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16/03/2022 09:05 Como sucesso do açaí ameaça biodiversidade da Amazônia - BBC News Brasil

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Como sucesso do açaí ameaça


biodiversidade da Amazônia
Julia Braun
Da BBC News Brasil em São Paulo

13 março 2022

GETTY IMAGES

Açaí pode ser encontrado em polpa congelada em várias cidades no Brasil e no exterior

O açaí ganhou o mundo nas últimas décadas. A produção dessa fruta típica da região
amazônica disparou, rendendo milhões de dólares para os produtores e gerando emprego
e renda para muitas famílias ribeirinhas.

Mas toda essa demanda está cobrando um preço da Amazônia, segundo um novo estudo
conduzido por cientistas brasileiros.

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A pesquisa apontou que o cultivo do açaí está levando a uma perda significativa da
biodiversidade.

Árvores-símbolo da Amazônia, como a samaúma e o jatobá, estão desaparecendo da


paisagem e dando lugar a campos de monocultura da fruta.

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O processo é tão intenso que já ganhou até nome de cientistas da área: é a "açaização" da
Amazônia.

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"Ao longo dos últimos 20 anos, áreas da floresta onde o açaí era cultivado lado a lado com
outras espécies foram totalmente tomadas pelas palmeiras da fruta", afirma o biólogo
paraense Madson Freitas, principal autor do estudo, à BBC News Brasil.

Autoridades dizem que criaram regras para proteger a biodiversidade amazônica, e os


produtores afirmam seguir as normas e negam que causem prejuízo à floresta.

Mas os cientistas dizem que o cultivo de açaí está provocando mudanças profundas na
Amazônia que podem desestabilizar todo o ecossistema.

O 'boom' do açaí

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Nos últimos dez anos, houve um aumento de quase 15.000% nas exportações do açaí no Brasil

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O açaí sempre fez parte da dieta da população no norte do país, onde é consumida
tradicionalmente com farinha e peixe.

A pequena fruta escura é rica em antioxidantes e fibras e tem alto valor energético, e, hoje,
pode ser encontrada em forma de polpa congelada em várias cidades do Brasil e também em
países como Estados Unidos e Emirados Árabes.

O Brasil concentra cerca de 85% da produção mundial de açaí, com uma média de 1,5 milhão
de toneladas entre 2015 e 2020.

Em 2020, a produção nacional foi de 1,7 milhões de toneladas, quase 5% a mais do que no
ano anterior, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Em relação a 2015, o aumento foi de
38%.

Só o Estado do Pará é responsável por 95% desse total. São cerca de 212 mil hectares
dedicados ao cultivo da fruta em terra firme ou áreas de várzea, segundo o Conab.

Os peixes que estão se viciando em drogas

De acordo com a Federação das Indústrias do Estado do Pará (Fiepa), entre 2011 e 2020, as
exportações de açaí no Brasil aumentaram quase 15.000%.

De cerca de 40 toneladas em 2011, o país chegou a 5.363 toneladas em 2020, um recorde.

Ainda assim, a maior parte da fruta produzida fica no território nacional: menos de 1% do
que foi colhido em 2020 foi exportado.

O Pará respondeu por 94% dos embarques, gerando cerca de US$ 13,2 milhões (R$ 68,7
milhões). Ao todo, o Estado passou de uma produção de 756,4 mil toneladas em 2010 para
1,3 milhão em 2019.

Cultivo ameaça biodiversidade, apontam cientistas

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Açaí é fonte importante de renda para ribeirinhos no Pará

Por isso, cientistas escolheram justamente o Pará para analisar o impacto do cultivo do açaí
sobre a Amazônia.

O estudo, publicado no jornal acadêmico Biological Conservation, analisou 47 áreas na


região da foz do rio Amazonas no Estado.

A pesquisa começou em 2013 e englobou áreas mapeadas em um trecho de 376 mil km² no
leste da Amazônia, onde está o maior núcleo de produção e colheita de açaí no Brasil.

A região é coberta por florestas de terra firme e estuarinas e manguezais ao longo das
margens dos rios Pará, Guamá e Tocantins, e áreas de várzea na Ilha do Marajó, próxima a
Belém.

O primeiro sinal de problema foi a ausência notada pelos pesquisadores de espécies de


árvores típicas de várzea em áreas onde há monoculturas do açaí.

