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N.

º 3

candido
outubro
2011

jornal da biblioteca pública do paraná


Ilustração: Rafael Campos Rocha

Duelo
de saberes
Fundamental na formação
de leitores, a literatura
infantojuvenil enfrenta
grandes desafios diante
das novas tecnologias

• Pomar | Adélia Prado • Máquina do tempo | Heloisa Seixas • Três contos | Assionara Souza •
2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

editorial

E
m um tempo em que as crian- cartum expediente

ças parecem totalmente des-


olavo rocha e guilherme caldas andré dhamer
vinculadas do livro de papel,
mais afeitas às maravilhas do
mundo digital, uma aparente con- Governador do Estado do Paraná: Beto Richa
tradição se revela: nunca se leu e Secretário de Estado da Cultura: Paulino Viapiana
publicou tanto no Brasil. Para dis- Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira
cutir essa questão, a edição de ou- Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Gerson Gross
tubro do Cândido dedica sua capa
à literatura infantojuvenil. Grandes Coordenação Editorial: Rogério Pereira e Luiz Rebinski Junior.
autores, como Ana Maria Machado Redação: Fernanda Rodrigues, Felipe Kryminice, Guilherme Sobota e
e Ricardo Azevedo, que há décadas Monique Cellarius Fotografia: Kraw Penas. Projeto gráfico: Alexandre
acompanham o desenvolvimento da de Mari. Diagramação: Carlos Bovo. Colaboradores desta edição:
leitura no Brasil, falam sobre os de- Ana Maria Machado, Adélia Prado, Assionara Souza, André Dahmer,
safios e as vantagens de formar no- Camila Gazzola Schiffl, Guilherme Caldas, Heloisa Seixas, José Marconi,
vos leitores na era da internet e das Olavo Rocha, Rafael Campos Rocha, Rita Solieri Brandt Braga, Roberto
redes sociais. Gomes e Yuri Al’Hanati.
“É um desrespeito à inteli-
gência dos jovens imaginar que, por Redação: imprensa@bpp.pr.gov.br - (41) 3221-4974
estarem acostumados com compu-
tador e internet, convertem-se em Biblioteca Pública do Paraná
semianalfabetos, incapazes de se de- Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 – Curitiba - PR.
liciar com um bom texto que não • Horário de funcionamento: segunda a sexta: 8h30 às 20h.
fale de sua realidade imediata”, de- Sábado: 8h30 às 13h
fende Ana Maria Machado.
“O que preocupa não são as Critérios para publicação no Cândido
novas tecnologias, mas sim sua uti- Todos os originais enviados ao Cândido, serão analisados pelo seu
lização por gente individualista e Conselho Editorial, que avalia a partir dos seguintes critérios:
consumista, por técnicos acríticos cartas • Contribuição relevante ao jornal;
e despolitizados”, afirma Ricardo • Adequação ás propostas do Cândido, que privilegia obras inéditas,que
Azevedo, em entrevista ao Cândi- “Acabo de ler boa parte do que se encontra no Cândido, e percorrê-lo todo, da entrevista do Miguel tenham relevância para a cultura.

do. A discussão é recheada por tex- Sanches Neto às pequenas notas com personalidades variadas sobre livros preferidos.” Para obter a aprovação para publicação, as obras devem preencher os
to que tenta desvendar o fascínio Salim Miguel – Florianópolis/SC seguintes requisitos:
• De estilo (correção, clareza, coerência, rigor, coesão e propriedade).
de jovens pela literatura de fanta- • De conteúdo (nível apropriado de aprofundamento dos temas, evidência
sia, um gênero bem-sucedido e que “Escrevo para parabenizá-los pela inteligente e bonita publicação com a qual acabam de presentear de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação e elaboração;
ganhou toque brasileiro nos últi- os paranaenses. Desejo muito sucesso e torço para que este seja apenas o primeiro passo de originalidade da abordagem).

mos anos, com ascensão de best-sel- uma longa caminhada cheia de conquistas.” O Conselho Editorial não analisa:
lers nacionais como André Vianco e Cristiano Viteck – Marechal Cândido Rondon/PR
• Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos à correção do autor.
Eduardo Spohr. As obras devem estar corretamente padronizadas e revisadas, de modo a
A edição traz ainda texto “Em primeiro lugar, quero parabenizar o excelente trabalho registrado no jornal Cândido. Fiquei permitir a leitura crítica e a análise final da obra.
espe­­­
cial do escritor Roberto Go- surpresa quando encontrei o nº 2, de setembro, nas Livrarias Curitiba, ao lado no Rascunho,
Serão imediatamente desconsiderados os originais que atentem contra as
mes sobre a poeta Helena Kolody, jornal que já acompanho há um tempo. Devorei todas as páginas, deliciei-me com o lindo poema declarações de direitos humanos e congêneres, as leis e os dispositivos
que agora em outubro completaria Lapa, de Alberto Martins, e com todo projeto gráfico do jornal. Parabéns! Através do seu jornal, morais e éticos, nomeadamente os casos de:
• Violação dos direitos políticos, sociais, econômicos, culturais e
99 anos; crônica inédita de Heloi- a Biblioteca Pública do Paraná cumpre o seu papel de divulgar, contribuir, produzir e construir ambientais;
sa Seixas sobre sua descoberta da nosso mundo literário paranaense.” • Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência e desrespeito a
escrita; e poema de Adélia Prado, Noemi Nascimento Ansay – Curitiba/PR crianças, idosos, bem como os preconceitos de raça, religião, gênero etc.

uma das maiores poetas da literatu-


ra contemporânea brasileira. “Estou colecionando o Cândido. Um dia vai valer ouro os exemplares números 1 e 2.” Todos os textos são de responsabilidade exclusiva
do autor e não expressam a opinião do jornal.
Boa leitura a todos. Dylon Zatorski – Curitiba/PR
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biblioteca afetiva curtas da bpp


Divulgação
Lembro que, lá pelos 12 anos, ao percorrer as prateleiras da
biblioteca da minha cidade escolhi, pelo título, O vermelho e o negro, “Um Escritor na Biblioteca” tem duas edições em outubro
de Stendhal. Mesmo sem perceber as complexidades da narrativa,
fiquei encantada com a trajetória de Julien Sorel, personagem Em outubro, o projeto “Um Escritor na Biblioteca” terá duas edições. Reinaldo Moraes partici-
que enfrenta suas paixões e dúvidas em meio às transformações pa no dia 4 de outubro; já no dia 18, Sergio Sant’Anna é o convidado. Os encontros acontecem
da sociedade. Ter reconhecido nele uma personagem moderna, em sempre às 19h, no auditório Paul Garfunkel da BPP. Moraes e Sant’Anna são, respectivamente,
crise, ajudou a moldar o meu gosto pelo aspecto psicológico das o sexto e o sétimo escritores a participar do projeto em 2011, que já contou com as presenças de
personagens e pelas contradições que o ser humano carrega, na vida e na arte. Cristovão Tezza, Elvira Vigna, Ana Paula Maia, Luiz Ruffato, Antônio Torres e Marçal Aqui-
Celina Alvetti é jornalista e professora da PUC-PR. Mora em Curitiba (PR). no. Nos encontros, o autor fala sobre literatura e sobre como as bibliotecas influenciaram sua
Divulgação formação como leitor e escritor.
Três autores redefiniram minha apreciação literária. Um deles é o
quase óbvio Edgar Allan Poe, seguido pelo infalível J. D. Salinger.
Recentemente o que mais tem me tomado por assalto é Chuck Inscrições abertas para oficina com Marcos Damaceno
Palahniuk. Mais conhecido por Clube da luta, este autor estadunidense
tem uma série de outros livros igualmente ou ainda mais O diretor e dramaturgo curitibano Marcos Damaceno coordenará a próxima Oficina de Criação
impactantes. No sufoco, por exemplo, mescla perversões sexuais Literária na BPP. A oficina de Texto Dramático acontece entre 24 e 28 de outubro, das 14h às
com crítica social. Mas o mais marcante de seus livros ainda é 18h, na Sala de Reuniões da Biblioteca. As inscrições devem ser feitas até 15 de outubro, pelo
Sobrevivente. É a história do último remanescente de uma seita que decretou e-mail oficina@bpp.pr.gov.br. Os interessados precisam encaminhar um breve currículo e um
suicídio coletivo aos seus seguidores. Em sua jornada, narrada de dentro de um formulário respondendo as seguintes questões:
avião suicida, o protagonista faz atendimentos falsos na linha de um disque-ajuda, 1) Por que você quer participar da oficina de dramaturgia?
conta com o auxílio de uma vidente que não se surpreende com nada, tem um 2) Quais foram as últimas peças de teatro a que você assistiu?
brilhante diálogo com seu irmão através de um glory hole de banheiro público e 3) Quais foram as últimas peças que você leu?
um brilhante duelo final sobre um lixão repleto de revistas pornográficas. Palahniuk O material será avaliado pelo próprio Damaceno. As inscrições são gratuitas e as vagas limita-
tem habilidade para celebrar as idiossincrasias da humanidade, conseguindo das. Esta é a sétima edição da Oficina BPP de Criação Literária em 2011. Já passaram pela BPP
sustentar ao mesmo tempo uma doce crueza e uma torpe poesia. autores como Michel Laub (Narrativa de Ficção), Luiz Ruffato (Romance) e Humberto Wer-
Paulo Biscaia Filho é diretor de teatro e cineasta. Escreveu e dirigiu o longa-metragem neck (Crônica), Miguel Sanches Neto (Conto).
Morgue Story – Sangue, Baiacu e Quadrinhos. Vive em Curitiba (PR).

Divulgação

“O livro Antonio, da escritora Beatriz Bracher, foi um dos poucos que Aventuras Literárias
consegui ler até o fim neste ano. O romance fala de um filho em busca
da sua história, impulsionado pela descoberta tardia de um outro filho, A próxima edição do projeto “Aventuras Literárias” traz à BPP a escritora e professora Liana
de um outro tempo, da mesma mãe, com o mesmo nome. Essa história Leão. O encontro acontece 15 de outubro, às 15h, no auditório Paul Garfunkel, no 2º andar da
é contada de diversas formas e olhares pela família e por conhecidos. BPP. A entrada é franca. Liana Leão é graduada em Literatura Americana e Inglesa pela Jack-
Encontrei a autora em um evento. Me aproximei e pedi um autógrafo. sonville State University (EUA) e em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Ja-
Enquanto ela, timidamente, aceitava o desafio do improviso, falei bem neiro. Também é mestre em Comunicação pela mesma universidade e mestre em Literaturas
baixinho: “amei sua família!” Ela abriu o livro, delicadamente, e escreveu: “Amor de Língua Inglesa pela Universidade Federal do Paraná, além de possuir doutorado em Letras
recíproco”. Antonio e Beatriz agora fazem parte da minha história. (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (2000). É autora de
Selma Mitie Taketani Utrabo é proprietária da Itiban Comics Shop, loja especializada diversos livros voltados ao público infantojuvenil, como O livro dos corações (Salesiana, 2006), Ju-
em histórias em quadrinhos. Vive em Curitiba (PR).
lieta de bicicleta (Cortez, 2005) e A caixinha de narizes (Cortez, 2006).

“Indico O grande mentecapto, de Fernando Sabino, pois a partir deste Kraw Penas
livro aprendi a gostar de literatura. Diferente das coisas “chatas” Semana Nacional do Livro e da Biblioteca
que temos que ler no ensino médio, quando ainda não temos muito
conhecimento de literatura e acabamos por não entender nada, o livro Entre 24 e 29 de outubro, a BPP promove programação especial em homenagem à Semana
de Sabino é de fácil entendimento, dinâmico e muito divertido. Além Nacional do Livro e da Biblioteca. O destaque da programação fica por conta da palestra do
de nos ensinar muita coisa, o escritor cita diversos autores ao longo escritor Affonso Romano de Sant’ Anna, no dia 24, às 10h30, sobre sua experiência como di-
da história. retor da Biblioteca Nacional. Às 10h, será lançado o Plano Estadual do Livro, Leitura e Lite-
Danielle Ribeiro é estudante de Letras – Espanhol e vigilante da ratura do Paraná. Exposições, oficinas, apresentações de piano e contação de histórias também
Biblioteca Pública do Paraná desde 2008. Vive em Curitiba (PR).
estão na programação.
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Fotos: Kraw Penas

