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Diante do Santo Sacramento do Matrimônio:


os escravos de São João de Cariacica-ES, 1850-1888

Geisa Lourenço Ribeiro (UFES)

Resumo

A existência de relações familiares no cativeiro já foi bem evidenciada por diversos trabalhos nas
últimas décadas. Contudo, áreas consideradas periféricas do ponto de vista econômico ainda
carecem de pesquisas, como é o caso do Espírito Santo.
Uma economia baseada na produção de alimentos para o mercado interno e escravarias de
pequeno porte, quando comparadas com aquelas das áreas agro-exportadoras do Rio de Janeiro,
São Paulo e Bahia, caracterizam a Província do Espírito Santo no cenário econômico do Brasil
imperial. Essas características, aliadas ao pequeno número de pesquisas sobre a região, impõe-
nos uma dúvida referente a uma tese corrente na historiografia sobre a escravidão: a dificuldade
para a formação de famílias escravas em pequenos cativeiros.
Com base em documentos de origem eclesiástica, os Livros de Casamento, pretende-se investigar
a existência de famílias cativas na Freguesia de São João de Cariacica, na segunda metade do
século XIX. Nessa conjuntura bastante específica, na qual a abolição do tráfico de africanos
trouxe complicações para o abastecimento da mão-de-obra para os senhores espírito-santenses,
assim como para os demais brasileiros, e incentivou o tráfico interprovincial, objetiva-se
investigar os padrões de casamento envolvendo escravos naquela freguesia. Em um período de
tão grande instabilidade, no qual seria ainda mais difícil a formação de laços familiares no
cativeiro, segundo outra tese bastante difundida na historiografia, procura-se refletir sobre a
busca do sacramento do matrimônio pelos escravos enquanto importante instrumento de ação na
sociedade à luz das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), principal
documento religioso produzido no Brasil durante a Colônia e válido ainda durante o Império que
procurava regular as uniões maritais entre cativos.

Palavras-chave: Escravos; São João de Cariacica/ES; Registros Eclesiásticos; Casamento.


2

Introdução

Na década de 1970 surgiram no Brasil diversas pesquisas sobre escravidão que contestaram em
inúmeros aspectos os estudos mais antigos acerca do assunto, especialmente no que se refere à
família escrava. Como nos falam Manolo Florentino e José Roberto Góes1, estas pesquisas, com
referencial no Sul dos Estados Unidos, são portadoras de importantes modulações para a
compreensão das relações familiares escravas e, portanto, para reescrever a História e só foram
possibilitadas pela incorporação de novos tipos de fontes, em geral, de natureza demográfica e
quantificável.

Somando as novas fontes às novas perspectivas dos historiadores, se tornou possível conhecer,
segundo Florentino e Góes, aquilo que era considerado inviável por uma historiografia mais
tradicional: a existência de famílias escravas como algo a mais do que meras exceções. Esses
pesquisadores, ao estudar o agro fluminense no período entre 1790 e 1850, afirmam que através
da criação de laços parentais se tecia a paz das senzalas, essencial tanto para o senhor quanto para
sua “mercadoria viva”. Se o primeiro se interessava principalmente pela renda política que
poderia auferir desse “elemento de estabilização social”, os cativos viam nesse mesmo elemento
uma forma de melhor suportar a escravidão, de refazer sua vida e, é claro, um meio de fazer
aliados — estratégia básica para enfrentar o senhor.

Ao que parece, a presença de filhos e a sanção religiosa contribuíram para dar maior estabilidade
às famílias compostas por escravos. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia2,
publicadas originalmente no século XVIII, procuraram disciplinar as uniões envolvendo cativos,
adequando-as às orientações do Concílio de Trento, como nos falam Adriana Campos e Patrícia

1
FLORENTINO, Manolo; José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.
1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
2
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo ilustríssimo, e reverendíssimo senhor D.
Sebastião Monteiro da Vide 5º arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho da Sua Majestade: propostas, e aceitas
em o Sínodo Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. Lisboa 1719 e Coimbra. 1720.
São Paulo: Typographia 2 de dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853.
3

Merlo3. Ainda segundo essas historiadoras, o sacramento do matrimônio foi um relevante


instrumento de socialização para o cativo, conferindo-lhe certa proteção por parte da Igreja,
mesmo que também fosse um mecanismo integrador dos estrangeiros forçados na sociedade
escravagista.

