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o II

, Roberto Cardoso de Oliveira Capitulo 1

I I o TRABALHO DO ANTROPÓLOGO:
OLHAR, OUVIR, ESCREVER

INTRODUÇÃO

Pareceu-me que abordar um tema freqüentemente visitado e revisitado


por membros de nossa comunidade profissional não seria de todo imper-
tinente, posto que sempre valerá pelo menos como uma espécie de depo-
imento de alguém que, há várias décadas, vem com ele se preocupando
como parte de seu métier de docente e de pesquisador; e, como tal, embora
dirija-me especialmente aos meus pares, gostaria de alcançar também o
estudante ou o estudioso interessado genericamente em ciências sociais,

o trabalho uma vez que a especificidade do trabalho antropológico - pelo menos


como o vejo e como procurarei mostrar - em nada é incompativel com o
trabalho conduzido por colegas de outras disciplinas sociais, particular-
mente quando, no exercício de sua atividade, articulam a pesquisa empírica
do antropólogo com a interpretação de seus resultados.! Nesse sentido, o subtitulo escolhi-
do - é necessário esclarecer - nada tem a ver com o recente livro de
Claude Lévi-Strauss,2 ainda que, nesse titulo, eu possa ter me inspirado, ao
substituir apenas o lire pelo écn're, o "ler" pelo "escrever". Porém, aqui, ao
contrário dos ensaios de antropologia estética de Lévi-Strauss, trato de
questionar algumas daquelas que se poderiam chamar as principais "facul-
,dades do entendimento" sócio-cultural que, acredito, sejam inerentes ao
modo de conhecer das ciências sociais. Naturalmente, é preciso dizer que,
- falar, nesse contexto, de faculdades do entendimento - não estou mais

A primeira versão deste texto foi para uma "Aula Inaugural", do ano acadêmico de
1994, relativa aos cursos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universida-
de Estadual de Campinas - Unicamp, A presente versão, que agora se publica, devi-

o Paralelo15
2
damente revista e ampliada, f~ada para uma conferência na Fundação loaquim
Nabuco, em Recife, em 24 de maio do mesmo ano, em seu Instituto de Tropicologia.
E-s~ão foi publicada pela Revista de Antropologia, vol. 39, nO 1, 1996, pp. 13-37.
Claude Lévi-Strauss, Regarder, Ecotlter, Lire.

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Roberto CardoJo de Oliveira o trabalho do antropológo: p/har; ouvir, 'escrever

do que parafraseando, e com muita ~berdade, o significado filosófico da


expressão "faculdades da alma", como Lelbr:tiz assim entendia a.E,ercepcão
Talvez a primeira exp~riência do pesquisador de campo - ou no cam-
~pPi~,pmeQto. Pois sem percepção e pensamento, como então podemos
po - esteja na. domesticação teórica skJeu olhar. Isso porque, a partir do
conhecer? ?e meu lado, 0'..1 do ponta de vista de minha disciplina - a
momento em que nos sentimos preparadOS para a investigação empírica, o
antropologta - , quero apenas enfatizar o caráter constitutivo do olhar do
objeto, sobre o qual dirigimos o nosso C)lhar, já foi previamente alterado
ouvir e do escrever, na elaboração do conhecimento próprio das discipli-
pelo própt:io modo de visualizá-Io. ~ual for esse objeto, ele não escapa
nas socia!s, isto é, ~aquelas que convergem para a elaboração do que Qid-
dens, mwto aprQpnadamente, chama "teoria social", para sintetizar, co~ a de ser a reendido elo esquema conceitu;,)Aacli_~ci u.~aJ()r adora de nossa
~~~~~_~ Ler areaJ1dad-e -Esse e-s-qu~~~ conceitual- disciplinadamente
a:so.ciação desses dois termos, o amplo espectro cognitivo que envolve as
apreendid() durante o nosso itinerário ;;!cadêmico, daí o termo disciplina
dlsc1plinas que denominamos ciências sociais. 3 Ressaltar rapidamente, por-
para as matérias que estudamos _, fundona como uma espécie de prisma
quanto não pretendo mais do que aflorar alguns problemas que comu-
por meio elo qual a realidade observada ,ofre um processo de refração -
me?te passam despercebidos, não apenas para o jovem pesquisador, mas,
multas vezes, para o profissional maduro, quando não se debruça para as se me é p~rmitida a imagem. É certo qVe isso não é e~c1usivo do olhar,
uma vez q\.:te está presente em todo processo'de conheclmento, envolven-
} 9..t1:~tões eeiste_mo!Ógic~~ que condici~~~m_ a}ny~stig;aç~'2_em.r!~~c~ tatl.tQ..
do, portanto, todos os atos cognitivos, 4ue mencionei, em seu conjunto.
r quanto a ccmstruçao do text(), result~:n.te da ees'l1!is.a. Desejo, assim, cha~
Contudo, ~ certamente no olhar que ess9- refração pode ser melhor com-
n:ar a atenção para três manelras - melhor diriaZr~-4e. apreen-
preendida. A própria imagem ótica _ rCfração - chama a atenção para
s.ao dos fenômenos sociais, tematizando-as - o que significa dizer: ~l~és­
tlonando-as - como algo merecddor de nossa reflexão no exercício da isso.
