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Crítica Literária (br/categorias/critica-literaria)

Tolstói da Silva, Górki do


Nascimento
Obra-prima de nossa história cultural conta como autores e leitores
dos tempos do Estado Novo se miraram no espelho da literatura
russa

Sérgio Alcides
(br/autores/sergio-alcides)

01abr2019 01h00

Em gravura de Goeldi, Várvara Ardaliónovna, personagem de O idiota, de Dostoiévski Imagem


licenciada de acordo com as normativas do Projeto Goeldi

Gomide, Bruno Barretto


Dostoiévski na rua do Ouvidor:  a


literatura russa e o Estado Novo

Edusp • 464 pp • R$ 54

Parece que ainda existe quem tema a chegada dos russos. Mas eles já chegaram
faz tempo — pelo menos às livrarias. Debaixo de um calor nada siberiano, a
literatura russa tem sido lida no Brasil desde finais do século 19. Por vezes, a
leitura ganhou características febris, a ponto de ser tomada como um espelho
improvável, por maiores que sejam as diferenças entre mujiques e jagunços,
balalaicas e cavaquinhos. Foi assim com as “febres de eslavismo” que marcaram
a Era Vargas, à sombra do tsar gaúcho, autocrata de todos os Brasis. Agora, no
contexto de uma nova onda de traduções do russo, Bruno Barretto Gomide narra
a saga dessa aproximação, em Dostoiévski na rua do Ouvidor: a literatura russa e o
Estado Novo.

Trata-se de uma obra-prima da história cultural no Brasil. Caudaloso e vibrante


como um romance das estepes, mas redigido no nosso melhor vernáculo, o livro
procura explicar como pôde a intelectualidade brasileira entre 1930 e 1945
buscar na literatura russa — bem mais que um modelo — uma fonte para
entender melhor o próprio país. Para isso, o autor se distancia de qualquer
pressuposição de identidade: sua primeira medida é pisar fora do velho tópos da
comparação entre as extensões incultas a leste dos montes Urais e ao sul do rio
Amazonas. Só assim seria possível verificar como o clichê da “alma russa”, que
fazia de Dostoiévski “o mais russo de todos os russos”, instigava também a
confiança na existência coesa e substancial de uma correspondente “alma
brasileira”.

O tema de Gomide são as duas “febres russas” que marcaram a modernização


abrupta e autoritária do Brasil. A primeira coincidiu com a Revolução de 1930,
quando as traduções francesas antes lidas por aqui começaram a ser traduzidas
para o português. A segunda marcou os últimos anos do Estado Novo e a
redemocratização do país, sob o impacto das vitórias da União Soviética contra
as forças nazistas, no front oriental da Segunda Guerra. A minuciosa pesquisa
recupera o movimento editorial inovador e o intenso debate crítico que se
espalhou pelas páginas dos principais jornais do país, a ponto de o “texto russo”
se tornar uma referência fundamental da cultura brasileira, num momento de
instalação do modernismo no establishment e desenvolvimento do próprio
romance brasileiro de vanguarda.

Crucial para isso foi a difusão da imagem de extrema seriedade associada à


literatura russa. A leitura de Tolstói, Turguêniev, Dostoiévski e outros era vista
como um mergulho nos “subterrâneos” da condição humana, indispensável ao
amadurecimento individual ou coletivo. O apelo ao Brasil era particularmente
forte. “A literatura russa”, diz o autor, “era considerada unanimemente o melhor
resultado artístico oriundo de uma região atrasada, emulável por um lugar como
o Brasil em função da mistura de características europeias e não-europeias
presentes em ambos”.

O resultado foi uma bibliografia impressionante: segundo Gomide, só entre 1943


e 1945 foram publicados no Brasil nada menos que 83 volumes de literatura
russa. Pelas contas do autor, foi quase um lançamento por semana. Só nos
últimos dois anos do Estado Novo, surgiram onze antologias do conto russo —
que decerto tiveram papel significativo no fortalecimento desse gênero
especialmente cultivado pelos escritores brasileiros.

Recém-saído da letargia da República Velha, o país se


dava conta aos poucos da polarização global trazida
pela Revolução de 1917

Essa produtividade de apenas três anos supera o patamar já bastante notável


alcançado em uma década e meia de publicações na área, no século 21. Em favor
da atual “febrícula”, pode-se alegar que as “febres” passadas apresentaram
traduções quase sempre indiretas, em contraste com o rigor atual de partir
sempre da língua russa, nos originais. Diga-se de passagem que Gomide tem
participação considerável nesse revival, como professor de literatura russa do
Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo. No entanto,
falta hoje o tremendo impacto público de antes, como ele mesmo ressalta, ao
confessar, bem-humorado, “certa nostalgia daqueles dostoiévskis perambulando
pela rua do Ouvidor”.

