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Capa:
R e n e Almadjian
Revisor:
E q u i p e L. Oren
ADELAIDE CARRARO
EU SOU O REI
ADELAIDE CARRARO
S. P. 27.8.84
ÍNDICE
—7—
X V I Na Delegacia 95
X V I I Os Empresários 99
X V I I I Aprenda A l g u m Ofício 103
X I X A Mãe Do Rei 109
XX A Entrevista 113
X X I A Imagem Do N o v o ídolo 121
X X I I O Interfone Toca 125
X X I I I 150 Telegramas P o r Dia 129
X X I V Hotel Jandaia 137
X X V Outros ídolos 139
X X V I O Rei E O Tremendão 147
X X V I I A Minha Casa É Assim 155
X X V I I I Uma Má Impressão 159
X X I X Quatro Episódios 167
X X X Mas A Vida Continiua 173
X X X I O Cantor Quis Mostrar Que É Forte 181
—8—
Num Domingo Ensolarado
— 9 —
meei e relanceei o olhar para todos os lados,
num pavor que me acompanhava sempre, desde
que, num domingo ensolarado como aquele e no
mesmo horário, me vi frente a frente com um
homem armado de revólver que na hora me pa-
receu do tamanho de uma metralhadora. Puxa,
nem gosto de me lembrar. B r r r r . . . até sinto ca-
lafrios. Engraçado, toda vez em que me lembro
daquele domingo do mês de fevereiro aperto
logo o pescoço para afugentar a sensação da
quentura da mãozuda do mulato. Bem, acho que
vou contar como tudo aconteceu, já que daqui
até o ponto do ônibus é bem distante.
Gritei do espelho:
— Pare, Juli.
A g o r a ele gania.
Inquieta, saí à janela e, indiferente, pergun-
tei aos dois homens mal vestidos o que queriam.
Um sacudiu os ombros e o outro correu para
dentro da garagem.
Meu cérebro rodopiou, numa claridade ful-
minante.
— 10 —
— Ladrões!
Virei-me de supetão e fixei perplexa o re-
vólver na mão esquerda de um j o v e m alto e for-
te, que arreganhava os dentes bem perto de mim.
— Fique bem quieta.
— O que você quer?
— Jóias e d i n h e i r o . . . e vá me dando isso aí.
Isso aí era a corrente com crucifixo de ouro
que envolvia o meu torto pescoço. A corrente
era bem grossa e por isso ele puxava que puxa-
va, enquanto eu me encostei à janela e olhei ner-
vosa para o portão da casa de minha amiga Ma-
ria da Penha, do outro lado da rua, e vi as duas
meninas — Cristina, de 8 anos, que pretendia
adotar, e Daniele, filha de minha amiga.
Cristina compreendeu meus gestos de pavor
e gritou que havia assaltantes em minha casa.
Wallace, filho de 14 anos, também da Penha,
gritou a plenos pulmões:
— P o l í c i a . . . Polícia!
Então ouvi, como se fosse de outrem, a mi-
nha própria voz muito calma:
— Olhe, chamaram a polícia. Ê melhor v o -
cê correr.
Num último arrancão e com a minha ajuda,
ele conseguiu a corrente e saiu correndo debai-
xo de meus gritos:
— 11 —
— Corra que é a polícia, corra que é a po-
lícia!
Ele desceu as escadas correndo e tropeçan-
do no outro que subia perguntando angustiado:
— O que foi? O que foi?
Trombaram-se na escada e a desceram aos
solavancos, atravessando o jardim de revólveres
apontados para as pessoas que achavam na rua,
enquanto eu gritava sem parar:
— Corra que é a polícia! Corra que é a po-
lícia!
Enquanto aquele que levava a minha cor-
rente pulou, de um salto só, um muro altíssimo,
o outro corria pela calçada, pulando o portão de
um terreno baldio vizinho à minha casa; o ter-
ceiro, ninguém soube explicar para onde é que
foi; e eu na janela continuando a gritar. Um
carro pára, um homem salta, levanta os olhos
para mim e pergunta bem alto:
— Estão filmando alguma novela?
Todo o mundo riu. Eu também, passando a
mão pelo pescoço, para ver se conseguia fazer
desaparecer a sensação repugnante daquele ca-
lor forte da mão do ladrão.
Minha mão saiu cheia de sangue, sangue do
corte da corrente.
Mordi os lábios, refletindo subitamente que
na realidade meu pescoço estava destinado a so-
_ 12 —
frer sempre: primeiro, com a toracoplastia, ele
entortou um pouco. Segundo, com o desastre de
carro, quando trabalhava para o Sílvio Santos.
Ele entortou ainda mais, esperando que o tão
importante e pobre senhor pague para endirei-
tá-lo. Agora, entra um pobre ladrão e acaba de
machucá-lo. Enfim, meu pescoço só andou nas
mãos de pilantras.
— 13 —
Fazia mais de um ano que o papelucho che-
gara às minhas mãos, mas parecia que o estava
lendo agora pela primeira vez.
Mandado de Intimação.
— 14 —
de testemunhas do co-réu Roberto Pinheiro
Golkor.
S. P. Março 03/83.
Oficial: Pimentel.
Carga: 055.
— 15 —
O Rei Saíra do Fórum de Cabeça Erguida
17 —
— Que testemunhas?
— Ora: Eu e as outras q u e . . .
— Já não lhe disse que não existe mais
processo?
— A h ! Poxa, tô nervosa. Mas, o mordomo,
como é que ele saiu daqui do Fórum?
Ele riu sarcástico:
— Saiu de cabeça baixa e trançando as per-
nas. Não será mais mordomo do castelo.
Arregalei os olhos para aquele homem bo-
nitão, bem tratado, dentro de roupas finas e fi-
xando seus bonitos lábios sempre marcados de
um sorriso i r ô n i c o . . . e disse:
— Desculpe-me, mas por que é que o se-
nhor está falando tudo isso? Parece que está
brincando comigo. Sabe, pelo menos, quem sou
eu?
— Ora, Adelaide Carraro, estou lhe falan-
do tudo isto, porque uma torrente de revolta me
sacode aqui dentro, sentindo a injustiça tão de-
sumana que assalta os humildes, aqui neste País.
Por favor, me dê licença, pois tenho muito que
fazer. Aquele monte de processos me espera.
Estendi-lhe a mão e a apertei com carinho,
sem poder falar nada, já que aquele nó emocio-
nal me tapava a garganta, pois me lembrava de
que também eu, por ser pobre e humilde, havia
— 18 —
perdido na justiça o processo que abrira contra
a Produção Sílvio Santos, onde trabalhara qua-
tro anos. No último ano sofri um acidente de
carro, quando, obedecendo a ordens do Luciano
Callegari, fui providenciar fitas do Sílvio e a í . . .
o desastre. Entre muitos sofrimentos, a claví-
cula quebrada. Sílvio não quis pagar a opera-
ção, alegando que esse era problema do INPC.
Apelei para a justiça e perdi. Continuo quebra-
da. Quando ganhar na loto, opero. Sorri. Ri. Ri
alto mesmo, pois todas as vezes em que penso no
meu pequeno osso do ombro furando as roupas^
um manto de resignação desce sobre a minha al-
ma e lá em algum recanto do meu cérebro v e j o
a figura bonita e perfeita do Sílvio Santos. Aque-
le belo rosto bem plastificado, sempre enfeitado
por aquele lindo sorriso.
— 19 —
— Õ minha boa amiga, você deve ter esque-
cido o velho ditado: «Bonito por fora, bolorento
por dentro».
— 20 —
— Que há, mordomo, não fique assim. Va>
mos andando um pouco. Poxa, veja como a tarde
está linda, maravilhosa. V o c ê não acha?
— 21 —
O mordomo virou o rosto lentamente e mur-
murou:
— Bonita casa. Ê sua?
— V o c ê já viu algum escritor brasileiro ter
u m a casa igual àquela?
Se eu fosse c a n t o r a . . .
O rosto dele se revestiu de sombras, mas
p o r fim sorriu:
— Fabricam-se cantores, mas escritores é
b e m difícil, não é, Adelaide?
— Ê, pensando bem, você tem razão. Mas,
v a m o s lá: você prefere dar uma voltinha pelo
j a r d i m ou quer ir para casa?
Meio distraído, o mordomo arrancou uma
folha da árvore próxima, olhou absorto para o
grande jardim e em seguida, olhando-me sério,
disse:
— N ã o estou vestido para andar em tão
importante companhia.
Caí na risada e, mostrando os esgarçados da
minha blusa surrada, sem deixar de rir:
— Neste caso, pode vir — repliquei, puxan
d o - o pela mão. — Quanto à importância da es
critora, é só nas capas dos livros.
Em dois tempos estávamos andando lado a
lado c o m um pesado silêncio caído entre nós. A
tarde continuava com o ar morno e parado. Ca-
— 22 —
minhamos até o fim do jardim, voltamos e en-
tramos à esquerda. Pensando no Rei, o mordo-
mo respondeu, num jeito triste e desviando o
olhar e fitando o bosque de eucaliptos:
— Não, n ã o ! . . . Bonito bosque e que cheiro
gostoso que sai destas árvores. Pode-se entrar
lá?
— Claro. Olhe, abaixe-se bem para atraves-
sar essa cerca de arame farpado. Cuidado. A g o -
ra, estique-a para mim.
Dentro do bosque havia um ar fresco e deli-
cioso. Pisávamos os gravetos que estavam sob
nossos pés e fomos nos sentar em uma grande
pedra. Eu falei, séria:
— Sabe, mordomo, que você me deixou mor-
ta de vergonha?
Ele teve um sobressalto. Seu olhar, até en-
tão vago, voltou à realidade e ele mirou-me per-
plexo:
— Mas, por que você diz isso?
— Assinar o acordo. Por que o escritor tem
que sair sempre derrotado? Será que só escritor
tem medo da cadeia? V o c ê não deveria assinar
nada. Deveria lutar para mostrar à justiça que
você não havia praticado crime nenhum.
— Que é que eu poderia fazer?
O mordomo levantou-se, apanhou um torrão
de barro e atirou com força contra a pedra em
que estava sentada.
— 23 —
— V o c ê fala como se não existisse possibi-
lidade de enfrentar um Rei, um Sílvio Santos e
todos os que têm dinheiro.
— Quando um rico processa um pobre, ele
já sabe que está derrotado, que perdeu, que o
fundo de um cárcere o espera. Quando o Rei, o
homem de quem fui empregado durante doze
anos e que considerava meu amigo, se voltou
contra mim — porque contei em poucas páginas
de um livro nossa vivência — fiquei bobo, pas-
mado, perplexo. Enfim, nunca poderia imaginar
que, depois de ajudá-lo tanto, ele abrisse as gra-
des de uma cela para me atirar lá dentro. Nem
que eu tivesse inventado alguma coisa que o ti-
vesse magoado, que o tivesse prejudicado pode-
ria ele, não em nome da nossa amizade, mas em
nome de Deus, poderia me chamar para dialogar.
Dialogar, ou sei eu lá o quê?!
