios urbanos, com o aproveitamento da infraestrutura e dos espaços e


edificações ociosos, públicos e privados;

III – Fomento à atratividade dos polos por meio do incentivo à habitação, ao comércio e às
atividades culturais, como pilares para a sustentabilidade da área;

IV – Captação de investimentos de diferentes setores para a recuperação e uso do patrimônio


cultural edificado e do patrimônio cultural imaterial, articulando recursos federais, estaduais,
municipais, nacionais ou estrangeiros, bem como os da iniciativa privada;

V – Formalização de parcerias com entes públicos, com a iniciativa privada e com a sociedade
civil.

A abrangência da intervenção compreende áreas de tombamento estadual, federal e zona central


de São Luís. São compreendidos em cinco em Polos Vocacionais: polo habitacional; polo
comercial e gastronômico; polo cultural turístico e de lazer; polo institucional; polo tecnológico.
Os quais são caracterizados da seguinte maneira:

Polo Habitacional o objetivo e promover a ocupação sustentável do Centro histórico,


incentivando a instalação de novas moradias na região e a permanência e melhorias das
condições de habitantes do Centro.

Polo Comercial e Gastronômico o objetivo e fomentar o comércio local, por meio da


promoção de melhores condições estruturais, de segurança e de mobilidade para
empreendedores e consumidores na área de São Luís.

Polo Cultural Turístico e de Lazer objetivo fomentar a ocupação, a realização de atividades


e atrações culturais do Centro Histórico, tornando-o referência de lazer à população local e
turistas, e ainda preservar e difundir o patrimônio cultural material e imaterial do Estado do
Maranhão.

Polo Institucional é aproximar órgãos institucionais estratégicos, de modo a modernizar os


serviços públicos e intensificar o fluxo de pessoas na região central.
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Polo Tecnológico pretende tornar o Centro Histórico referência em tecnologia da informação e


comunicação, economia criativa, biotecnologia, tecnologias emergentes, tecnologias para
cidades inteligentes e desenvolvimento de startups.

Cada polo tem suas ações estratégicas que vão de melhorias, recuperação, revitalização,
regularização, criação, ampliação, estruturação, apoio e estímulo como o objetivo de manter
maranhenses e visitantes em São Luís principalmente no Centro Histórico.

5 CONCLUSÃO

A presente pesquisa serviu para entender melhor como se desenvolveram os


programas de Gestão Patrimonial que atuam no Centro Histórico da Cidade de São Luís/MA,
tendo como referência os programas “PAC-Cidades Históricas” e o “Programa Nosso Centro”.
Tais programas se mostram de extrema importância para a população residente nesse local, bem
como para incentivar a participação de turistas no processo de salvaguarda do patrimônio ali
presente, já que os programas têm visam o envolvimento de todos no processo de valoração do
patrimônio material e imaterial.

Em entrevistas realizadas com moradores do recorte geográfico em estudo, foi


percebido que as principais respostas à pergunta ‘Qual a sua opinião sobre os projetos “PAC-
Cidades Históricas” e “Programa Nosso Centro”?’ seguiram um parâmetro que mostra a
aceitação dos moradores a esse tipo de política. As respostas seguem um padrão, pois os
moradores responderam que gostaram muito da possibilidade de desenvolvimento de
programas que possam ajudá-los a preservar o patrimônio arquitetônico dos casarões em que
eles vivem. A consciência dos mesmos também está na preservação do patrimônio imaterial,
pois os mesmos defendem que é muito importante que hajam projetos para o fomento das
manifestações culturais presentes aí.

Nota-se a importância do envolvimento da população no processo de


desenvolvimento das políticas públicas para que se possa as mesmas sejam desenvolvidas de
maneira cidadã. Outro ponto importante a ser levado em consideração é uma constante
verificação e acompanhamento das políticas públicas por seus desenvolvedores. É necessário
que se tenha um feedback, para que os programas estejam sempre em aprimoramento, para
melhor atender ao seu público-alvo.
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Diante disso, destaca-se a importância do desenvolvimento de políticas de


patrimonialização na cidade de São Luís. Enfatizando a importância do “PAC-Cidades
Históricas” e “Programa Nosso Centro”. Os quais são programas de extrema relevância para a
preservação patrimonial material e imaterial desta que é uma cidade patrimônio cultural da
humanidade.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Margaritta. Manual de Iniciação ao Estudo do Turismo. 13ª Ed. rev. e atual. –
Campinas: SP – Papirus, 2003. (Coleção Turismo).

