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“Demônios” de Aluisio Azevedo do ponto de vista da Ecocrítica

Isabella Barbosa, Caio Oliveira

O livro “Demônios” de Aluisio Azevedo, foi o primeiro volume de contos a ser


publicado, em 1893. Sendo um conto longo, Azevedo põe em “Demônios” uma
característica de suspense misturado ao naturalismo fantástico presente, o conto e o
próprio autor são considerados os precursores da ficção científica no Brasil.

O conto se inicia com o despertar do personagem numa noite sem noção de


quanto tempo havia dormido, observa a ausência de luz em seu quarto ou na rua e
com tudo parecendo estranhamente silencioso; de início, o jovem autor pressupõe que
o dia apenas não tivera raiado, mas se dá conta, rapidamente, que o silêncio e a
absoluta escuridão não são, de nenhuma maneira, naturais, decidindo sair de seu
quarto e percorrer o sobrado onde vive, encontrando todos os moradores mortos há
algum tempo.

“O médico estava estendido na sua cama, embrulhado no


lençol. Tinha contraída a boca e os olhos meio abertos. Chamei-
o; segurei-lhe o braço com violência e recuei aterrado, porque lhe
senti a corpo rigido e frio. Aproximei, trêmulo, a minha vela contra
o seu rosto imóvel; ele não abriu os olhos; não fez o menor gesto.
E na palidez das faces notei-lhe as manchas esverdeadas de
carne que vai entrar em decomposição. E o meu terror cresceu.
[...] (2019, p.6)”

Após se deparar com a morte de todos os seus vizinhos, o personagem lembra


de sua amada, Laura, decide sair em sua busca, na esperança de que estivesse viva, o
personagem se encontra com um Rio de Janeiro onde tudo era trevas e lodo.
“Atravessei o longo corredor, esbarrando em tudo, como
um cego sem guia, e conduzi-me lentamente até ao portão de
entrada.

Sai.

Lá fora, na rua, o meu primeiro impulso foi olhar para.


espaço; estava tão negro e tão mudo como a terra. A luz dos
lampiões apagara-se de todo e no céu já não havia o mais tênue
vestigio de uma estrela.

Treva! Treva e só treva!

Mas eu conhecia muito bem o caminho da casa de minha


noiva, havia de lá chegar, custasse o que custasse! Dispus-me a
partir, tateando o chão com os pés sem despregar das paredes
as minhas duas mãos abertas na altura do rosto. Passo a passo,
venci até à primeira esquina. Esbarrel com um cadáver encostado
às grades de um jardim; apalpei-o, era um polícia. Não me detive;
segui adiante, dobrando para a rua transversal. (2019, p.7)”

Ao chegar na casa de Laura, encontra os pais dela ambos mortos e Laura


desmaiada, dando-se conta de que eles são os únicos seres humanos vivos. Em
sequência, o casal tenta sobreviver no ambiente hostil e inóspito que a cidade se
transformara, enquanto se encontram num processo de involução, perdendo sua
capacidade de fala, transformando-se em animais, vegetais, minerais e até no “nada",
porém essa transformação revela ao leitor uma narrativa emoldurada, o protagonista
revela que a história narrada foi escrita em uma noite de insônia.

Tempo e espaço

A passagem do tempo na obra é repleta da incerteza do personagem principal que


acorda e espanta-se ao perceber que o dia ainda não amanheceu, já que tem a sensação de
ter dormido demasiadamente, ele observa, o relógio que ainda marcava meia-noite, embora
houvesse parado de funcionar, o que faz acreditar que dormira mais que o imaginado tendo em
vista que as cordas do relógio já não funcionavam mais fato que ele percebe ao encostar seu
ouvido próximo ao relógio e ouvir apenas o silêncio que constantemente permeia a obra;

“Acendi a veia e corri ao meu relógio de algibeira. Marcava


meia-noite. Levei-o ao ouvido, com avidez de quem consulta o
coração de um moribundo; já não pulsava: tinha esgotado toda a
corda. Fi-lo começar a trabalhar de novo, mas as suas pulsações
eram tão fracas, que só com extrema dificuldade conseguia eu
distingui-las. É singular! muito singular! repetia, calculando que,
se o relógio esgotara toda a corda, era porque eu então havia
dormido muito mais ainda do que supunha! eu então atravessara
um dia inteiro sem acordar e entrara do mesmo modo pela noite
seguinte. Mas, afinal que horas seriam?...” (AZEVEDO, 2019,
p.04)

O narrador também chega a ter contato com a passagem do tempo duas outras vezes
na narrativa, estas são as ocasiões posteriormente em que ele checa o relógio novamente às
dez e doze horas antes de quebrar o relógio, o que acaba por eliminar o marcador de tempo na
obra que, até então, estava seguindo um processo cronológico, fator que acaba ocasionando
uma ideia pouco precisa da passagem do tempo como podemos observar no trecho a seguir.

