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Dimenstein, Magda; Macedo, João Paulo; Leite, Jáder Ferreira; Gomes, Maria Aparecida de França. Psicologia,
políticas públicas e práticas sociais: experiências em pesquisas participativas
Magda Dimenstein2
Resumo
As pesquisas participavas surgiram como alternativa aos modelos tradicionais de investigação. Pressupõem a participação de diversos atores,
o redirecionamento do foco sobre o outro para pesquisar com o outro, objetivando criar novos campos de sentido e possibilidades de intervenção
na realidade, além do compromisso de analisar as implicações do pesquisador e demais atores envolvidos no processo. Trata-se este artigo de
um ensaio teórico-metodológico em torno das experiências desenvolvidas com pesquisas participativas no âmbito das políticas públicas.
Primeiramente, abordamos os princípios fundantes da pesquisa participativa. Em seguida, destacamos as práticas de investigação participativa
desenvolvidas no âmbito das políticas públicas. Finalizamos discutindo a instituição pesquisada e problematizando o lugar da psicologia e sua
forma de produzir conhecimento no contexto das políticas de bem-estar social.
1
Trata-se de uma versão modificada do capítulo “Artimanhas e tessituras para uma universidade em movimento: experiências de pesquisa em
saúde”. In Scarparo H. B. K. (Org.). Gestão em saúde: experiências de campo e pesquisa em inserção social (p.17-39). Porto Alegre: Sulina,
2013.
2
Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Endereço:
mgdimenstein@gmail.com
3
Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí – Campus Parnaíba. Endereço: jpamacedo@ufpi.edu.br
4
Professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Endereço:
jaderfleite@gmail.com
5
Psicóloga da Secretaria Estadual de Saúde Pública do RN e Docente da Universidade Potiguar (UnP). Endereço: cidafrance@gmail.com
Dimenstein, Magda; Macedo, João Paulo; Leite, Jáder Ferreira; Gomes, Maria Aparecida de França. Psicologia,
políticas públicas e práticas sociais: experiências em pesquisas participativas
Abstract
Participatory research emerged as an alternative to traditional models of doing research. It requires the participation of various actors, as well
as the focus of redirection on the other, for research with others, aimed at creating new sense fields and possibilities of intervention in reality,
and a commitment to examine the implications of the researcher and other actors involved in the process. This article is a theoretical and
methodological essay on the experiences developed with participatory research within public policies. At first, we make an approach about the
founding principles of participatory investigations. In the following section, we highlight the participatory research practices developed within
public policies. We conclude by discussing the research institution and arguing the place of psychology and the way we produce knowledge in
the context of social welfare policies.
Resumen
La investigación participativa surgió como alternativa a los modelos tradicionales de hacer investigación. Se trata de un modelo de investigación
que asume la participación de otros actores en toda la investigación, es decir, no buscar sobre el otro, sino entre sí con el fin de crear nuevos
campos de significado y las posibilidades de intervención en su realidad, más allá de poner en el análisis de las implicaciones de la investigadora
y otras partes interesadas. Y en esto trabajo se propone un ensayo teórico-metodológico en torno a las experiencias desarrolladas en el contexto
de las políticas públicas. Primero cubrimos los principios fundacionales de la investigación participativa. A continuación, resáltelas prácticas
de investigación participativa que hemos desarrollado en el contexto de las políticas públicas. Terminamos la discusión mediante la colocación
de la entidad objeto de la investigación crítica y cuestionar el lugar de la psicología y de su modo de producción de conocimiento en el contexto
de las políticas de bienestar social.
