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Romances Históricos

Realização/Créditos:
Tradução/Pesquisas: GRH
Revisão Inicial: Waléria
Revisão Final: Marlene
Leitura Final: Cleria Janice
Formatação: Ana Paula G.
GRH
Desejo Proibido
Companheiros de Armas 5

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Resumo
Desde o momento em que se conheceram, lady
Beatrice desejou o cínico sir Ranulf, mas como f ilha
de um traidor, sua reputação estava manchada e o
matrimônio era algo impossível para ela. Com a
certeza de que jamais poderia compartilhar sua
vida com o homem de seus sonhos, a jovem donzela
pensou que talvez pudesse estar com ele só por
uma noite…
Ranulf jamais pensou que poderia amar uma
mulher o suf iciente para casar-se com ela… até que
conheceu Bea. Um cavalheiro sem riquezas e sem
poder tinha pouco para oferecer a uma dama.
Entretanto, sua situação mudou quando seu senhor
o pôs no comando de um castelo da Cornualha, e ali
foi onde Bea apareceu de surpresa… com a
intenção de seduzi-lo…

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Nota da Revisora Inicial Waléria
Adoreeeiiiiii !!!!!!! No começo o livro é meio morno, depois vai mostrando
a ação e que homem é esse TUDO DE BOM, carinhoso, atencioso, que
gosta de ouvir quando a mulher fala demais.Espero que todos gostem
como eu. Boa Leitura.

Nota da Revisora Final Marlene:


Gostei muito de revisar este livro. Adoro quando o mocinho TDB
reluta a admitir que ama a mocinha, mas quando admite é para
sempre e faz qualquer coisa por ela. Além disso, neste livro, o
mocinho aceita e gosta do fato da mocinha falar sem parar. O livro
é divertido, romântico e bem escrito.

Nota de Leitura Final Cléria Janice:


Uma história de amor, recheada de aventura e dinamismo.
O mocinho e um guerreiro duro acostumado e vencer batalhas e
não está preparado para admitir que ama a mocinha que é uma
jovem muito esperta inteligente e sabe o que quer. O amor do
mocinho. Impressionante como as mulheres eram inocentes e
ingênuas e ao mesmo tempo impetuosas, destemidas... Guerreiras
por que não.

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Prólogo
Midlands, 1228

Demonstrar medo era um erro.


Se ele havia aprendido algo com língua afiada e zombeteira de seu pai e com
os punhos de seus irmãos maiores, era isso. E também era um erro demonstrar
alegria. Ou compaixão. De fato, era um erro demonstrar qualquer sentimento.
Seu lar, se é que podia dar esse nome, converteu-se em um lugar duro e hostil
depois da morte de sua mãe.
Por isso, quando Ranulf se viu obrigado a abandoná-lo aos doze anos, não
chorou como teria feito qualquer menino de sua idade. Não derramou uma só
lágrima enquanto seu pai o perseguia com um látego, amaldiçoando,
perjurando e insultando-o. Tampouco corria para evitar os golpes. Corria
porque era livre. Livre de seu pai, que nunca se preocupou com ele. Livre de
seus irmãos maiores, que viviam atormentando-o, batendo e rindo dele. Livre
para ir onde quisesse.
E sabia exatamente para onde ia. Por mais difícil e longa que fosse a viagem,
ia ao castelo de sir Leonard de Brissy. Iria aprender a lutar e com o tempo, seria
um cavaleiro.
Foi uma viagem longa e difícil, mais do que tinha imaginado, mas quando
chegou por fim às portas do castelo de sir Leonard, Ranulf o fez com a cabeça e
os ombros erguidos, como se não temesse nada, com um orgulho e uma
determinação tão ferozes como seu desejo de converter-se em cavaleiro.
— Levem-me até sir Leonard de Brissy — ordenou aos estupefatos soldados
que faziam a guarda ante o enorme restelo do castelo.

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— Quem é você e o que quer de sir Leonard? — perguntou o chefe dos
homens.
Franzia suas sobrancelhas escuras enquanto estudava o ruivo de roupa tão
suja. O moço tinha o aspecto de um mendigo miserável, mas se comportava
como se fosse um príncipe e falava tal como os filhos dos nobres que
chegavam até ali para serem treinados por sir Leonard de Brissy nas artes da
guerra e da cavalaria.
— Sou Ranulf, filho de lorde Faulk de Beauvieux. Venho me preparar com sir
Leonard — respondeu o menino, apertando os punhos ao lado de seu corpo.
Sob a imundície que cobria seu rosto se adivinhava um rosto pálido; as
olheiras provocadas pelo cansaço emolduravam seus olhos castanhos.
— Bem, Ranulf de Beauvieux. — respondeu o outro guarda — A questão não
é tão simples. Sir Leonard escolhe os moços que treina. Ninguém, e muito
menos um menino, pode chegar aqui e exigir que o treine.
— Eu sou uma exceção.
O soldado mais jovem soltou um assobio.
— E você é um pouco arrogante.
O moço arqueou a sobrancelha.
— Já disse, sou Ranulf, filho de lorde Faulk de Beauvieux, e devo ver sir
Leonard. Vim andando… percorri um longo caminho para vê-lo.
Depois daquele ligeiro vacilo, Ranulf teve que empregar todas suas forças
para manter a máscara de altiva autossuficiência, apesar de começar a temer
que talvez tivesse chegado até ali, caminhando sozinho na escuridão da noite,
roubando para poder comer e dormindo em qualquer parte, para nada.
— Então veio andando até aqui, não é? — perguntou o guarda mais jovem,
olhando-o com invejoso respeito. — Foi uma viagem muita longa, não acha?
— Isso eu explicarei para sir Leonard, não a você — replicou Ranulf.
— O que vai me explicar? — exigiu um homem de voz profunda e tom sério.

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Os guardas se endireitaram imediatamente. Continuaram com o olhar
cravado no caminho que conduzia até o castelo, sem se virar para olhar o
homem que acabava de falar. Ranulf, no entanto, podia ver perfeitamente o
homem alto com o cabelo salpicado de fios brancos, vestido com uma cota de
malha e uma túnica negra. Caminhava com passadas largas para eles, com
passos ligeiros impróprios para um homem de sua idade. Seu rosto, comprido e
estreito, era tão escuro como um carvalho e estava marcado por algumas
cicatrizes. Mas não foi a pele curtida pelo sol que atraiu a atenção de Ranulf,
nem tampouco as cicatrizes, nem o comprimento de seu cabelo. O que
realmente lhe chamou a atenção foram seus olhos azuis, frios como o gelo.
Olhos de olhar penetrante que pareciam procurar a verdade.
Aquele homem tinha que ser sir Leonard de Brissy e Ranulf soube com
absoluta certeza, que se mentisse ou exagerasse, ele o rechaçaria. Jamais
aprenderia a lutar ou utilizar as armas com habilidade. Jamais chegaria a ser
um cavaleiro.
De modo que, quando sir Leonard parou, Ranulf sustentou seu olhar antes
de inclinar a cabeça.
— Sir Leonard, sou Ranulf, filho de lorde Faulk de Beauvieux. Eu gostaria de
ficar em sua casa e aprender a ser um cavaleiro.
— Ouvi falar de lorde Faulk de Beauvieux — respondeu sir Leonard
friamente, enquanto estudava o filho de um homem conhecido por sua
crueldade, que bebia muito e brigava ainda mais.
Reconheceu as características nítidas dos Faulk em sua descendência. O
moço também herdara a figura esbelta de seu pai, os ombros largos e seu
porte ereto, além de seu orgulho. Mas a visão do cabelo avermelhado e dos
olhos verde escuros abrandou o seu coração. Aqueles traços não eram de
Faulk; eram da mãe do moço, uma mulher que sir Leonard não vira há vinte
anos. Mas os olhos que ele se recordava eram de um olhar amável e delicado,
e os que o olhavam naquele momento, tinham uma força e uma determinação
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que sua mãe nunca havia possuído; de outro modo, poderia evitar o
matrimônio que seus pais tinham arranjado.
E havia algo mais. Que o menino estava ansioso era evidente para o olhar
acostumado de sir Leonard, que levava trinta anos treinando os filhos dos
nobres e já tinha visto muitos deles. Mesmo assim, o moço controlava sua
ansiedade demonstrando uma fortaleza que sir Leonard raramente havia
conhecido, exceto em seus cavalheiros mais preparados.
Aquele não era um menino normal. Algum dia poderia chegar a converter-se
em um valioso aliado ou em um inimigo implacável. E ele preferia tê-lo como
aliado.
De modo que dirigiu a Ranulf um de seus estranhos sorrisos e disse:
— Conheci sua mãe quando ainda era quase uma menina. Em seu nome, é
bem-vindo, Ranulf de Beauvieux.
Embora o alívio fluísse por suas veias como um rio que acabava de
transbordar seu leito, Ranulf apressou-se para esclarecer uma questão que
para ele era importante.
— Não sou um Beauvieux e jamais o serei. Meu pai me repudiou e não
quero ter nada a ver nem com ele nem com meus irmãos.
— E por que seu pai fez uma coisa assim?
Ranulf sabia que fariam aquela pergunta e que também não podia mentir.
— Eu direi em particular — respondeu, olhando de esguelha as sentinelas,
que continuavam perto deles. — Não quero que os assuntos de minha família
se convertam em alimento para fofocas.
Em vez de tomar como uma ofensa ou pior, rir de sua prudência, sir Leonard
assentiu muito sério.
— Nesse caso, adiante-se, Ranulf. Acredito que temos muitas coisas para
falar.

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Capítulo 1
Cornualha, 1244

O senhor de Tregellas nervoso, mudava de posição na poltrona de carvalho


que presidia no tablado da grande sala do castelo.
— Bom Deus, sempre demora tanto? — murmurou quase para si mesmo.
Normalmente, lorde Merrick era o mais estóico dos homens e o salão de
Tregellas um remanso de paz e conforto. Entretanto, naquele dia a sua
adorada esposa estava dando a luz ao seu primeiro filho no quarto do andar
superior, de modo que todo mundo estava nervoso.
Os criados se moviam em silêncio e inclusive os cães de caça permaneciam
imóveis sobre as palhinhas que cobriam o chão.
Só o amigo de lorde Merrick, um homem barbado e de cabelo avermelhado,
parecia tranqüilo enquanto esperava junto a ele desfrutando de uma taça de
vinho.
— Ouvi dizer que o primeiro parto pode se prolongar durante dois ou três
dias — disse sir Ranulf.
Merrick o olhou com os olhos entrecerrados.
— Supõe-se que isso tem que me consolar?
Ranulf curvou os lábios em um sorriso irônico.
— Pois a verdade é que sim.
Enquanto Merrick desprezava com um gesto suas palavras, Ranulf deixou
sua taça.
— Parece muito tempo para nós e, sem dúvida alguma, parecerá muito mais
para sua querida Constance, mas entendi que a primeira vez é normal que o
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parto se prolongue, sem que isso represente algum perigo para o menino ou
para a mãe.
— Não sabia que era um perito em partos.
— E não sou — replicou Ranulf, negando-se a deixar que as maneiras
bruscas de seu amigo o ofendessem. Merrick nunca foi conhecido por sua
delicadeza. — De verdade, acredito que não tem nada com que se preocupar.
Se a sua esposa ou o menino corresse algum risco, a parteira teria mandado
chamar você e o sacerdote e pediria à lady Beatrice que saísse do quarto.
Embora não houvesse dito, Ranulf pensava que era muito estranho que
Beatrice continuasse no quarto de Constance. Ele pensava que Beatrice não
deveria ser testemunha das penalidades do parto, nem infringir sua sempre
borbulhante presença a uma mulher nessa situação. Se ele estivesse doente, a
última coisa que gostaria seria ter lady Beatrice revoando ao seu redor,
colocando-o a par das últimas fofocas da corte ou se deleitando com outro
relato do rei Artur e seus cavaleiros.
— Constance queria que a acompanhasse. — respondeu Merrick,
encolhendo os ombros — Mais do que primas, são quase como irmãs.
Ranulf estava bem consciente do estreito vínculo entre a esposa de seu
melhor amigo e sua prima. Essa era a razão pela qual Beatrice tinha um lar ali,
em Tregellas, apesar de não ter nada em seu nome, salvo seu título, um título
que se devia à influência de Merrick sobre o conde da Cornualha. De outro
modo, Beatrice também o teria perdido quando seu pai foi executado como
traidor.
Merrick começou a levantar-se.
— Não suporto a espera. Vou a…
A porta do vestíbulo se abriu nesse momento de par em par, como
empurrada por um golpe de vento. Os dois homens se voltaram e viram no
marco da porta um homem que parecia vagamente familiar, com a capa
encharcada pela chuva e a respiração ofegante.
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— Meu senhor! — disse o jovem de rosto arredondado enquanto corria
para dentro.
— É Myghal, o ajudante do xerife de Penterwell — esclareceu Merrick.
Aquele era um dos feudos de Merrick na costa sudeste. Enquanto corriam
ao encontro do recém-chegado, Ranulf teve a triste certeza de que sua
respiração agitada não pressagiava nada de bom.
— Meu senhor! — repetiu Myghal enquanto fazia uma reverência. Bastou
aquela saudação para que se fizesse patente seu marcado sotaque da
Cornualha. — Sinto trazer más notícias de Penterwell. Sir Frioc morreu.
Sir Frioc era ou tinha sido o governador do castelo de Penterwell. Aquele
homem corpulento e de bom caráter foi também um homem justo.
Caso contrário, Merrick teria escolhido outro para ocupar aquele posto
quando assumiu o senhorio de Tregellas, depois da morte de seu pai.
— Como morreu? — perguntou Merrick com sua habitual expressão
sombria.
Ranulf sentiu a preocupação que se escondia por trás das palavras de seu
amigo, embora não houvesse nenhum problema digno de consideração em
Penterwell que Ranulf pudesse recordar, salvo o contrabando de estanho
habitual na região, com o qual Merrick e o governador normalmente faziam
vista grossa.
— Caiu do cavalo quando estava caçando, meu senhor — respondeu
Myghal. — Sir Frioc galopava atrás de uma lebre. Perdemo-lo de vista e,
quando por fim o encontramos, estava caído sobre as urzes, com o pescoço
quebrado. Seu cavalo estava perto dele, coxeando. Hedyn acredita que o
cavalo tropeçou e o derrubou.
Hedyn era o xerife de Penterwell, um homem que Merrick considerava de
suficiente confiança para ocupar aquele posto. Não desagrava Ranulf. Aquele
homem de meia idade também o impressionou quando foi visitar aquelas
terras junto com seu amigo.
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Myghal colocou a mão em sua túnica e tirou uma bolsa de couro.
— Hedyn conta tudo em uma carta, meu senhor.
Merrick pegou o envelope com a carta.
— Vá à cozinha comer algo — disse a Myghal. — Um de meus criados se
ocupará de que tenha uma cama onde dormir esta noite e um prato à mesa.
Assim que Myghal se despediu com uma reverência e se dirigiu para a
cozinha, Merrick olhou novamente para as escadas que conduziam ao quarto e
a sua esposa, antes de retornar a sua poltrona, pegar a carta, romper o lacre e
começar a ler.
Tentando não se deixar trair pela impaciência, Ranulf terminou o vinho e
esperou que Merrick falasse. Mas depois de terminar de ler a carta, Merrick a
dobrou e continuou em silêncio, com o olhar fixo na tapeçaria que tinha atrás
de Ranulf, batendo brandamente o pergaminho no queixo.
— Sinto por sir Frioc. — aventurou-se a dizer Ranulf — Eu gostava daquele
homem.
Merrick assentiu e voltou a olhar para as escadas.
— Pelo menos não deixa nenhuma viúva da qual teria que cuidar, — disse
Ranulf — posto que a mulher de Frioc morreu há anos. Nem filhas, por certo.
Tampouco nenhum filho que pudesse aspirar herdar o posto de seu pai,
embora seja seu o privilégio de nomear a pessoa indicada para esse posto.
Merrick colocou a carta no envelope e a guardou na túnica.
— Porém necessitará de um novo governador.
— Sim — respondeu Merrick.
— E a quem tem em mente?
Merrick ficou olhando seu amigo com firmeza.
— Você.
Ranulf esteve a ponto de gemer em voz alta. Ele não queria esse tipo de
responsabilidade, não queria nenhum laço, além da lealdade que jurou aos
seus amigos, sir Leonard e ao rei.
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Entretanto, dissimulou rapidamente seu desconforto e inclusive conseguiu
soltar uma risada.
— Eu? Obrigado pelo elogio, meu amigo, mas não tenho vontade de ser o
governador de um castelo da costa da Cornualha. Inclusive meu posto de
comandante da guarnição nesta casa é algo temporário, recorda?
— Merece mais do qualquer um estar no comando do castelo.
Ranulf não podia evitar sentir-se lisonjeado pela resposta de seu amigo.
Inclinou educadamente a cabeça.
— Agradeço de novo, meu amigo. Entretanto, um castelo tão próximo à
costa é um lugar muito úmido para mim. Inclusive me dói o cotovelo direito
quando está prestes a chover.
Merrick arqueou as sobrancelhas enquanto escrutinava seu amigo de uma
forma digna de sir Leonard.
— É verdade que pretende me fazer acreditar que está muito velho e
adoentado para governar um de meus castelos?
— Graças a Deus, ainda estou em boa forma para lutar — replicou Ranulf
imediatamente — mas, na verdade não tenho nenhuma vontade de dedicar
minha vida a cobrar dízimos e impostos.
Merrick franziu o cenho.
— O governador de Penterwell terá que fazer muito mais do que isso e eu
gostaria de ter a alguém de confiança vigiando essa parte da costa. Tivemos
alguns problemas e…
O grito agudo de uma mulher rasgou a noite. Pálido e com os olhos
esbugalhados pelo pânico, Merrick se levantou de um salto justo no momento
que uma das criadas descia do quarto.
Merrick rapidamente estava em pé diante da gordinha e habitualmente
sorridente Demelza, com Ranulf atrás dele.
— O que aconteceu? — quis saber o senhor de Tregellas.

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— Nada, meu senhor, nada. — precipitou-se a dizer a donzela, mordendo o
lábio e alisando a saia — É só o final. O bebê está a ponto de chegar. E agora se
me permite, meu senhor, a parteira mandou pegar mais água quente.
Ao ver que Merrick parecia a ponto de fazer outra pergunta, Ranulf pousou
a mão no braço de seu amigo.
— Deixe que vá pegar água.
Merrick assentiu cabisbaixo e Ranulf, apesar de seu endurecido coração, não
pôde deixar de se compadecer. Sabia qual era o medo de Merrick, da mesma
forma que conhecia muito bem a dor de perder a mulher amada.
— Conte-me o que estava acontecendo em Penterwell — pediu enquanto
pensava em seu oferecimento.
Merrick era um de seus melhores e mais antigos amigos. Os dois e mais um
terceiro companheiro de armas, Henry, juraram-se lealdade por toda vida.
E o que Merrick estava pedindo não era outra coisa senão ajuda. E não
deveria responder ao seu pedido em um momento que seu amigo parecia
necessitar?
Além disso, se fosse a Penterwell, poderia afastar-se de Beatrice.
— Se eu serei o governador, devo saber de tudo.
— Você será? — perguntou Merrick, afundando-se na cadeira.
— Acaba de me ocorrer, meu amigo, que como governador do castelo, terei
todo o controle da cozinha. — respondeu Ranulf com sua habitual frieza —
Poderei comer carne e pão sempre que quiser. Não é um posto que se possa
rechaçar sem refletir.
Como sabia que seu amigo não falava a sério sobre os benefícios culinários
como a principal razão para ocupar o posto, nos lábios de Merrick apareceu um
minúsculo sorriso.
— Não sabia que estávamos matando-o de fome.
— Oh, não é isso. É o poder o que me seduz.
O sorriso de Merrick aumentou um pouco mais.
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— Seja qual for a razão, alegro-me que aceite o posto.
— Então, meu amigo, o que está acontecendo exatamente em Penterwell?
Merrick ficou sério e se inclinou para frente com os braços apoiados nas
coxas e as mãos entrelaçadas.
— Está acontecendo algo entre os habitantes do povoado. Frioc não sabia
exatamente o que. Pensava que poderia tratar-se de rivalidades por culpa de
uma mulher, ou possivelmente alguma acusação por armadilhas de jogo. Em
todo caso, não o considerava suficientemente sério para que merecesse uma
visita minha.
Merrick cravou o olhar em suas botas e sacudiu a cabeça.
— De qualquer forma, deveria ter ido pessoalmente.
— Você tinha outras coisas em que pensar.
Merrick elevou o olhar para observar seu amigo.
— Isso não é desculpa e Frioc está morto porque eu me descuidei…
— Está se preocupando como uma pobre anciã. — zombou Ranulf — É
possível que Frioc tivesse razão e o que ele percebeu foi somente uma
inimizade sem importância entre os aldeãos. Tanto você como eu, sabemos
que pode haver milhares de motivos para isso, nenhum dos quais mereça
começar uma investigação. Quanto a sua morte, não seria impossível que Frioc
tivesse caído do cavalo. Se a memória não me falha, não se poderia dizer que
era um grande cavaleiro.
Voltaram a ouvir o som de passos nas escadas. Ranulf e Merrick se
levantaram de um salto.
— É um menino! — gritou lady Beatrice, aparecendo ao pé das escadas.
Seus brilhantes olhos azuis resplandeciam de felicidade, suas belas feições
transbordavam alegria e com aquela cabeleira loira ao redor da cabeça, parecia
um anjo que acabara de descer do céu.
— Merrick teve um filho! Um filho precioso!

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Merrick esteve a ponto de tropeçar enquanto corria para ela. O
normalmente contido e circunspeto senhor de Tregellas, agarrou à prima de
sua esposa pela cintura e girou com ela rindo como um menino.
Ranulf permanecia imóvel enquanto a inveja, uma inveja afiada como uma
adaga e amarga como o veneno rasgava o seu coração.
— E Constance… como está?
— Muito bem, de verdade. — respondeu Beatrice sorrindo e agarrando
emocionada, o braço de Merrick — Oh, Merrick, a parteira disse que nunca viu
uma dama tão valente. Deveria estar orgulhoso. Ela quase não gritou, apenas
um pouco no final. Obedeceu em tudo à parteira, e eu diria que a parteira
também fez um grande trabalho. Aeda é muito competente, deu-lhe ânimo a
todo o momento e não fez nada que pudesse assustar Constance. Assegurou-
lhe uma e outra vez que tudo sairia bem, e assim foi.
— E, Merrick… — continuou depois de tomar ar. — Deveria ver o menino.
Tem o cabelo negro como o seu e começou a chorar e a dar pontapés quase
imediatamente. Aeda diz que poderia ter saído mais rápido se não tivesse os
ombros tão largos. Parece ridículo pensar que um bebê possa ter os ombros
largos, mas suponho que sabe o que diz já que viu muitos deles nascerem. E
também diz que quando ele crescer será um destruidor de corações porque é
muito bonito.
Beatrice soltou finalmente o braço de Merrick.
— Não o entretenho mais. Constance deseja vê-lo e mostrar o menino.
Uma vez liberado, Merrick correu para as escadas e subiu os degraus de três
em três. Enquanto isso, Ranulf decidiu que já não havia nenhuma razão para
permanecer no salão. Começava a girar para retirar-se, quando de repente
Beatrice o envolveu em um forte abraço.
— Que dia maravilhoso, não é verdade? — soluçou, fazendo-o sentir
involuntariamente seu fôlego no pescoço.

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Ranulf ficou paralisado. Deixou cair os braços de ambos os lados de seu
corpo e não mostrou intenção alguma de devolver o abraço, apesar de sentir o
corpo de Beatrice encaixando-se de forma perfeita contra o seu.
Ordenou a si mesmo não sentir nada, embora os lábios de Beatrice
virtualmente roçassem sua pele. Não prestaria atenção à suavidade de suas
curvas. Nem pensaria em seus olhos brilhantes, nem em suas adoráveis
feições, nem em como abria a boca quando sorria, nem apreciaria a delicada
fragrância de lavanda que sua pele desprendia. Tinha que recordar que ela era
uma mulher doce, inocente e pura. E ele não.
— Sim, é uma grande ocasião — respondeu com voz inexpressiva.
Soltou-se delicadamente de seus braços. Certamente, Beatrice era muito
ingênua para ser consciente do efeito que aquele tipo de demonstração afetiva
podia ter em qualquer homem.
— Mas temo que isso não me exima de minhas obrigações. Se me perdoar,
minha senhora, eu tenho que sair e comunicar a meus homens a contrassenha
desta noite. Acredito que será “filho e herdeiro”.
—É maravilhoso! — exclamou Beatrice, aparentemente alheia a seu intento
de manter distância. — E tem toda razão. Não podemos deixar parar tudo.
Voltou-se com igual prazer para os serventes. Alguns estavam esperando no
salão e outros foram até ali assim que ouviram a notícia.
— Voltem ao trabalho — ordenou.
Mas a firmeza de sua ordem ficava desmentida pelo brilho de seus olhos e
as covinhas de suas bochechas. Pousou a mão no antebraço de Ranulf e sorriu.
— Oh, sir Ranulf — disse com o mesmo feliz entusiasmo — tem os olhos
mais doces que eu já vi. São como os de sua mãe. Aeda diz que todos os
meninos têm os olhos azuis, mas eu acredito que ele os conservará. E como
enruga o nariz quando chora! É precioso.
Ranulf esteve a ponto de afastar sua mão para acabar com a tortura de suas
carícias, mas não o fez. Não queria que percebesse o seu desconforto.
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— Atrever-me-ia a dizer que seu choro deixará de parecer tão adorável
durante as próximas semanas.
— Um bom choro reflete a força e a boa saúde dos pulmões do menino -
respondeu Beatrice, em tom de brincadeira. — começou a gemer assim que
nasceu e quase imediatamente, pôs-se a chorar. A parteira disse que,
certamente, este menino não tem nenhum problema nos pulmões.
Inclinou-se para Ranulf, e ao fazê-lo roçou seus seios em seu braço.
— Foi assim que percebemos que era um menino. Deveria ter visto o rosto
de Constance!
Beatrice o agarrou com renovadas forças e Ranulf ficou incomodamente
consciente do tipo de força que uma mulher podia chegar a exercer, arrastada
pela paixão.
Que o céu o ajudasse, durante quanto tempo ia se prolongar aquela
tortura?
— Constance começou a chorar e rir, e disse que embora Merrick não se
importasse que fosse menino ou menina, ela rezou para que fosse um menino.
Acredito que teria sido muito mesquinho por parte de nosso Senhor, ignorar
suas orações depois do que Constance teve que passar com o pai de Merrick,
não acha?
— Acredito que os designíos de Deus são muito misteriosos — respondeu
Ranulf quando finalmente se afastou.
Estendeu a mão para a taça que Merrick tinha deixado e a ofereceu a
Beatrice. Era uma maneira de se separar dela, e teve muito cuidado de não
roçar sua mão enquanto Beatrice aceitava a taça, agradecida.
Enquanto a jovem bebia, Ranulf reparou nas olheiras de cansaço que havia
sob seus olhos, e também na palidez de seu rosto.
— Deveria descansar — advertiu com o cenho franzido.
— Oh, mas eu não estou cansada. — exclamou — Hoje foi um dia
maravilhoso, embora agora possa confessar que em alguns momentos passei
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muito medo, não como Constance, que não parecia absolutamente assustada.
Pediu que eu me tranquilizasse e a pusesse a par de todas as intrigas, e quando
contei tudo o que sabia, sugeriu que eu contasse a história do Rei Artur da qual
mais gosta. —Beatrice sorriu com orgulho — Disse que fui de grande ajuda.
Aeda só me pediu uma vez para eu me calar!
A parteira devia ser um modelo de paciência e Constance era a bondade em
pessoa. Se ele estivesse deitado e sofrendo dores tão intensas, a última coisa
que gostaria era ter Beatrice perto da cama, umedecendo sua testa, ou
oferecendo algo para beber, ou possivelmente sussurrando palavras de
consolo ao seu ouvido…
Sacudiu mentalmente a cabeça. Devia estar muito cansado para imaginar
Beatrice cuidando dele e suspeitar inclusive que podia ser uma situação
agradável. Entre outras coisas, porque aquela mulher parecia incapaz de
permanecer calada.
— Perdoe-me, lady Beatrice, — disse — agora tenho que ir. Já desperdicei
muito tempo hoje.
— Não deveria considerar como uma perda de tempo acompanhar um
amigo. Estou certa que Merrick está muito agradecido por sua companhia.
— Assim espero. — respondeu Ranulf — Mas agora tenho que cumprir com
minhas obrigações. Até a noite, minha senhora — inclinou a cabeça — depois
que tenha dormido um pouco, espero.
Beatrice pousou as mãos sobre seus quadris, lembrando como se fosse
necessário, a esbelteza de sua figura.
— Não sou uma menina que precise dormir a esta hora. Parece esquecer, sir
Ranulf, que tenho idade suficiente para estar casada e ter meus próprios filhos.
— Procure descansar, minha senhora. Sou perfeitamente consciente de sua
idade — replicou Ranulf antes de inclinar a cabeça e afastar-se dela com passos
largos.
Não entendia que demônios o levaram a dizer algo assim.
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Capítulo 2

Dissimulando um sorriso, Beatrice se virou e encontrou a sua antiga babá


atrás dela. Em algumas ocasiões, Maloren a tirava do sério, era como uma
segunda mãe para ela, pois sua mãe morrera quando ela ainda era muito
pequena.
Por um lado, Maloren odiava os homens e, especialmente os homens ruivos.
Naquele momento franzia o cenho como um pescador furioso com uma cesta
cheia de salmões podres, e Beatrice se preparou para seu discurso antes de
explicar:
—Estava me dizendo que eu parecia cansada e que deveria dormir um
pouco.
— Sabia! Estava tentando levá-la para a sua cama, o grande vagabundo. Não
a adverti centenas de vezes, minha querida? Procure manter-se afastada desse
ruivo descarado com olhos de diabo. Se não tomar cuidado, ela a levara à
ruína.
Beatrice sufocou um suspiro de tristeza. Mal sabia Maloren e, certamente
ela não ia dizer que era precisamente o que ela queria: ir para cama com
Ranulf.
Se o seu pai não tivesse sido um traidor, poderia ter aspirado ser a esposa
de Ranulf. Desgraçadamente, por culpa da ambição de seu pai, já não tinha
nenhuma oportunidade de fazê-lo. Embora sua prima e seu marido a
ajudassem a conservar o título e inclusive se ofereceram para proporcionar-lhe
um dote, não recebeu nenhuma oferta de matrimônio. E Ranulf podia e devia
aspirar a um matrimônio melhor quando decidisse se casar.
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Isso significava que só podia desejar ser sua amante. E com quanto desejo
esperava! Com aquelas feições angulosas, seu corpo de guerreiro e seu olhar
inteligente, Ranulf era o homem mais atraente que conhecia. Movia-se com
uma elegância atlética que nenhum outro homem possuía. E, além disso, era
um amigo que lorde Merrick confiava e um honrado cavaleiro.
Porém, precisamente aí residia o problema. Por ser um homem tão
honrado, Ranulf jamais tentaria seduzir a parenta de um amigo, por muito que
pudesse compartilhar com ela seu desejo.
— Vi como às vezes esse Ranulf a olha. — grunhiu Maloren, contorcendo as
feições como se estivesse comendo uma amêndoa amarga — Sei no que está
pensando.
Beatrice esteve a ponto de soltar uma exclamação de alegria. Maloren não
pretendia incentivá-la, mas o coração da jovem começou a pulsar com força.
Apesar de tudo, talvez não estivesse tão equivocada ao ter esperanças de que
seu mais prezado sonho pudesse se tornar realidade.
Embora Ranulf a tratasse com uma cortesia distante a maior parte das
vezes, em algumas ocasiões Beatrice também percebia que a olhava como se
sentisse o mesmo desejo que ela e estivesse inclusive disposto a tomar uma
atitude. Durante o Natal anterior, depois de compartilharem uma dança,
afastaram-se por mútuo e silencioso acordo para uma esquina em que
ninguém podia vê-los. Beatrice se virara para ele para dizer algo, não recordava
exatamente o que, e descobriu observando-a de maneira tão… tão insinuante,
que ficou sem fala.
Seu corpo respondeu imediatamente a aquele olhar. Com o coração
acelerado, havia entreaberto os lábios, preparando-se para um beijo. Desejava
sentir os lábios de Ranulf sobre os seus como se aquele beijo fosse a coisa mais
importante do mundo.
Mas então, Ranulf se afastou dela, colocou em seu rosto a máscara de
indiferença e se ofereceu para ir buscar um pouco de vinho quente.
21
Beatrice temia ter imaginado seu desejo. Era fácil imaginá-lo arqueando
uma sobrancelha com expressão zombeteira, rechaçando-a com sarcasmo ou
rindo dela por acreditar que poderia ser atraente. Talvez só a suportasse
porque era a prima de Constance e, no entanto ela havia sido ridiculamente
vaidosa para pensar que a desejava.
Também se perguntava se o distanciamento de Ranulf não seria porque
nunca cederia ao desejo por uma parenta de um amigo, a menos que estivesse
casado com ela.
O que quer que fossem seus temores e esperanças com respeito a Ranulf,
não se atrevia a expô-los para Maloren. Não queria que todo mundo ouvisse os
gritos de consternação de sua antiga babá, seguidos de toda classe de
juramentos, acusações e denúncias. Se finalmente descobrisse que Ranulf não
a desejava, queria pelo menos poder conservar parte de sua dignidade.
Entretanto, Beatrice não pôde evitar um sorriso ao responder:
—A única coisa em que sir Ranulf estava pensando, eram em suas
obrigações. É um homem muito rigoroso com elas, e eu também deveria sê-lo.
Deveria me assegurar de que Gastón cozinhe os pratos adequados para que
Constance recupere suas forças. Aeda diz que também conviria lhe dar um
pouco de cerveja. Se quiser, pode vir comigo à cozinha. Você decide.
— Esse Gastón cozinha com muitas especiarias — queixou-se Maloren
enquanto a seguia. — Acaso acredita que lorde Merrick é mais rico que o rei?
Surpreende-me que não acabemos com dor de barriga todos os dias.
Como Maloren comia a maior parte dos pratos do qual estava se queixando,
Beatrice não respondeu. Perguntou-se, no entanto, o que deveria usar para o
jantar daquela noite, durante o qual estaria sentada ao lado de Ranulf.

Beatrice descobriu aquela noite que para Ranulf seu traje não tinha
nenhuma importância. Mal a olhou durante o jantar. Toda sua atenção estava
22
posta na comida. Para ser justa, Gastón, que estava tão contente como todo
mundo em Tregellas pelo nascimento do menino, superou-se. Preparou pudins
deliciosos, saborosos guisados de alho-porró e cordeiro, bolos opulentos e um
assado de veado perfeito, além de diferentes tipos de pescado e um prato feito
à base de ovos e farinha de rosca tão delicioso e delicadamente temperado
que nem sequer Maloren pôde achar defeitos.
Beatrice tentava não sofrer pela falta de atenção de Ranulf. Afinal, nunca foi
um grande conversador durante as refeições. Mas, certamente aquela noite
em que tinham algo tão maravilhoso para falar, podia ter feito um esforço, em
vez de deixar que ela conduzisse toda a conversa.
Ao final, temendo estar incomodando-o, decidiu permanecer em silêncio.
Mas Ranulf tampouco pareceu notar.
Pouco tempo depois, Merrick apareceu no salão acompanhado de seu avô,
Peder, cujo nome receberia também o herdeiro de Tregellas. Beatrice não
demorou a se retirar e deixou os três homens brindando pelo futuro senhor de
Tregellas. Merrick se despediu dela com um alegre “boa noite” e Peder desejou
que dormisse bem. Ranulf se limitou a beber um gole de vinho e a observou
partir como se fosse indiferente a sua ausência.
Equivocou-se ao pensar que aquele homem sentia algum tipo de afeto ou
desejo por ela, Beatrice disse a si mesma. Possivelmente o que acreditava ter
visto foi somente produto de sua imaginação.
Sem dúvida alguma, o melhor seria tentar deixar de desejá-lo. Certamente,
haveria outros homens… tinha que haver outros homens capazes de comover
seu coração. Em alguma parte…
Estava tão inquieta e confusa que, mesmo tendo feito companhia a
Constance desde o amanhecer, não podia dormir.
Quando Maloren, que dormia ao seu lado em um catre começou a roncar,
Beatrice se levantou silenciosamente da cama. Colocou a bata sobre a anágua
e deslizou os pés em uma sapatilha de pele.
23
O que aconteceria se ela se apresentasse no quarto de Ranulf naquele
momento? Perguntava a si mesma se seria bem-vinda ou a receberia
horrorizado? Tomaria o que ela oferecia ou a mandaria de volta aos seus
aposentos e, na à manhã seguinte, contaria a Merrick que sua protegida era
uma descarada e que deveria ser enviada a um convento?
Um ruído surdo, seguido de uma blasfêmia, interrompeu suas turbulentas
reflexões. Imediatamente olhou para Maloren que continuava dormindo
placidamente.
Ouviu-se outra maldição seguida de um gemido. Beatrice estava certa de ter
reconhecido a voz de Ranulf. Correu para a porta, abriu-a e conteve a
respiração quando Maloren se mexeu e começou a roncar com força.
A luz da lua entrava pelas estreitas janelas em forma de arco, iluminando
tanto o corredor como Ranulf, que permanecia sentado no chão, com as costas
apoiada contra a parede, as pernas estiradas e a expressão de confusão.
Durante o jantar, vestia uma túnica negra sobre uma camisa de linho branco,
calças e botas. Mas era óbvio que quando ela se retirou, tirou a túnica negra e
afrouxou os cordões da camisa, que naquele momento estava tão aberta que
podia contemplar a musculatura de seu peito e o pelo castanho avermelhado
que o cobria.
— Pode ajudar a me levantar, meu anjo? — perguntou com um sorriso de
homem ébrio enquanto estendia descuidadamente a mão.
Beatrice jamais tinha visto Ranulf bêbado e não duvidava de que foi a
celebração da paternidade de Merrick que o deixou em tal estado. Mesmo
assim, se Ranulf não se fechasse logo em seu quarto, poderia despertar
Maloren e a fúria dela terminaria despertando toda a casa.
De modo que Beatrice correu para ele, fê-lo apoiar o braço em seu ombro e
tentou levantá-lo. Desgraçadamente, Ranulf não mostrou vontade alguma de
se mover. Limitou-se a sacudir a cabeça e disse:
— Eu acho que isso não está certo. Deveria estar na cama.
24
— Não vou deixá-lo aqui no corredor. E, por favor, cale-se, Maloren poderia
ouvi-lo.
— Essa velha bruxa — murmurou Ranulf com o cenho franzido. — Diz que
sou o filho do diabo. Como se eu pudesse ter evitado ser filho de meu pai -
começou a se levantar, apoiando-se pesadamente nela. — Mas não, não
queremos despertá-la, Bea, minha preciosa Bea.
Havia dito que ela era seu anjo, chamara-a de “sua preciosa Bea”. Nem
sequer Constance utilizava um diminutivo para referir-se a ela. Talvez, no
fundo tenha gostado.
Enquanto começavam a dirigir-se ao quarto de Ranulf, situado ao final do
corredor, este balbuciou:
— Supõe-se que conhece meu pai? Ou meus irmãos? Estavam acostumados
a me bater para ver quem conseguia me fazer chorar primeiro. Era… uma
espécie de concurso.
Beatrice não sabia nada sobre o passado de Ranulf, exceto que se preparou
com Merrick, tutelado por sir Leonard de Brissy. Sabia que Merrick, Henry, o
terceiro dos amigos e ele, juraram serem irmãos de armas por toda vida. Essa
era a razão pela qual Ranulf estava em Tregellas, a razão pela qual tinha
aceitado assumir o comando da guarnição a pedido de seu amigo.
— Não quero a compaixão de ninguém, minha pequena Bea — advertiu-lhe,
movendo lentamente o dedo. — Não preciso dela. Por fim, a única coisa que
conseguiram foi me fazer mais forte.
Beatrice não tinha nada para dizer a respeito, e menos ainda quando o que
tinha a fazer era conseguir levá-lo para o quarto sem que ninguém percebesse.
De repente, Ranulf parou e tentou afastá-la.
— Deveria estar na cama. Dormindo. Você sozinha.
— Dormirei depois. E agora vamos, Ranulf, deixe-me ajudá-lo a chegar ao
seu quarto.
Tentou agarrá-lo pelo braço, mas ele se afastou.
25
— A minha cama. Ali eu estarei sozinho. Ali eu sempre estou sozinho. Não
há nenhuma amante a me esperar. Nada de amante. Só alguma prostituta de
vez em quando, porque um homem tem suas necessidades, minha senhora.
— A verdade é que não tenho nenhuma vontade de ficar aqui, no meio da
noite, ouvindo-o falar de mulheres — disse Beatrice com uma pitada de
frustração. — Agora vamos, ou serei obrigada a deixá-lo.
Ranulf se inclinou para diante e apoiou o braço em seu ombro, fazendo-a
cambalear.
— Nesse caso, adiante, minha adorável dama. Não quero que voltem a me
abandonar. Não quero que voltem a me deixar nunca mais.
Quem o teria deixado? Beatrice teria amado perguntar, mas Ranulf falava
dificuldade cada vez mais e era difícil entender. Se não conseguisse chegar logo
ao dormitório, não teria outro remédio que deixá-lo no corredor.
Felizmente, puderam chegar até lá sem mais interrupções. Beatrice
empurrou a porta com o ombro e entraram no dormitório.
Ranulf se deixou cair para trás e Beatrice teve que segurá-lo pela cintura
para mantê-lo em pé. Quando recuperou o equilíbrio, a jovem ficou
plenamente consciente de que se alguém os visse naquele momento, pensaria
que eram amantes. Desgraçadamente, não podia chegar até a porta, nem
sequer alcançá-la com o pé.
Ranulf baixou o olhar para ela, embora tivesse muita dificuldade para fixá-lo.
— Vá, vá, vá — murmurou, e Beatrice percebeu o aroma de vinho de seu
hálito. — O que temos aqui? Bea em meu dormitório, ao lado de minha cama.
Inclinou-se para diante, como se estivesse a ponto de beijá-la e de repente
sorriu.
— Se soubesse o que cheguei a pensar sobre você, querida, procuraria me
evitar. Provavelmente não sou um demônio, mas tampouco posso dizer que
sou um santo.

26
Sem dúvida alguma, acreditava que estava alertando-a ao dizer que tomasse
cuidado com aquele animal luxurioso.
Mas sua luxúria não a assustava. De fato, o que realmente desejava era que
pudessem estar nesse quarto e principalmente quando ele estivesse sóbrio.
Mas quem saberia quando poderia estar novamente sós com ele, longe do
olhar irado de Maloren ou da presença constante de outros servos. De modo
que, por que não demonstrar naquele momento o que sentia?
Decidida e emocionada, mas sem poder acreditar no que estava a ponto de
fazer, Beatrice ficou nas pontas dos pés e sussurrou em seu ouvido:
— E você, meu senhor, deveria saber em quantos de meus sonhos apareceu.
E então o beijou, roçando seus lábios como tinha feito tantas vezes em
sonhos. Em um primeiro momento, Ranulf se afastou, mas imediatamente e
com um gemido que parecia nascer nas profundezas de sua alma, envolveu-a
em seus braços. Segurou-a com força e moveu os lábios sobre os seus com
uma fome apaixonada enquanto a estreitava contra ele.
Enfim, estavam sozinhos como dois amantes e Beatrice se rendeu satisfeita
ao desejo que consumia seu corpo.
Era isso o que esperara durante tanto tempo. O que sonhara. Aquelas
carícias, aquele sabor. Era aquele abraço, eram os sentimentos imaginados que
a perseguiram em sonhos.
Sentiu que Ranulf pressionava seus lábios com a ponta da língua e os abriu
voluntariamente para permitir entrasse e aprofundasse seu beijo de uma
forma que fez explodir a paixão.
Gemeu com o mais puro prazer. Nunca tinha sido tão feliz. Jamais estivera
tão excitada.
Porém, de repente Ranulf se afastou como se acabassem de golpeá-lo.
— Basta! — gritou e retrocedeu até a cama. — Deixe-me sozinho!
Estava furioso, quando só segundos antes parecia arrebatado pela paixão. O
que teria acontecido? Por que teria mudado tão bruscamente? Teria se
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lembrado de repente quem ela era? Seu rechaço seria porque ela era a prima
de Constance e a protegida de seu primo, ou unicamente porque era Beatrice?
— Ranulf, por favor, o que aconteceu?
Ranulf se sentou na cama e afundou a cabeça entre as mãos.
— Vá embora!
Com os olhos cheios de lágrimas, Beatrice deu meia volta e correu para os
seus aposentos.

— Sabia que haveria problemas. Os três beberam como moços de lavoura


em um dia de festa — resmungou Maloren enquanto entrava nos aposentos de
Beatrice no dia seguinte, levando um balde de água quente.
— Que tipo de problemas? — perguntou Beatrice.
Despertou imediatamente, temendo que alguém tivesse contado para a
criada o seu desastroso e humilhante encontro com Ranulf.
Depois de abandonar o dormitório de sir Ranulf, tinha voltado para o seu e
se deitado na cama, onde tinha chorado em silencio até dormir, com todos
seus sonhos convertidos em cinzas.
Quando viu que Maloren deixava o balde no chão e começava a arrumar
todos os pentes e os laços que havia sobre a penteadeira, Beatrice relaxou um
pouco. Se Maloren soubesse o que esteve fazendo com Ranulf, certamente
naquele momento estaria repreendendo-a.
— Lorde Merrick caiu no chão quando estava levando seu avô ao
dormitório. Os dois estavam bêbados e cantando com toda a força de seus
pulmões. Ou pelo menos foi isso o que me disseram — contou Maloren. —
Lady Constance teve que chamar o boticário.
Se haviam chamado o boticário, a lesão de Merrick devia ser coisa séria.
Esquecendo-se por um momento de suas preocupações, Beatrice afastou os
lençóis e se levantou da cama.
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— Espero que não esteja seriamente ferido.
— O boticário disse que é uma fratura muito limpa e que se Merrick fizer
repouso, curar-se-á perfeitamente. É possível que a partir de agora o velho
Peder viva nesta casa e deixe finalmente a sua. Já disse muitas vezes…
— O boticário esteve aqui e já se foi? — interrompeu-a Beatrice, enquanto
se aproximava de sua cômoda.
Maloren lhe dirigiu um sorriso indulgente.
— Pelo amor de Deus, meu cordeirinho, é quase meio dia. Precisava
descansar e assim eu a deixei dormir.
Provavelmente foi melhor assim. Não sabia o que poderia dizer ou como
reagiria se tivesse encontrado Ranulf em meio a tanta gente, pensou enquanto
levantava a tampa de seu baú.
— Constance deve ter sido muito afetada. Deveria ir vê-la agora mesmo.
— Estou certa que se alegrará por ter companhia e vai estar muito ocupada
tentando que lorde Merrick faça repouso. Não me surpreenderia se já tivesse
se levantado. Assim é os homens a maioria das vezes, comportam-se como
meninos grandes quando estão doentes ou têm alguma lesão. Se eles tivessem
que dar a luz, não haveria quem os agüentasse. Mas antes de ir ver lady
Constance, deveria comer algo, meu cordeirinho. Certamente Gastón tem uns
flocos de aveia te esperando. Pedi que os mantivessem quentes.
— Pelo menos Ranulf está aqui para se ocupar da guarnição — disse
Beatrice, enquanto se vestia. — Não temos por que ter medo de que alguém
nos ataque, embora Merrick esteja ferido.
Maloren inalou profundamente.
— Esse demônio do sir Ranulf partiu na primeira hora da manhã sem se
despedir.
Beatrice não pôde dissimular sua surpresa enquanto se virava para Maloren.
O medo e a vergonha a invadiam. Não acreditava que alguém a tivesse visto,
mas estava tão consternada quando abandonou os aposentos de Ranulf que
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possivelmente não percebeu. Se algum servente ou algum dos guardas
apostados na muralha prestou atenção nela e contou o ocorrido a Constance e
a Merrick.
Se assim fosse e tivessem expulsado Ranulf por culpa do que ocorrera
naquela noite, teria que explicar que Ranulf era inocente de qualquer intenção
imoral e pedir que voltassem a acolhê-lo. Não havia acontecido nada de
impróprio entre Ranulf e ela e assim falaria, por mais humilhante que fosse.
— E por que ele se foi?
— Não soube? Lorde Merrick o nomeou governador do castelo de
Penterwell — respondeu Maloren enquanto a ajudava a vestir o vestido.
Beatrice esteve a ponto de desmaiar de alívio. Isso não era um castigo, era
uma recompensa. Mas então, por que Ranulf não contou?
Talvez pensasse que já sabia. E provavelmente, Demelza e o resto dos
criados tinham achado o mesmo.
E o que Ranulf teria pensado ao vê-la tagarelar constantemente sobre
Constance e sobre o bebê, sem mencionar sequer sua recompensa e sua
iminente partida? Que não se importava que se fosse?
— Embora não entenda por que lorde Merrick fez uma coisa assim -
murmurou Maloren enquanto amarrava os laços do vestido. — Essa queda
deve ter afetado o seu julgamento. Todo mundo sabe que não se pode confiar
em um ruivo. E menos nele, com esses olhos de raposa. A próxima notícia que
teremos será que roubou o castelo.
Beatrice virou-se para enfrentar Maloren. Por mais que fosse como uma
segunda mãe para ela, não podia permitir que fizesse tal acusação, tão sem
fundamento.
— Sabe perfeitamente que Ranulf jamais faria algo assim. É um amigo bom
e leal.

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Maloren ruborizou-se. Não era freqüente que Beatrice falasse ou se
comportasse como uma dama nobre, filha de um homem autoritário e altivo,
mas quando o fazia, Maloren respeitava sua autoridade.
— Sinto muito, meu cordeirinho. Só estou preocupada com o que possa
acontecer ao lorde Merrick.
— Lorde Merrick é perfeitamente capaz de controlar sua propriedade sem
sua ajuda e se ele considerou conveniente nomear Ranulf governador de seu
castelo, isso deveria ser mais do que suficiente tanto para você como para todo
mundo.
Maloren pareceu envelhecer de repente.
— Não se zangue comigo, filha minha — suplicou, retorcendo nervosamente
as mãos. — Suponho que você não é capaz de ver, mas esse homem é igual ao
seu pai quando era jovem. Atraente como o diabo, habilidoso e inteligente. E
escorregadio como o azeite.
Beatrice tomou as mãos calosas da babá entre as suas e a olhou com
carinhosa preocupação.
— Conseguiu que sua mãe se apaixonasse por ele em menos de uma
semana e em outras duas semanas já a tinha convertido em sua esposa —
Maloren lhe apertou as mãos com força, enquanto sua voz se enchia de
tristeza. — E quanto ele a fez sofrer! Primeiro, acabou com sua alegria, e
depois com sua alma, até que chegou um momento em que nem sequer seu
amor por sua filha pôde lhe dar forças para resistir à enfermidade.
Maloren soltou Beatrice, mas a olhou com uma expressão ferozmente
protetora.
— Não deixarei que nenhum homem lhe faça o dano que seu pai fez a sua
mãe.
Era a primeira vez que Maloren falava com Beatrice do triste destino de sua
mãe, e a ela doeu saber do muito que sua progenitora tinha sofrido. Embora na
realidade, sempre soube que sua mãe não tinha sido feliz.
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Seu pai não amava ninguém, só queria a si próprio. As únicas coisas que o
importavam eram o dinheiro e o poder. Alegrava-se de ter uma filha bonita,
mas porque dessa forma poderia aumentar o preço que pediria por ela. Para
seu pai, Beatrice só era um objeto para comercializar.
Muito pior teria sido a vida de Beatrice se não tivesse contado com o amor e
o consolo de Maloren, que encheu o vazio deixado por sua mãe.
Cheia de gratidão, abraçou-a com força.
— Sinto muito. Sinto ter perdido a paciência contigo, Maloren. Quero-a
como se fosse minha própria mãe - se afastou e cravou o olhar em seu rosto
enrugado e seus olhos cinza. — Você sabe, não é verdade?
— Que Deus a abençoe, claro que sei. E a quero como se fosse minha
própria filha.
Beatrice voltou a abraçá-la, sentindo-se como quando era uma menina
pequena e seu pai a afastava de seu lado como se fosse qualquer de seus cães
de caça. Nos braços de Maloren encontrava sempre segurança e consolo,
enquanto que o seu pai só era uma fonte de tristeza e, com o tempo, chegou a
ser inclusive de desgraças.
Que cavalheiro ia querer se casar com a filha de um homem como aquele?
Não era para menos que Ranulf tinha partido sem sequer se despedir.

32
Capítulo 3

A dor de cabeça era um castigo justo pelos excessos da celebração, pensou


Ranulf enquanto cavalgava ao longo da costa da Cornualha, por um caminho
rochoso, fazendo todo o possível para manter bem seguro o seu cavalo. Titã
era um animal brioso, algo que normalmente Ranulf apreciava. Embora
houvesse muitos que preferiam animais mais tranqüilos, os cavalos mansos
não eram feitos para ele. Ranulf queria um cavalo com espírito, disposto a lutar
e desejoso de atacar assim que roçassem o seu dono.
Aquele dia, entretanto, teria apreciado um cavalo menos brincalhão.
Deveria ter se retirado muito antes, embora Merrick estivesse tão animado,
coisa imprópria dele. Henry jamais acreditaria quando contasse que seu
habitualmente sombrio e silencioso amigo estava rindo e brincando, sobre
tudo a partir do momento em que seu avô, um ancião estupendo, tinha
começado a brindar por seu bisneto, o futuro senhor de Tregellas e que, além
disso, levava seu nome.
Peder estava tão orgulhoso que insistia em brindar à saúde de todo o
mundo, do rei até a da última donzela. Estiveram bebendo a noite toda, até
que Merrick ajudou seu avô a voltar para sua casa e Ranulf subiu cambaleando
ao seu espartano dormitório.
Mal se recordava de como chegara até ali.
Quando dormiu, teve sonhos inquietantes, todos eles relacionados com
Beatrice. Às vezes, sonhava que se casava com ele, que brindavam e comiam
juntos. Supunha-se que estavam celebrando o Natal. Outras vezes a via nua em
sua cama, enquanto faziam amor.
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Entretanto, o sonho mais real de todos eles transcorria em seu dormitório.
Via-lhe com o mesmo traje que usava durante o jantar, um adorável vestido
colorido e o beijava. Devolvia o beijo com a mesma paixão que ela despertara.
Sim, aquele sonho parecia particularmente real…
Mas preferia não pensar em Beatrice, nem no que teria dito se tivesse ido
despedir-se dela naquela manhã. Da mesma forma que não queria pensar nela
de outra maneira que não fosse a alegre e atraente prima da esposa de seu
amigo.
Considerar qualquer outra possibilidade, apesar do às vezes percebia em
seu olhar, era só produto da vaidade e do orgulho. Ele era um cavalheiro sim,
mas um cavalheiro pobre, sem nenhuma propriedade e com muito pouco
dinheiro. Tudo o que tinha se devia a sua destreza com a espada e a
generosidade de seus amigos. O que ele tinha para oferecer a uma mulher
vibrante e atraente como Beatrice, que podia aspirar a ganhar o coração de
muitos homens melhores e mais ricos que ele?
Perseguido por aqueles desagradáveis pensamentos, Ranulf inspecionou os
páramos açoitados pelo vento. Depois de uma ligeira elevação do terreno, via-
se o mar, embora ainda não se apreciasse o seu aroma. À distância, voavam as
gaivotas em círculo, brancas e cinzas contra o fundo azul do céu, apontando o
lugar em que as ondas espumosas rugiam e batiam contra a indefesa costa.
Seus pensamentos voaram do mar aberto até Tregellas. Esperava que a
lesão de Merrick não fosse séria. Havia assegurado que era somente uma
entorse e que Constance como era mulher, tinha exagerado ao fazer com que
chamassem o boticário. Sem dúvida alguma, havia dito que o boticário estaria
de acordo com ele assim que examinasse sua perna.
Como todos os homens que foram treinados por sir Leonard, aprenderam
algo sobre feridas, entorses e fraturas e Ranulf decidiu dar por boa a opinião de
seu amigo e, em vez de se preocupar com a perna de Merrick, imaginou

34
Beatrice contando a todo mundo o incidente e incomodando o boticário com
suas intermináveis perguntas.
Franzindo o cenho e decidido a não voltar a pensar em Beatrice, Ranulf
obrigou Titã a parar, girou ligeiramente na sela e fez um gesto para que Myghal
se aproximasse. Era possível que falando da situação com o novo xerife o
ajudasse a se concentrar nas responsabilidades que tinha pela frente e não
pensar no que tinha deixado para trás.
— Fale-me do acidente de sir Frioc — pediu, enquanto incitava Titã para que
começasse novamente a trotar, assim que o ajudante do xerife chegou ao seu
lado.
— Não sei muito mais do que contei para lorde Merrick - respondeu Myghal
com evidente desinteresse. — Estava caçando…
— Com quem?
Myghal franziu o cenho.
— Estávamos Hedyn, Yestin, Terithien e eu, homens que estão no comando
do castelo. Estávamos acostumados a sair para caçar freqüentemente com ele.
Penterwell é um lugar tranquilo, assim nós não temos outras diversões. E
aquele dia não foi diferente, exceto pela morte de sir Frioc, é obvio.
Ranulf reparou na tristeza e na confusão refletida na voz do jovem.
— Nunca é fácil perder um amigo ou alguém a quem respeitamos.
Necessitamos de tempo para chorar a perda, mas sempre podemos nos apoiar
nas lembranças dos bons tempos.
Myghal assentiu com pesar.
— Sir Frioc devia confiar muito em você para incluí-lo em seu grupo de caça.
Aquelas palavras conseguiram arrancar-lhe um sorriso.
— Sim senhor, assim é. Era um homem bom e quando meu pai morreu,
tratou-me… bem, não exatamente como a um filho, mas quase.

35
— Sinto não tê-lo conhecido melhor - respondeu Ranulf com sinceridade,
pensando em sua própria juventude e no homem que para ele foi como um
segundo pai.
Myghal recuperou então sua expressão sombria.
— E tudo por culpa de uma lebre.
— Sim, um animal muito pequeno para que por sua causa se inicie uma
perseguição.
— É certo, senhor. Mas esse dia não tínhamos tido a sorte de encontrar
nenhuma presa maior. Já estávamos retornando quando os cães começaram a
latir e sir Frioc viu essa lebre tão grande. Porque era realmente grande. Disse
que não pensava em voltar a jantar pescado, assim açulou seu cavalo e
começou a perseguir o animal. A lebre saiu em disparada como uma flecha.
Quando soltamos os cães, já tínhamos perdido também o meu senhor. Mas era
fácil seguir seus rastros, assim descemos a colina e ali estava — engoliu a
saliva, — caído no chão e com os olhos totalmente abertos.
Ranulf, compadecendo-se da tristeza daquele homem, mudou de assunto.
— Faz tempo que não vou a Penterwell, embora suponha que não tenha
mudado muito as coisas durante todos estes meses.
Myghal ruborizou violentamente.
— Algumas coisas mudaram, senhor.
— Como quais?
— Bom, senhor, Gwenbritha voltou para casa de sua mãe.
Myghal parecia pensar que Ranulf sabia perfeitamente quem era
Gwenbritha, mas este não se recordava de ninguém com esse nome.
— A amante de sir Frioc, senhor — esclareceu Myghal. — Discutiram e ela o
deixou.
Ranulf não gostava de fofocas, mas por outro lado um amor despeitado
podia significar muitos problemas. Sabia perfeitamente até que ponto podia

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ver-se relegado a honra e a sensatez quando se precisava curar o orgulho
ferido.
— Por que discutiram?
— Comentava-se que Gwenbritha queria se casar e ele não, assim ela o
deixou dizendo que nunca voltaria.
—Viu-a alguma vez no povoado após isso?
—Não, senhor, foi fiel a sua palavra. Sir Frioc, bom, não aceitou… muito
bem. Tentava fingir que não o afetou, mas passava muito tempo caçando ou
sentado no salão… pensando.
—Pensando ou bebendo? —perguntou Ranulf.
Era habitual que um homem deprimido bebesse mais do que devia, como
bem sabia por própria experiência.
— Bebendo, senhor - admitiu o jovem.
— O dia que morreu… também esteve bebendo?
Myghal negou com a cabeça.
— Não, senhor. Ou pelo menos, nós não notamos. Tinha bebido um pouco
de cerveja ao começar a caçada e levávamos umas botas de vinho, mas não
estava bêbado, se for a isso que se refere. Além disso, era um homem que
agüentava bem a bebida.
O que não queria dizer que não estivesse bêbado quando morreu, pensou
Ranulf. Mas não faria nenhum outro comentário no momento. Perguntaria ao
xerife mais adiante.
Subiram uma colina e a distância, perto do mar turbulento, divisava-se o
castelo de Penterwell. Seus muros cinza se elevavam sobre o escarpado. As
gaivotas o sobrevoavam como se fossem abutres embranquecidos. Ranulf
sabia que havia um povoado do outro lado do castelo, que seus muros
enormes ofereciam amparo contra os ventos que se levantavam do mar,
agitando as ondas. Inclusive dali se ouvia como as ondas se quebravam contra
as rochas do escarpado.
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De todos os lugares possíveis, teve que terminar naquele castelo. Aquela
devia ser alguma espécie de brincadeira do destino, Ou possivelmente um
castigo, porque era impossível que Penterwell estivesse mais perto do mar.
Ao perceber que Myghal o observava com curiosidade, Ranulf sorriu.
— Acredito que necessito de um bom fogo e uma boa comida.
Uma sombra de preocupação cruzou o rosto de seu acompanhante.
— Acredita que não vou ser bem recebido em Penterwell? —perguntou
Ranulf em um tom enganosamente amável — Ou tem medo de que alguém
possa querer evitar minha chegada?
— Oh, não senhor, não é nada disso — precipitou-se a responder Myghal. —
É que, como disse antes, desde que Gwenbritha se foi, as coisas já não são
como antes. É possível que Penterwell não disponha das comodidades a que
está acostumado.
Evidentemente, Myghal não tinha a menor ideia dos lugares que chegou a
dormir.
— Atrever-me-ia a dizer que o suportarei — respondeu o novo governador
de Penterwell.
E enquanto o fazia, chamou-lhe a atenção um movimento na praia que havia
sob os escarpados.
— O que esses homens estão fazendo? —perguntou, apontando para o
grupo.
Myghal se levantou ligeiramente, apoiando-se nos estribos e respondeu:
— Não sei senhor.
— Sabe quem são?
— Não, senhor.
— Nesse caso, teremos que averiguar — disse Ranulf.
Açulou Titã para que começasse a galopar e cavalgou até a praia.
Até o mar, cruel e incapaz de ter misericórdia.

