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Capítulo 1

Trovejava, algo normal na Valáquia, mas nessa noite os trovões


estavam ainda mais insistentes, quase ensurdecedores. O que mais assustava
era o fato que não vinham acompanhados de chuva, nem uma gota de água,
apenas o barulho e o clarear do céu com relâmpagos. Estava em minha cama,
as cobertas puxadas até o pescoço quando escuto o abrir da porta e dou um
leve sobressalto.

- Tudo bem, Victorique? - era a voz da minha mãe que entrava com um
sorriso carinhoso no rosto, seus cabelos castanhos estavam soltos com os
cachos caindo até a cintura.

- Sim, apenas não gosto de trovões, são barulhentos - tentava soar confiante -
mas não estou com medo.

- Claro que não, você é a garota mais durona dessa casa.


Eu era a única garota da casa, além de mim, minha mãe teve apenas
meninos. Theodore o mais novo, com quatro anos e Luther com quinze, eu era
a do meio com nove.

- Tente dormir, quando você acordar tudo já terá passado e seu pai e irmãos
estarão de volta - ela se aproximava da cama me dando um beijo na testa,
eu podia sentir nela o cheiro de ervas frescas, manjericão e rosemary, ela
amava cozinhar então o cheiro dos temperos ja haviam ficado presos nela e
era o cheiro mais reconfortante do mundo.
Eu fazia o que ela mandava, fechava os meus olhos e tentava pegar no
sono mas era impossível com aquele barulho, até que um som ainda pior
veio… Gritos. Eram os gritos de minha mãe. Levanto correndo em direção ao
seu quarto mas não precisei ir tão longe, no corredor meus pés ja podiam sentir
um liquido viscoso, vermelho e pouco mais a frente estava minha mãe, com
seus olhos pretos ainda abertos me encarando, sua boca, ela tentava dizer
algo mas não tinha mais forças, em cima dela estava um monstro, pior do que
qualquer um das histórias que meu irmão contava para tentar me assustar. Ele
parecia uma gárgula das igrejas vitorianas. O monstro possuia asas, chifres e
suas orelhas eram pontudas, suas garras estavam segurando o rosto de minha
mãe enquanto suas presas cravavam em seu pescoço, o sangue fluia.
Naquele momento tudo ficou silencioso, não haviam mais trovões, o
mais puro silêncio havia se instaurado enquanto aquilo se alimentava de minha
preciosa mãe.

