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Cahiers du monde hispanique et

luso-brésilien

As listas eleitorais do Rio de Janeiro no século XIX


Projeto de classificação sócio-profissional
Maria Yedda Linhares

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Linhares Maria Yedda. As listas eleitorais do Rio de Janeiro no século XIX. In: Cahiers du monde hispanique et luso-brésilien,
n°22, 1974. Numéro consacré au Brésil. pp. 41-67;

doi : https://doi.org/10.3406/carav.1974.1928

https://www.persee.fr/doc/carav_0008-0152_1974_num_22_1_1928

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As listas eleitorais do Rio de Janeiro

no século xix

Projeto de classificação sócio-profissional *

PAR

Maria Yedda LINHARES


Université de Toulouse-le Mirail.

O estudo das estruturas sociais brasileiras ainda terá um longo


caminho a percorrer, caso aceitem os nossos historiadores as linhas
mestras que foram seguidas, nas duas últimas décadas, pelos seus
congéneres franceses : « II nous importe de dénombrer les
membres des différentes classes sociales et des diverses professions,
d'acquérir sur chacun d'eux une notion, aussi précise qu'il se
pourra, de leurs revenus et leurs propriétés; bref, nous souhaitons
que la méthode statistique précise nos connaissances. » 0). O
levantamento e a análise pormenerizada de fontes
demográficas, fiscais, eleitorais e notariais que desde então se processaram na

(*) Desejamos assinalar aqui o nosso agradecimento ao Dr. Henrique Sergio


Gregori, presidente da XEROX do Brasil e director do Copicentro de Rio de
Janeiro, a quem devemos, a título de ajuda à pesquisa histórica, toda a
reprodução das listas eleitorais por nós utilizadas segundo o processo microfilmagem/
xerox 1824.
(1) Georges Lefebvre, Bulletin d'Histoire moderne et contemporaine (depuis
1715), Comité des Travaux Historiques, 1956, p. 53. Veja-se, igualmente, Ernest
Labrousse, Voies nouvelles vers une histoire de la bourgeoisie occidentale aux
XVIII" et XIX' siècles (1700-1850), X Congresso internazionale di Science storiche,
Roma, 1955, Relazioni (1955).
42 C. de CARAVELLE

França — caminho ainda não esgotado — permitiram que atingisse


a historiografia francesa a sua atual expressividade qualitativa, a
par de sua importância numérica contribuindo para alargar o
campo de conhecimento da história social. Clareza de conceitos
metodológicos, aperfeiçoamento de recursos técnicos e profusão
de fontes estão entre as condições que propiciaram, objetivamente,
a vitória da nova tendência.
No caso do Brasil, e acreditamos que também de outros paises
que tiveram processos históricos diversos do europeu, o problema
da quantificação no estudo das estruturas sociais apresenta-se de
maneira complexa. O fato de ter sido a formação do povo brisileiro
marcada, desde o início, pelo colonialismo externo, pela dispersão
interna de núcleos isolados de povoamento, pela justaposição de
contingentes humanos heterogéneos, impôs ao pesquisador
brasileiro a necessidade prévia de pensar em termos de totalidade do
processo histórico, à procura de seu sentido profundo. O
escravismo, a grande propriedade e a monocultura voltada para o
comércio internacional constituíram os fundamentos de uma sociedade
que desde o nascedouro trazia marcas de deformação. Tratar-se-ia,
aparentemente, de um desenvolvimento histórico curto e pouco
denso nos seus traços gerais mas que, ao ser apreendido de perto,
apresentava-se matizado e fugidio.
Se, por um lado, historiadores, sociólogos e economistas
brasileiros puderam fixar os problemas fundamentais dessa formação
social peculiar, por outro, é forçoso reconhecer que nem tudo foi
ainda explicado. Falta-nos, sobretudo, o balanço do estado
presente de nossos conhecimentos a partir do qual se trace um
programa de investigação que tenha por base conceitos teóricos
precisos e indique as fontes a serem levantadas ou, em alguns casos,
apenas reestudadas.
Na França, foi o estudo sistemático das fontes demográficas,
fiscais, notariais e eleitorais que permitiu atingir o nível de exatidão
na análise das estruturas sociais, « ultrapassando o estágio
descritivo e recorrendo à mensuração e ao quantitativo » (2). No Brasil,
a tarefa nos parece mais complexa, haja vista a imensidão de seu
território onde os testemunhos estão dispersos e os arquivos são
deficientes. Ora, o limite de uma fonte é estabelecido pelo limite
da sociedade que a gerou. Por conseguinte, novos métodos e novas
técnicas se impõem face à realidade social que se deseja apreen-

(2) Albert Soboul, Description et mesure en histoire sociale, in « L'Histoire


Sociale, sources et méthodes », Paris, 1967, p. 11.
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 43

der com precisão e face à natureza, bem como o estado, dos


registros que ela nos legou. Tais documentos existem também no Brasil.
Eles podem ser localizados, nem sempre com facilidade e quase
sempre de maneira fragmentada. Mas restaria saber como utilizá-
-los. E, ainda, verificar o que eles nos aportam.
Na presente nota, não pretendemos abrir novos caminhos.
Nosso objetivo é limitado, visto serem limitadas as nossas informações.
Desejamos, tão-somente, a partir da análise de uma das fontes,
entre outras, por nós pesquisadas até o momento — as listas
eleitorais de 1876 do Rio de Janeiro — apresentar um projeto de
classificação sócio-profissional, espécie de prefácio ao estudo das
estruturas sociais na mesma época e cidade. Uma vez concluído o
tratamento dessas listas por processos mecanográficos, outros
documentos passíveis de elaboração estatística irão completar o
levantamento básico a que nos propusemos nos últimos anos (3). Só
depois, então, nos julgaremos em condições de abordar a discussão
do estudo das estruturas sociais numa sociedade escravista em fase
de transição para o trabalho livre.
Limitações de base caracterizaram o nosso objetivo inicial, a
começar pela própria natureza da documentação. Contar, classificar
e hierarquizar a partir de séries de impostos, livros de cartórios,
registros paroquiais e listas eleitorais significaria restringir o
campo de análise, limitando-se a investigação à categoria dos homens
livres, sem incluir a massa dos trabalhadores escravos. Haveria,
ainda, a possibilidade de serem excluídos os de condição económica
mais fraca pois estes, a não ser excepcionalmente, jamais
deixariam marcas em registros fiscais, cartoriais e eleitorais; a menos
que recenseamentos demográficos, suficientemente detalhados, nos
suprissem tais deficiências de dados. A terceira limitação dizia
respeito à população estrangeira, bastante numerosa e importante,
social, cultural e economicamente, nas cidades brasileiras do
século XIX. Ora, ao pretendermos, quer pela continuidade dos dados
obtidos, quer pela análise dos elementos qualitativos
indispensáveis, fazer um estudo de estruturas sociais urbanas e seus
movimentos, por mais lentos que sejam, a omissão daqueles
ponderáveis setores, grupos e classes deverá ser sempre levada em conta.
Daí a necessidade de levantar outras fontes, restringindo-se, assim,
a margem de erros.