Dimenstein, Magda; Macedo, João Paulo; Leite, Jáder Ferreira; Gomes, Maria Aparecida de França. Psicologia,
políticas públicas e práticas sociais: experiências em pesquisas participativas
Trata-se este artigo de um ensaio teórico- de conhecer e pesquisar. Entretanto, após a segunda
metodológico em torno das experiências Grande Guerra ocorreram algumas rupturas no
desenvolvidas pelo grupo de pesquisa com pesquisas campo da ciência em termos da verdade sobre o
participativas no âmbito das políticas públicas. método, a exemplo da crítica ao cientificismo
Nosso objetivo é explorar alguns marcadores ético- positivista tão presente nas ciências humanas.
políticos, conceitos e ferramentas que consideramos Assim, a realidade anteriormente compreendida a
imprescindíveis para afirmar uma proposta de partir de elementos objetivos, com explicações
pesquisa implicada: a) com a participação de outros causais e passíveis de generalização, passa a ser
atores no processo de investigação; b) com a compreendida desde muitas perspectivas a partir do
abertura de novas zonas de sentido e possibilidades surgimento de alternativas teórico-metodológicas no
de ação/intervenção dos participantes da campo da produção do conhecimento, a exemplo da
investigação em sua própria realidade; c) com a fenomenologia, do existencialismo e da pesquisa-
problematização das relações existentes entre o ação (Aguiar & Rocha, 2007). Assim, surgem outros
pesquisador, o ato de pesquisar e as práticas sociais objetos e métodos de pesquisa tais como a
que se engendram nesse processo. consciência – objeto de investigação das pesquisas
Estruturamos nossas reflexões abordando fenomenológicas e o conhecimento das
inicialmente os princípios fundantes da pesquisa multideterminações sociais de certos fenômenos –,
participativa, em especial daquelas de base objeto da pesquisa-ação (Paulon & Romagnoli,
interventiva, de modo a explorar o seu potencial para 2010; Aguiar & Rocha, 2007).
o campo das políticas públicas. Em seguida, destacar Para essas autoras, apesar das diferenças
as práticas de investigação participativa que temos entre as formas de compreender e explicar o mundo,
desenvolvido no âmbito das políticas públicas, com bem como em termos da maneira de como fazê-lo,
estudos voltados para o cotidiano dos serviços e das há alguns dispositivos conectores entre a pesquisa
equipes nos dispositivos de saúde mental e coletiva, experimental, a fenomenologia e a pesquisa-ação,
como também em contextos comunitários e áreas de que as coloca em um mesmo plano de compreensão.
assentamentos rurais e/ou populações quilombolas, Os principais conectores seriam o realismo, a busca
focando nos movimentos coletivos, formação de pela representação e a vontade de verdade que tais
militantes e nas relações de gênero como regimes de modelos buscam em seus programas de pesquisa e
produção subjetiva nesses espaços sociais. intervenção sobre a realidade investigada (Rocha &
Finalizamos a discussão colocando em análise a Aguiar, 2003; Paulon, 2005; Aguiar & Rocha, 2007;
instituição pesquisa e problematizando o lugar da Moraes, 2010; Paulon & Romagnoli, 2010).
Psicologia e sua forma de produzir conhecimento no Mesmo com diferenças marcantes entre
contexto das políticas de bem-estar social. uma e outra perspectiva, especialmente em termos
conceituais e metodológicos, para o conjunto de
Alguns princípios fundantes das autores anteriormente referidos, tanto a pesquisa
experimental quanto as de base fenomenológica,
pesquisas participativas bem como algumas modalidades da pesquisa-ação
partem da ideia de que o mundo e sua forma de
As pesquisas participativas são originárias acessá-lo deve ser “preciso, delimitado e definido”
das ciências humanas e surgem como alternativa para ser “plenamente conhecido por um sujeito do
crítica à tradicional forma de fazer pesquisa, a qual conhecimento” (Moraes, 2010, p. 33). Para lograr
dissocia a atividade de conhecer da realidade onde se êxito, o pesquisador precisa cumprir alguns
realiza; que separa sujeito e objeto do conhecimento parâmetros para executar tal tarefa. Primeiramente,
e, por fim, nega a complexidade e tudo aquilo que se é preciso que ele seja neutro, comedido e experiente,
refere a um campo de incertezas, ao contraditório, ao portanto competente o suficiente para abordar o real
múltiplo. Tais pressupostos se sustentam no com a distância necessária para garantir a precisão e
paradigma moderno de vontade da verdade e da o rigor que um trabalho de pesquisa exige. Segundo,
manutenção de certa neutralidade, que encontra no o modo de intervir se faz sobre o outro. É o
método científico o “instrumento por excelência pesquisador quem sabe a finalidade e o caminho da
para a explicitação das verdades do mundo” (Paulon investigação, portanto tenta seguir rigorosamente o
& Romagnoli, 2010, p. 87). previamente estabelecido, mesmo na pesquisa-ação,
A partir da modernidade, as abordagens que apesar de considerar a participação de outros
empíricas, amparadas pela pesquisa experimental, atores, ainda assim, a ação da pesquisa é sobre esse
passaram a ser o parâmetro científico para as formas
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outro que participa (Aguiar & Rocha, 2007; Paulon a intervenção leve à transformação não apenas do
& Romagnoli, 2010). interrogado ou respondente da pesquisa, mas
Na crítica desses modelos, discussões no também daquele que interroga (Passos, Kastrup &
campo das ciências humanas, a partir de Stengers Escócia, 2009).
