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CAUSOS DA COMARCA DE SÃO BARNABÉ

SAÍLE BÁRBARA BARRETO


"Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos
se soubessem como são feitas as leis e as salsichas."
Oração à Santa Bárbara

“Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a
violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os
trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a
coragem e a bravura.
Fique sempre ao meu lado para que eu possa enfrentar de fronte
erguida e rosto sereno todas as tempestades e batalhas da minha
vida e para que, vencedora de todas as lutas, com a consciência do
dever cumprido, possa agradecer a vós, minha protetora, e render
graças a Deus, criador do céu, da terra e da natureza. Este Deus
que tem poder de dominar o furor das tempestades e abrandar a
crueldade das guerras.
Santa Bárbara, rogai por nós.”

©2020 Saíle Bárbara Barreto

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da


Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde
2009.

CAPA E DIAGRAMAÇÃO

Elias Jr.

REVISÃO
Jane de Souza Barreto

Dados Internacionais para Catalogação na Publicação. (CIP)

Barreto, Saíle Bárbara

Causos da Comarca de São Barnabé/ Saíle Bárbara Barreto

2021. ISBN 978-65-992324-1-1

PREÂMBULO

Tudo acontece na comarca de São Barnabé. Esquecida


pela corregedoria do Tribunal de Justiça de Santa Ignorância,
Estado da República Federativa da Banalândia. Um país ao sul da
linha do Equador em que não se conhece o significado da palavra
democracia.
O fórum é pequeno, porém, muito bem localizado, em
frente ao maior shopping da cidade. O prédio possui a arquitetura
mais horrenda do país e também é contemplado com figuras
folclóricas que trabalham pela distribuição da justiça (aos mais ricos,
é claro).
O Ministério Público só conta mesmo com o promotor
Joaquim, que leva tudo nas costas, já que a promotora Mariane vive
mais de licença que trabalhando. E o promotor Bigodão só pensa
em si e em seus amigos importantes.
Dentre os servidores, há de tudo um pouco. Uns
trabalham 12 horas por dia. Outros só infernizam a vida dos
colegas.
Readaptados, comissionados, terceirizados: todos são
explorados.
O juiz Floribaldo, mais conhecido como "O Invejoso" é o
titular do JEC e também diretor do foro. Nesta qualidade, faz
questão de transformar a vida de seus semelhantes em um
verdadeiro inferno. Não faz audiências. Tem quem faça por ele. Não
atende advogados. Entretanto, despacha freneticamente. Reforma
sentenças, sempre que julga que o valor que o advogado ou a parte
irão receber é mais do que seu ganho mensal. Afinal de contas, que
audácia dos causídicos e dos barnabenses, querer ganhar mais do
que ele? É ruim, hein?!
Há também Miguel, "O Preguiçoso". Juiz da vara cível,
mais fácil de ser encontrado na praça de alimentação do shopping
do que no fórum. Simpático, até bonito. No entanto, lento,
coitadinho. Para ajudar, adotou uma ideia maravilhosa em sua vara:
"a lista de desejos." O advogado que pede para o processo andar,
vai até o cartório e faz o pedido, que é anotado pelo estagiário. E o
processo anda sim, mas é cada andamento, que “só Jesus na causa
dele”.
A vara criminal está nas mãos do juiz. Juliano,
presidente da associação dos juízes, que não gosta de se envolver
em escândalos e faz vista grossa para tudo que puder prejudicar
seu tão importante cargo, que o levará ao Tribunal de Justiça. O
objetivo dele é o cargo de Deus do Olimpo no TJ de Santa
Ignorância e nada o desviará de seu caminho.
Só que ninguém supera Juliana. Conhecida como "A
Louca". Ela é a juíza da vara da família. Entra nas audiências com
toda sua "elegância" e berra para o casal que está se divorciando:
– Quem galhou quem??? Vamos começar logo! Porque
hoje eu estou com pressa de ir para casa namorar!
Bem-vindos a São Barnabé. A comarca em que o direito
do pobre é sempre tratado como mero dissabor e, ao rico e
poderoso, toda chance de enriquecer às custas da desgraça alheia
é lícita.

***

O tic-tac do relógio em cima da cabeça já irritava o


soldado Jeremias, que não conseguiu dormir direito no turno da
noite. Ele é vigilante da Comarca de São Barnabé. Faz escala doze
por trinta e seis. E lá não acontece nada, não senhora. “Deusulivre”
se acontecer! Jeremias atira, mas é o trabuco no quengo do
meliante, porque aquela joça não funciona. Enferrujou e não
mandaram outra.
Já não estava dormindo bem. Para piorar, às 7h15min
assustou-se com o barulho do carro da Marinalva, que muito
"barbeiramente" estava estacionando em frente ao fórum. Madrugou
a desgraçada! Jeremias não dormiu mais. Levantou resmungando e
foi requentar o café.
Coitada. Pensando bem, a pobrezinha passa trabalho. É
chefe de cartório no JEC. Sempre a primeira a chegar. Sempre a
última a sair. Sabe como é, morre de medo de perder a gratificação.
Fez concurso para cargo de nível médio, mas com muito esforço,
engolindo muitos sapos, pererecas e rãs, foi nomeada para
responder por este cargo de nível superior para o qual quem presta
concurso e é aprovado, morre sem ser chamado.

Marinalva é pessoa da mais alta confiança do juiz


Floribaldo, que pode tirá-la de lá a qualquer momento e sem
qualquer explicação. Então, ela se esforça para ganhar um
pouquinho mais e pagar a prestação do carro, a gasolina, o seguro,
o imposto. Aguenta de tudo. Se fotografarem o saco de Floribaldo,
lá estará Marinalva, agarrada a ele, muito feliz e sorridente. E tudo
isso para que, minha gente? Para sustentar o bendito veículo, a
porcaria do carro que ela mal sabe dirigir e que nunca a leva a lugar
algum, exceto ao Fórum. Sessenta horas por semana. Argh! Sábado
e domingo a mulher está imprestável.
E precisa limpar a casa. Carece de dormir um
pouquinho. Assistir um bocadinho de televisão...
Depois chegam outras chefes de cartório. Assessores.
Há aqueles "pague um e leve dois." Ah, mas tem um monte.
Racham o salário e trabalham o dia todinho, os pobres diabos. Há
as juízas leigas também. Parece que ganham 30 reais por
audiência. Não pode ser verdade. Fazem tudo. Audiência, sentença.
Tudinho mesmo. Como assim, só ganham isso?
Há os estagiários. Mudam o tempo todo. Não dá tempo
de aprender o nome de ninguém.
E os servidores. Um montão deles. O pessoal da
limpeza é terceirizado (sempre está sorrindo, apesar da merreca
que ganha), assim como alguns vigilantes. Os oficiais de justiça, são
bem bacanas. E muito apressados. Ah, e os advogados. Só podem
entrar a partir do meio dia. Precisam ser revistados. Então
inventaram uma porta giratória, que vive travando e incomodando os
guardas, mas, é um mal necessário. Sabe como é. Vai que algum
está armado? Já pensou?
Os juízes não batem ponto. Então, cada um faz seu
horário. A única que vai de manhã é a Juliana, A Louca. E uma
substituta, que está em estágio probatório. A maioria chega mesmo
no horário das audiências. Floribaldo, O Invejoso, tem semana que
nem aparece.
A "porteira" abre ao meio dia pontualmente e a
"manada" pode entrar. Tem de tudo. E perguntam cada coisa: "onde
eu tiro uma "telha" corrida, moço? Dá de usar o banheiro? Tem
Caixa aqui dentro? Sabe se o juiz atende? Vai uma bananinha
recheada hoje?

CAMILE

A advogada entra tão esbaforida no gabineUte, que


quase derruba o quadro que a espoUsa do juiz Floribaldo pintou e
está um pouco torto ao lado da porta.
Toda sem graça, ela tenta ajeitar a "obra de arte" que,
para piorar, possui uma moldura dourada, que nunca viu um
espanador. A advogada (muito "reparadeira") percebe que é uma
pintura bem primária. Um vaso de flores pavoroso. No canto direito
nota-se a assinatura da mulher do magistrado: "Amanda Mussolini."
Então, sorrindo, toda vermelha, vira para estagiária e pergunta:
– Boa tarde. O doutor Floribaldo está?
– Boa tarde, doutora. Ele ainda não chegou. Sobre o
que seria?
– Sobre um processo que está concluso desde 2015.
Preciso conversar com ele. Não tenho mais desculpas para dar ao
cliente. Sabes a que horas ele chega?
– Ah, doutora. Hoje é sexta. Difícil dizer. Não tem
audiência. E ele está "no eleitoral."
A advogada lembra do tempo em que foi estagiária de
um juiz e também dava essa mesma desculpinha esfarrapada.
Percebe a porta aberta do gabinete, se espicha todinha e consegue
ver a mesa do juiz. Um quadro com um brasão da família atrás da
mesa. Outro com um castelo muito bonito de um lugar que parece
ser a Alemanha. As fotos de duas crianças, que conclui devam ser
seus filhos. Lourinhos, muito bonitinhos. E livros. Muitos livros.
Dentre eles, "Minha Luta." Ah, e um casaco abandonado na cadeira.
Ela puxa papo com a estagiária:
– Desculpa, não perguntei teu nome.
– É Priscila.
– O meu é Camile. Vem cá, Priscila, me diz uma coisa.
O doutor Floribaldo é de origem germânica?
– Não, não. Ele é ítalo-bananeiro. Mussolini o
sobrenome dele.
– Ah, é mesmo! Que cabeça a minha! Sempre vejo o
sobrenome nos despachos. Mussolini, hein! Será que descende do
"homem?"

Priscila riu:
– Ele diz que não, mas, não é um sobrenome comum. E
para falar a verdade, ele não gosta muito da Itália. Prefere a
Alemanha. Da história. A senhora sabe, né?
– Sei, sei. E como ele é? Fisicamente, eu pergunto.
Porque nunca vi esse juiz. E ele não tem Facebook, nem Instagram.
Nunca fiz audiência com ele e fico curiosa. Ele é bonito?
A estagiária franze a testa. Dá uma risadinha e
cochicha:
– Sabe aquele chefe do Homer Simpson?
– Sei. O Mr. Burns!
– Isso! Tipo ele, só que andando com o gingado da
Pantera Cor-de-rosa!
As duas começam a rir. Muito alto. E uma das
assessoras (são três) entra na sala, para ver o que está
acontecendo.
Camile tenta disfarçar, conta uma piada qualquer. Passa
o número do processo para a estagiária e se despede.

MARINALVA

Já passa de meio dia e ninguém chega! Estou aqui


desde sete e meia e ninguém lembra que sou gente e preciso sair
para almoçar! Tem alvará esperando para expedir faz quase dois
meses! O telefone não para de tocar! Se eu não venho de manhã
não dou conta, porque à tarde os advogados chatos ficam me
chamando no balcão toda hora! Que inferno! Se o Chico passar no
concurso do INSS, juro, vou abrir mão dessa chefia! Estou ficando
doente já!
A porta abriu às 12h15 min. Vanderlei, um servidor,
entrou, com a cara mais deslavada do mundo:
– Boa tarde, Mari.
– Boa tarde. Ah, que bom que chegou alguém. Vou sair
para almoçar 20 minutinhos, que daqui a pouco começam a me
chamar no balcão. Tô morta de fome e cheia de serviço...
– Tá, mas antes lê esse bilhete que o Dr. Floribaldo
mandou te entregar. Encontrei com ele no corredor agora. Deve ser
coisa importante. Ele colou para eu não ler (risos).
Marinalva abriu o bilhete: "Marinalva, busque uma
encomenda minha na farmácia, que eu esqueci. Passe no quiosque
e me traga um suco de laranja. Sem gelo. E com uma colher e meia
de açúcar. Traga também um misto frio. Ass.: Dr. Floribaldo."
Vanderlei, muito curioso, mal conseguiu aguardar a
chefe terminar de ler tentou puxar o bilhete:
– Deixa eu ver?
– Não! – Marinalva, arrancou o bilhete desaforado bem
rápido das mãos dele, guardou na bolsa – é coisa pessoal! – Afinal,
ninguém precisava saber disso no cartório. Era muita humilhação!
– Puxa-saco!

Ela engoliu essa e saiu, batendo a porta. Foi pela


escada, para não encontrar nenhum advogado. O estômago
roncando. Maldito fascista! Até nos bilhetes ele coloca "doutor"
antes do nome! Por favor e obrigada, são palavras que esse infeliz
não conhece. E não deixou dinheiro! Mais uma vez essa palhaçada!
Espero que essa porcaria que tenho que buscar na farmácia esteja
paga, pelo menos. Porque o lanche, vai sair do meu bolso. Terceira
vez esse mês.
Marinalva atravessa a rua correndo em direção ao
shopping. Não pode demorar muito, porque se começar a chegar
advogados e ela não estiver, vão ligar para corregedoria.
Vai direto para farmácia do shopping. Graças a Deus
não tem ninguém. Encosta no balcão, com os bofes saindo pela
boca:
– Boa tarde. Eu sou chefe de cartório ali do JEC. Vim
buscar uma encomenda para o Dr. Floribaldo.
– Ah, sim. Vou lá dentro buscar.
A guria demora. Só o que faltava essa molenga me
fazer esperar. Eu cheia de serviço, minha barriga roncando.
Passados cinco minutos ela volta com um pacote lacrado:
– São trezentos reais.
– Ele não me deu dinheiro. Vocês não podem mandar a
nota e um boleto para o e-mail dele?
– Só um minuto que vou lá dentro perguntar.
E a guria demora mais cinco!
– Podemos sim.
Marinalva respira aliviada. Anota o e-mail:
floriabaldomussolini@saobarnabe.tjsi.jus.bn e sai com o pacote
aliviada. Não teve que desembolsar trezentos reais por essa
porcaria que ela nem sabe o que é.
Em seguida resolve comer alguma coisa. Está tudo
lotado. Droga! O único restaurante vazio é aquela churrascaria Olho
da Cara Grill, mas ela encara. Come o mais rápido que pode. Nem
sente o gosto. Paga. E vai correndo para o quiosque.

Tem um velho molenga pagando uma coxinha. Já passa


das 13 horas e ela ainda não conseguiu fazer tudo. Que inferno!
Outro atendente vem se arrastando:
– O que seria para senhora?
– Um misto frio e um suco de laranja. E pode deixar que
eu adoço.
O boca-mole corta o pão bem devagar. Passa manteiga.
Coloca uma fatia de queijo, outra de presunto. Faz um embrulho e
começa a procurar uma sacola, mas ela interrompe:
– Não precisa! Só o pacote está ótimo!
Aí ele espreme as laranjas com uma calma, que nem
parece que já tem mais cinco pessoas esperando. Para agilizar já
pega o açúcar e calcula uma colher “e meia” para o frescalhão.
Misturo. Paga do seu bolso. Ai que ódio! E atravessa a rua, assim
que alguém resolve dar vez.
Entra correndo no fórum. Pega o elevador. Por sorte
está sozinha. Abre o suco, cospe dentro e mistura com o canudo.
Aperta no sexto andar. Vai correndo o mais rápido que pode, dá
uma batidinha, entra e o grosso a recebe assim:
– Por que demorou tanto? Foi no shopping do centro?
– Desculpa doutor, é que tinha fila na farmácia, no
quiosque e eu tive que comer alguma coisa também.
– Tá. Me dá meus remédios aqui.
– Ah, a conta eles vão mandar para o seu e-mail...
– O quê? Deste meu e-mail na farmácia?!
– Dei. Eu não tinha trezentos reais e ela queria o
pagamento.
– É brincadeira, hein Marinalva! Nem para pedir um
boleto! Agora vão me colocar nessas listas e encher meu e-mail de
propagandas. Espero que não tenhas dado meu e-mail do trabalho.
– É o único que eu tenho.
– Francamente! Te arranca já daqui. Vaza, vaza...
Não agradeceu. Nunca agradece. Ela saiu de lá o mais
rápido que pôde. Seu consolo foi ouvir o maldito tragando o suco
cuspido. Chegou ao cartório já tinha dois advogados esperando. Ela
cheia de coisas para fazer. Hoje não sai antes das oito. Para variar...

CLEVERSON

O policial militar que acabou de passar no concurso


estava feliz da vida. Finalmente conseguiu convencer o soldado
Jeremias a trocar de turno com ele. Conseguiu mudar sua escala
para o período diurno. E agora era para sempre!
Estava pensando: que beleza! Com certeza vai ser bem
melhor. Vou chegar em casa no mesmo horário que a Shirley.
Acabou esse inferno da gente quase nunca se ver. E durante o dia
deve ser moleza. Agora fico das 8h às 20h. A manhã inteira foi bem
tranquila, mas foi só abrir a "porteira" ao meio dia que o pesadelo
começou. Nunca viu tanta confusão. Um rolo naquela porta giratória.
Quase ninguém passava sem travar.
– Volta, senhora. Tem chave? Carregador de celular?
Alguma coisa corrente?
– Já tirei tudo.
– Então passa de novo...
Às 15 horas deu-se o rebuliço. Uma estagiária desceu
correndo, puxou Cleverson pelo braço:
– Sobe que tem uma mulher batendo na Dra. Juliana!
Cleverson ficou desesperado, subiu correndo pelas
escadas, porque o elevador estava lotado. A estagiária ao lado,
tentando explicar resumidamente e quase sem fôlego:
– É a mulher, a mulher do Dr. Felipe.
– Que Dr. Felipe?
– Um advogado grisalho, que vem sempre aqui... é a
mulher dele... atacou a doutora, a assessora não está conseguindo
separar... eu desci...
– Mas que diabos! Por que a mulher de um advogado
atacaria uma juíza?
Cleverson entrou no gabinete. Dra. Juliana e a tal
mulher, rolavam pelo chão, molhadas, porque a assessora,
aproveitou a oportunidade para se vingar da chefe e, só de
maldade, jogou água para separar (desnecessário aquilo). E claro
que não deu certo.
Cleverson, se meteu no meio. Parecia uma luta na lama.
Deu um safanão na mulher e salvou a juíza, que berrava:

– Prende! Estás presa por desacato, sua vaca!


– Vaca és tu, sua pilantra! Só porque é juíza, acha que
pode dar em cima de homem casado! E me prende, quero ver se
tens peito para isso! Me prende que eu vou no tribunal e mostro as
fotos que eu peguei no celular dele!
A mulher mostrava uns arquivos, Dra. Juliana de
lingerie, um troço bizarro. Virei o rosto para o outro lado. A juíza
tentou se recompor. Moderou o tom de voz e disse:
– Guarda, conduza esta senhora até a saída.
– Algemo?
– Não é necessário.
Cleverson colocou a mulher nos ombros e foi escadaria
abaixo. Todos ouviam os berros:
– Juíza safada! Amante do meu marido! Manda foto
pelada pra ele! Safaaaaaada!
Coloquei a mulher no chão, apenas quando chegamos
fora do prédio e ela queria voltar:
– Senhora, por favor, vá embora.
– Essa vagabunda! Está pensando o quê? Só por que é
juíza? Me solta que eu vou lá quebrar a cara dela!
– Senhora eu entendo a sua situação. Por favor, não
volte lá. Fique calma, senão vou ter que algemar a senhora e levar
para a delegacia. Vá para casa, converse com seu marido.
Já tinha uma multidão em volta olhando. Ela começou a
chorar. De re pente um homem de terno apareceu. Devia ser o tal
Dr. Felipe, marido dela.
– Vamos embora, Simone! Para com isso, está todo
mundo olhando! Que vergonha! Em casa a gente conversa! Quer
ser presa? Quer ser presa?
Ele começou a sacudir a mulher e eu coloquei a mão na
arma. Olhei sério para ele, que me fez um sinal com a mão:
– Calma. Está tudo sob controle. Estou levando minha
esposa para casa.
Foram embora e eu dispersei os curiosos:
– Acabou o show. Circulando, circulando!
LUÍS

Secretário do foro é tipo síndico do prédio. Ninguém


gosta dele. Ninguém quer o lugar dele também. Ainda mais quando
o diretor é um juiz pentelho como o Dr. Floribaldo.
Enquanto esperava o elevador, pensava com seus
botões: nem sei o que vou fazer da minha vida esse ano, com esse
nazista no comando. Mal assumiu a direção, já está implicando até
com o tamanho das saias das funcionárias. "No máximo 2 cm acima
do joelho."
E mandou me chamar para saber da situação dos
readaptados. Entrei na sala, ele estava terminando a reunião com o
pessoal da limpeza. A escrava dele (Marinalva) ao lado, sempre
sorrindo, enquanto ele dizia para as serventes:
– Esse chão tem que brilhar! O rejunte tem que ser
branco.
– A gente faz o que pode, doutor – uma das gurias
tentou interrompê-lo.
– Não me interrompa! Quando um burro fala, o outro
abaixa a orelha!
Pensei "e bota burro nisso. Burro e grosso."
Ele prosseguiu:
– Não sou mulher. Não entendo de serviço de limpeza,
mas vejo que vocês não se empenham. Precisam se esforçar mais.
Peguem uma escova de dentes, mergulhem na água sanitária e
esfreguem. Com força. Até o chão brilhar.
– O fórum não dá escovas de dentes para a gente usar
na limpeza, doutor...
– Já falei para não me interromper! Marinalva, traga a
sua escova! Entregue para elas, depois ensine como quero o
serviço. E podem sair agora, que preciso falar com o Luís.
Ah, mas me deu uma vontade de rir. E lá foi ela buscar a
escova de dentes para dar para o pessoal da faxina limpar o chão
do banheiro do patrão! Meu senhor, aquela criatura não tem um
pingo de autoestima.
Saíram todos e eu fiquei em pé. Ele não me convidou a
sentar. Cuspiu:
– Quantos preguiçosos readaptados temos aqui na
comarca?

– Boa tarde, doutor. No momento são três.


– Quem são e o que estão fazendo?
– O Mauro, oficial de justiça que perdeu um braço em
um acidente de moto está na distribuição...
– Na distribuição? Que moleza é essa? Um homem
forte, parrudo como o Mauro, pode muito bem fazer um serviço mais
útil!
– Mas doutor, ele ajuda muito na distribuição. Lá tem
muita coisa. E ele atende o balcão, agiliza muito os protocolos...
– Não. Pode tirar o Mauro de lá. Quero que ele capine o
pátio?
– O quê?
– Tá surdo? Quero que ele capine o pátio! Hoje quando
estacionei vi que está crescendo mato entre os paralelepípedos. O
Mauro pode cuidar disso...
– Mas doutor, ele só tem um braço...
– Não quero discutir. Já decidi. Quem é o outro
malandro?
– A Arlete. Técnica. Tentou se matar, tem depressão
profunda e está no arquivo.
– No arquivo? Fazendo o que no arquivo? Não tem
nada lá para ela fazer!
– Tem sim. Ela está organizando tudo. É muito
caprichosa. E o ambiente é silencioso. Ela precisa de silêncio.
– Nada disso! Quero a Arlete entre os dois banheiros,
distribuindo papel higiênico para quem entra. Tô vendo aqui que o
gasto com o papel aumentou muito na gestão do diretor anterior. A
Arlete picota. Dez centímetros para cada mulher. Para os homens,
sempre vai perguntar se é número 1 ou número 2 e só vai dar o
papel se for número 2.
– Mas doutor, isso não existe em nenhum fórum.
– Claro! Nota-se que não existe. Por isso desperdiçam
tanto papel! Fardos e fardos todos os meses! Acabou a mamata!
Aqui em São Barnabé, vai sobrar papel higiênico!

– E o quadro depressivo dela? Não pode piorar? Não


seria bom um parecer do psiquiatra?
– Não! O psiquiatra não tem jurisdição aqui! E vai
melhorar. Ela vai ver gente. Pode até ganhar umas moedas...
– Sim, senhor.
– E quem é o último?
– A Bianca. Analista. Sobrinha do Desembargador
Astolfo. Está com uma unha encravada e à disposição do doutor
Juliano, atendendo na antessala.
– Unha encravada? Hum. É. Realmente um problemão.
Já tive. Sei como é. Deixa ela lá, pobrezinha. Não é bom fazer muito
esforço mesmo, que pode piorar.
CAMILE
Banho tomado. Medalhinha de Santa Bárbara no
pescoço, brinco de cristal (porque dizem que a energia ruim fica no
cristal e não pega na pessoa). Celular, carteira, pastinha com o
processo e lá fui eu! Prontinha para encarar uma audiência na vara
da família da comarca de São Barnabé.
Liguei ontem para o advogado do marido. Não quer
acordo. Passou tudo para o nome de terceiros e disse que não há
nada a dividir. Pois sim! Veremos...
Fui ouvindo Menudo no caminho. No último volume. Só
diminuí o som quando avistei aquela construção pavorosa. O Fórum
de São Barnabé parece um Kinder Ovo gigante. Quem desenhou
aquilo, pensou que estava sendo moderno (quá!) mas ficou mais
brega que a sede da OAB. Um Kinder Ovo cheio de surpresas
horríveis, aliás.
Cheguei. Não tinha vaga (novidade!) Fui estacionar no
shopping. Depois faria um lanchinho.
Atravessei a rua. Passei pela Marinalva, chefe de
cartório do JEC. Toda descabelada, correndo, com uns pacotes e
um copo de suco. Quase foi atropelada por um motoqueiro. Onde ia
com tanta pressa? Nem me viu...
Entrei, depois de uma luta intensa com aquela porta
giratória. Vontade de dizer de novo “estou trazendo uma
metralhadora, vim fazer uma chacina!" Só que me contive. Já fiz
isso uma vez. O guarda marcou minha cara. Não dá de fazer isso
sempre. Sinceramente, né? Eles estão cansados de me ver lá toda
semana. Sabem que não sou nenhuma assaltante. E eu sei muito
bem que travam manualmente a porta. Podiam pelo menos colocar
uns armários do lado de fora, mas se divertem fazendo isso. Sei que
se divertem.
Finalmente entrei. A cliente já estava lá. Subimos juntas.
Além de tudo o Kinder Ovo não é funcional. Cartórios nos dois
primeiros andares, audiências no terceiro e quarto. No quinto e
sexto, os gabinetes. Subimos esmagadas, com um carrinho de
supermercado, cheio de processos.
Orientei: “É só uma conciliação. Se ele fizer uma
proposta, a gente sai e conversa. Se ainda estiver irredutível, o
processo segue. ”

Atrasou. Nossa, como atrasou! Não tinha mais lugar


para sentar. Eu louca para fazer xixi, mas se fosse ao banheiro,
ficaria em pé até a hora da audiência. Então, me segurei.
Eis que fizeram o pregão (às 16h43min, olhei no
relógio):
– Audiência das 14 horas. Vara da Família. João
Mesquinho e Maria Ingênua.
– Somos nós. Vamos, Maria.
Entramos. Cumprimentei o colega. Sentamos. A
funcionária pediu as identidades e o colega cochichou para mim: "é
a Juliana Louca ou aquela outra?"
– A Louca.
Ele suspirou. Eu também.
Juliana entrou. Não vou descrever a roupa, porque não
quero irritar os politicamente corretos. E também porque isso não
importa. Ela poderia até estar nua. O problema é o jeito que conduz
a audiência. Abriu um sorriso e disse:
– Mais um divórcio! Ai ai ai... E a mulher está pedindo, é
isso?
– Sim – respondeu minha cliente.
E o show de horrores começou:
– Olha, não tá fácil, hein! Eu já tenho meu homem! Mas
não tá fácil arrumar um homem nessa cidade! Tudo “bicha”, casado,
quando não é “bicha” e casado.
Ela riu. O colega se forçou a rir. Eu me neguei. Olhei
para mesa. E a juíza continuou:
– O que houve? O que ele aprontou?
– Não está mais dando certo. Realmente, já tentamos
terapia de casal, já tentamos tudo. Estou decidida – disse a Maria.
– Também não quero mais – completou João, não
querendo sair por baixo.
A juíza riu. E perguntou:
– Andou pulando a cerca, né João? Tô vendo pela tua
carinha que tu tens é uma amante, hein! Hein?
Jesus Cristo, que tortura. Aquilo não tinha fim. O
promotor, um guri novo, todo constrangido.

O colega tentando sorrir, para agradar a maluca. Minha


cliente segurando o choro. E aquilo não acabava.
Minha cliente me cutucava. Escreveu um bilhetinho:
“essa mulher é mesmo juíza, ou é uma estudante? ” Circulei juíza e
devolvi.
– Meritíssima o casal vai mesmo se separar – eu
finalmente disse.
– Ok, tentei conciliar – Ela riu. – Não querem, vamos
prosseguir. Tem acordo com relação aos bens?
– Não – respondeu o colega – Meu cliente já tinha os
bens antes do casamento e não pretende dividir.
– Vamos ter que instruir então, doutores?
– Guarda, visita e pensão, dá de resolver hoje?
– Acredito que sim – eu respondi – ela quer a guarda.
As visitas estão ocorrendo livremente e a pensão, se ele concordar,
ela aceita ficar do jeito que está na liminar.
– O senhor concorda, João “pulador de cerca?” – ela riu.
Não dá para acreditar que as pessoas passam por isso em São
Barnabé, mas passam. E a juíza se acha muito engraçada.
O homem, todo sem jeito disse que sim.
Ela ditou a ata e marcou a audiência de instrução e
ainda teceu o seguinte comentário antes e sairmos: “comece a
pegar umas baladinhas, Dona Maria. Internet não é lugar de
conhecer macho. Vai por mim, que já tentei. ”
Tivemos que rir. Daqui a um ano será a instrução.
Troquei cartão com o colega e fiquei torcendo por um acordo para
não passar por mais um suplício como aquele. As pessoas pobres
são humilhadas naquelas audiências. É muito constrangedor.

