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TEORIA DA HISTÓRIA
Journal of Theory of History
Universidade Federal de Goiás
Faculdade de História
2 2020
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HISTÓRIA E
Psicanálise
HISTORY AND
Psychoanalysis
editado por
EXPEDIENTE
| EDITOR-CHEFE
Prof. Dr. Ulisses do Valle | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
| EDITORES EXECUTIVOS
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Prof. Dr. Francesco Guerra | Universidade Federal de Goiás | Universitá di Pisa Pisa, Itália
Prof. Dr. Manoel Gustavo de Souza Neto | Universidade Estadual de Goiás Uruaçu, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Marcello Felisberto Morais de Assunção | Universidade de São Paulo São Paulo, São Paulo, Brasil
| CONSELHO EDITORIAL
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Prof. Dr. Breno Mendes | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Davide Bondì | Alma Mater Studiorum - Università di Bologna Bologna, Itália
Prof.ª Dr.ª Géssica Góes Guimarães Gaio | Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Brasil
Prof. Dr. Julio Bentivoglio | Universidade Federal do Espírito Santo Vitória, Espírito Santo, Brasil
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Prof. Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Profª. Drª. Mariana de Moraes Silveira | Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Prof. Dr. Marcelo de Mello Rangel | Universidade Federal do Ouro Preto Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Prof. Dr. Marlon Jeison Salomon | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
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Prof. Dr. Pietro Gori | Universidade Nova de Lisboa Lisboa, Portugal
Prof. Dr. Rafael Saddi | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Tiago Santos Almeida | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Thiago Lenine Tito Tolentino | Universidade Federal de Uberlândia Uberlândia, Minas Gerais, Brasil
Prof. Dr. Thiago Lima Nicodemo | Universidade Estadual de Campinas Campinas, São Paulo, Brasil
Prof.ª Dr.ª Walkiria Oliveira Silva | Universidade de Brasília Brasília, Brasil
| CONSELHO CIENTÍFICO
Prof. Dr. Alfonso Maurizio Iacono | Università degli Studi di Pisa Pisa, Itália
Prof. Dr. Alexandre Escudier | Centre de recherches politiques de Sciences Po (FNSP) Paris, França
Prof. Dr. Anderson Zalewski Vargas | Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
Brasil
Prof. Dr. Arthur Alfaix Assis| Universidade de Brasília Brasília, Brasil
Prof. Dr. Bennett Gilbert | Portland State University Portland, EUA
Prof. Dr. Carlos Alvarez Maia | Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Junior | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Cristiano Arrais Alencar | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior | Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal, Rio Grande do
Norte, Brasil
Prof. Dr. Estevão Rezende Martins | Universidade de Brasília Brasília, Brasil
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Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi | Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
Brasil
Prof. Dr. Fernando José de Almeida Catroga | Universidade de Coimbra Coimbra, Portugal
Prof.ª Dr.ª Francismary Alves Silva | Universidade Federal do Sul da Bahia Itabuna, Bahia, Brasil
Prof. Dr. Fulvio Tessitore | Università degli Studi di Napoli Federico II Nápoles, Itália
Prof.ª Dr.ª Helena Miranda Mollo | Universidade Federal de Ouro Preto Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Prof.ª Dr.ª Heloisa Meireles Gesteira | Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil
Prof. Dr. Henrique Espada Rodrigues Lima Filho | Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis, Santa
Catarina, Brasil
Prof.ª Dr.ª Joana Duarte Bernardes | Universidade de Coimbra Coimbra, Portugal
Prof. Dr. Luis Reis Torgal | Universidade de Coimbra Coimbra, Portugal
Prof.ª Dr.ª Maria Della Volpe | Università degli Studi di Napoli Federico II Nápoles, Itália
Prof. Dr. Massimo Mastrogregori | Università della Repubblica di San Marino San Marino, Itália
Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé | Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Prof. Ms. Natan Elgabsi | Åbo Akademi University Turku, Finlândia
Prof. Dr. Pedro Spinola Pereira Caldas | Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil
Prof. Dr. Piero Marino | Università degli Studi di Napoli Federico II Nápoles, Itália
Prof. Dr. Roberto Gronda | Università degli Studi di Pisa Pisa, Itália
Prof. Dr. Sérgio da Mata | Universidade Federal de Ouro Preto Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Prof.ª Dr.ª Silvia Caianiello | Istituto per la Storia del Pensiero Filosofico e Scientifico Moderno Nápoles, Itália
Prof. Dr. Valdei Araújo Lopes | Universidade Federal de Ouro Preto Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Prof. Dr. Zoltán Boldizsár Simon | Universität Bielefeld Bielefeld, Alemanha
| SECRETARIA
Elbio Quinta Junior | PPGH Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Krisley Aparecida de Oliveira | PPGH Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Murilo Gonçalves | PPGH Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Sabrina Costa Braga | PPGH Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
| REVISORES
Danillo Freire Pacheco
Lucas Francisco
Leonardo Ribeiro
Murilo Gonçalves
| DIAGRAMADOR
Augusto Bruno de Carvalho Dias Leite
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| REALIZAÇÃO
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
| APOIO
Portal de Periódicos da Universidade Federal de Goiás
| PARCERIAS
Diacronie - Studi di Storia Contemporanea [Bologna]
Laboratório de Teoria da História e História da Historiografia [LETHIS – UFES]
Núcleo de Estudos em Teoria da História [NETH – UEG]
Núcleo Interdisciplinar de Estudos Teóricos [NIET]
| CONTATO
Faculdade de História | Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Federal de Goiás | UFG | Campus II Samambaia | 74690-900
Goiânia [GO] | Brasil
website | https://www.revistas.ufg.br/teoria/index
e-mail | revistateoriadahistoria@gmail.com
| FICHA CATALOGRÁFICA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) | GPT/BC/UFG
Bibliotecário responsável: Enderson Medeiros / CRB1: 2279
CDU: 930.1
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INDICE
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ | 7 • 10
Da Verdade Historial
Movimentos de Confluência entre a Teoria Psicanalítica
e a Concepção Arendtiana [Funcional] de História
DIEGO AVELINO DE MORAES CARVALHO | 147 • 166
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ARTIGOS • LIVRES
ENSAIO
TRADUÇÃO
O que é Historiografia?
CARL BECKER | 332 • 340
ENTREVISTA
RESENHAS
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Psicanálise
HISTORY AND
Psychoanalysis
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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ
História e Psicanálise
Ventiladas desde a década de 1960 e consubstanciadas em fins do século
XX, as interrogações sobre a prática historiográfica e sua associação à narrativa
histórica exigiram novo escrutínio do historiador. Tais interrogações visavam ao
aprofundamento, de um lado, e à contraposição, de outro, às teorias
estruturalistas, que, por sua vez, desafiavam as concepções discursivas vigentes.
O abalo provocado às ciências humanas prescreveu ao historiador compreender
de que forma suas práticas e narrativas incorporariam distintas linguagens,
considerando, delas e nelas, o escopo ético e estético. Nesse cenário, emerge a
preocupação, antes latente, com o lócus do processo de subjetivação. Derivou
de tais movimentos uma significativa abertura do campo historiográfico à
relação entre história e psicanálise.
Interessado na relação supracitada, o historiador Dominick LaCapra
(2009) alertara para a associação fundante entre evento-limite e Holocausto, que
determinou a configuração dos Trauma Studies. Com o passar dos anos, houve
um alargamento do conceito de trauma, fazendo com que seu uso se estendesse
a outros acontecimentos, tais como o terrorismo, a escravidão e o colonialismo.
A história do trauma, a pós-memória e o pós-traumático impõem uma nova
abordagem às definições de acontecimento e experiência, impactando, também,
a percepção sobre o tempo e a temporalidade. Assim, parte da literatura histórica
aborda as guerras do século passado como eventos exemplares – essa
caracterização cabe, sobretudo, à Segunda Guerra, cuja memória eiva-se do
mandato “nunca mais”. Nessa perspectiva hegemônica, embora não consensual,
as experiências traumáticas, concebidas como inenarráveis, evidenciariam o
ápice da impotência da linguagem.
Essas perspectivas reportam tanto ao vaticínio de Theodor Adorno
(1988, 26) acerca da impossibilidade da poesia após Auschwitz quanto às
considerações de Walter Benjamin sobre a perda da experiência em um mundo
convulsivo. Antecipando-os no exame da subjetividade moderna, Sigmund
Freud foi referência a ambos. Entretanto, há entre eles uma distinção essencial:
enquanto Freud situa o trauma na origem da aquisição da linguagem e da
subjetivação, Adorno e Benjamin o ancoram no contexto histórico. Essa
distinção explicita uma dissonância entre história e psicanálise, no que se refere
à temporalidade e à subjetivação. Para a psicanálise, o tempo é o do inconsciente,
organizado segundo uma lógica associativa, onde acontecimento, evento e
memória se embaraçam, sem prejuízo ao processo de subjetivação. Para a
história, a causalidade tem um lugar central na estruturação da narrativa e,
mesmo que a temporalidade possa tratar de subverter a periodização, o processo
de subjetivação não se descola do contexto mediado pela cronologia.
Este Dossiê pretendeu abrigar artigos que problematizassem de que
maneira a historiografia se beneficia da abertura à psicanálise, promovendo a
interlocução entre esses campos e tratando-os interdisciplinarmente. Salvo
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engano, este é o primeiro dossiê organizado por uma revista acadêmica da área
de História, cuja proposta é tratar das relações entre história e psicanálise,
particularmente no âmbito teórico. O número de artigos recebidos superou a
média de contribuições semestrais da Revista de Teoria da História e revelou
tanto o interesse inequívoco pelo tema quanto uma, até então, contida disposição
ao diálogo que nós, as organizadoras, entendemos urgente e fértil. Assim, é
possível pressupor que a resposta recebida pela chamada expressa, de forma
geral, o represamento da análise dessas interações na cena de publicações
científicas no Brasil. Não deixa de indicar, mais especificamente, um sintoma
relevante dos tempos em que vivemos: em contextos de crise e mudança, são
alvissareiros novos olhares às experiências humanas, demarcando-as
temporalmente. Se vivemos o inédito, é preciso criar o novíssimo. Isso exige
promover o que os historiadores cultivam em sua prática: a revisita a conceitos
assentes na tradição historiográfica e atentos ao tempo presente. No caso da
relação entre história e psicanálise, a mobilização e a atualização de conceitos se
tornam um trabalho delicado, cuidadoso e audacioso, considerando que o
aparato conceitual com o qual se lida é clínico, mas também político. Esse último
dado não deve causar temor, antes é um alerta que, entre outros, Elisabeth
Roudinesco, historiadora e psicanalista, não cansa de fazer em sua vasta obra,
como se depreende do prefácio ao Dicionário da Psicanálise (1998, IX), redigido
em conjunto com Michel Plon: “[este dicionário] propõe um recenseamento e
uma classificação de todos os elementos do sistema de pensamento da
psicanálise e apresenta a maneira pela qual esta construiu, ao longo do último
século, um saber singular através de uma conceitualidade, uma história, uma
doutrina original (a obra de Freud) permanentemente reinterpretada, uma
genealogia de mestres e discípulos e uma política”. Nesse pequeno trecho, a
autora desvenda o verdadeiro significado do trabalho revisionista: ter clara a
relação temporal entre áreas, conceitos e doutrinas, e ao mesmo tempo não
deixar escapar o conteúdo afetivo e político dos campos de saber.
Incitadas por uma constelação afetiva que serve aos conflitos do homem
contemporâneo, as relações entre história e psicanálise – extensa e intensamente
exploradas por autores como Peter Gay (1989) e Michel de Certeau (2011), para
citarmos apenas dois historiadores – tornam-se, cada vez mais, requisitadas no
campo historiográfico. Entendemos que essa atração, que não é nova, tem razão
de ser porque os temas e objetos de estudo, permeados pela mudança rápida e
pelo avassalamento imposto pela técnica ao tempo expandido da reflexão, têm
de acertar as contas com a insuficiência de ferramentas e categorias tradicionais
de compreensão, no interior do campo. Portanto, a importância da afluência
desses textos, agora em dossiê, encontra-se nas possibilidades de pesquisa que
apresentam, estimulando, esperamos, a imaginação, o desejo e a expertise de
nossos leitores.