(2002) e Prigogine (1996), têm se ocupado de A partir desses princípios, entendemos as
explorar outras verdades, ou melhor, outras versões pesquisas participantes como uma postura do
sobre a realidade, sobre o sujeito do conhecimento e pesquisador que não está apenas preocupado em
sobre seus modos de pesquisar e intervir no mundo. reunir os clássicos elementos de um “plano” de
Nesse sentido, é preciso considerar que não existe pesquisa de modo a garantir a participação de outros
somente uma realidade, ainda mais sendo esta atores na atividade de investigação e produção de
anterior e independente do sujeito do conhecimento. conhecimento em uma dada realidade. Seu objetivo
As realidades são múltiplas, heterogêneas, é sempre fazer conectar tais elementos – etapas,
complexas, portanto são construídas pelas práticas e ferramentas, posições e conhecimentos – um ao
relações com o mundo. É nesse sentido que Moraes outro e perscrutar seus efeitos de diferenciação e
(2010) é categórica quando refere que “as práticas variação nos participantes da pesquisa; efeitos esses
são performáticas, isto é, fazem existir realidades que também se processam sobre a figura do
que não estavam dadas antes e que não existem em pesquisador quando realiza o seu plano de pesquisa
nenhum outro lugar senão nestas e por estas ou nas relações que se constroem e se movimentam
práticas” (p. 35). entre ambos, pesquisador e colaboradores, diante de
Para essa autora, tal como a virada (ou giro) um campo problemático.
cultural e linguístico que abriu novas possibilidades Dessa maneira, entendemos os planos de
do conhecer, estamos vivendo na atualidade uma pesquisa mais do que meros procedimentos de
virada da prática. Nesse aspecto, diferente dos investigação. Eles refletem uma postura ético-
marcos do realismo euro-americano que fundamenta política diante do trabalho de pesquisa e aos muitos
as pesquisas experimentais, fenomenológicas e elementos com os quais nos encontramos no ato de
determinadas modalidades da pesquisa-ação, a pesquisar, bem como diante da vida (Rocha, 2006;
prática é colocada em primeiro plano. O pensamento Paulon, 2005). Portanto, podem ter caráter ativo
e o conhecimento advêm do “atrito, do embate com (político) de modelação das ontologias definidoras
o mundo, com os outros e com o campo de pesquisa” de realidades e das condições de possibilidade com
(Moraes, 2010, p. 26). Assim, são as práticas que encontramos e conhecemos o mundo (Mol,
cotidianas que fazem com que a realidade seja 2007).
delimitada e definida desta ou daquela forma. Não
há, portanto, realidade dada a priori, ela “é Pesquisar em saúde coletiva e saúde
construída e performada nas e pelas práticas” mental
(Moraes, 2010, p. 35).
