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Educação como mercadoria em tempos de pandemia: exposição ao desconhecido e caminhos

responsáveis

Cristiane Baldinotti de Souza

João Paulo Francisco de Souza

Raquel dos Santos Candido da Silva

Sílvio Silvério Feitosa de Freitas

Introdução

    No momento em que produzimos este texto, o Brasil registra mais de 130 mil mortes por Covid-

19, um vírus invisível que avança a passos largos diante de um cenário governamental

necropolítico, marcado ainda pela ausência de um titular do Ministério da Saúde por mais de 130

dias. 

No Estado de São Paulo, a Secretaria Estadual da Educação decretou, no dia 31 de agosto de

2020, o retorno das aulas presenciais por meio da Resolução SEDUC 61. Em seu artigo 9º, fala-se

de “ouvir a comunidade escolar”, porém não lhes são dadas condições nem autonomia para todos os

educadores exercerem seu direito de ficarem em casa e se protegerem do inimigo invisível. 

No contexto em que 90% da população mundial é atingida, a Organização Mundial da

Saúde (OMS), diante da ausência de uma vacina, recomenda o isolamento físico como uma

proteção sanitária para evitar o aumento da contaminação e setores da Educação buscam

alternativas para dar continuidade às aulas escolares.

    Na referida Resolução, a responsabilidade do retorno é deslocada para os pais dos estudantes, que

em condições materiais desfavoráveis tendem a optar pelo retorno das aulas presenciais;

diferentemente das famílias mais favorecidas que ainda mantém condições de trabalho em casa e

que conseguem manter os filhos em estudo remoto - preocupados com a contaminação. A decisão

que deveria ser da Saúde fica em segundo plano. A preocupação maior parece ser com a

recuperação das grandes empresas, que lucram oportunamente com toda a situação pandêmica.

    Segundo Paulo Freire, 


a educação tem a ver com formação e não com treinamento. A educação vai além
da mera transferência de técnicas. Eu vejo como perigosa a possibilidade da
educação se reduzir a técnicas, se transformar meramente em técnica, em uma
prática que perde de vista a questão do sonhar, a questão da boniteza, a questão de
ser, a questão da ética. Aquela é uma educação apenas para a produção, para o
marketing (FREIRE, p. 38, 2014).
   

Para que de fato essa formação aconteça é necessário abrir-se para o diálogo. Neste período

da pandemia, houve a necessidade das escolas organizarem essa abertura para que este encontro de

palavras, esta formação e também esta escuta continuassem a acontecer, alargando assim as

fronteiras entre as palavras de cada um e de todos os interlocutores do ato educativo. No entanto, o

que temos observado é que muitas vezes a formação pela palavra dá lugar ao treinamento, à

transferência de técnicas e à ausência da boniteza da escola como espaço de transformação social. A

formação e o treinamento chegam juntos, em contradição.

Neste cenário pandêmico ainda desponta sobre a educação pública brasileira o chamado

capitalismo de vigilância, no qual mais de 70% das escolas e universidades públicas estão expostas

ao avanço de modelos de negócios de grandes conglomerados econômicos interessados na extração

de dados de usuários para obtenção de previsões de comportamentos éticos e estéticos para com

isso gerar a oferta de serviços e produtos por meio da internet. Empresas intituladas como GAFAM

- acrônimo utilizado para designar grandes empresas como Google, Apple, Facebook, Amazon e

Microsoft - são as principais interessadas no orçamento educativo, afetando principalmente a

questão da segurança, privacidade e vigilância dos usuários, estudantes, educadores e gestores por

meio a oferta gratuita de serviços educacionais para aulas remotas, videoconferências, troca de

mensagens, etc. ao estabelecerem parcerias com as secretarias municipais e estaduais da educação.

Criar espaços de resistência onde colocamos em prática o uso da linguagem em diferentes

instâncias é fundamental para superar a atual situação que está posta, em que é preciso deslocar o

centro de valor que o Estado impõe por meio do estabelecimento desses acordos que não são

responsáveis. Participar, identificar, apontar e intervir com nossa palavra possibilita escapar dessa

crise e assumir uma obrigação. Nesses espaços, podemos enunciar nossas palavras com nossas

perspectivas, nossas visões de mundo, nossos sentimentos, posicionamentos, pensamentos e

desejos, dando nosso passo para alargar nossas consciências. Traremos, portanto, algumas

iniciativas nesse sentido que alargam alguns limites, que nos permitem pensar uma educação
responsiva, com múltiplas vozes, onde a centralidade está no outro, na vida. Mais adiante será

abordada a experiência singular de educadores marilienses que não tiveram escolha a não ser

assumir uma obrigação de não estarem indiferentes ao que foi apresentado: que realizaram a

resistência ao que parecia impenetrável e conflitante, por meio de seu lugar único e singular no

existir. Poderemos investigar brevemente como não renunciaram à sua liberdade e nem deixaram ao

Estado a decisão sobre como seria o caminho a ser trilhado em contradição com o posicionamento

oficial. Não tiveram escapatória. Esses novos posicionamentos e novos modos de se colocarem

diante do novo é o que veremos mais adiante.

A educação mercantilizada

Para pensarmos na educação tratada como mercadoria atualmente, é necessário pensar

historicamente, ou seja, nos perguntar quando ela passa a ser um direito de todos os cidadãos, de

forma gratuita, e, em seguida, como se dá o movimento rumo à mercantilização da educação.

Portanto, neste tópico faremos uma brevíssima revisão histórica da educação no Brasil, para pensar

em como ela se deu e como isto reflete a mercantilização dos tempos de hoje.

