Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Além de agora conhecerem boa parte de seus antepassados, essa descoberta deu
aos primos e a pelo menos outros seis membros da família o direito à nacionalidade
portuguesa via Lei Sefardita, um dispositivo criado há seis anos por Portugal como
forma de reparação pelas décadas de condenação de judeus à prisão, tortura e
morte pela Inquisição.
Filho único de um baiano com uma paulista, Ricardo Almeida tinha grande
curiosidade pela história da família porque não teve muito contato com a parte
baiana. Antes de investir na pesquisa desse passado, as figuras faltantes do quebra-
cabeça da sua árvore genealógica se completavam através da memória de
parentes, que narravam casos de família quando iam visitá-los em São Paulo.
“Para mim, é inexplicável como, passados mais de 500
anos, um descendente tem algo dentro da alma, uma
busca que ele não entende e acaba se deparando com
isso. Hoje, me sinto realizado na alma, no lado
espiritual e na questão da identidade”, diz o radialista. A
filha dele atualmente vive na Suíça graças ao título de cidadania,
devido a acordos da União Europeia.
Por Edvaldo, ele também já teria ido embora para Portugal, mas ainda aguarda a
esposa se acostumar com toda essa novidade. “Ela e os meus filhos são minha
existência, não vou deixá-los. Estamos esperando a pandemia recuar para fazer um
passeio. Espero que minha esposa goste e mude de ideia”, diz ele, que já tem o
passaporte vermelho.
Para quem pensa em iniciar essas buscas por agora, vale ouvir alguns conselhos
de Ricardo Almeida. Na visão dele, foi fascinante conhecer um pouco da história de
cada um dos seus antepassados, de saber minimamente sobre o avô, Saturnino,
que foi capitão-cirurgião da Guarda Nacional e proprietário de uma fazenda em Ipirá.
“Um povo que não entende o passado, não compreende o presente. Nomes
desconhecidos foram revelados para a nossa família e agora um pouco da história
deles será perpetuada. É difícil, mas sugiro que não desistam nessa busca, comece
organizando documentos. Se houver necessidade, procure um genealogista porque
vale cada centavo, é um resgate histórico e conseguir a cidadania é um
coroamento”, recomenda.
Saturnino Ferreira de Almeida, avô de Ricardo Almeida, familiar que ele não
conheceu em vida (Foto: Acervo da família)
Indiretamente, sabe-se que Francisco era cristão-novo porque outro neto dele foi
impedido de assumir um cargo no Tribunal da Inquisição, que investigava heresias.
Na análise do perfil, informaram à Igreja que este neto era parente de Francisco,
que por sua vez era “gente da nação”, uma expressão usada para se referir aos
judeus, explica Igor.
Em Lisboa, monumento em homenagem aos milhares de mortos no Massacre de
Judeus, ocorrido em 1506 (Foto: Sergio PT/Wikipedia)
Dominantes e excluídos
Eles eram brancos em uma sociedade também pautada pelas diferenças de cor da
pele. Então, vários conseguiram se tornar ricos senhores de engenho de açúcar,
apesar de serem excluídos de uma série de cargos e funções políticas, militares e
religiosas. Viveram a experiência de serem, ao mesmo tempo, um grupo dominante
e perseguido, segundo aponta em seu livro ‘Além da Exclusão’ a historiadora
Suzana Severs, professora da Uneb.
Já velha e doente, Ana Rodrigues, esposa do rico Heitor Antunes, foi levada para
Lisboa e sentenciada à morte. A imagem dela, representada entre seres
demoníacos, foi exposta na Igreja de Matoim para que todos testemunhassem a
vergonha da família. As filhas de Heitor e Ana também foram denunciadas e presas,
além de alguns sobrinhos.
Outro caso de destaque foi o do jovem Isaac de Castro, que chegou ao Brasil com
19 anos, acompanhado do seu tio, o rabino Mosseh Rafael D’Aguilar, fundador da
segunda sinagoga de Recife. Ele veio à Bahia para ensinar judaísmo aos cristãos-
novos do sertão, mas foi preso por agentes da Inquisição e enviado para Lisboa.
Queimado vivo, ele morreu gritando versos da mais famosa declaração do judaísmo,
o Shemá Israel (Ouça, Israel).
Engenho Matoim, onde viveu a família Antunes. Local hoje pertence ao Centro Industrial
de Aratu (Foto: Acervo digital do Iphan)
Engenho Matoim, onde viveu a família Antunes. Local hoje pertence ao Centro Industrial
de Aratu (Foto: Acervo digital do Iphan)
Engenho Matoim, onde viveu a família Antunes. Local hoje pertence ao Centro Industrial
de Aratu (Foto: Acervo digital do Iphan)
Engenho Matoim, onde viveu a família Antunes. Local hoje pertence ao Centro Industrial
de Aratu (Foto: Acervo digital do Iphan)
Engenho Matoim, onde viveu a família Antunes. Local hoje pertence ao Centro Industrial
de Aratu (Foto: Acervo digital do Iphan)
CIDADANIA PORTUGUESA: 'A NOVA HERANÇA
O órgão só tem estatísticas a nível de país, então não se sabe quantos baianos
tiveram sucesso nestas solicitações, mas assessores jurídicos e genealogistas têm
certeza de que são raros os casos na Bahia. O investimento em todo o processo
pode variar de R$ 10 mil a R$ 15 mil, segundo calcula Ricardo Almeida, o paulista
que encontrou elo na Bahia.