(3) Maria Yedda Linhares, Levantamento e análise de fontes para uma história
social urbana - Rio de Janeiro (1800-1930), projeto de pesquisa aprovado pelo
Conselho de pesquisas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1968.
44 C. de CAR AVELLE

Por serem muito vagos os critérios de recolhimento de


documentação nos arquivos do Rio de Janeiro e deficientes os sistemas de
classificação, defronta-se o historiador brasileiro, na maioria dos
casos, com obstáculos intransponíveis entre os quais um dos
menores ainda é o da dispersão de uma mesma série em várias
repartições. O estudo dos impostos, em história social, exige cuidados
metodológicos especiais visto que algumas séries, por acaso
localizadas, são pouco reveladoras. Somente uma equipe bem
preparada, com os necessários recursos mecanográficos, seria capaz de
levar a cabo o extremamente longo e penoso trabalho de busca,
levantamento e análise. Não nos devemos esquecer de que, para
efeitos financeiros, eram as taxas alfandegárias as mais
importantes; eis porque são os únicos impostos que deixaram rastro
facilmente detectado. Da mesma forma, o estudo de fortunas
apresenta, para o século XIX, dificuldades que vão desde o acesso aos
inventários « post mortem » à reconstituição de famílias com
múltiplos sobrenomes. Por outro lado, o sistema judiciário e
administrativo brasileiro, que se instalava com carências bem
ressentidas na época, não primava por sua eficiência burocrática nem
pelos seus recursos arquivísticos (4).
Como afirmamos antes, nosso objetivo, no momento, é restrito.
Retemos, para o presente artigo, apenas as listas eleitorais e delas
retiramos os elementos necessários para uma classificação sócio-
-profissional urbana, no século XIX, ainda sob o regime de trabalho
escravo.
Lembremo-nos, inicialmente, de alguns dados básicos. O Rio de
Janeiro, capital nacional e, na maior parte do século XIX, o porto
mais importante do país, conheceu um crescimento demográfico
bastante significativo durante todo o período e sofreu diretamente
os impactos internos e externos que afetaram a vida do país no seu
conjunto. No espaço de aproximadamente um século (1799-1890),
sua população, pelos dados oficiais, passou de 43. 376 habitantes
para 522.651. Salvo o recenseamento de 1870 que foi realizado com
notável rigor, os dados relativos à população estão sempre sujeitos
a reparos e devem ser tomados com reservas, sobretudo os
referentes a 1849. Para efeitos administrativos, dividia-se em « fregue-

(4) A reconstituição de fortunas no Rio de Janeiro, no século XIX, através do


levantamento dos inventários das Varas de órfãos e Sucessões, trabalho em
curso, apresenta, entre outras, a dificuldade de fazer uma sondagem acurada
capaz de abranger a extensa área rural da província do Rio de Janeiro, assim
como os bens deixados no Exterior (« fuga » de capitais acumulados no Brasil)
pelos residentes estrangeiros falecidos no Rio de Janeiro.
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 45

sias), sendo estas em número de 21, urbanas e suburbanas ou


rurais, em 1876. Aliás, o crescimento da cidade (demográfico e
expansão territorial) pode ser acompanhado pelas sucessivas criações
de freguesias com as suas diversas jurisdições, religiosas, policiais
e administrativas. Nelas se entralaçam funções e instituições nos
diferentes níveis administrativos, políticos e religiosos, ora
municipais, ora federais. Mecanismo confuso cujos vestígios ainda hoje se
definem pela dispersão de fontes e arquivos e pelo desaparecimento
de muita documentação valiosa.

O SISTEMA ELEITORAL - SUAS CARACTERÍSTICAS

Determinava a primeira Constituição do Império (25 de março de


1824) que as nomeações dos deputados e senadores para a Assem-
bléia-Geral e dos membros dos Conselhos das Províncias, seriam
feitas por eleições indiretas. Caberia à massa dos cidadãos ativos
da paróquia eleger os eleitores provinciais e a estes, os
representantes da Nação e das Províncias. Nas eleições primárias, votariam
os cidadãos brasileiros e os estrangeiros naturalizados, sendo
excluídos de votar nas assembleias paroquiais :
1. os menores de 25 anos entre os quais não se compreendiam os
homens casados e os oficiais militares maiores de 21 anos, os
bacharéis formados e os clérigos de ordens sacras; 2. os filhos-
-família, que morassem em companhia de seus pais, salvo os
detentores de cargos e ofícios públicos; 3. os criados de servir, excluindo-
-se dessa categoria os guarda-livros e primeiros caixeiros das casas
comerciais, os criados da Casa Imperial que não fossem de galão
branco e os administradores das fazendas rurais e fábricas; 4. os
religiosos que vivessem em comunidade claustral; 5. os que não
tivessem de renda líquida anual 100 $ 000 (cem mil réis) por bens
de raiz, indústria, comércio ou emprego.
Quanto à qualificação de eleitores de segundo grau, aqueles que
deveriam eleger os deputados, senadores e membros dos conselhos
de província, eram excluídos de votar — : 1. os que não tivessem
de renda líquida anual 200 $ 000 (duzentos mil réis) por bens de
raiz, indústria, comércio ou emprego; 2. os libertos; 3. os
criminosos pronunciados em querela ou devassa.
Poderiam ser eleitos deputados todos os cidadãos brasileiros
salvo : 1. os que não tivessem de renda anual 400 $ 000
(quatrocentos mil réis); 2. os estrangeiros naturalizados; 3. os que não
professassem a religião do Estado, isto é, a católica, apostólica e
romana.
46 C. de CARAVELLE

As primeiras instruções eleitorais de 1824, que se podem


considerar como a primeira lei eleitoral do Império, ao disporem sobre
as eleições das assembleias paroquiais, determinavam que « em
cada freguesia se constituiria uma assembleia eleitoral sob a
presidência do juiz de fora, com a assistência do pároco ou de seu
legítimo representante ». Estipulavam ainda que cada paróquia daria
tantos eleitores (de 2e grau) quantas vezes contivesse o número de
cem fogos de sua população (5). O parágrafo 8o do Título II dessas
Instruções dispunha quanto à obrigatoriedade do voto : « nenhum
cidadão, que tem o direito de votar nestas eleições, poderá isentar-
-se de apresentar a lista de sua nomeação. Tendo legítimo
impedimento, comparecerá por seu procurador enviando a sua lista
assinada e reconhecida por tabelião nas cidades ou vilas, e no termo
por pessoa conhecida e de confiança. » Instruções eleitorais
posteriores, de 1828 e 1830, estabeleceram multas variáveis de 30 $ a
60 $ para os votantes das eleições primárias ausentes sem
justificação, destinando-se tais multas às escolas dos respectivos locais.
Duas inovações importantes são introduzidas pelas Instruções
às eleições municipais de 1828. A primeira diz respeito à maneira
pela qual são convocados os votantes (eleitores de primeiro grau),
ou seja, a lista de votantes é afixada à porta da paróquia quinze
dias antes das eleições, sendo a mesma organizada pelo juiz de paz
ou, na sua falta, pelo pároco. Cabia aos cidadãos indevidamente
excluídos o direito de recurso. A segunda inovação dizia respeito
ao voto do analfabeto, ao estipular pelo artigo 7 o que as cédulas
onde se escreviam os nomes das pessoas elegíveis deveriam ser
entregues e assinadas no verso pelo votante ou por pessoa a seu
rogo. Ficava, assim, implícito o direito de voto ao analfabeto que
perdurou até o fim da monarquia.
Esse o procedimento eleitoral que, em suas linhas gerais,
persistiu até 1881 quando foi, então, indroduzido o sistema das
eleições diretas. Algumas modificações posteriores não chegaram a
modificar-lhe essencialmente o conteúdo. Dispositivos legais
procuraram aperfeiçoar o « alistamento dos cidadãos ativos e dos fogos »
e a organização das eleições (6), introduzir a eleição por distritos,
ou círculos eleitorais (1855 e 1860) e focalizar a reprentação das
minorias prejudicadas pela legislação anterior (7).

(5) Por « fogo » entendia-se a casa, ou parte dela, em que habitasse uma
pessoa livre, ou uma família com economia separada. Nessas condições, uma
casa podia conter um ou vários fogos.
(6) Lei n° 387 de 1846.
(7) Pro je to João Alfredo de 1873 de que resultou a « lei do terço > de 1875.
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 47