Segundo Souza (2018), a educação brasileira se iniciou em nosso país em 1549, com a

Companhia de Jesus, um braço da igreja católica criado em resposta ao protestantismo, tendo como

objetivo educar e catequizar os povos     indígenas, tornando estes mais dóceis para serem mão de

obra dos portugueses. Apesar de sua missão inicial ser catequizar os índios, aos poucos também foi

assumindo a missão de educar os filhos dos senhores de engenho, criando uma rede de ensino

excludente, onde quem não era indígena ou filho dos senhores de engenho estava excluído. Logo,

podemos concluir que a educação em nosso território já começa como mercadoria (para os filhos

dos senhores de engenho) e como instrumento de dominação para Portugal. 

A educação feita pelos jesuítas durou até 1759, quando houve a expulsão dos jesuítas pelo

Marquês de Pombal. Souza (2018) explica que tal se deu em virtude dos jesuítas se oporem ao

controle português e, com isto, houve o rompimento com uma rede de educação que estava

implantada e consolidada. No lugar desta rede, se desenvolveu a Reforma Pombalina onde, pela

primeira vez, o estado assumiu o papel de fornecer educação pública, porém, sem haver melhoras,

visto que os novos professores eram aqueles que tinham se formado com o ensino jesuítico. 
Segundo Seco e Amaral (2006), as reformas pombalinas vieram com o objetivo de estruturar

e modernizar a principal colônia de Portugal para buscar adentrar no capitalismo industrial. A

Inglaterra a partir do século XVII já estava à frente das demais potências européias com seu

desenvolvimento econômico. Em contrapartida, Portugal ainda tinha relações feudais e pouco

desenvolvimento econômico com uma elite que se preocupava somente em exportar mercadorias e

escravos para viver no luxo. Com isto, o rei de Portugal nomeia o Marquês de Pombal com o

objetivo de modernizar a cultura e a economia portuguesa, e, para isto, taxou importações, reformou

o exército português, fundou companhias para gerenciar as produções nas colônias, expulsou os

jesuítas, extinguiu a escravidão indígena, isto tudo com o intuito tanto de aumentar a população (o

objetivo dele era que os indígenas miscigenassem com a população portuguesa) quanto controlar as

fronteiras (que estavam sob o controle dos jesuítas). Com a expulsão dos portugueses, o Brasil

sofria sua primeira e desastrosa reforma do ensino criando as aulas régias, ou seja, aulas ministradas

por professores autônomos, com disciplinas como latim, que não se conectam com as outras

disciplinas. Claro que isto não impediu de outras escolas religiosas (por exemplo, os franciscanos)

ministrarem aulas, porém no lugar do sistema de ensino centralizado que antes vigorava, agora

havia um ensino fragmentado, com professores leigos e mal preparados. 

De acordo com Souza (2018), a educação brasileira só viria a mudar com a chegada da

família real portuguesa ao Brasil, porém, sua preocupação foi quase que exclusiva com o ensino

superior, ficando a classe pobre relegada ao segundo plano. Neste período, o ensino era para a

formação das classes dirigentes. Apesar de haver algumas tentativas de aumentar o ensino público,

como a implementação do método Lancaster (onde um aluno - decurião - seria treinado para ensinar

outros 10 alunos - decúrias) e legislação em 1824, que promulgava o ensino público primário e

gratuito a todos os cidadãos, além de lei em 1827 para a criação de escolas primárias em todas as

cidades, estas não foram, de fato, implementadas. Há ainda a descentralização do ensino em 1891,

mas, não foram criadas condições para as províncias conseguirem implementar tais mudanças

educacionais, o que contribuiu para que ela ficasse nas mãos da iniciativa privada, gerando um

ensino dual: privada, destinada às elites, para adentrar o ensino superior, e a outra, pública,

precarizada, ofertando somente ensino primário e técnico para as classes populares. 


Aqui podemos fazer a síntese de que esta situação dual, de uma educação precária e pública

para os pobres e outra privada e com qualidade para as elites vem desde o Brasil colonial, e o

período republicano também traz essa herança.  Segundo Souza (2018), apesar das inúmeras

reformas e leis que surgem durante o período republicano, a situação dual irá continuar e, de um

ponto de vista federal, se prioriza a educação secundária e superior - que eram responsabilidade da

União - em detrimento à expansão do ensino primário, o que lega grande parte da população ao

analfabetismo. 

Um fato que tem de ser lembrado é que o voto, segundo Wetin (2016), durante o período

colonial, era praticado por quem tinha uma renda líquida de mais de 100 mil réis por ano, e isso se

dava pois 90% da população era analfabeta, logo, até mesmo integrantes da elite eram iletrados.

Porém, em 1881, houve a promulgação da “Lei Saraiva”, que proibia os analfabetos de votarem. Tal

lei foi redigida por Ruy Barbosa, e tinha por objetivo não permitir que as classes mais pobres

pudessem, de alguma forma, atingir os objetivos das classes dominantes, pois, segundo pensava, o

analfabetismo não poderia ser premiado, ao contrário, teria de ser guiado pelos poucos que tinha

“ilustração”.  Esta situação de exclusão duraria até 1985, quando uma emenda à Constituição

permitiu que os analfabetos votassem, porém, é inegável que a divisão da educação entre aquela que

é privada, cuja qualidade é destinada apenas à elite, e a educação pública e precária, que legou a

exclusão por décadas de milhões de indivíduos ao direito político. 

