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Sexta-feira, 30 de janeiro de 2004 - Ano 5 - Nº 939 – Eu&

Com mercado e Estado forte


João Sicsú, para o Valor de 30 de janeiro de 2004.

No âmbito da teoria econômica, a discussão inicial sobre o


papel do Estado foi, em certa medida, abordada de forma
sistematizada e ampla por Adam Smith em sua clássica
obra "A Riqueza das Nações", de 1776. Nela, Smith tentou
mostrar que a economia tem uma lógica própria: os
agentes econômicos, buscando satisfazer seus interesses
individuais, espontaneamente, organizam a economia de
forma eficiente. Esta abordagem ficou conhecida pela
imagem metafórica da mão invisível. Esta seria
representada pelo conjunto de forças individuais operando
na mais pura concorrência para realizar as necessidades de
vendas (oferta) e de compras (demanda) - portanto,
satisfazendo os desejos individuais. O Estado seria uma
corpo estranho, com capacidade de interferir e atrapalhar a realização de impulsos e
necessidades individuais naturais. O Estado unicamente seria capaz de melhorar a vida de
uns em detrimento de outros.

Modernamente, a teoria econômica convencional desenvolveu todo o seu arcabouço com


base na abordagem da mão invisível. Concluiu que a interferência do Estado na economia
gera, além dos privilégios individuais já indicados por Smith, os mais graves problemas
macroeconômicos, como, por exemplo, a inflação e, até mesmo, crises cambiais. O Estado
é considerado sempre irresponsável e gastador - portanto, gerador de inflação. Ou, então,
aquela política estatal que tenta formar reservas internacionais para defender a moeda do
país amplia a liquidez da economia, gerando inflação. Se enxuga a liquidez vendendo títulos
públicos, amplia a relação dívida/PIB, estimulando a fuga de capitais, e pode fazer emergir
uma crise cambial. Portanto, o câmbio e os capitais devem estar livres. Se movimentos
bruscos de capitais ocorrem, provocando flutuações não desejáveis no câmbio, é porque
alguma política estatal indevida foi implementada. Ademais, a inflação deve estar sob o
controle de um organismo responsável: um banco central autônomo. E, também, a
capacidade de gastar do Estado deve ser restringida - através, por exemplo, da obrigação
de geração de um elevado superávit fiscal primário. A receita convencional consiste em
amarrar as mãos do Estado para que a mão invisível possa operar livremente.

Lord Keynes, em seu texto de 1926, "The End of Laissez-faire" e, em sua obra mais
conhecida, "A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", de 1936, concluiu,
diferentemente do que afirmam os adeptos da mão invisível, que a racionalidade individual
não produz necessariamente o melhor resultado para a sociedade. Quando os empresários
decidem não investir, por causa da incerteza de lucro futuro, causam desemprego. Quando
trabalhadores conquistam aumentos salariais incompatíveis com ganhos de produtividade,
provavelmente causam inflação. Além disso, Keynes foi um dos economistas que mais
defendeu a concorrência. Entretanto, defendeu a igualdade de oportunidades e nunca
deixou de levar em conta o custo da concorrência. Não se limitava a considerar o resultado
final da disputa, em que os mais eficientes e/ou maiores sobrevivem e aqueles em fase de
aquisição de eficiência e/ou menores desaparecem. Keynes avaliava que o Estado seria
capaz de arbitrar a concorrência e controlar as variáveis econômicas mais relevantes, como
o desemprego e a inflação.
Keynes, então, avaliava que não era necessário acabar com o capitalismo, substituindo-o
pelo socialismo, para sanar os seus problemas de desemprego, inflação e má distribuição
da riqueza e da renda. O economista inglês, no último capítulo da sua "Teoria Geral", fez
uma brilhante defesa dos princípios de uma economia de mercado capitalista - e já indicava
os problemas que uma economia estatal, sem mercado, sem a concorrência, sem a busca
do lucro, sem a propriedade privada do capital poderia conter. Segundo Keynes, ter
ambições individuais exacerbadas é da natureza da vida em sociedade. Tais ambições
podem ser canalizadas para a vontade de ganhar dinheiro e adquirir capital no mundo da
concorrência - o que é inofensivo, e pode ser útil.

A impossibilidade de realização de ambições individuais no âmbito da economia indicaria


um único caminho: os indivíduos buscariam o poder, a autoridade-tirana e o
engrandecimento pessoal, tudo em detrimento dos demais. Exemplos de acontecimentos
trágicos dessa natureza são abundantes na história da antiga União Soviética e em Cuba,
atualmente. Keynes sugeria a necessidade de transformar a natureza humana, não de
aceitá-la e administrá-la em um mundo sem mercado. A utopia de Keynes era construir um
capitalismo em que os indivíduos se desinteressariam por ambições meramente
individualistas. Bastava que fossem ensinados ou acostumados com valores sociais
(honestidade, solidariedade etc.). Mas sempre restaria aos ambiciosos individualistas, em
uma economia capitalista de mercado, a possibilidade de tiranizar a própria vida, na busca
de um maior saldo bancário, em vez de tiranizar a vida dos demais, tal como tem
acontecido nas economias sem mercado e concorrência.

A alternativa keynesiana não é a substituição do capitalismo, mas a constituição de um


Estado forte, capaz de dirigir a economia. Portanto, na visão keynesiana, a concorrência é
necessária (porque estimula a inovação, o que torna o capitalismo dinâmico e
revolucionário, e estabelece remunerações diferenciadas aos desiguais). Mas devem existir
regras para que não se tenha como resultado da concorrência o óbvio: perdem os grandes
porque numa briga sempre se apanha também e desaparecem os menores porque são
menores. O resultado esperado da concorrência deve ser a redução de custos, de preços e
a melhoria da qualidade dos serviços e produtos - e não a eliminação dos pequenos
(causando desemprego) e o aumento de preços e redução da qualidade dos produtos e
serviços graças à conquista de uma situação de oligopólio ou, mesmo, monopólio.

Na concepção keynesiana, o Estado deve, ademais, implementar sistemas tributários


progressivos, para reduzir as desigualdades de renda que são exageradas (as
desigualdades menores devem permanecer; afinal, os indivíduos têm capacidades
diferenciadas). O sistema tributário deve taxar heranças, com o intuito de eliminar as
desigualdades de oportunidades do jogo da concorrência. Por último, o Estado deve estar
livre para implementar políticas macroeconômicas capazes de reduzir a sensibilidade do
país a crises cambiais, e deve responsavelmente controlar a inflação e promover o pleno
emprego.

Uma economia de mercado com um Estado fraco não é capaz de manter a inflação sob
controle, nem de reduzir o desemprego e as desigualdades de renda e riqueza. Esta é uma
lição da história, visível. Só a fé cega faz com que muitos acreditem no contrário. E chegam
a acreditar até mesmo naquilo que não podem ver: a mão invisível.

João Sicsú é professor-doutor do Instituto de Economia da UFRJ e co-organizador


e autor do livro "Agenda Brasil: Políticas Econômicas para o Crescimento com
Estabilidade de Preços" (Manole/K.Adenauer, 2003)

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