Se a existência das famílias cativas não é mais contestada no Brasil, visto o esforço investigativo
realizado por diversos pesquisadores nas últimas décadas, ainda há aspectos que merecem ser
discutidos. Gostaríamos de chamar a atenção para uma tese bastante difundida segundo a qual os
cativos de grandes plantéis teriam mais possibilidades para estabelecer laços familiares
duradouros, especialmente quando sancionados pela Igreja Católica. Ora, são justamente as áreas
ligadas ao dinâmico comércio agro-exportador e, por conseguinte, portadoras das maiores
escravarias aquelas tradicionalmente privilegiadas nas pesquisas históricas. Sendo assim, o que se
pode dizer de uma região voltada para o abastecimento interno, com escravarias de pequeno
porte? Com o intuito de tentar responder a esse questionamento investigamos a Freguesia de São
João de Cariacica, na província do Espírito Santo, no conturbado período da segunda metade do
século XIX marcado, entre outras coisas, pelo tráfico interno e pelas leis antiescravistas.

Terra Capixaba no Oitocentos

A Província do Espírito Santo caracterizou-se no século XIX pelo equilíbrio entre homens e
mulheres escravos, exceção feita a Cachoeiro de Itapemirim devido ao surto cafeeiro
experimentado pela região4. Devemos atentar para a época e o caráter da expansão cafeeira desta
província, pois aqui o café se espalhou tardiamente, apenas na segunda metade do Oitocentos, e
por influência dos fazendeiros do Rio de Janeiro e de Minas Gerais que na busca de terras férteis
migraram, acompanhados de seus escravos, para o sul capixaba, instalando-se nos vales dos rios
Itapemirim e Itabapoana. Nesta região, cuja liderança econômica pertencia a Cachoeiro de
Itapemirim, prevaleceram as unidades produtivas do tipo “plantation” escravista, dignas de serem
comparadas, segundo Almada, às do Vale do Paraíba.
3
CAMPOS, Adriana Pereira; MERLO, Patrícia M. da Silva. Sob as bênçãos da Igreja: o casamento de escravos na
legislação brasileira. Topoi: Revista de História, vol. 6, n° 11, 2005, pp. 326-360.
4
ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: Espírito Santo, 1850-1888. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1984.
4

Enquanto isso, a região da capital vivia uma situação bastante diferente daquela observada ao sul
da província, sendo caracterizada por sua economia menos dinâmica que a do centro produtor de
café por excelência, Cachoeiro. Patrícia Merlo5 nos lembra que:

Nossos números são muito modestos se comparados com o padrão de posse dos
senhores de engenho do Recôncavo baiano, das plantations cariocas ou com as fazendas
de café de São Paulo. Entretanto, são médias muito próximas das encontradas em outras
áreas dedicadas majoritariamente à agricultura de alimentos, como é o nosso caso6.

O município de Nossa Senhora da Vitória que incluía as Freguesias da Capital, de São João de
Cariacica, São João de Carapina, São José do Queimado e Santa Leopoldina, contava com
pequenas e médias propriedades e produzia gêneros alimentícios diversos como açúcar,
mandioca, algodão, arroz, milho, café, e alguns legumes destinados principalmente ao consumo
interno. Como afirma Fabíola Martins Bastos7, os moradores do município de Vitória,
excetuando-se as Freguesias da Capital, levavam uma vida ruralizada, o que não impedia que
estivessem inclusos na lógica das atividades de negócio tipicamente urbanas. Uma freguesia que
ilustra bem essa situação é aquela que pesquisamos:

parece que a Freguesia de Cariacica constituía-se majoritariamente por caminhos de


terra, conhecidos popularmente como passagens e estradas, e por propriedades rurais.
Embora haja esse índice vertiginoso de lavradores também se verifica a existência de
negociantes e costureiras como moradores dessa freguesia. Na análise qualitativa dos
processos de agressão física dessa região nota-se a freqüência de comércio destinado à
venda de alimentos, tais como frutas, farinha, e outros gêneros, além de qualidades de
bebidas alcoólicas.8

Após uma breve caracterização da província do Espírito Santo, em especial da Freguesia de


Cariacica – pequenas propriedades, produção de gêneros alimentícios voltada para o mercado
interno, pequenos plantéis escravistas – podemos nos questionar sobre a situação dessa região na

