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Por que NÃO abordar o racismo em sala de aula?

Carolina Chagas Schneider


Fernanda Chagas Schneider

Muitas vezes discussões sobre raça, cor e etnia entram em nossa sala
de aula apenas quando episódios de racismo são amplamente explorados pela
mídia. O debate acaba ocorrendo até mesmo sem a influência do professor,
pois tais fatos causam comoção, atingindo também nossos alunos, os
quais passam a manifestar suas opiniões dentro do contexto escolar. Não há
nada de errado nisso, pois o racismo infelizmente existe sim, e ignorá-lo
quando o assunto surge em nossa sala de aula, seja em uma situação ou em
uma menção, não é a melhor estratégia.
O que verdadeiramente apontamos como equivoco pedagógico ocorre
quando a abordagem do tema “racismo” é deflagrada pelo próprio docente.
Iniciar um projeto para introduzir questões étnico-raciais, por exemplo, a partir
de situações de cunho racistas, mesmo que as intenções iniciais fossem
outras, acaba reforçando um estereótipo e dando evidência ao negro apenas
em situações desfavoráveis a ele.
Ao nos dispormos criar uma nova ambiência racial na escola,
precisamos oferecer aos alunos, elementos que os levem a criar vínculos
identitários positivos com as diferentes raças. Tais vínculos, além de contribuir
para sua constituição, podem aumentar sensivelmente a autoestima do sujeito.
No entanto, cabe salientar que a maioria dos espaços sociais, dentre
eles a escola, estão impregnados por referências positivas de uma única raça
(branca), fato que empodera os indivíduos que tem esse pertencimento racial e
fragiliza as relações dentre os demais. Afinal, com todas as características e
menções favoráveis sempre ligadas a um determinado conjunto de pessoas,
torna-se fácil identificar-se e até mesmo querer pertencer ao grupo dominante.
Um exemplo clássico dessa ambiência racial dominante pode ser
percebido ao avaliarmos os resultados do famoso teste das bonecas.
Idealizado pelo psicólogo americano Kenneth Clark nos anos 40 e registrado
pelo cineasta Kiri Davis nos anos 2000, o experimento consiste em questionar
crianças negras sobre qual das bonecas detém qualidades e qual das bonecas
apresentam defeitos.

https://www.youtube.com/watch?v=XyilexcWbSE

Para ilustrar nossa visão de que somente com uma nova ambiência
racial poderemos modificar o contexto racista que encontramos em muitas de
nossas salas de aula, trazemos o relato real de uma professora que aplicou o
teste:
No final do ano de 2013 realizei a testagem “Clarks dolls test” com meus
alunos do 1° ano do 1° ciclo. A ideia de realizar a testagem surgiu por dois
motivos, primeiro a observação de que a imagem de negro que os alunos
apresentavam nas nossas conversas era negativa, na maioria das vezes, seja
por realizarem associações pejorativas de determinadas ações às pessoas
negras (é o que rouba, o que mata, o dono da boca), ou por julgarem as
pessoas negras incapazes de ocuparem certos lugares (como professora,
princesa e herói por exemplo).
O outro motivo que me levou a realizar a testagem foi o questionamento
de algumas colegas de escola quando foi apresentado um vídeo com o “Clarks
dolls test” quanto à validade do teste, já que no estudo para o qual ele foi
idealizado, foram entrevistadas apenas crianças negras. Minhas colegas
duvidavam da idoneidade do teste por esse motivo, sem entender que o que o
pesquisador buscava era identificar os efeitos do racismo na autoestima da
criança negra. Diante disso busquei os textos que originaram a pesquisa,
traduzi e elaborei protocolos em português e realizei a testagem com uma
pequena amostra de alunos.
Kenneth Clark foi um psicólogo negro norte americano que pesquisou os
efeitos da segregação racial (vivida nos EUA) na autoestima de crianças
negras através de uma experimentação sobre estereótipos, que ficou
conhecida como “The Clarks Dolls Test” ou “The Clarks Dolls Experiement”. O
teste consistia em realizar uma série de perguntas para a criança tendo o
auxílio de duas bonecas, uma negra e uma branca, que a criança deveria
apontar. A ordem das perguntas no teste de Clark é importante para que as
respostas das crianças possam ser as mais sinceras possíveis, sem que o fato
de identificar-se com uma boneca ou outra possa exercer influência na sua
escolha. Sendo assim, preparei o protocolo abaixo para que as crianças
respondessem com o apoio de duas bonecas conforme o Clarks Dolls Test
original.

Dados de identificação da criança (nome, idade, turma,


sexo, n° de manutenções, beneficiário do bolsa família,
e autodeclaração)
Perguntas: branca negra
1. Indique com qual boneca você prefere brincar
2. Indique qual boneca parece boa
3. Indique qual boneca parece má
4. Indique qual boneca tem a cor bonita
5. Indique qual boneca parece feia
6. Indique qual boneca parece com uma criança negra
7. Indique qual boneca parece uma criança branca
8. Indique qual boneca parece com você

Para fazer minha reflexão neste relato, selecionei três sujeitos que
representam a maioria das respostas obtidas e uma exceção, que se faz muito
interessante de observar. Vejamos os protocolos de cada um (os dados de
identificação foram omitidos para preservar as crianças sendo identificadas
apenas um código, as idades e a auto-declaração de cada um).