- SOLTE-A - grito a plenos pulmões, mas sinto algo me chacoalhando, sinto


minha mãe ficando mais distante, sinto minhas pernas derretendo até que
acordo.
Os olhos de Theodore estão nos meus, ele parecia a ponto de chorar.
— O mesmo pesadelo? - Theo pergunta enquanto faz carinho na minha mão,
seus olhos são exatamente iguais ao da minha mãe, exatamente iguais aos
olhos que estavam me encarando um minuto atrás. Dez anos haviam se
passado e eu seguia com o mesmo pesadelo, antes vinha com mais frequência
mas ainda me atormenta pelo menos uma vez na semana. Apenas balanço
minha cabeça afirmativamente para ele. - O papai já foi trabalhar com o Luther,
fiz o café da manhã. Hoje você parecia mais agitada do que o normal durante o
sonho... Fiquei preocupado.
Theodore era o menino mais doce que eu já havia conhecido, ele tem
poucas lembranças da mamãe mas herdou todas as suas qualidades, inclusive
a habilidade na cozinha. No início nosso pai não aceitava bem a predileção a
cozinha as espadas mas com o tempo ele começou a ficar grato já que eu me
provei um verdadeiro desastre com as panelas e quase literalmente coloquei
fogo em nossa casa.
Para compensar minha falta de habilidade culinária acabei por me tornar
melhor com espadas e armas do do que meu próprio pai, não que isso lhe
encha de orgulho já que sempre questiona que homem nobre irá querer casar-
se com uma mulher que empunha a espada melhor ele. Não que ele esteja
errado em suas preocupações, mas não me importo de morrer solteira se eu
souber me nos proteger caso um dia aquele ou qualquer outro monstro resolva
entrar em nossa casa.
Na noite da morte de minha mãe, meu pai e irmãos estavam em viagem,
haviam ido comprar especiarias na cidade vizinha para um baile idiota que
acabou por ser cancelado depois da tragédia. Quando chegaram na manhã
seguinte eu ainda a segurava em meus braços, não sabia quantas horas
haviam se passado, mal sabia meu próprio nome e quando lhes contei o que vi
acreditaram que era o choque da situação. No final, oficialmente, ela foi morta
por um lobo.
— Então, vamos? - meu irmão tira-me dos devaneios.
— Sim - finalmente verbalizo algo - O que preparou hoje?
— Não fiz muita coisa - Theo diz enquanto o sigo em direção a cozinha, na
mesa haviam pães frescos, manteiga, geleias, suco e café, tudo produzido por
ele, como sempre.
Me sento já pegando um grande pedaço de pão. Temos uma
governanta, mas nossa mãe sempre foi de preparar todas as nossas refeições,
ela gostava de cuidar da cozinha e hoje o Theo faz o mesmo.
— Papai saiu apressado, como sempre, e Luther foi visitar a noiva.
Nosso pai vivia dizendo que estávamos mal acostumados, que com
nossa idade ele já estava casado e com filhos enquanto ainda vivemos
embaixo do teto dele, mas claro, são brincadeiras. Athos, ama ter os filhos
embaixo da asa. Aquele velho resmungão morre de medo de terminar sozinho.
Depois que nossa mãe se foi ele nunca teve outra mulher, mesmo com nossa
insistência para casar-se novamente e com as várias viúvas que tentavam cair
em sua graça, nenhuma nunca o interessou.
Meu irmão, Luther, depois de muito enrolar a pobre da Molly, decidiu
oficializar a união. Molly é uma de minhas poucas amigas, chegou da América
ainda muito nova e nossos pais logo se tornaram próximos, ela é daquele tipo
quieta e calma, meu oposto, mas combina com Luther.
Estou feliz por eles porém nem um pouco animada para todas as festas
e muito menos para todos os vestidos chiques que terei que usar. Meu pai
tinha que ser logo o maior vendedor de tecidos da cidade? Graças a isso, todos
esperam que eu esteja impecável. Somos uma das famílias bem estabelecidas
da Valáquia, todos tem um grande carinho por nós além de que depois do
acontecido recebíamos muitas visitas, principalmente das amigas de mamãe
que vinham checar se precisávamos de algo.
Agora não se fala de outra coisa a não ser o casamento de meu irmão,
esse é o grande evento da temporada. As jovens solteiras estão sedentas para
encontrar um par de bom status sociais e os homens não veem a hora de
encherem a cara sem serem julgados por isso.
— Como vai os preparativos do banquete da primeira festa? - meu pai não
aceitou que o casamento fosse completamente pago por Gilbert, pai de Molly, e
como não entraram em um acordo sobre isso decidiu-se que seriam feitas duas
festas, cada uma paga por uma família. Um pesadelo.
Vejo Theodore se animar com a pergunta.
— Tudo vai muito bem, ainda não acredito que o papai me deixou cuidar disso
junto do chef Antoine. Estou aprendendo várias técnicas que eu desconhecia, o
chef é muito paciente e parece gostar da minha companhia.
— Claro que gosta, que não gostaria? - sorrio para ele ainda um pouco
atordoada pelo pesadelo – Se tem algo que me anima é saber que comerei boa
comida nessas festas.
— O pai pediu para te relembrar, você precisa passar na loja, a senhora
Lucrécia vai fazer sua última prova do vestido.
Reviro os olhos, o que faz Theo gargalhar e cuspir um pouco do suco
que havia acabado de colocar na boca.
— Vamos lá, Vic, só são duas noites.
— Você sabe que Athos vai tentar me arrumar um marido, não sabe? - ele me
da um sorriso amarelo - Não é que eu não queira me casar, Theo. Mas todos
os homens vão querer me mudar, vão querer que eu cozinhe, lave, passe,
tenha filhos para cuidar e eu não quero isso…
— O papai não irá obrigá-la a casar, você sabe disso - eu sabia mas não podia
evitar ficar ansiosa. Não quero ser apresentada a vários homens com quem eu
não tenho pretensão alguma de ter algo.
Termino meu café e me arrumo para enfrentar as agulhas da senhora
Lucrécia. Visto minhas calças e bota de montaria, nossa casa ficava um pouco
afastada do centro e mais próxima do castelo do rei. Vivemos em uma pequena
fazenda, com produção própria de algumas frutas, verduras e legumes.
Também criamos galinhas, cavalos e um pequeno rebanho.
Saio de casa levando minha espada, ela está começando a perder o fio
e preciso cuidar logo disso, aproveitarei a ida a cidade para resolver o assunto.
No estábulo encontro Frye, minha égua, já selada e pronta para partirmos.
Quando adentramos a floresta e sinto o vento em meu rosto, tudo finalmente
parece certo. Essa é a minha sensação favorita, o cheiro de terra, o vento
fresco, a liberdade, e eu não quero perder isso por nada, nem por um marido.
Levo cerca de quinze minutos até que estou na frente da loja, o
movimento está intenso, todas as mulheres da cidade comprando tecidos e
fitas para a festa. Assim que entro a senhora Lucrécia me avista e logo me dá
seu olhar de reprovação, ela já devia ter uns setenta anos, seus cabelos ha
muito eram brancos e ela os prendia em um coque bem trabalhado que
provavelmente demandava bastante de seu tempo, vestia-se impecavelmente,
o que esperava-se da costureira da loja de tecidos.