Segundo Pereira (2020), na década de 1920, se iniciou um aumento da industrialização e

urbanização no Brasil, principalmente em estados como Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São

Paulo. Com isto, mudanças na educação, até então descentralizada,  começaram a ser feitas pelos

estados, visto que a formação de mão de obra qualificada se fez necessária nesse momento onde as

oligarquias cafeeiras começam a perder seu poder e há uma transferência de capital para o setor

industrial. Também há, nesse momento, uma ruptura política, com novos grupos disputando o

poder, influenciados pelo republicanismo e pelos ideais positivistas, e aí começam as reuniões da

Associação Brasileira de Educação, onde haverá uma disputa sobre os moldes da educação com a

igreja católica, que busca se afirmar como promotora de educação privada, citando que o ensino

religioso era uma alternativa ao “ensino doutrinário”, e, doutro lado, os nacionalistas, pensando a

educação como um dos elementos para o desenvolvimento econômico e industrial.  É nesse


momento que os ideais escolanovistas adentram o país, sob influência norte americana, com o

objetivo de promulgar a “educação moderna”, onde psicólogos, sociólogos e biólogos serão

inseridos na educação com o objetivo de preparar e adaptar o indivíduo à nova sociedade industrial

que vem surgindo.  Estes ideais darão o Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, lançados em

1932, num contexto de mudança, com a subida de Vargas no poder, o que leva, segundo conta

Calçade (2018), há uma construção de um sistema de ensino, com centralização da educação a nível

federal.  Aqui são definidos currículo, conteúdo de livros escolares, bem como orçamento a ser

investido tanto pela União quanto pelos estados.  Também é feita a decisão de manter-se o ensino

religioso numa esfera privada e ofertar um ensino público e laico para a população em geral. 

Segundo Assis (2012), entre 1948 e 1961 houve a discussão de uma nova Lei de Diretrizes

Bases da Educação, e aqui podemos apontar que houve retrocessos, no caso, artigos que retiravam

do Estado o dever, de forma prática, de que todos os jovens tinham de ser escolarizados. Segundo a

lei, os que tinham pais muito pobres, a ausência de escolas, fim do período de matrículas e doenças

graves ou congênitas desobrigam o cidadão de ser educado. Na LDB de 1961 houve a proposição

de que 100% das crianças e adolescentes estivessem alfabetizados mas, como conta a autora,

mesmo que exitosa em cumprir que boa parcela que estava matriculada conseguisse estar

alfabetizada, a grande parcela dos jovens estava fora do sistema de ensino.

Durante o período militar no Brasil (1964-1985), há uma tentativa de normatizar a educação

com a promulgação da LDB, que definia como seria o ensino de primeiro e segundo grau, bem

como a expansão do sistema, visto que, como conta Assis (2012), há uma mudança econômica e

social  profunda, com o êxodo rural e um aumento no emprego disponível (graças ao crescimento

da indústria base), porém, estes novos postos requerem mão de obra especializada, logo, a única

opção para ter acesso a eles era a educação. É, neste momento, que ocorre uma expansão do ensino

privado, pois, em 1967 o estado tenta se desobrigar de investir na educação, incentivando

claramente a iniciativa privada. Houve, inclusive, o repasse de verba do estado para instituições

privadas, com o pagamento de bolsas, o que aumentou o custo da União com a educação, o que era

garantido por lei. Das esferas de poder, somente a educação municipal tinha um limite mínimo para

investimentos, mas, nem sempre cumprido. A partir de 1972 a educação se torna obrigatória durante

os 8 primeiros anos, e, com o êxodo rural,  aumento de número de matrículas e pouco investimento
dos governos, os professores pagaram o preço, tendo de fazer dupla e até tripla jornada de trabalho

(uma realidade que ainda se mantém, visto a baixa remuneração). 

Também é importante citar aqui a reforma que aconteceu em 1972, a chamada Reforma

Passarinho, que, além de obrigar o ensino fundamental, alterou o ensino médio para ter uma

formação técnica ao jovem. Os governos estaduais, após o aluno concluir o ensino médio, deveriam

emitir um certificado técnico para o aluno, com o objetivo destes assumirem os postos de trabalho

existentes na época. Ou seja, se adotava, cada vez mais, um ensino técnico, com o intuito de a

educação formar as pessoas para o emprego, sacrificando aí um ensino mais humanista e a

formação mais integral do humano, transformando a escola em centros de treinamento para a

iniciativa privada. Tais mudanças tiveram um impacto negativo na rede, afinal, num curto espaço de

tempo se mudara as formas de ensino, não dispondo as escolas de recursos e capital humano para se

adequarem. Segundo Demerval Saviani, em entrevista para o site do governo Agência Senado

(BELTRÃO, 2017), o próprio empresariado preferia uma formação mais geral, logo, havia uma

falsa percepção dos governantes para com os desejos do empresariado, da necessidade de mão de

obra especializada, e, claro, do como fazer isto, afinal, na matéria de Beltrão (2017), há a denúncia

de situações de falta de materiais técnicos, com cursos de datilografia que não tinham máquinas de

escrever, mas, folhas com o teclado desenhado, logo, essa formação de mão de obra era ineficaz. 

Em virtude do fracasso do ensino técnico/profissionalizante, ele foi extinto em  1982, e

deixou consequências, pois, segundo matéria de Beltrão (2017), os jovens ficaram com enormes

defasagens no quesito de cultura geral, e, ainda, houve consequências como o fortalecimento de

redes privadas de cursinhos (que ainda hoje existem, em maior número, diga-se) para os jovens

conseguirem o acesso ao ensino superior. 

    Após o período da ditadura militar, iniciou-se os trabalhos de uma nova constituição, e, a

educação também estava sendo pensada para os novos tempos de democracia. Segundo Ferreira

(2013), o direito à educação foi ampliado, garantindo o direito mesmo para quem, por ventura,

tivesse sido excluído, independente da idade. Houve o consenso de que deveria se criar mais

escolas, incentivar a formação de professores. Em 1996 foi promulgada a nova LDB, e, com ela, o

reforço da idéia de que a escola, além de uma formação cidadã, também deveria estar formando o

jovem para o mercado de trabalho, porém, na época, não com um entendimento de formação
técnica, mas, com o domínio de habilidades para poderem se inserir no mundo do trabalho. Também

cabe destacar que, entre 2000 e 2015, durante as gestões do Partido dos Trabalhadores, diversas

medidas foram tomadas para expandir e melhorar a educação, como medidas de repasse de renda

que tinham, como requisito, que crianças estivessem na escola (por exemplo, Bolsa Família),

programas de bolsa de incentivo à docência (Pibid), construção de e financiamentos estudantis

(Fies), onde o aluno pode financiar sua formação universitária, o que claramente favorece o setor

privado da educação superior. Estes programas ainda continuam a existir, porém, com outras

configurações, visto as mudanças de gestões terem um olhar diferente da educação e formação de

professores.