5
MERLO, Patrícia da Silva. O nó e o ninho: estudo sobre a família escrava em Vitória-ES, 1800-1871. Tese de
doutorado apresentado à UFF, 2008.
6
Idem, p. 5.
7
BASTOS, Fabíola Martins. Relações sociais, conflitos e espaços de sociabilidade: formas de convívio no município
de Vitória, 1850-1871. Relatório de qualificação apresentado PPGHis da UFES, 2008.
8
Idem, p. 60.
5

segunda metade do século XIX, após a abolição do tráfico transatlântico de almas. Sabemos que
após a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, intensificou-se o tráfico interno em direção aos centros
mais dinâmicos do país, ou seja, aqueles relacionados ao comércio agro-exportador nos quais,
como já dito, não se incluíam Cariacica e as demais freguesias do município de Vitória.

Não dispondo de uma economia suficientemente forte para competir com outras regiões pela
atração da mão-de-obra cativa e correndo riscos de perder braços devido ao assédio de outros
lugares bem próximos, como Cachoeiro de Itapemirim, a que condições foi imposta a população
escrava de Cariacica no que tange aos arranjos familiares? Como comportaram-se os escravos
frente às mudanças em curso naquele século, as quais se unem a promulgação de leis
antiescravistas que tornaram o período ainda mais complexo? Heloísa Maria Teixeira9 nos lembra
que a Lei Eusébio de Queirós foi apenas a primeira de uma série de medidas com vistas a
abolição gradual da escravidão. Outras duas leis tornaram esse período ainda mais complexo:
uma, de 25 de agosto de 1869, proibia a separação das famílias escravas e a outra libertava o
ventre das cativas. Além disso, a Lei Rio Branco, mais conhecida como Lei do Ventre Livre,
também previa a criação de um Fundo de Emancipação para a libertação dos escravos que dava
prioridade às famílias na ordem de receber o benefício.

Ora, um dos argumentos utilizados pela historiografia tradicional para negar a existência da
constituição de famílias no cativeiro é justamente a intensificação do tráfico interno após 1850,
fator de grande instabilidade para a população escrava mesmo aquela há muito tempo
estabelecida em algum canto do país. A possibilidade de vender a mão-de-obra ociosa para
regiões distantes provocaria um sentimento de desconforto nos senhores a respeito do casamento
de seus escravos e, por isso, eles poderiam procurar dificultar a sacramentalização das relações
maritais ocorridas no cativeiro. Afinal, as famílias abençoadas pela Igreja Católica eram mais
difíceis de serem separadas, como nos falam Adriana Campos e Patrícia Merlo.

Antes mesmo da criação da lei de 1869 há pouco referida – sobre a proibição de separar as
famílias cativas – as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, principal documento

9
TEIXEIRA, Heloísa Maria. Família escrava, sua estabilidade e reprodução em Mariana, 1850-1888. Revista Afro-
Ásia, n° 28, pp. 179-220.
6

eclesiástico disciplinador dos sacramentos, publicadas em 1707, já condenavam a separação de


esposos escravos pelo seu senhor, inclusive por meio da venda. Vejamos o que o documento diz
no título LXXI:

Conforme a direito Divino, e humano os escravos, e escravas, podem casar com outras
pessoas captivas, ou livres, e seus senhores lhe não podem impedir o Matrimônio, nem o
uso delle, em tempo, e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar peior,
nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro por ser captivo, ou ter outro
justo impedimento o não possa seguir, e fazendo o contrário pecão mortalmente, e
tomam sobre suas consciencias as culpas de seus escravos que por este temor se deixam
muitas vezes estar, e permanecer em estado de condemnação. Pelo que lhe mandamos, e
encarregamos muito, que não ponhão impedimentos a seus escravos para se casarem,
nem com ameaços, e máo tratamento lhes encontrem o uso do Matrimônio em tempo, e
lugar conveniente, nem depois de casados os vendão para partes remotas de fora, para
onde suas mulheres por serem escravas, ou terem outro impedimento legitimo, os não
possão seguir. E declaramos, que posto que casem, ficão escravos como de antes erão, e
obrigados a todo o serviço de seu senhor.10

Se as Constituições ordenavam aos senhores que permitissem o casamento de seus escravos e o


seu “uso”, fossem entre si ou com pessoas livres, o documento também estabelecia exigências
para os cativos que deveriam ser capazes de receber o sacramento, entender suas obrigações e
usar dele, além de conhecer a Doutrina Cristã11.