Imagin~mos um antropólogo no iniCio de uma pesquisa junto a um
pesquisa e da produção de conhecifnento. Tentarei mostrar como o olhar o
determinaelo grupo indígena e entrando cm uma maloca, uma moradia de
ou~ir e. o escrever podem ser questio'nados em si mesmos, embora, em ~m
uma ou mqjs dezenas de indivíduos, sero ainda conhecer uma palavra do
pnmelro momento, possam nos parecer tão familiares e, por isso, tão tri-
idioma nativo. Essa moradia de tão amplí1 S proporções e de estilo tão pe-
viais, a ponto de sentirmo-nos dispensados de problematizá-los; todavia,
em um segundo momento - marcado por nossa inserção nas ciências culiar, com(), por exemplo, as tradicionais c ílsas coletivas dos antigos Tükúoa,
do alto rio Solimões, no Amazonas, terifm o seu interior imediatamente
sociais - , essas "faculdades" ou, melhor dizendo, esses atos cognitiva r delas
decorrentes assumem um sentido todo particular, de natureza epistêmica, r.\ v~sc.ul~ado pelo '~]§g~á~~, por n:ei~ d~ qual toda a ~eoria q~e a
uma vez que é com tais atos que logramos construir nosso saber. Assim l d1sclplina .dispõe relativamente as residêrl c1as lndlge~as passana a s~r lnS-
procurarei indicar que ~q\laoto no olhar e no OUvir "disciplinados" ~ ~rum.entalizada pelo pesquisador, isto é, ?or ~le referida. Nesse sentJdo~ o
saber, 1isciplinados pela disciplina realiza-se nossa percepção, será 00 es- I~tenor ~a maloca não seria visto com ingcnwdade, ~omo uma me~a.~uno­
sldade diante do exótico, porém com Um olhar d~ldamente senslbilizado
crever i~lue o nosso pensalJ/eJlto exercitar-se-á da form;o t;tlQis cabal, como
produtor de um discurso que seja tão criativo como próprio das ciências p~la =t;:oria clisponível. Ao basear-se nessa teoria, o observador bem prepa-
voltadas à construção da teoria social. rado, co:n0 etn61ogo~Tria olhá-la como ~ .ir~vestigação p_reviament;é
constrwdo e,0r ele, pelo menos em um;;! pnmelta prefiguraç:?: passara,
então, a C0t1.tar os fogos _ pequenas co~inhas primitivas - , cujos resí-
duos de cinza e carvão irão indicar que, Cm torno de cada um, estiveram
reunidos não apenas indivíduos, porém ptssoas, porta~t~ seres socia!s, me~-'
3 Cf. Anthony Giddens, "Hermeneutics and social theory", in Gary Schapiro e Alan
Sica (orgs.), Hermeneu/Ícs: QueJ/ÍonJ andprospectJ.
bras de um único "grupo doméstico"; o tjue lhe dara a mformaçao SUbSl-

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Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do elnlropológo: olhar, oI/vir, escrever

diária que pelo menos nessa maloca, de conformidade com o número de Retomemos nosso exemplo para vermos que para dar-se conta da na-
fogos, estaria abrigada uma certa porção de grupo's domésticos, formados tureza: das relações sociais mantidas entre as pessoas da unidade residencial
por uma ou mais familias elementares e, ~ventualmente, de indivíduos "agre- - e delas entre si, em se tratando de uma pluralidade de malocas de uma
gados" - originários de outro grupo tribal. Conhecerá, igualmente, o nú- mesma aldeia ou "grupo local" - , o olhar l;>or si sÓ não seria suficiente.
mero total de moradores -,- ou quase - contando as redes dependuradas Como alcançar, apenas pelo olhar,' o significado d~ss~~ reiaçõe~ ~
nos mourões da maloca dos membros de cada grupo doméstico. Observa- sem conhecermos a nomenclatura do parentesco, por meio da qual pode-
rá, também, as características arquitetônicas da maloca, classificando-a se- remos ter acesso a um dos sistemas simbólicos mais importantes das so-
gundo uma tipologia de alcance planetário sobre estilos de residências, en- ciedades ágrafas e sem o qual não nos será possível prosseguir em nossa
sinada pela literatura etnológica existente. caminhada? O dominio das teorias de parentesco pelo pesquisador torna-
Ao se tomar, ainda, os mesmos Tükúna, mas em su; feição moderna, o se, então, indispensável. Para se chegar, entretanto, à estrutura dessas rela-
etnólogo que visitasse suas malocas observaria de pronto que elas diferen- ções sociais, o etnólogo deverá se valer, preliminarmente, de outro recurso
ciavam-se radicalmente daquelas descritas por cronistas ou viajantes que, de obtenção dos dados. Vamos nos deter um pouco no ouvir.
no passado, navegaram pelos igarapés por eles habitados. Verificaria que as O OUVIR
amplas malocas, então dotadas de uma cobertura em forma de semi-arco
descendo suas laterais até ao solo e fechando a casa a toda e qualquer Creio necessário mencionar que o exemplo indígena - tomado como
entrada de ar - e do olhar externo - , salvo por portas removíveis, acham- ilustração do olhar etnográfico - não pode ser considerado incapaz de
se agora totalmente remodeladas. A maloca já se apresenta amplamente gerar analogias com outras situações de pesquisa, com outros objetos con-
aberta, constituida por uma cobertura de duas águas, sem paredes - ou cretos de investigação. O sociÓlogo ou o politólogo, por certo, terá exem-
com paredes precárias - , e, internamente, impondo-se ao olhar externo, plos tanto ou mais ilustrativos para mostrar o quanto a teoria social pré-
vêem-se redes penduradas nos mourões, com seus respectivos mosquitei- estrutura o nosso olhar e sofistica a nossa capacidade de observação. Jul-
ros - um elemento da cultura nhterial indígena desconhecido antes do guei, entretanto, que exemplos bem simples são geralmente os mais inteli-
contato interétnico e desnecessárib para as casas antigas, uma vez que seu gíveis, e como a antropologia é minha disciplina, continuarei a valer-me de
fechamento impedia a entrada de' qualquer tipo de inseto. Nesse sentido, seus ensinamentos e de minha própria experiência, na esperança de pro-
para esse etnólogo moderno, ~d<.?,ao seu alcance uma d~,cumentação porcionar uma boa noção dessas etapas aparentemente corriqueiras da in-
histórica, a primeira conclusão será sobre a existência de uma mudança vestigação' científica. Portanto,:: o olhar possui uma significação específi-
cultural de tal monta que, se, de um lado, facilitou a construção das casas ca para um cientista social, o ouvir também goza dessªl',tQprieda,qe. -
indígenas, uma vez que a antiga residência exigia um grande dispêndio de Evidentemente ~too ouvir como oolhar não podem ser tomados
