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Morgan1
Introdução
Em um artigo sobre o racismo para o jornal Guardian, no dia 4 de março de 2000, C. Grayling
escreveu:
É uma ironia que, embora o racismo seja uma realidade, e uma realidade dura,
a própria raça seja completamente ficcional. Ela não tem base genética ou
biológica. Todos os seres humanos estão intimamente relacionados uns aos
outros e, ao mesmo tempo, cada ser humano é único. Não apenas o conceito de
raça é inteiramente artificial, mas também é novo; ainda assim, em sua curta
existência, como a maioria das mentiras e absurdos correntes entre nós, ele
causou uma montanha de danos (Grayling 2000).
Este capítulo, portanto, constitui uma tentativa de pensar sobre como e por quê. Para
fazer isso, retornei à vinheta clínica que apresentei no artigo anterior – meu trabalho com Dee,
uma mulher negra que acompanhei de três a quatro vezes por semana durante alguns anos.
1 Capítulo 14 do livro The cultural complex: contemporary jungian perspectives on psyche and society,
organizado por Thomas Singer & Samuel L. Kimbles. Tradução: Daniel Françoli Yago.
Neste material, há dois pequenos "lapsos" que continuam a me interessar. É como se dois
pequenos buracos se abrissem no solo da consciência egoica, de modo que aqui quero cavar
mais a fundo nestes espaços criados para ver se eles podem ajudar a iluminar o que poderia ser
chamado de camadas racistas da psique inconsciente.
Histórico clínico
Dee era a mais velha de quatro irmãos que vieram de uma família religiosa em que uma
disciplina rigorosa foi imposta a todos os filhos. Esta disciplina era às vezes dura e muitas vezes
vivenciada como arbitrária, ao que Dee respondia recuando para seu mundo interno de fantasia,
distante de sua família. Foi só na adolescência que descobriu que ela tinha sido adotada quando
tinha 6 meses de idade. Sua mãe biológica engravidou ainda jovem e o bebê tinha sido adotado
pela irmã que acabava de se casar. As pessoas, portanto, que Dee cresceu acreditando serem
seus pais, eram, na verdade, sua tia e seu tio. A mãe biológica sumiu após ter perdido qualquer
contato e o casal que adotou Dee teve três filhos por conta própria. A identidade do pai biológico
não era conhecida pelos pais adotivos.
Por alguns meses em terapia, Dee era educada e se esforçava para agradar, mas não
parecíamos estar realmente contectadas uma na outra. Foi somente após uma primeira longa
pausa que alguma negatividade surgiu quando ela começou a perder sessões ocasionais. Isso foi
interpretado como uma expressão de raiva e uma reconstituição de seu "desaparecimento" da
família quando criança, mas isso permaneceu como um entendimento teórico que não foi
sentido por nenhuma de nós. Gradualmente, fiquei ci ente de um sentimento em mim nas suas
sessões que queria que ela partisse. Um dia, quando olhei para ela no divã, a frase "um estranho
no ninho" [a cuckoo in the nest] veio à minha mente. Percebi que o pensamento mais particular
era de que ela era uma "estranha no meu ninho" e eu não queria que ela estivesse lá.
Os pensamentos negativos sobre pacientes geralmente são aceitos, até mesmo bem-
vindos, como respostas de contratransferência, e úteis, portanto, por iluminar o que pode estar
acontecendo. Desta vez, o pensamento foi experimentado como intrusivo, externo e indesejável
e era difícil para mim sustentá-lo. Depois de um tempo, eu disse que parecia haver um desejo
na sala para que não estivéssemos juntas. Dee ficou claramente aliviada e começou a falar sobre
o seu crescente senso de que ela não pertencia a mim, que estar em terapia era uma traição de
si mesma e que talvez não fosse certo para ela. Durante as próximas semanas, ela atacou
verbalmente a terapia de forma desdenhosa, descrevendo-a como tirânica e contra o
pensamento das pessoas. Em um ponto, ela estava dizendo como ela temia que eu fosse
“embranquecê-la” [whitewash] 2, quando ela queria ter dito "fizesse lavagem cerebral"
[brainwash].
