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ARTIGOS
RESUMO
ABSTRACT
In this article we will discuss how the afro-descending religious manifestations were
viewed by the psychological sciences in Brazil, under the strong influence of the
racial theories and eugenics, in the turning of the XIX-XX century .
Não tardou para que afirmasse a sua situação de superioridade diante do diferente,
idéia que continuaria existindo nos séculos posteriores sob as mais diversas
formações discursivas. Neste período, serão comuns as tentativas de
“ domesticação” do homem que, acreditava-se, estava em seu estado mais
rudimentar.
Até o final do século XVIII não havia o conceito de raça propriamente dito como o
entendemos hoje em seus parâmetros científicos, porém, a idéia de superioridade e
inferioridade humana, dimensões inerentes ao conceito, já eram uma constante.
É impossível estabelecer um marco inicial com clareza das teorias raciais. Eram
comuns as idéias sobre superioridade entre povos orientais e na Grécia antiga.
Segundo Mosca (1975 : 290) os gregos da antigüidade julgavam-se superiores aos
bárbaros e a todos os povos diferentes em relação à sua civilização.
O termo raça aparece pela primeira vez na obra de Georges Cuvier (Mosca, 1975) ,
nos primeiros anos do século XIX. Além de verificar as diferenças humanas, Cuvier
agrupava-as em categorias e classificava os grupos étnicos seguindo o modelo
epistemológico comum às ciências do período, como a botânica, geologia etc.
É difícil encontrar um filósofo do século XIX que não tenha examinado a questão
racial, mesmo que superficialmente. Fichte, por exemplo, no seu Discursos à Nação
Alemã, procurava restituir a auto-confiança do povo alemão derrotado por
Napoleão na batalha da Prússia, buscando justificar o fracasso de tal sorte que não
colocasse em risco a credibilidade na pureza racial do seu povo (Mosca, 1975).
Hegel, na sua Filosofia da História, publicada em 1837, conferia ao povo alemão a
nobre missão de guiar a humanidade para o desenvolvimento civilizatório ideal, tal
a superioridade do povo de sua nação.
Com relação ao Brasil, poderíamos chamar a atenção para a obra do conde Joseph-
Arthur Gobineau, também embaixador da França no país no final do século
passado. Seu escrito mais conhecido é o Ensaio Sobre a Desigualdade Das Raças
Humanas, clássico da literatura racista mundial, publicada em quatro volumes entre
1853 e 1855. Nessa obra, o autor procura demonstrar que todos os acontecimentos
vividos pela humanidade são produtos das lutas entre raças superiores e inferiores
e dos cruzamentos ocorridos entre elas (Raeders, 1996). Além disso, classificava os
grupos étnicos de acordo com as suas condições materiais e posição na pirâmide
social: o poder da nobreza seria uma conseqüência direta de suas raízes arianas; a
burguesia descenderia dos mestiços, mas ainda assim seria portadora de
qualidades das “ raças fortes” ; e finalmente o escravo, descendente dos grupos
semíticos e negros.
Em uma de suas cartas para um amigo francês, descreveu suas impressões sobre o
povo brasileiro:
“ Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter
medo… ” (Raeders, 1996; Skidmore, 1976 : 46. ).
Os povos que não seguissem esse padrão tenderiam a desaparecer por injunção
natural. Evidentemente, a miscigenação estava fora da ordem natural da evolução
e por isso poderia condenar as nações mestiças à “ degradação” e “ corrupção
moral” .
Muitas das idéias de Spencer foram expostas em sua obra Princípios de Psicologia,
publicada em 1855. Unanimidade nos E.U.A., suas idéias influenciaram muitos
psicólogos americanos.
Dessa forma, Galton justificava que deveria haver uma maior proteção e incentivos
materiais para reprodução dos melhores indivíduos, física e mentalmente (Schultz,
1996). Esses exemplares raciais deveriam legar suas boas qualidades aos
descendentes, garantindo a boa descendência. Essa estratégia ficou conhecida
como eugenia positiva.
