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O MOÇO QUE CASOU COM MULHER BRABA

Segundo o "exemplo' XXXV de "El Conde Lucanor",


terminado em 1335 por Don Juan Manuel (1282-1349?).
Desse exemplo ou conto é que teria saÍdo a trama de "A
megera domada" de Shakespeare. O texto medieval. foi
atualizado por Alejandro Casona (1903).

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CENA 1

MÃE DO MOÇO: Meu filho, deves pensar bem antes que eu peça a mão dessa
moça. Ela é muito mais rica do que nós e de linhagem mais alta, e é mau que a mulher
seja superior em posição e fortuna ao marido.

MOÇO: Sem dúvida. Mas, pense também, mãe, que sendo a senhora pobre, nada
tem para me dar com que eu possa viver com distinção. Sendo assim, se não me trata o
casamento que lhe peço, serei obrigado a uma vida pobre ou a partir em busca de
melhor sorte.

MÃE DO MOÇO: Muito me admira o teu intento e a tua ousadia. Vocês dois são
em tudo diferentes, tu pobre e ela rica. Possui mais terras do que poderias percorrer a
cavalo durante todo um dia, ainda que indo a trote.

MOÇO: Não se impressione por isso: se ela tem dinheiro, eu o aumentarei com
o meu esforço. E se suas terras são tantas que não se podem percorrer a cavalo durante
todo um dia ainda que indo a trote, eu as percorrerei a galope.

MÃE DO MOÇO: E há mais: o que tens de boas maneiras, essa moça tem de más.

MOÇO: Disso eu me encarrego, não há mula manhosa para bom cavaleiro.


Saberei manter-lhe a rédea curta desde o início.

MÃE DO MOÇO: Olha, meu filho, que o pai dela nunca pôde dominá-la. Tem um
tal gênio esta condenada que não existe, além de ti, homem no mundo que queria se
casar com semelhante diabo.

MOÇO: Não se preocupe, mãe. A moça é braba, mas mesmo braba me agrada. E
se o pai dela consentir, sei como se passarão as coisas na minha casa desde o primeiro
dia. Acredite sem medo.

MÃE DO MOÇO: Já que queres, seja. Depois não vás dizer que não te adverti em
tempo. Vamos pedir a mão da moça e praza aos céus que a recusem.

CENA 2

PAI DA MOÇA: Que prazer em vê-los vizinhos. A que devo a visita?

MÃE DO MOÇO: A um pedido, vizinho, que viemos lhe fazer a este meu filho

PAI DA MOÇA: Fale

MÃE DO MOÇO: O senhor, meu amigo, tem uma filha só..

PAI DA MOÇA: Uma só, certo, mas que me pesa como se fossem duzentas

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MÃE DO MOÇO: E eu tenho só este filho. Hoje venho lhe pedir, se assim for do
seu agrado, que unamos nossos filhos.

PAI DA MOÇA: Como? Ousam vir me falar em casamento?

MÃE DO MOÇO: Já fiz notar ao meu filho a diferença entre a sua riqueza e a
nossa humildade. Mas ele se empenha..

PAI DA MOÇA: Este rapaz quer casar com a minha filha? Meus ouvidos não me
enganam?

MOÇO: É isso que lhe pedimos; se estiver de acordo.

PAI DA MOÇA: Se estou de acordo! Deus te abençoe, menino, que peso vens me
tirar de cima!

MÃE DO MOÇO: Então...nos dá a mão da moça?

PAI DA MOÇA: Há muito que é adulta e nunca soube de nenhum homem que
quisesse se casar com ela e levá-la da minha casa. Mas, por Deus, seria um falso, se antes
não os advertisse do que é preciso numa hora dessas. Somos amigos, a

senhora tem um filho muito bom e seria uma maldade permitir a sua desgraça. Deve
saber bem que a minha filha é dura e

braba como uma megera. E se o rapaz chega a casar com ela, vai preferir estar morto a
viver.

MÃE DO MOÇO: Estamos a par, senhor, mas não tenha disso receio, que o
casamento é do gosto dele. O rapaz sabe bem quem ela é e mesmo assim a quer.

PAI DA MOÇA: Então não se fala mais nisso. Dou-a de bom grado para ti, meu
filho. E que os céus te façam tirar proveito nesse negócio. (BARULHOS) Não se
espantem: é minha filha que está discutindo amigavelmente com a mãe (GRITOS). Ô
menina! Senhora! Venham aqui que há grandes novidades

MÃE DA MOÇA: Solta, te digo, solta!

MOÇA: Só em trapos e com as minhas unhas junto! É meu, meu, meu!