BARBOSA, Gabriel Dario, et all. Políticas Públicas: definições, processos e constructos no


século XXI. Revista de Políticas Públicas (online), v. 21, n. 2, p. 1065-1084, 2018. ISSN 2178-
2865.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto


Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BERBEL, N.A.N. Metodologia da Problematização: uma alternativa metodológica


apropriada para o Ensino Superior. Semina: Cio Soc./Hum., Londrina, v.16. n. 2., Ed.
Especial, p.9-19, out. 1995.

BRASIL. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio


histórico e artístico nacional. Disponível em: <www.cultura.gov.br>. Acesso em: 01 de agosto de
2018.

CHAVES, César Roberto Castro. Educação Patrimonial no Bairro do Desterro: estudos


sobre os projetos de patrimonialização no Centro Histórico de São Luís - MA. Dissertação
(Mestrado Interdisciplinar – Cultura e Sociedade), UFMA, 2012.

CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisas em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 1995.

CHOAY, Francois. A alegoria do patrimônio. São Paulo: UNESP, 2001.


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DOSSIÊ UNESCO: Proposta de Inclusão do Centro Histórico de São Luís na Lista do


Patrimônio Mundial da UNESCO. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie%20SAO%20LUIS_pt.pdf. Acesso
em: 21/07/2017.

GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2014.

IPHAN, PAC Cidades Históricas. Disponível em:


http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/235. Acesso em: 25/07/2019.

MARANHÃO. Governo do Estado do. Secretaria de Estado das Cidades e Desenvolvimento


Humano. Portfólio Nosso Centro. São Luís, 2019. Disponível em
<https://secid.ma.gov.br/2019/09/17/editais-do-programa-nosso-centro/> Acesso em 28 de
jan.2020.

MARQUES, Andréia Mesquita Santos. Planejamento urbano e meio-ambiente: análise da


dinâmica urbana do município de Barreirinhas – MA. Dissertação (Mestrado
Interdisciplinar – Cultura e Sociedade), UFMA, 2012.

PAES, Maria Tereza Duarte. Gentrificação, preservação patrimonial e turismo: os novos


sentidos da paisagem urbana na renovação das cidades. Geousp – Espaço e Tempo (Online),
v. 21, n. 3, p. 667-684, dez. 2017. ISSN 2179-0892.

PREFEITURA DE SÃO LUÍS/MA: Programa Nosso Centro vai investir mais de R$ 100
milhões para o Centro Histórico de São Luís. Disponível em:
https://www.ma.gov.br/programa-nosso-centro-vai-investir-mais-de-r-100-milhoes-para-o-
centro-historico-de-sao-luis/. Acesso em: 27/06/2019.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO. Normas para Elaboração do Trabalho de


Conclusão de Curso do Curso de Turismo da UFMA. Disponível em:
https://www.dropbox.com/s/861zng1jx6jcmbf/Normas%20TCC.pdf?dl=0. Acesso em:
01/08/2017.
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SÃO LUÍS E AS DICOTOMIAS DO OLHAR DO PODER PÚBLICO PARA A


CIDADE

SÃO LUÍS AND THE DICHOTOMIES FROM THE LOOK OF PUBLIC POWER TO
THE CITY

Walter Rodrigues Marques (UFMA/UEMA/IFMA)


walterkeyko@gmail.com
Antonio de Assis Cruz Nunes (orientador - UFMA)
antonio.assis@ufma.br

Eixo 3 – Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: Um espaço geográfico delimitado, juridicamente denominado município, caracterizado por


cultura e tradição, clima, vegetação, cultura humana (povoamento), práticas político-culturais e
econômico-sociais, religiosas, elegendo um centro gravitacional para os quais esses elementos concretos
e abstratos (as práticas) convergem. Esse espaço, outrora feudo, vila, caracterizado comercial e
administrativamente, é chamado cidade. Nesse espaço, o olhar de seus governantes é dicotômico. O
Estado beneficia espaços geográfico-sociais determinados e estratos sociais de forma diferenciada. O
campo empírico dessa pesquisa é a Ilha de São Luís (Ilha do Maranhão) composta pelos municípios:
São Luís, Raposa, Paço do Lumiar e São José de Ribamar. Ao se trafegar pela Avenida dos Africanos,
depara-se crateras no meio da rua necessitando de reparo (buracos que já fazem parte da paisagem da
cidade) e a Avenida dos Holandeses sendo recapeada constantemente - será por quê? Outro exemplo: o
poder público direciona projetos faraônicos para a Avenida dos Holandeses construindo um viaduto que
tem uma saída para São Luís, Raposa e outra para o Paço do Lumiar e o colossal BRT (Bus Rapid Transit
ou Transporte Rápido por Ônibus) – que inicia e termina na referida avenida. Objetiva-se discutir as
formas como o poder público conduz a mobilidade urbana em São Luís e as consequências disso.