Muitas dessas plantas fornecem sombra para outras espécies e servem de abrigo para a
fauna local, como pássaros e insetos, além de ajudar na reciclagem de nutrientes do
ecossistema amazônico.

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O biólogo Madson Freitas, pesquisador da


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), diz
que muitas dessas espécies foram derrubadas Podcast
por agricultores e ribeirinhos que cultivam açaí.

Elas são retiradas para abrir espaço para o


plantio dos açaizeiros e deixar o sol incidir sobre
os pés da fruta — a sombra pode retardar seu
crescimento.

Os pesquisadores afirmam que o aumento do


manejo para atender a demanda do mercado
levou a uma mudança significativa na floresta de
várzea.

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O estudo aponta que, em áreas onde há mais de


600 touceiras (moitas) de açaí por hectare, a
BBC Lê
riqueza funcional caiu cerca de 50%.
A equipe da BBC News Brasil lê para você
algumas de suas melhores reportagens
Essa é uma medida usada no meio científico para
calcular a quantidade de espaço preenchido Episódios
pelas espécies de uma comunidade.

Ou seja: esse espaço ocupado pelas demais espécies despencou pela metade desde que essa
área passou a ser explorada para o cultivo do açaí.

Há regiões identificadas pela pesquisa onde deveria haver em tese cerca de 70 espécies de
plantas por hectare, mas em seu lugar os cientistas encontraram praticamente uma
monocultura da fruta, com até 1 mil touceiras por hectare.

"Árvores grandes e altas como a samaúma, conhecida popularmente como rainha da


floresta, e outras como o jatobá e o cedro, estão desaparecendo dessa região", relata o
biólogo.

Freitas explica que cada espécie tem uma função específica na engrenagem da floresta, e a
ausência de algumas pode desestabilizar o sistema.

"Todas as plantas são importantes, tanto do ponto da diversidade quanto dos serviços
ecossistêmicos prestados por cada uma delas", diz o cientista.

As plantas mais altas, como a samaúma, por exemplo, fornecem sombra e fazem a
reciclagem de nutrientes do solo. Sem elas, o solo se torna mais ácido.

"O açaí tolera a acidez, mas outras plantas, não. Isso significa que, depois de derrubadas,
essas plantas dificilmente conseguirão crescer novamente naquele lugar", diz o pesquisador.

Árvores altas também são abrigo para as colmeias de espécies típicas de abelhas. Esses
insetos fazem a polinização de diversas espécies, inclusive do açaí.

"Chega a ser contraditório, porque, com as colmeias, o próprio açaí se torna mais produtivo",
afirma Freitas.

"Em áreas onde há monocultivo de açaí e quase nenhuma outra espécie, os cachos produzem
30% menos frutos do que em áreas onde há mais diversidade."

Os cientistas afirmam que a perda de diversidade e dos benefícios que isso gera torna todo o
sistema socioecológico mais vulnerável, "como com qualquer economia local sustentada por
uma monocultura de uma commodity internacional."

Campo de concentração na Amazônia aprisionou centenas de famílias japonesas


durante 2ª Guerra
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'Açaização' da Amazônia

ARQUIVO PESSOAL

Várzea manejada perto de Belém, no Pará

O aumento do cultivo do açaí, especialmente no Pará, para dar conta do aumento da


demanda nas últimas décadas foi tamanho que os pesquisadores e biólogos já apelidaram o
fenômeno de "açaização" da Amazônia.

A maior parte da produção, especialmente nas regiões de várzea, se encontra nas mãos de
ribeirinhos e famílias de agricultores.

O fruto é vendido localmente e enviado para o resto do Brasil e o exterior na forma de polpa,
a partir da qual são feitos vários produtos.

Atualmente, existem 118 indústrias no Pará dedicadas ao processamento do açaí. Algumas


têm cultivo próprio, mas todas ainda dependem da produção dos ribeirinhos para manter o
abastecimento.

O presidente do Sindicato das Indústrias de Frutas e Derivados do Estado do Pará


(Sindfrutas), Reinaldo Mesquita, diz que o açaí mudou a vida de muitos paraenses.

Cada empresa gera emprego direta ou indiretamente para cerca de 5 mil famílias, segundo
seus cálculos.

"Além dos funcionários e dos agricultores, há caminhoneiros, barqueiros e carregadores que


se beneficiam da parceria."

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Inicialmente, a exploração do açaí era exclusivamente extrativa. Mas, desde a década de


1990, foram implementados manejos de açaizais nativos e de cultivos em várzea e terra
firme.