PAI DA MOÇA: Mas o que é isto, senhora? Filha indomável! Apresentam-se


assim? Não vêem que temos visitas?

MOÇA: (encarando-os, atrevida) Que visitas? Por que vamos nos importar com
elas?

PAI DA MOÇA: Este rapaz, minha filha, é o teu marido

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MOÇA: Meu marido? Isto?.... (ele a saúda e ela ri.) Obrigado pelo presente. Não
encontraste para mim algo melhor na feira, pai

MÃE DA MOÇA: Me espantaria, marido, se fizesses alguma coisa com a cabeça.


Será que a nossa filha tem de casar com o pior maltrapilho da vila?

PAI DA MOÇA: Cale-se de uma vez, senhora, e não replique mais. É a minha
vontade e está decidido. O casamento será amanhã.

MÃE DA MOÇA: (furiosa) A sua vontade, a sua vontade! E que vontade é a sua,
molóide? Ai, minha filha, minha pobre filha!

CENA 3

Casamento – cena muda/ pantomima

PAI DA MOÇA: Está casada, minha filha. Agora ouça um conselho: obedeça e
sirva seu marido, pois há mais sossego em obedecer do que em mandar.

MÃE DA MOÇA: (tomando a Moça da mão e levando-a para o outro lado) – Está
casada, minha filha. Agora ouça um conselho: não se deixe levar nem com bons modos
nem com maus; quem lambe a mão do outro, acaba sendo surrado.

CENA 4

MOÇO: Repara, mulher, como não cumpriram conosco o costume da terra de


preparar uma ceia para os noivos em que não falte nada.

MOÇA: Por quê? Não está tudo ai?

MOÇO: Não vejo onde puseram a bacia para lavar as mãos.

MOÇA: Lavar as mãos! Agora me sai com essa! Coma quietinho, que deve estar
bem acostumado na sua casa a comer sem se lavar

MOÇO: Não mesmo, sempre fui pobre, mas limpinho. Quero me lavar. ( Espera.
Ao ver que ela não atende, bate com a mão na mesa alçando a voz) . Quero me lavar!
(Olha irritado em torno) Eh tu, seu cachorro, me traz água para as mãos! (outra pausa
esperando) Como! Não ouviste, cão traidor, que mandei buscar água pras mãos? Ah,
não dizes nada e não obedeces? Aguarda e verás!

(Sai furioso e entre as cortinas ouve-se uivos do cachorro espantado)

MOÇA: Mas o que fizeste, marido? Mataste o cachorro? Olhem que fúria de
homem!

MOÇO: Mandei ele trazer água e não me obedeceu. Eh, tu, seu gato, me traz
água pras mãos.

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MOÇA: Marido, falas com o gato?

MOÇO: Como, seu falso traidor! Tu também não me dizes nada? Não viste o que
aconteceu ao cachorro por não me obedecer? Te juro que, se me desafias, te faço o
mesmo que fiz ao cachorro. Me traz água pras mãos agora mesmo!

MOÇA: Mas, marido, como queres que o gato saiba o que é água pras mãos?

MOÇO: O que, ainda não te mexeste? Ah, gato traidor...Espera, espera tu


também! (mata o gato)

MOÇA: Ah, o meu gato, meu pobre gato querido!

MOÇO: E agora, você, seu cavalo. Me traz água pras mäos!

MOÇA: Isso não! Contenha-se, marido, que cachoro e gatos há muitos, mas
cavalo não tem outro senão este!

MOÇO: E daí, mulher? Pensa que por não ter outro cavalo, este estará livre de
mim se não me atende? Ele que não me aboreça, pois juro por Deus que darei morte
tão rapida como aos outros! E não há coisa viva nesta casa a que não faça o mesmo! Eh,
ouviste, seu cavalo? Me traz água pras maos!

MOÇA: Almas do purgatório, está louco!

MOÇO: O quê? Nao te mexes? Pois toma tu também (mata o cavalo com um tiro)

MOÇA: Deus nos salve marido! O cavalo está morto!

MOÇO: Claro. Hei de mandar eu uma coisa para não ser obedecido na minha
casa? Mulher...me traz água pras mäos

MOÇA: Água já, já! Por que não me pediu antes, marido? A água, aqui está a
água. Deixe, não se incomode: eu mesma lavarei as suas mãos

MOÇO: Está bem. Me sirva agora a ceia.