Dessa forma, não há sujeito e muito menos Desde a implantação do SUS há mais de 25
práticas neutras e a priori. Pesquisamos não sobre o anos, o campo da saúde pública no Brasil tem vivido
outro, no sentido de tomá-lo apenas como objeto ou inúmeras transformações. Orientado por princípios e
como respondente de nossas questões de pesquisa, diretrizes tais como a universalidade, equidade,
ou como “participante” de determinadas etapas de integralidade, descentralização, participação popular
uma investigação. Pesquisamos sobre os efeitos, e a organização da rede de serviços de modo
sobre as possibilidades que se abrem e que fazem regionalizado e hierarquizado, o SUS, ao longo
variar as certezas, as verdades, as versões criadoras desse percurso de consolidação, vem alcançando
de realidades tanto para o pesquisador e grandes conquistas e enfrentando inúmeros
colaboradores da pesquisa quanto para as práticas problemas no que diz respeito à mudança das
sociais que se engendram nesse processo (Aguiar & práticas de saúde e dos modos de organização e
Rocha, 2007; Moraes, 2010; Paulon & Romagnoli, gestão dos serviços, problemas que desafiam
2010). Nesse aspecto, a intervenção não é apenas gestores, trabalhadores, acadêmicos e a população
sobre o outro, mas com o outro. Tal proposta de uma forma geral. Com base em autores do campo,
metodológica propõe outra “distribuição da Lima (2009) aponta outros aspectos de difícil
capacidade de agir (intervir): aquele que é enfrentamento: os limites da formação para abarcar
interpelado participa ativamente do dispositivo de as diversidades que compõem o SUS e “a pouca
intervenção” (Moraes, 2010, p. 30). Assim, a potência para transformar os modelos hegemônicos,
pesquisa constitui um dispositivo que possibilita que
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muito mais vinculados a interesses outros – como os reducionistas, centrados na doença e em políticas
das corporações profissionais, da indústria de públicas articuladas por programas que a priori
equipamentos médicos e farmacêuticos – do que às excluem a complexidade da saúde, das relações
necessidades dos usuários” (p. 790). sociais e a pluralidade dialógica do campo.
Nessa direção, tem-se buscado propor A proposta de reordenação dessa lógica de
novas questões que confrontem as formulações já trabalho e de organização da assistência em saúde é
estabelecidas e as tendências alinhadas ao ideário a que também orienta os processos de transformação
neoliberal, revigorando a dimensão reflexiva, crítica da assistência psiquiátrica em curso no País. O
e propositiva do projeto político e social da Reforma campo da saúde mental e o processo de reforma
Sanitária. Conh (2009), preocupada com o psiquiátrica têm sido focos de nossas investigações
enfraquecimento dessa dimensão nos últimos anos, e militância nos últimos anos. Nossas pesquisas
alerta para o fato de estarmos sendo aplacados pela estão ancoradas na base teórico-metodológica já
dimensão eminentemente técnica de gerência dos explicitada, buscando não só dar visibilidade a um
serviços e deixando de lado a dimensão política, conjunto de forças que buscam reduzir a experiência
social e civil de conquista da democracia, de da loucura a uma patologia ou doença mental,
fortalecimento coletivo e de pensar a saúde como analisando discursos, práticas e instituições que
questão social. operam no sentido do seu controle, tutela,
Outros questionamentos estão atualmente normatização e medicalização, mas também
sendo agregados por parte de um coletivo que fomentando a invenção de novos saberes e
compreende que “O SUS, como aposta ético- dispositivos em direção à desinstitucionalização da
política, é um instrumento de luta, no campo da cultura manicomial, que vai muito além do âmbito
saúde, em relação às formas de autoritarismo e às restrito de serviços e práticas profissionais e diz
práticas de captura da vida no capitalismo respeito aos modos de vida tecidos no cotidiano.
contemporâneo” (Pasche, Passos & Barros, 2009, p. Desse modo, as lutas que travamos como coletivo de
491). Trata-se da Política Nacional de trabalho ocorrem em diferentes planos, na
Humanização/PNH, que de forma transversalizada, concretude do presente, na materialidade dos
visa ao desenvolvimento da corresponsabilidade e discursos e práticas que forjam verdades
qualificação dos vínculos interprofissionais e destes amplamente divulgadas e consumidas e que
com os usuários na produção de saúde. Um dos atualmente estão cada vez mais interessados na
aspectos mais destacados na PNH é que para operar chamada “normalidade”.