Para Dee, a perda precoce da mãe e tenuidade tardia sentida no vínculo com sua mãe
adotiva era a dor que se encontrava no centro de dela mesma. Ela era, em muitos sentidos, a
estranha no ninho e não uma parte real da família; ela não era consciente da razão disso. Ela
tinha que ser boa para manter o amor de sua mãe, mas continuava sendo espancada por crimes
que ela frequentemente não entendia. Sua raiva não tinha expressão e ela precisava se defender
contra pensamentos de irritação e destruição no caso de ela ser completamente rejeitada. Ela
podia lidar com a situação apenas recuando para um mundo de fantasia e para ideações
suicidas, pois sua única maneira de fazer sentido era imaginar que havia algo de
fundamentalmente errado com ela.
Dessa forma, então, estavam dois indivíduos juntos em uma sala no noroeste de Londres
ao final do século XX. Ambas foram bem-educadas e acostumadas ao multiculturalismo de um
mundo encolhido pelas telecomunicações e pela migração, ambas se descrevendo como liberais
de pensamento. Nesta relação, dois pensamentos pequenos e malformados seguiram seu
caminho, cada um indesejado a seu modo, mas cada um sucedendo em passar por defesas e
2 A tradução deste ato falho (de “whitewash” para “brainwash”) para o português certamente não soará
tão fluída como no original em inglês. Whitewash é um termo anglófono corrente nos estudos sobre
racismo e diz respeito a ações de “embranquecimento” de pautas, vivências e opressões específicas da
negritude, isto é, ações que desconsideram ou distorcem a existência de especificidades sócio -culturais
do lugar de fala das pessoas negras. Também alude, embora menos frequentemente, ao caráter político
de práticas estéticas de embranquecimento de pele para fins de passabilidade branca. Em um sentido
puramente literal, como o texto mostrará a seguir, “to whitewash” pode significar alvejar ou até quarar,
ambos verbos relacionados a tornar um objeto, como um tec ido, mais branco, assim como “whitewash”,
enquanto substantivo, significa cal (N. do T.).
rachaduras da consciência do ego de cada pensadora. Como foi abordado, cada ideia, uma
falada e outra apenas pensava, informou uma compreensão mais profunda das vicissitudes
particulares da psique pessoal de Dee e também da relação inconsciente de transferência-
contratransferência entre nós.
A conhecida frase "estranho no ninho", em inglês “cuckoo in the nest”, literalmente “cuco no
ninho”, refere-se ao atributo pelo qual o cuco é bem conhecido: o parasitismo das crias. O cuco
não constrói seu próprio ninho, mas coloca seus ovos isoladamente nos ninhos de outras
espécies de aves. Os ovos são então incubados e inconscientemente criados pelos pais adotivos.
De acordo com a Enciclopédia Britânica, diversas adaptações aumentam as chances de
sobrevivência do ovo. São elas:
O ninho é um lugar de retiro, nossa casa confortável, o lugar onde pertencemos. Nós
"construímos nosso próprio ninho" e lá estabelecemos aquilo pelo que trabalhamos e salvamos,
o nosso bom e pequenino ovo. Ouçamos a retórica atual do Reino Unido em relação aos
requerentes de asilo e poderemos escutar o medo do pássaro em seu ninho. Os britânicos vivem
com o privilégio de uma prosperidade a qual se agarrar, temerosos dos intrusos que os roubarão
e dos ataques invejosos do outro. A introdução da noção do "falso" requerente de asilo em
oposição ao "genuíno" legitima esse medo e, ao mesmo tempo, permite que os britânicos
mantenham uma percepção de si mesmos como generosos e hospitaleiros para aqueles
considerados dignos de sua aceitação. A imagem do "falso" convoca a farsa, o impostor que
poderia explorar a inocência do povo e induzi-los a compartilhar suas tão suadas riquezas ao
menor sinal de relaxamento da vigilância. Este intruso pode contaminar o ninho, usurpar o filho
legítimo e substituí-lo pelo estrangeiro. A ganância do bebê é um abuso da beneficência da mãe
e, como tal, é um sacrilégio. Ele vai engolir os batalhados recursos do povo enquanto falam sobre
trabalho para alimentar esse impostor e parecer tolo.