38
O xerife viu Ranulf, Myghal e o resto da escolta do governador enquanto se
aproximavam e reconheceu imediatamente o amigo de lorde Merrick. Assim
como seu senhor, sir Ranulf era um homem bem treinado e um feroz lutador, e
seu cabelo avermelhado fazia que o distinguisse facilmente. Hedyn também
sabia que sir Ranulf esteve no comando da guarda de Tregellas e que nos
poucos meses que ocupou aquele posto, conseguiu grandes mudanças nos
homens que estavam sob o seu comando. Comentava-se que após terem
ficado sob suas ordens, aquele regimento podia se equiparar a qualquer
exército inglês, e que qualquer inimigo do senhor de Tregellas pensaria duas
vezes antes de atacar.
Mesmo assim, o xerife esperava que fosse lorde Merrick em pessoa que
viesse em resposta à carta que com tanto trabalho escreveu, e não o
responsável por sua guarda e assim, se aproximou dele e de seus homens com
uma amostra de respeito, curiosidade e desilusão.
— Muito bem, sir Ranulf — disse. O vento sacudia sua capa negra enquanto
inclinava a cabeça em sinal de respeito. — Por muito que me agrade voltar a
vê-lo, eu gostaria que nosso reencontro acontecesse em circunstâncias mais
felizes.
— Eu digo o mesmo — respondeu Ranulf enquanto desmontava do seu
cavalo.
— Peço-lhe que me perdoe e não tome como uma ofensa, mas esperava ver
lorde Merrick.
— Se eu estivesse em seu lugar, também o teria esperado — respondeu
Ranulf. — Desgraçadamente, lorde Merrick se excedeu na celebração do
nascimento de seu filho e lesou a perna. E, posto que eu seja o novo
governador, vim em seu lugar.
Hedyn arregalou os olhos.

39
— Bom, é uma pena pela perna, mas me alegro pelo seu filho — inclinou de
novo a cabeça. — Bem-vindo a Penterwell, meu senhor. É uma pena que tenha
que ficar no comando do castelo quando estamos tendo tantos problemas.
Como está lady Constance?
— Alegro-me de poder comunicar que lady Constance superou muito bem a
experiência.
Algo que Beatrice tinha deixado explicitamente claro durante o jantar e em
que ele não fez nenhuma menção a sua iminente partida. Isso só podia
significar que, ou ela não sabia, coisa muito pouco provável, ou que não se
importava tanto como ele pensava. Que o céu o ajudasse, devia ser a vaidade
que o fez pensar que uma mulher como ela poderia chegar a considerar a
possibilidade de desposá-lo.
Mas decidido a prestar atenção a assuntos mais importantes que seus
próprios sonhos, Ranulf apontou o grupo de homens que se viraram para ele.
Seus corpos ocultavam algo que havia no chão.
— O que estavam olhando?
Do rosto do xerife desapareceu todo rastro de bom humor.
— É Gawan, senhor, um pescador de Penterwell. Um moço o encontrou esta
manhã. Afogou-se.
Afogado.
Ranulf fechou os olhos enquanto lutava contra o terror que aquela palavra
evocava em sua mente. Afastou a lembrança de mãos fortes tentando afundá-
lo enquanto a água salgada enchia sua boca, o nariz e a garganta. Tentou
esquecer o pânico, a repentina força com que lutava por libertar-se…
Hedyn continuou falando sem estar consciente de que estava se dirigindo a
um homem paralisado pelo medo.
— Saiu faz dois dias e embora não houvesse retornado, ninguém salvo sua
esposa, estava muito preocupado. Mas esta manhã, um menino encontrou seu
cadáver a beira mar.
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— E por que ninguém estava preocupado?
O xerife vacilou um instante. Olhou antes para Myghal que continuava em
seu cavalo, e se voltou depois para o silencioso grupo de homens, todos eles
vestidos com singelos blusões e calças de pescadores.
Ranulf podia imaginar por que Hedyn não tinha uma resposta.
Provavelmente ele também era contrabandista além de pescador. Naquela
zona da Cornualha, o contrabando tinha uma longa história. De modo que
pousou a mão em seu ombro e o fez se afastar do grupo e do cadáver.
— Sei que a maior parte dos pescadores também são contrabandistas —
disse com voz baixa. — Lorde Merrick é consciente disso Frioc também era. De
modo que se teme dizer que acredita que Gawan tinha uma entrevista com
alguém para intercambiar estanho por dinheiro ou por qualquer outra coisa,
não tem por que fazê-lo.
O xerife assentiu.
— Sim, senhor, é isso o que pensamos. Que saiu para fazer alguma troca e
se atrasou. Como disse, o fato de que passasse uma noite fora não preocupou
a ninguém, salvo a sua esposa que está esperando seu primeiro filho. A
verdade é que eu estava mais preocupado pela morte de sir Frioc e pela carta
que tinha que enviar para lorde Merrick. Mas como na noite seguinte Gawan
tampouco apareceu, começamos a nos perguntar se teria ocorrido algo,
porque sabíamos que saíra sozinho.
Só em um bote no meio do mar. Ranulf dissimulou um calafrio.
— Mas o tempo estava bom e não há nenhum rastro de seu barco. É
estranho que tenha aparecido o cadáver, mas nenhuma madeira ou corda de
sua embarcação.
— Está dizendo que suspeita de que se trata de um crime?
Hedyn esfregou o queixo.
— Sim, senhor. De fato, desapareceram outros dois homens.

41
Possivelmente aquele fosse o “problema” a que Frioc fazia alusão. Mas se
assim fosse, Frioc deveria ter informado Merrick.
— Em um primeiro momento, ninguém prestou muita atenção. Enfim, Rob e
Sam não eram de Penterwell e só ficavam aqui durante os meses de inverno.
Dirigiu a Ranulf um olhar eloqüente.
— Eles não eram o tipo de gente que convinha ter perto de casa, nem de
uma esposa. Suponho que me entende. E tinham surgido alguns problemas
entre eles e outros pescadores. Quando desapareceram, a maior parte da
gente do povoado pensou que simplesmente se viram obrigados a partir, e
todo mundo ficou satisfeito por eles terem ido embora. Suas esposas foram as
primeiras.
Aquilo poderia explicar por que Frioc não deu nenhuma importância a sua
ausência.
— Gawan não era como eles?
— Santo Deus, não — respondeu Hedyn, sacudindo a cabeça. — Gawan
adorava a sua esposa e ela a ele. Estavam apaixonados desde que eram
meninos e ele estava desejando que seu filho nascesse.
Mas isso não significava que não poderia deixá-la, independentemente de
sua atitude em público.
— É possível que Gawan decidisse se arriscar porque pensava que
necessitariam de mais dinheiro quando seu filho nascesse — o xerife suspirou.
— Pobre moço. Não seria a primeira vez que um desses piratas franceses mata
um homem para ficar com o estanho.
— Suponho que deveríamos estar agradecidos que o seu corpo tenha
aparecido na praia — murmurou Ranulf enquanto se aproximavam novamente
dos homens. — De outro modo, jamais seríamos informados do que lhe
aconteceu.
—Tudo é muito estranho — replicou Hedyn.
Ranulf parou e olhou Hedyn surpreso pela veemência de suas palavras.
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— Por que lhe parece tão estranho?
—Bem, senhor, quando um homem se afoga no mar, seu cadáver costuma
pesar como uma pedra. Podem se passar dias antes que o cadáver inche e
volte para a superfície. E quando está no mar… as correntes demoram a
arrastar o cadáver para a praia, se é que sobra algo para arrastar. A aparição de
Gawan faz pensar que primeiro o mataram e depois o atiraram ao mar. Mas o
cadáver não tem nenhuma marca. Venha a vê-lo por si mesmo.
Ranulf ficou com o estômago embrulhado. Viu homens mortos em combate,
com os rostos destroçados e os membros retorcidos e cobertos de sangue. Isso
podia enfrentar. Mas ver o cadáver de um homem afogado…
Mas não podia mostrar sinais de debilidade. Não podia fazer nada que desse
a entender que preferia enfrentar cinquenta cavalheiros armados a seguir o
xerife até o cadáver que jazia na praia.

Uma semana depois, Beatrice observava Gastón enquanto este polvilhava o


tomilho sobre a carne, o molho e o alho-poro, colocados todos eles sobre uma
superfície de massa folhada.
— O segredo, minha senhora, está nas especiarias — explicou Gastón
enquanto acrescentava um pingo de alecrim. — Se colocarmos em excesso,
perde-se o sabor do faisão, se nós colocarmos pouco, sente-se o sabor do
faisão em demasia, não sei se me compreende.
Beatrice assentiu enquanto observava sua técnica. Aquele homem magro de
meia idade foi também o cozinheiro do pai de lorde Merrick, e isso se refletia
nas rugas que sulcavam seu rosto.
Entretanto, ultimamente sorria com mais frequência. Lorde Merrick era um
amo generoso que apreciava a boa mesa e jamais o acusou de pretender lhe
envenenar.

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Quanto à presença de uma dama na cozinha do castelo, devia-se a que
Beatrice gostava de estar naquele lugar sempre quente e agitado com pessoas
e aromas. Desde que Ranulf se fora, passava muito tempo ali. Também dedicou
algumas horas para sentar-se junto a Constance e preparar as roupa para o
menino e voltar a lhe contar novamente as histórias do Rei Artur e seus
cavalheiros de que tanto gostava, embora a fizessem pensar na ausência de
Ranulf. Ele dizia que não gostava de todas aquelas histórias. Acusava Lancelot
de imoral, de desleal e estúpido, e pensava que Artur era muito generoso com
seu traiçoeiro filho.
Ranulf não simpatizava com os traidores. Quanto à filha de um traidor…
Demelza, uma mulher madura e de bom caráter, e uma criada com quem
sempre se podia contar para compartilhar as últimas intrigas, apareceu na
porta do pátio. Ao ver Beatrice, sorriu radiante.
Também olhou para Maloren, que dormia perto do fogo. Assim como todo
mundo em Tregellas, Demelza sabia que a mera menção do nome de Ranulf
bastava para que Maloren começasse um de seus sermões contra os homens.
Assim que se aproximou de Beatrice com a discrição de um espião, sussurrou
em seu ouvido:
— Chegou uma mensagem de Penterwell, minha senhora. Vim para vê-la
assim que eu soube, conforme você me pediu.
— Obrigado — respondeu Beatrice, tentando não parecer muito ansiosa e,
ao mesmo tempo, não despertar Maloren. — Para lorde Merrick está muito
difícil passar o dia todo sentado, e as notícias de Penterwell seguramente o
animarão. Atrever-me-ia a dizer que inclusive Constance tem vontade de ouvir
novas notícias. Acredito que depois irei ficar um momento com o pequeno
Peder, para que possam ficar um momento a sós.
Dirigiu a Demelza e ao resto dos serventes um sorriso de cumplicidade.
— Estou certa de que gostarão.

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Os serventes compartilharam com ela algumas risadas discretas. Raramente
viam casais tão apaixonados como estavam o senhor e a senhora de Tregellas.
Beatrice abandonou imediatamente a cozinha, alegrando-se de que Maloren
ainda estivesse dormindo e não despertasse para acompanhá-la.
Merrick e Constance se alegrariam de ter notícias de Penterwell e de Ranulf
sim, mas não tanto como ela. Desde que Ranulf partiu, Beatrice teve muito
tempo para pensar na noite em que se beijaram e suas esperanças começaram
a reviver. Apesar do que tinha passado antes de sua separação, Ranulf se
mostrara muito apaixonado. Rendeu-se ao desejo tanto quanto ela.
Desgraçadamente para Beatrice, quando o desejo se fez mais intenso, devia ter
recordado que era um homem de honra e como tal, não podia seduzir uma
dama com quem não estivesse comprometido em matrimônio. E podia ser essa
a razão pela qual interrompeu seu beijo.
Se assim fosse, Beatrice gostaria de ter a oportunidade de dizer que não
deveria se culpar pelo o que ela começou. Também poderia dizer que, se o que
aconteceu o afetou, sentia muito, mas que não podia arrepender-se de seu
beijo, querendo-o tanto como o queria. E então confessaria seus verdadeiros
sentimentos.
Mas Ranulf ainda não estava ali e, até que não falasse com ele outra vez,
deveria manter em segredo suas esperanças e desejos.
Quando Beatrice chegou ao dormitório principal, encontrou Merrick
sentado, com a perna esquerda estirada sobre um tamborete e o olhar cravado
no pergaminho que tinha entre as mãos. Constance estava em uma cadeira ao
seu lado, com seu filho nos braços e a expressão preocupada. Merrick também
franzia o cenho.
Embora fosse verdade que, desde que quebrou a perna, estava sempre com
o cenho franzido.
Beatrice sorriu e tentou comportar-se como se fosse uma casualidade que
aparecesse naquele momento por ali, porque ainda não havia contado para
45
Constance suas grandes esperanças. Embora Ranulf fosse um grande amigo de
Merrick, era possível que Constance não visse com bons olhos um matrimônio
entre sua prima e o irmão de armas de seu marido. Ranulf era dez anos mais
velho que ela e, além disso, era um homem sem terras. Possivelmente
Constance pensasse que Beatrice deveria aspirar a um marido mais rico ou
poderoso.
— Bom dia, Constance. Bom dia, Merrick — saudou Beatrice alegremente,
depois de bater na porta para anunciar sua chegada. — Faz um dia
maravilhoso, não é verdade? A primavera já está a caminho. Acredito que se
saísse para passear, poderia encontrar algumas flores começando a florescer. E
o ar cheira a limpeza, exceto se alguém se aproxima da pocilga — estendeu os
braços para o pequeno Peder.
— Posso pegá-lo um pouco?
Constance assentiu e Beatrice tomou ao bebê entre seus braços.
— E também te desejo um bom dia, homenzinho — murmurou enquanto
acariciava seu queixo com o dedo.
— Recebemos outra carta de Ranulf — disse Constance, apontando para o
seu marido, que continuava lendo com o cenho franzido.
— De verdade? —perguntou Beatrice, como se não soubesse. — Espero que
tudo esteja correndo bem.
Merrick se moveu desconfortavelmente na cadeira e colocou o pé em uma
postura diferente.
— Não há nada que Ranulf não seja capaz de enfrentar — respondeu
Merrick em um tom que evitava que pedisse mais informações.
Talvez pudesse falar mais tarde com Constance, pensou Beatrice, certa que
sua prima se mostraria mais comunicativa.
— Espero que a perna não esteja causando-lhe muito desconforto.
Merrick a olhou com expressão azeda e voltou a mudar de posição.
— Não.
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Sua mulher franziu o cenho.
— Não tem por que ser tão mal educado com Beatrice — advertiu. Mas,
imediatamente olhou-o com expressão compassiva. — Logo poderá se
levantar, meu amor, mas até então deveria considerar isto como uma espécie
de castigo por ter se excedido com o vinho.
Seu marido respondeu com outro grunhido e deixou a carta na mesa, ao
lado da cadeira.
— A fratura está se fechando muito bem, disse o boticário, e seria uma pena
que voltasse a lesionar — disse sua esposa.
O bebê começou a choramingar e Merrick estendeu os braços para que
Beatrice o desse a ele.
— Dê-me o meu filho enquanto se dedicam a mexericar.
Beatrice lhe deu o bebê, que Merrick tomou com suas fortes mãos com
tanta delicadeza como se o menino fosse de cristal. Enquanto isso, Constance
se levantou e fez um gesto a Beatrice para que a seguisse até a janela.
— Aqui estaremos bem melhor, onde nenhum homem possa nos incomodar
— interrompeu-se um instante e olhou para seu marido. — Beatrice pode ler a
carta de Ranulf? Melhorou muito na leitura durante estes últimos meses, mas
não seria mal praticar um pouco.
Merrick encolheu os ombros.
— Não vejo nenhum motivo para manter o conteúdo dessa carta em
segredo.
Beatrice não pôde evitar a alegria que apareceu em seu rosto enquanto
retirava o pergaminho da mesa. Abençoando Constance em silencio por tê-la
ensinado a ler e a escrever. Seu pai sempre considerou uma perda de tempo
ensinar uma mulher nobre a ler e a escrever, exceto a escrever umas quantas
palavras e a fazer as operações aritméticas mais singelas para poder cuidar das
contas da casa.

47
— Se houver alguma palavra que não compreenda, pergunte-me, por favor.
Eu ficarei aqui sentada por um momento, junto à janela, desfrutando do sol e
de não fazer nada — disse Constance enquanto Beatrice se sentava a sua
frente.
—«Estimados lorde Merrick e sua apreciada esposa» — começou a ler, com
a sensação de estar ouvindo a voz clara e profunda de Ranulf—. «Não tenho
nenhuma notícia nova para oferecer depois de minha primeira carta. Continuo
tentando fazer progressos com as pessoas do povoado e contando sempre com
a ajuda de Hedyn para justificar minha presença neste lugar.
Desgraçadamente, apesar de meu óbvio encanto e minhas amáveis tentativas,
os habitantes do povoado parecem resistentes em falar comigo. Entretanto,
continuarei investigando a morte de Gawan até que esteja plenamente
convencido de que foi algo acidental. E, no caso de que chegue à conclusão de
que não foi um acidente, não pararei até levar o culpado ante a justiça».
Beatrice olhou atônita para sua prima.
— Quem é Gawan? Como morreu? E por que Ranulf suspeita de que o
mataram?
— Gawan era um pescador — explicou Constance. — Encontraram-no
morto na praia no dia que Ranulf chegou. Aparentemente, afogou-se. Mas o
xerife tem alguma dúvida sobre se foi ou não um acidente, pois não apareceu
nenhum sinal do bote desse pobre homem.
— Mas poderia ter sido um acidente, pois o homem saiu para navegar
sozinho há dois dias - interveio Merrick. — De qualquer modo, Ranulf
averiguará a verdade.
— Sim, claro que averiguará - disse Beatrice.
Voltou a concentrar-se na carta, que naquele momento tremia entre suas
mãos. As coisas em Penterwell não eram tão agradáveis como ela havia
imaginado. Mas o castelo contava com o amparo da guarda e assim,
certamente Ranulf não corria perigo.
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— «Enquanto isso, eu devo pedir mais recursos e, no caso de ser possível,
também um pedreiro ou dois. Devido a suas preocupações pessoais, Frioc
deixou em mal estado algumas das defesas do castelo, que terei que reparar o
mais rápido possível, se não quiser correr o risco de que o castelo acabe caindo
em cima de mim. Sugiro, meu senhor, que venha até aqui para que possa
consultá-lo sobre o que deveria ser feito e em que ordem. E talvez, meu
generoso senhor além de meu bom amigo, penso que possa trazer algumas
provisões quando vier, como alguns pães, carne defumada, algum queijo e um
par de barris de cerveja. Sinto dizer que aqui a comida é escassa, a menos que
goste de pescado. E até que possa dedicar mais tempo à caça, temo que a
situação não mude. Além disso, poderia considerar a possibilidade de trazer
sua própria cama. A que tem aqui é adequada, mas não tão confortável como a
que pode se permitir o senhor de Tregellas».
Beatrice imaginou de repente Ranulf agachado em meio a um castelo em
ruínas, envolto em uma manta furada e deitado sobre um montão de palha
fétida depois de ter jantado um guisado aguado feito à base de cabeças de
pescado podre.
Levantou de um salto e o pergaminho caiu a seus pés.
— Não pode permitir que viva na miséria!
Merrick arqueou uma sobrancelha enquanto Peder, surpreso e confuso por
aquele brusco movimento, começou a chorar.
— Na miséria? — repetiu com voz suficientemente alta para que pudessem
ouvi-lo por cima do choro do bebê. — Não acredito que…
— O castelo deve estar em uma situação horrível desde que a amante de
Frioc partiu — disse Beatrice, retorcendo as mãos desesperadamente. — Sobre
tudo se Ranulf está ocupado tentando averiguar o que ocorreu a esse Gawan.
— Como soube sobre a amante de sir Frioc? —perguntou Constance
estupefata enquanto se levantava para recuperar o bebê dos braços de seu
marido.
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— Demelza contou-me — respondeu Beatrice em seguida. — A cunhada de
sua irmã que vive em Penterwell e sabe. Pelo visto, discutiram porque sir Frioc
não queria lhe oferecer matrimônio. Essa deve ser a razão pela qual Ranulf
chegou a uma casa com refeições tão terríveis e camas tão sujas. Não há
nenhuma castelhana que organize as coisas.
Olhou a sua prima em silêncio.
— Oh, Constance, deveria me deixar ir a Penterwell — suplicou decidida que
Ranulf não sofresse nem um segundo mais do que fosse necessário. — Posso
levar para Ranulf comida decente e roupa de cama, e sabe que sou capaz de
organizar os criados. Por favor, Constance, deixe que eu vá.
Constance sentou-se ao lado do Merrick, levantou o bebê nos braços e
afrouxou o sutiã para lhe dar de mamar.
— Beatrice, por mais que eu gostasse…
— Disse-me muitas vezes que estava fazendo um grande trabalho ajudando-
a — insistiu Beatrice, ficando de joelhos diante de sua prima e agarrando o seu
braço.
Sua vívida imaginação já proporcionara a visão de Ranulf no leito de morte,
agonizando de fome e frio, se ela não o acudisse logo e o resgatasse.
— Posso fazer com que os criados me obedeçam, sabe. E também posso
organizar a casa de maneira que funcione quase por si só.
Juntou as mãos, preparada para suplicar, pelo bem de Ranulf. Olhou
Constance e Merrick alternadamente e repetiu:
— Por favor, deixe-me ir.
Merrick sacudiu a cabeça.
— Não.
Constance havia dito a Beatrice em alguma ocasião que a seu marido
custava rechaçar as súplicas de qualquer mulher, mas naquele momento,
parecia ser extremamente fácil.

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— Essa não é maneira de pagar o que seus amigos têm feito por você, deixa-
lo sofrer quando há alguém que poderia ajudar — reprovou Beatrice enquanto
se levantava.
A expressão do senhor de Tregellas não mudou nem com as súplicas nem
com a atitude desafiante de Beatrice.
— Não pode ir a Penterwell. Não está nem casada nem prometida a Ranulf.
Não seria apropriado, e sendo seu tutor…
— Ninguém se atreveria a dizer nada se me enviar até lá.
— A nós não —replicou Merrick, — mas a notícia afastaria qualquer homem
que queria se casar contigo.
— Se um homem tiver tão pobre opinião sobre mim, não quero me casar
com ele — respondeu. — Além disso, todo mundo sabe que Ranulf é um
cavalheiro, caso contrário não seria nem seu amigo nem o governador de seu
castelo. Estou segura de que não teme por minha honra. Ou acaso tem medo
que Ranulf enlouqueça de repente, esqueça o juramento de lealdade e me
ataque?
— Beatrice — disse Constance brandamente, enquanto o bebê mamava —
Merrick só está pensando em sua reputação.
— Meu pai já se ocupou de destroçar minha reputação — respondeu
Beatrice. — Quanto a Ranulf, qualquer um que o conheça sabe que jamais
abusaria de sua confiança, nem da minha.
— Esta não é uma questão de confiança, Beatrice — esclareceu Constance
brandamente. — É obvio que confiamos nele e em você.
Beatrice estendeu os braços desesperada.
— Então, por que não me deixam ir?
Constance olhou seu marido.
— Estou de acordo que a situação deve ser horrível. Caso contrário, Ranulf
não teria comentado nada a respeito. E certamente, nem você nem eu
podemos sair daqui.
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— E quem melhor que eu para corrigir a situação? — pressionou Beatrice,
começando a ter esperança de que Constance pudesse mudar de opinião. —
Demelza? Qualquer outra das criadas? Que autoridade elas poderiam ter sobre
os servos de Penterwell?
— Sempre poderíamos enviar Maloren com Beatrice, além dos pedreiros
que nos pede — refletiu Constance em voz alta. — Ranulf pode explicar aos
pedreiros o que terá que fazer tão bem como você, meu amor. E Deus sabe
que não é um homem esbanjador.
E continuou dizendo:
— Beatrice também tem razão com os serventes. Talvez faça falta uma
mulher para chamá-los a ordem. Quanto à possibilidade de um escândalo,
Ranulf é um honrado cavalheiro e um amigo de confiança do senhor de
Tregellas. Qualquer pessoa inteligente poderia perceber que ele não se
arriscaria a sua inimizade aproveitando-se de sua protegida - Constance olhou
muito séria para o seu marido. — Além disso, eu não vejo outra alternativa, e
você?
Merrick mudou de posição, mas não respondeu. Beatrice estava a ponto de
começar defender sua causa uma vez mais, quando Merrick levantou a mão
para silenciá-la.
— Oh, muito bem. Pode ir com os pedreiros, durante três dias e nada mais.
E Maloren irá contigo.
— Obrigado, Obrigado! — exclamou Beatrice, dando ao senhor de Tregellas
um breve, mas intenso abraço antes de sair correndo para a porta. — Irei dizer
a Maloren. Odeia viajar e não vai parar de se queixar até que cheguemos, mas
não me importa. Temos que salvar Ranulf!

52
Capítulo 4

— Tampouco se viu por aqui algum navio que não fosse familiar? — Ranulf
perguntou a Myghal enquanto cavalgavam pela crista de uma colina situada a
poucos quilômetros da costa, dois dias depois que Beatrice suplicou ao seu
tutor que a enviasse a Penterwell.
Estavam suficientemente perto do mar para vê-lo, mas a uma distância
prudente da costa de rochas escarpadas. Para Ranulf, teria sido impossível
aproximar-se mais e dissimular seu medo.
— Não, senhor, nenhum — respondeu Myghal.
Encurvavam os ombros para se protegerem do vento. Por cima de suas
cabeças, nuvens cinza anunciavam a iminente chegada da chuva. As gaivotas
voavam em círculos e gritavam como se estivessem ordenando que se
refugiassem.
— E ninguém disse nada sobre a morte de Gawan? — perguntou Ranulf,
repetindo uma pergunta que fazia ao ajudante do xerife pelo menos uma vez
ao dia.
Myghal negou com a cabeça.
Ranulf abafou um suspiro. Não sabia como ia descobrir quem matou Gawan,
e provavelmente também os outros dois homens, se não havia ninguém
disposto a falar com as autoridades o que sabiam. Porque estava convencido
de que havia alguém em Penterwell que soubesse algo.
A viúva de Gawan, Wenna, falou com ele, mas sua desolação era tanta que
seu discurso era quase incoerente. Com o rosto encharcado de lágrimas, disse
que estava segura de que o mataram.

53
— Foi pescador desde que começou a caminhar, meu senhor. Teria que ser
uma grande para afogá-lo, e durante esses dias não houve nenhuma tormenta
— disse soluçando.
Ranulf sugeriu com delicadeza que o seu marido havia ido ao encontro de
pessoas que não eram confiáveis e assegurou-lhe de que caso assim fosse, e
inclusive se Gawan estivesse comprometido em atividades ilegais, não pararia
até descobrir os culpados de sua morte e levá-los perante a justiça.
— Foi se encontrar com um francês, senhor — ela admitiu, depois de secar o
nariz com a borda do avental que cobria seu arredondado ventre. — Fez
negócios com ele em outras ocasiões. Não confiava nele, mas pagava mais que
a maioria. E Gawan queria ganhar mais dinheiro pelo menino… meu pobre
menino órfão.
Então ela entrou em colapso. Ranulf enviou Myghal, que naquele momento
estava com ele, para procurar as esposas de seus vizinhos. Também deixou
algumas moedas na mesa antes de partir.
Durante anos e anos, acreditou que o amor era uma mentira, uma história
com a qual prender as mulheres, porque ninguém o amou realmente. Mas
depois de se apaixonar, desesperadamente, descobriu que aquele sentimento
podia ser real e também toda a dor que o envolvia.
A tristeza de Wenna tinha sido uma lembrança incômoda, mas necessária,
de toda a angústia. De outro modo, poderia esquecer-se e permitir-se…
Ouviu algo atrás dele, nos páramos.
Puxou as rédeas com força, levantou a mão para que o resto da patrulha
parasse e virou-se.
— O que ocorre? — perguntou Myghal nervoso, movendo-se na sela para
ver o que tinha chamado a atenção de Ranulf.
— Olhe ali — respondeu Ranulf, apontando um cavalo que galopava para
eles a toda velocidade.

54
Seu cavaleiro se inclinava para diante e a capa de montar que o cobria voava
atrás dele como um estandarte.
Ranulf se ergueu sobre os estribos para ver melhor e se deu conta quase
imediatamente de que não era somente uma capa o que via. Havia também
uma saia.
O cavalo parecia familiar. Muito familiar.
Que o céu o protegesse, era a égua de Beatrice. E a pessoa que a montava
tinha que ser ela, que galopava como se a perseguissem todos os diabos do
inferno.
Ranulf sufocou um juramento, lançou seu grito de guerra e açulou Titã para
que começasse a galopar. Que Deus ajudasse também a qualquer homem que
se atrevesse a fazer mal a sua pequena Bea.

Ouviu um grito próprio de um diabo ou de uma criatura sobrenatural a


quem tivessem ferido. Surpreendida, Beatrice segurou com força as rédeas
para deter Holly. Enquanto a égua se inclinava sobre suas patas traseiras,
Beatrice sentiu que as rédeas escorregavam de sua mão e a próxima coisa que
soube foi que estava no chão.
Em um primeiro momento, estava muito surpresa para sequer se mover
enquanto ouvia a aproximação dos cascos de um cavalo. Depois, viu uma juba
avermelhada e uma capa contra a chuva de cor verde floresta que lhe era
familiar e, além disso, o cavalo cinza de Ranulf.
Enquanto tentava se sentar, o governador do castelo de Penterwell parou
bruscamente o seu cavalo, desmontou-o e correu para ela. Sem deixar de
empunhar a espada que levava na mão direita, ajoelhou-se ao seu lado.
Ainda um pouco aturdida pela queda, e surpreendida pela repentina
aparição de Ranulf e a óbvia e sincera preocupação que refletiam suas feições,
Beatrice começou a dizer:
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— Espero que não acredite que não me importava que Merrick o tivesse
nomeado governador. Alegrei-me muito por você, embora não seja mais do
que você merece. Suponho que todos os servos acreditavam que eu já sabia e
Constance e Merrick provavelmente esperavam que você me dissesse isso.
Mas não me disse, assim não soube que ia embora até que partiu.
Ranulf se agachou. Parecia tão desconcertado como se fosse ele que
acabasse de cair do cavalo.
O coração de Beatrice pulsava com uma mescla de excitação e medo. Mas já
que começou, decidiu que talvez fosse um bom momento para averiguar em
que situação se encontrava sua relação com Ranulf. Perguntou a si mesma se
deveria começar lembrando-o do beijo, mas sabia que não era ela quem
deveria mencioná-lo.
— Temia que estivesse zangado, que essa fosse a razão pela qual não se
despediu de mim.
— Esperava vê-la pela manhã - respondeu ele sem mostrar nenhum sinal de
vergonha ou embaraço enquanto se levantava. — Desgraçadamente, ainda
dormia e pensei que precisava descansar. Teria me despedido de forma mais
adequada depois do jantar se soubesse que era a última vez que ia vê-la antes
de sair de Tregellas.
A última vez…? De repente, Beatrice compreendeu que Ranulf devia estar
muito bêbado para se lembrar de seu abraço ou do que havia dito. Sendo
assim, supunha que deveria alegrar-se. Mas não se alegrava. Estava tão
desiludida como desconcertada.
Ranulf a percorreu com o olhar dos pés a cabeça.
— Está ferida?
Sim, ela estava, mas não fisicamente. Doía-lhe perceber que Ranulf não
conservava nenhuma lembrança do que foi um momento inesquecível para
ela.

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— Temo que amanhã tenha um bom machucado e que minha capa estará
manchada para sempre, mas nada mais — respondeu, conseguindo não se
mostrar tão afetada como se sentia.
Ranulf a ajudou a se levantar, tomando sua mão com a sua, forte e
enluvada. E aquele contato bastou para que Beatrice recordasse a paixão de
seu beijo.
Mas o que tinha que fazer era concentrar-se no presente e esquecer o
doloroso passado.
Olhou para o grupo de soldados que se aproximava e disse:
— Penso que esses sejam os homens de seu castelo.
Ranulf seguiu o curso de seu olhar e assentiu.
— Sim, e o ajudante do xerife.
— Não acredito que seja prudente que se afaste tanto deles se está havendo
assassinatos em Penterwell.
— É com sua própria segurança que deveria se preocupar, minha senhora,
quando decidiu montar sozinha até um lugar que não conhece.
— Não venho sozinha - replicou. — Dois soldados me escoltaram durante
todo o caminho.
— A menos que eles sejam invisíveis, minha senhora – ele replicou franzindo
o cenho, — está completamente sozinha.
Admirada, Beatrice olhou por cima do ombro, esperando ver suas escoltas
vindo em sua direção.
— Não vim sozinha — corrigiu em tom de desculpa. — Holly deve ser mais
rápida que seus cavalos. Não percebi que vinha tão rápido.
Enquanto falava, chegaram até eles os homens de Ranulf e o ajudante do
xerife.
Repentinamente consciente de seu desastroso aspecto e preocupada de que
pudessem pensar que montava com freqüência como um homem, Beatrice se
ruborizou e cravou o olhar na relva. Ela queria chegar como teria feito
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Constance, com a dignidade e a elegância de uma dama merecedora de
respeito para causar em Ranulf uma boa impressão. Mas, em vez disso,
conseguiu assustá-lo e deixá-lo zangado ao mesmo tempo.
— Foi um engano. A dama não era perseguida por ninguém — disse Ranulf a
seus homens.
Se Beatrice ainda tinha alguma dúvida de que estava zangado, seu tom de
voz a teria dissipado. Ranulf se voltou para ela.
— Lady Beatrice, estes são os homens da guarnição de Penterwell. Acredito
que já conhece Myghal, o ajudante de Penterwell.
O orgulho a obrigava a se comportar como Constance teria feito, ou como
teria feito o próprio Ranulf. Assim, se obrigou a sorrir para aquele homem que,
imaginava, devia ter pouco mais de vinte anos.
— Sim, conhecemo-nos. Bom dia, Myghal.
O ajudante do xerife fez um gesto com a cabeça e balbuciou algo como uma
saudação.
— Myghal, parece que lady Beatrice veio visitar Penterwell junto com lorde
Merrick.
Beatrice se moveu desconfortavelmente, perguntando a si mesma se
deveria esclarecer naquele momento que Merrick não tinha ido com ela, mas
temia zangá-lo ainda mais.
Mas antes que tivesse podido dizer algo, Ranulf se adiantou.
— Continuem patrulhando — disse a seus homens. — Devem voltar a
inspecionar aquela caverna.
Myghal assentiu, mas não estava olhando o seu chefe. Tinha os olhos fixos
em Beatrice, assim como o resto dos homens.
Não era a primeira vez que os homens a olhavam, e embora Beatrice
dissesse que devia ser por seu aspecto descuidado, no fundo sabia que aquela
atenção se devia a outra coisa, embora não fosse tão atraente e elegante como

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Constance. Aquela classe de escrutínio sempre era incômoda, mas muito mais
naquelas circunstâncias. Nervosa, começou a dizer:
— Senti muito ao saber de sir Frioc. Não o conhecia, mas é certo que foi um
homem maravilhoso, e o fato de lorde Merrick confiar nele, diz muito de seu
caráter. E também sinto se os assustei. Asseguro-lhes que era a última coisa
que pretendia. Adiantei a minha partida porque, simplesmente não podia
continuar suportando as contínuas queixa de minha acompanhante nem um
segundo mais. Qualquer um diria que a estava arrastando em uma
peregrinação até Terra Santa. Deveria ir perfeitamente no carro, com a
montanha de almofadas que preparei para ela. Mas não, Maloren tem que
protestar e protestar até conseguir me zangar. Assim, disse a Aeden que é
responsável pela nossa vinda, que viria galopando com Holly até o páramo. Se
conhecessem Maloren, atrevo-me a dizer que compreenderiam. Adoro-a, mas
pode chegar a ser exasperante.
Apesar de sua explicação sincera, Ranulf também parecia mais do que
ligeiramente exasperado.
— Minha senhora, eu sinto interromper esta encantadora justificativa para
sua surpreendente conduta, mas estes homens têm um trabalho a fazer.
Beatrice se ruborizou e voltou a sorrir.
— É obvio. Por favor, não deixem que os entretenha.
— Foi um prazer voltar a vê-la, minha senhora — murmurou Myghal,
inclinando-se ante ela antes de fazer girar o seu cavalo e conduzi-lo ao resto da
patrulha até a beira do mar.
Ranulf observou seus homens partirem. Enquanto o fazia, tentava não
ranger os dentes nem fazer nenhum gesto que delatasse seu aborrecimento.
Mas em que demônios Merrick podia estar pensando para levar Beatrice até ali
e, além disso, deixar que se adiantasse?
Certamente, aconteceu como a própria Beatrice havia dito. Adiantou-se aos
guardas que Merrick lhe atribuiu. O que não entendia era por que o próprio
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Merrick não a estava vigiando. Sendo seu tutor, deveria ter mais cuidado. A
menos que estivesse tão cansado de escutar sua inesgotável conversa como
Beatrice estava das queixas de Maloren.
Mesmo assim, isso não podia explicar o motivo pelo qual Merrick a levou a
Penterwell, sobre tudo quando ainda estava sem resolver a misteriosa morte
de Gawan. Beatrice não serviria de nenhuma ajuda naquele lugar e,
certamente, a última coisa que ele necessitava era a distração da borbulhante
Beatrice, sua inquisitiva presença quando estava tentando arrancar uma
resposta dos recalcitrantes habitantes do povoado.
Talvez estivesse sendo um aporrinho para Constance. Constance ainda devia
estar fraca depois do esforço do parto e compreendia perfeitamente que
Beatrice fosse exaustiva.
Quanto à reação de Myghal e de seus homens, não deveria surpreendê-lo
absolutamente. Beatrice era uma jovem muito bela, mais bela e encantadora
inclusive que sua prima e, certamente, muito mais vivaz. Myghal era um jovem
solteiro, um jovem solteiro e um plebeu que não deveria ter nenhuma
expectativa a respeito de Beatrice. O máximo que poderia receber da jovem
era um sorriso educado, por mais amável que ela se mostrasse. Além disso,
Beatrice era amável com todo mundo, ricos e pobres. Um sorriso de Beatrice
não tinha por que significar…
— Sinto muito por assustar você e seus homens — voltou a desculpar-se a
jovem, — mas já conhece Maloren. Pensei que ia me deixar louca se tivesse
que agüentá-la durante o resto da viagem.
Esboçou um sorriso de desculpa e olhou Ranulf com a inocência de uma
noviça enquanto ele tentava não olhar em como se ajustava o vestido de lã a
sua figura sob a capa encharcada. Nem se sentir como um homem sem coração
por haver partido de Tregellas sem se despedir dela.
— Veio em meu resgate, como Lancelot — disse Beatrice com um sorriso
resplandecente.
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Que o céu o ajudasse, por que tinha que olhá-lo assim? Por que não podia
deixar que continuasse zangado com ela? Dessa forma seria muito mais fácil
ignorar seu desejo.
— Vi uma mulher montando como se estivesse em perigo e assim,
naturalmente, vim em sua ajuda — replicou, fazendo um esforço sobre-
humano para controlar suas tumultuadas emoções enquanto se aproximava da
égua e a segurava pelas rédeas.
— Naturalmente - disse ela, seguindo-o como um cachorrinho obediente. —
Sempre foi um autêntico cavalheiro.
— Sejam estas terras seguras ou não, não considero prudente que se separe
tanto de seu grupo. Surpreende-me que Merrick tenha sido tão negligente.
— Oh, mas ele não foi negligente — respondeu Beatrice rapidamente. — Ele
não tem nada que ver com isto.
Ranulf não tentou dissimular sua confusão.
— O que quer dizer? Como responsável por sua partida e seu tutor…
— Não o é. Bom, sim, é meu tutor — se corrigiu, — mas Merrick não faz
parte do cortejo. Não podia partir de Tregellas. De fato, nem sequer pode
montar a cavalo por culpa do que passou na noite do nascimento de Peder.
Ranulf ficou olhando como se ela estivesse falando em uma língua que não
compreendia.
— A que se refere? —perguntou-lhe. — Merrick só torceu um tornozelo.
— Já sei que Merrick pensou não ser nada sério, mas o boticário descobriu
um osso quebrado, assim foi uma sorte que Constance insistisse em que
alguém com mais conhecimentos o visse. Felizmente é uma fratura muito
limpa, de modo que não deixará nenhuma sequela, se continuar durante uns
quantos dias em repouso. Pelo menos é isso o que diz o boticário, que parece
um homem muito sensato.
Ranulf precisava se sentar, mas como não havia nenhum lugar para fazê-lo,
não o fez.
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— Então, quem está no comando da partida?
Beatrice esboçou um sorriso radiante.
— Bom, suponho que eu. Embora Aeden esteja no comando dos soldados, e
eu não posso dizer aos pedreiros o que eles têm que fazer. É você quem
decide.
— Não acredito — murmurou Ranulf.
O sorriso de Beatrice se desvaneceu.
— Nunca me ocorreu mentir sobre algo assim. De fato, geralmente não
minto, a menos que seja sobre o aspecto de um vestido ou sobre assuntos sem
a menor importância - cruzou os braços debaixo dos seios perfeitos. — Devo
dizer que me ofende ao acusar-me de inventar uma história como essa.
Certamente ela parecia ofendida, de modo que o que havia dito tinha que
ser verdade. Merrick quebrara a perna e não fazia parte da comitiva. Mas ela
sim, e não levara nenhuma dama de companhia que a acompanhasse,
unicamente uns soldados e dois pedreiros, todos eles de uma categoria inferior
a dela.
Acaso Merrick se tornara louco? O que supunha que Beatrice podia fazer em
Penterwell, exceto irritá-lo e distraí-lo?
Tentá-lo, sussurrou uma luxuriosa voz no fundo de sua mente.
— Isso não explica as razões pelas quais Merrick a fez vir aqui — replicou
Ranulf bruscamente. Mas naquele momento, seu aborrecimento ia dirigido
também para si mesmo.
— Bom, é obvio que quando recebeu sua carta ele ficou muito preocupado
e Constance também, com as condições do castelo. Por isso eu vim, para
fiscalizar o estado do castelo enquanto os pedreiros se encarregam de reparar
os muros. Pelo visto, necessita de ajuda com os criados. Além disso, trouxe
comida e vinho.
Ranulf tirou o sabre e dedicou alguns minutos para tentar tranquilizar-se.
Andava e brandia o sabre como se estivesse decapitando a relva.
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— Sei que a notícia sobre Merrick deve ter lhe causado uma forte impressão
— continuou dizendo Beatrice, — mas eu pensei que se alegraria em me ver.
Que Deus o libertasse da humildade de uma mulher com os olhos de um
anjo e um corpo capaz de tentar um santo.
— Vir aqui sem Merrick e sem nenhum outro parente é uma insensatez e
me surpreende que Merrick e Constance o tenham permitido — respondeu.
— Certamente não estará insinuando que necessito que me protejam… de
você — aventurou-se Beatrice com um brilho desafiante no olhar. — Ou está
insinuando que quebraria o juramento de lealdade e amizade que fez ao
marido de minha prima para me seduzir? —inclinou a cabeça e o estudou com
atenção. — Ou melhor, o que pretende dizer é que terminarei jogando-me em
seus braços porque se considera irresistível.
Ranulf tentou ignorar a maravilhosa visão de Beatrice correndo para os seus
braços e pressionando seu bem proporcionado corpo contra o dele, enquanto
levantava o seu doce rosto esperando um beijo.
— Não, é obvio que não — grunhiu.
— Então, por que eu não viria quando necessita de ajuda, o tipo de ajuda
que melhor pode proporcionar uma mulher?
Realmente ela não percebia de como soavam suas palavras? Das ideias que
elas podiam sugerir a um homem, sobre tudo a um homem sozinho, mesmo
que não as tivesse pronunciado a mulher mais tentadora e atraente que tinha
conhecido em sua vida?
— Porque outras pessoas falarão e poderão fazer suposições que poderiam
questionar sua honra.
Beatrice então endireitou o corpo.
— Aprecio que se preocupe com minha reputação, sir Ranulf, mas como já
disse, não tenho honra alguma para perder. Meu pai foi um traidor e morreu
executado — olhou-o com uma dureza que o surpreendeu, pois habitualmente
Beatrice era uma pessoa de caráter doce e amável. — E quanto a aqueles que
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pretendem ver pecado onde não há, não tenho nenhum interesse em conhecê-
los.
— Como pretende encontrar um marido se…?
— Se um homem acreditar que sou uma mulher de costumes maleáveis, o
que me importa que queira ou não casar-se comigo? —replicou. — E
certamente, se nem Constance nem Merrick se opuseram a minha vinda até
aqui, tampouco você deveria se opor. Eles estão obrigados a me proteger, mas
você não.
Exatamente.
— E é essa a razão que, em primeiro lugar, não deveriam tê-la deixado vir.
Os olhos do Beatrice se tornaram frios como o gelo. Com uma voz
igualmente glacial, alfinetou:
— Muito bem, sir Ranulf. Já que está disposto a questionar a decisão de
meus tutores e deseja rechaçar minha ajuda, ficarei encantada de retornar a
Tregellas imediatamente.
Ranulf disse a si mesmo que deveria sentir-se aliviado.
E justo nesse momento, caiu uma gota em seu nariz. E outra caiu na
bochecha de Beatrice.
A jovem levantou o olhar para o escuro céu antes de dirigir a Ranulf um
olhar triunfal.
— Parece, meu senhor, que vai continuar chovendo. Já que estamos mais
perto de Penterwell do que Tregellas, seremos obrigados a passar a noite no
castelo que está sob o seu comando. De outra forma, poderia me resfriar e
acabar morrendo. Então Merrick e Constance o odiariam e Maloren não
hesitaria em assassiná-lo por vingança.
Desgraçadamente ela tinha razão. Pelo menos teria que passar uma noite
em Penterwell.
— Como bem diz minha senhora, tendo em conta o mau tempo, não temos
outra opção — respondeu decidido a parecer o mais firme e autoritário que
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pudesse. — Pode vir comigo a Penterwell, mas o fará na carruagem de
Maloren. Agora que está sob meu cuidado, não quero que se arrisque a outra
queda.
Beatrice franziu o cenho enquanto amarrava a capa e apertava os lábios.
— Maloren não quererá compartilhar o carro.
— Permita-me dizer, minha senhora, que isto não é um pedido. Eu sou seu
anfitrião e, portanto o responsável por seu bem-estar enquanto estiver em
Penterwell.
Enquanto falava, Ranulf percebeu que Beatrice seria sua primeira convidada
nobre. Imediatamente recordou o estado do salão e a cozinha do castelo e isso
fez um nó em seu estômago. Não tinha idéia de qual quarto poderia ter
disponível para aquela nobre dama e para sua acompanhante. Passou a maior
parte daqueles dias patrulhando ou no povoado com Hedyn, tentando
averiguar algo sobre os dois homens desaparecidos. Quando retornava à sala
principal do castelo, comia algo que tivessem cozinhado e estava acostumado
que sempre fosse pescado, e subia ao seu dormitório tão cansado que não se
preocupava se os lençóis estivessem limpos ou não, a menos que despertasse
com picadas de pulgas pelas manhãs.
Se o seu primeiro convidado tivesse sido Merrick, não teria se preocupado
pelas condições do alojamento. Assim como ele, Merrick estaria mais
preocupado com seus possíveis inimigos que pela atitude dos criados, ou as
condições da comida ou do leito. Mas não era Merrick, era Beatrice.
E, se por acaso isso já não fosse suficientemente ruim, começou a ver a
carruagem que levava Maloren, à distância. A anciã vinha meio levantada de
seu assento, apoiando as mãos nos ombros do condutor, como se fosse uma
espécie de amazona, enquanto insistia em apressá-lo. O condutor acossava os
cavalos com um desespero que Ranulf podia ver perfeitamente.
— Oh, meu pobre cordeirinho — chorou Maloren quando viu Beatrice. — O
que aconteceu? Poderia matar qualquer um desses soldados se retornassem
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sem você. Mas o que aconteceu aqui? Por que tem a capa manchada de barro?
Este filho de Satanás colocou a mão em você?
Que o céu o ajudasse, Beatrice e Maloren. Ranulf teria preferido a peste.
Beatrice se separou dele com um olhar de recriminação, como se soubesse
o que estava pensando.
— Pelo menos você não terá que montar na carruagem com ela —
sussurrou. — Agora ficará reclamando durante todo o caminho até Penterwell.
Por um momento, Ranulf esteve tentado a cancelar sua ordem. Mas só por
um momento. Porque se o fizesse, Beatrice teria que montar ao seu lado
durante todo o trajeto até o castelo, algo que sabia que convinha evitar.

Maloren entrou junto com Beatrice na grande sala do castelo de Penterwell


e levou as mãos à cabeça em um gesto de desgosto.
— Pela mãe de Deus e por todos os anjos do céu! Não penso em ficar nesta
pocilga!
Beatrice não podia deixar de estar de acordo com a exclamação de sua
acompanhante. Aquilo era muito pior do que esperava, e isso porque suas
expectativas não eram muito altas. De fato, jamais viu uma sala em tão más
condições, com as tapeçarias rasgadas e obscurecidas pela fumaça e as mesas
desconjuntadas com restos de comidas velhas. A cadeira do senhor do castelo,
situada em uma plataforma era enorme, mas não tinha almofada alguma e
poderia ter sido confundida com um instrumento de tortura. O fogo da lareira,
localizado no centro da sala, soltava tanta fumaça como se a madeira que
tinham usado para acendê-lo tivesse ficado sob a chuva durante uma semana.
Beatrice estremeceu ao imaginar o aspecto que teriam a cozinha e os
dormitórios. Sem dúvida alguma, haveria ratos na despensa e percevejos nas
camas. Não era para menos que Ranulf tivesse escrito aquela carta a Merrick, e
tampouco que tivesse murmurado uma desculpa para ir atender os cavalos em
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vez de acompanhá-las ao interior da sala. Mesmo assim, não tinha por que
sentir-se envergonhado. Ele era o governador do castelo, não a governanta, e
não podia se esperar que um homem soubesse como cuidar de uma casa.
Beatrice também compreendeu por que pediu a Merrick que enviasse
alguns pedreiros. A parte externa estava desmoronando por uma esquina e
havia partes do parapeito que já haviam caído. Colocaram madeira nos ocos,
mas ela poderia arder se fossem atacados e utilizassem flechas de fogo e a
madeira úmida estava muito escorregadia.
— Olhe que porcaria — murmurou Maloren, afastando com o pé uma das
palhinhas que havia no chão. — Deve estar meses aqui. E não cheiram a flores
precisamente. Tenho medo de que iremos passar o dia nos coçando. E olhe, há
ossos. É certo que também haverá ratos. Não, não podemos ficar aqui.
Deveríamos voltar imediatamente para Tregellas. Afinal, só estão caindo
quatro gotas.
Beatrice rezou em silêncio, pedindo paciência. Só há alguns segundos antes,
Maloren estava se queixando de que ia se encharcar quando tivesse que descer
do carro até a sala do castelo.
— Está chovendo muito e, além disso, já é muito tarde para voltar. Suponho
que você não gostaria de se perder nos pántano ou no bosque, não é verdade?
Maloren respondeu respirando com força pelo nariz e se aproximando de
um lugar que havia uma goteira.
— Terminaremos encharcadas na cama, se não estivermos muito ocupadas
matando pulgas e só Deus sabe quantas coisas mais.
Beatrice viu algumas mulheres apinhadas no que parecia ser o corredor que
conduzia à cozinha. Pela simplicidade de suas vestimentas, imaginou que eram
criadas. Estavam menos desalinhadas do que o estado da sala e se poderia
deduzir que talvez fosse a falta de comando que explicasse aquele desastre e
não o fato de que não estivessem dispostas a trabalhar. Se ficasse ali, não lhe

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ocorreria acusar os servos de serem vagabundos. Limitar-se-ia a dar por certo
que pretendiam cumprir com seu trabalho e lhes diria…
Beatrice ia ficar naquele lugar pelo menos uma noite. Por que não começar
a fazer então, aquilo para o que Constance e Merrick a enviaram? Tentaria
fazer algo, e não importava que Ranulf não estivesse disposto a colaborar. Ela
tinha um dever a cumprir e podia tentar fazê-lo da melhor maneira possível
antes de partir dali.
Decidida a cumprir com sua obrigação, começou a caminhar para as
receosas mulheres. Teria sido melhor que Ranulf a apresentasse, mas como
não estava ali, fá-lo-ia ela mesma.
Sorriu amavelmente e disse com delicadeza, como se estivesse dirigindo-se
a um grupo de cavalos nervosos.
— Bom dia, sou lady Beatrice, a prima de lady Constance, a senhora de
Tregellas. Vim visitar sir Ranulf para ajudá-lo a endireitar esta casa, pois ele não
tem esposa nem parente alguma que possa fazê-lo por ele.
As mulheres se olharam com receio. Nenhuma delas se aventurou a dar um
sorriso ou fazer algum comentário ao ouvir aquelas palavras.
Beatrice fez um gesto a uma que parecia mais jovem e menos assustada
para que se aproximasse.
— Como se chama?
— Tecca, minha senhora — murmurou em resposta.
— Obrigado, Tecca. Quem é a serva de mais idade?
— Eseld, minha senhora.
Beatrice voltou a olhar para as mulheres.
— E quem de vocês é Eseld?
— Não está aqui, minha senhora — respondeu Tecca com voz fraca.
— Onde está?
— Não sei minha senhora.

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Beatrice estava plenamente convencida de que Tecca sabia e também o
resto das criadas, que pareciam evitar olhá-la diretamente nos olhos.
Entretanto, aquele não era o momento de pressionar. O que importava
naquele momento era ocupar-se do que a tinha levado até ali.
— Bom, quando a virem, digam que quero vê-la. Lady Constance quer que
me assegure de que sir Ranulf está comodamente instalado no castelo, nas
condições que um homem de sua posição merece, e penso em cuidar de que
assim seja. Mas antes, eu gostaria que alguma de vocês conduzisse Maloren,
minha acompanhante até a cozinha. Ela ficará a cargo do jantar desta noite.
— Não sei como vou poder servir nada decente nessa mesa. Provavelmente
a comida esteja cheia de vermes — protestou Maloren atrás dela.
— Vermes? —rugiu uma voz masculina atrás das servas. — Quem me acusa
de servir uma comida bichada?
Um homem que parecia tão grande como alto, abriu espaço entre as
mulheres. Vestia um avental gordurento e a camisa arregaçada, mostrando
seus carnudos braços. Tinha um olho meio fechado e faltava-lhe um dente. Os
dedos estavam cheios de cicatrizes e, além disso, era completamente calvo.
Apesar de seu aspecto desagradável e de suas maneiras bruscas, Beatrice
também teve um sorriso para ele.
— Devo assumir que você é o cozinheiro?
— Sim, e o melhor cozinheiro da Cornualha — alardeou. — Sir Ranulf não se
queixou em nenhum momento da comida.
Beatrice decidiu que aquele não era o momento de confrontá-lo, assim
continuou sorrindo para ele.
— Quando servirá o jantar?
— Quando estiver preparado.
Não era para menos que o castelo estivesse nesse estado, se um servo
pensava que podia falar com tão pouco respeito a um superior.

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Beatrice empertigou-se e se dirigiu a ele com o desprezo e a insolência que
merecia.
— Você é o cozinheiro de sir Ranulf e eu sou a prima da esposa de seu
senhor. Quando eu fizer uma pergunta, responda-me corretamente se não
quer deixar de trabalhar aqui, entendeu?
O homem a olhou com ar vacilante e as mulheres cravaram o olhar no chão.
O cozinheiro pareceu compreender que tinha cometido um grave erro ao
pensar que faltava autoridade aquela bela jovem, ou que não estava disposta a
demonstrá-la. Ruborizado, pigarreou e limpou as mãos no avental.
— Sir Ranulf quer que espere até que todos os homens que foram patrulhar
tenham retornado.
Beatrice inclinou a cabeça.
— Muito bem, nesse caso, assim será. Como se chama?
— Much, minha senhora.
— Obrigado, Much. Agora pode explicar a Maloren a comida que quer
preparar e ajudá-la a descarregar as provisões que trouxemos de Penterwell.
— Muito bem, senhora.
Beatrice se voltou para Tecca.
— E enquanto isso, você se importaria de mostrar o dormitório de meu
senhor?

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Capítulo 5

Beatrice não se surpreendeu ao descobrir que os quartos do castelo não


estavam em melhores condições que a sala de baixo. A enorme cama era um
desastre de lençóis enrugados e, provavelmente não a tinham feito desde dia
que Ranulf chegou a Penterwell, se é que a tinham feito então. Se Ranulf
queria dormir, era obrigado a se enroscar naquela espécie de ninho de linho
colocado sobre um colchão em que a palha aparecia pelos buracos e as
costuras estavam a ponto de estourar. E das cortinas que rodeavam a cama,
certamente sairia uma nuvem de pó se alguém se atrevesse a tocá-las.
A cota de malha e o capacete de Ranulf descansavam resplandecentes em
um canto; evidentemente, embora não tivesse escudeiro, Ranulf não se
descuidava deles. Provavelmente um dos criados cuidasse de sua armadura.
Embora suspeitasse que Ranulf não delegasse a ninguém o seu cuidado.
Quanto ao resto de sua roupa, certamente estava jogada em um
desconjuntado baú que havia perto de uma janela em forma de arco, que não
tinha sequer um pedaço de linho para evitar que a brisa noturna entrasse. Em
um baú como aquele, a roupa de Ranulf devia ter se convertido em um
autêntico festim para as traças.
Também havia uma espécie de mesa de pés altos sobre a qual descansava
uma terrina de madeira que devia servir como lava mãos; uma singela jarra de
argila fazia às vezes de vasilha de beber água. Para secar-se, só havia uns
poucos pedaços de linho, e nenhum deles limpo, dobrados ao lado da terrina.
Sem dizer nada a Tecca, que permanecia perto da porta, Beatrice entrou no
quarto dizendo- a si mesma que pelo menos a janela aberta evitava o mau
cheiro.
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Vacilou ao ver algo negro e peludo aos pés da cama.
— É uma pele de urso — anunciou Ranulf da porta.
Beatrice deu meia volta e o viu apoiado no batente da porta, com os braços
cruzados e expressão impassível.
— E se supõe que tem que estar no chão ou caiu da cama? — perguntou.
Acabava de decidir que devia agir com toda a naturalidade possível, embora
fosse perfeitamente consciente de que estava nos aposentos de Ranulf e as
lembranças da última vez que tinha estado a sós em um quarto como aquele,
continuavam ocupando um lugar importante em seus pensamentos.
Ranulf continuou olhando-a de forma inexpressiva.
— Teria que estar na cama. Mas ontem de noite, fez calor e acabei jogando-
a no chão.
Beatrice teve que fazer um esforço para não imaginar Ranulf naquela cama.
— Sinto não havê-la recolhido antes — continuou ele, afastando-se da porta
e entrando no quarto.
Seu passo era tranqüilo e seus ombros também pareciam relaxados, mas
havia tensão em seu corpo.
— Eu a teria recolhido — continuou, — se soubesse que meu dormitório ia
ser objeto de inspeção de uma dama. Devo assinalar minha senhora, que é
altamente inadequado que uma dama entre no dormitório de um homem, a
menos que seja sua noite de bodas e ele seja o noivo. E como não tenho
intenção de tomá-la por esposa, este quarto deverá ficar fora de seus cuidados,
e também de sua presença.
Evidentemente, não se lembrava do que se passou na sua última noite em
Tregellas.
— Pensei que já que estou aqui, poderia fazer parte do que Constance me
pediu — respondeu com sinceridade, — tal como me assegurar de que seus
aposentos sejam confortáveis. Além disso, não estamos sozinhos. Tecca está…
Parou e olhou para a porta. A moça já não estava ali.
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Beatrice engoliu a saliva e se obrigou a manter a calma. Não se repetiria,
não podia se repetir, o ocorrido na última vez que estiveram a sós.
— Penso que se refere à criada que estava no corredor — respondeu Ranulf.
— Pedi que se fosse. Não queria que nos ouvisse discutir.
— Discutir? —repetiu Beatrice com receio. — Por que vamos discutir? Eu só
quero me assegurar de que tenha lençóis limpos, uma sala limpa e comida
decente. Por que vamos discutir por algo assim?
— Porque não é a você a quem corresponde se ocupar desse tipo de coisas
por um homem com quem não está casada nem comprometida.
Beatrice se aproximou da janela e permaneceu de costas a ele. Os últimos
raios do sol a iluminavam como se fosse um anjo a ponto de subir aos céus.
— Quanto ao meu conforto — continuou, obrigando-se a se ocupar de
assuntos mais próprios dos mortais, — sou um cavaleiro, minha senhora, não
uma princesa. Estou suficientemente acomodado.
E ela não deveria estar em seu quarto. E muito menos sozinha.
Beatrice se virou lentamente para ele, olhando-o com uma tristeza que
destroçou o seu coração.
— Constance fez muitas coisas por mim e como ela não podia vir
pessoalmente por culpa do bebê e da perna de Merrick, eu estava encantada
de poder fazê-lo em seu lugar. Entretanto, agora me pede que vá e diga que
não posso fazer nem sequer este trabalho tão simples.
Ranulf se sentia como o homem mais insensível da cristandade, mas sabia
que tinha razão: Beatrice não podia ficar ali.
— Vá embora do meu quarto —«antes que faça algo que possa me
arrepender».
Beatrice caminhou para ele com expressão interrogativa.
— Então, Maloren tem razão quando diz que você é um imoral e um
descarado? Essa é a razão pela qual o afeta tanto a minha vinda? Não estou a
salvo com você, Ranulf?
73
Ranulf esteve a ponto de gemer em voz alta. Ela não sabia o quão atraente
era para qualquer homem? Não era consciente do perigoso de seus atos?
Estava a salvo com ele porque ele queria que estivesse, mas sua capacidade de
se conter era cada vez menor.
Talvez, pensou em meio ao seu desespero, tivesse chegado à hora de
aprender a ter mais cuidado com os homens, inclusive com aqueles em que
aparentemente podia confiar. Talvez devesse perceber que inclusive aqueles
mais decididos a ser honrados podiam ser vítimas de uma tentação superior as
suas forças. E havia muitos homens que não se importaria que fosse inocente e
ingênua, que ainda fosse mais menina que mulher. Só se fixariam na beleza de
seu rosto e de suas formas e não se preocupariam com o bondoso coração que
encerravam. Pensariam que seduzi-la era uma prova de masculinidade, uma
batalha a mais para se ganhar, uma forma de recuperar o orgulho ferido.
Como ele tinha feito com outras mulheres tempo atrás.
Sim, Beatrice deveria aprender essa dura lição e quem melhor do que ele,
que sabia quão cruel e desumano podia chegar a ser um homem?
— Posso ser um cavaleiro, Beatrice — ronronou sorridente enquanto se
aproximava dela, — mas não sou um santo. E você é muito bela.
Beatrice o olhou com os olhos arregalados enquanto retrocedia contra a
parede.
— Adiante, minha senhora — sussurrou Ranulf com voz rouca, — saia deste
quarto e se afaste de Penterwell antes que descubra que inclusive os homens
honrados têm seus limites. E digo isso a sério. Vá antes que a deite nessa cama
e faça o que está mandando minha luxúria.
Apesar da dureza de suas palavras, não via medo nos olhos de Beatrice, a
não ser alegria e assombro.
— Outros homens já me disseram que sou bonita — sussurrou, curvando os
cantos dos lábios em um sorriso, — mas você, nunca.
Ranulf desejou mandar todos os outros homens ao inferno.
74
— Não tenho medo de ficar a sós com você, Ranulf — acrescentou Beatrice,
estendendo a mão para acariciá-lo na bochecha. — Não tenho medo de nada
do que poderia tentar fazer.
Aquilo não estava saindo como Ranulf pretendia.
E então, Beatrice sorriu. Foi um sorriso glorioso. Cheio de júbilo. Como se
não houvesse nada no mundo que desejasse mais do que a levasse para sua
cama e fizesse amor com ela.
Ranulf esqueceu-se daquilo que supunha que devia ser uma lição. A única
coisa que viu foi um desejo idêntico ao seu refletido nos confiantes e adoráveis
olhos de Beatrice.
— Bea — sussurrou.
E seu nome foi um suspiro, uma esperança, uma súplica enquanto rodeava
sua cintura com os braços e capturava sua boca em um feroz e apaixonado
beijo.
— Ranulf — sussurrou Beatrice.
E devolveu o beijo como se tivesse esperando aquele momento durante
anos.
Beatrice se estreitava com tanta força contra ele que Ranulf podia sentir
seus seios pressionando contra seu peito. A jovem entreabriu os lábios e
procurou a língua dela com a sua, ansiosa por aprofundar o beijo.
O desejo que durante tanto tempo havia tentando conter com uma força de
vontade de ferro conseguiu se libertar. O carinho e a paixão floresceram como
sementes que tivessem entorpecidas em um comprido inverno e tivessem
recuperado a vida com a luz da primavera.
Presa pela intensidade de seus sentimentos, Ranulf esqueceu a honra, as
obrigações e o cavalheirismo. Beatrice era a única coisa que sabia, a única coisa
que importava: sua beleza, seu espírito, a luz de sua bondade iluminando sua
alma sombria, a alegria que levava onde antes só havia desolação, o afeto que
aliviava a dor.
75
Ranulf a segurou contra ele e continuou acariciando-a e beijando-a. Sentiu
que ela respondia aos seus beijos e aos seus lábios e aquilo reavivou sua
paixão.
— Alegro-me que não seja um santo — murmurou Beatrice sem respiração,
— embora gostasse que estivesse barbeado. Raspa-me a barba.
A realidade golpeou Ranulf com todas suas forças. Deixou crescer aquela
barba para que Beatrice pensasse que era muito velho para ela. Enfim, tinha
dez anos a menos que ele, era uma menina.
Ele era um cavaleiro sem terras, sem dinheiro, sem uma família poderosa.
Beatrice era uma formosa dama, cuja responsabilidade lhe deu a esposa de seu
melhor amigo.
Seu passado estava tingido pelo pecado; o do Beatrice era doce e puro.
Estava vermelho de vergonha por aquela debilidade. Beijá-la tinha sido um
erro. Estar a sós com ela era um erro. Algo além da razão desapaixonada era
um erro quando Beatrice estava por perto.
Tinha errado, e devia consertar seus erros. Devia destroçar o que quer fosse
que estava nascendo entre eles enquanto ainda tinha força, a honra e a
vontade para fazê-lo.
— E você é a única mulher que se queixou disso — respondeu, esforçando-
se por parecer frio e calmo, afastando-se dela e voltando a utilizar você para
manter a distância. — Eu atribuiria a sua falta de experiência, embora esse
beijo parecesse indicar que me equivoquei ao pensar que nunca beijou
ninguém. Poderia perguntar inclusive, como membro da família e, portanto,
pessoa preocupada com seu destino, quem teve a fortuna de ser objeto de
seus afetos. O jovem Kiernan, talvez?
Beatrice respondeu com um sorriso zombeteiro.
— Não há nenhuma necessidade de envolver o filho de sir Jowan nisto. É
somente meu amigo, nada mais.