MARINALVA
Esse fim de semana estamos de plantão. Quer dizer, eu
estou. Porque o Dr. Floribaldo some e deixa tudo nas minhas
costas. Se acontecer qualquer coisa na comarca, vou ter que
resolver sozinha com o celular e a senha do peticionamento dele,
que ficam comigo. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro há de me
ajudar e não vai acontecer nada. Tô até atacada da gastrite!
Já é sábado e ninguém tinha ligado até meio dia. Até
que o bendito telefone tocou. Era um advogado, querendo agilizar
uma cautelar “não sei das quantas. ” E ele queria falar com o Dr.
Floribaldo, que foi para praia com a Dona Amanda e os filhos. Não
sabia o que fazer, respondi por mensagem “peticione, já vou
analisar. Dr. Floribaldo.”
Em seguida tive um piriri! O homem peticionou e
mandou uma mensagem! Quer falar comigo, quer dizer, com o Dr.
Floribaldo! E quer ir ao fórum! Virei para o meu marido, que estava
estatelado no sofá, assistindo futebol:
– Chico, me ajuda! Um advogado mala acionou o
plantão! Um processo bem cabeludo, não sei fazer o despacho, o
Dr. Floribaldo não atende o celular dele!
– E o que tu queres que eu faça, mulher? Sou professor
de Geografia. Se tu não sabes fazer "o processo", muito menos eu.
Abriu mais uma lata de cerveja, coçou o saco e gritou
gol.
Merda de marido. Merda de vida. Merda de chefe, de
emprego. Eu quero morrer! Arghhhh!
– Quero que tu atendas o telelefone quando ele ligar,
fazendo de conta que és o Dr. Floribaldo! Enrola o cara, pelo amor
de Deus – Tirei o controle remoto da mão dele – desliguei aquela
merda – me salva, homem!
– Estás maluca? Não vou fingir que sou esse
“Palermaldo” coisa nenhuma! Fala pro cara a verdade! A culpa não
é tua!
Ele pegou o controle remoto da minha mãe e ligou a
televisão de novo:
– Tá vendo, perdi um lance importante por tu culpa! Vai
Joca! Chuta essa bola, poooooooooooooorra!!!!
Não sei o que me irrita mais, ele berrando, o cheiro da
cerveja, o barulho dele abrindo cada lata, a voz do narrador “Pedro,
Joaquim, Manoel, rola a bola...” ou esse advogado chato, querendo
conversar! Infeeeeeeeeeeerno! Me enfiei na frente da televisão,
coloquei as mãos na cintura e falei tão alto que acordei nosso filho:
– Aham, aí ele denuncia o juiz! O Dr. Floribaldo é
chamado na corregedoria e eu perco meu cargo! Como é que a
gente vai pagar a prestação do carro? Me fala, miserável!
Ele suspirou. Coçou o saco de novo. Meteu a mão no
pacote de fandangos. Ai que nojo! Onde eu estava na cabeça
quando disse sim e jurei para o padre e que o sim era até que a
morte nos separasse?
–Tá. O que eu digo?
– Que vai analisar com calma e que ele pode ficar
acompanhando o despacho pela internet.
– Tá e se o sujeito falar alguma coisa de lei? Eu digo o
quê?
– Nada. É só um advogado. Não precisa dar muita
conversa. Diga apenas: peticione, que vou analisar. Apenas isso,
Chico! Não inventa moda! Só isso! Nada além disso! E eu vou
acender uma vela para minha santinha me dar uma luz. Vou
procurar um modelo de decisão no notebook que ele deixou comigo
e tentar achar o telefone da casa de praia da sogra do Dr.
Floribaldo.
Achei! Eram duas da tarde. Liguei para lá e uma
senhora atendeu:
– Olha eles estão dormindo...
– É que é um pouco urgente. Eu trabalho no Juizado.
Sou chefe de cartório e surgiu um problema no plantão e o telefone
dele está desligado...
– Já vou chamar então.
Ouvi a mulher colocando carregando o telefone sem fio.
O barulho do chinelo se arrastando, uma porta tangendo e ela
“cochichando”:
– Babado, tem uma mulher no telefone querendo falar
contigo.
– Mulher, que mulher? Não falou que tô dormindo?
– Falei, mas ela insistiu. Disse que é do Fórum e que é
urgente.

Ele veio. Ouvi os passos pesados:


– Alô!
– Doutor Floribaldo, é a Marinalava. O senhor me
desculpe se estou incomodando, mas surgiu um problema aqui no
nosso plantão...
Ele suspirou:
– Está incomodando bastante! Não te deixei minha
senha, meu notebook com todos os modelos?!
– O senhor deixou, mas o advogado está insistindo em
conversar com o senhor por telefone. Não sei o que fazer. Já
respondi por mensagem, mas ele quer ligar...
– Ai que inferno! Que cara mala! Por isso sou contra
essa palhaçada de plantão. Antigamente isso não existia.
Inventaram isso para acabar com o fim de semana dos juízes.
Antigamente era de segunda a sexta e deu...
– O que eu faço?
– Não sei. Te vira! E não liga mais pra cá!
Ele desligou. O Chico estava me olhando. Não quis dar
o braço a torcer. Disfarcei:
– Tá, tá vou fazer isso... tchau... Bom final de semana
para o senhor também.
– E aí? – Pergutou meu marido e eu menti:
– Ele te autorizou a se passar por ele. É só atender e
fazer como eu disse.
Passa da meia hora o telefone tocou. Era o chato do
advogado. O Chico atendeu:
– Pronto.
Eu tentei ouvir o que o advogado dizia, mas não
consegui. Só ouvi meu marido:
– Sim... entendo... peticione... vou analisar... peticione...
entendo... boa tarde.
Ufa! Deu tudo certo! E nenhum chato ligou até o fim do
plantão. É cada uma que a gente passa nesse judiciário. Contado
ninguém acredita.

CLEVERSON

Tomara que não aconteça nada, além dessa “porra”


giratória travar. Um mês aqui e já entendi porque o guarda mais
velho trocou bem rápido o turno.
Tem gente que entende, mas tem gente que é tão
arrogante. Uma advogada dia desses. Aquela tal de Camile. Uma
grossa. Emperrada três vezes e disse o seguinte:
– É que tenho aqui uma metralhadora. Vim fazer uma
chacina!
– E quem garante que não? – Respondi na lata, sabe.
Aí ela tirou tudo da bolsa, jogou no chão. Fez um
barraco e entrou pela porta lateral, porque no fim, era o raio da
bolsa que tinha pedaços de metal. Inferno...
Opa! Lá vem um estagiário da vara criminal:
– Guarda, corre aqui! Corre aqui, que o juiz substituto
enlouqueceu!
Ô inferrrrrno! Nem para aprender o meu nome. Me
chamam de "guarda." E o que será que houve dessa vez?
Entrei na vara criminal e o juiz substituto, que mal
acabou de passar no concurso, já tirou porte de arma (e já estava
fazendo merda). Nervoso, trêmulo, ameaçando uma testemunha
com um revólver!
Que cena bizarra. Queria que o cara dissesse alguma
coisa que não estava dizendo. O promotor acuado em um canto. O
advogado pálido. Não sei o que queriam que eu fizesse ali. Deviam
chamar um psiquiatra, mas tentei negociar:
– Calma, doutor. Eu sou policial. Estou aqui para ajudar.
– E eu sou juiz! Quem te chamou?
– Doutor, por favor, abaixe esta arma. Vamos conversar.
As pessoas estão assustadas. Não é necessário empunhar a arma.
– Quem decide o que é necessário aqui ou não sou! Eu
sou o juiz, entendeu?
– Não estou contrariando sua autoridade. Só estou
dizendo que sou policial e já cheguei. Posso efetuar a prisão que o
senhor quiser, se for o caso.
O promotor, Dr. Joaquim, fez que sim com a cabeça. Ele
baixou a arma. O promotor pegou bem rápido. Os advogados
levantaram. Um começou a berrar:
– O senhor enlouqueceu! Vou levar o caso à
corregedoria!

– Levaremos, disse o outro advogado! Estamos indo


para lá agora!
– Doutores, calma, o juiz é novo. Acabou de passar no
concurso – disse o Dr. Joaquim, tentando contornar a situação, mas
um dos advogados, um homem mais velho, que estava até
passando um pouco mal, não conseguia ficar calmo:
– Eu sou cardíaco. Eu não tô me sentindo bem!
E lá veio uma menina com água. As pessoas que
estavam lá para tal audiência aproveitaram para ir embora, incluindo
o outro advogado. Teve reclamação na corregedoria. E no final, o tal
juiz foi mandado para comarca ao lado. Achei que deviam ter
internado em um hospício, mas só mandaram para comarca ao
lado.

LUÍS
A inauguração do caixa eletrônico estava agendada
para a quinta-feira passada, mas, devido a um telefonema, na
verdade um trote de alguém que não tem o que fazer, falando que
havia uma bomba no fórum, foi adiada pra hoje.
Tive que me segurar para não rir. Porque ô situação
ridícula!
Eu, o Dr. Floribaldo, que é Diretor do Foro, sua fiel
escudeira Marinalva, o gerente da Caixa Pobretômica Nacional,
duas juízas leigas e o pessoal do gabinete em volta do caixa
eletrônico. A Marinalva colocou uma fita vermelha, deu uma tesoura
para o Floribaldo e ele disse que faria um breve discurso.
Vergonha alheia, é a sensação...
Lembro de algumas coisas:
"Hoje é o início de uma nova era na Comarca de São
Barnabé. Finalmente o nosso egrégio tribunal, em conjunto com a
Caixa, disponibiliza um terminal eletrônico para facilitar os trabalhos
deste fórum..."
Enquanto isso, a Marinalva filmava tudo. Porque parece
que esse fiasco será transmitido na TV Fórum. Até fiquei meio de
lado para não aparecer.
"Cada um deve guardar pelo menos 30% do que ganha
quando recebe seu salário."
Não consigo esquecer que ele disse isso! Para mim falta
pelo menos 30% a mais quando recebo meu salário. A gente está
sem reajuste há dez anos. O último, que foi de 3%, parcelaram em
três anos. Guardar o quê? Até moedas do cofrinho da minha
sobrinha Juju eu andei atacando. Para ele é fácil falar.

CAMILE

Cheguei ao balcão da vara cível da Comarca de São


Barnabé e toquei a sineta. Um estagiário, muito simpático,
prontamente veio me atender:
– Boa tarde.
– Boa tarde. Preciso pedir para agilizar um alvará que
está por fazer há meses aqui no cartório. Dá para chamar a escrivã?
– Não precisa. A gente tem um sistema diferente aqui,
doutora.
– Ah é? Qual?
– O caderno de desejos! – Podem acreditar. Ele puxou
um caderno azul brilhante, enorme e anotou meu nome, número do
processo e me mostrou que os pedidos atendidos têm um “ok” ao
lado. Disse que no gabinete o juiz também adotou esse mesmo
sistema e, reparei que colado no balcão, também estava o e-mail do
magistrado, para quem quisesse fazer alguma reclamação.
Sou obrigada a confessar que gostei de todas essas
medidas. O juiz Miguel é realmente o mais simpático da comarca.
Gente finíssima e acessível. O problema são os despachos. Benza
Deus as sentenças e despachos daquela criatura!
Dia desses recebi uma intimação em um processo
PESSOAL, que era uma pérola: "intime-se a autora para anexar a
procuração."
Eu tinha grifado que a porcaria do processo era em
CAUSA PRÓPRIA. Juntei cópia da minha OAB. Pelamordocu esse
despacho! Não era necessária uma procuração minha para mim
mesma, mas, Dr. Miguel, coitado, em sua ânsia de despachar
rápido, não se deu conta.
Mesmo assim peticionei. Expliquei tudo isso. Juntei
jurisprudência narrando a desnecessidade do advogado juntar
procuração dele para ele mesmo, e, para não me incomodar, juntei
a procuração mais ridícula do mundo:
“Camile Barbosa de Souza, brasileira, solteira (porém
repleta de pretendentes) advogada, inscrita na Ordem da Advocacia
da Bananalândia número tal, nomeia como sua procuradora ela
mesma, conferindo a si (quá!) amplos poderes para falar em seu
nome, em qualquer instância ou tribunal, firmar acordos, blá blá
blá...”
É ou não é uma maluquice?
E pensam que o Dr. Miguel percebeu a ironia? Claro
que não! Na verdade, desconfio que um daqueles guris do gabinete,
recebeu a maluquice e nem leu, porque o despacho que saiu foi o
seguinte: "sanado o vício, cite-se o réu."
Sanado o vício! É mole?
E o dia que tive que falar com ele! Ah, esse foi muito
engraçado! Ele tinha pedido uma declaração de “isenção do imposto
de renda emitido pela fazenda.” Um troço que não existe mais. Não
é emitido há anos. Quem não declara, simplesmente se
responsabiliza pela veracidade da informação e deu.
Conversei com os estagiários. Ele só tem homens no
gabinete. Ao contrário do Dr. Floribaldo e da maioria dos juízes, que
têm haréns, no gabinete dele, só homens. Dizem que a mulher dele
é muito ciumenta, assim como a mulher do Dr. Bigodão (promotor
de justiça) que também só tem machos na sala. Enfim, os guris não
entenderam e eu tive que falar com ele. E olha o jeito que o juiz me
recebeu:
– E ae, doutora! Beleza?
– Boa tarde, meritíssimo. Preciso falar com o senhor
sobre esta certidão que o senhor está pedindo.
– Pois é. A senhora tem que juntar.
– Não existe. Pode conferir no site da receita.
– Como?
– Não posso juntar porque não existe mais isso. E seus
estagiários não entendem que não existe. Já pedi duas vezes.
– Ah não existe é? Hã.... Então vou ter que parar de
pedir isso.
– Pois é.
– Ah, beleza então. Vou parar de pedir. Já dá o
processo aqui, que já mudo o despacho e daqui para frente não
peço mais. Era só isso?
– Sim. Eles só emitem certidão se a pessoa declara o
IR.
– Belê! Agooooora eu entendi. Vou parar de exigir.
– Obrigada. Boa tarde então.
– Valeu, doutooora!
Dá para acreditar numa coisa dessas?

MARINALVA

– Pessoal, o Dr. Floribaldo quer que todo mundo fique


hoje depois do horário para uma reunião no gabinete – anunciou
Clarissa, uma das assessoras.
São três assessoras. Duas dividem salário e a terceira é
paga pela prefeitura. Além disso ele tem um técnico que tirou do
cartório à disposição no gabinete, dois estagiários e dez juízas
leigas. Dez!
No cartório só fico eu, o imprestável do Vanderlei, a Cida
e uma estagiária. Respondi que tudo bem, mas só foi a Clarissa
virar as costas o Vanderlei deu um piti:
– Que merda é essa? Reunião para quê?
– Não sei. Por que não perguntou quando ela estava
aqui?
– Claro que tu sabes! Tem alguma coisa a ver com o e-
mail que chegou da corregedoria?
– Já falei que não sei, Vanderlei. Não faço ideia. Vou
saber junto contigo daqui meia hora. Já são seis e meia.
– E eu tenho que ficar? – Perguntou a estagiária.
– Não. Tu tens aula, pode ir, querida. Só os servidores
ficam.
Passada meia hora, subimos todos os três. Entramos na
sala de audiências e lá estava o batalhão do gabinete. Dr. Floribaldo
começou o discurso:
– Como vocês sabem a corregedoria está me
pressionando. Temos quase 100 mil processos aqui e, desses,
metade está no gabinete. Vou ser curto e grosso: vocês vão ter que
me ajudar a esvaziar esse gabinete! Todo mundo vai ter que
despachar! Marinalva, cadê a estagiária?
– Ela estuda à noite, doutor. Eu dispensei.
– O quê? Falei que queria todo mundo aqui! As minhas
meus estão aqui!
– As suas estudam de manhã. Não posso fazer a
menina perder aula.
– Tá. Amanhã passa tudo para ela. Vou fazer uma
divisão dos processos conclusos. Vocês são dezenove. Cada vai
despachar 2.631 processos. Quero que façam isso em, no máximo,
três meses.
Percebi que ele não se incluiu na conta. Dividiu os 50
mil processos entre nós e ele, que é o juiz, não ficou com nenhum.

Será que ninguém vai dizer nada? Olhei em volta. É.


Ninguém disse.
E ele continuou:
– Parece muito, mas é coisa simples. Vou chamar de
"operação Ctrl C e Ctrl V". São sentenças simples nos processos
fininhos e, no mais, dois tipos de despacho. Para o que envolver
pessoas físicas ou empresas muito pequenas, vocês vão marcar
conciliação. De dez em dez minutos. O dia inteiro. E as juízas leigas
vão fazer. Já o que for de empresas grandes, vocês despacham o
seguinte: "digam as partes em 10 dias quais provas pretendem
produzir e após voltem conclusos."
Meu Deus, não acredito que esse asno vai fazer isso.
Vou virar noite mandando publicar essas porcarias. Depois vou ter
que certificar tudo. Ninguém vai dizer nada, será?
Ele continuou:
– Aí sai tudo do gabinete. E volta com data nova.
Atenção juízas leigas, quero ver muito acordo! É para forçar acordo
mesmo! Meter pressão nessa cambada! É para dizer "se vocês não
se entenderem vai sair uma sentença que não vai agradar
ninguém!"
– Tá certo, doutor – Disse a Magda.
Até que o Vanderlei resolveu abrir a boca:
– Tá, mas que horas a gente vai fazer isso?
Doutor Floribaldo ficou vermelho:
– No teu caso é na hora do expediente. Começa a
chegar no horário, para de sair todo dia para fazer lanche das três
às cinco, que eu tô sabendo, que dá de fazer. Os outros é que vão
se esforçar mais. Cada um vai ter que vestir a camisa!
O Vanderlei podia ter ido dormir sem essa. E eu não vou
dormir mais, meu senhor. Já trabalho 12 horas por dia. Não vou
mais ter final de semana. Que ódio!

CLEVERSON

Ah, minha folga! Um dia (e meio) longe da “porra”


giratória e das confusões daquele Kinder Ovo que chamam de
fórum.
A Shirley já está na cozinha fazendo alguma coisa. Tô
sentindo o cheirinho do café. E de alguma coisa gostosa que ela
está fritando. Resolvi levantar.
Mal entrei na cozinha, ela anunciou:
– Bom dia, amor. Pega meu celular ali e dá uma olhada
no vídeo que a esposa do Jandir mandou no WhatsApp agora cedo.
O Jandir é um vigilante terceirizado do Fórum. Peguei o
celular dela:
– Não é possível!
– É ele, né? – ela arregalou os olhos, enquanto tirava os
bolinhos da frigideira – O juiz lá do fórum que tu trabalhas?
– É ele sim!
Ele. Doutor Floribaldo Mussolini. O todo poderoso. Sem
camisa, mostrando machucadinhos minúsculos braços: "tô aqui, na
casa de praia. A Amanda me atacou. Olhem como estão meus
braços, meu rosto, meu ombro."
Eu, francamente, só vi uns arranhões. O que me
chamou atenção foi um espelho enorme, atrás dele, em que
aparecia a bunda do babaca, branca de doer, peluda e caída. Era a
visão do inferno.
– Shirley, como a mulher do Jandir recebeu isso?
– Pois é. Liguei pra ela. Parece que recebeu de alguém
do cartório, que recebeu de alguém do gabinete. Parece que a
mulher desse juiz deu queixa dele por agressão física e ele diz que
quem apanhou foi ele. Uma história assim...
– Meu senhor. Ainda bem que hoje é a minha folga.

***

No dia seguinte, quando começou o expediente da tarde,


não se falava em outra coisa. A velha Socorro, mais conhecida
como macumbeira da vara criminal, se recostou no balcão e me
contou os pormenores da baixaria:
– Ali foi chumbo trocado, os dois se traíram e se bateram
e ela mereceu apanhar! – Socorro fez um sinal com as mãos atrás
da cabeça em forma de galhinhos – galhou o marido!
– Mesmo assim, né Dona Socorro? O homem é mais
forte. Ele devia só sair de casa.
– Eu nunca traí meu marido! Ele me traiu com a cidade
toda! Uma vez fiz brigadeiro, estava grávida esperando minha
pequena.
A Socorro tem duas filhas, adultas, enormes e imensas
de gordas, mas ela chama de “minhas meninas”, quando a gente vê
leva um susto – ele levou para uma das amantes! Eu aguentei de
tudo!
– Realmente não é fácil a vida a dois – eu falei,
imaginando como alguém pôde casar com aquela cobra.
– Tô indo Cleverson. Que ainda tenho que muito
mandado para expedir. E hoje cheguei mais cedo, para sair mais
cedo e comprar umas oferendas para Belzebu!
Ela fala isso com uma naturalidade.
– Até mais.
– Até.

LUÍS

Doutora Luciana, a juíza substituta, saiu aos prantos do


fórum. Resolvi subir e perguntar para uma estagiária do gabinete em
que ela estava trabalhando o que aconteceu:
– Ah, Luís. Tadinha. Foi chamada no tribunal depois que
mandou intimar o desembargador Lindolfo naquele teste de DNA.
Disseram que está na hora dela seguir carreira. Ela mal se despediu
do pessoal do gabinete e saiu assim, se sentindo derrotada, sabe?
– Sei. Pior que sei mesmo. E para onde vão mandar a
coitada?
– Itapipoca do Leste.
– Putz! Que merda, hein! Aquela vara única cheia de
homicídios?
– Lá mesmo. Daí o desespero da pobrezinha.
Fiquei sem palavras. Como podem fazer esse tipo de
coisa e nem disfarçam? Ela vinha desenvolvendo um trabalho tão
bom na comarca. Cooperando nos processos de violência
doméstica e na vara da família. Esforçada. Às vezes nem saía para
almoçar.
Ano passado removeram um promotor. Guri novo
também. Começou a perguntar de onde vinha a droga. Queria saber
como chegava no morro. Estava conseguindo uns resultados bons.
Também foi "convidado a seguir carreira." Enfiaram o guri em uma
vara da família. Lá em Pirapopoca do Norte. E o talento dele era
atuar na criminal. Saiu frustrado, revoltado, mas aquele disse
poucas e boas antes de sair.
Aquele chutou o pau da barraca! Lembro que enquanto
arrumava as coisas para sai do gabinete. Eu fui junto para ajudar,
ele dizia para o Dr. Bigodão:
– Tu és um frouxo!
– Olha lá, rapaz, vê lá como é que fala comigo – dizia o
Bigodão, mas ele não se fazia de rogado.

– Frouxo sim, só denuncia pobre! Só persegue mula,


que vende droga para sustentar o vício! Nunca te vi denunciar um
playboy! Nunca vi aquele delegadinho de merda, que é até padrinho
do teu filho, dar batida em rave e prender a gurizada rica que toma
ecstasy o fim de semana inteiro! É só preto, pobre e puta que vocês
gostam de denunciar aqui!
– Estás nervoso, eu vou desconsiderar.
– Desconsiderar é o caralho! Sabes que eu tenho razão!
Dr. Bigodão saiu da sala porque não aguentou ouvir a
verdade. O Dr. Joaquim deu um abraço no tal promotor jovem, cujo
nome nem lembro mais. Dra. Mariane, para variar estava de licença.
Foi embora. Nunca mais ouvi falar dele.
É assim mesmo que funciona aqui em São Barnabé.
Aqui em Santa Ignorância e em Banalândia. Sempre foi assim.
Desconfio que sempre será.

CAMILE
Último sábado do mês é dia de reunião da comissão da
mulher advogada da comarca de São Barnabé. E hoje decidi não
perder! A Daisy, advogada da Dona Amanda veio. Tô louca pra
saber do divórcio do Doutor Floribaldo. Sentei pertinho dela e, entre
uma caipirinha e outra, descobri tudo. Inclusive os detalhes mais
sórdidos.
– Me conta, guria. Estás mesmo defendendo a mulher do
Mussolini?
– Tô, mas não vai ser fácil. Olha, coitada da minha cliente
– Daisy entornou mais um copo – Recebeu o vídeo da bunda?
Vocês viram, gurias?
Todas na mesa rimos. Umas quinze advogadas na
reunião. Entre 22 e 70 anos, calculei eu. E assistimos novamente.
Às gargalhadas!
Depois virei pra Daisy e quis saber mais:
– O que aconteceu? Por que eles saíram no tapa?
– Dona Amanda tem um amante – a colega sussurrou –
depois de anos levando chifre, resolveu ir à desforra. Conheceu um
tal de Júlio César na academia. O cara é mais novo. Saradão,
tatuado e eles se encontram à tarde em um quarto e sala no centro
da cidade.
– Ah, bem feito para o Mussolini! Todo mundo sabe que
ele tem um rolo com uma daquelas estagiárias. A folgada da Alice,
que se acha a "primeira-dama" do gabinete. Já vi os dois juntos à
noite em um bar.
– Todo mundo já viu! E não é só ela, tá? Alunas da
universidade. "Orientandas", servidoras. Uma juíza leiga e até
partes dos processos. O homem é insaciável – Daisy cochichou no
meu ouvido –Na rua, porque em casa, minha filha, ixi. Coitada da
dona Amanda – mas ela pegou muita coisa no WhatsApp. Juntei no
processo. Só que sabe como é, ele "é homem". Ele "pode". E juntou
provas do caso dela com o cara da academia. Aí, pronto. Tudo que
ele fez não pareceu nada perto do único caso que ela teve durante
todo esse tempo.
– E por que ela não largou o Mussolini antes?
– Porque não é fácil, né Camile? Doze anos juntos. Dois
filhos, acostumados com tudo do bom e do melhor. Ela sempre
mudando de cidade com o marido. Não conseguiu se firmar na
carreira de fisioterapeuta em lugar nenhum. Foi levando. Só que o
Dr. Floribaldo andava desconfiado, e não sei como, descobriu tudo.
Claro, não encarou
o tal Júlio César, que tem o dobro do tamanho dele, mas, desceu o
cacete na infeliz. Foi uma baixaria. Vizinhos do primeiro andar
ouviram os gritos. Ela se defendeu como pôde. Deu uns arranhões,
empurrou, mas fraturou o braço esquerdo, ficou cheia de
hematomas no rosto. Um vizinho chamou a polícia. Ele fez um
vídeo, para tentar se resguardar e mandou para algumas pessoas.
Acabou vazando.
– Coitada. Imagino o sufoco.
– Pois é. Agora estão tentando fazer um acordo. Ele não
quer pagar mais que dez por cento de pensão. E o advogado é
irmão dele, me tratou bem mal. Foi bem grosseiro por telefone.
Disse que a pensão está de bom tamanho pelo que ela fez. É mole?
O que as crianças têm com isso?
– Para dois filhos e uma mulher que passou o casamento
inteiro o acompanhando pelo interior, para ele crescer na carreira,
quer dar só isso?
– Pois é. E o pior: ele não abre mão das aplicações, da
cobertura e do carro dele, tá? Ela não dirige e ele ofereceu a casa
da praia, lá no Balneário Quinto dos Infernos. Longe do colégio das
crianças e o plano de saúde, só para os guris. Nem colégio quer
pagar. Dá para acreditar?
– Que monstro! E já deste entrada na ação?
– Ele deu! E já conseguiu liminar. Caiu pra Juliana Louca.
– Imagine se não conseguiria? São amigos. Trabalham
na mesma comarca. Agrava!
– Agravei. Não adiantou nada. Julgaram em tempo
recorde. E dona Amanda foi condenada em custas. Ela está bem
desanimada.
– Que absurdo. Eu tenho agravos aguardando há dois
anos!