Quando colocamos os elementos projetivos desse medo sob este prisma, eles se tornam
evidentes. Se há um estranho que entrou no ninho do outro, saqueou seus recursos, se
alimentou de suas terras e deslocou seus filhos, este estranho é o povo europeu. Parte
substancial da construção deste ninho passou pela exploração dos países em desenvolvimento.
A prosperidade que desfrutamos no Ocidente foi grandemente saqueada das colônias, da
escravidão e da exploração e continua através da manutenção da desigualdade pelas relações
econômicas atuais. Mas ainda mais profundo que isto é o privilégio da pele branca em si. Parece
ser um grande privilégio de fato, e deve, consequentemente, estar guardado no fundo dos
reinos seguros do inconsciente.
Por que o fato aparentemente trivial de nascer com a pele de um matiz mais leve
constitui tal privilégio? Como essa situação foi criada? A história do racismo é a história da
construção de uma ideia, de uma maneira de fazer divisões, de categorizar, que então se tornou
tão presente em nossos modos de perceber o mundo que faz parecer que nenhuma outra visão
seja possível. O conceito de "raça" em si, a divisão da humanidade em grupos que podem ser
definidos pela aparência, é apenas uma ideia, mas passou a ser talvez a mais poderosa das
implicações que a mente humana já concebeu. A história desta ideia mostra que é uma
concepção da mente europeia que, em seu domínio, assegurou o direito de dizer como o mundo
deveria ser dividido e, ao fazê-lo, atribuiu-se da supremacia. Como Joel Kovel observa:
O mundo não é nem preto nem branco, mas colorido. As pessoas de cor clara –
auxiliadas talvez por fantasias derivadas de sua cor de pele – vieram a dominar
o mundo inteiro e, no processo, se definiram como brancas. O processo que
gerou esse poder branco também gerou medo e terror pelo negro. (Kovel 1988:
95)
É comum para muitas culturas que a noção de "branco" carregue consigo pensamentos de luz,
pureza, inocência e divindade. "Negro", por outro lado, é frequentemente associado ao escuro,
à merda, à sujeira e ao diabo. Uma vez que os corpos claros se definiram como brancos e os
negros como negros, as respectivas associações foram apropriadas e ligadas aos povos. Como
Hillman (1986) explora detalhadamente em seu artigo "Notes on White Supremacy" [Notas
sobre a supremacia branca], o branco e o preto não são opostos em si mesmos, mas foram
criados desta maneira pelo branco: "O branco projeta sua própria sombra branca". Essa
conclusão poderia ser melhorada ao dizermos: "o branco vê sua própria sombra no negro", não
porque se oponham inerentemente, mas porque está arquetipicamente dado que a
branquitude imagine através de oposições. Digamos novamente: a supremacia do branco
depende da imaginação oposicional (Hillman 1986: 13).
Ao definir branco e preto, uma oposição é criada. Ao associar o bem com um e o mal
com o outro, ao corporificar a diferença fixando-a na natureza inalterável de nossos envoltórios,
a supremacia branca tornou-se estável e inatacável. Dessa forma, justificou-se também a
dominação do outro, o estabelecimento do privilégio branco. A filosofia, a religião e a ciência
têm sido empregadas para reforçar esse privilégio, a ciência assegurando-nos de que a
fisionomia e a frenologia nos dizem que somos aquilo que aparentamos, a superficialidade,
define não só quem somos e quem não somos, mas também uma hierarquia de qualidade e,
portanto, de privilégio justificado.