Antônio Torres
Quinto convidado do projeto “Um Escritor na
Biblioteca”, Torres relembra sua infância com livros
no interior da Bahia, fala de seu processo de
criação, da influência do jazz em sua literatura
e da relação de amizade com Moacyr Scliar,
morto no começo deste ano
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Como nasce o leitor Influência da primeira professora
ão são poucos os escritores que creditam sua entrada na
Eu vim de um interior em que Minha mãe fazia parte do projeto
literatura a algum fato pontual ocorrido em suas vidas. o interior de hoje seria impensável na- de cataquese elaborado por uma profes-
Dalton Trevisan, por exemplo, “virou” escritor depois de quele tempo. Era um lugar sem notí- sora que tinha vindo de fora para abrir
um acidente, que quase o matou, sofrido na fábrica de cias das terras civilizadas, como canta- a primeira escola pública da minha ci-
va o Luiz Gonzaga, rei do baião. Uma dade, que por sinal, naquela época, ain-
vidros de seu pai. J.D. Salinger, que lutou na Segunda terra sem livros. Ali, naquele lugar, não da não contava com alunos, porque os
Guerra Mundial, teve sua trajetória como escritor marcada pelo existia nem escola. Existia um profes- pais não queriam que os filhos fossem
desembarque na Normandia, no Dia D. sor particular que era mestre mais na estudar. As filhas para não aprender a
palmatória do que nas letras. Esse ho- escrever cartas para os namorados. E os
Antônio Torres não teve nenhuma experiência traumática, mas mem virou uma celebridade no lugar. filhos para não desfalcar a mão de obra
se lembra bem do dia em que nasceu como ficcionista. Nascido O nome dele era Laudelino Mendon- na lavoura. Era um drama para a pro-
em 1940, em um povoado da Bahia à época chamado Junco (hoje ça, conhecido como “Pai Lau”. Porém, fessora. Ela teve que fazer toda uma ca-
eu não fui aluno dele. Eu tive a sorte tequese junto às mães. Esse ABC que
a cidade de Sátiro Dias), Torres virou escritor ainda na infância,
de pegar a primeira escola pública que minha mãe me deu já fazia parte desse
quando foi desafiado por uma professora a escrever uma redação apareceu no lugar, já na segunda me- projeto. Então, quando minha mãe me
sobre “um dia de chuva”. “O lugar era chegado numa seca. Escrever tade dos anos 1940. Era a escola – até levou para a professora, ela deu graças a
hoje muito criticada – que vinha no Deus, tinha um aluno já adiantado no
sobre chuva exigia muita imaginação. Eu acho que foi nesse dia que
bojo dos projetos ufanistas do Gover- processo de alfabetização. Aí, nesse en-
ela fez de mim um ficcionista”, disse o autor durante o bate-papo “Um no Vargas. Era uma escola criada pelo canto, tome poema patriótico, tome lei-
Escritor na Biblioteca”, promovido pela Biblioteca Pública do Paraná. Villa-Lobos, na verdade. A marca des- tura em voz alta – que são minhas ofici-
sa escola era a cantoria, diariamente, de nas literárias até hoje: são essas leituras
Apesar da relação estreita com o Nordeste brasileiro e o modo de
hinos e a leitura de poemas patrióticos. que eu tive na escola primária. Depois
vida sertanejo, Antônio Torres, no entanto, nunca deixou que esse Isso me marcou muito, porque quan- de velho, percebi o quanto foram im-
traço biográfico fizesse dele um escritor monotemático, guiado do cheguei à escola – eu nasci na roça, portantes aquelas leituras em voz alta.
num mundo rural completamente iso- Eu sei que no primeiro Sete de Setem-
apenas por sua biografia. Seu primeiro romance, Um cão uivando para
lado, diferente do que ele é hoje – já es- bro, ela me pôs num palanque na fren-
a lua, não é um livro sobre o Brasil profundo, mas sim uma obra que tava semialfabetizado pela minha mãe. te da escola, numa praça empoeirada,
transita com a mesma desenvoltura por cenários rurais e urbanos. Um dia ela chegou em casa, num dia de entupida de gente, eu tremendo. Calça
feira, e apresentou para o filho mais ve- curta azul marinho, uma fitinha verde e
Seu grande sucesso veio em 1976, quando publicou Essa terra,
lho um objeto não identificado. Que era amarela, uma bandeira do Brasil numa
narrativa de fortes pinceladas autobiográficas que aborda a questão um ABC. É a imagem mais forte que mão e Castro Alves na outra! “Auriver-
do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida melhor nas eu tenho da minha infância: eu senta- de pendão de minha terra/ que a bri-
do no chão, onde estava brincando de sa do Brasil beija e balança/ estandarte
grandes metrópoles do Sul e Sudeste.
bola de gude, e minha mãe chegando que à luz do sol encerra/ as promes-
Em 2000, Torres ganhou o Prêmio Machado de Assis, da com aquele presente. Abre e começa a sas divinas da Esperança...” Eu achan-
Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra. Em me mostrar o que era o ABC. As le- do que ia cair de tanto tremer. Quando
tras. Eu via aquele conjunto enigmático olho, o povo chorando. Acho que é por
2001, foi o vencedor, junto com Salim Miguel, do Prêmio Zaffari
diante de mim e fiquei fascinado. Pela isso que até hoje faço palestra, porque
& Bourbon, da 9ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, descrição que ela fazia das letras, per- esse negócio tem uma resposta. O povo
por seu romance Meu querido canibal. cebi que cada letra tinha um desenho e chorava, o povo não entendia o que era
Aos 70 anos e depois de onze romances, Torres ainda persegue o cada desenho criava para ela uma per- auriverde, o que era pendão da esperan-
sonalidade própria, um nome. Fiquei ça, estandarte muito menos, mas estava
livro perfeito. “A essa altura já não tenho nenhuma ilusão de que encantado, maravilhado. Ela percebeu e, achando um grande barato aquele garo-
vou ganhar o Prêmio Nobel, de que vou fazer e acontecer. O que no embalo, já passou para o “be-a-bá”, to da roça ter tido a coragem de decorar
quero é viver mais para escrever bastante e tentar, quem sabe, me para a formação de palavras, começou todas aquelas palavras bonitas. Era que
a me explicar que aquilo dava nome a nem a missa em latim, ninguém enten-
superar naquilo que eu já fiz.” Confira os principais trechos da tudo que havia no mundo. Tudo come- dia nada, mas era bonito demais. De-
conversa, mediada pelo jornalista Luiz Andrioli. çava ali, naquele ABC. pois que traduziram a missa, ficou sem
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graça. “Introire altare Dei” é muito mais árvore frondosa, imensa. Eu olhei e dis-
bonito que “Introduza o altar de Deus”. se: “bom-dia, dona carnaúba, a sua fama
Então, era essa coisa da força do Cas- vem de longe”. E a carnaúba não se mo-
tro Alves, o poeta romântico, que certa- veu, orgulhosa de si. Então, as primeiras
mente pouco se entendia, mas não tinha leituras foram isso, em uma terra que
importância. Entender aquilo era uma não tinha biblioteca, não tinha li­­vros,
questão também de licença poética. não tinha nada.

José de Alencar Nasce o escritor


Uma das lembranças que tenho, é Na verdade, o método da minha
de minha professora Tereza chegando e professora era uma oficina literária.
abrindo as janelas da escola, aquele so- Hoje eu sei. Era fantástico. Ela come-
lão de sertão. Então, ela põe os li­­vros na çava com a leitura em voz alta, depois
mesa, coloca os meninos em fila e abre o lia para a gente copiar. Depois, tinha o
livro, chamado Seleta escolar – uma anto- ditado. Em seguida, vinha corrigir. De-
logia de contos, crônicas, poemas e tre- pois ensinava a fazer cartas. Tinha um
chos de romances. Ela abria e mandava começo determinado: “inesquecível
um menino ler. Isso me marcou muito amigo, o motivo destas mal traçadas li-
também. Abria-se: “verdes mares bra- nhas é dar-te as minhas notícias, e ao
vios de minha terra natal, onde canta a mesmo tempo, receber as tuas. Como
jandaia nas frondes da carnaúba”. Co- tem passado? Bem, não é?”. O come-
meço da Iracema, de José de Alencar, ço estava armado. Depois, ela ensina-
que é um poema em prosa, do qual eu va a fazer composição escolar. Os te-
nunca esqueci. Imaginem vocês o que mas eram ligados à nossa realidade. À
era a leitura desse trecho, falando desses casa. À roça. Um dia ela pegou pesa-
verdes mares, para um menino que vivia do. O tema seria “Um dia de chuva”. O
num lugar que não havia nem rio, quan- lugar era chegado numa seca. Escrever
to mais verdes mares. O que era uma sobre chuva exigia muita imaginação.
jandaia? Uma carnaúba? Passei noites e Acho que foi nesse dia que ela fez de
noites sonhando com os verdes mares. mim um ficcionista. Fui desafiado. Era
Quando eu fui a Fortaleza pela primei- muito seco aquele lugar.
ra vez, colocaram-me num hotel na bei-
ra-mar. Eu abri as cortinas e vi os ver- Literatura ritmada
des mares. E dos verdes mares eu vi a O ritmo marca muito minhas
professora saindo, com aquele li­­vro na frases. Mas isso vem da escola, vem des-
mão. Eu fui descobrir o que era uma sas leituras em voz alta. Nelas, você pega
carnaúba no ano passado, no Salão do o ritmo das palavras, som, cor, imagem,
Livro do Piauí, quando o Cineas San- até sabor. A leitura em voz alta leva
tos, o escritor local que organiza o Sa- muito a isso. Por isso que as minhas ofi-
lão, foi me levar para conhecer a cidade cinas são marcadas por essa leitura, por
e me mostrou um pé de carnaúba – uma essa música. Um tema recorrente na
minha cabeça é o “Blue Monk”, do The-
lonious Monk. Na minha fantasia, cada

“ O que eu quero é viver o “frase” da música é uma frase que eu es-


crevo. Fecha-se um bloco substantivo,
suficiente, para escrever bastante bem definido, ritmado. Depois entra o
saxofone, a bateria, a cozinha toda, aí
e tentar, quem sabe, me superar você solta a franga, desmunheca. Man-
naquilo que eu já fiz.” da entrar todos os adjetivos, advérbios,
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Redator de publicidade
Não tenho mais a Trabalhei numa multinacional
ansiedade do livro na prateleira.” chamada Ogilvy & Mather, que tinha
comprado uma grande agência brasileira
chamada Standard. O Ogilvy, dono da
agência, mandava para mim um mate-
rial com aulas, treinamentos para reda-
tudo que te proibiram usar. Se você tor. Realmente, ele foi um dos maiores
já foi capaz de fazer um bloco todo redatores que já houve no mundo. Eu
substantivado, você tem moral suficien- sou de uma geração que aprendeu mui-
te de fazer o que quiser no próximo to com ele e com outro cara, chamado
bloco. Claro que isso é uma viagem Willian Bernbach. O Olgivy sabia de
de quem escreve. Mas acho que o rit- todas as regras, censuras e proibições.
mo marca muito o que escrevo, me Mas ele também dizia que as regras
dá uma pontuação de fato. Eu sinto existem para ser quebradas. O Bern-
isso em determinados momentos. Por bach dizia para os redatores dele: “leia
exemplo, no começo do meu romance seu texto em voz alta e morra de vergo-
Meu querido canibal: “era uma vez um nha”. Isso já é uma aula. Lendo o texto
índio. E era nos anos quinhentos nos em voz alta, você mesmo pode se corri-
séculos das grandes navegações – e dos gir, perceber onde há palavras demais,
grandes índios”. Esse travessão para o onde há uma palavra que bate como um
leitor não significa nada, mas para mim tijolo no ouvido, algo mal empregado,
significa tudo. Uma quebra, uma disso- uma pontuação capenga. Mas eu digo tem escola, tem ginásio, tem ônibus da sados nessa busca de corrigir todo esse
nantada à Thelonious Monk. É isso que o seguinte: “leia seu texto em voz alta, escola rural levando e trazendo os alu- passado, mas a verdade é que eu perce-
eu gostaria de atingir. morra de vergonha ou espere o aplau- nos, tem biblioteca pública. Já há uma bo, e que acho que todo mundo perce-
so”. Nem sempre o cara vai ler em voz consciência nacional da necessidade da be, é que há um esforço sendo feito, e há
Miles Davis alta e morrer de vergonha. Tem o risco leitura e da sua difusão, porque creio uma preocupação maior com essa ques-
Às vezes, fico ouvindo Miles Da- de ser aplaudido. que uma parte considerável da socieda- tão da leitura. Nesse processo, os escri-
vis tocar uma música chamada “Enigma”. O que o leitor busca na literatura? de está finalmente compreendendo os tores, professores e agentes públicos da
Um solo maravilhoso. Se eu conseguisse É difícil determinar uma coisa só. prejuízos que nós temos com esse déficit área cultural passam a ter um papel bas-
amarrar isso e trazer para o mundo das Porque há buscas de leituras das mais de leitura, tão imenso. Ao longo de nos- tante significativo.
palavras, eu seria o escritor mais feliz do variadas. Uma, muito óbvia para mim, é sa história, nos descuidamos muito da
mundo. Mas o Miles Davis me deu o títu- a questão da receita: a receita de viver, a questão da educação. Se formos com- Academia Brasileira de Letras
lo do meu primeiro livro. Um cão uivando receita da felicidade, etc. Isso é um ni- parar com a Argentina, aqui do lado, a Quando me telefonaram dizen-
para a lua é o Miles Davis tocando uma cho. Majoritário, até. O camarada entra gente leva uma surra tremenda, porque a do para eu fazer a carta de ingresso
música chamada “My Funny Valentine”. na livraria e vê lá “como ser feliz em um Argentina resolveu isso na passagem do na Academia – que fiz só porque sou-
Eu ouvindo em São Paulo com uma ami- mês”. Passa esse tempo, o cara não fica século XVIII para o XIX, eles ti­nham be que o Ferreira Gullar não iria par-
ga, em uma noite de breu sem luar, bem feliz, mas fica viciado naquele tipo de uma burguesia esclarecida que se empe- ticipar, porque caso ele se candidatasse,
paulistana mesmo, nos anos 1970. Co- leitura – e continua comprando. Ago- nhou em erradicar o analfabetismo. Nós já estaria eleito –, fiz sustentado ape-
mecei a ouvir aquela música e de repen- ra, por outro lado, há pessoas em busca tivemos um atraso enorme nesse senti- nas pelo fato de ser a cadeira de Mo-
te minha amiga disse: “parece um cão ui- de um conhecimento mais amplo, um do. Que só começa a melhorar um pou- acyr Scliar, que foi um grande amigo, a
vando para a lua”. E eu retruquei: “não, entendimento maior deste tempo, que co com a vinda do D. João VI, em 1808, ponto de frequentarmos um a casa do
parece um boi berrando para o sol”. Fica- é um tempo confuso, complexo. Não há que traz bibliotecas, escola de ensino su- outro. Então achei que tinha tudo a ver
mos nessa discussão a noite toda. Quan- nada de mão única. perior, escola de astronomia, missão ar- eu me candidatar na vaga do Scliar. Só
do saiu o romance, veio essa imagem for- tística francesa para formar os arquite- que quando cheguei lá e apresentei mi-
tíssima, porque aquele solo sustenta uma Leitura hoje tos e engenheiros brasileiros. Mas isso nha carta, exatamente cinco minutos
nota no ar durante um tempo sem fim, Há, hoje, uma mudança grande em 1800. Para trás, parece que não fi- depois de decretada aberta a vaga, eu
com uma densidade impressionante. É no Brasil. Eu vejo o interior, por exem- cou nada. Um tempo perdido, um vácuo senti o clima. A Academia já estava fe-
um cão uivando para a lua mesmo. plo. Eu vou ao interior da Bahia e hoje imenso. Claro, nós estamos muito atra- chada com o Merval [Pereira, jornalista
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que foi eleito]. Eu estava entrando atra- ram Machado de Assis de ser um preto Rotina de escritor
sado no processo. As candidaturas são de alma branca, e isso aqui é uma porra-
Miles Davis me deu o título Eu morava em Copacabana, com
pavimentadas antes, e o Merval já es- da geral na história do Brasil. Isso aqui do meu primeiro livro. Um cão todos os barulhos do mundo, de frente
tava muito bem articulado naquele pe- diz mais sobre nós, do que somos e do para um prédio enorme, e conseguia es-
daço. Eu vi que, de cara, saiu um grupo que fomos, do que muitos compêndios. uivando para a lua é o Miles crever. Aí me mudei para a Serra. Mi-
me apoiando. Começamos então a fa- Compêndios levam páginas e páginas Davis tocando uma música nha janela dá para árvores, passarinhos
zer contas e percebemos que eu estava para tentar provar isso. Aí, vou ler Dom cantando de manhã. Fiquei mais de um
perdendo, mas por pouco. Era a segun- Casmurro. Reler. Na primeira vez, você lê chamada ‘My Funny Valentine.’” ano sem conseguir escrever uma linha
da vez que eu me candidatava. O can- pelo enredo, pela história, você não sabe ali. Consegui as condições ideais para
didato que ganhou de mim na primei- ler aquilo. Mas você vai ler bem mesmo um escritor: silêncio, exílio e astúcia, na
ra vez, o Luiz Paulo Horta, ficou muito depois de velho. Aí que você aprende a receita do James Joyce. Tive o silêncio
meu amigo. Quando entrei na segun- ler. Depois, pego a tradução fantástica do Livro digital e o exílio, mas faltou a astúcia, e isso
da disputa, vi que também estava per- Rubens Figueiredo de Anna Kariêninna. Acho que ninguém tem uma res- você não compra. Tem que estar dentro
dida, mas deixei rolar. Não é fácil per- Eu leio 800 páginas e digo “fantástico”. posta. Por enquanto, o livro nunca este- de você. Aí, percebi o seguinte: naque-
der, é muito chato. Mas, por outro lado, Tolstói pegou o século XIX inteiro e bo- ve tão forte. Acredito até que as novas le meu escritório de Copacabana tinha
descobri uma coisa fantástica nesta se- tou nesse romance. Anteviu nele até o tecnologias estejam trazendo benefí- uma porta, uma parede falsa, e eu olha-
gunda candidatura, algo do qual eu não evento do comunismo. Porém, tudo par- cios. Descobri recentemente uma livra- va para dentro de casa. Nesse escritó-
tinha o menor conhecimento: que há te de um caso de adultério. Mas Macha- ria virtual que é uma grande maravilha, rio da Serra, eu olho para fora. Então,
uma afeição nacional pela minha pes- do fez melhor. Ele criou um enigma, su- a Estante Virtual. Num país desse ta- eu tinha que trazer esse olhar de fora
soa e pelo meu trabalho. Fiquei como- til. Ele é mais artista. Claro que Tolstói manho, com duas mil livrarias, é mui- para dentro de mim. Isso me criou uma
vido com isso. Escritor não tem muita é um grande romancista, como o sécu- to pouco. A Estante Virtual preenche complicação. Às vezes, tenho períodos
noção do alcance de sua obra. Eu, por lo XIX inteiro é o século do apogeu do um vazio nacional. Acabei de assinar em que escrevo todos os dias. Mas ago-
exemplo, procuro me manter na minha romance. Mas Machado era melhor. Era um contrato com a Record. Antes, os ra interrompi um romance. E não vou
anônima condição de autor que não é mais artista. Sutil. Fantástico. contratos eram um para cada livro, um correr para entregá-lo e cumprir prazos.
da mídia, que não tem poder político, monte de páginas, e tal. Agora fizeram Não tenho mais a ansiedade do livro na
não tem poder econômico – e fazer dis- Moacyr Scliar todos os títulos num só contrato, e está prateleira. É duro, porque se corre o ris-
so a minha limonada. A essa altura já Nós nos conhecemos na Ale- autorizado para tudo: impresso, e-book, co de passar muito tempo sem escrever e
não tenho nenhuma ilusão de que vou manha, em 1985, em Frankfurt, a nos- etc. Me disseram que daqui a três me- desaparecer. Como muitos amigos meus
ganhar o Prêmio Nobel, de que vou fa- sa tradutora era a mesma. Ele ficou na ses todos estarão em formato e-book. desapareceram, grandes escritores da
zer e acontecer. O que eu quero é viver o casa dela com o Antônio Callado; eu fi- Para nós, escritores, tudo está sendo minha geração. Eu já enfrentei empre-
bastante, para escrever bastante e tentar, quei no hotel com Silviano Santiago. muito bom. Estão sendo criadas outras gos diários, de começar cedo, terminar
quem sabe, me superar naquilo que eu Era uma delegação de quatro escritores, vias, outros acessos à leitura. Pelo me- tarde, tempos de boemia, muito cigar-
já fiz. Um dia escrever um romance que de dia universidade, de noite biblioteca nos durante um bom par de anos, não ro, muita birita, muita pancadaria. Mas
me encante mesmo. Como diz o poeta: pública. No primeiro dia me botaram acho que isso seja excludente. Acho que sempre consegui escrever. Até como for-
“que faça acordar os homens e adorme- para falar com o Scliar na universida- as duas formas vão marchar juntas. Há ra. Hoje já não tenho esse pique. Recen-
cer as crianças”. de de Frankfurt. Pronto, ficamos amigos livros que só vão funcionar em papel, há temente eu escrevia um parágrafo, acha-
para sempre. Viajamos juntos. Criamos livros que perfeitamente podem funcio- va que estava legal e não escrevia mais
Machado de Assis uma relação fantástica. O Rogério Perei- nar no virtual, a questão é muito am- nada para não estragar. Vocês sabem que
Pergunto-me como o Brasil do ra, que eu conheci na Feira do Livro de pla. E uma questão curiosa: acabo de baiano tem fama de preguiçoso.
século XIX pode ter gerado um autor Porto Alegre, em 2002, me foi apresen- ser contratado para ser curador de uma
desses? Um camarada que mal tinha o tado pelo Scliar. Uma das últimas vezes biblioteca virtual, chamada Nuvem dos Insight
curso primário, que era órfão, filho de que o vi foi na Fliporto, de Pernambu- Livros. Ou seja, um velho autor de li- Uma noite eu tive um sonho –
ex-escravos, numa cidade que, apesar de co, que ainda era em Porto de Galinhas. vros impressos cuidando disso. Estou isso já havia me acontecido, ter um so-
ser a capital do país, tinha uma popula- Colocaram eu e o Scliar para fazer a pa- achando um barato porque de repente nho e escrever um romance, que foi
ção analfabeta – o Brasil tinha 84% de lestra de encerramento. Foi um negócio são novas informações. Para o cérebro Um táxi para Viena d’Áustria. Este li-
analfabetos no tempo de Machado de sensacional. Tinha um tema, tinha tudo, isso é bom, quem sabe isso me ajude a vro nasceu de um sonho. Aí, agora tive
Assis. O orgulho do Brás Cubas é nun- mas o Scliar falou: “vamos esquecer esse driblar o alemão [Alzheimer], do qual outro sonho. Meu inconsciente me ti-
ca ter precisado ganhar um pão com o tema”, e começou a me entrevistar. Para nós todos passamos a ter um medo ter- rou da letargia, me tirou do zero, tra-
suor do seu rosto. Eu digo: “poxa, acusa- vocês verem como a coisa funcionava. rível depois de certa idade. balhou por mim enquanto eu dormia.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 9

