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CORNO E CONTENTE

de Lope de Rueda

Tradução Leticia Rebollo e Miguel Ángel Zamorano (Grupo ETTE)

Terceiro passo, muito engraçado, no qual se introduzem as seguintes pessoas:

Lúcio – médico doutor


Gerônimo – estudante
Martín de Villalba – simples
Bárbara – mulher de Martín

LÚCIO ¡Oh, miserabilis doctor, quanta pena paciuntur propter


miseriam1! Que falta de sorte é esta? Como pode que durante todo
o dia, eu ainda não tenha receitado nada?
Pois, veja quem surge para atenuar minha penúria! Este é um tolo
cuja mulher o fez crer que está doente para se divertir com um
estudante. E ele é tão inoportuno que não deixa de me fazer pelo
menos duas ou três visitas ao dia. Mas, vamos lá porque enquanto
ele tiver frangos ciscando no seu quintal, por mim, que sua mulher
nunca deixe de ter febre... Aproxime-se bom senhor Alonso de ...
MARTÍN Não, não senhor Doutor: Chamo-me Martín de Villalba, ao seu
dispor.
LÚCIO Salus adque vita in qua Nestoreos superetis días. Para que isto2
irmão Martín Villalba?
MARTÍN Senhor perdoe-me que ainda sejam galetos. Mas, cure minha
mulher, que lhe prometo um ganso que estou a engordar.
LÚCIO Que Deus os dê saúde.

1
A profissão de médico tinha uma fama péssima na época e é constantemente satirizada em diversos
gêneros literários. Aqui se apresenta o doutor dissimulando sua ignorância e fazendo uso dum latim
macarrónico, recurso típico dos entremezes, em um ato de arrogância pedante. O emprego de diversos
jargões se vincula a uma técnica de caraterização, muitas vezes degradante e ridícula, dos tipos sociais
representados em passos e entremezes, como prostitutas, rufiões, biscainhos, pícaros, bobos, soldados,
etc.
2
Dêixis. À vista do doutor o presente que lhe traz Martín Villalba.
MARTÍN Não, não, primeiro à minha mulher, pela graça de Deus, senhor.
LÚCIO Menino3, pegue esses frangos e feche a gelosia.
MARTÍN Não precisa senhor, que estes frangos não voam. Vossa mercê
sabe como comê-los?
LÚCIO Não ao certo.
MARTÍN Veja: primeiro deve matá-los e depená-los, e depois, jogar fora as
penas e os miúdos, caso estiverem estragados.
LÚCIO E depois?
MARTÍN Depois, cozinhe-os e coma-os, a gosto.
LÚCIO Parece-me bom, tudo isso. Mas diga-me, como passou esta noite
a sua mulher?
MARTÍN Senhor, descansou um pouco porque como dormiu em casa
aquele seu primo, o estudante, que tem a melhor mão de
curandeiro do mundo, não ouvi esta noite nenhum “ai, aqui me
dói”.
LÚCIO Eu acredito.
MARTÍN Guarde-nos Deus do diabo!
LÚCIO E continua em casa?
MARTÍN Pois se não fosse assim ela estaria morta.
LÚCIO E, ela tomou o purgante?
MARTÍN Ai minha mãe! Não quis nem sentir o cheiro. Contudo,
encontramos um jeito de remediar seu desdém e fazer com que
lhe agradasse a medicina.
LÚCIO E, que jeito foi esse?
MARTÍN Senhor, aquele primo dela, como é muito letrado, sabe até o que
o diabo deixa de saber.
LÚCIO Como assim?
MARTÍN Disse-me: “Veja, Martín de Villalba: vossa mulher está indisposta
e é impossível que ela beba isso. Vossa mercê diz que quer o bem
dela”. E, eu digo: “Ah! Minha mãe! Não duvide disso. Eu a amo
tanto quanto amo um bom prato de couves com toucinho”. Disse