— 24 —
— Pense no esforço que fiz para que esse
livro saísse. V o c ê sabe como é difícil que alguém,
algum editor se interesse por vidas de persona-
lidades brasileiras. Brasileiro pouco gosta de ler
e imagine então ler biografias, de reis, apresen-
tadores de TV, de presidentes do Brasil, de ído-
los de esportes. Brasileiro gosta é de ouvir ou
contar e ver o jogador de futebol. Meu livro foi
um esforço de horror. Lutei tanto, sofri tanto.
Depois que o Rei sentou no trono, me abando-
nou. Parecia que o mundo tinha desmoronado
sobre a minha cabeça.
— 25 —
dem como uma indenização devida aos seus anos
de trabalho junto dele.
— Que importância tem?
A g o r a os soluços eram quase histéricos.
Essa é hilariante! Então você vem dizer
justamente a mim q u e . . . q u e . . .
Ele não conseguia mais falar. Fiquei em si-
lêncio por muito tempo até que afinal cessaram
os soluços e ele esfregou os olhos com as costas
das mãos.
— Mais calmo? Pois é, o que adianta deses-
perar assim?
Vamos para casa?
— Não, não. Está tudo bem aqui. Gosto de
lugares sombrios. Lamento o meu destempero.
Mas, realmente, não me conformo que o público
nunca irá saber que não usei o Rei para me pro
mover. Que não caluniei o Rei. Juro.
— Talvez, mordomo, talvez algum dia o po
vo brasileiro vá saber o que você contou no li-
vro. Aliás, o que li nele o povo já está cansado
de saber. V o c ê mesmo aconselhou o editor para
lançá-lo, pois não existia droga nenhuma con-
tra o Rei.
— Eu sei de tudo. Sei tintim por tintim que
o Rei, confiando na força de sua fama e de seu
dinheiro, o massacrou fisicamente. Mas, lembre-
se de que estamos de passagem por esta terra.
_ 26 - -
Daqui a alguns anos não existirá nem mordomo
nem Rei, nem escritora. Então o negócio é er-
guer a cabeça e procurar trabalhar em outra
coisa qualquer. Esqueça o Rei, deixe-o aprovei-
tar os milhões em suas coisas materiais. Quem
sabe algum dia ele resolverá ajoelhar-se diante
de Deus e dizer:
«Meu Pai, perdoe-me por eu não ter esten-
dido a mão ao meu ex-mordomo, quando sei que
ele está até passando fome».
Aliás, fome você não vai passar, porque ago-
ra vamos para casa comer alguma coisa, pois
também eu estou com fome. Ou melhor, vamos
para o clube aqui do Jardim São Bento. Lá tere-
mos mais conforto.
— Mas, as minhas roupas?
— E as minhas?
Rimo-nos. Puxei-o pela mão e algum tempo
depois adentramos o clube.
— Ora viva! Quem vem lá? A Adelaide
Carraro. E quem é o cara que está lá, parado
feito um b o b ã o ?
— Bobão, é? Pois fique sabendo que o cara
é, ou melhor, foi o mordomo do Rei.
— Rei? O rei da Espanha, da Suíça, ou sei
lá que diabo?
Quem falava assim era um amigo, o Carlos
Miranda Torres, milionário e grande amigo do
Júlio Iglesias.
— 27 —
— Rei brasileiro, Carlos, e não fique fazen-
do muitas perguntas, pois eu não lhe falarei o
nome. Se quiser saber, tem que adivinhar.
Outro rapaz que compunha a turminha co-
chichou no ouvido de Carlos e ele caiu na garga-
lhada e disse sarcástico:
— Poxa, o tal do Rei liquidou com o cara.
Liquidou o seu mordomo.
A g o r a veja, por coincidência estou com o
recorte de jornal aqui.
Leia, leia aí, Adelaide. O ex-mordomo de Jú-
lio Iglesias fez várias declarações de sua vida
com o cantor por dinheiro e o Júlio achou até
engraçado. Não se vingou de forma tão cruel
contra um coitado que tinha o direito de subir
na vida, de ter um lugar ao sol, como qualquer
ser humano.
Ouvi dizer que ele tentou ser também can-
tor.
— É, tentou, mas não deu certo. Ele traba-
lhou ou, melhor, tentou vários empregos. Foi
garçom, perfurador IBM, laboratorista, vende-
dor de livros e agora quer ser escritor e produ-
tor de cinema. Mas, fique quietinho um pouco,
Carlos, enquanto leio isto.
«Santiago, CAFP-NP.
— 28 —
perior e que perdeu a mulher para ganhar
a liberdade, afirmou seu ex-mordomo An-
tônio Del Valle, na televisão de Santiago do
Chile. Del Valle admitiu ter feito revela-
ções por dinheiro, mas assegurou que so-
mente 15 por cento do que foi publicado é
verdade».
Em suas declarações divulgadas em Ma-
dri, o ex-mordomo afirmava que Júlio Igle-
sias fazia amor antes de cada apresentação,
para clarear a voz, que possuía uma gela-'
deira gigante junto à sua cama e que com-
prava roupas de 800 dólares.
«Nunca fiz essas declarações — disse
Del Valle — mas descartou a possibilidade
de entrar na justiça contra a revista. Na
televisão chilena disse que o cantor é uma
pessoa solitária, que às vezes se enfada e fe-
cha-se num mundo onde ninguém pode en-
trar. Chegou a tal ponto que se julga um
pouco superior. E talvez o seja — acres-
centou Del Valle.
No plano sentimental, Iglesias continua
enamorado de sua ex-esposa, segundo o ex-
mordomo, para a qual ele vendeu a sua li-
berdade. Pelo amor dessa mulher ele ven-
deu a sua liberdade e vendeu a sua mulher
pela liberdade».
— 29 —
mente, ridículo. Chame o mordomo para junto
da gente, Adelaide. Somos ricos, de alta posição
social, mas ele não precisará engraxar nossos
sapatos para nos fazer companhia. Vamos lá pra
dentro tomar alguma coisa.
— Hei, mordomo! Venha cá. A turma quer
conhecê-lo.
Ele se aproximou com o mesmo sorriso tris-
te enfeitando a magreza de seu rosto encovado.
— Então, temos a honra de nos sentar com
o ex-mordomo do velho cantor.
Os dentes do mordomo pareciam ranger
ante a alusão ao nome do Rei e fez um enorme
esforço para concentrar alguma coisa para falar.
Mas senti que nada, que nenhuma expressão po-
deria acalmar a raiva que parecia possuí-lo,
quando alguém mencionava o nome do ex-patrão.
A tristeza aguda que lhe pungia os olhos ne-
gros se aprofundou ainda mais, enquanto ele en-
carava a todos e a voz lhe saía estrangulada.
— Aceitar o emprego de mordomo de cria-
do de cantor foi uma tremenda loucura. Perdi
onze anos de minha vida e depois que ele me
disse «Saia da minha casa» todos os que se di-
ziam meus amigos, quando me viram, pisaram
e me ferraram muito.
Carlos indicou uma cadeira ao mordomo,
que se sentou mecanicamente, e então disse, meio
frio:
— 30 —
— Escute, Mário, um homem sempre baixa
na consideração do outro quando perde a perso-
nalidade.
As mãos do mordomo se apertaram firme-
mente e os lábios se contraíram. Ele ergueu fir-
memente a cabeça.
— Que charadas são estas? Nunca perdi
minha personalidade. Tinha 15 anos quando c o -
nheci o cantor e, completamente inexperiente,
dediquei-lhe toda a amizade que um jovem co-
ração e um espírito sadiu nutriam. Nunca ima-
ginei que aquele forte laço de nossa amizade pu-
desse romper-se, um dia. Meu pensamento na-
quele tempo era sempre o mesmo: se o cantor
fracassasse, eu o serviria do mesmo modo. Ele
está nas alturas, e eu não o invejo. Mas, naque-
la idade de dezoito anos pensei junto dele tam-
bém eu pudesse esperar do futuro algo de gran-
de e de importante. Não digo uma posição de
Rei, mas ao menos que ele me deixasse seguir a
carreira de escritor.
— Mas, o que há de tão diabólico neste li-
vro que poderia ter deixado os brasileiros hor-
rorizados? Quem pode nos contar?
Seguiu-se um silêncio. Depois alguém lem-
brou que deveria ser servido um lanche.
O mordomo comia avidamente, meio confu-
so, e quando Carlos perguntou se queria mais um
sanduíche, parece que um v a g o mal-estar se
apossou dele, pois vi que uma forte vermelhidão
— 31 —
se espalhou pela sua face e pescoço, quando es-
tendeu as mãos trêmulas para apanhar o pão
cheio de presunto.
Enquanto todos os olhares continuavam fi-
xos nele, eu disse:
— Mordomo, posso contar sua vida junto
ao R e i ?
— Se você acha que existe algum valor nes
te assunto.
— Bem, mordomo, eu acho que todos os mi-
nutos de nossa vida, sendo bons ou sofridos, têm
grande valor.
— Um mendigo.
— Quase.
— N e m tanto.
— 32 —
cê, Adelaide, sabe por que o jovem mordomo
está nesta situação.
* * *
_ 33 —
cional e para tentar de acalmar o espírito de âni-
mo pelas incessantes preocupações que o deixa-
vam abalado, comecei rapidamente a relatar
quanto ele me havia contado e tudo detalhada-
mente como segue no próximo capítulo.
_ 34 _
Com 15 Anos Consegui ser Discotecário
— 35 —
ra, chegamos a desenvolver um bom estilo de
rock, o que nos levou à televisão e depois a shows
itinerantes. Nossa estréia em televisão foi num
programa de grande sucesso no Rio de Janeiro,
o «Clube do Guri», do Samuel Rosemberg, que
se propunha descobrir novos talentos ainda em
botão.
— 36 —
Cartas Para o Programa
— 37 —
A equipe da Rádio Carioca, além de mim e
de Marta, era composta de disc-jóqueis, pro-
gramadores, repórteres, locutores, operadores e
pessoal da parte administrativa. Entre esses
funcionários estava Gilberto Lima, que tinha
um programa chamado «Café com Música» e
q u e atuou em várias emissoras do País e hoje
se encontra na Rádio Globo e na TV Globo. Ou-
t r o que se destacou foi Francisco Carioca, que
bateu o recorde mundial de permanência no mi-
c r o f o n e : 72 horas ininterruptas.
Como discotecário, recebia vários suple
mentos musicais das gravadoras para que eu
pudesse coordená-los e dar seqüência aos pro
gramas. Foi quando recebi um LP de um can
t o r desconhecido que me chamou a atenção, por
sua maneira de cantar e também pela letra de
sua música, cujo título era «Loucura» e com mú-
sica de Carlos Imperial. O nome desse cantor é
Bem e «Rei».
Queria que Marta tocasse esse LP no seu
programa de meia hora — «Escolha V o c ê o Me-
l h o r » . Acontece, porém, que Marta não poderia
tocá-lo, pois não havia solicitações por carta do
público e assim sairia das normas do programa.
F o i quando entrou a minha primeira malícia no
r á d i o : «fajutei» algumas cartas para atender à
minha vontade, porque realmente ela me havia
impressionado muito e eu queria, de qualquer
forma, ouvir aquele disco tocado no programa.
