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“Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a
violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os
trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a
coragem e a bravura.
Fique sempre ao meu lado para que eu possa enfrentar de fronte
erguida e rosto sereno todas as tempestades e batalhas da minha
vida e para que, vencedora de todas as lutas, com a consciência do
dever cumprido, possa agradecer a vós, minha protetora, e render
graças a Deus, criador do céu, da terra e da natureza. Este Deus
que tem poder de dominar o furor das tempestades e abrandar a
crueldade das guerras.
Santa Bárbara, rogai por nós.”
CAPA E DIAGRAMAÇÃO
Elias Jr.
REVISÃO
Jane de Souza Barreto
PREÂMBULO
***
CAMILE
Priscila riu:
– Ele diz que não, mas, não é um sobrenome comum. E
para falar a verdade, ele não gosta muito da Itália. Prefere a
Alemanha. Da história. A senhora sabe, né?
– Sei, sei. E como ele é? Fisicamente, eu pergunto.
Porque nunca vi esse juiz. E ele não tem Facebook, nem Instagram.
Nunca fiz audiência com ele e fico curiosa. Ele é bonito?
A estagiária franze a testa. Dá uma risadinha e
cochicha:
– Sabe aquele chefe do Homer Simpson?
– Sei. O Mr. Burns!
– Isso! Tipo ele, só que andando com o gingado da
Pantera Cor-de-rosa!
As duas começam a rir. Muito alto. E uma das
assessoras (são três) entra na sala, para ver o que está
acontecendo.
Camile tenta disfarçar, conta uma piada qualquer. Passa
o número do processo para a estagiária e se despede.
MARINALVA
CLEVERSON
MARINALVA
Esse fim de semana estamos de plantão. Quer dizer, eu
estou. Porque o Dr. Floribaldo some e deixa tudo nas minhas
costas. Se acontecer qualquer coisa na comarca, vou ter que
resolver sozinha com o celular e a senha do peticionamento dele,
que ficam comigo. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro há de me
ajudar e não vai acontecer nada. Tô até atacada da gastrite!
Já é sábado e ninguém tinha ligado até meio dia. Até
que o bendito telefone tocou. Era um advogado, querendo agilizar
uma cautelar “não sei das quantas. ” E ele queria falar com o Dr.
Floribaldo, que foi para praia com a Dona Amanda e os filhos. Não
sabia o que fazer, respondi por mensagem “peticione, já vou
analisar. Dr. Floribaldo.”
Em seguida tive um piriri! O homem peticionou e
mandou uma mensagem! Quer falar comigo, quer dizer, com o Dr.
Floribaldo! E quer ir ao fórum! Virei para o meu marido, que estava
estatelado no sofá, assistindo futebol:
– Chico, me ajuda! Um advogado mala acionou o
plantão! Um processo bem cabeludo, não sei fazer o despacho, o
Dr. Floribaldo não atende o celular dele!
– E o que tu queres que eu faça, mulher? Sou professor
de Geografia. Se tu não sabes fazer "o processo", muito menos eu.
Abriu mais uma lata de cerveja, coçou o saco e gritou
gol.
Merda de marido. Merda de vida. Merda de chefe, de
emprego. Eu quero morrer! Arghhhh!
– Quero que tu atendas o telelefone quando ele ligar,
fazendo de conta que és o Dr. Floribaldo! Enrola o cara, pelo amor
de Deus – Tirei o controle remoto da mão dele – desliguei aquela
merda – me salva, homem!
– Estás maluca? Não vou fingir que sou esse
“Palermaldo” coisa nenhuma! Fala pro cara a verdade! A culpa não
é tua!
Ele pegou o controle remoto da minha mãe e ligou a
televisão de novo:
– Tá vendo, perdi um lance importante por tu culpa! Vai
Joca! Chuta essa bola, poooooooooooooorra!!!!
Não sei o que me irrita mais, ele berrando, o cheiro da
cerveja, o barulho dele abrindo cada lata, a voz do narrador “Pedro,
Joaquim, Manoel, rola a bola...” ou esse advogado chato, querendo
conversar! Infeeeeeeeeeeerno! Me enfiei na frente da televisão,
coloquei as mãos na cintura e falei tão alto que acordei nosso filho:
– Aham, aí ele denuncia o juiz! O Dr. Floribaldo é
chamado na corregedoria e eu perco meu cargo! Como é que a
gente vai pagar a prestação do carro? Me fala, miserável!