Mas não é tão fácil assim. Depois de Eu vejo quando o governo faz uma edição normal também. Todas as edi- funciona é aquilo que é atrativo, aqui-
11 romances publicados e um livro de compra grande de livros, em pacotões, toras estão fazendo isso, buscando al- lo que é caro, assim como o automóvel,
contos, fica mais difícil. Escrever, com e o livro que custa trinta reais passa a ternativas de mercado. Mas acho que o tênis, tudo é caro, e é feito para uma
o passar do tempo, fica mais difícil. De- custar dois reais. E assim mesmo, rende nós, escritores, não temos competên- determinada classe. g
veria ser mais fácil, mas não é. Até você um bom direito autoral, por causa do cia para isso. Pode ser que um ou ou-
vencer a autocensura, o medo de escre- volume. Mesmo sobre dois reais, ainda tro tenha talento de economista, de ad-
ver – e escrever besteira –, isso leva tem- é lucrativo. Eu não sei como se resolve ministrador, mas acho que a maioria de
Próximos convidados do projeto
po. O que é um grande barato também, isso. A dimensão do país também com- nós não tem. Não conseguiríamos gerir
Um Escritor na Biblioteca:
porque se fosse fácil, não tinha graça. O plica, porque a distribuição também é toda essa máquina. Mal sabemos resol-
[Ignácio Brandão] Loyola outro dia me cara. Mandar livro do Paraná para o ver nossos próprios textos.
escreveu: “poxa, será que eu ainda tenho Rio de Janeiro é uma coisa complicada. • Reinaldo Moraes 4/10
o que dizer?” Eu disse: “Ih, Loyola, não Aí, tem que devolver, tem todo um pro- Edições baratas
me pergunta isso, não. Eu tô me fazen- cesso, os intermediários também. Por Sempre pensei o seguinte: por • Sérgio Sant’anna 18/10
do a mesma pergunta”. exemplo, a Record criou uma alternati- que no Brasil não se faz livro com
• Tony bellotto 29/11
va para o livro caro, que foi a BestBolso. papel jornal, capa menos sofisticada,
Acesso ao livro Eu estou lá, com Essa terra. Muitas li- etc.? Já me explicaram que não funcio- • milton hatoum 6/12
Claro que o ideal seria se o li­­­vro vrarias se recusam a vender esses livros na. Já foi feito e não deu certo. Porque
fosse barato e pudesse chegar a todo porque são baratos. É pouco lucrativo. no fundo, também, a gente vive nessa Sempre às 19 horas. Entrada franca.
mundo. Iríamos acabar ganhando mais. Quer dizer, a editora tem que tirar uma grande vitrine capitalista, onde o que
10 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

memória literária

Lembranças
Reprodução

de Helena
Kolody
Roberto Gomes, que editou
diversos livros da poeta
paranaense Helena Kolody,
relembra como conheceu
e iniciou sua parceria com
a escritora, que agora em
outubro completaria 99 anos

Sombra no muro

Persigo um pássaro
e alcanço, apenas,
no muro,
a sombra de um voo.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 11


um desconto. E o livro era feito. críticos literários. Para uns, Helena era
Roberto Gomes
Fora assim com todos os seus li-
Há quarenta anos ela apenas uma velhinha sonhadora e pie-

C
onheci Helena Kolody no dia 22 de vros até então. Desde o primeiro, que escrevia e ninguém havia se gas. Uma dessas senhoras que fazem
agosto de 1965. Sei disso com essa publicou em 1941, Paisagem interior. parte de academias de letras. A Criar
exatidão numérica pela data do au- Depois vieram Música submersa, de interessado em editar seus livros. iria perder dinheiro, advertiam. Por que
tógrafo que minha prima Sônia Ré- 1943, A sombra do rio, de 1951, e a Trilo- não editar poetas mais jovens, gente de
gis colocou no livro que estava lançando. gia, de 1959. Em 1966 – e nessa data os vanguarda, quem sabe um novo contis-
Poderia ser um dado inútil, mas críticos poderão descobrir uma virada to bebíamos, e voltei à pergunta: e os ta? Para dizer a verdade, lembro que,
acho que não é. Helena foi uma das pri- em seus poemas – ela edita Era espacial novos poemas? além de Hamilton Faria, só se entusias-
meiras a chegar ao lançamento e logo e Trilha sonora, onde se defronta com as Ela foi a uma gaveta e de lá reti- maram com a publicação anunciada o
tomou conta da conversa, querendo sa- tecnologias da época. Com a mesma re- rou um caderninho pequeno, desses que Paulo Leminski e a Alice Ruiz.
ber disso e daquilo, rindo, contando gularidade e com o mesmo método de eram usados para anotações em armazéns Paulo e Alice gostavam muito de
mais um de seus causos curitibanos, e edição, saem Tempo (1970), Correnteza que vendiam fiado. Antes de entregá-lo a Helena, sentimento que era recíproco. Ela
agindo com relação à Sônia como uma (1977) e Infinito presente (1980). mim, tentou me convencer de que não me dizia, com ares de escândalo, “mas al-
mãe protetora. Tempos depois fui des- Todas essas edições ela espalhou valeria a pena perder tempo com aquilo. guém precisa dar um jeito nesse Paulo, que
cobrir que ela agia assim com vários po- sobre a mesa de jantar de sua casa, onde Mesmo assim, me passou o caderninho. descabeçado, que pena, com aquele talen-
etas e jovens escritores. Adorava esse conversamos numa tarde curitibana Na primeira página, se não me to!” Preocupações de mãe, é claro. Paulo
papel, que via como uma extensão de cheia de luz e sol. Ela estranhou dia tão engano, estava escrita a palavra “poesias” foi o primeiro a escrever sobre a publica-
sua vida de poeta e professora. Ela mes- luminoso – “não é normal em Curitiba”, numa caligrafia miúda e justa, que de- ção de Sempre palavra. Um belo texto.
ma me contaria desses cuidados com disse-me – e ficamos folheando os livros nunciava as mãos e os cuidados de pro- Eu continuava espantado com os
amigos e amigas, sobretudo os jovens, um a um, sendo que em certos momen- fessora. Nas páginas seguintes, os po- quarenta anos em que ela mesma publi-
que considerava como filhos. Os filhos tos ela declamava algum poema, não raro emas. Dali saiu o livro Sempre palavra, cara seus livros em tiragens de cem ou
que não teve. Ou: os inúmeros filhos acrescentando que outros mereciam ser que a Criar Edições publicou em 1985. duzentos exemplares, conforme lhe per-
que conquistou vida afora. cortados. “A gente escreve demais quan- Quando afinal chegamos a de- mitiam suas economias. Então, quando
Não sei exatamente o que senti, do é jovem – e acrescentou, tendo sido cidir pela publicação dos poemas que soltei o primeiro release a respeito do li-
mas aquela senhora de 53 anos me pa- professora de biologia: hormônios.” dormitavam há anos no caderninho de vro – conhecendo Curitiba ao vivo e em
receu simpática e divertida. Seria uma anotações, o Hamilton Faria veio me cores – lasquei a frase que a meu ver jus-
poeta de verdade ou mais uma dessas Editando Kolody contar que Helena o procurara aflita, tificava a publicação, entre outros moti-
criaturas que sonham ser o que não são? Minha visita era motivada pelo querendo saber quanto iria lhe custar a vos: “Curitiba precisa amar alguém”.
– me perguntei, não podendo evitar o meu interesse em editar um livro de edição do livro. Hamilton explicou que Acho que acertei em cheio.
olhar oblíquo que desenvolvemos ao vi- Helena. Estávamos em 1984, a Criar ela não gastaria coisa alguma, a edito- Poesia mínima foi o próximo lan-
ver em meio a escritores, poetas e livros. Edições iniciava e ia bem para a épo- ra arcaria com todas as despesas e, so- çamento, em 1986, e, em 1988, prepa-
Alguns anos depois eu já não te- ca, que era favorável. Mandei o convite bre as vendas, ela receberia 10% de di- ramos a edição trabalhosa do conjunto
ria dúvidas. Era uma poeta que não po- através do poeta e amigo comum Ha- reitos autorais. Ela não acreditou. Não da obra de Helena no volume Viagem
deria ser ignorada. Li seus poemas nos milton Faria por duas razões: ele era gastaria nada e ainda receberia sobre as no espelho.
anos seguintes, em livros de edições amigo dela e eu era um tímido mórbi- vendas? Hamilton confirmou. Ela ficou Foi, para o editor empolgado que
modestas que encontrei nos sebos. Ela do. Ela marcou o dia e a hora e lá estava maravilhada. Dias depois me telefonou eu era, uma verdadeira festa. De início,
me contaria depois que todos os seus li- eu diante das antigas edições enquan- e, como quem não quer nada, me per- Helena não queria incluir livros antigos,
vros haviam sido editados por ela mes- to Helena lia mais um de seus poemas guntou pelos custos do livro. Repeti o que considerava superados – desejava eli-
ma através de um método que cultivava repetindo que alguns deles não gostaria que Hamilton havia lhe dito. Ela não minar todos. Depois aceitou que fosse fei-
com muito cuidado. de ver numa reedição. acreditava. Seguia maravilhada. ta uma escolha dos poemas que deveriam
Separava uns trocados de seu sa- Ela cultivava uma autocrítica Estávamos na metade da década sobreviver. E me perguntava, com a inge-
lário de professora, colocava em envelo- muito severa. Quando perguntei onde de 1980 e Helena escrevia desde a déca- nuidade de sempre: “Posso modificar?”
pes e, quando os poemas estavam pedin- estavam os novos poemas que podería- da de 1940. Fiquei pensando nisso. Há Acertamos o método que facili-
do publicação, comprava o papel para a mos publicar, ela fez de conta que se as- quarenta anos ela escrevia e ninguém taria o trabalho que tínhamos pela fren-
impressão e o levava à gráfica da Esco- sustou, escandalizada, e declarou que já havia se interessado em editar seus li- te. Explico aos que só conhecem a edi-
la Técnica, dirigida por um velho amigo não escrevia mais nada e me serviu um vros. Pior ainda. Senti no ar alguma re- ção em computador que a montagem
seu, cujo nome infelizmente não lembro. cálice de licor. Ouvi mais alguns poe- sistência de conhecidos ligados à litera- era feita poema a poema, em tiras im-
Ele fazia o orçamento, ela pechinchava mas, trocamos algumas fofocas enquan- tura, tanto escritores, professores, como pressas em papel por uma máquina cha-
12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná


mada IBMComposer. Tais tiras eram se um poema. Não deve ser considerado chos de seus poemas. Por isso ela preser-
recortadas e coladas em pranchas – em
Diziam os críticos: eram acidental o fato de ter sido professora vou o hábito antigo: presenteava a todos
alguns casos, para obedecer à disposição poemas tão curtos, três versos! por mais de trinta e cinco anos. Traz com seus livros. Ninguém saía de lá sem
gráfica exigida pelo autor, verso a verso. desta experiência uma atitude de peda- um livro e um autógrafo, mesmo filas de
Eu montava o livro aos poucos e levava E por que versos tão secos? goga, ou seja, de alguém visceralmente estudantes secundários tangidos por al-
o resultado a Helena. Ela fazia as mu- interessada no outro e em sua trajetória guma professora. Essa a razão pela qual
danças, os cortes, as correções. Muitos existencial, o que confere à sua poética muitas vezes preferiu receber seus direi-
versos e poemas foram condenados sem se aquele mau passo. Voltasse aos poe- um caráter de busca de sabedoria. Ade- tos autorais em livros. Queria presentear.
piedade e outros tantos foram burilados mas longos e derramados. mais, a paixão pelo ensino da biologia, O pequeno apartamento na Vo-
até chegar àquilo que Helena desejava. Ela não cedeu. Seus poemas fo- além de render belas imagens em sua luntários da Pátria era um centro de en-
Achada a forma final, ela fazia a ano- ram, com o tempo, se encaminhando obra, conferiu a esta poeta, aparente- contros e de peregrinação. Hélio Leites,
tação na margem, em elegante letra de para sínteses cada vez mais exatas e ful- mente mergulhada numa visão mística por exemplo, levava seu mini teatro para
professora de magistério. minantes. Voltou-se aos poucos, mas e etérea do mundo e da vida, um senso espetáculos na sala do apartamento. Nor-
O livro foi editado assim. Da com firmeza, para uma crescente eco- refinado de observação, uma abordagem malistas e jovens senhoras pediam conse-
prancheta até Helena, de Helena para a nomia de recursos. Era o que buscava, quase microscópica da aventura huma- lhos para seus casos de amor. Poetas re-
prancheta. Ela retirou tudo que lhe pa- como diria naquele poema no qual “o na. Além, quem sabe, de ter contribuído cebiam conselhos e tinham seus originais
recia excessivo, eliminou poemas, cor- carbono acorda diamante”. para a emergência de um senso de hu- lidos, relidos e anotados com a tal letra de
tou outros para um terço do tamanho, Os críticos de 1941 não enten- mor refinadíssimo e nem sempre ressal- professora. Helena servia licor ou refrige-
suprimiu palavras, desentortou versos. deram o que estava para nascer. Ainda tado pelos seus estudiosos. rante para todos, lia seus poemas com a
Isso demorou uns três meses e foi uma bem que ela não deu ouvidos a eles. Entre 1932 e 1967, atua como voz já trêmula, divertia-se contando cau-
das experiências mais gratificantes que professora e inspetora de ensino. Ao sos. Assim como certos judeus são os me-
vivi nessa tarefa de editar. Origens longo desse período, publica os nove tí- lhores contadores de anedotas sobre ju-
“É preciso cuidado”, dizia ela, me Havia uma grande força naque- tulos acima citados. deus, ela era a melhor contadora de causos
devolvendo as correções. “Se a gente la mulher de belo rosto e de belíssimos Nessa época, Helena Kolody já era sobre curitibanos. Se esses encontros tives-
não se cuida, acaba escrevendo ‘batati- olhos azuis. Ela nascera em Cruz Ma- lida e admirada por um círculo razoável sem sido gravados, muitas reputações pro-
nha quando nasce...’” chado, no Sul do Paraná, no dia 12 de de leitores, que cultuavam a poeta e a fi- vincianas seriam abaladas. Mas ela sabia a
Essa preocupação com a conci- outubro de 1912. Filha primogênita gura humana em que ela se tornara, mis- quem contar e quando contar tais causos.
são, com a palavra justa, que naquele de um casal de imigrantes ucranianos to de mãe e amiga, de poeta e professora. Evitava ferir pessoas, era sempre educada
momento eu pude constatar na poeta, – Miguel e Vitória, cujos retratos se- Conheci dois poetas que davam a todos e gentil. Do signo de libra, notariam os as-
era coisa antiga. Já em seu primeiro li- veros ficavam nos observando de cima a impressão de viver num estado perma- trólogos, conciliadora e diplomata.
vro, de 1941, Paisagem interior, consta- de uma cristaleira enquanto conversá- nente de poesia. Um deles foi Helena Ko- Naquela madrugada de 2004, dia
vam três haicais. É bom assinalar que vamos ou revíamos as provas dos livros lody. Outro foi Mário Quintana. Davam 15 de fevereiro, sonhei que entrava num
raríssimos poetas brasileiros, naque- –, passou a infância em outra pequena a impressão de viver em outra dimensão, auditório imenso. Não entendi o que se
le momento, escreviam haicais. Helena cidade, Três Barras, em Santa Catarina. apenas se permitindo pequenos passeios passava ali, até que vi Helena. Era uma ho-
sabia disso e dizia que tal “ousadia” lhe Percorreu com a família uma trajetória pelo mundo onde nos encontramos. menagem a ela, que estava numa cadeira
custara muitas restrições e críticas na comum a muitos imigrantes e chegou à No entanto, esse círculo de lei- de rodas, à esquerda de um palco, o corpo
província curitibana. Diziam os críticos: capital do Paraná em 1927. Em 1928, tores era restrito à cidade de Curitiba. coberto por um tecido azul claro. Quando
eram poemas tão curtos, três versos! E publicou o primeiro poema numa revis- Após a publicação pela Criar Edições, lhe perguntei como se sentia, ela repetiu o
por que versos tão secos? A poeta rece- ta chamada O garoto. O poema chama- vimos esse grupo aumentar – embora que me dizia nos últimos tempos:
beu cartas de gente que na época fazia va-se A lágrima. A precocidade do fazer continue modesto, é claro. Além de Pau- “Não estou doente, Roberto. Es-
crítica literária pedindo que abandonas- poético era acompanhada e estimula- lo Leminski e Alice Ruiz, que escreve- tou com 90 anos.”
da pelas leituras que sua mãe lhe fazia ram sobre Helena, vários críticos dedica- Acordei preocupado. O primeiro
do poeta ucraniano Tarás Chautchenko ram atenção a sua obra após a edição de telefonema do dia confirmou: Helena

“ Seus poemas foram, com e pela descoberta da leitura como um


universo no qual mergulhava fascinada.
Viagem no espelho. E Helena contou, nos
últimos anos de vida, com a amizade –
havia falecido. g

o tempo, se encaminhando Em 1932 iniciou brilhante car- que para ela era tudo – de jovens poetas Roberto Gomes é escritor, autor, entre outras
obras, do romance O conhecimento de Anatol
reira no magistério. Formou gerações que a entronizaram como uma espécie
para sínteses cada vez mais de professoras que exigiam, mesmo an- de símbolo. Multiplicaram-se cartazes
Kraft, recentemente lançado pelas editoras
Insight e Criar. Também é colunista do jornal
exatas e fulminantes. tes de aulas de biologia, que ela recitas- e camisetas com sua imagem, com tre- Gazeta do Povo. Vive em Curitiba (PR).
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 13

Resultado da Oficina bpp de criação literária | romance

Santa Marina da boa morte


Camila Schiffl de educação e precaução, mas para mim o meu nome jure que foi tudo absoluta- modo, mas para a imaginação e para a li-
é mesmo pura esquisitice. mente sem querer. teratura cabe mais o primeiro. Porque dá
Fui criada por Vó Bina desde sem- Depois de deixar o puxadinho e mais argumento para a trama e isso aqui
Camila Schiffl participou da pre. Pai eu nunca tive e minha mãe mor- perceber que nada havia em casa que é um romance e não um conto.
oficina de Criação Literária da reu quando nasci. Nos tempos de infân- precisasse ser feito por mim, sentei no Sendo lento, o processo varia: às
BPP – Romance, com o escritor cia, sempre que eu contava para alguém degrau que dá para o jardim e deixei mi- vezes recebo meus familiares, amigos e
esse fato, recebia olhares de pena e pala- nha mente entrar naquele limbo da ima- antigos amores para visitas de despedi-
Luiz Ruffato, que escolheu o texto vras de condolência. Não via razão ne- da, cheias de metáforas e verdades nun-
ginação, que só o tédio propicia.
publicado nesta edição do Cândido. nhuma para isso, se alguém tinha de re- Não sei se é pela minha intem- ca ditas. Antigos amores: tá aí gente que
Santa Marina da Boa Morte é o ceber um abraço, era a minha avó, que pestividade, pela minha falta de escrú- eu acho que só apareceria para me ver se
perdera uma filha querida, não eu, que pulos ou se pela presença remota da tivesse certeza de que seria a última vez.
nome do romance homônimo
não perdera ninguém conhecido. Nem a morte na minha vida, mas, quase todas Às vezes imagino longas cartas de
que Camila está escrevendo. minha irmã, Clara, dois anos mais velha as vezes em que entro nesse limbo ima- adeus. Uma rancorosa ao meu primei-
O trecho a seguir pertence ao do que eu, tinha razão para fazer chororô, ginativo, conjuro a mesma imagem: a ro amor, outra verborrágica àquela pro-
primeiro capítulo do livro. mas ela jurava que se lembrava da nossa morte. Nunca ninguém amado por mim fessora arrogante que disse que eu de-
mãe e que sentia saudades. Vai saber. morreu. Minha mãe e meu avô se foram veria cuidar para não falar mais do que
Por ser “desaforada” e “inopor- e só depois descobri que poderia e deve- o necessário. Gosto de ficar escrevendo

E
nfiei a cabeça pela porta do puxadi- tuna”, eu tomava uns tabefes costumei- ria amá-los. as cartas na minha cabeça. Passo horas
nho para checar se minha avó, Al- ros da Dona Bina. Sempre fui meio in- Talvez para tentar imitar o senti- nisso. É um jogo sujo que não dá bre-
bina, precisava de ajuda na lavan- tempestiva. Quando alguém adulto, com mento de perda ou, melhor ainda, para cha para intervenções e diálogos já que,
deria. Sem se dar conta da minha a intenção de me censurar, dizia: “sua brincar de resolver os impasses práticos geralmente, na minha imaginação, elas
presença, ela retirava apressada alguns mãe não te deu educação, mocinha?”, eu do fim da vida de alguém, mato, na imagi- só são lidas depois que eu já parti dessa
jeans dobrados de cima da máquina de olhava com a maior cara de deboche e nação, quase todo mundo que eu conhe- para uma melhor e, mesmo que alguém
lavar que sacolejava, em funcionamento. dizia “não” – o que não era mentira. ço, das mais variadas formas possíveis. Às queira contestar aquilo que escrevi, pou-
A pobre máquina, coitada, é mais velha Não me entenda mal. É claro que vezes apenas inflijo uma doença horrível, ca coisa poderá ser feita a respeito.
do que eu. Funciona bem que é uma be- gostaria de conhecê-la. Guardo na me- sem morte no final. Mas só às vezes, por- A verdade é que dá pra morrer de
leza, mas, quando imagino todas as om- mória com carinho os detalhes da perso- que prefiro o desfecho de sempre. tudo quanto é jeito e, na vida real, ou me-
breiras, calças de cós alto e mangas prin- nalidade e da fisionomia dela que eu ouvi O meu próprio desfecho tam- lhor, na morte real, a gente não escolhe
cesa que ela lavou nos anos 1980, não em histórias ou vi em fotografias. Tenho bém tem vez. Morro jovem, morro ve- qual é o jeito que vai ser. Vai ver é por isso
posso deixar de ter pena. o mesmo sentimento em relação ao meu lha, morro numa infância já ida – pela que eu imagino. Com sorte eu bato as bo-
Terminado o trabalho da velha avô Antônio, que também não conheci. qual, é mais do que evidente, passei in- tas de uma forma para a qual já me prepa-
combatente, vovó abriu a tampa, espiou E quando quero saber de algo que ainda tacta, vivinha da silva. Morro e distribuo rei! Bobagem. Imagino mesmo é porque
o resultado, não se deu por satisfeita e não sei sobre os dois, investigo. bens. Minhas joias ficam para um, os li- não dá pra proibir o pensamento de vir.
fez a máquina recomeçar. Minha ajuda Tive uma educação das boas nas vros e discos para outro – já as roupas, E nisso é que se assemelham essas duas,
seria inútil. mãos da Vó Bina. No entanto, pou- acho que é melhor doar tudo, a não ser a morte e a imaginação. Ninguém as con-
É uma senhora das mais insegu- co herdei de sua personalidade rigoro- que alguém reclame alguma peça. trola nem sabe ao certo por que é que elas
ras, a minha avó. Fico alvoroçada com o sa e preocupada. De regrado, só tenho Depois tem o drama do decurso: vêm. Mas que as safadas vêm, vêm, e delas
número de vezes que ela precisa checar a sonoridade do meu nome. Fui batiza- se a morte é lenta, o drama é grande. Se não há quem possa se esconder. g
se pode, se cabe, se está benfeito, se não da como Marina Albina Albernaz. Final é veloz, o drama é ainda pior, porque daí
vai incomodar, se todos concordam, se com final, começo com começo. Tudo não dá nem tempo de planejar o desti- Camila Schiffl tem 21 anos, é estudante de
História e fã de Joni Mitchell e de estampas
ninguém tem outra ideia, se vale mes- combinando. Um horror. Embora a au- no dos bens. Na vida real, ou melhor, na florais. Essa é sua primeira publicação.
mo à pena. Ela diz que é uma questão tora dessa primorosa obra poética que é morte real, acho que prefiro o segundo Vive em Curitiba (PR).
14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Crônica
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 15