– O agravado não é juiz, meu bem. Camile, todos são


amigos na magistratura do nosso estado. E mesmo que não sejam,
são poucos juízes e desembargadores aqui. Eles fazem reuniões.
Vivem pisando em ovos. Devem favores um para o outro, entende?
Não é fácil processar um deles. Não aqui em Santa Ignorância.
– E agora? O que estás pretendendo fazer?
– Tô com uma ideia. De repente podes me ajudar. Pensei
em levar as provas que ela tem de que ele recebe propinas no
Conselho Nacional do Judiciário. O que tu achas?
– Calma, calma. Preciso digerir essa informação. Ele
recebe propinas??? Como assim???
– Tu não sabias? Pô, Camile! Todo mundo sabe que ele
vende sentenças, guria! Tu nunca tinhas percebido que é impossível
ganhar ações na Multinacional Milionária, por exemplo? Ele é uma e
carne com o advogado da empresa, o tal do Salafra. E o Mussolini
tem um carro e um padrão de vida totalmente incondizente com o
salário dele!
– Sei que ele anda tirando os processos do gabinete a
qualquer custo. Até denunciei na corregedoria. Criou uma tal
“operação Ctrl C e Crtl v”. Soube o nome por uma das estagiárias do
gabinete que é amiga de uma estagiária do escritório. E também
porque aconteceu em vários processos nossos. Só quero ver o que
vão decidir, mas, corrupto, olha... estou chocada!
– Sério? Nunca tinhas percebido como ele se veste? O
carrão?
– Não tinha percebido. Não sou ligada nessas coisas. E
não tenho muitas ações contra essa empresa que tu falaste,
especificamente, mas me conta, a mulher dele, agora que está se
separando quer dedurar?
– Pois é. Ela está com medo. Também tem a questão de
perder a pensão. Sabe como é, se “matar a galinha dos ovos de
ouro”, se ele perder o cargo, ela também perde a pensão dos filhos,
mas, está pensando em chantagear o cara. Ela tem extratos,
documentos...
– Em nome dele?

– Não. Aí é que tá! Em nome do pai dele, dos irmãos.


Ele compra muitos dólares também, só que tirou de casa, quando
descobriu que ela tinha outro.
– Aí fica difícil né Daisy? Fica praticamente impossível.
– Pois é.
– O pai pode ter recebido esse dinheiro de outra forma.
Um irmão é advogado, pode declarar imposto dizendo que recebeu
de clientes. Ele tem como “lavar” essa grana. E que eu saiba o CNJ
não quebra sigilo de juízes.
– Não quebra?
– Não. Pelas mais recentes decisões, sigilo bancário de
magistrado é inviolável, minha santa...
– Então não vai ser fácil.
– E estás cobrando bem, pelo menos?
A Daisy riu. Tomou mais um gole de capipirinha, deu um
arrotinho:
– Desculpa... nada guria, fiz contrato de risco. Vou
receber no final.
– Sua burra!
– Ela não tem dinheiro agora. Vou fazer o que também?
– E no final achas que ela vai ter? Essa mulher vai sair
sem nada. Escreve o que tô te dizendo. Vai sair com uma mão na
frente e outra atrás e tu ainda vais ficar com pena de fazer ela te
pagar.
Isola! Daisy bateu na madeira. As gurias começaram a
falar de um juiz do trabalho, muito lindo que passou no concurso e
veio para São Banabé e mudamos o rumo da conversa.

MARINALVA

Doutor Floribaldo mandou me chamar no gabinete. Que


merda será que aconteceu?
Subi. Dei uma batidinha na porta:
– Com licença, doutor.
– Entra, entra. E fecha a porta. Senta.
– Aconteceu alguma coisa?
– Aconteceu. Aquela vaca da Camile reclamou da
operação "Ctrl C e Ctrl V" na corregedoria.
Tive que fingir que estava chocada, mas eu sabia que
os advogados estavam todos reclamando:
– Não acredito. E agora?
– Eu que te pergunto. Sei que vocês são amigas. Como
ela ficou sabendo da operação?
– Doutor Floribaldo, eu não vejo a Camile há anos. Não
foi por mim que ela soube não. Só que ela tem vários processos
aqui. Deve ter visto despachos iguais e denunciou...
– Tem certeza, Marinalva? Olha lá, criatura! Sabes muito
bem que posso te tirar e colocar o Vanderlei no teu lugar, ou
qualquer outro técnico...
Meu coração disparou. Senti minhas pernas tremerem
com a possibilidade de perder minha gratificação. Não tinha
comentado nada nem com o Chico. Ele não podia me culpar!
– Doutor Floribaldo, por tudo que há de mais sagrado,
juro que não fui eu que comentei...
Me deu um nó na garganta. Senti as lágrimas enchendo
meus olhos. E ele nem percebeu. Não deu a mínima:

– Tá. Cala a boca. Preciso pensar. Preciso me defender.


Quantos acordos teve naquelas dez mil conciliações que as leigas
fizeram?
– Dezesseis.
– Só dezesseis?!
– Pois é. Infelizmente, foram só dezesseis, mas posso
fazer uma recontagem.
– Isso. Faz uma recontagem. Tenho que apresentar uma
boa justificativa. Preciso mostrar o quanto a vara melhorou depois
que aquele velho caquético se aposentou e eu assumi a vara.
Doutor Floribaldo se jogou para trás na cadeira,
enquanto batia com os dedos da mão esquerda na mesa:
– Não pense que não sei! Não pense que me engana,
sua fofoqueira!
Fiquei muito nervosa. Senti meu lábio inferior tremendo.
Tentei falar, as palavras quase não saiam:
– Doutor, não vejo a Camile há anos...
– Um de vocês fez a operação Ctrl C e Ctrl V vazar. E
eu desconfio de ti!
– Doutor, o senhor despachou cinquenta mil processos
da mesma forma. Saiu no diário...
– Ninguém lê o diário da justiça! Não se faça de sonsa!
E vou deixar uma coisa bem clara aqui: se eu tiver qualquer
problema com a corregedoria por conta dessa denúncia da tua
amiga, pode dizer adeus ao teu carguinho!
– Doutor Floribaldo, eu preciso da minha gratificação.
Juro que não falei nada. Eu preciso pagar meu carro. Eu dependo
do carro para trabalhar!
Ele riu. E eu resolvi apelar. Me atirei aos pés daquele
monstro, chorando convulsivamente, agarrada às pernas abertas
dele, que estava atirado para trás na cadeira giratória. E eu berrava:
– Pelo amor de Deus! Não me tire a função
comissionada! Eu dependo do carro para trabalhar! Faltam 39
prestações!

Ele ria. E enquanto ele ria, senti um volume crescendo


em cima da minha cabeça. Sim, o fascista estava ficando excitado
com a minha humilhação. Sempre desconfiei que ele se excitava
humilhando os funcionários, mas naquele momento tive certeza. E
sabe de uma coisa, resolvi me aproveitar da situação. Não tinha
mais saída.
Não aguentei tudo que aguentei até agora, para sair de
mãos abanando. Meu marido não precisava ficar sabendo.
Esfreguei minha cabeça no volume que crescia, muito
suavemente. Ele percebeu. Puxou meu rosto para ele. Enxugou
minhas lágrimas e com os olhos em brasas sussurrou:
– Marinalva, o que você é capaz de fazer para manter
esse cargo?
Tirei o batom, umedeci meus lábios com a língua,
pisquei meu olho esquerdo e disse com uma voz rouca e sensual:
– Qualquer coisa. Eu sou capaz de qualquer coisa.
Ele sorriu malicioso e eu comecei a puxar o zíper da
calça dele com os dentes. Bem devagar.
Ele colocou o pênis ereto para fora. Reparei que não
tinha nem metade da espessura do pau do Chico. O cumprimento,
prefiro não comentar. Isso explica a mania dele por carros grandes.
É o que sempre dizem, “pau pequeno, carro grande. ”
Bom, pelo menos foi fácil de chupar. Foi rápido também
(o nazista tem ejaculação precoce).
Engoli tudo para ele não ficar ofendido. E foi só.
Daquele dia em diante, de vez em quando ele me chamava no
gabinete e empurrava minha cabeça para baixo, abria calça e eu
sabia o que ele queria.
Uma ou duas vezes a gente fez sexo de verdade, mas
por insistência minha. Burra que sou, acabei me apaixonando. E
fiquei com esperança de fazer ele se apaixonar também. Apesar do
sexo ruim. Apesar dele não ser nem um pouco carinhoso, não me
tocar e fazer tudo muito rápido. Fiquei com esperanças de fazer
aquilo tudo melhorar e se transformar em um relacionamento de
verdade. Porque eu sonhava com um relacionamento de verdade.
Para mim sexo sempre foi sinônimo de amor. Eu me envolvi com
aquele cretino e me encantei. Sei lá, pelo status dele, pelo perigo.
Não sei explicar. Só sei que mergulhei na relação.

LUÍS

Quase seis horas. Só daqui a uma hora vou poder sair. E


não tenho mais nada para fazer hoje. Coisa mais idiota isso de ficar
esperando o horário. A gente bem que podia trabalhar com metas.
Estava pensando isso quando alguém bateu na porta:
– Pode entrar.
– Luís, boa tarde – era a assessora do promotor de
justiça da vara criminal.
– O Dr. Joaquim precisa sair, mas o carro do Dr.
Floribaldo está trancando o dele.
Pensei em dizer "e eu com isso?" mas tive que verificar
primeiro (realmente estava trancando) e ligar para o fascista:
– Doutor, boa tarde, o seu carro está trancando o carro do
promotor e ele precisa sair.
– Tá. Já vou lá tirar.
Ele desligou na minha cara e eu falei para a assessora do
promotor que ele já iria sair. Passados vinte minutos, Dr. Floribaldo
não saiu. O promotor veio atrás de mim:
– Luís, o Dr. Floribaldo está sabendo que eu tenho que
sair?
– Sim. Já avisei. Ele não saiu ainda?
– Não e eu tenho reunião na associação. Já estou
atrasado.
– Eu vou ligar para ele outra vez.
– Deixa, deixa. Eu vou até lá e falo com ele.
Dr. Joaquim saiu soltando fogo pelas ventas. Senti que o
negócio iria feder e fui atrás. Ele entrou no gabinete do Dr.
Floribaldo, que estava tomando café. Dr. Joaquim ficou puto e não
disfarçou:
– Ô Floribaldo, eu tenho uma reunião e o teu carro está
me trancando!
É sempre assim. Entre eles se chamam pelo nome, mas
quando se referem um ao outro para os funcionários colocam doutor
na frente, que é para a gente saber qual é o nosso lugar.
– Boa tarde pra ti também, Joaquim. Tô terminando meu
café. Ainda não são sete horas. Daqui a pouco eu desço.
Dr. Floribaldo falou isso e serviu-se de mais um biscoito
de polvilho.
O promotor ficou vermelho:
– Como é que é? Qual é a parte de "eu tenho um
compromisso" que tu não entendeste?
– Já falei que às sete horas eu tiro meu carro – Dr.
Floribaldo falou, enquanto enchia mais uma xícara de café.
Reparei que ele não adicionou açúcar. Tenho pavor de
quem faz isso.
O promotor ficou irado. Pronto. Começou a briga. As
assessoras todas de olhinhos arregalados:
– Tu és mesmo muito folgado! – Disse o promotor.
E eu tentei acalmar os ânimos:
– Doutor, o senhor não precisa se incomodar, é só dar a
chave que eu manobro o carro.
– Ninguém vai tocar no meu carro. Eu vou tirar ele dali –
respondeu o juiz.
O promotor começou a berrar:
– Teu carro nem tinha que estar atrás do meu, tu tens a
tua vaga!
– Minha vaga estava com um cone em cima e o Mauro
não estava no pátio para retirar – ele falou e tirou uns farelos da
gravata.
– E sua alteza real não podia descer e retirar? Tinha que
ser o oficial de justiça sem um braço? E não estando o cara no local,
vossa majestade decidiu colocar seu veículo atrás do meu, foi?!
– Decidi – Dr. Floribaldo sorriu, cínico.
– Pois pode ir lá AGORA TIRAR AQUELA MERDA QUE
EU TENHO QUE SAIR!!!
– Olha aqui ô Juquinha, tu nem tinhas que ter vaga no
fórum. O Ministério Público está aqui de favor.
– Como é que é?!!!!
– É isso mesmo. Esse prédio é do Tribunal. Vocês não
tinham que ocupar nem sala, quiçá vaga de estacionamento. E vai
sair mais cedo por quê? Agora que são seis e meia.
– Não que seja da tua conta, mas tenho uma reunião na
associação! E tira aquela fubica de lá agora, senão vou passar por
cima!!!!
Nesse momento Dr. Floribaldo, apenas nesse, também se
alterou:
– Pois faça isso, que eu quero ver! E saia já do meu
gabinete, seu gorducho!
Dr. Joaquim, que está realmente um pouco acima do
peso e ficou ofendido. Saiu marchando do gabinete, desmarcou a
reunião. Fotografou a situação dos carrou. Esperou o horário.
Esperou Dr. Floribaldo sair. Acionou a Corregedoria. E matriculou-se
na academia do shopping center.
CLEVERSON

A assessora da Juliana Louca veio me chamar:


– Seu guarda, a Dra. Juliana quer falar com o senhor.
– Já vou subir – pedi para um terceirizado ficar de olho
na “porra” giratória e fui tentando imaginar o que a juíza da vara da
família queria cinco minutos antes do horário de fechar o Fórum.
Pois bem, cheguei e os estagiários já tinham ido
embora. Ela dispensou as assessoras e ficamos sozinhos:
– Senta. Quer um café?
– Não, obrigado. A senhora está precisando de alguma
coisa?
– Senhora está no céu – ela falou isso e riu. Estranhei.
A mulher parecia um pouco embriagada e continuou:
– Meus amigos me chamam de Ju.
Não disse nada. Não sou amigo dela. Só a vejo de
longe e só falei com ela naquele dia que tirei uma mulher do
gabinete dela aos gritos. Dra. Juliana continuou:
– Bom. Te chamei aqui porque não quero que fiques
com uma impressão errada a meu respeito...
– Imagina, doutora. Que é isso?
– Por favor, não me interrompa. Naquele dia, aquela
mulher me atacou e tu deves ter pensado mal de mim.
– Não pensei nada. Cumpri meu dever.
– Pensou sim. E eu quero deixar claro o que aconteceu.
Eu não sou amante do marido dela. Eu fui colega de faculdade dele.
Nós somos amigos, ela é que não entendeu direito nossa conversa.
– Perfeitamente, doutora.
– Então, por favor, não pense que as coisas que ela
disse são verdade.
– Não penso não. Nem lembrava mais do assunto.
– Ótimo. E tu és novo aqui, né?
– Sou. Estou aqui não faz nem dois meses. Passei no
último concurso.

– Parabéns! E qual é o teu nome?


– Meu nome é Cleverson.
Fiquei feliz dela perguntar. É raro alguém se importar
com isso aqui. Todo mundo me chama de "guarda."
– E quantos anos tu tens, Cleverson?
–Vinte e seis.
– Solteiro provavelmente...
– Não. Casado.
– Mas não tem filhos?
– Ainda não...
– Eu sou filha de militar. Só que meu pai já é da reserva.
Só disse "que legal". O que mais poderia dizer? E ela
continuou:
– Quantos anos tu achas que eu tenho?
P.q.p.! Odeio essa pergunta! A mulher aparentava a
idade da minha mãe, mas não podia dizer isso. A gente sempre
chuta para menos quando fazem esse raio de pergunta:
– Trinta e cinco?
Ela ficou feliz, ufa!
– Imagine! Tenho um pouquiiinho mais.
– Não parece – não menti.
Realmente não parece. Parece mais. Beeem mais. O
rosto. O corpo até que é legal.
– É que eu me cuido. Ih, Gasto muito pra manter a
silhueta!
Pensei: "e não adianta nada", mas sorri.
E ela soltou essa:
– Que braços fortes tu tens! Posso pegar?
Meu senhor! Isso não estava cheirando bem. Nem
cheguei a responder e a mulher já estava me bolinando:
– E tem uma tatuagem. Adoro tatuagens. O que
significa?

– Nada. É só um dragão. Só símbolo de força. Não tem


um sentido especial.
– Eu tenho algumas tatuagens. Quer ver?
Meu senhor, que situação. Fui obrigado a dizer que sim
e ela fechou a porta. Fiquei um tanto quanto nervoso. Ela baixou um
pouco a blusa e mostrou um pequeno coração no ombro:
– Essa foi a primeira que fiz. Tu gostas?
– Sim. É bonita.
– A segunda é na coxa esquerda – Ela falou e levantou
a saia.
Pernas bonitas ela tinha. A cara um lixo, mas a maluca
tinha um corpo legal
– É uma fada – ela disse.
E eu pensei e tu és uma bruxa, mas falei:
– Bonita. Muito bonita.
– Quer tocar?
O que eu podia dizer? Toquei. E ela continuou:
– A terceira é no meu peito. Quer ver?
Como eu iria sair daquela situação? Não teve jeito. A
mulher tirou a blusa e me mostrou o peitão de silicone dela. Estava
com um sutiã de renda preto. Ah, eu não sou de ferro. Joguei a
safada em cima da mesa. De costas, porque a cara da baranga não
dava para encarar. Baixei a calcinha dela, abri minha braguilha e
executei o serviço ali mesmo. Ela berrava: “me xinga, bate na minha
bunda!” E eu batia e dizia “cadela, safada!”
Puxei os cabelos da juíza também. A mulher gostava de
uma baixaria! Nunca tinha visto daquilo e olha que sou rodado.
Pediu bis.
Depois disso ela vestiu-se novamente. Perguntou se eu
queria beber uma dose de whisky. Sim, Juliana Louca tem bebidas
no gabinete. Falei que sim. Ela me se serviu e serviu-se também.
Continuou conversando de outras coisas, como se nada tivesse
acontecido, sabe?
Olha, Dra. Juliana me prendeu ali umas duas horas.
Tive que inventar que o carro quebrou para justificar minha demora
em casa naquele dia.

Não teve beijo de despedida. Não teve troca de


telefones. Nada. Acho que ela sempre faz isso. E passa por mim
sem me olhar na cara. Nem bom dia, nem boa tarde. Nada. Ela
deve ter gostado porque me chamou lá mais umas quatro ou cinco
vezes, depois acabou e eu até me senti aliviado, porque o troço
estava ficando muito violento. A mulher começou a querer me bater
também e não posso chegar com marcas em casa.
Também não fiquei pensando muito nisso não. Foi um
caso passageiro. A Shirley nunca ficou sabendo. Espero que o
marido da louca também não.
LUÍS

Cinco horas da tarde meu celular tocou. Vi que era o


Tiago. Não atendi. Ele mandou uma mensagem "me encontre na
praça de alimentação do shopping às sete e quinze."
Respondi "ok, beijos." E ele não mandou outro beijo de
volta. Péssimo sinal. Significa que meu namorado ficou irritado, mas
que droga! Ele sabe muito bem que ninguém no fórum sabe que eu
sou gay. Já expliquei isso, mas o Tiago não entende. Finge que não
entende. Vive me cobrando uma "postura". Está ficando complicado
manter o relacionamento assim.
Tá. Consegui sair às sete. Fui direto para o shopping, já
me preparando para a discussão. A discussão de sempre. E ele já
estava lá na praça de alimentação. Veio me beijar. Eu me esquivei:
– Tá maluco? E se alguém do fórum passa aqui e vê a
gente se beijando?
– Ah, Luís. Assim não dá mais. Não tenho mais idade
para ficar namorando escondido.
– Tiago, te coloca no meu lugar. Eu trabalho no fórum.
– E eu em um escritório de engenharia – ele é arquiteto.
– Lá todo mundo sabe que eu sou gay. Qual é a diferença, me diz!
– Fala baixo, por favor...
Ele moderou um pouco o tom de voz:
– Luís, qual é o teu problema, cara? Tu achas mesmo
que ninguém desconfia que tu és veado lá no fórum? Fala sério!
Ele riu. Eu me senti humilhado.
– Não, ninguém desconfia. Nem pode desconfiar. Eu
não fico "dando pinta." Sei o que eles pensam sobre isso...
E o Tiago não me deixou nem falar tudo que eu queria,
foi me cortando:
– Eles quem, criatura? Aliás, o que importa o que essa
gente pensa? A tua mãe sabe. Os teus irmãos, os nossos amigos. O
que importa essa gente do teu trabalho?

– Tu não entendes. Não adianta...


Senti um nó na garganta. Não queria chorar ali. Fiquei
quieto, tentando me segurar.
– Sabe de uma coisa? O problema não são "eles". O
problema és tu. Tu não queres "sair do armário". Tu achas que estás
errado, que é pecado, sei lá. E usas essa história de não te
prejudicar profissionalmente como desculpa para não me assumir.
Tu não gostas de mim o suficiente.
– Sabes que não é isso, Ti. Eu sou assistente social.
Estou em outra função, ganhando mais como secretário do foro.
Bem mais, porque o diretor confia em mim. Se ele souber que eu
sou gay, se os outros juízes, promotores, colegas de trabalho,
advogados souberem, tudo vai mudar. Não vão mais me respeitar.
Vou perder minha função. Vão chamar alguém que passou no
concurso. Tenho certeza que vou perder o cargo. E eu me esforço
tanto...
– E daí? Não foi para assistente social que fizeste
concurso? Volte a exercer a função para a qual foste aprovado, ora
bolas! Achas certo quem fez concurso para esse cargo não ser
chamado e tu ficares em uma vaga que não é tua? E o que é pior:
em uma vaga que não é tua, fingindo que és uma pessoa que tu não
és, por causa de uma porcaria de gratificação que nem faz tanta
diferença assim? Francamente!
– Tu não entendes, né Tiago? Para ti, que nasceste em
berço de outro, é tudo muito fácil. Queres um carro, teu pai te dá. És
“veado”, tua família entende. Filho de médicos. Neto de médicos. Eu
vim de baixo. Eu ralei para chegar até aqui. Não sou dessa
esquerda caviar não.
– Que esquerda caviar? Nada a ver. Meus pais, meus
avós, são pessoas que batalham. Tudo que conseguiram na vida foi
trabalhando. Não batem ponto e saem correndo não.
– E eu bato e saio correndo?
– Não disse isso. Só disse que trabalhas em um cargo
diferente daquele para o qual foi prestado o concurso, por uma
gratificação mixuruca, que não muda nada a tua vida. E não
assumes nosso relacionamento com “medinho” do que um juiz
babaca vai achar.

– Para ti é mixuruca. Para mim é um valor que faz falta.


Pago o financiamento do meu apartamento com essa gratificação.
Meu pai é motorista de ônibus. Minha mãe costureira. Moram lá no
interior. Única coisa que tenho na vida é meu apartamento
financiado em 30 anos e meu carro. Se eu perder este cargo, vou
ter que vender o carro para pagar o apartamento. Claro que não
quero perder, cacete!
– Desculpa! Podes bem fazer outros concursos! Podes
bem morar em um apartamento menor enquanto isso. Podes morar
comigo, inclusive!
– Morar contigo? Com esse teu temperamento? Olha,
está ficando cada vez mais difícil a nossa convivência.
– Queres terminar?
– Não falei isso. Só quero que tu respeites o meu
espaço e entendas que não posso assumir um relacionamento
publicamente agora.
– Quando então?
– Não sei. Não me pressiona.
Ele ficou em silêncio. Fechou a cara. É sempre assim.

CAMILE

Um prazo fatal hoje e a porcaria do computador resolveu


pifar. Bosta! Vou chamar o Tataco para arrumar e terminar isso na
sala da OAB lá de São Barnabé. Pesadelo. Há dias em que chego a
pensar que vai entrar um trio elétrico naquela merda e todo mundo
ali vai sair correndo atrás. Sim, porque a sala é uma
esculhambação. Parece uma micareta. Um boteco, qualquer coisa,
menos uma dependência do fórum.
Nunca vi tanto barulho. Tem gente que faz aquele raio
de lugar de escritório, de ponto de encontro. Estão sempre lá. E se
pelo menos falassem baixo, mas não! Tem colega que só falta pegar
um microfone e começar a cantar. Detesto aquele ambiente. É a pior
e mais mal frequentada sala da OAB de todo o estado. Talvez de
toda Banalândia.
Já fizeram cartazes pedindo silêncio. Já mandaram
ofício para seccional. Nada adianta. Ninguém se manca.
E hoje pelo jeito não está diferente. Todos os
computadores ocupados. Tem gente ali que nem advogado é. Por
que não criam senhas para controlar o acesso e a impressão? Tem
fulano navegando em sites idiotas. Nem deviam permitir isso. E eu
aqui esperando para terminar minhas alegações finais, enquanto
escuto o papo de um colega, candidato a vereador, atendendo a
família de um preso:
– Agora vou adesivar o carro de todos vocês com a
minha foto. Não esqueçam, domingo é Safadão na cabeça!
– Obrigada, doutor Safo. Por tudo que o senhor fez pelo
meu filho - disse a mãe do presidiário em lágrimas.
Entendi bem? O cara estava trocando uma defesa por
votos de uma família inteira? E as pessoas estavam agradecendo?
Tudo isso dentro do Fórum? Alguém me belisca que isso só pode
ser um pesadelo.
Em pé na frente da mesa da funcionária da OAB, uma
colega que desconfio que more ali. Sempre que passo na sala ela
está lá. Sempre mesmo. Sem exceção. Tomando café, comendo
biscoitos e fazendo discursos inflamados. O pior é que só fala
merda. E fala alto:

– Certo está o Trump, que vai fazer um muro! Por mim a


gente também fazia, para separar o Brasil da Argentina!
Meu senhor. Como diz uma amiga minha "melhor ouvir
isso do que ser surda." E ela não fechava a matraca:
– E outro para separar Banalândia de Cuba!
– Hã? Cuba nem faz limite com o Banalândia, senhora –
disse um colega mais jovem. Ela não deu o braço a torcer!
– Não faz? Tu achas que não faz? Mas faz sim! É ali em
cima, Cuba! Bem em cima das Guianas!
– Cuba é uma ilha! Só se o muro for no mar!
E deu-se o rebuliço. Abriram mapas no Google.
Gritavam! Uma insanidade sem razão de ser. Aquela sala é sempre
assim. Coitado de quem precisa fazer uma petição rápida no fórum.
A sala da OAB de São Barnabé é a sucursal do inferno!

