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- Tudo bem, Victorique? - era a voz da minha mãe que entrava com um
sorriso carinhoso no rosto, seus cabelos castanhos estavam soltos com os
cachos caindo até a cintura.
- Sim, apenas não gosto de trovões, são barulhentos - tentava soar confiante -
mas não estou com medo.
- Tente dormir, quando você acordar tudo já terá passado e seu pai e irmãos
estarão de volta - ela se aproximava da cama me dando um beijo na testa,
eu podia sentir nela o cheiro de ervas frescas, manjericão e rosemary, ela
amava cozinhar então o cheiro dos temperos ja haviam ficado presos nela e
era o cheiro mais reconfortante do mundo.
Eu fazia o que ela mandava, fechava os meus olhos e tentava pegar no
sono mas era impossível com aquele barulho, até que um som ainda pior
veio… Gritos. Eram os gritos de minha mãe. Levanto correndo em direção ao
seu quarto mas não precisei ir tão longe, no corredor meus pés ja podiam sentir
um liquido viscoso, vermelho e pouco mais a frente estava minha mãe, com
seus olhos pretos ainda abertos me encarando, sua boca, ela tentava dizer
algo mas não tinha mais forças, em cima dela estava um monstro, pior do que
qualquer um das histórias que meu irmão contava para tentar me assustar. Ele
parecia uma gárgula das igrejas vitorianas. O monstro possuia asas, chifres e
suas orelhas eram pontudas, suas garras estavam segurando o rosto de minha
mãe enquanto suas presas cravavam em seu pescoço, o sangue fluia.
Naquele momento tudo ficou silencioso, não haviam mais trovões, o
mais puro silêncio havia se instaurado enquanto aquilo se alimentava de minha
preciosa mãe.
- Senhorita Victorique Elizabeth Mihnea, não pode nunca aparecer aqui como
uma moça respeitável?
Eu já estava mais do que acostumada com suas alfinetadas, então
apenas abro um sorriso.
- Senhora Lucrécia para você mocinha, sei que Athos lhe ensinou a respeitar
os mais velhos, apesar de tê-la criado como um menino. Olhe essas calças,
que horror, e essa blusa caindo aos pedaços? Tem certeza que seu pai é o
dono dessa loja? Como pode andar assim? Você é a pior propaganda do
seu próprio negócio.
- Com um vestido, sei muito bem que vocês tem uma carruagem e um
cocheiro para conduzi-la. Um dia isso aqui será seu e de seus irmãos, você
tem que passar uma boa imagem.
Dou um suspiro alto e nada mais digo, seria inútil.
- Está perfeito – admito, não consigo dizer muita coisa, de fato estou
emocionada, nunca tive um traje tão belo.
Começo a vestir o vestido e vejo que fica ainda mais lindo no corpo,
suas mangas longas formavam um V e ao redor do pescoço havia pele para
me esquentar a noite.
- Tudo bem, senhora Lucrécia. Apenas… Sonhei com ela, com a noite em que
ela morreu - digo enxugando as lágrimas que ainda caem.
- Athos me disse que você tem esses sonhos… Victorique, foi uma tragédia
mas foi um lobo faminto e assustado, pare de acreditar que algum monstro
estava rondando a sua casa, criança. Você terá paz de espírito quando
aceitar que seu trauma a fez ver coisas que não existem.
Eu queria discutir com Lucrécia, queria dizer-lhe que sei bem o que vi
mas seria apenas um gasto desnecessário de energia, dez anos se passaram,
dez anos sendo desacreditada. Finalizo a prova do vestido e parto em direção
ao ferreiro da cidade. Assim que paro com Frye já sinto o bafo quente vindo do
local.
— Humberto?
Logo o vejo saindo de dentro da forja.
— Senhorita Victorique, bom dia, o que deseja? - pergunta enquanto limpa as
mãos sujas de ferrugem no avental já escurecido de sujeira.
— Minha espada está começando a perder o fio, gostaria que fizesse uma
restauração - digo enquanto retiro da bainha e lhe entrego.
— Há quantos anos você tem essa espada, Victorique? - ele analisava a arma
virando de um lado para o outro, checando o cabo e todos os seus detalhes.
— Desde os dez anos, quando meu tio me presenteou.
Guilhermo, meu tio favorito, foi o único que nunca insistiu que havia sido
um lobo, também nunca disse acreditar em mim mas me entregou uma
espada. Lembro de suas exatas palavras.
“Monstro ou lobo, com isso você poderá defender a sua família e a si
mesma”
Papai ficou louco quando soube do presente.
- Uma espada Guilhermo? Ela tem apenas dez anos e é uma garota, minha
filha não vai estar lidando com espadas – eu o ouvia gritar do meu quarto.