Palavras-chave: Mobilidade urbana. Movimento pendular. Infraestrutura. Marcador social.

ABSTRACT: A delimited geographical space, legally called municipality, characterized by culture and
tradition, climate, vegetation, human culture (settlement), political-cultural and economic-social,
religious practices, choosing a gravitational center for which these concrete and abstract elements (the
practices) converge. This space, once a feud, a village, characterized commercially and administratively,
is called a city. In this space, the view of its leaders is dichotomous. The State benefits specific
geographic-social spaces and social strata in a different way. The empirical field of this research is the
São Luís Island (Maranhão Island) composed of the municipalities: São Luís, Raposa, Paço do Lumiar
and São José de Ribamar. When traveling along Avenida dos Africanos, you will find craters in the
middle of the street needing repair (holes that are already part of the city's landscape) and Avenida dos
Holandeses being constantly resurfaced - why? Another example: the government directs pharaonic
projects to Avenida dos Holandeses, building a viaduct that has an exit to São Luís, Raposa and another
to Paço do Lumiar and the colossal BRT (Bus Rapid Transit). and ends at that avenue. The objective is
to discuss the ways in which the public power conducts urban mobility in São Luís and the consequences
of this.

Keywords: Urban mobility. Pendular movement. Infrastructure. Social marker.


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1 INTRODUÇÃO

A cidade evoluiu. Passou de feudo, vila, ganhou autonomia social, administrativa,


política, econômica. Mas, a cidade moderna adquiriu também uma dependência das outras. Essa
dependência é, na cidade contemporânea, a mola propulsora de toda a engrenagem citadina. A
cidade não tem mais nenhuma semelhança com sua origem, salvo o aglomeramento em torno
de um ponto gravitacional. A cidade contemporânea está compartimentalizada, separada na
forma como as pessoas vivem. Separou os locais de lazer, os locais de trabalho, os locais de
moradia.

A evolução da cidade apresenta na contemporaneidade o fatiamento das vivências


onde o todo não é homogêneo, mas composto de partes tanto próximas quanto equidistantes,
tornando as cidades dependentes umas das outras, criando a interdependência, seja econômico-
financeira ou socio cultural.

O feudo evoluiu para cidade e aumentou, consideravelmente, o poder aquisitivo de


grupos ali dominantes, o que provocou a equidistância entre as pessoas – a desigualdade social
– e com isso o fatiamento do espaço geográfico, tornando determinados espaços dignos e outros
indignos, determinando os marcadores sociais e a mobilidade urbana, empurrando para cada
vez mais distantes as populações desfavorecidas com a produções desses marcadores. A
separação das pessoas em ricos e pobres, produtos da desigualdade social, cria, em um mesmo
espaço geográfico, duas cidades – a cidade dos ricos e a cidade dos pobres – e isso fica muito
evidente na ação dos governantes quando da reestruturação dos planos diretores das cidades
governadas.

Os exemplos utilizados para este artigo para ilustrar essa situação e/ou condição de
atuação do poder público na Ilha de São Luís foi justamente a dicotomia das duas cidades em
um mesmo espaço geográfico, porém, com benefícios a uma classe social determinada. A
separação dos locais de moradia e de trabalho e lazer pode ser verificada no movimento para
os centros comerciais para onde convergem uma grande quantidade de pessoas, principalmente,
no quesito trabalho, onde o movimento pendular de São José de Ribamar, Paço do Lumiar
(Maiobão), Cidade Operária que confluem para Cohab, Anil e São Cristóvão, justificaria a
construção de um viaduto em um desses pontos geográficos e não na confluência São Luís/Paço
do Lumiar/Raposa (conforme figura 1) – local que não apresenta fluxo intenso de pessoas -,
mas é, atualmente, área nobre.
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Figura 1 – Visão da saída do Paço do Lumiar para o viaduto

Fonte: Os autores

E, na mesma avenida, está sendo construído um BRT (Bus Rapid Transit ou Transporte Rápido
por Ônibus) (conforme figuras 2 e 3). A pergunta é: a quem essa ação do poder público
beneficia?

Figura 2 – Visão do início da construção do BRT

Fonte: Os autores
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Figura 3 – Visão do início da construção do BRT

Fonte: Os autores

2 MOBILIDADE URBANA

No ano de 2019 a Avenida dos Holandeses foi protagonista de uma obra colossal –
a construção de um BRT (Bus Rapid Transit ou Transporte Rápido por Ônibus) – que inicia e
termina na referida avenida, muito distante dos terminais de integração do transporte coletivo.
Ou seja, leva de lugar algum a lugar nenhum. Questiona-se se não seria o BRT mais uma novela
eleitoreira como a do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) – empreendimento alugado por João
Castelo por ocasião de campanha eleitoral. O VLT saía do Terminal de Integração da Praia
Grande e percorria mais ou menos 1 km (um quilômetro), parando nos fundos do Mercado do
Peixe (no bairro do Desterro). O pior de tudo é que havia pessoas que se prestavam a isso (dar
um passeio no VLT).

