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O Médico Volante

CIA DE TEATRO LEFRÈRE

COMÉDIA EM UM ATO

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Personagens

1. VALÉRIO, amante de Lucila


2. SABINA, prima de Lucila
3. GORGIBUS, pai de Lucila
4. SGANARELLO, criado de Valério
5. LUCILA, filha de Gorgibus
6. UM ADVOGADO

A cena se passa em uma praça de Paris e na casa de Gorgibus

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CENA I

VALÉRIO E SABINA

VALÉRIO
Pois bem, Sabina, que conselho me dás?

SABINA
De fato, há muitas novidades. Meu tio quer decididamente

que minha prima se case com o senhor Gascon, e as negociações

estão de tal modo adiantadas, que acho que já estariam casados se

você não fosse tão amado por Lucila; mas como minha prima me

confiou o segredo do amor que ela lhe tem e chegamos a uma

situação extrema pela avareza do patife do meu tio, tivemos uma

ideia para adiar o casamento. É que minha prima está se fingindo

de doente; e o velho, que é crédulo, me mandou chamar um médico.

Se pudesse enviar alguns de seus amigos, ele poderia, de acordo

conosco, aconselhar a doente a ir para o campo, mudar de ares. O

velho, na certa, mandará alojar minha prima naquele pavilhão que

fica no fundo de nosso jardim, onde poderás falar com Lucila, sem

ele saber, casar-se com ela e deixá-lo berrar à vontade com o tal

senhor Gascon.

VALÉRIO

Mas como encontrar um médico apropriado, disposto a tudo

arriscar para me servir é, que, francamente, não sei

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SABINA

Tenho uma ideia: e se disfarçássemos o seu criado de médico?

Não há ninguém mais fácil para tapear alguém do que aquele

peralta.

VALÉRIO

É um pacóvio, que estragará tudo; mas na falta de outro, temos

que aproveitá-lo. Adeus, vou à sua procura. Onde diabo encontrar

agora esse tratante? Ei-lo que vem a propósito. (Sai Sabina de Cena)

CENA II

VALÉRIO E SGANARELLO

VALÉRIO

Ó, meu pobre Sganarello, que alegria em te ver! Preciso de

você para um negócio importante; mas como não sei o que sabe

fazer ...

SGANARELLO

O que sei fazer, senhor? Empregai-me somente em negócio de

responsabilidade; envia-me, por exemplo, ver as horas num relógio,

o preço da manteiga no mercado, dar de beber a um cavalo; então

verás o que sei fazer.

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VALÉRIO

Não se trata disso! É que tu terás que se fingir de médico ...

SGANARELLO

Eu, médico senhor?! Estou pronto a fazer tudo o que lhe

aprouver; mas quanto a passar por médico, sou suficientemente seu

servidor para não o fazer de modo algum. E de que jeito, meu Deus?

Palavra de honra, senhor, que estás zombando de mim.

VALÉRIO

Eu te darei dez moedas de ouro, se o fizeres.

SGANARELLO

Ah, por dez moedas de ouro, não digo que seja médico, pois

bem vês meu amo, que não tenho o espírito tão, tão sutil para lhe

dizer a verdade; mas aonde irei, quando me tornar médico?

VALÉRIO

À casa do imbecil do Gorgibus, ver-lhe a filha, que está

doente; mas tu és um palerma que, em lugar de fazer as coisas

direito, poderia ...

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SGANARELLO

Ora, por Deus, meu amo, não se preocupe; asseguro-te que

farei tão bem morrer uma pessoa como qualquer médico da cidade.

Costuma-se geralmente dizer: Depois da morte chega o médico; mas

verei que se nisso me meto, vão dizer: Depois do médico, cuidado

com a morte! Contudo, pensando bem, não é nada fácil bancar o

médico; e se eu não der conta do recado?

VALÉRIO

Não há nada mais fácil que esse encontro. Gorgibus é um

homem simples, grosseiro, que se deixará enganar com tua lábia,

desde que você fale de Hipócrates e de Galeno, e seja um tanto

descarado.

SGANARELLO

Quer dizer que devo falar de filosofia, matemática? Deixe

comigo; se ele é fácil de enganar, como dizes, respondo por tudo;

arranje-me apenas uma roupa de médico, ensina-me o que é preciso

fazer e dê-me o meu diploma, que são as dez moedas de ouro

prometidas.