N ã o adiantava ouvi-lo apenas na discoteca, pois
_ 38 -
eu queria fazer com que todas as pessoas gos-
tassem daquelas músicas. Depois entreguei essas
cartas à Marta e ela, assim, pôde tocar o LP,
pois agora não havia nada que a impedisse.
* * *
— 39 —
nhã numa posição financeira não de grande im-
portância mas de meio porte, fazia qualquer sa-
crifício para alcançar o meu ideal e ter mais
chance na divulgação do meu ídolo a que tanto
para mim era preferido.
— 40 —
Na Rádio Carioca
— 41 —
ço — já sabia que era o « R e i » que estava ali —
e parti correndo para a sala de controle. Sabia
que o pessoal queria fazer rainha apresentação
ao « R e i » só por gozação. Senti que queriam mos-
trar ao «Rei» que ele tinha, pelo menos, alguém
que gostava dele, pelo menos um, e que esse ura
era eu. É claro que ele talvez tivesse alguém que
o apreciasse, fora do rádio; mas ali, naquela
emissora, era eu o único que realmente gostava
do seu trabalho.
— 42 —
Daí, o levei até a discoteca para que ele me
mostrasse seus trabalhos. O « R e i » me apresen-
tou seu novo disco e me pediu uma «forcinha».
— 43 —
receber-me. Era este o sistema de obter o dese-
jado, sem reação drástica ou ofensiva, ao c o n -
trário: c o m educação e respeito era o modo de
superar e ultrapassar qualquer barreira.
— 44 —
A Primeira Confissão
— 45 —
Terminada a apresentação, o Rei saiu e eu
fui acompanhá-lo até a porta do elevador. Aí ele
me fez a primeira confissão:
— Puxa, Mário, essa moça é muito bonita...
— É, sim — disse eu.
— 46 —
— É . . . ele é simpático — observou eia.
* * *
— 47 —
quei lá atrás, remoendo-me de raiva. Fui jogado
para o segundo plano, o que me deixou magoado.
Nesse mesmo dia, eles começaram a namo-
rar e eu, de novo, fui jogado «pro escanteio».
— 48 —
Desempregado
— 49 —
ções. Daí, é evidente, fui dispensado da Rádio
Carioca. Aquilo me deixou pasmado, traumati-
zado.
Desempregado (novamente na estaca z e r o ) ,
quem me salvou mais uma vez foi Marta. Insis-
tiu com seu pai, disse que eu não tinha para onde
ir e, assim, embora despedido da rádio, continuei
morando na sua casa.
Marta sempre teve muito amor por mim.
Ela me considerava o irmão mais novo que não
teve.
Na ocasião em que ocorreram esses fatos,
Marta estava namorando o Rei. O romance deles
estava muito forte e ela contou-lhe que eu havia
saído da rádio e estava desempregado. Então o
Rei disse:
— Diga ao Mário que casa, comida e roupa
lavada ele tem. Eu só não lhe posso pagar ne-
nhum salário, mas ele fica em casa comigo. A s -
sim ele me fará companhia.
Nessa ocasião, o Rei já estava se mudando,
c o m a família, da casa na Rua Pelotas para um
apartamento na Avenida Gomes Freire. Ele mes-
mo pagaria o aluguel do apartamento, pois o seu
disco «Maria» já estava vendendo mais ou me-
nos bem.
Mesmo sabendo que não receberia pagamen-
to, concordei. Eu ia como uma pessoa que acre-
ditava no trabalho do Rei. Tinha a convicção de
— 50 —
que «poderíamos progredir juntos». Então ele re-
partiria comigo alguma coisa.
Hoje, quando estou sozinho em meu quar-
to, relembrando os bons e maus momentos que
tive, muitas vezes começo a pensar nas razões
que teriam levado o Rei a me fazer o convite de
morar em sua casa.
Na ocasião, julguei que ele tinha feito o con-
vite apenas por causa de eu ser seu fã «confes-
s o » . Hoje, porém, acredito que havia um só mo-
tivo: o fato de eu estar ligado ao meio radiofô-
nico.
Afinal de contas, eu conhecia uma série de
clubes de fãs, meninas, discotecários e isso iria
facilitar o seu trabalho. Então, talvez por isso
ele me tenha levado, ou então pela amizade que
já estava nascendo entre nós, ou, até mesmo, por
causa de Marta.
Fazia uns três dias que eu havia mudado.
L o g o que cheguei ao apartamento conheci sua
mãe, que também morava com ele, seu pai, «seu»
Rolando, Gabi, seu irmão, e Hélio, que na ver-
dade se chama Carmelo e se dizia primo do Rei,
mas que não era nada dele; apenas o Rei o con-
siderava como tal, por ser seu grande amigo de
infância. Além dessas pessoas, sua família era
composta de sua irmã Nair, de seu irmão Lúcio
e também tenente da Aeronáutica, e de sua tia
Zélia, que lhe emprestava muito dinheiro.
* * *
— 51 —
Saí da casa de Marta e fui encontrar-me
com o Rei na Rádio Carioca. Depois tomamos
um ônibus e no caminho viemos conversando.
Ele me contou que saiu do bairro de Lins de
Vasconcelos (um subúrbio do Rio de Janeiro),
porque seu disco estava vendendo razoavelmen-
te e que achava que nós dois poderíamos fazer
um b o m trabalho juntos, etc. etc. Fizemos mil
planos, mil projetos. Então fui para a sua casa.
Chegando lá, sua mãe me tratou c o m o filho e
percebi logo que seríamos grandes amigos.
A carinhosa mãe do Rei, hoje imortalizada
em música do mesmo, feita em sua homenagem,
me recebeu assim:
— Se você gosta do meu filho, é amigo dele,
então é meu filho t a m b é m . . . seja benvindo.
A primeira coisa que notei ao entrar no pe-
queno apartamento foram duas faixas de cetim
bordadas com lamê, penduradas na sala. Uma
das faixas dizia «ídolo da Juventude» e a outra
«Revelação dos Brotos». Fiquei muito entusias-
mado ao ver aquelas faixas e pensei: «Poxa, se
o cara já tem duas faixas, é sinal de que já tem
fãs». Depois fomos almoçar. A primeira refei-
ção, lembro-me perfeitamente, foi um verdadei-
ro «banquete» de comida caseira e apetitosa, fei-
ta por sua mãe: polenta frita, quiabo, arroz, fei-
jão preto e um molho com carne moída.
L o g o depois do almoço, chegou o irmão mais
velho do Rei e fui apresentado a ele. Então fica-
— 52 —
mos os cinco conversando. O Gabi não acredita-
va muito na carreira do seu irmão e vivia repe-
tindo que «cantar mesmo é Nelson Gonçalves...»
Ele queria que o Rei arranjasse um emprego e ti-
vesse carteira assinada: a segurança do salário
fixo todo fim de mês.
Então fui dormir no sofá da sala.
— 53 —
Peça Bis Pelo Telofone
— 55 —
também havia lançado o seu primeiro disco. Uma
das coisas que ficaram bem nítidas em minha
memória, naquele dia, foi quando o Rei me apre-
sentou ao José Messias:
— Messias, este aqui é o Mário. Qualquer
coisa de que você precise, é só falar c o m ele.
— 56 —
gramas mais «quentes» da ocasião era o «Peça
Bis Pelo Telefone», da Rádio Mairinque Veiga.
Então eu ia para casa nesse horário, ou mesmo
na rua ligávamos para o programa quantas ve-
zes fossem possíveis, e pedíamos «Maria»,
«Abandonado» ou « L u c y » , caso uma delas tives-
se sido tocada na primeira parte do programa.
Era uma loucura: ligar rápido, disfarçar a v o z ,
pedir a música, desligar, ligar de novo com ou-
tra v o z . . . Algumas vezes eu ficava tão cansado
que precisava sentar na calçada, banhado de
suor. Mas com o cansaço me voltava à lembran-
ça que meu amigo, o Rei, precisava de tudo aqui-
l o ; e então continuava o trabalho e sentia-me
forte e feliz.
— 57 —
tava as minhas forças físicas de uma resistên-
cia fora do comum, deixando de lado o cansaço
superando-o pelo orgulho e pela fé de lançar o
«Rei» aos excessos.
— 58 —
Os Brotos
_ 59 —
Rasmo teve um papel muito importante na vida
do Rei e a música Amizade reflete exatamente o
que existe entre os dois.
* * *
— 60 —
— Olhem, gente, o Rei está precisando de
uma força. Vocês liguem para a Mairinque Vei-
ga, para o programa do Jair de Taumaturgo e
peçam as músicas do Rei.
Esse trabalho passou a ser feito em grande
escala não só para a Mairinque, mas também
para a Globo, Guanabara, Tupi, etc. E isso, acre-
dito, começou a puxar uma avalanche de solici-
tações que, aí, já eram espontâneas — o ídolo
estava começando a s u r g i r . . . O Rei, é claro,
contribuía muito para isso, cativando as meni-
nas, distribuindo beijinhos e sempre acessível e
sorridente. Enquanto os outros cantores mais fa-
mosos acabavam o programa e iam imediatamen-
te embora, ele ainda ficava lá pela rádio, baten-
do papo e às vezes até almoçava junto com o pes-
soal técnico, criando assim aquele clima de ami-
zade e simpatia.
— 61 —
va bem e que eu esperasse um pouquinho. Entrei
no estúdio e esperei quase até o m e i o - d i a . . . e
nada. A rádio fervilhava de gente famosa, mil
artistas e convidados e eu ali, todo encolhido
num canto, esperando. A t é que num dos inter-
valos do programa dirigi-me ao Luís de Carva-
lho:
— Olhe, seu Luís, eu sou o Mário, secretá-
rio do Rei. Falei com o rapaz que cuida da sele-
ção musical e ele disse que tocaria o disco do
Rei...
O que ele respondeu foi mais ou menos as-
sim:
— Que negócio é esse ? Um cantorzinho des-
conhecido e já botando banca com o secretário?
Olhe, rapaz, no meu programa só toco gente c o -
nhecida, só toco sucesso, não tenho tempo para
perder com art-stas desconhecido.
Fui embora. Isso ficou gravado fundo na
minha mente, e só me deu mais gana ainda de
fazer do Rei um grande ídolo. Anos mais tarde
o Luís de Carvalho teve seu troco, mas isto é as-
sunto para depois.
Então, por coincidência, o José Messias lan-
çou em seu programa um concurso para esco-
lher os favoritos da nova geração — e a escolha
ser. a feita pelo maior número de votos recebi-
dos. N ã o concorriam os monstros sagrados da
época: Sérgio Murilo, Caubi Peixoto, Nelson
Gonçalves.
— 62 —
L o g o no primeiro dia fui à rádio espionar
para saber a situação do meu pupilo — o Rei es-
tava em 7.o ou 8.0 lugar. Saí dali com mil e um
planos na cabeça e o primeiro deles era montar
uma «fábrica de votos». A providência mais ur-
gente foi reunir as meninas, a quem falei:
— 63 —
Rei para «rei» e nós fazíamos a mesma coisa
eom ela para rainha. A gente sempre tentava
mudar a letra a cada voto, mas, no fim, já nem
ligávamos para isso. O importante era que os
votos estavam lá na urna.