Por outro lado, a ciência galtoniana tinha um forte apelo propagandístico, pois
pretendia também levar para a população o conhecimento científico necessário para
bem conduzir a sua própria evolução. Como escolher um bom parceiro para o
casamento, um bom exemplar racial, evitar o álcool, prevenir doenças infecciosas
etc. eram estratégias centrais no combate contra a má descendência e a
decadência racial. Galton não se cansava de tomar o seu próprio exemplo para
justificar a sua tese da herança das qualidades mentais, afinal, em sua família,
havia dois homens eminentes, seu primo Charles Darwin e ele próprio, procurando,
destarte, comprovar que entre as boas famílias a probabilidade do aparecimento de
grandes personalidades era maior.
Aos poucos, com a disseminação das idéias eugênicas, começou-se a contestar o
evolucionismo social naturalmente determinado, isto é, a idéia spenceriana de que
os indesejáveis seriam aos poucos espontaneamente eliminados do convívio social,
e passou-se para uma preocupação sumária com o perigo que estes
“ degenerados” e “ mestiços” representavam para a evolução da humanidade.
Sobretudo pela ameaça ao sentimento nacionalista, por espoliarem o estado e a
parcela produtiva da sociedade, com as enormes despesas que demandavam para
a cura ou, na pior das hipóteses, para serem amparados por instituições
carcerárias, psiquiátricas ou disciplinares por toda a vida. Para os eugenistas, os
homens deveriam intervir na sua própria evolução, orientados pelo estado e
embasados pelos conhecimentos que a ciência proporcionava.
A partir de 1870, as teorias raciais ganham força nas elites brasileiras, as quais
subitamente apresentaram-se como aliadas aos projetos desenvolvimentistas, no
planeamento da consolidação da identidade e primazia nacional. Aqui encontraram
um terreno fértil para as mais variadas especulações, inclusive no âmbito das
ciências psicológicas, visto a “ grande e perigosa miscigenação racial” presente no
país.
Assim como nos outros países do mundo, no Brasil os saberes psicológicos vinham
ostentando uma posição central no ideal da consolidação da nacionalidade, visto os
seus objetivos pedagógicos e médicos, em suas respectivas ações disciplinares e
higienizadoras. Segundo Massimi (1990), as preocupações com as questões
psicológicas da população brasileira como princípio básico para condensação da
nacionalidade já estavam seladas no país antes mesmo do surgimento da psicologia
como disciplina autônoma, cientificamente orientada.
Nesse sentido, entre as diversas ações requisitadas aos saberes psicológicos, para
contribuir com a nacionalidade brasileira inclui-se fundamentalmente a higienização
mental. As práticas higienistas objetivavam avaliar a qualidade mental das
diferentes raças que compunham a nação, tomando como base os estudos
apresentados na Europa e E.U.A. com suas próprias populações.
O Brasil era visto tanto pelos médicos brasileiros quanto estrangeiros como um
enorme laboratório racial, para os mais pessimistas como um enorme hospital, tal o
caminho “ degenerativo” que o país vinha trilhando. Esboçavam uma inquietação
específica com a situação do estado de São Paulo, importante centro agrícola que
recebia grandes contingentes de imigrantes em busca de trabalho, provenientes de
países europeus e asiáticos ou mesmo de outros estados brasileiros. Nesse período,
primeiros anos do século XX, começaram as preocupações médicas com a sanidade
corporal e mental desses novos habitantes - no caso dos europeus e asiáticos - e
com a população afro-descendente, há pouco tempo na condição formal de
“ cidadãos” , com final do regime escravo em 1888.
Nesse mesmo trabalho os autores não atribuíam grande importância aos fatores
ambientais como gênese das psicopatologias, mas também não ofereceram
nenhuma outra explicação para o fenômeno, mesmo que hipotética. Um fenômeno
inerente à raça? Era a questão deixada à deriva.