O artigo que abre este dossiê, intitulado “Só irmãos não basta ser, melhor
é sermos amigos: as relações entre história e psicanálise”, de autoria de Hilário
Franco Júnior (USP), nos apresenta ao diálogo entre o que o autor denomina
como a mais antiga e a mais nova das ciências do homem. Nele acompanhamos
as formas por meio das quais a colaboração entre os diferentes campos do
conhecimento se realizou, ou busca se realizar. O artigo é uma leitura instigante,
tanto para o leitor que procura se introduzir no tema de nosso dossiê quanto
para aquele que já trabalha com as intersecções entre história e psicanálise.
Ronaldo Manzi Filho (FACMAIS) e Maria Letícia de Oliveira Reis
(USP), em “O inesgotável e elegante trabalho de memória, que reconstrói,
performa e elabora”, trazem ao debate a acepção psicanalítica de memória,
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REFERÊNCIAS
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ARTIGO
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1 Pela atual gramática da língua portuguesa os nomes de disciplinas e ciências são grafados
com minúscula, embora o Dicionário Houaiss aceite História, como conhecimento, grafada com
maiúscula, o que fazemos por necessidade de clareza para diferenciá-la da história como
desenrolar de acontecimentos. Por equivalência, também escrevemos a criação de Freud com
maiúscula.
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Não é estranho, então, que seus herdeiros dos anos 1970-80, criadores
da História das mentalidades, tenham se mostrado ambíguos em relação à
teoria freudiana. Algo semelhante ocorreu naquela época em outros campos
historiográficos. O inglês Keith Thomas admitiu ter por Freud uma admiração
“muito condicional”, por isso “meu uso consciente da teoria psicanalítica tem
sido mínimo”. Mais do que isso, um biógrafo de Freud e defensor do uso da
Psicanálise no trabalho historiográfico, pensa que se Thomas tivesse recorrido
ao ferramental psicanalítico o ganho teria sido “no máximo marginal e
provavelmente contrabalançado por uma certa perda de elegância e clareza”
(Gay 1989, 187 e 138)2.
Realmente, nem sempre há um claro ganho em historiadores
recorrerem à Psicanálise ou psicanalistas à História. Mas muitas vezes, sim. Um
importante livro sobre a Revolução Francesa ao estudar o medo coletivo a
supostos ataques de grupos desconhecidos defendeu a necessidade de levar
“em conta o fator psicológico” na apreciação do fenômeno, que concluiu ser
infundado pois o temido “bandido aristocrata era um fantasma” (Lefebvre
1979, 41 e 191), contudo em nenhum momento recorreu a instrumentos
psicanalíticos que poderiam ter beneficiado sua demonstração. De igual modo,
não é despropositado imaginar, certas obras-primas historiográficas teriam
ganho em aprofundamento e refinamento se o tivessem feito. Entre elas, A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904-1905) de Max Weber, O Outono
da Idade Média (1919) de Johan Huizinga, Os Reis Taumaturgos (1924) de Marc
Bloch, Os dois corpos do Rei. Um Estudo sobre Teologia Política Medieval (1957) de
Ernst Kantorowicz, O Queijo e os Vermes: o Cotidiano de um Moleiro Perseguido pela
Inquisição (1976) de Carlo Ginzburg, O Nascimento do Purgatório (1981) de Jacques
Le Goff.
No sentido inverso, é razoável pensar que certos trabalhos do fundador
da Psicanálise teriam ganho maior solidez apoiando-se na História. Ele insistiu
que os sofrimentos humanos nas relações com os semelhantes derivam das
imposições sociais, da sublimação dos instintos ditada pela cultura (Freud
2016, 42-43), mas não fez uma demonstração histórica (realizada dez anos
depois, em outra abordagem, por Norbert Elias), a única adequada para sua
argumentação. Evitando ou minimizando enfoques históricos, Freud suscitou
em seus seguidores reticências a respeito. Mas sendo a hesitação freudiana
quanto à História um fato histórico e psicanalítico, ficam autorizadas algumas
especulações. Em plano amplo, ela pode ter sido reflexo das suspeições que o
analista tinha sobre sua época (Freud 2016). Em plano restrito, pode ter
derivado das relações ambíguas que ele mantinha com suas raízes judaicas
(Pfrimmer 1982; Balmary 1986).
2 O livro de Thomas ao qual ele se refere é O Homem e o Mundo Natural. Mudanças de Atitude
em Relação às Plantas e aos Animais [1983]. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Em outro
livro, Gay (2002, 15) define seu próprio trabalho como “história cultural informada pela
Psicanálise”, não deixando em seguida de ressaltar “informada, não subjugada”.
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3 Fora dessa civilização, a Psicanálise não encontra igual recepção e espaço de atuação,
trabalha com restrições e dificuldades quando alguma prática já instalada cumpre o papel ao
qual ela se propõe. Na China, por exemplo, era função do taoísmo, dentre várias outras coisas,
redefinir as relações entre mortos e vivos encontrando um lugar para aqueles que por terem
sofrido morte violenta ficavam fora das genealogias e ameaçavam assim seus descendentes.
Não por acaso, a Revolução Cultural comunista rejeitou tanto o taoísmo como a Psicanálise e
seu trabalho com lembranças mal assimiladas, com elementos que não aceitos na consciência
reemergem de forma desorganizadora em algum momento.
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sonho para a realidade, e por isso o recalca (Freud 2009, 194 - 198). A hipótese
foi tratada em outras obras antes de escrever Totem e Tabu precisamente para
identificar a origem desse processo psíquico. A Psicanálise admitia precisar da
História.
Freud acreditava na validade geral da sua descoberta, mas era obrigado
a aceitar sua historicidade. Já na primeira vez em que expôs publicamente a
noção, na sua grande obra inaugural, A Interpretação dos Sonhos, nota que no
texto de Sófocles (420 a.C.) o protagonista concretiza sua paixão incestuosa
enquanto seu correspondente moderno, o Hamlet de Shakespeare (1601-1602),
reprime-a. Diante da constatação, ele afirma que a “mudança de tratamento do
mesmo material revela toda a diferença na vida mental dessas duas épocas da
civilização muito distantes uma da outra” (Freud 1953, 264). Ou seja, se a
presença do fenômeno com vinte séculos de intervalo (e mais três em relação
ao analista) comprova ser um traço da natureza humana, atesta também que
esta não fica imune às transformações temporais, que a intervenção da história
atua inclusive em elementos na aparência imutáveis ou pouco discerníveis.
Como indicam Deleuze e Guattari (1973) discutindo a questão edipiana, essa
historicidade é estrutural e estruturante, dela resulta o fenômeno edipiano
porque o Inconsciente não é algo que simplesmente exista, ele é produzido
política, social, historicamente.
No entanto, o tratamento dado ao tema nesse livro erudito e inteligente
que é Totem e Tabu não satisfaz o historiador por ser excessivamente
especulativo, por ser carente de provas documentais. O filósofo Michel Onfray
avalia que a tese ali defendida,
essa hipotética verdade científica, é antes de mais um problema
existencial subjetivo, pessoal, individual […] transformado […] em
tormento de todos os homens desde o princípio da humanidade até o
fim dos tempos, problema de um só homem, que consegue passar a sua
neurose a toda a humanidade, na louca esperança de que ela lhe pareça,
assim, mais fácil de suportar, mais ligeira, menos penosa.
(Onfray 2012, 150).
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MÉTODO E INTERPRETAÇÃO
A História e a Psicanálise, ainda que sob enfoques e ênfases bastante
diferentes, estão ambas envolvidas com a questão da representação. Enquanto
o biólogo examina uma bactéria, o químico uma substância, o astrônomo uma
estrela, o geólogo uma rocha, o geógrafo um rio, o historiador não estuda um
evento e o psicanalista não analisa um afeto, somente suas representações. Para
o historiador, adotando e adaptando reflexões oriundas de outras áreas do
conhecimento, representação é um significante que pode tanto encobrir quanto
desvelar a significação do mundo. Seja representações mentais (como a língua),
seja objetais (emblemas, por exemplo), seja performáticas (teatro é o caso
típico), trata-se sempre de algo no lugar de outro, de presentificar uma
ausência. Daí se dever “incluir no real a representação do real”, (Bourdieu
1996, 108). As descrições da batalha de Bouvines não são o real em primeira
instância (o choque de alguns milhares de homens perto de Lille e Tournai,
entre 12:00 e 17:00 do domingo 27 de julho de 1214), mas uma segunda
instância que agiu sobre a posterior história política francesa (terceira
instância).
Para o psicanalista, é preciso levar em conta que Freud adota a palavra
coloquial alemã para “representação”, Vorstellung, cujo campo semântico é
largo, significando ainda “imaginar ou pensar (conceber uma imagem sensorial
sem a presença concreta do objeto)”, além de “concepção, conceito, noção,
ideia” etc. Ademais, o vocabulário freudiano recorre a Darstellung,
“apresentação”, também “representação” e “caracterização” na linguagem
teatral, donde Darstellbarkeit para designar a atividade psíquica ligada à
representatividade e à figurabilidade, à “capacidade de se exprimir em
imagens”, aos pensamentos dos sonhos e “às possibilidades de um conteúdo
ser representável (ser colocado em linguagem e mostrado)” como se encontra
em Die Traumdarstellung (A Interpretação dos Sonhos) (Hanns 1996, 376-396).
Tanto no uso historiográfico como no psicanalítico, para se
compreender os mecanismos da representação e alcançar os elementos
representados, é preciso lançar mão de um método interpretativo. Que ele seja
qualificado de científico, ou não, é questão polêmica que não cabe aqui
rediscutir visto não ser essencial para os comentários de cunho ensaístico e
restrito apresentados neste texto. De fato, para muitos epistemólogos “ciência”
deve ser denominação reservada a ramos do conhecimento que a partir de
métodos lógicos e sistemáticos alcançam resultados passíveis de comprovação
verificável e repetível. Nenhuma das duas áreas que examinamos se encaixa
nesse perfil. No que diz respeito à Psicanálise, Freud (1994, 13) classificava-a
como uma ciência da natureza (Naturwissenschaft), argumentando que a falta de
precisão, imutabilidade e infalibilidade é de toda ciência nos seus primeiros
tempos. Paul Veyne (1971, 7) foi mais direto e menos pretencioso sobre a sua
área: “a História não é uma ciência e não o será jamais”.
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4 Não seria difícil, mas não cabe aqui, desenvolver os paralelos entre a metapsicologia e sua
descrição das relações internas de um processo psíquico (Freud 1968) e a metahistória com seu
procedimento de atribuição de sentido histórico (Jörn Rüsen, “What is Meta-history?”, 2010,
https://pt.scribd.com/doc/39630477/What-is-the-meta-history).
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anos antes de morrer – minha vida foi minha obra, “foi meu único evento”. E
concordaria (substituindo na frase a área de atuação) com a ideia de que “a
história faz o historiador, bem mais do que é feita por ele. Meu livro me criou.
Eu é que fui sua obra. […] Levando sempre mais longe minha ardente
perseguição, me perdi de vista, me ausentei de mim. Passei ao lado do mundo e
tomei a História pela vida. E assim ela ficou para trás. Não lamento nada”
(Michelet 1893, IX, X e XLIV).
Michelet e Freud viram-se diante do mesmo problema: o fogo da
paixão aquece mas pode queimar, a luz da razão ilumina mas pode cegar. O
espírito romântico fornecia muitas ilustrações do primeiro risco (ao qual o
historiador sucumbiu várias vezes), o cartesianismo e o iluminismo do segundo
(ao qual o psicanalista nem sempre escapou). Michelet viu-se contestado
devido à interioridade dos fenômenos históricos que estudou (o povo, a
mulher, a feiticeira), Freud devido à interioridade dos fenômenos anímicos que
examinou (pulsões, recalques, Inconsciente). A paixão intelectual alimenta a
razão, mas nem sempre a razão controla as paixões, inclusive as intelectuais.
Enquanto a paixão teme o tempo e a distância, a razão é nutrida por eles. Daí
por que o distanciamento do investigador além de hermenêutico, é também
profilático.
Qualquer espectador muito próximo do — tomando um exemplo
pouco posterior a Michelet e contemporâneo à formação da Psicanálise —
Campo de Trigo com Corvos (1890) não consegue perceber nada além das
pinceladas. Somente recuando alguns passos é possível identificar a paisagem
atormentada de Van Gogh. Todo historiador, por definição, conta com o
recuo temporal que lhe permite um olhar abrangente e a esperança de captar o
sentido do fenômeno estudado. Todo psicanalista, muito mais próximo do
objeto analisado, ganha na recolha dos detalhes, mas precisa de perspectiva
para compreendê-los. Se de um único detalhe ele extrai inferências importantes
para sua tarefa, é para desse ângulo de visão provisório obter novos detalhes e
com eles ampliar, matizar ou até reformular a teoria.