trabalho, dada sua complexidade arquitetônica, por outro, afetou as rela- coms> faculdades tP.J~E:1eE-te ind~p_~!l.dentesoo e:xe.tcicio_dajmr~s.ti.gaç--ã,g~
ções de trabalho, por não ser mais necessária a mobilização de todo o clã ~bas complementam::~!! servem para o pesquisador como duas mule-
para a edificação da maloca, ao mesmo tempo em que tornava o grupo tas - que não nos percamos com essa metáfora tão negativa - que lhe
residencial mais vulnerável aos insetos, posto que os mosquiteiros somen- permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimen-
te pOl',eriam ser úteis nas redes, ficando a família à mercê desses insetos to. A metáfora, propositalmente utilizada, permite lembrar que a caminha-
durante todo o dia. Observava-se, assim, literalmente, o que o saudoso da da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas. É nesse ímpeto de
Herbert Baldus chamava de uma espécie de "natureza morta" da aculturação. ,conhecer que o ouvir, complementando o olhar, participa das mesmas pr~ ,
Como torná-la viva, senão pela penetração na natureza das relações so- condições desse último, na medida em gue e»ªli<;garado para ,eliminar
ciais? todos os ruídos gue lhe pareçam insignificantes, isto é, gue não façam_

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Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do, antropo{ógo: olhar, ouvir, escreVer

nenhum sentido no corpus teórico de sua disciplina ou para o paradigma no , ren~a entre "idiomas culturais", a saber, entre o mundo do pesquisadot;-O)
IÊIerior do flllêl.O eesquisador foi trei'n~d"o: Niio'q~~ro discutiraqui a que5=' ~-ao na~ esse mundo estranho n()__9..t:l.<J::l9_~jamos penetrar. De resto, há
tão dos paradigmas; pude fazê-lo em meu livro Sobre opensamento antropoló- de se entender o nosso mundo, ó:do pesquis~~ como sendo Ocidental,
gico e não penso ser indispensável abordá-la aqui. Bastaria entendermos c~nstituido minimamente pela sobreposição de duas subculturas: a~
que as disciplinas e seus paradigmas são condicionantes tanto de nosso Qpelo m.eno·s no caso da maioria do público leitor; e a:-:áÍ1.trop~
I:
olhar como de nosso ouvir. I no caso parucular daqueles que foram tremados para se tornarem profissi-
Imaginemos uma entrevista por meio da qual o pesquisador pode obter onais da disciplina. E é o confronto entre esses dois mundos que constitui
informações não alcançáveis pela estrita observação. Sabemos que autores o contexto no qual ocorre a entrevista. É, portanto, em um contexto es-
como Radcliffe-Brown sempre recomendaram a observação de rituais para sencialmente problemático que tem lugar o nosso ouvir. Como podere-
estudarmos sistemas religiosos. Para ele, "no empenho de compreender mos, então, questionar as possibilidades da entrevista nessas condições tão
uma religião, de~emos primeiro concentrar atenção mais nos ritos que nas delicadas?
crenças".4 O que significa dizer que a religião podia ser mais rigorosamente Penso que esse questionamento começa com a pergunta sobre qual a
observável na conduta ritual por ser essa "o elemento mais estável e dura- natureza da relação entre entrevistador e entrevistado. Sabemos que há
douro", se a co~par~~s-çomas crença~ Porém, iss~nãoquer dizer que uma longa e arraigada tradição, na literatura etnológica, sobre a relação
mesmo essa conduta, sem as idéias que a sustentam, jamais poderia ser "pesguisador/informante". Se tomarmos a clássica obra de Malinowski
inteiramente compreendida. Descrito o ritual, por meio do olhar e do ou- como referência, '~omo essa tradição se consolida e, praticamente,
vir - suas músicas e seus cantos - , faltava-lhe a Iena éompr_~ensão~ . trivializa-se na realização da entrevista. No ato de ouvir o "informante" o
seu Jel/tido para o povo que o realizava e sua . ni ca ã para o antropólogo etnólogo exerce um poder ex~~a()rdinário sobre o mesmo, ainda que prete~
que o observava em toda sua exterioridade. s Por isso, a obtenção de expli- da posicionar-se como observador o mais neutro possível, como pretende
cações fornecidas pelos próprios membros da comunidade investigada o objetivismo mais radic~.: Esse poder, subjacente às relações humanas _
permitiria obter aquilo que os antropólogos chamam de "~odelo l1ativo'-', que autores como Fôuc~ul:Uamais se cansaram de denunciar - , já na rela-
matéria-prima para o entendimento antropológico. Tais explicações nati- ção pesquisador/informante desempenhará uma fU{1ção profundamente
vas só poderiam ser obtidas por meio da entrevista, portanto, .cie· um ouvir empo brecedÇl!_a_.sto~~or:.<?gnitivo: as pergun.~as' feitas em busca de respo's-
todo especial. Contudo" 12ara isso, ~ se saber ouvir. •. .~ tas pontuais lado a lado da ~torida~-quem as~ - com ou sem
Se, ap~lrentemente, a entrevista tende isei encarada como algo sem autoritarismo - , criam um campo ilusór.i_()~e interaç~ A rigor, não há
maiores dificuldades, salvo, naturhlmente, a limitação lingilistica - isto é, verdadeira interação entre nativo e pesquisador, porquanto na utilização
o fraco dominio do idioma nativ;o pelo etnólogo - , ela torna.-se muito daquele como informante, o etnólogo não cria condições de efetivo diálogo.
mais complexa quando consideramos que a maior dificuldade es'tá na difu- .A relação não é dialógica~ Ao passo que transformando esse informante
'----- ..
em "interlocutor", uma nova modalidade de relacionamento pode - e
deve - ter lugar. 6
4 Cf. Radcliffe-Brown, "Religião e sociedade", in Estrutura efunção na sociedade pn'mitiva,
p,194.
5 Aqui faço uma distinção entre "sentido" e "significação". O primeiro termo consa-
gra-se ao horizonte semântico do "nativo" - como no eXémplo de que estou me
6 Esse é um tema que tenho explorado seguidamente em diferentes publicações, Indi-
valendo - , enquanto o segundo termo serve para designar o horizonte do antropólo-
caria especialmente a conferência, intitulada 'Y\, antropologia e a crise dos modelos
go - que é constituido por sua disciplina. Essa distinção apóia-se em E. D. HirschJr.
explicativos", reproduzida neste volume como seu capítulo 3.
',- Va/idity in Interpretation, apêndice 1 - que, por sua vez, apóia-se na lógica fregeana.