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CENA III

GORGIBUS E SABINA

GORGIBUS

Vamos, menina! Arranje depressa um médico, que minha

filha, sua prima, está muito mal; avia-te.

SABINA

Também, que diabo! Por que o senhor havia de querer dar sua

filha a um velho? Não achas que é o desejo de ter um jovem que a

consome? Observe a conexão existente etc.

GORGIBUS

Anda logo menina; estou vendo que a doença vai adiar as

bodas.

SABINA, à parte

Isso é que me dá ódio; a teimosia do meu tio continua latente

em sua cabeça. (A Gorgibus) Vou já buscar um médico, não só por

minha prima, como também por mim que quero ver essa situação

tão logo resolvida. (Faz menção de sair e se depara com Sganarello

vestido de médico. Sabina pede para ele aguardar num canto)

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CENA IV

SABINA, GORGIBUS E SGANARELLO

SABINA, voltando-se a seu tio

Trago-lhe, a propósito, meu tio, uma excelente notícia. Eis o

médico mais competente do mundo, um homem que vem do

estrangeiro, sabe os mais belos segredos e que, com toda a certeza,

curará minha prima. Indicaram-me, por sorte e aqui lhe trago. É tão

sábio, que eu, de bom grado, ficaria doente, só pra ele me curar.

GORGIBUS

E onde ele está?

SABINA

Vem vindo atrás de mim; ei-lo, aí está

(Surge Sganarello vestido de médico)

GORGIBUS, fazendo uma longa reverência

Vosso humílimo servidor, senhor médico! Mandei buscar-vos

para ver minha filha, que está doente. Ponho toda minha esperança

em vós.

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SGANARELLO

Hipócrates diz, e Galeno, por vivas razões, persuade, que uma

pessoa não está bem quando está doente. Tem razão em pôr vossa

esperança em mim, pois sou o maior, o mais competente e o mais

douto médico da faculdade vegetal, sensitiva e mineral.

GORGIBUS

Folgo muito

SGANARELLO

Não imaginas que eu seja um médico vulgar, comum. Todos

os outros, comparados comigo, não passam de abortos da medicina.

Tenho talentos especiais, tenho segredos. Salamaleque,

salamaleque. Dom Rodrigo, tens coragem? Signor, si, no señor. Per

omnia saecula saeculorum. Mas, continuemos o nosso exame.

SABINA

Ora, não é ele quem está doente, é a filha.

SGANARELLO

Não importa: o sangue do pai e da filha são uma só coisa; e

pela alteração do sangue do pai posso conhecer a doença da filha.

Senhor Gorgibus, poderia eu ver a urina da enferma?

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GORGIBUS

Pois não; Sabina, vai depressa buscar a urina da minha filha.

(Sabina sai) Senhor médico, tenho muito medo de que ela morra.

SGANARELLO

Ah, livre-se ela bem disso! Sua filha não deve se divertir em

se deixar morrer sem a ordem de um médico.

(Sabina volta com um pinico cheio de urina de Lucila e o entrega a

Sganarello)

SGANARELLO

Eis aqui a urina da paciente, que acusa grande calor, grande

inflamação nos intestinos: mas não está tão ruim assim.

GORGIBUS

Como doutor, você vai beber a urina?

SGANARELLO

Não se espante com isso; os médicos, em geral, contentam-se

em observá-la; mas eu, que sou um médico fora do comum, bebo-a

porque pelo gosto distingo bem melhor a causa e os efeitos da

moléstia. Mas, para dizer a verdade, era muito pouca para garantir

um bom julgamento; mandem-na mijar mais.

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SABINA

Mas doutor, custou muito a fazê-la mijar.

SGANARELLO

Como? Homessa! Mandem-na mijar copiosamente! Se todos

os doentes mijarem assim, quero ser médico o resto da vida.

(Sabina sai e volta rapidamente com o pinico cheio de mijo)

SABINA

Aqui está tudo o que consegui: ela não pode mijar mais.

SGANARELLO

Como, senhor Gorgibus, sua filha mijou só umas gotinhas!

Não passa de uma pobre mijona; estou vendo que tenho que lhe

receitar uma poção mijativa. Poderia eu ver a enferma?

SABINA

Ela está de pé; se quiser, posso mandá-la vir aqui. (Sabina sai)

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CENA V

LUCILA, GORGIBUS E SGANARELLO

(Lucila entra)

SGANARELLO

Muito bem, senhorita, então você está doente?

LUCILA

Sim, senhor.