Próximas também são as duas ciências na sua limitação epistemológica,
pois trabalham com condições necessárias, jamais com condições suficientes às
suas interpretações. Se “a essência da realização artística é psicanaliticamente
inacessível” (Freud 1998, 163), isso debilita a possibilidade de alcançar a
pretendida cosmovisão global ou Weltanschauung — construção intelectual
destinada a resolver todos os problemas da existência humana a partir de uma
hipótese edificada sobre a ciência, que comanda o todo — em certa medida
comparável à noção de história total empreendida por Michelet desde 1820 e
da descrição literária total ambicionada por Balzac na década de 1830 com a
Comédie humaine. Também a totalidade histórica fica comprometida pela
inacessibilidade à essência artística, o que gera uma deficiência na compreensão
do material examinado pelo historiador, e por consequência na sua explicação
sobre a sociedade que produziu as obras de arte.
Em História, a noção de causa que havia se firmado com o
cartesianismo e o consequente recuo da ideia de intervenção divina na
evolução das sociedades, teria vida longa desde Montesquieu, que incluiu a
causalidade já no título de suas Considérations sur les causes de la grandeur des
Romains et de leur décadence (1734), até pelo menos 1961, quando um
contemporaneista inglês afirma que “o estudo da história é um estudo de
causas” (Carr 1978, 75). Também Freud (2016, 9) raciocinou em termos de
causalidade: toda “explicação psicanalítica é genética”. A etiologia praticada
pela História e pela Psicanálise é geralmente complexa, mas aceita a
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Clio (aquela que preside a História); Livro II – Euterpe (música); Livro III –
Tália (comédia); Livro IV – Melpômene (tragédia); Livro V – Terpsícore
(dança); Livro VI – Érato (lírica); Livro VII – Polímnia (retórica); Livro VIII –
Urânia (astronomia); Livro IX – Calíope (épica).
Percebendo que os eventos se desenrolam não apenas no tempo, mas
também no espaço, dedicou a ele muita atenção, o que levou comentadores
modernos a considerá-lo também pai da geografia. Tendo observado que o
mundo é uno, embora habitado por povos de costumes bem diversos,
Heródoto descreve formas educacionais e funerárias, crenças, ritos,
monumentos, imaginários, e pode por isso ser igualmente qualificado de pai da
etnografia. Um dos comportamentos coletivos ao qual dedica grande parte da
narrativa revela-se essencial pelas decorrências práticas e psicológicas — os
gregos são livres, são cidadãos que definem seu destino, em contraste com os
“bárbaros” (todos aqueles que não falam um dialeto grego), súditos de
monarcas despóticos revestidos de caráter sagrado. Da variedade de costumes,
às vezes bastante antagônicos, Heródoto extrai uma conclusão que os futuros
antropólogos, historiadores e psicanalistas confirmariam — a humanidade é
singular, mas os homens são plurais. Assim, por via indireta, o indivíduo com
seus sentimentos e conflitos não deixa de ser contemplado pela metodologia de
Heródoto, mesmo que o núcleo de seu estudo esteja voltado para a dimensão
coletiva.
Freud, por sua vez, desde os primeiros casos clínicos enfatizou os
efeitos recíprocos entre indivíduo e cultura. Sua biografia intelectual comprova,
e nem poderia ser diferente, seu íntimo relacionamento com a história da
época. Além do pano de fundo cultural, eventos históricos muito concretos
encaminharam certas reflexões psicanalíticas fundamentais. Não é casual que
uma inflexão conceitual tenha vindo à luz entre 1920 e 1926 — estimulada, ou
tornada necessária, pela carnificina da Primeira Grande Guerra, pela
desintegração do Império austro-húngaro, pelas convulsões da revolução
bolchevique, pela ascensão do fascismo italiano — com a nova doutrina das
pulsões, agora formulada em termos de pulsão de vida / pulsão de morte, ou
com a nova teoria da angústia. Do entrecruzar das novas circunstâncias
históricas e dos novos conceitos é que surgiriam três dos quatro grandes textos
culturais freudianos (o quarto é Totem e Tabu, de 1913): O Futuro de uma Ilusão
(1927), O Mal-estar na Civilização (1929) e O Homem Moisés e a Religião Monoteísta
(1939).
O olhar freudiano global sobre o humano não está afastado do olhar
micheletiano – “para reencontrar a vida histórica seria preciso segui-la
pacientemente por todos seus caminhos, todas suas formas, todos seus
elementos. Seria preciso também […] restabelecer o funcionamento do
conjunto, a ação recíproca dessas forças diversas num poderoso movimento
que se tornaria a própria vida” (Michelet 1893, III). Independentemente do
valor pessoal desses fundadores, nem Heródoto nem Freud foram, é claro,
produtos ex nihilo, pelo contrário, suas criações respondiam às novas
necessidades culturais de suas épocas. A curiosidade de Heródoto pelo mundo
grego e por povos distantes e estranhos teve como pano de fundo a expansão
territorial, comercial e intelectual do mundo helênico naquela segunda metade
do século V a.C. A curiosidade de Freud era uma das facetas daquela Europa
que, na passagem do século XIX ao XX, questionava antigas convicções,
sacudida por transgressões culturais como as expressadas por Schopenhauer
(†1860), Dostoievski (†1881), Nietzsche (†1900), Mahler (†1911), Strindberg
(†1912), Wedekind (†1918) ou Klimt (†1918).
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Michael Coupe (1983) argumentou com razão que, sendo muito difícil
a um só indivíduo dominar o universo de conhecimentos historiográficos e
psicanalíticos de maneira sólida e equilibrada, o melhor é que a história
psicanalítica – ou psicanálise histórica, ou psicohistória, o rótulo aqui não é
essencial – seja praticada em conjunto por profissionais dos dois campos em
estreita colaboração. À semelhança do que fez Jean Leclercq (1976), historiador
do monasticismo e da religiosidade monástica, ao convidar um psicanalista, um
psicolinguista e alguns psicólogos para se juntarem a ele no estudo dedicado a
São Bernardo.
Porque a epistemologia desnuda os limites das duas disciplinas, que não
podem pretender alcançar a certeza, elas enfatizam a importância da ética,
impõem a integridade intelectual – Heródoto “é um homem honesto, muito
imaginativo também, mas perfeitamente verídico” (Bonnard 2018, 330); Freud
é a prova que basta “que um único homem tenha a coragem da verdade para
aumentar a veracidade em todo o universo” (Zweig 1932, 34). Por caminhos
distintos, buscando metas próximas sem serem exatamente as mesmas,
História e Psicanálise podem dialogar, devem dialogar, fundamentando a ideia
de um cântico chinês do século XII ou XI a.C. que aqui nos serviu de
inspiração: “só irmãos não basta ser, melhor é sermos amigos” (Livro dos
Cantares 1990, 297).
REFERÊNCIAS
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ARTIGO
O INESGOTÁVEL E
ELEGANTE TRABALHO
DA MEMÓRIA,
QUE RECONSTRÓI,
PERFORMA E ELABORA
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ARTICLE
THE INEXHAUSTIBLE
AND ELEGANT WORK
OF MEMORY,
WHICH REMAKES,
PERFORMS AND
ELABORATES
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Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa
geração que entre 1914 e 1918 viveu numa das mais terríveis experiências
da história. Talvez isso não seja tão estranho quanto parece. Na época, já
se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo
de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros
de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não
continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno
não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente
desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a
experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a
experiência moral pelos governantes (Benjamin 1994, 115, grifo nosso).
A noção de experiência que nos interessa diz respeito a uma perda, como
a citação acima demonstra; e essa perda, da qual o sujeito moderno não mais
escapou, concerne a uma transmissão, a um falar de si. O sujeito perde sua
capacidade de narrar. Na citação anterior, não somente importa o que se perde,
mas como se perde: a forma como os combatentes voltavam silenciados
impressionou Benjamin porque se tratava de um momento de guerra, em que
deveriam ter o que dizer; em vez disso, eles se silenciaram. Aqui se abre um
campo discursivo vastíssimo, pois foi exatamente nesse contexto de guerra que
Freud escreveu importantes textos (sem ter conhecimento da obra de Benjamin),
demonstrando, debatendo e enfrentando as dificuldades das perdas do sujeito e de
suas próprias, ao longo da vida.
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[...] a obra proustiana não descreve uma vida tal qual ela foi – [...] – mas a
vida lembrada por aquele que a vivenciou – [...]. Em termos freudianos,
poderíamos dizer que o passado, evocado pelo adulto, se constitui sempre
numa ‘lembrança encobridora’: ‘Nossas lembranças de infância não nos
mostram os primeiros anos de vida como eles foram, mas como se
apresentam, posteriormente, na época de sua evocação’ (Chaves In Safatle;
Manzi 2008, 37-38).
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Ele faz uma escavação nas camadas geológicas do seu eu passado, para
resgatar todo esse universo íntimo a fim de recriá-lo em seu presente como
uma obra de arte fictícia. Assim, preenchendo com a pluma milhares de
páginas, Proust pintou todas as ruínas e os tesouros de sua Roma particular
[lembrando da metáfora de Freud] (Sibilia 2016, 178).
A história não é o passado. A história mostrou que isso não era tão
simples. A história é o passado na medida em que é historicizado no
presente – historicizado no presente porque ele foi vivido no passado. [...]
o fato de que o sujeito revive, se rememora, no sentido intuitivo da palavra,
os eventos formadores de sua existência, não é em si mesmo de tal
importância. O que conta, é que ele o reconstrói. [...] Diria – no fim das
contas, o que se trata, é menos de lembrar que de recriar a história.
(Lacan 1975, 19-20).
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A AUTOBIOGRAFIA
Tradicionalmente, o traço central de uma autobiografia é que o autor, o
narrador da história e o personagem são o mesmo. O narrador conta suas
memórias (do autor) tendo a si como personagem. A história é normalmente
contada em primeira pessoa e as histórias narradas seriam “verídicas”. Na
verdade, o que garante a “verdade” da história
é a assinatura do autor. Mas, pensando nessa ideia de reconstrução, seria isso
possível?
Em um livro recente, Sobre o declínio da ‘sinceridade’ – Filosofia e autobiografia
de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin (2006), Carla Milani Damião diz: “Sendo
o ‘eu’ uma criação, o compromisso de sinceridade do escritor com o leitor ou a
transparência dessa relação por meio de uma narrativa que pretende ser
verdadeira pode perder-se, e este é o risco que correria todo autor de memórias”
(Damião 2006, 150). O que aconteceu, afinal, com a sinceridade no discurso
autobiográfico?
É certo que a ideia de autobiografia se modificou profundamente desde
As confissões de Santo Agostinho até a contemporaneidade. O sujeito moderno,
tal como demonstrou Benjamin, tornou-se pobre em experiências comunicáveis.
Uma perda da qual o sujeito jamais escapou, tornou-se privado de sua biografia.
Lacan partilha essa ideia:
Não se trata de saber se falo de mim, de conformidade com aquilo que sou, mas
se, quando falo de mim, sou idêntico àquele de quem falo. E não há aqui
nenhum inconveniente em fazer intervir o termo ‘pensamento’. Pois
Freud designa por esse termo os elementos que estão em jogo no
inconsciente, isto é, nos mecanismos significantes que acabo de
reconhecer nele. Nem por isso deixa de ser verdade que o cogito filosófico
está no cerne dessa miragem que torna o homem moderno tão seguro de ser ele
mesmo em suas incertezas a seu próprio respeito, até através da desconfiança que
há muito aprendeu a praticar quanto às armadilhas do amor-próprio.
(Lacan 1957, 520, grifo nosso).
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Sim. Você projetou as duas fantasias uma na outra e fez delas uma
lembrança infantil. O elemento das flores alpinas [usada na descrição]
constitui, por assim dizer, um selo indicando a data da fabricação. Posso
garantir-lhe que as pessoas muitas vezes constroem essas coisas
inconscientemente – quase como obras de ficção. [O suposto analisando
diz:] – Mas, se é assim, não houve nenhuma lembrança infantil, apenas uma
fantasia recolocada na infância. No entanto, sinto que a cena é autêntica.