76
Ranulf ignorou o alívio que produziu sua resposta e se concentrou no fato de
que tampouco havia dito que Kiernan não a beijara.
— É possível que você não seja tão ingênua como acredito. Depois desse
beijo, deveria reconsiderar, pois me pareceu que tem mais experiência do que
imaginava.
— Você é o primeiro homem que me beijou dessa forma, e o primeiro que
desejei que o fizesse — respondeu. — Mas este não foi o primeiro beijo que
compartilhamos.
Ao perceber a surpresa que suas palavras provocavam, colocou a mão nos
quadris e o olhou com receio.
— Não se recorda do que aconteceu na noite anterior a sua partida de
Tregellas?
Ranulf recordou então fragmentos de um sonho no qual Beatrice e ele se
beijavam. Teria acontecido de verdade? E, se assim fosse, pensou
envergonhado, teria esquecido algo mais? Teria perdido o controle em meio a
sua embriaguez e teria se aproveitado da pupila de seu melhor amigo?
— Não tem por que se assustar tanto, a única que coisa que fizemos foi nos
beijar. Depois pediu que eu partisse e me fez sentir como a pior pecadora da
cristandade por me atrever a beijá-lo. Entretanto, pensei que deveria lhe dizer
que homem objeto de minha atenção certamente não é Kiernan.
Ranulf entrecerrou os olhos e tentou se agarrar a única razão para não estar
totalmente envergonhado.
— Beijou-me?
— Sim, aquela noite eu o beijei. Mas agora, depois de ter esquecido
completamente o ocorrido, você me beijou.
Aliviado pelo fato de ter compartilhado somente um beijo, mas
desconcertado também por ter sido capaz de fazê-lo, obrigou-se a rir.
— Que o céu a salve, lady Beatrice. O fato de dar tanta importância a um
beijo demonstra sua ignorância. E agora, volte para Tregellas e leve todas as
77
suas fantasias românticas. O amor não é o conto de fadas que os trovadores e
os menestréis contam.
Em vez de sair correndo do quarto, como Ranulf esperava, Beatrice
fulminou-o com o olhar.
— Acredita realmente que não sei qual é a diferença entre o que cantam os
menestréis e a vida real? É claro que eu sei. Em primeiro lugar, porque o amor
que eles cantam muitas vezes conduz ao desastre, coisa que nem sempre
acontece na vida real. Olhe Constance e Merrick, por exemplo. Você diria que o
amor deles está condenado a fracassar?
— Reconheço que, em algumas ocasiões, o amor pode durar. Mas esse tipo
de amor é mais estranho que o que os menestréis contam, acredite. Em todo
caso, este apaixonado afeto que parece sentir por mim, não é amor. Não é
mais que um capricho de uma jovenzinha lunática.
— A única coisa que me indicam suas palavras é o pouco que conhece meu
coração, Ranulf - replicou ela, caminhando para ele. — E se acredita que o que
sinto por você é ridículo, então, por que me beijou?
Ranulf começou a retroceder.
— Queria demonstrar o que pode acontecer a uma jovem ignorante quando
fica a sós com um homem.
Beatrice o olhou com evidente ceticismo.
— Pois escolheu um método muito interessante de instrução. Alguma vez
lhe ocorreu pensar que seu abraço poderia ter o efeito contrário e servir para
me fazer desejar com mais intensidade seus beijos?
Oh Deus, acabava de cair em sua própria armadilha.
— Felizmente — continuou ela, — sei que você é um homem de princípios.
É um honrado cavaleiro, o amigo de confiança do marido de minha prima.
Nenhuma mulher tem por que temê-lo.

78
Que o céu o ajudasse! Supunha-se que Beatrice devia se mostrar
horrorizada, consternada, e não estar fazendo-o se sentir um homem em que
se podia confiar.
— O beijo compartilhado em Tregellas não foi o primeiro que me fez
perceber que o que sentia por mim era algo mais que o afeto de um amigo. O
que me diz do que ocorreu no Natal, Ranulf, quando esteve a ponto de me
beijar? Vai dizer que não me desejava naquele momento?
Ranulf se ruborizou, cruzou os braços e tentou mostrar uma atitude de
indiferença.
— Aquela noite você não estava bêbado, Ranulf. Mal tinha provado o vinho.
Oh, Senhor. Ranulf teve que se esforçar para dar a resposta que devia,
embora as mentiras parecessem se enredar na língua.
— Admito que naquela noite eu contemplasse a possibilidade de beijá-la
para ver como reagia. Entretanto, os beijos que compartilhamos desde então,
demonstram que tinha razão ao pensar que é muito ingênua e inexperiente.
Quanto às desgraçadas fantasias que possam ter provocado meus atos, deixe-
me assegurar que não são para agradar jovenzinhas lunáticas. Não voltarei a
beijá-la nunca mais.
Beatrice inclinou a cabeça e escrutinou seu rosto, como se estivesse vendo o
seu coração.
— O que acontece, Ranulf? Por que está dizendo essas coisas? Por que tem
tanto medo de admitir que me deseja? É por que outra mulher destroçou o seu
coração?
Nessa hora, Ranulf teve que fazer um grande esforço para dissimular seu
desconcerto.
— Em nenhum momento falei de outra mulher.
— Isso não quer dizer que não exista. Por isso me despreza, não é verdade?
Não quer sofrer outra vez. Prefere rechaçar o que lhe ofereço sem me dar, sem
nos dar — se corrigiu, — uma oportunidade.
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Beatrice não tinha idéia da dor que estava causando; das lembranças que
estava desenterrando. Lembranças que só serviam para adverti-lo que não
devia tomar o que Beatrice, em sua juvenil inexperiência, oferecia-lhe.
Lançou um olhar furioso e respondeu com dureza, decidido a afastá-la de
seu lado para sempre:
— Teve um ataque de surdez ou simplesmente está se fazendo de idiota?
Quantas vezes e de quantas maneiras tenho que dizer que não quero ser
objeto de suas ridículas fantasias?
Mas Beatrice não desviava o olhar, mas continuava olhando-o com firmeza.
— Então é porque sou a filha de um traidor, não é verdade?
Aquilo o afetou, porque sua reação não tinha nada que ver com o que o seu
pai fez.
— O crime de seu pai foi sua própria vergonha, não tem por que ser a sua.
— Ranulf, embora meu pai tenha traído ao rei prometo que eu nunca o
trairei.
Acreditava, e essa era outra das razões para que se mantivesse longe dela.
Não merecia tal lealdade por parte de uma mulher depois do que tinha feito.
Decidido a fazê-la ver que não tinham nenhum futuro, agarrou-a pelos
ombros e fixou o olhar naqueles olhos que resplandeciam como diamantes.
— Escute-me, Beatrice, e meta isto na cabeça. Você não é mais que uma
menina ingênua com a cabeça cheia de fantasias românticas. É obvio que é
preciosa e reconheço também as virtudes de seu beijo, mas é fácil encontrar
mulheres bonitas que beijem tão bem como você. E se alguma vez chegar a me
casar, quero em minha cama uma mulher amadurecida e com experiência, não
uma menina inexperiente. Não a desejo e jamais a desejarei.
Por fim Beatrice compreendeu a verdade ou, pelo menos, o que Ranulf
queria que acreditasse. E foi como ver perecer uma criatura inocente. Ranulf
foi testemunha da morte em outras ocasiões. Que Deus o perdoasse, inclusive
matou. Mas era diferente ver como rompia o coração de Beatrice ante seus
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próprios olhos, ver como a luz e o brilho de seus olhos se apagava e a dor
florescia ali onde anteriormente via a confiança, o afeto, a felicidade e a
esperança.
Ele teria o mesmo aspecto quando Celeste lhe disse que ia se casar com
lorde Fontenbleu? Teria sentido ela a mesma vergonha e o mesmo remorso?
Teria amaldiçoado a si mesmo e teria desejado a morte pelo que fez?
Preparou-se para enfrentar às lágrimas de Beatrice, mas não chegaram.
Beatrice se ergueu e adotando um porte de princesa, olhou-o com altivez. Foi
como se de repente, alguém tivesse levado a pequena lady Bea e a tivesse
substituído por uma mulher forte e majestosa.
— Estou tratando de sua comodidade a pedido de Constance e de seu
senhor — disse com calma. — Tenho a obrigação de fazer aquilo que me
encomendaram, da mesma forma que você tem suas obrigações para com
Merrick e para o rei. Seja ou não bem-vinda neste lugar, deseje-me ou não,
cumprirei com meu dever até que me obriguem a partir.
E saiu do quarto.

Quando Beatrice saiu fechando a porta atrás dela, Ranulf se apoiou contra a
parede mais próxima sentindo-se como um vilão cruel e sem compaixão.
Ele não queria machucá-la, mas não poderia ser de outra maneira. Beatrice
merecia um homem melhor do que ele nunca poderia chegar a ser. Ele sabia e
algum dia ela também saberia. E então, talvez chegasse a perceber o ridículo
daquele amor de juventude e se alegrasse por tê-la rechaçado. Inclusive
poderia chegar a perdoar o que ele fez e disse naquele dia.
Ranulf respirou profundamente enquanto se afastava da parede. As bênçãos
da vida marital, como as que Merrick e Henry tinham encontrado nos braços
de suas adoradas esposas não eram feitas para ele. Ele jamais conheceria

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aquela felicidade profunda, nem poderia reunir ao seu redor seus filhos e uma
esposa que o quisesse.
Estaria sozinho e assim devia ser.

Enquanto Ranulf desabava contra a parede, Beatrice corria para se refugiar


no primeiro quarto vazio que pôde encontrar. Fechou a porta, trancou o
ferrolho e apoiou a testa e as mãos contra a rugosa madeira da porta.
Como podia ter se equivocado até esse ponto? Como podia ter chegado a
acreditar que Ranulf era um homem bom? Era um canalha, um descarado, uma
besta luxuriosa como Maloren sempre havia dito. Além disso, era um ingrato
capaz de zombar de seu desejo de ajudá-lo. Comportava-se com ela como se
tivesse a peste. Mereceria que o deixasse caído naquela miséria, comendo pão
bolorento e carne podre, dormindo em um quarto cheio de pó…
Devia estar louca ao pensar que o amava! Seus beijos foram… mentira.
Respirou profundamente e sacudiu a cabeça. Não, se algo foi real entre eles,
foram os beijos que compartilharam. Ranulf podia dizer que não a queria e lhe
dar todas as desculpas que quisesse, mas seus beijos não podiam ter sido mais
sinceros.
Apesar do que dizia, desejava-a.
Mas por que rechaçava o amor que oferecia? Sua idade não deveria ser uma
barreira. Eram habituais os matrimônios entre pessoas com aquela diferença
de idade. De fato, sua juventude seria uma vantagem, embora Ranulf tivesse
razão ao dizer que não tinha nenhuma experiência em artes amorosas. Mas a
maioria dos homens também consideraria como algo bom aquela qualidade.
Além disso, ele poderia lhe ensinar tudo o que precisava saber.
Começou a se acalmar ao se imaginar compartilhando a cama com Ranulf,
mas rapidamente voltou a se concentrar nos obstáculos que este parecia
decidido a colocar entre eles.
82
E até que não compreendesse os motivos pelos quais Ranulf dizia que não a
desejava, não podia esperar converter-se em sua amante.
Recordou a expressão de seus olhos quando ela mencionou outra mulher;
estava segura de que essa era a resposta. Alguma mulher estúpida o rechaçara
e seu rechaço continuava doendo.
Como poderia demonstrar que a culpada pelo o que havia acontecido era
essa mulher e não ele? Ranulf merecia o amor de qualquer mulher. Ela tinha
que fazê-lo compreender e para isso, deveria ficar. Não podia partir no dia
seguinte.
Virou-se e olhou para a janela. Continuava chovendo. Se continuasse assim
no dia seguinte, não poderiam sair. Ranulf não se atreveria a enviá-los a
Tregellas no meio daquele dilúvio.
Enquanto rezava em silêncio para que continuasse chovendo, soltou um
espirro. Tal como o resto dos cômodos do castelo de Penterwell, aquele estava
sujo, poeirento e cheio de teias de aranhas. Também estava vazio, salvo por
uma cama apoiada contra a parede.
Avançou pelo interior do quarto. Sim, com um pouco de limpeza, aquele
cômodo seria perfeito para Maloren e para ela. Trouxeram seus próprios
lençóis, uma mesa portátil e dois tamboretes. Também trouxeram um pequeno
estojo de primeiro socorros, no que tinha incluído um remédio que o boticário
a ensinou preparar quando Beatrice perguntou de que maneira Constance
poderia se assegurar de que seu marido dormisse apesar da dor.
De repente, ocorreu-lhe uma ideia que parecia uma resposta do céu a suas
súplicas. Só havia uma forma de se assegurar de que não teria que partir no dia
seguinte pela manhã, chovesse ou não. A única coisa que tinha que fazer era
acrescentar uma pequena dose de sementes de papoula em um copo de vinho.
Beatrice sorriu, recuperando seu bom humor habitual. O orgulhoso e altivo
sir Ranulf estava a ponto de descobrir que não estava disposta a render-se sem
brigar.
83
Capítulo 6

Na manhã seguinte, com os olhos ainda fechados, Ranulf gemeu ao não


poder levantar a cabeça da cama. Que o céu o ajudasse, pesava-lhe como se
fosse de chumbo, e também os braços.
Era como se estivesse sofrendo os efeitos do vinho, mas na noite anterior
mal tinha bebido enquanto compartilhava a mesa com uma Beatrice adorável e
etérea que não disse uma só palavra durante toda a noite.
Quantas vezes Ranulf havia dito a si mesmo que gostaria que permanecesse
calada? E, no entanto, foi desconcertante tê-la sentada em silêncio ao seu lado
durante todo o jantar.
Porém, por mais inquietante que fosse vê-la tão obviamente zangada com
ele, Beatrice tinha que retornar a Tregellas, levando com ela suas declarações
de amor, seus olhos brilhantes, seus adoráveis lábios e seu coração. O
aborrecimento era mais fácil de suportar que a angústia que sentiria se
Beatrice chegasse a conhecer a verdade de seu passado.
Quanto ao que Beatrice havia dito sobre uma mulher ter partido o seu
coração, tinha razão. Sim, Celeste havia partido o seu coração, mas não tinha
sido seu rechaço que o fazia se afastar de Beatrice naquele momento ou se
considerar indigno de sua inocente devoção, a não ser aquilo tão terrível que
tinha feito depois. E o que tinha feito antes, quando ainda era um menino.
Não, era melhor assim. Beatrice não deveria desejá-lo e tampouco deveria
estar tão perto. Era importante que tentasse evitar a tentação. Beatrice tinha
que partir para Tregellas.
Pelo menos Maloren parecia contente por uma vez em sua vida, pensou
tentando encontrar algo bom naquela situação enquanto afastava a pele de
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urso e tentava levantar-se da cama. Mas era como tentar se mover no meio de
um lamaçal.
Ainda deitado, respirou profundamente, inalando a fragrância da lavanda
fresca nos lençóis limpos. A noite anterior, ao se retirar para dormir, tinha
descoberto que trocaram os lençóis, arrumaram o colchão e varreram o chão
de seu quarto. As tapeçarias com as cenas de caça e as damas tocando
diferentes instrumentos que cobriam as paredes também estavam limpas. As
venezianas fechadas impediam que entrassem vento e chuva no quarto, e uma
vela ardia sobre a mesa que colocaram ao lado da cama. Ao lado da vela
tinham deixado uma taça de vinho com especiarias.
Ranulf bebeu o vinho e permaneceu de pé, olhando a cama recém-feita e
consciente de que Beatrice devia ser a responsável por aquelas mudanças. Não
podia negar que havia se sentido muito bem quando se colocou nu entre os
lençóis e que tinha dormido melhor que há semanas atrás.
Lambeu os lábios que ainda conservavam o gosto das especiarias exóticas e
o vinho. Era bom aquele vinho, mas certamente não o suficiente para…
Obrigou-se a sentar e estendeu a mão para a taça. Inclinou a cabeça,
cheirou o seu interior e soltou uma imprecação.
Tinham-no drogado. Alguém acrescentou uma substância ao vinho para
fazê-lo dormir.
Completamente acordado, levantou-se de um salto e ofegou ao pousar os
pés descalços sobre o frio chão de pedra. Alguém queria mantê-lo
inconsciente, mas para que? Seus soldados podiam repelir qualquer ataque
sem ele, pelo menos durante algum tempo e em seu quarto não havia nada de
valor que merecesse ser roubado, salvo sua espada e sua armadura, que
ninguém levou.
Aquela dose estava destinada a algo mais do que fazê-lo dormir. Talvez o
objetivo fosse matá-lo e só pela misericórdia divina não havia sido nenhuma
dose letal.
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Agarrou a roupa que deixou sobre o baú e começou a se vestir. Que o céu o
ajudasse, que horas seriam? Aproximou-se da janela, abriu-a e voltou a
amaldiçoar. Continuava chovendo como se caísse o dilúvio.
A porta do quarto se abriu e Maloren entrou levando um balde de água e
um trapo de linho limpo no braço.
— Até que enfim despertou — grunhiu olhando-o com desdém. — Há pessoas
que acreditam que podem ficar o dia todo na cama quando estão no comando
de algo. E feche a janela, ou encherá o chão de água.
— Você sabe quem deixou essa taça de vinho ao lado de minha cama ontem
de noite? — Ranulf perguntou, sem dar atenção as suas palavras.
Assim que formulou a pergunta, ocorreu-lhe pensar que talvez fosse a
própria Maloren que urdiu aquele plano com o fim de manter «seu
cordeirinho» a salvo de suas supostamente nefandas intenções.
— Quem, salvo minha bondosa e delicada dama? — respondeu, olhando-o
como se estivesse louco. — Está disposta a ajudar inclusive a quem não
merece.
Beatrice levou a taça? Nesse caso, alguém devia ter acrescentado as
sementes de papoula antes de levá-la até seu quarto.
— E de onde tirou o vinho?
—Trouxemos de Tregellas, é obvio. Ela o preparou com suas próprias mãos
depois de uma viagem tão longa.
Mas certamente, Beatrice não…
Maloren o olhou com desprezo.
— Embora não possa entender por que se incomodou. Você nem sequer
tem a elegância de se mostrar agradecido.
Entre a dor de cabeça e ser consciente de que o drogaram, Ranulf não tinha
paciência para suportar as rabugices de Maloren aquela manhã.
— Posto que esteja chovendo, você e sua senhora terão que permanecer
sob meu teto ao menos durante um dia mais — disse entre dentes. — Eu
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gostaria de sugerir, Maloren, que pusesse freio em sua língua. De outro modo,
poderia ser forçado a corrigir sua insolência no calabouço.
A criada ficou boquiaberta. O medo apareceu em seu olhar.
— Não se atreveria!
— Você acredita que não?
A verdade era que jamais ocorreria encerrar uma mulher e menos ainda
uma anciã, em uma daquelas celas frias e escuras pelo mero feito de ser
impertinente, mas não se importava que Maloren o acreditasse capaz de fazê-
lo.
— Minha senhora não permitiria! — balbuciou Maloren, retrocedendo.
— Sua senhora não tem nenhuma autoridade nesta casa, Maloren, assim
tome cuidado com o que diz - respondeu. — Não sei por que me odeia tanto,
mas acredite que começo a ficar farto de suas infundadas acusações e de seus
comentários irritantes. Não tenho nenhuma intenção de seduzir lady Beatrice.
É parente de um amigo e, portanto uma mulher sagrada.
A anciã levou as mãos ao peito com um gesto de nervosismo.
— Não… não a tocará?
Como ia se comprometer a uma coisa assim!
— Dou-lhe minha palavra como cavaleiro do reino e irmão de armas de
lorde Merrick de que não tenho intenção de seduzi-la.
— Graças a Deus.
— E agora que dei minha palavra, espero que se dirija para mim com o
respeito que minha posição merece.
Maloren inclinou docilmente a cabeça.
— E agora pode partir.
— Não senhor, ainda não — aproximou-se do baú e abriu a tampa com
tanta força que deu um golpe contra a parede.
— Mas o que está fazendo?
— Minha senhora me disse que lave e remende toda sua roupa.
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Ranulf baixou instintivamente o olhar para as calças enrugadas e para a
camisa que ainda tinha na mão.
— Não a que está vestindo — disse Maloren, — terá que esperar até
amanhã.
E sem mais, dirigiu-se para a porta levando sua outra camisa, sua túnica,
dois pares de calças e algumas meias. Ranulf pensou em detê-la, no entanto
optou por não fazê-lo. Sua roupa poderia suportar uma lavagem e tinha coisas
mais importantes que fazer do que discutir com Maloren.
Tinha que falar com Beatrice.
Lavou-se rapidamente, terminou de se vestir e correu para a sala.
E ali se encontrou a frente do caos mais absoluto. Parecia haver mais de cem
servos trabalhando. Uns estavam retirando as antigas palhinhas e as colocando
em uma pilha perto da porta. Outros, seguidos por meninos, colocavam as
novas. Os cães de caça estavam amarrados em um canto, aparentemente,
muito ocupados em roer ossos para pensar em suas amarras. Outro grupo de
servos com baldes e trapos, dedicava-se a limpeza dos móveis. E havia alguns
em cima de escadas tirando as teias do teto e dos cantos. As tapeçarias tinham
desaparecido e na lareira crepitava uma enorme fogueira. As tochas ardiam
nas paredes livres de teias de aranhas, iluminando a sala de tal maneira que
estava tão clara como em um dia de sol.
Aquilo também tinha que ser coisa de Beatrice.
— Oh, está aqui, sir Ranulf! — ouviu que o chamava.
E então viu, para seu mais absoluto assombro e desgosto, que estava no alto
de uma escada, limpando teias de aranhas com uma vassoura.
Imediatamente a imaginou caindo sobre as lajes de pedra do chão.
— O que pensa que está fazendo? — exigiu saber enquanto caminhava a
largos passos até a escada. — Desça imediatamente daí!

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Felizmente, Beatrice o obedeceu imediatamente. Desceu as escadas com
grande agilidade, o que de maneira nenhuma desculpava uma conduta tão
arriscada.
Quando estava no chão, Ranulf percebeu que não estava mais bem vestida
do que uma criada e inclusive tinha o nariz manchado.
Mas nunca lhe parecera mais bela. Nem mais beijável. Nem mais desejável.
E apesar de seu traje, era impossível não reconhecer nela seu nobre berço. Era
uma mulher digna de se converter na esposa de um lorde e na castelã de
qualquer castelo.
O que ele não daria para ter uma companheira que o ajudasse a dirigir seus
criados? O que ele não daria para ter Beatrice como esposa? O problema era
que não tinha nada para oferecer.
Sacudiu mentalmente a cabeça, sabendo que pensar nisso não serviria de
nada.
— Poderia ter caído e quebrado o pescoço e nesse caso, o que eu diria a
Constance e a Merrick?
— Que me comportei de maneira imprópria para uma dama e que a culpa
não é sua — respondeu Beatrice com um sorriso que o deixou completamente
desarmado.
Por que não estava zangada com ele? Deveria estar. Tinha sido terrível com
ela. Havia dito coisas muito horríveis.
— Sério, Beatrice, não deveria estar fazendo isso. E tampouco deveria estar
trabalhando como uma criada.
— Mas eu gosto - respondeu alegremente. — E o ouvi dizer em mais de uma
ocasião que um comandante não evita nenhuma das tarefas que quer que seus
homens façam.
Seus olhos resplandeciam.
— Além disso, não percebe que a sala está muito mais cômoda e agradável
limpa?
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Ranulf se esforçava em manter seu aborrecimento.
— A questão é que não deveria ter subido essa escada. É muito perigoso.
Beatrice arqueou então uma sobrancelha.
— E você nunca faz coisas perigosas?
— Sou um cavalheiro. Tenho a obrigação de correr riscos.
— E eu tenho a obrigação de deixar esta sala mais habitável.
— Supunha-se que hoje devia partir.
— Não posso ir por culpa da chuva, ou não percebeu o tempo que está
fazendo?
— Sim, percebi — recordou a outra razão pela qual deveria estar zangado
com ela. — Mas se não tivesse notado, teria sido porque alguém colocou algo
no vinho para me fazer dormir durante toda a noite.
— E dormiu bem?
— É obvio. E você sabe, já que é a responsável.
— Sim, é certo — admitiu abertamente e sem o menor sinal de
arrependimento. — Parecia tão cansado que decidi utilizar uma poção que o
boticário me ensinou a fazer.
Sorriu como se acabasse de ganhar uma competição.
— E apesar de seu mau humor, parece muito mais descansado esta manhã.
Por que não vai comer algo na cozinha? O mingau ainda deve estar quente e
há presunto defumado, queijo e pão de Tregellas - percorreu-o dos pés à
cabeça como teria feito uma mãe. — esteve trabalhando muito e não comeu o
suficiente. Está muito magro.
— Minha senhora - começou a dizer Ranulf com firmeza, advertindo a si
mesmo que não tinha por que dar importância ao seu aspecto.
— Meu senhor — interrompeu Beatrice com os olhos brilhantes. Uniu as
mãos como se estivesse preparando-se para suplicar. — A única coisa que
quero é agir como se fosse a castelã enquanto continuar chovendo, como
Constance e Merrick me pediram que fizesse. Quando parar de chover eu
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obedecerei e retornarei a Tregellas como me ordenou — sua expressão se
tornou triste. — Não esqueci o que me disse ontem à noite, Ranulf. Não
acredito que possa esquecê-lo nunca, mas agora poderíamos ser amigos.
Enquanto Ranulf vacilava, pois ainda que gostasse, perguntava-se como ia
ser amigo de Beatrice tendo em conta os sentimentos que ela despertava nele,
percebendo de repente que havia tanto silêncio no salão como em uma
catedral em uma tarde de verão. Todos os criados e dentre eles Maloren
estava incluída, deixaram de trabalhar para observá-los.
Beatrice os fulminou com o olhar e imediatamente voltaram ao trabalho.
— E então, Ranulf? — perguntou com voz baixa, para que só ele pudesse
ouvi-la. — Está de acordo ou pedirá a seus criados que deixem de fazer o que
estão fazendo e se dediquem novamente a não fazer nada, embora você
continue alimentando-os e dando-lhes refugio?
Como ia se negar quando ela colocava a situação daquela maneira? Ranulf
apertou os dentes um instante e rezou pedindo ao céu que lhe desse forças e
disse depois em voz alta:
— Enquanto lady Beatrice nos honrar com sua presença, vocês a
obedecerão como me obedeceriam.
O sorriso agradecido de Beatrice pareceu chegar até o fundo de seu peito.
— Obrigado, Ranulf.
Ranulf não sabia se queria sacudi-la ou abraçá-la. O que realmente desejava
era que lhe ocorresse uma resposta rápida e cortante.
Não, o que de verdade queria fazer, compreendeu enquanto girava sobre
seus pés e se dirigia a passos largos para a cozinha, era abraçá-la e beijá-la até
que ambos ficassem sem respiração.

— Santo Deus! — murmurou o francês enquanto subia sobre as rochas


escorregadias em volta da entrada de uma caverna situada perto do povoado
91
nessa mesma manhã chuvosa. — Sobrevivi a um montão de batalhas e agora
vou morrer por culpa de umas poucas rochas.
Olhou para o jovem da Cornualha que segurava uma tocha fumegante em
uma cornija relativamente seca.
Myghal franziu o cenho enquanto via Pierre subir os últimos metros. O
francês fazia contrabando de estanho entre a França e Cornualles há vinte
anos, e tinha o aspecto de um homem curtido no mar: uma pele escura como a
casca de um carvalho, o cabelo salpicado de fios brancos e mãos fortes e
calosas. Vestia túnica de couro, calças, botas e camisa de um linho muito
grosseiro. Levava em seu cinturão uma espada com o punho de prata, idêntica
a de seu sabre. Também levava duas adagas na cintura da calça e Myghal
estava convencido de que guardava também pelo menos uma terceira em sua
bota. Tinha perdido um olho por culpa de uma corda do navio que se
desamarrara pela força do vento e a pálpebra vazia aparecia enrugada sob uma
sobrancelha negra e entupida.
Pierre seguiu Myghal ao interior da caverna, onde ardia outra tocha presa
entre as rochas. Um buraco na parte superior da gruta absorvia a fumaça, que
se dispersava entre as numerosas gretas da gruta até aparecer no exterior
como uma ligeira névoa. Essa era a razão pela qual a família de Myghal tinha
utilizado aquela caverna para esconder seus contrabandos durante gerações e
gerações.
— Tem o estanho? — perguntou Pierre.
Myghal assentiu e avançou para a zona mais escura da gruta. Tinha
reorganizado uma pilha de rochas para esconder cerca de dez quilogramas de
estanho que alguns mineiros que trabalhavam no páramo tinham lhe vendido.
Pierre examinou o metal à luz da tocha.
— Embora não suspeite que esteja me enganando depois do que tenho feito
por você, acredito que ainda me deve mais.
— Esta era a última parte — protestou Myghal. — Foi isso o que acordamos.
92
— Em troca de matar Gawan, sim. Mas as coisas mudaram agora que sir
Frioc morreu.
— Foi você quem o matou? — perguntou Myghal com receio e um
crescente temor.
— Não, mon Dieu! — exclamou Pierre como se lhe horrorizasse a idéia.
Sentou-se em uma das rochas maiores. — Jamais teria matado um
companheiro tão valioso. Deixava que os contrabandistas fizessem negócio
sempre e quando não houvesse conflitos. Mas este sir Ranulf… bom, se tiver
oportunidade, é possível que termine no inferno antes do que imagina. Porque
se forem certas a metade das histórias que ouvi sobre ele, é ali onde vai
terminar.
Myghal se sentou lentamente em outra das rochas.
— Que tipo de histórias?
Pierre sorriu.
— Temo que sir Ranulf não seja um tipo tão decente como sir Frioc. Dizem
que afogou seu próprio irmão.
Myghal arregalou os olhos.
— Quem te contou isso?
— Nos bordéis de Londres todo mundo sabe. Essa é a razão pela qual seu
pai o expulsou de sua casa. Arrumou algum jeito para convencer sir Leonard de
Brissy que o preparasse e foi ali onde fez amizade com o que seria o futuro
senhor de Tregellas. E essa não é a única história que corre pelos bordéis.
Dizem que sir Ranulf é um grande amante.
Myghal franziu o cenho. Era difícil conciliar essa imagem com a do homem
que ele conhecia.
— Não acredita, mon ami? Pois deveria. Parte de meu negócio consiste em
conhecer a fundo os homens que vigiam esta costa. E agora sir Ranulf está
tentando averiguar quem matou Gawan, o que suponho é um tanto incômodo
para você.
93
— Eu não o matei - replicou Myghal. — Você o matou. A noite que Gawan
morreu eu passei no botequim e muita gente me viu ali.
— Sim, isto é certo, mas se sir Ranulf me apanhar, serei obrigado a confessar
que me pagou para que o fizesse, assim suponho que quererá se assegurar de
que não possa me apanhar nunca.
O estômago de Myghal se embrulhou. Sentia como se tivesse caído em uma
armadilha que pouco a pouco ia se fechando ao seu redor, uma sensação que
ia crescendo desde o terrível dia que chegou a aquele maldito acordo com
Pierre.
— Nesse caso, não deveria retornar a Penterwell durante uma boa
temporada. E não é só por sir Ranulf. As pessoas do povoado também
suspeitam, e alguns estão pensando em fazê-lo prisioneiro assim que colocar
um pé no povoado. Acreditam que também matou Sam e Rob.
O rosto do Pierre era o epítome da inocência.
— Quem, eu?
— Sim, você ou seus homens.
— Vá, vá. Eu não sou o responsável por essas mortes, mas parece que seus
amigos não estão de acordo comigo. E possivelmente o mais sensato seja
deixar que as coisas sigam desse modo — sorriu para o jovem. — Está vendo?
Continua devendo-me algo.
Myghal compreendeu então que não teria outro remédio a não ser
continuar pagando o silêncio de Pierre com estanho ou com informação,
durante o resto de sua vida.
—Não falemos mais de assassinatos — disse o contrabandista em tom
amistoso enquanto tirava um odre de vinho debaixo de sua túnica. — Falemos
de coisas mais agradáveis. Como vai o cortejo da viúva?
Pierre ofereceu o odre a Myghal, que negou rapidamente com a cabeça.
— Não quero falar dela.
O francês pôs-se a rir.
94
— Bom, beberei eu. Deveria pedir conselho para sir Ranulf. Dizem que em
uma ocasião apostou que poderia seduzir quatorze virgens em duas semanas,
uma em cada noite, e ganhou a aposta - Pierre sorriu zombeteiro. — Parece
surpreso, meu jovem amigo, mas é um tipo atraente. E dizem que é tão bom
na cama como na batalha. Com uma combinação assim, para qualquer mulher
será difícil resistir. Sem dúvida alguma, isso explica a aparição dessa bela jovem
que agora está vivendo com ele — Pierre beijou a ponta dos dedos. —
Magnifique! Pagar-me-iam uma fortuna por ela no mercado de escravos de
Tánger.
Myghal se mexeu incomodado e, ignorando o comentário de Pierre sobre
aquela inconcebível aposta, disse:
— Lady Beatrice é uma mulher nobre, além da prima da senhora de
Tregellas.
— Sir Ranulf aposta alto, mas é evidente que teve êxito.
— Lady Beatrice não é sua amante — replicou Myghal aborrecido com
aqueles comentários. — Já falei isso, é a prima de seu senhor.
Pierre soltou uma gargalhada e voltou a guardar o odre de vinho dentro da
túnica.
— Que inocente e que romântico você é! Que você não tenha coragem para
seduzir a mulher que quer, não significa que todos os homens tenham tantos
escrúpulos. Pelo menos sir Ranulf não os tem. Todas essas mulheres que
sucumbiram aos seus encantos eram nobres, mulheres nascidas na corte do
rei.
— Estou seguro de que lady Beatrice não é sua amante - insistiu Myghal. —
Nem sequer parece que gosta dele. De qualquer modo, deve tirar da cabeça
qualquer ideia de seqüestrá-la. Se lhe acontecesse algo, sir Ranulf e o senhor
de Tregellas não descansariam até que encontrasse o responsável, a quem
certamente dariam uma morte lenta e dolorosa.
Pierre levou a mão ao peito, como se o tivesse ofendido.
95
— Eu disse algo sobre sequestrá-la? Embora, agora que você disse, por uma
mulher como essa valeria à pena correr o risco - curvou os lábios em um sorriso
sinistro. — Sobre tudo se estiver adequadamente treinada.
A Myghal repugnava imaginar qualquer mulher nos braços de Pierre,
violada, espancada e convertida posteriormente em uma escrava.
— Se me ajudasse a apanhá-la, estaria disposto a compartilhar o benefício -
propôs Pierre. — Inclusive poderia compartilhar o treinamento contigo.
Myghal negou bruscamente com a cabeça. Pierre encolheu os ombros e
suspirou.
— Muito bem, mas agora desejo comercializar escravos, é um negócio do
qual se tiram grandes benefícios - seus olhos resplandeciam sob a luz da tocha.
— Sua Wenna é uma mulher atraente. Agora está grávida é obvio, mas dentro
de um mês ou dois, poderia tirar um bom preço.
— Wenna? —Myghal o olhou horrorizado.
Pierre sorriu com expressão zombeteira.
— Sim, sua preciosa Wenna. Mas podemos chegar a outro acordo, mon ami.
Ajude-me conseguir essa bela nobre e sua Wenna ficará completamente a
salvo. E mais, nem sequer voltará a ver-me outra vez. Mas se não me ajudar,
levarei essa mulher. E a gente do povoado saberá o que aconteceu ao seu rival.

96
Capítulo 7

Três dias depois, continuava chovendo. Ranulf, exasperado e frustrado,


dirigia-se para a casa do xerife, situada nos subúrbios do povoado, em uma
zona afastada da beira do mar. A água se filtrava pela capa e as botas estavam
encharcadas, mas não se importava. Embora Beatrice e ele estivessem em uma
espécie de trégua, preferia estar encharcado a continuar perto dela, vendo-a
limpar, sorrir e ouvindo-a falar sem cessar de tudo o que estava fazendo e do
que ficava por fazer, preferia tentar não imaginar como seria sua vida se
Beatrice ficasse no castelo. Se pudesse ser sua esposa.
Contemplou a possibilidade de sair com a patrulha naquela manhã, mas não
queria se arriscar a que um cavalo tão caro como Titã quebrasse uma pata
escorregando no barro ou sofresse alguma enfermidade pulmonar com tanta
umidade.
Além disso, a patrulha já havia saído sem ele. Voltara a dormir. Beatrice se
negava a permitir que algum servo o despertasse e ele passou outra noite em
claro. Não conseguiu conciliar o sono praticamente até o amanhecer.
Depois, sonhou que fazia amor com Beatrice sobre a pele de urso. Via em
sonhos sua cabeleira estendida sobre a pele como um halo e seu corpo nu e
ondulante sob o seu.
Com aquela tormentosa lembrança na cabeça, chegou à casa do xerife e
bateu na porta de madeira com os nódulos dos dedos. Como Hedyn não estava
casado, poderia manter uma conversa séria sem que os distraíssem.
Um criado de cabelo escuro e meia idade abriu a porta. Quando viu Ranulf
do outro lado ficou boquiaberto, mas se recuperou rapidamente, inclinou a
cabeça e convidou o governador do castelo a entrar.
97
— A verdade, meu senhor, não esperava vê-lo esta manhã. Este tempo
poderia acabar com qualquer homem! —exclamou Hedyn enquanto se
levantava de seu cômodo assento ao lado da lareira para sair e receber Ranulf.
Ordenou ao seu criado que levasse a capa de Ranulf e o convidou para se
sentar junto ao fogo.
— Apóie os pés nesse tamborete — sugeriu. — Assim se secarão logo.
Pensei que poderia parar de chover esta manhã, mas dá a sensação de que não
vai parar. Em todo caso, o mau tempo também tem algo bom: os navios ficam
mais próximos da orla ou refugiam-se nas cavernas da costa, assim fica mais
fácil vê-los.
Quando Ranulf estava sentado com os pés no alto e uma taça de vinho
quente na mão, Hedyn o olhou com expressão interrogativa.
— Bom, meu senhor, o que o traz por aqui? Seus homens já averiguaram
algo?
Ranulf não podia admitir que tivesse ido à busca de refúgio, fugindo de uma
jovem dama muito diligente que parecia estar limpando seu cérebro.
— Tinha a esperança de que tivesse ouvido algo sobre esses dois homens
desaparecidos.
— Ah - Hedyn se reclinou na cadeira e sacudiu a cabeça. — Nenhuma só
palavra. O que significa, eu acredito, que provavelmente estejam mortos. Caso
contrário teríamos tido notícias deles. Seus navios não eram tão grandes para
que pudessem arriscar-se a fazer uma viagem longa.
— Nesse caso, já estaríamos falando de três homens mortos, provavelmente
assassinados, em um só mês. Para não falar do inesperado falecimento de sir
Frioc.
— Sim, senhor - confirmou Hedyn sombrio.
Ranulf tentou afastar a lembrança do cadáver de Gawan convexo na praia.
— E nenhum dos habitantes do povoado deu alguma pista de quem poderia
ser o responsável por qualquer dessas mortes ou desses desaparecimentos?
98
Hedyn negou com a cabeça.
— Acredito que agora que já tiveram tempo de acostumar-se a você, estão
um pouco mais comunicativos, mas não parece que estejam dispostos a contar
muito. São da Cornualha e não confiam nos forasteiros.
— Nesse caso, deveriam confiar em você. Afinal você também é da
Cornualha.
Hedyn sorriu com pesar.
— Ah senhor, sim eu sou da Cornualha, mas de um povo que está a vários
quilômetros daqui, o que me converte também em um forasteiro.
Ranulf suspirou e afundou em sua cadeira.
— Espero não ter que esperar muito antes de receber alguma informação,
se é que a têm. Eu não gostaria que houvesse mais assassinatos.
— Não, senhor, e acredite em mim, todos querem saber quem é o
responsável por essas mortes e castigar o assassino. Alguns dias mais e
asseguro que saberemos algo.
Alguns dias mais, Ranulf pensou com pessimismo. Rezou a Deus para que
durante esses dias ninguém mais tivesse que acabar sendo enterrado.
— Como está Gwenbritha?
— Ainda está na casa de sua mãe, senhor. Mas estou convencido de que ela
não teve nada a ver com a morte de sir Frioc. Afetou-lhe muito saber que ele
morreu. Não lamentava tê-lo deixado, mas sim que tivesse morrido.
— As mulheres podem enganar a qualquer um.
— Certamente, senhor. Mas não acredito que ela seja culpada de algo
relacionado com essa morte. Para ser justo, não acredito que haja nenhum
culpado. Não vimos ninguém perto do cadáver, e tampouco pistas ou marcas
na relva que delatassem a presença de estranhos. Eu me inclino a pensar que a
morte de sir Frioc foi um acidente.
Ranulf esperava que Hedyn tivesse razão.
— Ouvi dizer que tem visitas no castelo — disse Hedyn.
99
A chegada de uma dama nobre e de sua escolta não podia passar
despercebida em um lugar tão pequeno.
— Lady Beatrice é a prima da esposa do senhor de Tregellas.
— E me disseram que é uma jovem muito formosa.
— Sim, ela é.
Os olhos do Hedyn resplandeciam a luz do fogo.
— E dizem que soube pôr o cozinheiro em seu lugar.
Aquela notícia era nova para Ranulf, mas tentou não mostrar sua surpresa.
Era difícil imaginar Beatrice intimidando alguém, embora ao recordar sua
atitude irada e majestosa, pensou que provavelmente fosse possível. Mas
também era possível que Hedyn estivesse equivocado, posto que só estivesse
fazendo eco a rumores e hipóteses.
— Veio para me ajudar a pôr ordem na casa — dirigiu a Hedyn um olhar
cúmplice, como dando a entender que para ele esses assuntos não tinham
nenhuma importância. — Algo que escapa muito a minha experiência.
Hedyn se pôs a rir e se aproximou do fogo.
— Bem, é muito bom que alguém possa colocar esse tipo de pessoa em seu
lugar. Nem sir Frioc nem Gwenbritha foram capazes de fazê-lo.
Ranulf sentia a necessidade de fazer Hedyn compreender qual era
exatamente a situação de Beatrice.
—Retornará a Tregellas assim que o tempo melhore.
— Ah, sim? —replicou Hedyn. — Eu pensava que tinha vindo para ficar.
— Não, não ficará.
— Pois é uma pena, meu senhor, sendo tão bonita e tendo tão boa mão
para os criados… só ouvi falar bem dela e isso diz muito em seu favor.
— Inclusive esses criados aos quais está fazendo trabalhar tanto? —
perguntou Ranulf sem dissimular seu ceticismo.

100
Era consciente de como seus homens protestavam quando os forçava a
fazer algo mais que limpar sua armadura. E havia alguns que inclusive também
se queixavam por ter que limpá-la.
Hedyn lhe dirigiu um olhar que indicava como era bastante ingênua sua
pergunta.
— Há alguns, os mais preguiçosos, que resmungam quando se levantam da
cama, mas a maior parte deles gosta de ter algo para fazer e saber onde e
quando têm que fazê-lo. A falta de atividade os irrita e parece que a senhora é
muito amável com eles. Deu de presente a Tecca um lenço novo por ter
limpado muito bem o seu dormitório. A moça estava tão emocionada que
qualquer um diria que a nomearam rainha de primeiro de maio.
— E as outras criadas não se incomodaram? — perguntou Ranulf.
Intrigava-lhe a conduta das mulheres. Tinha passado anos entre cavalheiros
e soldados; não podia imaginar qual teria sido sua reação. Para ele, era um
autêntico mistério.
— Bom, se sentirem inveja, isso só servirá para que tentem impressionar
lady Beatrice com seus esforços. Ouvi dizer que prometeu um vestido novo a
todas elas se limparem e arrumarem o castelo a seu gosto. E os meninos, Deus
Santo! Os meninos acreditam que é o mais parecido que viram de uma fada.
Manda que façam pequenos trabalhos e sempre tem algum doce para eles
quando terminam.
Ranulf recordava ter visto os meninos polvilhando com ervas aromáticas as
palhinhas. Certamente, pareciam estar gostando. E era pouco provável que
Beatrice brigasse por terem terminado com mais ervas sobre a roupa que
sobre as palhinhas.
— Direi uma coisa, meu senhor, o homem que se casar com ela será muito
afortunado.
Ranulf decidiu que devia esclarecer ainda mais sua situação.
— Não tenho intenção de me casar com lady Beatrice.
101
— Ah, não? Pois já tem boa idade para se casar, meu senhor.
— Talvez, mas não com essa dama — e como não havia motivo algum para
prolongar a conversa, levantou-se. — Como não tem nada novo para me
contar, voltarei para o castelo e esperarei que a patrulha volte.
Hedyn se levantou e deteve Ranulf pousando a mão em seu ombro.
— Eu estive apaixonado por uma jovem em uma ocasião, meu senhor, e ela
também me amava — começou a dizer com voz fraca. — Mas seu pai não
gostava de mim, e fui muito obstinado e cabeça dura para pedir sua mão.
Assim a perdi. Terminou casando-se com outro, e não passa um só dia de
minha vida sem que pense nela e deseje ter ajoelhado aos pés de seu pai para
suplicar sua mão.
Ranulf olhou impassível para o xerife.
— Sinto saber de sua desgraça, Hedyn, mas minha situação não é a mesma.
E no futuro, quando necessitar de seu conselho sobre assuntos do coração, eu
pedirei.

Várias horas depois, um pouco mais seco, mas nem por isso menos mal-
humorado, Ranulf permanecia no salão livre de pó e de teias de aranhas. Em
vez de fumaça e graxa barata, cheirava a ervas frescas, a feno e a cera.
Sacudiram as tapeçarias para tirar o pó e remendaram todos seus rasgões.
Colocaram uma almofada em sua poltrona, uma almofada procedente de
Tregellas, e outra na poltrona que normalmente Beatrice usava e naquele
momento, notoriamente vazio.
Ranulf deu uns golpes no chão com o pé e fez um gesto a Maloren para que
se aproximasse.
— Onde está sua senhora? A comida já está preparada.
— Foi ao povoado, meu senhor.
— Para que?
102
— Para ver Wenna, meu senhor.
A viúva de Gawan?
— E por que pensou em fazer uma coisa assim?
Outra das criadas, a mais jovem, deu um passo adiante.
— Wenna está em trabalho de parto, meu senhor — explicou com
deferência e olhou nervosa para Maloren. — enviou um moço para que
buscasse Eseld. No povoado não há parteira e neste momento Eseld é a mulher
que tem mais experiência em partos, assim Wenna queria que a ajudasse.
—E lady Beatrice foi com Eseld?
Ambas as mulheres sacudiram a cabeça, confundindo Ranulf por um
instante, até que Maloren esclareceu com sua habitual irritação:
— Essa Eseld é uma bêbada. Ficou dormindo nos estábulos. Quando meu
doce cordeirinho a encontrou meio bêbada, ofereceu-se para ir em seu lugar.
— Mas lady Beatrice não é parteira — advertiu Ranulf com o cenho
franzido. — Que utilidade pode ter ali?
— Melhor ela que ninguém — esclareceu Maloren. — Além disso, aprendeu
muito com Aeda e fala com o boticário cada vez que tem oportunidade, assim
Wenna poderia estar em uma situação muito pior. Apesar do que alguns
possam pensar, minha senhora é uma garota muito inteligente que sabe muito
de medicina.
Ranulf viu Beatrice falando com o boticário em muitas ocasiões, mas sempre
pensou que a única coisa que fazia era incomodar. Jamais lhe ocorreu pensar
que pudesse estar aprendendo algo com aquele homem, ou que sua constante
presença no quarto de Constance durante o parto poderia ter outras
motivações que a mera preocupação por sua prima.
Entretanto, e apesar da vontade de Beatrice em ajudar, o tempo não era dos
melhores para se aventurar a ir ao povoado em uma missão de caridade.
— E saiu no meio de tanta chuva?
Maloreen franziu o cenho ainda mais.
103
— Não queria que esse menino tivesse que nascer sozinho.
— Quanto tempo faz que ela se foi?
— Howel veio para procurá-la ao meio dia, meu senhor - respondeu Tecca.
— Quantos soldados foram com ela?
Tecca ruborizou-se violentamente.
— Nenhum, meu senhor - respondeu por fim.
— Foi sozinha?
— Sozinha não — respondeu Maloren na defensiva. — Eu também ia, mas
disse que ficasse para me assegurar de que esse estúpido do cozinheiro não
preparasse pescado para o jantar. Disse que Myghal a levaria.
Antes que Ranulf tivesse tido tempo de sentir-se aliviado, a porta da sala se
abriu com tanta violência que soou como um trovão em meio a um absoluto
silêncio.
— Que tempo tão terrível! —gritou Beatrice enquanto corria para dentro do
salão, sozinha e com a capa encharcada. — Por um momento pensei que
Myghal e eu íamos terminar no mar antes de chegar à casa de Wenna.
Jogou para trás o capuz da capa.
— Oh, Ranulf! Você voltou – exclamou como se fosse ele que tivesse
abandonado o castelo sem a escolta adequada. — Então deve ser a hora do
jantar. Graças a Deus, porque estou faminta. Tive que sair correndo antes do
almoço e a pobre Wenna não tinha muito para oferecer, assim mal provei o
que me deu. É uma mulher muito generosa. Eu gosto.
Ranulf deu graças aos céus enquanto caminhava lentamente para Beatrice,
ao mesmo tempo em que Maloren corria para ela.
— Tem que tirar toda essa roupa úmida, cordeirinho, antes que adoeça.
— Não estou molhada, a única coisa que molhou foi a capa — replicou a
jovem.
Tirou o objeto e o estendeu para Maloren.

104
Tinha as bochechas rosadas pelo exercício e alguns cachos que escapavam
de sua trança emolduravam sedutoramente seu rosto. Como sempre durante o
dia, vestia um vestido singelo de lã, aquele dia de cor verde, além de um
cinturão de couro. O cabelo estava recolhido para trás em uma larga trança
que prendia no extremo com uma tira de couro.
Mas nenhuma rainha com seus objetos mais luxuosos teria parecido mais
vibrante, mais luminosa ou mais bela.
— Tenho que falar com você, Ranulf — disse com uma determinação
surpreendente. — Sabe que não há parteira no povoado?
— Sim, informaram-me recentemente - respondeu, recordando a si mesmo
que era o governador do castelo e não um amante desejoso de cortejar a sua
amada. — Agora, sugiro que faça o que Maloren disse e tire essa roupa úmida.
Teve que fazer um esforço para não imaginá-la com uma anágua encharcada
o que, certamente não ocultaria nada.
— Não estou tão molhada — respondeu Beatrice com firmeza. — E preciso
falar com você.
Ranulf se perguntou o que podia ter que lhe dizer que justificasse tamanha
resolução.
— Não acredito que as fofocas que correm pelo povoado sejam algo tão
urgente.
Beatrice poderia tê-lo matado com o olhar.
Possivelmente a comida podia esperar, pensou Ranulf. Teria que se arriscar
a passar alguns minutos a sós com ela.
— Se o que tiver que me dizer é mais importante, podemos ir à outra sala,
minha senhora.
A outra sala era um cômodo pequeno, úmido e mofado, mas tinha a virtude
da privacidade e não era um dormitório.

105
Evidentemente, Maloren não gostou absolutamente de sua proposta, mas
se queixaria depois a sua senhora, pensou Ranulf enquanto se virava e se
dirigia para as escadas com Beatrice em seu calcanhar.
Quando chegaram à sala, Ranulf dirigiu um rápido olhar para aquele
cômodo que ainda não recebera os cuidados de Beatrice. Mesmo assim,
quando se voltou para a jovem, descobriu-a olhando ao seu redor como se
estivesse analisando o que poderia chegar a conseguir com um balde de água e
alguns quantos trapos.
— Bom, minha senhora, qual é esse assunto de tanta importância que
queria me falar?
— A parteira que havia neste povoado morreu e depois ninguém ocupou
seu lugar — começou a dizer, com os olhos resplandecentes. — A mais próxima
vive no povoado ao lado, que está a uns dez quilômetros de distância. Levaria
quase meio-dia para chamá-la e conseguir que viesse até aqui. Esse é o motivo
pelo qual Wenna queria que Eseld a atendesse, porque não há ninguém mais.
Felizmente, eu tenho alguns conhecimentos graças a Aeda e ao farmacêutico
de Tregellas que também me ensinou algumas coisas sobre medicina.
— Sim, recordo-o — interrompeu Ranulf.
Beatrice ruborizou-se e continuou imediatamente:
— Assim decidi ir ver se podia ajudar. Havia outras mulheres na casa de
Wenna, mas todas sabiam menos que eu. A única coisa que queriam fazer era
falar de sua própria experiência nos partos, em vez de tentar ajudar Wenna. E
devo dizer que muitas dessas experiências eram terríveis. Bastaria ouvi-las para
que muitas mulheres decidissem não trazer filhos a este mundo se tivessem
alguma possibilidade de evitá-lo. Por um momento, pensei que Wenna ia
desmaiar se continuasse escutando-as. Assim, amavelmente as convidei a
partir até que ficamos sozinhas. Eu disse a Wenna que não se preocupasse.
Expliquei que na verdade, essas mulheres eram como os homens depois das
batalhas. A única coisa que querem é comparar feridas e alardear sobre o que
106
têm feito. Wenna sorriu por fim e parece que se tranqüilizou. Nesse momento,
as dores cessaram imediatamente. Era um falso sinal. Pelo visto, ocorre às
vezes.
A determinação que refletiam as feições de Beatrice era cada vez maior.
— Estava assustada, Ranulf, e não a culpo. Era possível que algo saísse mal e
ninguém sabia como ajudá-la.
Ranulf recordava perfeitamente o que era sofrer em solidão.
— Escreverei a Merrick depois do jantar. Constance pode encontrar uma
parteira.
— É uma boa ideia - respondeu Beatrice com aprovação, mas continuava
franzindo o cenho. — Desgraçadamente, isso levará tempo e como não sabia
que ia fazer esse amável oferecimento…
Respirou profundamente, deu um passo adiante e falou como se estivesse a
ponto de anunciar que era realmente uma deusa.
— Disse a Wenna que como não havia parteira, ficaria até que o bebê
chegasse e a ajudaria no parto. Dei-lhe minha palavra, Ranulf.
Continuou defendendo-se, como se Ranulf tivesse ordenado que
abandonasse Penterwell nesse mesmo instante.
— Não posso abandoná-la e só seria uma semana a mais. Quatorze dias se
demorar mais tempo. Sei que deveria ter perguntado antes, mas estava tão
alterada e é tão pouca coisa… por favor, deixe-me ficar e cumprir minha
palavra.
Sua estadia no castelo não era tão “pouca coisa” para ele, mas negar
qualquer tipo de ajuda a uma jovem viúva a ponto de dar a luz era algo que
não podia se permitir. E Beatrice tinha razão. Constance levaria algum tempo
para encontrar uma parteira disposta a ficar em Penterwell.
— De acordo — aceitou com relutância. — Pode ficar aqui até que Wenna
dê a luz. Informarei Merrick minha decisão quando lhe escrever esta noite.

107
O rosto de Beatrice se iluminou, seus olhos resplandeciam de puro júbilo.
Por um momento Ranulf temeu que pudesse abraçá-lo, assim levantou as
mãos e a advertiu:
— Mas só pode ficar até que nasça o filho de Wenna. Depois, terá que
partir.
— Oh, muito obrigado, Ranulf! — exclamou Beatrice como se não tivesse
ouvido a última frase. — Sabia que no fundo, tinha coração.
Sim, tinha coração, mas um coração ferido.
Começou a se retirar.
— Compreendeu-me? Pode ficar até que Wenna dê a luz, nada mais.
— É obvio - respondeu com outro sorriso resplandecente. — E durante esse
tempo, poderei ajudá-lo também.
Ranulf optou por se refugiar atrás de seu sarcasmo.
— Devo esperar que você colabore com os pedreiros de Merrick a próxima
vez? Ou possivelmente pense em se reunir com o comandante de minha
guarda para planejar a defesa do castelo?
Beatrice não pareceu absolutamente afetada por seus comentários. Ao
contrário, inclusive começou a rir as gargalhadas.
— Temo que não possa ajudar em nada tão prático. Mas posso me
converter em uma espécie de ponte entre você e os habitantes do povoado.
Bom —esclareceu, — pelo menos com as mulheres. Wenna não é a única que
quer averiguar quem matou Gawan. As outras mulheres também estão
desejando encontrar o culpado, porque temem por seus filhos e por seus
maridos.
— Acreditam que Gawan morreu assassinado?
— Sim, estão convencidas.
— E se estão tão preocupadas, por que não me dizem quem é o suspeito? —
perguntou Ranulf, pensando no muro de silêncio que parecia rodear o
povoado.
108
— Acredito que gostariam de dizer, mas você é você, e eu sou eu. Não sei se
me compreende.
— Pois a verdade é que não.
— Para as mulheres é mais fácil confiar em outras mulheres — explicou. — E
você não é só um homem, mas também o representante de seu senhor e
inclusive do rei, e eu não. Pelo menos, não diretamente. Sou bem menos
intimidante.
— Aparentemente, não ocorre o mesmo ao cozinheiro.
Beatrice ruborizou.
— Foi terrivelmente insolente.
— Talvez devesse contratar outro.
— Não é necessário. Much aprendeu a lição. Mas agora não quero falar do
cozinheiro. Wenna me contou algo mais importante. Diz que falou com você do
francês e que contou que Gawan se reuniu com ele, mas não lhe disse… -
vacilou um instante, aproximou-se da porta, olhou para o corredor e a fechou.
Para Ranulf já não importava o que Beatrice tinha para dizer. Permanecer
com ela em um cômodo fechado não era sensato. Não era absolutamente
sensato.
Se fosse um homem com bom senso, sairia correndo dali imediatamente.
Desgraçadamente, Beatrice se interpunha entre a porta e ele.