MARINALVA

Renovei meu estoque de lingerie. Mudei meu corte de


cabelo. E agora sempre venho maquiada trabalhar. O chato do
Vanderlei percebeu (não a lingerie, a maquiagem e o novo corte) e
fez o seguinte comentário:
– Índio se pinta quando vai para a guerra. Tá diferente
hein, Mari?
– Que diferente?! Só cortei o cabelo, maluco! Não tem
serviço não? Pega a próxima relação para movimentar!
– Calma, não precisa engrossar. Não está mais aqui
quem falou.
Ele saiu e a Cida me convidou para tomar café no
shopping. Chegando lá ela foi cuspindo:
– Vou ser curta e grossa: as pessoas estão percebendo
essas tuas idas ao gabinete do juiz. Horas trancada a chave lá.
Estão comentando...
– Percebendo o quê?
– Mari, eu tenho idade para ser tua mãe e me sinto na
obrigação de te alertar. Para já, enquanto é tempo. Antes que o
Chico descubra.
Comecei a chorar. Não tinha como negar. Não sei mentir.
Sou uma tonta mesmo. E ela continuou:
– O que te deu guria? Sempre foste tão centrada, boa
mãe, boa esposa.
– Eu não sei. Eu me envolvi, me deixei levar pelo
momento. Tenho a prestação do carro. Não quero perder o carro. E
também, ah, eu me sinto atraída por ele. Acho que estou
apaixonada.
– Que apaixonada que nada! Isso é Síndrome de
Estocolmo! Esse sujeito é um grosso, sempre te tratou mal, nem a
mulher dele aguenta! Aliás, a mulher dele arrumou outro!
– Pois é. Então, agora que ela arrumou outro. Agora que
a gente está mais próximo, que ele está me conhecendo melhor,
quem sabe ele se apaixona por mim também? Quem sabe agora
que a dona Amanda foi embora ele casa comigo, hein? Não seria
nada mal. Eu poderia trabalhar menos, colocar meu filho em uma
escola melhor. O Chico nunca foi homem para mim. Encostado.
Sem ambição...
– Pirou de vez! Criatura, ele já te conhece há cinco anos!
Tu passas doze horas do teu dia aqui de segunda a sexta, onze
meses por ano. Se não se "apaixonou" até hoje, não vai se
apaixonar nunca mais! Acorda! E nem sonha que o Dr. Floribaldo,
mesquinho como é, vai dar vida boa para o teu filho, que nem para
os dele o fascista quer pagar pensão!
– Mas eu sinto que a gente tem uma coisa especial
agora. Ah, Cida! Ele é meu Christian Grey!
– Que coisa especial? Que Christian Grey? Ele é um
nazista, que duas vezes por semana te usa no horário do almoço!
Nem sair contigo ele sai, como sai com as outras!
– Que outras?
– Guria, tu achas que és a única? As outras! Ele tem um
harém! Tu és muito ingênua mesmo...
– Sei daquela estagiária, mas não deve ser nada sério.
– Mari, querida, presta atenção. Esses caras, esse
especificamente, só está separando, porque foi corneado. Vai
demorar muito para ele casar novamente. E quando isso acontecer,
não vai ser com uma mulher da idade dele, que trabalha e tem filhos
também. Vai ser com um bibelô, um troféu que ele possa exibir por
aí, ou uma juíza igual a ele, uma promotora. No mínimo, uma
professora da universidade federal. Concursada. Com pós-doc. É
assim que funciona. Cai na real e pula fora. Não romantiza essa
roubada! Ele só está "unindo o útil ao agradável." Tu és só mais
uma.
Foi um balde de água fria. Um soco na boca do estômago
ouvir aquilo tudo. Levantei e deixei a Cida falando sozinha. Invejosa.
Ela só pode estar metendo o olho gordo na minha sorte.
Ah, fiquei muito magoada com a Cida. Pensei que ela
fosse minha amiga. Foi a única pessoa com quem me abri sobre
esse assunto tão delicado e olha a patada que ela me deu. Nem
para me dar um apoio moral, nem para dizer “puxa, tô feliz por ti!
Tomara que dê certo!”
E eu estou sempre dando força para as loucuras dela.
Loucuras sim. Esses homens que ela conhece pela internet. Essas
histórias escabrosas que eles contam. Uns caras que só querem
arrumar uma mulher independente para se encostar.
A Cida tem um bom apartamento, tem carro, tem casa na
praia. Como nunca casou, não teve filhos, guardou uma boa grana e
tem uma vida bem confortável. O que não falta é gavião de olho nas
coisinhas dela. E ela não aprende. Nunca me meti. Nunca disse
“acorda, estão de olho nos teus bens”. Sempre dou força. Sempre
digo que vai dar certo. Mesmo quando são mais jovens. Ela está
com inveja. Só pode ser inveja. Ai que raiva da Cida!
CLEVERSON

De manhã é tranquilo. Até dá para conversar com o


pessoal que chega cedo. Dá para tomar café e tirar o olho da “porra”
giratória.
Por que não colocam um detector de metais sem essa
naba? Só o detector. Para que uma porta que gira? Quem será o
idiota que teve a ideia de inventar isso? Espero que esteja morto.
Estava pensando nisso, quando a Arlete chegou. Fungando e
carregando um fardo de papel higiênico. Pô, eu não posso reclamar
da vida. Pensando bem, tem gente em situação pior. Imagina ficar o
dia todo na frente dos banheiros, entregando papel para quem
entra? O trabalho da Arlete é muito ruim. Sorri para ela:
– Bom dia, Arlete.
– Bom dia, Cleverson. Soube da última?
– Do vídeo da bunda? Sim. Todo mundo só fala nisso...
– Não, não. Da última. De ontem. O fora que o Dr.
Miguel deu na promotora da vara da família.
Ela riu. Nunca tinha visto a Arlete rir.
– Não soube disso não.
– A promotora nova, rapaz. Chegou promovida de
Pirapopó. Acho que ela não sabia que o Dr. Miguel é comprometido.
Não sei o que ela pensou. Só sei que mandou um buquê de flores
para ele. Doutor Miguel ficou ofendido, mandou um estagiário
devolver. E sabe como é essa gurizada, né? No caminho o guri
abriu o cartão.
Arlete riu mais.
– E o que tinha no cartão?
– "Te achei uma gracinha, queria te conhecer melhor."
Imagina! O Dr. Miguel é noivo de uma juíza ali da Comarca de
Cafuá! Se a mulher descobre!
– Ah, mas era só o que faltava! Não quero separar mais
esse tipo de briga aqui. Ele fez bem em dar um corte. O estagiário é
que não tinha que ter espiado o bilhete.
– O estagiário não só espiou como espalhou para o
fórum todo. Está todo mundo comentando. Pergunta pra Socorro na
hora que ela passar aqui.
– Cruzes. Eu, hein!

LUÍS

Só faltava essa. Um escândalo no Fórum. Mais um.


Porque o que não falta aqui nessa comarca é barraco. E desta vez
na Vara Criminal.
Resumo da ópera: a técnica designada para substituir a
chefe de cartório afastada há meses, meteu-se em um esquema de
venda de informações. Funcionava assim: quando ela via o juiz
assinando um mandado de busca e apreensão do advogado
"comparsa", ligava correndo para ele. O cara avisava o cliente, que
já tirava o que estavam procurando de dentro de casa. A polícia
chegava e não encontrava nada. Outra coisa que faziam, em
processos de presos, que têm prazos para julgar, eram erros
propositais. Um ofício para o lugar diferente e não aquele em que o
réu estava, uma "sentada em cima", por exemplo, atrasavam tudo e
o advogado do preso, de atraso em atraso, conseguia um HC por
excesso de prazo.
O juiz titular não quer escândalo, porque está
concorrendo à vaga de “presidente da associação sei lá das
quantas". O substituto que está na vara não quer mandar a mulher
embora e sobrou para mim! Eu vou ter que chamar a bandida aqui e
dizer que ela não trabalha mais na vara criminal. Inferno! Se eu não
precisasse tanto dessa gratificação, juro, jogava tudo para cima, só
para não ter que encarar a Socorro. É o capeta em forma de mulher
aquele bicho. Faz magia negra, é metida com agiotagem também.
Fofoqueira. Ninguém aguenta trabalhar com ela. Pensa em uma
pessoa ruim. Multiplica por dez, é ela. Como vou dar a notícia? E o
pior: onde vou enfiar esse demônio? Para conter aquela mulher, o
bom mesmo seria chamar um exorcista! Nenhum juiz quer essa
criatura. Na distribuição, Dr. Floribaldo falou que nem pensar,
porque lá mesmo que ela vai ter acesso a todo tipo de informação.
Perguntei o que fazer com a criatura e olha a ideia do diretor do
foro:
– Coloca a Socorro no arquivo.
– Mas doutor, o senhor mesmo disse que não queria
ninguém no arquivo...
– Não queria a Arlete! A Socorro não tenho onde enfiar!
Não posso mandar uma velha como ela capinar o pátio!

Mas mandou um oficial de justiça sem um braço, eu


pensei. Só pensei. Ele continuou:
– Não posso colocar entregando papel higiênico nos
banheiros, porque ela vai ter contato com os advogados. E a Arlete
está se saindo bem nesse serviço. Já estou percebendo a economia
no papel higiênico. Chegou um ofício do corregedor, elogiando
minha economia – ele falou com orgulho. E para a pobre da Arlete,
que teve que dobrar a dose de antidepressivos, nem um "muito
obrigado". Continuei ouvindo o maluco.
– Então, o único lugar que ela não vai ter contato com
ninguém, nem com processos em andamento é o arquivo.
– Mas o correto é abrir uma sindicância...
– Nem começa! Tu sabes muito bem que o Juliano – Juiz
titular da vara criminal – está concorrendo à presidência da nossa
associação. E eu também não quero escândalo na minha gestão.
Essa velha está quase se aposentando. Daqui a pouco todo mundo
esquece. Vamos deixar a poeira baixar e abafar o caso aqui em São
Barnabé. Essa mulher se aposenta e fim!
– Quem sabe dar licenças até ela se aposentar então?
Ela tem tantas para tirar...
– Licenças? Eu não vou premiar essa bandida com
licenças! Deixar no ócio? Bem capaz! Sabia que ela vendia as
informações por cem reais? Bandida pé-de-chinelo ainda! Nada
disso! Nem meu respeito tem! É para o arquivo que ela vai! Catar
clipes, para a gente reaproveitar, desentortar grampos e tirar o pó!
Pode dar a notícia pra Socorro! Vai, vai!
Ele fez um gesto, me enxotando e virou para o
computador.
– Sim, senhor.
Fui. Liguei para o cartório.
– Por favor, alguém peça para Socorro vir aqui na
Secretaria... sim, eu vou dar a notícia a ela.
Gente covarde. Ninguém quer dar a notícia para
macumbeira, é claro. Rezei um pai nosso e esperei ela chegar.

Quando ela entrou, já fui dizendo:


– Por favor, Socorro, feche a porta e sente, que o assunto
que temos para conversar é bem desagradável.
– O que houve?
– O Dr. Juliano não te quer mais na vara criminal.
– Como assim? Por quê?
– Porque eles dizem que descobriram uns contatos teus
com alguns advogados, trocas de informações. Enfim, querem que
tu sejas transferida para o arquivo.
– Eles quem?
– Olha, Socorro, quero que tu saibas que eu não tenho
nada a ver com isso. Sigo ordens do Dr. Floribaldo, que é diretor do
foro.
– Mas por que o Dr. Juliano não me chamou? Porque o
Dr. Floribaldo também não veio falar comigo?
Que situação, meu senhor. Entreguei os ofícios a ela. Um
do Dr. Juliano, que a colocava à disposição e outro do Dr. Floribaldo,
encaminhando-a para o arquivo e tive que dizer:
– Não sei. Simplesmente me deram esta atribuição.
Vamos lá agora para eu te explicar o serviço – tentei parecer
natural, mas a mulher rodou a baiana. Deu um tapa na minha mesa:
– Isso não vai ficar assim! Vou falar com o
Desembargador George! Ele é muito meu amigo! Funcionária antiga
tira juiz novo e funcionário puxa-saco! – Olhou para mim com
aqueles olhos verdes faiscando ódio – cabeças vão rolar!
Eu só ouvi.
– E me dê essa chave aqui, que eu sei o caminho! O que
ele quer que eu faça lá?
Até me faltou ar, mas tive que dizer, sem respiar:
– Ele quer que tu faças uma reorganização das caixas.
Desentortes as folhas amassadas, os grampos, arranques os que
estiverem enferrujados e encontres o máximo de clipes possíveis
para não termos que pedir mais para o tribunal.

Ela me olhou com um olhar fulminante, durante um tempo


que pareceu uma eternidade:
– Vocês querem me humilhar! Depois de décadas no
judiciário!
– Vocês não. Me tira fora dessa conta. Eu não tenho nada
com isso!
– Tem sim! Todos vocês vão pagar caro! Todos vocês vão
ter o que merecem! Me dá essa chave!
Ela arrancou a chave das minhas mãos e foi para o
arquivo, marchando com as pernas abertas e aquele andar quinze
para as três que só ela tem.
Eu tomei um copo d’água. E comecei a sentir uma dor de
cabeça terrível depois de meia hora. Acho que a infeliz estava
fazendo algum trabalho lá no arquivo com meu nome. Fiz uma
novena para Santa Terezinha do Menino Jesus. Aquela dor custou a
passar.

CAMILE

Entrei no fórum. E o que é isso? Estão saindo da sala da


OAB com camisetas? E não é que estão vendendo abadás na sala?
Eu falava brincando sobre entrar um trio elétrico ali, mas, pelo jeito
vai ter mesmo um show da Veveta hoje! Vou lá assuntar:
– Boa tarde, Liliane. Que camisetas são essas?
– São do pagode, doutora.
– Quê? Vai ter MESMO um pagode aqui?
– Não, não – ela riu – sábado, um pagode com feijoada,
mas lá no sítio do Joãozinho. Quer comprar?
Pensei: "prefiro fritar um ovo para comer com pão em
casa", mas nesse exato momento minha amiga Daisy entrou e
comprou. Ela me encheu tanto a paciência, que fui convencida a
desembolsar a bagatela de 150 reais e entrar naquela roubada.
Feijoada-Pagode da OAB em um sábado no sítio do Joãozinho.
Pensa na visão do inferno!
– Vai ser legal – ela falou – eu fui ano passado e estava
ótimo!
Acreditei. E entrei na maior canoa furada da minha vida.

***

Sábado às 10 horas chegamos no tal sítio. A Daisy


estacionou num lamaçal. Andamos até umas cadeiras pavorosas de
plástico. Logo chegaram a Fernanda e a Tânia carregando um
isopor com garrafas de espumante, dizendo que eram divas e que
sempre bebem champagne. Com feijão?! Pensa na situação! Não
havia taças. Então, foi espumante com feijão em copo de caipirinha
que as "divas" tomaram.
A Tânia tinha se separado do marido e estava de rolo
com um promotor lá de Cafuá. Sortearam uma garrafa de whisky e o
cara ganhou. A Daisy “trêbada” resolveu reclamar:
– Ah, trouxe esse promotor aqui para ele levar nossos
brindes! Que absurdo!
– Shhhhh - fala baixo, que ele vai ouvir!

– Que se dane! Sabe o que ela falou dele? Que o pau


dele é fino como uma caneta, mas que ele ganha bem e ela já está
fazendo conta com a grana dele!
– Shhhhhhhh, para de berrar!
– Chata. Vou lá buscar carne!
E lá foi a Daisy para a churrasqueira, toda torta:
– Quero carne!
O cara disse:
– Aqui é só para a diretoria.
– Então vim no lugar certo, me serve!
Sortearam mais um brinde. Um kit de maquiagem. Uma
advogada lésbica ganhou e a Daisy fez um comentário homofóbico:
– Quê? Essa sapatão que nem faz o buço ganhar
maquiagem francesa! Que porra é essa?
– Shhhhhh – fala baixo! Que vergonha!
– Ah, não tem ninguém olhando.
E o pagode começou a rolar. A Daisy requebrou até o
chão. Um cara, recentemente viúvo começou a me olhar com olhar
de peixe morto. As gurias disseram que era o marido da Marlei (uma
advogada que faleceu ano passado).
– Ele está assim desesperado – dá em cima de qualquer
uma. Comentou a “diva” Fernanda.
– Desde quando eu sou qualquer uma? – Já rebati
ofendida.
– Quis dizer que ele olha assim para todo mundo. Tu
entendeste.
Entendi. Entendi muito bem. Venenosa do caralho. Se
acha muito gostosa comendo feijão com espumante em copo de
plástico. Não sei o que estou fazendo aqui nesta merda. Cheio de
mosquitos ainda. Um calor da peste. Discursos e mais discursos. Já
estão pensando na campanha do ano que vem. Será que pega mal
eu chamar um motorista de aplicativo e deixar a Daisy aqui nesse
estado? Pega, né? Vou ficar. Vou ter que dirigir o carro dela. E o
carro dela tem marcha automática. Nem sei ligar aquele bicho.
– Querendo ir, é só falar, tá? Para mim já foi o suficiente –
passei por ela a caminho do banheiro e comentei.
– Tá maluca? A festa mal começou! Quero ficar até o dia
amanhecer!
Ô inferno!. Nunca mais saio com a Daisy.
MARINALVA

Já são quase onze horas e estou desde às sete e meia


expedindo alvarás. E não param de chegar mais ordens de
expedição. Nunca vou conseguir colocar isso em dia. Eis que o
telefone do cartório toca:
– Juizado.
– Marinalva, sou eu – É ele! Meu Christian Grey, o Dr.
Floribaldo!
– Ah, oiiii, doutor - eu cantarolo e a Cida me olha torto.
Sei o que ela pensa: "é amante do cara, mas não consegue parar
de chamá-lo de doutor." Mas o que ela quer que eu faça? Eu sou
casada e ele nem se divorciou legalmente ainda...
– Marinalva, daqui a pouco um advogado vai vir atrás de
mim. Avisa para o guarda deixar subir.
– Advogado de manhã aqui?
– Sim. É um amigo meu. O Dr. Salafra. Não esqueça de
avisar para o guarda.
– Pode deixar. Aviso sim.
– E depois que ele for embora passa aqui que hoje quero
te ver...
– Tá bom, risos.
Desliguei. A Cida estava me olhando com olhar de
reprovação. O Vanderlei nunca aparece de manhã para ajudar
(ainda bem).
– O que foi? – Perguntei bem seca para ver se ela se
manca.
– Nada.
– Por que estás com essa cara, então? Ele só pediu para
avisar o guarda que um advogado vem aqui agora de manhã. Deve
ser o advogado do divórcio.
– Qual é o nome?
– Dr. Salafra.
Ela levantou as sobrancelhas:
– Sei quem é. E não é o advogado do divórcio coisa
nenhuma, sua tonta. O advogado do divórcio é o irmão dele, o Dr.
Margarido. Esse Salafra é o advogado da Multinacional Milionária
S.A.

– Como assim? O que estás querendo insinuar?


– Nada. Não sou mulher de insinuar. Estou dizendo com
todas as letras que o teu "amado" SEMPRE recebe de manhã o
advogado da Multinacional Milionária S.A. E recebe presentes dele.
Eu já vi. Trabalho aqui há mais tempo que tu.
– Do que tu estás falando, criatura?
– Que ele já ganhou um iPhone desse cara. Já ganhou
também outras coisas. E que a Multinacional Milionária sempre
vence as ações. Ligue os pontinhos.
– Acontece que...
A Cida virou as costas, saiu do cartório e me deixou
falando sozinha. Não pode ser. Não acredito. É intriga dessa infeliz.
Ela está inventando isso para me assustar. Liguei para o guarda
para avisar que o Dr. Salafra estava chegando e depois que ele saiu
eu entrei no gabinete.
– Oiiiiii....
Dr. Floribaldo estava contando dinheiro. Meu coração
disparou. Não pode ser. Ele me olhou bem sério e sussurrou:
– Entra rápido e fecha logo a porra dessa porta.
Fiquei tão atônita com as pilhas de dinheiro. Não tive
coragem de perguntar nada. Na verdade, não queria ouvir. Não
queria que ele dissesse coisa nenhuma, mas ele começou a falar:
– Senta. Já vou falar contigo.
Ele terminou de contar. Não sei quanto tinha ali. Eram
umas cinco pilhas. Todas com notas muito altas. Ele guardou em um
saco, acendeu um cigarro e disse:
– Marinalva, acho que posso confiar em ti. Acho que
entendes o que aconteceu aqui, certo?
– Pode. Claro que pode, mas não sei o que aconteceu.
– Eu trabalho muito. Eu trabalho mais que todo mundo
nesses processos. Eu estudei mais do que qualquer advogadozinho
de merda que passa nessa provinha fuleira. Eu entrei na
magistratura, porra! Um concurso superdifícil! Aí chego aqui e tenho
só uma merreca de um salário. Achas certo?
Não disse nada.

– Tô te perguntando, mulher. Achas certo, esses caras,


que só passam nessa provinha mequetrefe ganharem mais que eu
no final?
– Não, mas...
– Pois então – ele me cortou – então, inventei um
esquema. Um esquema bom para mim e para eles. E está
funcionando muito bem. Eu garanto que a empresa não será
condenada a pagar muito e eles garantem uma parte para mim.
Essa gente aqui de São Barnabé fica feliz com 5 mil de indenização.
Ninguém percebe. E todo mundo sai ganhando.
– Mas doutor, como o senhor justifica isso para o imposto
de renda?
– Não justifico. Eu troco tudo por dólares. Compro
também terras em nome de parentes. Tenho uns laranjas. E queria
saber se posso contar contigo também.
– Comigo?
Meu coração gelou.
– Essa grana de hoje vou trocar por dólares e guardar em
algum lugar seguro.
Fiquei horrorizada. Tentei disfarçar, mas ele percebeu:
– Marinalva, não era para ti saber de nada. Entraste aqui
e me viste contando dinheiro e acho que posso confiar na tua
discrição...
– Claro que pode. Não vou contar para ninguém.
– É que não acho justo mesmo. Mesma coisa quando eu
era juiz de vara única no interior e tinha que fixar honorários. Achava
uma sacanagem tão grande. Advogados ganharem 20% do valor da
causa e eu, o juiz, o que mais trabalhou no processo, não ganhar
nada! Por isso nunca dava 20%. Dava valor fixo. Os caras só
passam naquela provinha da OAB e querem ganhar mais que eu?
Nem o MP deveria ganhar o que um juiz ganha. O concurso deles é
difícil, eu sei, mas o trabalho deles é mamão com açúcar! Depois
que entram, fora o trabalho daqueles que fazem júri, a maioria só
coça o saco o dia todo. É ou não é?
– É... – Fui obrigada a concordar.
– Agora vem cá. Que contar essa grana toda me deu o
maior tesão...
Ele colocou a minhoca para fora da calça.

CLEVERSON

Dez horas da manhã Dr. Miguel ligou para portaria:


– Cleverson, suba aqui, por favor.
Pelo menos esse sabe o meu nome. Subi. Bati na porta:
– Com licença, doutor.
– Vem aqui. Espia só aquele carro ali no estacionamento.
Fui até a janela. Bem longe. Laaaaá no fim do
estacionamento, um carro preto, com vidro todo embaçado,
sacudindo levemente.
– Acho que tem um casal transando lá dentro. Se for isso,
é atentado ao pudor. Vá lá ver e faça o flagrante.
O quê?! Mas era só o que me faltava! Que merda! Esse
juiz preguiçoso, em vez de trabalhar, fica olhando pela janela um
carro lá no fundo do estacionamento? Não tem serviço será?
Resolvi argumentar:
– Doutor, eu acho que aquele carro é do oficial. Pela
placa parece ser. E está tão escondido. Ninguém passa lá no fim do
estacionamento essa hora. Será que não é melhor fazer vista
grossa?
– Como é que é? Vou fingir que não ouvi isso. Vá efetuar
a prisão, soldado. É sua obrigação funcional.
– Mas e se for alguém do tribunal?
– Se for um motorista do tribunal pior para ele! Tá com
medo? Pois eu vou contigo!
Percebi que não adiantava discutir. Por que eu não ouvi a
minha mãe e fiz concurso para o Banco do Brasil? Para que fui me
enfiar na PM? Pensei isso, mas disse:
– Tudo bem. Vamos.
E lá fomos nós. Ah, mas é muito sem noção esse Dr.
Miguel. Ele acha que é um motorista. Tenho certeza que não é.
Bom, pelo menos ele vai junto. Ainda tentei argumentar mais um
pouco:
– Não seria bom chamar o Luís e o Dr. Floribaldo?

– Sim. Chama o Luís, que eu chamo o Dr. Floribaldo.


Voltei com o Luís e ele sozinho. Disse que o Dr.
Floribaldo não estava no gabinete. E fomos os três em direção ao
carro. O carro de pertinho lembrava aquela cena do Titanic do Jack
e da Rose. Só que não eram o Jack e a Rose. Meu senhor. Não era
nenhum motorista do tribunal também.
Eu me aproximei. Luís, o covardão, já prevendo que daria
merda, ficou bem atrás. Todo sem graça com a situação, olhando
pra baixo. Coisa que eu, o guarda, o militar fardado, não poderia me
dar ao luxo de fazer. Dei uma batidinha na janela. O vidro desceu.
Dr. Miguel, O Preguiçoso e sem noção (e fuxiqueiro) se espichou
para ver quem estava lá dentro. Quando viu, ficou pálido. Ele se
assustou tanto, que mal conseguiu dizer:
– Não acredito... vocês? O estão fazendo aqui?
Era um carro oficial. Dentro o Corregedor Enrico Tanga
Frouxa e o Dr. Salafra, advogado conhecido na comarca, na maior
cara de pau, disseram que estavam procurando um celular que caiu.
Dr. Miguel fingiu que acreditou:
– Ah, sim. É isso então? Eu e o policial vimos de longe,
achamos estranho e viemos conferir.
Opa! Por que ele está falando eu e o guarda? Não tenho
nada com isso! Só que não disse nada. Fiquei em silêncio. E o Luís
deus mais uns passos para trás.
Dr. Salafra ainda reforçou:
– Meu iPhone! Entrei aqui rapidinho para conversar e ele
caiu não sei como.
O corregedor fechou a braguilha discretamente. Dr.
Miguel se despediu e voltamos os três. Em silêncio.
Até que Dr. Miguel quebrou o silêncio:
– Pode bem ter sido isso.
– Pode – complementou o Luís.
Eu me neguei a dizer alguma coisa.

– Às vezes, a pessoas olha uma cena de longe, pensa


que é uma coisa e é outra – disse o Dr. Miguel.
– Claro – concordou o Luís.
Entramos no fórum. Tomei meu posto e eles foram
mentindo um para o outro chamar o elevador. Hipocrisia. Ah, a
hipocrisia. Fosse um motorista do tribunal com a namoradinha já
estaria preso, algemado e sendo interrogado na delegacia.
LUÍS

Abriram mais uma vara cível. Finalmente. Doutor Miguel,


O Preguiçoso, já aproveitou para mandar todas as buchas para o
juiz novo que está vindo da serra. E eu tenho que arrumar uma vaga
para o tal juiz novo no estacionamento. De quem eu vou tirar vaga
para criar essa nova é que não sei. Sem contar que vem mais um
chefe de cartório, mais um assessor, mais servidores. Não posso
decidir isso sozinho. Vou ter que consultar o Dr. Floribaldo. Inferno.
Vou mandar um e-mail. Não, não, vou ligar para lá. Não, pensando
bem, vou até o gabinete dele que é melhor.
Bati na porta. Está trancada. Que estranho. Não tem
ninguém na recepção. Resolvi colar o ouvido na porta. Que gemidos
são esses? Ih... vou voltar depois.
Já estava saindo quando a porta do gabinete abriu. Alice,
a estagiária, saiu fechando a blusa. Ficou sem jeito quando me viu:
– Ah, oi Luís. Estás aí faz muito tempo?
Menti:
– Acabei de chegar. Preciso falar com o Dr. Floribaldo
sobre o estacionamento.
– O estacionamento?
– Sim. A nova vara cível precisa de vagas. Não quero, na
verdade não posso decidir sozinho esse assunto. E ele é diretor do
foro. Então...
– Entendi. Peraí, que eu vou ver se o doutor pode te
atender.
Ela entrou. Cínica. Meu senhor, tô passado com essa
guria. Como ela tem coragem? Não demorou nem dois minutos e
voltou:
– Pode entrar lá.
Entrei. Dr. Floribaldo estava fumando na janela. Com um
sorriso largo de satisfação. Levemente descabelado, com a camisa
amarrotada. O cheiro do pecado impregnando o gabinete. Senti um
embrulho no estômago e me fiz de idiota, como convém a quem não
quer perder seu cargo comissionado:

– Doutor, boa tarde. Estou aqui porque precisamos


resolver a questão do estacionamento antes que o juiz novo chegue.
– Ah, sim. Tinha esquecido. Muita coisa na cabeça – ele
disse isso e sorriu.
Pensei "aham, sei muito bem em que cabeça", mas fiquei
em silêncio. O fascista continuou:
– Tira uma vaga da OAB e dá para ele. Pronto. Tá
resolvido.
– Dr. Floribaldo a OAB só tem três vagas. E ficam lá atrás
do pátio. As vagas dos juízes são na frente.
– É. Tens razão. A vaga do colega não pode ficar naquele
lugar tão ruim. Então faz o seguinte, tira a vaga do Joaquim e dá
para ele. Assim já me livro de ter que estacionar meu carro ao lado
daquela banheira e me vingo do que ele me aprontou!
– Ok, mas o Dr. Joaquim é promotor. Vai querer colocar o
carro em uma vaga boa também. Onde vai ser a vaga dele?
– Ele não tinha nem que ter vaga aqui! Tá aqui de favor!
O prédio é do TJ e não do MP, mas, pensando bem, não vou mais
criar confusão com aquele gorducho. Faz o seguinte, coloca a vaga
dele lá atrás no lugar de uma vaga da OAB. Pronto.
– Acho que o doutor Joaquim não vai gostar de andar
tanto para chegar ao fórum. Aquelas vagas da OAB são muito
afastadas do prédio e em dia de chuva fica tudo embaixo d'água.
– Ah, deixa disso! Vai ser bom para ele. Assim faz um
pouco de exercício. Senão daqui a pouco vai explodir, aquela baleia!
Já reparou como aquela barriga indecente dele cai em cima do
cinto?
– Não reparei.
– Pois comece a reparar! O cara nem anda direito. Sério
candidato a ter um AVC. Vai ser bom para ele.
– E o senhor não acha que a OAB vai chiar se ficar só
com duas vagas?
– Que chie! Se chiar adiantasse alguma coisa, sal de
frutas não morria afogado! – Ele disse isso e deu uma gargalhada.
Tive que rir também.
– Boa essa, né?
– Ótima! – Tive que rir junto.

– E o assessor, o chefe de cartório, os novos servidores?