A máquina do tempo
N
Heloisa Seixas a última Bienal do Livro, no Rio vesse todo o tempo à minha espera – e palavras que me dominavam, só então,
Ilustração: Rita Solieri de Janeiro, havia um espaço de me acolhesse. em meio a sentimentos contraditórios,
debates da Fundação Nacional Ao me sentar diante daquela de prazer e dor – que entendi tudo.
do Livro Escolar, cujo auditório Royal preta e pousar as mãos sobre as O encontro daquela manhã em
era em forma de máquina de escrever. O teclas, ela – a máquina – me reconheceu. que me vi diante da máquina do meu
fundo da sala era formado por um pai- Recebeu a ponta dos meus dedos e se avô fora o prenúncio do que viria. Eu
nel com uma fotografia enorme de uma deixou manusear, respondendo, a cada não sabia, não podia supor, mas daquele
daquelas máquinas antigas e, diante da toque, com um movimento de seus pe- momento em diante minha vida come-
reprodução, os degraus da pequena ar- quenos braços de ferro, imprimindo, no çava a se transformar. O longo caminho,
quibancada onde as pessoas se senta- papel que eu colocara no rolo, os sinais até que eu escrevesse meus primeiros
vam para ouvir as palestras formavam as gráficos que eu escolhia. Maleável, cor- textos, começava ali. Como exclamou
teclas: eram degraus forrados de preto, data, companheira. Como se me convi- o barbeiro sanguinário de Fleet Street,
com almofadas redondas, também pre- dasse para, no futuro, acionar seu meca- no musical Sweeney Todd, de Stephen
tas, tendo, cada uma delas, uma letra do nismo sempre que quisesse. Sondheim, ao tocar aquelas teclas meus
alfabeto. Ou seja, para quem se coloca- A sensação de reconhecimen- braços estavam, finalmente, completos.
va no palco, de frente para o auditório, to que senti naquele dia ficou impres- Mesmo quando, um dia, a má-
a impressão era estar diante de uma gi- sa em mim com tal força que, anos de- quina também se transformou, quan-
gantesca máquina de escrever. pois, passei a tentar interpretá-la. Uma do suas teclas mudaram de formato e
Ao olhar para aquele cenário, lem- das explicações que me vieram foi a de cor, quando o papel à minha frente se
brei da emoção sentida por mim quando, que eu sentira aquilo por ser uma pia- dissolveu em tela de cristal – eu não
com oito ou nove anos, me sentei pela nista frustrada (quando era pequena, me importei. A sensação de intimida-
primeira vez diante de uma máquina as- sempre quis aprender piano, mas, por de permaneceu. E hoje, quando olho
sim. Era uma máquina de escrever das uma razão ou por outra, nunca apren- para uma dessas máquinas antigas, eu
bem antigas, que pertencia ao meu avô, di). A sensação tátil dos dedos pousados me sinto transportada àquele momen-
uma Royal, toda negra, com suas teclas sobre as teclas teria talvez despertado to no passado, o começo de tudo, como
redondas debruadas de metal prateado, a em mim a emoção, um lamento da não- se a pequena caixa preta, com seu rolo e
caixa principal tendo, com seus frisos e -pianista. Mas explicações como essa alavancas, fosse uma invenção saída de
cantos redondos, um toque meio art déco. nunca me satisfizeram de todo. Porque um conto de H. G. Wells, capaz de me
Na época eu não sabia nada disso, nem o que eu tinha sentido diante da má- conduzir a outra dimensão. g
conhecia o significado de todos os seus quina do meu avô fora algo muito forte,
detalhes, mas soube, sim – de imediato quase uma epifania. Heloisa Seixas é escritora, tradutora e
jornalista. Entre seus livros estão Contos mínimos
– que aquela máquina tinha um poder Até que um dia eu entendi. (Record, 2001), Através do vidro (Record, 2001)
próximo do sobrenatural. Um dia, quase trinta anos depois e Terramarear (Companhia das Letras, 2011),
Lembro de ter pousado os dez – eu me descobri escritora. Não foi gra- este último escrito com Ruy Castro. Também
organizou várias antologias, entre elas Obras-
dedos, todos de uma vez, sobre as teclas dual, aconteceu de repente, de uma hora primas que poucos leram (Record) e Depois
e fechado os olhos, invadida por uma para outra. Comecei a escrever ficção de – sete histórias de horror e terror (Record,
sensação de reconhecimento, de reen- forma compulsiva, movida por uma for- 1998). Participou de algumas antologias, como
25 mulheres que estão fazendo a nova literatura
contro, diferente de tudo que já senti- ça maior do que eu, que me impediria brasileira (Record, 2005) e Boa Companhia:
ra antes. Era como se a máquina, que de parar, mesmo que quisesse. E foi só Contos (Companhia das Letras, 2003).
sempre fora proibida às crianças, esti- então, ao me deixar levar por aquelas Vive no Rio de Janeiro (RJ).
16 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

mercado editorial

Luiz Rebinski Junior

O lado B dos clássicos


O
s clássicos nunca saíram de moda.
Dada a importância que têm, es-
tão sempre vendendo. Mas, nos
últimos anos, várias editoras têm Mesmo com um número cada vez maior de editoras se dedicando à publicação de
investido em uma vertente menos ce-
lebrada desses livros, focando em dois
clássicos, ainda há textos de grandes escritores desconhecidos do leitor brasileiro
pontos específicos: a edição de obras me-
nos conhecidas ou esquecidas de autores
consagrados e a publicação de escritores
bem-sucedidos em seus países de ori-
gem, mas ainda desconhecidos por aqui.
Diário de um velho
A editora Estação Liberdade tem
se notabilizado nessa seara. Nascida no louco – Jun’ichiro
bairro oriental de São Paulo, em 1989, Tanizaki (Estação
a Liberdade estabeleceu, primeiramente, Liberdade, 2007)
uma linha de frente de veiculação das le-
tras nipônicas no Brasil, com a publica-
ção de clássicos japoneses como Yasuna-
ri Kawabata, Prêmio Nobel de 1968, Eiji
Yoshikawa, autor do popular Musashi,
além de autores contemporâneos como Os moedeiros falsos –
Haruki Murakami, que virou febre em André Gide (Estação
todo o ocidente. Com o tempo, no entan- Liberdade, 2009)
to, a Estação Liberdade passou a editar,
sempre em traduções diretas da língua de
origem, autores das mais diversas litera-
turas europeias, muitos deles inéditos.
“Tento sempre abordar as obras
de um autor de forma estruturada, não
pegando simplesmente seu maior suces-
so. Eu devia ao público brasileiro o Di-
ário dos moedeiros falsos, de André Gide,
obra da obra, um autor narrando sua la-
buta, e chegando ao cerne das questões
de construção do livro, enfim, do ato de
escrever em si. Além de André Gide,
estamos trabalhando a obra de autores
como Kawabata, Heinrich Böll, Soseki,
Yasushi Inoue e outros mais atuais, em
seu conjunto. Isso não se faz rápido, são
anos de empenho”, diz Angel Bojadsen, A bela senhora
diretor editorial da Estação Liberdade. Seidenman – Andrzej
Descobrir “clássicos regionais”, ou Szczypiorski (Estação
seja, grandes escritores que não ultrapas- Liberdade, 2007)
saram as fronteiras de seus países, é a ou-
tra ponta de atuação da Estação Liber-
dade. “Às vezes é comercialmente difícil,
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 17

romancistas e dramaturgos de sua épo- Tchekhov, “um texto pouco conhecido


ca e que é desconhecido da maioria dos do escritor, que é mais famoso por seus
leitores brasileiros”, conforme diz Thia- contos e peças”, de acordo com o editor
go Tizzot, editor da Arte & Letra. Cide Piquet. Segundo ele, a literatura do
leste europeu continua muito pouco di-
Prosa do Mundo vulgada por aqui. “Aliás, recentemente a
Há dez anos, a Cosac Naify ini- editora Hedra publicou uma coletânea
ciou a coleção “Prosa do Mundo”. O de contos húngaros – com boa tradução
primeiro título, Niels Lyhne, colocou de Paulo Schiller – que inclui, entre ou-
pela primeira vez à disposição do leitor tros, Deszsö Kosztolányi. Há muitos es-
brasileiro um texto do maior romancis- critores desses países que não conhece-
ta dinamarquês do século XIX, Jens Pe- mos. Para sair um pouco do campo da
ter Jacobsen (1847-1885), autor que in- prosa, posso citar o importante poeta
fluenciou escritores como Rainer Maria húngaro Attila József, por exemplo.”
Rilke e Thomas Mann.
“A coleção procura fazer um re- Clássicos desconhecidos
corte, idiossincrático como qualquer re- Mesmo com um número cada
corte, de obras importantes da literatura vez maior de editoras trabalhando com
mundial que, na ótica da editora e dos clássicos, ainda há textos de grandes es-
O duplo seus consultores, mereciam edições ca- critores desconhecidos do público bra-
Fiódor Dostoievski prichadas. Assim, há espaço nela para sileiro? “Claro!”, responde Bojadsen, da
(Editora 34, 2011) obras totalmente incontornáveis da lite- Estação Liberdade. “Estamos reeditan-
ratura mundial clássica e moderna, como do Paradiso, do Lezama Lima. É o gos-
Esperando Godot, de Samuel Beckett, e o to do risco. Tem um pouco da coisa de
Vermelho e o negro, de Stendhal, mas tam- ‘missão’. Você se sente como que obri-
bém para obras menos conhecidas, como gado a fazer certas obras. Como não
mas é saindo do mainstream que você se o romance Companheiro de viagem, de tem Lezama Lima nas estantes brasilei-
descobre. Fiquei muito feliz que conse- Gyula Krúdy”, explica o editor Cassiano ras? Como não tem (tinha) André Gide
guimos vender razoavelmente bem um Elek Machado, da Cosac Naify. nas estantes brasileiras? Ou Peter Han-
polonês que eu descobri durante esta- Perfil parecido tem a coleção dke? O Sobre a morte, do Canetti!”
das na Polônia. Conheci Andrzej Szczy- “Leste”, da Editora 34, que foi concebi- Em alguns casos, os autores são
piorski sob a lei marcial nos anos 1980. A da com o intuito de apresentar ao leitor vítimas de si mesmo, de uma ou duas
bela senhora Seidenman é uma linda leitu- brasileiro a literatura da Europa centro- obras-primas bem-sucedidas que aca-
ra de um episódio histórico muito triste, -oriental, ainda pouquíssimo conhecida bam eclipsando o restante de sua produ-
o gueto de Varsóvia, e otimamente tra- entre nós. Há uma mescla entre auto- ção. Nesses casos, joias literárias podem
duzida por Henryk Siewierski, da Uni- res completamente desconhecidos do permanecer “escondidas” durante mui-
versidade de Brasília”, diz Bojadsen. público brasileiro, como o húngaro Is- tos anos. “Com o passar dos anos são os
A editora curitibana Arte & Le- tván Orkény (1912-1969), e escritores grandes livros que passam a se tornar re-
tra faz do “ineditismo e do esquecimen- consagrados, como Púchkin, Tchekhov, ferência de seu autor e o restante de sua
to” de grandes textos e autores da lite- Tolstói e Gógol. Em 2001, o professor e produção fica no esquecimento. Então é
ratura mundial um dos seus critérios tradutor Paulo Bezerra iniciou um ou- preciso que algo aconteça para que tais
A perda da imagem
de publicação. Um exemplo é A viagem sado projeto de tradução dos grandes livros sejam resgatados. Uma iniciativa
ou através da sierra
preguiçosa de dois aprendizes vadios, li- romances de Fiódor Dostoiévski. Obras interessante acontece nos Estados Uni-
de gredos – Peter vro que Charles Dickens escreveu com como Crime e castigo foram traduzidas dos: The Library of America é um proje-
Handke (Estação o escritor Wilkie Collins depois de pela primeira vez no Brasil diretamen- to que visa manter toda a bibliografia de
Liberdade, 2008) uma viagem de férias que os dois fize- te do russo, o que transformou Dostoi- importantes escritores sempre em catá-
ram juntos em 1857. Inédito no Brasil, évski no grande carro-chefe da coleção. logo. É uma forma de evitar que os livros
o texto também introduz a literatura de A editora se prepara para lan- de menos sucesso fiquem esquecidos”,
Wilkie Collins, “um dos mais populares çar, em breve, a novela Minha vida, de diz Thiago Tizzot, da Arte&Letra. g
18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | literatura infantojuvenil

Mudaria o
leitor?
Ana Maria Machado
Ilustração: Rafael Campos Rocha
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 19

Ana Maria Machado, linguística, por exemplo. Mas num jor-


nal literário, podemos ter como ponto
de um público, para agradá-lo e reforçar
seus hábitos de consumo. Muito pelo
que as atinge ou revela por dentro, não
a maneira pela qual se vestem ou os ob-
autora de mais de cem de partida a premissa de que só vamos
nos ocupar das obras literárias. E nesse
contrário. Escrever é uma ruptura com
o ramerrame e o consumo, uma apos-
jetos que usam no seu cotidiano.
É um desrespeito à inteligên-
livros para crianças e caso, sabemos todos que um autor não ta em certas permanências. Ou trans- cia dos jovens imaginar que, por esta-
escreve para um público predetermi- cendências, se preferirem. Como toda rem acostumados com computador e
adultos, defende a internet nado e escolhido previamente, apenas arte. Como lembra Ferreira Gullar em internet, convertem-se em semianalfa-
e as mídias sociais como mais acostumado a isto ou aquilo. Es-
creve porque quer expressar algo (e ex-
algumas formulações excepcionalmen-
te felizes: por um lado, é uma busca de
betos, incapazes de se deliciar com um
bom texto que não fale de sua realidade
formas de difundir a pressão tem a ver com uma pressão de completude, porque a vida apenas não imediata. Por um lado, obviamente não
dentro para fora, que parte do seu ínti- basta. Por outro, é um questionamento é verdade. Ao contrário da tela de tele-
leitura e a escrita mo e se joga no mundo). Ou seja, ain- do sentido de estarmos aqui, ao se ten- visão, que pode hipnotizar um iletrado
da continua válida a metáfora de Sten- tar traduzir uma parte de nós mesmos e até um animal para contemplá-la por
dhal: um livro é uma garrafa lançada ao em outra parte e compartilhar esse pro- horas a fio, a internet e as mídias sociais