109
Capítulo 8

Beatrice ignorava por completo o efeito que tinha sobre Ranulf enquanto se
apressava em fazer sua revelação.
— O que Wenna não contou foi que as pessoas do povoado estão
esperando que apareça o navio do francês e, no momento em que chegar a
praia, pensam em atacá-lo. Talvez matem os contrabandistas. Pretendem
afundar o navio.
Nesse mesmo instante, Ranulf se esqueceu de que estava a sós com
Beatrice.
— Eles sozinhos?
— Estão muito zangados pela morte de Gawan — disse Beatrice, como se
isso explicasse tudo. — Há uma caverna em que o francês está acostumado a
se refugiar e a mantêm vigiada dia e noite.
— Onde está essa caverna?
Beatrice sacudiu a cabeça.
— Não sei. Quando Wenna disse que iam afundar o navio, algumas
mulheres pareceram um pouco… bom, eu tive a sensação de que pensavam
que falaram demais — os olhos brilhavam com seu habitual entusiasmo. —
Mas como vou ficar aqui, talvez possa averiguar algo mais.
Talvez, pensou Ranulf, apesar de suas reservas.
— Qualquer informação será bem-vinda.
Beatrice se aproximou mais dele.
— Wenna ficará encantada ao saber que vai permitir que eu fique, Ranulf.
Esta época está sendo muito difícil para ela.

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Ranulf sabia que deveria se afastar, mas se sentia como se de repente
crescessem raízes em seus pés.
— Teria sido mais difícil ainda se alguém não tivesse deixado umas moedas
em cima de sua mesa.
Ranulf se ruborizou como um adolescente.
— Se isso era tudo o que tinha para me dizer, deveríamos voltar para salão.
— Há algo mais — respondeu Beatrice parando felizmente, a meio metro
dele. — Confia em Myghal?
Aquela não era uma pergunta que Ranulf esperasse.
— Há alguma razão pela qual não deveria fazê-lo?
— Espero que não. É só que, quando me dirigia para casa de Wenna, tive a
sensação…
Encolheu os ombros e olhou para Ranulf como se esperasse que este
dissesse o que sentia.
O que certamente Ranulf não podia saber era o que sentia Myghal
exatamente. Aquele homem parecia digno de confiança, mas era jovem e os
jovens podiam fazer loucuras.
— A próxima vez que for ao povoado, quero que leve uma escolta. Dois
soldados pelo menos. Não quero que aconteça nada enquanto está sob meus
cuidados.
Beatrice ruborizou-se, mas sua expressão não era a de uma dama humilde e
obediente. Parecia ofendida.
— Estou certa que estou completamente a salvo em seu povoado.
Seu povoado. Sem pretendê-lo, Beatrice o fazia sentir que conseguiu algo
em sua vida.
— Também gostaria de acreditar, mas não vou brincar com sua segurança.
Você é a protegida de Merrick e eu não gostaria de ter que enfrentar sua ira se
algo lhe acontecesse enquanto está sob meu amparo. Quando suspeitou que
Herny colocou Constance em perigo, esteve a ponto de matá-lo, lembre-se.
111
Beatrice baixou o olhar e assentiu.
— É obvio. Que estúpida fui ao querer fazer algo que poderia dar a entender
que não impõe sua autoridade em Penterwell.
— Alegro-me de que preste atenção a minha posição, minha senhora —
respondeu com toda a calma da que foi capaz. — Vamos?
Com um assentimento de cabeça e sem dizer uma só palavra, Beatrice
pousou a mão em seu braço e deixou que a conduzisse para o salão.

Dois dias depois, Beatrice tentava ignorar os dois soldados que a seguiam
enquanto se dirigia para o mercado do povoado. Como Ranulf aceitou que
ficasse ao menos até que Wenna tivesse o bebê, estava obrigada a levar
escolta cada vez que saía do castelo, embora isso a fizesse se sentir ridícula.
Pelo menos o tempo melhorou. A chuva deu lugar ao sol e o calor anunciava
a chegada de uma nova estação. Os cordeiros pulavam nas colinas e tudo
parecia fresco, verde e novo. Aquilo bastava para animar os passos de Beatrice,
apesar do constrangimento que provocava sua situação com Ranulf. Inclusive
Maloren parecia mais contente e passava horas na cozinha, vigiando os
trabalhos do cozinheiro.
— Bom dia, minha senhora. Está fresca como uma margarida.
Beatrice saiu de seu ensimesmamento e elevou o olhar para um sorridente
Hedyn. Gostava do xerife, aquele homem de semblante amável e voz paternal.
Devolveu-lhe o sorriso.
— Bom dia. Não parece maravilhoso que finalmente tenha parado de
chover?
— Certamente, minha senhora, quase tão maravilhoso como você.
Beatrice se pôs a rir enquanto ele começava a caminhar ao seu lado.
— Vai me fazer perder a cabeça, Hedyn.
Hedyn apontou com a cabeça a cesta que Beatrice levava no braço.
112
— Vai ao mercado, não é?
— Sim, queria comprar fios e Tecca me disse que uma das mulheres do
povoado faz um corante verde maravilhoso. Eu gostaria de levar um corante
para Tregellas.
— Será muito triste para todos nós o dia que nos deixar, minha senhora.
— Eu também lamentarei partir, mas meu lar está em Tregellas.
— É uma pena.
Beatrice não sabia como responder a isso, assim foi um alívio que Hedyn
parasse e dissesse:
— Temo que deva partir, minha senhora, tenho que me aproximar da praia.
Talvez aparecessem alguns restos que poderiam pertencer ao barco de Gawan.
— Averiguaram algo sobre sua morte? — perguntou-lhe. Ranulf não
comentava nunca nada relativo ao assassinato de Gawan.
— Desgraçadamente não, embora não deixemos de tentar. Sir Ranulf está
fazendo todo o possível para averiguar.
— Leva muito a sério suas obrigações — Beatrice se mostrou de acordo,
pensando nas noites que Ranulf passava sentado frente à lareira, com o olhar
fixo no fogo.
— Sim, certamente. É um grande cavaleiro. Conseguiu impressionar os
pescadores e comerciantes e asseguro que isso não é nada fácil. Temiam que
fosse um tipo… arrogante — disse o xerife, olhando-a com expressão de
desculpa pela palavra depreciativa que teve que utilizar. — Não, minha
senhora, não poderíamos ter esperado um governador melhor e espero que
diga para lorde Merrick.
— Sim, direi — respondeu imediatamente.
Com um assentimento e uma inclinação de cabeça, Hedyn se afastou para
seu cavalo enquanto Beatrice continuava caminhando.
Penterwell era um povoado muito acolhedor, construído frente à costa. As
casas estavam tão apinhadas que não deixavam espaço para que crescesse
113
uma só fibra de relva entre elas, mas o caminho principal cumpria essa função,
com os postos e as lojas dos comerciantes.
Todos os comerciantes se alegraram ao ver Beatrice. Esta ria e brincava com
eles e admirava com sinceridade as mercadorias que ofereciam, o que tornava
difícil que se limitasse a levar apenas o que tinha ido comprar. Sobre tudo
quando viu uma peça de seda adorável pendurada em uma das bancas. Era de
um delicado azul claro, quase idêntico aos olhos de Constance. Seria um
presente perfeito para ela.
— Poderia lhe fazer um preço especial, minha senhora — disse o
comerciante ao perceber seu interesse. — Olhe, o baixarei para que possa
apreciar sua qualidade.
Beatrice se perguntava como era possível que um pedaço de tecido como
aquele tivesse chegado até um pequeno povoado da Cornualha, mas decidiu
que era melhor não perguntar.
— É precioso — disse com um suspiro — Desgraçadamente, não tenho
suficiente dinheiro. Não sabia que podia comprar este tipo de coisas em
Penterwell.
— Quanto custa? — perguntou Ranulf atrás dela, sobressaltando-a.
Não sabia que Ranulf estava no povoado. Pensava que ele ainda estava no
castelo, escutando os informes dos soldados que tinham saído para patrulhar
aquela manhã.
— Cinco marcos, senhor — respondeu o comerciante rapidamente, — e vale
o dobro.
— Se você o diz —respondeu Ranulf enquanto procurava no interior de sua
túnica. — Comprá-lo-ei para a senhora.
— Oh, não, não deve — respondeu Beatrice, ruborizada por aquele
oferecimento. Sabia que Ranulf não era um homem rico. — Obrigado, sir
Ranulf, mas…

114
— É para demonstrar minha gratidão por tudo o que tem feito em
Penterwell — respondeu. Seu tom era tão firme e decidido que Beatrice
compreendeu que seria inútil discutir.
— Ficará maravilhosa, minha senhora — disse o mercador enquanto
dobrava o lenço e o estendia.
— Oh, não era para mim — corrigiu Beatrice rapidamente.
Para evidente horror do mercador, Ranulf fechou o punho ao redor das
moedas que tinha na mão.
— Então, para quem era? — perguntou, arqueando a sobrancelha com
expressão interrogativa.
— Pensava em dar de presente para Constance. Já sei que é muito cedo
para pensar na noite de Reis, mas me ocorreu muitas vezes que se não
comprar um presente quando o vejo, depois nunca encontro nada que possa
comprar — explicou, esperando que não rescindisse seu oferecimento.
Embora, por outro lado fosse tão caro…
— Mas se não quer…
—Tenho outro lenço — disse rapidamente o mercador. Agachou-se debaixo
do tabuleiro e procurou em uma gaveta de madeira. Tirou outro lenço de uma
cor azul ligeiramente mais escura. — Vendo os dois por sete marcos.
— Mas não é o mesmo tom de azul — disse Ranulf.
— E, além disso, seria muito dinheiro — disse Beatrice com a mesma
firmeza.
Ranulf a olhou atentamente.
— O segundo lenço é mais parecido com a cor dos olhos de Constance. E o
primeiro vai bem com os dos seus. Comprarei os dois.
Beatrice ruborizou-se profundamente. E descobriu que não era capaz de
sustentar o olhar.
— Na verdade, não necessito de nenhum lenço.
— E, no entanto, vai ter um lenço igual ao de Constance.
115
Então, alguns mercadores os reconheceram e começaram a se aproximar
deles. De modo que não queria discutir com Ranulf, Beatrice compreendeu que
o melhor a fazer era agradecê-lo e aceitar seu presente.
— Obrigado, sir Ranulf. Você é muito generoso.
— É muito pouca a compensação em troca do que fez por Penterwell.
O mercador estendeu o outro lenço de seda e guardou rapidamente as
moedas que Ranulf lhe entregava, como se pensasse que era melhor fazer
desaparecer o dinheiro da vista antes que Ranulf mudasse de opinião.
— Já terminou as compras por hoje? — perguntou Ranulf solenemente.
— Não, antes eu gostaria de comprar um pouco de pescado. O cozinheiro se
queixa porque o pescado é sua especialidade e nunca o deixamos cozinhá-lo —
ao ver a expressão de Ranulf, tranquilizou-o. — Se não quiser, não terá que
comer. Haverá outras muitas coisas.
— Estou certo — respondeu. Olhou por cima do ombro para se dirigir aos
dois soldados que escoltavam Beatrice. — Podem voltar para castelo. Eu
acompanharei lady Beatrice quando terminar.
Os soldados assentiram e partiram.
— Não acredito que tenha dado essa ordem — disse Ranulf enquanto
caminhavam para as peixeiras, com seus cestos resplandecentes de salmão,
sardinhas, trutas e linguado.
Ranulf parecia ter voltado a ser o que era antes. Beatrice reconhecia nele o
homem que conheceu em Tregellas e não podia deixar de recordar a primeira
vez que o viu cruzar a porta do senhorio a cavalo, ao lado de Merrick e Henry.
Merrick estava muito sério, vestido de negro. Henry, sempre alegre, ia
vestido de escarlate e sorria como se estivesse encantado com a vida. Vestido
de cor verde bosque, Ranulf não sorria, mas certamente seu semblante não era
tão sombrio como o de Merrick. Depois, os três desmontaram dos cavalos e
Ranulf olhou ao seu redor como se estivesse pensando em estratégias
defensivas ou no preço da pedra.
116
Aquele homem a intrigou muito mais que Henry com seus sorrisos ou
Merrick com seu silêncio. Mais adiante, durante aquela época terrível em que
Constance e Merrick estavam brigados, foi Ranulf que saiu em busca de ajuda.
Pensava que ele poderia compreendê-la. E assim foi. Ranulf demonstrou
então que não era tão frio e cínico como parecia.
— Certamente, para os soldados é mais agradável ir ao mercado que estar
fazendo guarda frente a um muro —disse Beatrice com um brilhante e alegre
sorriso.
— Sim, definitivamente, ajudar uma jovem bonita enquanto faz suas tarefas
é muito mais interessante e divertido do que fazer guarda — concordou Ranulf.
Falava como se em alguma ocasião houvesse cumprido com aquela
obrigação.
— Alguma vez teve que seguir uma dama quando ela estava fazendo
compras?
— Não.
Beatrice tentou ignorar a sensação de alívio que lhe produziu sua resposta.
— Certamente, os mercadores parecem encantados com você. Mas não sei
por que me surpreende. Parece gostar de todo mundo.
— Tento ser agradável e amável, isso é tudo — respondeu Beatrice.
— E eu não — não era uma pergunta.
O que se supunha que tinha que dizer sobre isso? Perguntou-se Beatrice,
enquanto eles se aproximavam da praia, o lugar em que as peixeiras
anunciavam suas mercadorias.
Uma estranha expressão cruzou o rosto de Ranulf.
— O que acontece? — perguntou Beatrice. Era evidente que acontecia algo.
— O aroma — respondeu. — O pescado pode ser um prato delicioso, mas é
óbvio que o aroma não é agradável.
Mas sua expressão não era somente de repugnância. Havia algo mais.
Beatrice baixou a voz.
117
— Você também tem a sensação de que estão nos vigiando?
Ranulf a olhou como se acabasse de dizer algo absurdo.
— O que?
Beatrice se sentiu ridícula de repente. Afinal, estavam em Penterwell. Ali
não havia delinqüentes.
— Não, nada — respondeu e seguiu caminhando, desejando ter mantido a
boca fechada.
Mas em vez de segui-la, Ranulf a deteve.
— Acredita que alguém a está vigiando?
—Tive essa sensação em várias ocasiões. É como se me arrepiasse o pelo da
nuca —admitiu. — Bem, sendo um cavalheiro não conhece essa sensação. Ou
melhor, experimentou essa espécie de medo antes da batalha ou quando tem
que participar de uma refrega…
— Beatrice — disse Ranulf com firmeza, — acredita verdadeiramente que
alguém a está vigiando?
— Estou segura de que não é nada, meu senhor.
E então, como se não houvesse nada que a preocupasse, avançou a grandes
passos para a mulher que vendia sardinhas.
Ranulf não disse nada, mas tampouco a seguiu. Pretendia deixá-la ali, sem
nenhum tipo de escolta, apesar do que ele mesmo tinha ordenado? Embora
assim fosse, não aconteceria nada enquanto estivesse no povoado. Entretanto,
tinha que admitir, embora fosse somente para si mesmo, que se sentia mais
segura quando Ranulf estava perto. Ou possivelmente só estivesse mais
contente.
Tentando concentrar-se em sua tarefa, descartou as sardinhas e seguiu
avançando pela praia. Realmente, Much era um grande cozinheiro de pescado;
embora fosse uma pena que fosse tão terrível com o restante. Maloren se
queixava dia e noite de seu pão, de sua papa, de seus guisados, de como
assava a carne…
118
Ranulf não partiu, mas tampouco se aproximou dela. Permanecia ali onde a
deixou, com os braços cruzados e expressão insondável.
Bom, tampouco ia trotando atrás dela como um cão. A não ser que alguém
decidisse empurrá-la na água, estava completamente a salvo. Mesmo assim,
inquietava-lhe saber que a olhava com expressão sombria.
Possivelmente o pescado pudesse esperar até sexta-feira.
Decidindo que seria o melhor, voltou novamente para ele.
— Acredito que não comprarei pescado até sexta-feira.
— Como quiser —respondeu ele, voltando para o castelo.
— Enfim — acrescentou com ligeiro flerte, — não é nada fácil escolher
quando sua escolta está olhando como uma estátua, como se tudo o que faz
fosse uma perda de tempo. Sinceramente, qualquer um diria que o pescado
lhe dá medo.
— Não é o pescado — murmurou Ranulf.
Beatrice percebeu então de que estavam tomando um caminho diferente
para chegar ao castelo, um caminho que bordeava o mercado. Um caminho
que estava completamente deserto. O coração começou a pulsar
violentamente no peito.
— É a água.
— Perdão? —balbuciou Beatrice.
O calor da excitação morreu sufocado por aquela sombria confissão.
— Eu não gosto de estar tão perto da água. Estive a ponto de me afogar
quando era pequeno.
Beatrice estava muito surpresa por aquela revelação. Mas também a
emocionava que confiasse isso a ela.
— Quando Merrick e Herny viraram o bote e você caiu no meio da represa?
Henry contou que sir Leonard insistiu em ensinar a todos seus tutelados a
nadar. Entretanto, havia dito entre risadas, que Ranulf passava a maior parte

119
do tempo no bote de sir Leonard, remando. Um dia, Merrick e ele decidiram
dar-lhe uma lição antes que sir Leonard embarcasse e o atiraram na água.
— Não, não foi aí. Estou falando de algo que ocorreu antes, muito antes que
eu… antes que abandonasse o castelo de meu pai. A única pessoa que sabe é
sir Leonard.
— Surpreende-me que me conte isso e não tenha contado aos seus amigos
mais íntimos —a dmitiu Beatrice.
Ranulf ruborizou-se.
— Tanto a surpreende que eu tenha preferido ocultar meu medo?
Não, pensou Beatrice, tendo em conta o orgulho próprio de quase todos os
homens.
— Mas era pior deixar que pensasse que tinha medo do pescado.
Beatrice estendeu a mão para ele desejando, necessitando daquele mínimo
contato físico.
— Guardarei o segredo durante toda minha vida — prometeu.
De repente, mais envergonhado do que nunca por aquele temor,
amaldiçoando a si mesmo por aquela debilidade que despertava a compaixão
de Beatrice, Ranulf se obrigou a rir.
— Minha querida Beatrice, não há necessidade de sermos tão dramáticos.
De fato, talvez devesse admitir meu medo ante a guarnição de uma vez por
todas e deixar de pensar em desculpas para não me aproximar do mar.
— Se não foi quando caiu na represa — perguntou Beatrice, ignorando seu
intento de não dar importância, — quando esteve a ponto de se afogar?
Aquilo era algo que definitivamente, ele não queria falar.
Felizmente, a visão de um menino que corria para eles evitou que fizesse.
— Venha depressa, senhora, por favor! —gritou o menino, quase sem
respiração. — É Wenna! A bolsa de água rompeu-se!

120
Muito tempo depois, Ranulf se levantava depois de uma noite de sono
agitado e abandonava a cama confortável desde que Beatrice chegara ao
castelo.
Beatrice ainda devia estar na casa de Wenna. Pediu aos seus guardas que o
avisassem quando ela voltasse e deixou muito claro que seriam seriamente
castigados se não o fizessem.
Não tinha por que se preocupar com o fato de que não houvesse retornado
ainda, disse a si mesmo enquanto se aproximava da janela. Aquele era o
primeiro parto de Wenna e recordava perfeitamente o que ele mesmo dizia a
Merrick quando estava esperando o nascimento de seu primeiro filho: os
primeiros partos podiam durar bastante tempo.
Abriu a janela e viu a névoa que invadira tudo durante a noite. Era uma
névoa tão espessa que apenas se viam os muros do castelo.
Certamente, Beatrice não tentaria retornar em meio aquela névoa. Afinal,
não era uma mulher imprudente e não tinha nenhum motivo para precipitar
sua volta. Sim, o mais sensato era esperar que a névoa se dissipasse.
Mas, apesar de seu pretenso otimismo, não perdeu tempo em se lavar e
vestir-se. Com uma túnica, a camisa, as calças e as botas, abandonou o quarto
e correu para o grande salão, diminuindo o passo ao passar em frente do
dormitório que compartilhava Beatrice e Maloren.
Deteve-se um momento para respirar a essência de lavanda. Através da
porta aberta, viu a mesa situada em uma esquina e o pequeno frasco de
perfume e os laços e pentes que ali descansavam. Não custava nada imaginar
Beatrice sentada em frente daquela mesa, falando sem cessar enquanto
Maloren lhe escovava o cabelo.
Quanto desejaria poder fazer algo tão simples por ela. Permanecer atrás de
Beatrice e escutar sua voz musical enquanto o colocava a par das atividades
domésticas do castelo. Beatrice era capaz de fazer parecer divertida até a
tarefa mais rotineira e eram muitas as ocasiões nas quais Ranulf tirava o
121
chapéu sorrindo enquanto lhe falava de problemas surgidos na cozinha ou com
os servos.
Enquanto continuava seu caminho, percebeu que o quarto de Beatrice era
muito menos confortável do que o seu, quanto ao mobiliário. Provavelmente a
jovem colocou os objetos que levava para seu próprio uso, como almofadas,
lençóis ou travesseiros, em seu dormitório. Que o céu a benzesse, mas não
tinha por que ter feito isso e ele estava disposto a insistir que levasse de volta
todos os seus pertences com ela quando retornasse a Tregellas. Ele podia viver
com muito menos. Já tinha feito em outras ocasiões.
Não pela primeira vez, perguntou-se o que poderia ter acontecido para que
sir Leonard não o deixasse ficar ao seu lado. Havia dito que tinha que partir.
Obrigou-o a partir.
Da mesma forma que ele estava obrigando Beatrice a partir.
Era para o seu próprio bem, recordou-se, porque a apreciava. Porque a
queria mais do que era sensato. Recordou todas as razões pelas quais não a
merecia. Sua pobreza e sua falta de terras. O que fez a seu irmão, além da
aposta que ganhou em Londres depois que Celeste lhe disse que pensava
casar-se com um homem mais rico.
Quando entrou no salão, os soldados que ali dormiam já haviam se
levantado e alguns dos criados estavam colocando os tabuleiros e os cavaletes
para preparar o café da manhã.
— Lady Beatrice não retornou ainda? —perguntou a Gareth, o comandante
da guarnição.
— Ainda não, meu senhor.
— E onde está Maloren?
— Myghal veio buscá-la —replicou Gareth.
Embora não houvesse nenhum motivo para se preocupar, o sangue de
Ranulf gelou nas veias.
— Quando?
122
— Faz um momento, senhor. Myghal disse que a senhora necessitava da
ajuda de Maloren.
Embora provavelmente tudo fosse tal e como Gareth estava explicando e
Beatrice e Maloren certamente estivessem perfeitamente a salvo, Ranulf
agarrou uma tocha de um dos spots e começou a caminhar para a porta.
— Vou para casa de Wenna — anunciou enquanto entrava na névoa que
cobria o pátio de armas.

123
Capítulo 9

A névoa era tão espessa que Ranulf não distinguiu a porta até que chegou
ali. Enquanto avançava, as gotas de umidade encharcavam seu rosto e o seu
cabelo. A tocha chispava, mas felizmente, continuava acesa enquanto Ranulf
passava entre as surpreendidas sentinelas e continuava a passar pelo caminho
que conduzia até o povoado.
Quando chegou a zona das casas e das lojas, o pelo de sua nuca se arrepiou,
com a mesma sensação que Beatrice havia descrito. Aquela sensação podia ser
devido à névoa, mas não conseguia deixar de imaginar que atrás daquela
entupida bruma se escondia algo mais sinistro que os edifícios do povoado e o
mar. Diminuiu o ritmo de seus passos e tirou a espada com todos os sentidos
em alerta, atento a qualquer coisa que pudesse parecer estranha ou fora de
lugar.
O som de um estalo penetrou na penumbra e através da névoa viu uma
mulher dando de comer às galinhas. Quando se aproximou dela, ficou olhando-
o com os olhos totalmente arregalados. E não era para menos. Ver o senhor do
castelo cruzando o povoado com a espada na mão não devia ser uma visão
muito tranqüilizadora.
Sem dar explicação alguma, continuou avançando a grandes passos.
Ouviu outro som e parou para escutar. E sentiu um alívio tão forte como foi
o seu medo. Reconheceu aquele som feliz como se fosse sua própria voz. Em
alguma parte, perto dali, Beatrice estava rindo.
Começou caminhar novamente e não demorou em chegar à casa de Wenna.
Colocou a tocha em uma calha que havia perto da porta e parou um instante

124
para conter a respiração. Alisou a túnica e passou a mão pelo cabelo
encharcado.
Santo Deus, nem sequer colocou uma capa, pensou enquanto batia na porta
e adotava sua habitual expressão de calma e indiferença.
Maloren abriu a porta. O sorriso da anciã desapareceu assim que viu a
pessoa que tinha em sua frente.
— Oh, é você.
Evidentemente, continuava sem gostar dele.
— Ranulf! — ouviu Beatrice exclamar com tanta alegria que não pôde deixar
de sorrir, apesar do frio recebimento de Maloren.
— Wenna, pode mostrar o bebê? — perguntou Beatrice.
Era muito próprio de Beatrice perguntar a uma plebeia se o governador do
castelo podia entrar em sua casa. A verdade era que nem sequer deveria ter
chamado.
Ranulf entrou no interior da casa, que parecia cheia de mulheres, e
distinguiu uma cama em uma esquina com um berço rústico ao lado. O fogo
ardia no lugar e as velas, muito caras para uma plebeia, de modo que
provavelmente Beatrice as tivesse comprado, iluminavam o interior do quarto.
E então Ranulf viu Beatrice ao lado do berço e se esqueceu de todo o resto.
Segurava o bebê de Wenna nos braços como se fosse seu filho e ao vê-la,
um desejo mais intenso do que qualquer sentimento que Ranulf tivesse
experimentado em sua vida, se apoderou dele. Queria ver Beatrice com um
filho de ambos entre seus braços, um filho de cabelo loiro e brilhantes olhos
azuis.
Wenna murmurou algo e sorriu.
— Pode entrar, meu senhor — disse Beatrice.
Ranulf cruzou o dintel da porta e as mulheres deram espaço para que
Beatrice pudesse se aproximar dele. Estava vestida com a mesma simplicidade

125
de sempre e levava o cabelo recolhido em uma longa trança. Embora seus
olhos resplandecessem de felicidade, parecia não ter dormido a noite toda.
— Aqui está, meu senhor. Não parece adorável? — disse Beatrice,
mostrando o menino para que o visse.
Pelo julgamento de Ranulf, o menino era igual a tantos outros recém-
nascidos, embora aquele fosse completamente calvo.
— Sim, um menino encantador — mostrou-se de acordo, imaginando-a uma
vez mais com seu próprio filho entre os braços.
— Chamar-se-á Gawan, como seu pai — disse Beatrice brandamente.
Ranulf teria gostado de poder jurar nesse instante, diante de Beatrice e do
resto das mulheres, que logo descobririam o assassino de Gawan e vingariam
sua morte. Mas não podia jurar algo que não podia garantir.
Em vez disso, Ranulf se aproximou da Wenna, que permanecia pálida entre
os lençóis, com o ventre ainda inchado pela gravidez. Pediu-lhe permissão e se
sentou na beira do colchão.
— Seu filho é um menino perfeito e são, Wenna. Daqui a algum tempo,
necessitarei de um pajem. Eu gostaria de oferecer esse posto ao seu filho.
E posteriormente, não havia necessidade de dizer, convertê-lo-ia em seu
escudeiro o que possivelmente permitiria que chegasse a ser um cavaleiro.
Wenna olhou para ele maravilhada, embora Ranulf entendesse que o que
lhe oferecia era muito pouco comparado com a perda de um pai. Era um
grande homem, todo mundo dizia, algo que o pai de Ranulf nunca foi.
— Necessito de homens bons e pelo o que ouvi dizer de seu marido, seu
filho poderá servir-me e ser um orgulho para sua família.
Wenna começou a chorar.
Enquanto Ranulf se levantava da cama, o resto das mulheres começou a
soluçar também e, inclusive Maloren secou dissimuladamente os olhos.
Beatrice, entretanto, olhou-o como se fosse um anjo recém-caído do céu; seus
olhos resplandeciam de felicidade e aparecia em seus lábios um sorriso.
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Mas Ranulf não era nenhum anjo e ele sabia perfeitamente.
— Deve estar cansada, minha senhora — disse. — Permita levá-la para casa.
Beatrice assentiu, dando o consentimento.
— Maloren, cuide do pequeno Gawan — disse. — Por favor, fique aqui para
ajudar Wenna — mas pareceu vacilar enquanto elevava o olhar para Ranulf, —
a não ser que queira que partamos hoje mesmo de Penterwell.
— Não, hoje não — respondeu com firmeza. Na realidade, não queria que se
fosse jamais. — Está muito cansada.
— Obrigado, meu senhor — respondeu, como se ele estivesse fazendo um
grande favor.
Se ela soubesse o quanto desejava que ficasse!
— Assegurar-me-ei que descanse — disse a Maloren, para evitar que esta
insistisse em ir com eles. — Estou certo que não há ninguém mais capacitado
do que você para cuidar de um bebê — inclinou cortesmente a cabeça olhando
para as outras mulheres, — embora saiba que a nenhuma de vocês tampouco
falta vontade nem experiência.
Enquanto as outras mulheres se olhavam satisfeitas e falavam entre elas
entre sussurros, Ranulf foi procurar a capa de Beatrice e abriu a porta em
silêncio. Surpreendentemente, Beatrice não disse nada, o que indicou a Ranulf
que devia estar realmente cansada.
Percebeu naquele momento que a névoa estava se levantando, o que
significava que poderiam retornar sem necessidade de levar uma tocha.
Retornaram ao castelo em silêncio. Certamente, quando tivesse descansado,
Beatrice teria muitas coisas que contar sobre o parto.
Antes de retornar a Tregellas.
Beatrice tropeçou com uma e pedra e caiu para frente.
Sem pensar duas vezes, Ranulf a agarrou e a levantou em seus braços.
— O que, o que está fazendo? — perguntou Beatrice, enquanto rodeava lhe
o pescoço com os braços.
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— Está esgotada. Vou levá-la em meus braços para que não sofra nenhum
dano.
— Posso caminhar perfeitamente — protestou, embora sem muito
entusiasmo.
— Não acredito que tenha dormido nada esta noite — e, além disso, gostava
de tê-la entre seus braços.
— Não — confessou. — Não foi um parto fácil e em mais de uma ocasião,
temi que pudéssemos perder o bebê. Eu tive que virá-lo —s e agarrou a Ranulf.
— Oh, Ranulf, tive tanto medo que pudesse dar errado, embora estivesse certa
de que recordava perfeitamente o que Aeda me havia dito quando lhe
perguntei sobre partos mais difíceis. Mas nunca vi um parto em que o bebê
saísse de nádegas.
E tampouco ele, mas parecia complicado e doloroso.
— É obvio que evitei que tanto Wenna como as demais soubessem quão
assustada estava, assim me limitei a fingir saber o que estava fazendo e a
esperar que não acontecesse nada. Felizmente, assim que consegui virar o
bebê, tudo foi muito rápido ou pelo menos, foi o que me pareceu e não houve
mais problemas.
Apoiou a cabeça em seu ombro com um suspiro de cansaço.
— Foi uma sorte que estivesse ali para ajudar — disse Ranulf, pensando que
seria maravilhoso que pudesse estar sempre ali para ajudar.
— Sim. Obrigado por me permitir ficar — disse, elevando a cabeça. — Devo
pesar muito. Talvez seja melhor que vá andando.
—Tranquilize-se, Beatrice, não me importo.
Beatrice se aconchegou contra ele sem dizer uma palavra e no final de
alguns segundos, estava dormindo.
Ranulf baixou o olhar para ela, admirando sua beleza e sua inteligência, e
experimentou uma ternura, uma alegria e uma furiosa necessidade de protegê-
la que parecia apagar qualquer outro sentimento.
128
Sua Bea. Sua pequena lady Bea. Como gostava de seu constante falatório.
Desfrutava ouvindo-a descrever coisas que outros homens podiam achar vãs,
mas aquelas conversas sobre tarefas domésticas eram algo que ele realmente
nunca conheceu. Adorava ouvi-la elevar e baixar a voz com entusiasmo, como
se estivesse cantando. Gostava de ver como se transformavam suas feições,
feições capazes de falar inclusive quando permanecia em silêncio. Embora os
silêncios fossem estranhos nela. Quando estava calada, ele sempre temia que
estivesse doente.
E até que ponto tinha chegado a se preocupar nas poucas ocasiões em que
esteve doente! E quanto alívio ao saber que na realidade não era nada grave!
Não queria que Beatrice abandonasse Penterwell. Não queria que o
deixasse. Queria estar sempre com ela, tomá-la por esposa, que fosse a mãe de
seus filhos. Queria fazê-la feliz e mantê-la a salvo durante o resto de sua vida,
sempre e quando, lhe concedesse essa honra. Sempre e quando Beatrice
permitisse que ele a amasse.
Tentou afastá-la de seu lado. Tentou fazer com que ela o odiasse. Mas,
apesar de todos seus esforços, parecia que Beatrice continuava gostando dele.
Talvez o amasse.
Talvez fosse certo que Deus era verdadeiramente misericordioso e por fim,
permitiu que encontrasse a felicidade e o amor. Ou melhor, Deus o perdoou.
Talvez permitisse que fosse feliz com uma esposa a que amasse.
E se assim fosse, talvez Beatrice não o desprezasse pelo que fez. Ou melhor,
o seu respeito e sua admiração por ele eram suficientemente fortes para poder
ver além de seu passado.
Talvez, refletiu com um brilho repentino de esperança, menosprezara-a ao
pensar que o consideraria um monstro e não um homem que pecou, sofreu e
ganhou uma oportunidade de se redimir.
De uma coisa estava plenamente convencido enquanto a segurava entre
seus braços: não podia continuar preso entre o desejo e o medo. Tinha que
129
averiguar como seria, se Beatrice fosse capaz de perdoar seu passado. Tinha
que contar tudo e deixar que ela decidisse se mesmo assim valeria a pena
querê-lo.
Mas, e se reagisse como ele tanto temia e se afastasse para sempre do seu
lado? E se dissesse que jamais poderia amá-lo?
É obvio, ele deveria aceitar. Afinal, era o que merecia pelo que fez.
Ao chegar às portas do castelo, ordenou a um dos guardas que se adiantasse
e abrisse a porta do salão. Levou Beatrice para dentro e assegurou aos
serventes que se aproximaram assustados ao vê-los entrar que só estava
adormecida e cansada.
Continuou subindo até o dormitório. Uma vez ali, deixou-a delicadamente
sobre a cama. Provavelmente deveriam despi-la, mas isso não correspondia a
ele. Pelo menos até o dia em que pudesse chamá-la esposa. Ou talvez não
pudesse fazê-lo nunca, se Beatrice terminasse odiando-o.
Mesmo assim, cedeu a uma pequena tentação. Inclinou-se para diante e
roçou seus lábios com um delicado beijo.
— Amanhã, Bea — disse em um sussurro, — amanhã contarei tudo sobre
Ranulf de Beauvieux.

Maldita névoa, pensou Myghal enquanto trotava afastando-se de


Penterwell. E maldito Pierre. E maldita Wenna, também, por rechaçá-lo e o
empurrar a fazer algo tão terrível.
Não, a culpa não era de Wenna. Ela era inocente, ela não fez nada de mau.
Era dele o pecado, um pecador e um covarde, que fugia do desastre que ele
mesmo provocara.
— Aonde vai, Myghal? — ouviu uma voz com acento francês, como se um
fantasma tivesse seguido seu rastro.
Um fantasma com uma voz idêntica a de Pierre.
130
Myghal cravou as esporas no lombo do cavalo, açulando-o para que
galopasse.
Não se deu conta de que os homens daquele contrabandista o rodeavam. O
cavalo se assustou e resfolegou, mas não havia forma de escapar, a menos que
tentasse passar por cima deles.
Pierre, de pé no chão, abriu espaço entre aquele muro de cavalos e homens.
— Então pretende fugir, não é, Myghal? — perguntou em um tom
surpreendentemente delicado e expressão amável.
Até que chegou a Myghal e o atirou ao chão.
Quando Myghal tentou se levantar, empurrou-o com força, apoiou o pé em
seu peito e o reteve no chão.
— Estúpido — insultou-o com um sorriso zombeteiro. — Pensa que sou
idiota? Pensa que não sou capaz de distinguir um covarde? Quem a não ser
um covarde, contrata outro para que mate? Sabia que não podia confiar em
você e assim sendo, meus homens o vigiavam dia e noite.
Inclinou-se, agarrando Myghal pela túnica, puxando-o para levantá-lo.
— O que… o que está fazendo? — balbuciou Myghal com o rosto tão cinza
como os farrapos de névoa que os rodeavam.
— Recordá-lo de nosso compromisso — respondeu Pierre, empurrando-o.
— Não é para menos que essa mulher não te queira. Foge em vez de
reivindicar seu direito a ela.
— Não quero que mais gente sofra por minha causa.
— Palavras valentes, mas continua sendo um covarde. Poderia ter tido à
mulher que quer e ter conquistado sua liberdade para sempre o dia que levou
lady Beatrice a casa de Wenna. Teria sido a ocasião ideal para seqüestrá-la.
— Pensei que não seria fácil localizá-lo devido à névoa — mentiu Myghal.
A verdade era que pensou em sequestrar lady Beatrice, mas Wenna
precisava dela.

131
E enquanto a jovem nobre caminhava ao seu lado falando feliz, era
impossível enganá-la e levá-la a Pierre.
— E onde acreditava que podia estar? No mar? — zombou Pierre. — Estava
no mesmo lugar que passamos dias esperando que cumprisse sua parte no
compromisso até que meu navio retorne.
— Sim, tem razão — Myghal se mostrou de acordo, — teria sido uma boa
oportunidade. Talvez não encontre outra igual, de modo que temo que deva
renunciar ao seu plano.
— Ah, acredita que é assim, não é verdade? E pensa que tem direito a me
dizer o que devo fazer — Pierre tirou a espada e a pressionou contra o peito de
Myghal. — A única razão pela qual a esta altura não está morto, é que não nos
traíste ante sir Ranulf e ainda pode nos ser útil. De outro modo…
— E o que o impediria de me matar, inclusive no caso de ter feito tudo o que
me pede?
— Nada, exceto que sou um homem de palavra — respondeu o
contrabandista. — Mantive minha palavra quando matei seu amigo. Poderia
ter ficado com o dinheiro e ter partido deixando-o vivo. Mas não, fiz o que me
disse que fizesse, tal e como você esperava. E o que me deu em troca? Está
tentando me trair e fugir.
— Não posso fazer o que quer! —gritou Myghal. — Não posso seqüestrar
lady Beatrice. Isso seria minha morte e você também acabará morto se tentar.
— Como já te disse, é um risco que estou disposto a correr — replicou
Pierre. Elevou a espada de forma que quase cravou a ponta em seu queixo. —
E temo, mon ami, que é um risco que você também deveria estar disposto a
correr. Ou prefere que o mate agora mesmo por que já não me é útil?

132
Beatrice abriu os olhos enquanto bocejava e se estirava na cama. Estava
sozinha, em seu quarto em Penterwell e Ranulf a levou ao que ele chamou de
sua casa.
Sentou-se na cama e olhou ao seu redor. Maloren devia estar ainda com
Wenna.
Fechou os olhos e suspirou aliviada. Não tinha sido fácil o parto daquele
menino e, em alguns momentos, temeu que tudo pudesse sair errado. A pobre
Wenna foi muito valente. Desejava com tanta força que aquele menino
nascesse…
Mas depois da dor e das lágrimas, de repente cessaram os gritos e o
pequeno Gawan chegou ao mundo e, quase imediatamente se pôs a chorar.
Não com tanta força como o pequeno Peder, mas certamente com uma
potência mais que suficiente, a julgar pelo alívio que refletia os rostos das
mulheres.
O pequeno Gawan poderia ter chegado ao mundo sem sua ajuda, pensou
Beatrice, mas mesmo assim, sentira-se imensamente orgulhosa e satisfeita,
sobre tudo quando viu o olhar de aprovação de Ranulf.
Havia tanta ternura em seu olhar que acelerou o seu coração ao vê-la.
Aquele olhar teria sido mais do que suficiente, mas depois Ranulf a levou
para casa em seus braços, deixou-a na cama e a beijou. Brandamente, com
extremada delicadeza. E disse que queria lhe contar algo.
Se não estivesse tão cansada, teria pedido que o fizesse nesse mesmo
instante, mas quando encontrou forças suficientes para falar, Ranulf já estava
fechando a porta atrás dele.
Certamente aquilo indicava que mudara de opinião e não queria que
retornasse a Tregellas. Talvez estivesse disposto a admitir que a quisesse. Ou
melhor, podia conservar a esperança de que a amasse.
Levou a mão à boca para dissimular uma risada. Até que não estivesse
segura do que Ranulf tinha em mente, não queria ter esperanças.
133
Quando o estômago começou a roncar por causa da fome, levantou-se e
lavou o rosto. Tirou o vestido de lã e a anágua, que estava encharcada de suor.
Deixou sobre a cama a roupa suja e colocou sua melhor camisola, feita de linho
fino e suave. Ranulf não a veria, mas ela sempre se sentia como uma rainha
quando a vestia e neste dia, queria sentir-se como uma rainha.
Tirou um vestido de lã de cor azul com os punhos vermelhos que se fechava
pelas laterais, de modo que não necessitava de ajuda para fechá-lo e
acrescentou ao seu traje um cinturão de couro vermelho. Colocou meias
limpas, sapatilhas e escovou bastante o cabelo antes de recolhê-lo em uma
rabo-de-cavalo que atou com um laço vermelho.
E assim, arrumada, emocionada, feliz e descansada, correu para o salão. Não
só precisava comer algo, mas também queria ver o quanto antes Ranulf.
Ao entrar naquele enorme salão, viu-o imediatamente na tarima, de costas
para ela.
Encontrava-se em frente a uma mulher que o estava saudando com um
beijo.
Era uma mulher muito bela, alta, morena e tão esbelta como um junco, de
olhos amendoados e sobrancelhas arqueadas e bochechas redondas e rosadas.
Vestia uma capa com pescoço de arminho e as orelhas e o pescoço adornados
com jóias cintilantes.
E olhava Ranulf como se quisesse comê-lo enquanto ele permanecia frente a
ela erguido como o eixo de um moinho, com os ombros tensos.
Beatrice começou a tremer, sobressaltada pelo medo e pela náusea. Não
era só uma mulher formosa. Era sua forma de olhar para Ranulf e a postura
que este adotava, como se tivesse perdido o equilíbrio e naquele momento
estivesse recuperando-se.
Ranulf conhecia aquela mulher, conhecia-a muito bem. E também ela o
conhecia.

134
E então Beatrice compreendeu quem era aquela mulher. Aquela era a
mulher que tinha partido o coração de Ranulf.

135
Capítulo 10

A recém-chegada reparou imediatamente em Beatrice. Seus olhos


resplandeceram como a areia úmida quando baixava a maré, embora
continuasse sorrindo para Ranulf com doçura.
— Entendi que tem uma convidada, Ranulf — disse em voz suficientemente
alta como para que Beatrice pudesse ouvi-la. — Deve ser a pupila do senhor de
Tregellas.
O semblante de Ranulf era frustrantemente inexpressivo quando se voltou
para olhá-la. Desgraçadamente, Beatrice perdeu o momento do encontro,
quando a reação de Ranulf poderia dizer muito mais sobre quais eram seus
sentimentos.
— Lady Beatrice, devo apresentá-la a lady Celeste de Fontenbleu, uma
conhecida de meus anos de juventude.
Uma conhecida? Aquela parecia uma palavra muito fria para descrever a
que foi sua amante, pensou Beatrice, recuperando a felicidade enquanto se
aproximava para saudá-la com uma ligeira inclinação de cabeça.
Uma rajada de aborrecimento cruzou o semblante de lady Celeste.
— Eu pensei que fossemos muito mais que conhecidos — disse para Ranulf.
— Então digamos melhor, amigos — respondeu ele.
Celeste tampouco pareceu muito satisfeita, mas desapareceu toda sombra
de raiva de seu rosto enquanto se dirigia a Beatrice com um amável sorriso.
— Que criatura tão formosa — assinalou, gotejando condescendência. —
Certamente, vendo-a ninguém diria que é a filha de um traidor.

136
Beatrice teve que fazer um esforço sobre-humano para dissimular seu
aborrecimento. Por mais incomodo que fosse e, embora o que lady Celeste
havia dito fosse verdade, não deveria demonstrar seus verdadeiros
sentimentos diante daquela mulher. Não lhe daria a satisfação de saber até
que ponto suas palavras a afetavam.
— Seja qual for o crime de seu pai — replicou Ranulf antes que Beatrice
estivesse suficientemente tranquila para responder, — lady Beatrice é a pupila
de meu senhor, é esse o motivo pelo qual está nesta casa.
Embora suas palavras fossem extremamente corretas, Beatrice encontrou
certa satisfação na crítica que insinuavam.
Ranulf então chamou Tecca.
— Traga vinho para as damas e depois prepare um quarto para lady Celeste
e para sua criada. E algumas camas de armar para os homens de sua escolta.
Lady Celeste pensava em ficar?
Com um olhar de satisfação, lady Celeste agarrou a saia antes de sentar-se.
Beatrice por sua vez, sentou-se em outra cadeira, fazendo um sério esforço
para não franzir o cenho.
— Qualquer um diria que o castelo está sob sua responsabilidade há anos —
disse lady Celeste a Ranulf em tom de aprovação. — Seus criados e seus
guardas estão muito bem preparados.
Beatrice olhou para Ranulf, perguntando a si mesma se ia reconhecer que
pelo menos na educação de seus serventes, ela tinha alguma responsabilidade.
Mas não o fez.
— Da última vez que nos vimos, aprendi muito sobre como dirigir os
soldados.
— E para você as coisas correram muito bem. Inteirei-me de seu recente
triunfo em Ecclesford.
— O triunfo foi de sir Henry mais do que meu. Eu só estive como ajudante.

137
— Disseram-me que depois que Henry foi ferido, as coisas poderiam ter
acabado terrivelmente para ele e para seus homens se não tivesse assumido a
responsabilidade deles.
— Não fiz nada mais do que qualquer outro teria feito em meu lugar.
— Sempre tão modesto, Ranulf —disse a dama com um sorriso de
admiração.
Jamais em sua vida Beatrice se sentiu tão invisível. Era como se nem sequer
estivesse ali. Ou como se os dois desejassem que não estivesse.
Mas estavam a ponto de descobrir que não era nada fácil ignorá-la.
— É tão humilde — disse, voltando-se para Ranulf com um sorriso. —
Sempre pensei que não alardeia o suficiente — olhou então para Celeste com
aparente curiosidade. — Mas me surpreende, minha senhora, já que tem tão
alta opinião sobre ele e mostra tanto interesse em seus feitos, não tenha vindo
visitá-lo antes. Certamente, seu paradeiro nunca foi nenhum segredo. Diga-me,
quanto tempo se passou da última vez que viu sir Ranulf?
Lady Celeste apertou ligeiramente os lábios.
— Muito.
— Isso explica por que nunca a mencionou. Quanto ao seu cargo como
governador do castelo, este posto que envolve tanta responsabilidade, é mais
do que merecido. Lorde Merrick não oferece este tipo de recompensa como se
fossem presentes de Reis, sabe? Mas suponho que há pessoas que não são
capazes de reconhecer o mérito embora o tenham diante de si.
Lady Celeste a ignorou completamente.
— Não perguntou alguma vez por mim? —perguntou a Ranulf.
— Sim, com muita freqüência. E senti saber da morte do senhor de
Fontenbleu. Era um bom homem. A corte não deve ser a mesma sem ele.
Lady Celeste tirou um lenço de linho de dentro do cinturão e fingiu secar
uma lágrima.

138
— Foi uma enfermidade terrível e muito longa. Eu mesma estive a ponto de
cair doente ao cuidar dele. E me sentia tão só na casa de Londres… agora que
estou livre, poderia vir me visitar.
Livre? O que pretendia dizer? Perguntou-se Beatrice. Livre para viajar? Livre
para ir procurar um homem e lhe oferecer seu amor?
E o que Ranulf devia pensar? Estaria limitando-se a ser educado, como ela
esperava? E o mais importante, o que sentiria?
Independente do que Ranulf estava pensando ou sentindo, ela tinha
melhores coisas que fazer do que continuar ali sentada, vendo lady Celeste
flertar com ele.
Levantou-se.
— Se me perdoarem, irei ocupar-me do quarto das damas — anunciou.
E com um redemoinho de saias atrás dela, partiu dali.

Ranulf a observava se afastar desejando ao mesmo tempo poder dizer que


voltasse, que não tinha nada a temer de Celeste, que não havia nenhum
motivo para ter ciúmes. Assim que superou o impacto daquele reencontro,
deu-se conta de que o que sentiu por Celeste há anos atrás estava
completamente superado.
Aquele sentimento começou a morrer, compreendeu, o dia que viu Beatrice
esperando na entrada do castelo de Tregellas, e vinha murchando depois. E
embora Celeste fosse tão exótica como uma flor de outro mundo, Beatrice era
tão bela, tão natural e tão alegre como as primeiras flores silvestres da
primavera. Celeste foi para ele como uma deusa inalcançável que
condescendeu a converter-se em uma simples mortal. Beatrice era como uma
boa amiga, uma alegre companheira, alguém com quem compartilhar suas
preocupações e suas alegrias uma vez terminado o dia. Não podia se imaginar
acompanhando Celeste para fazer compras, ou falando com ela sobre a
139
necessidade de uma parteira ou sobre os problemas dos criados. Beatrice não
só era capaz de falar de todas essas coisas, mas também de fazê-lo rir falando
delas, e de transmitir a sensação de que, de uma ou de outra maneira, no final
tudo sairia bem.
O arrependimento que experimentava ao contemplar o ainda belo rosto de
Celeste, devia-se ao fato que lamentava ter chegado a confundir o desejo febril
que sentia por ela com amor. Naquele momento, não havia nada que desejasse
mais do que pedir que partisse: desgraçadamente, a cortesia o obrigava a fazer
justamente o contrário.
— Surpreendeu-me saber que havia uma jovem aqui — comentou Celeste
depois da retirada de Beatrice. — Confesso que me surpreendeu que alguém
pudesse permitir a sua pupila tal liberdade, mas a verdade é que não conheço
os senhores de Tregellas.
— Se os conhecesse, não duvidaria nem por um instante o muito que
querem lady Beatrice. Jamais a colocariam em uma situação de perigo.
— Perigo! — exclamou Celeste sorrindo. Acariciou lhe ligeiramente a mão.—
Oh, não era a isso ao que me referia. Estou segura de que jamais te ocorreria
seduzir uma criatura tão jovem e inocente, apesar de sua evidente beleza,
especialmente sendo parente de lorde Merrick, um homem a que tanto deve.
— Não, jamais me ocorreria.
Naquele momento, parecia incrível pensar que durante anos tivesse vivido
imaginando o que faria se voltasse a ver celeste alguma vez. Às vezes,
imaginava-se soltando uma enorme quantidade de frases cortantes. Outras,
via-se ignorando-a por completo e perguntando se aquilo lhe doeria de algum
jeito. E, em outras ocasiões, chegou a pensar que Celeste se jogaria em seus
braços chorando e confessaria que cometeu um terrível erro.
Deus, que estúpido tinha sido.
— Não pretendia ofendê-lo, Ranulf — disse Celeste contrita. E parecia
sinceramente preocupada.
140
Como ainda tinha esperança de poder desfrutar de um futuro feliz junto a
Beatrice, decidiu ser educado:
— Perdoe-me, temo que tenha passado muito tempo entre soldados —
dirigiu a Celeste um sorriso. — Está igual à última vez que a vi.
Celeste respondeu com um sorriso radiante.
— Que adulador! Não sei se deveria me sentir satisfeita ou desiludida.
— Espero não ser nunca motivo de desilusão para você — respondeu de
maneira mecânica.
Era o tipo de frase que nos lábios de Henry pareceria sincera, mas que o
fazia parecer um idiota.
Celeste o olhou fazendo um biquinho que realçava a carnosidade de seus
lábios.
— Está começando a falar como um cortesão, Ranulf. E estou farta dos
cortesãos e de sua hipocrisia.
— Perdoe-me, ainda estou me recuperando da surpresa de ver seu cortejo
entrando pelo pátio de armas.
— Temia que me dissesse que não podia vir se anunciasse antes minhas
intenções — admitiu. — Depois de como nos despedimos, não teria me
surpreendido se não quisesse voltar a ver-me.
— Tudo aquilo aconteceu faz muito tempo —respondeu. — Disse para lady
Beatrice que foi uma amiga e não vejo nenhuma razão pela qual não deveria
sê-lo.
— Só uma amiga? — perguntou Celeste com um sorriso coquete.
Antes que tivesse podido responder, irrompeu Myghal no salão.
— Senhor! — gritou quase sem respiração. — É Hedyn. Está morto, meu
senhor. Está morto!

***

141
Pouco tempo depois, Ranulf se encontrava ante o cadáver nu de Hedyn
junto ao de outra mulher, ambos na cama do xerife.
Daveth, o servo que tinha aberto a porta para Ranulf quando fora visitar
Hedyn permanecia em um canto. O cabelo escondia seu rosto longo, embora
Ranulf pudesse ver o rastro que as lágrimas tinham deixado em suas bochechas
encovadas.
Abaixo, no salão, havia outras três criadas de diferentes idades, todas elas
chorando.
Pelo que Ranulf vira até então, não havia nada fora do lugar na casa, exceto
os ocupantes da cama, nem antes nem depois de havê-los matado. Hedyn
encontrou a morte com uma punhalada no coração e permanecia convexo de
barriga para cima como se ainda estivesse dormido. A mulher não tinha
morrido tão rapidamente. Tinha o corpo meio fora da cama e o braço
pendurado para o chão. Ranulf imaginou que resistira ao seu atacante.
Obrigando a se mostrar e a estar, tranquilo e desapaixonado, dirigiu-se a
Myghal e ao criado.
— Quem é essa mulher?
— Gwenbritha — respondeu Myghal.
Santo Deus.
— A amante de sir Frioc?
— Sim, senhor.
— Desde quando era a amante de Hedyn?
— Acabo de saber que eram — Myghal olhou para o criado, que negou com
a cabeça. — Ninguém sabia que eram amantes.
E, certamente, Ranulf tampouco. Perguntou-se se aquela seria a mulher da
qual Hedyn lhe falou, aquela que amou e perdeu. Se assim fosse, o xerife
poderia ter desejado a morte de sir Frioc, da mesma forma que ele desejou em
outro tempo enviar lorde Fontebleu ao inferno.

142
Mas não podia imaginar Hedyn matando ninguém, embora soubesse que o
aborrecimento e o despeito podiam empurrar um homem a fazer coisas que de
outra maneira jamais teria sequer considerado.
Mas quem podia ter matado Hedyn e aquela mulher? E por quê?
— Nem sequer você sabia que seu senhor tinha uma amante? — perguntou
a Daveth.
— Sabia que havia alguém — respondeu o criado com voz tremula, mas em
tom decidido. — Mas meu senhor nunca me disse quem era. Não me dizia
nada, exceto que ia passar a noite fora para estar com ela.
Ranulf não via nada na conduta de Daveth que indicasse que estava
mentindo, embora isso não significasse que não estivesse fazendo.
— Entendo. E o que aconteceu exatamente ontem à noite?
— O senhor me disse que não ia precisar de mim, assim passei a noite na
cozinha, com os outros criados, até que chegou a hora de me deitar.
Provavelmente, estavam tão surpresos como ele ao descobrir a identidade
da amante de seu senhor e estariam falando da relação dele com Gwenbritha.
— A cozinha está separada da casa por um corredor — esclareceu Myghal.
— É certo — confirmou Daveth. — Estávamos todos ali, senhor, tomando
cerveja e conversando até que chegou à hora de deitarmos.
Ranulf já tinha tomado nota da distribuição da casa e dos lugares pelos quais
poderiam entrar.
— Você não dorme na cozinha, não é verdade?
Daveth negou com a cabeça.
— Não, senhor, eu preparo a cama no salão de abaixo.
— E não ouviu nada ontem à noite? Não ouviu nenhum intruso chegar?
Daveth mordeu o lábio e mudou de postura, mostrando seu evidente
desconforto.
— Ouvi ruídos de noite, senhor, procediam deste quarto. De fato, eles me
despertaram, mas pensei… bom, pensei que só eram o senhor e a mulher.
143
Se o criado estava envolvido de uma ou de outra maneira naquela morte,
era pouco provável que proporcionasse de forma voluntária aquela
informação.
Ou talvez o atacante tenha entrado na casa enquanto os serventes estavam
na cozinha. Um assassino perito ou um ladrão podiam meter-se na casa e subir
as escadas em um abrir e fechar de olhos.
— Quando percebeu que algo não estava bem?
Daveth se voltou para os cadáveres e desviou rapidamente o olhar.
— Não me dei conta até hoje ao meio-dia. Não era normal que meu senhor
passasse a manhã na cama, a não ser que estivesse doente. Mas tampouco era
normal que trouxesse uma mulher para casa. Assim pensei que era melhor não
incomodá-lo e esperar que me chamasse. Esperei pelo menos até o meio dia e
então pensei que talvez tivessem fome, assim lhes preparei um pouco de pão,
vinho e mel. Não esperava me encontrar…
Interrompeu-se. Não era necessário que explicasse o que não esperava
encontrar.
Ranulf viu o frasco de vinho quebrado nas escadas. No final da escada
estavam também a bandeja e o pão, como se o criado tivesse sofrido tal
impressão ao ver os cadáveres que deixou cair a bandeja.
— Vá esperar na cozinha — ordenou a Daveth, — e peça aos outros criados
que esperem contigo. Falarei com eles mais tarde. Feche a porta ao sair.
Enquanto Daveth obedecia, Myghal se aproximou de repente da janela,
abriu-a rapidamente e vomitou para fora.
Ranulf estava a ponto de reagir da mesma forma ao ver o cadáver de Gawan
na praia, de modo que não podia culpar Myghal por sua debilidade. Assim que
saíssem dali, Myghal se sentiria melhor, embora a cena que viu naquele dia
provavelmente o perseguiria em sonhos durante anos.
Sem fazer nenhum comentário, Ranulf se aproximou da cama e dos
cadáveres. Tocou a mão de Hedyn.
144
Estava fria e rígida, de modo que devia estar morto há várias horas.
Myghal se sentou no chão, com os joelhos dobrados e a cabeça entre as
mãos.
— Perdoe-me, meu senhor —murmurou desolado. — Eu jamais tinha visto
nada parecido.
—Também me repugnam as mortes — disse Ranulf. Aproximou-se dele para
ajudá-lo a se levantar. — Tem ideia de quem possa fazer algo assim?
— Não, senhor, não. Todo mundo apreciava Hedyn.
— Não era em um amigo que eu estava pensando — respondeu Ranulf. — É
possível que alguém conhecesse sua relação com Gwenbritha?
Myghal arregalou os olhos.
— Quando nenhum de seus criados conhecia? Impossível. Se alguém do
povoado soubesse, pode estar certo que seus criados teriam ouvido falar disso.
Era muito pouco provável que pudesse manter um segredo como aquele se
alguém, além dos amantes, soubesse.
— Além disso, Hedyn era o xerife e como tal, o representante do rei. Talvez
este crime tenha algo a ver com a morte de Gawan. É possível que Hedyn
descobrisse algo sobre as outras mortes, algo que tem feito alguém pensar que
deveria silenciá-lo — sugeriu Ranulf.
— Ele não diria a você, meu senhor?
Ranulf arranhou a barba.
— Só se estivesse consciente da importância dessa informação. É possível
que tenha visto algo que não fosse tão óbvio e não se deu conta de seu
significado. O que Hedyn fez ontem?
— Nada fora do normal — respondeu Myghal. — Ontem pela manhã esteve
falando com alguns pescadores quando retornaram de sua jornada e com um
par de mercadores. Comeu ao meio dia no botequim e depois me enviou ao
castelo para saber se por acaso a patrulha tinha averiguado algo. Suponho que
depois foi ver Gwenbritha.
145
— Quando o viu pela última vez?
— Quando me enviou ao castelo. Estava na rua principal, acenando em
despedida — a voz de Myghal tremeu ao terminar.
Ranulf compreendia o pesar daquele homem, mas tinha outra pergunta
para fazer antes de deixar que partisse.
— Quero que me diga os nomes dos homens com quem falou.
Myghal lhe deu oito nomes, cinco de pescadores e três de mercadores,
incluindo aquele que Ranulf comprou o lenço de seda para Beatrice.
Possivelmente se tivesse pensado menos em Beatrice e se concentrasse em
apanhar o responsável, ou responsáveis pela morte de Gawan, Hedyn ainda
estaria vivo. Ou talvez aquele assassinato não tenha nada a ver com Gawan e
estava relacionado somente com Gwenbritha. Embora, nesse caso, por que ela
iria morrer?
Independente da causa daquelas mortes, havia coisas que não podia deixar
de fazer.
— Por que não vai procurar o pároco? — sugeriu a Myghal.— E peça a
alguma das mulheres para que venha preparar os cadáveres assim que eu
terminar aqui.
— De acordo senhor — respondeu um aliviado Myghal antes de sair
correndo imediatamente do quarto.
Uma vez a sós, Ranulf se concentrou em examinar o quarto, tentando
descobrir se havia algum lugar no qual o assassino pudesse ter ficado
escondido sem que ninguém soubesse.
Mas não havia cortinas, nem um armário grande. Havia um baú, mas bastou
uma rápida olhada para descobrir que estava cheio de roupa e lençóis. Nem
sequer um menino poderia se esconder ali. Supôs que era possível que alguém
o tivesse esvaziado para se esconder, mas não que houvesse tornado a guardar
tudo antes de partir.