– Eles que lutem! – Ele riu mais, muito mais – Boa essa
também, né? Aprendi com meu filho mais velho!
– Tudo bem. Vou pedir para o tribunal mandar alguém
aqui pintar as vagas. Vou mandar um ofício para OAB e outro para o
MP avisando do remanejamento.
– Não, Luís. Não incomode o pessoal do TJ. Mande só os
ofícios. As vagas o Mauro pode pintar.
– Dr. Floribaldo o Mauro só tem um braço.
– Eu sei. Para de ficar repetindo isso! Ele precisa
exercitar o braço que restou. E também desenvolver outras
habilidades! Ele tem boca, tem pernas! Pode encaixar o pincel na
boca e segurar a lata de tinta entre os joelhos!
– Sim, senhor.
– E aproveitando que estás aqui, como anda o
rendimento da Socorro no arquivo?
– Ela já achou 321 clipes e segue arrancando os grampos
enferrujados.
– Ótimo. Se bem que sobra muito tempo livre, né? Tenho
visto ela de papo com pessoal da limpeza, com os guardas. Não
quero. Isso não está me cheirando bem. Faz o seguinte, compra
veneno de cupim e manda ela passar no arquivo todo.
– Doutor Floribaldo aquele negócio é perigoso. E a
Socorro já tem quase setenta anos.
– Perigoso é o fórum cair por causa de cupim! Manda a
Socorro tirar os cupins do arquivo. Depois que ela fizer isso, vou
pensar em outra coisa tarefa para ela. O importante é não ficar
ociosa. Aquela mulher é muito perigosa.
CAMILE

Gosto de chegar cedinho no fórum quando é dia de


audiência. Prefiro esperar do que me atrasar. Ainda mais em
processo de réu preso.
Vou olhar a pauta. Ah, que bom. A minha é a próxima. Dá
tempo de tomar água, eu pensei. E assim que me virei, a estagiária
da vara criminal me chamou:
– Doutora, o réu das 15 horas está sem advogado. A
senhora não pode acompanhar o interrogatório?
Tá bom, tô aqui mesmo. O próximo interrogatório é de um
cliente meu. Não custa nada. Entrei na sala. Pedi para ver o
processo. Mão Leve, assaltante, já estava algemado ali. Pedi pra
falar com ele a sós. E a escolta não permitiu: "não pode! Ordens do
comandante!"
Pedi para a guria chamar o juiz. Dr. Juliano entrou na sala
e disse que não existia local adequado para entrevista.
– Ok, vou embora então. Não posso fazer uma defesa
sem conversar com o réu.
– Espera, doutora. Vou dar um jeito – ele voltou atrás.
E o chefe da escolta berrou com ele. Dá pra acreditar?
– Não pode! O comandante não permite!
O juiz, muito calmamente, disse para ele o seguinte:
– O senhor aguarde lá fora. O seu colega ali naquele
canto, enquanto a doutora conversa com o réu, porque quem
comanda o processo sou eu.
Ok. O sargento (acho que era um sargento) saiu.
Vermelho e bufando. O colega dele (acredito que era um soldado)
ficou me encarando e não no canto coisa nenhuma, meteu-se entre
mim e o preso. Tive que falar com o Mão Leve com ele entre nós,
me encarando e batendo na arma o tempo todo. Tentei não
demonstrar medo, mas eu estava apavorada:
– Boa tarde, Mão Leve. Meu nome é Camile, me
chamaram ali no corredor pra te defender, mas preciso saber a tua
versão.

– Fala rápido! - berrou o PM.


– Não te mete! - eu berrei de volta.
– Negócio é o seguinte, doutora. Fui lá nesse prédio
assaltar mesmo. Só que o promotor mora lá. Ele e mais uns caras
me pegaram, me levaram para uma sala e me quebraram de pau.
Não consegui pegar nada não...
– O promotor? Que promotor? O Dr. Joaquim? Não, não.
O outro. O Dr. Bigodão. E eu vou dizer isso para o juiz!
– Tá bom. Se é verdade, pode dizer.
Eu sou muito cagada. É muito azar eu estar no corredor e
me chamarem pra um interrogatório do cara que assaltou o prédio
do Dr. Bigodão.
Sentei no meu lugar. E o Dr. Bigodão entrou na sala. Foi
surreal:
– Ah, és tu! Desgraçado! Vou te pegar! - Ele dizia.
E o Mão Leve não ficava por baixo:
– Carudo tu, hein! Me bater? Um promotor! Não tens
vergonha na tua cara, não? Os outros fazerem isso, tudo bem, mas
tu?
Bigodão ficou todo sem jeito. E disse que não faria a
audiência. Mesmo não tinha cabimento. Ele estava impedido! Saiu.
E nisso entrou o sargento. E me encheu de desaforos. Exigiu minha
carteira da OAB. Mostrou a porta e falou "não tá contente, vaza!"
Falava isso e segurava a arma. Eu sabia que eles não iriam atirar
em mim dentro do fórum, mas, todos os dois fizeram questão de
berrar e mostrar que estavam armados.
E o Dr. Juliano não voltava. Quando entrou com aquela
calma dele, os covardes já tinham calado a boca. Contei o que
aconteceu. Ele não deu a mínima. Começou o interrogatório.
Mandou colocar o nome do Dr. Joaquim na ata e disse que ele
assinaria depois.
Olha a esculhambação daquele fórum! Essas coisas só
acontecem na Comarca de São Barnabé!
A poia do Dr. Juliano fez as perguntas de praxe. E no
final, quando perguntou se havia mais alguma coisa que Mão Leve
gostaria de dizer em sua defesa o cara falou mesmo: "eu apanhei
do promotor!"

E o Dr. Juliano, pasmo, mas sem saída, colocou


exatamente assim na ata. Assinamos. Levaram Mão Leve.
Trouxeram meu cliente. Todo quebrado. Antes da audiência o rapaz
me disse que os caras da escolta desceram no camburão e deram
uma surra nele. A surra que queriam dar em mim. E eu não podia
deixar aquilo barato. Teria que tomar providências.
Não bastasse o absurdo da situação, já estava indo
embora e a estagiária veio correndo atrás de mim pela escadaria.
Queria que eu assinasse o termo do primeiro interrogatório de novo.
Trouxeram Mão Leve de volta, porque o Dr. Joaquim estava
exigindo que constasse no termo o nome do promotor que bateu no
réu.
Então ele falou "eu apanhei do Dr. Bigodão." E todos nós
assinamos. E eu já estava indo embora novamente, quando a
estagiária veio mais uma vez correndo atrás de mim. Desta vez já
estava no estacionamento. E era o Dr. Bigodão que queria falar
comigo. Fui ao gabinete dele. E fui recebida assim:
– Olha aqui, Camile! Tu vais lá amanhã no presídio! Tu
vais fazer esse filho da puta voltar atrás nessa declaração, senão eu
vou conseguir que ele seja removido para segurança máxima e
morra lá! Estás entendendo bem?!
Meu senhor, o Bigodão estava ameaçando o homem de
morte! O que eu podia fazer a não ser responder que sim?
No outro dia de manhã, lá estava eu no presídio. Pedi
para falar com Mão Leve e expliquei a situação:
– É o seguinte, o Dr. Bigodão disse que tem contatos e
que vai te remover para o Presídio de Segurança Máxima, aquele
que chamam de Inferno. Eu sou um advogada recém-formada. Tu
és um presidiário, cheio de antecedentes, estou preocupada.
– E o que a gente pode fazer, doutora?
– Pedir um novo interrogatório e nele tu voltas atrás.
Dizes que era um homem parecido, mas não o Bigodão que te
bateu.
– Tá bom, mas eu sei onde ele mora e não vou ficar aqui
para sempre. Quando eu sair daqui, vou matar o Bigodão.

– Não faça essa loucura, que nunca mais vais conseguir


sair.
– Faço sim. Pode anotar! Quando eu sair daqui, vou
matar o Bigodão!
Peticionei. Mão Leve foi ouvido. Retirou as acusações.
Não foi removido para o Inferno, mas eu tirei meu nome da lista de
defensores dativos da vara criminal. Aquilo ali não era para mim
não.
Para piorar, depois desse caso, viram outros. Piores. Bem
piores. Uma mulher presa em flagrante por furtar tinta de cabelo,
que não quiseram liberar porque era moradora de rua. Acharam que
ela estava melhor na cadeia do que em liberdade.
Um motorista de aplicativo que foi preso como traficante
porque o passageiro, que era menor estava com drogas e os
policiais resolveram então prendê-lo. Demorei meses para tirar
aquele homem da cadeia.
E teve também um outro caso de preso, que dizia estar
sofrendo ameaças de um desafeto dentro do tal “inferno” (o presídio
de segurança máxima). Peticionei, pedi para ser removido. Dr.
Bigodão não concordou. Queria saber quem estava ameaçando o
infeliz. O homem não podia citar nomes. Era uma substituta que
estava no lugar do Dr. Juliano. E foi a sorte do cara. Ela me chamou
no gabinete e disse:
– Camile, nós não vamos esperar a boa vontade do Dr.
Bigodão. Eu não vou ficar com esse peso na consciência. Vou
absolver esse cara. Faz tuas alegações rápido, para eu sentenciar e
mandar soltar.
E foi o que eu fiz.
Depois teve um caso. O último que peguei na área
criminal. Esse foi particular. Filho de uma amiga da minha mãe. Um
guri que sempre teve de tudo na vida. Aquele era bandido por
prazer. Já tinha sido preso por furto, foi absolvido, por roubo, pegou
uma suspensão. E agora era tráfico. Flagrante, tudo filmado. Era
impossível escapar. Sobrinho de senador. Falei a real para família e
me trocaram por outro advogado. Foi absolvido. ABSOLVIDO! Dá
para acreditar?

Pois é. Era impossível. A amiga da minha mãe disse que


o novo advogado “acertou” tudo com o pai do guri no tribunal. E ele
já foi preso outras vezes. Qualquer dia mata alguém. Aquele nunca
será condenado.
Em São Barnabé gente como ele não é condenada. Em
Santa Ignorância para filho de rico sempre se dá um jeito. E viva
Bananalândia, o país da impunidade!
Fiquei só com cível e família. Depois disso, não tive mais
estômago. É como dizem por aí “o crime não compensa.”
MARINALVA

Estava saindo do cartório para levar o expediente no


gabinete do Dr. Floribaldo quando a Alice, estagiária dele, me pegou
pelo braço:
– Eu quero falar contigo.
– O que é isso?
– Agora, Marinalva!
– Tá maluca? Que agressividade é essa?
– Não te faz de sonsa não, que eu já percebi.
– Percebeu o quê?
– Que estás tentando roubar o meu lugar! Vê se te
enxerga, sua velha!
– Como é que é?
– Sua velha! Casada ainda por cima! Mãe! Tu não tens
vergonha nessa cara não?
– Como é que é?
– Gorda!
Aí foi demais! Tudo menos gorda! Gorda eu não vou
aturar! Não me controlei! Peguei no balcão uma caneta, daquelas
que o tribunal compra em licitações e manda gravar Tribunal de
Justiça e Santa Ignorância no plástico. Tirei a tampa e encostei na
jugular daquela girafa loura. Fiquei na ponta dos pés e disse:
– Olha aqui sua fedelha, não te devo satisfações de nada
não, hein! Gorda é a senhora sua mãe! Eu sou é gostosa! Tenho
peito, tenho bunda! Vê se te enxerga, sua vassoura desengonçada,
que eu não quero teu lugar! EU SOU CONCURSADA! Eu entrei
nessa merda foi pela porta da frente!!!
Só que ela não se deu por vencida. Tirou a caneta do
pescoço, arremessou num canto e me empurrou. Caí sentada numa
daquelas cadeiras do corredor:
– Não te faz de desentendida, Marinalva! Não tô falando
do meu lugar no gabinete! Tô falando do MEU lugar no coração do
Babado! Tu estás pensando que ele vai me largar para ficar
contigo? Olha para ti e olha para mim! – ela passou as mãos pelo
próprio corpo e jogou a juba para trás.

– Eu tenho 22 anos! Sou muito mais bonita, muito mais


gostosa! Eu sou MAGRA! E esperei esse tempo todo ele se separar
da Amanda! Não te mete comigo não, tô te avisando, mulher! Tu
não sabes do que eu sou capaz!
Nesse momento, a Socorro sai da sala, toda suada, com
uma pilha de processos nas mãos (para disfarçar que estava indo
em algum lugar). Fuxiqueira maldita que é, faz questão de anunciar:
– Shhhhhhh!!!! Vocês estão malucas? Tá todo mundo no
fim do corredor olhando para cá e ouvindo essa gritaria! “Por amor
de Deus” parem já com isso! E se enxerguem, que o DOUTOR
Floribaldo não é para o bico de nenhuma das duas não.
Eu não dei bola. Levantei. Peguei os processos que
estavam no balcão e saí em direção ao elevador de cabeça em pé.
Estava fazendo meu trabalho e sou chefe do cartório.
O que a Alice fez não sei. Não tenho nada com isso, mas
quando retornei do gabinete, chamei a Socorra para uma conversa:
– Socorro é o seguinte, eu sou a chefe do cartório. Sou
graduada em direito e comando aqui nosso setor. Não quero ficar
levando “pito” teu na frente de estagiário nenhum. Espero ter sido
clara.
– Sim, muito clara. Eu só quis ajudar.
– Mas eu não gostei do tom. Não gostei nem um pouco. E
espero que isso não se repita. Minha vida pessoal não é da conta de
ninguém aqui dentro.
– Não irá se repetir. Eu só quis ajudar – ela frisou. E já
começou a tramar a vingança.
Foi naquele dia. Foi por causa disso que eu falei. Tenho
certeza, quando me lembro dessa conversa, tenho total certeza que
foi por isso que ela fez o que fez.

CLEVERSON
Baixaram uma portaria dizendo que advogados não
podem mais fazer audiências sem gravata. E está dando um rolo
dos diabos essa merda.
Já não podem entrar de bermuda. No verão chega a
passar de quarenta graus a temperatura. Imagina ter que vir de
gravata!
Só que não cabe a mim questionar. Eu cumpro ordens.
Não pode entrar, não entra e deu. Um tal de Dr. Políbio tinha uma
audiência na criminal e veio sem gravata. Estava um dia quente de
lascar. Tive que barrar a entrada dele:
– O senhor me desculpe, mas não vai poder entrar assim.
– Assim como?
– Sem gravata.
– Tu tá de brincadeira...
– Não tô. Infelizmente, é uma norma. O Dr. Floribaldo
baixou uma portaria. Sou obrigado a pedir que o senhor se retire.
– Meu filho, eu tenho uma audiência. De réu preso. Daqui
a pouco. Por favor, me deixa entrar. O juiz da criminal não vai ligar.
– Doutor, eu sigo ordens. Infelizmente, não posso.
– Me deixa pelo menos usar o banheiro.
– Não posso, doutor.
Ele suspirou. Saiu. Passados dois minutos voltou. Com a
meia em forma de laço, pendurada com um grampo no colarinho.
Tive que deixar entrar. Era uma gravata borboleta. A portaria não
especificava o tipo de gravata e Dr. Políbio, o rábula, encontrou uma
brecha na maldita. Ri muito. Cara, nunca vou esquecer esse dia!
LUÍS

Toca o telefone:
– Secretaria do foro.
– Oi, amor.
– Tiago, já te falei para não ligar para cá.
– Que inferno! Deixa para lá!
Ele desligou. Vou ter problemas de novo. Não aguento
mais essa pressão que ele faz, querendo assumir o relacionamento.
Acho que ele vai terminar.
Toca o telefone de novo:
– O que é?!!!
– Luís?
– Sim? Quem está falando?
– É a Alice, estagiária do Dr. Floribaldo. Está tudo bem?
– Está. Desculpa. Pensei que era um cara de uma
empresa de telemarketing que está ligando a tarde inteira.
Aconteceu alguma coisa?
– Ah tá. Sim. Podes vir aqui um minuto? Aconteceu. Uma
desgraça...
Ai meu Deus, era só o que faltava. Uma "desgraça?" Mais
uma. Subi correndo. Quando cheguei no último andar, todos os
estagiários no corredor, advogados, servidores. Tinha gente
filmando. E um corpo atirado lá embaixo. Alguém se jogou do vão
do prédio. Alguém se matou dentro do fórum! Meu Deus, foi a
Arlete!
Alice se aproximou de mim e disse que o Dr. Floribaldo
estava me chamando no gabinete. Senti um embrulho no estômago.
Uma vontade de chorar. Uma raiva tão grande, mas fui.
Bati na porta. Ele disse "pode entrar". Estava fumando:
– Já viu o corpo?
– Sim. Já vi a Arlete – corrigi. Ele não percebeu:
– A Alice já chamou a ambulância. A perícia também está
vindo. Alguém tem que avisar a mãe dessa solteirona infeliz. Por
enquanto joga alguma coisa em cima para cobrir. Pede para o
Mauro achar uma lona no estacionamento.
– Não existe nenhuma lona no estacionamento.
– Então cubra o corpo com um guarda-sol. Tenho um no
porta-malas.
– O senhor não vai mandar encerrar o expediente?
– Claro que não. Tá maluco? As leigas têm 22 audiências
hoje. São Barnabé não pode parar! Mande o Mauro pegar o guarda-
sol.
Ele entregou a chave do carro. Eu vou pegar a merda do
guarda-sol. Não vou falar que o Mauro só tem um braço. Ele sabe. E
eu vou ligar para Dona Dolores. Coitada da velhinha. Meu senhor,
como vou dizer para mãe da Arlete que ela se matou? Que merda
de vida. Que merda de emprego! Fiquei em silêncio. Ele continuou:
– Ela não estava bem, Luís. Também pudera. Com
aquela idade toda, ainda solteira, feia que era um raio, morando
com a mãe. Sem filhos. Que vida miserável ela tinha.
Foi me subindo um ódio pela garganta. Coitada da Arlete.
Tão inteligente. Tinha mestrado fora do país. Entregando papel
higiênico na porta do banheiro, apesar de ter capacidade para muito
mais. Ele colaborou bastante. Pensei isso, mas, covarde que sou,
falei:
– O psiquiatra tinha dito que ela precisava ficar em um
ambiente silencioso. Ela deveria ter ficado no arquivo.
E continuei pensando: a culpa foi tua, desgraçado! Ai que
vontade de gritar isso! Só que não tive coragem. Que ódio eu sinto
de mim.
– Não teria adiantado. Sabe, Luís, acredito muito no
destino e nos desígnios superiores. Todo mundo morre um dia.
Chegou a vez da Arlete. Não podemos ficar lamentando. Temos que
tomar as providências que nos cabem.
– Bom – ele suspirou – Avise logo a mãe dela. Depois
peça para pessoal da limpeza arrumar tudo. Depois que a perícia
sair, é claro.
– Sim, senhor.
– E depois "bola para a frente." O mundo vai continuar
girando! Faça uma nota de lamento. Cole no mural. E temos que
arrumar alguém para ficar no lugar dela. Precisamos continuar
controlando o uso racional do papel higiênico na comarca.

Esse cara não é normal. Não consegui disfarçar meu


choque. Devo ter feito alguma careta, porque ele estranhou:
– Por quê? Achas que é melhor voltar ao sistema antigo?
– Não sei. Realmente não sei se economizar papel
higiênico... até que ponto... vale... a vida... a saúde e a vida de uma
colega de trabalho...
Comecei a chorar. Dr. Floribaldo não esperava por isso e
não sabia o que dizer:
– O que é isso, Luís! Te acalma, homem!
– O senhor me desculpe. Fiquei um pouco comovido.
Saí e fui tomar as providências todas. O mais difícil foi
ligar para mãe da Arlete. Ela passou muito mal. Isso porque nem
falei em suicídio. Falei que a Arlete tinha passado mal e estava
hospitalizada. Joguei para o pessoal do hospital a tarefa.
Graças a Deus a amabulância chegou rápido e não tive
que jogar guarda-sol nenhum em cima do corpo. A perícia também
foi ágil, assim como as faxineiras. Haviam pessoas filmando. Dentre
elas, Socorro. Mulher ruim como aquela estou para conhecer.
Filmou uma colega de trabalho estirada no saguão do fórum com a
cabeça estraçalhada e fez uma selfie! Que tipo de ser humano faz
isso?
Não fui ao velório. No outro dia de manhã fui ao enterro
apresentar minhas condolências e soube, por uma prima da Arlete,
que a mãe da Socorro decidiu processar o Estado e denunciar o Dr.
Floribaldo. A filha morreu porque sofreu assédio moral no ambiente
de trabalho. Ela tinha atestados dizendo que a Arlete precisava que
trabalhar em um ambiente silencioso. Não existe em nenhum fórum
esta função de entregar papel higiênico. Era altamente depressiva e
foi muito humilhada. Isso a levou ao suicídio. Tomara que ganhe.
Duvido muito, mas torço pela Dona Dolores.
Ah, o Dr. Floribaldo não colocou ninguém nesta função
novamente.

CAMILE

Toca o telefone:
– Alô.
– Camile, sou eu. A Daisy – ela falou com uma voz bem
rouca.
– O que houve, guria? Que voz é essa?
– Tô mal. Muito ruim mesmo. De cama. Acho que comi
alguma coisa estragada, sei lá. E o pior é que tenho uma conciliação
hoje em São Barnabé. Não podes quebrar esse galho para mim? Tô
me cagando toda, guria. Uma diarreia horrível. Não posso ir para o
fórum assim. Se eu solto um peido me cago em seguida. Tô com
medo de me borrar toda em audiência...
– Tá! Não precisa me contar os detalhes. Estou
almoçando agora. Não tenho nada marcado hoje. Posso ir. Manda
um "subs" e cópia do processo por e-mail que eu vou no teu lugar.
– Se eu não tivesse assim, me desfazendo em merda, eu
iria. Só tem uma coisa. É a conciliação do casal Mussolini.
– Ah, Daisy... não estás inventando isso para te livrar da
audiência, né?
– Claro que não, guria! Imagina! Eu estava louca pra ir!
Dar de dedo na cara daquele boçal. Não tenho medo dele. Tô me
cagando de verdade. Não é de medo não.
– Sei.
– Por favor, amiga. Não tenho para quem pedir. E não vai
ter acordo mesmo. Ele é o autor, já perdemos o agravo. Oh, a gente
mantém a proposta. Na verdade, a Dona Amanda até está disposta
a ceder mais. Se ele assumir o colégio dos meninos, o plano de
saúde e deixar ela ficar com a cobertura, ela aceita quinze por cento
de pensão e ele fica com todo o resto.
– Nossa. Coitada. Ela está trabalhando?
– Está. Conseguiu um emprego. E está doida para se
livrar da situação. Sabe que não vai conseguir uma pensão boa. A
chance dela é conseguir metade dos bens, mas laaaaaá na frente.
Aqui no estado vai ser impossível. Na comarca mesmo, ui! Até
parece, né? Só que ele não tem interesse em dividir os bens. Se ela
ficar só com a cobertura, ele sai com muito mais. E cá entre nós, ele
tem muita coisa...

– Não entendo porque não fechou o acordo ainda.


– Porque está por cima. Ela saiu de casa. Ele conseguiu
liminar para ficar, alegando que é perto do trabalho. Ele está
pagando dez por cento de pensão. Vai enrolar enquanto puder.
Tenta trazer o promotor para o teu lado.
– Não é promotor. É promotora.
– Não. A Dra. Mariane está de licença.
– De novo?
– Sim. Foi pra Argentina visitar aquele namorado gringo
dela. Só que vai ser bom. No lugar dela ficou o Dr. Joaquim. E ele
ODEIA o Dr. Floribaldo.
– Sério?
– Sim. Assuntei lá no fórum. O Mauro falou que teve uma
briga feia entre eles por causa de uma vaga no estacionamento.
Uma coisa assim. E desde então não se falam mais.
– Meu senhor. Esses caras ganham tão bem e ficam se
engalfinhando por essas vagas ao relento. Juro que não entendo.
Tem um estacionamento bom ali na frente, com vagas cobertas.
Tem o shopping também. Eu que ganho bem menos, coloco meu
carro no shopping. É muita mesquinharia...
– Quê? Tu colocas teu carro no shopping? Maluca! Eu
uso as vagas da OAB! A gente tem direito. A gente paga anuidade,
guria. Eu me nego a pagar estacionamento. Só o que me faltava
mesmo!
A Daisy é tão mesquinha. Ela é dessas que coloca o
carro na rua para não pagar o estacionamento do shopping. E usa a
vaga da OAB quando vai fazer compras. Acho tão errado. Só que
está sempre exigindo os direitos dela. Não quis discutir. E essa
história de diarreia? Ah, mas eu não engoli, só que devo alguns
favores a ela. A Daisy é minha amiga e já me ajudou muito na vida.
Pedi para ela mandar as coordenadas. Depois fiquei lendo a inicial.

Meu senhor, que troço mais machista. Um horror. A


contestação da Daisy era infinitamente superior. Ela mostrou todos
os gastos dos guris. Toda a necessidade deles de morar perto da
escola. E, mesmo assim, Juliana Louca manteve o cara em casa. A
mãe saiu com os filhos. E saiu com uma pensão miserável. Os filhos
foram penalizados por conta da traição. Sendo que ele também
traiu. E muito mais. Nossa, a Daisy juntou provas de que ele teve
um montão de amantes nesses anos todos. Uma lavação de roupa
suja o processo. Um verdadeiro barraco.
Bom. Tomei banho, me arrumei e lá fui eu. Encontrei com
a Dona Amanda em frente ao fórum. Muito bonita ela. Magra, pele e
cabelos bem tratados. Unhas bem-feitas. Bem vestida. Ela me
cumprimentou. Fomos conversando amenidades. Vi que estava
calma e foi devidamente instruída.
Sentamos nas cadeirinhas da sala de espera. Não tinha
ninguém no corredor. Acho que a juíza só marcou a audiência deles.
Também, em plena sexta-feira. Dra. Juliana nunca marca audiências
às sextas.
De repente saíram os três do gabinete dela. Dr. Floribaldo
Invejoso, Dr. Margarido, que é seu irmão e advogado e Dra. Juliana
Louca, juíza da vara de família. Aos risos. Ela (que vai julgar a
ação!) ainda deu um tapinha no ombro dele e disse: "para! Tu não
tens jeito mesmo!" Quando Dr. Floribaldo apontou para nós e disse
alguma coisa em seu ouvido.
Dona Amanda ficou desconfortável. Eu também. Como
acreditar em imparcialidade? Como acreditar em justiça? É muito
descaramento.
A juíza entrou na sala de audiências. Dr. Floribaldo ficou
em pé, virado de costas para nós, conversando com o irmão, que
nem me olhou na cara. Estavam tomando água. A antipatia em
pessoa o tal Margarido. E feio. Ui! Que cara feio. Gel no cabelo
louro claro, penteado para trás, magro demais, branco demais, alto,
um pouco corcunda. E usa suspensórios. Quem ainda usa
suspensórios e calça "centropeito?" Perto do irmão, Dr. Floribaldo,
que não é nenhum Deus grego, fica parecendo um Apolo. Dona
Amanda virou para mim e disse baixinho:
– Percebeu como são amigos?

– Sim, são irmãos.


– Não tô falando do Margarido. Tô falando da Juliana. Ela
foi namorada dele quando passaram no concurso. São da mesma
turma. Quando a gente casou ela ficou arrasada...
– Imagino.
Falei isso porque dava para imaginar. Dona Amanda e Dr.
Floribaldo formavam um casal bonito. E Juliana Louca deve ter se
rasgado de ódio na época. Ela continuou:
– Babado teve muitas namoradas antes de casar. E
durante o casamento também. A Daisy te falou?
– Sim – Jesus Cristo, o apelido dele é Babado? Mal
posso esperar a reunião das advogadas da comarca para jogar na
roda.
– Já passou metade desse fórum "na cara". E eu tenho
vergonha de entrar aqui. Não é engraçado? Todos me olham como
se eu fosse a Maria Madalena. Porque eu me apaixonei por outro.
Ninguém sabe que quando isso aconteceu, nós já estávamos de
mal a pior. Nossa vida como casal, já estava ruim desde que o
caçula nasceu. Na verdade, nunca foi "lá essas coisas." Ele é muito
frio. O sexo com ele era muito ruim, mas eu não sabia, porque ele
tinha sido o único. Eu só me dei conta quando conheci o meu
namorado. Quanto tempo perdido...
Eu não sabia o que dizer e só balançava a cabeça. Fiquei
muito sem graça.
De repente a estagiária chamou. Pontualmente, o que
raramente acontece ali:
– Audiência das 17h45min. Dr. Floribaldo Mussolini (sim,
até no pregão ela falou doutor) e Amanda Chifronésia Mussolini.
Entramos.
Dr. Floribaldo nem olhou para nossa cara. Beijou a mão
da juíza, apertou a mão do promotor e sentou-se. O irmão dele
sorriu para os dois, me cumprimentou friamente e fez de conta que
a cunhada não existia. E eu cumprimentei todos, incluindo a guria
que digitava a audiência.
Dra. Juliana começou seu showzinho:
– Boa tarde. Então hoje temos uma tarefa difícil aqui. O
divórcio de um magistrado muito querido, por acaso meu colega de
turma e diretor de foro. Que coisa, hein?
– Pois é – disse o Dr. Floribaldo – e piscou para Louca.
E ela não perguntou quem galhou quem, porque a cidade
inteira sabe que o “chumbo foi trocado.”
– Então, Dra. Camile a senhora vai juntar procuração?
– Já juntei susbstabelecimento, doutora. Só vim para o
ato, porque a Daisy está doente – fingiu que está com caganeira, eu
pensei.
– Pois bem. Há possibilidade de fecharmos um acordo?
– Da nossa parte sim, meritíssima – eu falei.
– Nenhuma possibilidade – me interrompeu o palhaço do
Margardido.
– Doutores, há crianças envolvidas. Vamos conversar. O
Dr. Floribaldo já está pagando um excelente pensão...
– Meritíssima, são dois filhos e estão recebendo apenas
10%.
– Sim, mas sua colega agravou e não obteve êxito,
doutora. Dificilmente, considerando que o valor da pensão é bem
considerável, isso irá mudar. Eu sugiro mantermos e resolver
apenas a questão dos bens.
– Eu não vou abrir mão dos bens. Casamos no regime da
comunhão parcial e ele adquiriu tudo que está em nome dele
durante o nosso casamento, fora o que não está – falou Amanda.
– Então prova! – gritou Floribaldo.
– Provas eu tenho e tu sabes muito bem, mas vou ter que
levar esse processo para fora de Santa Ignorância para resolver.
Sabes muito bem que aqui o corporativismo impera!
– Como assim, Dona Amanda? A senhora tem alguma
dúvida a respeito da lisura com que este processo está sendo
conduzido? – Perguntou Juliana Louca.
Amanda riu e eu tive que beliscar. Cochichei no ouvido
dela: por favor, tenta te controlar.
Amanda ficou em silêncio e a Louca insistiu:
– Eu lhe fiz uma pergunta! A senhora tem alguma dúvida
a respeito da lisura com que este processo está sendo conduzido?
– Dúvidas? Claro que não – Dona Manda sorriu.
– A senhora está debochando de mim?
– Não.
– Pois se a senhora voltar a se manifestar, vai aguardar lá
fora e sua advogada continuará sozinha!
– Só respondi as tuas perguntas, Juliana.
– Mais respeito! E me chame de excelência aqui dentro!
Aliás, não se dirija mais a mim! – A baranga cuspiu, se vingando
assim da rival por quem foi trocada no passado.
Dr. Floribaldo ria e o irmão o repreendeu.
O promotor folheava o processo e pediu a palavra:
– Estou vendo aqui que o Dr. Floribaldo tem muitos bens.
A sua cliente tem interesse em quais doutora? – Ele perguntou para
mim.
– Ela tem interesse na cobertura, que é perto do colégio
dos meninos. Ela não dirige...
– Não dirige a dondoca, porque eu sempre dirigi para ela
– interrompeu o Dr. Floribaldo.
A juíza riu e o Dr. Joaquim ficou furioso:
– O senhor não se manifeste mais também! Aqui o
senhor é parte e está representado por advogado! Mais respeito!
Por favor, continue, doutora.
– Ela gostaria de morar perto da escola e manter os filhos
no conforto em que estão acostumados a viver. Abre mão da casa
de praia e das salas alugadas, terrenos. Se em troca ele mantiver os
filhos como dependentes no plano de saúde, pagar as despesas de
educação e subir a pensão para 25% (tentei regatear).
– Considero razoável, excelência – disse o promotor.
Dr. Floribaldo fez que não com a cabeça e a juíza
perguntou se o Dr. Margarido gostaria de conversar com o cliente lá
fora (aquele toque que dão para aceitar o acordo).