Ele suspirou. Coçou o saco de novo. Meteu a mão no
pacote de fandangos. Ai que nojo! Onde eu estava na cabeça
quando disse sim e jurei para o padre e que o sim era até que a
morte nos separasse?
–Tá. O que eu digo?
– Que vai analisar com calma e que ele pode ficar
acompanhando o despacho pela internet.
– Tá e se o sujeito falar alguma coisa de lei? Eu digo o
quê?
– Nada. É só um advogado. Não precisa dar muita
conversa. Diga apenas: peticione, que vou analisar. Apenas isso,
Chico! Não inventa moda! Só isso! Nada além disso! E eu vou
acender uma vela para minha santinha me dar uma luz. Vou
procurar um modelo de decisão no notebook que ele deixou comigo
e tentar achar o telefone da casa de praia da sogra do Dr.
Floribaldo.
Achei! Eram duas da tarde. Liguei para lá e uma
senhora atendeu:
– Olha eles estão dormindo...
– É que é um pouco urgente. Eu trabalho no Juizado.
Sou chefe de cartório e surgiu um problema no plantão e o telefone
dele está desligado...
– Já vou chamar então.
Ouvi a mulher colocando carregando o telefone sem fio.
O barulho do chinelo se arrastando, uma porta tangendo e ela
“cochichando”:
– Babado, tem uma mulher no telefone querendo falar
contigo.
– Mulher, que mulher? Não falou que tô dormindo?
– Falei, mas ela insistiu. Disse que é do Fórum e que é
urgente.
CLEVERSON
LUÍS
A inauguração do caixa eletrônico estava agendada
para a quinta-feira passada, mas, devido a um telefonema, na
verdade um trote de alguém que não tem o que fazer, falando que
havia uma bomba no fórum, foi adiada pra hoje.
Tive que me segurar para não rir. Porque ô situação
ridícula!
Eu, o Dr. Floribaldo, que é Diretor do Foro, sua fiel
escudeira Marinalva, o gerente da Caixa Pobretômica Nacional,
duas juízas leigas e o pessoal do gabinete em volta do caixa
eletrônico. A Marinalva colocou uma fita vermelha, deu uma tesoura
para o Floribaldo e ele disse que faria um breve discurso.
Vergonha alheia, é a sensação...
Lembro de algumas coisas:
"Hoje é o início de uma nova era na Comarca de São
Barnabé. Finalmente o nosso egrégio tribunal, em conjunto com a
Caixa, disponibiliza um terminal eletrônico para facilitar os trabalhos
deste fórum..."
Enquanto isso, a Marinalva filmava tudo. Porque parece
que esse fiasco será transmitido na TV Fórum. Até fiquei meio de
lado para não aparecer.
"Cada um deve guardar pelo menos 30% do que ganha
quando recebe seu salário."
Não consigo esquecer que ele disse isso! Para mim falta
pelo menos 30% a mais quando recebo meu salário. A gente está
sem reajuste há dez anos. O último, que foi de 3%, parcelaram em
três anos. Guardar o quê? Até moedas do cofrinho da minha
sobrinha Juju eu andei atacando. Para ele é fácil falar.
CAMILE
MARINALVA
CLEVERSON
***
LUÍS
CAMILE
Último sábado do mês é dia de reunião da comissão da
mulher advogada da comarca de São Barnabé. E hoje decidi não
perder! A Daisy, advogada da Dona Amanda veio. Tô louca pra
saber do divórcio do Doutor Floribaldo. Sentei pertinho dela e, entre
uma caipirinha e outra, descobri tudo. Inclusive os detalhes mais
sórdidos.
– Me conta, guria. Estás mesmo defendendo a mulher do
Mussolini?
– Tô, mas não vai ser fácil. Olha, coitada da minha cliente
– Daisy entornou mais um copo – Recebeu o vídeo da bunda?
Vocês viram, gurias?
Todas na mesa rimos. Umas quinze advogadas na
reunião. Entre 22 e 70 anos, calculei eu. E assistimos novamente.
Às gargalhadas!