146
Aproximou-se da janela, procurando alguma prova de que tivessem
prendido uma corda ou jogado um gancho para poder subir. Não havia nada e,
se tivessem entrado por ali, certamente alguém do povoado teria visto e ido
informar o ocorrido. De outro modo, teria que começar a acreditar que os
responsáveis por aqueles crimes eram gente de Penterwell.
Aproximou-se até a cama, olhando atentamente para o chão.
Desgraçadamente, a ida de Myghal aquela janela tinha apagado o rastro de
qualquer outra bota.
Deveria ter mais cuidado.
Depois, aproximou-se novamente da cama e ficou de quatro para olhar
embaixo.
Era notável a ausência de pó e havia algumas marcas que podiam delatar a
presença de um homem sob o leito.
Custava-lhe imaginar que alguém fosse capaz de permanecer escondido
debaixo de uma cama em que se amavam um homem e uma mulher,
esperando que adormecessem para depois matá-los a sangue frio, mas afinal
ele não era um assassino.
Examinou a ferida de Hedyn. A arma que o matou era fina e afiada,
provavelmente estrangeira. A ferida fatal estava no centro de seu peito, fora
assassinado por alguém que sabia o que fazia.
Aproximou-se do outro lado da cama e moveu lentamente Gwenbritha para
que ficasse completamente deitada sobre o colchão e afastou o cabelo do
rosto.
Embora fosse atraente, não era uma grande beleza. Não era tão jovem
como Beatrice, mas sua idade devia se aproximar da idade de Celeste. Com a
rigidez da morte, não se notava nenhum traço de sua personalidade, mas devia
ter qualidades que os homens consideravam atraentes.
Provavelmente muitas se perderam diante de sua morte.

147
Tinha um corpo bem proporcionado, cintura fina e seios arredondados. Não
parecia ter tido filhos. Esperava que assim fosse. Não queria imaginar nenhuma
criatura chorando por sua mãe, deitando uma noite atrás de outra com as
bochechas encharcadas de lágrimas e o coração alagado de tristeza porque sua
mãe não ia voltar. Foi para o céu, um lugar muito melhor que a Terra, ou pelo
menos isso era o que lhe haviam dito os sacerdotes.
Ranulf tentou afastar aquela lembrança e estudou a ferida que a mulher
tinha no pescoço. Estava na parte superior à esquerda. A julgar pela postura do
cadáver em relação ao de Hedyn, o assassino estava na frente dela.
Teria despertado e encontrado o assassino sobre ela, disposto a matar?
Hedyn já estaria morto ao seu lado? Se tivesse sido assim, devia estar tão
assustada que teria tentando gritar, mas não tinha sido capaz de emitir som
algum…
Fechou os olhos um instante. Quando voltou a abri-los, percebeu até onde
chegava a ferida, que começava justo debaixo do lóbulo da orelha, como se o
seu assassino a tivesse agarrado pelo cabelo com a mão esquerda e a tivesse
degolado com a direita.
Pobre mulher. Pelo menos Hedyn não tinha visto sua morte iminente.
— Encontrá-lo-ei — prometeu, como se ainda pudessem ouvir. —
Encontrarei quem fez isto e será castigado. Dou-lhes minha palavra.
E imediatamente, com cuidado e respeito, cobriu-os com um lençol,
permitindo conservar sua dignidade além da morte.

Quando Ranulf retornou da casa de Hedyn, estava mais nervoso e alterado


do que Beatrice já havia visto. Esta, agarrando uma taça de vinho da mesa que
serviu antes de sua chegada, correu ao seu encontro.
— Oh, Ranulf! — exclamou. A tristeza e a compaixão para Ranulf superavam
qualquer outro de seus sentimentos por ele. — Sinto muito.
148
— Não quero vinho — disse Ranulf, passando na frente dela.
Sentou-se em uma das cadeiras do salão e cravou o olhar no chão.
Compreendendo que sua reação se devia à morte violenta de um homem,
Beatrice não pôde deixar de perdoá-lo. Ordenou aos servos que estavam no
salão que o deixassem tranqüilo. Por um instante, pensou em sair também,
mas não era capaz de deixá-lo só naquele estado. Ranulf podia parecer
zangado, mas também havia dor em seu rosto, de modo que ficaria para
oferecer seu consolo.
Deixou a taça na mesa e se sentou ao seu lado.
— Isto não é culpa sua — se aventurou a dizer brandamente.
Ranulf respondeu com uma risada zombeteira.
— De quem é então? Eu sou o governador deste castelo, sou o responsável
por manter a paz neste lugar. Acredito portanto, que as mortes do xerife e de
sua amada podem ser consideradas um fracasso, não lhe parece?
Beatrice perdoou também seu sarcasmo.
— Você não os matou.
Ranulf se levantou de um salto, caminhou até o final do salão e retornou.
— Não, mas poderia ter feito algo mais para evitá-lo.
— O que poderia ter feito?
— Não deveria ter sido tão indulgente. Tão condenadamente paciente —
grunhiu. — Deveria ter acabado com o contrabando e ter interrogado cada um
dos homens do povoado para questionar-lhes pela morte de Gawan e dos
outros dois homens. E também pela morte de Frioc.
Começou a caminhar.
—Mas não, fui tão estúpido que preferi esperar que eles confiassem em
mim. Que estúpido. Comportei-me como um autêntico idiota.
Beatrice não suportava vê-lo castigando-se daquela maneira.
— Sim, poderia ter feito isso — confirmou, com o coração esmigalhado
enquanto o olhava. — Poderia ter entrado em Penterwell como um anjo
149
vingador e ter detido e interrogado todo mundo. Poderia ter metido no
calabouço todos os homens que vendem estanho de contrabando, de modo
que teria encerrado a metade dos homens do povoado, e também a suas
mulheres, se perseguir a qualquer um que se beneficiou do comércio ilegal.
Poderia ter isolado o povoado e proibido que qualquer navio se aproximasse
da costa. Poderia ter feito muitas coisas, mas só teriam servido para que todos
do povoado o odiassem e o temessem. Nunca teriam acreditado e depois isso
teria se virado contra você. Poderia ter feito as coisas cem vezes piores.
— Impossível. Um bom homem morreu porque me permiti acreditar que
estes aldeãos cabeçudos e egoístas se dariam conta que não pretendo lhes
fazer nenhum mal. Deixei que violassem as leis do rei. Suponho que a partir
daí, não deve custar muito dar um passo para o assassinato.
— E se mesmo assim não tivessem dado as respostas que busca? —
perguntou Beatrice. — Os teria marcado com ferro quente? Acredita
verdadeiramente que essa atitude o teria ajudado a encontrar as respostas que
necessita? Ou só teriam servido para conseguir mais inimizades em Penterwell,
de tal maneira que finalmente todo mundo terminaria desejando sua morte?
A expressão de Ranulf passou do cansaço ao desespero.
— Por que não querem me ajudar? — Perguntou. Sentou-se bruscamente e
mexeu nos cabelos. — Por que eles não querem me dizer o que sabem?
— Quem sabe não o façam agora — consolou Beatrice. — Talvez isso os faça
repensar. Não percamos a esperança, Ranulf.
Ranulf continuava olhando-a desconcertado.
— E se não for assim, o que deveria fazer então, Beatrice?
Beatrice se ajoelhou ao seu lado.
— Talvez tenha que interrogar a todo mundo, como já sugeriu e pôr fim ao
contrabando até que averigue quem fez todas essas coisas tão terríveis, mas
deve lhes explicar por que. Deve fazê-los compreender que sente não ter outra

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opção se quer descobrir quem matou Hedyn e aos outros e mantê-los todos a
salvo.
Parte da tensão de Ranulf desapareceu enquanto olhava Beatrice e sorria
com cansaço.
— Desde quando é tão sábia, lady Beatrice? —perguntou, acariciando sua
face.
— Não pretendo ser sábia, Ranulf —respondeu, reconfortada por sua
carícia. — Conheci as pessoas de Penterwell e acredito que a maioria está
disposta a confiar em você e a acreditar que pode protegê-los. Mas também
têm medo.
— E têm motivos para isso — suspirou pesadamente. — Meu Deus,
Beatrice, esta não é a primeira vez que vi o cadáver de um homem, mas essa
pobre mulher… viu seu atacante antes de morrer, soube o que ia acontecer.
Beatrice pousou a mão sobre a sua, oferecendo consolo.
— E o mataram em sua própria casa, em seu próprio quarto, enquanto os
criados dormiam no andar de baixo —endureceu a voz. — Meu Deus, que
homem é capaz de fazer uma coisa assim?
Como parecia estar esperando uma resposta, Beatrice disse:
— Um homem terrível, que alguém tão honrado como você jamais poderá
compreender. Mas você é inteligente, Ranulf. Apanhá-lo-á. Sei que conseguirá.
— Como vou apanhá-lo quando ninguém do povo parece querer me dizer o
que preciso saber? Confesso, Beatrice, às vezes tenho a sensação de que as
pessoas não só ocultam informações, mas também conspiram contra mim.
Beatrice tomou sua mão e deu um beijo no dorso.
— Não pense em algo assim. É possível que realmente não saibam nada
mais do que contaram.
Ranulf sorriu com tristeza.
— A pequena lady Beatrice, sempre disposta a acreditar no melhor de todo
o mundo.
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—Tenho fé em você, Ranulf. Sei que descobrirá quem está fazendo todas
estas coisas tão terríveis.
Ranulf se levantou então com expressão decidida.
— Tem que partir daqui, Beatrice. Até que descubra quem quer que seja o
responsável por estas mortes, é perigoso que fique.
— Não quero partir —replicou. — Quero ficar com você. Quero ajudar,
embora a única coisa que possa fazer seja lhe servir uma taça de vinho quando
volta para casa.
Ranulf tomou suas mãos e a olhou nos olhos.
—Também gostaria que ficasse, mas não quero que corra nenhum risco.
Beatrice olhou em seus olhos, mostrando todo o amor e devoção que
sentia.
— Prefiro correr qualquer risco ao seu lado do que estar a salvo longe de
você.
— Diz a verdade, Beatrice?
— É obvio que sim.
Com um suspiro, Ranulf a estreitou em seus braços. Ela o abraçou com
força. Necessitava-o, amava-o. Não queria partir dali, não queria deixá-lo em
perigo, rodeado de inimigos desconhecidos. Queria protegê-lo e consolá-lo,
queria mantê-lo a salvo e feliz.
— Bea, Bea — murmurou Ranulf. — Não faça que isto seja mais duro do que
é. Se lhe acontecesse algo, não poderia suportar.
Isso só podia significar que a amava! Amava-a!
E então… Então Ranulf inclinou a cabeça e a beijou.
Foi como o beijo que lhe deu no dia que ela estava meio adormecida: um
beijo suave, tenro e maravilhoso… e nessa ocasião, ela estava completamente
acordada. Podia sentir seu carinho, seu calor, o muito que a apreciava. Aquele
beijo dizia, com muito mais eloquência que as palavras, que a amava e que era
um homem que sofrera. Tinha amado e tinha perdido. Um homem que
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merecia ser admirado por sua força e por seu valor, respeitado por sua honra e
pelo fato de que ninguém podia acabar com ele, embora tenham tentado.
Com um suave gemido, relaxou-se contra ele, deixando que o desejo fluísse
por seu corpo, deixando que o amor que sentia por ele se expressasse em seus
lábios de um modo distinto das palavras, mas nem por isso menos intenso.
Muito em breve estavam completamente absortos um no outro. Nada mais
existia. A única coisa que conheciam era a paixão enquanto Ranulf deslizava as
mãos por suas costas em uma lânguida exploração. Beatrice se abraçava a ele,
sentindo sua excitação e se emocionando ao saber que era ela quem a
provocava.
E então, Ranulf aprofundou o beijo, deslizou a língua no calor de sua boca e
elevou a mão até emoldurar seu seio.
Beatrice respirava agitada enquanto sua excitação alcançava um novo
patamar. Seus seios se enchiam e os mamilos se endureciam ante aquela
ligeira carícia.
O roce da barba de Ranulf fazia cócegas e Beatrice sorriu em meio de seu
beijo.
— Divirto-lhe, minha senhora? — perguntou Ranulf com voz rouca.
— A barba me faz cócegas — respondeu Beatrice sem fôlego.
— Terei que fazer algo a respeito.
— Por favor…
Voltaram a se beijar com renovada paixão. Beatrice deslizou a mão sob a
túnica e sentiu o calor de sua pele através da camisa. Ranulf tomou seus lábios
com mais força, com mais urgência e ela respondeu da mesma maneira, até
que Ranulf se separou dela.
—Tem que partir, Beatrice — sussurrou. — Volte para Tregellas, onde estará
a salvo. Quando tudo isto terminar, quando encontrar esses assassinos, irei te
buscar.
Procurou de novo seus lábios e a beijou profunda e apaixonadamente.
153
Até que alguém soltou uma exclamação.
Separaram-se imediatamente e Beatrice recordou então onde estavam.
Estavam se beijando como dois amantes no meio do salão de Penterwell, onde
qualquer um podia vê-los.
E não era precisamente qualquer um que os estava observando, a não ser
lady Celeste, que permanecia pálida e horrorizada ao pé da escada, com uma
mão no pescoço, como se estivesse se afogando.
Ninguém se moveu, ninguém disse nada, até que Celeste procurou apoio no
corrimão de pedra que tinha ao seu lado.
— Ranulf — balbuciou.
Fechou os olhos e os joelhos dobraram.
Ranulf correu imediatamente para o seu lado, seguido por Beatrice.
Enquanto Ranulf levantava Celeste em seus fortes e poderosos braços, Beatrice
não pôde evitar se perguntar se aquele não seria um gesto desesperado por
parte de Celeste para recuperar a atenção de Ranulf.
— Está muito quente — disse Ranulf, franzindo o cenho com preocupação.
Beatrice pousou a mão na testa de Celeste. Sim, estava muito quente. Podia
fingir um desmaio, mas a menos que Celeste tivesse imaginado que ia
encontrá-los se beijando, não podia ter fingido a febre.
— Leve-a para o quarto, verei o que posso fazer por ela.

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Capítulo 11

— Não sei por que tem que atender essa mulher — resmungou Maloren
enquanto observava Beatrice preparar um remédio com casca de salgueiro três
dias depois.
Estavam na cozinha do castelo. Beatrice permanecia de pé em frente a uma
mesa e Maloren a observava, sentada em um tamborete e apoiada contra a
parede. Na sala principal, o cozinheiro e os criados estavam ocupados
preparando o jantar.
—É rica — continuou resmungando Maloren, — pode pagar um médico, ou
ir procurar uma freira para que a atenda.
— É a convidada de Ranulf e, felizmente, não tem nada grave. Dentro de um
alguns dias, estará em condições de viajar e irá embora.
— E desejo-lhe boa viagem! Porque eu vejo a que ela se propõe, a muito
fresca.
— O que quer dizer?
Beatrice dirigiu a Maloren um olhar interrogativo.
— É muito doce e inocente para perceber, meu cordeirinho — respondeu
Maloren, apontando-a com o dedo como se Beatrice tivesse cinco anos. — Mas
sei exatamente o tipo de criatura que é essa mulher. Casou-se por dinheiro e
agora que já tem o que queria, acredita que pode comprar outro marido por
prazer.
— Não acredito que sir Ranulf esteja à venda — respondeu Beatrice,
baixando o olhar para a casca que estava amassando no almofariz.

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— Bom, se lady Celeste fosse feia como um javali, diria que tem razão. Mas
é uma mulher bonita e sabe também como utilizar seus atrativos. Apostaria
algo como tem feito os homens dançarem ao som que ela toca desde que tinha
doze anos.
— E possivelmente conseguiu também com sir Ranulf, mas aconteceu há
alguns anos.
— E acredita que não poderá apanhá-lo outra vez? É obvio que sim, porque
o fará se lembrar de sua juventude.
Beatrice apertou os dentes enquanto continuava acrescentando outros
ingredientes a aquela mescla destinada a aliviar a dor de cabeça de Celeste.
— Estou segura de que Ranulf é muito inteligente para se deixar apanhar
por ela.
Sobre tudo, desde que tinha começado a querê-la.
Desgraçadamente, depois da morte de Hedyn e Gwenbritha mal teve
oportunidade de vê-lo. Chegava tarde todas as noites e parecia tão cansado e
frustrado que não quis importuná-lo com perguntas. E ela não só estava
ansiosa pelos assassinatos, mas também ainda estava esperando que contasse
o que esteve a ponto de confessar no dia em que Wenna tinha dado a luz, e
também queria ouvi-lo dizer que a amava.
Com o tempo diria, estava segura e até então, confiava o suficiente em seu
carinho para esperar pacientemente. Bom, talvez não pacientemente,
reconheceu, mas apenas esperar.
— Parece muito preocupada com o bem-estar de sir Ranulf — advertiu
Beatrice, interpretando que as críticas de Maloren para Celeste significavam
que começara a apreciar Ranulf.
— Odeio ver qualquer homem enganado por uma viúva rica. Ela já teve sua
oportunidade e deveria dar-se por satisfeita. Mas não, essas mulheres sempre
se empenham em procurar um segundo marido, embora haja outras que nem
sequer possam conseguir um. Embora não se possa esperar outra coisa de
156
criaturas tão egoístas — acrescentou zombeteira. — Lady Celeste, com todas
suas sedas e seus perfumes, fingindo estar doente só para conseguir apanhar
sir Ranulf, que vergonha!
Acabaria por descobrir o motivo do desprezo de Maloren para com os
homens? Perguntou-se Beatrice.
— Alguma vez quis se casar, Maloren?
— Não — replicou a criada. — Deixar que um idiota me dê ordens? Ou que
tente me convencer com palavras doces para que faça o que ele quer? Jamais.
Beatrice não quis dizer que ela também tinha direito a lhe dar ordens, e que
freqüentemente conseguia que fizesse o que ela queria mediante palavras
doces.
— Lady Celeste não tem filhos —sugeriu. — Talvez, se casasse…
— Se casasse, não seria porque quer ter filhos — respondeu Maloren. —
Será porque quer um homem ao seu dispor e que também a mantenha. É uma
mulher avara, egoísta e malvada, isso é o que ela é.
Beatrice tinha que admitir que sua própria opinião sobre Celeste não era
muito diferente da de Maloren.
— Vai terminar essa poção antes que se faça noite? —perguntou
bruscamente a criada.
— Assim que acrescentar um pouco de vinho — respondeu Beatrice com
muito cuidado.
Quando a poção esteva preparada, disse:
— Suponho que não quererá me acompanhar para dar o remédio.
— Jesus, Maria e José! Claro que não! O perfume dessa mulher me provoca
dor de cabeça. Ficarei aqui para me assegurar que Much não queime a carne.
Por um instante, Beatrice se compadeceu de Much, mas a verdade era que
sob a supervisão de Maloren, a comida melhorara de forma notável.
Cobriu a taça com um pedaço de linho branco e se dirigiu ao salão.
Observou os criados trabalharem com olhos críticos, mas não viu nada para
157
reprovar, e sim muito que elogiar com uma palavra ou um sorriso. Também
teve palavras de elogio para os soldados que não estavam de guarda e que
naquele momento se ocupavam em limpar e reparar suas armaduras.
Quando chegou ao quarto de Celeste, respirou profundamente antes de
bater na porta e esperou que sua criada, Emma, abrisse. Embora tentasse que
não fosse assim, Beatrice se sentia sempre um pouco intimidada pela beleza e
as maneiras requintadas de Celeste.
Lady Celeste estava na cama, uma cama feita com seus próprios lençóis,
mais finos e mais caros que os que Beatrice trouxe de Tregellas e imensamente
melhores dos que havia em Penterwell. Também tinha uma grossa colcha
sobre a cama e velas brancas em um candelabro de bronze ao seu lado. Em
uma mesa dobrada que certamente trouxe também de sua casa, amontoavam-
se frascos que Beatrice suspeitava fossem cosméticos, todos eles colocados
frente a um espelho. Além disso, viajava com ela um número considerável de
vestidos, posto que houvesse baús de madeira e caixas por todo o quarto.
Inclusive sentada na cama e doente, lady Celeste tinha a majestade de uma
rainha, ou pelo menos isso era o que parecia para Beatrice, que a seu lado se
sentia muito jovem e pouco sofisticada. Algo que jamais ocorria na presença de
Ranulf, nem sequer depois que lhe disse que era inocente e ingênua. Estando
com ele, sempre se sentia como uma verdadeira mulher.
— Ah, lady Beatrice — disse Celeste levantando-se ligeiramente na cama. —
Não sei o que teria feito se você não estivesse aqui.
— Atrever-me-ia a dizer que Ranulf teria chamado um médico — respondeu
Beatrice, estendendo a poção que deveria aliviar sua dor de cabeça.
Celeste bebeu um sorvo e enrugou o nariz.
— Isso eu espero porque certamente, o sabor não é muito agradável. É uma
pena que a medicina danifique o bom vinho de Ranulf.
E também era uma pena que ela adoecesse e tivesse que ficar ali, pensou
Beatrice, mas não disse nada. E tampouco revelou que o vinho era de Tregellas.
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Celeste olhou sua criada, que aguardava em um canto.
— Deixe-nos por um momento, Emma. Quero falar a sós com minha
benfeitora.
Assim que Emma saiu, lady Celeste deu uma tapinha na cama, convidando
Beatrice a sentar-se ao seu lado.
— Sente-se aqui, querida, para que possamos falar como boas amigas.
Acredito que chegou a hora de contar a minha história com Ranulf.
Beatrice não queria ser sua amiga, mas não podia rechaçar aquela
oportunidade de averiguar o que aconteceu entre Ranulf e aquela mulher.
— Acredito que no fundo sabe o que aconteceu — disse Celeste enquanto
continuava bebendo a beberagem.
— O suficiente para imaginar que houve uma mulher que partiu o seu
coração — respondeu Beatrice com sinceridade, — e que essa mulher é você.
— Já imaginou tudo, não é verdade? Que garota perspicaz.
Beatrice não gostou que a chamasse “garota”, e tampouco do seu tom
condescendente.
— Não mencionou seu nome até que você chegou aqui.
Aquela revelação não caiu bem à dama. Entretanto, reconheceu a contra
gosto:
— Nossa relação não terminou bem — deixou a taça na mesinha que estava
ao lado da cama. — Querida, vou ser franca com você porque acredito que
aprecia Ranulf tanto quanto eu.
Beatrice teria apostado qualquer coisa que ela apreciava Ranulf muito mais
do que aquela mulher faria.
— Quando era só um pouco mais velha que você, conheci Ranulf na corte.
Oh, deveria tê-lo visto então. Era tão encantador, tão espirituoso. E muito
atraente! Quase todas as mulheres da corte estavam apaixonadas por ele, o
que poderia explicar…

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Vacilou um instante, mas Beatrice não acreditava que fosse por nenhum
repentino pudor.
— Bom, afinal de contas eram somente rumores e eu me negava a acreditar,
embora não fosse surpreendente pensar que um jovem desiludido poderia
procurar consolo nos braços de outra mulher. Ou de mais de uma.
Celeste a observava atentamente, mas embora a revelação a
desconcertasse, Beatrice não ia dar a satisfação de demonstrar.
— De qualquer modo —continuou Celeste, — antes que isso ocorresse, eu
me apaixonei por Ranulf e ele por mim. Conhecemo-nos em um jardim de
rosas, e o que aconteceu foi digno do romance de um trovador. Eu tinha o
espinho de uma rosa e ele a tirou, beijou minha mão e olhou nos meus olhos
de uma maneira… acredito que nesse mesmo instante nos apaixonamos.
Beatrice não se impressionou que Ranulf odiasse os romances amorosos
sobre o rei Artur e sua corte que os trovadores cantavam.
— A partir desse dia, a cada dia o queria mais e desejava profundamente me
converter em sua esposa.
Celeste tomou a mão de Beatrice.
— Mas minha família descobriu nossa história de amor e ficou furiosa. Eles
tinham outros planos para mim, veja você. Disseram-me que era estúpida e
egoísta. Que deveria fazer um matrimônio que não só me beneficiasse , mas
também a toda a família. Ranulf era um cavalheiro pobre e sem terras. Tinha
matado seu próprio irmão…
— O que? —exclamou Beatrice com absoluta incredulidade.
— Oh, não sabia? — perguntou Celeste com um olhar compassivo. —
Querido, é absolutamente certo. Ranulf vivia com sua família em Lincolnshire,
em uma propriedade situada ao lado da costa. Ranulf e seu irmão começaram
a brigar na praia e terminaram no mar. Ranulf manteve Edmond sob a água até
que se afogou. Depois, seu pai expulsou Ranulf de casa sem um só centavo.
— Mas… isso… deve ter sido um acidente —sussurrou Beatrice.
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Não podia acreditar que Ranulf matara seu irmão. Mas então recordou o
que Ranulf lhe contou sobre a crueldade de sua família.
— É certo que estava tentando defender-se.
— Isso é o que eu pensava, mas ele nunca quis falar sobre isso.
É obvio, devia ser um tema muito doloroso para ele, e não era para menos
que Ranulf tivesse medo do mar.
Mesmo assim, continuava sendo inconcebível que Ranulf tivesse
assassinado alguém a sangue frio.
— Qualquer um que conhece Ranulf sabe que é incapaz de assassinar
alguém friamente. Sir Leonard de Brissy o considerou merecedor de chegar a
converter-se em cavalheiro. Se tivesse acreditado que Ranulf era um assassino,
não o teria feito.
— Isso foi o que disse aos meus pais — respondeu Celeste. — Ele não podia
ter feito algo tão terrível e desumano. Tinha que ser um acidente. Mas eles se
negaram a escutar-me e utilizaram a morte de seu irmão como desculpa para
me manter afastada dele. Proibiram-me de vê-lo, disseram-me que me
repudiariam se desobedecesse. Eu supliquei e chorei até ficar sem lágrimas,
mas se mantiveram inflexíveis — Celeste secou os olhos com a ponta do lençol.
— Quando lorde Fontenbleu pediu minha mão, minha família me pressionava
dia e noite, até que me rendi aos seus desejos.
Beatrice pensou em sua prima e no que Constance estaria disposta a fazer
se não tivesse se apaixonado por Merrick. No que Constance a aconselhara que
fizesse se a prometessem em matrimônio contra sua vontade.
— Poderia ter fugido com ele.
— Mas não teríamos tido nada, nem dinheiro, nem casa…
— Teria tido Ranulf — para Beatrice, isso teria sido mais que suficiente. —
No entanto, preferiu partir-lhe o coração.
— E acredita que não sei? —perguntou Celeste em tom lastimoso. — Eu
também acabei com o coração destroçado.
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Quase contra sua vontade, Beatrice se compadeceu. Lady Celeste não era a
primeira mulher que sucumbia às pressões de sua família.
— Imagino que deve ter sido muito difícil para você.
— Claro que foi! —exclamou Celeste. — Passei as noites chorando até o dia
das bodas, que foi três meses depois.
— Pelo menos tinha o consolo de saber que agradou sua família. E além
disso, tinha seu marido. Ranulf não tinha ninguém, porque não contou a
ninguém o que ocorreu. Nem sequer seus melhores amigos sabem. Em uma
ocasião perguntei a Henry por isso, porque estava certa de que alguém feriu
Ranulf profundamente.
— Oh, ele também encontrou consolo — respondeu Celeste com um acento
ligeiramente zombeteiro. — E muito. Quando o deixei, foram muitas as
mulheres que estiveram dispostas a correr para os seus braços.
Beatrice já ouvira mais que o suficiente.
— Acredito que deveria descansar, minha senhora — disse, levantando-se.
— Não tem nem idéia da tortura que suportei — acusou Celeste. — Não tem
nenhum direito de me julgar. Você, que conta com o apoio de uma prima que a
permite tomar tantas liberdades, apesar do que as pessoas possam dizer. E seu
marido está tão submetido a sua vontade que jamais dirá nada em contrário.
Uma coisa era que aquela mulher a tratasse com condescendência e
desprezo, e outra muito diferente que insultasse Constance e Merrick.
— Tem razão, não a compreendo. Não compreendo como pôde rechaçar o
melhor homem da Inglaterra. Se eu pudesse contar com o amor de Ranulf,
preferiria viver em um canal de irrigação antes que me casar com outro
homem.
E, sem mais, Beatrice girou sobre seus pés e começou a avançar para a
porta.
— De verdade? — respondeu Celeste em tom zombeteiro, enquanto se
levantava da cama para segui-la. — Que valente é você. Evidentemente, não a
162
preocupa absolutamente sua reputação. Afinal, já não tem nenhuma reputação
a perder.
Alcançou Beatrice e a agarrou pelo braço para detê-la.
— Seu pai foi executado por traição e todas suas propriedades passaram às
mãos da Coroa. Não tem terras e o único dote que pode esperar será o que o
marido de sua prima tenha a cortesia de oferecer. Diz que conhece Ranulf mas,
acredita que ele aceitará algo que não é mais que a caridade de seu amigo? Eu
posso lhe dar tudo o que merece, dinheiro, terras e o poder que ambas as
coisas conferem. Se ele se casar comigo, será bem-vindo na corte, inclusive
poderá tomar parte do conselho dos cavaleiros. E por acaso conhece os
truques para levar um homem até o êxtase de tal maneira que não queira
nunca abandonar seus braços? Você é só uma menina, uma virgem, e ele já
teve oportunidade de fartar-se delas. Quatorze virgens em quatorze noites,
essa foi a aposta que ganhou. Acredita que ficará alguma vez satisfeito com
você?
Branca como cera, Beatrice escapou de sua mão e continuou avançando
para a porta.
— O que pode lhe dar comparado com o que eu tenho a oferecer?
Beatrice girou sobre seus pés e começou a avançar para ela como uma leoa
furiosa. Celeste foi retrocedendo até que a cama já não a permitia seguir
fazendo-o.
— Posso lhe dar um amor pelo que arriscaria tudo antes de renunciar a ele.
Posso lhe dar meu respeito, minha confiança e minha admiração. Posso lhe dar
tudo o que merece esperar de uma mulher, tudo o que tenho e o que sou. E se
ele me oferecer em troca seu amor, seu respeito, seu coração e o seu corpo,
considerar-me-ei a mulher mais afortunada da Inglaterra. E quero que saiba
uma coisa, minha senhora. Amo Ranulf e continuarei fazendo-o apesar de seus
esforços de sujar seu nome.
E terminou dizendo:
163
— De modo que sugiro que faça a bagagem quanto antes e vá procurar
outro homem capaz de apreciar sua beleza e seus consideráveis atrativos.
Deixe Ranulf com a paz que merece. E que Deus a acompanhe, porque
certamente Ranulf não vai fazê-lo.

Enquanto Beatrice abandonava o quarto de Celeste, Ranulf estava


observando os últimos pescadores que saíam da casa de Hedyn, levando com
ele o aroma da pesca daquela manhã.
— Já foram todos? — perguntou a Myghal, que o tinha acompanhado
durante os interrogatórios.
— Sim, senhor.
De pé, frente à janela, Ranulf olhou para o céu. Passaram-se três dias do
assassinato de Hedyn e Gwenbritha. Três dias que dedicou a interrogar todos
os adultos de Penterwell. Mal tinha visto Beatrice nesse tempo. Ou porque ele
estava dedicado aos interrogatórios ou porque Beatrice estava cuidando de
Celeste que, graças a Deus, parecia ter melhorado.
Decidiu fazer os interrogatórios ali, na casa em que morreram Hedyn e sua
amante, com a esperança de que aquele local animasse os interrogados a
responder. Queria que pensassem naquele homem morto e naquela
desgraçada mulher que foi sua amante antes de ter sido brutalmente
assassinada.
Desgraçadamente, não conseguiu nenhuma informação útil. Ninguém tinha
a menor ideia de quem podia tê-los matado. Ninguém sabia o que aconteceu
com os dois desaparecidos nem se havia alguém que pudesse desejar a morte
de Frioc. Pelas respostas das pessoas do povoado, qualquer um teria dito que
um espírito maligno tinha penetrado em Penterwell com intenção de fazer
maldades.

164
— Muito bem, Myghal — disse Ranulf, perguntando-se que passo deveria
dar para localizar aos culpados.
Talvez devesse patrulhar a costa com seus soldados. Talvez eles tenham
deixado algo escapar, ou estavam protegendo algum familiar. Odiava pensar
naquela possibilidade, mas acreditava ser possível.
— Perdão, senhor — disse Myghal calmamente, como se temesse
interromper os pensamentos de Ranulf.
— Sim?
Myghal se moveu incômodo.
— As pessoas estão me perguntando quando vamos ter um novo xerife, e
também querem saber quem poderia ser.
Ranulf também tinha estado pensando nisso, e o candidato lhe parecia
óbvio.
— Não vejo nenhuma razão pela que você não possa sê-lo.
Myghal o olhou completamente atônito.
— Eu, meu senhor?
— Sim, por que não? Foi ajudante do xerife durante dois anos e ele o
considerava preparado para fazer esse trabalho, e eu também.
Myghal ficou vermelho escarlate.
— Sinto-me muito honrado, meu senhor, mas certamente eu não… tem que
haver…
— Prefere verdadeiramente que nomeie outro? — perguntou Ranulf, tendo
a sensação de que havia algo mais que modéstia nos protestos de Myghal.
E não era surpreendente, dada a terrível morte de seu predecessor.
— Depois do que aconteceu a Hedyn, compreendo que se mostre
resistente, embora a verdade é que me decepcionaria que não ocupasse o
posto.
— Não é isso, meu senhor. Mas… é, é possível que não tenha notado, mas
há pessoas em Penterwell que não gostam de mim.
165
— Sim, já notei — respondeu Ranulf, recordando como o olhavam algumas
pessoas do povoado. — Mas nunca conheci a ninguém que seja apreciado por
todo mundo. A triste verdade é que os homens que representam à lei
frequentemente despertam receios. Entretanto, necessito de um homem em
que possa confiar. E um homem que esteja tão decidido como eu a averiguar
quem é o responsável por essas mortes. Você é esse homem, Myghal?
O jovem ergueu ligeiramente os ombros.
— Sim, sou esse homem, senhor.
— Então, a partir de agora é o xerife de Penterwell.

166
Capítulo 12

Quando Ranulf desmontou Titã no pátio de armas e deu as rédeas do cavalo


a um dos servos, a criada de Celeste saiu correndo para ele.
— Meu senhor, por favor, aproxime-se — disse a jovem, olhando-o como se
não quisesse que ninguém mais percebesse o que tinha para lhe dizer.
— O que ocorre? —perguntou-lhe franzindo o cenho. — Espero que sua
senhora não tenha piorado.
— Não, senhor, acredito que não — respondeu Emma, falando com grande
deferência e inclusive com um pouco de medo. — Mas quer vê-lo o quanto
antes possível. Diz que é importante.
A mente de Ranulf ficou imediatamente em alerta.
— De verdade? E o que pode ser esse assunto tão importante?
Emma se ruborizou até a raiz do cabelo.
— Não sei, meu senhor. Só sei que me disse que é importante e que
precisava vê-lo.
— Suponho que está no quarto.
— Sim, senhor. Ainda não se encontra em condições de levantar-se.
Ranulf não era nenhum ingênuo e já se haviam passado dez anos desde que
era um jovem de dezoito, ansioso de amor e cego às artimanhas de algumas
mulheres e assim, se Celeste tinha intenção de seduzi-lo, ia ter uma grande
desilusão. Por outro lado, talvez fosse melhor deixar as coisas claras de uma
vez por todas.
— Por favor, diga a ela que ficarei encantado de falar-lhe assim que dê a
contrassenha aos guardas — respondeu.

167
Escolheu as palavras «mais sábio» como contrassenha e se dirigiu depois ao
quarto que Celeste utilizava durante sua estadia em Penterwell. Bateu
energicamente na porta, dizendo-se que era uma sorte que Celeste tivesse
levado a sua própria criada. Depois de ter se despedido Eseld, não tinha
ninguém que pudesse ocupar-se de uma convidada doente.
A porta se abriu imediatamente, embora não fosse Emma que estava do
outro lado, a não ser a própria Celeste vestida, se assim podia se dizer, com
uma bata bordada de cor vermelha e um cinturão. Debaixo levava uma fina
anágua branca, provavelmente de seda.
Em outra época de sua vida, Ranulf teria morrido de desejo ao vê-la assim
vestida e, especialmente olhando-o com tanto desejo. Desgraçadamente para
Celeste, aquela época já tinha passado.
— Não pensava em encontrá-la com essas roupas — disse com frieza. —
Embora tenha entendido que tinha um assunto urgente para me falar, terá que
esperar até…
Celeste não lhe deu oportunidade de continuar. Agarrou-o pelo braço e o
empurrou para dentro do quarto com uma força surpreendente antes de
fechar a porta atrás dele.
— No passado teria sido muito mais sutil, não é verdade? —disse Ranulf,
arqueando uma sobrancelha com expressão interrogativa.
— Não se faça de bobo comigo, Ranulf —replicou Celeste com as bochechas
ruborizadas e os olhos resplandecentes de ira. — Não lhe cai bem. E não estou
tentando seduzi-lo.
— Alegro-me de ouvir —respondeu com calma. — E já que a conversa é o
único motivo de sua chamada, permita que eu comece. É evidente que está
melhor, assim acredito que já está na hora de abandonar Penterwell.
— O que? — exclamou indignada. — Está dizendo a uma convidada que se
vá?

168
Como Celeste era sua convidada, além de uma mulher e apesar de tudo o
que lhe fez no passado, Ranulf se viu obrigado a abrandar a dureza da ordem.
— É para o seu próprio bem, Celeste. Houve problemas sérios em
Penterwell, incluindo um assassinato. Não quero que fique em perigo.
Em vez de parecer preocupada, o olhar de Celeste se iluminou.
— Então se preocupa comigo?
— Sim, como amigo — respondeu Ranulf. E para assegurar-se de que
entendesse que não poderia nunca mais haver nada entre eles, acrescentou: —
Embora houvesse dias em que desejei sua morte.
Celeste retrocedeu.
— Que você o que…?
— É verdade que se surpreende que eu desejasse vê-la sofrer depois do que
me fez?
— E acredita que eu não sofri ao ter que me casar com outro? Minha família
me obrigou a aceitar lorde Fontenbleu.
Ranulf recordou a manhã que Celeste disse que não poderiam voltar a se
verem.
— Era muito pobre para você. Você mesma disse.
Celeste uniu as mãos com um gesto que Beatrice fazia frequentemente.
— Isso era o que minha família dizia continuamente. Que era pobre e que se
me casasse contigo, eu seria pobre também.
— Ainda sou pobre, Celeste. Sou governador de um castelo graças à
amizade e à generosidade de Merrick. Não tenho propriedades e mal tenho
dinheiro. Tudo o que possuo caberia em um baú de madeira.
— Mas eu sou rica e o homem que se casar comigo também o será. Posso te
dar tudo o que sempre quis, Ranulf. Dinheiro, terra, poder… e uma esposa que
o queira.
— Tudo isso, Celeste? É verdade que me daria tudo isso?

169
— Sim! — gritou, jogando-se em seus braços. — Dar-lhe-ei tudo o que
quiser.
Ranulf a empurrou brandamente.
— O que quero é estar com Beatrice. E que você saia de Penterwell.
— Por favor, não me odeie pelo que me obrigaram a fazer! — suplicou-lhe.
— Tente me compreender e me perdoar. Para as mulheres, a vida pode chegar
a ser muito difícil.
— Sei e me compadeço, Celeste — respondeu sem brutalidade, mas com
firmeza. — Quanto ao perdão, se for isso o que realmente procura, conta com
meu perdão.
Enquanto o dizia, compreendeu que era certo. Tinham-na perdoado.
— O passado é passado —respondeu com delicadeza. — Agora, deixemos
de falar daqueles dias.
— Mas meu marido está morto e nós estamos juntos — disse-lhe.— Ele
nunca me amou, Ranulf, nunca. Para ele eu era só um troféu, algo com o que
decorar seu salão, algo que podia mostrar a seus amigos — olhou-o com os
olhos transbordantes de lágrimas. — Jamais me beijou como você me beijava.
Nunca me fez sentir…
— Por favor, Celeste — disse Ranulf, lhe dando as costas — Não diga nada
mais. Sinto por você, de verdade, mas já não a amo.
Celeste se enrijeceu como se de repente acabasse de lhe cair um raio.
— Já não me quer por que envelheci, por que sou feia? —perguntou-lhe. —
É essa a razão pela qual prefere flertar com essa menina e arruinar a reputação
dela e a sua, por certo?
Para Ranulf era impossível acreditar que houve uma época em que teria
morrido feliz por aquela mulher.
— Beatrice não é uma menina.
— E isso faz com que seja aceitável? Apesar da amizade que diz professar a
seu tutor, transformou essa doce jovenzinha em sua amante.
170
— Beatrice não é minha amante —respondeu entre dentes, tentando conter
seu aborrecimento.
—S e você o diz, mas certamente é isso o que parece.
— Se pretende continuar insultando a mim e lady Beatrice —disse Ranulf
com deliberada frieza, — terá que partir. Diga a sua criada que faça as malas.
Sairá de Penterwell amanhã na primeira hora.
E rezou ao céu para que fizesse bom tempo.
— Espere! — gritou Celeste, correndo desesperada para a porta. — Ranulf,
por favor, sinto muito. Falei sem pensar, não tenho nenhuma razão para dizer
o que disse. Apesar das histórias que ouvi.
Ranulf sentiu um calafrio de vergonha, que transformou seu aborrecimento
em remorso.
— Deixe-me passar, Celeste. Não temos mais nada a nos dizer.
A raiva arrasava os olhos de Celeste e crispava o resto de suas feições.
— Quer me fazer acreditar que está apaixonado por essa estúpida
ignorante? O que ela sabe do amor ou de como agradar um homem?
Ranulf deu um passo para o lado, mas Celeste voltou a bloquear o caminho.
— Unir-se-ia à filha de um traidor? Teria que receber a caridade de um
amigo como dote, isso é a única coisa que ela poderia te oferecer. O que
aconteceu com seu orgulho, Ranulf? O que aconteceu com sua honra?
— Será lady Beatrice que me honrará e fará me sentir orgulhoso se aceitar
meu pedido de casamento.
— Então ainda não a pediu. Perguntava-me por que não sabia como o seu
irmão morreu.
Um olhar de triunfo iluminou o rosto de Celeste quando viu a expressão de
Ranulf.
— É obvio que tinha que dizer-lhe. Disse com uma careta de satisfação. — E
não é para menos que você não o tivesse feito. Temia que o rechaçasse se

171
soubesse que matou Edmond. O que acredita que pensará dessa outra história
que lhe contei, da aposta que ganhou quando eu aceitei me casar com outro?
Ranulf agarrou Celeste pelos ombros e a fulminou com o olhar.
— O que disse a Beatrice?
Celeste sorriu com expressão triunfal.
— Bem, a única coisa que disse foi sobre certa aposta… quatorze virgens em
quatorze dias e ganhou.
— Oh, meu Deus — gemeu, retrocedendo como se Celeste o tivesse
golpeado com força.
— O que se passa, Ranulf? Envergonha-se do que fez? Porque tem motivos
para fazê-lo!
Enquanto Celeste permanecia frente a ele, com aquele olhar zombeteiro
que tantas vezes viu no rosto de seu pai e de seus irmãos, Ranulf sentiu como
crescia seu orgulho, sua força e sua resolução. Era o mesmo sentimento de
orgulho que o levou até a fortaleza de sir Leonard de Brissy.
— Na manhã em que se casou estava na parte de atrás da igreja, Celeste —
ele disse. — Vi sua satisfação, quão feliz estava quando tomou lorde
Fontenbleu pela mão e o beijou. Não a obrigaram a se casar com ele. Foi você
que se agarrou a oportunidade de ser sua esposa. Desfez-se de mim com a
mesma despreocupação com que teria se desfeito de um vestido. Santo Deus,
como fui ingênuo! Mas agora não o sou e encontrei uma mulher a quem amar,
muito melhor do que você nunca poderá chegar a ser.
— Amar? — Celeste zombou. — O que sabe você do amor? Vinha atrás de
mim como um menino! Escrevia esses poemas de amor horrorosos e essas
canções tão lacrimosas que faziam mal aos meus ouvidos. Reconheço que sua
adoração era lisonjeira e também que beijava muito bem. Mas como ia me
casar com um homem que não tinha terras, nem dinheiro e ao que a sua
própria família repudiou por assassinato? Teria que estar louca!

172
— E eu devia estar louco ao pensar que te amava. Felizmente, recuperei a
razão.
— Não acredito que tenha recuperado a razão se pensa em se casar com
essa criatura nefasta.
— Se houver alguém nefasto em Penterwell, esse alguém é você. E agora,
adeus, Celeste.
A mulher a quem em outro tempo desejara além da razão caiu de joelhos e
se jogou sobre ele.
— Ranulf, sinto muito — gritou com o que parecia sinceridade. — Deixei-me
levar pela cólera. Sinto pelo fiz há tantos anos. Lamento o dia em que o deixei
partir. Não voltarei a dizer nada contra lady Beatrice, mas por favor, não me
obrigue a partir.
— Sou o governador deste castelo e aqui já não é bem-vinda — lhe disse,
estendendo a mão para ajudá-la a se levantar.
— Por favor, Ranulf, deixe-me ficar. Não tenho nenhum outro lugar para ir.
—Tem suas terras, suas propriedades e seus castelos.
Celeste negou com a cabeça.
— Pertencem ao sobrinho de meu marido, porque não tivemos filhos. Tudo
o que tenho cabe neste quarto.
Ranulf pensou então nos vestidos e nas joias que Celeste ainda levava
consigo.
— Continua sendo rica. Pode comprar uma casa em Londres, onde
certamente encontrará muitos pretendentes ansiosos por compartilhar seu
dinheiro.
— Não, não — soluçou. As lágrimas se deslizavam por suas bochechas e era
sincera a angústia que tingia a sua já não tão doce voz. — Não tenho família,
não tenho amigos em Londres. Meus pais estão mortos. Morreram a menos de
um ano depois de minhas bodas. Não tenho ninguém, ninguém que importe e
Londres é uma cidade fria e cruel para uma mulher que já não é jovem.
173
Ranulf vacilou um instante, debatendo-se entre abandonar aquela mulher
que em outro tempo o feriu tão profundamente ou lhe oferecer sua
compaixão.
— Celeste, continua sendo uma das mulheres mais formosas que vi. E está
longe de ser uma anciã.
— Isso é o que diz um homem que ama outra mulher mais jovem — disse
entre soluços.
— O que posso responder a isso? —respondeu. — Amo outra mulher e sim,
é mais jovem. Isso não vai mudar. Mas não pode dizer que você seja uma
mulher sem recursos.
Celeste secou os olhos com o dorso da mão.
— Pelo menos posso ficar aqui até que faça os acertos pertinentes para ir a
outro lugar?
Ranulf não teve coragem para se negar.
— Muito bem.
Celeste o olhou aflita, com uma expressão que em outra época, teria
conseguido que ele fizesse tudo.
— Obrigado, Ranulf —disse, pousando as mãos em seus ombros.
Ranulf começou a retroceder.
— Celeste —a dvertiu, — não.
— Não vou mordê-lo, Ranulf — murmurou, segurando-o com firmeza
enquanto deixava que a bata deslizasse por seus ombros. — Só quero te
agradecer. É um beijo de gratidão, nada mais.
— Eu sabia! — gritou Maloren do marco da porta. — São uns descarados e
mentirosos!
Depois de deixar Celeste, Beatrice estava decidida a enfrentar Ranulf
diretamente, até pensar que talvez fosse precisamente isso o que Celeste
pretendia: que enfrentasse Ranulf e o acusasse até conseguir zangá-lo.
Assim, não ia cair nessa armadilha.
174
Entretanto, precisava falar com alguém. Se Constance estivesse em
Penterwell, teria ido imediatamente até ela. Sua prima sempre sabia o que
dizer para fazê-la sentir-se melhor, que conselho lhe oferecer.
Desgraçadamente, Constance estava muito longe.
Com Maloren não podia falar. De fato, Beatrice desejava fervorosamente
que sua criada não ouvisse nada sobre aquela aposta de Ranulf. Ela sabia que
era ridículo pensar que Ranulf fizesse algo assim, mas Maloren acreditaria sem
nenhuma sombra de dúvida e correria para contar para todo mundo.
Assim Beatrice decidiu ir ver Wenna. Pouco tempo depois, estava na casa de
sua amiga, com o pequeno Gawan em seu colo.
—É lindo — sussurrou.
Wenna, só um ano mais velha que Beatrice, estava sentada em um
tamborete, trabalhando com um fuso. Elevou o olhar para Beatrice e sorriu.
— Ele me parece lindo, mas sou sua mãe.
— Oh, confie em mim. É um menino bonito — assegurou Beatrice. — Como
você está, Wenna?
Wenna suspirou e cravou o olhar no fuso.
— Bastante bem, minha senhora — enquanto seu filho puxava o vestido de
Beatrice no pescoço, Wenna se voltou de repente para ela e a olhou com
intensidade. — Acredita que falou a sério, minha senhora? É verdade que sir
Ranulf aceitará meu filho como pajem?
— Acredito que se sir Ranulf o disse, tem que acreditar —respondeu
Beatrice. — Seu filho não poderia ter melhor professor. Bem, Ranulf converteu
a guarda de Tregellas em uma das mais admiradas por toda a Inglaterra. Algum
dia, ocorrerá o mesmo com a guarda e os cavalheiros de Penterwell, você verá.
E… — acrescentou com veemência, — assim que a notícia correr, este será um
dos lugares mais seguros do país para viver.
— Espero que tenha razão, minha senhora.

175
— E talvez os mercadores possam vender produtos que dificilmente podem
se encontrar aqui. Deveria ver os vestidos de lady Celeste trouxe.
— Tecca me disse que é adorável. Não o…?
Embora Wenna se interrompesse, Beatrice pôde imaginar o que estava
perguntando. Uma pergunta que, certamente, se fazia muita gente de
Penterwell.
— Lady Celeste conheceu sir Ranulf quando eram jovens — explicou,
tomando a mãozinha de Gawan. — Não há nenhum motivo pelo qual não
possa visitá-lo — confessou com um sorriso. — Embora seja verdade que em
várias vezes desejei que não fosse tão formosa.
— Mas sir Ranulf nunca poderia preferi-la a você — disse Wenna com uma
convicção que Beatrice achou agradavelmente lisonjeira.
— Bom, durante muito tempo ele mal prestava atenção em mim —
respondeu.
— E ultimamente? —perguntou-lhe Wenna enquanto pegava seu filho.
— Oh, Wenna, o que quer que eu diga? —respondeu Beatrice, ruborizando-
se. — Você me contaria todos seus segredos?
Wenna a olhou com expressão pensativa enquanto afrouxava o sutiã para
dar de mamar ao seu filho.
— Quero que seja feliz, minha senhora, depois de tudo o que tem feito por
mim. Não sei o que teria passado na outra noite se você não estivesse aqui.
— Não fiz tanto — disse Beatrice, levantando-se para jogar mais madeira ao
fogo.
— Eu acredito que sim e as outras mulheres também.
— Ficou para você a parte mais difícil — assinalou Beatrice com um sorriso.
— Então confia em sir Ranulf? — perguntou Wenna.
— Absolutamente. Não há ninguém em quem confia mais e a pessoas de
Penterwell também deveriam confiar nele.

176
— Eu gostaria de fazê-lo, minha senhora, mas ouvi certos rumores — disse
Wenna lentamente e baixando a voz, como se não quisesse que seu filho a
ouvisse, — rumores sobre sir Ranulf.
Beatrice pensou imediatamente nas revelações de Celeste.
— O que ouviu?
— Myghal contou-me algo sobre sir Ranulf e uma aposta. Tinha que vê-lo
seduzindo a mulheres. Quatorze virgens em quatorze dias.
Mas o fato de que outro tivesse ouvido a mesma mentira não queria dizer
que fosse certa.
— Estou certa de que sir Ranulf jamais faria algo tão sórdido — respondeu
com firme convicção. — Onde Myghal ouviu esta história tão incrível?
— Ouviu de alguns pescadores. Então, também sabe de seu irmão?
— Estou igualmente certa de que a história de seu irmão foi um acidente —
respondeu Beatrice. Perguntava-se a si mesma se alguém mais teria ouvido
essa história. — É essa a razão pela qual as pessoas do povoado não querem
falar com ele do que está acontecendo? É verdade que pensam que foi capaz
de matar seu irmão?
— Myghal só me contou isso e o fez porque sabe que a admiro e a respeito,
e que depois de tudo o que fez por mim, só quer o melhor para você. Queria
que eu a advertisse, se por acaso não soubesse. Teme que sir Ranulf a esteja
enganando.
— Pois não é assim —respondeu Beatrice, levantando-se. — Sir Ranulf é o
melhor homem que conheço e dói ouvir todas essas mentiras.
Wenna estendeu-lhe mão.
— Por favor, minha senhora, não se zangue. Isso é o que Myghal disse e que
deve ser mentira. Disse que embora fosse somente pela consideração que você
lhe tem, sir Ranulf tem que ser um bom cavalheiro. E Myghal deveria saber
melhor que ninguém o que é despertar a desconfiança e o menosprezo dos
outros sem motivo algum.
177
— De verdade? — perguntou Beatrice, voltando a se sentar. A curiosidade
venceu a sua consternação. — E isso é por que é ajudante do xerife?
— Não é só por isso, minha senhora — respondeu Wenna enquanto trocava
Gawan de lado para que mamasse do outro peito. — Ninguém nunca confiou
em sua família. Sempre os considerou matreiros e traiçoeiros.
— Se eram contrabandistas, não me surpreende que fossem matreiros —
respondeu Beatrice. — Mas há muitas pessoas no povoado que se dedicam ao
contrabando. Não entendo por que têm que criticá-lo especialmente .
— Porque a família de Myghal age como se todos os outros estivessem
roubando ou enganando-os. As suspeitas alimentam suspeitas, minha senhora.
Mas diga o que disserem, não acredito que Myghal seja um mau homem, nem
que tenha nada que ver com a morte de Gawan.
— Também o acusam disso? — perguntou Beatrice estupefata.
Wenna ruborizou-se.
— Queria se casar comigo. Mas eu escolhi Gawan.
— E você, o que pensa? — perguntou Beatrice, pensando em como às vezes
se sentia incomodada na companhia de Myghal e se perguntando se talvez
fosse o homem de bom coração que parecia.
— Que Myghal seria incapaz de matar Gawan. Ficou ferido quando me casei
com ele, isso é certo e me disse coisas terríveis, mas muitos homens dizem
coisas terríveis quando se zangam.
— Ameaçou Gawan alguma vez ou a você?
— Oh não, minha senhora, nada disso. Ele insultou-me. Mas o que disse não
me fez mal, por que todo mundo sabia que não me deitei com nenhum homem
antes de me casar. Acredite-me, minha senhora, em um povoado do tamanho
de Penterwell, se o tivesse feito, teriam sabido.
Beatrice acreditava.
— Então, está certa de que Myghal não teve nada a ver com a morte de seu
marido?
178
—Juraria sobre a Bíblia, minha senhora —lhe confirmou Wenna. — Myghal é
um bom homem.
— Evidentemente, sir Ranulf o vê como digno de confiança. Caso contrário,
jamais o teria nomeado xerife — acrescentou Beatrice.
Wenna sorriu.
— Isso é o que eu acredito, embora alguns homens, homens que deveriam
passar menos tempo bebendo e trabalhando mais, dizem que Myghal fez uma
espécie de pacto com sir Ranulf para que o nomeasse xerife.
— Pois posso assegurar-lhe que não é verdade. Ranulf não faria nenhum
pacto com ninguém sobre esse tipo de coisas.
Ao ver a expressão satisfeita e triunfal da jovem, Beatrice desejou
sinceramente, pelo bem de Wenna, que Myghal fosse um homem digno de
confiança. Entretanto, não podia esquecer que em algumas ocasiões não se
sentia segura com ele, embora não pudesse especificar por que.
Ao menos Ranulf deveria saber a opinião que tinha o povo sobre a família de
Myghal. Era possível que Ranulf não soubesse do nível de desconfiança das
pessoas do povoado sobre o novo xerife.
— Será melhor que retorne ao castelo —disse, levantando-se. — Maloren
logo começará a se preocupar e não está acostumada a preocupar-se em
silêncio.
Wenna se despediu carinhosamente de Beatrice e, quando esta última
abandonou a casa, os dois guardas aos que pediu que a acompanhassem e que
esperavam sentados na porta, levantaram-se para escoltá-la.
Quando Beatrice chegou à rua principal, viu Myghal correndo sorridente
para ela. Como era óbvio que pretendia falar com ela e Beatrice esperou que
se aproximasse.
— Bom dia, minha senhora — saudou-a Myghal. — O que a traz hoje ao
povoado?
— Vim visitar Wenna —respondeu.
179
— Então volta agora para castelo?
— Sim, vou para lá — viu então a oportunidade de falar sobre essas histórias
que corriam sobre Ranulf e decidiu aproveitar a oportunidade. Importar-se-ia
em me acompanhar?
— Será um prazer, minha senhora.
Ou possivelmente nem tanto, pensou Beatrice, quando descobrisse o que
tinha para dizer.
Beatrice se voltou para os soldados que esperavam a vários metros dela.
— Myghal me acompanhará ao castelo — disse. — Não é preciso que nos
sigam. Podem se adiantarem, se quiserem.
Com um assentimento com o que mostravam seu acordo, os guardas
começaram a se afastar para o castelo, deixando que Beatrice e Myghal
continuassem seu caminho com passos mais tranquilos.
Beatrice demorou alguns segundos em decidir como começar. Ao final,
optou por abordar o tema da forma mais direta.
— Wenna me contou que ouviu algumas historias sobre sir Ranulf.
Myghal enrubesceu violentamente e olhou para os postos dos mercadores e
para as pessoas que olhavam o que neles se ofereciam.
— Sim, é certo, mas se não se importa — respondeu com voz fraca, —
preferiria não falar sobre isso em um lugar tão concorrido. Podemos ir pelos
páramos até o castelo.
Embora não fosse correto que estivesse a sós com nenhum homem com o
qual não estava comprometida, Beatrice não se negou. Tinha mais vontade de
falar com Myghal que medo de que a pudessem censurar.
— Wenna me contou algumas das coisas que ouviu sobre Ranulf — disse
Beatrice enquanto Myghal a conduzia para um beco.
Myghal voltou a enrubescer, mas a olhou com expressão decidida.
— Faz tempo que quero falar sobre elas com você, minha senhora.

180
— Suponho que me dirá exatamente o que ouviu. E também eu gostaria de
saber quando e onde.
— Outro dia estive em Terwallen — começou a dizer Myghal, —
perguntando pelos dois homens desaparecidos. Conheci um pescador que
normalmente trabalha no Támesis. Foi a Terwallen visitar sua irmã e no
encontramos no botequim. Quando me ouviu falar de sir Ranulf, soltou um
assobio e o chamou… enfim, senhora, não é uma palavra que você deva ouvir.
Mas zangou-me tanto que queria bater nele. Acusei-o de mentiroso e disse
muitas outras coisas que não repetirei.
Interrompeu-se por um instante.
— Então, apareceu outro tipo. Não era amigo do barqueiro, mas disse que o
londrino tinha razão, que ele ouviu o mesmo, que sir Ranulf, o governador do
castelo de Penterwell, afogou o seu irmão quando era menino e que seu pai o
expulsou de casa. Recebeu treinamento de sir Leonard para ser cavalheiro e foi
depois para corte. Levou algum tempo para descobrir Southwark, mas assim
que o fez, bom… se entregou às loucuras. Bebia a vontade e fez uma aposta
com um dos taberneiros. Apostou cinquenta marcos que poderia seduzir a
quatorze virgens em quatorze noites e iria levar a esse homem as anáguas
manchadas de sangue como prova.
Beatrice não tinha ouvido a última parte e embora se sentisse enjoada,
considerou-a também a prova de que tinha que ser mentira. Nem sequer
conseguia imaginar Ranulf em um sujo botequim, oferecendo essas anáguas
como prova de uma aposta tão repugnante.
— E segundo o barqueiro, isso foi exatamente o que fez. Eu tampouco
queria acreditar, minha senhora — terminou Myghal, olhando-a com
compaixão, — mas pensei que deveria sabê-lo.
— Conheço sir Ranulf e isso me basta para estar certa de que jamais fez essa
aposta — respondeu. — E espero que não pense em contar a mais ninguém
essas terríveis mentiras.
181
— Por aqui, minha senhora — disse Myghal, voltando-se para um caminho.
Beatrice parou, confusa.
— Por que por aí? Esse não é o caminho que leva ao castelo. Se seguirmos
por ali, chegaremos à beira da praia.
—Sim e também ao caminho principal. Podemos tomar o desvio que sai à
esquerda e leva até o castelo em vez do que desce pela praia.
— E por que não giramos à esquerda e vamos ao castelo diretamente?
— Porque nesse caminho há um arroio que teríamos que cruzar e acredito
que você poderia ter problemas para saltá-lo.
Beatrice não duvidou, posto que em visitas anteriores ao povoado,
encontrou com aquele arroio, apesar de resistir segui-lo.
Mas disse a si mesma que estava sendo ridícula. Ranulf confiava em Myghal,
e também Hedyn e sir Frioc. Mesmo assim, não podia ignorar sua apreensão.
— Poderíamos retornar —sugeriu, — voltar pelo outro caminho.
— Confie em mim, minha senhora, este é mais rápido.
— Acredito que me subestima, Myghal — disse Beatrice enquanto tomava o
caminho que conduzia ao castelo. — Estou certa de que poderei saltar esse
regato. E tenho muita fome para atrasar a volta.
Myghal correu atrás dela e quando estava perto, Beatrice acelerou o passo,
enquanto se repreendia em silencio por ter se deixado levar pela imaginação
quando não havia nenhuma necessidade para isso.
— Minha senhora, por favor — perguntou. — O está acontecendo?
Beatrice tropeçou e caiu, aterrissando sobre o duro chão com as mãos nuas.
A saia do vestido conseguiu amortecer o golpe nos joelhos. Reprimindo um
juramente, começou a se levantar enquanto Myghal chegava ao seu lado.
— Não tem por que correr, minha senhora — ele disse. — Não tem pressa
para chegar aonde vamos.
O tom de sua voz e suas palavras gelaram o sangue em suas veias.