Dr. Floribaldo disse que não era necessário e a resposta


era não.
– Então vamos ter que instruir.
Merda! Era isso que eu não queria! Na instrução vai ser a
Dra. Mariane.
– Vocês vão querer ouvir testemunhas? Há mais provas a
produzir? – Perguntou Juliana Louca.
– Temos – eu falei.
Dr. Margarido falou que não tinha. E foi encerrada a
audiência, com a concessão de 15 dias para juntada. Passei a bola
para Daisy.
Depois soube que fecharam um acordo.
Ela fechou em 15% de pensão e um apartamento
próximo ao colégio dos meninos. Não a cobertura, mas, ficou com a
casa da praia. Pediu para pagar os honorários da Daisy em 10
vezes e ela passa um inferno para cobrar.
MARINALVA

Já faz duas horas que o Vanderlei saiu para lanchar e


não volta. Assim não é possível. Lanche tem que ser 15 minutos, no
máximo meia hora.
Quando ele entrou no cartório, chamei em um canto:
– Vanderlei, por favor, venha aqui.
– O que foi agora? – Ele disse, enquanto palitava os
dentes.
– Assim não dá. Sair às três horas para lanchar e voltar
agora? Já passa das cinco. E estamos cheios de serviço no cartório.
– E daí?
– E daí que tu tens que cumprir teu horário. A Cida está
quase se aposentando. A gente não sabe quando o tribunal vai
mandar mais gente. A estagiária está no balcão. Eu não dou conta
sozinha...
– Eu fui fazer um lanche no shopping, porque não sei se
a madame já reparou, mas não tem lanchonete aqui dentro.
Madame eu? Podia ter dito tanto lá coisa, mas tentei me
controlar:
– Mas podes trazer lanche de casa. Eu trago de casa.
Sempre uma frutinha, uma barrinha de cereal. É até mais
econômico.
– Olha aqui, Mari. Vê se não me enche. Se continuar me
enchendo, vou sair é de licença para tratamento de saúde. Vou ficar
seis meses fora! Meses! E vai ser pior para ti!
Ele falou isso e colocou o dedo no meu peito em tom de
ameaça. E eu tirei, coloquei as mãos na cintura e respondi:
– Pois faça isso! Faça que eu vou falar com o juiz e tu
vais ser bem mal avaliado. Vais ficar sem promoção!
– Veremos! - Ele me desafiou.
E no dia seguinte não veio trabalhar. A mulher dele
trouxe um atestado. Foi para a perícia. Droga. Ficamos eu e a Cida
com serviço até o pescoço.

Pedi para o Dr. Floribaldo ceder aquela técnica que está


no gabinete para o cartório. Afinal, ele tem três assessoras, duas
estagiárias e dez juízas leigas. E olha o que ele me disse!
– Não dá. Preciso da Susi aqui.
– Mas doutor, sem o Vanderlei eu mal vou conseguir
separar seu expediente e fazer os alvarás. Eu passo a tarde
atendendo advogados no balcão. Eles me chamam o tempo todo. A
Cida cumpre os despachos, mas, precisa de ajuda. Precisamos de
mais alguém...
– A Susi não. A Susi nem pensar. Ela é a única que fala
alemão no gabinete. Preciso dela para fazer conversação, senão
perco a prática no idioma. E passo férias todos os anos em Berlim.
– E não dá de pedir para o tribunal mandar mais
alguém? Está bem difícil.
- Eles não vão mandar, mas, calma. Tive uma ideia. Vou
tirar a Socorro do arquivo e colocar no nosso cartório.
– A Socorro? Aquela que vendia informações por 100
reais e faz magia negra?
– É pegar ou largar! Não tenho outra opção, Marinalva!
O tribunal não manda ninguém há anos e eu preciso da Susi! E aqui
no JEC que informação que essa bruxa vai vender? Fica de olho
naquela velha e não dá moleza! Eu não vou abrir mão da Susi e
assunto encerrado! Queres a Socorro ou não?
– Dr. Floribaldo, o senhor sabe o que dizem da Socorro?
Que ela é o capeta em forma de gente. Em todos os lugares que
trabalhou fez inimigos. Ela é perversa, não tem escrúpulos. E tem
essa história da magia negra também...
– Isso é bobagem, crendice. Deixa de ser tola. Eu não
vou abrir mão da Susi e assunto encerrado. A única opção é essa
mulher. Queres a Socorro ou não?
– Tá. Se é a única opção, quero.
Peguei, mas devia ter largado. Nunca me incomodei
tanto. A mulher é o bicho para trabalhar, mas é muito má. Em
menos de um mês, atormentou tanto a estagiária, que ela foi
embora. E não para mais estagiária nenhuma aqui.

Ela tem inveja das estudantes de direito, sei lá. Acho


que quer competir com as gurias. Não enxerga que tem idade para
ser avó delas. E diz coisas do tipo: “tenho um corpo melhor que
muita menina de 20 anos. ”
Sabe da vida de todo mundo. Remexe minhas gavetas.
As gavetas da Cida. Faz comentários sobre os namorados da Cida.
E insinuações sobre minhas demoras no gabinete.
Anda desconfiada que tenho alguma coisa com o Dr.
Floribaldo. Então, para me espezinhar, vive falando dele e da Alice.
Que viu eles juntos, que acha que ele vai voltar para Dona Amanda.
Coisas assim.
E é grosseira com os advogados. Dois já vieram
reclamar para mim. E quatro reclamaram do cartório direto na
corregedoria. Vivo tendo que me explicar.
Fora a história da macumba, que ela não esconde
ninguém. Diz que com a força do pensamento é capaz de aleijar,
cegar e matar qualquer desafeto.
Por via das dúvidas a Cida diz que tem tomado uns
passes toda semana. Eu não tenho tempo nem para isso. Passo 12
horas por dia aqui. Saio correndo para ver meu filho. Passo muito
pouco tempo com o João Gabriel, pobrezinho. Ah, eu me sinto tão
culpada. Só torço mesmo para essa pilantra não me incomodar
muito e fazer o serviço render.

CLEVERSON

Finalmente um crime. Não que eu torça para acontecer


um crime aqui, mas entrei para polícia, achando que prenderia
bandidos e não para controlar uma porta giratória, separar briga de
mulher e fazer flagrante de casal trepando no estacionamento. Está
muito frustrante lidar com tudo isso. Então, confesso, fiquei feliz
quando dois bandidos entraram no fórum.
E não adiantou nada a porcaria da porta, o apitinho idiota,
a trava. Eles atiraram naquela porra toda e entraram. Mandaram
todo mundo deitar no chão com as mãos nas cabeças. Tinha pouca
gente. Era fim da tarde.
Os vigilantes terceirizados estavam lá na frente e eu,
mijando no banheiro, pude ouvir a gritaria. Saquei minha arma e
fiquei atrás da porta espreitando. Lá tem uma janela que dá para o
saguão.
Vi que eram três. Um ficou com o carro ligado lá fora. O
segundo rendeu um vigilante terceirizado e o terceiro mandou as
pessoas que estavam lá na frente deitarem no chão. Eram umas
cinco pessoas.
O cara com vigilante rendido entrou no posto bancário.
Sexta-feira, dia com pouco movimento e, por uma incrível
coincidência, dia que um senhor programou sacar um alvará grande
em dinheiro (fiquei sabendo depois).
Alguém deu o serviço para os caras. Só que eu entrei em
ação. Saí de mansinho do banheiro. Fui me esgueirando pela
parede até chegar ao postinho. O cara estava de costas, fazendo a
caixa encher um malote com a grana. Coloquei a arma na cabeça
dele:
– Polícia. Solta essa arma devagar, levanta as mãos,
ajoelha e libera o refém.
Ele soltou a arma e o vigilante. Em seguida fui até a
entrada do prédio e disse para o outro cara, enquanto segurava seu
comparsa já algemado, sob a mira do meu revólver:
– A casa caiu! Solta a tua arma também, ajoelha com as
mãos na cabeça!

Só ouvi o carro do terceiro arrancando da frente do fórum.


Ele se apavorou e me obedeceu. O vigilante me ajudou render os
dois e controlamos a situação.
Todo mundo bateu palmas para a gente. Cara, aquele dia
foi inesquecível! Saiu no jornal. Minha mãe comprou e mostrou para
a família toda. Os dois foram encaminhados para polícia civil, que
deu “um aperto” para descobrir quem deu a informação do alvará.
É claro que os assaltantes não apareceram ali por acaso.
Eles sabiam que haveria um saque alto em dinheiro naquele dia. Eu
fui arrolado como testemunha. O julgamento foi ali mesmo na vara
criminal. No dia até a imprensa apareceu. Foi um escândalo! E
descobriram quem avisou! Uma pessoa de dentro do fórum passou
a informação!

***

No fim das contas descobriram que quem passou a


informação foi a tal da Socorro, que está no Juizado Cível. Ela,
mancomunada com a guria do banco. O banco tomou providências
e demitiu a caixa, mas, o TJ não fez nada.
Para variar, Dr. Juliano, que é presidente da associação e
titular da vara criminal, não quis escândalos, porque isso poderia
comprometer sua subida ao TJ. Já estava tudo acertado que seria o
próximo desembargador.
E o Dr. Floribaldo não poderia perder um servidor
enquanto o Vanderlei não voltasse de licença. O Vanderlei é irmão
de um médico, que tem amigos médicos e nunca volta da licença.
Sei, porque namorava o Tiago que era de uma família de médicos.
Mais uma vez abafaram o caso e a macumbeira ficou. Cá
entre nós, ela fez algum trabalho para ficar. Foi absolvida por
insuficiência de provas e os três assaltantes a caixa do banco
condenados.
Como não levaram nada (graças a mim) e ninguém se
machucou as penas não foram muito altas. E ficou o dito pelo não
dito.

LUÍS

Tive uma conversa definitiva com o Tiago. Ele me colocou


contra a parede: ou assumia o nosso namoro nas redes sociais, ou
era o fim.
Optei pelo fim. Foi doloroso, mas não vou me expor em
redes sociais. Não vou constranger meu pai diante dos amigos dele.
E não vou me submeter a julgamentos no trabalho. Arrumo outro
namorado. O que não falta nessa cidade é opção de homem.
Preciso de outro que consiga entender e me aceitar do jeito que eu
sou.
À noite, naquele mesmo sábado, fui a um barzinho com o
pessoal. Fazia tempo que não saía. Até que foi bom. Baixei um
aplicativo de namoro. Com nome falso, é claro. E com uma foto
meio camuflada.
Passada uma semana, conheci um advogado. Merda.
Logo um advogado? Mas ele é tão perfeito. Lindo, inteligente.
Loirinho de olhos azuis e cabelos cacheados. Concurseiro, focado
no MP. Também não faz questão de anunciar aos sete ventos que é
gay. Esse entende a minha situação. É meu número.
Só o nome que eu não gostei muito: Rosângelo. Mas a
gente conversa horas e horas e o assunto não acaba, sabe? E o Rô
não vai meter pressão para que eu o assuma em redes sociais.
Enfim, parecia o cara perfeito. Então, me joguei de cabeça. Ele
dormiu no meu apartamento ontem. Foi tudo maravilhoso. Acho que
estou apaixonado. Até que de manhã, durante o café, resolvi
perguntar sobre a família dele. E meu conto de fadas começou a
desmoronar:
– Meu pai é militar da reserva. Minha mãe é pensionista
do meu avô, também militar. Eles nem casaram no civil, para ela
poder ficar com a pensão do vovô – ele falou isso como se fosse a
coisa mais normal do mundo, enquanto passava manteiga no pão.
– Eles moram em Pirapopoca do Sul. Somos três irmãos.
Eu sou o caçula. Meu irmão do meio também é advogado e o mais
velho é juiz. Talvez tu conheças...
– Em Pirapopoca do Sul é difícil eu conhecer, mas quais
são os nomes deles?
– Não, não. Só meus pais ainda moram lá, seu bobo. A
cidade é muito pequena. A gente veio para cá estudar e nunca mais
voltou. O Margarido, meu irmão do meio, abriu um escritório. Eu
trabalho com ele, enquanto não passo no concurso. Floribaldo, o
mais velho, é juiz. No JEC de São Barnabé. Também tenho dois
sobrinhos lindos, filhos dele. E uma menininha, filha do Margarido.
As minhas cunhadas...
Ele continuou falando, mas eu parei de acompanhar em
"Floribaldo, o mais velho, é juiz." O resto da explanação foi
diminuindo de volume, enquanto eu tentava engolir, sem mastigar,
um pedaço enorme de torrada.
Meu senhor, eu dormi com Rosângelo Mussolini! O irmão
caçula do demônio! E, para piorar, me engasguei com a porra da
torrada. Rô tentava me acudir, com tapinhas nas costas:
– Luís, está tudo bem? Vou pegar água para ti! Calma!
Alguém me acorde, que acho que tô tendo um pesadelo!
CAMILE

Toca o telefone:
– Alô.
– Aqui é da DP. Prendemos um cliente seu que está
devendo alimentos. Estamos ligando para saber se a senhora quer
vir aqui acertar a dívida, ou se a gente manda para o presídio.
– Oi? Que cliente? Como assim?
– O João Arrombado. A gente pegou uma cópia de um
processo de execução que o Dr. Bigodão mandou para nós e
chamou ele aqui. Ele veio e tá preso – falou a policial.
– Vocês prenderam um cliente meu com um xerox de um
processo? Sem ordem judicial?
– Sim. E daí?
– E daí que isso não existe. Tô indo no fórum agora! Vou
representar esse delegado na corregedoria da polícia e ele vai ver
com quantos paus se faz uma canoa!
Desliguei. Fui ao fórum. A chefe de cartório da vara de
família me atendeu. Descobri que não existia ordem de prisão. O Dr.
Bigodão mandou uma cópia do processo de execução para a
delegacia, por conta dele e o delegado prendeu o João Arrombado.
Sem o trâmite de intimar para pagar em três dias. Sem nada. Pedi
para falar com a juíza. Só que o delegado também estava lá e pediu
antes.
Ele e o Dr. Bigodão saíram do gabinete. Dr. Bigodão
conseguiu um mandado de prisão com a Juliana Louca. Olhou bem
para minha cara e deu uma gargalhada:
– Agora representa o delegado, Camile! Representa que
eu quero ver!
Tive que engolir aquilo. E a mulher do João Arrombado
me ligou no dia seguinte:
– Ele é pai dos meus filhos. Não quero que ele fique
preso. Por favor, dá um jeito de soltar o João.
Ah, que vontade de mandar ela pedir isso para o
Bigodão, mas me contive. Fechei um acordo em que o João
Arrombado daria seu único bem, uma televisão velha de 32
polegadas. E ele foi solto.
Depois disso desisti também da defensoria dativa.
LUÍS

Toca o telefone:
– Secretaria do foro.
– Luís? É o doutor Floribaldo. Sobe aqui, que preciso
falar contigo.
Dr. Floribaldo, O Invejoso, por acaso meu cunhado, se
autodenomina doutor e está me chamando. Que pesadelo! Já me
deu um embrulho no estômago. Agora cada vez que ele me liga eu
me sinto pior. Será que ele descobriu?
Subi. Dei uma batidinha na porta:
– Com licença.
– Entra – ele falou enquanto mexia no jornal – Fiquei
sabendo hoje. Nossa, eu tô horrorizado.
Meu senhor, ele descobriu. Fiquei pálido:
– Sabendo do que, doutor?
– Como o quê? A novidade! Até saiu no jornal, Luís! Olha
isso!
Saiu no jornal? Como assim? Peguei o jornal. Tinha uma
notinha: “Miguel Mandrião, juiz titular da vara Cível da Comarca de
São Barnabé é premiado como juiz que mais sentencia no país. ”
Senti um alívio. Então é isso. Ele está com inveja do
colega. Não descobriu que eu estou namorando o irmão dele
(ainda). Ufa! Por um momento pensei que tinha saído uma foto
minha beijando o Rô na coluna do Maumau!
– Ah, sim. Já tinha visto. Que bom! Ele está bem feliz, me
disseram.
– Bom? Como bom? Aquele malandro ganhar um prêmio
desses? E eu que criei a operação Crtl C Crt V, que sou o diretor de
foro que mais economiza papel higiênico no estado, ganhar uma
representação na Corregedoria? Isso é muito injusto!
– É que ele sentenciou, doutor. Ele sentenciou mais
processos que todos os juízes do país. Acho que foi por isso que
premiaram...
– Sentenciou porra nenhuma! Os estagiários dele é que
fazem aquelas sentenças de merda! Ele só assina! Todo mundo
sabe que ele só assina! Que ódio! Capaz dele chegar no TJ antes
de mim!

Meu senhor. Eu mereço. Ele está com inveja. E me


chamou aqui para fazer meu ouvido de penico. O que ele quer que
eu faça? O que ele quer que eu diga? Nesse momento alguém
bateu na porta e já foi entrando. E era nada mais nada menos que
Dr. Miguel, O Preguiçoso!
– E aí, Luís! E aí, Dr. Floribaldo!
– Entra, entra, Dr. Miguel! Tu não morres mais! A gente
estava aqui falando do teu prêmio! Parabéns!
E o falso levantou, abraçou o colega, deu tapinhas nas
costas e ofereceu um charuto!
Doutor Miguel agradeceu e ainda fez um convite!
– Pois é. Eu e a Patrícia vamos sair para comemorar.
Hoje, depois do expediente. Quero saber se não estás a fim de ir
com a gente? Tu também Luís, vamos? Tudo por minha conta! E
pode levar acompanhante!
– Claro, mas é claro que vou te prestigiar! E vou levar
minha namorada – o invejoso aceitou.
– Estás namorando já?
– Sim, não te falei? A Elisa. Minha aluna na Escola da
Magistratura. Está classificada para prova oral do concurso já.
– Que legal, cara. Que bom! – disse o Dr. Miguel, muito
sinceramente – Tomara que ela passe!
– Vai passar sim, que no oral eu tô treinando a Elisa
direitinho, se é que vocês me entendem...
Eles riram. Eu tive que rir também. Machos escrotos. Que
nojo me deu. Que vontade de dar uma desculpa e não ir nisso, mas
não teve jeito. Tive que confirmar presença também.

***

Fim do expediente lá fui eu para o tal bistrô. Sozinho.


Devia ter levado alguma amiga, porque a Juliana Louca foi sem o
marido. Fomos os primeiros a chegar. Ela sentou ao meu lado e deu
em cima de mim a noite inteira.
Dr. Miguel e a noiva, muito simpática, já estavam lá, é
claro. Muito felizes com o prêmio, recebendo cumprimentos da
cúpula. Eu era o único servidor. Deve ter me convidado por
educação, agora que me manquei.
Dr. Floribaldo chegou com a menininha, a tal Elisa.
Pareciam pai e filha. Chegaram logo em seguida e ele já soltou essa
pérola:
– Espero que não tenhas convidado o mala do Joaquim.
– Convidei, né? Não tinha como não convidar. Convidei o
Bigodão e a Mariane também. Ficaria chato não convidar os
promotores.
– A Mariane não estava na Argentina com aquele
namorado manco dela?
– Estava. Voltou ontem. Tu és foda, né Floribaldo? Que
implicância com o namorado dela – disse a esposa do Dr. Miguel.
E a namorada idiota ria de tudo que ele dizia. Uma
completa imbecil.
– Implicância nada. Aquela baranga. Não arruma um
macho aqui. Aí vai lá para Argentina arrumar um “fundo e raso”
(comentou, maldosamente, já que o homem manca de uma perna).
Oh, falou no diabo lá vem ela!
E lá vinha Dra. Mariane, com aquele andar que mais
lembrava um pinguim. Feinha mesmo, coitada. Sozinha, porque o
namorado ficou na Argentina.
Ela sentou. Todo mundo cumprimentou. Em seguida
chegou Dr. Bigodão, também desacompanhado. Perguntaram pela
esposa dele e ele respondeu que “não tinha graça trazer merenda
para o restaurante. ”
Todo mundo riu. Dr. Joaquim não apareceu. Mandou uma
mensagem de parabéns e inventou que estava com dor de cabeça.
Ele não se mistura muito mesmo.
– Foi para não me encontrar – comentou o “gênio” do Dr.
Floribaldo – que muito falsamente, ainda levantou um brinde ao Dr.
Miguel, a quem chamou de grande amigo e merecedor do prêmio.
Eu nem conseguia olhar para ele. Como pode ser tão falso?

Eis que comecei a sentir um pé roçando no meu embaixo


da mesa. Era Juliana Louca. Ela estava completamente bêbada.
Passou a mão na minha perna também.
Jesus Cristo, que inferno! Esse é o lado ruim de não sair
do armário, sabe? De vez em quando uma desavisada cisma
comigo e eu não sei o que fazer para me desvencilhar da situação.
Fui ao banheiro e mandei mensagem para o Rô “daqui 15
minutos me liga. Preciso sair correndo de um happy hour aqui do
fórum. Me ajuda, que tem uma mulher dando em cima de mim.”
Ele ligou como pedi e foi minha deixa:
– Doutores, muito obrigada, pelo convite. A noite estava
maravilhosa, mas a síndica me ligou. Está saindo água por baixo da
minha porta. Acho que teve algum vazamento. Preciso ir correndo
para casa.
– Mas já? – Disse Juliana Louca, inconformada.
– Puxa, cara. Corre lá! – disse o Dr. Miguel.
– Vou deixar minha parte aqui – eu falei e já ia abrindo a
carteira, mas Dr. Miguel insistiu que era tudo por conta dele e eu
piquei a mula, feliz da vida, porque a conta daquele bistrô seria os
olhos da cara.

MARINALVA

Cheguei em casa mais cedo porque o Chico disse que


tinha um assunto urgente para falar comigo. Assim que abri a porta,
o circo estava armado.
Um oficial de justiça em um canto da sala. Três malas no
outro. Minha sogra com meu filho no colo, mal me deixou ver o guri,
já pegou o João Gabriel e levou para o quarto: "vem com a vovó,
que o papai e a mamãe vão conversar. "
O Chico com os olhos cheios de lágrimas e eu bem idiota,
ainda perguntei:
– O que está acontecendo?
O oficial me interrompeu e disse:
– Dona Marinalva. Meu nome é Carlos, sou oficial de
justiça da comarca de Cafuá. Tenho uma liminar para retirar a
senhora de casa. Podemos fazer isso tranquilamente, ou posso
acionar a polícia. Assine a citação, por favor.
Assinei tremendo. Incrédula, repeti a pergunta cretina:
– Chico, o que está acontecendo?
– Eu sei de tudo, é isso que está acontecendo. Eu, o
corno manso, finalmente descobri, Marinalva! Minha mãe me abriu
os olhos e contratou uma advogada! Entramos com a ação na outra
comarca para ninguém te avisar e eu consegui a liminar. O
apartamento é meu. Eu já tinha antes de casar! Pega as tuas tralhas
e cai fora daqui, sua vagabunda!
– Chico, eu posso explicar...
– Explicar o quê? Eu recebi fotos de vocês! Fotos! –
Nesse momento ele jogou fotos em cima de mim. Fotos tiradas
dentro do gabinete. De alguém que ficou escondido atrás de um
armário. Tenho certeza, pela má qualidade da câmera, que foi coisa
da Socorro, com aquele celular velho dela. Desgraçada! Ela me
paga! Eu realmente não tinha o que argumentar. As fotos eram
indecentes e mostravam bem o meu rosto, meu corpo. Que
vergonha! O oficial de justiça deve ter visto. Será que ele juntou isso
no processo? Ai, que vexame! Eu não tinha o que dizer a não ser:

– Eu vou, mas eu quero levar meu filho!


Tentei entrar para pegar o João Gabriel, mas o oficial de
justiça me segurou:
– Dona Marinalva, procure um advogado e conteste a
ação. A ordem é para a senhora sair do apartamento apenas com
seus objetos pessoais. A guarda provisória é do pai. Por favor, não
insista.
– Isso não pode estar acontecendo – Eu comecei a berrar
e Dona Isabel surgiu lá de dentro furiosa, me deu um tapa na cara,
me sacudiu e sussurrou:
– Shhhh! Fica quieta. Fica quieta que o Joãozinho já
dormiu. Queres deixar teu filho traumatizado? Pega tuas malas e vai
atrás do teu amante, sua sem-vergonha. Coloquei tudo que é teu aí.
E pode deixar que eu cuido do meu filho e do meu neto. Rua!
Ela me pegou pelo braço, me empurrou para fora do
apartamento que eu morei durante dez anos, chutando minhas
malas. O oficial, juntou-as e me ajudou a carregar até meu carro. O
prédio não tem elevador.
Só ouvi a porta batendo. E do corredor, o Chico chorando
e a víbora dizendo "calma, meu filho, mereces coisa melhor. Mamãe
vai cuidar de ti." O oficial me ofereceu um lenço. Que vergonha! Um
colega. Ai que vergonha daquelas fotos, ele vai saber que sou
servidora do TJ também. Perguntou se eu tinha para onde ir. Eu
falei que sim, mas era mentira. Minha família mora em outro estado.
Abri meu carro. Ajeitei as malas. Faltam 31 prestações, eu pensei.
Entrei. Sentei. E fiquei pensando: para onde vou agora?
Decidi ir para casa do Dr. Floribaldo. Meu "amante." O
homem que me meteu nessa enrascada.
Nervosa, aos prantos. Furei um sinal. Um homem me
xingou. Estacionei em frente ao prédio dele. Peguei as malas e fui
tocar o interfone. Ninguém atendeu. O porteiro disse que ele tinha
saído. Coloquei as malas novamente no bagageiro e fiquei
esperando no carro. Estava tão frio. Eu estava com tanta fome.
Muito nervosa, mas fiquei ali. Liguei para ele. O celular estava
desligado. Às 23 horas vi o carro dele entrando na garagem. Tinha
uma mulher ao lado dele! Uma menina de cabelos castanhos! Não é
possível!
Desci de novo. Desta vez sem as malas. Toquei o
interfone. Caiu na portaria. E ele mandou o porteiro dizer que ele
não estava. Eu sabia que ele estava. Eu vi o carro dele entrando na
garagem. Eu vi uma guria ao lado dele! Chorei tanto. Liguei para o
celular dele novamente. Chamou até cair. Ele não atendeu. Mandei
um áudio contando tudo. Ele ouviu e não respondeu. Canalha!
Desgraçado!
Liguei para Cida. Ela atendeu sonolenta:
– Alô?
– Amiga, é a Mari – eu mal conseguia falar – O Chico
descobriu tudo... eu tô na rua... um oficial me intimou... não tenho
pra onde ir...
– Calma. Vem para cá. Eu tenho um sofá-cama.