Porém, após o golpe de 2016, quando Michel Temer assina, sob forma de medida provisória

número no 746/2016 (Lei nº 13.415/2017), a chamada reforma do ensino médio, uma medida que,

segundo Kuenzer (2017), bem como Motta e Frigotto (2017), calam os debates públicos sobre

educação que vinham ocorrendo até o momento, e implementam uma série de mudanças como o

aumento no número de horas escolares, a obrigatoriedade de português e matemática, bem como a

instituição de percursos formativos, o que permite que o aluno escolha um entre os cinco possíveis

percursos formativos (linguagens e suas tecnologias; matemáticas e suas tecnologias; ciências da

natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas; e formação técnica e

profissional). Kuenzer (2017) denúncia que tal medida estava de acordo com as propostas dos

grupos privados de educação que conseguiram influenciar o Ministério da Educação e o Conselho

Nacional de Secretários da Educação. Estes grupos tendem a lucrar pois, os percursos, segundo a

medida provisória, independente do qual seja escolhido, habilitam o estudante a prestar o ensino

superior, porém, haverá uma maior fragmentação no saber destes, logo, a busca por escolas

particulares e cursos preparatórios tendem a disparar. 

Kuenzer (2017) cita, também, a formação profissional (que traz a lembrança da Reforma

Passarinho), que abre, de acordo com a medida provisória, a possibilidade de parcerias do setor

público com o privado, para cursar disciplinas fora da escola, seja presencialmente ou à distância, e

que estas seriam validadas. Segundo a autora, tal quadro se insere na imposição da chamada

aprendizagem flexível, uma metodologia que articula aprendizagem com desenvolvimento

tecnológico, onde ela atua em grupos, comunidades de alunos, em forma de redes, onde, no seu uso
mais comum, profissionais trocam conteúdos de interesse mútuo para a solução de problemas.

Kuenzer problematiza que o aluno passa de espectador para sujeito de sua formação, que tem de

escolher seus caminhos, fazer sua própria rotina de estudo. O conteúdo é deslocado do professor

para o grupo, e o professor vira propositor de cursos e tutor, perdendo sua função, e, ao que parece,

autonomia.

Já Motta e Frigotto (2017) citam o caráter econômico de tais mudanças, com os percursos

formativos/flexibilização do ensino estimularem a formação do aluno e isso propiciar

competitividade e crescimento econômico. Essa idéia de formar o capital humano é recorrente na

educação brasileira, e, nesta revisão histórica vimos como tal é pensado na década de 1920 com as

mudanças econômicas e, ainda, na ditadura militar, onde se pensa a formação dos jovens para o

mercado de trabalho com o ensino técnico. No entanto, conforme Motta e Frigotto nos conta, os

principais produtores de riqueza no Brasil é a exportação de Commodities e manufaturados de

pouca especialização. Na base estão empregados, em sua grande maioria, no setor terciário, com

serviços e comércios simples, com baixa remuneração, o que não leva, de fato, com a necessidade

de capital humano tal como proferido/planejado, e há, ainda, cortes em programas e verbas para o

desenvolvimento da ciência, o que poderia alavancar, em um prazo mais longo, para criação de

inovações e mercadorias de maior valor agregado. Assim, Motta e Frigotto denunciam para o que

entendem como verdadeiro objetivo da reforma do ensino médio é o estímulo da iniciativa privada

com cursos técnicos de curta duração, sendo o sistema S (Sesi, Senai, Sesc, Senat, Sebrae) os

principais beneficiários, bem como fundações que oferecem soluções do tipo (Instituto Ayrton

Senna, entre outros). 

Motta e Frigotto evidenciam que o motivo de tais ações, além de fortalecer o sistema

privado com as parcerias público-privado, é, também, controlar a questão social, ou seja, seguir as

recomendações do Banco Mundial para diminuir a desigualdade econômica e social, visto que, de

acordo com o Banco Mundial, há um desperdício produtivo dos pobres, o que pode gerar conflitos

sociais. Ou seja, pobres podem ser usados para produzir riqueza, e, de quebra, evita conflitos com o

acirramento da miséria. Em conjunto, são fomentados movimentos de cunho conservador, com o

objetivo de fomentar a ideologia conservadora na escola e combater o pensamento crítico e

humanista, para conformar o público estudantil para a atual ideologia e impedir de questionar, e,
assim denunciam Motta e Frigotto, Marx e Paulo Freire são atacados, bem como movimentos

surgem para impedir ideologias contrárias as dominantes no âmbito educacional. 

Buscando fazer uma síntese desta revisão bibliográfica, vemos que a educação brasileira é

marcada por servir à classes dominantes de várias formas, seja educando seus filhos, seja formando

os trabalhadores para seus projetos. Até o século 19, ela era mercantilizada, isto é, vendida para as

classes dominantes se educarem, porém, com o avanço do capitalismo e industrialização no Brasil

do século 19 e século 20, há um crescimento lento, onde, aos poucos, se oferta a educação ao

público, isto sem afetar os poderes da classe dominante, visto que a obrigatoriedade do ensino só

veio com a Constituição de 1988, que assegura, inclusive, a modalidade Educação Para Jovens e

Adultos (EJA). 

Pensando na questão mercantilização, o envolvimento da iniciativa privada se dá desde o

Brasil Colônia, mas, com a ditadura militar de 1964, ela cresce com investimentos do próprio

estado, tanto com escolas para os que tinham um poder aquisitivo maior quanto pelo surgimento de

cursos preparatórios para o vestibular. Na LDB de 1996 há a manutenção do ensino privado e a

expansão da educação privada no nível superior. No atual momento, com as mudanças na

legislação, principalmente com a Base Comum Nacional Curricular e a reforma do ensino médio, se

garante mais meios para a manutenção de parcerias público-privada que tomam de assalto a

educação, com uma proposta que lega ao aluno o poder de escolher seu roteiro formativo, porém,

traz uma fragmentação que alimentará ainda mais os cursinhos de vestibulares.    