Em relação ao viaduto, é compreensível que por ser localizado em frente ao


Alphaville, a classe abastada não queira enfrentar nem dois carros parados na frente de seus
carros. Contudo, em reação ao BRT, que inicia e termina na Avenida dos Holandeses, fica a
dúvida: como vai ligar-se aos terminais de integração? A extensão do BRT é de menos de 2 km
(dois quilômetros), em que isso ajuda na mobilidade urbana? Ou será apenas uma obra faraônica
para inglês ver?

O prolongamento da Avenida Litorânea, na capital ludovicense, para instalação do


BRT (Transporte Rápido por Ônibus) é uma das maiores obras de mobilidade urbana
intermunicipal do Maranhão. É um trecho de quase 2 mil metros de extensão, que vai
da altura do Rio Pimenta até a Avenida São Carlos, entre a Avenida Litorânea e a
Praia do Olho D’água (JORNAL O IMPARCIAL, 2019).
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Segunda a reportagem do Jornal O Imparcial, a obra de 140 milhões de reais vai


desafogar a MA 201, encurtando em 40 minutos o tempo de viagem e beneficiando moradores
de São Luís, Raposa e Paço do Lumiar, de acordo com o presidente da MOB (Agência Estadual
de Mobilidade Urbana e Serviços Públicos) Lawrence Melo.

De acordo com o IPEA (1990, p. 16-17) “Pode-se pensar a mobilidade urbana


sustentável dentro do conceito mais amplo do desenvolvimento sustentável, que se refere à
promoção do equilíbrio entre a satisfação das necessidades humanas com a proteção do
ambiente natural. E sobre os impactos que obras de grande envergadura podem provocar no
espaço urbano, o IPEA esclarece o seguinte:

Os municípios e aglomerados urbanos devem buscar melhores condições de


sustentabilidade dos seus sistemas de mobilidade, o que significa a redução das
desigualdades existentes nas formas de deslocamento da população, com soluções
econômicas equilibradas e financiamento com características progressivas em relação
à renda e que privilegiem a modicidade tarifária dos sistemas públicos de transporte.
Tudo isso agredindo o mínimo possível o meio ambiente (p. 28).

Segundo Magagnin e Silva (2008, p. 1) “O conceito de mobilidade urbana ainda é


muito recente no Brasil e os problemas a ele relacionados ainda não estão muito claros para
uma parcela significativa da população”. Para estes autores “A antiga denominação do
planejamento de transportes passa a incorporar um conjunto de novos conceitos, entre eles o da
mobilidade urbana, [...]” (Idem).

Figura 4 – BRT (Transporte Rápido por Ônibus)

Fonte: https://oimparcial.com.br/app/uploads/2016/12/brt-324873.jpg

A discussão que se propôs foi: porque essa obra em um local onde o quantitativo
de pessoas é muito inferior ao centro convergente como o bairro da Cohab, do São Cristóvão
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ou do Anil? O que podemos apontar é que esta obra segue o mesmo critério da construção do
viaduto em frente ao Alphaville. Ou seja, está implicado na questão dos marcadores sociais da
diferença – é para servir ao embelezamento de um espaço já tão beneficiado como a Avenida
dos Holandeses. Não tem relação com beneficiamento das classes populares, mas muito
provavelmente, está relacionado com o tempo que os trabalhadores que vendem sua força de
trabalho nessa região irão chegar.

4 DUAS CIDADES: MARCADORES SOCIAIS392

São Luís, como qualquer grande cidade, é caracterizada pela dicotomia – central e
periférico – marcadores sociais que denunciam a diferença entre ricos e pobres. Nos exemplos
apontados: Avenida dos Holandeses versus Avenida dos Africanos393, o trato para com as
avenidas, o cuidado é completamente diferente e visível a quem quer que seja. A qualidade do
asfalto assim como a pavimentação de ambas avenidas pode ser comparada nas figuras 4 a 7
que seguem abaixo.

