Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO. O presente artigo revisa a história do alcalóide epibatidina, isolado da pele de sapos do gênero
Epipedobates, encontrados na América Central e do Sul. A descoberta, a elucidação estrutural e a investi-
gação de aspectos farmacológicos da substância, que apresentou elevada potência analgésica e um meca-
nismo de ação até então desconhecido, são aqui apresentadas, bem como as tentativas de desenvolver fár-
macos analgésicos a partir da estrutura protótipo.
SUMMARY. “Epibatidine: A short review”. The present article revises the history of epibatidine, an alkaloid
which was isolated from the skin of Epipedobates tricolor, a frog found in jungles of Central and South America.
We present the discovery context, the structural elucidation and the pharmacological properties of this natural
product, which showed high analgesic potency and a new mechanism of action. The efforts to develop new anal-
gesic drugs from epibatidine as a lead compound are also described.
615
BARCELLOS FALKENBERG M. de & ALBINO PEREIRA P.
616
Latin American Journal of Pharmacy - 26 (4) - 2007
De modo geral, estes resultados foram consi- Em numerosos ensaios de analgesia, o ABT-
derados promissores e a estratégia de hibridi- 594 apresentou desempenho superior à morfina.
zação molecular entre epibatidina e ABT-418, No hot box test, o ABT-594 foi 30-70 vezes mais
utilizada na síntese da epiboxidina, também foi potente na elicitação de efeito antinociceptivo
adotada por outros grupos de pesquisa, que dose-dependente e, no ensaio da formalina, blo-
tentaram outras modificações. A associação da queou a hiperalgesia nociceptiva associada com
estrutura parcial cloro-piridina (epibatidina) com injúria tecidual com uma potência 70 vezes su-
a subunidade 3-metil-isoxazol do ABT-418, so- perior à da morfina. O ABT-594 também foi há-
mada ao prolongamento da cadeia que une os bil em reduzir a nocicepção, independentemen-
dois anéis levou a uma série de análogos, den- te de ser mediada por fibras C (dor aguda) ou
tre os quais, a 2-(3-metil-5-isoxazolil)piridina foi A-β (dor neuropática) 29.
a mais potente 25. A cascata da dor é promovida pela ativação
Muitos outros análogos da epibatidina, nos de fibras primárias aferentes por estímulos noci-
quais o anel azabicicloeptano foi alterado, fo- vos, os quais podem induzir a liberação de neu-
ram sintetizados e testados. Entre estes, in- rotransmissores, tais como peptídeo gene-rela-
cluem-se a homoepibatidina, a bis-homoepibati- cionado a calcitonina, glutamato e substância P
dina e um análogo azabiciclooctano 12. De todas de terminais nervosos do corno dorsal. Estes,
as substâncias sintetizadas na década de 90, a então, ativam neurônios secundários no corno
mais bem sucedida foi ABT-594 (Fig. 6), obtida dorsal, de forma a facilitar a transmissão noci-
por pesquisadores da empresa farmacêutica Ab- ceptiva para níveis supra-espinhais. O efeito
bott. Esta substância foi escolhida entre mais de analgésico dos opióides deve-se, em parte, à di-
500 obtidas por química combinatória 26. minuição da liberação destes neurotransmisso-
res no corno dorsal. O ABT-594 mostrou reduzir
de forma dose-dependente a liberação de
substância P 29.
Foi observado também, que o ABT-594 po-
dia, seletivamente, inibir a transmissão de sinais
aferentes de dor sem afetar outras modalidades
sensórias como o tato. Outros estudos foram
conduzidos para determinar se o ABT-594 pro-
Figura 6. Estrutura do ABT-594. duzia dependência física observável, com admi-
nistrações repetidas, e se elicitava sinais de abs-
A substância ABT-594, obtida por otimização tinência quando descontinuado. Os resultados
de uma série de éteres de piridila, apresentou demonstraram que a substância não causou sín-
atividade antinociceptiva em uma variedade de drome de abstinência opióide-mimética, em ra-
modelos de dor aguda, persistente e neuropáti- tos. Ainda em contraste com a morfina, em do-
ca 18 e, uma vez que algumas condições de dor ses antinociceptivas, o ABT-594 não diminuiu a
neuropática são resistentes ao tratamento com motilidade gástrica em ratos 29.