A última lei relativa ao processo eleitoral pelo sistema indireto


foi a de 1875 que cria o título de qualificação eleitoral e confere à
Justiça a competência para conhecer de questões relativas às
eleições (qualificação de votantes e validade ou nulidade das eleições).
Caberia às juntas paroquiais organizar as listas de votantes,
devendo as mesmas conter as seguites informações : nomes dos cidadãos
qualificados, idade, estado civil, profissão, filiação, domicilio e renda
conhecida ou presumida, estipulada esta em 200 $ (duzentos mil
réis) (8). Consideram-se com renda legal conhecida os seguintes
casos : os militares, salvo os praças de pré e os marinheiros; os
cidadãos que pagarem anualmente 6 $ 000 ou mais de impostos; os que
pagam o imposto pessoal (lei de 1867); os que receberem a título
de subsídio, soldo, vencimento ou pensão 200 $ 000 ou mais por ano;
os advogados, solicitadores, médicos, farmacéuticos; os que
tiverem título conferido por faculdades, escolas e institutos de ensino
público secundário, superior e especial do Império; os que
exercerem o magistério particular em escolas frequentadas por dez
ou mais alunos, bem como os diretores das mesmas; os
sacerdotes; os titulares do Império e membros da Casa Imperial, salvo os
criados de galão branco; os negociantes matriculados, corretores
e agentes de leilão; os guarda-livros e primeiros caixeiros de casas
comerciais que tiverem 200 $ ou mais de ordenados anuais e cujos
títulos estiverem registrados no registro do comércio; os
proprietários e administradores de fazendas rurais, de fábricas e de oficinas
e, por último, os capitães de navio mercantes e pilotos que tiverem
carta de exame.
Admitiam-se como prova de renda legal : justificação judicial
na qual se prove que o justificante possui pelos seus bens de raiz,
indústria, comércio ou emprego, a renda líquida anual de 200 $;
documento de estação pública pelo qual o cidadão mostre receber
dos cofres públicos, vencimento, soldo ou pensão de 200 $ pelo
menos, ou pagar o imposto pessoal ou outros na importância de
6 $ 000 anualmente; exibição de contrato transcrito em livro de
notas, do qual conste que o cidadão é rendeiro ou locatário, por
prazo não inferior a três anos, de terrenos que cultiva, pagando
20 $ 000 ou mais por ano; título de propriedade imóvel, cujo valor
locativo não sejo inferior a 200 $ 000 anuais.
Estipulava, ainda, a lei de 1875 que a qualificação dos votantes
seria revista de dois em dois anos. Quanto aos eleitores de segundo

(8) Artigo 28 das Instruções regulamentares.


48 C. de CARAVELLE

grau, o seu número em cada freguesia seria fixado tendo por base
o recenseamento da população e na proporção de um eleitor para
400 habitantes de qualquer sexo ou religião, excetuando-se para
tais cálculos os residentes estrangeiros. Coube à chamada lei
Saraiva de 1881 abolir o sistema de eleições em dois graus que durou 60
anos. Daí por diante todo o processo eleitoral passa para a
competência da magistratura, inclusive o alistamento que seria
subordinado à autoridade do juiz de direito mediante requerimento de
inscrição eleitoral. Mantêm-se exigências de renda tanto para o
eleitor (200 $), quanto para deputado (800 $) e senador (1.000 $ 000,
um conto de réis).
Em termos de sufrágio e participação popular no processo
político, possuía o município da Corte, em 1876, em números redondos,
16.000 votantes de primero grau e 507 eleitores (9). Em 1881, com
a adoção das eleições diretas e censitárias, contava com 6.665
eleitores inscritos sobre uma população que deveria situar-se acima de
350 mil habitantes. Se considerarmos, por um lado, que a exigência
de 200 $ para a qualificação do votante de 1876 era a mesma para
o eleitor de 1881 e que, por outro, o crescimento populacional deve
ter sido de 50.000 habitantes entre as duas datas, dúvidas podem
ser levantadas quanto à validade de ambos os alistamentos. Mas ao
levarmos em conta apenas o fato de que, pela lei de 1881, a
inscrição de eleitor exigia um processamento burocrático mais
complexo, fica bem clara a intenção do legislador de afastar a massa
popular (agricultores, pescadores, trabalhadores e artesãos) do
processo de participação na vida política do país. A alegação de que o
caráter elitista dessa legislação eleitoral se exprimia no censo
(200 $ 000, importância bastante modesta para a época) nãs é
totalmente válida, mesmo porque o voto do analfabeto não foi suprimido
pela lei, embora o tenha sido na prática. O eleitorado de 1881 reflete
a nova realidade social e política do fim do Império, bem como os
mecanismos mais sutis do controle do sistema de poder pela classe
dirigente. Assim, as listas de 1876, por serem feitas por recenseado-
res de quarteirão, a partir de uma experiência longamente
estabelecida — embora permitindo manipulações evidentes dos
resultados eleitorais —, representam com relativa fidelidade o perfil
social do Rio de Janeiro, observadas as ressalvas feitas de início e
ainda outras que faremos no decorrer desde artigo.

(9) Decreto de 5 de Julho de 1876 que fixa o número de eleitores das paróquias
do Império. Nesse ano, a população brasileira no Rio de Janeiro já superava os
200 000 habitantes.
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 49

AS LISTAS ELEITORAIS DE 1876 ('<*)

Das listas eleitorais que pudemos localizar no Rio de Janeiro,


apenas as de 1876 abrangem todas as freguesias e possuem a
indicação de renda. As dos anos anteriores estão incompletas, com a
omissão de algumas freguesias, e não fazem menção à renda. As de
1881, bem como o alistamento geral de 1891, também omitem a
referência aos rendimentos anuais. A lei de 1881 alargou o leque das
categorias profissionais que seriam isentas de fazer prova de renda e
a legislação republicana adotou o sufrágio universal embora
suprimindo o direito de voto ao analfabeto. Comparadas com as de 1876,
apresentam tais listas, entretanto, grande interesse. Nessas
condições, o corte que estabelecemos foi determinado pelo estado das
fontes de que dispomos, e não por uma decisão expressa de ordem
metodológica.
O estudo mais minucioso da documentação eleitoral exigiria uma
análise, não apenas das listas existentes, o que constitui por si só
um trabalho lento, como também das atas das sessões das juntas
paroquiais, tarefa que ultrapassa as possibilidades do pesquisador
isolado. Cuidados especiais foram tomados justamente para
compara as diferentes folhas, a partir dos primeiros rascunhos, por
vezes feitos a lápis, durante a fase inicial dos recenseamentos
periódicos que eram empreendidos pelos inspetores de quarteirão.
Infelizmente, tudo indica que as fichas de recenseamento por fogo não
foram conservadas, pois delas só pudemos localizar um número
insignificante. Servem, todavia, para ilustrar a maneira como eram
alistados os fogos e dão-nos algumas informações sobre a
organização familiar.
Nas atas das sessões das juntas paroquiais são, por vezes,
encontradas informações mais pormenorizadas sobre os votantes,
principalmente no referente à profissão e ao local de trabalho. Seu valor
estatístico, porém, é reduzido, já que tais referências só se
registram em atas em caso de recurso. São ocorrências isoladas mas que
servem para esclarecer dúvidas. Tendo em vista, portanto, a enorme
massa de documentação, optamos pelas listas de qualificação de
1876, por serem as mais completas e as únicas que mencionam ren-

(10) Utilizamo-nos das listas eleitorais que se encontram no Arquivo histórico


do Rio de Janeiro, na avenida Pedro II. Desejamos consignar o nosso
agradecimento aos funcionários desse arquivo que não pouparam esforços nem horários
auxiliando-nos na localização desses dados.
50 C. de CARAVELLE

dimento anual dos votantes. Entre elas, depois de feitos testes de


comparação com diversos livros e folhas esparsas, selecionamos
as que foram assinadas pela comissão da Câmara Municipal,
assumindo, dessa forma, a feição de alistamento definitivo e oficial.
Para uma análise a ser feita posteriormente, tomamos o
alistamento de votantes de três freguesias em 1848-49 e 1891, sendo uma
rural (Inhaúma), uma residencial (Engenho Velho) e uma no
centro comercial (São José). Por não termos localizado todos os livros
para o total das freguesias em nenhuma data anterior a 1876, fomos
levados a adotar esse critério, visto que poucas são as freguesias
cujas listas se encontram completas nas três datas citadas e mesmo
assim sem mencionar as rendas naqueles anos. O seu estudo nos
permitirá esclarecer alguns aspectos da estrutura profissional no
Rio de Janeiro, levando-se em conta as transformações que se
operaram na economia brasileira na segunda metade do século e
que se refletiram no processo de urbanização do Municipio
Neutro.
As listas de 1891 permitem-nos fixar os reflexos dessas
mudanças com mais exatidão pois registram os eleitores indicando a
freguesia de proveniência sempre que se trata de mudança de
domicílio. Outrossim, enumeram os estrangeiros que adotaram a
nacionalidade brasileira pela lei chamada da « grande naturalização » do
primeiro ano da República. A análise dos três períodos representa
um trabalho lento e volumoso e que envolve cerca de 25.000 fichas
nominativas, 200.000 informações, exigindo, portanto, um
tratamento mecanográfico.
Para 1876, contamos 15.958 votantes distribuídos nas vinte e uma
freguesias em que se dividia o Rio de Janeiro, sendo oito rurais
(freguesias de fora ou suburbanas) e treze urbanas. Nelas
encontramos referências a 162 profissões nomeadas e, dessas, 62 ofícios
diferentes (profissões artesanais e mecânicas). Sobre cada votante
existem as seguintes informações : nomes por extenso, idade, estado
civil, profissão, nível de alfabetização (se sabe 1er e escrever),
domicílio, filiação e renda estimada ou presumida. O título de nobreza,
quando há, é sempre mencionado, quer se trate do votante, quer de
sua ascendência imediata (n). A coluna relativa à filiação exige
precauções especiais uma vez que a indicação de « pais ignorados »
ou « filiação desconhecida » não significa, necessariamente, que se
trata de filho natural, podendo ser apenas uma falha de anotação.