SGANARELLO

Tanto pior! Isso é um indício de que você não está bem. Você

sente fortes dores de cabeça, de rins?

LUCILA

Sim, senhor.

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SGANARELLO

Muito bem, muito bem. Pois é, esse grande médico, no

capítulo que escreveu sobre a natureza dos animais diz ... mil belas

coisas; e como os humores que têm conexão, têm muita relação;

pois, como, por exemplo, a melancolia é inimiga da alegria, e a bile

que se espalha pelo corpo nos deixa amarelos, e não há nada mais

contrário à saúde que a doença, podemos dizer com esse grande

homem, que sua filha está muito mal. Vou dar uma receita.

GORGIBUS

Depressa, mesa, papel e tinta.

SGANARELLO

Há aqui alguém que saiba escrever?

GORGIBUS

Você não o sabe?

SGANARELLO

Ah, não me lembrava; trago tantas coisas na cabeça, que

esqueço a metade ... Acho que seria necessário que sua filha

mudasse um pouco de ares, distraindo-se no campo.

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GORGIBUS

Temos um jardim belíssimo, e alguns quartos que dão para

ele; se assim você achar conveniente, eu a mandarei para lá.

SGANARELLO

Vamos, vamos, pois, visitar o lugar.

(Os dois entram na casa)

CENA VI

O ADVOGADO

ADVOGADO

Ouvi dizer que a filha do senhor Gorgibus estava doente;

tenho que me informar de sua saúde, e, como amigo da família,

oferecer-lhe os meus préstimos. Olá, ô de casa, onde está o senhor

Gorgibus?

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CENA VII

GORGIBUS E O ADVOGADO

GORGIBUS, saindo da sua casa

Vosso humilde servidor, senhor doutor ...

ADVOGADO

Informado da moléstia da senhorita sua filha, vim

testemunhar-lhe que dela participo e lhe ofereço tudo o que de mim

depender.

GORGIBUS

Eu estava lá dentro com o mais sábio dos homens.

ADVOGADO

Será que eu poderia falar um instante com ele?

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CENA VIII

GORGIBUS, ADVOGADO E SGANARELLO

GORGIBUS

Doutor médico, eis aqui um de meus competentíssimos

amigos, que gostaria de conversar contigo um pouco.

SGANARELLO

Não tenho tempo senhor Gorgibus, preciso ver os meus

doentes. (Ao advogado) Não me deterei contigo, senhor ...

ADVOGADO

Depois do que o senhor Gorgibus me disse de seu mérito e

saber, ardo na maior paixão de ter a honra de lhe conhecer, senhor,

e foi com esse intuito, que tomei a liberdade de lhe cumprimentar,

esperando que não o leve a mal. Devo confessar que todos aqueles

que se sobressaem em alguma ciência são dignos de grande louvor,

e particularmente, aqueles que exercem a profissão da medicina,

tanto por sua utilidade como pelo fato de conter nela em si várias

outras ciências, o que torna dificílimo o seu perfeito conhecimento;

e é muito a propósito que Hipócrates diz em seu primeiro aforismo:

Vita brevis, ars vero longa, occasio autem praeceps, experimentum

periculosam, judicium difficile. Traduzindo: A vida é curta, a arte é

longa, mas a oportunidade é passageira, experimentos traiçoeiros,

julgamentos difíceis.
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SGANARELLO

(a Gorgibus) Ficlie tantina pota baril cambustibus.

ADVOGADO

Você não é desses médicos que se dedicam só a medicina

chamada racional ou dogmática, pois acho que a exerce diariamente

com muito êxito: experientia magistra rerum. Traduzindo: À luz da

experiência. Os primeiros homens que exerceram a profissão da

medicina foram de tal modo estimados por possuírem essa bela

ciência, que se viram colocados entre os deuses em razão das belas

curas que todos os dias faziam. Isso não quer dizer que se deva

desprezar um médico que não tenha devolvido a saúde a seu

doente, porque dela não depende absolutamente de seus remédios,

nem de seu saber:

Interdum docta plus valet arte malum. Traduzindo: Às vezes

mais forte do que a arte treinada. Senhor, receio estar sendo

inoportuno; despeço-me de ti, esperando ter, na primeira

oportunidade, a honra de conversar mais à vontade convosco. O seu

tempo é precioso etc. (O advogado se despede de Gorgibus e sai)

GORGIBUS

Que lhe parece homem?