Como se explica isso? [Freud novamente, mas agora como o interlocutor
na posição de analista:] Em geral, não há nenhuma garantia quanto aos
dados produzidos por nossa memória. Mas estou pronto a concordar com
você em que a cena é autêntica. Nesse caso, você a selecionou dentre
inúmeras outras da mesma espécie ou não, porque graças a seu conteúdo
(em si mesmo irrelevante), ela se prestava bem para representar as duas
fantasias, tão importantes para você. Uma recordação como essa, cujo
valor reside no fato de representar na memória impressões e pensamentos
de uma data posterior cujo conteúdo está ligado a ela por elos simbólicos
ou semelhantes, pode perfeitamente ser chamada de ‘lembranças encobridoras’
(Freud 1996, 298).
Eis como Freud associa a memória com uma obra de ficção. Lembrando
que toda ficção tem um “grão de verdade” (assim como em toda fantasia há uma
correlação com algum traço mnêmico). Ou seja, nenhuma lembrança é
completamente sem correlação ao que foi acontecido – há sempre um traço de
verdade. Freud continua sua explicação sobre a fantasia em uma lembrança
encobridora:
Mas suponha agora que isso [que toda fantasia suprimida tende a deslizar
para uma cena infantil] não possa ocorrer, a menos que haja um traço
mnêmico cujo conteúdo ofereça à fantasia um ponto de contato – como
se andasse meio caminho até ela. Uma vez encontrado um ponto de
contato desse tipo [...], o conteúdo remanescente da fantasia é remodelado
com a ajuda de todos os pensamentos intermediários legítimos [...], até que
possa encontrar outros pontos de contato com o conteúdo da cena
infantil. É muito possível que, no decorrer desse processo, a própria cena
infantil também sofra mudanças; considero certo que também é possível
promover falsificações da memória dessa maneira. No seu caso [no caso
descrito com um interlocutor], a cena infantil parece apenas ter tido
algumas de suas linhas gravadas mais profundamente [...]. Mas a matéria-
prima era utilizável. Não fosse por isso, não teria sido possível que essa
lembrança particular, em vez de quaisquer outras, ganhasse acesso à
consciência. Nenhuma cena desse tipo lhe teria ocorrido como uma
lembrança infantil, ou talvez lhe ocorresse alguma outra – pois você sabe
como é fácil para nossa engenhosidade construir pontes de ligação entre
dois pontos quaisquer. [...] Logo, a fantasia não coincide completamente
com a cena infantil. Baseia-se nela apenas em certos pontos, e isso depõe
a favor da autenticidade da lembrança infantil (Freud 1996, 300-301).
Nesse caso, o analisando julga estar sendo sincera sua fala, mesmo que
tudo que diga se valha de deformações. Como disse, o que importa é que, para
ele, vale como se fosse real.
Algo com outro teor, mas não tão distante, encontramos em Charles
Baudelaire, quando afirma que parte de uma sinceridade artística (isto é, sem
pretensão de verificabilidade); ou em André Gide, quando resolve publicar seu
Diário, que parece ter mais em vista a apreciação pública de sua vida. Benjamim
chamava isso de “legalidade de recordação”
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Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos;
ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o
mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas, discussões,
investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque
destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas
provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão
monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros da
propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em
vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager.
(Wiesenthal In Levi 2004, 9).
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Isso nos indica como a condição forçada da solidão mostra como o social
produz uma linguagem própria em relação ao sofrimento. Diante da dificuldade
de nomeação, da impossibilidade de representação do real, os sobreviventes da
guerra voltavam silenciados; a partir disso, uma nova era se iniciou como nos
indica novamente Dunker: “Uma era na qual as articulações entre mal-estar e
sofrimento seriam reordenadas” (Dunker 2015, 25).
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Não há forma mais clara de mostrar que a palavra traz uma outra forma
de presença que não é da ordem da imagem – do imaginário –, mas da ausência.
Afinal, a voz da tia, no escuro, reconhecia o medo da criança. O medo de não
ter o sofrimento reconhecido é tão nefasto quanto à impossibilidade de
nomeação do mal-estar. Para Levi, o lugar onde poderia surgir o conforto, o
apaziguamento da angústia, insistiu em ser, nos seus sonhos, um lugar silencioso
e solitário.
Importante notar que o trabalho como testemunha de Levi não é
vingativo, mas uma narração que ressignifica o que ele vivenciou, diferentemente
das experiências de ressentimento que vemos em muitos relatos autobiográficos.
Lembremos, por exemplo, do livro Ressentimento (2004) de Maria Rita Kehl. Em
um dado momento, ela observa que a incapacidade de esquecimento na filosofia
de Nietzsche é o agravo do ressentido – como se a memória fosse uma doença.
Por isso irá afirmar que mais vale viver em uma ilusão do que buscar uma suposta
verdade que diminua a potência vital. Em sua Segunda consideração intempestiva –
Da utilidade e desvantagem da história para a vida, Nietzsche afirma que o homem
deve aprender a esquecer para poder viver: “[...] dito de maneira mais erudita, a
faculdade de sentir a-historicamente durante a sua duração” (Nietzsche 2003, 9).
Não esquecemos exatamente aquilo que nos tira a potência de viver – o que nos
marca e não cessa de doer. O que Nietzsche propõe é:
[...] que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar
no tempo certo; que se pressinta com um poderoso instinto quando é
necessário sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico. Esta é
justamente a sentença que o leitor está convidado a considerar: o histórico e
o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo
e uma cultura (Nietzsche 2003, 11).
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Muito distante disso estão os escritos de Levi. Ele mesmo afirma que a
sua insistência em dar testemunho de Auschwitz se dá para que esse passado
jamais se repita – algo que também está no horizonte de pensamento de
Benjamin. Como analisa Gagnebin: “[...] ele precisa transmitir o inenarrável,
manter viva a memória dos sem-nomes [...] lutar contra o esquecimento e a
denegação é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se
reproduz constantemente)” (Gagnebin In Benjamin 1987, 47). Como se o
trabalho de Levi fosse de cuidar da memória dos que não podem falar – e essa
história contada pode trazer a potencialidade de transformar nosso presente.
Pensemos um outro exemplo. “Escrevi apenas aquilo de que me
lembrava” é a bela forma que Natalia Ginzburg encontrou para se desculpar das
lacunas em seu livro Léxico familiar. Sua sinceridade transborda a ponto de não
alterar os nomes e os fatos de suas lembranças – um texto baseado no ato de
recordar. Ginzburg, sobrevivente como Primo Levi, narra o mesmo
acontecimento de forma diferente. Nesse romance autobiográfico e em outros
ensaios, ela calcula a forma como contava as histórias, fazendo-as mais curtas, a
fim de ser escutada pelos irmãos mais velhos, impacientes. Assim, escreveu para
entrar nos diálogos, para incluir o outro, num exercício de com memorar. Assim, a
escrita de si, que por vezes pode ser tomada como narcísica ou solitária, ainda
assim, preserva a possibilidade de um interlocutor e um leitor. Mas, onde estaria
o “si mesmo”, afinal? Natalia faz de sua escrita uma experiência de reconstituição
de uma experiência, sem ressentimento ou tristeza, ela procura reconstituir sua
experiência. As casas em ruínas, não são abandonadas ou esquecidas para serem
reencontradas, como Pompéia. Elas adquirem valor justamente por serem ruínas
e pedras; pedras com nomes, preciosas, em uma memória reconstruída pela
linguagem: “Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em
nenhuma coisa que fazemos. E talvez este seja o único bem que nos veio da
guerra. Não mentir e não tolerar que os outros mintam em nós” (Ginzburg 2020,
64). Mas o paradoxo acerca da veracidade da memória não é desconsiderado pela
autora em outro momento: “A memória é lábil, e porque os livros extraídos da
realidade frequentemente não passam de tênues vislumbres e estilhaços de tudo
o que vimos e ouvimos” (Ginzburg 2018, 16).
Isso nos diz que há coisas que devem ser rememoradas, não porque
diminui nossa potência de vida, mas porque o passado ainda traz uma
potencialidade que não foi devidamente desenvolvida. Daí o interesse pela
história marginal como nos diz Gagnebin:
Esse narrador sucateiro [...] não tem por alvo recolher os grandes feitos.
Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo
que não tem significação, algo que parece não nem importância nem
sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer. [...] Ou ainda:
o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou
dominante, justamente não recorda. [...] pois não se trata somente de não
se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade
ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente
(Gagnebin 2009, 54-55).
Freud, em seus primeiros trabalhos, tem uma concepção de cura que nos
interessa aqui. Pensando na histeria, ele pensa que a conversão de um afeto no
corpo pode ser revertida se esse afeto “encontrar” seu conteúdo/sua
representação adequada e for “expresso”. Nesse sentido, podemos entender por
que Freud e Breuer dizem, em seu texto conjunto (Sobre o mecanismo psíquico dos
fenômenos histéricos de 1893), nesse momento, que o histérico sofre sobretudo de
reminiscências (cf. Freud; Breuer 2016, 25). Ora, o sujeito sofre por algo que
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aconteceu; e o afeto vivido, por não ter tido uma cisão com sua representação,
converge ao corpo. É pensando nisso que Osmyr Faria Gabi Jr. escreve: para
Freud, “[...] o principal traço do patológico está na indistinção estabelecida entre
recordação e percepção, ou seja, a doença mental é caracterizada como sendo
basicamente alucinação” (Gabbi Jr. 2003, 53). Gabbi Jr. insiste nessa questão da
reminiscência: “A aproximação feita com a liberação sexual indica que não é
propriamente a vivência dolorosa que seria o protótipo do patológico, mas sua
recordação” (Gabbi Jr. 2003, 59).
Freud retoma essa questão da reminiscência posteriormente, também
pensando na ideia de cura. Ele afirma, por exemplo:
Eis como Freud tem agora em mãos “traços” de uma outra concepção
de verdade em vista: uma verdade que aparece em forma de delírio. Daí porque
ele conclui seu raciocínio com essas palavras que nos lembra de suas primeiras
formulações sobre as histerias: “[...] também o delírio deve sua força persuasiva
à parte de verdade histórica que põe no lugar da realidade rejeitada. Dessa
maneira, também ao delírio se aplicaria a frase que um dia usei apenas para a
histeria: que o doente sofre de suas reminiscências” (Freud 2018, 343). Ou seja,
o trabalho da análise seria superar essas reminiscências. Não negando o passado,
mas o ressignificando.
Resumidamente, podemos dizer: o que nós tomamos enquanto
realidade, nossa relação com o mundo, conosco, com os outros e com a nossa
história é uma construção psíquica sem qualquer necessidade de relação com a
realidade que podemos chamar de “material”. Em outras palavras, não há uma
pretensão de verificabilidade quando alguém conta uma história. O que a pessoa nos conta
é uma realidade para ela, mesmo que não tenha nenhuma conexão ao que
supostamente aconteceu. Por exemplo: duas pessoas podem contar sobre um
mesmo acontecimento sem que haja uma conexão lógica entre as histórias
contadas. O que é real para a pessoa é como o que foi vivido é ressignificado ao
contar essa história – vale como se fosse real sua fala. Assim, trata-se de uma verdade
que se ressignifica na própria experiência de vida – a todo momento damos um
novo sentido à nossa história, sem que se trate de um ato de má-fé, mentira ou
fingimento – é, literalmente, o que vale como real para a pessoa.
A importância da veracidade da fala ao narrar uma história é tão
fundamental, que alguns pensadores, como Giorgio Agamben, chegam a pensar
na origem da linguagem a partir da ideia de testemunha/juramento. Ou seja, os
homens, por serem infiéis, não tem credibilidade em sua fala. Para que um relato
seja confiável, é preciso um juramento. E esse juramento só é possível porque é
testemunhado por Deus. Sendo assim, a narração de uma história só pode ser
crível porque Deus testemunha a fala do orador. Dizer uma mentira sob a
testemunha de Deus, seria uma maldição; dizer algo sem que tenha um
juramento, é simplesmente uma blasfêmia. Quer dizer, o que garante a fala é a
testemunha de Deus.