Esse tipo de idéia parecia ser compartilhada por muitos outros médicos e
antropólogos. Vejamos outros exemplos:
Lucena (1940: 41-4) relata que em 1936, um jovem de 20 anos de nome João
Cícero, acreditando estar possuído pelo espírito do Padre Cícero, amealhou fiéis ao
redor de si e passou a organizar rezas e novenas. Incomodada com o fato, a polícia
convocara o jovem a depor. Alegando que o santo que o possuía não consentia o
seu comparecimento na delegacia, não deu as caras. Constantemente vigiados, um
dos crentes acabou preso por porte de arma. Temendo um ataque da polícia devido
à constante vigilância policial, os crédulos, já em número de 70 homens, armados
de facas, foices e paus, atacaram a casa do inspetor de polícia, Antônio de Melo,
que acabou morto a golpes de foice. Dirigiram-se posteriormente a Vila de Cupira,
onde o primeiro companheiro encontrava-se preso, para tentarem libertá-lo. Em
confronto com a polícia nessa localidade, quatro seguidores de João Cícero foram
mortos. (Lucena, 1940). Depois da contenda, o grupo se dispersou, o líder
desapareceu para sempre e alguns adeptos foram presos ou recolhidos ao
manicômio.
“ Da mesma forma que a catechese foi uma ilusão também a repressão pura pela
sociedade falhará, devido a este choque de mentalidades” . (Ramos, 1940 : 295).
Assim como Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos julgava que a mistura racial
brasileira já era fato consumado e certamente disso resultaria em algum prejuízo
cultural para o país. Restava saber o quanto representava esse prejuízo para se
traçar medidas eficientes de intervenção, para além das medidas catequéticas do
período anterior.
Segundo Prandi (1995), em 1940 a igreja católica declarou-se hostil aos cultos
afro-brasileiros, pois almejava a hegemonia religiosa no país. Contra a vontade da
igreja, a Umbanda e o Candomblé sempre funcionaram em sincretismo com o
catolicismo, incorporando alguns dos seus elementos rituais e materiais. De acordo
com Borges e Lima (1932 : 138-9):
“ Assim, em geral, são todos esses ‘ centros’ refugios de pobre gente ignorante
que procura neles alivio para seus males, nucleos onde pequenos psicopatas
encontram ambiente propicio para suas tendencias morbidas. De quando em vez
explode um delirio polimorfo, em geral com cambiantes de possessão, influencia;
ás vezes vagos tons persecutorios em fundo paranoide; outras de fundo mistico.
Todos curaveis pelas medidas habituais de isolamento, balneo-terapia morna,
tonicos. Muitos reincidem porque voltam á pratica. Medida definitiva seria a
profilactica: evitar a esses predispostos a cultura sistemica da imaginação, o
exagero do automatismo subliminal” . (Borges & Lima, 1932 : 145).
Impossível passar por esse assunto sem refletir sobre um caso representativo da
cultura brasileira, o episódio de Canudos. Na obra Os Sertões, de Euclides da
Cunha, há um capítulo dedicado à descrição comportamental e psiquiátrica de
Antônio Conselheiro, o principal responsável pelo levante.
Diz o autor que trata-se de um indivíduo que “ pode ser incluído numa modalidade
qualquer de psicose progressiva” (Cunha 1979 : 102). De mentalidade atrasada,
estaria próximo dos tipos primitivos da espécie, pelo fato de tratar-se de um
mestiço.
Já nesta obra do século XIX, exprime-se a inquietude de nem sempre ser possível
detectar um doente mental livre, “ contaminando” e impelindo as massas à
revolta patológica. Segundo o próprio Euclides da Cunha, não seria possível
desvendar sua doença mental com as técnicas psiquiátricas e antropológicas usuais
naquele momento, o que significava um enorme perigo para a ordem social.