opióides, a possibilidade de ampliação dos re- O melhor perfil do ABT-594 foi atribuído à
cursos para seu alívio pareceu promissora. Esta sua relativa seletividade para os receptores nico-
substância possui afinidade similar à da epibati- tínicos do subtipo α4β2 30. Apesar do perfil pré-
dina para o subtipo α4β2 no cérebro de ratos clínico promissor, os estudos com o ABT-594 fo-
(Ki = 0,037 e 0,043 nmol/L para o ABT-594 e ram abandonados, devido aos efeitos adversos
(±)-epibatidina, respectivamente). Entretanto, no sistema gastrointestinal apresentados na fase
ABT-594 possui afinidade 60 vezes menor para I dos testes clínicos 31. Entretanto, a partir do
o subtipo α7, em cérebro de ratos, e 3000 vezes ABT-594, a empresa Abbott desenvolveu outra
menor para os receptores do tipo neuromuscu- substância com índice terapêutico 30 vezes su-
lar, no modelo Torpedo, do que a epibatidina perior àquele, em modelos pré-clínicos de dor
18,27. Dessa forma, ABT-594 mostrou uma maior neuropática, a qual foi codificada como ABT-
seletividade em relação a epibatidina e ensaios 894. Esta substância está sendo avaliada na fase
in vivo em camundongos avaliando efeitos anal- I de teste clínicos 32.
gésicos e adversos do ABT-594 em diferentes
modelos, bem como a avaliação da dose letal CONSIDERAÇÕES FINAIS
média, confirmaram que o índice terapêutico do A administração sistêmica de opióides per-
ABT-594 é significativamente maior que o da manece como o meio mais efetivo de aliviar a
epibatidina 28. dor severa em uma ampla gama de situações,
617
BARCELLOS FALKENBERG M. de & ALBINO PEREIRA P.
que incluem dor aguda, inflamatória persistente Crouch & G.E. Martín (1994) Tetrahedron Lett.
e neuropática. Apesar do amplo espectro de 35: 4919-22.
ação analgésica, o uso clínico dos opióides é li- 10. Broka, C.A. (1993) Tetrahedron Lett. 34: 3251-4.
11. Clayton, S.C. & A.C. Regan (1993) Tetrahedron
mitado por efeitos colaterais, como depressão Lett. 34: 7493-6.
respiratória, constipação e dependência física. 12. Xu, R., D. Bai, G. Chu, J. Tao & X. Zhu (1996)
O isolamento da epibatidina proporcionou a Bioorg. Med. Chem. Lett. 6: 279-82.
descoberta de um novo mecanismo de ação 13. Trost, B.M. & G.R. Cook (1996) Tetrahedron Lett.
analgésica e demonstrou mais uma vez o poten- 37: 7485-8.
14. Strong, S. Altering Chemistry: Epibatidine a Novel
cial dos produtos naturais como protótipos para Alkaloid, Disponível em: < http://wwwchem.
o desenvolvimento de novos fármacos. Dentre csustan.edu/chem4400/sjbr/strong98.htm>, aces-
os vários análogos produzidos a partir da estru- so em 03 de março de 2006.
tura da epibatidina, destacou-se o ABT-594, cujo 15. Qian, C.; Li, T.; Shen, T.Y., Libertine-Garahan, L.,
desenvolvimento foi abandonado devido a efei- Eckman, J., Biftu, T. & Ip, S. (1993) Eur. J. Phar-
macol. 250: R13-R14.
tos adversos; no seu lugar, vem sendo avaliado 16. Badio, B. & J.W. Daly (1994) Mol. Pharmacol. 45:
o ABT-894, com índice terapêutico significativa- 563-9.
mente superior e que é considerado um candi- 17. Gotti, C. & F. Clementi. (2004) Prog. Neurobiol.
dato promissor dentro da nova classe de fárma- 74: 363-96.
cos analgésicos nicotínicos. 18. Decker, M. W. & M. D. Meyer (1999) Biochem.
Pharmacol. 58: 917-23.
O potencial de alívio da dor e do sofrimento 19. Tongchuan, L., Q. Changgeng & J.O. Eckman
faz com que os analgésicos estejam entre os fár- (1993) Bioorg. Med. Chem. Lett. 12: 2759-64.
macos mais valorizados por profissionais de sa- 20. Damaj, M.I., K.R. Creasy, A.D. Grove, J.A. Rose-
úde e pacientes. Curiosamente, esta nova classe crans & B.R. Martin (1994) Brain Res. 664: 34-40.
de analgésicos teve sua origem em uma 21. Hutt, A.J, S.C. Tan (1996) Drugs 52 (suppl. 5):1-
12.
substância obtida a partir de sapos, animais que 22. Lloyd, G.K & M. Williams (2000) Pharmacol. Ex-
tradicionalmente são pouco apreciados pela cul- perim. Therap. 292: 461-7.
tura ocidental e que na tradição de vários povos 23. Badio, B., H.M. Garraffo, C.V. Plummer, W.L.
são tidos como peçonhentos. Padgett & J.W. Daly (1997) Eur. J. Pharmacol.