***

Entrei no apartamento da Cida, derrotada. Ela não disse


nada. Apenas me abraçou. Fez um chá de camomila e me deixou
chorar.
Chorei tanto, tanto, tanto. E então comecei a falar. Tudo.
Da minha sogra. Do meu filho. Ah, o meu filho que eu tive que
deixar para trás. A ida ao apartamento do Dr. Floribaldo, ele
chegando com uma mulher.
A Cida só me ouviu. Não me repreendeu. Não falou “eu te
avisei.” Não repetiu o que eu sei que ela pensa. Só perguntou se eu
já tinha algum advogado para fazer minha defesa:
– Vou ter que ligar para Camile, né? É a única amiga que
eu tenho na advocacia. A gente não se fala há anos, mas ela não
vai se negar a me ajudar.
– Isso. Liga para Camile. Teu filho é pequeno. Acho que
vais conseguir reverter essa guarda. Podes ficar aqui o tempo que
quiseres, mas é bom ter um apartamento teu para mostrar para
assistente social. Se aquele imóvel é mesmo do Chico, minha
amiga, não vais conseguir voltar para lá.
– É dele. Sim, eu sei. E nem quero. Vou procurar um
canto para mim ainda dentro do prazo da contestação. Não posso
morar dentro do carro.
– Faltam quantas prestações?
– Trinta e uma. Ui, guria, nem me lembra. Devia ter
vendido essa merda antes de ter entrado nessa fria. Tu tinhas
razão.
– Agora não adianta ficar remoendo. O negócio é ver o
que dá de fazer para melhorar as coisas e recuperar o teu filho.
Será que o Chico não te perdoa? Conversa com ele...
– Com aquela mãe que ele tem fazendo a cabeça dele?
Duvido muito. E mesmo não quero mais não. Se as coisas
estivessem bem entre nós nada disso teria acontecido, mas eu caí
na real. Nem ele, nem o Dr. Floribaldo eu quero mais.
– É bom também tentar uma permuta com alguém de
outro cartório.
– Vou tentar sim, mas só depois de me vingar.
– Marinalva, não faz mais nenhuma besteira!
– Não é besteira. Não vou deixar barato não. Ele está
pensando o quê? Vou me vingar sim! Vou aprontar uma boa para
ele! Me aguarde!
– Esfria a cabeça, guria. Vou fazer a tua cama. Dorme.
Amanhã, antes de ir para o fórum, já liga para Camile.
– Muito obrigada, Cida. Nem tenho como te agradecer. E
tu bem que quiseste me alertar. Eu fui tão tola. Por favor, me
desculpa. Fui tão grossa contigo...
– Ah, deixa disso. Já me meti em cada fria também. Tu
sabes. Boa noite.
– Boa noite.
– Queres que eu apague a luz?
– Pode apagar.
Ela apagou e foi para o quarto. Eu não dormi. Fiquei noite
toda me revirando no sofá e tramando minha vingança. E chorando.
Ah, se arrependimento matasse.

CLEVERSON

Faltou luz. Merda. Dr. Floribaldo foi obrigado a encerrar o


expediente mais cedo, porque não tinha como fazer nada no escuro.
Todo mundo foi embora. Quer dizer, quase todo mundo. Eu não fui.
O Mauro do estacionamento não foi dispensado também. Ficamos
eu e ele naquele dia. E como desgraça pouca é bobagem, começou
a chover. Fui até a porta e o Mauro estava embaixo da marquise.
Puxou papo comigo:
– Merda, né cara? Essa escuridão e agora uma
tempestade.
– Vai embora, Mauro. Eu não conto para ninguém
– Não posso. Tenho que esperar o meu horário e bater
meu ponto. Esqueceu que é digital? – O Dr. Floribaldo não me
dispensou, e só tenho uma mão. Se eu arrancar para deixar contigo
para bater o ponto, vou ficar muito desfalcado – ele riu. Não sei
como ele consegue rir.
– Sacanagem isso. Nada a ver ele não te dispensar. Todo
mundo foi embora. É só trancar o estacionamento. Está vazio
mesmo.
– Também acho, mas fazer o quê? Readaptados não são
gente para ele, não.
– Ele tem uma implicância a mais contigo, não é não?
– Tem. E é coisa antiga. Desde o dia que o intimei em
uma ação. Ele era réu. Era meu dever. O que eu podia fazer?
– Que ação, cara?
– Violência doméstica. Ele de vez em quando bate na
mulher. Só que ela acaba perdoando e eles voltam. Até que esse
ano acabou de vez. Na primeira vez que aconteceu quem intimou fui
eu. Ele me marcou.
– Que droga. E por que tu não reclamas na corregedoria?
– Porque não adianta. É cheio de reclamações contra ele.
Até do Ministério Público tem. Não dá em nada.
– E no Conselho? Eles não têm um conselho na capital?
Com as provas todas que tu tens, das coisas que ele te obriga a
fazer com um braço só...

– Tu estás de brincadeira, né? Eles são todos amigos. Se


protegem. Juiz aqui nesse país não é punido não, meu irmão. O
máximo que acontece com eles, quando a esculhambação é
demais, é ser aposentado antes do tempo. E tu achas que eu quero
que ele se aposente? Vou reclamar para ele ser premiado? É ruim,
hein! Ele que trabalhe!
Se alguém for pedir para esse filho da puta se aposentar
não vou ser eu. O que ele está me fazendo, a justiça divina vai
cobrar. Tenho fé é na justiça divina e não nessa dos homens.
Mauro é muito religioso. E acredito que é isso que o
mantém vivo. Essa fé toda. Depois do acidente, depois de perder
um braço, não ficou revoltado, não desistiu de viver. Eu no lugar
dele, não aguentaria tantas humilhações. Já teria feito merda, mas o
Mauro não. Ele não pensa em vingança. Engole a raiva e toca para
a frente. Admiro isso nele. Insisti:
– Mesmo assim, acho que devias tentar fazer alguma
coisa.
– Não tem nada que eu possa fazer. E o Dr. Floribaldo,
vou contar só para ti, hein! Olha lá! Eu sei uma coisa dele. E ele
sabe que eu sei. Não é só essa história da intimação. Eu vi uma
coisa uma vez.
– Viu o quê, conta logo...
– Antes do acidente. Bem antes. Logo que vim trabalhar
aqui. Eu era solteiro ainda. Não tinha conhecido o Senhor Jesus.
Levava uma vida desregrada, até que entrei para igreja, conheci a
Cirlene, fiz minha família, tudo mudou...
– Pula essa parte, Mauro. Conta logo o que tu viste o
Floribaldo fazer.
– Calma, homem sem fé! Eu vou chegar lá! Eu levava
uma vida desregrada. Bebia muito. Fazia sexo com qualquer uma.
Até com mulheres de vida fácil, mas nunca fui pederasta. Travesti,
olha nunca peguei! Juro pelo que há de mais sagrado!
– Quê? Tu tá me dizendo que viu o Dr. Floribaldo com um
travesti?!
– Shhhhhhh.... fala baixo!
– A gente está sozinho aqui, cara! Calma!
– Um dia, eu estava saindo de um inferninho lá no centro
com uma puta e ele passou de carro com uma figura. Aquilo não era
mulher não. Ele sabe que eu vi. Ele me viu também. Nunca falamos
sobre isso. Nunca contei para ninguém, mas ele pega traveco, sim.

– Ele? Com a fama de safado que tem? Comedor? Pega


travesti?
– Pois é, mas não comenta com ninguém, senão ele te
marca.
– Deus que me livre e guarde!
– Te contei, porque sei que tu és um cara sério. Senti
vontade de desabafar. E aqui nesse fórum, se eu te contar tudo que
já vi. Isso aqui é Sodoma e Gomorra. Uma putaria só. A gente que é
bem casado e fiel não faz ideia
Fiquei quieto. Lembrei das vezes que peguei a Juliana
Louca no gabinete dela. E de todas as outras que saio para jogar
futebol e depois digo vou tomar uma cerveja, mas tomo é outro
rumo e a Shirley nem desconfia. Quem sou eu para julgar os
outros? Nunca peguei travesti. Quer dizer, teve um carnaval que eu
bebi demais, mas, ah, não lembro direito. Não quero lembrar...
– Cleverson, tá viajando cara?
– Não, não! Me distraí um pouco. Olha, acho que a luz
voltou!
– Ótimo! Vou lá dentro tomar um café!

CAMILE

Estava no salão deitada sendo depilada com cera quente


naquela sala de tortura. Já tinha terminado as axilas, quando uma
voz conhecida adentrou no ambiente. Comentei com a depiladora:
– Marcela, essa voz lá fora é tão familiar... de quem é?
– Ah, é o seu Bigodinho.
– Que engraçado. Parece a voz de um promotor que eu
conheço. Só que o nome dele é Bigodão.
– Pois é ele mesmo. Seu Bigodinho é promotor.
Jesus, Maria José! Dr. Bigodão se apresentou no salão
como Bigodinho! Nem senti a cera quente na virilha:
– É mesmo? E vem aqui terça-feira às duas da tarde?
– Siiiim. Toda terça e toda quinta, minha filha. Nesse
mesmo horário. E é tão querido! Passa no Café Londres e traz
docinhos para todas nós.
A depilação foi ficando indolor:
– Não me diga! – Ela acabou a virilha e eu nem senti.
– Sim. Ele é um amor. Faz tratamento capilar com a
gente há anos já...
Marcela começou a depilar minhas pernas:
– E funciona? Ele só tem um pouco de cabelo ao lado
das orelhas...
– Por causa do tratamento, senão não teria mais nada! E
sabe, ele se separou faz pouco tempo. Largou a mulher para ficar
com uma estagiária de 23 anos.
Droga. Ela terminou a perna direita tão rápido. Eu queria
saber a história toda.
– É mesmo? Como ele mudou, hein! Sempre achei Dr.
Bigodão tão conservador – E agora se apresenta como Bigodinho e
largou Dona Rosa para ficar com uma menina mais nova que a filha
caçula. Dei a deixa e Marcela desandou a falar:
– Já deu apartamento para ela, carro, lipoaspiração,
silicone...
Marcela já estava terminando a outra perna. Pensei: “que
otário” e pedi:
– Pode refazer a virilha, decidi fazer cavada hoje,
Marcela. Perereca e o fiofó.

Ela riu:
– Tem certeza?
– Sim e conta mais. Quem é a estagiária?
– Sim. Guria de sorte. Não sei o nome. Ah, mas eu queria
o lugar dela, viu? Ah, mas eu não pensaria nem duas vezes...

***

Dias depois, encontrei Dona Rosa no shopping. E a


versão dela dos fatos foi bem outra. Ela largou Dr. Bigodão.
Descobriu o caso com a tal estagiária, que ela não me disse o nome
(droga!) por conta de uma multa de trânsito em Balneário Itaipu, em
um dia que ele falou que estaria em São Judas da Meia Perdida.
Dona Rosa colocou o homem contra a parede e pediu o
divórcio. Disse que foi a melhor coisa que fez na vida. Dr. Bigodão
sempre foi uma mala sem alça. "Não me diga que ele ainda faz
aquele tratamento capilar fedorento?" É um palhaço mesmo! Rimos
tanto.

MARINALVA
Depois de mais uma noite em claro no sofá-cama da
Cida, arrumei minhas coisas e aluguei um quarto em uma pensão.
Liguei para Camile. Ela topou fazer minha defesa e parcelar em 15
vezes. Que vergonha.
E meu amante não me ligou o final de semana inteiro.
Não se importou com o fato de eu estar na rua. De ter perdido a
guarda do meu filho. Não se importou comigo.
Segunda-feira fui trabalhar no horário de sempre. A
Socorro estava lá, destilando seu veneno. Já sabia do que
aconteceu. O Fórum inteiro já estava sabendo. Caí na boca do
povo. Deve ter sido alguém do Fórum de Cafuá que espalhou.
Meti a cara nos alvarás e comecei a tramar minha
vingança. Primeira coisa que decidi fazer foi ficar com aquela grana
das vendas de sentenças para mim. Eu sabia onde estava
escondida. E dali, primeiro tirar dinheiro para comprar um iPhone,
porque com uma boa câmera, daria de filmar a gente no gabinete.
Fazendo sexo, mas, de um jeito que o rosto dele aparecesse e não
do jeito que sei que a maldita Socorro fez.
Comprei o bendito na internet. Busquei na hora do
almoço. Nunca fiz um intervalo tão longo. Ah, mas eu estava louca
que ele reclamasse que demorei!
Não reclamou. Não falou comigo a semana toda. Na
sexta-feira, quando achou que a poeira tinha baixado, desceu do
pedestal, no fim da tarde e, quando todos foram embora, veio falar
comigo:
– E aí, Marinalva? Como é que tu estás?
Não tirei os olhos da tela do computador:
– Indo.
– Eu soube do teu divórcio.
Claro que soube! Pois eu estive na casa dele. Deixei
recado no celular, pedi ajuda! Fiquei em silêncio.
– Não te atendi aquele dia porque estava acompanhado.
Nós somos adultos. Tu sabes que eu estou namorando e que o que
houve entre nós foi consensual e bom para os dois, certo?
Ele está me dispensando! Meu senhor! Ele está me
dispensando no pior momento da minha vida! Ai que vontade de
chorar...
– Doutor Floribaldo, eu nunca cobrei nada do senhor...
– Eu sei. Só quero deixar tudo bem claro. Caso não
tenhas entendido. Isso não é um relacionamento. E nunca vai ser,
Marinalva.
Nunca me senti tão rebaixada, mas, discretamente,
saquei o celular da bolsa, liguei a filmadora e coloquei em posição
estratégica. Eu começaria a me humilhar em breve. Ele ficaria
excitado e eu precisava filmar tudo para ter meu seguro. Então eu
disse:
– Por quê? Não me abandone. Não quero nada. Não
quero compromisso nenhum. Assim do jeito que está me basta.
Ele trancou a porta e me mandou tirar a roupa. Eu me
posicionei em frente ao celular. O cretino não percebeu.
CLEVERSON

Eis que a Socorro aparece no saguão:


– Cleverson, passa lá no gabinete, que o Dr. Floribaldo
está te chamando.
– O que foi dessa vez?
– Senti um cheiro de maconha no prédio. Contei para ele.
Acho que está vindo do gabinete do Dr. Joaquim. Ele quer fazer um
flagrante! – A bruxa falou com os olhos faiscando de alegria!
Era só o que me faltava. E a cara de pau dessa mulher é
impressionante. Vou dar para ela um vidrinho de óleo de peroba no
Natal, mas, lá fui eu. Entrei no gabinete:
– Com licença, doutor.
– Boa tarde, soldado. Preciso que tu faças uma
averiguação no gabinete do promotor Joaquim. Tem um cheiro de
maconha vindo de lá e, seja quem for que estiver utilizando a
substância, prenda!
– Qualquer um?
– Tá surdo, guarda? Não foi isso que eu falei?
– Foi, mas...
– Fique tranquilo, que o gorducho não fuma maconha. O
vício do Dr. Joaquim é cerveja e muita fritura. Deve ser algum
daqueles bolsistas miseráveis dele. Desconfio do filho da servente,
para quem ele quis dar uma chance. Sempre querendo fazer o “bom
samaritano. ” Aliás, desconfio não. Tenho quase certeza que foi
aquele negrinho. O “cotista.” E não é para dar colher de chá! É para
prender, algemar e chamar o camburão!
Não discuti, porque não adiantava. Cheguei ao gabinete.
Não tinha cheiro nenhum. Pedi licença, o promotor me deixou entrar.
Expliquei a situação. Ele riu e fez questão de me convidar a
averiguar tudo:
– Por favor, soldado. Reviste meu gabinete. Reviste tudo
e todos. Faço questão! Pode começar por mim!

Muito sem jeito eu revistei tudo, incluindo ele, os


estagiários (principalmente o coitado do filho da servente). Não
achei nada. Só que próximo à janela senti o cheiro. Chamei o
promotor. Verificamos que estava saindo do gabinete ao lado e ele
fez questão de me acompanhar até lá.
Era do gabinete do Dr. Bigodão que a catinga vinha.
P.q.p! Ele não estava, mas um de seus estagiários tinha acabado de
fumar. Dava para perceber. O fedelho, que se chama Mimadus, não
parava de rir. As pupilas muito dilatadas e o miserável estava
comendo um hambúrguer. Larica o nome dessa porra, não é
mesmo?
Bastou revistar a pasta dele da faculdade que encontrei
resquícios da erva. Já estava prestes a algemar, como Dr. Floribaldo
determinou, mas, considerando que ele berrou:
– Escuta aqui ô PM de merda, “tu sabe” quem é meu pai?
– Não faço ideia – respondi, já pegando as algemas.
– Meu pai é o desembargador Zeus!
Tá. Confesso que tremi na base. Fiquei com pé atrás e
liguei para o Dr. Floribaldo. E ele amarelou:
– Tu tens certeza, soldado? É o filho de Zeus que está
fumando?
– Tenho. Ele não negou não. E está ali ligando pro pai
dele.
Dava de ouvir o guri dizendo “pai,tem um analfabeto aqui
falando que vai me prender! Faz alguma coisa, caralho!”
Enquanto Dr. Floribaldo berrava no meu ouvido:
– Merda! Deixa assim! Deixa para lá! Sai já daí!
E o Dr. Joaquim arrancou o telefone da minha mão:
– Como é que é? Vais dar para trás, Babado? Se fosse
um dos meus era para prender, mas o filho de Zeus vais deixar
passar em brancas nuvens? Nada disso! Se o soldado não prender,
eu prendo!
E deu-se aquele escarcéu! Chamaram o Bigodão e ele já
entrou na sala, dando e dedo na minha cara:
– Com ordem de quem tu invades o meu gabinete,
soldadinho de chumbo?
– Com ordens do diretor do foro e para averiguar um
crime de tóxicos.

Ele colocou as mãos na cintura:


– E ainda me enfrenta! Tu sabes quem é o pai dele? Meu
amigo, Zeus,, o Todo Poderoso!
Fiquei quieto e ele continuou:
– Ligo para o teu comandante e te tiro daqui agora! Aliás,
vou ligar para o Floribaldo!
E ele ligou para o Dr. Floribaldo e o Dr. Joaquim insistia
que era para prender. Prende, não prende! Nisso chegou Dr. Juliano
e chamaram o pai do guri, que já entrou todo empinado:
– Calma, minha gente. Não há necessidade de brigar
com o policial. Ele só estava cumprindo ordens. Meu filho realmente
errou, mas é uma criança. Eu prometo que isso não vai mais se
repetir.
Dr. Joaquim dizia:
– Criança não. Ele tem 22 anos!
– Sim, criança foi um modo de me expressar. Ele é
jovem. Ele se compromete a não fazer isso nunca mais. Doutor, o
senhor não vai querer arruinar a vida do meu filho. O senhor sabe
que a imprensa vai fazer um escândalo para me prejudicar e, no
final, o que é um baseado? Até projetos para descriminalizar já há.
O senhor mesmo é um defensor dos viciados. Vamos dar o assunto
por encerrado, por favor. Vamos ponderar...
Dra. Juliana também entrou na sala e passou a mão na
cabeça do Mimadus:
– Pobrezinho, que pecado! Quem aqui nunca fumou uma
ervinha na faculdade?
Todos riram, menos eu e o Dr. Joaquim, mas ele cedeu.
Resumo da ópera: não deu em nada. Ficou o dito pelo não dito. Ah,
mas se fosse o coitado do guri que chamam de “cotista. ” Ah se
fosse o negro, filho da faxineira. Essa hora já estaria no xilindró. A
vida dele já teria acabado.

LUÍS

Meu namoro com o Rô vai de vento em popa. Já me


enchi de coragem. Já falei que trabalho no fórum e que o irmão dele
é meu chefe. Ele riu e falou que sempre soube. E que só estava
esperando para ver quando eu iria contar. Fiquei desesperado:
– O quê? O Dr. Floribaldo sabe da gente?
– Não, claro que não. Calma. O Babado nem sabe que eu
sou gay. Lá em casa só a mamãe sabe. A mamãe e o Marga. Papai
e Babado são homofóbicos. Nunca vou ter coragem de contar.
– E aí como tu fazes quando estás namorando alguém?
– Apresento como amigos. Não é assim que tu fazes
também?
– Não. Lá em casa todo mundo sabe. Apresento como
namorado mesmo. Só meu pai que me pediu para ser discreto em
público. Coitado, mas meu pai é muito ignorante. Eu entendo o lado
dele e tento respeitar. Para ele é bem difícil mesmo. Até porque sou
o único homem, mas a tua família pensei que aceitasse bem.
– A minha família é como as outras. Só as mulheres
aceitam. Minha mãe aceita. Tua mãe e tuas irmãs aceitam. É assim
como todo mundo, bobo.
– Mas disseste que o Dr. Margarido sabe...
– Ai, para de chamar meus irmão de doutores. Coisa
mais chata. Sim, o Marga sabe, mas, tem esperanças de reverter o
quadro – Ele falou e nós rimos.
– Ele me leva em puteiros, às vezes...
– Oi??? – E dizes isso na minha cara? – Dei um tapa
nele!
– Leva, mas eu só converso com as monas. Não como
ninguém não.
– Mas ele não é casado?
– É. O Babado também era, mas eles são héteros. Não
tem essa de fidelidade para macho, entende?
– Discordo. Meu pai não é assim.
– Ah, para! Claro que é! Tu que não sabes. Teu pai, hoje
deve estar velho, mas quando era novo, com certeza, deu as
puladas de cerca dele. Não existe homem heterossexual fiel.

– Discordo. Não acho que meus cunhados traem minhas


irmãs.
– Tá bom, tá bom. Eu desisto. Vamos mudar de assunto
para não brigar. É o seguinte, Dona Capetônia quer te conhecer.
– Quem????
– Dona Capetônia, seu louco! A minha mãe!
Meu senhor, o nome da minha sogra é Capetônia
Mussoloni! Onde fui me meter! Socorro! Pensei isso, mas disse:
– Tá e como vai ser isso?
– A gente viaja para lá. Porque é uma viagem. O sítio fica
a umas três horas de distância daqui,eu dirigindo. Tu, acho que
umas cinco – ele riu.
– E como vais me apresentar?
– Como amigo, mas mamãe sabe que és meu namorado.
Seu Hipócrates, meu pai, não sabe.
– Finge que não sabe, queres dizer.
– Exato! É assim que funciona lá em casa – Ele riu de
novo.
– Não sei não. E o doutor, quer dizer, o teu irmão
Floribaldo estará lá.
– Acho que não.
– Acha? Ah, eu não vou!
– Não vai estar, não vai! Tô brincando, Luís! Vamos,
vamos! Amanhã às sete passo aqui para te buscar!

***

Sábado me acordei cedo e pensei em inventar uma


desculpa para não ir nessa merda. Confesso que não estava nem
um pouco empolgado para conhecer Capetônia e Hipócrates
Mussolini, mas, resolvi fazer esse sacrifício pelo meu namorado.
Tão pontual ele. Exatamente às sete horas parou aqui na
frente. Desci correndo. Fomos ouvindo músicas que ele gravou para
ouvir comigo. Olha que fofo!

O caminho era lindo. Ele foi por uma estrada velha e não
pela rodovia. Vimos muitas casas em estilo germânico, daquelas
com sótão e porão. E paramos para tomar um café.
Passadas duas horas já dava de avistar o vale. E uma
casa amarela, com floreiras nas janelas chamou muito a minha
atenção. Era uma graça como as outras, mas tinha uma piscina. E,
no fundo, dava de ver uma cruz suástica. Resolvi comentar:
– Puta que pariu, Rosângelo! Tem um nazista morando
na cidade! Olha aquilo, uma cruz suástica no fundo da piscina
naquela casa, que horror! – Dei uma gargalhada e ele não riu. Não
disse nada. Fechou a cara e eu tive um mau pressentimento.
– Conheces os donos daquela casa?
– Aquela é a casa dos meus pais, Luís.
– Caralho! Volta, volta que eu não vou para lá! Não quero
conhecer essa gente mais! – Olhei para ele. Rô estava com os olhos
cheios de lágrimas. Parou o carro no acostamento.
– Tá, eu volto, mas, se fizeres essa desfeita com a minha
mãe, juro que acabou. Ela está a manhã inteira na cozinha, fazendo
coisas para esperar a gente.
Eu não sabia o que dizer. Estou tão apaixonado, mas,
entrar para uma família de nazistas, realmente não está nos meus
planos:
– Rô, eles não vão gostar de mim. Estou pressentindo
que esse almoço vai ser um desastre.
– Não vão gostar por quê? Tu és um cara bacana, tens
um emprego decente...
– Porque eles são nazistas! Eles têm uma cruz suástica
no fundo da piscina! Eu sou um mestiço, bananalandense! Mistura
de tudo quanto é raça! Um avô meu é judeu, que veio para cá fugido
do holocausto e casou com uma portuguesa, misturada com índio.
O outro é mulato e a minha vó italiana. Eles vão me odiar, acorda!
– Luís, só o meu pai é nazista...
– Corta essa! Tua mãe também é. Se não fosse, não
viveria em uma casa que tem uma porcaria de piscina dessas. Teus
irmãos também são. Eu conheço os teus irmãos. No gabinete do
Dou... o Floribaldo tem a biografia de Adolf Hitler... e tu? Fala a
verdade. Tu acreditas nessa palhaçada de superioridade da raça
ariana?

– Eu não quero discutir isso contigo.