— 64
mas aquele da Aninha, da Rua da União, no Bair-
ro de Santo Cristo, no Rio de Janeiro, foi o pri-
meiro e o mais importante em sua carreira.
A partir daquela noite, a atividade do fã-
clube ( c o m sua diretoria eleita ou escolhida, não
me lembro) começou a crescer. As fãs confeccio-
navam faixas de cetim decoradas com lamê, on-
de escreviam «Nosso Rei — «Rei da Juventude,
e nos programas de auditório, tanto na Rádio
como na TV, subiam no palco para «enfaixá-lo»
e dar o infalível «beijinho», telefonavam diaria-
mente para as rádios, pedindo as músicas do
«Rei», escreviam toneladas de cartas, votando,
pedindo, exigindo o Rei.
Corriam o ano de 1962.
E eu fiz 16 anos.
— 65 —
Uma Verdadeira Ginástica
— 67 —
da na Praça Saenz Pena. Algumas garotas que
sabiam do acontecimento já se encontravam lá.
O R e i começou a distribui autógrafos, o número
de pessoas foi aumentando e logo uma pequena
multidão estava se formando à porta da loja:
e r a m garotas, senhoras, curiosos querendo se
aproximar do Rei. De repente, do alto do prédio
onde se situava a loja, despejaram um balde de
x i x i , que nos deu um verdadeiro banho; pela
quantidade despejada sobre o público, devem ter
feito uma «vaquinha». Correria, palavrões, con-
fusão, e assim terminou esta tarde de autógra-
f o s c o m a nossa retirada, um tanto precipitada,
p a r a procurarmos uma maneira de nos livrar do
«presente» recebido.
— 68 —
«duros» e precisavam faturar. O artista ia ao
circo em troca de « x » por cento da renda da b i -
lheteria; poderia ser 30%, 40% ou 50%, no c a s o
de ser um pequeno ídolo. E o Rei já era um pe-
queno ídolo, que atraía um bom público aos cir-
cos. P o r causa disso, já podíamos nos dar ao lu-
xo de alugar um táxi para ir e voltar, porque o
faturamento do circo sempre dava para pagar o
táxi e ainda sobrava algum. Mas (sempre tem
que haver um m a s ) , um dia o circo pegou f o g o
quero dizer: foi justamente o contrário — era
um cirquinho tão vagabundo que só tinha lona
em volta e o céu como cobertura; e nesse dia, ou
melhor nessa noite, São Pedro resolveu bagun-
çar o coreto do Rei e mandou água. Choveu bar-
baridade, molharam-se os instrumentos e o pú-
blico se espantou. No fim das contas o dinheiro
não deu para pagar o táxi. Imaginem a aflição:
nós no fim do mundo, chovendo, lama por t o d o s
os lados, cansados, chateados e sem dinheiro
para voltar para casa.
* * *
_ 69 —
lhe forças e coragem de enfrentar o aconteci
mento inesperado.
Como sempre dotado de boas intenções,
Deus nunca me abandonou, sempre recebi a pro-
teção divina para chegar em casa sã e salvo.
— 70 —
Noma Outra Ocasião
— 71 —
voz dele. Nesta altura, quase apelando, o Rei foi
atingido no rosto por um mamão podre. O ho-
mem ficou uma fera. Saiu do picadeiro e foi se
dirigindo para a saída, escoltado por nós, que já
estávamos ligeiramente apavoradíssimos. A
massa que havia pago a entrada para o show se
julgou lograda e partiu para cima do cantor de-
sertor. Mais do que depressa, enfiamos o Rei den-
tro do táxi e tentamos defender a sua retirada.
Mas estávamos numericamente inferiorizado e
íamos levar a maior surra da nossa vida. Fui ati-
rado violentamente numa poça de lama e de lá
(sem sapato e já rasgado) vi aparecer um gru-
po de soldados que, caídos do céu, impediram que
aquela multidão enfurecida encerrasse prematu-
ramente uma das mais brilhantes carreiras ar-
tísticas de que se tem notícia.
— 72 —
ou menos a 1.30 h do R i o ) ; e depois outro show
em Petrópolis (que fica mais ou menos a 1.00 h
de Teresópolis). Se tudo corresse conforme o
planejado, daria tempo para cumprir com os
compromissos com a exatidão de um cronôme-
tro.
— 73 —
momentaneamente as «feras». O tempo passou:
15, 20, 40 minutos, 1 h o r a . . . e o clima estava in-
suportável: vaias, início de quebra-quebra, «que-
ro meu dinheiro de volta», etc. De repente al-
guém chega esbaforido, avisando que estavam
nos procurando para linchar-nos, que devería-
mos fugir imediatamente pelos fundos. Como é
lógico, fiquei apavorado e saímos de mansinho
pela parte traseira do prédio. Fomos andando
como quem nada quer, mas eis que de repente
ouvimos um grito de « p e g a » : havíamos sido des-
cobertos e começamos a correr. Nesse momento
um carrão branco vem vindo em nossa direção:
era o Rei. Nem precisamos explicar nada, por-
que ele logo compreendeu a situação. Na verda-
de, era a cabeça dele que o pessoal queria e, se
ele aparecesse, viraria picadinho, não sobraria
nem seu corpo astral.
Dali fomos direto a Petrópolis a tempo de
ainda fazer o show. No caminho, muitas garga-
lhadas, após termos escapado do pio e por fim a
explicação pelo atraso (coisa, aliás, de que eu
desconfiava): «Poxa, gente! O negócio é que
apareceu uma menina e eu acabei transando c o m
ela lá no camarim mesmo; aí que perdi a hora...».
— 74 —
Um Enorme Chevrolet
- 75 —
ciência do valor do status já existia (muito mais,
acredito, do que mania de grandeza) e ele, sem-
pre que surgia uma oportunidade, apresentava
o Dedé como «o meu motorista», da mesma ma-
neira que eu, um simples amigo e colaborador,
passei a ser o «meu secretário».
A paixão do « R e i » pelos carrões, que pouco
tempo depois o levou a ter seis «carrões», todos
importados, fazia com que ele se aproximasse
naturalmente dos já possuidores de carrões. E
foi assim com dois deles: o Toti, que era dono de
um estacionamento, na Duque de Caxias, em São
Paulo, e o Walter Baccarini. O Rei conheceu os
dois quando começou a fazer shows e a gravar
programas em São Paulo; e eles se ligaram pela
mania de carros. Naquela época a imprensa co-
meçava a falar do j o v e m ídolo e de seus carros,
que na verdade não eram seus, mas, sim, dos
personagens acima. O engraçado é que o Walter
e o Toti passavam até por motoristas do Rei,
sem se aborrecerem e muitas vezes tinham seus
carros amassados e arranhados pelas garotas de-
sesperadas em tocar no ídolo; mas eles nem se
importavam, porque aquilo era o máximo da cur-
tição e o preço era relativamente baixo.
_ 76 —
gócio que ele estava para fazer. Quando chega-
mos ao local e de longe avistei o Dedé, comecei
logo a desconfiar do que se tratava. E não deu
outra: era uma agência de automóveis e o Rei
nos conduziu até um big Chevrolet 55, branco,
conversível, vidros rayban, hidramático, etc. Em
suma: o carrão dos seus sonhos. Na verdade, ele
não precisava da nossa opinião porque, mesmo
que fosse contrária, de nada adiantaria, pois o
negócio já estava fechado. Saímos dali como um
bando de meninos com um brinquedo n o v o : su-
bimos nas calçadas, buzinávamos para todo o
mundo. O primeiro a ser comunicado foi o Ras-
mo que, ao ouvir aquela zoeira toda de buzina,
gritos e assobios, apareceu na janela e até hoje
me lembro de sua expressão de surpresa e satis-
fação: «Poxa, cara, que carrão! Nossa Senho-
ra!!!»
— 77 —
Gonçalves, que propôs ao Rei um show num cir-
co em Paraíba do Sul. Todo o mundo dentro do
carrão, e lá fomos nós (o nós era o Rei, Dedé,
Roberto de Oliveira e e u ) . Chegamos ao circo
Chupeta (nome do palhaço e dono do circo) e
rapidamente acertamos tudo: o show seria às 20
horas daquela mesma noite. Finalizada a nego-
ciação, Roberto de Oliveira lembrou-se de outro
circo, que talvez pudesse dar negócio; inclusive,
o dono era amigo do Chupeta, que, aliás, se pro-
pôs a ir junto para dar uma força. Como era em
Três Rios, a apenas 70 km dali, o Rei topou a
p a r a d a . . . e mais uma vez dentro do carrão que
devorou os 70 km até Três Rios. Chegamos lá,
fechamos o negócio c o m a maior facilidade. O
show em Paraíba do Sul terminaria às 21 horas
e o de Três Rios começaria às 22 horas. Encer-
rada a conversa, almoçamos todos com o pessoal
do circo e voltamos à toda velocidade à Paraíba
do Sul.
O show no circo do Chupeta foi um grande
sucesso.
* * *
— 78 —
do José Messias e eu fui até lá para desmarcar
aquele compromisso e aproveitar para explicar
ao Messias a verdade sobre o acidente que não
houve. E assim andei de rádio em rádio para
desmentir a morte do Rei.
Tudo isso traumatizou o Rei, que ficou mui-
to abalado e algumas vezes tentava renunciar
aos shows.
Mas a engrenagem que já estava sendo
montada não podia parar e eu, mais que nunca,
me esforcei para que naquele período de «en-
tre safra» o nome e as músicas do Rei continuas-
sem brilhando. De rádio em rádio, sempre agra-
dando, sempre badalando, falando com todos,
desde o b o y até o diretor e sempre falando em
nome do R e i . . . eis aí uma parte do meu traba-
lho para manter viva a chama.
Como muitas rádios baseavam a escolha de
sua programação pela vendagem dos discos nas
lojas, eu saía pelos maiores magazines do Rio,
como a Mesbla, Casa Sloper, Toneluz (lem-
b r a m ? ) , e procurava os compradores das seções
de discos e tentava convencê-los a comprar mais
o disco do Rio e a expor melhor e tocar mais,
etc. e tal. Lembro-me de uma menina, compra-
dora da Mesbla, a Mariana, que foi muito impor-
tante na época. Batendo papo com ela, consegui
convencê-la a dar um vitrine inteira só para o
LP do Rei e a tocar, sempre que possível, algu-
ma faixa do LP. Aquilo foi dinamite. O que a
Mesbla vendeu do Rei não está escrito e o que as
— 79 —
rádios tocaram de disco por causa desse suces-
so de vendas, idem; e o mesmo aconteceu com ou-
tras grandes lojas. E os meus 16 anos estufaram
de orgulho, pois eu estava ajudando a construir
uma majestade. Eu sempre prometia que daria
retratos autografados do j o v e m ídolo, que o le-
varia à loja e outras cascatas mais, que só uma
vez ou outra cumpria porque, se fosse cumprir
todas as promessas, ia precisar de pelo menos
uns cinco Reis para dar conta dos compromissos.