Figura 5 – Asfalto da Avenida dos Holandeses

Fonte: Os autores

392
Um exemplo do conceito de marcadores sociais pode ser visualizado no trecho: “[...], analisando temas como
a relação das crianças com as diferenças de classe, raça, gênero e outros marcadores sociais, as hierarquias de
poder [...]” (SOUZA, 2006, p. 1).
393
Qualquer semelhança entre Europa e África no trato com as referidas avenidas pode não ser mera
coincidência.
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Figura 6 – Asfalto da Avenida dos Africanos

Fonte: Os autores

Figura 7 – Trecho da Avenida dos Holandeses

Fonte: Os autores
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Figura 8 – Trecho da Avenida dos Africanos

Fonte: Os autores

Portanto, não é nenhuma teoria da conspiração apontar que há duas cidades a partir
do que se observa no trato para com determinados espaços geográficos como situações em que
as avenidas localizadas em áreas consideradas nobres estão frequentemente recebendo
assistência e o que não é nobre, logo, indigno, os buracos e/ou crateras são eternos. Essa
situação não é difícil de se encontrar em São Luís. Como exemplo, no bairro Cidade Operária,
onde faz décadas que o poder público não se faz presente (figuras 8 e 9).
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Figura 9 – Avenida nos fundos do mercado da Cidade Operária

Fonte: Os autores

Figura 10 – Avenida próxima à feira da Cidade Operária

Fonte: Os autores

A placa da Prefeitura de São Luís indica, em leitura semiótica, algumas dualidades:


prefeitura presente – a Prefeitura é tão presente que finca uma placa em um espaço que foi
destinado a uma construção em total abandono e nem se dá conta do que faz ao plantar essa
placa. A ironia é o título da placa: PREFEITURA PRESENTE; São Luís em obras – apesar das
colunas de concreto com vergalhões de ferro ao fundo, essa estrutura não faz parte da São Luís
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que está em obras. A estrutura é de um projeto de construção de uma maternidade e já existe


nesse local a alguns anos. A placa, portanto, refere-se ao período que se aproxima – as eleições
2020. A Prefeitura de São Luís iniciou um intenso programa de reconstrução da cidade, a muito
esquecida, no final do último semestre de 2019, o que deixou clara a intenção de votos.

5 LOBO EM PELE DE CORDEIRO NAS CAMPANHAS POLÍTICAS

Está aberta a temporada de caça – temporada de caça ao eleitor. Nesse momento, é


possível se ver os candidatos realizando sua via crucis, dando as mãos a todos por quem passam,
beijam criancinhas, mesmo que estejam sujas, não importa, o que importa de fato, é dizer e
mostrar que é popular, do povo, que ama seu povo. Placas como a apresentada na figura 9
começaram a fazer parte da paisagem ludovicense desde o final do último semestre de 2019 a
cidade está tomada por elas. A propaganda na TV está de vento em popa. Os depoimentos são
os mais hilários, se escuta gente dizer: “[...] minha rua tá linda! [...]”.

Realmente, não é falso dizer que a rua está linda. No momento em que é
pavimentada, obviamente, está linda. E há o reforço – “[...] o asfalto é de qualidade [...]”, por
que será que isso precisa ser reforçado? Naturalmente porque não se acredita mais que político
possa fazer algo que seja bom para a sociedade. Então, é bom que isso fique claro - que o asfalto
é de qualidade, que a Prefeitura está trabalhando de forma correta para o cidadão.

Só que essa conversa já é velha. Essas práticas são velhas e conhecidas da


população. Infelizmente, muita gente tem memória curta e ao que parece, é nisso que os
políticos apostam que as pessoas não lembrem que poderia ter feito muito pela cidade, porém,
só quando se aproxima o período eleitoral é que eles se voltam para as questões sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na análise da cidade pelo prisma da sociologia, utiliza-se o conceito de fato social


de Durkheim para situar o dinheiro como a mola propulsora da cidade moderna/contemporânea
e/ou pós-revolução industrial. Simmel, por analogia, concebe o dinheiro como um fato social
total. Durkheim (1973, p. 389) cria o conceito de “fato social”, o qual segundo ele, tem
características específicas: “exterioridade – relacionadas às consciências individuais;
coercitividade – ação que exerce ou é suscetível de exercer sobre essas mesmas consciências;
generalidade – se generaliza por ser social, porém, não é social por se generalizar”.
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Mauss entendeu que a lógica mercantil moderna não substitui as antigas formas de
constituição dos vínculos e alianças entre os seres humanos e constatou que tais
formas continuam presentes nas sociedades modernas. Semelhantes modalidades de
trocas aparecem, para ele, como um fato social total que se revela a partir de duas
compreensões do total: totalidade no sentido de que a sociedade inclui todos os
fenômenos humanos de natureza econômica, cultural, política, religiosa entre outros
sem haver nenhuma hierarquia prévia que justifique uma economia natural que
precederia os demais fenômenos sociais. Totalidade, também, no sentido de que a
natureza desses bens produzidos pelos membros das comunidades não é apenas
material, mas também e sobretudo simbólica (MARTINS, s/d, p. 2).