A religião também teve um papel importante na afirmação da supremacia branca. Uma
pequena história no Antigo Testamento da Bíblia adquiriu uma grande significação neste tópico.
Esta história conta como Ham falhou em cobrir seus olhos e viu seu pai, Noé, nu e bêbado e,
como consequência, Deus amaldiçoou os descendentes de Ham e de seu filho Canaã. A maldição
condenou todas as gerações futuras da linha de Ham a servidão aos filhos dos outros filhos
obedientes. Assim, a manutenção de escravos foi validada. Na verdade, ao ser endossada pelo
próprio Deus, a escravidão tornou-se quase um dever.
O embranquecimento
A história da supremacia branca não foi contada somente por brancos para brancos, pois foi
essencial para que os negros aprendessem também suas histórias – e a aprendessem bem. O
privilégio da pele branca e a inferioridade da pele negra é uma mensagem que vem através da
mídia, através de nossas instituições, através de nossas profissões. A onipresença de tal
mensagem penetra em todos nós, não deixando nem branco nem negro imunes a ela. Tal
mensagem certamente terá seu preço, um preço a ser pago pelo indivíduo negro sobre o qual
Frantz Fanon escreve:
(Como um aparte – pois não é o foco deste capítulo – vale a pena notar como essa ideia de
encontrar valor no que é ruim ecoa de uma forma que a linguagem seja continuamente
derrubada pela cultura moderna e negra da juventude, segundo a qual termos como "perversos"
[wicked] e "maus" [bad] 3 são usados para expressar o seu oposto, algo que é de valor.) O livro
Cobrir com cal, caiar; dar uma aparência justa; tomar medidas para limpar a
mancha de (uma reputação), encobrir (um delito oficioso) ou reabilitar (uma
pessoa) no olho do público; vencer (um oponente) de forma tão decisiva em um
jogo que ele ou ela não consiga pontuar.
Na terapia com Dee, seu lapso inconsciente de "lavagem cerebral" [ brainwash] para
"embranquecimento” [whitewash] abriu espaço para a questão de seu relacionamento com a
cor – tanto dela quanto a minha. Ela estava inicialmente chocada com a ideia de que estava se
relacionando comigo através de um poder imperial e colonial que poderia tomar conta dela
através da minha mente. Logo após isso, ela começou a expressar um desprezo pela negritude.
Ela disse que esteve secretamente aliviada por eu ser branca quando ela me conheceu pela
primeira vez por ter a sensação de que um terapeuta negro seria inferior e ela queria o melhor.
Ela estava profundamente envergonhada com esses sentimentos enquanto uma mulher que era
politicamente consciente e impassível com o mimetismo 4 que ela via em alguns negros.
de estudos nos anos 80 em diante nas ciências humanas pelos estudos queer, pós -coloniais,
multiculturais, etc. (N. do T.)
4 “Mimicry”, aqui traduzido como mimetismo, diz respeito ao comportamento, de forte implicação
cultural e política, de “passar-se” por algo que não se é visando não se destacar por marcas sociais de
identidade fora do que a norma social consi dera como superior ou simplesmente ideal. Vale recordar,
contudo, que o termo “mimicry” foi consagrado como “mímica” em grande parte das traduções brasileiras
de livros de teoria social crítica, mas querendo dizer algo oposto. Tanto para autoras como Luce Irigaray
(no caso do feminismo), quanto para autores como Homi Bhabha (no caso do pós -colonialismo), a
“mímica” difere do “mimetismo” por constituir uma estratégia de enfrentamento da norma, seja sexual,
seja racial, ao invés de adquirir uma simples passabilidade a ela. O provável pai desta visão de mímica é o
mesmo Frantz Fanon, já citado no texto, em Pele Negra, Máscaras Brancas e em Condenados da Terra .