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Roberto Cardoso de Oliveira O lrabalho do antropológo: olhar, ouvir, escrever

Essa relação dialógica - cujas conseqüências epistemológicas, todavia, ~


não cabem aqui desenvolver - guarda pelo menos uma grande superiorida- Se o olhar e o ouvir podem ser considerados como os atos cognitivos
de sobre os procedimentos tradicionáis de entrevista. Faz com que os ho- mais preliminares no trabalho de campo - atividade que os antropólogos
rizontes semânticos em confronto - o do pesquisador e o do nativo - designam pela expressão inglesa fteldwork - , é, seguramente, no ato de
---------
abram-se um ao outo de maneira a transformar um tal confronto em um escrever, portanto na configuração final do produto desse trabalho, que a
verdadeiro éncontro etilo rá '. Cria um espaSJ21:':!P}qÜm partj!ba~ questão do conhecimento torna-se tanto ou mais crítica. Um interessante
..!20r ambos interlocutorss., graças ao qual pode-ocorrer aquela "fusão de livro de Clifford Geertz - Trabalhos e vidas: o antropólogo como autor- ofere-
horhontes;' ~ como os hermeneutas chamariam esse espaço - , desde que ce importantes pistas para o desenvolvimento desse tema. 6 ~arte da
o pesquisador tenha a habilidade de ouvir o nativo e por ele ser igualmente idéia de separar e, naturalmente, avaliar duas etapas bem distintas na inves-
I ouvido, encetando formalmente um.diª!ogo entre "iguai(. sem receio de tigação empírica: a primeira, que procura qualificar como a do antropólo-
~i estar, :ssim, contaminando o discurs~ do nativo c~m element~s de s.ell p.tÓ- go ~ando~ f!2!rey, isto é, vivendo a situação de estar no
. ptlO discurso. Mesmo porque, acred1tar ser pOSSIVel a neutralidade Idealiza- a
campo; e segunda, que seguiria à essa, corres onderia à experiência de
da pelos defensores da objetividade absoluta, é apenas viver em uma doce viver, melhor dizendo, trabalhar e§tgfldo a ui" -,- bein ere ,a saber,
ilusão. Ao trocarem idéias e informações entre si, etnólogo e nativo, ambos bem instalado em seu gabinete urbano, gozando o convívio com seus cole-
igualmente guindados a interlocutores, abrem-se a um diálogo em tudo e por gas e usufruindo tudo o que as instituições universitárias e de pesquisa
tudo superior, metodologicamente falando, à antiga relação pesquisador/in- podem oferecer. Nesses termos" o olhar e o ouvir seriam parte da primeira
formante.,? ouvir ganha em qualidade e altera uma relação, qual estrada de etapa, enquanto o escrever seria parte d>l ~egwAeQ.,.
mão única, em uma outra d~ t?ã()AY121al p_ortan~()Lum<tyerd~deirainteras;ão. Devemos entender, assim, por escrever o ato exercitado por excelência
Tal interação na realização de uma etnografia, envolve, em regra, aquilo no gabinete, cujas características o singularizam de forma marcante, sobre-
que os antropólogos chamam de "observação Eard~iRaiíte;', o que signifi- tudo quando o compararmos com o que se escreyeJlo~~!t}2º, seja_-ªº
ca dizer que ~ pesquisador assume umpapelperfeitamenRdigerí~~.lil_ fazermos nossg d.i~rio, seja nas anotações que rabiscamos em nossas ca-
sociedade ghserv2da, a pOnto de viabilizar uma aceitação senão ótima pe- ~'tas. 'E se tomarmos ainda Geertz por referência, ven;\os que na ma-
los membros daquela ~ociedade, pelo menos afável, de modo a não impe- neira pela qual ele encaminha suas reflexões,. é o escrev:r "~tando~'~
dir a necessária interação. Mas essa observação participante nem sempre portanto fora da situa~ão de campo, que cumpre sua maIsm.~a~çaº-cog~,
tem sido considerada como geradora de conhecimento efetivo, sendo-lhe nitiva. Por quê? Devído ao fato de iniciarmos propriamente no gabinete o
freqüentemente atribuída a função de geradora de hipóteses, a serem testadas proc;;so de ~ali~:a~os fenô~en~s s.ócio~culturais observados "es-
por procedimentos ~ológicos - esses sim, explicativos por excelência, tando lá".] á as éondiçoes de textualtzaçao, ISto e, sle trazer os fato~ obser-
capazes de assegurar u~õnhecimento proposicional e positivo da reali- vados - vistos' e ouvidos - para" o plano do discurso,_não deixam de ser
, i i dade estudada. No meu entender, há um certo equívoco na redução da ;nuit~ pa'rtic~l~res e exer~err;, por'sua vez, um ~el d%fiiillIYIDtanto no
observação participante e na empatia que ela gera a um mero processo de processo de comunicação inter pares - isto é, no seio da comunidade pro-
construção de hipóteses. Entendo que tal modalidade de observação reali- fissional - , como no de conhecimento propriamente dito. Mesmo por-
za um inegável ato cognitivo, desde que a compreensão - Verstehen - que
lhe é subjacente capta aquilo que um hermeneuta chamaria de "exçedente ,
de sentidQ", isto é as significações - por conseguinte, os dados - que
7 O título da edição original é Works and /ives: The anthropologist as aulhor. Há uma tradu-
e-~~apam a quaisquer metodologias de pretensão nomológica. Voltarei ao ção espanhola, publicada em Barcelona.
tema da observação participante na conclusão. '.,j, r ((' (C (~"'~~'o

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Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do anlropo/ógo: olhar, ouvir, escrever

que há uma re!~~ dialéticas:.m~somunicar e oconhecer, pois ambos Penso, nesse sentido, na questão da autonomia do autor/pesquisador no
pa:tjlham de uma mesma condição: a que é dadã];e1alin,li;UageJD. Embora exercício de seu métier. Quais as implicações dessa autonomia na conversão
a linguagem, como tema de reflexão, seja importante em si mesma, nesse dos dados observados - portanto, da vida tribal, para ficarmos com nos-
movimento que poderíamos chamar "guinada lingüistica" - ou linguistics sos exemplos - no discurso da disciplina? Temos de admitir qtle mais QQ.."