– Tá vendo! Isso não vai dar certo! Tu és gay e nazista!
Meu senhor, onde fui me meter?!
Ele começou a chorar. Daí eu pedi desculpas. Estava
certo, mas burramente apaixonado:
– Tudo bem, eu vou. Eu já vim até aqui, vou enfrentar
isso até o fim, mas é um sacrifício que eu estou fazendo. Por ti. Não
pretendo ficar vindo aqui toda hora. E espero não ter mais nenhuma
surpresa, além da piscina.
– Não vai ter – ele mentiu e me beijou.
Entramos na casa. Dona Capetônia aparentava ser uma
típica mama italiana. Imensa de gorda. Muito simpática, nos abraçou
e beijou. Já seu Hipócrates foi extremamente formal. Apenas
apertou minha mão. Perguntou “como vai? ” e voltou a assistir
televisão.
Reparei que dois menininhos loirinhos brincavam no
quintal e pensei “são os filhos do Dr. Floribaldo. Ele deve estar aqui.
Ô inferno! ”
A casa muito limpa e arrumada. E dona Capetônia
mostrou foto dos filhos pequenos. Parecia uma família normal, até
que um dos netinhos apareceu na porta com um filhote de gato
morto. E ele estava rindo!
Seu Hipócrates apareceu logo atrás:
– Me dá essa nojeira aqui, Josef – Não repara, moço. Ele
gosta de fazer experiências com animais.
Dona Capetônia sorriu sem graça:
– Babado também era assim. Depois cresceu e se
transformou em um homem de bem.
Socorro! Um “homem de bem”, que batizou o filho com o
nome de Josef. Em homenagem a Menguele provavelmente. Tive
que dar um sorriso amarelo. Eu estava contando as horas, os
minutos e os segundos para aquilo tudo acabar, mas, me enchi de
coragem e perguntei:
– E o Floribaldo vem para o almoço?
– Não. Só vem fim da tarde buscar os meninos.
Fuzilei o Rô com o olhar. Almocei sem sentir o gosto da
comida. Minha expectativa era o fim da tarde. Não tinha como
escapar antes. E fim da tarde o carro dele chegou. Ao lado da
namorada, ele desceu e quando meu viu, ficou espantadíssimo:
– Luís? O que estás fazendo aqui?
Seu Hipócrates se adiantou:
– Já conheces o novo amigo do Rosângelo?
Dr. Floribaldo fechou a cara. Pegou os meninos. Não
disse nem a nem b. Não olhou para o irmão. Limitou-se a mandar
“Menguele” e Adolfo darem beijos na vovó e foi embora. Recusou o
café. O clima ficou muito tenso. Nós tomamos o tal café. Tensos. E
voltamos em silêncio.
Depois disso Dr. Floribaldo nunca mais me chamou na
sala dele. Mal olhava na minha cara quando me encontrava no
corredor e sim, mandou pedir um analista administrativo para
comarca. Para o meu lugar.
CAMILE

Saí da audiência e precisei passar na salinha da ordem


de São Barnabé para tirar umas cópias.
As gurias estavam conversando. São duas que trabalham
lá agora. Não conheço. Mudou a direção, mudaram as funcionárias.
Não tem concurso. Não sei como é feita a seleção e a demissão das
funcionárias da Ordem. Sei que quando fui pagar, só tinha uma nota
de 50. A guria deu um tapa na mesa para pegar e saiu bufando para
trocar. Não tinham troco (para variar). E ela estava irritada, porque
teve que parar de conversar para trocar o dinheiro. Meu cliente ficou
horrorizado:
– O que foi isso?
– Isso é o jeito que nos tratam aqui.
Pedi as cópias e a outra guria respondeu o seguinte:
– Só libero quando a senhora pagar.
– Como é que é? Eu já paguei. Vocês é que não têm
troco.
– Foi isso que eu disse, sua anta! Só libero quando a
Shirlene voltar com o troco.
– Anta? Que falta de respeito é essa? E me dá já minhas
cópias que estou com pressa. – Arranquei as cópias das mãos dela
– Não vou esperar troco nenhum. Vou tomar minhas providências.
Saí dali com meu cliente. Envergonhada. Indignada.
Constrangida de ter passado por isso na frente dele.
Mandei um e-mail para subseção. Pedi, não a demissão
da guria, mas uma retratação, um pedido formal de desculpas. Não
deram a mínima. Reclamei na secional também. Não fizeram
absolutamente nada. E eu caí na real. Eu me dei conta que nem
dentro da Ordem dos Advogados de Bananalândia a gente tem voz.
Desanimei de vez da advocacia, mas, ainda precisava do dinheiro.
Dei o aviso na sala, passei a atender em casa. E comecei a planejar
uma outra carreira.
MARINALVA

Depois que o desgraçado se vestiu, corri para conferir o


vídeo. Deu certo! Ele apareceu muito bem. O rosto dele, o cartório.
A merda é que a minha bunda (branca e enorme) apareceu
também, mas, dane-se. Já perdi meu marido, a guarda do meu filho,
a minha casa. Ele vai perder esse cargo também. Vou levar isso
para o Dr. Joaquim amanhã e ele vai saber o que fazer.
Nem dormi direito. Fiquei rolando na cama, revendo o
vídeo várias vezes. Pensando no Chico, no meu filho e em tudo que
eu perdi. Já comecei a procurar um apartamento. Assim vou ter
mais chances de disputar a guarda do João Gabriel.
Ah, se arrependimento matasse. A noite nunca foi tão
longa e no dia seguinte, assim que o Dr. Joaquim chegou corri para
falar com ele:
– Com licença, doutor. Preciso falar com o senhor. É
urgente e é particular.
Ele dispensou o estagiário que estava na sala. Eu juntei
todas as minhas forças e contei tudo. Falei do medo que eu sentia
de perder o cargo, das ameaças constantes, da prestação do carro,
de tudo.
Chorei. Falei do meu casamento. Do meu filho. E mostrei,
muito sem graça, a filmagem. Lê ficou chocado:
– Marinalva, isso é grave, muito grave. Esse juiz já
responde por outros processos. Ele não só me desrespeitou com
aquela situação da vaga de estacionamento, ele é suspeito de
negociar sentenças. Nunca conseguimos provas, porque não é
praxe quebrar sigilo bancário de magistrado. A mãe daquela
servidora que se suicidou está processando o estado e a batata dele
está assando. E agora mais essa bomba. Este vídeo é uma prova
forte da incapacidade desse homem para o cargo. Esse vídeo pode
afastar o Floribaldo da magistratura definitivamente.
– Sim. Eu sei.
– Só que vai haver uma grande exposição. Tu estás
preparada para isso?
– Estou, doutor. Eu não tenho mais nada a perder. Esse
homem já arruinou a minha família. Nem dormir direito eu durmo
mais. Só preciso do apoio de alguém. O senhor faria a denúncia?

– Sim. Faria não, farei. Vamos denunciar. Conte comigo.


Vou copiar esse vídeo e preparar tudo. Peça licença médica. Vai ser
um escândalo quando isso vier à tona.
À tarde não fui trabalhar. Marquei um psiquiatra particular.
Peguei 15 dias de atestado. Marquei perícia. E Dr. Floribaldo me
ligou. Desta vez quem não atendeu fui eu.
CLEVERSON

Ixi, tá o maior rolo aqui no fórum. Um monte de


advogados na frente do prédio. Nunca tinha visto isso. O Luís
explicou que é uma "sessão de desagravo." Tudo por causa de uma
ordem que emitiram, dizendo que para os advogados receberem
alvará em nome próprio, vão ter que juntar nos processos os
contratos de honorários. Vieram em peso para cá! O presidente
pegou um microfone agora. Vou ficar perto da porta para ouvir:
– A Ordem da Advocacia da Bananalândia não pode
aceitar tamanho desrespeito às nossas prerrogativas!!!!
Muito bem! Muito bem!! – Eles gritam, aplaudem!
– O Tribunal de Justiça de Santa Ignorância tem que
aceitar nossas procurações e cabe às partes decidirem se confiam
ou não em seus advogados! - Urrava o presidente da subseção de
São Barnabé.
– É isso aí! - Gritavam mais. Assobiavam.
De repente o telefone da guarita tocou. Corri para
atender. Era o Dr. Floribaldo.
– Guarda, se tentarem entrar no prédio jogue gás
lacrimogêneo!
– Dr. Floribaldo, eu não tenho isso aqui na portaria.
– Peça reforços imediatamente! Não estou gostando do
rumo que essa palhaçada está tomando. Já basta a nota de repúdio
que saiu ontem no jornal deles, agora armam um circo aqui na
frente. Estão pensando o que, essa cambada?
Ele desligou.
Nota de repúdio? Que raio é isso? Perguntei para a guria
da sala da OAB. E ela me explicou:
– É quando os advogados não estão satisfeitos com
alguma coisa, que o tribunal fez, por exemplo. E os que estão no
comando precisam mostrar que estão preocupados, mas também
não querem torrar muito o filme com os mandachuvas. Aí emitem
essas notas. Agradam a massa e não fazem nem cócegas nos
caras, entende?

– Entendo. E essa sessão de desagravo, que raio é isso?


– Essa sessão é tipo um show. Um comício. É bom para
o pessoal da diretoria. Ano que vem tem eleição. Aí já fazem o
nome deles. Não são esquecidos.
– Na prática muda alguma coisa?
– Nunca vi mudar, mas um show é um show. O povo
sempre gosta, né?
– Pão e circo. Eu era bom em história. E posso ver a nota
de repúdio? Tu tens aí?
– Tenho! Olha só!

Ela abriu no celular a página dos advogados:


“A Subseeção da Comarca de São Barnabé da Ordem da
Advocacia da Bananalândia REPUDIA os termos da resolução
171/2018, do Diretor do Foro, que versa sobre o levantamento de
alvarás e honorários advocatícios. A OAB de São Barnabé estará ao
lado do Conselho Estadual e Federal na adoção de providências
para garantir o cumprimento das prerrogativas da classe.
O sistema OAB está unido para fazer frente a esta clara
violação às prerrogativas da advocacia e na defesa intransigente
dos mais 300 profissionais da comarca.
Serão tomadas providências para assegurar o
cumprimento do Estatuto da Advocacia (...)”

Bom. Não sei no que deu isso. Ouvi dizer que, por afetar
escritórios grandes e outras comarcas, parece que conseguiram
mesmo acabar com essa exigência, mas, sou só o guardinha.

LUÍS

Mais um escândalo na comarca. Mais um vídeo


circulando pelo WhatsApp. Dr. Floribaldo, meu cunhado, transando
com a chefe de cartório que deu queixa dele por assédio sexual.
O Ministério Público pediu o afastamento dele e
conseguiu. Veio uma substituta para o lugar dele, que nomeou a
Cida como chefe de cartório. E a Socorro está inconformada.
Apareceu um despacho (de macumba) na frente do fórum de manhã
com um Nossa Senhora ApareCIDA toda arrebentada. Todo mundo
sabe que é coisa dela contra a Cida.
Rosângelo está muito chateado. Saiu no jornal da noite o
vídeo. Parece que a mãe deles chorou muito. A família Mussolini
está sofrendo demais e ele acha que é muita injustiça o que estão
fazendo com o Babado. Acha que o “santo irmão” dele foi vítima de
uma armação.
Não disse nada. Não vou me meter nessas coisas da
família do Rô, mas eu tô achando é muito bem feito. Tomara que ele
não volte nunca mais.
Agora o Dr. Juliano é diretor do foro e eu estou tendo um
pouco de paz na minha vida. Até o cara do concurso chegar. Já
estou me preparando psicologicamente para chegada dele. Porque
essa decisão não foi revogada. Eu vou mesmo perder meu cargo.
Já até coloquei meu apartamento à venda.

CAMILE

Finalmente chegou a decisão sobre a denúncia que fiz a


respeito da operação Ctrl C e Ctrl V:

"Sra. advogadazinha.
Segue a resposta. Por favor, acuse recebimento.
Fulano de Tal
Servidor"

Tribunal de Justiça de Santa Ignorância


Gabinete dos Deuses do Olimpo
DECISÃO:

A advogadazinha Camile Barbosa de Souza, não sabe


qual é o seu lugar e denunciou o Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz
de Direito e Semideus do Olimpo Floribaldo Mussolini,
supostamente, por ter movimentado 50 mil processos de forma
idêntica, o que chamou de "operação Ctrl C e Ctrl V."
Ora, como bem asseverou o Nobre Magistrado em suas
CINCO defesas, que utilizo como razão de decidir, ignorando por
completo a lei, o contraditório e não analisando as provas:
"Não cabe a uma folgada advogadazinha barnabense
dizer como os processos serão analisados e sim ao ser de luz,
escolhido por Deus que é titular da vara, no caso EU.
Essa reles causídica é uma mentirosa, assim como a
maioria dos folgados que atuam nesta comarca. Sempre querendo
dar "jeitinhos" e me perturbando no gabinete. Hábito que adquiriram
com o velho incompetente que trabalhava aqui antes de mim. Só
que eu acabei com isso! EU sou muito melhor que o juiz que se
aposentou!

Então, caso não saibam, excelências, segue uma tabela,


mostrando como ele não fazia nada e EU sou maravilhoso, único,
vitaminado e necessário.
Segue também mais quatro defesas, porque não
esculachei essa mulher insignificante o suficiente (...)"

Isto posto e sem dar direito de resposta, determino o


arquivamento da reclamação. Registro ainda meus elogios ao
excelente trabalho do MM Dr. Juiz e Semideus do Olimpo Floribaldo
Mussolini, que também é Diretor do Foro e tem realizado excelente
trabalho, economizando 15 fardos de papel higiênico
semestralmente.
Intime-se as partes desta decisão.
Machistápolis (SI), 18 de março de 2019.

Enrico Tanga Frouxa


Deus do Olimpo

***

Respondi “recebido”. Desliguei o computado e chorei. De


ódio. Não dormi aquela noite. Não recorri. Não iria adiantar nada.
Vomitei. Comecei a sentir uma coceira estranha nos braços. Fiz
vários exames. Descobri que era psicológico.
Procurei uma terapeuta. Comecei a fazer análise com um
cara mais doido que eu, mas que me fez perceber que ‘existe vida
além da advocacia” e que eu poderia tentar levar uma vida diferente.
“Talvez abrir um comércio”, um dia ele sugeriu.
Eu gosto tanto de cozinhar. Pensei em um café. Pequeno.
Não preciso de muitos funcionários. Uma pessoa para me ajudar na
cozinha. O resto eu dou conta de fazer. Fiz minhas contas. Pensei
em vários nomes. Escolhi “Delegacia do Doce.” Vendi meu carro e
meti a cara. Passei meus últimos processos para Daisy, fechei o
escritório e me libertei dessa merda toda. Ganho menos, mas tenho
paz. É tão bom ter paz. Não existe justiça neste país, mas, paz a
gente pode ter.

MARINALVA

Depois que Dr. Joaquim apresentou a denúncia e eu fui


afastada do meu cargo, para delírio da Socorro, que nem se
despediu de mim.
A Cida me abraçou e chorou, mas eu saí de cabeça
erguida. Muito tranquila e ninguém sabia a razão. Pois bem, tenho
cara de idiota, mas não sou. Eu sumi com os dólares que ele
guardava em um fundo falso na mesa do gabinete.
Um dia em que eu estava lá chupando o pau (na verdade,
palito) daquele idiota, ele dormiu. Até por isso eu passei. Percebi
que o fundo da mesa era falso e voltei fim da tarde. Descobri que
era lá que ele guardava uma pequena fortuna. Primeiro peguei um
pouco para comprar um iPhone. Ele não percebeu.
Então, na última sexta-feira, na hora do almoço, antes
dele e o harém chegarem, entrei lá com minha maior bolsa e peguei
tudo. Ele não descobriu que fui eu.
Pensou que foi a Alice. Ela chegou segunda com uma
bolsa nova, que ganhou do Dr. Bigodão (sim, ela tinha um caso com
aquele nojento também e ele até largou a mulher de tão
apaixonado) e o Dr. Floribaldo pensou que foi a girafa loira.
Brigaram, ela saiu chorando. Foi perfeito!
E se algum dia ele descobrir, o que eu duvido, nunca vai
poder denunciar. Vou trocar aquilo aos poucos. Não vou dar
bandeira. Continuo pagando o carro devagar. Aluguei um
apartamento simples e anunciei na internet que estou batendo bolo
para fora. É raro aparecem encomendas, mas, falo que estou
vendendo horrores. Só vejo meu filho nos fins de semana. Minha
sogra está colocando o João Gabriel contra mim. Dr. Floribaldo
mereceu ser assaltado e afastado do cargo. Por todo mal que ele
me fez. Não sinto remorso.
E eu posso viver décadas com aquela grana, enquanto
não arrumar outro emprego. Sou formada em Pedagogia. Posso
lecionar em uma escola particular, se o negócio dos bolos começar
a levantar suspeitas. E dá até de comprar um apartamento com o
dinheiro. É muito dinheiro. Equivale a mais do que tudo que tenho
para receber como servidora aqui do TJ. Ele e o Salafra fizeram
ótimos negócios “e ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de
perdão.”
CLEVERSON

Fiz uma faculdade à noite e fui promovido. Então, me


tiraram do fórum. Estou no batalhão agora.
Confesso que às vezes até sinto saudades daquela
confusão toda. Exceto da “porra” giratória. Nem em banco posso ver
aquela merda. Chega a me dar uma aflição.
A Shirley está grávida. É um menino. Ela quer que seja
Enzo. Eu quero que seja Ronaldo. Vamos ter que sortear.
Nunca mais vi ninguém da Comarca de São Barnabé,
com exceção do Mauro, que às vezes manda alguma mensagem
pelo WhatsApp.
No batalhão o serviço é bem diferente. Nunca mais
separei briga de mulher, nem peguei ninguém fazendo sexo no
estacionamento. Quer dizer, deixa para lá...
LUÍS

O Tribunal de Justiça de Santa Ignorância finalmente


mandou seis técnicos judiciários, três analistas jurídicos e um
administrativo.
Meu coração gelou quando li "administrativo." Esse veio
para o meu lugar. Tive que subir e dar a notícia para o novo diretor
do foro, Dr. Juliano.
– Ah, que bom! Finalmente. Então, manda dois técnicos e
um analista para cada cartório e o administrativo é para a secretaria,
Luís – ele me olhou com pena.
– Sim, eu sei. Veio para o meu lugar... e eu?
– Tu treinas ele e depois voltas para o teu cargo anterior.
É o correto, não é mesmo?
– Sim.
– Tu sempre soubeste que isso poderia acontecer, Luís –
ele tentou me consolar.
– Sim. Sempre soube.
– Então é isso. Fechou?
– Fechou.
Voltarei ao serviço social. Perderei minha gratificação.
Porque aos bagrinhos, a lei. E a corda só arrebenta do lado mais
fraco.
A JUSTIÇA DOS HOMENS

Dr. Floribaldo, O Invejoso, depois de um longo processo,


foi reintegrado ao cargo. Recebeu toda sua remuneração atrasada,
com juros e correção monetária. Foi promovido. Aposentou-se
desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Ignorância com
toda pompa que o cargo oferece.
Casou-se muitas vezes, teve cinco filhos. Além dos dois
meninos que teve com Dona Amanda, mais três, cada um com uma
mulher diferente. Um com Elisa, que acabou passando no concurso
e aguentou o casamento apenas até concluir o estágio probatório.
Outro com Fernanda, uma estagiária, com quem ele viveu por seis
meses. E o derradeiro com Bianca, uma juíza leiga, com quem ele
jamais se casou e até tentou obrigar a fazer um aborto, mas não
conseguiu. Depois disso, com medo de não conseguir manter os
descontos dos alimentos em 30%, fez uma vasectomia.
Sim, a cada filho que nascia, o sem-vergonha reduzia a
pensão dos demais com ações revisionais de alimentos, que
sempre eram julgadas procedentes no tribunal e cujos recursos
jamais saiam de seu estado.
Fez fortuna com seu amigo, o Dr. Salafra, em um
esquema de venda de sentenças, que jamais foi descoberto. Isso
perdurou até a morte de Salafra em um terrível acidente
automobilístico.
Dr. Miguel, O Preguiçoso, sem nunca trabalhar, mas com
estagiários muito bem treinados, recebeu diversos prêmios, por ser
o juiz que mais sentencia na República da Bananalândia. Foi
promovido por merecimento. E antes de completar 40 anos, já era o
desembargador mais jovem do Tribunal de Justiça. Aos 50 chegou à
Suprema Corte. E, quando faleceu, bem velhinho, seu nome foi
dado a diversas ruas, escolas e praças do estado de Santa
Ignorância.
Dra. Juliana, a Louca, nunca se separou do marido.
Manteve diversos casos extraconjugais, sem que ele soubesse.
Também nunca seguiu carreira. E aposentou-se como substituta
vitalícia.
Dr. Juliano atingiu seu objetivo. Foi promovido ao tribunal
de justiça e chegou a ser seu presidente. Aposentou-se quando foi
obrigado pela idade. Trocou sua esposa por uma estagiária de 21
anos e mudou-se para a Itália.
Dr. Joaquim, após o arquivamento de sua denúncia
contra Floribaldo, foi “convidado” a seguir carreira. Foi para a
Comarca de São Judas da Meia Perdida e nunca mais conseguiu
sair de lá.
Dra. Mariane aposentou-se e foi morar em Buenos Aires.
Dr. Bigodão casou com a Alice e aposentou-se em São
Barnabé. Nunca quis seguir carreira, pois gostava de morar no litoral
e perto da clínica de estética capilar.
Marinalva foi demitida, após um processo disciplinar do
tribunal, que concluiu ser ela a única culpada pelo sexo explícito no
gabinete. Perdeu a guarda do filho para o ex-marido, Chico, que
apenas permitia visitas dela ao filho monitoradas por sua mãe.
Bateu bolos para fora durante um tempo, mas, como tinha formação
em Pedagogia, começou a lecionar em uma escola particular e se
aposentou pelo INSS. Jamais casou-se novamente. Morreu de
câncer no estômago ao completar 55 anos.
Socorro só se aposentou quando foi obrigada. Começou
a ter alucinações e incomodar demais as filhas e os genros, que a
odiavam. Internaram-na em um asilo e proibiram seus netos de
visitá-la.
Cida conheceu um homem na internet. Não, dois. Na
verdade, três. Não sei dizer direito. Cida estava sempre conhecendo
homens.
Mauro aposentou-se por invalidez e morreu cercado do
carinho de netos e bisnetos.
Luís nunca saiu do armário. Foi empurrado para fora. Em
uma noite de réveillon, foi flagrado aos beijos com Rosângelo em
uma festa. Foi fotografado, virou capa de jornal e teve que assumir o
relacionamento.

A família Mussolini resmungou um pouco no começo,


mas, acabou aceitando. Eles casaram. Margarido foi padrinho.
Babado não apareceu. Ficou 2 anos sem falar com o irmão e o
cunhado, mas, em uma certa noite de Natal, pressionado por Dona
Capetônia, matriarca da família, fez as pazes com o irmão.
Camile nunca se arrependeu de largar a advocacia e abrir
a Delegacia do Doce.
Cleverson pediu remoção do fórum. Foi trabalhar
combatendo crimes de verdade. Ganhou muitas medalhas. Foi
promovido. Aposentou-se sargento. Teve dois filhos, um neto e
sempre contava as histórias de São Barnabé para os meninos.
A JUSTIÇA DIVINA

Passados muitos anos. Em um dia 9 de dezembro,


Floribaldo Mussolini, corria pela praia, curtindo sua aposentadoria,
ao lado de uma namorada, 30 anos mais jovem. De repente
começou a chover e a guria disse:
– Vamos voltar?
– Não. Volta tu. Quero correr mais um pouquinho.
Ela voltou e ele continuou correndo. A chuva aumentou.
Não havia mais ninguém na praia. Começou a trovejar e Floribaldo
foi atingido por um raio.
Alguém em um quiosque viu, chamou uma ambulância,
mas, não deu tempo. Ele morreu a caminho do hospital.
Ainda grudado no corpo (pessoas como ele, demoram
horas para desapegar da matéria) ouviu os médicos dizendo "ele se
foi."
Tentou gritar "tô vivo!" Mas a voz não saia. Percebeu uma
mulher se aproximando. Um rosto conhecido, vestindo uma
mortalha e segurando uma foice:
– Arlete! O que estás fazendo aqui? Tu já estás morta há
anos!
– Tu também, doutor. Vim te buscar.
– Que me buscar o quê! Tá maluca? Não está vendo que
eu tô vivo? E que negócio é esse de me chamar de “tu”?
– Não. TU estás morto. Depois de morto acaba essa
frescura. E quer saber? Não vou mais te chamar de doutor também.
Apenas não se desapegou do corpo. Isso vai levar algumas horas,
mas eu vou ficar ao TEU lado.
– Logo tu? Por que tu, Arlete?
– Porque me deram essa tarefa! Não fui eu que fiz
questão não, que fique bem claro! Acho isso tão chato quanto
entregar papel higiênico na frente do banheiro!
Ela ainda lembrava disso? Que mulher amarga.
Floribaldo ficou em silêncio. E pôde acompanhar todo o
procedimento. Desde o reconhecimento do corpo pela derradeira
companheira, perícia, velório, comentários, inclusive dela,
planejando o que fazer com a pensão (a desgraçada estava
combinando um cruzeiro durante o velório!). E enquanto a alma ia
se desgrudando, muito devagar, daquela carne toda chamuscada,
percebeu que apenas seu filho caçula (aquele que ele quis abortar)
chorou sinceramente em seu enterro.

– Que jeito ruim de morrer! Porra, um raio?


– Achei muito bom. Rápido, indolor – disse Arlete – Tu
merecias merecia um câncer no cu!
– O que é isso, mulher? Merecia por quê? Que mágoa é
essa que guardas de mim?
– Por quê? Ora, por quê? Ainda pergunta! Tu acabaste
com a minha vida, seu desgraçado! E com o suicídio, minha chance
de ir para o paraíso foi adiada! Aliás, TU acabaste com a vida de
muita gente...
– Como assim? Acabei com a vida de quem?
– De todas as mulheres que se apaixonaram por ti. Com
a vida do Mauro, com pessoas que não receberam indenizações
que tinham direito. Ixi, a lista é infinita!
– Estás querendo dizer que eu vou para o inferno? Fala
logo! Existe inferno?
– Existe, mas há outras opções. Dá de negociar uma
reencarnação, uma temporada no purgatório. Depende muito da
pessoa. Mas não sou eu que decido isso. Porque se fosse, ah se
fosse!
– Então, vamos logo! Me leva para falar com quem
manda!
Arlete riu, colocou as mãos na cintura, largou a foice:
– Olha aqui ô Floribaldo! Tu estás morto. Acabou isso,
hein! Não tem mais hierarquia entre nós, ok? Vou te acompanhar
até São Pedro e depois é com ele, mas vai quieto, senão te deixo
penando aqui na Terra, junto com o Miguel Preguiçoso e a Juliana
Louca!
– Eles ficaram penando?
– Sim. Perderam a hora e deixei para trás!
– Tá bom. Tá bom. Vamos lá!
Arlete apontou a foice para o céu e uma luz intensa e
brilhante apareceu. Eles foram. Andando, até que chegaram a um
portão. São Pedro estava lá. Tinha umas cinco mil pessoas na
frente.
– Quê? Vai dizer que tem fila nessa merda?
– Tem. É sexta-feira, é verão no hemisfério sul. Tem muito
acidente e São Pedro é um só!

– Demora muito? Não consigo passar na frente se eu


disser que sou juiz?
Arlete franziu o cenho:
– Consegues, aham! Quem tenta furar fila aqui, é
remetido ao inferno imediatamente. Foi o caso do Dr. Juliano e
também da Socorro, lembra dela?
– Claro que lembro. Aquela velha era perigosa mesmo,
hein!
– Ela está sofrendo um bocado, mas, o Dr. Juliano não.
Já arrumou um cargo de “assessor do demônio” e está batalhando
para conseguir a vaga do “braço esquerdo dele”. Sobre a fila,
demora dias, mas tem umas revistas de fofoca aqui na sala de
espera. Tem também palavras cruzadas.
– Ok. – Ele pegou uma revista – só me responde mais
uma coisinha, por que te deram esse serviço?
– Porque eu me matei e não era minha hora! Agora vou
fazer isso durante 150 anos. Está satisfeito?
Floribaldo sentiu um certo desespero. Imaginou o que
teria que negociar. Tentou ficar calmo. Passaram dias até chegar
sua vez.
São Pedro olhou para o Dr. Floribaldo, perguntou o nome
e quando ele respondeu: "Floribaldo Mussolini", o santo torceu o
nariz:
– Não tenho boas notícias.
– Vou para o inferno? Anda, desembucha!
– Calma! Ainda não. O senhor vai nascer de novo para
reparar o que fez.
– Ótimo.
– Só que esta é a sua última chance, hein? O senhor vai
nascer mulher.
– Mulher? Como assim? Eu sou homem!
– Mulher, pobre e preta. Vai sofrer violência doméstica,
perder um braço. E vai viver de caridade, pedindo moedas em frente
a um banheiro de rodoviária.
– Não! Eu tenho capacidade para mais!
– É isso, ou a danação eterna. O senhor fez muito mal a
muita gente.
– Prefiro a danação eterna!
– Tem certeza? – São Pedro abriu um buraco na nuvem e
mostrou o inferno para Dr. Floribaldo.
As labaredas consumindo as pessoas, que eram
chicoteadas por carrascos furiosos o deixaram apavorado. Dr.
Floribaldo reconheceu Dr. Bigodão ali no meio. Reconheceu
também o Dr. Salafra!
– Meu senhor, é o Bigodão! É o Salafra! E lá atrás... é o
Corregedor Enrico Tanga Frouxa?
– Sim. Eles não quiseram negociar.
– Quer dizer que todos os meus amigos, juízes e
promotores, foram para o inferno?
– Claro que não. O Dr. Joaquim foi para o céu.
– O quê?!!! Aquele promotor gorducho! Que absurdo!
– Não seja invejoso.
– Ele, a Dra. Luciana, juíza substituta, aquele outro
promotor da vara criminal que queria investigar de onde vinha a
droga também foi para o céu...
– E a Camile?
– A Camile reencarnou. Vai ser juíza.
– O quê????
– Não é prêmio. É carma. Ela tentou fugir, abrindo um
café. Não adiantou nada.
– E a Marinalva?
– Reencarnou também.
– Vai ser Promotor de Justiça.
– Bem feito! Vai ser homem! Tomara que seja gordo!
– Floribaldo. Deixa disso e decide logo! – O santo já
estava ficando impaciente.
– Nossa, o Bigodão foi para o inferno...
Dr. Floribaldo ficou pensando que o Dr. Bigodão jamais
aceitaria nascer mulher e tentando imaginar o que seria tão terrível
para o amigo Salafra preferir o inferno, mas tentou argumentar:
– Tá. Eu quero um tempo para pensar. Não rola um
purgatório? Um serviço desses da Arlete? Não tenho direito a um
advogado?
– Não. É a reencarnação ou a danação eterna. E a
resposta tem que ser dada agora. Há mais gente aguardando. Se o
senhor não decidir, eu decido e a minha decisão pode não lhe
agradar – São Pedro falou isso e riu debochadamente.
Dr. Floribaldo achou que foi golpe baixo utilizar este
argumento. O mesmo que ele mandava as leigas utilizarem nas
conciliações. Ele se rendeu.
– A reencarnação.
Puf! Lá foi Floribaldo. Nasceu em São Barnabé
novamente. Em uma linda tarde de primavera, Neymara, terceira
filha de uma faxineira (Dra. Mariane reencarnada) e de um ajudante
de pedreiro (o desembargador Zeus reencarnado) que queriam
mesmo era um guri, para crescer e virar jogador de futebol. Eles
ficaram muito decepcionados quando a viram, mas, Neymara não
estava disposta a entregar os pontos. Queria pagar por tudo que
tinha feito na vida anterior, só que isto não a impediria de sair
daquela pobreza.

Deus não dorme, cambada.


O que é de vocês está MUITO bem guardado. Podem
apostar.

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