tais transformações nos modos de cuidar e gerir, o Portanto, produzir saúde mental e saúde
SUS demanda mutações subjetivas e outros modos coletiva exige mudanças nos processos de
de ser trabalhador. Além disso, pede uma formação subjetivação, pois os princípios do SUS só se
contextualizada, um conhecimento interdisciplinar e encarnam na experiência concreta de sujeitos
a produção de práticas multiprofissionais voltadas às concretos que se transformam em sintonia com a
necessidades da população usuária. Requer ainda a transformação das próprias práticas de saúde e dos
necessidade de estarmos alertas aos especialismos, seus modos de existir. Consequentemente, exige, do
às naturalizações e dicotomias entre formação e ponto de vista acadêmico, formas diferenciadas de
atuação e um esforço permanente de ruptura com a pesquisar e produzir interferência no modo cotidiano
lógica que persegue verdades inquestionáveis, de fazer saúde nos mais diferentes contextos. É sobre
modelos padronizados e estereotipados. esse território específico de pesquisa e intervenção
Dessa maneira, algumas formulações têm que trataremos a seguir.
buscado recolocar os problemas no âmbito do SUS,
qualificando-os em uma complexa teia de
determinação que envolve elementos macro e
micropolíticos, na perspectiva de pensar saúde como
produção de subjetividade. Há um compromisso de
afastar-se de uma racionalidade científica, de uma
visão tecnocrática de integralidade predominante na
saúde centrada na mera articulação entre os serviços
e os diferentes níveis de atenção e voltar-se para uma
dimensão mais ampliada que incorpora a
complexidade subjetiva dos atores envolvidos. Além
disso, de resistir aos modelos de atenção
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6
Termo utilizado por Merhy (2000). Representam, segundo o acordo com os lugares que ocupam nesse encontro e conforme as
autor, “caixas de ferramentas tecnológicas, como saberes e seus finalidades que almeja” (p. 109).
desdobramentos materiais e não-materiais, que fazem sentido de
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planos de análise e crítica que podem circunscrever gritante dos processos sociais, culturais e políticos
as variações quanto às certezas, verdades e que atingem esses espaços. Assistimos a uma
referências que configuram nosso saber-fazer predominância da aplicação de políticas públicas em
profissional e nossa relação com o mundo (Rocha & que os atores urbanos são mais atingidos,
Aguiar, 2003; Rocha, 2006). produzindo um isolamento nas áreas rurais de acesso
O propósito da construção desses planos de a tais políticas. Embora esse cenário venha se
análise e ação é sempre pelo seu desmonte, ou seja, modificando, ainda é notório o descompasso na
pela desconstrução permanente dos oferta de um conjunto de serviços às populações do
comportamentos, ideias e “hábitos cristalizados num campo. Nossas pesquisas que envolvem famílias
processo permanente de aprendizagem e moradoras de assentamentos rurais têm apontado
desaprendizagem” com o campo das práticas e com essa fragilidade de acesso às políticas, em especial,
as novas realidades que pretendemos construir às políticas de saúde. Não raro, os habitantes dessas
(Rocha, 2006, p. 170). Assim, como princípio áreas dispõem de pouco ou nenhum recurso no
máximo, nossas valises tecnológicas possibilitam tocante aos cuidados em saúde, às redes de suporte
pesquisar os efeitos, as possibilidades que se abrem social e à possibilidade de resolutividade de suas
e que fazem variar as certezas, as verdades, as demandas. O isolamento e dificuldades de transporte
versões criadoras de realidades tanto para o e acesso aos serviços, a precariedade da oferta de
pesquisador quanto para os colaboradores da cuidados à comunidade respondem, em grande
pesquisa.Com isso, situamo-nos na perspectiva que medida, pelo insucesso de efetivação e de cobertura
Hartz (2009) indica acerca das metodologias das políticas de saúde nos territórios rurais.
qualitativas de pesquisa de quinta geração, que além Um terceiro desafio, de natureza teórico-
de considerarem a participação dos sujeitos em todas metodológica, diz respeito a considerar as
as etapas, se comprometem a “ajudar os grupos particularidades que constituem os contextos rurais.