- O que ela vai fazer se um lobo atacar novamente? Deitar e morrer? Sei que
você não quer perder mais ninguém, Athos. Você vive viajando, deixará de
fazer suas viagens? Como você irá buscar novos tecidos para a loja? Deixe
que a menina aprenda a agir sozinha, você sabe o mundo perigoso em que
vivemos. Você sabe. - ele parecia dar ênfase nessa palavra e isso nunca
saiu da minha cabeça, como se ele soubesse mais do que dizia.
Depois disso meu pai cedeu, passei a ter aulas e aprendi a manejar não
apenas a espada mas também punhais, arco e flecha, lanças e diversos
tipos de armas de fogo além de luta corporal.
- Bem, isso explica o desgaste… Você precisa de uma espada nova. Claro,
posso restaurar essa mas o peso não é ideal para o seu tamanho e sua
estrutura. Ela era grande para uma criança de dez anos mas agora, para
uma mulher do seu tamanho, ela é muito leve e pode desbalancear você em
um combate mano a mano.
Balanço a cabeça positivamente e passo a pensar.
- De fato, tenho muito carinho por essa espada mas concordo com sua
opinião. Poderia fazer uma nova para mim? Quanto tempo levaria?
Sua cabeça se vira para dentro da ferraria mas rapidamente se volta
para mim
- Duas semanas, está bem. Enquanto isso, pode amolar essa? Não quero
ficar sem uma arma.
Ele da uma risada bem humorada
- Quem te vê assim pensa que há uma guerra iminente.
Retorno com um sorriso sem graça.
- Obrigada, daqui a duas semanas volto para pegar minha nova arma.
- Mas que inferno - exclamo quando ele já está longe. Não consegui ver quem
conduzia o cavalo, apenas que usava roupa de montaria aparentemente
cara pelo tecido e seus cabelos eram longos chegando no ombro, negros
como a noite - Vamos, Frye, vamos logo para casa - digo começando a
cavalgar mais rapidamente, queria saber se aquele homem estava indo de
visita a minha residência.
Ao chegar vejo que não há ninguém, não há cavalo algum nas bainhas além
dos nossos.
- Se não era visita… Ele estava a caminho do castelo - olho para cima, um
pouco além das montanhas e vejo as silhuetas do imponente castelo do rei
Nikolaj Draco Nicomir.
Nikolaj ascendeu ao trono trinta anos atrás após uma guerra contra o antigo rei,
nossa pequena cidade ficou quase toda destruída mas ele fez questão que
tudo fosse posto no lugar em menos de uma semana e disse que o povo não
deveria sofrer as consequências de um reino caído, graças a seu gesto de
bondade e ao péssimo reinado anterior todos o viam com bons olhos. Valáquia
passou a prosperar após sua chegada, moradores das cidades vizinhas
tiveram ajuda com mantimentos assim como redução dos impostos abusivos
que eram cobrados anteriormente. Apesar de sua popularidade e de ser
adorado pelo povo ninguém o vê a pelo menos dez anos, eu mesma nunca
cheguei a conhecê-lo.
Tem quem diga que ele não mora mais no castelo e que está conquistando
novos territórios, fato nunca confirmado, já outros acreditam que ele está
doente após tantas batalhas e para não demonstrar sua fraqueza se isolou. Os
mantimentos do castelo são enviados de outras cidades e seus funcionários
nada falam quando visitam o comércio, tudo é mantido em segredo. Se o
homem que quase esbarrou em mim estava a caminho do castelo, talvez algo
interessante pode finalmente estar acontecendo.
Capítulo 2
Quando entro em casa não encontro ninguém, pelo hora Theo já está com o
chef Antoine. Largo a espada e o vestido que havia trazido e vou de volta para
nossa horta. A estação está perfeita para morangos, colho uma quantidade
considerável. Theodore havia decidido que todos os convidados levariam para
casa um potinho de geleia e um pão caseiro, para que no dia seguinte
lembrassem com carinho do casamento de nosso irmão. Não sei de onde ele
tirava essas ideias mas eram essas atitudes que me faziam amá-lo tanto e
querer protegê-lo, ele era o pedaço da mamãe que havia ficado para todos nós.
Quando finalizo com os morangos passo aos pêssegos, eles estavam tão belos
quanto a fruta anterior e ainda mais cheirosos. Eu gostava de cuidar da nossa
horta, era uma das coisas delicadas e femininas que eu era boa.
- Uma visita? Não lembro de ter feito planos para hoje… - pego a cesta com
as frutas e tomo o caminho de casa - Quem é? - pergunto enquanto
caminhamos.
- Boa tarde, senhor. Em que posso ajudá-lo? - tento usar de minha educação
quando na verdade só queria mandá-lo ser mais prudente em suas
cavalgadas, mas se ele é um convidado do castelo do rei no mínimo devo
ser cortes.