Depois virei pra Daisy e quis saber mais:
– O que aconteceu? Por que eles saíram no tapa?
– Dona Amanda tem um amante – a colega sussurrou –
depois de anos levando chifre, resolveu ir à desforra. Conheceu um
tal de Júlio César na academia. O cara é mais novo. Saradão,
tatuado e eles se encontram à tarde em um quarto e sala no centro
da cidade.
– Ah, bem feito para o Mussolini! Todo mundo sabe que
ele tem um rolo com uma daquelas estagiárias. A folgada da Alice,
que se acha a "primeira-dama" do gabinete. Já vi os dois juntos à
noite em um bar.
– Todo mundo já viu! E não é só ela, tá? Alunas da
universidade. "Orientandas", servidoras. Uma juíza leiga e até
partes dos processos. O homem é insaciável – Daisy cochichou no
meu ouvido –Na rua, porque em casa, minha filha, ixi. Coitada da
dona Amanda – mas ela pegou muita coisa no WhatsApp. Juntei no
processo. Só que sabe como é, ele "é homem". Ele "pode". E juntou
provas do caso dela com o cara da academia. Aí, pronto. Tudo que
ele fez não pareceu nada perto do único caso que ela teve durante
todo esse tempo.
– E por que ela não largou o Mussolini antes?
– Porque não é fácil, né Camile? Doze anos juntos. Dois
filhos, acostumados com tudo do bom e do melhor. Ela sempre
mudando de cidade com o marido. Não conseguiu se firmar na
carreira de fisioterapeuta em lugar nenhum. Foi levando. Só que o
Dr. Floribaldo andava desconfiado, e não sei como, descobriu tudo.
Claro, não encarou
o tal Júlio César, que tem o dobro do tamanho dele, mas, desceu o
cacete na infeliz. Foi uma baixaria. Vizinhos do primeiro andar
ouviram os gritos. Ela se defendeu como pôde. Deu uns arranhões,
empurrou, mas fraturou o braço esquerdo, ficou cheia de
hematomas no rosto. Um vizinho chamou a polícia. Ele fez um
vídeo, para tentar se resguardar e mandou para algumas pessoas.
Acabou vazando.
– Coitada. Imagino o sufoco.
– Pois é. Agora estão tentando fazer um acordo. Ele não
quer pagar mais que dez por cento de pensão. E o advogado é
irmão dele, me tratou bem mal. Foi bem grosseiro por telefone.
Disse que a pensão está de bom tamanho pelo que ela fez. É mole?
O que as crianças têm com isso?
– Para dois filhos e uma mulher que passou o casamento
inteiro o acompanhando pelo interior, para ele crescer na carreira,
quer dar só isso?
– Pois é. E o pior: ele não abre mão das aplicações, da
cobertura e do carro dele, tá? Ela não dirige e ele ofereceu a casa
da praia, lá no Balneário Quinto dos Infernos. Longe do colégio das
crianças e o plano de saúde, só para os guris. Nem colégio quer
pagar. Dá para acreditar?
– Que monstro! E já deste entrada na ação?
– Ele deu! E já conseguiu liminar. Caiu pra Juliana Louca.
– Imagine se não conseguiria? São amigos. Trabalham
na mesma comarca. Agrava!
– Agravei. Não adiantou nada. Julgaram em tempo
recorde. E dona Amanda foi condenada em custas. Ela está bem
desanimada.
– Que absurdo. Eu tenho agravos aguardando há dois
anos!
MARINALVA
LUÍS
CAMILE
MARINALVA
LUÍS
CAMILE
***
CLEVERSON
CLEVERSON
Baixaram uma portaria dizendo que advogados não
podem mais fazer audiências sem gravata. E está dando um rolo
dos diabos essa merda.
Já não podem entrar de bermuda. No verão chega a
passar de quarenta graus a temperatura. Imagina ter que vir de
gravata!
Só que não cabe a mim questionar. Eu cumpro ordens.
Não pode entrar, não entra e deu. Um tal de Dr. Políbio tinha uma
audiência na criminal e veio sem gravata. Estava um dia quente de
lascar. Tive que barrar a entrada dele:
– O senhor me desculpe, mas não vai poder entrar assim.
– Assim como?
– Sem gravata.