sociais a melhor compreender os próprios problemas No tocante às áreas advindas de luta por terra e
e as possibilidades de modificá-los a seu favor” (s/p). mobilizadas por movimentos sociais com fins de
reforma agrária (os assentamentos rurais), é
Pesquisando processos de saúde em imprescindível reconhecer os efeitos políticos e
contextos rurais subjetivos deflagrados mediante a inserção dos
trabalhadores rurais nesses espaços de luta. Desse
Ao longo de nossas proposições modo, discutir os processos históricos, sociais,
investigativas temos produzido uma aproximação culturais e políticos em torno da questão agrária no
aos contextos rurais, especialmente com Brasil é fundamental para possibilitar a produção de
comunidades oriundas da reforma agrária. Nessa um conhecimento em sintonia com os dispositivos
aproximação, um conjunto de desafios emerge, que modulam o meio rural.
tendo em vista que, tradicionalmente no campo Nos estudos do grupo de pesquisa que
“psi”, a produção de conhecimento tem se voltado envolvem os assentamentos rurais e comunidades
para os espaços urbanos. rurais tradicionais, temos dado foco no campo da
Um primeiro desafio se traduz na superação saúde mental em interface com a atenção
de nosso imaginário social povoado pela ideia de que psicossocial, estratégias de cuidado, condições de
o rural e o urbano são realidades separadas e vida, trabalho e relações de gênero. Nesse âmbito de
polarizadas, em que o primeiro se representa como relações, perseguimos um enfoque interdisciplinar
atrasado, residual, e o segundo, avançado e com áreas do conhecimento que dialoguem com
modernizado. É forçoso reconhecer que as investidas essas questões, tais como a Antropologia, Sociologia
do capitalismo mundial integrado também atingiram Rural e Saúde Coletiva. Para tanto, temos buscado
os espaços rurais e produziram uma série de utilizar ferramentas de produção de dados que
problemas sociais, culturais e econômicos para as permitam um franco diálogo com essas
populações do campo. Tal processo faz com que singularidades, que possibilitem aos atores sociais
campo e cidade estejam interligados e atravessados uma participação na construção de conhecimento,
por dilemas que os atingem mutuamente, seja por meio de suas produções discursivas, seja
promovendo, inclusive, alterações em ambos, pelo acompanhamento de suas práticas cotidianas,
embora guardando especificidades. entendidas a partir de Certeau (1996), para quem a
Decorre daí o segundo desafio que é dar questão central no que concerne a tais práticas está
visibilidade à produção de uma desigualdade em demonstrar que na construção do cotidiano os
indivíduos não estão meramente na condição de
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questões iniciais que inquietam o pesquisador, assim culturais que presenciamos, conhecer o impacto de
como provocados pela literatura. Consideramos o tais transformações nos processos de subjetivação
tempo destinado ao trabalho de campo, o local da nos parece fundamental. Portanto, nosso interesse
pesquisa e a quantidade de participantes como está focado na regulamentação da existência, nas
elementos que definem a escolha e a quantidade de formas e governos da vida, nos padrões subjetivos
signos a serem trabalhados. Para nós, o uso da produzidos ao sabor dos fluxos e tecnologias
fotografia como instrumento de pesquisa possibilita disciplinares e biopolíticas na contemporaneidade.
uma forma a mais de compreender o sentido dado ao Sabemos que tal discussão vai muito além
cotidiano, pois, como nos diz Chalhub (2000), nem daquilo que um campo específico de conhecimento
só de mensagens verbais vive o homem: pode oferecer, exigindo o diálogo interdisciplinar.