Assim como Mauss amplia o conceito de “fato social” com o termo “total”, à teoria
de Durkheim, nos estudos que faz das sociedades não Ocidentais, o que também foi feito por
Malinowski com o Kula. Ambos, Mauss e Malinowski, falam de um tipo de situação
semelhante ao comércio – um sistema de troca - que exclui o dinheiro como principal moeda.
A moeda existe, mas na forma simbólica, baseado na reciprocidade e, no sistema escambo. “O
Kula é uma forma de troca e tem caráter intertribal bastante amplo; [...], um número mais ou
menos restrito de homens participam do Kula – ou seja, recebem os artigos, conservam-nos
consigo durante algum tempo e, por fim, passam adiante” (MALINOWSKI, 1976, p; 71).
Simmel fala da substituição desses sistemas de trocas, comércio, negociação, no Ocidente
moderno, exclusivamente, por outro tipo de moeda – o dinheiro.

Em A metrópole e a vida mental Simmel (1973) tem seu foco de análise para o
indivíduo. Assim como em A filosofia do dinheiro, onde o dinheiro assume a personalidade do
indivíduo e o representa como um cartão de visitas – o indivíduo é, na sociedade em que está
inserido, aquilo que ele possui, o dinheiro que tem.

Simmel vê o dinheiro como produtor de individualidades, o indivíduo é dono dessa


individualidade a partir das relações que estabelece com a autonomia gerada pelo dinheiro, fato
que não acontecia nas relações até a Idade Média – relações de dependência com o senhorio,
de dependência pela terra de que necessitava para se nutrir, física, social e moral e,
psicologicamente.

A vida na cidade, nas grandes cidades, vai alterar essas relações que eram tidas no
campo e isso só foi possível com o advento do dinheiro – arauto das necessidades individuais.
A vida mental da metrópole é, por excelência, a autonomia e a individualidade. Os indivíduos
estão muito mais próximos fisicamente do que quando estavam no campo, mas estão bem mais
distantes na metrópole. Comparativamente, no campo, há uma relação de vizinhança; na
metrópole, é como se os indivíduos morassem em outro planeta. Tal transformação do
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comportamento se deu por volta do século XVIII, quando o homem revoluciona seu modus
vivendi.

O século XVIII lançou ao homem o repto de se libertar de todos os laços históricos


no Estado e na religião, na moral e na economia. [...], o século XIX exigiu a
especialização funcional do homem e do seu trabalho; esta especialização tornou todo
o indivíduo incomparável a qualquer outro, e cada um deles indispensável na sua
máxima extensão. Contudo, esta especialização tornou cada homem ainda mais
directamente dependente das actividades suplementares de todos os outros”.
(SIMMEL, 2004, p. 75).

Segundo Simmel (1973, p. 78), a individualidade na metrópole se dá nas relações


de troca – do dinheiro por uma mercadoria -, resumindo-se à pergunta ‘quanto é’? Isso torna as
relações afetivas que nas pequenas cidades são tidas como “relações interpessoais baseadas na
individualidade das pessoas a apenas relações racionais onde as pessoas são reduzidas a
números, o que Goffman (2001) vai focar como objeto de análise em Manicômios, prisões e
conventos – a institucionalização do indivíduo -, a despersonalização do sujeito.

“A metrópole moderna é abastecida pela produção destinada ao mercado”. O


indivíduo na metrópole mantém relações com os outros de forma abstrata, intermediada pelo
dinheiro. A relação se resume a “compradores” e “fornecedores”, onde estes dois atores “nunca
entram pessoalmente na esfera do produtor particular”. O “anonimato” dessa relação, ou, não-
relação, favorece “uma impiedosa objectividade” (SIMMEL, 2004, p. 78).

Simmel só foi comentado nas considerações finais para ilustrar, que é por meio do
dinheiro que as velhas práticas políticas continuam a atuar. As ações do poder público atuam
dicotomicamente para favorecer sempre uma determinada classe social. As ações dos políticos
só encontram fôlego em vésperas de eleição. A cidade está a muito tempo abandonada, mas ao
aproximar-se os pleitos eleitorais, a placa onde consta a frase: PREFEITURA PRESENTE,
mostra o quanto a essa prefeitura não está presente.

REFERÊNCIAS

DURKHEIM, Émile; COMTE, Auguste, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol. I 1973. –
(Coleção Os Pensadores).