Os outros artistas jovens da época não ti-
nham esse tipo de estrutura e nunca se preocu-
pavam em desenvolver esse tipo de trabalho que
é a base de sustentação de todo artista novo
que se lança. Então gente que começou com o
Rei, como o Ed Wilson, Roberto Reis, Reinaldo
Rayol, Cleide Alves, Selmita, etc. — alguns até
com muito talento não foram além da moda e
morreram com ela, porque a alma do negócio é
a propaganda.
— 80 —
A Procuração
— 81 —
Meu pai disse que não haveria problema
porque tinha a maior confiança no cantor. Dali
mesmo fomos ao cartório onde o Rei falou, de-
pois de concretizada a emancipação:
— Sendo emancipado, ele é automaticamen-
te maior?
- 82 -
— Ele deu a você todos os poderes para vo-
cê fazer o que for preciso em nome dele. Esta é
a maior prova de confiança que uma pessoa pode
dar a outra. Veja bem o que vai fazer.
Poxa, aquilo estava começando a me assus-
tar, porque o próprio Rei, logo depois de me con-
ceder a procuração, disse:
— Você não deve mostrar este documento
a ninguém; nem minha mãe pode saber disso.
Aconteça o que acontecer, não deixe ninguém sa-
ber que eu lhe dei esta procuração.
TEOR DA PROCURAÇÃO
— 83 —
conforme escritura lavrada n/notas no livro 1.740, fls. 64, em
23/09/64, radialista, residente à Rua do Propósito, 84. apto.
202, n/cidade, com poderes especiais para em nome do ou-
torgante, assinar contratos profissionais, concordar ou discor-
dar com cláusulas e condições, renovar ou rescindir contratos,
e, ainda, receber os seus vencimentos e avencidos e vincendos,
a que tiver direito o outorgante na Rádio Ministério da Edu-
cação e Cultura, assinar recibos, cheques, folhas de pagamen-
to, dar quitação, bem como representá-lo perante repartições
públicas, estaduais, municipais, quaisquer emissoras, empresas,
em juízo, com todos os poderes forenses "ad judicia", e em
qualquer instância ou tribunal, a fim de defender os direitos
e interesses dele, outorgante, e substabelecer, podendo, mais,
receber toda e qualquer quantia devida ao outorgante por qual-
quer título ou proveniência, assinar recibos e dar quitação. As-
sim o disse, do que dou fé, e me pedi este instrumento, que lhe
li, aceita e assina com as testemunhas abaixo.
— 84 —
Algo de Profético
— 85 —
do. Meu pai veio até mim e disse: «Filho, o Rei
quer te dar um presente». Achei estranho, por-
que não vi nenhum pacote e, se fosse dinheiro,
ele não o faria em público. «O Rei quer te levar
junto para São Paulo».
Ninguém pode imaginar a minha alegria, a
felicidade que senti no momento; fiquei mes-
mo até um pouco atarantado. Saímos dali e fo-
mos direto para casa do Rei, onde pegamos as
malas. Entramos no carro e saímos rumo a São
Paulo; isto por volta das 4 horas da madrugada.
Neste trajeto Rio-São Paulo, o Rei veio de
novo abalar-me emocionalmente, mesmo depois
de me dar a procuração; talvez tenha sido a
maior prova de confiança que demonstrou por
mim. Disse-me o seguinte: «Sabe, Mário, eu sou
difícil de considerar alguém como amigo, mas
você é meu amigo!»
Foi a primeira vez que ele usou o termo
«amigo» em relação a mim.
Chegamos às 9 horas da manhã e fomos di-
reto ao hotel, porque havia muita confusão nas
ruas, pois dois meses antes havia estourado a
revolução e ainda vivíamos sob o impacto dos
recentes acontecimentos. Eu não entendia direi-
to o que acontecia e o Rei raramente conversava
sobre política ou sobre aquilo que estava se pas-
sando.
Nossa preocupação era com a carreira ar-
tística do Rei e ficávamos por fora de todo o
— 86 —
resto que acontecia. Apesar desse distanciamen-
to, alguns estilhaços sempre acabavam nos atin-
gindo, como o fechamento da Rádio Mairinque
Veiga pelas tropas do exército e a prisão de gen-
te do rádio, alguns nossos conhecidos.
* * *
— 87 —
Na volta para o Rio, o Rei me confidenciou,
confirmando a minha intuição:
— Sabe, Mário, eu gostaria de ficar moran-
do aqui em São Paulo. Aqui é que está o filé
mignon; o Rio é muito bom, mas é alcatra. Se
estourar um disco em São Paulo, fico conhecido
no Brasil inteiro.
— 88 —
to com água fria e todas as demais providên-
cias, não é que o acidente quase se repete, quan-
do na entrada da Avenida Brasil ele, novamente
dormindo, por pouco não bate na traseira de um
Aero Willys.
* * *
_ 89 —
oportunidade promocional para badalar a ima-
gem do novo ídolo da juventude. A primeira
coisa que fiz foi arranjar o maior número de in-
gressos possível para as primeiras filas — ali só
estaria o nosso pessoal: as meninas dos fãs-clu-
bes que só aplaudiam o Rei e, além disso, faziam
toda aquela encenação de subir no palco, beijar,
agarrar, desmaiar, etc. Esses macetes não fo-
ram criados por mim, é claro: a grande parte
disso aprendi com o Barros, homem que cuida-
va da vida artística do Caubi.
— 90 —
O Rei Sempre Foi Supersticioso
— 91 —
gar — eu talvez seja uma das poucas pessoas
que têm roupas dele. Não falava a palavra azar,
cuspia no chão três vezes, onde quer que estives-
se.
— 92 —
outros compositores, abrindo raras exceções ( c o -
mo foi o caso de Isolda e Milton Carlos).
Nessa ocasião surgiu outra figura incrível
a começar pelo nome ou apelido: Pilombeta. Bai-
xinho, gordinho, preto, sempre de terno e sorri-
dente, a figura espalhafatosa do Pilombeta cha-
mava logo a atenção onde quer que estivesse. Ao
que parece, ele era sargento reformado da Ma-
rinha e o nosso encontro foi na CBS. Ele se apro-
ximou do Rei e falou:
— 93 —
percam, hoje, o grande show do Rei da Juven-
tude. O homem está rico, não precisa mais de
ninguém, venham assistir». Então o Rei ficou
chateado com aquilo e pediu que o Luís Carlos
fosse fazer com que ele parasse com aquilo. Che-
gando perto dele, o Luís falou:
— Olhe aí, Pilombeta, não é nada disso; não
fale essas coisas de rico e de não precisar mais
de ninguém que pega mal, e tal e coisa.
Ele retrucou:
— Tudo bem, deixe comigo.
Subiu de novo no caixote e recomeçou o dis-
curso;
«Venham ver o show do Rei da Juventude
que o homem está pobre, está precisando de di-
nheiro, venham a s s i s t i r . . . »
— 94 —
Na Delegacia
— 95 —
parou ao lado dos dois e saltou do carro, impe-
dindo que fugissem. O Rei segurou sozinho os
dois e os meteu dentro do carro. Ele e eu íamos
no banco da frente e a Célia, o Milton (esse o no-
me da figura) e o Dedé, atrás.
- 96 —
— Essa moça é minha namorada e tá tran-
sando com esse sujeito aí.
— 97 —
gum tempo em contato com ela, telefonava, man-
dava fita gravada, era realmente uma paixão.
Mas os compromissos se avolumavam e o
tempo ia ficando cada vez mais curto para « f o s -
sas» e essas coisas.
— 98 —
Os Empresários
— 99 —
«O filho é teu». Se realmente era ou não era,
nem eu nem o Rei temos absoluta certeza. Ape-
sar de o Rei não registrar a criança em seu no-
me, durante quase quatro anos levei mensalmen-
te uma quantia em dinheiro para a Lúcia. Esta
situação provocou inclusive incidentes desagra-
dáveis, porque a Lúcia não se apertava: quando
estava precisando de algum ia bater lá na porta
de casa. Isso aconteceu algumas vezes, mesmo
depois do casamento. Engraçado é que quase
todos os cantores brasileiros, ou mesmo estran-
geiros, passam por este problema de filhos.
— 100 —
uma ambulância. Eu não estava entendendo na-
da. Aí foi que o Rei me falou:
— Poxa, Mário, você é mesmo pé-frio. Deu
pane no motor e tivemos que voltar.
Parece que meus sonhos estavam sempre so-
frendo de pane no motor. Mas eu não ligava nada
para essas coisas desagradáveis. Tinha 18 anos,
um amigo que ia se tornando um ídolo e para
todas as direções que meus olhos se voltavam,
enxergavam azul, azul, muito azul. Oh! Meu
Deus, como eu era feliz!
— 101 —
Aprenda Algum Ofício
— 103 —
turo sem o Rei. Eu não sabia fazer mais nada
na vida, nem conseguia em nada que não fosse
o meu trabalho junto a ele. Nesta época uma
pessoa amiga me aconselhou:
— 104 —
mos quase um ano separados e foi um período
de grandes transformações na vida do Rei.
* * *
— 105 —
— Que você quer?
— Abraçar o meu amigo, o Rei. Sou o Má-
rio, seu secretário.
Desorientado, ouvi ele dizer, firmamente,
que eu mais parecia um varredor de rua.
— Imagine, secretário! Aqui você não en-
tra!
— 106 -
da pessoal, seu castelo, etc. O Rei, aquele rapazi-
nho que gostava de cantar e tocar violão, que
queria chegar apenas a ser tão famoso como
Nelson G o n ç a l v e s . . . era agora uma engrenagem
importante de uma máquina que desconhecía-
mos totalmente.
— 107 —
A Mãe do Rei
— 109 —
A mãe dele e eu ficamos num canto e logo
o Rei veio falar conosco. Foi então que nos apre-
sentou sua futura esposa.
A festa estava chegando ao fim. O Rei veio
até onde eu me achava e passou a conversar c o -
migo:
— Sabe, Mário, você é uma das poucas pes-
soas em quem eu confio.
( E u pensei: pronto — os meus 18 anos já
estão garantidos. V o u participar da equipe do
meu amigo. A c h o que voltarei à divulgação.)
Estou precisando trazer um mordomo aqui
para São Paulo e acho que você poderia exercer
esta função. V o c ê só vai trabalhar quando vier
uma visita, reportagem, essas coisas a s s i m . . .
E ele fez questão de acrescentar:
— Fora disso, a nossa amizade é a mesma,
a liberdade é total; depois de mim, o dono da
casa é você. Topa?
Senti o sangue gelar. Dentro do meu cére-
bro uma frase dele estourou em relâmpagos.
Era aquele dia em que andávamos, no Rio, de
ônibus, quando então ele disse: «Olhe, compa-
nheiro, no dia em que eu estourar, ficar rico,
você fica também».
Ele estava rico e eu seria o m o r d o m o . . .
Voltei para o Rio e procurei por todos os
meios me informar sobre a minha nova função.