Para tanto, buscamos apoio teórico e metodológico
o corpo fala, a fotografia flagra, a em estudiosos consagrados do campo da Filosofia,
arquitetura recorta espaços, a pintura Sociologia e Psicologia que partem de uma
imprime, o teatro encena o verbal, o perspectiva crítica em termos da noção clássica,
visual, o sonoro, a poesia – forma substancializada e individualizada da subjetividade e
especialmente inédita e linguagem- compartilhamos da ideia de política e/ou processos
surpreende, a música irradia sons, a de subjetivação não centrados em agentes
escultura tateia, o cinema movimenta etc. individuais, nem grupais, mas atravessados por uma
(p. 6) heterogeneidade de vetores que escapam a qualquer
forma de modelização ou hierarquias. Assim,
Consideramos ainda com Silva (2000) que: assumimos um ponto de referência para pensar tais
processos que é ao mesmo tempo ético, estético e
a imagem é sempre modelada por estruturas político, na medida em que mantêm um
profundas, ligadas ao exercício de uma compromisso radical com o caráter processual da
linguagem, assim como está vinculada a vida e com os processos criativos que buscam
uma organização simbólica (a uma cultura, desconstruir as condições massificadoras e
a uma sociedade). A imagem, porém, é homogeneizantes da subjetividade contemporânea.
também um meio de comunicação e de Nessa perspectiva, Rolnik (1998) indica
representação do mundo que tem lugar em que o mundo que habitamos hoje é um “oceano
todas as sociedades humanas. A imagem é infinito, agitado por ondas turbilhonares – fluxos
universal, mas sempre particularizada. (p. variáveis sem totalização possível em territórios
126) demarcáveis, sem fronteiras estáveis, em constantes
rearranjos” (p. 1). Nesse mundo contemporâneo, as
Em outras palavras, as imagens feitas pelos subjetividades são “modulações metamorfoseantes
colaboradores geram narrativas e se constituem num processo sem fim, que se administra dia a dia,
numa fonte preciosa de informações sobre o sentido incansavelmente” (Rolnik, 1998, p. 1). Tal autora
dado por cada sujeito à vida vivida, em sua avança indicando que apesar da velocidade com que
singularidade. Longe de estarmos preocupados com tais fluxos e mudanças se fazem, estamos
desfechos objetiváveis, intencionamos conectar as profundamente marcados por uma tendência à
interpretações que cada um produz, instigar conservação, ao entrincheiramento, à manutenção
estratégias de criação de si e do mundo, assim como das formas conhecidas, aos arranjos endurecidos,
a emergência de forças afirmativas capazes de que nos dão a sensação de consistência subjetiva e
enfraquecer os pensamentos mutilantes de qualquer definição identitária.
transformação. Vivemos em uma sociedade da
normatização, regida por uma economia libidinal e
Psicologia e políticas públicas: pilares política que busca a produção desse sujeito racional,
teóricos e metodológicos da pesquisa autocentrado, autorreflexivo, que maneja formas de
controle de si mesmo, tornando-se responsável por
Como vimos, nosso campo de sua própria adaptação e manutenção do status quo
problematizações se estende sobre um amplo (Kuster, 2009). São esses aspectos que vêm
território que diz respeito aos modos de vida caracterizando cada vez mais o homem
contemporâneos. Diante das profundas contemporâneo em tempos de liquidez:
transformações sociais, econômicas, políticas e esvaziamento das questões que dizem respeito à
esfera pública, estabelecimento frágil de vínculos ou
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políticas públicas e práticas sociais: experiências em pesquisas participativas
uma fluidez destes, intolerância à instigar seu compromisso com as lutas históricas e
alteridade/diversidade, aspectos que configuram o movimentos sociais.
que Baptista (2000) chama por despolitização da Assim, procuramos abrir algumas
produção da diferença no contemporâneo. possibilidades de reflexão e intervenção, inaugurar
Destacamos, assim, que é impossível agenciamentos, rupturas, mutações, colocar a
desatrelar a não potencialização de políticas mais universidade em movimento por meio de inúmeras
equânimes e solidárias, via participação pública, que artimanhas e tessituras de redes complexas que
observamos hoje em dia, a uma “expropriação das articulam diferentes saberes e atores. Para tanto,
redes de vida da maioria da população pelo capital” identificar as estratégias de reativação vital, as linhas
(Pelbart, 2003, p. 21), que na sua forma de êxodo, a insubordinação, os “modos de
contemporânea, nômade e desterritorializada, subjetivação emergentes, focos de enunciação
inaugura novas modalidades de se viver, sentir, coletiva, territórios existenciais, inteligências
trabalhar, novas crenças e formas de sociabilidade. grupais que escapam aos parâmetros consensuais, às
Em outros termos, no seio da sociedade mundial de capturas do capital” (Pelbart, 2003, p. 22), é, em
controle, a fabricação de sujeitos capturados na sua linhas gerais, o que nos interessa em nossas
força de invenção é a garantia de manutenção das propostas de pesquisa participante.