– Tu tá de brincadeira...
– Não tô. Infelizmente, é uma norma. O Dr. Floribaldo
baixou uma portaria. Sou obrigado a pedir que o senhor se retire.
– Meu filho, eu tenho uma audiência. De réu preso. Daqui
a pouco. Por favor, me deixa entrar. O juiz da criminal não vai ligar.
– Doutor, eu sigo ordens. Infelizmente, não posso.
– Me deixa pelo menos usar o banheiro.
– Não posso, doutor.
Ele suspirou. Saiu. Passados dois minutos voltou. Com a
meia em forma de laço, pendurada com um grampo no colarinho.
Tive que deixar entrar. Era uma gravata borboleta. A portaria não
especificava o tipo de gravata e Dr. Políbio, o rábula, encontrou uma
brecha na maldita. Ri muito. Cara, nunca vou esquecer esse dia!
LUÍS
Toca o telefone:
– Secretaria do foro.
– Oi, amor.
– Tiago, já te falei para não ligar para cá.
– Que inferno! Deixa para lá!
Ele desligou. Vou ter problemas de novo. Não aguento
mais essa pressão que ele faz, querendo assumir o relacionamento.
Acho que ele vai terminar.
Toca o telefone de novo:
– O que é?!!!
– Luís?
– Sim? Quem está falando?
– É a Alice, estagiária do Dr. Floribaldo. Está tudo bem?
– Está. Desculpa. Pensei que era um cara de uma
empresa de telemarketing que está ligando a tarde inteira.
Aconteceu alguma coisa?
– Ah tá. Sim. Podes vir aqui um minuto? Aconteceu. Uma
desgraça...
Ai meu Deus, era só o que faltava. Uma "desgraça?" Mais
uma. Subi correndo. Quando cheguei no último andar, todos os
estagiários no corredor, advogados, servidores. Tinha gente
filmando. E um corpo atirado lá embaixo. Alguém se jogou do vão
do prédio. Alguém se matou dentro do fórum! Meu Deus, foi a
Arlete!
Alice se aproximou de mim e disse que o Dr. Floribaldo
estava me chamando no gabinete. Senti um embrulho no estômago.
Uma vontade de chorar. Uma raiva tão grande, mas fui.
Bati na porta. Ele disse "pode entrar". Estava fumando:
– Já viu o corpo?
– Sim. Já vi a Arlete – corrigi. Ele não percebeu:
– A Alice já chamou a ambulância. A perícia também está
vindo. Alguém tem que avisar a mãe dessa solteirona infeliz. Por
enquanto joga alguma coisa em cima para cobrir. Pede para o
Mauro achar uma lona no estacionamento.
– Não existe nenhuma lona no estacionamento.
– Então cubra o corpo com um guarda-sol. Tenho um no
porta-malas.
– O senhor não vai mandar encerrar o expediente?
– Claro que não. Tá maluco? As leigas têm 22 audiências
hoje. São Barnabé não pode parar! Mande o Mauro pegar o guarda-
sol.
Ele entregou a chave do carro. Eu vou pegar a merda do
guarda-sol. Não vou falar que o Mauro só tem um braço. Ele sabe. E
eu vou ligar para Dona Dolores. Coitada da velhinha. Meu senhor,
como vou dizer para mãe da Arlete que ela se matou? Que merda
de vida. Que merda de emprego! Fiquei em silêncio. Ele continuou:
– Ela não estava bem, Luís. Também pudera. Com
aquela idade toda, ainda solteira, feia que era um raio, morando
com a mãe. Sem filhos. Que vida miserável ela tinha.
Foi me subindo um ódio pela garganta. Coitada da Arlete.
Tão inteligente. Tinha mestrado fora do país. Entregando papel
higiênico na porta do banheiro, apesar de ter capacidade para muito
mais. Ele colaborou bastante. Pensei isso, mas, covarde que sou,
falei:
– O psiquiatra tinha dito que ela precisava ficar em um
ambiente silencioso. Ela deveria ter ficado no arquivo.
E continuei pensando: a culpa foi tua, desgraçado! Ai que
vontade de gritar isso! Só que não tive coragem. Que ódio eu sinto
de mim.
– Não teria adiantado. Sabe, Luís, acredito muito no
destino e nos desígnios superiores. Todo mundo morre um dia.