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A FORMA DIÁRIO
Quando lemos uma autobiografia, a única credibilidade da fala é a
assinatura do autor. Daí porque Agamben destaca a partir de Prodi, que “[...]
somos hoje as primeiras gerações que vivem a própria vida coletiva sem o
vínculo do juramento [...]” (Agamben 2011, 81). Isso explicaria, em larga medida,
o desinteresse que temos pelas autobiografias e preferimos a forma “diário”, pois
o relato diário de acontecimentos parece mais fidedigno. Na verdade, uma
transformação que acompanha a ascensão da credibilidade na informação (algo
que supostamente tem uma verificabilidade imediata e não é necessária uma
interpretação) e não mais na narrativa (o que exige uma interpretação e, por isso,
pode estar sujeita ao “engano”). Agamben nos diz sobre isso:
Por um lado, o ser vivo agora está, cada vez mais reduzido a uma realidade
puramente biológica e à vida nua, e, por outro, o ser que fala, separado
artificiosamente dele, por uma multiplicidade de dispositivos técnicos-
midiáticos, em que a experiência da palavra cada vez mais vã, pela qual é
impossível responder e na qual algo parecido com uma experiência política
se torna cada vez mais precário (Agamben 2011, 81).
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válido; lembramos dele com nostalgia: passado como passado e não como algo
que se ressignifica no nosso tempo.
Os álbuns de fotografias nos lembram do que um dia Merleau-Ponty
criticou dos museus. A seu ver, o que uma obra de arte nos traz é um passado
da própria história de arte que é ressignificado em uma nova pintura. Uma
ressignificação, uma vez que se propõe um novo estilo. Assim, os museus seriam,
em certa medida, “corruptores” dessa reativação do sentido pois,
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[...] a única questão é que hoje o indivíduo comum não deve mais se
acomodar com esses devaneios: exige-se dele que aceda verdadeiramente
à individualidade por meio de uma passagem à ação. A democratização do
aparecer não está mais limitada ao confortável consumo da vida privada:
ela invadiu a vida pública sob o viés de uma performance que impulsionava
cada um a se singularizar, tornando-se si mesmo (Ehrenberg 2010, 11).
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O que é ser bem-sucedido? Essa é uma questão que lembra uma outra:
por que o sucesso se refere ao empreendedor? Ser bem-sucedido, hoje, é
poder inventar seu próprio modelo, desenhar sua unicidade, ainda que
idêntica à de todos os outros. Ser bem-sucedido é tornar-se si mesmo
tornando-se alguém. Ser si mesmo, ser alguém: injunções banais e, no
entanto, misteriosas que deveriam situar-se em registros aparentemente
separados, até opostos, da identidade pessoal e da visibilidade social, da
esfera privada e da esfera pública – como se sabe que se é si mesmo?
Diante de quem se reconhece que se é alguém? Essas duas questões
entram hoje numa relação inédita que assimila, numa mesma retórica, a
conquista de sua identidade pessoal à de ascensão pública, a busca de
autenticidade à da visibilidade. Dinâmica dupla de exteriorização do
íntimo – isso seria sua ‘publicização’ – e de incorporação do social – isso
seria sua ‘privatização’ – que forma a trama da ambição contemporânea
(Ehrenberg 2010, 50).
As estrelas do show business são os modelos de ação que nos fazem pensar
que podemos todos ser nosso próprio modelo. Essas figuras são únicas, como todo
mundo; somos todos únicos, como cada um dentre todos. Entre estes e
nós, não há nenhuma superioridade, mas uma diferença de visibilidade
(Ehrenberg 1995, 75).
Que corpo você está usando ultimamente? Que corpo está representando
você no mercado das trocas imaginárias? Que imagem você tem oferecido
ao olhar alheio para garantir seu lugar no palco das visibilidades em que se
transformou o espaço público no Brasil? Fique atento, pois o corpo que
você usa e ostenta vai dizer quem você é (Kehl In Bucci; Kehl 2004, 174).
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REFERÊNCIAS
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Filmografia
ETERNAL Sunshine of The Spotless Mind (2004). Direção: Michael Gondry. Roteiro:
Charlie Kaufman.
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ARTIGO
A ANGÚSTIA DE
ADÃO NA AMÉRICA
MARIA BERNARDETE RAMOS FLORES
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis | Santa Catarina | Brasil
mbernaramos@gmail.com
orcid.org/0000-0002-9438-031X
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ARTICLE
THE ANGUISH OF
ADAM IN AMERICA
MARIA BERNARDETE RAMOS FLORES
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis | Santa Catarina | Brazil
mbernaramos@gmail.com
orcid.org/0000-0002-9438-031X
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Por que a história de Adão e Eva – que ocupa cerca de uma página e meia
das 1078 que compõem uma edição moderna da Bíblia, sobre minha mesa
– se impõe com tanta eficiência e com tanta facilidade? (...) ... esses poucos
versículos num livro antigo têm servido de espelho no qual parecemos
vislumbrar a longa história de nossos medos e desejos.
(Greenblatt 2018, 13).
1 De muy honda raíz es ese desasosiego; más hondo en verdad que el aparato alegórico con que lo manifiesta
Marechal; no hay duda que el ápice del itinerario del protagonista lo de la noche frente a la iglesia de San Bernardo,
y la crisis de Adán solitario en su angustia, su sed unitiva. Es por ahí (no en las vías metódicas, no en la
simbología superficial y gastada) por donde Adán toca el fondo de la angustia occidental contemporánea. Mal que
le pese, su horrible náusea ante el Cristo de la Mano Rota se toca y concilia con la náusea de Roquentin en el
jardín botánico y la de Mathieu en los muelles del Sena (Cortázar 1949, 232).
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2 Apresentei os resultados da pesquisa sobre Xul Solar e Ismael Nery em artigos publicados
em diversas revistas, coletâneas e congressos. Ao final de 10 anos de produção, esse material foi
organizado em livro (Flores 2017). Sobre a angústia de Adão na América, tentando estabelecer
vinculações metafísicas entre a arte de Ismael, Xul e Leopoldo Marechal, apresentei suas linhas
iniciais no II Colóquio de História e Arte, em Florianópolis, em 2010. Desde então, o trabalho
permaneceu como uma ideia que agora tive a oportunidade de desenvolver.
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3 Es un Hades fluido, quase vapor, sem céu, sem solo, rufo, cor em olhos cerrados debajo del sol, agitado por
una tempestad interior, en vértices y ondas y hervor. En sus grumos y espumas distintas multitudes de hombres
flotan pasivamente y destellan de distintas maneras, hay también seres solos, más grandes, en forma de peces. (...)
Pero ya la llamada de esta Tierra desde abajo me oprime el pecho del cuerpo físico, y vuelvo a mí, muy afligido
por mucho tiempo. Esse é um trecho de uma das 64 visões que Xul Solar deixou escritas em
neocriolo, o idioma de sua invenção, hoje traduzidas para o espanhol. Ver: (Nelson,” 2005).
4 … ellos no saben que, al edificar tu poema con imágenes que no guardan entre sí ninguna
ilación, lo haces para vencer al Tiempo, manifestado en la triste sucesión de las cosas, y a fin de
que las cosas vivan en tu canto un gozoso presente; ignoran ellos que, al reunir en una imagen
dos formas demasiado lejanas entre sí, lo haces para derrotar al Espacio y la lejanía, de modo tal
que lo distante se reúna en la unidad gozosa de tu poema. (Leopoldo Marechal 2013, 204). A
data de 1948, que consta acima, na epígrafe, refere-se ao ano da publicação de Marechal.
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5 Todos os poemas de Ismael Nery citados estão publicados no Catálogo (1984, 26-39).
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Figura 4: Xul Solar. Paisagem Bunti, 1916. Aquarela sobre papel. 15/25 cm
Fonte: (Catálogo 1990, 52). (Derechos reservados Fundación Pan-Klub-Museo Xul Solar)
A angústia de Adão.
Por que esses loucos estão gritando? Do que eles têm medo? Você ainda
não entende que este mundo está uma bagunça desde que Adão e Eva
fizeram essa safadeza com Deus no Paraíso? (Marechal 2013, 53).6
6 ¿Por qué gritan estos locos? ¿De qué se asustan? ¿No comprenden todavía que este
mundo es un bochinche desde que Adán y Eva le hicieron a Dios aquella porquería en el
Paraíso?
7 No começo do século XX, as obras de Kierkegaard não eram conhecidas ou ainda eram
bem pouco lidas. Rogério Miranda de Almeida (2019), ao falar da coincidência entre o filósofo
dinamarquês e o pai da psicanálise vienense, na conceituação do afeto da angústia, afirma que
Freud jamais leu Kierkegaard.
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indica que os três artistas não leram Kierkegaard, pelo menos até o momento da
produção das obras aqui discutidas. No entanto, foram incansáveis leitores da
Bíblia, o livro que influenciou profundamente o pensamento ocidental e, é nele,
que o filósofo dinamarquês foi buscar os elementos para formular o conceito de
angústia.
O que é pertinente aqui, nessa sessão do artigo, é considerar a
apropriação que Kierkegaard fez dos dogmas do cristianismo, especialmente do
pecado original, que plasmou o sentimento de culpa e de perda do Paraíso,
fundamento da “ética da existência” cristã. “A Ética pagã desconhecia o pecado,
a cristã acrescenta em seus domínios a realidade do pecado” (Kierkegaard 1968,
28). Para o filósofo teólogo, o problema da hereditariedade do pecado original
está na própria essência da existência humana. Pelo pecado de Adão, um
indivíduo é ele e ao mesmo tempo toda a humanidade. “... a humanidade
participa toda inteira do indivíduo, do mesmo modo que o indivíduo participa
de todo o gênero humano”. Desse modo, qualquer indivíduo é afetado, na sua
essência, pela história de todos.
A perfeição pessoal reside, pois, em participar desinibidamente na
totalidade. A nenhum indivíduo é indiferente a história da humanidade,
assim como a esta, não é indiferente a história de um indivíduo. Adão é o
primeiro homem, e isto significa que ele é simultaneamente ele mesmo e
o gênero humano. (...) Por isso, aquilo que dá a explicação de Adão dá
igualmente a explicação do gênero humano, e reciprocamente
(Kierkegaard 1968, 33).
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8 Kierkegaard não estabelecera qual dessas vidas possíveis seria melhor, mas é evidente – diz
Girola (2000, 12) – que o ele se mostraria inclinado para enaltecer o caminho do religioso, a
sublimação da fé.
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conferências de Rudolf Steiner, Xul pintou aquarela cristológica, Jefe Honra, cujos
olhos cheios de estupor nos impressionam, num rosto de Cristo crivado de
espinhos. A figura de Cristo foi tema reiterado no pensamento de Steiner. O
verdadeiro cristianismo, dizia Steiner, é uma vivência que se expressa através de
uma experiência pessoal. Steiner enfatizava que, com o passar dos tempos, mais
gente poderia viver como Cristo, como ser espiritual, independente de toda
igreja (Albós 2004, 101).
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9 Embora tivesse origem indígena, Ismael ressaltou suas feições indígenas apenas no
Autorretrato de 1927, mostrado acima. Ele achava que o modernismo brasileiro dedicado a temas
nacionais estava se inclinando para o anedótico e a superficialidade. Os mexicanos talvez
tivessem razão para pintar o índio, dizia, pois que o elemento autóctone via-se entrosado na
sociedade, ao passo que no Brasil, o índio era visto no cinema de Hollywood. Quanto ao negro,
ele achava que somente a sensibilidade negra poderia expressá-lo. A arte brasileira deveria
construir-se no plano universal.
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Figura 8: Ismael Nery, Pecado Original, s/d., crayon e aquarela s/papel, 26,5x17,2 cm
Coleção particular Chaim José Hamer, S Fonte: (Catálogo, 1984, 161)
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À GUISA DE CONCLUSÃO
Na epopeia de Leopoldo Marechal, ambientada na Buenos Ayres dos
anos de 1920, Adán, antonomásia do próprio autor (uma novela autobiográfica),
é o herói, aquele que conduz as outras personagens, todas reconhecidas como
representações dos antigos companheiros do movimento da vanguarda criollista
(congênere do modernismo antropofágico brasileiro, embora com
especificidades próprias), em torno da Revista Proa (1922-1923) e da Martin Fierro
(1924-1927): Jorge Luis Borges, Norah Borges, Jacobo Fijman, Raul Scalabrini
Ortíz, Xul Solar, Oliverio Girondo, Raúl González Tuñon, Macedônio
Fernández, Eduardo González Lanuza. O autor, Leopoldo Marechal, “viveu as
peripécias dessa vanguarda argentina, de tônica vitalista e criollista, mas logo
produziu uma paulatina conversão, de índole espiritual e religiosa, assumindo
um cristianismo militante.” (Maturo 1999, 30).