iniquidades sociais, da exploração de uns sobre os Fazer da problematização o aspecto central
outros, da desresponsabilização para com a vida e o do processo de construção do conhecimento,
coletivo. Isso indica que a intrínseca relação entre interrogar o instituído historicamente e
capitalismo e subjetividade produz formas de desnaturalizar a realidade, que por ser sempre
assujeitamento, formas de vida espetacularizadas, movente pede um conhecimento inventivo,
padronizadas, reproduzidas em clichês. Tais conectado com as forças, vetores, direções e
modelos subjetivos são estratégias de dominação movimentos que estão em operação em determinada
invisíveis que afetam a todos nós, seja por situação, é nossa estratégia metodológica. Nesse
cumplicidade, seja por composição com o sistema de sentido, como já referido, entendemos que as
valores e de exploração hegemônicos (Pelbart, metodologias de pesquisa que nos auxiliam nesse
2003). trabalho de análise, para além da dimensão técnica,
Analisar tais políticas de subjetivação implicam em opções teóricas, em uma postura ética
contemporâneas e a produção, cada vez mais forte e e política, em uma visão de mundo. Não se trata de
sutil, de mecanismos de isolamento, controle, buscar verdades, mas de conhecer como os discursos
exclusão, desmobilização coletiva, patologização do e práticas são forjados. Discursos são
cotidiano e sua consequente medicalização, torna-se compreendidos, segundo a perspectiva foucaultiana,
o objetivo por excelência das propostas de como regras históricas, anônimas e coletivas, são
investigação no âmbito das políticas públicas. práticas em operação. O que fazem as pessoas em
Problematizar a construção e uso de conhecimentos, determinadas condições sociais, que forças estão em
especialmente no campo “psi” que contribuem jogo, quais as condições de produção de
crescentemente para gerar e administrar os determinadas práticas? Portanto, a produção de
inadequados, os anormais, os inclassificáveis, os conhecimento, tal como a entendemos, não está
indomesticáveis, os desequilibrados, bem como a focada nos indivíduos, mas nos acontecimentos
criação de instituições de correção, ressocialização, discursivos, ou seja, como e em que condições
educação e cuidado que reproduzem a exclusão da determinadas, práticas, saberes são produzidos, o
diferença, é igualmente tarefa que nos propomos que criam e que realidades produzem.
realizar. Nesse sentido, damos ênfase aos Nota-se claramente que tal perspectiva tem
atravessamentos sociais, políticos, culturais, duas dimensões indissociáveis: pesquisa e
ideológicos, de gênero e etnia, etc., que perpassam o intervenção. Exige atenção ao presente, ao cotidiano,
campo em que intervimos, nossa formação a tudo aquilo que nos parece banal, pois estamos
acadêmica e profissional, os processos de preocupados com os microfascismos que operam em
subjetivação e os dispositivos metodológicos que nós (Fonseca et al., 2008). Trata-se, pois, de produzir
criamos e praticamos. Com base no pressuposto conhecimento a partir de analisadores que
foucaultiano de que ciência e ação política desestabilizam as formas instituídas, realizando, ao
caminham juntas, visamos à implicação dos mesmo tempo, análise e intervenção. Para tanto, nos
profissionais para enfrentar/superar as velhas inspiramos na proposta da pesquisa-intervenção,
dicotomias entre prática profissional e militância e baseada na Análise Institucional. Tal proposta parte
do pressuposto de indissociabilidade entre os planos
Dimenstein, Magda; Macedo, João Paulo; Leite, Jáder Ferreira; Gomes, Maria Aparecida de França. Psicologia,
políticas públicas e práticas sociais: experiências em pesquisas participativas
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Recebido em: 30/06/2014