— 110 —
Aí caiu nas minhas mãos o milagroso livrinho
de boas maneiras do imortal mestre Marcelino
de Carvalho. Devorei, decorei cada palavra da-
quele livro. Como receber, como servir, o ritual
do vinho, os cumprimentos, os cuidados à mesa,,
os deveres do anfitrião; enfim, tudo o que se po-
deria esperar de um mordomo de classe, eu
aprendi, nesse livro.
Antes de eu voltar para o Rio, o Rei telefo-
nou para o alfaiate dele em São Paulo — o Ca-
sarine — e pediu que fosse até o apartamento
parar tirar as minhas medidas. Meu primeiro
uniforme de trabalho foi um blaser vermelho,
uma camisa branca, cheia de babados, uma gra-
vata bordeaux, calça preta brilhante e sapatos
pretos tipo social.
— Só que esse nome de Mário não dá. Te-
mos que arranjar alguma coisa melhor — obser-
vou ele.
Então me lembrei de um nome e o sugeri:
— Que tal «Gastão»?
— Gastão ? Gastão. Ê, soa bem. V o c ê será o
Gastão.
Então passei aquela semana no Rio, estu-
dando boas maneiras e resolvendo meus proble-
mas particulares.
Quando desembarquei em São Paulo, Mar-
cos estava me esperando com aquele Cadillac
presidencial que ficou famoso. Marcos era o cho-
111
fer do Rei. Era um crioulo boa pinta e educado,
parecido com o Sidney Poitier, e logo ficamos
amigos. Ao chegar ao apartamento tive uma sur-
presa: havia alguns repórteres e fotógrafos. En-
tão começou a chuva de perguntas em cima de
mim. Fiquei um pouco confuso, pois não estava
preparado para aquilo afinal, eu não podia dizer
que toda a minha experiência se resumia na lei-
tura do livro do Professor Marcelino de Carva-
lho. Então me ocorreu um negócio na hora e chu-
tei que havia feito um curso de especialização na
Maison de France — pois foi o lugar mais sofis-
ticado que pude arranjar. Eu sabia que a Maison
era a representação da França no Brasil e que
dava cursos de francês, mas disse que havia tam-
bém um departamento especializado, etc. e tal.
— 112 —
A Entrevista
— 113 —
— Minha senhora, poucas pessoas sabem
que a função de mordomo se constitui num car-
go de absoluta confiança, pois ele faz, às vezes,
de dono da casa, administra as finanças da casa
e está a par inclusive dos assuntos particulares
do patrão. Em suma: é uma posição de absoluta
confiança.
— Música dele?
— Não. De jeito nenhum. Ele fica irritado
quando colocamos músicas dele. Geralmente são
discos clássicos ou do Tito Madi e Dick Farney.
— 114 —
— Dizem que o nosso Rei é muito supersti-
cioso. Ele tem alguma superstição antes de dor-
mir?
— 115 —
— Quem é que o Rei recebe em sua casa
com mais freqüência?
— Seus familiares, pessoas ligadas ao meio
artístico, gente da imprensa.
— 116 —
torista, dividido por um vidro (também à prova
de bala), vinha o lugar dos «agentes de seguran-
ça» e depois, numa terceira divisão separada
também por um vidro, vinha o lugar do perso-
nagem principal.
Bem, chegamos, Marcos desceu, abriu a por-
ta para mim e eu tentei entrar no supermerca-
do. De repente alguém gritou: «Ei, gente, olhem
o mordomo do Rei!» Aí foi aquele corre-corre,
me levaram até à gerência e tivemos que armar
um esquema especial para eu sair.
A partir daí minha vida passou a se modi-
ficar. Eu estava sentindo, no canto dos lábios,
o gostinho doce-amargo da fama. Quando ia ao
cinema, quase sempre a bilheteria me reconhecia
e não deixava que eu pagasse o ingresso. Se acon-
tecia de eu ir a uma boate, logo todos os olha-
res convergiam para a minha mesa. Sempre ha-
via alguém que se aproximava para pedir autó-
grafo ou conversar (querer saber da vida do
Rei) e, na hora de pagar a conta. .. não deixa-
vam que eu pagasse.
A imprensa era a grande responsável por
tudo isso. E o pior é que tudo era bolado e usa-
do para fins promocionais, para reforçar a ima-
gem do ídolo, que agora já começava a sua tra-
jetória de mito.
Nessa ocasião, um repórter da revista In-
tervalo, da Editora Abril, o Cilo, foi lá em casa
fazer uma matéria sobre mim. Daí ele bolou uma
— 117 —
briga entre o Rasmo e mim. A matéria saiu mais
ou menos assim: o Rasmo achava que eu estava
muito esnobe, muito metido a besta e que ia aca-
bar chutando a minha bandeja com mordomo e
tudo. O rei concordou com a reportagem:
— 118 —
Além de ser grandalhão, Rasmo tinha um
secretário, um crioulão trançado, de quase três
metros de altura, chamado «Negativo». E as me-
ninas diziam:
* * *
— 119 —
critórios. A esta altura todo o mundo já sabia
que o mordomo do Rei esta,va l á . . . e o expedi-
ente foi interrompido. Fomos levados aos tran-
cos e barrancos até a diretoria e, ao chegar lá,
eu já tinha uns duzentos bilhetes com pedidos de
LP, compactos e autógrafos.
Um dos diretores nos recebeu, mandou ser-
vir cafezinho e, muito solícito, quis saber qual
era o nosso problema.
— O negócio é que acabou o gás lá em casa
e o Rei vai chegar de viagem, e t c . . .
Daí ele falou:
— A partir de hoje vocês têm cinco bujões
e não precisam pagar nada.
— 120 —
A imagem do Novo Ídolo
— 121 —
me no cinema comum. Aí eu tinha que ir na fren-
te para reservar todo o balcão em cima, para
nós. O Rei chegava geralmente de óculos escuros
(os disfarces ele começou a usá-los logo depois)
e entrávamos pela saída e íamos diretos para o
balcão superior.
Mas o anonimato de um «rei» é muito difí-
cil. Bastava um comentário e todo o mundo fi-
cava sabendo. Entrar era difícil, mas, quando
chegava a hora da saída a porta do cinema já es
tava intransitável. A solução era chamar a po-
lícia e ir embora de camburão. Algumas vezes
ainda tentávamos o artifício de sair antes de a
sessão terminar; também porque o Rei não que-
ria que soubessem que ele tinha namorada, pois
temia que isso pudesse abalar o seu prestígio
junto às fãs.
Um dia fui atender à campainha e deparei
c o m um sujeito estranho, barbudo e de óculos
escuros. Hesitei um pouco porque, para que a
pessoa subisse, era preciso que passasse primei-
ro pela verificação do porteiro. Olhei para a rou-
pa e vi que era roupa do Rei. Aí ele falou:
— Õ bicho, não está me reconhecendo?
Era o Rei disfarçado pelo maquiador da Re
cord — na tentativa de voltar a ter momentos
de pessoa comum. Triste ilusão.
Neste momento chegaram alguns repórte-
res da Manchete e acharam genial a idéia do
disfarce e queriam fazer uma reportagem. O Rei
— 122 —
sugeriu que todos saíssemos para dar um pas-
seio e testar o disfarce.
Ele foi andando até a Praça Princesa Isabel,
sentou num banco e eu sentei ao lado dele. De-
viam ser mais ou menos 13 horas e algumas es-
tudantes passavam pelo local. «Oi, linda, tudo
b e m ? » — mexeu o Rei com elas, que nem deram
bola. Parecia que o disfarce estava funcionando
bem e então ele resolveu aproveitar a oportuni-
dade para ir ao cinema. Fomos andando até o
Metrô, onde estava passando Dr. Jivago e entra-
mos. O Rei sentou na frente, ao lado de um casal,
e eu me sentei atrás dele. De repente a mulher a
seu lado começou a olhar para ele. Eu já fiquei
preocupado. Então ela se vira para o namorado
e diz: « N ã o parece o R e i ? O namorado respon-
d e : «É, acho que é ele mesmo». Dei um cutucão
no Rei e falei: « V a m o s puxar o carro, bicho!»
Mas aí já era tarde demais: a notícia se espalhou
como pólvora pelo cinema e nós fomos refugiar
na gerência e só conseguimos sair de lá numa am-
bulância.
— 123 —
de garotas, na frente do edifício, esperando que
ele saísse para o programa «Juventude».
Toda vez que ele saía para o programa ou
para outro show qualquer, tinha que ser forte-
mente escoltado, mas havia vezes em que o Rei
queria sair sozinho. E aí, como fazer? A idéia
dele foi a de entrar no porta-malas de um de seus
carros (nessa época ele já tinha seis e todos por
demais conhecidos das f ã s ) . A saída do carro era
infalivelmente barrado pela pequena multidão e,
quando viam que o Rei não estava dentro, deixa-
vam-no seguir. Uns quinhentos metros adiante,
em alguma rua mais deserta, o Eurico parava o
carro e o Rei saía de dentro do porta-malas e pe-
gava um táxi.
O negócio dos disfarces teve que ser aban-
donado porque, além de não se ter revelado mui-
to eficiente, dava um trabalhão danado para ser
retirado, pois tínhamos que usar benzina, lavar
a cabeça várias vezes para tirar o branqueador.
— 124 —
O Interfone Toca
— 125 —
— V o c ê é o Gastão, eu te conheço. Olhe, o
negócio é o seguinte: eu quero falar com o Rei,,
de qualquer maneira. Se não me deixarem, eu ti-
ro a roupa aqui mesmo.
Comecei a tentar explicar que o Rei não es-
tava e q u e . . . num gesto brusco ela arrancou o
vestidinho de jérsei branco e ficou nua, histérica.
Eu, que estava tentando manter a pose de mor-
domo inglês, perdi o controle, os vizinhos iam
chegando, o porteiro, coitado!, não sabia mais o
que fazer. Uma vizinha arranjou um roupão e a
polícia que chegou logo em seguida a levou dali.
* * *
— 126 —
A mulher acabou de falar e abriu o casaco —
estava em pêlo, e que pêlo! Hoje eu fico pensan-
do naquela cena e na cara de idiota que eu devo
ter feito. A c h o que a única coisa que consegui fa-
lar foi «Pelo amor de Deus!», enquanto a puxava
para dentro e fechava a porta.
Ela começou a falar e a contar uma estória
que tinha vindo não sei de onde e que tinha toma-
do coragem para fazer aquilo e que não ia desis-
tir, etc. etc. — nem me lembro direito, de tão
zonzo que fiquei. Que dilema! Eu não podia usu-
fruir aquele momento ali. Poxa, não era a minha
casa. Então a convidei para sair. Antes lhe mos-
trei toda a casa para que ela se certificasse de
que o Rei realmente não estava. Aí ela falou:
— 127 —
— Olhem, fale para o Gastão que eu passei
a noite com ele, mas que estou mesmo é a fim
do meu Rei; e, se ele não aparecer, eu vou ficar
nua aqui na rua!
O zelador chamou a polícia. Vi a moça con-
cordar em sair, quero dizer, em ir embora.