Chegou a vez da Arlete. Não podemos ficar lamentando. Temos que
tomar as providências que nos cabem.
– Bom – ele suspirou – Avise logo a mãe dela. Depois
peça para pessoal da limpeza arrumar tudo. Depois que a perícia
sair, é claro.
– Sim, senhor.
– E depois "bola para a frente." O mundo vai continuar
girando! Faça uma nota de lamento. Cole no mural. E temos que
arrumar alguém para ficar no lugar dela. Precisamos continuar
controlando o uso racional do papel higiênico na comarca.
CAMILE
Toca o telefone:
– Alô.
– Camile, sou eu. A Daisy – ela falou com uma voz bem
rouca.
– O que houve, guria? Que voz é essa?
– Tô mal. Muito ruim mesmo. De cama. Acho que comi
alguma coisa estragada, sei lá. E o pior é que tenho uma conciliação
hoje em São Barnabé. Não podes quebrar esse galho para mim? Tô
me cagando toda, guria. Uma diarreia horrível. Não posso ir para o
fórum assim. Se eu solto um peido me cago em seguida. Tô com
medo de me borrar toda em audiência...
– Tá! Não precisa me contar os detalhes. Estou
almoçando agora. Não tenho nada marcado hoje. Posso ir. Manda
um "subs" e cópia do processo por e-mail que eu vou no teu lugar.
– Se eu não tivesse assim, me desfazendo em merda, eu
iria. Só tem uma coisa. É a conciliação do casal Mussolini.
– Ah, Daisy... não estás inventando isso para te livrar da
audiência, né?
– Claro que não, guria! Imagina! Eu estava louca pra ir!
Dar de dedo na cara daquele boçal. Não tenho medo dele. Tô me
cagando de verdade. Não é de medo não.
– Sei.
– Por favor, amiga. Não tenho para quem pedir. E não vai
ter acordo mesmo. Ele é o autor, já perdemos o agravo. Oh, a gente
mantém a proposta. Na verdade, a Dona Amanda até está disposta
a ceder mais. Se ele assumir o colégio dos meninos, o plano de
saúde e deixar ela ficar com a cobertura, ela aceita quinze por cento
de pensão e ele fica com todo o resto.
– Nossa. Coitada. Ela está trabalhando?
– Está. Conseguiu um emprego. E está doida para se
livrar da situação. Sabe que não vai conseguir uma pensão boa. A
chance dela é conseguir metade dos bens, mas laaaaaá na frente.
Aqui no estado vai ser impossível. Na comarca mesmo, ui! Até
parece, né? Só que ele não tem interesse em dividir os bens. Se ela
ficar só com a cobertura, ele sai com muito mais. E cá entre nós, ele
tem muita coisa...
CLEVERSON
***
LUÍS
Toca o telefone:
– Alô.
– Aqui é da DP. Prendemos um cliente seu que está
devendo alimentos. Estamos ligando para saber se a senhora quer
vir aqui acertar a dívida, ou se a gente manda para o presídio.
– Oi? Que cliente? Como assim?
– O João Arrombado. A gente pegou uma cópia de um
processo de execução que o Dr. Bigodão mandou para nós e
chamou ele aqui. Ele veio e tá preso – falou a policial.
– Vocês prenderam um cliente meu com um xerox de um
processo? Sem ordem judicial?
– Sim. E daí?
– E daí que isso não existe. Tô indo no fórum agora! Vou
representar esse delegado na corregedoria da polícia e ele vai ver
com quantos paus se faz uma canoa!
Desliguei. Fui ao fórum. A chefe de cartório da vara de
família me atendeu. Descobri que não existia ordem de prisão. O Dr.
Bigodão mandou uma cópia do processo de execução para a
delegacia, por conta dele e o delegado prendeu o João Arrombado.
Sem o trâmite de intimar para pagar em três dias. Sem nada. Pedi
para falar com a juíza. Só que o delegado também estava lá e pediu
antes.
Ele e o Dr. Bigodão saíram do gabinete. Dr. Bigodão
conseguiu um mandado de prisão com a Juliana Louca. Olhou bem
para minha cara e deu uma gargalhada:
– Agora representa o delegado, Camile! Representa que
eu quero ver!