Relativo à pergunta no início deste tópico, no caso, de quando a educação passa a ser um

direito de todo o público, de forma gratuita, bom, podemos considerar que é recente, tendo um

crescimento de público durante todo o século 20, porém, a obrigação do estado em fornecer remete

à Constituição de 1988, que buscou garantir em suas linhas o direito à educação tanto às novas

gerações quanto às posteriores que foram excluídas do seu direito. 

Educação Vigiada (GAFAM) em Tempos de Pandemia e o Desconhecido: do diálogo face a

face ao diálogo mediado pelas tecnologias

    Quando pensamos na educação vigiada, estamos pensando num dos desdobramentos do

capitalismo de vigilância, que é, de acordo com  Shoshana Zuboff, uma nova modalidade do capital,
onde se comercializa dados obtidos por mecanismos de vigilância, e, tais podem ser usados pelos

compradores para a modificação e produção de comportamentos e mercados (Poter e Souza, 2019).

Mas, como estes dados são obtidos?

    Para saber como tais dados são obtidos, talvez seja interessante olhar o último grande escândalo

público utilizando dados de uso público e privado, que foi com o Facebook e a Cambridge

Analytica. O Facebook é uma rede social que tem como objetivo declarado gerar lucro através de

anúncios e postagens de maior alcance pagas, porém, com o escândalo  do vazamento de dados

ficou evidente que, com o uso de softwares de inteligência artificial, pode se traçar padrões de

comportamento e personalidade. Em matéria do jornal BBC intitulada “Entenda o escândalo de uso

político de dados que derrubou valor do Facebook e o colocou na mira de autoridades” (2018) é

explicado o como a Cambridge Analytica consegue tais dados do Facebook e, aplicando um teste

psicológico sobre personalidade (bem como se aproveitando que os usuários não liam as cláusulas

do teste, só marcando “next”), conseguiram obter dados sensíveis. Porém, esta não é a única forma

de empresas obterem dados. A própria interação dentro do Facebook pode gerar dados que podem

ser lidos por programas (bots) que acumulam uma grande quantidade de dados indexados (seja de

textos, fotos ou vídeos, visto que já temos programas que conseguem reconhecer imagens e padrões

de rosto), de onde podem se aferir padrões e correlações. O grande acúmulo de dados pode ser

analisado com os programas de mineração de dados e big data, o que pode fornecer padrões,

informações sobre o comportamento coletivo e indicativos de estratégias para ações de modelagem

de comportamento.

    Neste momento, as grandes empresas do ramo de tecnologia, conhecidas como GAFAM (Google,

Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), bem como outras de menor expressão, ofertam “soluções”

tecnológicas para a educação brasileira em diversos graus, desde o ensino fundamental, médio e, até

mesmo, superior. Uma rápida pesquisa aponta como a Microsoft tem firmado parceria com a

Secretaria de Educação do Estado de São Paulo desde 2013 (SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO

ESTADO DE SÃO PAULO, 2013), ofertando cópias gratuitas de sua suíte Office aos estudantes.

Também ocorre o mesmo com o Google, que, desde 2013, oferta, junto da  Microsoft suas soluções

de office, email e armazenamento online. Com a atual pandemia de Covid19, houve uma mudança

abrupta para o ensino remoto, adotando tais “soluções” em peso. 


Para Mészáros (2008, p. 35), “a educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150

anos, serviu - no seu todo - ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário

à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um

quadro de valores que legitima os interesses dominantes”.

Com o período da pandemia, muitas feridas sociais tornaram-se mais evidentes.

Pesquisadores do Departamento de Inteligência Artificial da Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG), com base em dados levantados no IBGE e DATASUS, recentemente, desenvolveram uma

ferramenta que mostra que o fato do Brasil ser um dos países com maior desigualdade social

implica em um maior número de óbitos, dificultando ainda mais a saída da pandemia por COVID-

19. A pesquisa ainda demonstra que na Europa, o aumento das mortes se dão devido ao elevado

número de pessoas idosas. 

Essas desigualdades sociais também refletem e refratam outras situações como o racismo, o

ecocídio, o etnocídio, o terricídio, os corpos e os território das mulheres etc, ou seja, o uso da

palavra “novo normal” não traz nada de normal; apenas escancara feridas já anteriores, agora mais

acentuadas e aprofundadas. A enorme desigualdade social existente no Brasil é encarada como um

grande desafio também no campo da educação em tempos de pandemia. Segundo Natália Flores: 

Muito embora a educação informatizada não seja um debate novo no Brasil


e no mundo – tendo sua história marcada no período após a Segunda Guerra
Mundial (década de 1950) e com as possibilidades sendo maiores após o
advento dos computadores pessoais (na década de 1980), o acesso aos
equipamentos de informática e computação e o acesso às tecnologias de
internet só recentemente tornaram-se viáveis para uma parcela grande da
população. As Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação (TDCI)
aparecem neste cenário como ferramentas que são grandes promessas para a
educação, no Brasil e no mundo.

Em meio a esse cenário de isolamento físico, escolas, universidades e outras instituições de

ensino começaram a pensar novos modos de dar continuidade às aulas. Termos desse campo

semântico como aulas remotas, aulas à distância, aulas online, entre outros foram cada vez mais

utilizados. Colado aos termos avançaram grandes corporações tecnológicas ofertando planos de

serviços, na maior parte das vezes, anunciados como  “gratuitos”.


Seu microfone está desligado. Esse tem sido um dos enunciados mais ditos e que já tornou-

se meme e motivo de riso no universo da educação em tempos de pandemia. Recentemente, numa

aula de Língua Portuguesa, do segundo ano do Ensino Fundamental, da rede pública estadual

paulista, transmitida pelo aplicativo CMSP, dessa secretaria estadual,  a cantiga popular Teresinha

de Jesus foi intencionalmente modificada na sua ortografia para que os estudantes durante a aula

remota, pudessem reconstruí-la e deixá-la novamente na sua ortografia linguisticamente “correta”.