Bem, se de fato os escravos de São João de Cariacica que contraíram matrimônio estavam aptos
para tal, segundo as determinações presentes nas Constituições, é difícil precisar. Entretanto, o
segundo documento que utilizamos neste trabalho, o Livro de Casamento da Freguesia de
Cariacica 12 pode nos oferecer algumas pistas. Contudo, antes de analisarmos diretamente a fonte,
falemos sobre sua utilização pela historiografia.

10
CONSTITUIÇÕES primeiras do arcebispado da Bahia[...]. São Paulo: Typographia 2 de dezembro de Antonio
Louzada Antunes, 1853, p.125.
11
CONSTITUIÇÕES primeiras do arcebispado da Bahia[...]. São Paulo: Typographia 2 de dezembro de Antonio
Louzada Antunes, 1853, p.125.
12
ARQUIVO da Cúria Metropolitana do Espírito Santo. Livro de Casamento da Freguesia de São João de Cariacica,
(1866-1891).
7

Registros Eclesiásticos13

De acordo com Sheila de Castro Faria14, a documentação mais trabalhada pelos historiadores da
família no Brasil escravista tem suas origens nas fontes eclesiásticas - os registros paroquiais de
batizado, casamento, óbito e processos de banhos matrimoniais.

A relevância dessa documentação para os pesquisadores da História da Família se deve à


influência da Igreja Católica na sociedade brasileira Oitocentista. Exemplos disso podem ser
observados na importância social adquirida pelos sacramentos. De acordo com Sheila:

O batismo significava a comprovação de ser a pessoa filha dos pais e da terra alegados.
A união matrimonial só existia se o casal tivesse recebido as bênçãos de um padre, com
testemunhas e assentos em livros próprios. O registro de óbito paroquial representava a
morte social. Quase todas as etapas dos momentos rituais da sociedade passavam pelo
olhar e controle da Igreja. Pode-se até mesmo considerar que a cidadania se exercia pela
aceitação, mesmo que estratégica, dos rituais católicos15.

Os rituais sacramentais, tão presentes em vários momentos da vida, eram regulados por uma
legislação eclesiástica, cuja origem encontra-se no Concílio de Trento: vários regulamentos
especiais fundamentaram-se nele, como por exemplo, os estatutos sinodais16. No caso da colônia
portuguesa na América, as já citadas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia –
publicadas no século XVIII por Dom Sebastião Monteiro da Vide – constituem o único estatuto
sinodal publicado no período colonial e com validade no Império. Segundo o Dr. Ildefonso

13
Este tópico foi extraído e modificado de uma de comunicação apresentada no VII Encontro Regional da ANPUH-
ES, 2008, em consórcio com Rafaela Domingos Lago. O artigo produzido a partir do trabalho foi aceito para
publicação nos Anais da ANPUH com o título: “Registros Eclesiásticos: possibilidades para a História do Espírito
Santo”.
14
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
15
FARIA, 1998, p.307.
16
SILVA, Maria Beatriz Nizza. Cultura e opulência no Brasil Colônia. Petrópolis: Vozes, 1981.
8

Xavier Ferreira, Cônego Prebendado e Lente de Teologia Dogmática, autor do prólogo de uma
edição das Constituições publicada em 1853:

Em o Synodo Diocesano, que na Bahia celebrou o muito respeitavel 5º Arcebispo Dom


Sebastião Monteiro da Vide em 1707, forão aprovadas estas Constituições, em que desde
1702 se estava trabalhando. Mão de Mestre retraçarão estas paginas, cuja doutrina foi
por então adoptada: quasi seculo e meio tem servido á Igreja Brasileira, e servirá
sempre naquellas matérias, que não tem sido abrogadas pela mudança dos tempos, usos
e costumes, e pelas Leis recebidas em nosso paiz, á vista da Fórma de Governo, que
felizmente nos rege17 [grifo nosso].