Ele vira-se ao me ouvir, em sua boca um meio sorriso. Ele deveria ser o
homem mais lindo que já vi, definitivamente não era das redondezas. Seus
olhos eram pretos como seu cabelo, sua pele parecia com o pêssego que eu
acabara de colher, apesar de mais pálido. Eu queria tocá-lo para saber se tinha
a mesma textura. Me recomponho quando ele abre a boca.
- Boa tarde, senhorita Victorique Mihnea - sua voz era firme mas suave
- Eu que devo pedir perdão meu senhor, pelo seu nome imagino que seja um
nobre da família de nosso rei
- Ah… - agora ele parece sem graça - sim, sou filho de Nikolaj.
Filho? E agora? O que eu faço? Não sei como agir na frente da nobreza. Mal
sei como agir com o povo da cidade, meus pensamentos estão um turbilhão.
- Vim desculpar-me por nosso quase encontro mais cedo, não imaginei que
haveria alguém por essas florestas e meu cavalo não é muito obediente.
- Não sabia que havia uma fazenda tão próxima ao castelo - ele continua
falando - nunca estive aqui, na verdade, sou nascido e criado na Moldávia.
Ele não parecia um príncipe, bem, sua beleza era de um mas seu modo de
falar e sua simplicidade me deixavam um pouco mais calma.
- Essas terras são dos meus avós, desde antes da tomada da Valáquia pelo
rei - dou um sorriso tímido - Se posso perguntar, depois de tanto tempo o
que o levou a visitar nossa cidade?
Vejo seu rosto ficar um pouco mais nebuloso
- Victorique? - é a voz de meu pai - Está com visitas? - ele logo adentra a
sala.
- Papai, o príncipe…
- Para o seu quarto eu disse - ele não me permite concluir, decido fazer como
manda mas depois ele teria que me dar uma explicação - Com licença - faço
uma última reverência e me retiro.
Entro em meu quarto contrariada, infelizmente a distância não me permite ouvir
sequer uma palavra dos que eles conversam. Passam pouco menos de quinze
minutos quando meu pai aparece na porta de meu quarto, tenho certeza que
minha expressão não é das melhores.
- Vic, sei que não entende o que aconteceu ainda pouco mas não devemos
nos misturar com pessoas da nobreza - sua voz é calma mas ele ainda
parece nervoso.
- Você foi rude comigo e com o príncipe, obviamente não é apenas sobre se
misturar com as pessoas da nobreza. O que foi aquilo, Athos?
- Pai, eu sou seu pai - ele odeia quando eu o chamo pelo nome e geralmente
faço isso quando estou raiva - Me entenda, tive um choque ao ver o filho do
rei aqui. Sequer soube que ele havia chegado a cidade.
- Essa é a sua desculpa para como agiu? Eu não sou burra, posso ser
qualquer coisa, menos burra. Vou descobrir o que você está querendo
esconder assim como descobrirei o que você falou com o príncipe.
A expressão corporal dele endurece assim como sua voz
- Victorique, você ainda é minha filha e ainda deve fazer o que eu mando
enquanto viver embaixo do meu teto. Se eu souber que andou por aí atrás
daquele - ele pausa - do príncipe, terá consequências. Esqueça essa
história.- Athos sai batendo a forte.
Ele nunca havia falado assim comigo, nem mesmo nas nossas brigas ele me
relembrava de sua autoridade de pai. Agora, mais do que nunca, sei que há
algo por trás disso e não descansarei até saber o que. Não saio do quarto
mesmo quando chega a hora do jantar, não quero encarar meu pai. Já devia
passar das oito horas quando escuto uma leve batida na porta.
- Theo pediu que eu trouxesse seu jantar. Como ele está ocupado com o
banquete do noivado, hoje Benedetta que cozinhou. - ele coloca a bandeja
em minha mesinha - O que houve hoje? Você sabe, Benedetta não
consegue manter a língua dentro da boca e me disse que você e o papai
discutiram logo cedo após a visita de um homem. Está de pretendente e ele
não o aceitou?
- Espera, o filho do rei? O que ele veio fazer em nossa casa? Sequer sabia
que o rei tinha um filho e que ele morava aqui…
- Ele não mora, chegou hoje. Eu fui a cidade fazer a último prova do vestido e
quando estava regressando para casa alguém passou por mim em alta
velocidade a cavalo, era o príncipe. Ele veio se desculpar, disse que é a
primeira vez que visita a Valaquia e que não sabia que haviam moradores
próximos ao castelo - tomo fôlego e sigo falando - mas o papai quando
chegou foi grosseiro com o príncipe, no momento que eu disse quem ele era
me mandou para o quarto.
- Não, apenas foi ainda mais agressivo. - quase começo a chorar de raiva -
nada disso faz sentido Luther.