Tive que engolir aquilo. E a mulher do João Arrombado
me ligou no dia seguinte:
– Ele é pai dos meus filhos. Não quero que ele fique
preso. Por favor, dá um jeito de soltar o João.
Ah, que vontade de mandar ela pedir isso para o
Bigodão, mas me contive. Fechei um acordo em que o João
Arrombado daria seu único bem, uma televisão velha de 32
polegadas. E ele foi solto.
Depois disso desisti também da defensoria dativa.
LUÍS
Toca o telefone:
– Secretaria do foro.
– Luís? É o doutor Floribaldo. Sobe aqui, que preciso
falar contigo.
Dr. Floribaldo, O Invejoso, por acaso meu cunhado, se
autodenomina doutor e está me chamando. Que pesadelo! Já me
deu um embrulho no estômago. Agora cada vez que ele me liga eu
me sinto pior. Será que ele descobriu?
Subi. Dei uma batidinha na porta:
– Com licença.
– Entra – ele falou enquanto mexia no jornal – Fiquei
sabendo hoje. Nossa, eu tô horrorizado.
Meu senhor, ele descobriu. Fiquei pálido:
– Sabendo do que, doutor?
– Como o quê? A novidade! Até saiu no jornal, Luís! Olha
isso!
Saiu no jornal? Como assim? Peguei o jornal. Tinha uma
notinha: “Miguel Mandrião, juiz titular da vara Cível da Comarca de
São Barnabé é premiado como juiz que mais sentencia no país. ”
Senti um alívio. Então é isso. Ele está com inveja do
colega. Não descobriu que eu estou namorando o irmão dele
(ainda). Ufa! Por um momento pensei que tinha saído uma foto
minha beijando o Rô na coluna do Maumau!
– Ah, sim. Já tinha visto. Que bom! Ele está bem feliz, me
disseram.
– Bom? Como bom? Aquele malandro ganhar um prêmio
desses? E eu que criei a operação Crtl C Crt V, que sou o diretor de
foro que mais economiza papel higiênico no estado, ganhar uma
representação na Corregedoria? Isso é muito injusto!
– É que ele sentenciou, doutor. Ele sentenciou mais
processos que todos os juízes do país. Acho que foi por isso que
premiaram...
– Sentenciou porra nenhuma! Os estagiários dele é que
fazem aquelas sentenças de merda! Ele só assina! Todo mundo
sabe que ele só assina! Que ódio! Capaz dele chegar no TJ antes
de mim!
***
MARINALVA
***
CLEVERSON
CAMILE
Ela riu:
– Tem certeza?
– Sim e conta mais. Quem é a estagiária?
– Sim. Guria de sorte. Não sei o nome. Ah, mas eu queria
o lugar dela, viu? Ah, mas eu não pensaria nem duas vezes...
***
MARINALVA
Depois de mais uma noite em claro no sofá-cama da
Cida, arrumei minhas coisas e aluguei um quarto em uma pensão.
Liguei para Camile. Ela topou fazer minha defesa e parcelar em 15
vezes. Que vergonha.
E meu amante não me ligou o final de semana inteiro.
Não se importou com o fato de eu estar na rua. De ter perdido a
guarda do meu filho. Não se importou comigo.
Segunda-feira fui trabalhar no horário de sempre. A
Socorro estava lá, destilando seu veneno. Já sabia do que
aconteceu. O Fórum inteiro já estava sabendo. Caí na boca do
povo. Deve ter sido alguém do Fórum de Cafuá que espalhou.
Meti a cara nos alvarás e comecei a tramar minha
vingança. Primeira coisa que decidi fazer foi ficar com aquela grana
das vendas de sentenças para mim. Eu sabia onde estava
escondida. E dali, primeiro tirar dinheiro para comprar um iPhone,
porque com uma boa câmera, daria de filmar a gente no gabinete.
Fazendo sexo, mas, de um jeito que o rosto dele aparecesse e não
do jeito que sei que a maldita Socorro fez.
Comprei o bendito na internet. Busquei na hora do
almoço. Nunca fiz um intervalo tão longo. Ah, mas eu estava louca
que ele reclamasse que demorei!