(11) O título de nobreza do Império não era hereditário. Daí os « barões do


café » de curta duração e as fortunas relativamente efémeras.
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 51

Assim, cada caso precisa ser estudado separadamente. A referência


a domicílio necessitará, em fase posterior do trabalho, de um
confronto com os dados relativos ao imposto imobiliário, mormente
para as profissões artesanais. Quanto às profissões e rendas, há
ainda algumas verificações a serem feitas. Com todas as suas falhas,
constituem essas as únicas referências concretas e homogéneas que
pudemos encontrar para o Rio de Janeiro no século XIX.
Esperemos que se revelem novas fontes e que possam cobrir um
período mais longo, permitindo-se, assim, um conhecimento mais
pormenorizado da sociedade urbana brasileira, com suas diferentes formas
de trabalho livre e escravo, voltada para o comércio exportador cujo
controle escapava aos brasileiros.

PRO JETO DE CLASSIFICAÇÃO SOCIO-PROFISSIONAL URBANA

Em virtude das dificuldades surgidas, de início, para a


computação das listas eleitorais, restringimo-nos, numa primeira fase, a
estabelecer a relação entre profissões e salários, ou rendimentos
anuais declarados, trabalho esse feito manualmente e, portanto,
sujeito a correções posteriores. Julgamos ocioso rememorar aqui
o debate metodológico, bastante elucidativo, travado em torno do
problema de classificação e codificação sócio-professional (12). Para
efeitos práticos, limitar-nos-emos a introduzir os critérios que ado-
tamos.
Nosso primeiro cuidado foi de destacar todas as menções à
ocupação ou profissão como se denominavam na época. Com o auxílio de
informações diversas (dicionários contemporâneos, romances,
jornais, depoimentos de pessoas idosas), tentamos defini-las para,
então, agrupá-las segundo a forma de trabalho, a sua natureza
mais ou menos manual e o lugar ocupado pela profissão no sistema
produtivo, levando sempre em consideração o rendimento
declarado. Elaboramos, assim, fichas por freguesia, ocupação nomeada
e rendimento ou salário. Numa segunda fase, estabelecemos a
frequência de renda por profissão em todas as freguesias. Numa
terceira etapa, destacamos cada profissão no conjunto das freguesias,
registrando o número de casos e o rendimento médio.
Pudemos, dessa forma, calcular o número de profissionais em
cada ocupação, a renda média, por freguesia e no conjunto da

(12) Referi mo-no s aqui ao conjunto da obra de A. Daumard e à comunicação


de Jacques Dupâquier, Problèmes de la codification socio-professionnelle, in
« L'Histoire Sociale — sources et méthodes », op. cit., seguida de debates
bastante esclaracedores.
52 C. de CARAVELLE

cidade, bem como a frequência dos rendimentos e a distribuição


geográfica das ocupações. O estado de nossa fonte não nos
permite, infelizmente, fazer uma classificação horizontal dos
indivíduos dentro de cada profissão em função das relações de produção.
Por esse motivo, não escapamos, no tocante às profissões
mecânicas e artesanais, do agrupamento por ofício e atividades
individuais. Por exemplo, não dispomos de elementos suficientes para
saber se o fundidor mencionado se trata de um artesão independente,
de um fundidor empregado de uma oficina média ou de uma
empresa de certo porte, seja ela pública ou privada, e assim por
diante. Verifica-se a mesma dificuldade quanto a uma classificação
económica das profissões. Não podemos saber a que ramos se dedica
um determinado carpinteiro : restauração ou confecção de navios,
etc. Em casos isolados, as atas das juntas paroquiais podem ser
esclarecedoras, mas aleatoriamente, sendo tarefa que demanda
muito tempo por resultados de pouca monta. Nessas condições, o
rendimento declarado é uma referência básica, mesmo porque ele
varia dentro de cada ocupação e de freguesia para freguesia,
sobretudo entre a zona rural e a urbana.
À primeira vista, impõe-se uma classificação jurídica para a
sociedade brasileira do século XIX, principalmente para os
historiadores que a vêem enquanto uma sociedade « de ordens » ou
estamental. Uma discussão aqui sobre assunto tão controverso foge
aos nossos objetivos do momento. Embora diferenças ou distinções
existissem, certamente, entre camadas sociais e indivíduos, — entre
um titular do Império, fazendeiro de café, e um negociante de Irajá,
por exemplo — uma distância muito maior, intransponível,
separava o homem livre do homem escravo e mesmo do liberto.
Distinção económica e social, sem dúvida, mas, igualmente, de estatuto
jurídico. Na sociedade brasileira escravista, a simples referência a
uma profissão já conferia ao indivíduo sua posição social e sua
qualidade, pelo status de homem livre. O fato de existirem em 1870,
12.000 escravos na cidade do Rio de Janeiro, trabalhando no
comércio, na agricultura e na indústria, confere aos trabalhadores livres
uma marca de distinção. Se verificarmos que, daquele número
apontado, 5.957 foram recenseados enquanto trabalhadores em manufa-
turas, artes e ofícios, somos levados a admitir que uma parte
significativa dos artesãos e artífices de 1876 empregavam mão-de-obra
servil.
Assim, a condição livre ou escrava por si só designa a posição de
base, mas não anula as hierarquias que são sociais e económicas e
que dizem respeito à posição que o indivíduo ocupa no sistema pro-
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 53

dutivo global, no piano de prestígio político e social, na psicologia


coletiva, níveis que se entrelaçam com escassa possibilidade de
serem « medidos » estatisticamente.
Outro problema que surge para uma classificação jurídica diz
respeito ao estatuto da « nobreza » do Império, o que será tratado
em fase posterior do nosso estudo. Na sociedade urbana de que nos
ocupamos neste instante, seu número é demasiadamente reduzido
para justificar uma categoria à parte, mesmo porque, nas listas
eleitorais, a menção ao título nobiliário não é suficiente para
qualificar o votante, constando sempre a indicação ocupacional (senador,
militar, proprietário, fazendeiro). Exemplo : o Duque de Caxias
apresenta-se como marechal, com o rendimento de 12:000 $ 000
enquanto o Conde d'Eu, na mesma categoria, aponta 150:000 $ 000
provenientes, por certo, de sua alta função na Casa Imperial.
Desejamos ainda ressaltar o fato de não dispormos sobre a
economia do Rio de Janeiro no século XIX de dados precisos que
abranjam um recenseamento de suas manuf aturas e indústrias, de
tal forma minuciosos que nos indiquem o número de
trabalhadores nacionais e estrangeiros nelas empregados, bem como o de
escravos. Sem esses e outros elementos qualitativos, não sairemos da
fase de suposições e esquemas vagos sempre que tratarmos do
problema da mão-de-obra e modo de produção — transição do trabalho
servil ao trabalho livre, do trabalho artesanal ao assalariado, seja
em manufaturas ou em indústrias.
Pelas condições expostas, tivemos de fazer, numa primeira fase,
a classificação por ofícios. O que nos interessava, primordialmente,
era destacar dos 62 ofícios e profissões caracterizadas por sua
natureza mecânica ou manual, aqueles ou aquelas que eram exercidas
por assalariados. Em algumas profissões, tendo-se, por vezes, a
variável salário como decisiva, a tarefa não foi das mais difíceis :
cavouqueiro, balanceador, torneiro, tipógrafo, estampador, falque-
jador, possivelmente o laminador, e outras mais. Da mesma forma,
o operário, o jornaleiro, o trabalhador, como são designados, sendo
que os rendimentos, ou salários, dos operários de uma freguesia
urbana (Santana) ultrapassam expressivamente o « nível do mar »,
na expressão de E. Labrousse. Outras profissões apresentam
problemas de difícil solução : marceneiro, carpinteiro, chapeleiro, cal-
ceteiro, marmorista, canteiro, para só citarmos algumas entre
várias. Esperamos que a análise completa das listas, com todas as
variáveis, nos esclareça alguns desses pontos.
Vejamos as grandes linhas que enquadram a economia
brasileira na década de 1870-1880 : a herança financeira da guerra do
54 C. de CARAVELLE