Esse estudo trazido numa aula gravada possibilita algumas reflexões, tanto sobre o ensino da

Língua Portuguesa, quanto à plataforma utilizada como suporte para a formação do estudante.    

Em relação ao ensino da linguagem, foi possível observar preconceitos linguísticos nos

exemplos explorados na canção, trazendo enunciados da oralidade para que fossem, sem qualquer

contextualização, “consertados”, entendidos como “errados”, uma vez que fazem parte do universo

oral utilizados com frequência no interior do Brasil e entre as camadas mais populares. Não iremos

nos deter sobre esse fato neste momento. Quanto ao uso da plataforma, as palavras dos estudantes

que dialogavam no chat não eram escutadas e a prática educativa deixava de lado a o estudo da

estética e da ética, sem trazer novos sentidos a partir da leitura da canção, utilizando uma visão da

língua como um produto pronto (VOLOCHINOV, 2019, p. 152):

como um sistema linguístico estável (dotado de vocabulário, gramática e


fonética) representa um espécie de sedimentação morta ou de lava
petrificada da criação da língua, construída de modo abstrato pela linguística
com o objetivo prático de ensiná-la como um instrumento pronto.
   

O encontro de palavras, que acontece semanalmente entre professores e professores, entre

professores e coordenação pedagógica da escola, sempre possibilita um alargamento das

consciências por meio de formação continuada, debates, momentos de estudo e troca de saberes.

Uma vez que as aulas oferecidas neste aplicativo não passem por estes eventos semanais ou mesmo

por quaisquer outros encontros de palavras, discutir por exemplo o uso da linguagem em situações

reais de interação ou o aprofundamento das suas dimensões éticas e estéticas não permite esse

alargamento e a possibilidade de repensar a própria prática, dentre outros novos olhares para a vida.
Em relação ao uso do aplicativo, nota-se que o fato da aula ser dada por um professor

desconhecido para o estudante e não pelo próprio professor que já os acompanhava, implica em um

distanciamento emotivo-volitivo, prejudicando a relação de confiança e a disponibilidade para o

diálogo, como acontece nesta construção inacabada nas aulas presenciais: 

O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a
relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como
inconclusão em permanente movimento na história (FREIRE, p. 133, 2018)

Aqui, vale destacar as características do aplicativo utilizado pela secretaria estadual, que

recentemente foi analisada pelos jornalistas do jornal The Intercept Brasil, onde foi destacado que

7,1 milhões de alunos e professores utilizam o aplicativo chamado Centro de Mídias (CMSP),

entregando aos proprietários dessa empresa todos os dados desses usuários. A reportagem apurou

que os estudantes estão expostos à invasão de privacidade devido aos termos de uso apresentarem

condições “bastante invasivas”.

    A grande mídia corporativa, grandes empresários da educação, grandes Fundações, políticas

públicas e outros grupos interessados em extrair lucro com a educação, ao longo dos últimos anos

vêm pautando as narrativas dentro das redes sociais e outros espaços da internet. Com o advento do

isolamento físico, educadores têm cada vez mais ocupado também esses espaços, trazendo suas

palavras e contrapalavras, produzindo alargamentos, sentidos e posicionamentos diante da

realidade. Esses novos modos de compor esse cenário entram em contradição, trazem novos valores

por meio do encontro de palavras que chegam para resistir ao acabado, ao posto, ao discurso

monológico do grande capital.

    Para FREITAS (2020):

No Brasil, estas “empresas” se escondem atrás da filantropia e das ONGs e


instituições chamadas “sem fins lucrativos”. Embora já esteja na
Constituição inscrita no Art. 213 a autorização para que estas instituições
recebam dinheiro público, temos que continuar a combater toda legislação
adicional que permita acesso de ONGs e instituições não públicas, com ou
sem fins lucrativos, que queiram operar escolas públicas de forma
terceirizada, e com isso pôr a mão no dinheiro do FUNDEB.
Caminhos responsáveis: educação transformadora pelo uso de softwares livres pelos

estudantes e educadores

    Os processos históricos expostos até o presente momento, são trazidos para que possamos

compreender  as relações e os contextos econômicos, políticos e sociais que se contradizem

cotidianamente, e que, alinhados a pandemia mundial de covid-19 - fortaleceram os grandes

conglomerados educacionais que veem na educação uma valiosa mercadoria a ser capitalizada.

    Enquanto educadores, nos deparamos frente a esse contexto, com novas tecnologias educacionais

que são apresentadas como uma alternativa única, diante da necessidade de se promover a

continuidade do ensino em tempos de pandemia. Na Educação de Jovens e Adultos, as orientações

recebidas pelos educadores não se diferem em grande medida daquilo que as Secretarias da

Educação direcionam ao ensino regular, ou seja, daquilo que é oferecido aos alunos que cursam a

série/ano de acordo com a idade ‘apropriada’. A falta de orientações que se dirijam e que respeitem

a especificidade da EJA na educação básica, acabou deixando a cargo de cada escola, junto a sua

comunidade docente, orientar e definir as medidas que seriam implementadas para promover o

ensino-aprendizagem dos educandos, que devem ser tratadas com a responsabilidade e o

comprometimento necessário a essa modalidade de ensino. 