— 128 —
150 Telegramas Por Dia
— 129
não tinha vontade de sair. Desliguei então a apa-
relhagem eletrônica e me preparei para atender
o telefone. Isso me divertia e sempre me trazia
surpresas surpreendentes. Comecei a atender e a
anotar os recados e a despachar logo, quando era
o caso. Num desses telefonemas, ouvi uma voz de
mulher um pouco nervosa:
— A l ô , é da casa do Rei? P o r favor, não des-
ligue. Estou tentando ligar para aí há vários dias
e não consigo. Sou fulana de tal e tenho uma fi-
lhinha que sofre de uma doença incurável no
sangue. Ela está condenada e sabe disso. O maior
sonho dela é conhecer o Rei antes de morrer.
— 130 —
Ele nem pensou duas vezes. Só pediu que eu
fosse na frente para ver como ele poderia chegar.
A menina não cabia em si de tanta felicidade ao
ver o «Rei» em carne e osso; e a mãe chorou mui-
to e não parava de agradecer. Depois de algum
tempo, soubemos que a menina tinha falecido.
— 131 —
condições de usar qualquer saída pré-fabricada.
Pedi que entrasse e sentasse um pouco, pois, em-
bora o Rei não estivesse, eu ia ver o que podia
fazer. Fui até o quarto dele e expliquei a situa-
ç ã o . Mostrei-lhe inclusive a Ordem de Despejo
q u e ela trouxe, foto do marido, etc. Ele ficou
chateado e disse: «Poxa, Gastão, vê se não me
traz esses casos, porque, se eu for resolver o
problema de todo o mundo, estou perdido».
— 132 —
nalista — o Sílvio Dinardo, que era amigo da
casa — veio para uma visita. Estávamos os três
ouvindo um som, quando de repente o Rei falou"
— 133 —
quer pessoa podia imaginar. Gente pedindo di-
nheiro, emprego, oferecendo música para o Rei
gravar, meninas se oferecendo para transar com
ele (meninas de todas as classes sociais, inclu-
sive da alta), estórias das mais banais, das mais
intrincadas.
Aí falei:
— E eu sou o mordomo.
_ 134 —
cheio de meninas de biquini, que voltavam da
praia, ele comentou, meio amargo: «Tudo po-
bre; ninguém me conhece porque não tem tele-
visão».
Como ele queria ser conhecido e famoso!
- 135 -
Hotel Jandaia
— 137 —
c o m ela e começou a paquerá-la, sutilmente. Na
hora da foto, o Rei vai para o lado da Silvie e
coloca a mão no ombro dela. E pra que?! O ho-
mem, o Johnny, ficou uma arara: tirou a mão
do Rei de cima do ombro dela e mudou as posi-
ções da foto — ficou ela, ele e o Rei.
— 138 —
Outros Ídolos
— 139 —
voz, uma linda figura cênica, inteligente, culto,
cantor e compositor, Ronnie V o n tinha tudo, até
nome e empresário para galgar o trono do « R e i » .
— 140 —
— Esta letra está legal, cara. Sabe, ela fa-
lou comigo, mas eu lhe disse que, enquanto ela
estiver comigo, ninguém vai me destruir.
Então eu falei:
— 141 -
tei a minha missão. Mas, nesse ínterim, fui aten-
dido por uma moça muito simpática que me veio
oferecer o providencial cafezinho. Conversa vai,
conversa vem, acabamos marcando um encon-
tro. Eu fiquei radiante, pois era a minha pri-
meira tentativa de namoro e contei ao Rei, que
me deu a maior força:
— 142 —
ma onde ela trabalhava. Ela veio falar comigo
com um jeito estranho. Começamos a conver-
sar, mas a conversa logo virou discussão e, num
dado momento, ela desfechou o golpe final:
— 143 —
em torno da jovem-guarda, e mas precisamente
em torno do seu nome. Na manhã seguinte ao
incidente, desci para comprar os jornais na ban-
ca da esquina, como sempre fazia. Chegando à
banca, fui atingido por um «raio»,. Na primeira
página do Notícias Populares, a minha foto com
o braço na tipóia e a manchete em letras garra-
fais: «MORDOMO DO REI T E N T A SUICÍDIO».
Quase todos os jornais davam a notícia falsa
com mais ou menos destaque. Fiquei gelado, sem
saber o que fazer. Comprei as revistas que ha-
via na banca. Cheguei ao quarto do Rei e contei
uma estória boba, dizendo que os jornais já se
tinham esgotado, naquela banca, etc. e tal; ele
disse que estava tudo bem e que mais tarde eu
procurasse em outra banca. Pensei que se es-
quecesse dos malditos jornais, mas de repente
ele me chamou ao quarto. Quando entrei vi que
a coisa ia ficar preta: alguém tinha feito o fa-
vor de lhe levar os jornais c o m a mentirosa no-
tícia.
_ 144 —
ticas do Rei é a facilidade que tem de mudar de
humor repentinamente.
— 145 —
O Rei E O Tremendão
— 147 —
E viu.
O Rei ficou algum tempo compondo sozi-
nho as suas músicas, até que houve a reconci-
liação entre eles — e a dupla voltou a fazer su-
cesso juntos.
Eu, particularmente, não sou uma pessoa
vingativa. Porém, há certas coisas que marcam
muito fundo a alma da gente, talvez pelo mo-
mento especial em que ocorreram e isso deixa
uma cicatriz que, às vezes, dura a vida inteira.
E foi o que aconteceu com a forra do Luís
de Carvalho, de quem hoje sou amigo e pelo
qual tenho grande admiração. Mas, como vocês
devem estar lembrados, o Luís me deu uma tre-
menda esnobada, quando fui pedir-lhe que tocas-
se o disco do Rei, em início de carreira.
Os anos passam e o Rei vence. O telefone
toca no castelo do Rei e eu atendi:
— A l ô , aqui é da Rádio Globo. A que horas
o Rei vai chegar para o show apresentado pelo
Luís de Carvalho?
— Desculpe-me, mas ele não vai. O Rei só
faz show de sucesso.
Çimba, desliguei o telefone. O Rei estava
dormindo e, quando acordou:
— Poxa, Mário, eu tinha um show na Quin-
ta da Boa Vista, do aniversário da Rádio Glo-
bo.
— 148 —
— Agora, já era!
A Rádio Globo ficou quase um ano sem to-
car o Rei, o quem diga-se de passagem, em nada
prejudicou a sua carreira. Se isso tivesse acon-
tecido, eu ia pedir desculpas ao Luís.
* * *
— 149 —
perando os eventuais fregueses. O Rei vinha no
volante e viu uma:
— 150 —
ela não teve tempo de secar (ficou no quase)
porque o Rei chegou. Sem demonstrar o menor
abalo etílico, foram os dois rápidos para o quarto
e foi aquela sinfonia: dois cantores, ambos tara-
dos e movidos a álcool. Ficamos (os emprega-
dos) do corredor os gritos, urros, palavrões e
outros ruídos emitidos pela saudosa cantora.
Oh! N ó s os empregados!
— 151 —
Eu assegurei que nada do que fosse dito ali
passaria a outras pessoas. Ela então abriu o j o -
go objetivamente e disse sem rodeios:
— A cabeça é tua.
— 152 —
Lá, entre gozos e suspiros, quando eu já es-
perava que saísse alguma frase amorosa daque-
les lábios, ela falou ofegante:
— Você promete que me leva ao R e i ?
— 153 —
A Minha Casa É Assim
— 155 —
técnicos de T V , cameramen, assistentes disso e
daquilo, que carregavam fios, cabos, booms, câ-
maras, etc. Em suma: aquele até então calmo e
tranqüilo apartamento transformou-se, de repen-
te, na sucursal alucinada de um estúdio de tele-
visão.
Começa o programa com o Airton tocando a
campainha e sendo introduzido por mim ao hall
de entrada. Aí, expliquei diante das câmaras o
porquê da ausência do Rei (dei uma desculpa
qualquer) e fui em frente, mostrando o castelo
encantado do Rei.
As câmaras iam percorrendo os ambientes.
O Airton fazia as perguntas e eu ia, na medida
das minhas limitações, respondendo de maneira
que o Rei talvez respondesse, caso estivesse ali.
Na sala, as câmaras se detiveram nos obje-
tos e obras de arte que por ali estavam e o Air-
ton se fixou numa tela muito bonita da pintora
Tami Otaki. Eu, que nunca havia parado para
analisar aquele quadro, de repente me vi na con-
dição de crítico de arte e passei a discorrer so-
bre o possível significado da pintura. Lembro-
me de que estava inspirado e falei bastante so-
bre o quadro, o que mais tarde me valeu uma
bronquinha do Rei e um telefonema elogioso da
pintora.
— 156 —
Em síntese, aquele era o local mais importante
da casa. Diante do gravador, o Airton me per-
guntou se, por acaso, havia alguma música iné-
dita gravada ali. Por coincidência, realmente es-
tava gravada uma canção, na qual o Rei tinha
trabalhado há algum tempo e eu deixei que os te-
lespectadores ouvissem uma parte dessa música.
Foi aí que o Airton quis saber se eu ajudava ao
Rei a compor.
— Não, ajudar a compor, eu não ajudo, por-
que o Rei não precisa. Mas, às vezes ele me pede
para solfejar a música, enquanto ele vai pegan-
do a linha melódica porque ele não volta a fita
do gravador, nunca.
Dali fomos até o quarto dele onde o público
teve a oportunidade de ver as roupas do Rei, as
suas dezenas de botas e a cama tão sonhada pelas
fãs mais ardorosas.
O programa terminou e o Airton se despe-
diu não sem antes ir até a garagem ver os bada-
lados carrões do Rei.
Dias depois o programa foi ao ar e teve uma
grande repercussão, como aliás tudo o que envol-
ve o nome do Rei.
Os telefones começaram a tocar como de
costume em reação ao programa. Amigos, curio-
sos, gente do meio artístico, etc.
Entre esses telefonemas, três não foram
para o Rei. Como eu já tinha dito, um deles foi
— 157 —
o da pintora Tami Otake, e os outros dois de re-
presentantes de duas gravadoras, com propostas
quase idênticas, que queriam que eu, Gastão,
gravasse um disco. É claro que não me iludi mui-
to c o m aquilo tudo, porque sabia que o interesse
deles era no que o mordomo pudesse aproveitar
do sucesso do patrão.
— 158 —
Uma Má Impressão
— 159 —
Marta era duma simplicidade franciscana e, além
disso, gostava do Rei desde o tempo em que ele
era apenas um cantorzinho anônimo, c o m o vio-
lão debaixo do braço.
— 160 - -
por causa dela. Ela fieou seriamente preocupada
e pediu que eu chamasse um médico. Consegui
um médico que se dispusesse a vir, às 4 horas
da manhã, tratar do porre do Rei; e por isso foi
regiamente pago.
Ela era possessiva, extremamente ciumenta,
beirando as raias da paranóia. Uma ocasião eu
estava passando um fim de semana no Rio, na
casa de minha tia, quando recebi um telefonema
de São Paulo:
161 —
— Fala sem mentir: onde é que o Rei es-
tava tal dia às tantas horas?