V
ocês me pedem um texto “sobre mar, com uma mensagem: “agarre quem cesso com os outros. exigem leitura e escrita. Por outro lado,
como é escrever, hoje, para um pú- puder”. Na hora em que o autor come- Nessa aventura da escrita literá- comprova-se estatisticamente que nunca
blico que está mais acostumado ça a se preocupar em atender especifica- ria, o fundamental no ato de escrever esse público jovem leu tanto como hoje
com o computador do que com o mente esse eventual agarrador de garra- – o que lhe garante independência em em dia. Mesmo sem levar em conta as
livro de papel”. E como esclarecem que fas, vai saindo do terreno da literatura e relação aos modismos passageiros – po- compras governamentais e as adoções às
esse número especial do jornal Cândido passando para outros – o da didática, do deria, simplificadamente, ser agrupado escolas, que consagram autores da área,
será dedicado à literatura infantojuvenil, marketing, do jornalismo… em dois campos. em vendagens impressionantes, à mar-
parto do pressuposto de que o público a E por falar em jornalismo, vale O primeiro, básico, é o da lin- gem das páginas da imprensa que pen-
que se referem é o constituído por crian- a pena nos determos nessa escala, para guagem. Um autor escreve porque vê a sa que sabe tudo sobre o setor. No mais,
ças e jovens. A resposta verdadeira é ab- clarear outro grupo de mal-entendidos. linguagem e tem necessidade de explo- basta olhar as listas de mais vendidos,
solutamente simples, de uma candura Literatura não é jornalismo. Por mais rá-la, desafiá-la e aceitar seus desafios. dominadas por bruxinhos, vampiros e li-
exemplar: é igualzinho ao que era antes. que possa haver muitos e ótimos jor- Sente prazer nisso. Um prazer intelec- vros de mulherzinhas. A tal ponto que,
Não tenho a menor dúvida a respeito. nalistas-escritores ou escritores-jorna- tual muito nítido. Um escritor digno seguramente, indicam que é isso o que a
Mas não pretendo ser ingênua. listas. Como sublinhava Ernest He- desse nome, consciente de seu ofício, maioria dos adultos está lendo também.
Sei que, se perguntam, é porque há dú- mingway, excelente em ambas as áreas, e não apenas procurando “o mapa da Nada parece apontar para a premissa de
vidas por parte do perguntador. Ou seja, ganhador de um Prêmio Pulitzer e de mina para vender uns livrinhos a mais”, que a geração acostumada com os com-
imagina-se que é diferente. Sei lá por um Nobel: “jornalismo nunca fez mal a não vai abrir mão disso ao sabor de vo- putadores estaria lendo menos por cau-
quê. Será porque a língua é diferente? um escritor. Desde que largado a tem- gas momentâneas. Esse mergulho na sa deles. Podem é não estar lendo o que
A literatura é diferente? O leitor é dife- po”. E por quê? Porque o jornalismo, linguagem não tem preço – para ficar- os bem-pensantes acham que ela deveria
rente? E será que se acha que o escritor horizontalmente, tenta abarcar com ra- mos no slogan que remete ao mercado ler… Mas isso é uma outra história, que
tem um compromisso com a moda do pidez uma grande extensão, enquanto a editorial. Não há por que jogá-lo fora, fica para outra vez – como se dizia no
momento e deve procurar ser efêmero literatura, verticalmente, pretende mer- procurando se adaptar ao transitório. tempo em que o fascínio dos jovens pela
para acompanhar essas mudanças que gulhar pontualmente na profundeza. E O segundo campo tem a ver com literatura tinha de se contentar com his-
se sucedem cada vez com mais rapidez? também porque o jornal no dia seguin- as circunstâncias históricas em que vi- tórias ouvidas oralmente e nem por isso
Para tentar desfazer esses equívocos, te já está velho, enquanto a literatura vem os leitores. Às vezes se imagina menos poderosas. g
procuro olhar a situação mais de perto. continua viva e ainda se apura à medi- que as leituras dos jovens deveriam “ter
Em primeiro lugar, vamos lim- da que o tempo passa – como se com- a ver com a realidade deles”. Chega a
par o terreno. Não há por que distin- prova não apenas em clássicos antigos, ser engraçado. O fato de percorrerem
guir o ato de escrever para o público de Homero a Machado de Assis, mas as estradas da França a cavalo e não em
adulto do ato de escrever para crianças. também em algum excelente livro saído moto não faz com que as aventuras dos Ana Maria Machado é jornalista, escritora
e tradutora. Escreveu mais de cem livros para
Quando se trata de literatura, claro. Se no passado e apenas lido agora. Em ou- Três Mosqueteiros sejam empolgantes. crianças e adultos, publicados em dezessete
estivéssemos falando de obras didáticas tras palavras – e isso tem tudo a ver com É a maneira fascinante como Dumas países. Em agosto de 2003, tomou posse na
ou de formação profissional, evidente- a questão proposta: escrever literatura constrói sua narrativa. Qualquer leitor Academia Brasileira de Letras (ABL), onde ocupa
a cadeira número um. Seu mais recente livro é
mente constataríamos que há um abis- não é uma tentativa de ir ao encontro constata isso com facilidade. O que tem o romance Infâmia (Alfaguara, 2011).
mo entre uma cartilha e um manual de de costumes e preferências transitórias a ver com a realidade das pessoas é o Vive no Rio de Janeiro (RJ).
20 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

entrevista | ricardo azevedo

“A vida pode não ter Ricardo Azevedo, um dos mais


premiados autores infantojuvenis

sentido, mas não é


do Brasil, critica o ceticismo
e o niilismo da literatura dita
intelectual e diz que prefere deixar

proibido dar-lhe algum” no leitor uma expectativa positiva


diante da vida e do mundo
Kraw Penas
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 21


vros publicados já fez. “Com o passar do técnicos e especialistas. Ao lado dessa li-
Felipe Kryminice e Monique Cellarius
tempo, a gente se torna mais exigente e
O que preocupa não são as teratura para iniciados, e sempre em re-

Q
uando era criança, na década de crítico. Em princípio, ninguém quer ficar novas tecnologias, mas sim sua sumo, creio que existem outras, bastan-
1950, Ricardo Azevedo foi apre- repetindo coisas que já fez. Meu desafio te heterogêneas, que, da mesma forma,
sentado a uma série de discos em tem sido tentar utilizar a experiência que utilização por gente individualista podem resultar em algumas obras boas
que poetas como Carlos Drum- adquiri ao longo dos anos para fazer algo e consumista, por técnicos e muitas ruins. No geral, elas poderiam
mond de Andrade declamavam poemas que ainda não fiz. Acho um desafio esti- ser chamadas de populares por duas ra-
de sua própria lavra. Foi o primeiro con- mulante, desses que dão sentido à vida.” acríticos e despolitizados.” zões: um: invariavelmente, recorrem a
tado com a literatura do futuro escritor uma linguagem pública, direta e acessí-
– hoje autor de mais de cem livros para Uma pergunta que sempre surge quan- vel; dois: abordam temas e questões hu-
crianças e jovens. do o assunto é literatura infantojuvenil, manas da vida concreta buscando gerar
“Tive acesso a esse material lá mas que é praticamente impossível dei- venil. Quais são as diferenças significa- identificação na maioria das pessoas, in-
pelos meus nove ou dez anos. Até hoje xar passar: qual o cuidado que se deve tivas entre esses subgêneros? Você os vê dependentemente de graus de instrução
trago na cabeça a voz de Drummond re- ter na hora de escrever uma história in- como subgêneros da literatura? e faixas de idade. Creio que a chama-
citando ‘José’, ‘Caso do vestido’ e ‘Mor- fantil? Separar ficção e realidade é sem- Certamente alguns livros são capazes da literatura infantojuvenil está inseri-
te do leiteiro’. Qual a questão aqui? Eu, pre uma preocupação? de estabelecer maior identificação com da neste vastíssimo e heterogêneo gru-
criança de dez anos, de fato teria dificul- Separar a ficção da realidade sempre foi crianças ou com jovens do que outros, po de obras. Por esse viés, ela é muito
dades para ler aqueles poemas. Mas não algo difícil para todas as pessoas, inde- mas é simplista demais reduzir a litera- mais uma literatura popular do que in-
tive nenhuma para escutá-los, o que fiz pendentemente de faixas de idade. Isso tura a produções dirigidas a determina- fantil ou juvenil.
com grande interesse e emoção! Noto porque, olhando bem, o que chamamos das faixas etárias. Tal postura tem a ver
que eram poemas para ‘adultos’”, diz o “realidade” não costuma ser algo objeti- com mercados, não com literatura. Da- Qual o papel dos livros didáticos na di-
escritor, que esteve na Biblioteca Públi- vo, palpável e consensual. Faz de conta qui a pouco teremos livros de poesia es- fusão da leitura entre crianças?
ca do Paraná participando do projeto que alguém na infância teve uma experi- critos para o mercado de viúvas de 48 Infelizmente, a maioria das escolas con-
“Aventuras Literárias”. ência ruim com certo cara. Digamos que, anos. As mulheres casadas de 49 anos funde livros didáticos com livros de fic-
A história serve hoje para que Ri- quando adulto, esse mesmo alguém vá “naturalmente” deverão ler outro tipo de ção e poesia. Em suma, pegam um texto
cardo Azevedo explique por que torce o trabalhar na área de contratações de uma poesia. Brincadeiras à parte, vejo mui- de ficção ou um poema e, de forma uti-
nariz para a segmentação que se faz en- empresa. Um dia, aparece para ser entre- ta confusão nesse assunto. Em resumo, litária, transformam numa lição objeti-
tre literatura “adulta” e “infantojuvenil”. vistado um sujeito muito parecido com penso que existem literaturas escritas va. Ora, a literatura é sempre um discur-
“Certamente alguns livros são capazes aquele certo cara. A tendência do en- por especialistas tendo em vista a leitu- so marcado pela subjetividade, tende a
de estabelecer maior identificação com trevistador será não simpatizar nem um ra de especialistas. Estas utilizam recur- ser plurissignificativa e implica a leitura
crianças ou com jovens do que outros, pouco com o candidato, pois projetará sos muito valorizados em certos meios, sem intermediações. O leitor lê porque
mas é simplista demais reduzir a literatu- nele, de forma injustificada, suas experi- como a metaficção; as buscas do estra- quer ler, porque se emociona, se identi-
ra a produções dirigidas a determinadas ências anteriores. É humano que seja as- nhamento; a intertextualidade; as expe- fica e, ainda, o que é muito importante,
faixas etárias. Tal postura tem a ver com sim e, se bobear, o tal cara não vai conse- rimentações formais; a voz de outsiders; porque sente-se livre para construir sua
mercados, não com literatura.” guir o emprego. Trata-se de um exemplo as sobreposições de códigos e os chama- interpretação pessoal. A escola em geral
Azevedo também falou ao Cândi- banal, mas, acho, pode ser esclarecedor. dos fluxos de consciência, entre outros. solicita o contrário: ler para receber in-
do sobre as novas tecnologias e o desafio Seres humanos, independentemente da Como resultado, temos algumas obras formações objetivas e assimilá-las. Não
de tornar a literatura atraente a crianças faixa etária, têm experiências individuais, relevantes e muitas obras insignifican- tem cabimento interpretar lições de
que já nascem com um mouse nas mãos. processos inconscientes, singularidades, tes – em geral, por aplicarem os recur- gramática ou de matemática, mas sim
“O que preocupa não são as novas tecno- emoções, culturas, crenças, costumes pes- sos citados de forma mecânica. Todas, estudá-las para aprendê-las. Em outros
logias, mas sim sua utilização por gente soais e tudo isso irá interferir na sua visão porém, com um denominador comum: termos, enquanto nos livros informati-
individualista e consumista, por técnicos do que seja a “realidade”. É pura ideali- a feitura especializada tendo em vista o vos há uma única mensagem a ser com-
acríticos e despolitizados.” zação imaginar que crianças não saibam leitor especializado. Muitas vezes, essas preendida por todos, nos textos literá-
Há mais de 30 anos escrevendo, separar a realidade da ficção e que adul- obras são chamadas de “adultas”. Ocor- rios cada leitor pode e deve criar a sua
Azevedo diz que a experiência, ao con- tos saibam. Felizmente, as coisas são um re que, talvez 90% dos leitores adultos, leitura pessoal. Tento dizer que livros
trário do que se pensa, aumenta ainda pouco mais complicadas que isso. independentemente do grau de escola- informativos e livros de ficção implicam
mais o desafio de escrever uma nova his- ridade, não são tão especializados, nem princípios completamente divergentes e
tória que seja atraente, singular e que não Você costuma criticar a divisão que se estão capacitados para ler tais obras que isso precisa ser compreendido por pro-
repita aquilo que um autor com tantos li- faz entre literatura infantil e infantoju- costumam ter um público acadêmico, de fessores e estudantes.
22 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