Onomástica russo-brasileira
Gomide levanta, além do movimento editorial e crítico, o reflexo — digamos —
onomástico da influência russa. Surgiram gerações de Máximos e Leões,
atestando o amor de pais e mães brasileiros por Górki e Tolstói.
Compreensivelmente, Dostoiévski não foi homenageado da mesma forma,
porque seu prenome (Fiódor) era então grafado aqui à maneira francesa (Fedor).
O campeão das homenagens, pelo que a pesquisa assinala, foi mesmo o autor de
Guerra e paz, como atestam os registros encontrados de nomes como Tolstói
Furtado de Oliveira, Tolstói Coelho de Souza, Tolstói de Carvalho Melo, entre
vários outros Tolstóis disso e daquilo. 

Ao mesmo tempo, os editores se atrapalhavam com a transliteração dos nomes


cultuados: Leão, Leon ou Liév? Dostoiewski ou Dostoievsky? Turgueniew ou
Turgeneff? E inventavam tradutores russos como Ivan Petrovitch e J. Jobinsky
para escamotear a origem indireta das suas versões — descoberta que Gomide
atribui à tradutora e pesquisadora de história da tradução Denise Bottmann.

O Brasil era — ou já era — “russófilo e russófobo em doses iguais”. Recém-saído


da letargia da República Velha, o país se dava conta aos poucos da polarização
global trazida pela Revolução de 1917. O interesse por Tolstói, Turguêniev,
Dostoiévski, Górki e outros tantos por vezes despertava solidariedades políticas
não necessariamente relacionadas à arte literária, assim como a contraposta
desconfiança. Assim, a primeira “febre” cedeu depois que a insurreição
comunista de 1935 despertou reações histéricas como a de um médico de
ultradireita, filiado à Ação Integralista, que publicou na imprensa brados contra
os “judeus da Rússia”, que para ele eram “paus-mandados da literatura russa”.

Tanta exaltação não deixava de ser um desabafo diante da selva amazônica de


mensagens subliminares ligadas à edição dos mestres russos. Diz Gomide que
“cada edição de um livro russo no Brasil continha um subtexto esópico, um
comentário provocador, à esquerda e à direita, sobre o estado das coisas”. Sendo
o assunto hoje inesperadamente atual, qualquer um sente na pele como é difícil
abordá-lo sem passar algum recado a favor ou contra o “marxismo cultural”, a
“ideologia globalista” e outras fábulas.

Mas a temperatura editorial e crítica voltou a subir com a entrada soviética na


guerra, em junho de 1941, somada à crise do Estado Novo nos anos seguintes. O
noticiário volta e meia envolvia os grandes escritores no relato dos combates,
enquanto os nazistas avançavam sobre os cenários “que encheram de poesia a
alma de Tolstói e os olhos melancólicos de Górki”. Os lances dramáticos geraram
uma massa de poemas, artigos, relatórios e peças de propaganda, nos quais a
análise fina e desabusada de Gomide identifica um gênero discursivo específico: o
“texto-Stalingrado”, alusão à terrível batalha que motivou a pena de poetas como
Pablo Neruda e Carlos Drummond de Andrade.

O caráter mobilizador, com o objetivo de uma interferência direta na realidade, é


a pedra de toque do “texto-Stalingrado”. Conforme Gomide, é “a grande narrativa
do período, o seu texto-matriz”, imantado com “a ideia de humanismo contra a
barbárie”. Acha-se aí o ponto mais relevante a considerar acerca das “febres
russas” do Brasil: ou pelo identitarismo nacional, ou pelo anseio de edificação,
ficava a literatura sempre subordinada a algum ideal posto fora dela mesma e de
sua fruição livre, como justificativa externa e parâmetro de valor. Talvez por isso
mesmo Drummond, já convalescido, não incluiu o poema “Carta a Stalingrado”
em sua Antologia poética, de 1962.

Dostoiévski, intérprete do Brasil Privacidade - Termos


O tópos que compara a Rússia e o Brasil é mais antigo que a própria
Independência. Remonta pelo menos ao tempo de Cláudio Manuel da Costa, que
em soneto publicado em suas Obras, de 1768, já comentava os feitos civilizadores
de Pedro, o Grande, fundador de São Petersburgo, como cabíveis também na
América portuguesa: “Romper de altos penhascos a rudeza,/ Desentranhar o
monte, abrir o rio”. Isso tira um pouco do charme solarengo de Gilberto Freyre,
quando diz que o Brasil é uma “Rússia americana”. Trata-se de um lugar-comum,
embora faça parte dele o ar de originalidade.