3
Vocativo para interpelar ao ajudante do doutor, que observa a cena sem falar e não foi registrado pelo
autor entre as “pessoas” que participam do passo. Esta intervenção do doutor implica o movimento
cênico do rapaz pegando o galeto e saindo do espaço cênico ocultando-se atrás da gelosia.
ele: “Então, recordas que quando se casaram, disse o padre que
casados estariam unidos na mesma carne”. E eu disse: “Sim, é
verdade”. Disse ele: “Pois sendo verdade o que o sacerdote disse
e sendo tudo a mesma carne, tomando vosmecê este purgante
beneficiará vossa mulher, tanto como se fosse ela mesma quem o
tivesse tomado”.
LÚCIO E, o que fizeste?
MARTÍN Por Deus! Mal acabou ele de falar, que o recipiente já estava mais
limpo e seco do que se tivesse deixado o gato da vizinha lamber
a gamela, essa vizinha, acho eu, é a mulher mais mal falada de
toda essa terra, diga-se de passagem, e seu gato também.
LÚCIO Bem lhe beneficiaria!
MARTÍN Guarde-nos Deus! Eu é que não pude dormir nada, mas ela, só às
onze da manhã acordou. Eu tinha meu estômago tão vazio... pois
de madrugada fez efeito a medicina. Mas, parece que o purgante
trouxe muito benefício a minha mulher. Ela se levantou com uma
fome incomensurável, tanta que teria sido capaz de comer um
novilho inteirinho, se lhe fosse oferecido.
LÚCIO E então …
MARTÍN Então, senhor, como eu não podia me mover pelas dores que
sentia, disse-me o senhor seu primo: “Anda mau marido, que es
homem de mau coração; tão soturno que com uma dose mínima
desse maldito purgante já estás parecendo mais uma coruja
noturna e de mau agouro do que outra coisa”. Então, o primo,
dizendo e fazendo, pegou uma galinha pelo cangote, até parece
que agora mesmo o vejo, e num instante a galinha foi assada e
cozida e repartida entre os dois.
LÚCIO E o senhor ficou só olhando ou participou do festim?
MARTÍN Ai minha mãe! Bem quisera eu ter participado, mas me fizeram
crer que faria mal à minha mulher tudo o que eu comesse.
LÚCIO Fez muito bem. Considere como o senhor há de viver tranquilo
doravante! Pois pelo que me parece, basta agora que curemos
vossa mercê.
MARTÍN Sim, senhor, mas não me mande mais tomar aquele purgante.
Senão, haverá por certo tanto desperdício de tripas que o corpo
acabará tal e como um coador, todo furado.
LÚCIO Agora eu tenho algumas visitas marcadas, vá-se embora e volte
aqui amanhã, que com a boa orientação que eu vos darei, em
pouco tempo vossa mercê estará curado.
MARTÍN Que Deus o permita, senhor.
Sai o doutor e permanece Martín de Villalba. Entram Bárbara, sua mulher,
e o estudante.
ESTUDANTE Pelo corpo do mundo, senhora Bárbara. Vês aqui vosso marido
que vem da casa do doutor Lúcio e eu creio que ele nos viu. Que
faremos?
BÁRBARA Não há nada que temer, senhor Gerônimo, deixe que eu sei
embaucar meu marido, como de costume. Fá-lo-ei crer que vamos
cumprir certos votos pela minha saúde.
ESTUDANTE E… ele acreditará?
BÁRBARA Se ele há de acreditar? Como não? Bem se vê que vossa mercê
mal o conhece. Se eu disser ao meu marido, durante o mais
rigoroso inverno, que ele vá se banhar no mais gelado córrego,
dizendo-lhe que é importante para minha saúde, ainda que ele
possa afogar-se, atirar-se-á com roupa e tudo. Fale com ele.
ESTUDANTE Bem vindo seja senhor Martín de Villalba, marido de minha
prima e o melhor amigo que tenho.
MARTÍN Oh senhor primo de minha mulher! Saudações! Oh! Que bom ver
esta cara sorridente e tão alegre. O que há de novo? Oh! Mas
quem é aquela que levas tão vestida como uma noiva, com tanto
pano que não se lhe vê o rostro?
ESTUDANTE Deixe-a. Não a toques. É uma moça, quem nos lava a roupa, lá na
hospedagem.
MARTÍN É verdade?
ESTUDANTE Sim, eu garanto. Porque eu haveria de mentir a vossa mercê?
MARTÍN E eu acredito. Não te zangues. E onde a levas?
ESTUDANTE À casa de umas beatas, que farão uma oração para o mal de
enxaqueca.
MARTÍN Estás brincando?
ESTUDANTE Não, não estou. Juro pela tua vida e pela luz que brilha em meus
olhos.
MARTÍN Pois vá então. Necessitas algo?
ESTUDANTE Deus te dê saúde, não por enquanto não preciso de nada não.
MARTÍN Como quiseres.
BÁRBARA Oh que grande besta este meu marido que não me reconheceu!
Acelere o passo, vamos logo sair daqui.
MARTÍN Ei, ei primo de minha mulher!
ESTUDANTE O que queres agora?
MARTÍN Espera, corpo do diabo! Que… ou eu muito me engano… ou
aquela é a saia da minha mulher. Se for ela, onde a levas?
BÁRBARA Ah, seu traidor! Vê só que memória tens de mim. Encontras com
tua mulher na rua e não a reconheces!
MARTÍN Cala-te, não chores assim que me quebras o coração; que eu te
reconhecerei mulher, ainda que não queiras, daqui por diante.
Mas, dizei-me: para onde vais? Voltarás em breve, senhora?
BÁRBARA Sim voltarei, vou somente rezar umas novenas para uma santa
pela qual tenho grande devoção.
MARTÍN Novenas? E o que são novenas, mulher?
BÁRBARA Não o sabes? Por novenas entende-se que tenho que estar reclusa
por nove dias.
MARTÍN Sem voltar para casa, alma minha?
BÁRBARA Pois sim…, sem voltar para casa.
MARTÍN Muito medo me destes, primo da minha mulher. Meu sangue
gelou e pálido fiquei eu de susto, ao perceber a tua brincadeira e
o meu engano.
BÁRBARA Pois vamos combinar algo.
MARTÍN O que, mulher do meu coração?
BÁRBARA Que vossa mercê fique em jejum, durante todos os dias que eu lá
estiver, só prove pão e água, para que assim eu aproveite mais a
devoção.
MARTÍN Se não é mais do que isso o que pedes, estou contente. Volta em
breve.
BÁRBARA Adeus, e cuida bem da casa.
MARTÍN Senhora minha mulher, não lhe cabe mais falar como se estivesse
vosmecê doente, pois o doutor disse que vai me curar; e tu
senhora, bendito seja Deus, já estás melhorando.
ESTUDANTE Fique bem, irmão Martín de Villalba.
MARTÍN Vão com Deus. Olhe, primo de minha mulher, não deixe de
aconselhá-la, e se ela se sentir bem com as novenas, que faça ela
dezenas, mesmo que eu precise ficar de jejum mais um dia, pela
sua saúde.
ESTUDANTE Fá-lo-ei. Fique com Deus.
MARTÍN E vá vossa mercê com Ele.

FIM

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