tUrJi-, que perpassa atualmente tanto a filosofia como as ciência sociais o ue uma tradução da "cultura nativa" na "cultura antro oló .ca" - isto é,
aspecto que desejo tratar aqui, mesmo se muito sucintamente, é o da dis~i­ no 1 oma e minha disciplina - , realizamos um~ittlerprelação que, por sua
plina e de seu próprio idioma, por meio dos quais os que exercitam a an- vez, está balizada elas cat or "onceitos básicos constitutivos
tropologia - ou outra ciência social- pensam e comunicam-se. Alguém ,- a lsciplina. Porém, essa autó~;;;;;'i~ ~-pi~tê;;;i~a não está de môdo algum
já escreveu qne O homem não pensa sozinho, em um monólogo solitário, desvinculada dos dados - quer de sua aparência externa, propiciada pelo
imas o faz soci:almeQte, no interior de uma "comunidade de c<i.IDlJOjçação" olhar; quer de seus significados íntimos ou do "modelo nativo", propor-
l,e "d:. argW)1.entação".8 Ele está, portanto, contido no espaço interno de
um horizonte socialmente construído - o de sua própria sociedade e de
cionados pelo ouvir. Está fundada nesses dados, com relação aos quais
tem de prestar c?ntas et;:! ;}jrii11.n];;m'ento º.o
e.sçr.ever. 6que sIgnifica
sua comunidade profissional. Desculpando-me pela imprecisão da analo- 91zer que há de se permitir sempre o controle dos d~ela comuni~
gia, diria que ele se ...eens? no interi~~__ 9F ug:1a "repres~w:acão co~etiya": de pares, isto é, pela comunidade profissional. Portanto, sistema concei-
expressão essa, afinal, bem familiar ,ao cientista social e que, de certo modo, tual, de um lado, e, de outro, os dados - nunca puros, pois, já em uma
dá uma idéia aproximada daquilo que entendo por "idioma" de uma disci- primeira instância, construídos pelo observador desde o momento de sua
plina. Como podemos interpretar isso em conexão com os exemplos etno- descrição, 10 guardam entre si uma relação dialética. São inter-influenciáveis.
gráficos? O momento do escrever, marcado por uma interpretação de e no gabinete,
Diria inicialmente que a textualização da cultura, ou de nossas observa- faz com que aqueles dados sofram uma nova "refração", uma vez que todo
ções sobre ela, é um empreendimento bastante complexo. Exige o despojo o processo de escrever, ou de ittscreveras observações no discurso da disci-
de alguns hábitos no escrever, válidos para diversos gêneros de escrita mas plina, está contaminado pelo contexto do beittg here - a saber, pelas con-
que para a construção de um discurso disciplinado por aquilo que se pode- versas de corredor ou de restaurante, pelos debates realizados em congres-
ria chamar de "(meta)teoria social" nem sempre parecem adequados. É, sos, pela atividade docente, pela pesquisa de biblioteca ou library jie/dwork,
portanto, um discJltso g1!e 50' Enoda em uma atitude toda particular que como, jocosamente, se costuma chamá-la, entre muitas outras atividades,
poderiamos definir como antro oló' ~ " ' . Para Geertz, por enfim pelo ambiente acadêmico.
exemplo, poder-se-ia entender toda tn_<2g!:~ la ou sociografia, se prefe- Examinemos um pouco mais de perto esse processo de textualização,
rirem - não apenas como tecnicamente diFícjl, uma vez que colocamos tão diferente do trabalho de campo. No dizer de Geertz, seria perguntar o
vidas alheias em "nossos" textos, mas, sobretudo, por esse trabalho ser que acontece com a realidade observada no campo quando ela é embarca-
"moral, política e epistemologicamente de1icadíi'.9 Embora Geertz não da para fora? - '1Phaf happens lo reali!] JjJhen it is shippe!_ab[Qad?'.'.-:::- .E:ssa
desenvolva-essa afÍrm~ç-ã.o,comosed~d~' ~~ d'~sejar, sempre podemos fazê- pergunta tem sido constante na chamada "a~bp~logia J~~oder~à)
lo a partir de um conjunto de questões,

8 10 Meyer Portes, já nos anos 1950, chamava esse processo - quase primitivo de investi-
Cf. Karl-Otto Apel, "La comunjebcl de comunicación como presupuesto trascenclental
de las ciencias socialcs", in 1.Á11/<III,!fol7l1r1ciól1 de Irlfilo,rofirl, tomo 11. t,'llção etnográfica no :lmbito da antropologia social - 'i!tlfl/ytie,,/ de,rcnj!liotl", Cf: M.
I ~,rtes. "Analysis anti (ksnipti()!1 in soci,,1 anl hf'()I'"k~\y". in 'I/ir ,/{b'dtl«'fllrIll /1/ .rtirrll'r.
'i ( :Ii CC,)I'I I ( ; "'TI~. //·'i'l;{:.r (Iltr! lil'('.r: 'f lI!' (1fI1/!f'l1)()Ir~I:ifl rI.r (/fII/!o/; p, I :11 I,
Vil!. X. PI I! ')11·:).11 I.

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Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do alltropo/ógo: olhar, OI/vir, eScrever

movimento que vem conquistaE:.ª?Jtlgar na disciplina, a partir dos anos certo modo, multos de nós, atualmente - refletem sobre a peculiaridade
1960, e que, màlgrado seus ~~__e9_~~ - sendo, talvez, o principal, do ~rever um texto que seja Cclntr?lável pelo leitô~ e i~s.o n: medi~a e~
a i~caçã~_(il:l:~ fa~ dagpktividade"com a su~_~()dalidade perversa, o que distinguimos tal texto da narratlva meramente literatla. Ja menCIOne!,
oo/e~vismo- canta a seu favor o fato de trazer a questão do.texto etnográ- momentos atrás, o diário e a caderneta de campo como modos de escrever=
fico como tema de reflexão sistemática, como algo que não pode ser toma- .> .s,ue se diferenci~-claramente do text()~t:t:()qr_~?CO fi~i1, I:ocleria acresce~-
do Iracitamente, como tende a ocorrer em nossa comunidade profissio- tar segw'ndo os mesmos autores que tambem os, os e as teseS cade-
, ' ~
nal,ll Apesar de Geertz ser considerado como o grande inspirador desse micas devem ser consideradas como "versões escritas interme arlas", uma
movimento, que reúne um extenso grupo de antropólogos, seus membros vez que, na elaboração da monografia - essa sim, ; texto flnal-, exigên-
não participam de uma P?sição univoca eventualmente ditada pelo mes- cias específicas devem ou deveriam ser feitas. Mencionarei simplesmente
tre,12 A rigor, a grande idéia que os une, afora o fato de possuírem uma algumas, preocupado em não me alongar multo nestas C<:l11~}9~r:ções.