Paraguai; a crise internacional de 1873 que afetou o nosso comércio


exterior; a crise do sistema escravagista que começava a colocar o
problema do trabalho livre em larga escala; a revolução dos
transportes; o início de industrialização; a mudança de mentalidades.
Mas, a não ser por afirmações de carácter geral e um tanto vagas,
ainda não se esclareceu a maneira pela qual se fez a transição do
artesanato à manufactura e da manufatura à indústria, quer
qualitativa quer quantitativamente. Uma vez verificada a predominância
dessa tendência, restaria, portanto, separar o assalariado do
artesão independente; entre os artesãos, o produtor simples e o que
vende sua mercadoria, o que trabalha só e o que emprega mão-de-
obra, livre ou escrava. Parece-nos ser este um estudo a ser feito,
prioritariamente, antes de qualquer discussão em torno de classes
sociais, ordens ou estamentos.
O recurso à literatura da época é extremamente útil. Citemos, por
exemplo, O Cortiço de Aluísio de Azevedo. Aí encontramos
sucessivas menções a profissões, salários, aluguéis, tudo isso integrado
no cotidiano do Rio de Janeiro que se transforma rapidamente :
meios sociais, níveis económicos e mentalidades. Dois mecanismos
de integração social são descritos com notável clareza : o da
ascensão social do comerciante português proprietário da estalagem e o
do « abrasileiramento » do cavouqueiro pelo amor de uma bela
mulata. Não constituem eles mecanismos « típicos » ? Mas o que
importa são as mudanças e o ritmos em que elas se operam. Claro
está que para medi-las outros seriam os meios, sendo um deles o
registro de impostos de indústrias e profissões, caso tais livros
tivessem sido preservados. Essas séries, porém, uma vez
localizadas, não nos esclareceriam sobre a posição que cada um, dentro
da profissão e de sua categoria, ocupava ou julgava ocupar em
relação a outras profissões e com referência à sociedade global; nem
nos informariam sobre o nível de prestígio e de poder político. Não
podendo, pois, fazer falar os mortos, nem ir além dos limites da
documentação disponível, tentemos utilizar plenamente todos os
recursos a nosso alcance.
Embora reconhecendo que ainda faltam à historiografia
brasileira um inventário básico de fontes quantitativas e um número
expressivo de monografias, levantamos o problema de uma
classificação sócio-profissional que seja válida para a sociedade urbana do
século XIX sob regime de trabalho escravo. Fazemos aqui a primeira
abordagem, com as precauções que o tema exige : problemas de
fontes, de cronologia (outra classificação para a sociedade posterior
à abolição), de meio social (urbano e rural).
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 55

Não ignoramos as dificuldades conceituais e metodológicas que,


durante alguns anos, tanto preocuparam os historiadores
franceses. Daí a advertência de Jacques Dupâquier, em 1965 :
« Parece, aliás, extremamente difícil adotar um código sócio-
-profissional sem se ter antes um conhecimento pormenorizado da
sociedade que se deseja codificar, pelo menos quando este código
sócio-profissional funda-se sobre normas empíricas e não sobre
uma classificação abstrata. De fato, com o método abstrato, as
categorias são definidas antecipadamente e os assuntos são
encaixados na medida em que vão sendo encontrados nas fontes. Por
outro lado, quando se utiliza o método empírico, é indispensável
ter-se antes um conhecimento da estrutura real dos grupos, dos
estamentos e das classes que compõem a sociedade estudada » (13).
É-nos útil a experiência desse debate. Inspiramo-nos nos trabalhos
de A. Daumard ao optarmos pelo método empírico « que consiste
em escolher certos ofícios como casos típicos de uma categoria e
em classificar nas mesmas categorias os ofícios que se assemelham
àqueles que são considerados como casos típicos » (14). Para o
estágio atual do nosso trabalho, ele constitui um ponto de partida
metodológico, sem se transformar numa ortodoxia. Tal escolha não
exclui a exigência de serem estabelecidos critérios para definir,
previamente, certas categorias, assim como : a natureza do
trabalho, os setores de atividade económica e profissional, a hierarquia
social.
Os dados constantes de nossas listas eleitorais, ao servirem
como balizadores, por vezes como corretores, são importantes no
agrupamento e na hierarquização. Referimo-nos àqueles relativos
ao nível de alfabetização, à filiação <15) e ao domicílio, podendo este
ser conferido com as informações do arquivo do imposto
imobiliário. Ponto de referência não menos importante é a classificação
profissional contemporânea (recenseamento do Município da Corte de
1870). E « last but not least », a classificação que encontramos nos
relatórios policiais. Os prisioneiros são aí divididos entre livres e

(13) Jacques Dupâquier, op. cit., p. 162.


(14) Adeline Daumard, Une référence pour l'étude des sociétés urbaines en
France aux XVIII' et XIX' siècles. Projet de code socio-professionnel. Revue
d'Histoire moderne et contemporaine, 1963, pp. 185-210, apud Institut National
de la Statistique et des Etudes Economiques (I.N.S.E.E.), Code des catégories
socio-professionnelles, 1954, p. 3.
(15) É comum a menção à filiação materna apenas, com simples
indicação do nome, sem referência ao sobrenome, o que indica origem social modesta,
possivelmente ascendência escrava pelo lado materno; há possibilidade de
confirmar essa hipótese ao fazer-se o cruzamento dessa informação com a
profissão, o rendimento e o nível de alfabetização.
56 C. de CARAVELLE

escravos; os livres, entre nacionais e estrangeiros os quais, por sua


vez, são classificados, tanto uns como os outros, entre abastados,
proletários e mendigos 1
As listas eleitorais omitem a população escrava, os estrangeiros,
os indivíduos de renda inferior a 200 $ 000 por ano, bem como os
menores de 25 anos, salvo as exceções estabelecidas por lei, os
criados de servir, os soldados e marinheiros e, obviamente, as mulheres.
O recenseamento de 1870 fornece-nos os elementos numéricos,
apesar do recuo de seis anos, para que possamos aquilatar a represen-
tatividade de nossos 16.000 votantes de 1876.
Sobre um total de 235.381 habitantes distribuídos entre dezenove
freguesias O6), havia 50.092 escravos, ou seja, 21,28 % (»ff); 64.917
estrangeiros, isto é, 27,57 (18). Classificadas como « sem profissão
conhecida », encontram-se 68.180 pessoas O9), 28,96 %. Observe-se
que, entre os indivíduos assim classificados, estão incluídas as
mulheres dependentes, os menores e, conseqüentemente, parte da
população estrangeira.
Sobre a população feminina (20), lembremos que havia no Rio de
Janeiro, naquela data, 16.479 estrangeiros do sexo feminino e
61.009 mulheres de nacionalidade brasileira, condição livre,
representando estas 32,92 % da população total livre. Se excluirmos
as mulheres livres classificadas entre os < sem profissão »,
restam 37.301 mulheres exercendo uma profissão ou com economia
própria (15,84 %), distribuídas nas seguintes atividades :
Empregados públicos 18
Profissões literárias 283
Comerciantes 998
Capitalistas 640
Lavoura 3 969
Manufaturas, artes e ofícios 9 468
Eclesiásticos 162
Serviço doméstico 21 422

(16) São João Batista da Lagoa e Engenho Velho foram desdobradas em 1873
dando origem às freguesias da Gávea e Engenho Novo.
(17) Em 1838, a população escrava correspondia a 42,72 % da população total
do Rio de Janeiro; em 1872, a 18 %.
(18) O número total, segundo o censo, é de 78 676 aí se incluindo 13 759
escravos africanos < estrangeiros » entrados no Brasil antes da lei que aboliu o
tráfico negreiro em 1850.
(19) Nesse número estão excluídos os 12 537 escravos que foram classificados
como c pessoas sem profissão conhecida ».
(20) O projeto de lei de M. Alves Branco e José Bonifácio, de 1831, propunha
estender à mulher viúva ou vivendo separada de seu marido o direito ao voto,
por procuração.
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 57