As Constituições estabelecem a forma como a Doutrina Cristã será ensinada e como os


sacramentos serão administrados e registrados. Este detalhe é de fundamental interesse para o
pesquisador, pois os registros são fontes preciosas de informações. Entretanto, somos lembrados
por Sheila de Castro Faria, entre outros historiadores, a respeito dos problemas encontrados nas
fontes brasileiras: precariedade e descontinuidade.

O Espírito Santo, infelizmente, não está muito distante da realidade brasileira, encontrando-se
aqui limitações semelhantes às apontadas para outras áreas do país. Muitos documentos se
perderam por desconhecimento de seu valor por parte de seus depositários ou no processo de
deslocamento para os arquivos. A desorganização dos acervos e, muitas vezes, o
desconhecimento de sua existência por falta de divulgação de seus responsáveis e/ou da
dificuldade de acesso são outros problemas enfrentados pelos pesquisadores. Deve-se a esse
estado do acervo, a impossibilidade de analisar a documentação completa referente ao recorte
teórico estabelecido em nossa pesquisa18: propomo-nos a estudar a Freguesia de Cariacica no
período entre 1850 e 1888, entretanto, a documentação disponível na Cúria Metropolitana de
Vitória inicia-se em 1866! Cremos, contudo, que as fontes existentes, totalizando 618 registros
matrimoniais, nos permitem entender a conjuntura estabelecida após a extinção definitiva do
tráfico africano e, por isso, prosseguimos na investigação que ainda não está concluída.

17
CONSTITUIÇÕES primeiras do arcebispado da Bahia[...]. São Paulo: Typographia 2 de dezembro de Antonio
Louzada Antunes, 1853, p.5.
18
Integramos o Programa Institucional de Iniciação Científica da UFES, com o projeto “Casamentos Escravos em
São João de Cariacica-ES (1850-1888)” orientado pela Profa. Dra. Adriana Pereira Campos. Parte dos resultados de
nossa pesquisa, ainda está em andamento, é apresentado nesse artigo.
9

O caso de São João de Cariacica

O Livro de Batismo da Freguesia de Cariacica segue, de maneira geral, um padrão no qual


constam informações como data, local e horário da cerimônia, nome dos nubentes, pais e
testemunhas, nome do primeiro cônjuge caso um deles seja viúvo, local de nascimento e moradia
dos noivos, nome do proprietário caso um dos nubentes ou de seus pais seja escravo, além de
informações sobre dispensas matrimoniais, gratuidade do casamento, realização das disposições
tridentinas, nome do religioso responsável pela celebração e de outros que estivessem presentes
durante sua realização – parte das informações são coletadas ainda durante a fase das
denunciações previstas nas Constituições. Devemos ressaltar, no entanto, que ao longo dos anos
pesquisados houve variação na forma de registrar os casamentos o que influencia diretamente o
nosso trabalho.

Algumas informações sobre os noivos são ocultadas, seja por negligência, seja por simples
desconhecimento das mesmas – o que mais ocorre no caso de nubentes escravos. Uma mudança
bastante significativa no Livro de Casamento ocorre a partir de 1884 quando o registro se torna
mais minucioso com o acréscimo de novas e importantes informações como, por exemplo, as
idades e ocupações dos noivos. Além da inclusão de novos dados, percebemos maior cuidado e
sistematização das anotações pelo pároco cariaciquense como a explicitação da nacionalidade dos
noivos e da condição jurídica, apenas inferida anteriormente – as pessoas livres ostentam o nome
completo no registro de casamento, enquanto os escravos são identificados apenas pelo primeiro
nome e pelo seu proprietário – ainda que tenham pais conhecidos e livres não aparece nenhum
sobrenome. Vejamos um exemplo:

Aos cinco dias do mês de Outubro do anno de mil oitocentos e oitenta e quatro, pelas
sete horas da manhã, à Matriz dessa Freguesia de São João Baptista de Cariacica, depois
das três denunciações canônicas, e demais diligencias prescriptas pelo Sagrado Concílio
de Trento, Constituições e Pastorais do Bispado, sem impedimento e parentesco algum,
em minha presença, e na das testemunhas José Pereira de Barros Couto e Manoel Pinto
Cardozo infra assignados,, estando os contrahentes preparados com a confissão, na
forma do Ritual Romano, segundo o Sagrado Concílio de Trento, receberão-se em
matrimonio por palavras de prezente Francellina Maria da Penha, livre, solteira, com
10