- Senhorita Victorique Elizabeth Mihnea, não pode nunca aparecer aqui como
uma moça respeitável?
Eu já estava mais do que acostumada com suas alfinetadas, então
apenas abro um sorriso.

- Bom dia para você também, Lucrécia - omito o “senhora” de propósito.

- Senhora Lucrécia para você mocinha, sei que Athos lhe ensinou a respeitar
os mais velhos, apesar de tê-la criado como um menino. Olhe essas calças,
que horror, e essa blusa caindo aos pedaços? Tem certeza que seu pai é o
dono dessa loja? Como pode andar assim? Você é a pior propaganda do
seu próprio negócio.

- Vim a cavalo, como gostaria que eu estivesse? - digo enquanto ela me


empurra para sua salinha privada

- Com um vestido, sei muito bem que vocês tem uma carruagem e um
cocheiro para conduzi-la. Um dia isso aqui será seu e de seus irmãos, você
tem que passar uma boa imagem.
Dou um suspiro alto e nada mais digo, seria inútil.

- Vá tirando essa roupa - ela me comanda enquanto vai em busca do vestido,


linha e agulhas. Rapidamente retiro minha roupa, que de fato estava velha e
feia, e aguardo-a voltar. Quando retorna está segurando um dos vestidos
mais lindos que já havia visto em minha vida. Eu tinha pedido que a cor
fosse verde musgo, queria me lembrar da floresta, e assim ele era, com
brilhos que pareciam estrelas. Eu havia apenas tirado as primeiras medidas,
essa era a primeira vez que eu de fato via a peça.
- Está lindo, não é? - a mulher sorria satisfeita. Eu sabia que não estava
conseguindo esconder a surpresa com a beleza da peça - Você só não
estará mais bela do que a noiva - ela me da um sorriso maternal. A senhora
Lucrécia me viu nascer, viu todos nós nascer, e tem um carinho especial por
nossa família mesmo sendo ranzinza.

- Está perfeito – admito, não consigo dizer muita coisa, de fato estou
emocionada, nunca tive um traje tão belo.
Começo a vestir o vestido e vejo que fica ainda mais lindo no corpo,
suas mangas longas formavam um V e ao redor do pescoço havia pele para
me esquentar a noite.

- O caimento está divino - ela me analisa - Não parece que precisaremos de


ajustes. Victorique, sua mãe estaria orgulhosa da menina forte que você se
tornou. - sou pega de surpresa com a declaração repentina e não contenho
as lágrimas. - Minha menina, não quis fazê-la chorar…

- Tudo bem, senhora Lucrécia. Apenas… Sonhei com ela, com a noite em que
ela morreu - digo enxugando as lágrimas que ainda caem.