Renata Rocco-Cuzzi (2004, 462) cita uma das resenhas do livro, que saiu
logo após a publicação em 1948: “Leopoldo Marechal: Adán Buenosayres, un
iracundo (irado) análisis por parte de quien había pertencido a la vanguardia
mantinfierrista”. 10 Rocco-Cuzzi (2004, 464) levanta a seguinte questão: por que
Marechal insiste em definir o livro como epopeia? Por que o caráter épico da
viagem como descobrimento de territórios desconhecidos? “O périplo que faz
a Saavedra [bairro nos arredores de Buenos Aires], pode ler-se – responde a
autora - em duas dimensões: como a destituição do criolismo e a depuração de
seus companheiros da Revista Matin Fierro; e também como reescrita do passado
mítico nacional na chave da paródia.” Por outro lado, as personagens, ironizadas,
aqueles antigos companheiros, agora “sujeitos que desviam o povo de seu
destino: os irresponsáveis políticos, os corruptos, os intelectuais, os que alijam o
bem do caminho verdadeiro, põem em palavras as pretensões do autor de atuar
como o condutor da travessia para a verdade”.
Segundo Rocco-Cuzzi (2004, 462), o próprio Marechal em certa ocasião,
declarou: “Soy retrógrado, pero no un ‘oscurantista’, ya que voy, precisamente,
de la obscuridad a la luz”. O retrógrado para Marechal, vai de uma conotação
negativa para uma qualificação positiva, no sentido de melhoramento, no sentido
de chegar a uma sorte de lugar de excelência, na projeção do futuro que vai “de
la oscuridad a la luz”, ou seja, da confusão à verdade. Definitivamente, diz a
autora, Adán Buenosayres é o eleito para protagonizar a viagem espiritual que
Marechal considera ser seu atributo de herói diante das ações risíveis das outras
personagens.
Marechal trabalhava para levar Peron ao poder, Jorge Luis Borges, entre muitos artistas e
intelectuais, assinou o manifesto, em 1946, em prol da União Democrática, adversária de Perón.
Embora Xul Solar não tivesse assinado o manifesto de 1946 e nem a lista de 1928, na qual estava
Borges, a favor da reeleição Hipólito Yrigoyen, os dois, Xul e Borges continuaram amigos. Xul
Solar praticamente não se envolveu com a política. (Albós 2004, 244-246).
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ARTICLE
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“Mas lembre-se: foram nossos filhos que morreram indigentes, sem a proteção das leis e sem a
satisfação do dinheiro. Foram nossos filhos que morreram, não tiveram funeral, não viraram
monumento e nem nome de rua. [...] Como eles ousam negar a sepultura dos nossos? Como
que proíbem enterrar os corpos sem nome que se acumulam por todos os cantos?”
(Apelo 2014)
Fig. 1 – Mães de Maio (Praça da Sé, 2015). Imagem extraída de “[Entrevista Especial]: do luto
à luta: Mães de Maio incansáveis na busca por justiça” e está disponível no endereço eletrônico:
https://observatoriosc.wordpress.com/2015/06/12/entrevista-especial-do-luto-a-luta-maes-
de-maio-incansaveis-na-busca-por-justica/
país. Destacamos três textos que tratam especificamente do Movimento Mães de Maio: “Os
mecanismos midiáticos que livram a cara dos crimes das polícias militares no Brasil”, de Laura
Caprioglione; “Duas chacinas em São Paulo – a mesma polícia, o mesmo governo”, de Maria
Rita Kehl; e “Mães e familiares de vítimas do Estado: a luta autônoma de quem sente na pele a
violência policial”, de Débora Maria da Silva e Danilo Dara.
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2 A obra de Clara Ianni é reconhecida por estabelecer um elo entre arte, política, sociedade
contemporânea e ideologia (Veras 2016). Os vídeos Mães e Apelo, assim como as descrições dos
projetos citados ao longo deste texto, estão disponíveis em sua página oficial:
http://claraianni.com/
3 Em comentário sobre o processo de filmagem de Apelo, Clara Ianni afirma que o Cemitério
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4 No artigo “Tortura e sintoma social”, Kehl (2010) afirma que as vítimas dos abusos da
ditadura civil-militar brasileira não se recusaram a “elaborar publicamente o trauma” e lembra
que um ano antes do governo instituir uma política de “reparação” às famílias dos desparecidos
da ditadura, a professora Maria Lígia Quartim de Moraes, viúva de um militante desaparecido,
“organizou naquela universidade um debate sobre a tortura e os assassinatos políticos da
ditadura. Na mesa redonda sobre testemunhos de mulheres torturadas, [...] pude observar que o
ato de tornar públicos o sofrimento e os agravos infligidos ao corpo (privado) de cada uma daquelas mulheres,
poderia pôr fim à impossibilidade de esquecer o trauma. Da mesma forma, os (as) companheiros (as) e
filhos (as) de desaparecidos (as) políticos, na ausência de um corpo diante do qual prestar as
homenagens fúnebres, só puderam enterrar simbolicamente seus mortos ao velar em um espaço
público a memória deles e compartilhar com uma assembleia solidária a indignação pelo ato
bárbaro que causou seu desaparecimento” (Kehl, 2010, 127, grifo nosso).
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5 No início de sua obra, Freud apresentou a ideia de uma “‘origem traumática’ para pensar
na causalidade dos sintomas histéricos a partir da vivência do abuso sexual infantil”.
Posteriormente, Freud abandonaria a perspectiva de que tal abuso fosse um acontecimento real
para “aceder a uma teorização sobre a fantasia” (Lima 2017, 119). Vale destacar que o “abuso
sexual infantil” não é a figura exclusiva do trauma. Em seus estudos sobre as neuroses
traumáticas em decorrência da Primeira Guerra Mundial, Freud pôde compreender como o
sonho dos combatentes produzia uma “repetição surpreendentemente incapaz de dar ensejo à
função onírica de elaboração” (Lima 2017, 120).
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II
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III
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IV
7 A partir de Spinoza, Agamben afirma que o “eu é o que se produz como resto no duplo
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e o segundo é quem ‘viu a Górgona’, quem ‘tocou o fundo’ e tem, por isso,
muito a dizer, mas não pode falar. Qual dos dois [sobrevivente ou Muselmann] dá
testemunho? Quem é o sujeito do testemunho?” (Agamben, 2008, 124).
“Eu também passei pelo mesmo problema dessas mães. Eles tiraram – os policiais
também tiraram a vida do meu filho no dia 6 de dezembro de 2006... 7 de
dezembro de 2006. Também meu filho foi morto da mesma forma”.
“Porque cada dia que a gente liga a televisão ou a gente olha do lado de
fora da janela, a gente está vendo as mesmas coisas que aconteceram com
os filhos da gente e o governo não faz nada. Acha que tá bonito, tá bom pra
eles né? Não é o filho deles, né? [...] Coloca a polícia na rua com o nosso
dinheiro pra matar os filhos da gente”.
“Se olhar a lista de mortos, você não vê filho de prefeito, deputado,
delegado, promotor, juiz, nada. Só vê os filhos da classe baixa. Classe
média, baixa, né? São assalariados, são negros. Porque nossos filhos foram
lixo da sociedade que eles varreram pra debaixo do tapete. É lixo, só isso”.
“Matam... mataram o meu filho, mataram o filho delas”.
“A gente somos impotente porque nós somos mães, nós demos a vida. Tiraram
a vida dos nossos filhos, a gente fica assim [sinal de pulsos atados]. E a gente vai
vendo, vai pulando, vai pulando, vai batendo de porta em porta em porta
e o descaso é total.” (Mães 2013)
Da mesma forma, esse anonimato dos mortos é marcado pelo foco nas
estacas numeradas sobre as covas dos indigentes.
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8 Acreditamos, nesse sentido, que a centralidade do testemunho não é conferida nem ao testis
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VI
Em Mães, uma mulher narra sua ida à delegacia para reaver os pertences
do filho morto:
Quando eu chego na sala do delegado, o delegado olhou para minha cara
[...]: “a senhora sabe quem foi?”. Eu falei, lógico que eu sei: a polícia. Mas
como a polícia? Eu falei, a polícia, doutor, porque o meu filho não tinha
inimigo, quem era inimigo do meu filho era a polícia. E o senhor pode me
dar as coisas que estavam com ele: o rádio, os telefones, os anéis da minha
nora que também está no hospital? Porque fizeram a limpa ali mesmo.
Não senhora, aqui não tem nada. Eu falei: tem sim, doutor, esse relógio
que está no seu pulso é o do meu filho. Ele falou: não senhora. Eu falei:
esse relógio que está no seu pulso é o do meu filho. Aí ele deu a volta lá
dentro da cadeia e trouxe um relógio dentro dum saquinho para me
devolver, já não estava mais com ele. Quando eu falei pra ele assim: eu to
falando que foi a polícia que matou meu filho. “Mas a senhora sabe qual
é a viatura?” [...] Quem tem que me falar quem é a polícia é o senhor. Não
é eu. Eu não tenho mais nada pra falar. Ele olhou pra minha cara assim:
“a senhora pensa bem o que a senhora fala”. Eu falei: não precisa pensar.
(Mães 2013)
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9 Como podemos escutar na seguinte fala: “Coloca a polícia na rua com o nosso dinheiro pra
matar os filhos da gente” e não deixa nenhuma substância pra poder/ uma inteligência como que tu
vais conviver com aquilo dia a dia. E eu desequilibrei, minha mente desequilibrou. Porque meu
filho era o pedestal. Hoje eu não sei como viver. Hoje eu não sei como viver” (Mães 2013).
10 “Esse sujeito, se tomamos a precaução de não o definir senão pelo seu muito pouco ser,
ao menos devemos oferecer-lhe um lugar de inscrição, e esse lugar não poderia ser mais que
aquele que, mais ou menos metaforicamente, será chamado ‘entre dois’ significantes. Esta
identidade na localização sustenta enunciados como: ‘[...] a reciprocidade entre o sujeito e o
objeto é total. Para todo ser falante a causa de seu desejo é estritamente, quanto à estrutura,
equivalente, se posso dizer, ao que chamei sua divisão de sujeito’. (Lacan 1972-73). Essa
equivalência sustentou sempre, em Lacan, a permanência da sua escrita da fantasia ($<> a)” (Le
Gaufey 2011, 186, tradução nossa).
11 “Em Inibição, sintoma e angústia, Freud nos diz, ou parece dizer, que a angústia é a reação-
sinal ante a perda de um objeto. [...]. Ora, que lhes disse eu, da última vez, para colocá-los num
certo caminho que é essencial apreender? Que a angústia não é sinal de uma falta, mas de algo
que devemos entender num nível duplicado, por ser a falta de apoio dado pela falta” (Lacan
2005, 64).
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[Tela negra] [Entrevistador] “Você não sente seu coração?” [Mãe] “Não”.
[Entrevistador] “Mas no sentido?” [Mãe] “Não tenho assim... [Voz over:
Não tem vida mais] perspectiva de vida... nada [Voz over: Nada tem sentido].
Nada tem sentido. [Voz over: Nada tem sentido]”.
“[Voz over: É uma dor imprensada. É uma coisa estranha, assim, que falta teu ar
também, falta o ar]”.
“É uma coisa assim... [Voz over: mas começa pelo útero] que é aquela falta, né?
Eu, por exemplo, na minha família parece que tá faltando alguém. Tem
um buraco. Tem um buraco na minha casa. Um buraco”.
[tela negra] “Eu perdi. Eu não sinto minhas trompas, ovário e útero. Eu
sou uma mulher oca”.
[tela negra]. “Isso me acompanha aonde eu vou. Aonde eu vou, isso tá na
minha cabeça... tá no meu coração. Tá impresso dentro de mim”.
(Mães 2013)
VII
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VIII
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não podendo mais, em caso algum, testemunhar por nós; depois de Auschwitz,
não é possível utilizar um paradigma trágico na ética” (Agamben 2008, 104).
Débora Maria da Silva como Antígona em Apelo maneja memórias e
esquecimentos feitos de rupturas. O que constitui essas memórias e
esquecimentos? Algo da espécie de um simulacro de recalque coletivo? De um
retorno do recalcado histórico? Do fantasma de um passado, que não
reconhecido, ainda assombra? Não será possível responder neste artigo, mas a
materialidade desse documentário, parece-nos, coloca em tensão as evidências
entre história e ruptura, entre psicanálise e ruptura, entre psicanálise e história.