quatorze annos de idade, brazileira, lavradora, e Urbano, solteiro, com vinte e cinco
annos de idade, brazileiro, lavrador, e escravo de D. Ana Ribeiro da Fraga, a contrahente
é filha natural de Florinda Maria da Conceição, e o contrahente é filho natural de
Thereza da Conceição de Jesus. A contrahente nasceo e foi baptizada nesta Freguesia,
donde he moradora e fregueza, e o contrahente nasceo e foi baptizado à Freguesia de
Nossa Senhora da Victoria, donde é morador e fregues. Receberão as bênçãos nupciais
intra Missam. E para constar, lavrei este termo que assignei e as testemunhas supra
declaradas. Vigário João Ferreira Lopes Wanzelles. José Pereira de Barros Couto.
Manoel Pinto Cardozo19
Como podemos observar na transcrição acima, o noivo é escravo mas sua mãe é conhecida e,
mesmo assim, ele aparece simplesmente como Urbano. Esse enlace matrimonial é um dos 618
ocorridos em São João de Cariacica entre 1866 e 1888, sendo um dos 40 envolvendo nubentes
escravos no mesmo período. O número pode parecer muito pequeno à princípio, no entanto,
lembramos que a população do Município de Vitória, em 1872, era de 12.470 livres e 3.687
escravos20. Desta população, 3.360 livres e 1.001 escravos viviam apenas na Cidade de Vitória.
Não possuímos os dados exatos para a Freguesia de Cariacica, porém, sabemos que na região do
município de Vitória a população cativa concentrava-se na Capital fazendo-a assumir aquela
paisagem humana crioula do qual nos fala Adriana Campos21. Cremos ser difícil esperar
encontrar um número muito elevado de cativos não somente no Livro de Casamento, mas
também na Freguesia de Cariacica. Lembramos que a região foi caracterizada, no tópico anterior,
como portadora de modesto contingente de cativos.

Após a constatação do reduzido número de escravos entre os casais cariaciquenses, atraiu-nos


outras duas verificações. Em primeiro lugar, não há casamento entre duas pessoas cativas; em
segundo lugar, os homens cativos predominam absolutamente no grupo de matrimônio
envolvendo pessoas com esse status jurídico: das 40 ocorrências mencionadas, eles são os
nubentes em 38. Apenas duas mulheres cativas casam-se na Freguesia do Vigário João Ferreira
naquele período sendo que uma delas, Maria, é freguesa de Vitória.

Aliás, o caso de Maria e do seu noivo Aurelio Francisco de Veiga, aponta para a questão da
mobilidade dos casais assim como o registro transcrito de Urbano e Francellina. Sobre o primeiro

19
CÚRIA Metropolitana de Vitória. Livro de Casamento de Cariacica L 03, 1866-1891.
20
BASTOS, 2008, p. 27.
21
CAMPOS, Adriana Pereira. Escravidão e creolização: a capitania do Espírito Santo, 1790-1815. In: FRAGOSO,
João [et al.] Nas Rotas do Império: Eixos Mercantis, Tráfico e Relações Sociais no Mundo Português. Vitória:
Edufes; Lisboa: IICT, 2006.
11

casal, o que fazia se casando em Cariacica já que era morador da Capital? Infelizmente, a
naturalidade dos nubentes não é mencionada nesse caso e poderia, quem sabe, ser a chave de
resposta para a questão: talvez se deslocassem de Vitória para se casar na Freguesia de origem
para a comodidade de parentes e amigos, por questão afetuosa ou outra qualquer. Bem, nossa
fonte não permite responder com exatidão o que levou o casal a procurar o Vigário João Ferreira
em detrimento de seu pároco para contrair o matrimônio, mas ela nos permite perceber junto de
outros casais a mobilidade em busca de um parceiro, mesmo para os escravos.

Os casais presentes no Livro de Casamento residem em sua maioria em Cariacica: 87,5% dos
noivos são fregueses do Vigário João Ferreira, enquanto entre as noivas o índice chega a 94,7%!
Apesar da predominância cariaciquense, alguns noivos deslocaram-se um pouco mais para
encontrar um par pois são mais 13 localidades diferentes, entre vilas e freguesias, pertencentes ao
município de Vitória, a outros municípios do Espírito Santo e à outras províncias.