- Athos me disse que você tem esses sonhos… Victorique, foi uma tragédia
mas foi um lobo faminto e assustado, pare de acreditar que algum monstro
estava rondando a sua casa, criança. Você terá paz de espírito quando
aceitar que seu trauma a fez ver coisas que não existem.
Eu queria discutir com Lucrécia, queria dizer-lhe que sei bem o que vi
mas seria apenas um gasto desnecessário de energia, dez anos se passaram,
dez anos sendo desacreditada. Finalizo a prova do vestido e parto em direção
ao ferreiro da cidade. Assim que paro com Frye já sinto o bafo quente vindo do
local.
— Humberto?
Logo o vejo saindo de dentro da forja.
— Senhorita Victorique, bom dia, o que deseja? - pergunta enquanto limpa as
mãos sujas de ferrugem no avental já escurecido de sujeira.
— Minha espada está começando a perder o fio, gostaria que fizesse uma
restauração - digo enquanto retiro da bainha e lhe entrego.
— Há quantos anos você tem essa espada, Victorique? - ele analisava a arma
virando de um lado para o outro, checando o cabo e todos os seus detalhes.
— Desde os dez anos, quando meu tio me presenteou.
Guilhermo, meu tio favorito, foi o único que nunca insistiu que havia sido
um lobo, também nunca disse acreditar em mim mas me entregou uma
espada. Lembro de suas exatas palavras.
“Monstro ou lobo, com isso você poderá defender a sua família e a si
mesma”
Papai ficou louco quando soube do presente.
- Uma espada Guilhermo? Ela tem apenas dez anos e é uma garota, minha
filha não vai estar lidando com espadas – eu o ouvia gritar do meu quarto.

- O que ela vai fazer se um lobo atacar novamente? Deitar e morrer? Sei que
você não quer perder mais ninguém, Athos. Você vive viajando, deixará de
fazer suas viagens? Como você irá buscar novos tecidos para a loja? Deixe
que a menina aprenda a agir sozinha, você sabe o mundo perigoso em que
vivemos. Você sabe. - ele parecia dar ênfase nessa palavra e isso nunca
saiu da minha cabeça, como se ele soubesse mais do que dizia.
Depois disso meu pai cedeu, passei a ter aulas e aprendi a manejar não
apenas a espada mas também punhais, arco e flecha, lanças e diversos
tipos de armas de fogo além de luta corporal.

- Bem, isso explica o desgaste… Você precisa de uma espada nova. Claro,
posso restaurar essa mas o peso não é ideal para o seu tamanho e sua
estrutura. Ela era grande para uma criança de dez anos mas agora, para
uma mulher do seu tamanho, ela é muito leve e pode desbalancear você em
um combate mano a mano.
Balanço a cabeça positivamente e passo a pensar.

- De fato, tenho muito carinho por essa espada mas concordo com sua
opinião. Poderia fazer uma nova para mim? Quanto tempo levaria?
Sua cabeça se vira para dentro da ferraria mas rapidamente se volta
para mim

- Tenho algumas encomendas pendentes, consigo te entregar em duas


semanas.

- Duas semanas, está bem. Enquanto isso, pode amolar essa? Não quero
ficar sem uma arma.
Ele da uma risada bem humorada
- Quem te vê assim pensa que há uma guerra iminente.
Retorno com um sorriso sem graça.

- Nunca se sabe quando iremos precisar.


Humberto leva minha espada para dentro, fico vendo seu processo que
é de certa forma fascinante, ele não usa qualquer proteção nas mãos mas tão
habilmente passa a espada por diversos maquinários que parecem perigosos
até entregar-me em menos de dez minutos. A espada parecia nova, seu
cumprimento reluzia.

- Obrigada, daqui a duas semanas volto para pegar minha nova arma.

- Obrigado também senhorita Victorique. Nos vemos amanhã na festa de


Luther.
Minha visita a cidade é breve, logo tomo o caminho de volta para casa,
preciso colher algumas frutas para Theo fazer as geleias e compotas que serão
distribuídas na festa da noite seguinte. Tomo um pouco mais de tempo
enquanto retorno, faço Frye andar vagarosamente dentro da floresta enquanto
escuto os sons dos pássaros e sigo inalando o cheiro de orvalho que a chuva
na noite anterior havia deixado, me permito até fechar um pouco os olhos,
minha égua sabia bem que caminho tomar mas não demora até algo tirar a
minha paz, o som de algum outro cavalo.
Ninguém nunca toma esse caminho, penso, a não ser que esteja indo
em direção a minha casa ou ao castelo. Imediatamente olho para trás e vejo
que o cavalo se aproxima em alta velocidade, o condutor não parece estar
reduzindo e isso se confirma quando ele passa por mim e quase me derruba.