182
Capítulo 13

Antes que Beatrice tivesse podido responder para Myghal, apareceu um


soldado levando um estandarte e seguido de outros homens por uma das
curvas do caminho.
Beatrice soltou um suspiro de alívio. Aquele estandarte pertencia a sir
Jowan, um senhor cuja propriedade se limitava com Tregellas.
Mas seu alívio diminuiu ao perceber que não era o alegre sir Jowan o líder
da comitiva, e sim o seu filho Kiernan, o homem que ela estava certa de que
pretendia se casar com Constance antes de Merrick ter retornado para
Tregellas depois de quinze anos de ausência. Constance entretanto, havia-lhe
dito em uma ocasião que não importava as intenções de Kiernan, ela não
pensava em se casar com ele.
E Beatrice se alegrou. Kiernan era um homem agradável, mas não podia se
comparar com Merrick ou com Ranulf.
Por um lado, era um vaidoso. Naquele momento, vestia uma túnica bordada
em cores azuis escuras e prata. Sua cota de malha resplandecia sob a luz do sol,
igual às esporas e o casco. Seu cavalo, um elegante exemplar de cor negra,
também ia forrado de prata e azul.
Embora supusesse que Kiernan tivesse motivos para ser vaidoso, posto que
fosse um homem atraente, embora não tanto como Henry e nem como
Merrick. E certamente, seu coração não se acelerava ao vê-lo, como ocorria
com Ranulf.
Quando a alcançou, Kiernan ordenou a seus homens que parassem.
Desmontou seu cavalo e correu para ela.
183
— Lady Beatrice, o que aconteceu? — perguntou-lhe ao ver o vestido
manchado de barro. Imediatamente olhou receoso para Myghal. — O que está
fazendo neste caminho com este homem?
— Este é Myghal, o xerife de Penterwell — respondeu, mais tranquila uma
vez posta a imaginação sob controle e decidida a evitar que Kiernan pudesse
ter uma ideia equivocada. — Está me escoltando até o castelo.
— Não leva mais soldados com você?
— Não necessito de mais ninguém — replicou Beatrice, nada satisfeita com
o tom arrogante de Kiernan. — Estou perfeitamente a salvo com Myghal.
A expressão de Kiernan indicava que ele não estava absolutamente de
acordo.
— Sir Ranulf deveria ter mais cuidado com suas convidadas.
— Vinham me acompanhando outros soldados, até que Myghal se ofereceu
para me escoltar.
Kiernan tomou a mão de Beatrice, arranhada pela queda e a levou aos
lábios.
— Mesmo assim, sir Ranulf deveria ter mais cuidado com você. Eu o teria.
Santo Deus! Beatrice sempre tinha sido amável com Kiernan, mas nunca o
animou a pensar que podia haver algo mais entre eles.
— Você sempre foi um bom amigo — respondeu, tentando retirar a mão
sem fazer uma careta de dor.
Mas Kiernan percebeu sua reação, segurou sua mão e examinou a palma.
— Está ferida! Devemos levá-la ao castelo imediatamente.
Dizia-o como se estivesse sangrando profusamente.
— Não é nada sério —protestou.
— Insisto.
Mas Kiernan não tinha nenhum direito de insistir.

184
— Irei caminhando. Como pode ver, não poderia levar as rédeas de um
cavalo embora algum de seus homens fosse tão amável para me emprestar o
seu.
— Eu acompanharei à dama — disse Myghal com frieza. Era óbvio que se
sentia desprezado por Kiernan e com razão.
— Posso retornar perfeitamente com o xerife — Beatrice se mostrou de
acordo.
— Não estou disposto a permitir que vá andando ao castelo nesse estado e
com esta companhia — respondeu Kiernan aproximando de seu cavalo.
—Posso ir andando perfeitamente — retrucou com firmeza — São as mãos
que estão feridas, não os pés.
— Quanto antes cuide dessas feridas, melhor — replicou Kiernan.
E então, sem sequer pedir permissão, subiu-a ao cavalo e imediatamente
montou atrás dela.
Myghal desencapou sua espada.
— Senhor, será melhor que permita que a dama desmonte.
Os homens de Kiernan tiraram as espadas de suas capas.
— Acalmem-se, acalmem-se — interveio Beatrice rapidamente, antes que os
homens de Kiernan pudessem fazer algum mal a Myghal. — O senhor Kiernan
vai permitir que eu desça, não é verdade, Kiernan?
Não foi um pedido, mas uma exigência. Não gostava que a tratassem como
se fosse um baú e tampouco gostou de como a estreitou contra ele.
O gesto com que Kiernan apertou os lábios indicou que pensava fazer
ouvidos surdos a sua ordem. No entanto, Kiernan se dirigiu a Myghal.
— Asseguro-lhe que não vou causar nenhum mal a ela — disse com altivez.
— E quem quer que você seja, temo que não seja de sua competência me dar
ordens.
E sem mais, cravou as esporas no lombo do cavalo para que começasse a
trotar. Beatrice se virou para olhar por cima do ombro um obviamente
185
encolerizado Myghal, que tinha tido que se afastar do caminho para evitar que
o barro levantado pelos cascos do cavalo de Kiernan o salpicasse.
— Esse era o xerife e não um mendigo com o qual me encontrou na estrada
— Beatrice reprovou Kiernan, indignada.
— E você é uma dama, não uma plebeia.
— Mas não tem direito de me colocar em seu cavalo como se fosse uma
carga de madeira. E além disso, deveria ter tratado Myghal com mais respeito,
e os homens que estão ao seu serviço deviam tê-lo feito também.
— E ele deveria ter ido procurar um cavalo para levá-la.
— De qualquer maneira, o que você está fazendo por aqui? — perguntou-
lhe.
Sabia que Ranulf não o convidara. Não só porque não tivesse tempo para
convidados, mas sim por que estava certa de que, a julgar pela forma como
Ranulf olhava para Kiernan em algumas ocasiões, pensava que o filho de sir
Jowan era somente um jovem mimado, coisa que de fato era certo.
Kiernan baixou o olhar para ela com expressão sombria e presunçosa ao
mesmo tempo.
— Vim levá-la de volta a Tregellas.
Beatrice se virou nos braços de Kiernan, tentando ver melhor seu rosto.
— Lorde Merrick e lady Constance pediram que me leve?
Kiernan ruborizou-se e cravou o olhar no vazio.
— Não exatamente.
Então, eles não pediram que a escoltasse.
— Mas quem pensa que você é? Não tem nenhum direito de vir aqui e me
levar…
Kiernan esporeou seu cavalo para que avançasse mais rápido, obrigando-a
se agarrar na sela para não cair.
—Mas o que se passa? —perguntou-lhe Beatrice quando conseguiu
recuperar a respiração. — O que acredita que está fazendo?
186
— Não podia permanecer sentado, permitindo que destroçassem sua
reputação. Sua visita a Penterwell se converteu no tema de conversação de
todos os botequins da Cornualha.
— E o que? —r eplicou. Ardiam-lhe as mãos por ter que segurar a sela com
tanta força. — Tenho todo o direito do mundo de visitar sir Ranulf, algo que
obviamente, Constance e Merrick também acreditam.
— Seus tutores permitiram sua vinda porque a querem, se compadecem e
consentem os seus caprichos — respondeu Kiernan conseguindo parecer
ofensivamente condescendente inclusive no lombo de um cavalo a galope.
Beatrice não estava disposta a aguentar nenhuma só ofensa a mais por
parte de Kiernan, cujo generoso pai satisfazia cada um de seus caprichos.
— Pare este cavalo e desça-me imediatamente!
Mas Kiernan não obedeceu. Em vez disso, ele a abraçou com força, como se
temesse que ela pudesse saltar, opção que era tentadora. Beatrice preferia
quebrar um braço ou uma perna do que continuar suportando Kiernan.
Desgraçadamente, sabia por suas conversas com o boticário que qualquer
fratura podia se tornar muito séria, de modo que não teve outra alternativa a
não ser ficar onde estava.
— Pare este cavalo e deixe-me saltar —exigiu. — Ou gritarei.
—N ão precisa ficar histérica.
Histérica? Pensava que isso era ficar histérica? Aquele homem não sabia do
que falava.
—A menos que queira que eu demonstre quão histérica posso chegar a
ficar, desça-me imediatamente.
— Não penso em permitir que retorne ao castelo sem nenhum tipo de
escolta — respondeu Kiernan. — Se a fiz se zangar eu sinto muito, mas não
tinha outra opção.

187
— Você mesmo está me obrigando a ser franca. Minha reputação não é
assunto seu ou de seus guardas e nunca será. E agora, deixe-me descer ou
saltarei.
Em vez de responder, Kiernan insistiu no galope de seu cavalo, fazendo com
que fosse impossível que saltasse da sela.
Se naquele momento pudesse agarrá-lo pelo pescoço, Beatrice o teria
estrangulado até deixá-lo inconsciente para poder escapar. Desgraçadamente,
não estava em condições de fazê-lo, de modo que teve que suportar a
humilhação de chegar a Penterwell entre seus braços, algo que daria o que
falar nos botequins, barracões e casas de Penterwell durante semanas.
Os soldados do portão a olharam com os olhos arregalados quando a viram
aparecer no cavalo de Kiernan.
— Minha senhora? —perguntou um deles, como se não pudesse acreditar
no que seus olhos estavam vendo.
— Sim, este é sir Kiernan de Penderston — respondeu, tentando pronunciar
o título do Kiernan em tom zombeteiro, posto que Kiernan obviamente não
estivesse se comportando como um cavalheiro. — Por favor, nos deixem
passar. O resto da escolta de Kiernan não demorará em chegar.
Os soldados obedeceram, mas trocaram olhares zombeteiros enquanto
passavam.
— Sir Ranulf isto não vai gostar disso — disse o que tinha falado com
Beatrice.
— Não vai gostar de nada — respondeu seu companheiro, sacudindo a
cabeça.

***

188
Enquanto isso, Beatrice abafou um gemido ao ver Ranulf apoiado contra a
parede do estábulo, com os braços cruzados e expressão inescrutável. O que
devia pensar? Maldito fosse Kiernan e sua estúpida arrogância!
— Deixe-me partir —disse entre dentes quando Kiernan parou seu cavalo,
mas seu captor continuava segurando-a com força.
Beatrice nunca o perdoaria pelo que estava fazendo. Não o perdoaria
jamais.
— Ora, ora, ora. O que temos aqui? —comentou Ranulf enquanto se dirigia
para eles. — O jovem sir Kiernan de Penderston com lady Beatrice em seu
cavalo como se fosse um troféu de guerra.
Beatrice tentou escapar dos braços de Kiernan.
— Kiernan se encontrou comigo quando vinha com Myghal para cá e insistiu
que voltasse a cavalo com ele. De fato, não me deixou outra opção. Montou-
me em sua sela e deixou Myghal no caminho.
Kiernan respondeu sem parecer absolutamente irritado pela explicação de
Beatrice.
— Ia andando pelo caminho como uma plebeia e sem escolta. E além disso,
caindo e machucando as mãos.
Ranulf desviou o olhar para as mãos de Beatrice franzindo o cenho com
preocupação.
— Não foi nada, só tropecei. E então Kiernan chegou e…
— E teve a amabilidade de trazê-la até aqui — interrompeu-a Ranulf,
tratando-a por você diante de Kiernan. — Coisa que eu agradeço, embora
aplauda também sua indignação por Myghal. Entretanto, estou certo de que
Myghal se recuperará. E de sua parte, deveria agradecer sir Kiernan pela sua
amabilidade.
Beatrice mantinha a boca fechada. Naquele momento não estava muito
contente com nenhum deles.
— Vim para levar lady Beatrice a Tregellas —anunciou Kiernan.
189
Ranulf arqueou uma sobrancelha.
— Verdade? E devo assumir que pensa em levá-la imediatamente e de uma
maneira tão… curiosa?
Kiernan ruborizou-se violentamente e tinha motivos para isso.
— Não.
— Alegro-me de ouvi-lo, posto que lady Beatrice tem sua própria égua
esperando-a para quando chegar o momento de retornar — Ranulf se
aproximou a passos largos até o cavalo de Kiernan. — E posto que ainda não
chegou esse momento, permita-me ajudá-la a desmontar, minha senhora.
Depois de ver o sorriso que dançava nas profundezas dos olhos de Ranulf e,
especialmente, ao sentir seus braços ao seu redor, já não parecia tão terrível
que Kiernan a tivesse levado para casa a cavalo.
Beatrice pousou as mãos no peito de Ranulf de maneira que não
despertasse nenhuma suspeita e rodeou sua cintura com os braços. Enquanto
desmontava, Beatrice se deleitou ao sentir seu corpo deslizando livremente tão
perto do dele, embora não pudesse evitar uma careta de dor ao roçar a túnica
com as mãos.
Ranulf pegou suas mãos imediatamente e as fez girar.
— A próxima vez, deve levar luvas — disse enquanto as estudava.
— E não deveria passear pelo povoado sem sua criada e sem escolta — disse
Kiernan enquanto desmontava e se colocava ao lado de Beatrice.
Sem soltar as mãos de Beatrice, Ranulf dirigiu a Kiernan um frio olhar.
— A criada de minha senhora tinha outro compromisso — e acrescentou,
dirigindo-se a Beatrice. — Maloren está na cozinha e provavelmente se verá
obrigada a passar ali algum tempo. Tecca a ajudará a se trocar para o jantar
desta noite.
Embora se alegrasse por não ter que ouvir Malore resmungar enquanto se
trocava, Beatrice não pôde evitar a sensação de que algo havia acontecido.

190
Ranulf ordenou aos moços que saíssem dos estábulos para se encarregarem
dos cavalos e reuniu um grupo de soldados para que fossem procurar a escolta
de Kiernan. Depois, chamou outros criados para que cuidassem da bagagem.
— Não trago bagagem — advertiu Kiernan com voz glacial, — posto que não
tenho intenção de ficar.
— Ah, não? Pois é uma pena — respondeu Ranulf em um tom
completamente sem sinceridade. — Entretanto, estou seguro de que não
pretenderá cavalgar de noite. Poderia perder-se no páramo. Assim será bem-
vindo em meu castelo. Permita-me oferecer uma taça de vinho enquanto curo
as feridas de lady Beatrice.
— Você vai curá-las? — perguntou Kiernan com uma mescla de surpresa e
óbvia desaprovação.
Entretanto, o coração de Beatrice começou a pulsar violentamente. Não se
alegrava por ter ferido as mãos, mas se isso significava que ia poder passar
algum tempo a sós com Ranulf, tampouco o sentia.
— É obvio — respondeu Ranulf a pergunta de Kiernan. — Durante os muitos
anos que me dediquei a torneios e batalhas, tive ocasião de curar muitas
feridas. Vamos, minha senhora?
E prevendo mais objeções de Kiernan, deram meia volta e começaram a
caminhar para o salão, deixando que o jovem cavalheiro os seguisse.
Aquelas histórias terríveis que contaram sobre Ranulf tinham que ser falsas,
disse Beatrice a si mesmo enquanto caminhava ao seu lado. Era impossível que
tivesse assassinado seu irmão, ou seduzido a todas aquelas mulheres.
Ao entrar no salão, viram lady Celeste sentada em uma das cadeiras do
salão. Vestia-se como uma imperatriz, com um precioso vestido de veludo
vermelho e fios dourados. Ao ver que se aproximavam, levantou-se como uma
rainha, fazendo com que Beatrice se sentisse em um estado lamentável com
aquele vestido sujo de barro.

191
— Lady Celeste — Ranulf saudou-a quando chegaram ao seu lado, — eu
gostaria de apresentá-la para sir Kiernan de Penderson, vizinho do senhor e a
da senhora de Tregellas.
Celeste inclinou elegantemente a cabeça.
— Encantada por conhecê-lo, sir Kiernan.
— O prazer é meu, minha senhora — respondeu Kiernan com uma
reverência mais profunda enquanto dava um passo adiante.
Fixou o olhar em seu rosto como se sua beleza o tivesse deslumbrado e
beijou-lhe a mão.
Talvez, pensou Beatrice, não tivesse que voltar a se preocupar com o fato de
que Kiernan pudesse lhe oferecer um matrimônio que ela não desejava.
— Acredito que posso deixá-lo aos cuidados de lady Celeste enquanto vou
atender as feridas de lady Beatrice, sir Kiernan — disse Ranulf sorrindo. — Caiu
e feriu as mãos — explicou a Celeste. — Tenho um unguento que ajudará a
cicatrizar as feridas e aliviará a dor. Vamos, lady Beatrice.
Embora Beatrice estivesse encantada de ter oportunidade de estar a sós
com ele, não pôde resistir à tentação de brincar.
— Vamos! — sussurrou, enquanto cruzavam o salão para dirigirem-se as
escadas. — Fala como se eu fosse uma menina travessa.
Ranulf lhe dirigiu um olhar que conseguiu dar um pulo em seu coração.
— Asseguro-te Bea, que jamais penso em você como uma menina.
O coração de Beatrice se acelerou e o desejo começou a borbulhar por suas
veias.
— Senhor, não me disse em uma ocasião que não deveria ficar a sós em
um quarto com um homem? E menos com você — acrescentou com divertida
insolência, recordando a ocasião em que ficou a sós com ele.
— Sim, disse-lhe isso e fiz bem em fazê-lo — respondeu. — Entretanto,
nesta ocasião, farei o papel de médico. E asseguro que me comportarei
corretamente.
192
— Que desilusão.
— Não espere nada mais, Bea — advertiu.
Beatrice ruborizou-se envergonhada, temendo ter sido muito atrevida. Bom,
na realidade sabia que havia sido, mas esperava, queria…
Uma vez no dormitório, Ranulf se aproximou de seu baú e tirou um
recipiente de argila coberto por um tecido encerado.
— Sente-se nesse tamborete — pediu enquanto abria o recipiente.
Beatrice obedeceu e se espalhou pelo cômodo uma fragrância mentolada.
— Estenda as mãos.
Beatrice fez o que ele pedia.
— É um unguento de hortelã?
— Sim, Constance me deu. É o que passou no braço de Merrick quando
Constance o costurou depois de que lhe cravaram a lança.
Beatrice estremeceu ao se lembrar, enquanto Ranulf começava a passar o
unguento pelas palmas de suas mãos.
— Dói? —perguntou ele, elevando o olhar para ela.
— Não, mas estava me lembrando da ferida de Merrick. Supunha-se que
deveria ter ajudado minha prima, mas Merrick estava tão zangado que saí
correndo.
Ranulf riu brandamente.
— Quando Merrick se zanga, todo mundo foge, exceto Constance. É uma
mulher muito valente. E você também — acrescentou, sorrindo de um modo
que aumentou a vontade que tinha Beatrice de beijá-lo. — Duvido que eu fosse
capaz de suportar um parto.
Quando terminou, limpou as mãos em um pedaço de linho.
— Já está melhor?
Beatrice estava muito melhor e não só pelo unguento.
— Então, suponho que deveríamos nos reunir com nossos convidados.

193
Beatrice sabia que tinha razão, mas mesmo assim não queria desperdiçar
aquela oportunidade de falar a sós com ele.
— Ainda não, por favor —disse enquanto se levantava.
Apesar de sua aparente valentia, de repente tinha medo. O que aconteceria
se todas as coisas que ouviu sobre Ranulf fossem certas? Tinha que averiguar a
verdade.
— Ranulf, você matou seu irmão?
Ao ver como ele enrubescia, precipitou-se a acrescentar antes que ele
pudesse responder:
— Isso foi o que Celeste me disse e pelo visto não foi a única que ouviu. É
obvio, eu não quis acreditar nisso. Bom, e se acredito é somente porque você
me disse que seus irmãos eram cruéis contigo. Suponho que ao menos um
deles o atacou e teve que se defender. Afogar ou morrer afogado, teve que
escolher. Por isso lhe dá medo aproximar-se da água. Deve ter sido uma
experiência terrível.
Ranulf continuava em silêncio.
— Sinto muito, mas tinha que perguntar isso embora talvez devesse ter sido
mais diplomática. Mas não acredito que haja uma forma diplomática de
perguntar uma coisa assim, não é verdade?
Os olhos de Ranulf eram tão frios como o mármore no inverno e sua
expressão dura como o ferro.
— Matei meu irmão e queria fazê-lo.
Beatrice voltou a se sentar no tamborete com horrorizado desconcerto.
Ranulf baixou o olhar para seu adorável rosto. Chegou o momento de contar
tudo. Aquelas não eram as circunstâncias que ele teria escolhido para fazer
aquela confissão, mas perdeu a oportunidade de escolher.
— Matei Edmond, meu irmão, o filho mais velho de meu pai e seu favorito,
o herdeiro. Estávamos brigando perto do mar e caímos na água. Eu o retive
debaixo da água até que se afogou.
194
— Mas… mas certamente ele o atacou primeiro — protestou Beatrice. —
Tinha que se proteger.
Ranulf negou com a cabeça.
— Queria matá-lo. Desejava sua morte.
— Por que o espancou?
— Aquele dia não tinha colocado a mão em cima de mim. Queria matá-lo
porque afogou meu cão.
— Oh, Ranulf — murmurou Beatrice com os olhos cheios de compaixão e
tristeza.
— Encontrei Félix deitado na praia, gemendo com uma pedra atada ao
pescoço. Edmond estava furioso, disse que meu cão sarnento havia cruzado
com a melhor de suas cadelas e, antes que pudesse fazer algo para impedi-lo,
jogou-o na água, tão longe quanto pôde. Edmond era muito forte.
Ranulf fechou os olhos e esboçou uma careta de dor.
— Ainda posso ouvir o pobre Félix uivando. E depois, sua queda ao mar.
Ranulf abriu os olhos e a olhou com firmeza, embora todo seu corpo
tremesse.
— Tentei me atirar à água para salvá-lo, mas Edmond me segurou. Agarrei-
o, dava-lhe chutes… — voltou a experimentar a mesma sensação de
impotência. Voltava a ter doze anos outra vez e era incapaz de salvar a única
criatura que amava. — Edmond me soltou e disse que era muito tarde. Meu
cão morrera. Então, perdi completamente a cabeça. Não pensava, nada me
importava nada, salvo que Edmond matara o meu cão. Equilibrei-me sobre ele
e caímos os dois na água. Mais tarde, pensei tê-lo pego despreparado. De outra
forma, teria sido impossível atirá-lo na água como fiz, embora eu também
estivesse a ponto de me afogar. Foi nosso pai que veio nos tirar da água. Mas
então já era muito tarde. Edmond estava morto.
Ranulf passou a mão pelo cabelo e soltou um trêmulo suspiro.

195
— Não me importou. Não me importava o que fiz. E tampouco me importou
que meu pai me repudiasse. Aquele dia estava contente, Bea. Contente —
quase grasnou pela secura de sua garganta.
Beatrice se levantou então e se aproximou dele. Sem dizer uma só palavra,
abraçou-o e o estreitou contra ela.
No calor de seu abraço, na suavidade do círculo de seus braços, Ranulf
sentiu seu amor e sua compreensão. Em silêncio, estava oferecendo um
consolo que Ranulf não conhecia desde a morte de sua mãe.
A dor de ter perdido seu cão, de ter perdido também sua mãe, a dor pelo
menino que foi começou a emanar em seu interior.
Fechou os olhos, tentando conter as lágrimas, porque para ele eram um
símbolo de debilidade.
— Que classe de homem é capaz de matar o seu próprio irmão e não sofrer
por isso? — perguntou com voz rouca, com a garganta torturada pelo esforço
que estava fazendo para não desmoronar.
— Um homem que nunca recebeu o amor que merece. Mas então você nem
sequer era um homem. Era só um menino.
Ranulf respirou profundamente enquanto uma lágrima escapava por sua
bochecha.
— Não me senti culpado, não sentia remorsos. Só me sentia livre para fazer
o que quisesse e o que queria era aprender a lutar para que ninguém nunca
mais pudesse me machucar. Minha mãe falou com sir Leonard de Brissy e eu
sabia onde era o seu castelo. E que Deus o abençoe, ele me acolheu ali. O resto
você já sabe.
— Contou para sir Leonard o que aconteceu?
— Sim, por isso não me obrigou a aprender a nadar como os outros.
— Merrick e Henry não sabem, não é verdade? Nem sobre seu irmão nem o
sobre o medo da água.

196
— Não, sempre fiquei constrangido em admitir. E minha família não me
procurou para me acusar do crime. Meu pai não queria sujar seu nome. Era
preferível que todo mundo pensasse que a morte de meu irmão foi um
desgraçado acidente e que eu era um garoto inútil do que soubessem a
verdade.
— Se Merrick e Henry tivessem sabido, não o teriam condenado. E jamais o
atirariam do barco.
Decidido a confessar tudo, Ranulf decidiu continuar.
— Celeste contou algo mais, algo sobre uma aposta.
Beatrice assentiu.
—Contou-me que apostou que podia seduzir a quatorze virgens em
quatorze dias. Disse que ganhou e que levou suas anáguas como prova — seus
olhos suplicavam que dissesse que não era verdade.
Mas Ranulf não podia negar. E não o faria. Se Beatrice estava realmente
disposta a amá-lo, tinha que saber de tudo.
— Fiz essa aposta, Bea. E ganhei.

197
Capítulo 14

— Mas não foram quatorze virgens. Eram quatro — confessou Ranulf


enquanto Bea olhava para ele estupefata. — E se acaso essa vergonha não era
suficiente, levei a prova de meu êxito ao homem com quem fiz a aposta.
O sentimento de culpa e o remorso aumentavam à medida que a expressão
de Beatrice se transformava em uma careta de repugnância.
Ranulf continuou, tentando, na esperança de recuperar o pouco de seu
afeto que ainda podia conservar.
— No instante em que Ollie pôs o dinheiro em minhas mãos, soube como se
sentiu Judas. Fi-lo prometer que não diria a ninguém. Mas havia homens no
botequim que foram testemunhas da aposta e pior ainda, do pagamento do
dinheiro. Fui buscá-los e os ameacei com a morte se falassem uma só palavra.
Entreguei o dinheiro à igreja, pensando que a mancha desapareceria se o
dinheiro fosse empregado em uma boa causa. Depois voltei para castelo de sir
Leonard. Não contei a ninguém o que fiz. E sigo rezando todos os dias para que
Deus me perdoe — inclinou a cabeça. — E agora Bea, peço humildemente o
seu perdão.
O rosto de Beatrice era uma máscara pálida de desilusão e desconcerto.
— Mas eu o defendi… proclamei sua inocência. Disse que tudo era mentira,
que você era um homem muito bom, muito honrado para fazer algo tão
repugnante.
Ranulf estendeu as mãos, com um gesto de súplica.
— Beatrice, lamento o que fiz. Amaldiçoei-me centenas, não, milhares de
vezes e continuo doente de remorso. E mais, me senti pior por isso quando a

198
conheci. Nunca me senti mais sujo do que quando sorria para mim com sua
infantil inocência e me olhava com tanto amor.
Beatrice elevou as mãos como se quisesse interrompê-lo e começou a
retroceder. Seu silêncio era mais assustador do que teria sido qualquer insulto
ou acusação.
Ranulf a seguiu e fez uma tentativa desesperada para recuperar a boa
opinião que Beatrice tinha sobre ele ou, pelo menos, parte dela.
— Quando fiz aquela promessa, estava bêbado e enlouquecido pela raiva e
pelo ciúme.
Beatrice o olhava fixamente, como se fosse a primeira vez que o via. E
talvez, em sua determinação por ver nele um homem que valesse a pena se
apaixonar, realmente não o tinha visto até então.
— Oh, Ranulf — suspirou, — e que importância pode ter tido para as
pobres mulheres que seduziu? Que importa se foram quatro, ou quatorze, ou
quarenta. Quando as seduziu não estava bêbado. Não pensou absolutamente
nelas, não é verdade? Foi cruel e egoísta, mais do que eu jamais poderia ter
acreditado que poderia ser.
Se ele pensava que em outra ocasião a vira com o coração partido, aquilo
não era nada comparado com as recriminações que o seu olhar lançava
naquele momento.
— Bea, eu…
— Não, Ranulf, não diga mais nada! — exclamou, virando-se como se não
pudesse suportar sequer olhá-lo. — A morte de seu irmão, quando era
somente um menino e agiu sem poder controlar o aborrecimento e a raiva,
posso compreendê-la e desculpá-la. Mas sua forma de utilizar essas mulheres,
o sangue-frio com que foi procurá-las e seduzi-las só para ganhar uma aposta
que permitisse aliviar o seu orgulho ferido… — sacudiu a cabeça. — Ranulf, não
é o homem que eu acreditava que fosse.

199
O rechaço de Celeste foi doloroso, mas não foi nada comparado com aquilo.
Com aquele terrível desespero, com aquela terrível tristeza. Não suportava
saber que ante os adoráveis olhos de Beatrice se transformou em um ser
desprezível que não merecia nem seu cuidado nem seu respeito.
Mas continuava sendo um homem orgulhoso. Foi o orgulho que o sustentou
quando era menino e o permitiu alcançar seu objetivo. E foi também o pouco
orgulho que restou, uma vez que seu amor próprio foi feito em pedacinhos,
que foi em sua ajuda nesta ocasião.
— Não, não sou o homem que pensava — disse com fria deliberação. —
Tentei alertá-la mas não me escutava.
Beatrice o olhou então com a tristeza e o desespero gravados em suas doces
feições. Brilhavam em seus olhos as lágrimas que evitava derramar.
— Talvez seja certo que sou uma ignorante e uma ingênua — disse com voz
fraca. — Pensava que Celeste estava tentando me envenenar para me colocar
contra você. E a única coisa que os outros faziam era repetirem esses rumores
sem fundamento. Não podia me permitir acreditar que foi capaz de fazer algo
que não fosse bom e nobre.
Ranulf tinha esperado e pedido muito de Beatrice. Tinha matado seu irmão.
Tinha seduzido cruelmente quatro mulheres. Tinha desonrado a elas e a si
mesmo. Nenhuma mulher virtuosa ou honrada iria querer o seu amor.
Foi um erro pensar que podia ser de outra maneira.
Mas não voltaria a se equivocar. A partir de então, estaria sempre sozinho.
— Foi um erro ter esperanças — disse por fim. — Estive vivendo em um
sonho, desejando que parte de sua bondade, de sua pureza, pudesse ajudar a
me limpar. Mas equivoquei-me. Não tenho o direito de estar perto de você, e
muito menos amá-la. E Deus sabe que não deveria nunca ter pedido que se
casasse comigo.
Bea esteve a ponto de gemer em voz alta. Passara semanas esperando que
Ranulf dissesse que a amava e viveu alimentando a esperança de que em
200
algum momento a pedisse em matrimônio. Naquele momento, seu sonho
parecia uma brincadeira cruel. Ranulf não era o homem por quem se
apaixonou. Era… era outra pessoa.
Não era um nobre cavaleiro, um amigo cavalheiresco, o amante atraente e
desejável. Era um homem capaz de seduzir uma mulher a sangue frio, um
homem sem coração capaz de ser cruel com mulheres que não fizeram
nenhum mal a ele.
— Há algo mais que deveria dizer-lhe — disse Ranulf com o rosto convertido
em uma máscara de granito e uma fria determinação no olhar.
— Não quero ouvir mais nada — protestou ela, com uma mescla de
autoridade e súplica enquanto corria para a porta.
Ranulf cruzou o quarto e permaneceu na frente dela, bloqueando o
caminho.
— Não Bea, eu quero que saiba tudo, assim também ouvirá isto de meus
próprios lábios.
Aqueles lábios que a beijaram com tanta paixão e ternura. Aqueles lábios
capazes de expressar tantas mentiras para atrair as mulheres para o seu leito.
— Hoje estive no quarto de Celeste — continuou Ranulf inexorável. — Sua
criada me pediu que fosse. Celeste me abraçou e Maloren nos viu.
Beatrice fechou os olhos, lutando desesperadamente para não perder as
forças. Depois de tudo o que Ranulf confessou, aquilo não deveria lhe
importar. Mas importava. Que o céu a ajudasse, importava e era como sentir
uma adaga no coração.
Ranulf suavizou a voz, voltando a se parecer de repente com o Ranulf que
ela tinha amado.
— Acredite no que quiser sobre mim e diga Maloren o que disser, sou
inocente e não fiz nada de mau para Celeste.
Beatrice abriu os olhos e olhou o homem que penou que amaria até sua
morte. O primeiro homem que despertou nela o desejo.
201
Aquele desconhecido.
— Deixe-me passar, Ranulf — disse, obrigando seus pés a se moverem para
a porta. — Não suporto estar perto de você.
Ranulf ficou do lado e Beatrice procurou com estupidez o ferrolho da porta.
Ranulf a abriu para ela. A jovem, com os braços cruzados como se temesse
tocá-lo, saiu e partiu.

Quando Beatrice se foi, Ranulf se aproximou da janela. Fixou o olhar no céu


e olhou depois o castelo que ele governava. Acreditava ter percorrido um
longo caminho desde que deixou Beauvieux. Atreveu-se a esperar inclusive a
felicidade.
Evidentemente, Beatrice não foi a única em albergar sonhos impossíveis,
condenados de antemão a fracassar.
Foi um estúpido e a diferentemente de Beatrice, ele não tinha a desculpa da
inocência da juventude.
Só restava uma coisa a fazer: cumprir com seu dever como governador de
Penterwell. Devia encontrar os assassinos de Hedyn, Gwenbritha, Gawan e os
outros e ele o faria, e depois os levaria ante a justiça.

Sem pensar no que fazia, sabendo unicamente que queria, que precisava
estar sozinha, Beatrice correu até seu quarto, fechou a porta atrás dela e se
aproximou cambaleante até a cama. Ali se sentou e cravou o olhar na parede
enquanto tentava assimilar a importância da confissão de Ranulf.
Assimilar as coisas tão terríveis que contou, especialmente, a desumana
sedução daquelas jovens inocentes. Como podia ter feito algo assim? Sempre o
considerou o mais nobre e cavalheiresco dos homens.

202
Mas estava equivocada. Completamente equivocada. Já não podia amá-lo.
Aquele pensamento se repetia uma e outra vez em sua mente. Simplesmente,
não havia desculpa alguma para o que fez.
Como podia ter se equivocado tanto? Como Constance e Merrick podiam
estar tão enganados? E Henry?
Aqueles tumultuosos pensamentos e perguntas continuavam dando voltas
quando a porta do dormitório se abriu e Maloren apareceu na soleira.
— Está aqui, meu cordeirinho — gritou enquanto corria para dentro. Parou
junto a sua ama com uma expressão de triunfo em que não estava ausente a
preocupação. — Então, já soubeste.
Beatrice elevou o olhar, mas antes que pudesse dizer algo, Maloren exalou
um suspiro de maternal consternação e correu para o seu lado. Passou-lhe o
braço pelos ombros e a fez apoiar a cabeça em seu ombro para lhe dar
consolo.
— Vem comigo, meu cordeirinho — arrulhou. — Não vale à pena sofrer por
ele. Há muito mais homens, homens muito melhores. Não chore.
— Não estou chorando — respondeu Beatrice com um fio de voz.
— Bom, isso é bom. Esse homem não merece que derrame por ele uma só
lágrima. Não a avisei que era um filho do diabo? E essa mulher também, com
todas suas sedas e veludos. Eu sabia que não se podia esperar nada bom desse
demônio ruivo, e agora ela a feriu, como eu temia. E tive que vê-lo com meus
próprios olhos com essa mulher! Quando os vi juntos estive a ponto de
desmaiar. Ele sabia que o descobri, porque me enviou à cozinha sem dizer uma
só palavra. A única coisa que me disse foi que ficasse na cozinha até que ele me
chamasse. Estou certa de que queria tentar justificar o ocorrido com algumas
mentiras. Mas vejo que é muito inteligente para acreditar, independente do
que ele disse.

203
— O que viu exatamente, Maloren? — perguntou Beatrice, temendo que
Ranulf tivesse mentido também sobre Celeste e decidida a saber a verdade por
mais que doesse.
— Não acredito que precise ouvir…
— Por favor, Maloren. Quero saber.
Maloren não foi capaz de se negar, mesmo sabendo que poderia aumentar
sua dor.
— Estavam juntos, muito juntos, a ponto de se beijarem.
— Mas ainda não estavam se beijando?
— Iam se beijar. Que diferença pode haver? — perguntou Maloren
enquanto se levantava e se aproximava de seu baú. Abriu-o e começou a
guardar as coisas que tinha em cima da mesa. — Que rufião, que descarado.
Graças a Deus, o jovem Kiernan veio para nos levar para casa.
Para casa? Maloren se referia a Tregellas. Sua criada pensava que deviam
retornar a Tregellas.
E ela deveria estar desejando partir e não voltar a ver Ranulf nunca mais.
Deveria estar ansiosa para se afastar dele e de tudo o que tinha feito. E estava,
ou não?
Levou a mão à dolorida cabeça. Não podia pensar, não podia fazer planos
com Maloren correndo de um lado para outro no quarto.
— Maloren, por favor, isso pode esperar até mais tarde. Eu gostaria de me
deitar um pouco e descansar. Minha cabeça dói.
Maloren deixou imediatamente de fazer as malas e se voltou preocupada
para Beatrice.
— Irei buscar um pouco de vinho e algo de comer.
Beatrice negou com a cabeça.
— Não, não tenho fome — nem sequer podia pensar em comer. — A única
coisa que preciso é um pouco de silêncio e descansar.

204
— Então descanse, cordeirinho. Trarei algo para comer mais tarde, algo que
esse Much não tenha conseguido estragar. Deite-se e deixe que Maloren se
ocupe de todo o resto, meu cordeirinho.
E sem mais, abandonou o quarto tão silenciosamente como se Beatrice
estivesse adormecida.
Mas Beatrice não foi capaz de descansar, nem durante o resto do dia. Sua
mente corria a toda velocidade, voltava uma e outra vez ao que Ranulf
confessara, às terríveis verdades que revelou enquanto tentava decidir o que
pensar. E sobre tudo, o que fazer.

Ainda não tinha encontrado resposta quando Maloren retornou ao


dormitório com uma bandeja em que havia pão recém-feito e um guisado de
cordeiro que cheirava deliciosamente. Entretanto, apesar daquele apetitoso
aroma, Beatrice não era capaz de comer. De fato, tinha a sensação de que
nunca voltaria a ter fome. Para não preocupar Maloren, bebeu um pouco de
vinho e mordiscou alguns pedaços de pão.
Maloren se deu por satisfeita e insistiu em continuar fazendo a bagagem até
que chegou a hora de se preparar para dormir. Quando Maloren finalmente
adormeceu na cama que tinha ao lado da porta, Beatrice se levantou da cama.
Colocou a bata e sapatilhas, caminhou lentamente para a porta e a abriu sem
despertar sua criada. Depois se dirigiu ao dormitório de Ranulf. A porta estava
fechada, mas se filtrava um raio de luz por debaixo da porta.
Ele tampouco estava dormindo.
Tinha que vê-lo, tinha que falar com ele. Não podia passar uma hora mais
com aquele peso no coração.
Abriu a porta e entrou.
Ranulf, vestido somente com as calças, permanecia frente à janela,
contemplando a noite e alheio ao frio que por ela entrava. Completamente
205
imóvel, Beatrice estudou suas costas e seus ombros de guerreiro, sua cintura
estreita e a força de seus braços e suas pernas, cultivada durante horas e horas
montando a cavalo e brandindo armas. Fixou-se nas numerosas cicatrizes que
cruzavam suas costas e resplandeciam a luz das velas.
E ao mesmo tempo, viu outro Ranulf. O menino solitário e carente de amor
que vingou a morte da única criatura que amava, arriscando-se inclusive a
morrer. Viu o jovem que devotou seu coração a uma mulher que não foi capaz
de reconhecer sua valia e o rechaçou. Ao homem rechaçado e furioso que
procurou a maneira de demonstrar que podia ser amado e desejado.
Não era estranho que procurasse vingança no leito de outras mulheres. Que
ao calor daquele rechaço fez aquela cruel aposta e se esforçou para ganhá-la.
Eram muitas as pessoas que deveriam ter amado Ranulf e não o fizeram. Sua
família o abandonou e o repudiou por ter matado seu irmão, como se fosse o
resto de algo sem valor algum. A primeira mulher que conquistou seu amor o
deixou por outro.
Como podia ela, que jurou amá-lo, abandoná-lo também? E se era capaz de
fazê-lo, o que diria aquele abandono sobre ela? Que era tão frívola como
Celeste? Tão egoísta como a violenta família de Ranulf?
Não, não podia. Ela o amava como sempre o amou. Amava-o mais, inclusive.
Antes daquelas revelações, Ranulf era como um herói de lenda, o protagonista
de um romance, com o mistério e a atração do proibido. Mas não era um
homem real.
Frente a ela estava o verdadeiro homem, um homem de carne e osso, um
homem com defeitos e pecados, mas também um homem honrado, um
cavaleiro. Um homem que necessitava de seu amor da mesma forma que ela
necessitava do seu. Um homem que jamais abandonaria, porque sabia que
também ele a amava.
— Ranulf?
Ranulf se voltou bruscamente.
206
— Beatrice! O que está fazendo aqui? Volte para a cama.
— Não — respondeu caminhando para ele—. Não irei até que ouça o que
tenho para dizer.
Ranulf cruzou o quarto e agarrou a camisa que deixou sobre o baú.
— Se veio me repreender, não acredito que seja necessário — disse
enquanto colocava a camisa e se dirigia para a porta, presumivelmente para
convidá-la a partir.
— Não venho repreendê-lo, Ranulf.
Ranulf ficou paralisado.
— Ah, não?
— Não. Venho dizer que ainda te amo.
— Como pode me querer depois de tudo o que fiz? — perguntou com
receio. — Não deveria me querer. Deveria procurar outro homem melhor,
Beatrice um homem que possa te dar o amor que merece.
—Não posso encontrar um homem melhor, Ranulf. Seu pai e seus irmãos
tentaram acabar com tudo de bom e honrado que havia em ti, mas não
conseguiram. Sofreu e o sofrimento o fez mais forte e melhor. Como não vou
amar um homem que conseguiu ganhar o respeito e a admiração de todos os
habitantes de Tregellas, que conseguiu converter sua guarda na mais invejada
de toda a Inglaterra e que ajudou Henry a vencer um exército de mercenários?
Um homem que, depois de tantos êxitos, diz que só estava cumprindo com o
seu dever, ou ajudando a um amigo. Não se orgulha de nada do que tem feito,
Ranulf, embora devesse fazê-lo.
Aproximou-se dele e pousou a mão em seu braço.
—Tenta tirar a importância de tudo o que faz, acreditando que ninguém vê a
dor que tenta ocultar. Mas eu a vejo, Ranulf, embora se esforce em ocultá-la,
em levar essa solitária e pesada carga. Antes estava muito afetada pelo que
fez. Que mulher não o estaria ao saber que o homem a quem amou durante
meses podia chegar a ser tão insensível? Mas sei que estava ferido quando fez
207
essa aposta, e agora eu não me importo que você tenha causado dor a outros
enquanto a sua não acabava.
— Mesmo assim… — Ranulf tentou interrompê-la.
— Não deveria ter feito o que fez e o remorso o atormenta desde então.
Isso só indica que é um bom homem, um homem com defeitos, assim como eu
os tenho. Todo mundo os tem. Mas Ranulf, quantos nobres seduziram virgens
sem sequer se lamentar? E quantos nobres teriam tratado uma jovem virgem
disposta a se oferecer como você tem feito?
Respirou profundamente e continuou.
— Não percebe, Ranulf? Sua forma de me tratar demonstrou que não é um
imoral e um egoísta que só pensa em seu próprio desejo. Esse jovem que agiu
da maneira como agiu depois de ter sido rechaçado por Celeste não é o mesmo
homem que tenho agora ao meu lado. Se fosse ele, há meses teria terminado
em sua cama.
— Bea — advertiu Ranulf. Pronunciava seu nome como se fosse uma
súplica.
— Vai me dizer para ir? Que deveria partir antes que faça algo irreparável?
— sorriu, mostrando todo o amor que sentia. — Sei que se pedisse que
mantivesse distância, você o faria. Que se dissesse que saísse deste quarto,
obedeceria sem vacilar. Que minha honra está completamente resguardada
contigo.
Uniu as mãos, mostrando com aquele gesto todo seu ardor.
— Mas, meu amor, eu o quero com todo o meu coração, com cada uma das
fibras do meu ser, quero-o tanto como se pode amar. Sou toda sua e sempre o
serei. Por favor, não me peça que vá esta noite, Ranulf. Deixe-me estar contigo,
agora e sempre, para que não volte a estar sozinho nunca mais. Para que
possamos seguir juntos enquanto vivamos.
Ranulf a olhava sendo perfeitamente consciente do que deveria fazer. Pelo
que tinha que fazer. Pelo que sua honra exigia. Pelo que sua consciência o
208
aconselhava. Beatrice deveria partir. Deveria obrigá-la a partir. Beatrice não
deveria ficar ali.
Mas não era capaz de fazê-lo. Não podia rechaçar o amor que oferecia. Não
podia desprezar o presente que lhe dava. Não podia negar seu amor, nem o
consolo que com ele obteria. Não podia deixá-la partir.
Pegou suas mãos e olhou seu doce rosto.
— Diz a verdade, Beatrice? — perguntou brandamente, sem se atrever a ter
esperanças. — Seria capaz de oferecer seu amor a um homem que não
merece?
Beatrice negou com a cabeça.
— Oh, não. Eu entregaria meu amor ao homem mais valioso da Inglaterra.
Sem soltar suas mãos, Ranulf fez o que vinha desejando fazer desde o dia
que compreendeu que o seu sentimento por Bea era muito mais que desejo,
embora não pensasse jamais amar uma mulher o suficiente para lhe oferecer
matrimônio. Ficou de joelhos diante dela e disse com paixão:
— Minha adorada, sábia e bondosa dama, meu lar e meu coração, quer ser
minha esposa?
— Oh, sim! — exclamou Beatrice, com um sorriso mais luminoso do que
aquele com que anunciou o nascimento de Peder. — Oh, Ranulf, é obvio! Claro
que quero me casar contigo!
Fê-lo se levantar e se jogou em seus braços.
—Tinha tanto medo que não fosse me pedir isso nunca e eu não tivesse
outra opção a não ser me retirar para um convento e me converter em monja,
embora é certo que teria sido um fracasso, porque meu querido Ranulf, estou
convencida de que teria morrido de tristeza e…
Ranulf a beijou. Simplesmente, não podia esperar nem um segundo mais.
Beijou-a com todo o amor, com toda a saudade, com todo o desejo, a
esperança e a felicidade que Beatrice lhe inspirava. Beijou-a como vinha
desejando fazer a semanas, inclusive antes do Natal, quando tinha necessitado
209
empregar toda sua capacidade de controle para não beijá-la. Abraçou-a com
força, deleitando-se na alegria que fluía naquele abraço, sentindo que ali, por
fim, nos braços daquela mulher, tinha encontrado um lar. Um paraíso. Um
lugar a que pertencer, um lugar em que sentir-se a salvo e seguro, por mais
que os problemas o acossasse, por muito mal que quisessem lhe fazer.
Beatrice o beijou com o mesmo ardor. Nenhuma dúvida reinava na sua
paixão. Ranulf a amava. Desejava-a. Era dele, assim como ele era dela. Casar-
se-iam, seriam marido e mulher. Já não havia necessidade de continuar
esperando.
Beatrice deslizou as mãos por debaixo da camisa até tocar por fim sua pele
nua, que encontrou firme e quente. O unguento que Ranulf aplicou tinha
suavizado os cortes e os arranhões das palmas de sua mão, assim já não doíam
enquanto o acariciava.
Ranulf se inclinou e colocou ligeiramente o joelho entre suas pernas
enquanto deslizava as mãos por suas costas.
Oh, aquilo sim era um beijo. Um beijo e um abraço como os que Beatrice só
se atreveu a sonhar. Não, corrigiu-se, inclusive era melhor que os que sua
mente de donzela tinha imaginado.
Ranulf desatou o cinturão da bata e Beatrice se separou ligeiramente dele
para facilitar o trabalho. Não conhecia naquele momento nem o pudor nem a
vergonha. A única coisa que sentia era a barreira de linho da anágua que se
interpunha entre as mãos ansiosas de Ranulf e sua própria pele.
Com um gemido rouco, reclinou-se contra ele e deixou que a bata deslizasse
por seus ombros até cair no chão. Sentia a pressão de sua excitação contra ela,
despertando sensações novas e intensas em seu corpo já impaciente.
— Façamos amor, Ranulf — suplicou com um sussurro. — Agora é como se
estivéssemos casados, porque sei que você nunca romperá sua promessa e eu
tampouco o farei.

210
— Minha esposa, minha adorável e querida esposa — sussurrou Ranulf
enquanto a levantava em seus braços e a levava para a cama. — Jamais a
abandonarei.
Beatrice o observava com um desejo ávido e frenético, enquanto ele tirava
as calças e a camisa. Tinha um corpo magnífico da cabeça aos pés. Era
maravilhoso e era dela.
E Beatrice nunca o desejou tanto.

211
Capítulo 15

Beatrice estendeu-lhe os braços em silencioso convite. Não queria falar, mas


tampouco fez falta que o fizesse, porque Ranulf se reuniu rapidamente a ela na
cama, cobrindo-a com seu corpo perfeito. Voltou a beijá-la enquanto deslizava
a mão por debaixo da anágua e lenta, muito lentamente, ia deixando
descoberto sua pele nua.
Beatrice estremeceu ao sentir a mão do Ranulf entre suas coxas.
— Está assustada, Beatrice? — perguntou Ranulf com delicadeza. — Quer
que eu pare?
— Não — respondeu com sinceridade. — Eu acho… acho que gosto. —
Ranulf continuou acariciando-a. Beatrice fechou os olhos e respondeu
ronronando: — De fato, eu gosto muito.
Ranulf sorriu ao ouvir sua resposta. Não gostava de vê-la vacilar, gostava de
vê-la desfrutar de suas carícias. Porque se isso era o que Beatrice queria, ele a
amaria aquela noite e todas as demais.
Aquela primeira vez demoraria muito. Aquele ato não teria nada que ver
com a necessidade de satisfazer os impulsos de sua natureza, nem com a
sórdida sedução que praticou com aquelas jovens anos atrás.
Com Bea queria fazer amor, queria amá-la como nunca amou uma mulher.
E enquanto a beijava e acariciava, compreendeu que era certo. O que sentiu
por Celeste foi uma mescla de admiração e desejo. Jamais tinha imaginado
uma vida com Celeste. Nunca sonhou vendo-a segurando seu filho entre seus
braços. Nunca desejou sentar-se com ela ao calor da lareira para lhe ouvir falar
dos servos, do cozinheiro ou de todas aquelas pequenas coisas que faziam
completa uma vida.
212
— Meu querido e doce anjo — sussurrou, dando-lhe um beijo na testa e
outro na ponta do nariz. — Eu te amo. Amo-te há semanas, há meses. Acredito
que a quero do momento que a vi nas escadas de Tregellas. Mas pensava,
temia…
— Isso já não importa — assegurou Beatrice. — Porque te amo.
— Faz-me tão feliz, Bea!
— Eu também sou muito feliz — respondeu Beatrice com um olhar tão
sedutor que o fez parecer muito mais velho do que era. — A menos que haja
algo que não compreendi bem, acredito que seremos muito mais felizes se
você não parar. Por favor, não pare, Ranulf.
— Obedecê-la-ei encantado, minha rainha, minha imperatriz. Meu amor.
Beijou-a roçando apenas seus lábios e, com a mesma delicadeza, procurou
seu pescoço.
— O que temos aqui? —sussurrou ao encontrar o laço da anágua. — Uma
barreira, temo que tenhamos que derrubá-la.
— E como pretende fazê-lo, sir Ranulf? Neste quarto não há espaço para
uma catapulta.
—A credito que… com os dentes — murmurou, mordiscando o final do
cordão que atava o pescoço de sua anágua até que conseguiu desfazer o nó. —
Conseguido.
— E agora? — sussurrou quase sem respiração.
— Agora reclamarei o prêmio da conquista.
Beatrice fechou os olhos e suspirou quando Ranulf começou a avançar para
seu seio.
— Realmente, este assalto valeu a pena — murmurou Ranulf enquanto
descia com os lábios. — E também valeu a pena esperar.
Beatrice arqueou as costas e acariciou seus ombros nus.
— Não gostei da espera — confessou. — Mas agora, seu magnífico corpo
finalmente é meu.
213
Ranulf procurou o mamilo com a língua e o acariciou, provocando em
Beatrice ondas de renovado desejo.
— Estou encantado de contar com sua aprovação, minha senhora —
brincou.
— Oh, claro que conta com ela — Beatrice suspirou e dobrou os joelhos
para poder aproximar seu corpo ainda mais do dele.
— Ainda não — advertiu. — Porque contigo pretendo fazer as coisas como
eu gosto, e eu gosto de ir muito devagar.
— Mas…
— Nada de mas. Quero que fique tão saciada e satisfeita que não olhe
nunca mais alguém mais jovem que eu.
— Como se eu quisesse um homem mais jovem! — replicou Beatrice,
retorcendo-se de tal maneira contra ele que esteve a ponto de levá-lo ao limite
nesse mesmo instante. — Quero um homem maduro, não um menino.
— Se continuar fazendo isso, — ele advertiu — é provável que termine
demonstrando que posso ser tão impetuoso como um menino no Natal.
— Impetuoso você? Eu gostaria de ver.
— Claro que posso ser impetuoso — prometeu, movendo-se ligeiramente
para que Beatrice pudesse sentir sua potência contra seu corpo. — Sobre tudo
fazendo amor com minha prometida.
Sua prometida! Beatrice mal teve alguns segundos para saborear aquelas
palavras, porque quase imediatamente, Ranulf começou a deslizar a língua por
seus seios e a acariciar lhe entre as coxas. Com ambos os gestos despertou nela
um desejo primitivo e urgente que precisava ser satisfeito de forma iminente.
Beatrice não queria esperar nem um segundo mais depois de ter esperado
tantos meses e estendeu a mão para guiar Ranulf ao seu interior.
Ranulf ofegou enquanto segurava sua a mão.
— Supunha-se que era eu que tinha que ser impetuoso.

214
— Então, seja impetuoso. Porque eu juro Ranulf, que vou terminar
morrendo de desejo.
— Isso eu não posso permitir, minha senhora — respondeu Ranulf.
Suas palavras terminaram em uma mescla de suspiro e gemido enquanto
começava a pressionar para se fundir em seu interior.
Beatrice sentiu o rasgo da membrana e o membro de Ranulf deslizando
dentro dela. Houve dor e provavelmente sangue, mas não se importou. O resto
foi maravilhoso. Eram como marido e mulher, unidos no amor e na paixão.
— Doeu?
— Um pouco — confessou, tentando não pensar nisso e desfrutar da
sensação de sua pele sob suas mãos, daqueles músculos tensos e fortes, da
exploração daquele corpo tão amado.
— Sinto muito — disse Ranulf com voz rouca e Beatrice soube que estava se
responsabilizando por sua dor.
— Quero-o, Ranulf. A dor não é nada — elevou os quadris para ir ao seu
encontro e começou a se mover instintivamente contra ele. Imediatamente foi
recompensada por uma sensação que pareceu com um tipo diferente de beijo,
— sobre tudo quando também posso sentir isto.
Um sorriso fugaz cruzou o rosto de Ranulf, mas desapareceu afogado na
paixão e no desejo assim que começou a empurrar.
Beatrice jogou a cabeça para trás, se retorcendo de prazer enquanto Ranulf,
com sua boca, suas mãos e seu corpo, a fazia alcançar novas alturas de ansiosa
espera. Sobressaltada por aquelas sensações, Beatrice se deixou levar, deixou-
se guiar por seu conhecimento, suas carícias, pelas palavras de ternura que
sussurrava ao ouvido e pelos gemidos que escapavam de sua boca quando a
acariciava.
Seria ela capaz de fazê-lo sentir o mesmo desejo? O mesmo tipo de desejo?
Suas carícias inseguras, seus beijos famintos, podiam excitar tanto como ele a
excitava?
215
Investida de um novo poder, entusiasmada ante o inesperado
descobrimento de que podia ser sua igual na cama, foi respondendo a suas
investidas e movimentos naquele jogo apaixonado. Sentia-se livre para ser ela
mesma, livre de convenções, do papel que tão frequentemente tinha que
desempenhar. Ali não precisava falar para esconder sua insegurança. Ali podia
ser a mulher que sempre tinha desejado ser.
Mas também era uma nova Bea, uma mulher completa, amada pelo homem
que amava.
Seu corpo se esticou como uma corda atada a uma âncora no mar, em meio
de uma tormenta. E de repente foi como se todo o desejo, todos os desejos,
todas suas esperanças, se fundissem em um trovão. Então se encontrou livre
no mar, a mercê da corrente de sua paixão.
Agarrou-se a Ranulf com força. As investidas dele eram cada vez mais
frenéticas e mais fortes; era como se o seu corpo já não estivesse sob seu
controle e talvez assim fosse, da mesma forma que ela não era capaz de
controlar o seu. Com um gemido, Ranulf se esticou durante alguns instantes
para cair depois sobre seus seios.
Durante longo momento, nenhum dos dois disse nada. Eles se limitaram a
permanecer abraçados, ofegando felizes e satisfeitos.

Olhando dissimuladamente os membros de sua tripulação que o


acompanhavam, Pierre acrescentou mais uma tábua dos restos que ficavam do
bote de Gawan ao fogo antes de entrar na gruta.
Enquanto as chamas se elevavam, um de seus homens abandonou a
fogueira para se aproximar dele.
A sombra de Barrabás aumentava até atingir proporções grotescas nas
paredes da gruta enquanto aquele homem enorme, com os ombros de um

216
touro e os braços de um urso se apoiava com uma mão na pedra para poder
manter-se ereto. Na outra segurava uma garrafa vazia.
— Conversamos — anunciou em sua língua de marinheiro, um amálgama de
francês, alemão e italiano que Pierre entendia perfeitamente. — Nós
conversamos que deveria esquecer esse plano de sequestrar à mulher e vendê-
la em Tánger. A viagem até Tánger é muito longa e uma mulher no mar sempre
traz má sorte.
Pierre aproximou a mão lentamente da adaga que levava no cinturão.
Passara dez anos navegando com Barrabás, mas não confiava nele.
— Custa-me acreditar que o valente Barrabás tenha medo de uma mulher.
— Tenho medo é da má sorte. Já estamos nos arriscando muito ao ficar
aqui. Este governador não é como o outro, como o gordo que caiu do cavalo.
— E eu digo que esta mulher pode nos fazer ganhar uma fortuna — replicou
Pierre. — Além disso, caso eu estivesse de acordo contigo, o que não estou,
como sugere que partamos? A chegada de nosso navio não está prevista até
amanhã. O que nos importa um dia a mais?
Barrabás sentou-se pesadamente em uma pedra, do outro lado do fogo.
— Se não tivéssemos destroçado esse barco, não teríamos tido que esperar.
— Teria sido capaz de cruzar o canal nesse barco de pescador?
Barrabás tomou um gole de vinho e secou os lábios com o dorso da mão.
— Poderíamos ter conseguido.
— E também poderíamos nos afogar.
— Pelo menos não teríamos que ficar encerrados nesta cova miserável,
perdendo tempo e esperando a que essa imbecil nos condene com sua má
sorte.
— Não teríamos que nos esconder nesta cova se tivesse matado Gawan
como é devido. Ninguém deveria saber se estava vivo ou morto, como esses
outros dois.

217
— Eu fiz as coisas de maneira certa —respondeu Barrabás antes de beber
outro gole de vinho. — Não deveria ter voltado para a superfície com todas as
cordas e pedras que amarrei nas botas dele antes de atirá-lo na água —
sacudiu sua enorme e feia cabeça. — Deveria ter me deixado utilizar a espada.
Mas não, tive que ouvi-lo gritar como um menino assustado antes de lhe tirar a
vida — imitou o tom suplicante do Gawan. — Minha esposa! Meu filho! —
franziu o cenho. — Eu gostaria de ter quebrado o seu pescoço.
— É uma sorte que não o fizesse — disse Pierre, — ou nesse caso, teriam
ficado certos de que o mataram antes de encontrar o cadáver. Agora a única
coisa que sabem é que caiu do bote.
Barrabás franziu o cenho.
— Mas você usou uma espada com o xerife e com sua mulher.
— Era impossível que suas mortes parecessem um acidente, sobre tudo se
tinha que sair dali sem que ninguém me ouvisse.
De fato, esteve a ponto de ser descoberto. Salvou-se porque a mulher
estava muito assustada para gritar.
Não esperava encontrar uma mulher ali. Acreditava que o xerife estaria
sozinho e vulnerável em sua cama. Tivera que passar horas sob o leito,
escutando o xerife e a sua amante.
— Se não tivesse decidido que ficaríamos tanto tempo aqui, já estaríamos
livres do perigo.
Pierre não podia negar, mas não queria que Barrabás ganhasse aquela
discussão.
— Sem o melhor troféu que vi em toda minha vida? Olhe, direi uma coisa,
essa preciosa loira vale seu peso em ouro, assim vale a pena se arriscar. Hedyn
era muito inteligente e muito perigoso. Mas agora que Myghal é o xerife,
nunca nos trairá. Tem muito a perder.
Barrabás, que seguia com o cenho franzido, bebeu outro gole.

218
— Eu digo outra vez que dá má sorte levar uma mulher em um navio —
repetiu, assinalando Pierre com a garrafa para dar ênfase a suas palavras. — E
Tánger está condenadamente longe.
Com o olhar fixo no homem que tinha em sua frente e a mão no punho da
espada, Pierre se levantou lentamente.
— Está me desafiando, Barrabás? — perguntou sem afastar seu frio olhar de
seu companheiro.
Podia ouvir o resto dos homens murmurando entre eles. Sabiam o que
acontecera ao último homem que tentou questionar a autoridade de Pierre,
como Barrabás estava fazendo. A morte de Guido foi uma cruel lição sobre os
perigos que implicavam incitar um motim.
Barrabás também parecia estar recordando aquele incidente. Retrocedeu
com os braços pendurados de ambos os lados de seu corpo e o medo no olhar.
Mas como Barrabás, numa briga valesse por dez homens, Pierre decidiu dar-
lhe uma segunda oportunidade, embora fosse a última.
— As mulheres podem trazer boa ou má sorte, e para mim está loira pode
nos tornar ricos. Admito que aqui não temos muitas comodidades, mas o que
pode importar isso quando estamos a ponto de nos tornar ricos em nossa
idade? Sairemos amanhã de noite, quando a maré estiver alta. Levaremos a
mulher e não voltaremos por esta zona enquanto esse cavaleiro estiver no
comando do castelo.
Barrabás viu Pierre matar um homem rindo. O viu violar mulheres e o ouviu
alardear suas façanhas. Ele mesmo estava presente quando Guido encontrou
seu lento e tortuoso final. Mas mesmo assim, estava convencido de que ele
tinha razão, e caso sequestrassem aquela mulher, morreriam.
— E se Myghal nos trair e não trazer a mulher? Como conseguiremos
sequestrá-la?
Pierre sorriu friamente. Com crueldade. Como sorria enquanto torturava
Guido.
219
— Myghal a trará, estou certo. Agora, tem algo mais a me dizer, Barrabás?
Ou tiramos as navalhas?
Barrabás não queria que aquela mulher pisasse em seu navio, mas
reconheceu a morte na postura e no brilho dos olhos do Pierre.
— Não — murmurou, elevando a garrafa de vinho e dirigindo-se para o
fogo.
Pierre sentou-se e pensou na longa viagem de lady Beatrice até Tánger.
Sim, era uma viagem muita longa.