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SGANARELLO

Entenda algo. Se tivesse ficado mais um pouco, eu lhe

proporia uma matéria sublime e edificante. Enquanto isso,

despeço-me de vós. (Gorgibus dá-lhe dinheiro) Ora, que pretendes

fazer?

GORGIBUS

Sei bem o que lhe devo.

SGANARELLO

Vós zombais, senhor Gorgibus. Não posso aceitar, não sou

um homem mercenário. (Pega o dinheiro) Vosso humílimo

servidor. (Sganarello sai e Gorgibus entra em casa)

CENA IX

VALÉRIO

VALÉRIO

Não sei o que terá feito Sganarello. Não tive notícias dele, e

estou muito preocupado, sem saber onde encontrá-lo. (Sganarello

volta vestido de criado) Ora, ei-lo. Muito bem! Sganarello, o que

andaste fazendo todo esse tempo?

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CENA X

SGANARELLO E VALÉRIO

SGANARELLO

Maravilhas sobre maravilhas. Andei tão bem, que Gorgibus

me toma por um competente médico. Introduzi-me em sua casa e

aconselhei-o a levar a filha para mudar de ares, e ela se acha agora

num apartamento no fundo do jardim, tão afastada do velho, que

podes ir comodamente vê-la.

VALÉRIO

Ah, que alegria me dás! Vou já vê-la sem demora. (Entra na

casa)

SGANARELLO

Devo confessar que o tal Gorgibus não passa de um bom

toleirão para se deixar assim ludibriar. (Vendo Gorgibus) Ah, diabo,

está tudo perdido: um golpe, e eis a medicina entornada; mas tenho

que enganá-lo.

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CENA XI

SGANARELLO E GORGIBUS

GORGIBUS

Bom dia, senhor.

SGANARELLO

Às vossas ordens. Vês um pobre rapaz desesperado; não

conheces por acaso um médico recém-chegado a esta cidade, e que

faz curas admiráveis?

GORGIBUS

Sim, conheço: acaba de sair de minha casa.

SGANARELLO

Sou seu irmão; somos gêmeos; e como somos muito parecidos,

às vezes, nos tomam um pelo outro.

GORGIBUS

Diabos me levem, se não fui ludibriado. E como te chamas?

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SGANARELLO

Narciso, meu senhor, para lhe servir. Devo lhe dizer que

estando em seu gabinete, derramei dois frascos de essência que

estavam na ponta da mesa, e ele tomou-se de tal cólera contra mim,

que me enxotou dali e não me quer mais ver, de modo que sou agora

um pobre rapaz desamparado, sem recursos, nem amigos.

GORGIBUS

Vamos, eu farei as pazes: sou amigo dele e lhe prometo

reconciliar-te com ele. Falarei com ele assim que o vir.

SGANARELLO

Ficaria-lhe gratíssimo, senhor Gorgibus. (Sganarello sai e

volta imediatamente com seu traje de médico)

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CENA XII

SGANARELLO E GORGIBUS

SGANARELLO

Devo confessar que, quando os doentes não querem seguir o

conselho do médico e se entregam à intemperança que...

GORGIBUS

Senhor doutor, seu humílimo criado. Queria pedir-lhe um

favor.

SGANARELLO

Que desejas? Trata-se de algum préstimo?

GORGIBUS

É que acabo de encontrar o senhor seu irmão, que está muito

aborrecido por...

SGANARELLO

É um patife, senhor Gorgibus.

GORGIBUS

Digo-lhe que ele está muito arrependido de ter lhe

enfurecido.

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SGANARELLO

É um bêbado, senhor Gorgibus.

GORGIBUS

Ora, doutor, pretende desesperar o pobre rapaz?

SGANARELLO

Não quero ouvir falar mais dele; mas veja só o atrevimento do

velhaco: ir procurar-lhe para fazer seu arranjozinho. Peço-lhe que

não me fale mais disso.

GORGIBUS

Pelo amor de Deus, senhor doutor! E também por amor a

mim. Se eu puder lhe servir em qualquer outra coisa, assim o farei

de bom grado. Comprometo-me, e...

SGANARELLO

O senhor me pede com tamanha insistência que, embora eu

tivesse jurado jamais lhe perdoar, vamos, dê-me cá a mão, perdoo-

lhe. Asseguro-lhe que isso é para mim uma grande violência e que

só em consideração ao senhor, que o faço. Adeus, senhor Gorgibus.