Entende-se que na “mímica” o comportamento de cópia é assumido não de forma acrítica e assujeitada,
mas visando a paródia, a ironia, a subversão desde dentro, a salutar descontextualização, para resistir à
norma, fornecendo outras possibilidades de criação cultural. No contexto das psicologias analíticas, a
“mímica”, ao contrário da “mimetização”, é uma função trickster por excelência. (N. do T.)
O fato de ser negra em uma sociedade branca deu forma ao seu sentido pessoal de não
pertencimento. Suas experiências de racismo forneceram uma confirmação inconsciente de que
ela era "má" e merecia punição. Apesar do alinhamento político com o movimento negro, seu
sentido interno permaneceu o de ser uma estranha, de estar errada e de alguma forma suja.
Branco significava pertencimento e branco significava que aquilo que ela não era: boa, bem-
sucedida e dotada de valor. Minha branquitude significava que ela poderia chegar perto da fonte
do que era bom, mas que tinha de tomar cuidado para que ela não me antagonizasse com
qualquer exposição de sua raiva "ruim".
Essa atitude complexa para com ela e para mim estava claramente relacionada a sua
história pessoal, mas também ilustra algo do dilema da pessoa negra em uma sociedade branca.
Se o que se declara como bom é branco, então quanto mais claro alguém se torna, mais se pode
ganhar aceitação. A mancha e a falta estão na negritude e, portanto, elas devem ser
embranquecidas; entretanto, ao se alvejar, o indivíduo é perdido, assim como o próprio valor
da negritude. Há uma erradicação, uma aniquilação da diversidade quando a camada de cal é
espalhada. Neste jogo, o preto é combatido tão decisivamente pelo branqueador que "ele ou
ela falham em pontuar".
Quando colocamos esses dois medos um ao lado do outro, começamos a ver a natureza
projetiva de ambas as fantasias, bem como a relação intrincada entre ambos. Em seu livro Taking
the Group Seriously, Farhad Dalal afirma:
A insígnia branca é pintada contra um fundo branco e é, portanto, tornada invisível. Aqueles
considerados não brancos, os "outros", são empurrados para as margens e enegrecidos. São
aqueles no centro que se tornaram embranquecidos como pagamento pelo privilégio, enquanto
as bordas negras são temidas como potenciais intrusos e ladrões de ninho. É, eu acredito, essa
relação que os dois pensamentos indesejados, os meus e os de Dee, se referem. E, enquanto
são pensamentos que lançam luz sobre o sistema de projeção e identificação projetiva vivem na
esfera do inconsciente pessoal, meu argumento é que o sistema pessoal busca e é formado pela
teia mais ampla de símbolos, mitos e línguas dentro do qual existe.
A questão que agora emerge se dedica a entender como esta rede pode atuar dentro da psique.
Para os junguianos, o lugar óbvio para onde se voltar é o conceito de inconsciente coletivo e dos
arquétipos, mas acho que devemos tomar cuidado. Pois é fácil nos e squecermos que os
arquétipos são diretamente incognoscíveis e irrepresentáveis. Nunca vemos um arquétipo,
podemos ver apenas a imagem; eles não são a mesma coisa. Como o próprio Jung diz:
Esta formulação se livra da acusação às vezes trazida contra Jung de que ele era
um lamarckiano, acreditando na herança das características adquiridas. O que é
adquirido é uma predisposição, não uma ideia; uma predisposição para criar
mitos significativos fora dos aspectos comuns da experiência do dia-a-dia... É
verdade que, em outros contextos, Jung escreve como se acreditasse que a
cultura afetasse essas predisposições; mais especialmente quando ele postula
diferenças raciais no inconsciente coletivo: mas estes mais parecem ser
acréscimos posteriores. (Storr 1986: 40)
Esses “acréscimos posteriores" não devem levianamente descreditados na medida em que eles
mostram como até mesmo o criador de uma ideia pode usá-la mal para reafirmar um
preconceito. O próprio Dalal escreveu um intenso texto originalmente chamado de "The Racism
of Jung", em que ele examina muito do que Jung escreveu sobre os chamados "primitivos"
(Dalal, 1988). Michael Vannoy Adams também considerou este assunto importante em seu livro
The Multicultural Imagination: "Race", Color and the Inconscious, e os convido a ler ambos,
embora esta não seja uma experiência confortável (Vannoy Adams, 1996).