entrevista | ricardo azevedo


Com a informação cada vez mais resu- cara. Muitos anos depois, por minha in- melhor e mais civilizado, onde haja uma
mida e de fácil acesso, ficou mais difí- sistência, o livro foi publicado no Brasil
O niilismo pertence a um maior solidariedade entre todos os ho-
cil seduzir as crianças por meio da lite- pela Ática: O homem que não queria sa- modelo cultural mais elitista mens e um diálogo melhor entre o ho-
ratura? Pensa nas novas mídias, de que ber de nada e outras histórias. Continuo mem e a natureza, são exercícios de puro
forma a literatura deve se adaptar a essa achando um excelente livro e recomen- e intelectualizado e, a meu pensamento crítico.
nova realidade? do vivamente. Por outro lado, quando ver, em geral não passa de
Essas chamadas novas mídias são mui- eu era criança, na década de 1950, foram Na literatura de um modo geral se per-
to recentes e não consigo me posicionar produzidos, pela gravadora Festa, discos narcisismo e pretensão.” cebe uma clara distinção entre as clas-
com clareza diante delas. Veja a ques- com poetas como Carlos Drummond de ses sociais. Há, inclusive, gêneros e
tão das redes sociais. Creio que ninguém Andrade e Manuel Bandeira e com ato- autores classificados como elitistas,
neste momento pode prever que efeito res como o grupo Jograis de São Paulo, partindo do princípio de que crianças, outros são vistos como mais populares.
elas vão ter em nossas vidas. No que diz declamando poemas. Tive acesso a esse jovens e adultos têm mil vezes mais pon- Essa distinção social também é vista na
respeito às novas mídias, minha sensa- material lá pelos meus nove ou dez anos. tos em comum do que diferenças. Isso literatura infantil?
ção é a de que, no fundo, estamos princi- Até hoje trago na cabeça a voz de Drum- me abre um leque imenso de possibilida- Não há espaço aqui para falar das even-
palmente diante de novos suportes e de mond recitando “José”, “Caso do vestido” des. Em segundo lugar, há a questão da tuais associações entre as literaturas e as
novos recursos. Entretanto, continuamos e “Morte do leiteiro”, além de os Jograis esperança. Creio que as literaturas popu- diferentes classes sociais, assunto muito
seres humanos cheios de sentimentos, recitando “Carnaval”, de Mário de An- lares tendem ao final feliz ou, pelo me- complicado e mais ainda nos dias de hoje.
dúvidas e contradições. Gosto da frase: drade, ou o extraordinário poema “Jandi- nos, a deixar no leitor uma expectativa Mas, olhando bem, se levarmos em con-
“penso, logo, existo, mas quem sou eu?” ra”, de Murilo Mendes. Qual a questão positiva diante da vida e do mundo. O ta a existência de um todo abstrato e mais
A ficção e a poesia são formas de lidar aqui? Eu, criança de dez anos, de fato te- niilismo pertence a um modelo cultural ou menos homogêneo, a “sociedade bra-
com questões assim. Se serão lidas em li- ria dificuldades para ler aqueles poemas. mais elitista e intelectualizado e, a meu sileira”, vamos concluir que ela é profun-
vro de papel ou não, em princípio, parece Mas não tive nenhuma para escutá-los, o ver, em geral não passa de narcisismo damente identificada com os modos de
ser uma questão menor. O que preocu- que fiz com grande interesse e emoção! e pretensão. De qualquer forma, a vida vida “subalternos” e “populares”. Isso ocor-
pa não são as novas tecnologias, mas sim Noto que eram poemas para “adultos”. e o mundo são muito maiores, interes- re mesmo em seus estratos escolarizados,
sua utilização por gente individualista e santes e inesperados do que nossos pró- inclusive universitários, e em que pese a
consumista, por técnicos acríticos e des- Você também é ilustrador. Qual o pa- prios umbigos. A vida pode não ter sen- influência dos meios de comunicação de
politizados. Infelizmente, muita gente pel das ilustrações nos seus livros? Tem tido, mas não é proibido dar-lhe algum! massa. Em outras palavras, é perfeitamen-
tem saído das escolas e faculdades nes- algum receio de que as figuras possam Adaptando o que disse o carnavalesco te possível, além de muito comum, en-
se estado, formados para ser mera massa “duelar” com o texto? Joãozinho Trinta: “o povo sempre gostou contrar em nosso país pessoas que, embo-
de manobra da sociedade tecnológica e Na minha visão, num livro ilustrado de de final feliz; quem gosta de final infeliz, ra tenham “nível superior” – terceiro grau,
de consumo. Isso sim assusta. Na década forma adequada, as imagens devem não ceticismo e niilismo é intelectual.” Não bons salários, acesso a tecnologias, prepa-
de 1950, Hannah Arendt falava sobre a só dialogar com o texto como, ao mesmo creio que faça sentido escrever um tex- ro técnico e especializado –, mantenham
responsabilidade intransferível de apre- tempo, ampliar as possibilidades signifi- to que leve o leitor, independentemente hábitos, valores e crenças ligados às cultu-
sentar aos recém-chegados ao mundo o cativas desse texto. Neste caso, o todo – o de sua faixa de idade, a um beco sem saí- ras populares e seus modelos. Eis porque,
homem e as culturas humanas. Imagine livro em si – resulta em algo maior e mais da. Todorov, aliás, publicou recentemen- acredito, as culturas, as literaturas e as artes
um cara individualista, consumista, des- complexo do que a simples soma de suas te um livro onde, entre outros assuntos, populares deveriam ser mais valorizadas e
politizado, com mentalidade meramen- partes – texto e imagens – vistas isolada- trata da disseminação mecânica e acrí- estudadas. Trata-se de uma obviedade e de
te técnica, em suma, um analfabeto so- mente. Por essa razão, um livro ilustrado tica do niilismo [Tzvetan Todorov, autor uma questão de inteligência social.
cial, tendo nas mãos poder político ou pode ser um objeto interessantíssimo. de A literatura em perigo, Difel, 2009]. De
armas de destruição em massa. É o que qualquer forma, acho curioso que niilis- Você escreve há mais de 30 anos. O que
mais se vê por aí! Quais são os elementos que você tas escrevam livros. Se estiverem falan- mudou de lá pra cá? As crianças têm
considera importantes em uma his- do sério, escrevem para quê? Uma úl- hoje mais aceitação pela leitura? A sua
Quais os livros que marcaram sua in- tória infantil? tima coisa: ter esperança não significa, forma de escrever mudou, sente isso?
fância? Há algum em especial que o fez Insisto neste ponto: acho que uma his- nem de longe, ser ingênuo ou deixar de Quando publiquei meu primeiro livro,
se apaixonar pela literatura? tória “infantil” não vai interessar nem se ter pensamento crítico, ao contrário. em 1980, não se falava tanto em educa-
Lá pelos meus 15 anos, por aí, tive aces- estabelecer identificação com ninguém. Pretender escrever um livro que emocio- ção como se fala hoje. Parece que a so-
so aos contos do poeta suíço Peter Bi- Nem mesmo com crianças. Mas apro- ne, faça pensar, traga ideias inesperadas ciedade, aos poucos, está percebendo que
chsel. Fiquei fascinado e disse para mim veito sua pergunta para tocar em dois e um sentimento bom e vital, da mesma sem um maior equilíbrio social, o que im-
mesmo: quero escrever que nem esse outros pontos. Primeiro, sempre escrevo forma que pretender construir um futuro plica educação melhor para todos, maior
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 23

Divulgação

“ Meu desafio tem sido


tentar utilizar a experiência
que adquiri ao longo dos
anos para fazer algo que
ainda não fiz. Acho um
desafio estimulante, desses
que dão sentido à vida.”

acesso às informações, aos bens culturais, nas relações com o outro, confundem a e padronizado. Em todo o caso, até onde ma leitora e, melhor que isso, uma pessoa
às literaturas e às artes, seremos todos realidade e a fantasia, gostam de confor- posso ver, hoje no Brasil se produz uma mais sensível, humana e civilizada.
prejudicados. Ao que tudo indica, hoje, to, detestam ser maltratados, têm dúvi- literatura interessante e significativa que
um número muito maior de crianças está das morais, sonham e têm utopias pesso- pode ser comparada a qualquer outra. Pensa na responsabilidade que tem ao
tendo acesso à escola e à leitura. Trata-se, ais, são corporais, sexuados, envelhecem e escrever para pessoas ainda em forma-
porém, de um processo lento e que pre- vão morrer. Aliás, como todo mundo, in- Qual a dificuldade que as crianças têm ção? Isso pesa na hora de criar?
cisaria ser acelerado e aprimorado. Todo dependentemente de faixas de idade. São na hora de ler? O que posso dizer é que, com o passar do
cidadão deveria estar seriamente empe- esses, creio, os assuntos da literatura. O contato com adultos leitores, ou seja, o tempo, a gente se torna mais exigente e
nhado nele. Mas, voltando à sua questão, contato com pessoas que saibam diferen- crítico. Em princípio, ninguém quer ficar
francamente, não vejo nenhuma diferen- Como você enxerga a literatura in- ciar os diversos tipos de livros ou de dis- repetindo coisas que já fez. Meu desafio
ça essencial entre, por exemplo, a criança fantil brasileira no cenário literário cursos – ficção, poesia, ciência, filosofia, tem sido tentar utilizar a experiência que
e o jovem que eu fui e as crianças e jovens internacional? tecnologia, informação, etc. – e utilizá-los adquiri ao longo dos anos para fazer algo
de hoje. Todos, antes e agora, se apaixo- Em um mundo globalizado, esse “cenário em benefício próprio, certamente vai fa- que ainda não fiz. Acho um desafio esti-
nam, têm contradições, têm dificuldades internacional” parece cada vez mais igual zer com que a criança se torne uma óti- mulante, desses que dão sentido à vida. g
24 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | literatura infantojuvenil

vampiros
A hora e vez dos

Gênero sem tradição no numeroso, começou a ganhar espaço no Eduardo Spohr, outro best-seller
cenário nacional e a ser publicada pelas do gênero de fantasia, passou cinco anos
Brasil, a literatura de grandes editoras do país. tentando a publicação de seu primei-
Mas nossos vampiros encon- ro livro, A batalha do apocalipse. “Prefiro
fantasia tem conquistado traram muito crucifixo e alho até che- entender as dificuldades como obstácu-
milhares de fãs e seus gar às prateleiras das livrarias. Os
percalços foram imensos. Com 13 ro-
los comuns a qualquer profissão, impor-
tantes justamente para que a gente su-
autores, best-sellers mances publicados, André Vianco é um pere os nossos limites”, diz Spohr, que
dos desbravadores da literatura de hor- publicou o livro primeiro de maneira
nacionais, incutido o ror e fantasia no Brasil. Escrevendo há independente, pela internet. Após a boa
prazer da leitura em dez anos, Vianco teve um início de car-
reira curioso. Ao ser demitido de uma
repercussão do romance pela rede, a Re-
cord foi atrás do autor e em seguida pu-
adolescentes e jovens empresa de cartões de crédito, onde blicou o livro pelo selo Verus, em 2010.
era operador de telemarketing, Vianco Segundo Spohr, a internet foi fun-
usou o dinheiro do FGTS para impri- damental para que as editoras compre-
Guilherme Sobota mir uma tiragem de mil exemplares do endessem que existe potencial no mer-
livro Os sete. De porta em porta, vendeu cado de literatura de fantasia. “A internet

S
egmento dominado por sucessos o livro para diversos livreiros de São possibilita que os usuários se reúnam por
estrangeiros, os livros de fanta- Paulo e em pouco tempo esgotou a pri- afinidade. Esses grupos são potencializa-
sia ganharam, nos últimos anos, meira tiragem. O que chamou a aten- dos, conversam entre si, transformam-se
best-sellers nacionais. Se antes dos ção da editora Novo Século, que passou em formadores de opinião.”
anos 2000 o único vampiro que se tinha a publicar os livros de fantasia do autor.
notícia na literatura brasileira era Nel- “Foi bem difícil publicar o pri- Mitologia brasileira
sinho, o vampiro de Curitiba que gos- meiro livro, que acabou saindo de forma Vampiros, elfos, anões, anjos e
ta mais de sexo do que sangue, hoje o independente. Contudo, com o sucesso, demônios nunca tiveram muito espaço
personagem de Dalton Trevisan tem a tudo ficou mais fácil. Os sete já vendeu em nossa mitologia, mais afeita a cria-
companhia de seres que fazem jus ao mais de 100 mil exemplares. Meus livros, turas como a “Mula sem Cabeça”, o
ofício de Drácula. no total, passam das 700 mil cópias ven- “Boi Tatá” e o “Saci Pererê”. Ainda as-
Hoje vampiros destruidores, didas. Com números assim, não há mais sim, foi a transposição do universo fan-
que andam na companhia de anjos e espaço para indiferença ou preconceito, tástico à realidade brasileira que fisgou
demônios pelas ruas de cidades brasilei- editores gostam de livros que vendem nossos jovens leitores. Vianco é elogia-
ras, ganharam vez em nossa literatura. bem. Hoje vejo que a literatura de fanta- do justamente por fazer essa ponte entre
Com a expansão da internet, a literatura sia nacional já tem um espaço reservado a tradição e o novo. “Os leitores curtem
de fantasia estabeleceu um público fiel e nas prateleiras das livrarias”, diz Vianco. muito as incursões de boitatás, curupi-
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 25

Inf luências
literárias
J
.R.R. Tolkien, autor de O senhor dos anéis, é uma das grandes referências da
literatura de fantasia. Para Spohr, o escritor sul-africano elevou essa litera-
tura a um nível diferente. “Tolkien é importantíssimo porque elevou a lite-
ratura fantástica adulta a um nível mais acadêmico. A partir dele, a acade-
mia começou a reconhecer o gênero. O que acontecia antes é que a fantasia era
somente para crianças”, diz. Spohr, no entanto, revela gostar mais de outro tipo
de literatura: a pulp. “De Robert E. Howard a H.P. Lovecraft”, diz o autor, que
ainda cita Frank Herbert, Isaac Asimov e o brasileiro José Louzeiro, com quem
Spohr fez uma oficina de roteiro em 2002.
Vianco vai por um caminho parecido: gosta de literatura de horror, auto-
res como Edgar Allan Poe, passando por Stephen King. Mas os seus escritores
ras e sacis, mas claro que dou uma rou- de ousadia nas criações dos escritores preferidos vêm passam longe do gênero do horror: Victor Hugo e Henry James.
pagem nova, mais articulada com nossa de fantasia para adultos e também per- “Antes de qualquer pessoa ser um grande escritor, deve ser um grande leitor”,
época, os leitores agora são bombarde- der um pouco do desdém ao se escrever afirma Vianco. (GS)
ados por filmes blockbusters norte-ame- fantasia para seduzir o leitor com a pa-
ricanos, seriados, videogames, redes so- lavra, fugir dos textos extremamente ca- Divulgação
ciais, etc. É preciso saber escrever para beça e pegar a literatura para divertir o
esse público”, diz. leitor”, diz Vianco, que acaba de lançar
“O Brasil, justamente por ter todo O caso Laura, romance que pende mais
esse sincretismo, por ter paisagens das para a trama policialesca e de suspense.
mais variadas e uma forte espiritualida- Marcelo Amado, da Editora Es-
de, é um cenário perfeito para esse tipo tronho, voltada à literatura de fantasia,
de narrativa”, afirma Eduardo Spohr. O faz ressalvas a esse efervescente nicho de
autor ressalta, no entanto, que a produ- mercado. Com sede em Belo Horizon-
ção de literatura de fantasia sempre exis- te, a Estronho só publica livros de fan-
tiu no país, mas que no passado as obras tasia de autores iniciantes. “Os leitores
dificilmente chegavam ao grande públi- ainda têm medo de arriscar na compra
co. Hoje em dia, além das pequenas edi- de livros de autores nacionais do gênero
toras, que publicam em bom número, – exclua aí os famosos. Por outro lado, as
Spohr relaciona os eventos de literatu- editoras esperam autores prontos e com
ra fantástica, como o “Fantasticon”, que vendas garantidas”, diz Amado.
acontece todo ano em São Paulo, e onde, Para o editor, o mercado de lite-
segundo o autor, “há centenas de títulos ratura de fantasia no Brasil ainda tem
de fantasia expostos”. um longo caminho pela frente. “Há au-
Os dois autores também citam tores muitos bons que não têm uma real
Monteiro Lobato como um grande oportunidade de mostrar seu trabalho, a
exemplo de boa literatura de fantasia menos que estejam dispostos a desem-
feita – e bem aceita – no Brasil. “Acho bolsar cerca de R$ 15 mil para bancar
que o que mais faltou foi uma pitada sua publicação nas ‘grandes’ editoras”. g Eduardo Spohr: referência na literatura brasileira de fantasia.
26 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

perfil | carlos careqa

Catando
Fotos: Edson Kumasaka

palavras

Desbravador de dicionários na infância, Carlos Careqa a minha primeira paixão pelas palavras. Bicho de sete cabeças, de Laís Bodanzky.
Eu e Lino Procópio – músico e ami- Já a trajetória de leitor teve algu-
virou leitor fiel de Fernando Pessoa, Ferreira Gullar e go – fazíamos alguns textos bem com- ma contribuição da escola, mas foi o es-
plicados com essas palavras. Era engra- pírito livre de Careqa que o levou a leitu-
Carlos Drummond de Andrade. Da paixão pelo verso, çado e muito proveitoso.” Sem saber, o ras menos comprometidas com o ensino
surgiu o mote para seu trabalho: o leitor virou poeta garotinho Carlos antevia o seu futuro:
juntar palavras em frases que lhe da-
formal. “Li alguns livros sugeridos pelos
professores, aqueles que todo mundo lê
riam sentido à vida. na adolescência. Quando peguei gosto
Luiz Rebinski Junior te com alguns poetas curitibanos nos Nascido em Lauro Muller, San- pela leitura, me encantei com o Ignácio
idos dos anos 1980, quando começava ta Catarina, Carlos Careqa passou a in- de Loyola Brandão, depois Bukowski,