- Mas que inferno - exclamo quando ele já está longe. Não consegui ver quem
conduzia o cavalo, apenas que usava roupa de montaria aparentemente
cara pelo tecido e seus cabelos eram longos chegando no ombro, negros
como a noite - Vamos, Frye, vamos logo para casa - digo começando a
cavalgar mais rapidamente, queria saber se aquele homem estava indo de
visita a minha residência.
Ao chegar vejo que não há ninguém, não há cavalo algum nas bainhas além
dos nossos.
- Se não era visita… Ele estava a caminho do castelo - olho para cima, um
pouco além das montanhas e vejo as silhuetas do imponente castelo do rei
Nikolaj Draco Nicomir.
Nikolaj ascendeu ao trono trinta anos atrás após uma guerra contra o antigo rei,
nossa pequena cidade ficou quase toda destruída mas ele fez questão que
tudo fosse posto no lugar em menos de uma semana e disse que o povo não
deveria sofrer as consequências de um reino caído, graças a seu gesto de
bondade e ao péssimo reinado anterior todos o viam com bons olhos. Valáquia
passou a prosperar após sua chegada, moradores das cidades vizinhas
tiveram ajuda com mantimentos assim como redução dos impostos abusivos
que eram cobrados anteriormente. Apesar de sua popularidade e de ser
adorado pelo povo ninguém o vê a pelo menos dez anos, eu mesma nunca
cheguei a conhecê-lo.
Tem quem diga que ele não mora mais no castelo e que está conquistando
novos territórios, fato nunca confirmado, já outros acreditam que ele está
doente após tantas batalhas e para não demonstrar sua fraqueza se isolou. Os
mantimentos do castelo são enviados de outras cidades e seus funcionários
nada falam quando visitam o comércio, tudo é mantido em segredo. Se o
homem que quase esbarrou em mim estava a caminho do castelo, talvez algo
interessante pode finalmente estar acontecendo.

Capítulo 2

Quando entro em casa não encontro ninguém, pelo hora Theo já está com o
chef Antoine. Largo a espada e o vestido que havia trazido e vou de volta para
nossa horta. A estação está perfeita para morangos, colho uma quantidade
considerável. Theodore havia decidido que todos os convidados levariam para
casa um potinho de geleia e um pão caseiro, para que no dia seguinte
lembrassem com carinho do casamento de nosso irmão. Não sei de onde ele
tirava essas ideias mas eram essas atitudes que me faziam amá-lo tanto e
querer protegê-lo, ele era o pedaço da mamãe que havia ficado para todos nós.
Quando finalizo com os morangos passo aos pêssegos, eles estavam tão belos
quanto a fruta anterior e ainda mais cheirosos. Eu gostava de cuidar da nossa
horta, era uma das coisas delicadas e femininas que eu era boa.

- Senhorita Victorique - era a voz de Benedetta, nossa governanta - Há uma


visita para a senhorita.

- Uma visita? Não lembro de ter feito planos para hoje… - pego a cesta com
as frutas e tomo o caminho de casa - Quem é? - pergunto enquanto
caminhamos.

- Eu não o conheço, é um rapaz, disse que gostaria de falar com a moça da


casa que anda a cavalo, só podia ser a senhorita. - pela descrição usada,
poderia ser o homem da floresta? O que ele quer comigo?
Antes de entrar em casa entrego a cesta com as frutas a Benedetta e vou pela
porta da sala. Ao adentrar vejo um de pé virado de costas encarando nossa
lareira, por suas roupas e cabelo tenho certeza que é o mesmo homem que
quase me derruba do cavalo.

- Boa tarde, senhor. Em que posso ajudá-lo? - tento usar de minha educação
quando na verdade só queria mandá-lo ser mais prudente em suas
cavalgadas, mas se ele é um convidado do castelo do rei no mínimo devo
ser cortes.
Ele vira-se ao me ouvir, em sua boca um meio sorriso. Ele deveria ser o
homem mais lindo que já vi, definitivamente não era das redondezas. Seus
olhos eram pretos como seu cabelo, sua pele parecia com o pêssego que eu
acabara de colher, apesar de mais pálido. Eu queria tocá-lo para saber se tinha
a mesma textura. Me recomponho quando ele abre a boca.