O ponto aqui não é atacar Jung, mas imaginarmos nosso próprio silêncio em rel ação à
natureza racista de grande parte do que ele diz sobre os outros dos europeus em particular e a
questão da cor em geral. E para levantar a questão de saber se existem implicações para a teoria
à qual subscrevemos. Jung foi bastante enfático sobre a psique do "primitivo", pois ele se
perguntava sobre o perigo para o homem branco de "enegrecer" por meio de contaminação, o
qual foi ligado por ele, em grande parte de seus pronunciamentos, ao inconsciente coletivo.
Poderíamos deixar de lado o constrangimento das palavras de nosso fundador e chamá-lo de
um homem de seu tempo, pois estaríamos realmente olhando para trás para um homem que
fala desde a primeira metade do século XX a partir de um diálogo linguístico que já se alterou.
Mas, ao fazê-lo, não estaríamos aceitando que o pensamento e a imagem são construídos,
ambos contingentes e mutáveis? E como é que conseguimos unir isso à universalidade
atemporal do arquétipo?
Parece-me que o modelo junguiano da psique concebe uma grande brecha entre o inconsciente
pessoal e coletivo – um espaço que pode ser preenchido com materiais questionáveis e até
mesmo perigosos. Joseph Henderson (1990) introduziu a ideia do inconsciente cultural como
uma camada adicional da psique. Adams assume essa ideia, exceto por ele acreditar que ele
ainda é parte do inconsciente coletivo. No entanto, isso suporia que as culturas são entidades
discretas, como se a nossa ideia de pertença a elas não fosse problemática, enquanto que, de
fato, os grupos, as nossas culturas, com as quais identificamos e que determinam nossa
identidade são muitos e eles geralmente se sobrepõem e podem ser conflitantes.
Posso localizar minha cultura geograficamente na Grã-Bretanha, mas para que isso
tenha algum significado, as questões de classe, gênero, cor, etnia e muitos outros devem ser
instantaneamente levantados. O contexto determinará qual forma particular de identificação
estará em primeiro plano. Cada forma de categorização traz um manto de homogeneidade
sobre o "nós" e o "eles", de modo que, naquele momento, as diferenças entre aqueles do
"nosso" grupo se perdem. Cada agrupamento tem suas próprias normas culturais e seu próprio
inconsciente cultural. Em termos pós-estruturalistas, eles são discursos e todos nós
pertencemos a uma multiplicidade de discursos, e não somente pertencemos como estamos
neles e eles estão em nós. Nós definimos e somos definidos pela interação de um multiverso de
discursos culturais.
Dalal postula e desenvolve o conceito que ele chama de inconsciente social. Ele
considera que ele:
Inclui, mas é maior que, o que pode ser chamado de inconsciente cultural. E...
Que estamos sujeitos a mais de um discurso por vez – nenhum de nós é
monocultural. O inconsciente social, como eu o penso, inclui as relações de
poder entre os discursos. Esta ordenação também é inconsciente. Isso dá ao
inconsciente social a aparência de ser absoluto – o que não é, ele ainda é um
discurso. (Dalal 1998: 212)
Isso sugere uma maneira de pensar sobre a estrutura da psique inconsciente, segundo a qual
pode-se dizer que o inconsciente coletivo inclui o inconsciente cultural dos discursos particulares
que, por sua vez, está contido num nível social que ordena as relações de poder entre os
discursos. Dalal discordaria, mas acredito que podemos considerar um estrato subjacente a esta
das formas arquetípicas ou predisposições, e é à medida que o arquetípico se move através dos
filtros sociais, culturais e pessoais do inconsciente que ele se preenche com uma imagem ou
uma ideia que emerge na consciência.