Mesmo excluindo a categoria < serviços domésticos », temos no


Rio de Janeiro, em 1870, 15.879 mulheres, brasileiras e
estrangeiras {8,56 % da população livre e 6,7 i % da população total) com
certo peso na vida social, económica e cultural da cidade (21). Tais
cifras não são desprezíveis num estudo de estrutura profissional,
fortunas e mentalidades.
Quanto à população masculina, se admitirmos que os menores
de 21 anos (15.521 do sexo masculino) estão computados, pelo
menos a maioria, entre os sem profissão e no serviço
doméstico, atingirá o seu número 7UÂ68 entre os livres (20),
nacionais e estrangeiros, exercendo atividades remuneradas ou vivendo
de rendas próprias. É mais do que provável que a população
masculina livre classificada como « sem profissão » e sob a rubrica
« serviços domésticos » seja, na sua maioria, brasileira. Donde
poder-se concluir, sem grande margem de erro, que os estrangeiros
economicamente ativos eram mais numerosos que os brasileiros,
no Rio de Janeiro, naquele momento, situação essa que deve ter
perdurado por vários anos. Não é necessário explicar aqui os
problemas que tal constatação envolve para o estudo da estrutura
profissional, uma vez que não dispomos, até o momento, de dados
completos sobre as atividades dessa população estrangeira.
Restaria dar uma explicação sobre o valor relativo das
importâncias em moeda brasileira. Deixando de lado o problema de
conversão, por ser meramente financeiro, importa-nos saber a que
correspondem 200 $ 000 (duzentos mil réis) anuais, enquanto
rendimento ou salário. Pelas fontes qualitativas de que dispomos,
verificamos tratar-se de uma soma modesta e que corresponderia, em
termos atuais, a um salário mínimo vital; por exemplo, a « escrava de
ganho », quitandeira, a Bertoleza de que nos fala Aluísio de
Azevedo em O Cortiço, devia remeter mensalmente 20 $ 000 a seu senhor
cego que residia em Minas Gerais; importância anual que se
situava, naquela época, entre 20 e 30 % do preço de um escravo.
Em 1876, o menor salário da Estrada de Ferro D. Pedro II
(Decreto numéro 6238 de 28 de junho de 1876) era conferido aos
contínuos e correspondia a 640 $ 000 ao qual se acrescentavam
320 $ 000 a título de gratificação. Outras categorias eram
remuneradas por jornada de trabalho e ganhavam de 1 $ 000 (mil réis) a
5 $ 000 (cinco mil réis) de diária, aí se incluindo : apontadores, fei-

(21) Havia, em 1870, 24 573 mulheres escravas das quais 3 475 foram
classificadas como trabalhando no comércio, na lavoura e na manufatura.
(22) Foram recenseados 3 347 menores entre 14 e 18 anos.
58 C. de CARA VELLE

tores, guardas, carregadores, bagageiros e serventes. A diária


prevista para trabalhos extraordinários situava-se em torno de 6 $ OUU,
enquanto o salário de diretor de serviço, altamente qualificado,
oscilava entre 6:000 $ 000 e 18:000 $ 000, este último
correspondendo ao do diretor da referida Estrada de Ferro. Já o servente da
Junta de Saúde ganhava 330 $ 000 por ano. Como vemos, nada tinña
de exorbitante a importância de 200 $ 000 anuais estipulada para a
qualificação de votante. Abaixo desse nível, situava-se a grande
massa dos indigentes.

ü projeto de classiiicação que apresentamos a seguir foi elaborado


tendo em vista certas exigências elementares de codificação. Trata-
se de uma primeira tentativa, não exclusiva, daí o seu caráter
provisório, sujeito a revisões uma vez aperfeiçoados os conceitos e
trabalhadas novas fontes, tanto para o Rio de Janeiro, quanto para
outras cidades na mesma época. Não conseguimos, por enquanto,
elucidar certos problemas relativos ao vocabulário (diferença, por
exemplo, além da meramente formal e semântica, entre «
comerciante » e « negociante », bem como a natureza de diversos
negócios e tipos de comércio) e ao nível social dentro das profissões
artesanais, manuais e mecânicas, de modo a estabelecer-se a
hierarquia dentro de cada categoria profissional e nas relações de
produção.
Talvez tenha razão quem afirme que a classificação sócio-pro-
fissional deva suceder o estudo das estruturas sociais, numa
síntese, e não o preceder. Mas se a antecipamos, sem ainda existirem
todas as monografias que se fazem necessárias, é porque a julga*
mos enquanto um instrumento de trabalho, capaz de orientar aquel*1
estudo, tomando como referência de base a denominação
profissional e a qualificação ocupacional, dentro de um quadro geográfico
delimitado e um tempo determinado.

O. Agricultura e atividades extrativas. O fato de termos


localizado 2.396 lavradores no Rio de Janeiro, alistados como votantes,
com a renda legal estabelecida, e 543 pescadores, levou-nos a uma
classificação das profissões agrícolas e extrativas. O censo de 1870
consigna para essas duas categorias ocupacionais acima de 15 mil
pessoas, das quais 13.560 eram lavradores (entre estes, 31,50 %
eram escravos). Em 1876, o número de pessoas dedicadas ao setor
primário deveria aproximar-se dos 20.000 (com possivelmente mais
de 20 % de escravos). Outras profissões estão presentes nas listas
que recenseamos, tais como : camarada, campeiro, lenhador,
hortelão, em número muito reduzido (de um a dois apenas), ocupações
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 59

todas essas de baixo nível de renda ou salário. Verificamos outros-


sim, que nas freguesias rurais do Rio de Janeiro, a maior
frequência de rendimentos anuais situa-se entre 200 $ e 300 $ (duzentos
e trezentos mil réis). Nas seis freguesias rurais onde há
concentração de lavradores (2.827 lavradores), apenas 52 são inscritos com
rendimentos anuais que oscilam entre 1 :000 $ 000 (um conto de
réis) e 4:000 $ 000 (quatro contos de reis). A não ser Inhaúma, onde
72,96 % dos lavradores declaram em torno de 600 $ 000 (seiscentos
mil réis), nas outras cinco freguesias mencionadas (Governador,
Guaratiba, Jacarepaguá, Irajá e Campo Grande), 90,94 % dessa
categoria ganham entre 200 $ e 300 $ por ano, rendimentos
mínimos portanto. Nessas condições, a massa de lavradores residentes
no Rio de Janeiro era constituída de pequenos proprietários,
sitiantes, arrendatários, meeiros, situações essas, aliás, previstas na
legislação eleitoral. Raros são os grandes proprietários rurais, de
rendimento possivelmente subestimado, figurantes nas listas de 1876.
Assim sendo, mantivemos para efeito de classificação, a
categoria de lavrador para as diferentes formas de trabalho agrícola,
na área suburbana, sejam elas arrendamento, meação ou plena
propriedade de pequeno porte ligadas à economia de subsistência.
De quarquer maneira, a probreza da área rural do Rio de Janeiro é
evidente. Em 1876, pelos dados constantes das listas eleitorais,
18,4- % dos votantes classificam-se na rubrica « lavoura e atividades
extrativas » e percebem 3,2 % dos rendimentos totais declarados,
com a renda média de 281 $ 000. Nada indica, pois, que estivessem
ligados à agricultura de exportação.