Os educandos da EJA, são pessoas que não dispuseram durante um longo período do acesso

à educação, e isso representa durante toda a vida um divisor de águas entre os cidadãos. Vislumbrar

uma ruptura com a exclusão de inúmeros jovens, adultos e idosos, que hoje representam mais de

50% da população brasileira que foi marginalizada e não concluíram a educação básica, segundo os

dados divulgados pelo IBGE em pesquisas recentes (2019), é ter em vista a importância das

políticas públicas que visam a universalização do ensino e atuar como educadores ativos,

preservando os direitos historicamente conquistados no âmbito da EJA e resguardando a sua função

reparadora, como forma de resgatar um direito negado, o que apenas se realiza através da promoção

de espaços democráticos, em que as diferenças, as especificidades, e a equidade seja buscada como

forma de se garantir a promoção da resistência frente às inúmeras desigualdades sociais,

econômicas e culturais, a fim de se efetivar a educação, ou seja, um caminho de desenvolvimento

humano para todas as pessoas e em todas as idades.


Principalmente desde a Constituição de 1988, educadores alinhados à sociedade civil, têm-

se esforçado para que a EJA seja colocada na agenda do dia no que se refere à educação, no entanto,

a preocupação com a garantia dos direitos sociais, entre eles, a educação ao longo da vida, têm sido

limitadas às políticas de ajuste macroeconômico e pela redefinição do papel do Estado (DI

PIERRO; HADDAD. 2015, p. 99). Hoje, com o cenário neoliberalista que se configurou no Brasil,

as políticas para a EJA são cada vez mais esvaziadas, o escamoteamento desse direito é ainda mais

visível nesse contexto de pandemia.

Afirmamos que a desescolarização da EJA está posta na ordem do dia. Isso fica claro

quando analisamos o contexto que a pandemia escancara: que a educação não é mais algo para

todos. Esse novo projeto de educação, que rompe com as noções de universalidade, têm sido um

projeto posto em curso no Brasil desde o golpe de 2016. Muitos são os novos projetos e as novas

reformas promovidas no âmbito da educação, a oficialização da pedagogia das competências, a

reforma do Ensino Médio, o avanço da EAD, a falta de políticas públicas que garantem o direito ao

acesso universal à educação para as minorias, como os estudantes do campo, quilombolas,

indígenas,  são processos que nos deixam em alerta frente à novas legislações que representam

desde 2017 verdadeiros esforços para pôr em curso novas formas de exclusão.

 Diante da rapidez com a qual os governantes, as Secretarias da Educação e os municípios se

organizaram junto ao capital educacional para promover o ensino remoto, devemos enquanto

educadores questionar esses movimentos que promovem a venda da educação, para traçar novos

caminhos alternativos frente a ruptura que o ensino remoto promove com o direito fundamental da

EJA, qual seja, o de garantir a experiência educacional e o ensino-aprendizagem para todos. Vemos

o aprofundamento das desigualdades e da exclusão como pontos principais que se desenvolvem na

experiência do ensino remoto, e como educadores, buscamos formas de constituir a nossa prática

diantes dessas questões que nos são apresentadas. 

Em nossa experiência como educadores da Educação de Jovens e Adultos, buscamos

desenvolver nossa prática de ensino amparadas primeiramente em ações de resistência,

responsabilidade e ousadia. A promoção de ações que não limitam a educação à interesses

econômicos e privatistas, é essencial para traçarmos ações que fortaleçam a formação integral dos

sujeitos e a articulação com a realidade por eles experienciadas, para que os educandos sejam
conduzidos para uma formação não instrumental, que não se limite a experiência do trabalho (DI

PIERRO; HADDAD. 2015, p. 205). O uso selecionado de aplicativos, plataformas e softwares

livres se mostrou um grande aliado à esse processo, pois defendemos a importância de nos

posicionarmos contra o capital educacional e contra o gerenciamento e o armazenamento de nossos

dados. Todos os dias, desde a hora que acordamos, todas as atividades que desenvolvemos junto aos

equipamentos tecnológicos como computador, celular, tablet, que necessitam ou não do uso da

internet, coletam a todo instante nossos rastros informacionais, que descrevem e caracterizam o

nosso perfil e as nossas atividades diárias.

Essas informações, são de alto valor para as grandes empresas, e hoje são também

valiosíssimas para os grandes conglomerados educacionais, que investem milhões para a obtenção

desses dados, cuja finalidade é obter lucros gigantescos ao conhecer de antemão o seu perfil de

clientes. Preocupados em preservar os nossos dados e os de nossos educandos, construímos como

um grande aliado à nossa prática de ensino a comunicação via Telegram, que é um software livre e

extremamente seguro, o que o configura como uma excelente ferramenta para uso pedagógico.

Entre as suas funcionalidades podemos destacar o fato de possuir criptografia de alto padrão,

armazenar mídias e mensagens na nuvem, o uso de username ao invés do uso do número do

telefone, são características que aumentam a privacidade dos educadores e dos educandos, que

quando comparadas a outros softwares desenvolvidos para esse fim, garantem a superioridade

técnica do Telegram.

Na experiência do uso pedagógico, destacamos que esse software atendeu muito bem a

comunicação com os educandos, e o envio e compartilhamento de links e materiais nos mais

diversos formatos, sem que a privacidade de algum participante ficasse exposta ou ameaçada. Os

alunos recebem as orientações para realizarem o download do software e entram na sala das

disciplinas no Telegram por meio dos links enviados via e-mail, sendo encaminhado diretamente

para dentro do grupo. Com isso, eles têm acesso aos professores e aos seus pares, podem receber e

enviar mensagens, textos, links, áudio, vídeos, imagens, e compartilhar arquivos em PDFs,

planilhas, docs, podcasts, entre outros. Os educadores, realizam o acolhimento dos alunos, explicam

como está sendo a organização das atividades e oferecem uma série de materiais de estudos e

atividades que fomentem o debate, a discussão e o processo de ensino-aprendizagem. 


Com a necessidade de realizar o atendimento remoto, houve uma grande preocupação dos

educadores em elaborar materiais de estudos e atividades adaptadas às especificidades e as

particularidades de cada aluno, e até mesmo as suas limitações, pois muitos não possuem as

ferramentas necessárias para realizar certas atividades que necessitam de muitos recursos, devido ao

acesso limitado à internet e ao celular. O uso de recursos físicos e digitais disponíveis em

plataformas gratuitas são buscados para auxiliar a compreensão dos alunos, quando realizadas

remotamente, essas atividades são pensadas de uma maneira que possam ser acompanhadas e

produzam significados pelos educandos, são ofertadas junto a materiais de estudos com dicas,

curiosidades, de maneira que incentivem a sua participação como sujeitos desse aprendizado.