0.E.entação de base hermenêutic~}nspirada em pensadores com~~ Desde logo, cabe uma distinção entre as ~nografias clássiêৠe as
Heideg~r, Gadame~)ou Ricoeur, essa idéia é a de se colocarem contra o modernas.; Enquanto as primeiras foram concebidas de conformidade com
que cõnsideranisero mocfõtrã'dicional de se fazer antropologia e isso, ao ~rutura narrativa normativa" que se pode aferir a partir de uma)
que parece, com o intuito de rejuvenescerem a antropologia cultural norte- disposiçã;-cl~ -~~pitulos quase ~;~6cica - território, economia, organiza-
americana, órfã de um grande teórico desde Franz Boas, ção social e parentesco, religião, mitologia, cultura e personalidade, entre
Quais os pontos que poderíamos assinalar como condutores à questão outros - , as segundas priorizam um tema, por meio do qual toda a ~ocie­
central do texto etnográfico? Texto, aliás, que bem poderia ser sociográfico, dade ou cultura passa a ser descrita, analisaª_~~. i!!~~EE.~_tada. Um bom
se pudermos estender, por analogia, para aqueles mesmos resultados a que "exemplo de mOfiografiasaesSeséG;i1do dpo é a de Victor Turner, ':Cism.a~ )
chegam os cientistas sociais, não 'importando sua vinculação disciplinar, e continuidade em uma sociedade africana", gue manifesta com mwta feli-) .
Talvez o que torne o texto etnográfico mais singular, quando o compara- cidade as possibilidades de uma aÊ.réênsã.o·h-;~, porém concentrada
mos com outros devotados à teoria social, seja a, articulação que busca em um único grande tem2.,_ capaz de proporcionar uma idéia dessa socieda-
entre o tr.~,~al~~~.?e ~?-mpo e a construção do texto. George Marcus e Dick -de como entidade extraordinariamente viva. ,Essa visão holística, todavia,

~aã:~!~~C~;~~~~~~-::;~~:;;r~~;:~~~~~~~~~~~1~~~Jt~~~~:-
Cushman,13 chegam a considerar ue a etno rafia poderia ser definida como
" a representação do -t;ab~_ .. _~::. cam o em texto 14 Todavia, isso tem )
vátl~mp-caâores, como eles ~~smos reconhecem. Tentarei indicar al- pre deve ser tomada ar refer_~ncia," ,-
guns, seguindo esses mesmos autores, além de outros que, como eles - e, de -,.- Um t rceiro tlp seria o das chamadas "mono&9fias exl'eri_tp~::
.~lJlode!Qas",como defendidas por Marcus e Cush~an, ma,s ~ue, nes-
te momento, não gostaria de tratá-las sem um exame crítiCO prelitnlnar que
11 Cf. meu artigo, "A categoria de (des)ordem e a pós-modernidade da antropologia", in me parece indispensável, pois iria envolver precisamente minhas restrições
Allllcín'o Alltropológico, nU 86, 1988, pp.57 -73; também no livro Sobre opensa!J/ento alltropO"
ao que considero como característica dessas monografias: o desprezo gue
lógico, Capítilo 4.
seus autores demonstram em relação à necessidade de controle dos dados
12 Para uma boa idéia sobre a variedade de posições no interior do movimento herme-
nêutico, vale consultar o volume Wn'fillg m/fure: iDe pOe/ia (lI1d politic! if ethllograpqy,
et~og!áfi~~S, tema, aliás, sobre o-quaCtenhõ -me'ú:férrdõpor diversâsve-
James Clifford e George E, Marcus (orgs,), z~·s, -quando procuro mostrar que alguns desenvolvimentos da antropolo-
13 Cf. George E, lvIarcus e Dick Cushman, "Ethnographies as textes", in Allllual Review gia pós-moderna resultam em uma p~ do_~ró?Ei? 2~~c!!wa her-
ej/1.1t!;ro/;c!ogy, r? 11, 1982,pp, 25-69, menêutica, Essas monografias chegam a ser qllaS~ll1~t1:1!.st"ãs, 1mpondo ao
14 Idem, p. 27, 'í~itor a constante presença do autor no texto. É um tema sobre o qual tem

28 29
O trabalho do alltropológo: olhar, ollvir, escreuer
Roberto Cardoso de Oliveira

É importante também reavivar um outro aspecto do processo de cons-


havido muita controvérsia, mas não penso que seja aqui o melhor lugar
trução do texto:'apesar das críticas, o terceiro tipo de monografia traz uma
para aprofundá-lo. 15
inegável contribuição para a teoria social. Marcus e Cushman observam,
, Porém, o fato ele se escrever na primeira pessoa do singular - como
relativamente à influência de Geertz na antropologia, que, com ele,
) parecem recomendar os defensores desse terceiro tipo de monografia -
. não significa, necessariamente, que o texto deva ser intimista. Deve signifi- a etnografia tornou-se um meio ~e falar sobre teoria, filos~~a e epist.emO-\)
car, simplesmepte - e quanto a isso creio que todos os pesquisadores logia simultaneamente no cumpnmento de sua tarefa tradiclOnal de mter-
podem estar de acordo - , que o autor não deve se esconder siste.matica- pretar diferentes modos de vida. 16
mente sob a capa de um observador impessoal, coletivo, onipresente e Evidentemente. que, ao ~evar a produção do texto em uivel de reflexão.
onisciente, valendo-se da primeira pessoa d~ plural: n6s.É- darõ· que sem- sobre o escrever, a disciplina está orientando sua camjnhada paro as itfWíi1:-
pre haverá situações em que esse nós pode ou deve ser evocado pelo autor. dãs -ineta-teóriê$$?gue poucos alcançaram.:e-Talvez O exemplo mais conhe-
Não deve, contudo, ser o padrão na retórica do texto. Isso me parece im- cido, entre os antropólogos vivos, sl~ja o de Lévi-Strauss no âmbito do
portante porque com o érescente reconhecimento da pluralidade de vozes estruturalismo, de reduzida eficácia na pesquisa emográfica. Com Geertz e
que compõem a cena de investigação etnográfica, essas vozes têm de ser sua antropologia interpretativa, verifica-se o surgimento de uma prática
distinguidas e jamais caladas pelo tom ünperial e muitas vezes autoritário meta-teórica em processo de padronização, em que pesem alguns escorre-
de um autor esquivo, escondido no interior dessa primeira pessoa do plu- gões de seus adeptos para o incimismo, como mencionado há pouco. En-
ral. No meu entendimento, a chamada antropologia polifônica - na qual tendo que .para se elaborar o bom texto etnográfico, deve-se pensar as)
teoricamente se oferece espaço para as ;ozes de todos os"~tor~s do cenário condições, de S2!} produc§o a partjr das etapas iniciais da obtepção qQs
etnográfico - remete, sobretudo, para a responsabilidade específica da dados - o olhar e o ouvir - , o que não quer dizer que ele deva emara-
, y02.lí;;Lilt1rrQ PÓ]ggQ autor do djscl)"rsQmp:p'~i9s1~-'fIT~c:i.l2liE.a, qu";;-náo pode nhar-se na'subji~viê!aâéao autor/pesquisador. Antes, o que está em jogo
ficar obscurecido ou substituído pelas transcrições das falas dos entrevis- é a~'lntersub}etiv~ - esta de caráter epistêmico - , graças à qual se
tados. Mesmo porque, sabemos, um bom repórter pode usar tais tmnscri- articulam , em um mesmo hotizoJ/le león'co, os membros de sua comunid:)de
.-~----,
çôes com muito mais arte. profissional. E é o reconhecimento dessa intersubjetividade que torna o
antro-p6logo moderno um cientista social menos ingênuo. Tenho pata mim
15 De uma perspectiva crítica, ainda que simpática a essas monografias experimentais, que talvez seja essa uma das mais forres contribuições do paradigma her-
leia-se o artigo da antropóloga 1~resa Caldeira, intitulado .~ presença do autor e a menêutico para a disciplina.