1. Trabalhadores urbanos e artesãos. Não nos permitindo a fonte


estabelecer uma rubrica separada (ou uma das dez colunas
numeradas) para os trabalhadores manuais assalariados (manufaturas e
indústrias), julgamos que, em virtude da estratificação peculiar a
uma sociedade escravista, as diferentes categorias artesanais,
mecânicas e manuais, sejam elas independentes ou assalariadas, com
todos os matizes que comportam, podem ser englobadas numa só
grande rubrica, pelo menos enquanto outros elementos não
justifiquem uma ou várias subdivisões desse grupo. O que desejamos
ressaltar no agrupamento dessas diversas categorias profissionais,
para efeito de classificação codificada, é a sua relativa
homogeneidade social. Na medida em que o trabalho manual não é
prestigiado, nem económica nem socialmente, difícil se torna
estabelecer com precisão a hierarquia dentro das diferentes categorias que
ele comporta, embora saibamos, grosso modo, da distância que o
60 C. de CARAVELLE

separa das profissões intelectuais e comerciais, bem como do


fazendeiro senhor de escravo. Claro está que um estudo pormenorizado
da taxa paga por escravo seria capaz de elucidar o problema, já
por nós levantado acima, sobre a participação do trabalho servil
nas atividades artesanais e manufatureiras. Por outro lado,
observamos que havia uma distinção, quer económica, quer de estatuto
social, entre o artista, artífice propriamente dito, e outras
profissões também de natureza manual, mecânica ou criativa. Os artistas,
denominados como tais, são encontrados em todas as 21 freguesias,
no total de 2.036 (12,75 % dos votantes), enquanto 44 profissões
diversas podem ser classificadas como intermediárias entre o sala-
riato e o artesanato independente de caráter patronal (8,92 % dos
votantes). Os denominados operários e trabalhadores por estarem,
na quase totalidade, concentrados nas freguesias do centro,
constituem uma categoria de trabalho manual urbano e assalariado, sob
um ou vários patrões, trabalhando a jornada ou como « biscatei-
ros » (encontramos um único votante denominado « jornaleiro »
e, assim mesmo, numa freguesia rural). Algumas profissões podem
ser facilmente classificadas, constituindo categorias assalariadas,
especializadas : tipógrafo (empregado em oficinas de litografia),
balanceador, cavouqueiro, falquejador, gasista, canteiro, torneiro,
calafate, caieiro, estampador, etc., representando apenas 1,U6 %
dos votantes. Algumas profissões devem constituir uma categoria
distinta que se coloca entre o artesão-produtor e o artesão-vende-
dor, ambulante : fogueteiro, pirotécnico, charuteiro.
Verificamos que esse grupo, englobando todas as categorias de
trabalhadores urbanos e artesãos (manuf aturas, artes e ofícios),
corresponde a 2í,6 % dos votantes e li, 3 % dos rendimentos totais
declarados, com uma renda média de 72Î $ 000.

2. Empregados em transportes. Embora esse grupo seja


numericamente pouco significativo (1,9 % dos votantes e 1,1 % dos
rendimentos totais), já possui uma renda média de 959 $ 000
(novecentos e cinquanta e nove mil réis) e representa um setor de ativi-
dade em plena expansão : transportes coletivos urbanos,
ferroviário e marítimo. As freguesias do centro (incluindo o cais do porto)
abrigam 68,70 % dos trabalhadores dessas categorias, embora os
de salários mais altos residissem em São Cristóvão (bondes e
estrada de ferro), freguesia esta que se caracterizará, cada vez mais,
pela sua especialização industrial. Incluimos nesse grupo os
trabalhadores do cais do porto (estivadores), os tropeiros, os
arreadores, os carroceiros, os cocheiros, os mestres de barco, os mer-
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 61

gulhadores, embora algumas delas (tropeiros, carroceiros e


arreadores) estejam presentes nas listas apenas simbolicamente e sejam
ocupações em fase de transição. Quanto aos estivadores, o fato de
só termos recenseado um número reduzido (oito ao todo), talvez se
explique pela predominância do trabalho escravo nesse setor, ou
então pela participação de trabalhadores estrangeiros, excluídos das
listas eleitorais.
3. Empregados a serviço do Estado. Nesse grupo, o segundo em
importância numérica, estão recenseados 21,3 % dos votantes com
23,5 % de participação nos rendimentos globais (renda anual
média de 1:735 $ 000). Nele incluimos : os empregados públicos
civis, de todas as categorias e de todos os setores públicos
(executivo, legislativo e judiciário), os empregados da Casa Imperial, os
militares sob a rubrica « defesa do Estado » (abrangendo também
os oficiais de polícia e da Guarda Nacional), e, ainda, os sacerdotes
(categoria Igreja), visto que a Igreja, sob a monarquia, era
subordinada ao Estado.
Destacar num mesmo grupo toda a burocracia do Estado
corresponde a uma realidade social, económica e política, no que se refere
ao caso particular do Brasil. O « emprego público » era garantia de
subsistência, meio de ascensão social, fonte de prestígio e
aspiração bem difundida na psicologia coletiva. Por outro lado, a
participação do Estado no processo histórico brasileiro foi de suma
importância em todos os níveis. Evidentemente que sob o título «
empregados a serviço do Estado > propomos uma classificação que
poderá vir a ser corrigida, ampliada, ou mais sintética, de modo a
bem abranger todos os escalões entre as diferentes categorias que
propomos.
4. Empregados a serviço de entidades públicas e privadas. Nosso
propósito ao estabelecermos esse grupo foi o de destinar um lugar
na escala sócio-profissional para os empregados que não se
encaixam entre os funcionários públicos, nem entre os patrões, tais
como : empregados do comércio (caixeiros, guarda-livros,
escreventes e escrivães, podendo os últimos, em alguns casos, serem
incorporados ao grupo dos empregados públicos do setor judiciário),
empregados de diferentes empresas privadas, sob o título de
empregados diversos (bancos, seguros, indústrias), os empregados
especializados (telegrafistas, taquígrafos, enfermeiros). Tivemos
dificuldade de classificar um tipo de atividade ocupacional muito
frequente numa sociedade pré-industrial, com meios de comunicação
precários. Trata-se do empregado de sociedades assistenciais (tipo
62 C. de CARAVELLE

Santa Casa da Misericórdia), das ordens religiosas, das casas


comerciais, etc., incumbidos de levar correspondência ou de pedir esmolas
para as almas, de porta em porta (os andadores) e, ainda, de efe-
tuar cobranças (os cobradores). Por não termos as necessárias
informações sobre a maneira como eram remunerados (salário fixo
ou comissões), visto que apresentam níveis de vencimentos
relativamente elevados (entre 600 $ e 1 :900 $), os colocamos, por enquanto,
sob a rubrica serviços auxiliares independentes, em virtude da
natureza não-burocrática do trabalho.
Nesse grupo, registramos A,6 % dos votantes com a participação
de 3,7 % nos rendimentos totais (renda média : 1 :260 $ 000).

5. Patrões. Classe dirigente, por excelência, compreende 19,9 %


da população eleitoral e 38,1 % da renda global. Sua participação
relativa nos rendimentos declarados só é ultrapassada pelo grupo
constituído pelas profissões liberais. Grupamos aí todas as ativida-
des patronais ligadas aos quatro setores básicos da vida económica,
a saber : a grande lavoura, a indústria, o comércio e as finanças,
sem distinguirmos no concernente à indústria e ao comércio as
empresas de pequeno, médio e grande porte. Seria ocioso ressaltar
aqui a importância do comércio e da agricultura de exportação, de
base escravista, para o Brasil, embora coubesse aos estrangeiros a
participação mais importante no setor exportador e importador. De
qualquer forma, é sobre essas bases que se hierarquiza a sociedade
brasileira.
Para distinguir entre a pequena lavoura de subsistência e a
grande lavoura escravista, respeitamos as denominações das listas
eleitorais nas quais o lavrador, com pequena renda, conforme já
assinalamos, concentrado nas freguesias rurais, constituía uma
categoria diversa do fazendeiro (por vezes, chamado de agricultor),
podendo ser este tanto um proprietário importante da zona rural
(anotamos 7 em Campo Grande, 4 em Guarativa, 2 em Irajá e 2 em
Jacarepaguá), quanto um fazendeiro, ou agricultor, com
propriedade fora da área do Rio de Janeiro, embora com residência fixada
na Corte. No segundo caso, ou seja, os fazendeiros residentes nas
freguesias urbanas, possivelmente com propriedades distantes
dedicadas à grande exploração agrícola, são os que apresentam
rendimentos anuais mais elevados que ultrapassam os 10:000 $ 000 (dez
contos de réis).
No relativo à pesca, ao lado dos pescadores com rendimento anual
que se situava em torno dos 200 $ e 300 $, encontramos um caso
com renda de 10:000 $ 000, o que nos leva a supor a existência de
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 63

um patronato da indústria pesqueira, seja brasileiro ou estrangeiro.