Se é verdade que os escravos estão presos ao seu senhor, parece que nem todos estão presos à
senzala, pelo menos não o tempo todo. O caso do escravo Urbano, freguês de Vitória e noivo de
uma moradora de Cariacica é exemplo disso. Claro que ele pode ter conhecido a noiva em sua
Freguesia, mas independente disso, a questão é que ele dispunha de tempo suficiente para
arranjar um casamento fora da “senzala”, com uma jovem livre e ainda realizar a cerimônia fora
de sua Freguesia. Em um aspecto, ele não foi exceção pois, como já dissemos, os 38 noivos
escravos do nosso documento casaram-se com pessoas livres, ou libertas, não o sabemos. Os ex-
cativos só podem ser identificados no Livro de Casamento caso apareça o nome da mãe cativa
pois o termo “liberto”, distintivo do “status” social, só aparece uma vez.

Cremos ser possível que o termo não tenha se popularizado em Cariacica, uma localidade
bastante marcada pela miscigenação e pela existência de uma escravaria antiga, a exemplo da
região da Capital da qual falamos anteriormente. Para se ter idéia dessa mistura de etnias, 49,4%
dos casais registrados no período analisado foram identificados como pardos. Não temos dúvidas
sobre o fenômeno da mestiçagem, contudo, devemos lembrar que a “cor” utilizada para
caracterizar o casal foi definida pelo pároco que, estando imerso em sua sociedade, poderia
12

enxergar nas “cores” mais a condição social dos indivíduos do que propriamente a coloração da
pele22. O pároco cariaciquense anota apenas uma cor para o casal, talvez uma tentativa de
“aproximar” os noivos quanto ao sangue – uma das igualdades preconizadas pelos moralistas da
Igreja e que, junto com a “fazenda”, indicava a igualdade social23. O casamento de Guilherme
Augusto Fernandes e Maria Pinto da Conceição, realizado em 1885, parece confirmar essa
opinião: o noivo, natural do Reino da Alemanha, é registrado como pardo e o casamento foi
“Grátis por serem pobres”24.

Bem, se a igualdade era preconizada pela Igreja, podemos perceber que pelo menos alguns
noivos procuravam fugir à ela sob um aspecto. Afinal, todos os nubentes cativos do período
procuraram parceiros livres para construir uma família. De fato, o casamento constituiu-se, em
São João de Cariacica, como instrumento de socialização para o cativo, como defendem Campos
e Merlo. Sendo um meio de interação com a sociedade livre/liberta, é também uma maneira de
aumentar o círculo de amigos e, com isso, de potenciais aliados na luta contra o cativeiro. Aliás,
se observamos poucas mulheres escravas se casando no período estudado, talvez não muito
crédulas na Lei de 1871 – responsável por libertar o ventre das cativas – podemos constatar a
presença de diversas mães e pais procurando o sacramento do matrimônio para seus filhos.

Quando investigamos a filiação dos casais de Cariacica, notamos uma significativa ausência nos
registros que poderia alterar os números da pesquisa: 28,8% dos pais e 12,5% das mães dos
noivos; 27,8% dos pais e 4,7% das mães das noivas simplesmente são ignorados! Isso acontece
especialmente nos casos em que o nubente é escravo e/ou viúvo. Dentre aqueles devidamente
registrados, encontramos seis escravos e 14 escravas acompanhando suas filhas ao altar enquanto
os noivos são acompanhados por 12 pais escravos e 16 mães como mesmo status social.

22
Ver GUEDES, Roberto. Sociedade Escravista e Mudança de Cor. Porto Feliz, São Paulo, século XIX. In:
FRAGOSO, João [et al.] Nas Rotas do Império: Eixos Mercantis, Tráfico e Relações Sociais no Mundo Português.
Vitória: Edufes; Lisboa: IICT, 2006.
23
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal: Família e sociedade (São João del Rei – Séculos XVIII e
XIX). São Paulo: Annablume, 2007.
24
Arquivo da Cúria Metropolitana de Vitória. Livro de Casamento da Freguesia de São João de Cariacica (1866-
1891), p. 144.
13

Com os genitores dos noivos ocorre fenômeno semelhante ao que observamos com estes: a
maioria dos casados, o são com pessoas de status jurídico diferente – encontramos apenas três
casais em que ambos os cônjuges são escravos. Na maioria dos casos repete-se a situação
verificada com os próprios nubentes, qual seja, a relação homem escravo e mulher livre. Além
dos casais, encontramos também diversas mães escravas que tendo gerado seus filhos
naturalmente, procuraram as bênçãos da Igreja para seus rebentos.
Notas Finais

Como explicitado, este trabalho foi produzido a partir de uma pesquisa ainda em andamento e
disso decorre o fato de não haver afirmações conclusivas a respeito do tema. No entanto, cremos
que os dados levantados até o momento já nos permitem vislumbrar alguns aspectos da Freguesia
de São João de Cariacica.