pós-modernidade da antropologia", em Novos E/tudos, Cebrap, nO 21, jul. 1988, pp.

~
133-157.]á de uma perspectiva menos favorável, cf., por exemplo, o artigo-resenha de
Wilson Trajano ri1ho, "Que barulho é esse, o dos pós-modernos" e o de Carlos raus-
to, "A antropologia xamanística de Michael Taussig e as desventuras da etnografia", Examinados o olhar, o ouvir e o escrever. A que conclusões podemos
ambos publicados no AIIJ{án'o AI1/ropológico, n~ 86, 1988, respectivamente às pp. chegar? Como procurei mostrar desde o inicio, essas "faculdades" do espí-
133-151 e pp. 183-198; e o de Mariza Peirano, "O encontro etnográfico e o diálogo
rito têm características bem precisas quando exercitadas na órbita das ciên-
teórico", inserido em sua coletânea de ensaios Uma all/rop%gia 110 plllra/, como seu
Capítulo 4. Para uma apreciação mais genérica dessa antropologia pós-moderna, na cias sociais e, de um modo todo especial, na da antropologia: Se o olhar e o
qual se procura apontar tanto seus aspectos positivos - no que se refere à contribui- ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesguisa
ção do paradigma hermenêutico para o enriguecimento da matriz disciplinar da antro- ~mpírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pens~
pologia - , como os aspectos negativos daquilo gue considero ser o "desenvolvimen-
to perverso" desse paradigma, conferir artigo - versão final de conferências proferi-
das em 1986 - indicado na nota 11. 16 Geotge E. Marcus e Dick Cushman, "Ethnographies as textes", p. 37.

31,
30
Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do antropológo: olhar, OI/vir, escrever

!!2.~nto,1.llllil. vez que o ato de escr~ver é simultâneo ao ato de pensar. Que- para a prática da disciplina, diríamos que pelo menos duas dessas "idéias-
ro chamar a atenção sobre isso, de modo a tornar-clúOcjue =pelo menos ~' m~cam o fazer antropológico: '~~õ5*2'açãoe~'~;e a
no meu modo de ver -1 no processo de redacão de um texto que PQSSO "relativizaç~ Entre nós, Roberto Da iYf'atta chamou a atenção . sobre a
,~

ensamento caminha, e9contrando soluções ue dificilmente a arecerão relativização em seu livro fulativizando: Uma introdução à antropologia sodal,17
antes~a textualiza ão os--dado~ rovenienres--da obsérvação sistemática. mostrando em que medida,o relativizar é co~stitúinte do próprio conheci-
Assim . --o, seri~~m eq~~~co imaginar que, primeiro, chegamos a con- mento antrof201ógico. Pessoalmente, entendo por relativizar uma_atitude
clusões relativas a esses mesmos dados, para, em seguida, podermos ins- epist_~titi~a,~~nentemente antropológica, graças à qual o pesquisad~r lo-
crever essas conclusões no texto. Portanto, dissociando-se o pensar do gra escapar da ameaça do etnocentrismo - essa forma habitual de ver o
• I escrever. Pelo menos minha experiência indica que .,2, ato de escrever e o d~ mundo que cirqinda o leigo, cuja maneira de olhar e de ouvir não foram
. "eensar são de tal forma solidários entre si que, juntos, formam pratica- disciplinadas pela antropologia. E se poderia estender isso ao escrever, na
jll.eAt® um mesmo ~to cO@2itivb.;JsSO significa que, nesse caso, o texto não medida em que, para falarmos com Crapanzano,18 "o escrever etnografia é
espera que seu autor tenha primeiro todas as respostas para, só então, po- uma continuação do confronto" intercultural, Eorranto entre p~sguisadot
der ser iniciado. Entendo que na elaboração de uma boa narrativa, o pes- ~ pesquisado. Por conseguinte, uma continuidade do olhar e do ouvir no
quisador, de posse de suas observações devidamente organizadas, inicia o .::screver, esse último igualmente marcado pela atitude relativista. 19
processo de textualização - uma vez que essa não é apenas uma forma
escrita de simples exposição, pois há também a forma' oral - , concomi-
tante ao processo de produção do conhecimento. Não obstante, gndo o 17 Editado pela Vozes, em 1981, o volume é uma boa introdução à antropologia social
que recomendo ao leitor interessado na disciplina, precisamente por não se tratar de
ato de escrever pm ato ig;J12!;;pegte cognitivo, esse ato tende a ser regetiqo
um manual, porém de um livro de ref1exiio sobre o fazer antropológico, apoiada na
quantas vez~s fqrpccessário: potl:;lPto, ele ~e_sçriçO e!.reescrito re.eetida- rica experiência de pesquisa do autoJ: Já em uma direç~o um pouco diferente, posicio-
,ment,;., não apep?ç pat;a ólperfeiçoar o texto do ponto d~ vista formal quanto nando-se contra certos exageros anti-relativistas, Clifford Geert7. escreve seu '~t:i

I para melhorar a veracidade das descrições e da narrativa, aprofundar a aná:


lise e consolidar ;u;gJlmeQtos.