Manter uma insistência no arquétipo como "predisposição" pode nos ajudar a sustentar
a experiência interna e a diminuir a probabilidade de sua projeção no objeto externo. Assim,
retornando ao meu medo do estranho, do cuco, no ninho, a compulsão é culpar o outro como
um objeto real que traz meu medo à existência. É o meu medo que é a experiência e o meu
senso de privilégio inconsciente que sou obrigada a proteger, que invoca e dá forma à ameaça
imaginada e chama isso de "cuco". Pode ser que esse medo seja arquetípico, como, talvez, seja
o medo do embranquecimento. Ou melhor, talvez possamos vê-los como um par de medos que
criam a ligação arquetípica nesse relacionamento entre o centro e as margens.
Obviamente, a própria psicologia analítica possui uma cultura ou um discurso particular. Eu não
posso falar por outras organizações, mas dentro da minha própria referência os números de
treinamentos de pessoas que são de minorias étnicas e negras são baixos e eu sugiro que é
importante nos perguntarmos por quê. Importa não só porque podemos ser capturados em uma
forma de racismo institucionalizado, mas porque pode significar que nós desenvolvemos e
estamos em conflito com uma maneira de pensar sobre a psique humana que
inconscientemente mantém uma supremacia eurocêntrica e branca. A abertura desta visão por
meio do que é excluído tem possibilidades difíceis, mas interessantes.
Um artigo de Bob Young sobre o quão pouco a questão do racismo é abordada nas
organizações de treinamento é subtitulada "A Loud Silence" [Um silêncio ensurdecedor] (Young,
1994). O centro não é apenas um lugar onde a insígnia branca é invisível, mas também é um
lugar muito silencioso onde tudo o que pode ser ouvido é a confirmação daqueles que são
considerados como "nós" e que o "nós" está certo. As perguntas desconfortáveis foram
empurradas para as margens onde eles podem gritar com vozes estridentes, ou desistir, calar a
boca e virar para outro lugar. É como se, para entrar no centro, um embranquecimento fosse
necessário – e logo a seguir a questão evanesce contra o fundo branco. Assim, o ruído
interessante vem das margens e só pode ser solicitado desde lá. Nós, no centro, precisamos nos
manter calados e ouvir, nós talvez precisemos nos esforçar para ouvir e poderemos arriscar
perder o privilégio do centro no processo, mas sugiro que um mundo mais interessante surge
quando todas as vozes são permitidas. Talvez seja hora de aplicar a "talking cure" à cultura que
é a nossa própria profissão.
Esta é uma cura difícil de administrar, pois nossos próprios ninhos são importantes para
nós e o medo do cuco é profundo. Não obstante, acho que o prêmio é a chance de tirar essas
camadas de "branquitude" e "negritude" com as quais nos cobrimos, permitindo um mundo
colorido.
RECONHECIMENTOS
Este capítulo foi primeiramente publicado (2002) no Journal of Analytical Psychology, 47 (4):
567–581.
REFERÊNCIAS
Henderson, J. (1990) “The Cultural Unconscious,” In J. Henderson, Shadow and Self, Wilmette,
IL: Chiron.
Jung, C.G. (1969) “Archetypes and the Collective Unconscious,” Collected Works, vol. 9, part 1,
Princeton, NJ: Princeton University Press.
Morgan, H. (1998) “Between Fear and Blindness: the White Therapist and the Black Patient”,
BAP Journal, 3(34): 48–61.
Vannoy Adams, M. (1996) The Multicultural Imagination: “Race”, Color, and the Unconscious,
London: Routledge.
Young, R. (1994) “Psychoanalysis and Racism: A Loud Silence,” Mental Space, London: Process
Press.