Vários críticos envolvidos com a ‘interpretação’ da


nacionalidade brasileira também foram em algum
momento propagadores da obra de Dostoiévski

O ponto alto da vasta pesquisa de Gomide incide precisamente sobre a força


dessa comparação reiterada. Ela se cristaliza na coleção das obras de Dostoiévski
lançada pela editora José Olympio a partir de 1944. Foi um projeto editorial de
proporções épicas, que tinha entre os tradutores escritores de alto calibre, como
Rachel de Queiroz, José Geraldo Vieira e Rosário Fusco, além de prefaciadores
como Otto Maria Carpeaux, Brito Broca e Roberto Alvim Corrêa e ilustradores
como Santa Rosa e Osvaldo Goeldi. “Monumental edição”, declarou Manuel
Bandeira. Para Drummond, a editora demonstrava “uma consciência maior, no
meio cultural brasileiro, do zelo que é preciso dispensar a esse terrível estudo da
alma humana”.

O esmero da José Olympio — em pleno contexto “stalingrádico” — serve para


confirmar a afirmação de Gomide: “Publicar a literatura russa era uma missão”.
A gravidade atribuída ao autor de Crime e castigo justificava os maiores esforços.
O “calcanhar-de-Aquiles”, no dizer de Gomide, é a origem francesa dos textos.
Mas foi tomado o cuidado de escolher traduções feitas a partir da edição mais
recente, soviética, altamente autorizada pela excelência filológica dos critérios
textuais adotados. 

Gomide esmiúça detalhadamente a história dessa edição, com farto uso de


documentação primária, inclusive a correspondência trocada entre os tradutores
e a editora. Entretanto, mais que no mérito de pesquisador, sua mão de mestre se
revela na análise. A empreitada da José Olympio vinha coroar “uma maneira
particularmente brasileira de ler Dostoiévski”, na qual ele era apresentado como
“o entroncamento de ficção e sociedade”, ou “a ligação mais poderosa entre uma
literatura inovadora e a interpretação da vida nacional”.

Não por acaso, a editora se empenhava desde 1936 na coleção Documentos


Brasileiros, estreitamente associada à voga dos “intérpretes do Brasil”. Cerca de
cinquenta volumes sairiam até o final do Estado Novo, a princípio sob direção de
ninguém menos que Gilberto Freyre, e começando por nada menos que Raízes do
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.

Gomide observa que vários pensadores e críticos envolvidos com a


“interpretação” da nacionalidade brasileira também foram em algum momento
intérpretes e propagadores da obra de Dostoiévski. A monumentalização
editorial do autor de Humilhados e ofendidos no Brasil acabaria transformando-o
também num meio para questionar e conhecer o país. Para Gomide, a coleção da
José Olympio viria a ser “uma espécie de brasiliana russa ou russiana brasileira”,
ou ainda uma “enciclopédia da vida russo-brasileira” — diz, parafraseando o dito
célebre de um crítico russo sobre o romance em versos de Púchkin, Evguêni
Oniégin. 

Mas essa obra enciclopédica só se completa agora, com o saboroso livro de


Gomide. Muitos “verbetes” ele contém, ainda não mencionados. Um, por
exemplo, trata do obscuro poliglota David Vygódski, latino-americanista que
Gomide resgata dos arquivos; engolido no sorvedouro dos expurgos stalinistas,
ele tinha estabelecido os primeiros contatos diretos entre a intelectualidade
soviética e a brasileira. Outro descreve a reviravolta trazida pela atuação mais
rigorosa de Boris Schnaiderman, como crítico e tradutor, a partir de finais dos
anos 50.

Tinha sido Boris o primeiro a verter Os irmãos Karamázov direto do russo. A


editora Vecchi publicara a tradução em inícios de 1944, atribuindo-a a um tal de
Boris Solomônov. Meses depois, o verdadeiro tradutor embarcava para a Itália,
como sargento de artilharia da Força Expedicionária Brasileira. Gomide se
pergunta se ele não terá combatido lado a lado com o próprio Tolstói — isto é,
com o “pracinha” Tolstói Teixeira Campos.

Veja todo o conteúdo da edição #21 (br/current_new/21)

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