Uma Antígona negra que é mãe, que fala em português enquanto sua
fala se escreve em um desdobrar da língua oficial do Brasil em uma língua-
legenda universal, e que adentra o cemitério de mortos onde não estão
enterrados seus filhos de maio para oferecer sepultura aos “nossos mortos” de
todos os tempos. É Antígona que não diz eu.
É Antígona de um tão problemático “eu” como o fora a Antígona antiga.
É Antígona não marcada em uma identidade de destino com a filiação
incestuosa de seu pai, Édipo, e que é então todas as mães, noivas e irmãs. Avesso,
por isso, de Antígona? Não, se a anterioridade de sua gramática, como sublinhou
George Steiner sobre a Antígona de Sófocles for também estranha às categorias
de individualidade:
Quando, nos versos 71 e 72, com sua quebra veemente – “a ele, eu/ O
enterrarei” Antígona emprega [eu], a palavra é uma concessão amarga.
“Eu” é agora um marcador da solidão, dessa ruptura forçada com o
uníssono do parentesco, da coletividade familiar ou clânicos, que tornava
possíveis, que reclamava, a fusão dos sentimentos, das intenções, da ação.
(Steiner 2008, 236)
IX
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REFERÊNCIAS
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ARTIGO
SUBJETIVIDADE,
INDIVIDUAÇÃO
E ESCRITA DE SI
APROXIMAÇÕES TEÓRICAS
ENTRE MICHEL FOUCAULT
E CARL GUSTAV JUNG
PEDRO RAGUSA
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Ponta Grossa | Paraná | Brasil
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ARTICLE
SUBJECTIVITY,
INDIVIDUATION
AND SELF-WRITING
THEORETICAL
APPROACHES BETWEEN
MICHEL FOUCAULT AND
CARL GUSTAV JUNG
PEDRO RAGUSA
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Ponta Grossa | Paraná | Brazil
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INTRODUÇÃO
As escritas de si, ou narrativas autobiográficas, constituem uma rica
documentação para pesquisas historiográficas quando a investigação histórica
busca conhecer formas e práticas de subjetividade em um passado individual e
social. Se em um passado recente essas escritas estavam restritas aos estudos
literários, em nossa atualidade a escrita de si vem se constituindo como um
campo de interesse para a pesquisa historiográfica.1 O atual interesse acadêmico
no interior das ciências humanas sobre as escritas de si tem possibilitado aos
estudiosos dessa temática explorar os textos auto narrativos como gênero
literário autônomo e reconhecido no campo literário (Galle 2009, 12-13).
Os campos de estudos acadêmicos como a historiografia
contemporânea, a psicologia, a sociologia e os estudos literários, encontram nas
escritas de si uma importante e necessária documentação para delimitar e
problematizar “objetos” como o sujeito2, assim, por meio da relação tripla entre
autor-vida-obra é possível problematizar como o sujeito desenvolve práticas de
subjetivação3 na composição e modificação histórica de si mesmo ao escrever
sobre si (Castro 2004, 408).
No interior dos escritos de Michel Foucault sobre a ética do cuidado de
si4, a escrita de si aparece como importante tema para a investigação do sujeito
histórico por meio da problematização sobre a produção e a modificação das
formas de subjetividade (Lejeune 2008, 14)5. Carl Gustav Jung não escreveu ou
teorizou sobre a escrita de si, mas abriu um campo teórico sobre a subjetividade
com seus escritos técnicos e também deixou uma importante documentação sob
a forma de autobiografia, além de centenas de cartas que revelam experiências
singulares sobre os processos de subjetividade vividos pelo analista suíço.
Entre as diversas abordagens possíveis para objetivar a subjetividade
através da escrita de si, a problemática dessa pesquisa foi animada pelo seguinte
objetivo: estabelecer a aproximação e o confronto entre dois campos teóricos
que mobilizaram de maneira específica o tema da subjetividade. Desse modo, a
abordagem teórica de Michel Foucault sobre as práticas de si foi correlacionada
ao campo teórico definido por Carl Gustav Jung sobre sua subjetividade
1 Cabe destacar o grupo de pesquisa coordenado por um de nós, Alfredo dos Santos Oliva,
sobre as escritas de si do psiquiatra Carl Gustav Jung, como também sobre o pintor Vincent Van
Gogh.
2 A noção empregada sobre o termo sujeito se refere à conceituação moderna do termo, isto
é, a compreensão do sujeito enquanto ser pensante e autônomo em sua relação com o real a
partir de sua consciência pensante e racional.
3 De acordo com Castro, o termo subjetivação foi introduzido por Michel Foucault na
perspectiva de se realizar uma história da forma-sujeito, isto é, uma história dos modos de
subjetivação que permitem a compreensão das práticas que constituem a vida dos indivíduos.
4 O conjunto de seus escritos nesse período foi constituído pelos cursos no Collège de France
real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história
de sua personalidade”. Segundo o teórico francês, para existir qualquer gênero de literatura
íntima (autobiografia, diário, autorretrato, auto ensaio, memórias) é necessário haver uma relação
de identidade onomástica entre autor (cujo nome está estampado na capa), narrador e a pessoa
de quem se fala.
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O SUJEITO EM FOUCAULT:
EXPERIÊNCIA, VERDADE E SUBJETIVIDADE
constituímos diretamente nossa identidade por meio de certas técnicas éticas de si, que se
desenvolveram desde a antiguidade até nossos dias” (Foucault 2017, 297).
7 Precisamente nas aulas de 3 de março de 1982 do curso citado, além do texto de 1983 “A
escrita de si”, presente no volume V dos seus Ditos e escritos. É possível encontrar nos textos do
período arqueológico dos anos sessenta um Foucault interessado nas temáticas do discurso, da
literatura, da linguagem e da autoria. Dessa maneira, o sujeito e as formas de subjetivação
também foram tematizados e problematizados como prática de uma escrita literária de si,
decorrentes de subjetivação no interior da problemática sobre o sujeito.
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Em todo caso, seja qual for o ciclo de exercício em que ela ocorre, a escrita
constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende a toda a
askêsis: ou seja, a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como
verdadeiros em princípios racionais de ação. Como elemento de
treinamento de si, a escrita tem, para utilizar uma expressão que se
encontra em Plutarco, uma função etopoiéitica: ela é a operadora da
transformação da verdade em ethos (Foucault 2004, 144).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A INDIVIDUAÇÃO COMO A DOBRA FOUCAULTIANA
Não é possível negar as diferenças entre as formas de problematização
presente nos trabalhos de ambos os autores, mas é aceitável encontrar
ressonâncias e pontos de contato entre campos teóricos tão díspares. O elo entre
Michel Foucault e Jung no interior da temática sobre a subjetividade, apesar de
suas distensões, foi posto pela escrita de si mesmo. Assim, a escrita de si
constituiu o ponto de inflexão para correlação conceitual entre dois campos
teóricos distintos.
Para Foucault, a escrita de si foi um objeto de pesquisa descrito no
interior de sua problematização sobre as técnicas de si e sobre o sujeito na
antiguidade helenística, dessa maneira, a escrita de si enquanto prática de si pode
ser compreendida como a dobra interior do ser, uma forma de relação destinada a
produzir subjetivação e afeto sob si mesmo (Deleuze 2005, 121). A dobra não é
movimento psíquico, isto é, uma projeção mental interior, mas ao contrário
disso, trata-se de uma interiorização mediada pelo lado de fora. Isso significa que
a dobra do ser é o próprio movimento de subjetivar-se pelas práticas vivenciadas
(Deleuze 2005, 105).
A crítica de Foucault sobre a subjetividade é radical. O processo de
subjetivação marca um movimento de repetição do diferente, trata-se de um lado
de dentro mais profundo que todo o mundo interior e mais longínquo que o
mundo exterior, o sujeito é composto por meio de uma abordagem não
essencialista e universal sobre as condições históricas de subjetividade. Para Michel
Foucault o ato de escrita, representa ele mesmo o apagamento do sujeito que
escreve, ele escreve-se para ser outro, para ser diferente daquilo que se foi. A
subjetividade definida pelas práticas de “cuidar de si mesmo”, resultou da
analítica foucaultiana como um conjunto de práticas que revelam a não-
identidade do sujeito, os indivíduos por meio de suas práticas históricas estão
despossuídos de universalidades e essencialidades.
O processo de subjetivação pela individuação realizado por Jung
materializa o movimento de subjetividade cunhado por Foucault como dobra.
Ao lermos sua autobiografia, podemos ter contato com a realização dessa dobra
interior no caminho da personalidade plena, isto é, sua autobiografia representa
uma fonte documental sobre a possibilidade real de subjetivação e modificação
de si mesmo exercida pela prática da escrita de si. A escrita de si foi incorporada
no processo de individuação de Jung e, paralelamente, o médico suíço obteve
consciência por meio de determinadas práticas dos conteúdos inconscientes
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REFERÊNCIAS
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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal,
2009.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal,
2011.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o Poder (1982). In: DREYFUS, Hubert; RABINOW,
Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e a da
hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
GALLE, Helmut; OLMOS, Ana Cecília. Em primeira pessoa: Abordagens de uma teoria
autobiográfica. São Paulo. Ed: Annablume, 2009.
HALL, James A. Jung e a interpretação dos sonhos. São Paulo: Cultrix, 1983.
HALL, S., Calvin; NORDBY, J., Vernon. Introdução à psicologia junguiana. São Paulo.
Cultrix, 1993.
JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2019.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014.
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Editora: Vozes. 2018.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte.
UFMG, 2008.
SILVEIRA, Nise. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro. Jose Álvaro, 1971.
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Foucault: Conceitos Essenciais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
VIEIRA. André Guirland. A função da história e da cultura na obra de C. G. Jung. Revista
Aletheia, n. 23, jan./jun. 2006.
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ARTIGO
PSICANÁLISE,
HERMENÊUTICA E O
PROBLEMA DO SENTIDO
RICŒUR LEITOR DE
FREUD
BRENO MENDES
Universidade Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brasil
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ARTICLE
PSYCHOANALYSIS,
HERMENEUTICS AND THE
PROBLEM OF SENSE
RICŒUR AS READER OF
FREUD
BRENO MENDES
Universidade Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brazil
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DA INTERPRETAÇÃO :
UMA LEITURA HERMENÊUTICA DE FREUD
1 Do ponto de vista institucional, um marco importante nesse projeto foi a criação da Escola
Freudiana de Paris capitaneada pelo próprio Jacques Lacan. Outrora, os seminários tiveram lugar
no Hospital Saint-Anne e na École Normale Supérieure. Para Michel de Certeau, Lacan nunca
se vinculou inteiramente às instituições e instituiu a Escola de Paris em um ato de fala em nome
da solidão: “Fundo – tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicana-
lítica...” (Lacan apud Certeau 2012, 207).
2 “Lacan, encantado de ver Ricoeur fiel às suas sessões, sabendo que ele preparava um livro
sobre Freud, esperava ser recompensado em retorno. Lacan cuidava particularmente bem de seu
distinto convidado, vindo saudá-lo, citando-o várias vezes, repetindo ao auditório o quanto lhe
era devedor” (Dosse 2017, 94).
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•
3 Para sermos mais precisos trata-se de uma intervenção realizada originalmente no Colóquio
de Royaumont entre 4 e 8 de julho de 1964.
4 “A partir de Freud, Marx e Nietzsche, segundo penso, o símbolo vai converter-se em algo
de malévolo; quero dizer que no símbolo há uma certa ambiguidade um pouco turva de ‘má
vontade’ e de ‘malevolência’ [...] O símbolo, ao adquirir essa nova função de encobrimento da
interpretação perdeu a sua simplicidade do significante que todavia possuía na época do Renas-
cimento” (Foucault 1997, 25).
5 “O inacabado da interpretação, o fato de que seja sempre fragmentada, e que queda em
suspenso ao abordar-se a si mesma, encontra-se, creio eu, de maneira bastante análoga em Marx,
Nietzsche e Freud, sob a forma da negação do começo. Negação da ‘Robinsonada’ dizia Marx:
a distinção tão importante para Nietzsche entre o começo e a origem; e o caráter sempre inaca-
bado do desarolho regressivo e analítico de Freud” (Foucault 1997, 20).
