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1. ARENDT, Hannah. A condição humana. 11a ed. Trad. R. Raposo, revista por A. Correia. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
2. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. L. Vallandro e G. Bormheim. São Paulo: Nova Cul
tural, 1991.
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3. Na passagem em que define o que é propriedade exclusiva dos homens, Locke afirma:
“O trabalho de seu corpo e a obra das suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele.” Segundo
Tratado sobre o Governo. Cap. V. Trad. E. J. Monteiro. São Paulo: Os Pensadores, 1973.
4. BERGSON, Henri. Cf. O pensamento e o movente. Introdução. Trad. F. L. Silva. São Paulo:
Os Pensadores, 1974.
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II
O livro de Hannah Arendt, A condição humana, reúne as duas prin
cipais direções de investigação da filosofia contemporânea sobre o
fazer. De um lado, essa atividade é tema de uma fenomenologia da
vida ativa do homem, que abrange, ainda, outras duas: o trabalho
(labor) e a ação (action). De outro, essa fenomenologia constitui a
referência para uma pesquisa de caráter histórico, na qual são exa
minadas as alterações nas atividades humanas e a posição delas en
tre si, ao longo da Era Moderna até o presente.
O livro começa com um prólogo que apresenta sua motiva
ção. A condição humana exprime a perplexidade diante das impor
tantes mudanças na vida ativa do homem no século XX. Elas são si
nalizadas pela corrida espacial, que traduz o desapego do homem da
sua morada terrena, pelo desenvolvimento da engenharia genética,
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III
Abordarei agora os temas de natureza histórica tratados em A con
dição humana. Eles têm a ver com o retrato da Era Moderna e a dis
cussão das mudanças ocorridas no âmbito da vida ativa nos últimos
quatro séculos.
Na virada do século XVI para o XVII, três eventos marcaram
o início da Era Moderna: a descoberta dos novos continentes, a Refor
ma e a invenção do telescópio por Galileu. Os três, de algum modo,
trazem a marca do processo de alienação do mundo, característico
da Era Moderna. O mais dramático desses eventos deve ter sido a
cisão do cristianismo provocada pela Reforma. O mais espantoso foi
a descoberta dos novos continentes, que está na origem da ocupação
pelo homem de toda a Terra, e, em última instância, da corrida espa
cial que Hannah Arendt presenciava em sua época.
Porém, o evento mais significativo, que alterou a história do
Ocidente e determinou o ingresso definitivo na Era Moderna, foi a
invenção do telescópio por Galileu. A criação desse instrumento por
mãos humanas foi responsável por uma alteração radical na compre
ensão da realidade do homem ocidental. A investigação de Galileu,
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sentidos, para descrever o acesso à verdade. Ele foi seguido por toda
a tradição ocidental até a modernidade, que viu na contemplação a
forma apropriada de captar o ser. Para essa tradição, para ver a ver
dadeira realidade, é preciso fechar os olhos do corpo e abrir os olhos
do espírito. Ainda que, até a modernidade, os filósofos não fossem,
em geral, sensualistas ou empiristas, eles acreditavam que o modelo
para definir o conhecimento verdadeiro era ainda a visão, com seu
poder de acolher, de forma imediata, a realidade.
Tudo isso mudou no início do século XVII. A invenção do
telescópio veio provar que nossos sentidos não são confiáveis. Um
instrumento criado pelas mãos do homem mostrou que a realidade
se esconde da percepção imediata. Os sentidos são sempre engano
sos. Apenas ao intervir ativamente no real, é possível revelar seu
verdadeiro aspecto. A partir do momento em que se desconfiou da
capacidade receptiva dos sentidos, também foi atingida a capacidade
do homem de acolher a verdade em sentido amplo. Nesse momen
to, a atitude contemplativa, considerada até então a mais apta para
apreender o real, foi desvalorizada.
A primeira expressão filosófica dessa nova situação, a
metafísica de Descartes, não foi motivada pelo júbilo, mas por uma
profunda desconfiança. A primeira obra filosófica moderna, as Medi
tações metafísicas, começa com o reconhecimento da força aniqui
ladora da dúvida. A dúvida cartesiana é muito abrangente. Ela diz
respeito não apenas aos dados dos sentidos, mas questiona a capaci
dade humana de acolhimento da verdade em sentido amplo. Ao final
da Primeira meditação, o filósofo está tão cheio de dúvidas que se vê
caído em águas muito profundas, sem poder nem manter os pés no
fundo nem nadar para se manter à tona.8 A Segunda meditação é um
8. DESCARTES. Meditações. Trad. J. Guinsburg e B. Prado Jr. São Paulo: Os Pensadores, p. 99.
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IV
Gostaria de apresentar duas observações como conclusão. A primei
ra diz respeito a um dos aspectos destacados por Hannah Arendt no
seu retrato do mundo contemporâneo. Em A condição humana, ela
mostrou que a história moderna teve início, no século XVII, com a
inversão das posições da contemplação e da ação: a vita contemplativa
foi desprestigiada e a vita activa passou a ser valorizada. Na primeira
etapa da Era Moderna, o fazer ocupou uma posição de destaque entre
as demais atividades – o trabalho e a ação. Ao longo da história mo
derna, o fazer cedeu lugar ao trabalho como a principal atividade do
homem. Essa alteração condicionou o modo de ser do cenário con
temporâneo – o Mundo Moderno, nos termos de Hannah Arendt.
Porém, a filósofa chamou atenção para uma nova mudança no con
texto contemporâneo. O advento da automação nas sociedades in
dustriais avançadas anuncia o fim do trabalho. Pela primeira vez na
história, a humanidade vislumbra a possibilidade de se liberar do
seu fardo mais antigo e mais natural, o do trabalho e da sujeição à
necessidade. A reação de Hannah Arendt diante desse quadro é de
perplexidade. Ela observa que, hoje, formamos uma sociedade de
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