Era-nos já de todo impossível reconhecer o lugar por onde


andávamos, nem calcular o tempo que havia decorrido depois
que estávamos juntos. Às vezes se nos afigurava que muitos e
muitos anos nos separavam do último sol; outras vezes nos
parecia a ambos que aquelas trevas tinham-se fechado em torno
de nós apenas alguns momentos antes. (AZEVEDO, 2019, p.16)

No tocante do espaço da narrativa podemos observar que este também não está
explícito pois não é possível saber onde exatamente se passa a história, no entanto
fica claro que o personagem acorda em seu quarto, espaço que acaba por se alterar
diversas vezes durante a obra como na ocasião em que o personagem resolver
desbravar os demais cômodos do local o de mora ou quando este resolver ir em
direção à residência da amada mas o espaço mais denso e presente na história acaba
por ser a escuridão e o silêncio que atribui à narrativa um tom constante de suspense e
inquietação; este espaço passa, no desenvolver da narrativa, a se tornar cada vez
menos físico e mais psicólogo justamente por conta da escuridão e da exacerbação
dos sentidos do mesmo observamos o protagonista compartilhando muitos de seus
pensamentos e percepções.

Comecei a notar que os pensamentos dela iam


progressivamente rareando, tal qual sucedia aliás comigo mesmo.
Minha memória embotava-se. Afinal, já não era só a palavra
falada que nos fugia; era também a palavra concebida. As luzes
da nossa inteligência desmaiavam lentamente, como no céu as
trêmulas estrelas que pouco a pouco se apagaram para sempre.
Já não víamos; já não falávamos; íamos também deixar de
pensar. Meu Deus! era a treva que nos invadia! Era a treva, bem
o sentíamos! que começava, gota a gota, a cair dentro de nós
(AZEVEDO, 2019, p.17)

Assim, fica clara a presença do espaço psicólogo durante os últimos capítulos


da obra bem como a constante presença da troca constante desse espaço para o físico
diante da tentativa constante do narrador em sintetiza de maneira verossímil todas
sensações vivenciadas por si por meio dos sentidos aguçados e da relação feita entre
essas características sensoriais e os pensamentos do narrador-personagem.

Narrador e personagens
A obra possui foco narrativo em primeira pessoa, sendo essa uma narrativa
desenvolvida a partir do ponto de vista do personagem principal, cujo nome
permaneceu implícito durante todo decorrer da história e que se utiliza de diversas
temáticas próprias que não apenas conferem à obra uma aura constante que permeia
entre os âmbitos do gótico e do fantástico mas como também possui características
oriundas dos textos ultrarromânticos de Aluísio de Azevedo como fica explícito em no
trecho a seguir.

“Não; não! disse-lhe sem voz. Não me separarei de ti,


adorável despojo! Não te deixarei aqui sozinha, minha Laura!
Viva, eras tu que me conduzias às mais altas regiões do ideal e
do amor; viva, eras tu que davas asas ao meu espírito, energia ao
meu coração e garras ao meu talento! Eras tu, luz de minha alma,
que me fazias ambicionar futuro, glória, imortalidade! Morta, hás
de arrastar-me contigo ao insondável pélago do Nada! Sim!
Desceremos ao abismo, os dois, abraçados, eternamente unidos,
e lá ficaremos para sempre, como duas raízes mortas,
entretecidas e petrificadas no fundo da terra!” (AZEVEDO, 2019,
p.13)

Assim, podemos perceber também a presença constante da escuridão e do


gótico como dois aspectos essenciais na instauração do fantástico na narrativa, pois
esses dois aspectos abrem espaço para a possibilidade da identificação não apenas
dos pensamentos mais profundos desse narrador-personagem mas como também
torna seus sentidos palpáveis para do leitor quando a narrativa exacerba o olfato e tato
do narrador que hora tem estes sentidos extremamente aguçados e hora atenuados
em detrimento do frio ou da mudança de estado físico do personagem na obra ou da
ausência visão e da audição da qual se vê desprovido mediante a escuridão total.
O narrador, que também é protagonista da narrativa bem como um
personagem redondo no ponto de vista físico e da zoomorfização, divide a obra com
apenas um único outro personagem, essa é a sua noiva Laura que adentra a narrativa
posteriormente e possui pouco exponencialmente menor na narrativa, além de ter
todas as suas participações mediadas pelo discurso indireto que se dá pelo registro da
fala da personagem secundário (Laura) sob a perspectiva do narrador, tendo também
seus tempos verbais modificados para que haja entendimento quanto ao personagem
que está falando, o protagonista chega a encontrar ambos os pais de sua noiva
ligeiramente antes de encontrá-la mas estes não possuem espaço na narrativa.