As dificuldades encontradas pelos pesquisa- 321: 189-94.
24. Dukat, M., M.I. Damaj, W. Glassco, D. Dumas,
dores durante a descoberta da epibatidina evi- E.L. May, B.R. Martin & R.A. Glennon (1994)
denciam também a importância da abordagem Med. Chem. Res. 4: 131-9.
racional e integrada na pesquisa de produtos 25. Silva, N.M., J.L.M Tributino, A.L.P. Miranda, E.J.
naturais, bem como da preservação da biodiver- Barreiro, C.A.M. Fraga (2002) Eur. J. Med. Chem.
sidade e da prospecção responsável da mesma, 37: 163-70.
26. Holladay, M.W., J.T. Wasicak, N.H. Lin, Y. He,
no sentido de possibilitar que inúmeras outras K.B. Ryther, A.W. Bannon, M.J. Buckley, D.J.B.
substâncias ativas venham a se constituir em no- Kim, M.W. Decker, D.J. Anderson, J.E. Campbell,
vas alternativas na terapêutica das mais diversas T.A. Kuntzweiler, D.L. Donnelly-Roberts, M. Piat-
doenças. toni-Kaplan, C.A. Briggs, M .Williams & S.P. Ar-
neric (1998) J. Med. Chem. 41: 407-12.
27. Donnelly-Roberts, D.L., P.S. Puttfarcken, T.A.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Kuntzweiler, C.A. Briggs, D.J. Anderson, J.E.
1. Vences, M., J. Kosuch, S. Lötters, A. Widmer, K.- Campbell, M. Piattoni-Kaplan, D.G. McKenna,
H. Jungfer, J. Köhler & M. Veith (2000) Mol. Phy- J.T. Wasicak, M.W. Holladay, M. Williams & S.P.
log. Evol. 15: 34-40. Arneric. (1998) J. Pharmacol. Exp. Ther. 285:
2. Daly, J.W., G.B. Brown, M. Mensah-Dwumah & 777-86.
C.W. Myers (1978) Toxicon 16: 163-88. 28. Decker MW, A.W. Bannon, M.J. Buckley, D.J.B.
3. Daly, J.W, T.F. Spande, H.M. Garraffo (2005) J. Kim, M.W. Holladay, K.B. Ryther, N.H. Lin, J.T.
Nat. Prod. 68: 1556-75. Wasicak, M. Williams & S.P. Arneric (1998) Eur. J.
4. Daly, J.W. (1998) J. Nat. Prod. 61: 162-72. Pharmacol. 346: 23-33.
5. Nath, C., M.B. Gupta, G.K. Patnaik & K.N. Dha- 29. Bannon, A.W., M.W. Decker, M.W. Holladay, P.
wan (1994) Eur. J. Pharmacol. 263: 203-5. Curzon, D. Donnelly-Roberts, R.D. Porsolt, M. &
6. Spande, T.F., H.M. Garraffo, M.W. Edwards, S.P. Williams (1998) Science 279: 77-80.
H.J.C. Yeh, L. Panell & J.W. Daly (1992) J. Am. 30. Lloyd, G.K., F. Menzaghi, B. Bontempi (1998) Li-
Chem. Soc. 114: 3475-8. fe Sci. 62: 1601-6.
7. Debenedetti, S.L., E.L. Nadinic, M.A. Gomez, J.D. 31. Cassels, B.K., I. Bermúdez, F. Dajas, J.A. Abin-Ca-
Coussio, N. De Kimpe & M. Boeykens (1992) rriquiry & S. Wonnacott (2005) Drug Discov. To-
Phytochem. 31: 3284-5. day 10: 1657-65.
8. Mercadante, A.Z., A. Steck, D. Rodriguez-Amaya, 32. Sullivan, J. Neuroscience and Pain. Disponível
H. Pfander & G. Britton (1996) Phytochem. 41: em:< (http://media.corporate- ir.net/media_fi-
1201-3. les/nys/abt/rdday/NeuroPain.pdf>, acesso em 20
9. Shockcor, J.P., R.M. Wurm, I.S. Silver, R.C. de dezembro de 2006.
618