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num ventre. Está visitando a família de Bartolomeu Sozinho, . À porta, a esposa, Dona Munda, não
desperdiça palavra, nem despende sorriso,. É o visitante quem arredonda o momento, inquirindo:o
nosso Bartolomeu está bom?
. — Está bom para seguir deitado, de vela e missal…O médico acredita não ter entendido.
Ele é português, recém-chegado a África.
— Perguntava eu, Dona Munda, sobre o seu marido… — Está muito mal. O sal já está todo espalhado
no sangue. — Não é sal, são diabetes.
— Vergonha?
— Diz que tem os pés cheios de escamas.
— Ora, Dona Munda…
. O velho diz que o avô dele morreu lagarto, : que era maleita de família, também ele estava a caminho
de se lagartear.
— Esse teimoso nunca devia era ter saído do hospital, estava tão bem, lá na cidade.
Não saiu, fugiu.
. “O hospital é um lugar doente”, reclamava o velho. Ao escapar-se daquele antro ele regressava para os
seus antigos recantos. “Eu e a casa sofremos de uma mesma doença: saudades”, disse.
— E fizeram-lhe exames?
A resposta é interrompida pela aparição de Bartolomeu. O ex-mecânico.
— Ah, Doutor, é mesmo o senhor… É que essa aí, às vezes, me engana, ela se disfarça só para eu lhe
abrir a porta. Com passo hesitante, Sidónio vai entrando como se os cheiros bafientos ocupassem todo
o obscuro quarto. Bartolomeu vai à frente arrastando os pés. Atrás segue a esposa, debicando
distâncias.
Então, meu amigo, está melhor?
Eu só melhoro quando deixo de ser eu. afirma o velho.
— Eu gosto de o ver, mas não gosto que me visite.
— Então, me diga: qual é a cura da minha doença, Doutor?
A cura para a doença dele era contrair mais doença ainda, apeteceu-lhe dizer. Mas Sidónio conteve-se e
ajeitou a fala:
. Durante uma dezena de anos, Bartolomeu Sozinho servira como mecânico na casa das máquinas do
transatlântico, atravessando mares no fundo de um porão tão escuro como o seu actual quarto. Tinha
sido o único negro a fazer parte da tripulação e disso muito se orgulhava, , o regime colonial se
afundou, o navio encalhou, virou sucata e estava, um pouco como ele mesmo, à espera de ser abatido.
Saudades ondeiam, sim, no seu olhar quando enfrenta, na moldura pendurada na parede, a sua
desbotada fotografia, perfilado entre cadetes e marinheiros do Infante D. Henrique.
— Doutor Sidonho?
Capítulo dois
No ano de 1962, Bartolomeu Sozinho tinha vinte anos. Nessa altura, ainda vivia à beira-mar. A dois
oceanos de distância, o transatlântico Infante D. Henrique iniciava a sua viagem inaugural na chamada
rota ultramarina.
Nessa altura, ainda vivia à beira-mar. A dois oceanos de distância, o transatlântico Infante D. Henrique
iniciava a sua viagem inaugural na chamada rota ultramarina.
Bartolomeu trabalhava na oficina do seu avô, mas, nesse dia, faltou ao serviço. No princípio da manhã
ofereceu-se para carregar passageiros e, depois disso, passou o resto da manhã na praia a contemplar
o navio. No momento em que Bartolomeu decidiu regressar a casa, aconteceu o milagre. As luzes do
navio se acenderam e, de súbito, uma cidade emergiu, ainda molhada, do ventre do oceano.
Bartolomeu ficou pasmado.
— Oxalá esse barco não saia nunca daqui.
Em casa já se tinha jantado e o jovem confessou ao irmão que, ao fim da tarde, em plena praia, lhe
descera a visão:
O irmão sentenciou:
— Eu sei o que se passa nessa sua cabecinha. É escusado, mano: você nunca pisará aquele barco. Pé
de preto pisa canoa.
O avô corrigiu. Que ele se enganava. Milhares de negros tinham saído de suas vidas para entrar em
navios de longo curso. Durante centenas de anos embarcaram para nunca mais voltar.