Em primeiro lugar, nota-se claramente o predomínio de famílias mistas, quanto ao status social,
entre aquelas em que os cativos estão presentes: não encontramos nos 22 anos pesquisados, o que
resulta em 618 registros matrimoniais, sequer uma família formada exclusivamente por escravos!
O sacramento do matrimônio parece ter contribuído em larga escala para essa situação já que
identificamos a totalidade dos nubentes cativos casando-se com pessoas livres – possibilidade
prevista e defendida pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.

Outra questão apontada pela fonte foi a preponderância absoluta de homens entre os nubentes
cativos casando-se com livres. Aliás, esse padrão parece não ser exclusividade de uma única
geração visto que ele também é observado entre os pais dos noivos que se casaram no período
estudado.

Bem, sabemos que muitas dúvidas e lacunas permanecem e pretendemos respondê-las e saná-las
à medida que avançarmos em nossa investigação. Por enquanto, podemos afirmar apenas que os
escravos da Freguesia de São João de Cariacica, região ruralizada do Município de Vitória, com
pequenas propriedades produtoras de gêneros alimentícios para abastecimento interno, tiveram a
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possibilidade de buscar as bênçãos da Igreja para construir famílias e que muitas delas
caracterizaram-se pela mistura de status social.

Referências

Fontes primárias

ARQUIVO da Cúria Metropolitana do Espírito Santo. Livro de Casamento da Freguesia de São


João de Cariacica, (1866-1888).

Constituições primeiras do arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo ilustríssimo, e


reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide 5º arcebispo do dito Arcebispado, e do
Conselho da Sua Majestade: propostas, e aceitas em o Sínodo Diocesano, que o dito senhor
celebrou em 12 de junho do anno de 1707. Lisboa 1719 e Coimbra. 1720. São Paulo:
Typographia 2 de dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853.

Fontes secundárias

ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: Espírito Santo, 1850-1888. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1984.

BASTOS, Fabíola Martins. Relações sociais, conflitos e espaços de sociabilidade: formas de


convívio no município de Vitória, 1850-1871. Relatório de qualificação apresentado PPGHis da
UFES, 2008.

BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal: Família e sociedade (São João del Rei –
Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007.

CAMPOS, Adriana Pereira; MERLO, Patrícia M. da Silva. Sob as bênçãos da Igreja: o


casamento de escravos na legislação brasileira. Topoi: Revista de História, vol. 6, n° 11, 2005,
pp. 326-360.
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_______ Escravidão e creolização: a capitania do Espírito Santo, 1790-1815. In: FRAGOSO,


João [et al.] Nas Rotas do Império: Eixos Mercantis, Tráfico e Relações Sociais no Mundo
Português. Vitória: Edufes; Lisboa: IICT, 2006.

FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial.


Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

FLORENTINO, Manolo; José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico,
Rio de Janeiro, c. 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

GUEDES, Roberto. Sociedade Escravista e Mudança de Cor. Porto Feliz, São Paulo, século XIX.
In: FRAGOSO, João [et al.] Nas Rotas do Império: Eixos Mercantis, Tráfico e Relações Sociais
no Mundo Português. Vitória: Edufes; Lisboa: IICT, 2006.
MERLO, Patrícia da Silva. O nó e o ninho: estudo sobre a família escrava em Vitória-ES, 1800-
1871. Tese de doutorado apresentado à UFF, 2008.

SILVA, Maria Beatriz Nizza. Cultura e opulência no Brasil Colônia. Petrópolis: Vozes, 1981.

TEIXEIRA, Heloísa Maria. Família escrava, sua estabilidade e reprodução em Mariana, 1850-
1888. Revista Afro-Ásia, n° 28, pp. 179-220.

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