Apatetato, perguntei:
— 162 —
Quando casaram na Bolívia, na verdade ela
já estava morando lá em casa há algum tempo,
mas havia o medo da reação das fãs, medo que
aflige todos os homens famosos. Para nós todos
que compúnhamos o fechado círculo de pessoas
íntimas do Rei, as coisas começaram a se modi-
ficar. Afinal de contas, agora havia uma rainha
no castelo, uma mulher que mudava as coisas,
dava ordens, impunha a sua vontade. Eu, que me
sentia um pouco « s ó c i o » de tudo aquilo, comecei
a me sentir desconfortável e, com o casamento,
desvaneceram-se as esperanças de que aquele se-
ria um caso passageiro.
— 163 —
ensina a sabedoria das pessoas mais velhas e ex-
perientes; mas achei que, depois de tantos anos
de amizade, lutas e companheirismo, eu deveria
ao Rei a minha sinceridade, a minha honestidade
ainda juvenil. Eu nunca soube ser fingido e en
tão naquele instante desabafei:
— Ir embora?!
— Exatamente!
— Mas, que farei de minha vida lá fora?
N ã o sou registrado, não tenho direito nenhum
junto a você. Que faço, amigo?
— 164 —
— Pegue o disco debaixo do braço e vá pro-
curar alguém que o ajude a fabricar um Rei.
— Você sabe que já tentei, mas não deu
certo.
— Tente novamente. Talvez você encontre
um José Mário da Silva Júnior.
— 165 —
Quatro Episódios
— 167 —
vamos de « B i c ã o » , aquele sujeito que tenta en-
trar na vida do artista para «bicar as sobras da
fama e da fortuna desse artista» mas, como o
personagem em questão deveria ter apenas uns
12 anos, foi batizado de «Biquinho». Esse meni-
no começou a assediar o Rei em São Paulo, quan-
do ele estava hospedado no Hotel Jandaia. Bi-
quinho era um garoto pobre, vendia limão e fa-
zia pequenos biscates (lavar carros, dar recados,
comprar cigarros, etc.) para sustentar a si e a
sua mãe. Como sempre, o Rei acabou tendo sim-
patia pelo menino que agora lavava o seu carro
e fazia outras pequenas coisas para ele.
— 168 —
O Rei tomou conhecimento daquela estória
e ficou comovido. A partir daquele instante, re-
solveu que iria ajudar o Biquinho. Para encurtar
a estória: O Biquinho se transformou em Ed
Carlos, passou a ter um programa na televisão,
que se chamava Mini-Guarda, se não me engano,
onde ele era o apresentador, fazendo mais ou me-
nos o mesmo papel que o Rei no programa Ju-
ventude. O Rei deu músicas ao Ed Carlos e o
contratou com exclusividade para a sua firma
de promoção artística, a A P A .
— 169 -
visto, no Dino e acabou com a festa. Viemos em-
bora no mesmo instante. Na viagem de volta o
Rei pouco falou e não se dirigiu ao Dino. Ã noite,
ele saiu para um show e, quando voltou, logo
me chamou no seu quarto:
— Como é que foi lá no show? Tudo bem?
— perguntei.
— Tudo bem — respondeu ele, enquanto
descalçava as botas.
— É, aquele negócio do Dino...
Parecia que tinha uma espinha de peixe na
garganta.
— 170 —
tato c o m o Rei e combinaram que o Rei faria uma
música para o LP que o Timóteo ia começar a
gravar. Mas o tempo ia passando, o Rei sempre
às voltas com mil shows, entrevistas, gravações,
e nada de aprontar a tal música. O Agnaldo Ti-
móteo ligava impaciente lá para casa, diariamen-
te, para saber da música. Eu, que atendia ao te-
lefone, já não sabia mais o que dizer, que des-
culpa daria daquela vez. E o tempo foi passan-
do. O Rei sempre me prometia a música «para
amanhã». A situação estava ficando difícil.
— 171 —
te, naquele mesmo dia, de avião, ao Agnaldo Ti-
móteo g r a v a r . . . e foi um imenso sucesso. Assim
que Grito foi feito no g r i t o . . .
O quarto episódio não está ligado a nenhum
outro artista, mas é muito significativo do tipo
de confiança que existia entre mim e o Rei. Um
dia, ele chegou de um show com um pacotão de
dinheiro (naquele tempo não existia nota d e . . .
Cr$ 5.000,00). Eram 50 mil cruzeiros. Ele nos
entregou e pediu que os guardasse. Peguei o pa-
cote, do jeito c o m o estava, e joguei-o em cima
do armário. E esqueci. Esquecemos, Meses de-
pois, fui limpar o armário e vi aquele pacote es-
tranho. Era o dinheiro. O Rei estava viajando e
quando voltou eu perguntei:
— Que dinheiro?
— 172 —
Mas A Vida Continua
—- 173 —
Chegando ao Rio, fui até o meu antigo bair-
ro e agora vitorioso. Pelo menos era o que as
pessoas pensavam: ele dexiou o Rei para seguir
a carreira artística. Na época, não me interessa-
va contar os verdadeiros motivos do meu afas-
tamento do Rei, porque eu ainda vivia do que
restava de ligação entre nós dois. Fui até o Tel-
ma, o clube de minha infância e que durante as
minhas fugidas eu freqüentava, onde eu tinha
muitos amigos. Quando cheguei, foi aquela fes-
ta! Afinal, pela falta do Rei, um emissário mes-
mo servia, e o emissário era filho da casa. Ficou
acertado que eu faria um show no Telma, um
show gratuito mas que representava muito para
mim. O Joel sempre ao meu lado, assessorando-
me, «cambonando-me» exatamente como eu fa-
zia com o Rei e levando aquilo com uma serie-
dade que até me constrangia.
— 174 —
Mas a vida continua e os empresários pre-
cisam faturar: Fortaleza, São Paulo, Belo Hori-
zonte, Santos, e t c . . . e lá vai o Gastão, o cantor
improvisado. Só que, talvez por uma questão de
substituição (não me entendam m a l ) , tive ne-
cessidade de preencher o vazio que havia ficado
na minha vida, e a pessoa mais apropriada pa-
receu ser a moça do Telma, a Lourdes. O namo-
ro foi difícil, meio complicado, eu sempre viajan-
do, ela muito pobre e lutando com imensas difi-
culdades para sobreviver com dignidade.
— 175 -
Um belo dia, já em Santos, onde eu faria
um show à noite, recebi um telefonema:
— Mário, poxa vida, até que enfim conse-
gui te encontrar. Aqui é Lourdes. Estou tentan-
do me comunicar com você há vários dias. Que
desespero! O nosso casamento é hoje!
— 176 —
A reação das pessoas era a mais diversa
possível e uns achavam graça.
— 177 —
tado da Guanabara e eu estaria nomeado para o
Departamento Médico, pois tinha um curso de
auxiliar de enfermagem. Disse-lhe que meu fi-
lho estava prestes a nascer e, como o filho havia
acabado de nascer, mandou quase um enxoval
completo, além de roupas para minha mulher.
Ele me deu algumas roupas dele além de algum
dinheiro. Voltei para o Rio, animado e certo de
que tudo mudaria dali para a frente. Esperei an-
sioso o telefonema dele, falando da minha no-
meação. O telefonema não veio, eu não consegui
falar com ele e de repente percebi que eu estava
sozinho.
— 178 —
desagrado quanto à minha incapacidade de man-
ter uma família.
Numa dessas conversas de botequim, um
«amigo» desses que aparecem para resolver as
situações entre uma brama e outra, me abriu a
olho:
— Você está nessa merda porque quer. On-
de se viu um homem que já foi secretário do Rei
passando dificuldades?
E como eu havia falado sobre a tal procu-
ração que me outorgava plenos poderes para li-
dar com os negócios do Rei, ele sugeriu:
— Eu, se fosse você, usava essa procura-
ção...
No dia seguinte recebi a citação da justiça
para pagar ou «ser despejado dali a alguns dias».
Não pensei duas vezes. Fui até o banco onde o
Rei mantinha uma de suas contas e, valendo-me
da procuração, saquei Cr$ 53.000,«0 que, se não
me engano, era o suficiente para pagar os alu-
guéis em atraso. Nessa conta deveria haver pelo
menos Cr$ 200.000.000,00. Alguém alertou o Rei,
que se comunicou imediatamente comigo. Ouvi
pelo telefone o maior esfregão da minha vida e
não pude dizer nada, a não ser agradecer a ele
por não me entregar à polícia.
—179 —
abandonou, levando consigo meu filho. A luta
continuou e fui vendedor, juiz de futebol ( c o m
passagem pelos gramados paraguaios), divulga-
dor de gravadora, gerente de transportadora,
vendedor de ações do mercado primário, sócio de
inferninho, etc.
Trabalhei como secretário do Agnaldo Ti-
móteo e cheguei a ensaiar alguns passos com o
Jerry Adriani, mas nada deu certo.
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O Cantor Quis Mostrar Que É Forte
— 181 —
— No maldito orgulho, na maldita vaidade
do cantor.
_ 182 —
Não agüentou. Sentou-se na calçada, perto
duma banca de jornais, e involuntariamente seu
olhar se fixou no carrão preto e brilhante que o
cantor dirigia e se perdia lá para os lados da
Praça da Sé. Afundou a cabeça nas mãos e so-
luços secos lhe arrebentavam do peito, enquanto
lá dentro de seu cérebro torrentes de imagem
desfilavam tão lindas, tão azuis.
Viu o j o v e m cantor humildemente vestido,
c o m um 78 rotações debaixo do braço, suplican
do-lhe a j u d a . . .
— Hei, cara, vê se dá uma força aí; toque
bastante este disco. Hei, cara, no dia em que eu
ficar rico, também você será rico. Hei, cara, ape-
sar de você só ter 15 anos, o considero meu me-
lhor amigo.
Depois viu o carrão na maior disparada e o
cantor às gargalhadas.
— Hei, cara, nosso primeiro carrão.
Depois o primeiro pacote de dinheiro escon-
dido em cima do guarda-roupa. E os dois rindo.
Depois a glória, a fama, o brilho, as luzes. Di-
nheiro, muito dinheiro. Dinheiro que dava para
comprar tudo o que um ser humano vaidoso e
materialista deseja — carros, casas, apartamen-
tos, jóias, aviões, navios, r o u p a s . . . Roupas e
mais roupas!
O mordomo levantou-se e sacudiu a cabeça,
olhando furtivamente para os lados. Então aper-
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tou os lábios com força. O Rei sempre lhe dava
as roupas que não mais lhe serviam.
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— Espero que alguém possa ajudá-lo. Ele
tem um roteiro de cinema prontinho e um livro
que poderá interessar a qualquer editor.
Esperemos.
* * *
— 185 —
A moça fui espancada com violência pelas
guardas de seguranças do Rei a qual fiquei pen-
sando: com tantos rapazes na cidade, livres e de-
sembaraçados não são procurados por estas mo-
ças que buscam só o difícil.
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Ai que fiquei furiosa e gritei com voz alta
para ele, escute aqui Rei:
«Qual o proveito de um homem que ganha
o mundo inteiro, mas perde sua própria alma?»
Adelaide Carraro,
SP, 9 . 8 . 8 4
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