Enquanto Pierre enfrentava a rebelião de Barrabás, Bea acariciava o cabelo


de seu amado à luz da vela, que ainda não tinham apagado.
— Agora entendo por que Constance sorri continuamente.
Ranulf riu brandamente, com a cabeça apoiada sobre o peito de Beatrice.
— Beatrice, é uma mulher incrível.
— De verdade?
Ranulf elevou a cabeça e sorriu com os olhos resplandecentes de amor.
— Certamente.
— Não parecia acreditar até que cheguei a Penterwell. Ignorava-me de tal
forma que me dava vontade de gritar.
Ranulf se apoiou sobre um cotovelo e a olhou muito sério.
—Tinha medo do que podia chegar a fazer se me aproximasse de você.
—Como no Natal, quando esteve a ponto de me beijar?
—Sim, como aquele dia. —reconheceu. Tomou uma mecha do cabelo de
Beatrice e o levou aos lábios. — Eu adoro seu cabelo.
Beatrice revolveu os cabelos dele com os dedos.
— E eu adoro o seu —franziu o cenho e acariciou sua barba. — Mas isto eu
não gosto.

220
Ranulf soltou uma gargalhada enquanto ficava de lado para poder
contemplar melhor o sedutor corpo de Beatrice.
— A verdade é que tampouco eu gosto particularmente. Deixei isso porque
me fazia parecer mais velho, para que compreendesse que era muito velho
para me casar contigo.
— Velho? — perguntou Beatrice com expressão cética, deslizando a mão
por seu peito. — Com este corpo?
Ranulf pegou sua mão e beijou a palma.
— Em alguns sentidos, muito velho para você. Não levei uma vida exemplar,
Beatrice.
— Sei —acariciou sua face. — De qualquer forma eu amo você. E o quero tal
como é. Inclusive acredito que poderia me acostumar com sua barba.
— Barbear-me-ei.
— Quando?
— Parece bom que eu o faça agora?
Beatrice sorriu.
— E o que dirá às pessoas amanhã de manhã?
— Que a minha prometida não gostava de minha barba e me pediu que a
tirasse depois de fazer amor apaixonadamente comigo.
— Não é capaz!
Ranulf suspirou dramaticamente.
— Ah, temo que tenha razão. Não posso. Não posso dizer que é minha
prometida até que tenhamos a permissão de Merrick para nos casar.
— Estou segura de que ele não negará.
Ranulf sorriu.
— Felizmente, eu tampouco acredito que me negue, embora acredite que é
capaz de me fazer suar antes de aceitar as bodas — franziu ligeiramente o
cenho e disse, imitando a voz profunda do senhor de Tregellas. — Ranulf, o
que o faz pensar que a merece? — Franziu o cenho mais profundamente e
221
parte da alegria desapareceu de seu olhar. — E o que posso dizer, exceto que
não a mereço?
Beatrice respondeu com uma solenidade inesperada.
— A única coisa que tenho a dizer é que te amo e não me casarei com
ninguém mais, de modo que o melhor é dar o seu consentimento, porque se
não der, fugirei contigo de qualquer maneira.
— Bea! —exclamou Ranulf atônito. — Não seria capaz.
— Claro que seria capaz. Quero você e isso significa que nunca o deixarei —
seu sorriso parecia iluminar todo o quarto. — Assim não terá outra alternativa
a não ser dar o seu consentimento.
—Temo ter subestimado você, lady Bea.
— Acontece com muita gente — respondeu com franqueza. — Mas quando
quero algo, sir Ranulf — murmurou, deitando de barriga para cima e
arrastando-o com ela, — não descanso até que consigo.
— Há algo que eu também quero — respondeu ele enquanto inclinava a
cabeça para beijá-la. — Quero ver seu cabelo estendido sobre a pele de urso.
— E isso é tudo? — respondeu Beatrice, colocando-se sobre a pele e
estendendo sobre ela seu cabelo tal como Ranulf tinha sonhado.
Ranulf curvou seus lábios em um sorriso devastador.
— Agora que o penso, não.

Mais tarde, Ranulf abriu os olhos e lentamente começou a perceber que a


vela se apagara. Passaram muito tempo juntos na cama. Talvez muito tempo,
pensou de repente, despertando bruscamente.
— Carinho, temo que esteja na hora de voltar para o seu quarto — disse,
sacudindo ligeiramente o ombro dela.
Beatrice suspirou e abriu os olhos.
— O que? — perguntou sonolenta.
222
— Deveria voltar para o seu quarto — disse enquanto se levantava da cama.
— Não quero que ninguém me acuse de seduzi-la.
Beatrice sorriu com um brilho travesso em seus preciosos olhos azul.
— Não poderia se limitar a admitir que fui eu que o seduziu? Afinal, fui eu
quem veio a sua cama — enroscou uma mecha de cabelo no dedo enquanto o
via se vestir.— Temo ser muito atrevida no que concerne a você. Acreditava
que íamos tirar a barba.
—Temo que não nós não tenhamos tempo, pelo menos para que me ajude,
embora saiba que você adoraria — Levantou uma perna para colocar uma
bota. — Talvez devêssemos deixar isso até que nos casemos para que faça a
minha barba durante a noite de bodas.
Beatrice negou com a cabeça.
— Nessa noite vou querer fazer outras coisas, meu senhor.
Ranulf franziu o cenho com gesto de desaprovação.
— Realmente, é uma desavergonhada — em seus olhos brilhava um sorriso
— e eu adoro.
Olhou para a janela e ficou repentinamente sério.
— Mas agora tem que ir. Maloren vai ter um ataque se acordar e descobrir
que não está na cama.
Beatrice fez uma careta.
—Tem razão — se mostrou de acordo enquanto se levantava e alisava a
anágua.
— Santo Deus, não pode voltar com esse aspecto — exclamou Ranulf
enquanto colocava a camisa dentro da calça.
— Por quê? — perguntou Beatrice, passando a mão pelo cabelo revolto. —
Tenho o nariz sujo? Aspecto cadavérico?
Ranulf apontou a anágua e, a tênue luz do amanhecer, Beatrice viu as
manchas de sangue deixadas pela perda da virgindade.

223
Tirou a anágua rapidamente e correu para o lavatório de mãos. Havia água
fria no recipiente de água, assim jogou parte no lavatório de mãos e começou a
lavar as anáguas o melhor que pôde.
Ranulf se colocou atrás dela e rodeou com os braços o seu corpo nu.
— Sinto muito — murmurou.
— Deveríamos ter previsto. Mas acredito que tirei a maior parte do sangue.
— Vai voltar para o seu quarto com essas anáguas úmidas?
—Levarei e colocarei para lavar antes que Maloren a veja —o olhou com
expressão interrogativa. — Deveria retornar a Tregellas? Maloren espera ir
depois do que aconteceu com Celeste. Poderia vir conosco e pedir permissão a
Merrick para se casar comigo.
— Sim, acredito que você deveria retornar a Tregellas. Ali estará a salvo,
mas embora deseje me casar contigo com todo meu coração, não posso te
acompanhar. As pessoas daqui ainda não confiam em mim e poderiam pensar
que coloco a minha própria felicidade antes do cumprimento de meu dever e
da segurança deles se eu for a Tregellas antes de ter apanhado os responsáveis
por essas mortes.
Terminou com um preocupado suspiro. Beatrice, embora a contra gosto,
aceitou sua decisão de permanecer ali até que a justiça fosse feita.
— Muito bem —disse, virando-se em seus braços para poder olhar o seu
rosto.
Esboçou um sorriso radiante e olhou-o com determinação.
— Mas nesse caso eu ficarei também. Sua despensa necessita de mais
comida, e também necessita roupa nova e… Oh! — exclamou, abrindo os olhos
desmesuradamente. — Prometi a suas criadas um vestido novo por fazer um
bom trabalho! Simplesmente, não posso ir embora daqui até que não tenha
completado minha promessa. Nem sequer Maloren discutirá quando eu
explicar. Além disso, ela também conseguirá um vestido novo.
Ranulf riu brandamente.
224
— Bea, Bea, surpreende-me continuamente. Há algo que não ocorra a sua
transbordante imaginação? Mas, de qualquer modo, estaria mais segura em
Tregellas.
Beatrice o abraçou e elevou o olhar ofegante para ele.
— Pois eu acredito que não. Acredito que aqui estou perfeitamente a salvo.
—Bea — advertiu, tentando resistir seus persuasivos esforços e ignorar o
fato de que estava nua — também me distrai.
— De verdade?
— Sim, muito.
— Mas se ficar, posso apoiá-lo. Acaso as mulheres não confiam em mim? Já
não te proporcionei informações valiosas?
— Sim, é certo — admitiu.
Além disso, tinha toda uma guarda ao seu serviço, e as pessoas que
morreram estavam em lugares muito vulneráveis, no mar e em uma casa
isolada, não em um castelo perfeitamente protegido.
— No fundo, não quer que eu vá, não é verdade, Ranulf? — deu meia volta,
pressionando seu corpo perfeito contra o dele. — Por favor, deixe-me ficar e
ajuda-lo, Ranulf. Por favor…
— Oh, muito bem, muito bem — olhou-a como se o estivesse coagindo. —
Cederei. Mas serei eu que pedirei sua ajuda na investigação, e não abandonará
Penterwell até que tenha presenteado todas as minhas criadas com um vestido
novo, como prometeu. Embora seja óbvio que eu pagarei — acrescentou.
— Você?
— Parece-me o mais correto — inclinou a cabeça e a olhou com curiosidade.
— Como pensava em pagá-lo?
Beatriz ruborizou-se e esboçou o mais sedutor dos sorrisos.
— Esperava convencê-lo de que deveria recompensar suas criadas por ter
feito um bom trabalho.
Ranulf soltou uma gargalhada e a abraçou.
225
— Que Deus te abençoe, Beatrice, é muito inteligente!
— E já que vou ficar, posso vir ao seu quarto esta noite? — perguntou com
voz sedutora.
— Provavelmente não deveria deixar, mas temo que depois da noite que
passei com minha adorada Beatrice, eu também estou disposto a me arriscar.
Quero mais. Assim, acredito que pode vir aqui sem que ninguém se dê conta,
estarei te esperando.
— Farei todo o possível para poder vir — prometeu. E agora, será melhor
que eu vá antes que Maloren desperte.
Deixou os braços quentes de Ranulf e pegou sua bata. Colocou-a e recolheu
a anágua molhada enquanto se dirigia para a porta. Abriu a porta com infinito
cuidado e, depois de olhar a direita e a esquerda, saiu.
— Esta noite eu a espero, minha adorada Beatrice — disse, dando-lhe um
beijo.
— Até a noite, meu amor — sussurrou ela.
Saiu correndo para o corredor entrou no dormitório, onde descobriu
Maloren esperando-a com os olhos arregalados, as mãos na cintura e olhar
assassino.

226
Capítulo 16

— E então, meu cordeirinho? — perguntou Maloren enquanto Bea fechava


a porta rapidamente atrás dela, para que Maloren não despertasse a todos no
castelo com seus gritos. — Onde esteve?
— Lavando minha anágua — respondeu Bea, e não era do todo mentira.
— A meia noite?
Beatrice esteve a ponto de inventar uma história sobre as feridas da mão,
poderia dizer que se abriram e que o sangue tinha manchado o vestido. Mas
Maloren iria querer ver a ferida.
— Estava com Ranulf — admitiu, enquanto deixava a anágua sobre a mesa.
Encolheu-se quando Maloren levantou os braços, horrorizada e começou a
gritar:
— Oh, meu pobre cordeirinho! Não, não é possível, depois de… como pôde?
esse descarado… esse canalha.
— Maloren, escute — respondeu Beatrice, olhando Maloren com férrea
resolução. — Ranulf não é o demônio encarnado e não tentou me seduzir. Ele
queria me expulsar de seu quarto, mas eu não permiti. Quero-o e sempre o
quererei. É um homem que pecou e sofre por isso terríveis remorsos, mas é um
homem bom e honrado e vou ser sua esposa.
— Sua esposa! — exclamou Maloren.
Aproximou-se da mesa, sentou-se no tamborete e ficou olhando Beatrice
como se esta acabasse de anunciar que era um fantasma.
— Sim, sua esposa — confirmou Beatrice enquanto se aproximava dela.

227
Tomou as mãos de Maloren entre as suas e a olhou com o amor de uma
filha que odiava desiludir sua mãe, mas que ao mesmo tempo sabia que tinha
que fazê-lo.
— Eu o quero ele me quer, vamos nos casar.
— Casar!
— Sim, nos casar — repetiu Beatriz decidida, embora a entristecesse que
Maloren não compartilhasse sua alegria. — Sei que Ranulf fez coisas más. E
acredite-me, Maloren, ele sabe melhor que ninguém. Confessou-me tudo e
com tal arrependimento, que se você o tivesse ouvido, o consideraria um
homem bom e digno de meu amor.
— Mas se o vi beijar Celeste — replicou Maloren.
— Oh, disso é completamente inocente — respondeu Beatrice. — Vou
explicar o que Ranulf me contou sobre seu passado porque a quero como a
uma mãe, Maloren. Não vai gostar, mas é a verdade. E quero que saiba uma
coisa, Maloren: apesar do que ele fez, admiro e respeito Ranulf.
Beatrice não queria mais segredos sobre o passado, mais rumores
ameaçando seu futuro. Conseguiria que Maloren compreendesse e perdoasse
Ranulf pelo que fez, da mesma forma que ela o perdoou. E certamente
Merrick, que manteve um grave segredo durante quinze longos anos, também
o compreenderia e seguiria sendo seu amigo. Constance também estaria de
acordo que Ranulf era mais homem do que foi em sua juventude. Cometeu
enganos, sofreu as consequências e aprendeu com os seus erros.
Beatrice falou com Maloren da morte do irmão de Ranulf e de sua terrível
aposta. Tal e como esperava, afetou-a muito ouvir todas aquelas coisas. Mas
Beatrice preferia que as ouvisse de seus lábios do que chegassem a ela por
qualquer outra fonte.
Quando terminou sua explicação, Maloren se levantou de um salto.
— Esse… esse…!

228
— Tem que compreender por que ele fez todas essas coisas — disse
Beatrice rapidamente, decidida a tranquilizá-la. Tinham feito mal e…
— A ele? — replicou Maloren. — Fizeram mal a esse pobre cão. Se agarrasse
o seu irmão, eu o afogaria com minhas próprias mãos.
— Então, perdoa Ranulf? — perguntou Beatrice esperançosa.
— Você ficou louca? Perdoá-lo? Depois de ter seduzido a essas pobres
virgens e ter roubado a virgindade de meu cordeirinho sem estar prometido a
ela? É obvio que não — os olhos relampejavam pelo aborrecimento. — Mas
não a culpo, meu cordeirinho. Estou certa que disse coisas preciosas e com
esse rosto e esse corpo, deve ser o melhor dos amantes.
— Maloren, Ranulf não me seduziu. Se alguém seduziu alguém, fui eu. E
voltaria a fazer outra vez. Quero-o, Maloren.
Maloren por fim compreendeu que não ia poder dissuadir Beatrice. Voltou a
se sentar.
— E o que vou dizer a lady Constante? —abriu os olhos desmesuradamente.
— E para lorde Merrick?
— Não terá que dizer nada a nenhum dos dois. Ranulf e eu iremos vê-los
quando chegar o momento e pediremos permissão para nos casar. Estou
segura de que Merrick não se oporá.
Maloren enrugou seu ruborizado rosto.
— Nisso tem razão. Lorde Merrick se assegurará de que esse demônio ruivo
se case contigo.
— Maloren, eu gostaria que não odiasse Ranulf — disse Beatrice. Ajoelhou-
se frente a ela e tomou suas mãos. — Se tivesse ouvido o que eu disse,
compreenderia por que agora sou a mulher mais feliz da Inglaterra, salvo por
um pequeno detalhe. A minha queridíssima Maloren não gosta do homem com
vou me casar.
Os lábios de Maloren tremiam.
— Não é suficientemente bom para você. É um homem mau.
229
Beatriz suspirou. Ia ser impossível mudar a opinião de sua criada sobre
Ranulf.
— Lamento que pense isso, Maloren, porque vou me casar com ele.
Suponho que Constance encontrará algum posto para ti em Tregellas e poderá
tomar parte de seu serviço.
—Tregellas? — gritou Maloren, horrorizada. — Está me jogando daqui?
Beatrice esfregou a testa nervosamente.
— Bom, se odeia o homem com quem vou me casar…
— Odeio todos os homens, mas não vou permitir que isso me impeça de
cuidar de seus filhos — anunciou. — Meu cordeirinho e seus cordeirinhos
necessitarão de mim, sobre tudo com um pai como esse. Mas prometo que
não direi uma só palavra contra ele, sempre e quando me permitir ficar
contigo. Em alguma ocasião me ouviu dizer uma só palavra sobre seu pai
enquanto estava vivo? É certo que não.
Era certo, compreendeu Beatrice.
De modo que, embora Maloren não aceitasse plenamente seu matrimônio,
com isso seria suficiente. Mas mesmo assim…
— E se nossos filhos forem ruivos?
— Graças a Deus, você será sua mãe, e eu sua babá. Porque se não… —
sacudiu a cabeça, como se estivesse lamentando o que poderia ser daqueles
meninos sem sua influência. De modo que, apesar da possibilidade de que
fossem ruivos, Maloren dirigiu a Beatrice um sorriso de satisfação. — Assim
está decidido, cuidarei de seus filhos e não direi uma só palavra sobre esse
demônio ruivo do seu marido. Pelo menos lorde Merrick se assegurará de que
se casem. Sir Jowan não conseguiria fazer seu filho ir por esse caminho se
tivesse compartilhado sua cama com ele esta noite. Quando o vi correndo pelo
corredor no meio da escuridão, temia que estivesse com ele… assim, se não
estava com ele, é certo que foi ao encontro de outra mulher.
Para Beatrice era difícil acreditar.
230
— Kiernan não é o tipo de homem que flerta com os seus servos.
— Não me diga que já se esqueceu dessa descarada que se aloja no castelo?

Ranulf teve que fazer um grande esforço para não começar a cantarolar
enquanto cumpria com suas obrigações aquela manhã. Entrou cantando no
salão quando foi tomar o café da manhã. Cantava uma alegre melodia que
ouviu de Henry no passado.
Sua conduta não estava sendo exatamente decorosa, compreendeu Ranulf.
Ele era o governador do castelo, de modo que pelo menos, deveria tentar
comportar-se de forma apropriada.
O que era quase tão difícil como não beijar Beatrice quando se sentou à
mesa.
— Lady Celeste envia suas desculpas e diz que lamenta não poder nos
acompanhar esta manhã — disse Beatrice, dirigindo um olhar que,
imediatamente, despertou a curiosidade de Ranulf. — Dada a ausência de
Kiernan e algo que Maloren viu ontem à noite, acredito que lady Celeste não
vai voltar a nos incomodar.
— De verdade? — perguntou Ranulf, aproximando-se dela tanto quanto se
atrevia.
Seria possível que Celeste tivesse decidido aliviar sua desilusão com o jovem
Kiernan, cuja amizade com Beatrice ele invejava no passado?
— E acredito que nosso nobre amigo poderia ser o responsável por essa
mudança de seus sentimentos?
— Maloren está convencida de que ontem à noite foi ao quarto de Celeste.
— Suponho que não perguntou aonde ia.
Beatrice sorriu e sacudiu a cabeça.
— Não.
— Talvez só se dirigisse para o banheiro.
231
O sorriso de Beatrice desapareceu.
— Oh, não pensei nisso.
— Por outro lado — continuou Ranulf, — não me surpreenderia nada que
estivessem juntos. Celeste sabe que comigo não tem nenhuma possibilidade e
nós dois vimos como Kiernan a olhava quando os apresentamos. Enfim, Celeste
continua sendo uma mulher muito atraente.
Beatrice o olhou nos olhos enquanto sussurrava:
— E pensar que eu acreditava que Kiernan estava desesperadamente
apaixonado por mim.
— Alegro-me que não estivesse — respondeu Ranulf fingindo dureza
enquanto deslizava a mão por seu joelho. — De outro modo, teria que desafiá-
lo para lutar por minha dama.
Beatrice se moveu incômoda na cadeira.
— Já basta.
— Eu gosto — respondeu Ranulf brandamente. — E acredito que você
também. Além disso, não tem nada de mal acariciar sua perna.
— Supõe-se que deveríamos nos comportar corretamente — respondeu
Beatrice. — Pelo menos até que contemos com a permissão de Merrick. Não
quero que todo mundo nos olhe.
— Sempre estão nos olhando. Não deixaram de fazê-lo desde que chegou.
Parecem pensar que somos um casal fascinante.
— Suponho que não poderemos manter durante muito tempo em segredo
que pensamos em nos casar —admitiu Beatrice. Era impossível ignorar ou
evitar aquelas carícias clandestinas. — Maloren estava acordada quando voltei
para o quarto. Tive que explicar tudo.
Ranulf elevou os olhos para o céu e pegou sua mão.
— Pobre, Bea. Por isso Maloren tampouco está aqui? Teve um ataque ao
receber a notícia e agora está deitada na cama, com a mão na testa e
amaldiçoando minha cor de cabelo?
232
Beatrice começou a rir e negou com a cabeça.
— Aceitou o inevitável e está disposta a cuidar de nossos filhos, embora
sejam ruivos.
Ranulf pareceu sinceramente surpreso.
— Não!
— Pois sim, é certo —respondeu Bea timidamente. — Maloren acredita que
nós duas seremos capazes de combater a natureza pecadora dos ruivos.
— Tome cuidado com esses olhares, Beatrice — advertiu Ranulf, — ou sou
capaz de esquecer meu posto de governador do castelo e beijá-la agora
mesmo.
— E provocar um escândalo? — respondeu Beatrice com olhos faiscantes. —
Não se atreveria.
Baixou a voz até convertê-la em um tórrido sussurro, fazendo com que
Ranulf estivesse a ponto ignorar suas obrigações como governador do castelo.
— Santo Deus, Beatrice — suplicou, — tenha piedade de mim, ou terei que
levá-la agora mesmo para a minha cama.
— E você tenha piedade de mim, meu senhor — brincou Beatrice. — Porque
é certo que sabe que não há outro lugar em que mais eu goste de estar —
levantou-se. — Desgraçadamente, minhas obrigações me chamam.
— E a mim, as minhas — ele respondeu. — E será melhor que as atenda.
— Nesse caso adeus, meu senhor.
Ranulf fez uma profunda e formal reverencia.
— Adeus, minha senhora.

Quando Ranulf chegou ao pátio de armas, surpreendeu-se ao ver Kiernan


perto dos estábulos, terminando o que pareciam ser os restos de um pedaço
de pão. Ao ver que Ranulf se dirigia para ele, deixou os restos de pão de um

233
lado. As gaivotas que aguardavam nas ameias se atiraram bruscamente para
buscá-los.
— Bom dia, Kiernan —disse Ranulf, dissimulando um sorriso e reprimindo a
tentação de perguntar por Celeste. — Sentimos sua falta no café da manhã.
Kiernan ruborizou-se.
— Fiquei dormindo.
Estou certo que sim, pensou Ranulf.
O jovem endireitou os ombros e o olhou com determinação.
— Decidi que não é necessário precipitar minha volta a Tregellas — disse. —
Temo que estivesse equivocado a respeito de você e lady Beatrice e que não é
necessário partir imediatamente. Além disso, é possível que ela necessite de
mais tempo para fazer sua bagagem.
Ranulf arqueou as sobrancelhas, fazendo um sério esforço para não sorrir.
— É verdade? Estou encantado de ouvi-lo dizer que já não acredita que sou
um velho libidinoso.
Kiernan ruborizou-se ainda mais.
— Espero que me permita permanecer aqui até que lady Beatrice esteja
disposta a retornar a Tregellas.
Ranulf inclinou educadamente a cabeça.
— É obvio, mas deveríamos pensar em sua falta de bagagem.
Kiernan fez um gesto, tirando importância a aquele detalhe.
— Enviarei um de meus homens ao povoado para que me traga tudo o que
necessito.
— Nesse caso, não vejo nenhum motivo pelo qual não possa ficar.
Kiernan ofegou e enrubesceu ainda mais, como se envergonhasse de seu
alívio.
— Bem, então como eu vou ficar, esperava que me permitisse sair com você
hoje. Ouvi dizer que há problemas na área e me alegraria poder ajudar
enquanto estiver por aqui. Tenho uma visão muito boa.
234
— De verdade? Sim, sim. De qualquer forma, ficarei encantado que nos
acompanhe.
A verdade era que outro par de olhos não poderia causar mal.
Aproximaram-se juntos até Titã, que aquele dia estava particularmente
brincalhão. Ou talvez estivesse contagiado pelo bom humor de seu amo.
Em todo caso, homem e cavalo não demoraram em começar a liderar a
patrulha que cruzava as portas do castelo. Deixaram ali alguns homens, sob o
comando do sargento de armas. Ranulf queria que Gareth, o comandante da
guarda, nascido e crescido em Penterwell, tomasse parte da patrulha.
Era um dia de primavera perfeito, com o céu claro e uma brisa leve.
Montaram em silêncio até que Kiernan perguntou:
— Diga-me, meu senhor, conhecia bem o marido de lady Celeste?
— Não — respondeu Ranulf com sinceridade.
— É uma pena que uma mulher tão jovem e encantadora enviuvasse tão
cedo.
— Estou certo de que lady Celeste não demorará a encontrar outro homem
disposto a se casar com ela — respondeu ele sem se comprometer.
— Entendi que é muito rica, além de muito popular na corte.
Celeste esteve cantando seus próprios louvores na noite anterior, mas a
verdade era que ele estava muito ocupado para prestar atenção.
— Devo entender que não se importaria em oferecer-lhe matrimônio?
Kiernan ruborizou-se e fixou o olhar no horizonte.
— Se for assim — continuou Ranulf, recordando o que Celeste disse e suas
desesperadas súplicas, — desejo-lhes toda a felicidade do mundo. Não acredito
que a vida de lady Celeste na corte seja tão feliz como ela insinua.
Como cavaleiro, Ranulf se sentia obrigado a ser sincero com Kiernan.
— Lady Celeste está longe de ser pobre, mas não é tão rica em termos de
terras ou propriedades como você parece pensar. Contou-me que só tinha
bens móveis, embora, como você mesmo pôde apreciar ontem à noite, possui
235
joias de grande valor. Entretanto, posto que você herdará a propriedade de seu
pai, não acredito que isto tenha por que ser um impedimento para seu
matrimônio se quer pedir sua mão.
— Casaria com ela mesmo que não tivesse nada.
— Fala como um homem apaixonado — afirmou Ranulf. — E eu que
pensava que pretendia se casar com lady Beatrice.
Kiernan o olhou horrorizado.
— Por todos os Santos, não!
— Perdoe se o incomodei — disse Ranulf, procurando não se sentir
ofendido, — mas suponho que não pode se surpreender que eu chegasse a
essa conclusão. Pensava que sua preocupação por ela se devia a esses tenros
sentimentos.
— Eu gosto de lady Beatrice — admitiu Kiernan, — mas jamais me casaria
com ela. Fala muito e seu sentido do decoro… — olhou Ranulf de soslaio, —
deve admitir que careça dele.
— Então por que se preocupa tanto com a sua reputação?
— Porque admiro e respeito lady Constance. Não quero que ninguém da
família sofra por culpa de Beatrice.
— Mas não sabia que Constance e lorde Merrick lhe deram permissão para
vir até aqui?
— Temo que Constance queira tanto Beatrice que concorda com tudo.
— Acredita que Beatrice necessita que a contenham?
— Acredito, meu senhor, que às vezes é uma irresponsável e se esquece de
comportar-se como a dama que é.
— Sim, é certo — respondeu Ranulf. — E acho que é refrescante.
— Um navio, meu senhor! — gritou um dos soldados que ia à frente da
coluna. — Lá na caverna!

236
Ranulf se levantou de sua sela e viu um veleiro de dois mastros entrando em
uma das baías da costa. E depois viu algo mais, um bote cheio de homens
armados que se dirigiam para a praia.
A emoção e a determinação correram por suas veias. Aqueles homens não
podiam pretender nada de bom. Caso contrário, teriam desembarcado no
porto de Penterwell. Iria imediatamente até eles.
Entretanto, apesar de sua resolução, não podia iniciar uma briga sem ter
elaborado antes um plano. Chamou Gareth para que impedisse que vissem
seus homens do navio.
Ranulf se aproximou da borda do escarpado e se inclinou sobre o cavalo
para fiscalizar a praia. Evitou olhar as ondas que rompiam na areia enquanto
fazia um gesto a Gareth para que se aproximasse dele.
— Conhece esses homens?
— Não, meu senhor — respondeu Gareth. — Não nunca os vi.
— E esse navio?
— Tampouco, meu senhor.
Então Kiernan, já estava inclinado sobre o seu cavalo ao lado de Ranulf.
— São contrabandistas — disse. — É um navio francês.
Ranulf o olhou com expressão interrogativa.
— Distinguem-se pelos equipamentos do barco — respondeu Kiernan. —
Qual é o plano de ataque?
— Esta não é sua briga, Kiernan. Retorne a Penterwell.
— Não sou um covarde — respondeu o jovem, ofendido. — Eu não vou fugir
de um confronto.
— E se o ferirem ou o matarem? O que vou dizer ao seu pai?
— Que morri na batalha —r espondeu Kiernan, — como corresponderia a
um jovem nobre.
Ranulf começava a pensar que subestimara aquele jovem. Em todo caso,
naquele momento o valor de Kiernan não era um assunto prioritário.
237
— Não podemos atacá-los daqui. Ver-nos-ão e retornarão ao navio antes
que possamos detê-los. Ou há por aí alguma caverna em que possam se
refugiar?
Gareth negou com a cabeça.
— Não, senhor. Pelo menos, nenhuma que eu conheça.
— E por que acha que desembarcaram nessa baía?
— Poderia ser porque esse caminho é o mais longo — sugeriu Gareth. — Se
tiverem intenção de roubar cavalos ou ovelhas, necessitarão de um caminho
longo para depois chegar à costa. Para isso eles vêm. Esperarão que a noite
caia antes de deixar a praia.
— Há outro caminho para descer?
Gareth assentiu.
— Sim, mas não é fácil.
Apontou para o oeste, para o final da baía, onde um afloramento de rochas
sobressaía vários metros por cima do mar.
— Há outra forma de chegar à praia rodeando essa área. É mais difícil, isso é
certo, mas não acredito que alguém caia no mar se tomarmos cuidado. Por
outro lado, não esperarão que ninguém chegue dali, de modo que, ainda que
caia alguma pedra, não se alarmarão.
Ranulf olhou as ondas que rompiam contra as rochas tentando ignorar seu
temor ao mar.
— Nesse caso, iremos por ali.

Enquanto Ranulf e seus homens se dirigiam para seu objetivo, uma


sorridente e feliz Beatrice ia e vinha ocupada na cozinha, dando ordens para o
jantar. Lady Celeste se dedicava enquanto isso a contemplar a energia
apaixonada dos jovens e, no povoado, Wenna arrulhava o pequeno Gawan,
que dormia placidamente em seu berço, até que chamaram em sua porta.
238
Perguntando-se quem poderia ser e suspeitando que certamente se tratasse
de Myghal com outro de seus presentes, Wenna sorriu e correu para lhe dar
boas-vindas.
Mas em vez de Myghal, encontrou três homens, um deles enorme, outro
sem um olho e um terceiro muito magro, que irromperam bruscamente em
sua casa.
— Não se assuste, ma petite fille — disse o homem com um só olho
enquanto o mais magro fechava a porta, impedindo a saída, — não viemos te
fazer mal.
— Quem são vocês? — exigiu Wenna, retrocedendo até o berço, lutando
contra o medo e tragando a bílis que subia à garganta. — Não me toque ou
gritarei.
— Se gritar, mataremos o seu filho — replicou Pierre em tom tranquilo, mas
expressão implacável.
Sim, eles fariam. Matariam o seu filho se gritasse.
— Assim está melhor — disse o contrabandista pousando a mão no punho
da espada que pendurava em seu cinturão—. Agora, venha conosco, ma belle,
e não lhe faremos nenhum mal.
O homem corpulento, que mais parecia um monstro do que um ser
humano, começou a avançar para ela.
— Meu bebê! — murmurou Wenna, correndo para o berço, agarrando-o
com toda a força de uma mãe determinada a proteger a seu filho. — Não lhe
façam mal!
— Não queremos seu filho, ma belle. Só queremos você.
— Não vou deixar meu filho sozinho.
— Ma petite, está tornando as coisas muito difíceis.
— Não penso em deixar meu filho! Terão que me matar antes!
O homem maior franziu o cenho, mas aquele a quem faltava um olho se
limitou a encolher os ombros.
239
— Oh, muito bem, levaremos o bebê. É certo que também terá algum valor.
Wenna arregalou os olhos e um novo temor aflorou em seu olhar.
— Valerá algo? Para quem?
— Deveria valer ao menos o suficiente para custear sua viagem até Tánger.
Contigo conseguiremos muito mais.
Ao se dar conta que pretendiam vender seu filho como escravo, Wenna se
levantou.
— O deixarei aqui. Eu irei com vocês, mas o deixarei aqui.
O homem torto sacudiu a cabeça.
— Não, ma petite, levaremos os dois e talvez da próxima vez, faça as coisas
como é devido.
— Não, não, por favor! —gritou, caindo de joelhos e unindo suas mãos em
um gesto de súplica. — Meu filho não, por favor!
Pierre lhe deu uma bofetada com o dorso da mão. Wenna caiu no chão,
batendo a cabeça num dos flancos do berço.
Gustaf soltou uma maldição enquanto Barrabás se inclinava sobre a mulher
prostrada no chão.
— Está morta? — perguntou Pierre.
— Ainda respira — respondeu Gustaf.
— Pegue-a e a levaremos.
— E o menino? — quis saber Barrabás.
— A ele também, é obvio —r espondeu Pierre, como se fosse evidente a
resposta. — Enquanto a vida desse menino depender de nós, sua mãe estará
disposta a fazer tudo o que queiramos.

Ranulf seguiu Gareth ao longo do estreito atalho que conduzia até a praia.
Penderam os cavalos longe dali, em uma pequena clareira em um vale, e
depois empreenderam aquele perigoso caminho até a praia.
240
Mais abaixo, as ondas quebravam com força contra as rochas, salpicando
com aquela água salgada e gélida os homens, que terminariam encharcados.
As gotas escorregavam pelos casacos e desciam por seus queixos. Deveriam
estar tremendo de frio, mas o esforço para se moverem ao longo daquele
traiçoeiro caminho era mais que suficiente para ajudá-los a sentir calor.
Mas fizesse frio ou calor, Ranulf teria preferido enfrentar sozinho uma
multidão a fazer o que estava fazendo nesse momento. Mas não queria
mostrar nenhum sinal de covardia diante de seus homens. E tampouco queria
evitar sua responsabilidade na captura de alguns homens que talvez fossem os
responsáveis pela morte de Hedyn e dos outros.
Enquanto avançava atrás do homem da Cornualha, rezava a Deus para que
não o permitisse cair e o deixasse lutar.
Decidido a chegar ao final, Ranulf se concentrou em segurar-se e seguir
avançando. Não olhava a água que rompia a seus pés, e menos ainda quando
chegaram ao final do cabo e as ondas quase os alcançavam.
Gareth parou precipitadamente e levantou a mão. Ranulf o imitou enquanto
Kiernan e outros também pararam em seu lento progresso por aquelas rochas
escarpadas e escorregadias.
— Uma vez rodeado o cabo, é possível que nos vejam se estiverem vigiando
— explicou Gareth a Ranulf. — Não acredito que haja muitas probabilidades,
posto que Deus sabe que ninguém acreditaria que alguém pode chegar por
aqui. Mas não deveríamos esperar que escurecesse para terminar de percorrer
o caminho?
Ranulf era incapaz de se imaginar, ou de imaginar seus homens, retidos
naquele lugar até a noite.
— Se nos virem, com que rapidez eles poderiam escapar pelo escarpado ou
alcançar seu navio?
— Levaria algum tempo, meu senhor. Alcançaríamos antes que chegassem
ao topo ou alcançassem o bote.
241
Se ao menos tivesse alguns arqueiros, pensou Ranulf. Embora não quisesse
matar esses homens. Necessitava deles vivos para que respondessem as suas
perguntas. E além disso, talvez não fossem os malfeitores que pensavam.
— Esperaremos um momento para nos recuperar e depois rodearemos o
cabo, Gareth. A partir de agora, eu irei à frente para me adiantar.
— O caminho é estreito, meu senhor, mas acredito que poderemos — disse
Gareth, segurando a rocha para que Ranulf pudesse se adiantar.

Myghal fixou o olhar no berço derrubado no chão da cabana de Wenna.


Compreendeu imediatamente o que significava.
E soube o que tinha que fazer se quisesse recuperá-la.

Com intenção de se aliviar, um dos contrabandistas se dirigiu à escarpada


parede do cabo, a pouca distância de onde estavam escondidos Ranulf e os
outros. Balançando-se ligeiramente, bocejou e coçou a cabeça. Estava cansado
de esperar e zangado porque haviam dito que não podia acender fogo naquela
praia. A Inglaterra era um lugar frio, lúgubre e tirado da mão de Deus, e se não
tivesse sido pelo vinho que trouxeram do navio, se sentiria como um autêntico
desgraçado. Esperava que Pierre e o resto da tripulação não chegassem tarde
para o compromisso. Já era suficientemente desagradável ter que passar o dia
na praia. A noite seria muito pior.
Murmurou uma maldição enquanto manipulava desajeitadamente a corda
das calças. Quando estava puxando o nó com força, caiu uma pedra de cima,
certamente deduziu, atirada pelo vento. Alegrar-se-ia de voltar para mar, Por
Deus, e de abandonar por fim aquela praia sem fogo.
Caiu outra pedra a seus pés.

242
E se estivesse a ponto de cair uma avalanche? Perguntou-se o
contrabandista elevando o olhar… para ver o semblante colérico do Ranulf, que
naquele momento saltava sobre ele como um anjo vingador.
O contrabandista gritou, mas não teve tempo de desembainhar a espada
antes que Ranulf o derrubasse. Depois de ouvi-lo, seus companheiros se
levantaram e empunharam suas armas.
Bastou um olhar para compreender que eram inferiores em número e
assim, em vez de iniciar uma briga, optaram por correr para o bote. Atiraram as
espadas enquanto corriam para ter as mãos livres quando tivessem que
avançar na água.
Mas a maré não os ajudou e antes que entrassem no mar, Ranulf e seus
homens estavam sobre eles.
Uns poucos saltaram do bote e foram recuperar suas armas. A maioria
abandonou o bote, as armas e seus companheiros para tentar empreender a
fuga pela parede do escarpado. Ranulf enviou Gareth e cinco de seus homens
atrás deles enquanto ele, Kiernan e o resto dos soldados enfrentavam os que
ficavam na embarcação.
Pela extremidade do olho, Ranulf viu que Kiernan se equilibrava sobre um
dos contrabandistas.
— Não o mate — ordenou, levantando suas costas. — Pegue-o, mas não o
mate.
Mas Ranulf se esqueceu de Kiernan no momento em que lhe atacou um
homem com uma cicatriz no pescoço que amaldiçoava em italiano.
— Renda-se e poderá viver — disse Ranulf ao homem que agarrava a espada
como se fosse um pau.
O contrabandista respondeu com uma enxurrada de palavras estrangeiras
pronunciadas por uma boca sem dentes.
Talvez não soubesse inglês, pensou Ranulf, e se assim fosse seria impossível
tirar-lhe alguma informação. Mas aquele tipo amaldiçoara em outras línguas, o
243
que não queria dizer que desconhecesse o inglês, de modo que continuava
sendo preferível mantê-lo vivo.
Ignorando tudo o que o rodeava, Ranulf se concentrou em seu oponente.
«Paciência, moço, paciência», disse, como sir Leonard recomendava a seus
tutelados centenas de vezes. Terei que procurar o ponto débil do inimigo.
Deixar que ele atacasse primeiro. Observar seus movimentos, sua maneira de
brandir a arma. Não se ganhavam batalhas somente com a força, mas também
com paciência e astúcia. A vitória estava na cabeça, estava acostumado a dizer
sir Leonard. Por isso terei que evitar perdê-la.
Enquanto rodeava seu inimigo, Ranulf percebeu que este não só brandia a
arma com estupidez, mas também se movia como um boi sobre duas pernas.
O homem levantou a espada, jogou os braços para trás e esteve a ponto de
perder o equilíbrio antes de atacar. Ranulf se esquivou do golpe com facilidade
e quando o homem retrocedeu cambaleante, viu sua oportunidade. Girou a
espada e o golpeou na cabeça com o punho com todas suas forças.
O contrabandista gritou e cambaleou tentando permanecer em pé. Mas
Ranulf voltou a golpeá-lo e nessa ocasião, seu oponente caiu desmaiado na
areia.
Satisfeito, pois nem se cansara, Ranulf se virou novamente para o barco.
Nesse momento, uma espada deslizou por uma lateral da túnica. E conseguiu
feri-lo.
Levou a mão ao flanco e viu o sangue fluindo pelos seus dedos. Ranulf
fulminou com o olhar o homem que o feriu. Aquele tipo sabia como empunhar
a espada.
Apesar da ferida, Ranulf plantou os pés com firmeza no chão, recordando as
instruções de sir Leonard, e se preparou para se defender.

244
Capítulo 17

O grito horrorizado de Celeste ressoou nos muros de pedra do castelo.


Beatrice não emitiu som algum enquanto corria para os homens
ensanguentados e exaustos que entravam cavalgando no pátio de armas. Ficou
sem fala ao ver Kiernan montado a cavalo e sustentando Ranulf diante dele,
segurando com um braço o corpo de seu amado.
— Kiernan, está ferido? —gritou Celeste. — O que aconteceu?
Kiernan respondeu, mas não era Celeste que ele olhava, a não ser para uma
destroçada Beatrice, que se agarra aos estribos como se estivesse a ponto de
desmaiar.
— Vimos alguns homens que desembarcaram na costa e os capturamos.
Íamos ganhando até que se uniu outro grupo a eles. Nesse momento, feriram
Ranulf.
Ferido. Estava ferido, não morto.
Assim que recuperou parte de sua vitalidade, Beatrice fez um gesto aos
moços para que saíssem dos estábulos.
— Leve sir Ranulf ao seu dormitório — ordenou Beatrice, com a voz quase
convertida em um grasnido.
Enquanto os homens corriam para obedecer, Maloren apareceu ao seu lado.
— Ai, meu pobre cordeirinho! Ai, minha senhora!
Beatrice se endireitou, ergueu os ombros e olhou à criada com expressão
decidida, como correspondia a uma dama forte e poderosa.
— Não sou eu que estou ferida. São Ranulf e alguns de seus homens que
podem necessitar de ajuda. Vá procurar trapos de linho limpo para preparar as
245
ataduras. E necessitaremos também de água quente. Por favor, leve tudo ao
quarto de Ranulf.
Enquanto Maloren corria para cumprir as ordens, Beatrice se aproximou de
Kiernan, ignorando Celeste que esperava ansiosa perto dele.
— O que aconteceu com os contrabandistas? — quis saber.
— Não sei, minha senhora. Quando Ranulf caiu, retiramo-nos porque eram
superiores em número.
Beatrice se voltou para o comandante da guarda, que permanecia frente a
ela suarento e exausto.
— Envie um soldado para reunir os homens do povoado na rua do mercado,
Gareth. Depois de examinar as feridas de sir Ranulf, irei falar com eles. Já
tivemos muita paciência.
Gareth assentiu. Intimidado pela determinação que refletia no rosto de
Beatrice, girou sobre seus calcanhares e se encaminhou para a grande sala.

***

Graças a Deus, a ferida não era muito profunda, pensou Beatrice enquanto
costurava a carne rasgada de Ranulf. Seu atacante deslizou a espada por suas
costelas, sem tocar nenhum órgão vital, e embora Ranulf estivesse
inconsciente, imaginava que seria somente pela perda de sangue. Ranulf
gemeu brandamente quando Beatrice terminou de dar os pontos e começou a
cobri-los de unguento, como tinha visto Constance fazer com Merrick não fazia
muito tempo atrás.
De algum jeito, era uma sorte que tivessem ferido Merrick com uma lança.
De outro modo, Beatrice não teria sabido o que fazer naquele momento.
Felizmente, conhecia os passos a dar e, enquanto o fazia, tentava concentrar-
se unicamente em sua tarefa, decidida a fazer todo o possível para que a ferida
246
de Ranulf sarasse sem infeccionar. Pelo menos estava vivo, pensava. Graças a
Deus, estava vivo.
Enquanto Beatrice trabalhava e rezava ao mesmo tempo, Maloren
permanecia perto dela nervosa mas, graças a Deus em silêncio, dando sem
vacilar e sem medo tudo o que sua ama pedia.
Por sua parte, Maloren a olhava sem ver nela o seu cordeirinho, a menina
de quem cuidou e pela qual tanto se preocupou durante todos aqueles anos.
De repente parecia como a mãe renascida de Beatrice, embora muito mais
capacitada para enfrentar os problemas do que sua pobre mãe esteve.
— Pronto — disse Beatrice, sentando-se e secando a testa com o dorso da
mão. — Fiz tudo o que pude.
— São os melhores pontos que já vi em minha vida — assegurou Maloren.
— Ficará bem, logo verá.
— Rezo para que tenha razão — disse Beatrice, levantando-se. Fique com
ele, Maloren. Não acredito que desperte logo, mas se o fizer, chame Tecca e
diga que traga vinho, água, pão e carne. Tem que recuperar as forças.
— Então você não estará aqui?
— Espero estar, mas antes tenho que falar com as pessoas de Penterwell.

Beatrice olhou os homens reunidos na rua principal de Penterwell e pensou


em Ranulf, jazendo pálido e ferido na cama, na mesma cama em que
compartilharam e consumaram felizmente seu amor.
— Povo de Penterwell — falou com voz forte. — Seu governador e alguns de
seus homens foram feridos. Desde que chegou a este lugar, sir Ranulf tentou
ser um senhor justo. Estava horrorizado pelos últimos assassinatos e tentou,
sem êxito, localizar os culpados. Passou por cima de alguns delitos porque
compreende suas razões para ignorar algumas leis do rei e simpatiza com
vocês. Mas este novo ataque contra o governador e seus homens indica que o
247
tempo da paciência terminou. Assim, peço, suplico — acrescentou com firme
resolução, — que se alguém sabe algo sobre os assassinatos ou sobre os
homens que enfrentaram hoje sir Ranulf e a patrulha, diga-me isso. Não devem
continuar pensando somente em proteger seus interesses egoístas, o
contrabando de estanho, as moedas que ganham com o contrabando.
Acreditam por acaso que esses homens que mataram Hedyn e Gawan se
importam que algo lhes possa acontecer? Pensam que eles intercederão por
vocês ante lorde Merrick? Ou que se apresentarão ante o rei e tentarão evitar
que faça leis mais duras e os obrigue a pagar impostos injustos? Ajudem-me a
encontrar os responsáveis por essas mortes e pelo ataque de hoje. Levá-lo-
emos ante a justiça antes que a situação piore para todos nós.
Respirou profundamente e continuou dizendo:
— Pensem no que disse. Pensem em sir Ranulf, que jaz agora na cama.
Pensem na esperança que tinha que algum de vocês tivesse a coragem e a
sabedoria para dar um passo à frente antes que as coisas fossem tão longe. E
se não o fazem por ele ou por aqueles que morreram, se compadeçam de
vocês mesmos e nos ajudem a procurar esses homens que pretendem nos
fazer mal.
Beatrice permaneceu em silêncio. Já havia dito tudo o que tinha para dizer.
Durante um longo momento, os gritos das gaivotas foram os únicos a
romperem o silêncio da espera.
Ninguém respondeu. Em poucos segundos, as pessoas começaram a se
dispersar entre sussurros.
— Minha senhora?
Beatrice se voltou e descobriu Myghal ao seu lado.
— Sim? — respondeu, perguntando-se se teria algo para dizer que pudesse
aliviar seu desespero.
— É o pequeno Gawan, minha senhora. Passei pela casa de Wenna e está
com febre. Sua mãe está muito nervosa e suplicou que viesse procurá-la.
248
Apesar de preocupada com Wenna e com o pequeno Gawan, Beatrice
vacilou. E se alguém se decidia a falar e ela não estava no castelo para recebê-
lo?
— Por favor, minha senhora — insistiu Myghal, olhando-a com desespero.
— O menino está ardendo em febre. E nem sequer pode mamar.
Aquilo a decidiu. E disse a si mesmo que não tinha por que ficar durante
muito tempo na casa de Wenna. Se Gawan estava muito doente, levaria ele e
sua mãe ao castelo.
Correu junto a Myghal cruzando os páramos até chegar na casa de Wenna.
Myghal retrocedeu para deixar que Beatrice abrisse a porta e entrasse.
E no instante em que o fez, Beatrice teve a sensação de que algo não estava
bem. Não havia fogo na lareira e a casa não estava tão ordenada como…
Sentiu então a afiada ponta de uma espada entre seus ombros.
— Não diga uma só palavra, minha senhora — ordenou Myghal com voz
fraca atrás dela. — Nenhuma palavra.
Beatrice deu meia volta para enfrentá-lo e teve que entrar na casa quando
Myghal deu um passo adiante, com a espada à altura de seu pescoço.
— O que está fazendo? — exigiu Beatrice. — Ficou louco? Onde está
Wenna? Onde está o bebê?
— Levaram e só há uma maneira de recuperá-los — respondeu. — Sente-se
nesse tamborete, minha senhora, e não se mova ou terei que machucá-la.
Beatrice mal podia acreditar no que estava acontecendo.
— Myghal por favor! Se os sequestraram, deveríamos ir ao castelo, procurar
mais homens e…
— Sei quem os tem e o que quer — respondeu Myghal enquanto fazia um
gesto com a espada. — Sente-se, minha senhora.
Beatrice obedeceu. Então, todas as vezes que se sentia incomodada junto a
Myghal, tinha motivos para isso.

249
Entretanto, Myghal convenceu Ranulf de que era um homem digno de
confiança e também Hedyn e Sir Frioc.
Myghal tirou uma corda que estava presa ao cinturão e começou a amarrar
as mãos dela.
— Myghal, por favor —disse Beatrice quando este colocou suas mãos nas
costas, — como vai recuperar Wenna me deixando amarrada aqui? Temos que
ir ao castelo. Embora Ranulf esteja ferido, lá estão seus soldados e o
comandante da guarda. Além disso, também podemos contar com Kiernan.
Nós a encontraremos e…
— Não! Os homens que estão com Wenna a matarão se fizermos isso. Nada
os deterá se não conseguir o que querem. E o que querem, minha senhora, é
levar você.
— A mim? —perguntou horrorizada. — Mas por quê? Para pedir um
resgate?
Estava certa de que Constance e Merrick pagariam o que fosse para garantir
sua volta, mas isso não significava que tivesse menos medo, ou que a situação
fosse menos perigosa. Eram muitas as coisas que podiam acabar mal.
Myghal atou suas mãos com força e Beatrice pareceu ouvi-lo soluçar.
— Solte-me e conseguiremos trazer Wenna e seu filho sãs e salvos —
suplicou, tentando não parecer assustada. — Deixe-nos ajudá-lo. Não utilizarei
isto contra você. Agora não é capaz de pensar com clareza porque a ama e está
desesperado.
— Apanharam-na por minha culpa. E o mesmo acontecerá com você.
— Mas a mim eles ainda não têm. Ainda estamos a tempo de…
— Não! Não temos tempo a perder. Para Wenna e para seu filho é agora ou
nunca. Cale-se agora, minha senhora. Não quero a machucá-la, mas se não
parar de falar, terei que amordaçá-la.
Pois ia ter que fazê-lo.

250
— Disse que conhece esses homens, Myghal? Quem são eles?
Contrabandistas franceses? Está há muito tempo em contato com eles?
Ajudou-os a assassinar Hedyn, Gwenbritha e Gawan?
— Pare de falar! —ordenou Myghal e colocou uma mordaça entre os seus
dentes. — Tenho que recuperar Wenna da única forma possível e isso significa
que terei que trocá-la por ela. Você vale muito mais que ela para esses
homens.
Agarrou-a pelo braço e puxou-a para que se levantasse.
— Sinto muito, minha senhora. Tentei encontrar outra forma de fazê-lo, mas
não encontrei. Se não a levar com eles, venderão Wenna e Gawan no mercado
de escravos, em vez de você.
Em vez dela? Beatrice esteve a ponto de desmaiar ao ouvir o que lhe
proporcionava o destino. O terror e o pânico ameaçavam dominá-la, sobre
tudo porque sabia que Ranulf estava ferido e provavelmente estaria
inconsciente. Como ia poder salvá-la? Quanto tempo passaria antes que
alguém sentisse falta dela?
Quando Myghal começou a arrastá-la para a porta, resistiu o quanto pôde.
Enquanto o fazia, começou a crescer uma ligeira esperança em meio de seu
medo. Maloren logo se preocuparia com sua ausência. E eram muitos os que a
viram partir com Myghal naquela direção.
Maloren diria ao comandante da guarda que ainda não tinha retornado, e
certamente também a Kiernan. De modo que, embora Ranulf não despertasse,
podiam começar a procurá-la. Iriam ao povoado e ali, na casa de Wenna, onde
descobririam que se viu obrigada a partir contra sua vontade.
Quando Myghal abriu a porta e apareceu o páramo deserto, Beatrice tirou
um sapato.
Ao ver que o caminho estava livre, Myghal cruzou com ela a porta, com uma
expressão tão lúgubre como a morte.

251
Ranulf abriu lentamente os olhos e piscou naquela tênue luz. Estava em sua
cama, as cortinas estavam abertas, mas o quarto estava às escuras, iluminado
somente pela luz de uma vela. Devia ser de noite, ou pelo menos, a última hora
da tarde e o flanco doía como se Titã tivesse lhe dado um coice.
Então recordou tudo, o homem torto, o golpe, a dor, o sangue…
— Oh, Ranulf, está acordado!
Era uma mulher que falava, mas não foi Beatrice que se inclinou sobre a
cama, a não ser Celeste.
— Dói? —perguntou solícita.
— Um pouco — mentiu. — Onde está Beatrice?
Celeste franziu o cenho e se virou para escorrer um trapo úmido no lavador
de mãos.
— Foi ao povoado.
— Por quê?
— Queria falar com as pessoas do povoado para que ajudassem a encontrar
os homens que os atacaram, ou algo assim. Eu acredito que deveria ter ficado
cuidando de você, mas não, foi como um general, com maneiras impróprias de
uma dama. Disse a Kiernan que eu jamais teria feito nada igual.
Não, pensou Ranulf, e não pôde deixar de sorrir ao imaginar Beatrice saindo
de Penterwell a grandes passos e ordenando às pessoas do povoado que
apanhassem os contrabandistas que atacaram a patrulha.
— Minha ferida é séria?
— Beatrice teve que dar uns pontos. Juro-te, Ranulf, que quase desmaio ao
ver todo esse sangue nos lençóis. Disse que esse era trabalho para um médico.
Acredito que correu um grande risco ao fazê-lo ela mesmo. O que pode saber
lady Beatrice de medicina?
— Pois sabe bastante — respondeu Ranulf, tentando sentar-se.
— Não sei se deveria fazer isso — advertiu Celeste.
252
— Não é a primeira vez que me costuram — e a verdade era que não se
encontrava tão mal. Doía o flanco ferido e se sentia débil, certamente pela
perda de sangue, mas poderia ter sido muito pior. Poderia estar morto. — E os
contrabandistas? Capturaram-nos?
— Eram em maior número que vocês. Kiernan disse que se somou ao ataque
outro grupo de homens e como você estava ferido, ordenou a retirada.
— Foi Kiernan que ordenou?
— Sim, você estava ferido, quem ia fazê-lo?
— Gareth, o comandante da guarda está perfeitamente capacitado para
assumir o comando da patrulha. Ou ele também está ferido?
— Não — respondeu Celeste com certo mau humor. — Alguns dos soldados
que foram a pé terminaram feridos, mas não gravemente. Foi Kiernan que
conseguiu afugentar o homem que o feriu. Deveria estar agradecido.
— Não sabia, e estou — respondeu Ranulf. — Evidentemente, é melhor
cavalheiro do que pensava.
Celeste pareceu relaxar.
— Quer um pouco de vinho?
— Mais tarde beberei algo. E o xerife? Alguém foi ao povoado para
informar Myghal do ataque?
— Suponho que sim. Eu estava mais preocupada com você. Maloren deixou
pão com manteiga para você e um pouco de carne assada. Gostaria de comer
algo?
Ranulf não estava particularmente faminto, mas sabia que tinha que
recuperar as forças.
— Por favor.
Enquanto Celeste ia procurar a bandeja que Maloren havia deixado sobre o
baú, Ranulf apalpou com cuidado a bandagem, sentindo a essência do
unguento. Estava seguro de que Beatrice fazia um trabalho mais que

253
competente. Santo Deus, teria dado qualquer coisa para ouvi-la discursando
para as pessoas de Penterwell!
A porta se abriu de repente e Maloren entrou com os olhos arregalados.
— Desapareceu! Meu cordeirinho desapareceu!
— Não devemos incomodar sir Ranulf —protestou Celeste.
Celeste poderia ser invisível, pela atenção dada a ela por Ranulf e Maloren.
Ignorando sua dor, Ranulf se sentou na cama, com o coração pulsando a toda
velocidade. Um medo mais terrível do que havia sentido até agora, inclusive
maior do que havia experimentado quando Edmond o colocara sob a água,
rasgava suas vísceras.
— Não há necessidade de ficarmos tão nervosos —respondeu Celeste com
evidente desdém. — Está no povoado.
Maloren se voltou para Celeste.
— Estava no povoado, mas desapareceu!
Ranulf se levantou da cama apesar de sua dor. Estava virtualmente nu, mas
não se importou.
— Dê-me minha roupa e minha espada.
— Não pode se vestir agora! Supõe-se que tem que descansar! — gritou
Celeste enquanto desviava a atenção da atadura para fulminar Maloren com o
olhar. — Aonde pode ter ido?
— Não sabemos, estúpida — respondeu Maloren. — Se soubéssemos, não
teria desaparecido!
Ranulf segurou-se na cabeceira da cama. Não havia tempo para perder com
discussões.
— Onde estão Myghal e Kiernan?
— Kiernan já foi ao povoado para ajudar a procurá-la — disse Maloren,
retorcendo-as mãos. — Mas não sei onde Myghal está.
— Provavelmente esta no povoado com Kiernan. Irei buscá-los.
— Não pode! — protestou Celeste. — Está ferido.
254
— Vou encontrar Bea — replicou Ranulf, falando com o sangue-frio de um
homem amadurecido.
Naquele momento, era acima de tudo, um guerreiro e nada o deteria até
resgatar à única pessoa no mundo que o amava e ele por sua vez, amava com
toda a paixão, a devoção e a determinação de um coração que tinha sido
estéril até conhecer Beatrice.
— Que Deus o benza — soluçou Maloren. — Sei que a encontrará. E que
meu cordeirinho faz bem ao amá-lo, embora seja ruivo.
— Por que coxeia? — perguntou Myghal a Beatrice, que caminhava
ofegante ao seu lado pelo caminho que conduzia à praia.
Beatrice o fulminou com o olhar. Amordaçada, não podia responder e de
qualquer modo, Myghal não teria deixado que o fizesse.
Sem soltar a espada, Myghal a empurrou bruscamente ao chão e agarrou
sua perna. Viu então o pé sangrando.
— Perdeu um sapato.
Como se ela não tivesse notado.
Uma vez mais, puxou-a para levantá-la.
— Está tornando as coisas muito difíceis, minha senhora. Vou levá-la para
Pierre. Nada evitará que eu recupere Wenna e seu filho.
Beatrice tentou dizer que Ranulf o mataria pelo que fez, mas a única coisa
que conseguiu emitir foram alguns sons confusos.
Em todo caso, se salvassem Wenna, ela retornaria a Penterwell e poderia
contar a Ranulf o que aconteceu. Sim, Wenna a ajudaria.
Ou talvez não. Trairia Myghal, que se arriscou a suportar a cólera de sir
Ranulf para salvá-la? Rezou para que assim fosse.
Myghal começou a descer por um caminho estreito até a praia, onde os
esperava sobre a areia uma embarcação de um só mastro. Pensavam
verdadeiramente que iriam navegar nisso? No horizonte começavam a

255
acumular nuvens e Beatrice imaginou imediatamente se afogando no mar frio
e desumano.
Mas talvez fosse melhor destino que o de ser vendida como escrava em
Tánger e terminar tomando parte do harém de um sultão.
Olhou ao seu redor, procurando freneticamente algum indício dos homens
de Ranulf, embora no fundo duvidasse que estivessem vigiando essa área.
Nenhum navio de suficiente envergadura para transladar um grupo de homens
ficaria amarrado entre aquelas rochas.
Mas ainda não estava disposta a renunciar. De modo que, quando Myghal
tentou empurrá-la para o interior do bote, voltou-se bruscamente para trás até
ficar sentada sobre o duro chão.
— Levante-se minha senhora! — ordenou Myghal, puxando-a.
Beatrice negou com a cabeça, decidida a dificultar as coisas tanto quanto
possível. Deu-lhe um chute também, esperando machucá-lo ou, quando muito,
atrasar seus progressos.
— Levante se! — gritou Myghal, agarrando-a com força.
Mas Beatrice continuava lutando, retorcendo-se e resistindo, negando-se a
colaborar.
— Não quero machucá-la!
Pois ia ter que fazê-lo se quisesse que se movesse.
Myghal estava tão assustado e tão furioso, que não percebeu que Beatrice
atirou o outro sapato no chão. Entre outras coisas, porque a jovem lhe deu um
empurrão para distraí-lo.
Myghal voltou a agarrá-la, colocou-a de frente para o mar e a arrastou a
força até o bote. Para Beatrice, era uma agonia se arrastar descalça por
aquelas rochas, mas teria que se arriscar a deixar os pés em carne viva antes de
se meter nesse bote. Uma resistência mais e Myghal terminou jogando-a
dentro da embarcação. Beatrice escorregou e caiu contra uma das laterais do
barco. Foi tal a dor que os olhos se encheram de lágrimas.
256
Mas apesar da dor, sua mente continuava procurando maneiras de evitar
que Myghal zarpasse. Considerou a possibilidade de fazer um buraco nas
pranchas com chutes, mas temia que Myghal pudesse perceber que tinha os
dois pés descalços.
Myghal tomou os remos e começou a empurrar o barco para dentro da
água, roçando ao fazê-lo o fundo do barco contra as rochas.
Possivelmente, pensou Beatrice, ele furaria involuntariamente o barco e
terminariam se afogando.
Myghal empurrou a embarcação de volta para o mar.
Depois, inclinou-se sobre o lado esquerdo fazendo-o se inclinar.
Beatrice, instintivamente, inclinou o peso para o outro lado, tentando
equilibrá-la.
Não, não queria se afogar, disse a si mesma. Lutaria e sobreviveria. E Ranulf
conseguiria encontrá-la.