Notamos que a mediação dos educadores e a intencionalidade com a qual a prática pedagógica é

orientada faz toda a diferença nos processos de ensino-aprendizagem que visam a formação humana

e a emancipação dos sujeitos, pois mesmo em um contexto tão excludente como o que vivenciamos

hoje, cabe ao professor e a comunidade escolar buscar ferramentas e caminhos alternativos frente

aos diversos ataques com os quais precisamos lidar continuamente. 

Na realidade da nossa escola, a preocupação com a inserção tecnológica dos nossos

educandos datam de um longo período, o que nos permitiu desenvolver aulas, oficinas, rodas de

conversa e espaços que visam incluir e promover também a alfabetização digital. Isso é realizado

principalmente juntos aos educadores e projetos que desenvolvemos na sala de leitura, onde pessoas

que nunca tiveram a oportunidade de aprender a usar um computador e a internet são estimulados a

desenvolver essa formação. Grande parte das atividades de apoio pedagógico a alunos com grandes

dificuldades de aprendizagem são realizados em nossa escola tendo a tecnológica como uma

ferramenta aliada, pois compreendemos que a alfabetização não se realiza apenas no sentido de ler e

escrever, é preciso que os educandos desenvolvam a capacidade de ler e compreender o seu mundo

e a sociedade em que vivem.  

Em uma sociedade cada vez mais permeada pelo uso das tecnologias, sabemos o quanto a

falta dessa formação compactua com os processos de exclusão e marginalização, pois a sua ausência

dificulta o acesso ao conhecimento e a informações verdadeiras, em um mundo cada vez mais

manipulado pelas fake news. Adotamos desde 2012 o uso do blog escolar em uma plataforma de

sistema livre e aberto, em que efetuamos a gestão dos conteúdos pedagógicos da escola para acesso
dos alunos na internet. A facilidade do uso do blog e a sua versatilidade, permitiram a sua

configuração como um ambiente virtual de aprendizagem livre e comunitária, onde os alunos são

estimulados desde o ensino presencial a escrever sobre suas experiências, sobre a sua formação e

sobre temas de seus interesses. O blog reúne diversas postagens com contribuições de toda a

comunidade escolar, compreendemos que a responsabilidade pela formação humana é uma tarefa de

todos, e todos possuem a capacidade de contribuir para isso. No blog abordamos temas que se

relacionam com a experiência e com as histórias de vida dos educandos, trazemos a voz de pessoas

que resistem e buscam ferramentas para enfrentar diferentes contextos de luta, como o desemprego,

a marginalização, a falta de acesso a terra, a moradia, e a alimentação.

A troca de experiências e ideias, aliadas a uma perspectiva crítica de transformação da

realidade, transformaram o nosso blog em um local de aprendizagem e formação humana, onde por

meio de atividades desenvolvidas a partir das postagens, mostramos ser possível promover a

inclusão escolar e tecnológica. Com coragem, fazemos desse pequeno espaço um local de

propagação do conhecimento, de acolhimento, de debates e interações, que se ampliam e

transpassam barreiras físicas. Defendemos que não adianta ofertar diversas possibilidades de

aprendizagem aos educandos se o sujeito da escolha não se torna no processo educativo cada vez

mais livre, se ele é permeado por tecnologias que assumem uma natureza excludente.

Consequentemente, muitos são os conhecimentos exigidos dos professores e dos educandos

para lidar com tantas inovações, mas esse processo se torna prazeroso quando a troca de

conhecimentos e o diálogo é recíproco. Na EJA, o educador precisa ter um conhecimento múltiplo e

interdisciplinar, para formar sujeitos capazes de transitar na sociedade, o que exige a compreensão

daquilo que é produzido e circula socialmente. Fazer da prática docente uma práxis libertadora, é

substituir as visões monoculturais do saber, que visam orientar a educação para o trabalho. No lugar

dessa perspectiva, devemos fomentar aquilo que Santos (2007) chama de uma ‘ecologia dos

saberes’, para promover o diálogo entre o conhecimento científico e os diferentes saberes que os

educandos da EJA trazem para a formação escolar. A mediação com o uso das tecnologias, deve sim

ser empregada, mas ela não é a única alternativa possível. Nesse contexto de aulas remotas, não

deve-se se perder de vista a quem a educação à distância serve, quem são os maiores interessados

em sua capitalização, porque diante desse contexto de pandemia ela é a única alternativa que nos foi
apresentada. Na experiência como educador da EJA, torna-se evidente que a busca por diferentes

saberes, a troca de experiência e vivências, é o que existe de mais subversivo na EJA, pois se a

criança pode ser estimulada a conhecer e a ser curioso sobre o mundo, imagine o quanto o

conhecimento trazido pelo público da EJA pode fomentar elementos emancipadores.

A ruptura com processos lineares que visam colonizar as nossas mentes, demonstram a

singularidade e o significado do fazer-se docente em relação recíproca com o educando. É certo que

as inovações, modificaram os lugares dos saberes, mas enquanto educadores, permanecemos ativos

diante da certeza que podemos fomentar a educação e a formação humana em diferentes espaços,

pois ao contrário das concepções finalistas que escutamos por todos os cantos, que reproduzem uma

visão ideológica da educação, baseadas em uma concepção elitista que afirma que nos dias de hoje

é impossível promover a educação para todos, permanecemos convencidos da nossa escolha: a de

não perder de vista um horizonte de superação e transformação, que envolvem desenvolver

caminhos de resistências para além das dimensões individuais, pois essa formação depende da

ruptura com dimensões excludentes pelas quais os homens objetivam hoje a sua existência.

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