“Demônios" sob a Ecocrítica

Em tese, a escolha do viés ecocrítico se dá pela constante interação do homem


e o ambiente no qual se encontra, todavia, é importante salientar a postura de uma
ecocrítica profunda na qual a natureza encontra-se no cerne da relação. A princípio,
todo o pensamento se desenrola de uma relação material e ainda consciente em que o
narrador, que também é o personagem principal, observa a natureza com um olhar
holístico que o permite ver sua essência e enamora-se por ela.

Não raro, como esperado ao retratar o cotidiano de um jovem escritor o narrador


propõe uma reflexão sobre suas experiencias de insônia, mas especificamente uma em
que imerge o leitor em uma realidade paralela na qual representa de maneira manifesta
a experiência psicológica da escrita. Ademais, é sobre este caso em particular que
desdobra-se esta análise.

Inicialmente, ao localizarmo-nos no início da experiencia relatada pelo jovem, a


primeira coisa que nos vem a mente em questionamento é o motivo da morte em
massa que assolou a localidade e que é amplificado pela constante escuridão que
consome a força da luz e o alcance sonoro. Por conseguinte, o personagem mergulha
em um mar de reflexões não apenas sobre o ocorrido ao seu redor, mas também sobre
o paradeiro de Laura, sua amada. Decerto, a escuridão que poderia ser comparada a
escuridão denominada como “não mar”, presente na trilogia escrita por Leigh Bardugo,
pelas similitudes frente aos efeitos físicos o que atribui um tom distópico, uma vez que
há uma constante perda de identidade e homogeneização das personagens junto a
natureza.

Voltando-nos novamente aos aspectos ecológicos há nesta constante escuridão


a amplificação dos desejos como fome e sede e uma constante expansão do reino
fungi pelo que viria a ser as paredes e chão da residência em que se encontra. Por fim,
tomado pela vontade de unir-se a sua amada o jovem sai à escuridão lutando contra
um chão que se encontra lamacento igualando-o a um verme ao se locomover.

“Meu Deus! e se nós ficássemos os dois sozinhos na terra,


sem mais ninguém, ninguém?... Se nos víssemos a sós, ela e eu,
estreitados um contra o outro, num eterno egoísmo paradisíaco,
assistindo recomeçar a criação em torno do nosso isolamento?...
assistindo, ao som dos nossos beijos de amor, formar-se de novo
o mundo, brotar de novo a vida, acordando toda a natureza,
estrela por estrela, asa por asa, pétala por pétala?...” (AZEVEDO)

A passagem acima nos remete a um pensamento do personagem que haveria


de ser a composição da nova gênese o que nos aponta novamente a um estado de
sincronicidade para com a natureza, mesmo que antes de consumir a maçã.
Entretanto, essa ideia se fortalece ainda mais no momento em que o jovem ao chegar
na casa de Laura encontra-a sem vida e em seu clamor pela vida de sua amada um
sopro de vida a traz o que nos indica novamente a presença de uma transcendência no
que se refere ao sentimento entre ambos.

Consecutivamente, mesmo que em busca do mar para encontrar a saída


daquela constante angustia o casal conecta-se por completo no trajeto uma vez que
abdicando gradativamente de suas faculdades mentais o casal vê-se unido pelas mãos
de Laura à cintura do escritor como gesto de confiança e entrega completa de ambos.
Outrossim, é na conexão entre amado e amada e constante involução 1 de ambos que
poderia criar-se duas possibilidades do que Genett classificaria como hipertextualidade
que seria frente a conexão de almas promovido pelo poema “The ecstasy” de Jonh
Donne, bem como a exemplificação material da incapacidade de utilizar uma língua
mais ainda sim se comunicarem pela presença carnal promovida pelo final alternativo
do filme que em português é traduzido como “eu sou a lenda” no qual o casal infectado
comunica-se por uma linguagem não verbal ou ao menos não sistematizável.

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, Aluísio.Demônios.In: MARTINS, Romeu. Medo Imortal. Rio de


Janeiro: Darkside Books, 2019

CLAQUETE TV. Eu sou a lenda - Final alternativo. Youtube, 15 set. 2020.


Disponível em: https://youtu.be/ihBmnC_gpcg . Acesso em: 08 jan. 2022.

PIAUILINO, INGRID; PINHEIRO, RAFAEL. Demônios de Aluísio Azevedo: horror


e filosofia. Revista de letras - Juçara, v. 4, p. 156-168, 2020.

POETRY FOUNDATION. The Ecstasy. JOHN DONNE. Disponível em:


https://www.poetryfoundation.org/poems/44099/the-ecstasy . Acesso em: 08 jan. 2022.

1
Involução faz menção a alternação de reinos – animal, vegetal...- vividos pelos personagens.

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