- Boa tarde, senhorita Victorique Mihnea - sua voz era firme mas suave

- Como sabe meu nome? E perdão, mas qual é o seu?

- Perdão a indelicadeza, sou Razvan Draco Nicomir. Sua governanta me falou


seu nome, disse que era a única garota da casa. - ele volta a sorrir e eu
quase caio no chão ao ouvir seu nome. Rapidamente faço uma reverência.

- Eu que devo pedir perdão meu senhor, pelo seu nome imagino que seja um
nobre da família de nosso rei

- Ah… - agora ele parece sem graça - sim, sou filho de Nikolaj.
Filho? E agora? O que eu faço? Não sei como agir na frente da nobreza. Mal
sei como agir com o povo da cidade, meus pensamentos estão um turbilhão.

- Vim desculpar-me por nosso quase encontro mais cedo, não imaginei que
haveria alguém por essas florestas e meu cavalo não é muito obediente.

- O senhor não precisava ter se preocupado comigo, estou bem, mas


agradeço sua delicadeza - sinto que estou tremendo.

- Não sabia que havia uma fazenda tão próxima ao castelo - ele continua
falando - nunca estive aqui, na verdade, sou nascido e criado na Moldávia.
Ele não parecia um príncipe, bem, sua beleza era de um mas seu modo de
falar e sua simplicidade me deixavam um pouco mais calma.

- Essas terras são dos meus avós, desde antes da tomada da Valáquia pelo
rei - dou um sorriso tímido - Se posso perguntar, depois de tanto tempo o
que o levou a visitar nossa cidade?
Vejo seu rosto ficar um pouco mais nebuloso

- Problemas na Moldávia, como deve saber, também são terras de Nikolaj.


Muitos desordeiros querendo causar problemas e não devo agir sem a
permissão do rei.
Agora eu tinha certeza que o rei ainda fazia morada no castelo, porém, não
tinha certeza de sua saúde.

- Desejo que vossa majestade possa resolver todas as questões necessárias


e renovar a paz de sua cidade natal.

- Victorique? - é a voz de meu pai - Está com visitas? - ele logo adentra a
sala.

- Papai - apresso-me em dizer - Esse é o príncipe Razvan, ele é filho do


nosso rei.
O rosto de meu pai se transforma, não consigo entender sua expressão.

- Vá para o seu quarto, Victorique - eu esperava que ele reverenciasse o


príncipe, ficasse feliz com uma visita tão importante mas essa reação era
das mais inesperadas. O príncipe também parecia um tanto confuso.

- Papai, o príncipe…
- Para o seu quarto eu disse - ele não me permite concluir, decido fazer como
manda mas depois ele teria que me dar uma explicação - Com licença - faço
uma última reverência e me retiro.
Entro em meu quarto contrariada, infelizmente a distância não me permite ouvir
sequer uma palavra dos que eles conversam. Passam pouco menos de quinze
minutos quando meu pai aparece na porta de meu quarto, tenho certeza que
minha expressão não é das melhores.

- Vic, sei que não entende o que aconteceu ainda pouco mas não devemos
nos misturar com pessoas da nobreza - sua voz é calma mas ele ainda
parece nervoso.

- Você foi rude comigo e com o príncipe, obviamente não é apenas sobre se
misturar com as pessoas da nobreza. O que foi aquilo, Athos?

- Pai, eu sou seu pai - ele odeia quando eu o chamo pelo nome e geralmente
faço isso quando estou raiva - Me entenda, tive um choque ao ver o filho do
rei aqui. Sequer soube que ele havia chegado a cidade.