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GORGIBUS

Vosso humílimo servidor; vou ver onde anda o pobre rapaz

para lhe dar a boa nova. (Sai)

CENA XIII

VALÉRIO E SGANARELLO

VALÉRIO, saindo da casa de Gorgibus

Devo confessar que nunca imaginei que Sganarello se saísse

tão bem da empreitada. (Sganarello volta com a roupa de criado) Ah,

meu pobre rapaz, quanta obrigação não lhe devo! Que alegria e

que...

SGANARELLO

Palavra, que fala muito à vontade. Gorgibus deu comigo; e se

não fosse uma ideia que me veio, e toda a tramoia seria descoberta.

Mas se esconda, que ele vem vindo.

(Valério sai)

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CENA XIV

GORGIBUS E SGANARELLO

GORGIBUS

Procurei-lhe por toda a parte para lhe dizer que falei com seu

irmão; garantiu-me que lhe perdoaria; mas, para ter maior certeza,

quero que ele lhe abrace diante de mim; entre em minha casa, que

eu irei procurá-lo.

SGANARELLO

Ah, senhor Gorgibus, não creio que o encontrou agora; além

do mais, não ficarei em sua casa, pois receio muito a sua cólera.

GORGIBUS

Ah, fique, sim, sem cerimônias. E eu vou agora mesmo

procurar seu irmão. Não tenha receio, pois digo-lhe que ele não está

mais zangado. (Sai)

SGANARELLO

(Da janela) Palavra que desta vez fui apanhado; não há mais

jeito de escapar. As nuvens estão pesadas, e tenho medo de que se

arrebentem, me chovam umas boas pauladas nas costas, ou que, em

virtude de alguma receita mais forte que todas as dos médicos, me

apliquem, no mínimo, uma marca de ferro em brasa no lombo. A

coisa vai mal; mas por que me desesperar? Já que fui tão longe,
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levemos a velhacada até o fim. Sim, sim, tenho que sair desta e

mostrar que Sganarello é o rei dos patifes. (Salta da janela e vai-se.)

CENA XV

SABINA, GORGIBUS, SGANARELLO

SABINA

Ah, palavra, que é engraçado! Aqui salta-se pela janela como

o diabo! Vou ficar para ver no que dá isso.

GORGIBUS

Não sou capaz de achar o tal médico; não sei onde diabo se

meteu. (Vendo Sganarello que volta vestido de médico) Ora, ei-lo.

Doutor, não basta perdoar a seu irmão; peço-lhe que, para minha

satisfação, o abrace na minha presença; ele está lá em casa, e andei

por toda a parte, à sua procura, a fim de lhe pedir que se reconciliem

diante de mim.

SGANARELLO

O senhor está zombando de mim, senhor Gorgibus? Então

não basta que lhe perdoe? Pois eu não quero mais vê-lo.

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GORGIBUS

Mas, doutor, por amor a mim.

SGANARELLO

Não sei recusar-lhe nada; dizei-lhe que desça. (Enquanto

Gorgibus entra em casa pela porta, Sganarello entra pela janela)

GORGIBUS

(À janela) Vosso irmão está lá embaixo; prometeu-me fazer

tudo o que eu quiser.

SGANARELLO

(À janela) Peço-lhe, senhor Gorgibus, que mande-o vir aqui;

conjuro-lhe a que seja em particular que eu lhe peça perdão, porque

ele, com toda certeza, vai me fazer passar mil vergonhas e me cobrir

de opróbrios diante de todo mundo. (Gorgibus sai de casa pela

porta, e Sganarello pela janela.)

GORGIBUS

Pois não, vou já lhe dizer. Senhor, ele diz que está

envergonhado, e lhe pede que entre a fim de lhe pedir perdão em

particular. Tomai a chave, pode entrar; suplico-lhe que não lhe

recuse a dar-me esse gosto.

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SGANARELLO

Não há nada que eu não faça para o seu contentamento;

ouvirás já de que modo o tratarei. (À janela) Ah, estás aí, patife.

Senhor meu irmão, peço-lhe perdão e juro que não é culpa minha.

Não é culpa tua, velhaco, pilar dos crápulas? Anda, que te ensino a

viver. Ter a audácia de importunar o senhor Gorgibus e lhe

azucrinar a cabeça com essas baboseiras! Senhor meu irmão. Cala-

te, estou dizendo. Não lhe aborreça. Cala-te, patife.