Isso, por si só, não caracteriza o olhar, o ouvir e o escrever antropoló- 18
anti-relativismo", tradu7.ido para o português na Revista Brasileira de Ciências Sociais, voJ.
3, nO 8, out. 1988, pp. 5-19, que vale a pena consultar.
Cf. Vincent Crapanzano, "On the writing of ethnography", in DialecticalAnthropology,
nO 2, 1977, pp. 69-73. Muitas vezes, por razões estilísticas - observa Crapanzano-
gicos, pois está presente em toda e qualquer escrita rio interior das ciências "isola-se o ato de escrever, e seu produto final (o texto), da própria confrontação.
sociais. Contudo, 90 que tange à antropologia, como procurei mostrar, Qualquer que seja a razão para essa dissociação, permanece o fàto de que a confron-
"esses atos estão prev;am.eAte comprometidos com próprio horizonte da ° tação não termina antes da etnografia mas, se se pode dizer ao fim de tudo, é que ela
disciplina. em que olhar, ouvir e escrever estão cksde seml2re sintOJ1i~adg,.$ termina com a etnografia" [p. 70].
com o sistemq..4.~j4.éias e valores g!ue. são L;!r6p1'ios da disci~ O quadro 19 Eu faço uma distinção entre "atitude relativista" - que considero ser inerente à pos-
conceitual da antropologia abriga, nesse sentido, idéias e valores de difícil tura antropológica - e "relativismo", uma ideologia científica. Esse relativismo, por
seu caráter radical e absolutista, não consegue visualizar adequadamente questões de
separação. Louis Dumont,)esse e~celente antropólogo francês, chama isso
moralidade e de eticidade, sobrepondo, por exemplo, hábito a nowa moral e justifican-
de "i~éJ..::~yalor", 16 unindo assim, em uma única expressão, idéias que pos- do esta por aquele. Tive a ocasião de tratar desse tema mais detalhadamente em meu
suem uma carga valorativa extremamente grande. Ao trazer essa questão "Etnicidad y las possibilidades de la ética planetária", in Antropológicas: Revista de D!lI/JÍólI
dei Institl/to de Investigaciones Antropológicas, México: UNAM, nO 8, out 1993, pp. 20-33;
uma segunda versão foi publicada na Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS, ano
16 Cf. Louis Dumont, "La valeur chc7. les modernes et che7. les autres", in Essais sur 9, nO 24,1994, pp. 110-121, com o título '\\ntropologia e moralidade", inserida na
/'individl/alisme: Une perspective anthropologiql/e sI/r J'idéoJogie moderne, Capítulo 7. Há uma coletânea Ensaios antropológicos sobre moral e e'tica, de Roberto Cardoso de Oliveira e Luis
tradução brasileira. R. Cardoso de Oliveira, Capítulo 3.

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Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do antropológo: olhar, ouvir, escrever

Uma outra idéia-valor a ser destacada como constituinte do ofício an- é próprio. E, por analogia, poder-se-ia dizer que isso ocorre também em
tropológico é a "<.>bservação participante~ que já mencionei momentos outras ciências sociais, em maior ou em menor grau. Isso significa que o
atrás. Permito-me dizer que talvez seja éla'a responsável pela caracteriza- olhar, o ouvir e o escrever devem ser sempre tematizados ou, em outras
ção do trabalho de campo antropológico, distinguindo-a, enquanto disci- palavras, questionados enquanto etapas de constituição do conhecimento
plina, de suas irmãs nas ciências sociais. Apesar dessa observação partici- pela pesquisa empírica - essa última vista como o programa prioritário
pante ter alcançado sua forma mais consolidada na investigação etnológi- das ciências sociais. Trazer esse tema à consideração, pareceu-me, enfim,
ca, junto a populações ágrafas e de pequena escala, isso não significa que apropriado porque entendo que talvez venha a contribuir ao estímulo de
ela não ocorra no exercício da pesquisa com segmentos urbanos ou rurais reflexões de caráter interdisciplinar, uma vez que os diferentes atos cogni-
da sociedade a que pertence o próprio antropólogo. Dessa observação tivos examinados não são estranhos às demais ciências sociais. O que to r-
na qualquer experiência antropológica - e não apenas a minha - objeto J
\J
participante, sobre a qual muito ainda se poderia dizer, não acrescentarei
mais do que umas poucas palavras; apenas para chamar a atenção para uma de interesses que transcendem a disciplina. E foi com esse intuito que es-
modalidade de observação que ganhou, ao longo do desenvolvimento da colhi o presente tópico - e me darei por satisfeito se houver conseguido
disciplina, um statlls elevado na hierarquia das idéias-valor que a marcam transformar atos aparentemente tão banais, como os aqui examinados, em
emblematicamente. Nesse sentido, os'ato~deolhar e de ouvir são, a rigQ!" temas de reflexão e de questionamento,
,funções qeum_gêneLQ~e .observação muito peculiar - isto é, peculiar à
antropologia ~,Eor meio daqual o~esq!ljsador busca interpretar ou
co.mpreender - a socied'áde e a cultura do outro "de dentré, e'm sua·
'jerdãéIélra irÚriorida~e. Ao tentar penetrar em form~~ devid~q~e lhe são
estranhas, a vivência que delas passa a ter cumpre uma função estratégica
no ato de elaboração do texto, uma vez que essa vivência - só assegurada
pela observação participante "e~tando lá"- passa a ser evocada durante
toda a interpretação do material etnográfico no processo de sua inscrição
, no discurso da disciplina. Costumo dizer aos meus alunos que os dados
/! contidos no diário e nas cadernetas de campo ganham em inteligibilidade
\ \. sempre que rememorados pelo pesquisador; o que equivale dizer, que a
r?e1l2?Eyonstitui provavelmente o elemento mais rico na redação de um
texto, contendo ela mesma uma massa de dados cuja significação é melhor
alcançável quando o pesquisador a traz de volta do passado, tornando-a
presente_~ de escrever, Seria uma espécie de presentificação do passa-
do, com tudo que isso possa implicar do ponto de vista hermenêutico, ou,
em outrlS palavras, com toda a ü?-fluência que o "estando aqui" pode trazer
para a compreensão - Verstehm - e interpretação dos dados então obti-
dos no campo.
Paremos por aqui. Em resumo, vimos, por intermédio da experiência
antropológica, como a disciplina condiciona as possibilidades de observa-
ção e de textualização sempre de conformidade com um horizonte que lhe

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