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CASTING

Um filme de João Pedro Rodrigues

When the legend becomes fact, print the legend.


“The Man Who Shot Liberty Valance” (John Ford, 1962)

Tratamento cinematográfico

Imagine-se um filme sobre o primeiro rei de Portugal, D. Afonso


Henriques. Seria preciso encontrar um corpo, uma voz, um olhar
contemporâneos para o fundador de Portugal.
CASTING far-se-á a partir dessa procura imaginária de uma figura
tutelar, alvo de mitificações sucessivas no decurso da História de Portugal.
O fascínio pela figura de D. Afonso é velho de séculos; o distante
monarca foi frequentemente invocado pelos seus sucessores. No auge da
expansão dos “Descobrimentos” e achando a sepultura original demasiado
modesta, D. Manuel I faz trasladar os restos mortais do seu antecessor para
um novo e esplendoroso túmulo; as crónicas então lavradas dão conta de um
corpo de gigante, “inteiro, incorrupto, (…) de estatura de des palmos em
comprido e de dous e meio de largo pellos peitos (dois metros por meio metro
aproximadamente”1. Trezentos anos mais tarde, D. Miguel, em plena luta
fratricida com o seu irmão D. Pedro e em busca de legitimação “superior”,
decide abrir o túmulo na Igreja de Santa Cruz de Coimbra; persistindo a
figura de um grande homem, ganha força a imagem da envergadura
imponente do fundador da nação. Na atribulada década de 30 do século
passado e aproveitando a vaga nacionalista do final do século XIX (que,
paradoxalmente, levou à queda do regime dinástico de que D. Afonso
Henriques é primeiro nome) António de Oliveira Salazar surge ilustrado como
“defensor de Portugal”, travestindo-se para isso de rei medieval, emulando a
popular escultura vimaranense da autoria de Soares dos Reis; talvez uma
1
Segundo memó ria escrita por Joã o Homem, cavaleiro da casa de D. Manuel, cf. MATTOSO,
José – D. Afonso Henriques. Lisboa, Temas e Debates, 2007.
tentativa de reservar para a sua triste figura – um austero professor de
Coimbra de nariz adunco e postura curvada – um pouco da lendária
grandiosidade do primeiro rei português. Estas e outras invocações, muitas
delas com muito pouca credibilidade, fizeram descer uma névoa de
misticismo e incerteza sobre a real figura.
Acompanhando D. Afonso Henriques e não menos mitificada, a sua
espada está igualmente imersa em lendas sobre as suas reais dimensões.
Repousando alegadamente em Santa Cruz de Coimbra – tal como o seu
escudo, “famoso” por cair ao solo de cada vez que um monarca morria –
rezam as crónicas que o rei D. Sebastião tê-la-á levado para África na sua
letal aventura de Alcácer-Quibir2. De acordo com os rituais medievais, a
espada assumia uma importância tão grande como a própria coroa, e não por
acaso – os primeiros reis ibéricos tornaram-se soberanos muito à custa do
esforço bélico da reconquista. Assumindo um papel primordial na investidura
dos cavaleiros, a espada é também insígnia imposta ao rei 3 e figura,
invariavelmente, na iconografia existente de D. Afonso Henriques, como uma
insígnia “que lhe dá uma autoridade sem par, a que o distingue de todos os
outros homens”4. À medida da imponência da figura, ficou a ideia de uma
espada descomunal e de peso extraordinário, só passível de manejar por
uma criatura de grandeza sobre-humana, um herói, quase um super-homem.
A mais recente tentativa de abertura do túmulo de D. Afonso
Henriques data já deste século. Uma iniciativa da antropóloga Eugénia
Cunha, que almejava analisar as ossadas do primeiro rei português, foi
frustrada por “impedimento superior” de última hora, deixando por revelar o
que verdadeiramente se encontra no interior do túmulo.
O cinema revela-se então como o meio ideal para tentar encontrar um
corpo para o mito fundador da nacionalidade, o corpo de D. Afonso
Henriques, logrando, talvez, revelar o que à Ciência não é permitido e que a
História não consegue deslindar.

2
Aparentemente, a espada terá ficado na nau régia, o que terá alimentado os fatalismos
em torno do fracasso da contenda (Cf. Rodrigues, Ana Maria S. A. – Em busca de D. Afonso
Henriques através de oito séculos de Historiografia Portuguesa in Actas do 2º Congresso histórico
de Guimarães, Volume 3. D. Afonso Henriques na História e na arte. Guimarã es: Câ mara Municipal
de Guimarã es e Universidade do Minho, 2000).
3
Cf. MATTOSO, José – Fragmentos de uma composição medieval. Lisboa: Estampa, 1987.
4
Cf. MATTOSO, José (idem).

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