A
palavra escrita desde sempre es- a escrever suas primeiras canções. Mas fância e a juventude em Curitiba – en- Fernando Pessoa, Carlos Drummond de
teve no centro da vida de Carlos a paixão pelas palavras é ainda anterior tre idas e vindas, ficou na cidade por 21 Andrade e Ferreira Gullar.”
Careqa. Antes de enveredar pela à empreitada publicitária e às andanças anos –, onde estudou música e teatro. Careqa trabalhava como bancário
música, o compositor foi em bus- com os poetas, se manifestou quando Nos anos 1990, radicou-se em São Pau- em Curitiba quando partiu para Nova
ca do bordão perfeito para o mercado Careqa era piá e “ficava folheando o di- lo, onde mora há 21 anos. Foi responsá- York com seu violão debaixo do braço.
publicitário, fez comerciais de sucesso e cionário à procura de palavras diferen- vel por várias trilhas para peças de teatro Se apresentou também em bares e casas
carreira na área. Também vagou na noi- tes e seus significados”. “Acho que foi e trabalhou como ator em filmes como noturnas de Genebra e Berlim nos anos
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 27

1990. Em seguida, ao retornar, atuou no cedidas no cinema, em clássicos de Jim


grupo Pêlo Público, em São Paulo. Afi- Jarmusch e Robert Altman. E foi essa
nado com a produção da chamada Van- estética que fisgou Careqa.
guarda Paulista, de artistas como Arrigo A paixão pela obra do bardo ame-
Barnabé e Itamar Assumpção, de quem ricano se materializou em 2008, quan-
foi parceiro musical, Careqa é um com- do Careqa gravou À espera de Tom, um
positor pouco convencional, mas alta- disco com versões de músicas de Waits
mente criativo, irreverente e... poéti- cantadas em português. “Rain dogs” vi-
co. A literatura está impregnada no seu rou “Eu e meu cachorro louco”, inter-
trabalho. Em seu sétimo disco, Tudo que pretada com a rouquidão característica
respira quer comer, a voz do poeta Mario de Waits, já o clássico “Chocolate Jesus”
Quintana aparece na música “Isso pas- se transformou em “Guaraná Jesus”, em
sará”, dinamitando as fronteiras que se- uma referência ao refrigerante que faz
param poesia e música. sucesso no Maranhão, uma tentativa de
Então, seria no mínimo despro- aproximar o estranho universo do ame-
positado perguntar a um compositor, ricano do público brasileiro. As licenças
cujas palavras ocupam espaço tão privi- poéticas não param por aí: a Nova Jersey
legiado em sua obra, se letra de música do fim dos anos 1980, cenário de “Jersey
também é poesia. Para essa indagação Girl”, é substituída pela São Paulo atu-
bizantina, mais antiga que a vocação al em “A garota de Guarulhos”. “O uni-
poética de Bob Dylan, Careqa se sai verso do Tom Waits não é muito dife-
com uma resposta pouco óbvia, mas rente do meu. As imagens que ele busca,
certeira. “Para mim, letra de música é eu também busco. Tive que adaptar [as
letra de música. E claro que pode haver referências], pois não fazia sentido can-
muita poesia nessa letra de música. Po- tar em português falando de Nova Jer-
esia é o combustível para se fazer uma sey. Como eu já vinha estudando o cara
boa letra de música. Alguns poemas po- há 20 anos, não foi difícil.”
dem ser musicados. Mas outros só exis- Assim como a poesia pouco con-
tem pela força poética mesmo.” vencional de Waits, Machado de As-
sis também foi uma influência for-
À espera de Waits te para Careqa. Fã da poesia do Bruxo
Em 1986, Careqa assistiu a uma do Cosme Velho, cuja produção poética
peça de Raul Cruz – dramaturgo que foi eclipsada pela prosa, Careqa já teve
nos anos 1980 fez parte dos grupos “Bi- vontade “de fazer uma canção inspirada
cicleta” e “Moto Contínuo”, em Curitiba no conto ‘O homem célebre’, do Ma-
–, em que as músicas de Tom Waits inte- chado”. “Mas não fiz”, diz, com certo
gravam a trilha do espetáculo. “Saí atrás pesar, o músico.
de tudo do cara. E, desde então, escuto Hoje, com as atribuições da vida
muito Tom Waits. A verve poética dele diária, Careqa confessa que tem lido
é muito próxima da minha, pois usamos menos. “Mas procuro sempre estar in-
o cotidiano para construir nossa poesia.” teressado com o que existe na literatura.
Um dos compositores mais singulares Leio bastante na internet, textos soltos
da música americana nos últimos trinta e poesia”, diz o cantor, que está lendo
anos, Waits é um artista de espírito in- Leite derramado, de Chico Buarque, que
domável, que trafega pelos mais diversos fez uma participação em seu disco Alma
gêneros sonoros, misturando jazz, rock, boa de lugar nenhum, gravando a canção
tango e polca à uma poesia à moda be- “Minha música”. Como nos tempos de
atnick. À sua considerável carreira como juventude, as palavras e os poetas con-
músico, somam-se incursões bem-su- tinuam a acompanhar o leitor Careqa. g
28 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto | assionara souza

Ilustrações: Theo Szczepanski


o palhaço
O
palhaço andava triste. Devia dinheiro pra um negociante
da alta: o acrobata.
Casado com a mulher barbada — as mais feias são
mais vaidosas! E sofrem demais... —, o bufo gastava mui-
to com véus e pílulas. Uma grana elevadíssima. Estava se viran-
do pra pagar. O que entrava, num piparote sumia com os juros
exorbitantes. No bolso largo, perdia a mão enluvada. Umas mo-
edinhas infelizes: café & cigarro. Entrava no picadeiro com o
andar pendente. A música alta. Os chacais da plateia e suas ca-
beças felizes enchendo-se de guloseimas. Olha maria mooooole-
eeee! Olha Minduiiiiim. Nada a fazer. Era só um palhaço. Como
devia ser, curvava o corpo elasticodolor para além da claraboia,
lá onde a lona mira o sol. E lançava o seu riso alucinado acima
do voo do acrobata. g

o mágico
O
mágico desde sempre desconfia de sua falta de talento. E
agora está velho e flácido. Acha impossível começar algo
novo. Sair do Circo e trabalhar como autônomo... Talvez.
Perde-se em pensamentos dessa natureza antes de meter a
mão no fundo escuro da cartola. O silêncio expectante da plateia
abraça sua insuspeita figura. É então, nesse exato momento, que
o segredo salta com suas orelhas brancas e peludas do mais ínti-
mo de sua consciência: imposteur! Um sussurro como vento frio
varre a alma do mágico. O riso abre-se em lâmina na face bem
maquiada. E os arcos das sobrancelhas realçam um ódio anôni-
mo direcionado aos seus cúmplices. É com prazer cansativo que
ele oferece àqueles olhares sedentos o arranjamento senil de sua
Falsa Arte. A sensação é mágica. g
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 29

o domador
R
omão é o domador do Circo. Por superstição, trançou fios
de seu bigode à ponta do chicote. Com isso, pensa ele,
as feras jamais se aproximam. Entre outros truques, man-
tém as calças bem apertadas para lhe empertigar melhor
o corpo, imprimindo-lhe uma aparência de coragem. Romão é
covarde e por isso precisa ser sempre cruel. Exige do dono do
Circo que a remessa de alimentos das feras venha viva. Sua prá-
tica quase meditativa é deixar os leões com fome por uns dias e
jogar uma presa ofegante dentro da jaula. Aprecia muito obser-
var a captura e aniquilamento das vítimas. Porcos pequenos e de
pernas curtinhas lhe dão um prazer especial. Uma de suas gran-
des ideias, inclusive, foi gravar o som lancinante dos víveres para,
na hora em que se apresenta ao público, jogar como sutil música
de fundo. Suspeita-se que seja por isso que as crianças caem na
gargalhada durante este número. Romão já foi visto pelo palha-
ço devorando um dos coelhos do mágico. O palhaço, que deve
dinheiro ao acrobata, aceitou manter o bico fechado em troca de
algum troco. Romão também é o tesoureiro do Circo. g

Assionara Souza nasceu em Caicó (RN), em


1969. Já publicou os livros de contos Cecília
não é um cachimbo (2005) e Amanhã. Com
sorvete! (2010), ambos pela editora 7Letras.
Os contos aqui publicados pertencem ao livro
inédito Histórias do circo e da cidade.
Vive em Curitiba (PR).
30 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

cândido, 133

Muito além
Kraw Penas

da técnica
A Divisão de Assim que uma nova doação
chega, há uma seleção prévia feita pe-
Processamento Técnico los funcionários da própria Divisão de
Processamento Técnico. Depois dis-
é o setor responsável por so, os títulos são separados de acordo
receber as doações que com o assunto e os chefes das Seções
decidem se o material é pertinente ou
Mara Rejane Vicente, chefe da Divisão de Processamento Técnico da BPP.

são incorporadas ao não. Caso o material seja aproveitado, Doações


ele segue então para a Seção correspon- A BPP também oferece al- Doadores de letras
acervo da Biblioteca dente ao seu assunto. ternativas para incentivar a doação
Pública do Paraná – um Uma vez aproveitados, os mate-
riais passam pelo processo de cataloga-
de livros. Os usuários que não de-
volveram os livros emprestados ou
Há mais de trinta anos o profes-
sor aposentado Sansão José Loureiro
dos maiores do Brasil, com ção, classificação e indexação – etapa possuem multas, por exemplo, têm a doa livros à Biblioteca Pública do Pa-
que consiste em determinar o assunto possibilidade de negociação da pen- raná. Em uma conta modesta, feita a
quase 600 mil exemplares da obra. Por fim, realiza-se o cadastro dência por meio da doação de livros. toque de caixa, o professor diz que fo-
no sistema local. Em seguida, acontece “É um modo de viabilizar a quita- ram mais ou menos cinco mil exempla-
Felipe Kryminice e Monique Cellarius o preparo físico, que se dá por meio da ção das dívidas e, ao mesmo tempo, res doados, principalmente das áreas de
confecção de bolso e etiqueta para cada enriquecer o acervo da biblioteca”, direito e literatura.

U
m acervo de mais de meio mi- exemplar. diz Sizuko Takemiya, chefe da Di- “A ideia é compartilhar com os ou-
lhão de documentos – entre li- “Já os livros que não são incor- visão de Obras Gerais, que também tros. Do que adianta os livros ficarem pa-
vros, periódicos e material de áu- porados ao acervo da BPP, a Divisão de participa do processo de seleção das rados na estante?”, pergunta Sansão, que
dio e vídeo – não se constrói do Extensão se encarrega de encaminhar doações. tem especial predileção pelos clássicos e
dia para noite – nem sozinho. O acer- para Bibliotecas Públicas Municipais Instrumento importante para pela literatura contemporânea.
vo da Biblioteca Pública do Paraná vem que tenham interesse”, conta Mara Re- qualquer biblioteca pública, a doação, Outro doador assíduo foi o crítico
sendo constituído com a ajuda de doa- jane Vicente, chefe da Divisão de Pro- no entanto, precisa levar em conta al- e escritor Wilson Martins, que até 2010,
dores desde a fundação da instituição, cessamento Técnico. guns critérios. Rejane diz que não in- ano de sua morte, espalhava com regulari-
no longínquo ano de 1857, apenas qua- Rejane ainda destaca a individu- teressam à Biblioteca “materiais in- dade seus livros pelas estantes da BPP. Os
tro anos depois da emancipação do Es- alidade de cada item e a minúcia que o completos, enciclopédias, livros de dois doadores se notabilizaram por dispo-
tado do Paraná, ocorrida em 1853. trabalho de seleção envolve. “Um livro direito e técnicos desatualizados, as- nibilizar obras em boas e recentes edições,
A Divisão de Processamento não é como uma mercadoria comum. sim como livros didáticos já preen- o que, ao longo do tempo, acabou cha-
Técnico é hoje a porta de entrada para Cada exemplar tem sua singularidade, chidos ou rasurados.” mando a atenção de vários leitores, que
esses novos títulos – provenientes não sua individualidade e suas característi- No entanto, destaca a impor- passaram a perseguir as obras doadas por
só de doação, mas também de com- cas. Há todo um trabalho a respeito de tância das doações. “Em média, rece- Sansão e Martins nas estantes da BPP.
pra. A Técnica, como a Divisão é cha- sua origem, seu estado de conservação. bemos dois mil exemplares por mês. “Às vezes alguns leitores me ligam
mada, é responsável pelo recebimento, Também buscamos informações sobre o Com a exceção de alguns casos de para conversar sobre determinados livros
seleção e o respectivo encaminhamento número de sua edição, além de uma ava- doações impróprias, a maior parte dos que doei. São pessoas que têm o gosto li-
das obras que chegam à BPP. A Técnica liação para saber se se trata de uma obra materiais chega em ótimas condições terário parecido com o meu”, diz Sansão,
compreende todas as etapas do processo rara. Enfim, existe todo um cuidado es- de aproveitamento. O que ajuda a en- que acaba de ler e doar Nêmesis, último li-
de cadastro de um novo item. pecial com cada exemplar recebido.” riquecer o acervo da BPP.” g vro do norte-americano Philip Roth. (FK)
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 31

retrato de um artista

Fiódor dostoiévski Por Yuri Al’Hanati Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski nasceu em Moscou,
Rússia, no dia 11 de novembro de 1821. Estudou
na Escola de Engenharia de São Petesburgo, e
desde a juventude se dedicou à leitura e à produção
literária. Algumas de suas obras mais importantes
são O idiota (1868), Os irmãos Karamazóv (1880)
e Recordações da casa dos mortos (1861). Crime
e castigo (1866), outro de seus célebres romances,
narra a história de Rodion Românovitch Raskólnikov,
um jovem estudante que comete um assassinato e
se vê perseguido por sua incapacidade de continuar
sua vida após o delito. Raskólnikov comete o crime
com um machado. A cena da velha usurária Alióna
Ivánovna sendo morta permanece como uma das
mais célebres da literatura mundial. Dostoiévski teve
uma vida perturbada pela epilepsia e pelo vício em
jogo. Morreu em fevereiro de 1881, há 130 anos.

Yuri Al’Hanati nasceu


em Parati (RJ), em 1986.
É jornalista e ilustrador.
Trabalha na Gazeta do Povo
e mantém o blog Livrada!
(www.livrada.wordpress.com).
Vive em Curitiba (PR).
32 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

poesia

Adélia Prado Ilustração: José Marconi

Pomar
Os açúcares das frutas
me arrombaram um jardim
a meio caminho de trincar nos dentes
a doce areia, seus cristais de mel.
À vibração do que chamamos vida,
onde os adjetivos todos desintegram-se,
o Senhor da vida olhava-me
como olham os reis
as servas com quem se deitam.
Desde agora, pensei, basta dizer
“os açúcares das frutas”
e o jardim se abrirá
sob o mesmo poder da antífona sagrada:
“Ó portas, levantai vossos frontões!”

Adélia Prado nasceu em Divinópolis (MG), em


1936, onde reside até hoje. Já publicou vários
livros, entre romances, contos, poemas e literatura
infantojuvenil. Entre eles, Bagagem (Imago,
1976), O homem da mão seca (Siciliano, 1994),
Quero minha mãe (Record, 2005) e o mais
recente Carmela vai à escola (Record, 2011).
Foi agraciada com o prêmio Jabuti por Coração
disparado (Nova Fronteira, 1978).

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