As razões para poucos baianos terem acesso à dupla nacionalidade por via sefardita
são basicamente quatro: as pessoas não têm conhecimento sobre a possibilidade
de descenderem de judeus, a lei foi pouco difundida, os arquivos públicos do estado
estão mal conservados e, por fim, há pouco interesse nos estudos genealógicos por
aqui.
O interior da Bahia foi ainda menos estudado, já que o povoamento para estas
bandas só virou uma política no finalzinho do século 17 e, portanto, as jornadas de
cristãos-novos em direção aos sertões não foram percorridas por especialistas,
conforme conta a historiadora baiana Camila Amaral, que é coordenadora de
genealogia do mesmo escritório.
“Isso não quer dizer que não existiu essa ocupação, apenas não foi estudada. Na
Bahia, o que entendo é que a pesquisa genealógica em si é muito principiante. Não
temos grandes árvores desenvolvidas por pessoas naturais da Bahia que
conseguiram ir além nas suas pesquisas ao ponto de vincular seus ramos familiares
a ancestrais sefarditas”, diz Amaral.
Pesquisador de genealogia há cerca de 10 anos, o historiador Igor de Almeida conta
que é preciso consultar um leque de documentos até alcançar o ancestral sefardita.
Quando uma certidão não é encontrada em cartórios, é preciso recorrer a outras
alternativas, como livros consagrados de genealogia, arquivos do Legislativo e
Judiciário de séculos passados.
Muitos documentos se perderam, então estes buracos precisam ser tapados com
pesquisas que não são simples para amadores com pouco conhecimento de leitura
de manuscritos antigos. Às vezes, devido à sensibilidade dos materiais, há restrição
de acesso, liberado apenas para pessoas capacitadas.
No país, os dois principais cristãos-novos que deixaram descendentes foram Branca
Dias e Antônio Bicudo Carneiro. É neles que, em geral, as árvores genealógicas
costumam chegar. Foi através de Antônio que Camila Amaral se deparou, há cerca
de quatro meses, com um ramo familiar que alcança a Bahia, mas ainda não
apareceram familiares requerentes. Em Salvador, sabe-se que a família Muniz
Barreto, que faz parte da elite desde a época da colonização, descende da Branca
Dias.
Mas esta questão dos sobrenomes é delicada e deve ser pensada apenas como
indício. O caso dos primos Ricardo e Edvaldo ilustra bem isso. Embora tenham
sobrenome Almeida, o ancestral judeu sefardita que encontraram era um Souza. A
dinâmica de casamentos muda bastante os nomes e só uma profunda investigação
é capaz de determinar o elo. “Muitas vezes, fala-se em sobrenomes e isso acaba
gerando expectativas nas pessoas que acabam não se confirmando”, diz Jerfson
Lins.
O escritório Martins Castro até recebe baianos que passam pelas pré-análises para
tentar encontrar a ascendência e a viabilidade da cidadania, mas até então não
acharam elos para pessoas daqui. Outros clientes nordestinos do Ceará,
Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte — onde também houve ocupação —
têm procura muito acima devido à melhor documentação de árvores genealógicas.
O primeiro brasileiro a conseguir foi o empresário cearense Nertan Arruda, em
2016.
“Costumo pensar que, sendo a cidadania uma herança que você vai poder passar
para os seus filhos, vale muito a pena [se dedicar à essa busca]. É um investimento
que vale a pena porque são portas que se abrem quando você tem uma dupla
nacionalidade. Uma vez que a nacionalidade é atribuída, ela vale para o resto da
sua vida”, explica Camila Amaral.
6. Após receber o certificado e com os documentos em mãos, você pode dar entrada
na parte jurídica junto ao governo português no órgão chamado Conservatória de
Registros, órgão do Ministério da Justiça de Portugal. O valor é também de 250
euros, ou R$ 1.559. O tempo de avaliação é de até 1 ano e meio. Se houver alguma
pendência, provavelmente você precisará de um advogado que possa resolver
essas questões pessoalmente na Conservatória. Se o pedido for aprovado, o título
de cidadania portuguesa é emitido.
Antônio Bicudo Carneiro, o patriarca. Nobre, veio para a capitania de São Paulo
e deixou descendentes em todo o Sudeste e Sul.
Fernando de Noronha, rico mercador que ganhou do rei o território hoje conhecido
como Ilha de Noronha, em Pernambuco.
Irmãos Luiz Vaz de Paiva e Manuel Nunes Paiva, donos de importantes terrenos
de engenho na região que hoje é Amélia Rodrigues. Luiz foi magnata do tráfico
negreiro.
2015 - Portugal institui a Lei Sefardita para se redimir pelo que fez aos judeus.