MOÇA: Sim, sim, sim...a ceia...imediatamente. O que mandes, senhor. Aqui está
a ceia

MOÇO: Ah, agradeço ao céu que tenhas feito em tempo o que eu mandei. Se
não. com o dissabor que tinha, faria com você o mesmo que fiz com o cavalo

MOÇA: Mas como não haveria de lhe obedecer, marido? Eu sei bem que não há
jóia que sente melhor a uma mulher do que servir a honrar o dono de sua casa Mande
eu fazer tudo o que deseje, que juro que..

MOÇO: Cale-se!

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MOÇA: Sim, sim, sim, perdão

MOÇO: A ceia está ruim.

MOÇA: Sim, sim, sim, está ruim.

MOÇO: Que isso não aconteça outra vez

MOÇA: Não, não, não, não acontecerá. Eu mesma vou prepará-la

MOÇO: Agora vou para a cama

MOÇA: Sim, sim, sim.

MOÇO: Cuide pra que ninguém me incomode ou faça barulho, que com a
alteração que tive esta noite não sei se poderei dormir. Esta cadeira!

MOÇA: Sim, sim, sim, a cadeira

MOÇO: Me ilumine o caminho.

MOÇA: Sim, sim, sim:

MOÇO: E silêncio!

MOÇA: Silêncio

Acompanha-o até a porta do quarto, cedendo-lhe a frente com uma reverência.


O Moço sai. Escuta-se lá fora a canção nupcial. A Moça se mostra aterrada e impõe
aterrada e impõe silêncio em todas as direções.

MOÇA: Eh, loucos, o que fazem? Calem-se, não perturbem o meu marido; senão
todos seremos mortos esta noite!

A música vai se apagando ao longe. Ela impõe silêncio ao público, andando na


ponta dos pés.

MOÇA: Silêncio! Todos em silêncio, por Deus...

A cena fica escura.

CENA 5

PAI DA MOÇA: Nada...Tanto silêncio...acho isso perigoso. O que terá ocorrido


aqui. Meu genro!.Meu genro.!... Oh, que tal?

MOÇO: Já está mansa a megera.

PAI DA MOÇA: Impossível! Mansa, a minha filha?

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MOÇO: Como uma ovelhinha

PAI DA MOÇA: Que maravilha! Como fizeste para conseguir esse milagre?

MOÇO: Puxando forte a rédea desde o início. Mandei que o cachorro me


trouxesse água e, como não trouxe, o matei a facadas diante dela. Fiz logo o mesmo
com o gato e depois com o cavalo. De modo que quando mandei que ela me trouxesse
água, voou com medo de sofrer a mesma sorte. E Ihe juro que, de hoje em diante, a sua
filha vai ser a mulher mais bem mandada do mundo e levaremos juntos uma vida muito
boa.

PAI DA MOÇA: Diabo, diabo, rapaz...e que grande idéia estás me dando. Se eu
pudesse fazer o mesmo com a mãe...que também é das boas.

MOÇO: Não sei o que lhe dizer, meu sogro, mas quase nunca as repetições dão
certo. Lembre-se daqueles versos do "Conde Lucanor": "Sê firme desde o inicio com as
mulheres, senão não poderás, quando quiseres." Siêncio, aí vem sua mulher.

PAI DA MOÇA: Rapaz, por favor, me deixe esta espada!

MOÇO: Tome, e que o céu lhe ajude. Adeus, meu sogro

CENA 6

MÃE DA MOÇA: Que fazes aí, marido, tão cedo e com uma espada
desembainhada?

PAI DA MOÇA: E quem Você para me perguntas alguma coisa, senhora?

MÃE DA MOÇA: Como! Quem sou eu, dizes?

PAI DA MOÇA: Fale só quando lhe mandem e cuidado para não me aborrecer.

MÃE DA MOÇA: Puxa, marido, então é assim?

PAI DA MOÇA: Antes de dizer outras palavras, olhe bem o que vou fazer. Eh tu,
seu galo, me traz água pra mãos!

MÃE DA MOÇA: Mas o que fazes, maluco, estás falando com o galo?

PAI DA MOÇA: Silêncio, e preste atenção ao que vai se passar aqui. Eh, galo
traidor, não ouviste para me trazer água pras mãos? Não obedeces com bons modos?
Espera, espera!

MÃE DA MOÇA: Será possível? .. Há briga à vista! (mata o galo)

PAI DA MOÇA: Vê o que sucedeu a este galo maldito porque não me obedeceu?

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MÃE DA MOÇA: Sim, entendi muito bem. Mas despertaste tarde, marido. Devias
ter começado por aí há trinta anos. Agora nos conhecemos bem demais e comigo de
nada te adiantaria, ainda que matasses cem cavalos. Vai pra dentro, molóide! Anda,
anda!

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