- Essa é a sua desculpa para como agiu? Eu não sou burra, posso ser
qualquer coisa, menos burra. Vou descobrir o que você está querendo
esconder assim como descobrirei o que você falou com o príncipe.
A expressão corporal dele endurece assim como sua voz

- Victorique, você ainda é minha filha e ainda deve fazer o que eu mando
enquanto viver embaixo do meu teto. Se eu souber que andou por aí atrás
daquele - ele pausa - do príncipe, terá consequências. Esqueça essa
história.- Athos sai batendo a forte.
Ele nunca havia falado assim comigo, nem mesmo nas nossas brigas ele me
relembrava de sua autoridade de pai. Agora, mais do que nunca, sei que há
algo por trás disso e não descansarei até saber o que. Não saio do quarto
mesmo quando chega a hora do jantar, não quero encarar meu pai. Já devia
passar das oito horas quando escuto uma leve batida na porta.

- Sou eu, posso entrar? - é a voz de Luther.

- Sim, entre. - digo enquanto estou agarrada com um travesseiro.


Meu irmão adentra com uma bandeja. Enquanto Theo era parecido com nossa
mãe, Luther era uma versão mais jovem de nosso pai ambos tinham pele
morena, com cabelos castanho claro e olhos mel. Eu posso ter certeza que
quando mais velho, Luther será exatamente como Athos.

- Theo pediu que eu trouxesse seu jantar. Como ele está ocupado com o
banquete do noivado, hoje Benedetta que cozinhou. - ele coloca a bandeja
em minha mesinha - O que houve hoje? Você sabe, Benedetta não
consegue manter a língua dentro da boca e me disse que você e o papai
discutiram logo cedo após a visita de um homem. Está de pretendente e ele
não o aceitou?

- Antes fosse… - digo contrariada - O príncipe nos visitou, o filho do rei


Nikolaj.

- Espera, o filho do rei? O que ele veio fazer em nossa casa? Sequer sabia
que o rei tinha um filho e que ele morava aqui…

- Ele não mora, chegou hoje. Eu fui a cidade fazer a último prova do vestido e
quando estava regressando para casa alguém passou por mim em alta
velocidade a cavalo, era o príncipe. Ele veio se desculpar, disse que é a
primeira vez que visita a Valaquia e que não sabia que haviam moradores
próximos ao castelo - tomo fôlego e sigo falando - mas o papai quando
chegou foi grosseiro com o príncipe, no momento que eu disse quem ele era
me mandou para o quarto.

- Estranho. Não é feitio do nosso pai ser rude.


Não era mesmo, uma das grandes qualidade de Athos era exatamente sua
gentileza, por isso todos da cidade o adoram.

- E ele não te disse nada depois que o príncipe foi embora?

- Não, apenas foi ainda mais agressivo. - quase começo a chorar de raiva -
nada disso faz sentido Luther.

- Não, não faz mesmo. - a expressão de meu irmão é pensativa - tentarei


descobrir o que está acontecendo. Talvez comigo ele se abra mais. Mas
agora, coma algo, não quero que amanhã esteja fraca durante a festa.
Faço o que Luther me pede, a comida de Benedetta é boa mas não se
compara ao tempero de Theodore. É impressionante como um garoto de
apenas quatorze anos pode ser melhor na cozinha do que uma senhora de
cinquenta e cinco anos. Termino a refeição e decido dormir, ou pelo menos
tentar.
Estou na floresta, Frye está comigo pastando ao redor, havia chovido a pouco
por isso o cheiro de terra e de verde está forte adentrando minhas narinas.
Expiro profundamente. Meu momento de paz é interrompido por um cavalo que
se aproxima em alta velocidade.
Será o príncipe novamente? Porque ele sempre anda com tanta pressa? Não
demora para que eu aviste o cavalo, de fato é o do príncipe, mas não consigo
ver quem está montado, mesmo se aproximando tão rápido. A cada passada
do cavalo vejo que ele está vindo em minha direção, para cima de mim e em
uma única piscada o cavalo freia em minha frente, cara a cara e quando olho
para cima, quando busco o olhar de Razvan encontro o monstro, aquele que
havia matado minha mãe.
Acordo com um pulo. Minha cama está molhada com meu suor, sinto meu
coração palpitar. Dessa vez Theo não está comigo, estou sozinha. O sol
apontava que eram em torno de nove horas, Theo já teria a muito saído para
finalizar os preparativos de hoje a noite. Tomo meu café da manhã sozinha,
todos estavam na casa dos Dicksons, pais de Molly, o lugar conseguia ser
ainda mais espaçoso do que nossa residência e como praticamente toda a
cidade estaria presente, era a melhor escolha.

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