GBR - 6 ANOS, FEM, AUTODECLARADA “MARROM”.


Perguntas: branca negra
1. Indique com qual boneca você prefere brincar X
2. Indique qual boneca parece boa X
3. Indique qual boneca parece má X
4. Indique qual boneca tem a cor bonita X
5. Indique qual boneca parece feia X
6. Indique qual boneca parece com uma criança negra X
7. Indique qual boneca parece uma criança branca X
8. Indique qual boneca parece com você X

DC - 6 ANOS, FEM, AUTODECLARADA “BRANCA”.


Perguntas: branca negra
1. Indique com qual boneca você prefere brincar X
2. Indique qual boneca parece boa X
3. Indique qual boneca parece má X
4. Indique qual boneca tem a cor bonita X
5. Indique qual boneca parece feia X
6. Indique qual boneca parece com uma criança negra X
7. Indique qual boneca parece uma criança branca X
8. Indique qual boneca parece com você X

MVB - 7 ANOS, MASC, AUTODECLARADO “COR DE PELE -


MORENO”.
Perguntas: branca negra
1. Indique com qual boneca você prefere brincar X
2. Indique qual boneca parece boa X
3. Indique qual boneca parece má X
4. Indique qual boneca tem a cor bonita X
5. Indique qual boneca parece feia X
6. Indique qual boneca parece com uma criança negra X
7. Indique qual boneca parece uma criança branca X
8. Indique qual boneca parece com você X

RA - 7 ANOS, MASC, AUTODECLARADO “PRETO-


MARROM”.
Perguntas: branca negra
1. Indique com qual boneca você prefere brincar X
2. Indique qual boneca parece boa X
3. Indique qual boneca parece má X
4. Indique qual boneca tem a cor bonita X
5. Indique qual boneca parece feia X
6. Indique qual boneca parece com uma criança negra X
7. Indique qual boneca parece uma criança branca X
8. Indique qual boneca parece com você X

Os resultados foram, na maioria das vezes, conforme o esperado: as


crianças falavam que preferiam brincar com a boneca negra por essa
representar uma novidade, mas nas perguntas seguintes, em que deveriam
atribuir características subjetivas às bonecas, em sua grande maioria atribuíam
características positivas a boneca branca e negativas a boneca negra. O mais
interessante nessa testagem são as justificativas das crianças após a
realização dos protocolos de perguntas. Essa conversa mais informal revelou o
quanto embrenhadas em “pré-conceitos” estavam as crianças
“experimentadas”.
A experiência, tal como o vídeo que já havia assistido, me fizeram refletir
muito sobre como a criança negra cria uma imagem negativa de si mesma e
como ela esboça uma feição de surpresa, no final do experimento, ao
identificar-se justamente com a boneca cujas características não são as
melhores segundo sua própria classificação. Ao serem questionadas sobre
porque a boneca parecia má, muitas não sabiam explicar, simplesmente
achavam que era “natural” que ela fosse má. Questionadas ainda mais quanto
às diferenças entre as bonecas (apenas a cor da pele e dos olhos) e a
atribuição das características, as crianças se mostravam em conflito e apenas
uma externou que a boneca era má porque era negra e os negros são maus.
Quanto ao sujeito 4 (RA) que aparentemente deu respostas que
demonstravam uma autoimagem positiva, durante a conversa pós-protocolos
pude observar que suas respostas estavam baseadas também em pré-
conceitos e não numa autoestima saudável. O menino revelou que preferiu
atribuir valores positivos a boneca negra e negativos a boneca branca porque
sua mãe lhe disse que não podia gostar de brancos. Ao ser questionado
quanto sobre os motivos dessa orientação, o menino revelou que os homens
brancos só fazem mal às mulheres negras e que, portanto não deveria gostar
de nenhum deles.
A conversa com RA pode ser analisada de diferentes formas, sob a luz
de várias teorias, mas nesse momento me interessou observar que não era por
ter “orgulho” de ser negro que ele atribuía características positivas aquela
boneca, mas sim por um sentimento negativo relacionado ao branco, que fora
construído dentro dele ao longo de anos.
Este sentimento se tornou tão forte e me chocou por estar tão arraigado
naquele pequeno menino, mas ao mesmo tempo refleti que o que movia meus
alunos no sentido contrário ao de RA, eram sentimentos igualmente fortes e
arraigados. E se estes foram construídos ao longo do tempo, precisaríamos de
tempo mostrando outra maneira de ver negros e brancos para que essas
desacomodações tenham a oportunidade de surtir efeito para essas crianças e
para a sociedade como um todo.
Como professora antirracista, sei que muito trabalho eu terei para
construir uma outra imagem do negro com aquelas crianças. No entanto, sei
que estou no caminho certo, pois a opção de guiar minha prática pedagógica,
lutando por uma nova ambiência racial em meu contexto escolar, é reforçada
ao analisar os resultados obtidos no teste aplicado. Há muito tempo a
sociedade vem subjulgando o negro a um lugar que não lhe cabe. É chegada a
hora de repensarmos tais práticas, as quais são reproduzidas e acabam
naturalizadas, sem que o mínimo de reflexão esteja imbricado no processo.

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