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Texto para discussão. - Brasília:


Rio de Janeiro: Ipea, 1990-. Disponível em:<
http://memoriadasolimpiadas.rb.gov.br/jspui/bitstream/123456789/1200/1/MU057-
%20MOBILIDADE%20URBANA%20SUSTENTAVEL.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2020
Página 1794 de 2230

GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. Trad. de Dante Moreira Leite. 7. ed. - São
Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

MAGAGNIN, Renata Cardoso; SILVA, Antônio Nélson Rodrigues da. A percepção do


especialista sobre o tema mobilidade urbana. In: TRANSPORTES, v. XVI, n. 1, p. 25-35,
junho 2008. Disponível em:< https://revistatransportes.org.br/anpet/article/view/13/10>.
Acesso em: 01 fev. 2020.

MALINOWSKI, Bronislaw. Características essenciais do Kula. In: Argonautas do Pacífico


Ocidental: Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova
Guiné Melanésia. São Paulo; Abril, 1976, p. 71 – 86.

MARTINS, Paulo Henrique. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação.


Disponível em: < http://nucleodecidadania.org/artigos/a_sociologia_de_marcel_mauss.pdf>.
Acesso em: 05 dez. 2016.

SOUZA, Érica Renata de. Marcadores sociais da diferença e infância: relações de poder no
contexto escolar. In: Cadernos Pagu (26), jan./jun. 2006: p.169-199. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30390.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2020.

SIMMEL, Georg. As metrópoles e a vida mental. In: Fidelidade e gratidão e outros textos.
Rio de Janeiro: Relógio D’Água Editores, 2004.

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: O fenômeno urbano. Trad. Otávio
Guilherme Velho. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. – (Textos básicos de Ciências
Sociais).
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SÃO LUÍS PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE: QUE


POSSIBILIDADES UM CENTRO HISTÓRICO REVITALIZADO PODE
OFERECER?

SÃO LUÍS CULTURAL HERITAGE OF HUMANITY: WHAT POSSIBILITIES CAN


A REVITALIZED HISTORIC CENTER OFFER?

Walter Rodrigues Marques (UFMA/UEMA/IFMA)


marqueswalter@outlook.com

Eixo 3 – Cidades, Patrimônio Cultural e Sociedade

RESUMO: A pesquisa pretende relacionar patrimônio, cidade e sociedade. O poder público tem se
voltado para o centro de São Luís, revitalizando os espaços culturais e históricos, a muito abandonados,
inclusive por esse poder. Marques (2010; 2015) observa que o poder público na figura de seus
representantes tem buscado deixar sua marca na revitalização do centro de São Luís, a exemplo de João
Castelo (Projeto Reviver), Patrimônio Cultural da Humanidade (família Sarney), mas pouco do
prometido se efetivou. Em fins da gestão atual, a Prefeitura de São Luís tem se voltado para a
revitalização, a muito esquecida. Seria mais do mesmo? A pesquisa objetiva comparar o passado e o
presente do Centro Histórico de São Luís em termos histórico-culturais e quanto ao olhar do poder
público, buscando cartografar a dinâmica de revitalização, como das Praças Deodoro e Pantheon e as
atividades turístico-culturais promovidas pela Prefeitura como a Feirinha da Praça Benedito Leite. Faz-
se uma crítica à gestão que esteve à frente da Prefeitura de São Luís desde 2013 e só agora acordou (sic)
para essa e outras questões relacionadas à cidade – por que só agora? Com isso, discutir o potencial que
o Centro Histórico pode oferecer como ganho turístico, reconhecimento como legado cultural,
preservação da memória, por meio da revitalização.

Palavras-chave: Patrimônio cultural. Revitalização. Memória. Turismo.

ABSTRACT: The research intends to relate heritage, city and society. The public authorities have
turned to the center of São Luís, revitalizing the cultural and historical spaces, long abandoned, including
by this power. Marques (2010; 2015) notes that the government in the form of its representatives has
sought to leave its mark on the revitalization of the center of São Luís, following the example of João
Castelo (Reviver Project), Cultural Heritage of Humanity (Sarney family), but little of the promised has
come true. At the end of the current administration, the São Luís City Hall has turned to the long-
forgotten revitalization. Would it be more of the same? The research aims to compare the past and the
present of the Historical Center of São Luís in historical-cultural terms and in terms of the government's
view, seeking to map the dynamics of revitalization, such as the Praças Deodoro and Pantheon and the
tourist-cultural activities promoted by the City Hall like the Feirinha in Praça Benedito Leite. A criticism
is made of the management that has been in charge of the São Luís City Hall since 2013 and has only
just woken up (sic) to this and other issues related to the city - why only now? With this, discuss the
potential that the Historic Center can offer as a tourist gain, recognition as a cultural legacy, preservation
of memory, through revitalization.