SABINA

Quem diabo achas que agora está em sua casa?

GORGIBUS

É o médico e seu irmão Narciso; tinham uma desavença e estão

fazendo as pazes.

SABINA

Diabos os levem, se não são um só!

SGANARELLO

(À janela) Vou já te ensinar a viver, bêbado. Está abaixando os

olhos! Bem vê que errou, o celerado. Ah, que hipócrita, como se faz

de santo agora!

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SABINA

Dizei-lhe, só para ver, senhor Gorgibus, que ele mande o

irmão chegar à janela.

GORGIBUS

Olá, senhor doutor, fazei o favor de mandar seu irmão vir à

janela.

SGANARELLO

(Da janela) Ele é indigno da vista de gente de bem, e eu não

poderia suportá-lo ao meu lado.

GORGIBUS

Não me recuse essa mercê, depois de todas as que me fizeste.

SGANARELLO

Tem, na verdade, um tal poder sobre mim, senhor Gorgibus,

que não posso lhe recusar nada. Vem, mostra-te, patife. (Após

desaparecer um momento mostra-se de novo vestido de criado) Sou-

lhe muito grato, senhor Gorgibus. (Desaparece outra vez, para

reaparecer logo com roupa de médico.) Ora bem, viste só essa

imagem da libertinagem?

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SABINA

Palavra, que são um só; dizei-lhe, para prová-lo, que desejas

vê-los juntos um instante.

GORGIBUS

Mas fazei-me à mercê de mandá-lo chegar à janela convosco e

abraçá-lo diante de mim.

SGANARELLO

(Da janela) Recusaria a qualquer outra pessoa; mas para lhe

mostrar que tudo quero fazer por amor de vós, concordo, embora

constrangido; quero, porém, que antes ele lhe peça perdão de todos

os aborrecimentos que lhe causou. Sim, senhor Gorgibus, peço-lhe

perdão por lhe haver importunado, e prometo-lhe, meu irmão,

diante do senhor Gorgibus aí presente, comportar-me, doravante

tão bem, que de nada terás queixa, pedindo-lhe que nunca mais

penses no que se passou. (Abraça o chapéu e a gola)

GORGIBUS

Muito bem, ei-los juntos.

SABINA

Ah, palavra, que está só de feiticeiro.

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SGANARELLO

(Saindo da casa, como médico.) Aqui está a chave de sua casa,

que ora lhe devolvo; não quis que esse patife descesse comigo, por

vergonha: não queria que o vissem em minha companhia na cidade,

onde gozo de certa reputação. Mandarei-o sair quando bem lhe

parecer. Desejo-lhe um bom dia, e sou seu criado etc. (Finge que vai

embora, e após tirar a roupa, entra na casa pela janela.)

GORGIBUS

Tenho que libertar o pobre rapaz; na verdade, se lhe perdoou,

não foi sem antes judiar bem dele. (Entra em casa, e sai com

Sganarello vestido de criado.)

SGANARELLO

Agradeço-lhe o trabalho e a bondade que tiveste; serei-lhe

eternamente grato.

SABINA

Onde acha que está agora o médico?

GORGIBUS

Foi embora.

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SABINA

(Que apanhou a roupa de Sganarello) Está aqui bem agarrado.

Eis aí o patife que se fazia passar por médico e lhe está enganando.

Enquanto ele te tapeia e representa uma farsa em sua casa, Valério

e sua filha estão juntos, divertindo-se à larga. (Sai)

GORGIBUS

Ah, como sou infeliz. Mas tu serás enforcado, velhaco, patife.

SGANARELLO

Que lhe adianta enforcar-me? Ouvi, por favor: é verdade que

é por minha invenção que meu amo está com sua filha, mas ao servi-

lo, não lhe desconsiderei, pois ele é um ótimo partido para ela, tanto

pelo nascimento como pela riqueza. Não faças, pois um escândalo

que redundaria na sua desmoralização, e mande ao diabo esse

patife do senhor Gascon. E aí estão os nossos namorados.

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ÚLTIMA CENA

VALÉRIO, LUCILA, GORGIBUS E SGANARELLO

VALÉRIO (a Gorgibus)

Lançamo-nos a seus pés!

GORGIBUS

Perdoo-lhe, sentindo-me feliz de ser ludibriado por

Sganarello, pois que assim ganhei um ótimo genro. Vamos, pois,

preparar as bodas e beber à saúde de toda a companhia.

PANO

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