Não reclamou. Não falou comigo a semana toda. Na
sexta-feira, quando achou que a poeira tinha baixado, desceu do
pedestal, no fim da tarde e, quando todos foram embora, veio falar
comigo:
– E aí, Marinalva? Como é que tu estás?
Não tirei os olhos da tela do computador:
– Indo.
– Eu soube do teu divórcio.
Claro que soube! Pois eu estive na casa dele. Deixei
recado no celular, pedi ajuda! Fiquei em silêncio.
– Não te atendi aquele dia porque estava acompanhado.
Nós somos adultos. Tu sabes que eu estou namorando e que o que
houve entre nós foi consensual e bom para os dois, certo?
Ele está me dispensando! Meu senhor! Ele está me
dispensando no pior momento da minha vida! Ai que vontade de
chorar...
– Doutor Floribaldo, eu nunca cobrei nada do senhor...
– Eu sei. Só quero deixar tudo bem claro. Caso não
tenhas entendido. Isso não é um relacionamento. E nunca vai ser,
Marinalva.
Nunca me senti tão rebaixada, mas, discretamente,
saquei o celular da bolsa, liguei a filmadora e coloquei em posição
estratégica. Eu começaria a me humilhar em breve. Ele ficaria
excitado e eu precisava filmar tudo para ter meu seguro. Então eu
disse:
– Por quê? Não me abandone. Não quero nada. Não
quero compromisso nenhum. Assim do jeito que está me basta.
Ele trancou a porta e me mandou tirar a roupa. Eu me
posicionei em frente ao celular. O cretino não percebeu.
CLEVERSON
LUÍS
***
O caminho era lindo. Ele foi por uma estrada velha e não
pela rodovia. Vimos muitas casas em estilo germânico, daquelas
com sótão e porão. E paramos para tomar um café.
Passadas duas horas já dava de avistar o vale. E uma
casa amarela, com floreiras nas janelas chamou muito a minha
atenção. Era uma graça como as outras, mas tinha uma piscina. E,
no fundo, dava de ver uma cruz suástica. Resolvi comentar:
– Puta que pariu, Rosângelo! Tem um nazista morando
na cidade! Olha aquilo, uma cruz suástica no fundo da piscina
naquela casa, que horror! – Dei uma gargalhada e ele não riu. Não
disse nada. Fechou a cara e eu tive um mau pressentimento.
– Conheces os donos daquela casa?
– Aquela é a casa dos meus pais, Luís.
– Caralho! Volta, volta que eu não vou para lá! Não quero
conhecer essa gente mais! – Olhei para ele. Rô estava com os olhos
cheios de lágrimas. Parou o carro no acostamento.
– Tá, eu volto, mas, se fizeres essa desfeita com a minha
mãe, juro que acabou. Ela está a manhã inteira na cozinha, fazendo
coisas para esperar a gente.
Eu não sabia o que dizer. Estou tão apaixonado, mas,
entrar para uma família de nazistas, realmente não está nos meus
planos:
– Rô, eles não vão gostar de mim. Estou pressentindo
que esse almoço vai ser um desastre.
– Não vão gostar por quê? Tu és um cara bacana, tens
um emprego decente...
– Porque eles são nazistas! Eles têm uma cruz suástica
no fundo da piscina! Eu sou um mestiço, bananalandense! Mistura
de tudo quanto é raça! Um avô meu é judeu, que veio para cá fugido
do holocausto e casou com uma portuguesa, misturada com índio.
O outro é mulato e a minha vó italiana. Eles vão me odiar, acorda!
– Luís, só o meu pai é nazista...
– Corta essa! Tua mãe também é. Se não fosse, não
viveria em uma casa que tem uma porcaria de piscina dessas. Teus
irmãos também são. Eu conheço os teus irmãos. No gabinete do
Dou... o Floribaldo tem a biografia de Adolf Hitler... e tu? Fala a
verdade. Tu acreditas nessa palhaçada de superioridade da raça
ariana?
Bom. Não sei no que deu isso. Ouvi dizer que, por afetar
escritórios grandes e outras comarcas, parece que conseguiram
mesmo acabar com essa exigência, mas, sou só o guardinha.
LUÍS
CAMILE
"Sra. advogadazinha.
Segue a resposta. Por favor, acuse recebimento.
Fulano de Tal
Servidor"
***
MARINALVA