Considerações Finais:
Ao contrário do que se imagina, o aprimoramento das medidas psicológicas não
refutou a tese da superioridade racial e cultural dos povos brancos, pelo menos até
o final da segunda grande guerra. Buscavam argumentos quantitativos para as
teses ideológicas sobre a superioridade racial. A despeito do surgimento da
psicologia como uma ciência autônoma nesse período, supunha-se também uma
sucessão intrincada entre os fenômenos psicológicos, biológicos e culturais,
manifestas por exemplo em expressões lingüísticas como “ valor mental do negro”
, “ déficit mental da raça” , etc.. Nesse sentido, a história da psicometria no Brasil
mostra um pleno envolvimento com as teorias raciais do século XIX e começo do
XX, como uma das suas vertentes mais significativas.
Após a abolição do regime escravocrata, não houve exatamente uma repressão aos
cultos afro-brasileiros. A aplicação de técnicas psicométricas no âmbito religioso
pretendia manter essas manifestações populares sob vigilância preventiva, para
que episódios de “ loucura epidêmica de origem religiosa” não voltassem a
ocorrer, como em vários momentos da história do Brasil. Era uma tentativa de
disciplinar os cultos religiosos circunscrevendo-os na ordem evolutiva com a
finalidade de torná-los “ mais civilizados” para o bem da soberania nacional e
aprimoramento das virtudes individuais, portanto, uma inquietação não apenas
científica, mas também política e ideológica.
Referências bibliográficas
Borges, J.C. & Lima, Denice C. (1932); Investigações Sobre as Religiões do Recife:
O Espiritismo, Arquivos da Assistência a Psicopatas de Pernambuco, ano III, N.º1,
pp.138-45, Abril. Cavalcanti, Pedro (1933); Investigações Sobre As Religiões no
Recife: Uma Seita Panteista, Arquivos da Assistência a Psicopatas de Pernambuco,
ano III, N.º1, pp.58-68, Abril.
Nina R., R. (1945); Os Africanos no Brasil, Rio de Janeiro: Companhia Ed. Nacional,
3.ª ed., (1.ª edição 1933).
Ramos, A. (1940); O Negro Brasileiro, vol. 1, 2.ª ed., Companhia Editora Nacional,
S.P./R.J. (1.ª edição 1934).
Schultz, D.P. & Schultz, S. E. (1996) ; História da Psicologia Moderna, 8.ª ed., São
Paulo: Cultrix.
Schwarcz, L.M. (1993) ; O Espetáculo das Raças, São Paulo: Companhia das Letras.
*
Psicólogo. Doutorando em Psicologia pela FFCLRP - USP Ribeirão Preto. Dept.º de
Psicologia e Educação
1
Apoio: Fapesp
2
Em um curso de neuro-psiquiatria realizado na Faculdade de Medicina da Bahia
em 1945, conta-se que, nos intervalos, os participantes divertiam-se proferindo
pequenas quadras humorísticas envolvendo a psiquiatria, os professores e os temas
desenvolvidos no curso. Esta foi uma delas. Revista Neuro-biologia, Noticiario, Vol.
8, pp. 210-9, 1945.
3
Denominamos saberes psicológicos o conjunto de estratégias científicas
destinadas a investigar questões relativas ao comportamento, inteligência,
subjetividade, doenças mentais etc., aliados, direta ou indiretamente, à medicina.
Durante o século XIX, antropólogos, filósofos, educadores ou médicos, vez por
outra, eram chamados de “ psicólogos” .
4
A expressão “ problema do valor mental do negro” é o título de um dos capítulos
da obra Raça e Assimilação, de Oliveira Vianna (1932), clássico da literatura racial
científica brasileira.
5
Mantivemos a grafia original de todas as transcrições.
6
A padronização dos testes de Q.I. determina que a nota para um indivíduo normal
deve ficar por volta de 100.