O desenvolvimento do setor comercial exigiria uma classificação
de modo a distinguir entre o comércio exportador e o importador,
entre o ramo varejista e o atacadista, bem como entre as diferentes
especializações de negócios. Não podemos, entretanto, ir além de
uma denominação pelos bairros urbanos e rurais. Representa essa
categoria 13,30 % dos votantes, com rendas que variam muito,
sobretudo entre o subúrbio e o centro. Se certamente existe toda
uma gradação de prestígio e de importância económica entre
comerciantes e negociantes, no conjunto da sociedade brasileira,
determinada pelo nível de riqueza, já no plano local, em áreas
geográficamente afastadas do centro, as mais pobres, tem o comerciante ou
o negociante por si só, por modesto que seja o seu ramo de ativi-
dade, uma posição de destaque assegurada na escala social.
Para as profissões e ocupações intermediárias, os que vivem de
comissões e remunerações por serviços prestados (despachantes,
agentes, comissários, leiloeiros, etc.), trabalhando por contra
própria e, por vezes, empregando ajudantes, propomos a categoria
de patrões ligados a atividades intermediárias. Os denominados
industriais, fabricantes e construtores constituem uma rubrica
própria, a dos patrões da indústria. Quanto às profissões que estão
ligadas ao pequeno comércio e à pequena indústria ou manufatura
(açougueiro, aguardenteiro, quitandeiro, penteeiro, taverneiro) as
englobamos na rubrica diversos. Finalmente, no setor financeiro,
destacamos as categorias de proprietários (urbanos), capitalistas
e corretores.

6. Profissões liberais. Numericamente, é este o grupo menos


importante dos três grandes que constituem a classe dirigente. É o
que apresenta, entretanto, rendimentos mais elevados (8,6 % dos
votantes 18,6 % da renda total). Recenseamos 17 profissões, sendo
que alguns desses profissionais são também fazendeiros ou
proprietários. Daí o alto nível de renda declarado não corresponder
necessariamente à profissão. Assim a denominação de médico ou de
advogado (a renda declarada, o nome e a filiação servem
como indicadores) pode significar apenas um título de
qualificação intelectual e social. Na classificação desse setor, inspiramo-
-nos nas categorias propostas por Adeline Daumard para o século
XIX francês por serem suficientemente sintéticas e flexíveis.

(23) Em termos de moeda francesa, 36 $ 000 correspondiam a 100 P, em 1871,


segundo relatório consular desse ano. Informa-se, ainda, no mesmo documento
(31 de março) que 2 200 $ 000 valiam 5 500 F. Assim, 200 $ 000 deviam
corresponder a 500 ou 550 francos naquela data.
64 C. de CARAVELLE

7. Empregados em fiscalização do trabalho e de serviços. Trata-


-se de uma rubrica que se justifica pelo car ater escravista da
sociedade brasileira, dispensando, pois, maiores explicações. É prevista
para incluir feitores, capatazes, bem como mestres-de-obras, apa-
relhadores, profissões estas ainda bem modestas no estágio de
desenvolvimento histórico do Brasil sob o Império. Lembramos que
as funções ligadas à fiscalização de impostos foram classificadas
na rubrica « empregados públicos ». A inclusão do mestre-de-obra
ou do aparelhador no presente grupo tem uma justificação no
fato de que os trabalhadores por eles dirigidos e orientados eram, em
parte, escravos.
8. Trabalho escravo. Outras fontes, que não as eleitorais, nos
fornecem os elementos estatísticos para as diferentes rubricas que
propomos para esse grupo. É fundamental, porém, que tais dados
sejam homogéneos, do mesmo ano, e devidamente criticados.
9. Diversos. De maneira geral, essa rubrica é criada para
recensear o resto da população ativa e inativa, os pobres que constituíam
a maioria, as mulheres, os dependentes, os domésticos, grupos bem
diferentes entre si e que não podem ficar ausentes no estudo das
estruturas sociais. Daí a importância de serem levantadas outras
fontes que, paralelamente às eleitorais (fiscais e demográficas), nos
permitam detalhar e aprofundar o nosso conhecimento da
sociedade brasileira.

Conclusão

Como afirmamos de início, nosso objetivo no presente artigo foi


bastante limitado, limitação, em parte, imposta pela fonte.
Preocupava-nos, sobretudo, fazer uma primeira apresentação das listas
eleitorais do Rio de Janeiro na medida em que nos podiam oferecer
elementos de base para uma classificação profissional e sócio-profis-
sional urbana. A elaboração que ora se processa dessa série
documental contribuirá para esclarecer vários pontos obscuros da
estrutura de profissões numa sociedade escravista, da geografia ocu-
pacional da cidade, do processo de urbanização, da distribuição de
rendimentos. Medindo de certa forma as classes possuidoras, temos,
pos exclusão, uma medida da pobreza.
Não pretendemos aventar o problema das estruturas sociais em
história social, noção essencialmente qualitativa com implicações
metodológicas bem diversas. Mas julgamos ter apontado algumas
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 65

lacunas de informação sobre o passado da nossa sociedade bem


como a necessidade de serem orientadas as nossas pesquisas
históricas no sentido de uma maior precisão numérica. A quantificação
aliada à história social não deve ser encarada como uma panaceia
e, sim, como um meio, sem nos deixarmos, entretanto, « levar pelas
ilusões das cifras e pela vertigem do número », conforme nos
adverte Albert Soboul (24).
A classificação que propomos não é rígida, nem exclusiva. A sua
codificação permite estudos parcelados, bastando apenas reagrupar
as categorias sobre as quais venham a ser obtidos os dados
necessários e de acordo com os objetivos que se tenham em vista. Afinal
de contas, o computador só nos dará respostas aos problemas que
formularmos, segundo a sociedade em que nos situamos e a
concepção que temos da história.

(24) Albert Soboul, op. cit. p. 16.


PROPOSTA
DE CODIFICAÇÃO SOCIOPROFISSIONAL

0. Agricultura e atiuidades extratiuas.


00. Lavradores (lavoura de subsistência).
01. Lavrador-arrendatário (tipo : rendeiro, meeiro).
02. Trabalhadores rurais (tipo : camarada, campeiro, lenhador).
03. Pescador.
04. Serviço doméstico rural.

1. Trabalhadores urbanos e artesãos.


10. Artífices (tipo : artista).
11. Artesãos de estatuto intermediário entre o artesanato e o sala-
riato (tipo : marceneiro, pedreiro, sirgueiro).
12. Operários não-discriminados.
13. Operários especializados (tipo : tipógrafo, torneiro).
14. Ofícios ambulantes.
15. Aprendizes e ajudantes de ofícios.

2. Empregados em transportes.
20. Transportes coletivos urbanos.
21. Transportes marítimos.
22. Transportes ferroviários.
23. Diversos (tropeiros, corroceiros, arreadores).
24. Sem especificação.

3. Empregados a serviço do Estado.


30. Empregados públicos sem especificação.
31. Empregados da Casa Imperial.
32. Empregados aposentados.
33. Funcionários públicos de alto nível (tipo : magistrado).
34. Defesa do Estado (oficiais).
35. Igreja.
36. Diversos.
AS LISTAS ELEITORAIS DO RIO 67

4. Empregados a serviço de empresas e de entidades públicas e privadas.


40. Empregados sem especificação.
41. Empregados no comércio (tipo : caixeiros, guarda-livros).
42. Empregados especializados (tipo : telegrafista, taquígrafo).
43. Serviços auxiliares não-burocráticos (tipo : andador, pagador).
44. Diversos.

5. Patrões (agricultura, indústria, comércio, finanças).


50. Fazendeiros.
51. Patrões de pesca.
52. Comerciantes e negociantes.
53. Patrões da indústria.
54. Finanças (tipo : proprietário, corretor, capitalista).
55. Atividades intermediárias (tipo : agente, despachante).
56. Diversos.

6. Profissões liberais.
60. Categorias superiores (tipo : tabelião, médico, advogado).
61. Categorias médias (tipo : professor, jornalista, solicitador).
62. Categorias inferiores (tipo : músico, ator).
63. Quadros superiores (tipo : engenheiro).
64. Quadros médicos (tipo : administrador).

7. Empregados em fiscalização de trabalho e de serviços.


70. Fiscalização de escravos (feitor, capataz).
71. Fiscalização de obras (mestre-de-obras, aparelhador).

8. Trabalho escravo.
80. Serviço doméstico.
81. Comércio.
82. Artes e ofícios.
83. Manufaturas.
84. Lavoura.

9. Diversos.
90. Serviço doméstico (urbano).
91. Estudantes.
92. Soldados e marinheiros.
93. Sem profissão.
94. Indigentes.

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