Segundo Freitas, essa mudança na forma de cultura mudou o ecossistema local.

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Ele diz que, mesmo que haja programas de incentivo à produção sustentável do açaí, as
regras nem sempre são respeitadas na região.

"Em algumas ilhas, não conseguimos ver nenhuma outra planta além dos açaizeiros", diz o
biólogo.

"Já em ilhas onde há maior fiscalização, como a ilha do Combú, caracterizada como área de
proteção ambiental, há maior diversidade de espécies."

Produtores negam impacto ambiental

GETTY IMAGES

Legislação determina que produtores adotem técnicas de condução e de manejo adequadas à


sustentabilidade da espécie

A principal norma em vigor, instituída em 2013 pelo governo do Pará, regula a produção de
palmito e açaí por ribeirinhos, propriedades rurais familiares e produtores comunitários.

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A legislação determina que os produtores devem adotar "técnicas de condução e de manejo


adequadas à sustentabilidade da espécie" e estabelece a extração de no máximo 200 estipes
(como são chamados os caules do açaí) e o manejo de até 400 touceiras por hectare.

Os produtores dizem que todas as regras são respeitadas e negam qualquer mudança no
ecossistema local ou a derrubada de espécies para o cultivo do açaí.

"No passado, as plantas nativas da região eram derrubadas para o plantio de palmito, mas,
desde que o produto principal se tornou o açaí, isso não acontece mais", diz Reinaldo
Mesquita, do Sindifrutas.

As indústrias, que compram o açaí dos ribeirinhos e revendem fora do Estado, também
garantem que o cultivo é feito de acordo com as normas.

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Muitas afirmam estimular o uso de técnicas de baixo impacto, para conciliar o extrativismo
sustentável e a manutenção da renda familiar das comunidades.

A Sambazon, empresa responsável por 50% das exportações brasileiras, afirmou à BBC
News Brasil que trabalha para garantir que todo o açaí utilizado pela marca "seja colhido de
forma totalmente selvagem" e "usando técnicas de baixo impacto, como colheita manual e
sem insumos".

A companhia disse ainda que nenhuma parte do açaí comercializado por ela é cultivado em
plantações ou em formato de monocultivo, mas sim colhido em florestas manejadas
tradicionalmente no Pará e no Amapá, e que todos os trabalhadores envolvidos recebem
treinamento para manter "um comércio justo e práticas orgânicas".

Outras grandes marcas que vendem açaí no Brasil e exterior, como Frooty e Oakberry, não
responderam os contatos feitos pela reportagem.

Os cientistas que analisaram o impacto ambiental do cultivo da fruta reconhecem sua


importância para a manutenção da renda dos ribeirinhos, assim como para a cultura local.

Mas eles defendem que as atuais normas sejam revistas, de forma a reduzir ainda mais a
extração máxima permitida. Segundo o artigo, a atual normativa "não é suficiente para
garantir a persistência da flora estuarina diversa, localmente ou ao nível de paisagem".

Os pesquisadores ainda pedem que se desenvolva um programa de recuperação florestal


com o replantio das espécies nativas, para preservar inclusive o próprio cultivo do açaí.

"Essa cultura única faz parte do legado amazônico e merece ser preservada, servindo como
exemplo de uso sustentável da floresta tropical", dizem os autores.

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A fiscalização da Amazônia brasileira é de responsabilidade compartilhada entre o Instituto


Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e os demais entes
da federação: Estados, municípios e Distrito Federal. À reportagem, porém, o Ibama afirmou
que, no caso da cultura de açaí, a fiscalização está inteiramente nas mãos do governo do
Estado. A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas), por sua vez,
afirmou que "está ciente das dificuldades e desafios das formas de produção no Pará, que
decorre de diversos fatores, dentre eles, a precariedade técnica e tecnológica das cadeias
produtivas, por exemplo, que pode impactar diretamente no potencial da biodiversidade".Em
nota, a Semas disse também que coordena projetos estratégicos, como o Plano Estadual
Amazônia Agora, cuja missão é reflorestar 5,5 milhões de hectares até o ano de 2030. "A
Semas informa também que apoia o Plano Estratégico para o Desenvolvimento das Cadeias
Produtivas Prioritárias do estado, entre os quais estão o açaí, que tem como objetivo
estruturar e diversificar as cadeias as principais cadeias produtivas paraenses", afirma ainda o
comunicado enviado à reportagem pela Secretaria.

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