Keywords: Cultural heritage. Revitalization. Memory. Tourism.

1 Introdução
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A preocupação com a preservação e conservação do Centro Histórico de São Luís do Maranhão


tem rendido várias centenas de páginas que agrupam informações desde sua fundação até os dias atuais.
Muitos repetem dados exatos, outros divergem sobre o mesmo dado. Alguns são mais didáticos, outros
técnicos, mas cumprem a função de compilar dados e simplificá-los, atualizá-los, tornando de certa
forma compreensível ao mundo de hoje. A relevância da escolha das fontes foi por considerar que
retratam a cena maranhense por diferentes vieses, mas, relevantes para fundamentar esta pesquisa.
Pretende-se aqui tratar mais de inquietações acerca do olhar do autor sobre São Luís como uma
cidade histórica que é carente de cuidados por parte do poder público e dos ludovicenses para com a
arquitetura da cidade e o conjunto azulejar. A arquitetura é composta de estilos como neoclássico,
neogótico, rococó, arte déco, tido por alguns autores como de estilos mistos. Não se pretende
desconsiderar o que já foi dito e como foi dito sobre São Luís por outros autores, mas complementá-los.
Sobre o como a modernidade foi e está sendo danosa para o Centro Histórico de São Luís,
preterindo seu valor histórico em detrimento de uma promessa do “novo” que não se efetiva, uma vez
que as políticas públicas são escassas tanto para o acervo arquitetônico em termos de preservação como
para as pessoas do entorno, as que ali moram, trabalham e também àquelas que a visitam.
García Canclini (2013) chama a atenção para as contradições porque passou a América Latina
quanto ao processo de se modernizar, “modernismo sem modernização”. O autor diz que esta parte da
América foi colonizada “pelas nações européias mais atrasadas”, que estavam submetidas “à Contra-
Reforma e a outros movimentos antimodernos”, que só pôde iniciar sua atualização com a
independência.
A produção material do homem ao longo do tempo é tida como cultura, os feitos são guardados
na forma de memória para as gerações vindouras conhecerem seus ancestrais e seu legado. A cultura é
uma herança que o homem do passado doa a seus descendentes, não apenas em recursos materiais, mas
também em sua carga genética.
Embora o homem, por ocasião de seu nascimento, pareça nascer como uma tábula rasa, como
postulou Aristóteles, vem com predisposição a chorar, rir, falar, adaptar-se, com dentes uniformes (não
mais necessitando de presas pontiagudas, pois o alimento já é preparado sem que seja preciso rasgá-lo).
Portanto, mesmo que a sociedade venha a cultuar a modernidade, não pode esquecer que tem um passado
e, quando este passado está em forma de cultura material, é preciso preservá-lo, uma vez que faz parte
da história de seu povo.
A cidade de São Luís, sobretudo, seu Centro Histórico, passa por uma triste história de
abandono e descaso tanto pelo poder público quanto por proprietários e também por parte da população
que depreda o “Patrimônio” que outrora a ele – o povo – fora deixado.

2 Patrimônio cultural e políticas públicas de revitalização, preservação e conservação


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O Caderno “Diretrizes Gerais para o Plano Nacional de Cultura”, quando se refere a diagnóstico,
desafio, política pública, proteção, promoção, do patrimônio artístico e cultural explicita que:

A preservação do patrimônio material e imaterial brasileiro representa um dos pontos


centrais de atuação das políticas culturais. Na base dessa atuação está uma noção de
patrimônio que busca contemplar, atualizar e valorizar a percepção histórica e artística
da diversidade cultural, étnica e social do país, bem como seus documentos
arqueológicos e etnológicos.
Atualmente, entre os desafios para o campo do patrimônio, figuram o estreitamento
dos laços entre reconhecimento, tombamento e salvaguarda do patrimônio material e
as formulações desenvolvidas no campo da economia da cultura, além da ampliação
de seu conceito em direção aos bens intangíveis. (BRASIL, 2008, p. 33; 44-45).

Na tentativa de buscar definições e conceituações para patrimônio, o que também suscita a


criação de instituições para a salvaguarda dos objetos reclamados por essa noção de patrimônio, sejam
materiais ou imateriais, Girão (2001, p. 107) aponta que:

A noção de Patrimônio e a institucionalização de ações para a sua salvaguarda


surgiram e se desenvolveram, nos estados modernos, para contrabalançar essa
tendência, firmando-se como resposta à busca de valores permanentes em vista
daquele quadro de transitoriedade. “Acentuava-se, então, a polaridade entre a vontade
de preservar – deixando transparecer a aspiração de autoconhecimento cultural e de
imortalidade mediante a apropriação da permanência das obras de arte – e a vontade

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