257
Capítulo 18

Com uma mão no corrimão para não cair, Ranulf desceu as escadas tão
rápido quanto pôde. Maloren correu para ele e Celeste os seguiu. No salão
piscavam as tochas, iluminando os semblantes preocupados dos criados e dos
soldados ali reunidos. Kiernan permanecia no meio de todos eles, com
expressão ansiosa e o rosto de um branco mortal.
Aquele semblante bastou para que Ranulf compreendesse que não
encontraram Beatrice.
Soltou o corrimão, ergueu os ombros e se aproximou a passos largos até
Kiernan. Os criados e os soldados abriram espaço imediatamente.
— Não se sabe nada dela? —perguntou a Kiernan.
Kiernan apontou com a cabeça um objeto que descansava sobre uma das
mesas que ainda não tinham sido recolhidas depois do jantar. Maloren soltou
um grito, mas Ranulf se limitou a cravar o olhar no objeto apontado por
Kiernan. O sapato de uma mulher. Um dos sapatos de Beatrice.
— Onde estava?
— Na cabana da mulher chamada Wenna. Algumas pessoas do povoado
viram lady Beatrice indo com o xerife para lá.
Ranulf olhou Kiernan com firmeza.
— E o que Wenna disse?
— Ela tampouco estava ali. A casa estava vazia e ninguém os viu nem ela
nem o menino.
Ranulf franziu o cenho enquanto se obrigava a afastar seus temores, a
pensar no que estavam dizendo e decidir o que podiam fazer a seguir.
258
— Os três desapareceram?
— E lamento dizer que há algo mais, meu senhor —disse Kiernan. — O
xerife também desapareceu.
— Sequestraram Myghal?
O comandante da guarda deu um passo adiante.
— A última vez que viram lady Beatrice, ela estava com ele, meu senhor. Um
dos pescadores me disse que o bote de Myghal tampouco está no lugar. É
possível que transladasse até outra zona da costa, ou que tenha ido no bote
até outro navio.
Ranulf soltou uma maldição. Recordou que Beatrice se sentia incomodada
quando estava com Myghal, ao menos a princípio, e se amaldiçoou por ter
acreditado tão cegamente nele. Myghal planejou tudo e a chegada de Kiernan
o fez acelerar seus planos.
Mas por que levou também Wenna e o bebê? Se levasse somente Beatrice,
teria pensado que era por sua beleza. Não passou despercebido como Myghal
a olhou no dia de sua chegada.
Mas os motivos de Myghal agir ficariam para mais tarde, se fosse provado
que ele era o culpado. Antes, tinham que encontrá-los.
— É pouco provável que alguém se arrisque a entrar no mar com um bote
como o do Myghal com este vento — disse Gareth com certo otimismo. — As
ondas são muito altas e poderiam afundar o barco, ou parti-lo.
— Nesse caso, deve ter ido ao encontro do navio que vimos antes — sugeriu
Kiernan. — Enviei patrulhas ao longo da costa, em cinco quilômetros em ambas
as direções. Até agora ninguém viu esse barco, nem tampouco o xerife, nem
lady Beatrice, nem Wenna, nem o menino.
—E se tivessem visto, teriam dito algo —a crescentou Gareth convencido.
— Isto não é um sequestro em troca de dinheiro. Temo que tenham tanto
interesse como nós em Wenna e lady Beatrice e por isso querem ficar com
elas, meu senhor.
259
Não, não tinham o mesmo interesse. Não podiam. Ninguém podia desejar a
companhia de Bea tanto como ele. Ninguém a necessitava tanto como ele.
Mas os sentimentos eram uma debilidade.
Exceto quando se convertiam em uma fonte de força, como seu amor por
Beatrice naquele momento.
— Procuraremos pelos caminhos e pelos páramos. Voltaremos a inspecionar
toda a costa — anunciou. — Perto daqui há muitos lugares onde se pode
conseguir um bote, e é possível que se tenha passado por cima de alguma
pista, algum sinal.
Kiernan e Gareth trocaram olhares e foi o primeiro que disse quase a contra
gosto:
— Por mais que desejemos encontrá-las, o sol já se pôs. Teremos que
esperar amanhecer.
Mas para Ranulf importava muito pouco a maldita escuridão.
— Levaremos tochas. Quero que todos os homens que não estão fazendo
trabalhos de vigilância se somem à busca, metade a cavalo e a outra metade a
pé.
— E se os encontrarmos? — perguntou Kiernan com incredulidade. —
Poderemos lutar à noite?
— Se tivesse que lutar até no inferno para resgatar Beatrice, eu o faria.

Os faróis brilhavam na popa do navio na escuridão, como se fossem seres


sem corpo flutuando sobre o mar. Durante um longo tempo, parecia não estar
avançando e Beatrice se atreveu a esperar que a maré ou o vento não fossem
favoráveis e Myghal tivesse que renunciar e retroceder para a costa.
Mas pouco a pouco, foram se aproximando. Beatrice jamais passou tanto
frio como então, entre o vento, a água das ondas que ultrapassavam a
amurada e seus pés descalços. E tampouco nunca estivera tão assustada. Mas
260
também estava decidida a não perder a cabeça. Enquanto estivessem perto da
costa, ainda podia conservar a esperança.
O bote se levantava e caía com as ondas, enquanto ela se agarrava a vida.
Tentava pensar em alguma forma de sair daquela terrível situação, e pensava
também em Ranulf. Estaria acordado? Teriam informado que ela tinha
desaparecido? Alguém teria ido casa de Wenna e teria encontrado o sapato?
Quanto tempo eles demorariam a encontrar o outro? Provavelmente não o
encontrassem até o dia seguinte e Ranulf se empenharia em procurá-la. E isso
não era sensato. Não deveria montar a cavalo nem fazer nenhum tipo de
esforço. Desgraçadamente, duvidava que fosse ser capaz de sentar-se e
esperar. Rezou para que sua ferida não piorasse. A vida não valeria a pena se
Ranulf morresse tentando resgatá-la.
Mas tinha que haver algo que pudesse fazer para se salvar. Se ela saltasse
do bote, provavelmente se afogaria. Tinha as mãos amarradas e a mordaça e o
peso do vestido a afundariam na água.
Mas sempre e quando continuasse viva, tinha a esperança de encontrar a
maneira de escapar, ou de que Ranulf pudesse resgatá-la.
Quando o barco se chocou contra o casco de um navio maior, Myghal a
empurrou até colocá-la em paralelo a uma das laterais do navio e agarrou a
corda que alguns homens da tripulação estenderam para manter juntas as
duas embarcações. Os homens de convés, homens de terrível aspecto,
atiraram outra corda e caíram na gargalhada ao ver que estiveram a ponto de
golpear Beatrice com ela.
— Por aqui, minha senhora — ordenou Myghal. Tinha que gritar para que
pudesse ser ouvido por cima do som do vento. — Amarrarei a corda em sua
volta e a puxarão.
Beatrice negou com a cabeça.
— Minha senhora, não tem sentido desobedecer. Se não o fizer, algum dos
homens descerá do navio, e temo que não seja delicado com você.
261
A ideia de ser maltratada por algum daqueles contrabandistas bastou para
pô-la em movimento.
— Sinto muito, de verdade, minha senhora — repetiu Myghal enquanto
amarrava a corda em sua cintura e tirava por fim a mordaça — mas não tenho
outra opção.
Beatrice já não se importava com o que pudesse dizer, as desculpas que
pudesse inventar.
— Ranulf o apanhará e o matará.
Myghal ficou olhando como se acabassem de lhe dar um golpe mortal.
— Agora! — gritou e começaram a puxar a corda do navio, como se
estivessem subindo parte de um carregamento.
Quando chegou a grade do navio, todos os homens da tripulação estavam
no convés, entre eles, um a quem faltava um olho. Os outros abriram espaço,
assim Beatrice deduziu que aquele era o capitão, no caso de merecer um título
tão respeitável.
Separou-se dos homens da tripulação e se encontrou sozinho com ela,
tentando se equilibrar sobre o convés. Quando Myghal subiu ao navio,
ignorou-o por completo, assim como o resto dos contrabandistas, para
concentrar-se no homem do tapa-olho.
— Suponho que você é o responsável por este navio — disse em tom
zombeteiro.
O homem esboçou um sorriso que transformou seu rosto em uma gárgula.
— Oui, minha senhora. Eu sou o capitão, Pierre de Lessett — fez uma
reverência. — Bem-vinda a bordo.
— Se sou bem-vinda, corte essas cordas. Estão me machucando.
— Não era isso o que pretendíamos — zombou o capitão enquanto tirava
uma adaga do cinturão.
Beatrice engoliu a saliva. Havia ouvido que a arma que matou Hedyn era
estreita e longa, como aquela.
262
Cheirando a vinho, alcatrão, pescado e suor, o contrabandista se colocou
atrás dela e deslizou a adaga entre as cordas. Enquanto o fazia, olhava-a com
expressão lasciva. Beatrice sentiu que a bílis lhe subia à garganta.
— Se tivesse um mínimo de inteligência nesse cérebro — advertiu enquanto
esfregava os pulsos, — deixaria Wenna, o menino e a mim na praia. Porque se
não o fizer, sir Ranulf de Penterwell, sir Henry de Eccelsford e lorde Merrick de
Tregellas, o perseguirão até encontrá-lo e matarão você e toda sua tripulação.
Pierre soltou uma gargalhada tão longa como o grasnido de um corvo.
— Mon Dieu, é formosa e valente. É uma pena que não possa ficar para
mim. Mas devo ressaltar, minha senhora, que não é sensato me ameaçar.
Estamos em meu navio e aqui sou eu quem manda. Não tenho medo nenhum
dos homens que acaba de nomear. Assim que vender você, essa mulher
patética e seu filho, serei um homem suficientemente rico para renunciar à
vida no mar e me retirar para Marsella e passar o resto de meus dias.
—Tem que me devolver Wenna e Gawan! — exigiu Myghal, dando um passo
adiante. — Esse era o trato. Essa é a razão pela qual trouxe lady Beatrice.
Pierre olhou Myghal sem a menor sombra de compaixão.
— Menti.
Myghal nem sequer se incomodou em tirar a espada antes de se jogar sobre
Pierre. Mas foi um ataque inútil, condenado ao fracasso desde o primeiro
momento. Em um abrir e fechar de olhos, os homens da tripulação o deixaram
destroçado sobre o convés.
Beatrice retrocedeu até o corrimão do navio e olhou o bote que tinha
deixado abaixo. Com as mãos desamarradas e livre da mordaça, talvez pudesse
tentar descer até ele, mas deixaria que Wenna e seu filho fossem vendidos
como escravos?
Não, não podia fazer uma coisa assim.
Os homens puxaram Myghal para cima até levantá-lo. Passando a adaga de
mão em mão, Pierre foi avançando em direção ao xerife.
263
— Como já disse à dama, sou eu quem dita as normas neste navio. E como
não vamos voltar nunca por aqui, você perdeu toda sua utilidade.
E, sem mais, cravou-lhe a adaga no estômago.
Beatrice desviou o olhar rapidamente. O xerife gritou em agonia, mas
perdeu a voz quando Pierre retorceu aquela faca em suas vísceras. Com um
som horrível de engasgo, desabou sobre convés.
Apesar do que Myghal fez, os olhos de Beatrice se encheram de lágrimas. A
angústia apenas a permitia respirar.
— Joguem nesse porco na água — ordenou Pierre enquanto agarrava
Beatrice no braço. — E agora, venha minha senhora, acompanhe-me ao meu
camarote.

— Isto é loucura, Kiernan! —gritou Celeste enquanto o via ajustar a sela em


um dos cavalos da guarda que esperavam no pátio de armas. — Com esta
escuridão não verão nada e nos páramos há zonas de pântano e areias
movediças. Enfrentarão todo tipo de perigos!
— Não poderia ficar aqui — replicou Kiernan, voltando-se para olhá-la. —
Não amo Beatrice, mas a considero como amiga e aprecio muito os seus
primos. Quando penso no que Constance sentirá se sua prima não aparecer…
— sacudiu a cabeça e novamente voltou para sua tarefa.
— Lady Constance é mais importante do que eu? E como vou me sentir se
algo lhe acontecer? Meu coração se partirá.
Kiernan olhou Ranulf que estava perto deles e respondeu com voz baixa,
embora fosse pouco provável que Ranulf o ouvisse no meio do ruído dos
homens que estavam preparando os cavalos.
— Importa-me muito, Celeste, muito. Você me deu a melhor noite de minha
vida. Mas devo ajudar a encontrar Beatrice.
— Prometa ao menos que terá cuidado.
264
— Terei muito cuidado, prometo.
Baixou o olhar para o rosto ansioso de Celeste e viu o medo refletido em
seus olhos. Recordou a paixão, as risadas e os sentimentos que afloraram entre
eles na noite anterior. Celeste não possuía a serenidade de Constance. E,
certamente, tampouco a loquacidade de Beatrice. Era uma mulher que sofreu,
que desejava ter um lar. Que precisava dele, da mesma maneira que ele
precisava de seu calor, seu desejo, sua admiração e seu respeito.
Incapaz de resistir, retrocedeu para assegurar-lhe que o que tinham
compartilhado era algo mais que um breve encontro sem importância alguma,
estreitou-a entre seus braços e a beijou sem se importar com quem pudesse
estar vendo-os.

Beatrice cambaleou e esteve a ponto de cair quando Pierre a empurrou para


dentro do camarote. Apoiou-se contra a mesa e imediatamente se voltou,
disposta a arranhar e chutar se aquele homem pensasse em colocar-lhe a mão.
— Minha senhora! —exclamou Wenna.
Estava encolhida em um canto do camarote com o rosto arranhado, o
ombro do vestido esmigalhado e estreitando seu filho contra o peito.
Beatrice só se atreveu a olhar fugazmente para Pierre que, sustentando a
terrível adaga entre as mãos, fechou a porta com um chute. Rapidamente,
supervisionou o resto do camarote, procurando qualquer possível arma.
Não havia nada à vista, nem facas em cima da mesa, nenhum bastão, nada
que pudesse jogar ou com o que bater. Nem sequer um prato ou uma taça de
metal.
Só havia uma mesa, uma cadeira, uma cama de armar presa contra a parede
e uma lanterna pendurada no teto por uma corrente. Talvez pudesse alcançar
a lanterna e jogá-la. A cadeira se movia ligeiramente cada vez que o navio se
balançava; talvez pudesse agarrá-la e atacá-lo com ela.
Agarrou-se na beirada da mesa e começou a avançar para a cadeira.
265
— O que está fazendo, minha senhora? — perguntou Pierre com voz sedosa.
— Pretende colocar essa mesa entre nós? Ou sua intenção é me golpear com a
cadeira?
Beatrice ficou gelada.
— Vê como sou capaz de antecipar todos seus movimentos? Não é tão
inteligente como pensa.
— Ou talvez seja porque já o pegaram em outras ocasiões com uma
cadeirada na cabeça.
Pierre começou a rir. O som de sua risada era tão desagradável como tudo
nele.
— Sim, houve outras mulheres que tentaram impedir que eu satisfizesse
meus desejos, mas assim como elas, não terá êxito.
Levantou a adaga, como se estivesse admirando-a através da tênue luz da
lanterna.
— Acredito que deveria colaborar, minha senhora, a não ser que queira que
essa mulher perca seu filho e talvez sua vida também.
Wenna gemeu e o pequeno Gawan começou a chorar.
— Cala essa criança ou a atirarei pela amurada! — ordenou Pierre com
crueldade.
Tremendo, Wenna abriu o sutiã e começou a dar de mamar para o seu bebê.
Estaria ferida? Teriam-na violado? Perguntou-se Beatrice. Não sabia, mas
pelo menos não estava sozinha. Talvez as duas pudessem encontrar uma
maneira de escapar. Contanto que o bote de Myghal continuasse preso ao
navio, teriam uma oportunidade de fugir.
— E agora, minha senhora, acredito que chegou o momento de chegarmos a
um acordo.
— A um acordo? —replicou Beatrice, obrigando-se a olhá-lo. — Eu não faço
acordos com assassinos.

266
— Pois deveria. De outro modo, esta viagem será muito desagradável. Se
fizer o que digo, tudo será… muito melhor.
— Como posso melhorar uma viagem destinada a me transformar em
escrava?
Pierre se sentou na beirada da mesa e deu umas batidinhas no fio de sua
adaga.
— Posso permitir que se acomode neste camarote ou, se não se comportar
bem, deixá-la com o resto de meus homens. Estou certo que se alegrarão de
ter companhia. E quando chegarmos a Tánger, terá acabado a sua vontade de
brigar.
Embora o estômago tenha embrulhado diante daquela imagem, a mente de
Beatrice continuava correndo a toda velocidade. Não havia sentido apelar para
a bondade ou para a piedade daquele homem, porque não tinha nenhuma. A
única coisa que ele apreciava era o dinheiro.
— E o que valeria se eu chegasse a Tánger nessas condições? — desafiou. —
Temo que muito pouco. Agora ainda sou virgem — mentiu sem o menor pudor.
— Uma virgem é muito mais valiosa para um homem que já tem um harém —
Pierre franziu o cenho e ela continuou pressionando. — Trate-me bem e
poderá conseguir muito dinheiro por mim. E o mesmo digo de Wenna e do
bebê. Wenna é uma mulher bonita e o menino é forte. Qualquer homem
inteligente perceberia que será um homem alto e musculoso. Mas se nos
maltratar e nos fizer passar fome, não terá nada.
Pierre a olhou com desprezo.
— Fala como se fosse uma escrava.
— Conheço de primeira mão a diferença entre criados que são bem tratados
e aqueles que não são.
Pierre se levantou e avançou lentamente para ela. Apesar de sua intenção
de parecer valente, Beatrice não pôde evitar retroceder até que bateu a cabeça
na parede do camarote.
267
— Uma garota inteligente, não é? Talvez deva me esquecer de vendê-la e
ficar com você para mim.
— E o que diria a sua tripulação? Você os fez correr um grande risco para me
sequestrar e depois muda de opinião? Não pediriam algum tipo de
compensação?
Pierre começou a rir e sacudiu a cabeça.
—S acre coeur! Você conhece bem os homens — inclinou a cabeça. —
Pergunto-me como chegou a conhecê-los tão bem se disse que é virgem.
— Uma mulher não adquire sabedoria abrindo as pernas — replicou com
descaramento. — De fato, em alguns casos poderia dizer que se torna uma
estúpida se entrega também seu coração. Sou capaz de imaginar o que pensa
sua tripulação porque meu pai foi um dos homens mais intrigante e mais
ganancioso da Inglaterra. Esteve planejando durante anos o que queria e não
podia fazê-lo sozinho. Necessitava de homens como você e como sua
tripulação, mercenários que só se importavam com o dinheiro. Eu cresci
escutando suas conversas, seus planos e suas mentiras. Sentava-me como uma
boa menina em seus joelhos e aprendia uma lição dupla.
Pierre a olhou com receio. Beatrice reconheceu em seu rosto a dúvida e a
insegurança e não pôde evitar uma ligeira sensação de triunfo.
— E há algo mais que, obviamente, você não considerou. Se me vender, tal
como planejou, o homem que me comprar será um homem rico, e os homens
ricos são poderosos. Eu sou uma mulher atraente e durante séculos e séculos,
as mulheres atraentes conseguiram dos homens tudo o que quiseram.
Encontrarei a maneira de fazer com que esse homem se volte contra você.
Transformá-lo-ei em seu inimigo.
— Então já estarei em Marsella — zombou Pierre. — Ali não poderá me
prejudicar de forma alguma.
— Os homens ricos podem contratar assassinos a salário. E pode estar
seguro, Pierre, de que falarei de você como se fosse o demônio encarnado.
268
Contarei ao meu dono um sem fim de histórias sobre como me forçou e sobre
as coisas que me obrigou a fazer.
Falava com tal convicção que parecia que todas aquelas coisas aconteceriam
de maneira inexorável. Continuou dando rédea solta a sua imaginação.
— Acaso duvida que se eu tentasse, poderia cativar um homem para que
fizesse o que eu quero? Que poderia fazê-lo parecer tão terrível que ele
pensasse que estava fazendo um favor à humanidade ao acabar com você? E
não terminarei ai. Contarei que não só é um contrabandista, mas é também
um espião. E, nesse caso, meu senhor se veria obrigado a fazer algo para detê-
lo.
— Sou um contrabandista, não um espião! Jamais trabalhei para a Coroa
nem para os nobres — Pierre tinha que se esforçar para não perder o controle.
— Além disso, estaria muito longe de seu alcance.
— Nesse caso, direi que tem montada toda uma rede de intrigas em
Marsella, que ali está o centro de uma grande conspiração contra seu país.
Contarei todas as coisas que ouvi dizer a bordo, do dinheiro que pretendia
conseguir e de como ria da gente de seu país e zombava de sua religião.
— Não pensará em fazer nada parecido!
— Ah, não? E o que teria a perder? Direi ao meu amo que me apaixonei por
ele, que sua potência na cama conquistou meu coração e que estou tentando
salvá-lo de seus ardis. Os homens ricos costumam ser vaidosos. E que homem
não acreditaria que suas habilidades na cama fizeram uma mulher se
apaixonar?
Pierre retrocedeu para a porta, olhando-a com incredulidade.
— Você está… completamente louca!
Beatrice avançou para ele. A presa se converteu de repente no predador.
— Sou uma mulher que logo venderão a um homem rico. Assim sou uma
mulher disposta a fazer tudo o que esteja em meu alcance para causar sua
morte.
269
— Cale-se ou a matarei! — rugiu Pierre, levantando a adaga como se
realmente pretendesse fazê-lo.
— E então o que diria sua tripulação? De onde eles tirariam proveito? E
acaso acredita que minha morte deteria sir Ranulf, sir Henry e lorde Merrick?
Que retrocederiam em seu intento de achá-lo e levá-lo perante a justiça?
— Certamente que não — interveio de repente Wenna, sem se levantar do
chão. — E também as pessoas de Penterwell se unirão a eles. Passam muito
tempo imaginando que é você que está por trás de todos esses crimes. Eles
conhecem seu nome, seu navio e conhecem seus homens. Se nos matar,
contarão tudo para sir Ranulf. Bem, certamente já o fizeram. Estúpido, levou a
sua dama e agora mesmo todos eles desejam sua morte tanto como eu.
Com o rosto contorcido pelo medo, Pierre procurou com estupidez o
ferrolho da porta.
— Agora mesmo é homem morto — gritou Beatrice enquanto Pierre
fechava a porta atrás dele.

270
Capítulo 19

Só a força de vontade mantinha Ranulf sentado na sela enquanto


cavalgavam ao longo da costa, sob a tênue luz do amanhecer. Teria preferido ir
a pé, como os homens da patrulha, que passavam o pente fino
cuidadosamente no terreno, mas não se atrevia a desmontar. Temia desmaiar.
Por outro lado, não teria se importado em ir se arrastando pelo chão,
examinando cada pedra, cada calhau, cada pedaço do caminho, procurando
qualquer rastro que indicasse que Beatrice, Wenna ou Myghal tinham passado
por ali.
— Ranulf!
Ranulf se voltou e viu Kiernan galopando em seu cavalo até ele.
— Encontramos outro sapato! — gritou.
— Onde? —perguntou Ranulf quando Kiernan o alcançou.
— A um quilômetro e meio daqui, em umas rochas perto da praia. Seus
homens me disseram que ninguém utiliza esse lugar para amarrar um navio
porque é muito rochoso, mas que poderiam fazê-lo. E um dos granjeiros que
tem o rebanho perto da baía, diz que ontem à noite viu o navio francês. A
julgar pela direção em que navegavam, é possível que se dirigissem para a
França.
— Meu senhor! — gritou Gareth, fazendo gestos para chamar sua
atenção.— Há algo entre as rochas! Parece um cadáver!
Meu Deus, que não seja Beatrice! Ranulf rezou com ardor enquanto
chamava um de seus homens para que o ajudasse a desmontar.

271
Enquanto se aproximava, Gareth e outros três soldados avançaram sobre as
rochas.
—É Myghal, meu senhor — gritou Gareth. Aproximou-se dele para examiná-
lo. — E por todos os Santos, está vivo!
— Traga-o aqui —ordenou Ranulf.
Os quatro homens levantaram Myghal, segurando-o pelos ombros e pelas
pernas e retornaram até onde estava Ranulf.
Assim que o deixaram no chão, Ranulf se ajoelhou com cuidado ao seu lado.
— Myghal! — gritou, tentando despertá-lo. — Myghal!
Myghal começou a piscar fracamente e Ranulf perguntou:
—Onde está lady Beatrice? E Wenna e seu filho?
Myghal tossiu e cuspiu água do mar antes de gemer e fechar os olhos. Movia
as mãos para seu estômago e sua roupa rasgada. Ranulf abriu o tecido e viu o
buraco deixado pela adaga. Estava sangrando e evidentemente, Myghal já
havia perdido muito sangue.
Apunhalaram-no e o jogaram ao mar. Quem quer que tenha feito,
provavelmente pensava que ele morreria quando chegasse à praia. Um terrível
fim, embora não o suficiente se por culpa da traição daquele homem, Beatrice
desaparecesse para sempre do seu lado.
Esbofeteou Myghal para que ele despertasse.
— Onde está lady Beatrice?
Kiernan se ajoelhou na frente de Ranulf e estendeu-lhe uma garrafa de
vinho.
— Tente com isto.
Ranulf abriu o plugue e jogou vinho na garganta de Myghal. Este tossiu e
cuspiu enquanto abria os olhos lentamente.
—O nde está lady Beatrice? — repetiu Ranulf.

272
Myghal moveu os lábios e Ranulf se aproximou para ouvi-lo. Não se
importava que os pontos do flanco saíssem. E não dava nenhuma atenção a
dor enquanto escutava no sussurro de Myghal.
— No navio de Pierre.
Houve sussurros entre os homens até que Ranulf levantou a mão, pedindo
silêncio.
— Perdoe-me —ofegou Myghal, — tive que levá-la até ele. Estava com
Wenna — Myghal fechou os olhos, mas não pôde impedir que uma lágrima
escapasse de um deles. — Ele também matou Gawan. E Hedyn, e Gwen… —
respirou fundo.
— E para onde eles levam Bea? Para França?
—Não… —fechou os olhos e inclinou a cabeça como se fosse um boneco de
trapo.
Ranulf o agarrou pela túnica, levantou e o sacudiu angustiado.
— Para onde a levam?
— Para Tánger, ao mercado de escravos.
Oh, Deus.
Myghal se agarrou a túnica de Ranulf e se levantou ligeiramente.
— Ele matou Gawan. Eu o paguei para que o fizesse. Queria Wenna, amava-
a, mas ela o escolheu — engasgou e começou a se inclinar para o chão. —
Perdoe-me.
Ranulf conhecia a dor do rechaço, conhecia muito bem. Podia compreender
o sofrimento, o orgulho ferido e o desespero capazes de empurrar um homem
para o assassinato.
— Perdoo.
— E que Deus me perdoe também.
— Estou certo que com sua infinita misericórdia ele o fará —disse Ranulf
enquanto Myghal levantava os olhos para o céu e deixava escapar seu último
suspiro.
273
Ranulf se levantou lentamente. Naquele momento não podia pensar em
Myghal, nem no erro que cometeu ao confiar nele. Tinha que salvar Beatrice.
Devia salvá-la. E nada o impediria de ir até os confins da terra para procurá-la.
Seria capaz de enfrentar até o violento mar.
— Necessito um navio —disse olhando Gareth com firmeza.
— No cais de Penterwell há um navio mercante suficientemente rápido para
alcançar o navio francês —respondeu o comandante de sua guarda.
Ranulf assentiu e começou a caminhar para Titã.
— Mas se aproxima uma tormenta — advertiu Gareth.
Ranulf olhou o comandante por cima do ombro e a expressão de seu rosto
disse tudo.
— Vou com você — se ofereceu Kiernan.
— E com tormenta ou sem ela, também irão meus homens e eu — se juntou
o capitão.
O estômago de Ranulf dava reviravoltas cada vez que o navio enfrentava
uma daquelas ondas de mais de três metros. Agarrava-se as cordas da proa
com uma força desesperada. O vento e a chuva açoitavam seu rosto.
Aquele era a pior de seus pesadelos: estar em um navio em meio de uma
tormenta, um navio que parecia um frágil brinquedo a mercê do vento e do
mar enquanto a água parecia estar esperando para engoli-lo como um Deus
furioso.
Kiernan foi caminhando pela proa para se reunir com ele.
— O capitão diz que só um contrabandista ou um louco sairia para navegar
com este tempo.
Ranulf não respondeu enquanto lutava contra o vento e seu estômago
revolto.
Kiernan o olhou com compaixão.

274
— Pelo menos vamos a favor do vento. Acredito que se não fosse assim, o
capitão teria se negado a zarpar, não importando o que dissesse o proprietário
do navio.
— Se ele tivesse se negado, nem o capitão nem o proprietário teriam sido
bem recebidos em Penterwell, nem em nenhum porto que esteja às ordens de
lorde Merrick.
Felizmente, não foi necessário nenhuma ameaça. Teria que ter mais
coragem que a maior parte dos homens possuía para negar algo a Ranulf
naquele dia, assim o proprietário do navio deu sua permissão sem vacilar.
— Quanto tempo demorará em alcançá-los?
Kiernan se agarrou a amurada enquanto o navio se levantava para se
sobrepor a uma onda.
— Não sei, mas o capitão está fazendo tudo o que pode e este é um bom
navio.
E então, como se Deus tivesse ouvido sua pergunta, um dos homens gritou
da ponte.
— Ali! Proa a bombordo!
Com o coração transbordante de esperança, Ranulf olhou entre a chuva:
— Vou a por você, Beatrice — sussurrou, imbuído de uma nova vitalidade.
— Já vou.

— Mais vela! — Pierre gritava para seus homens enquanto ele tomava conta
do leme. — Soltem as velas!
— Rasgarão — gritou Barrabás por cima do som do vento. — Se não
arriarmos as velas, nós as perderemos. Deveríamos nos aproximar da praia.
— E deixar que nos alcancem? —r espondeu Pierre, olhando por cima do
ombro o navio que cada vez estava mais perto deles. — Já estamos muito
perto da praia. E pode haver rochas.
275
— Já disse que as mulheres nos trariam má sorte! — gritou Barrabás. A
chuva encharcava o seu rosto feroz. — Vai matar a todos nós, bastardo!
Pierre se agarrou ao leme com força enquanto se balançava com o
movimento do navio.
— Ainda continuo sendo o capitão!
Por cima do uivo do vento, um grito rasgou o ar; imediatamente, viram
Gustaf caindo do cesto de gávea até o mar rugiente.
— Viu? Maldito seja! — Gritou Barrabás, secando a água do rosto.—
Trouxeste sobre nós uma maldição! Solte o leme, maldito seja.
Barrabás deu um empurrão em Pierre e girou o navio para terra.
— Não vou permitir que mate a todos por culpa de uma mulher.
— Estúpido. Você não conhece esta costa tão bem como eu. Há rochas…
— Há uma baía, não é verdade? — gritou Barrabás a um dos homens que
caminhavam pelo convés.
Agarrando-se com os dois braços a um dos mastros do navio, o
contrabandista apontou para a costa.
— Não podemos ficar ali — protestou Pierre. — Encontrar-nos-ão e nos
enforcarão.
— Não se nós os matarmos antes — replicou Barrabás com os olhos fixos na
costa.
Não viu o brilho da adaga que o matou, degolando-o de tal maneira que o
único som que fez ao morrer foi o de seu próprio corpo ao se chocar contra o
chão. Tampouco ouviu o rangido da madeira estilhaçada, nem sentiu a
sacudida do navio ao se chocar contra uma rocha.

***

276
Beatrice e Wenna ouviram o rangido da madeira justo no momento que o
navio parava bruscamente, atirando-as ao chão.
— Encalhamos — gritou Wenna enquanto o navio balançava, empurrado
pelas rochas.
Assim como Beatrice, ainda estava segurando o pé da cadeira que Wenna
colocara sobre a mesa. Pouco a pouco, foi engatinhando para se certificar que
Gawan estava no leito improvisado para ele na cama de armar.
— Pierre e sua tripulação agora terão algo mais para se preocuparem —
disse Beatrice. — Não pensarão em nós.
Levantou com dificuldade e com renovada determinação, levantou os
ombros e tentou abrir a porta.
— Encalharam! —gritou Kiernan.
Perfeitamente consciente do que isso queria dizer, Ranulf fixou o olhar no
navio. A embarcação dos contrabandistas devia ter se chocado contra uma
rocha ou um recife. Mas embora tenha deixado de se mover, se não o
alcançassem logo, o navio poderia ser levado pelas ondas, e todos seus
ocupantes morreriam afogados.
Não, prometeu em silêncio. Salvaria Beatrice e também o bebê e Wenna.
Enquanto vivesse, não perderia a esperança. Alcançariam o navio e os
encontrariam antes que o casco se rompesse e morressem congelados naquela
água gelada.
Uma vez mais, gritou ao capitão para que se aproximasse do navio o
máximo possível e ordenou aos arqueiros que preparassem suas armas.
O capitão não protestou. Jamais viu uma determinação tão feroz como a
que refletiam os olhos de Ranulf quando pediu o navio.
Ranulf mantinha o olhar fixo na embarcação dos contrabandistas enquanto
pedia a Deus que o permitisse aguentar até que pudesse salvar Beatrice,
Wenna e seu filho. Continuavam se aproximando e graças a Deus, o navio
continuava em pé.
277
Logo o alcançaram e depois que seus homens se asseguraram que não havia
mulheres no convés, Ranulf ordenou aos arqueiros que ateassem fogo. Uma
chuva de flechas cruzou a água, ajudadas pelo vento, e logo se ouviram os
gritos de seus destinatários.
Continuavam se aproximando e o capitão gritou para que Ranulf se
preparasse para abordar. Com o coração palpitante, Ranulf agarrou uma corda
amarrada a um gancho que tinha levado do castelo. Normalmente, utilizavam
esse tipo de corda para escalar os muros dos castelos inimigos, mas também
serviriam para aproximar o navio dos contrabandistas e poder abordá-los de
um salto.
Ele sabia que não cairia entre as duas embarcações. Não, e tampouco o
fariam Kiernan e seus homens. Ao menos se podia confiar na justiça divina.
Como se Deus estivesse atendendo uma vez mais suas ferventes súplicas, ou
talvez pela proximidade da costa, o vento começou a amainar. As ondas
também eram menores, embora continuassem sendo suficientemente altas
para empurrar o navio contra as rochas.
Enquanto se preparavam para abordar o navio, puderam ver os
contrabandistas no convés, armados, esperando com expressões ferozes e as
armas em punho. Sem dúvida alguma, preferiam a morte rápida da espada a
terminar afogados na água ou pendurados em uma corda.
Não se via as mulheres em nenhuma parte. Certamente, estariam trancadas
em um camarote, possivelmente amarradas. Elas seriam as primeiras a se
afogarem no caso do navio se partir.
Apertando os dentes, Ranulf lançou o gancho. Pela primeira vez em sua
vida, se deixou levar pela impaciência e o gancho caiu ao mar. Recolheu-o
rapidamente e se preparou para lançá-lo outra vez. Enquanto isso, Kiernan
arremessou seu próprio gancho e conseguiu enganchá-lo na popa.
— Vamos! — gritou o capitão mercante. — Não é na popa onde
pretendemos ir.
278
O capitão continuou aproximando o navio enquanto Ranulf se preparava
para atirar sua corda.
— Agora, senhor! — indicou. — Lance-o agora!
Ranulf atirou o gancho com todas as forças nascidas do desespero e
conseguiu cravá-lo no corrimão do convés. Imediatamente, mais três ganchos
saíram voando do meio do navio.
Ranulf amaldiçoou sua ferida, que não o permitia ajudar a aproximar os
navios. Mas outros estavam em condições de fazê-lo e trabalhavam nisso,
Kiernan inclusive. Empurrando com força e com movimentos sincronizados,
conseguiram aproximar o navio mercante do navio dos contrabandistas.
Ranulf não tinha medo do perigo que enfrentaria quando estivesse no
convés e tampouco vacilou quando chegou o momento de se preparar para
abordar o outro navio. E assim que teve possibilidade de fazê-lo, saltou.
Uma vez ali, levantou-se e se encontrou rodeado por três homens de
aspecto selvagem; três contrabandistas que estavam desesperados. Não se
renderiam; sabiam que quem sobrevivesse a aquele confronto, terminaria
enforcado.
Mesmo assim, tampouco tinham muitas possibilidades de acabar com vida
frente à raiva de Ranulf. Este brigou sem pensar em sua própria vida, sem
pensar na ferida, nem no sangue que emanava de seu rosto. Aquele não era
lugar para agir com delicadezas. Aquela era uma batalha que tinha que ganhar,
assim brigava com rapidez e força e não demorou a atravessar o ombro de um
dos homens, que caiu cambaleando para trás.
Os outros dois fugiram quando Kiernan e parte dos homens da guarda de
Penterwell abordaram o navio.
Ranulf arremeteu novamente contra eles, mas seus oponentes tentaram se
afastar de seu alcance. E então, quando estava lutando com um dos piratas a
sua frente, um terceiro homem atacou-o pela lateral.

279
Desgraçadamente para aquele homem de um olho só, não foi treinado por
sir Leonard de Brissy. Se assim fosse, teria se dado conta de que o treinador de
Ranulf e de seus companheiros se assegurou de que tivessem o instinto bem
afiado.
E foi o instinto que naquele momento foi em socorro a Ranulf que, sem
pensar de forma consciente, girou ao sentir que algo se movia perto dele e
cravou a espada no peito de Pierre.
Com um grunhido, o contrabandista foi retrocedendo até se apoiar no
corrimão do navio e no último momento, cair para trás. Ranulf viu a careta
terrível de seu rosto enquanto levantava a mão desesperado, procurando algo
para se agarrar antes que uma onda o engolisse.
Ofegando como se também estivesse se afogando, Ranulf deu meia volta. O
resto dos contrabandistas, ou estavam brigando com Kiernan e seus homens,
ou estavam mortos no convés.
Com um lado de seu corpo ardendo e preso a uma forte dor, Ranulf viu dois
homens bloqueando uma porta, como se estivessem de guarda. Ou
protegendo algo muito valioso.
Lançando seu grito de guerra, Ranulf correu para lá.
Kiernan se uniu a ele e os dois contrabandistas não tiveram oportunidade de
se defender.
Assim que acabaram com eles, Ranulf correu para a porta.
— Bea, Bea! — gritou, enquanto tentava derrubar porta abaixo com os
ombros.
Naquele momento, a madeira do navio voltou a ranger.
Ranulf conseguiu quebrar a porta e se encontrou de repente, em um
estreito corredor com uma porta no final.
— Ranulf! Estamos aqui, Ranulf — gritou Beatrice de dentro do camarote,
golpeando a porta com os punhos.
Graças a Deus! Graças a Deus!
280
Ranulf correu até lá e empurrou com toda a força de seu peso. A porta se
fez pedacinhos.
E ali estava Beatrice, afastando desesperada a madeira do interior do
camarote.
— Está ferido!
— Não é nada — respondeu Ranulf enquanto ele também começava a abrir
o buraco feito na madeira para que Beatrice e Wenna pudessem atravessá-lo.
Uma vez mais, o navio deu uma sacudida antes de se chocar contra outra
rocha.
Kiernan apareceu nesse momento e se somou a seu esforço, até que
Beatrice foi capaz de abandonar o camarote.
Jogou-se então nos braços de Ranulf sem dizer nada, porque seu coração
estava muito cheio para que pudesse falar. Tampouco Ranulf falou, porque não
era capaz de encontrar as palavras adequadas para fazê-lo. Mas
permaneceram abraçados durante um breve instante antes que Ranulf a
soltasse e a empurrasse delicadamente para Kiernan, que por sua vez a deu
para Gareth, como se houvesse um incêndio e ela fosse o balde que ia
passando de mão em mão. Enquanto isso, Ranulf ajudou Wenna a cruzar a
porta com seu filho nos braços. Também eles foram passados de um a outro,
até que estivessem todos em uma das laterais do navio. Beatrice e Wenna
tentavam não olhar os cadáveres que jaziam sobre o convés encharcado de
sangue.
Os homens de Ranulf colocaram uma prancha para passarem para o navio
mercante. Aquela perigosa ponte era a única via de acesso ao outro navio.
— Vá engatinhando — recomendou Ranulf a Beatrice. — Ou deite de
barriga para baixo e vá se arrastando.
Engatinhando chegaria mais rápido, pensou Beatrice. Mas…
— Wenna e seu filho deveriam passar primeiro — disse em um tom tão
autoritário como o de Ranulf.
281
Este compreendeu que não seria sensato protestar.
— Gareth — ordenou. — Coloque-se na prancha que eu te passarei o
menino. Depois, passe-o a algum dos homens do navio.
Ordenou a dois soldados que segurassem a prancha e gritou a um dos
arqueiros que estavam no navio mercante.
— Sente-se na prancha e se prepare para receber o menino.
Gareth percorreu parte da prancha e se sentou nela com as pernas
penduradas de ambos os lados para não perder o equilíbrio. Com braços
trêmulos, Wenna estendeu-lhe o menino. Gareth o pegou, deu meia volta e o
estendeu para o arqueiro que estava sentado na mesma direção. Lentamente,
agarrando o menino com um braço e utilizando o outro para impulsionar-se, o
arqueiro foi retrocedendo de novo até o navio.
O navio dos contrabandistas rangeu e a prancha se moveu. Beatrice conteve
a respiração e Wenna soltou um grito, mas felizmente a prancha não caiu.
Uma vez perto do navio mercante, o arqueiro se virou e passou o pequeno
Gawan para as mãos de um dos membros da tripulação.
— Oh, graças a Deus —exclamou Wenna com ardor quando viu seu filho a
salvo.
Enquanto isso, Gareth avançava novamente para o navio francês para ajudar
as mulheres.
— Agora é você, minha senhora — disse para Beatrice.
— Não, que Wenna vá — replicou ela com decisão e estendeu a mão para
Ranulf.
Este a segurou com força e assentiu, de modo que Gareth ajudou Wenna a
subir na prancha. Esta decidiu avançar engatinhando para o outro navio e para
seu filho.
—Agora você, Bea—disse Ranulf assim que Wenna ficou a salvo.
Beatrice não protestou. Soltou-lhe a mão, respirou profundamente e foi
engatinhando como Wenna tinha feito, tentando não olhar o mar que se
282
agitava embaixo ela, nem no navio que deixava para trás, partindo-se em
pedaços.
Dois homens a agarraram e a deixaram tremendo, mas viva sobre coberta.
E então chegou a mais terrível espera. Ranulf não abandonaria o navio até
que todos outros tivessem saído, incluindo aqueles que naquele momento
seguravam a prancha para impedir que se movesse. Beatrice não podia esperar
menos, mas mesmo assim, pensou que o coração ia sair do peito quando viu
Ranulf engatinhando na prancha. Pensou em seu medo e rezou para que Deus
lhe desse coragem. Viu o sangue que cobria sua face, recordou a ferida de seu
flanco e rezou também para que tivesse as forças que necessitava para
sustentar-se.
Ranulf tinha o rosto pálido como o de um cadáver, a expressão de firme
resolução e mantinha o olhar fixo em suas mãos ou em Beatrice. Não olhou
para o mar em nenhum momento.
E de repente… e de repente o teve entre seus braços.
Beatrice o estreitou com força, deleitando-se em seu abraço durante um
glorioso instante, antes de sentir que desabava contra ela.

283
Capítulo 20

Quando Ranulf abriu os olhos, estava de novo em seu dormitório em


Penterwell. Mas não era Beatrice que estava sentada ao seu lado na cama, e
tampouco Celeste. Era o senhor de Tregellas, que o olhava com extrema
gravidade.
— Por fim despertou — observou Merrick com sua voz grave e profunda.—
Já era hora.
Ligeiramente enjoado, Ranulf tentou sentar-se, cheio de dor.
— Onde está Bea?
Merrick arqueou uma sobrancelha.
— Suponho que refere a minha pupila, lady Beatrice.
— Sim, onde está? Está ferida?
— Beatrice está bem — respondeu Merrick para imenso alívio de Ranulf. —
Tem algumas lesões e algumas feridas nos pés, mas está bem. De fato, sua
capacidade para falar sem parar permanece intacta.
— Onde ela está?
— Pensei que apreciaria um pouco de paz e tranquilidade, embora tivesse
que fazer um grande esforço para que abandonasse seu quarto. Não queria
partir nem sequer depois de Constance examinar a ferida de seu flanco e o
corte que tem no rosto e a assegurasse cinquenta vezes que não iria morrer.
De resto, minha esposa disse que Maloren continua choramingando pelos
cantos, lamentando o muito que se equivocou contigo, e dizendo que se algo
acontecesse a você, Deus a castigaria. A verdade é que não sei como chegou a
essa conclusão e tampouco Constance.
Por que demônios Merrick tinha que se mostrar tão loquaz de repente?
284
— Onde está Bea? —repetiu.
— Dormindo, espero. A pobre estava completamente esgotada. Suspeito
que Constance lhe deu algo para ajudá-la a dormir. Se não, provavelmente
teria continuado falando até que se rendesse ao cansaço, nos contando tudo
com relação a esses assassinatos e aos contrabandistas — inclinou a cabeça
para estudar Ranulf. — Parece muito contente, para estar sofrendo tão
considerável dor.
Ranulf se endireitou um pouco mais, apesar de sua dor.
— O que aconteceu com Wenna e com o bebê?
—Também estão bem. Mas parece que o destino de Wenna poderia ter sido
outro se Beatrice não tivesse aparecido no navio.
Ranulf mudou de posição, fez uma careta e baixou o olhar para a perna
esquerda de seu amigo, percebendo então, que ainda usava tala e estava
enfaixada.
— Grande dupla — disse o senhor de Tregellas, — a única coisa que
precisamos para completar o quadro é que Henry apareça.
— Como chegou até aqui? Beatrice me disse que não podia montar.
— Vim em um carro e, meu Deus, espero não ter que voltar a fazê-lo nunca.
Senti-me como um ancião.
— Pelo menos não cometeu os mesmos enganos que eu. Meu Deus,
Merrick, fui um estúpido, confiei em Myghal e…
— Já falaremos de seus pontos fracos como governador do castelo. Estou
seguro de que sir Leonard também terá algumas quantas coisas para dizer.
— Vai lhe escrever contando o que aconteceu?
— Não é preciso que lhe escreva, posto que ele está no salão.
— Não, não estou no salão —grunhiu uma voz familiar do marco da porta.
Ali estava sir Leonard em pessoa, tão rígido como uma lança e com uma
expressão não muito diferente da que Ranulf se recordava no dia que pediu

285
que lhe preparasse para ser um cavaleiro. A única mudança apreciável era que
seu mentor tinha o cabelo branco como a neve.
— E descobri algo interessante nesta viagem — declarou sir Leonard,
caminhando a grandes passos até a cama. — É verdade que brigaste no mar?
Deus santo, acreditava que Merrick tinha perdido a cabeça quando me contou
isso.
—Tinha que resgatar lady Beatrice — foi a resposta de Ranulf, sabendo que
sir Leonard teria feito o mesmo — Você a conheceu?
— Não pude evitá-lo. Lançou-se para mim assim que soube quem eu era —
sorriu, mas seus sábios olhos pareciam estar rindo a gargalhadas. — Devo dizer
que é uma garota muito carinhosa.
— É uma garota maravilhosa e eu a amo. E se Merrick nos der sua
permissão, quero me casar com ela — disse Ranulf.
Sir Leonard arqueou as sobrancelhas e olhou alternativamente para Merrick
e para Ranulf.
— Por certos comentários enigmáticos que minha esposa tem feito,
imaginava que o casamento estava próximo — observou Merrick. Sorriu
satisfeito. — De fato, Constance estava começando a temer que nunca pedisse.
Tive que ouvi-la falar desse tema em muitas ocasiões nas que, na verdade teria
preferido estar fazendo outras coisas.
Ranulf enrubesceu.
— Como sabia…?
— Intuição feminina eu suponho, ou algum outro processo misterioso que
só o seu sexo conhece — Merrick encolheu os ombros. — Há meses está
convencida que Beatrice e você se casariam. Por que acha que enviamos
Beatrice até aqui?
Sir Leonard riu e cruzou seus ainda fortes braços.
— Uma conspiração, não é?

286
— Antes que se zangue, Ranulf — disse Merrick, embora a verdade fosse
que Ranulf parecia mais estupefato que zangado, — asseguro-te que eu não
participei desta conspiração. Constante me convenceu de que Beatrice deveria
ajudá-lo e a verdade é que Beatrice também insistiu muito. Temia que
estivesse vivendo na miséria. E como Constance não podia vir porque acabava
de ter o bebê, ela teve que vir. Parecia-me indecoroso, mas Constance tinha
outra opinião, assim… — encolheu os ombros. — Que outra coisa eu poderia
ter feito? E sem dúvida alguma, Beatrice teria passado a vida choramingando e
resmungando se ficasse em Tregellas.
— Raramente o fez — Ranulf retrucou, decidido a defender sua prometida.
— Em todo caso, Constance esperava que deixasse de ficar com rodeios e
admitisse finalmente que a queria.
— Sempre foi muito orgulhoso e muito cabeça dura — disse sir Leonard.
— Não eram o orgulho e a cabeça dura que me impediam de dar esse passo
— disse Ranulf, tentando se defender. — Sou um homem pobre e Beatrice
poderia ter conseguido algo melhor.
— A filha de um traidor? — perguntou sir Leonard. — Eu duvido.
— Não a conhece. É tão boa e inteligente como bela. Sabe muito de
medicina e também sobre como cuidar de uma casa. E o que eu posso lhe
oferecer? Nada, exceto o meu amor, minha devoção e minha experiência com
a espada. Ela poderia se casar com um homem muito melhor que eu. Pergunte
a Merrick se não acredita em mim.
Merrick levantou a mão.
— Economize esse tipo de comentários comigo. Essas são as coisas que as
mulheres gostam de ouvir. Quanto a mim, por que diabos eu não iria gostar de
ser parente de meu melhor amigo? E sobre sua fortuna ou sua falta dela, se
estiver disposto a continuar como governador de Penterwell, eu não acredito
que tenha algum problema. E espero que o faça, ou terei que enfrentar uma
revolta. Há uma multidão de gente esperando notícias sobre sua saúde desde
287
que o navio chegou e viram como o tiravam da praia. Sabia que Beatrice era
capaz de falar, mas não sabia até que ponto podia gritar. Desde o cais ouvia-se
ela pedir que saíssem do caminho.
Sir Leonard assentiu rindo.
— Sim, devo dizer que tem bons pulmões. E poderia ter acontecido o pior
contigo. Vocês dois e Henry são os melhores tutelados que tive, em todos os
sentidos. Não me sentiria mais orgulhoso de vocês se tivessem sido meus
próprios filhos.
Ranulf ficou com um nó na garganta e sir Leonard limpou a sua enquanto,
ruborizado, voltava para a porta.
— Bem, será melhor que eu volte para o salão. O comandante de sua guarda
quer me mostrar o que os pedreiros tem feito.
— Não é que não me alegre ao vê-lo —disse Ranulf enquanto a porta se
fechava atrás de sir Leonard, — mas o que está fazendo aqui?
— Não imagina?
Ranulf negou com a cabeça.
— É seu favorito, Ranulf. Sempre foi e provavelmente sempre o será.
Quando soube que o feriram, veio imediatamente. De fato, esteve andando
durante toda a noite e a maior parte do dia. Acredito que o quer como a um
filho que nunca teve. Embora — acrescentou Merrick com um sorriso
dançando no canto da boca, — nem Henry e nem eu compreendemos por que.
Ranulf sabia. De fato, sempre soube que a preocupação de sir Leonard por
ele era maior que a de um professor por um tutelado.
— Conheceu minha mãe quando ela era jovem e acredito que esteve
apaixonado por ela, mas minha mãe se casou com outro.
Merrick franziu o cenho.
— Henry chegou uma vez a perguntar se poderia ser seu filho natural.
Ranulf negou com a cabeça.

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— Não, embora tivesse me encantado. Desde que se casou com meu pai,
minha mãe não voltou a ver sir Leonard. Meu pai se assegurou de que não
pudesse fazê-lo. Mantinham-na virtualmente prisioneira e, se o tivesse
conhecido, teria visto o muito que me pareço com ele. Mas chega de falar
sobre coisas desagradáveis. Quando poderei ver Bea?
Merrick o olhou muito sério enquanto se inclinava para diante.
— Como sou um de seus melhores amigos, vou ser sincero contigo. Está
certo de que quer se casar com ela? Sei que é muito bonita e muito melhor
castelã do que teria imaginado, mas temo que a tomando por esposa, não vai
desfrutar de um só momento de paz e silêncio.
Ranulf curvou os lábios em um sorriso enquanto recordava a noite que tinha
feito amor com Beatrice. Jamais em sua vida tinha conhecido tanta paz como
então.
— Eu me atreveria a dizer que sim, conseguirei. Quanto ao silêncio, acredito
que é uma virtude muito valorizada nas mulheres. Tampouco sua mulher me
pareceu especialmente dócil e calada.
Merrick riu de si mesmo.
— Não, não é — se mostrou de acordo. — Bem, então, quando será o
casamento?
— Eu quero me casar o quanto antes —respondeu Ranulf e em poucas
ocasiões tinha sido tão sincero.

Quando Beatrice abriu os olhos algum tempo depois, esperava encontrar


Constance ou Maloren ao lado da cama. Mas não, havia um homem. Um
homem ruivo, com a barba feita e um corte no rosto. Um homem que lhe era
familiar e cujos olhos brilhavam com…
— Ranulf? — a preocupação deu lugar à alegria enquanto se sentava na
cama. — O que está fazendo aqui? Deveria estar na cama! Está ferido! Poderia
289
ter morrido! Tem que descansar e me surpreende que Constance o deixasse
levantar. Quanto tempo eu dormi? Vou chamar…
— Bea…
— Deu-me algo para que dormisse, sei. E depois o deixou levantar quando
deveria estar descansando. Não deveria…
— Bea…
— Pensava que se importaria. Alegrei-me tanto ao vê-la, ela e Merrick na
praia. Ah! Sabe que sir Leonard também veio?
Antes que Ranulf pudesse ter respondido, mudou o tema da conversa.
— Se esta for a ideia que Constance tem de cuidar de alguém que salvou a
vida de sua prima, está completamente enganada e lhe direi…
—Bea!
Ante aquela explosiva declaração, Beatrice arregalou os olhos e todos os
pensamentos sobre Constance, Merrick e sir Leonard desapareceram de sua
mente.
— Sabia! — exclamou. — Está morto de dor! Temos que chamar alguém.
Maloren ou…
— Meu Deus, não! — ordenou Ranulf. Sorriu do repentino silêncio que se
fez e pegou suas mãos. — Não quero que ninguém mais venha. Estou bem,
Bea. Um pouco dolorido é claro, e durante alguns dias estarei fraco como um
gatinho, mas teriam que amarrar meus pés e mãos para me manter afastado
de você só mais um segundo e como pode ver, decidiram não fazê-lo. Assim
aqui estou. Sozinho.
O rosto de Beatrice se iluminou ao olhar por cima do ombro e perceber que
efetivamente, estavam sozinhos.
— Merrick nos deixou ficar a sós?
— Como deu permissão para nos casar, parece não ver nenhum mal nisso.

290
Beatrice lançou um grito de alegria que, certamente, não era próprio de
uma dama. Afastou os lençóis e estava a ponto de abraçar Ranulf, quando algo
a deteve.
— Como está seu flanco? Você pode ter aberto os pontos?
— Isso é o que Merrick me disse. Para ser completamente sincero contigo,
querida, tenho o flanco bastante dolorido. Entretanto, meus lábios estão
intactos, assim um beijo não me faria nenhum mal. De fato — disse, sentando-
a em seu regaço, — acredito que um de seus beijos faria me sentir muito
melhor e inclusive aceleraria o processo de cura.
— Nesse caso, meu senhor, estarei encantada em ajudá-lo em tudo o que
possa — murmurou, levantando o rosto para ele.
Ranulf respondeu com ardor e no final de alguns segundos, quando
interromperam o beijo, a jovem estava virtualmente sem respiração.
— Então, Merrick e Constance vão nos deixar casar? Não puseram nenhum
empecilho?
— Nenhum, meu amor, e parece que Constance passava muito tempo
imaginando que nos casaríamos. Por isso permitiu que viesse aqui para me
salvar da miséria.
— Estava tentando nos casar? — perguntou Beatrice com o cenho franzido.
— Parece que sim.
O sorriso radiante de Beatrice voltou a aparecer.
— Seja qual for a razão pela qual permitiram que eu viesse até aqui, sempre
estarei agradecida.
— Eu também — respondeu Ranulf com solenidade.
Beatrice rodeou o pescoço de Ranulf com os braços e pousou o rosto em
seu ombro.
— Acredito que agora sou tão feliz quanto se pode chegar a ser.
— Eu também — respondeu Ranulf, dando-lhe um beijo na bochecha.—
Mas temia que lamentasse perder a emoção de um amor não correspondido.
291
Beatrice o olhou muito séria.
— Sim, era muito emocionante quando não estava segura do que sentia por
mim e esperava que, com o tempo, chegasse a se apaixonar, mas era muito
difícil ser paciente. E em outras ocasiões, quando temia que não chegasse a me
querer nunca, ficava muito triste.
— Terei que me certificar que não volte a sentir tristeza nem duvidar de
mim — respondeu Ranulf roçando seus lábios.
— E eu farei todo o possível para que não volte a ficar sozinho nunca mais
—sussurrou ela antes de beijá-lo.

292
Epílogo

Ranulf e Beatrice cumpriram a promessa que se fizeram naquela manhã e,


com o tempo, o governador de Penterwell e sua esposa chegaram a ser
famosos pela felicidade que se respirava em seu salão. Seus hóspedes
contavam que lady Beatrice explicava frequentemente como seu marido foi
resgatá-la no mar, junto com lorde Kiernan de Penderson, ao qual Beatrice
perdoou qualquer ofensa passada quando soube como salvou a vida de Ranulf
na praia. Sir Ranulf preferia deleitar seus acompanhantes com a inteligente
estratégia de sua esposa e contar como convenceu o seu captor a fugir de seu
próprio camarote.
Kiernan se casou com lady Celeste e foi pai de meninas tão belas como sua
devotada esposa. Anos depois, uma dessas damas se casou com sir Gawan, um
dos cavalheiros mais valentes e famosos da Inglaterra, que começou sua
carreira como pajem e posteriormente escudeiro de sir Ranulf de Penterwell.
Wenna e Gareth, o comandante da guarda, montaram uma estalagem que
ficou famosa por seus bolos de carne. Seus filhos prosperaram, embora
nenhum deles, nem tampouco seus pais, aprovassem ou participassem do
comércio de estanho, apesar do negócio ser tentador e dos injustos impostos
sobre o estanho da Cornualha.
O senhor e a senhora de Penterwell também tiveram filhos, uma buliçosa
prole de cabelo dourado avermelhado. A princípio, Maloren se encarregou de
cuidar deles, mas terminou casando-se com o cozinheiro, para surpresa de
todo o castelo, embora não houvesse ninguém tão surpreso como o próprio
Much.

293
Alguns dos filhos de Ranulf e Beatrice tinham os olhos azuis, outros castanhos,
mas todos eles eram criaturas engenhosas e inteligentes. Os meninos
chegaram a ser cavaleiros e adquiriram renome por sua habilidade no campo
de batalha, por seu sarcasmo e, entre as damas, por sua beleza e natureza
apaixonada. Suas igualmente apaixonadas irmãs, consideradas autênticas
belezas por todos aqueles que as conheciam, fizeram-se famosas por sua
inteligência, suas risadas e, verdade seja dita, também sua tendência a falar.
Por sua vez, lady Beatrice nunca se transformou em uma mulher discreta e
calada.
E seu marido jamais quis que fosse de outra maneira.

Fi m

294
Companheiros de armas
1 – A Dama e o Bárbaro
2 – Uma Dama para o Cavaleiro
3 – Casamento Combinado
4 – A Dama Desejada
5 - Desejo Proibido
6 – Desejo Soberano – Companheiros de Armas/Irmãs D’Averette
7 – Inimigos nas Sombras – Companheiros de Armas/Irmãs
D’Averette
8 – Cúmplices nas Sombras – Companheiros de Armas/Irmãs
D’Averette
9 – A Noiva do Guerreiro

295
Resenha Bibliográfica
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Margaret Moore começou sua carreira


como escritora quando tinha oito anos.
Uma amiga e ela criavam histórias de
uma bela e fogosa dama e um ladrão
bonito e incompreendido cujo apodo era
“O xeque vermelho”.
Margaret se graduou na Universidade de Toronto em Literatura
Inglesa. Embora não tivesse nenhuma intenção de ser escritora,
pareceu-lhe uma boa ideia ter o título de leitura/interpretação.
Durante esse tempo, também fez parte da Royal Canadian Naval
Reserve, onde aprendeu a utilizar diferentes tipos de armas.
Margaret começou a escrever quando caiu em suas mãos um
livro de Kathleen Woodiwiss. Lembrava as histórias que inventava
quando era menina, embora muito mais erótica. Então pensou: Não
seria divertido escrever uma história similar? Três anos mais
tarde, em 1991, vendeu sua primeira novela histórica romântica.
Depois seus livros foram publicados em muitos países.

296
GRH
Grupo de Romances
Históricos
Para entrar neste grupo, enviar e-mail para
moderacaogrh@yahoo.com.br

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