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•
Para além dessa proximidade entre Ricoeur e Foucault no que tange aos
aportes de Marx, Nietzsche e Freud para a hermenêutica parece que a
interpretação foucaultiana segue por uma via mais radical. Numa passagem em
que se fazem sentir ecos do filósofo do martelo lemos que “se a interpretação
não se pode nunca acabar, isto quer simplesmente significar que não há nada a
interpretar. Não há nada absolutamente primário a interpretar, porque no fundo
já tudo é interpretação” (Foucault 1997, 22). Essa passagem deixa claro que os
filósofos franceses estão partindo de pressupostos díspares, pois para Ricoeur
apesar da hermenêutica da suspeita, existe sentido a ser interpretado, ao passo
que para Foucault a interpretação é mais um processo de distorção violenta do
que uma elucidação. Para um, o símbolo é portador do duplo sentido, porque
ao mesmo tempo que revela, oculta. Para o outro, os símbolos são máscaras que
turvam o sentido. Em suma, na filosofia ricoeuriana temos a prevalência das
relações de sentido e na filosofia foucaultiana o domínio das relações de força6.
Mais do que destruir a consciência, na leitura de Ricoeur, os pensadores
da suspeita visavam a sua extensão e o seu aprofundamento. Acreditamos que
essa interpretação se torna ainda mais compreensível à luz do problema do
sentido. Assim, as críticas de Freud, Nietzsche e Marx funcionaram como uma
depuração do sentido livrando-o de suas deformações pela ideologia, pelas
neuroses ou por aquilo que cerceia a vontade de poder. A redução das ilusões e
a escuta dos símbolos fazem parte de um mesmo círculo hermenêutico e tem
em comum o descentramento da origem do sentido para outro lugar que não a
consciência imediata do sujeito7. Em outras palavras, existe uma direção para a
qual as críticas ao sentido imediato apontam, elas têm em vista aumentar nossa
compreensão de nós mesmos, da historicidade da nossa existência e da realidade
por meio dos símbolos. Um exemplo disso podemos encontrar na interpretação
de Freud com filtro hegeliano apresentada em Da interpretação: “o que pretende
Freud é que o analisado, ao fazer seu o sentido que lhe era estranho, amplie seu campo
de consciência, viva melhor e, finalmente, seja um pouco mais livre e, se possível,
um pouco mais feliz” (Ricoeur [1965] 1977, 38-39. Grifo nosso).
Voltemos nossas atenções para a analítica da obra de Freud empreendida
por Ricoeur. No livro publicado em 1965 o filósofo decide se concentrar nos
escritos freudianos e não na experiência analítica ou nas escolas pós-freudianas8.
A questão norteadora proposta pelo filósofo é “o que significa interpretar em
psicanálise?” (Ricoeur [1965] 1977, 61). Ricoeur concebe os escritos freudianos
como um discurso misto em que se entrecruzam as relações de força (energética)
e as relações de sentido (hermenêutica). Nessa lógica, mesmo nos textos mais
cientificistas como o Projeto para uma psicologia científica (1895) haveria espaço para
uma dimensão hermenêutica no que tange à interpretação dos sintomas9. A
clássica analogia do aparelho psíquico como sendo um sistema de neurônios
submetido às leis da mecânica abre, a contrapelo, a porta para a hermenêutica
uma vez que o psiquismo não é concebido um caos sem significado, mas sim
6 Para uma análise sobre a ressonância desses argumentos para a teoria da história, cf. Mendes
2011.
7 “O núcleo do sentido não é a ‘consciência’, mas algo diferente da consciência” (Ricoeur
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como um sistema que pode ser interpretado e decifrado pelo analista. Por certo,
a abertura para o campo hermenêutico ficará ainda mais evidente no célebre
tratado de 1900, A interpretação dos sonhos.
A articulação entre as relações de força e as relações de sentido no
pensamento freudiano proposta por Ricoeur ganha mais inteligibilidade à luz da
apropriação da psicanálise no hexágono francês. Uma das marcas da recepção
das ideias de Freud entre os filósofos franceses era a aplicação de um filtro que,
por assim dizer, visava separar o joio do trigo10. A parte “aceitável” costumava
ser incorporada ao sistema do filósofo, enquanto a “inaceitável” era criticada
com base nos pressupostos daquele sistema. Dessa maneira, sustenta Renato
Mezan (2002), o “filtro francês” desqualificava o lado “força” em favor do lado
“sentido”. A partir dos anos 1920, a metapsicologia foi taxada como
“mecanicista”, “naturalista” e até mesmo como “positivista”. Em contrapartida,
a prática da interpretação foi incorporada pelas filosofias da consciência e pelas
filosofias da existência.
Retornemos à Interpretação dos sonhos. A tese defendida por Freud na obra
de 1900 parece vir ao encontro da lógica do sentido ricoeuriana. Para o fundador
da psicanálise o sonho é mais do que um mero resíduo da vigília desprovido de
significado. Antes, mesmo quando parecem absurdos e sem-sentido, os sonhos
são fruto de uma operação mental complexa e passível de compreensão11. Na
análise de Ricoeur a hipótese freudiana segundo o qual os sonhos são realização
de desejos recalcados traz em seu bojo a imbricação entre as relações de força
(evidentes no processo de recalcamento) e as relações de sentido (em jogo na
noção de satisfação). Os dois principais procedimentos do trabalho do sonho, a
condensação e o deslocamento, apontariam para uma direção semelhante: o
sentido do sonho acontece no jogo entre o seu sentido manifesto, aparente e o seu
sentido latente, profundo (Freud 2001).
Em linhas gerais, a interpretação ricoeuriana aponta que a psicanálise
nunca analisa apenas forças nuas e cruas, mas forças em busca de um sentido12.
Essa postura instaura aquilo que o filósofo francês chama, em O conflito das
interpretações, de império do sentido:
10 Um bom exemplo desse procedimento pode ser encontrado no neotomista Roland Dal-
biez, a quem Ricoeur considera como seu “primeiro professor de filosofia”. Dalbiez publicou
em 1936 sua volumosa interpretação filosófica sobre “O método psicanalítico e a doutrina de
Freud”. Nesse livro o autor aceita o valor terapêutico método de análise proposto por Freud,
mas recusa a sua doutrina, a sua filosofia que desaguaria em uma espécie de pansexualismo. No
capítulo sobre o inconsciente de O voluntário e o Involuntário (Filosofia da Vontade 1), Ricoeur
dialoga abertamente com os argumentos de Dalbiez. Em sua Autobiografia intelectual, Ricoeur se
recorda com gratidão de seu primeiro mestre: “Penso também que devo a Roland Dalbiez minha
preocupação posterior de integrar a dimensão do inconsciente e, em geral, o ponto de vista
psicanalítico, a uma maneira de pensar fortemente marcada, no entanto, pela tradição da filosofia
reflexiva francesa” (Ricoeur s/d, 15).
11 “[Os sonhos] não destituídos de sentido, não são absurdos; não implicam que uma parcela
de nossa reserva de representações esteja adormecida enquanto outra começa a despertar. Pelo
contrário, são fenômenos psíquicos de inteira validade – realizações de desejos; podem ser inse-
ridos na cadeia dos atos mentais inteligíveis da vigília; são produzidos por uma atividade mental
altamente complexa” (Freud 2001, 136).
12 “Muito grosseiramente, pode-se dizer que o procedimento de ‘investigação’ tende a dar
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13 Para Gadamer (2011) e Grondin (1999) uma das maiores contribuições de Schleiermacher
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14 “Certamente, isso não quer dizer que não se produzam sínteses, mas que essa é puramente
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Com efeito, vê-se aí como surgir, sob os voos de quem quer que ache, o
que chamarei a reivindicação hermenêutica, que é justamente a que procura –
procura a significação sempre nova e jamais esgotada, mas ameaçada de
ter suas asinhas cortadas por aquele que acha. Ora, essa hermenêutica, nós
analistas estamos interessados nela porque a via do desenvolvimento da
significação que a hermenêutica se propõe, confunde-se, em muitos
espíritos, com o que a análise chama interpretação. Acontece que, se esta
interpretação não deve de modo algum ser concebida no mesmo sentido
que o da dita hermenêutica, a hermenêutica, ela mesma se aproveita disto
de bom grado. (Lacan [1964] 1979, 15. Grifos no original).
15 Para uma abordagem mais detida sobre o contraponto entre Ricoeur e Lacan, cf. Girardi
2017 e Simms 2007. “Em geral, portanto, Ricoeur e Lacan parecem caminhar juntos até a se-
mântica do desejo. Quando a palavra se revela insuficiente no trato com o inconsciente, no
entanto, a trajetória se divide. Perante o limite – a falência do significante –, Lacan atesta a pre-
cedência do real e do desejo, e por isso faz, ainda, psicanálise. Ricoeur, por seu turno, encontra
a exaltação do símbolo e realiza, destarte, uma hermenêutica” (Girardi 2017, 115). Devo à pes-
quisa de Marco Girardi a indicação dos textos de Lacan citados no presente artigo.
16 “Fazem grande causa hoje em dia disso que se chama hermenêutica. A hermenêutica não
objeta somente ao que chamei nossa aventura analítica, ela objeta ao estruturalismo tal como
este se enuncia nos trabalhos de Lévi-Strauss. Ora, o que é a hermenêutica? – se não é ler, na
série de mutações do homem, o progresso dos signos segundo os quais ele constitui sua história,
o progresso de sua história – uma história que se pode também, pelas bordas, prolongar-se por
tempos mais indefinidos. E o sr. Ricoeur tem que remeter à pura contingência aquilo com que
os analistas lidam a cada passo” (Lacan [1964] 1979, 146).
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Outro ponto levantado por Ricoeur em sua defesa diz respeito a sua
inclinação para a hermenêutica e para a dimensão simbólica da existência.
Michael Tort, no artigo que já mencionamos, havia sugerido que entre o primeiro
volume da Filosofia da vontade, quando Ricoeur trata do tema do inconsciente pela
primeira e Da interpretação não havia acontecido nada senão o contato do filósofo
com as ideias de Lacan. Quanto a isso Ricoeur argumenta que entre os livros
mencionados o que aconteceu, principalmente, foi o seu interesse pela Simbólica
do mal, o qual trouxe para o primeiro plano das suas preocupações a investigação
sobre a linguagem simbólica e os fenômenos de duplo sentido.
A celeuma em torno de Da interpretação deixou profundas marcas na
trajetória intelectual ricoeuriana. O encontro em Bonneval, no início da década
de 60, que parecia abrir o caminho para a cooperação intelectual a partir do
convite de Lacan para Ricoeur participar dos seminários acabou se
transformando em mais uma das disputas acadêmicas francesas do período.
Depois do clima gerado pelas trocas de acusações17, o filósofo ficou mais de uma
década sem publicar na França seus artigos sobre psicanálise, priorizando
divulgar suas ideias entre o público estadunidense. Esses textos foram reunidos
postumamente no volume Escritos e conferências 1: em torno da psicanálise.
PSICANÁLISE E FENOMENOLOGIA:
O INCONSCIENTE E O PROBLEMA DO SENTIDO
17 “Vivi suas sessões como uma obrigação, uma corveia e uma frustração terríveis, que muito
regularmente me impusera a mim próprio, porque tinha sempre a impressão de que ele ia dizer
algo importante que ainda não fora dito, que iria ser dito na próxima vez e assim sucessivamente
(...) Era para mim uma espécie de provação voltar lá a todo o custo com o sentimento de uma
obrigação, mas também de uma incrível decepção. Lembro-me de ter regressado uma tarde e de
ter dito à minha mulher: ‘Venho do seminário, não entendi nada!’ Nesse momento, o telefone
tocou: era Lacan, que me perguntava: ‘Que achou do meu discurso?’ Respondi-lhe: ‘Não com-
preendi nada’. Ele desligou brutalmente”. (Ricoeur 1997, 101).
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18 Tal movimento tem claras implicações antropológicas: “para além da revisão do conceito
de consciência imposta pela ciência do inconsciente [...] o que está em jogo é a possibilidade de
uma antropologia filosófica capaz de assumir a dialética do consciente e do inconsciente” (Ricoeur
[1969] 1978, 101).
19 “Enquanto a epoché husserliana era uma redução à consciência, a epoché freudiana se anuncia
realizadas por Ricoeur em diálogo com Freud que foram publicadas em A memória, a história, o
esquecimento (2000).
21 “O objeto de estudo do analista é o sentido para um sujeito dos mesmos acontecimentos
que o psicólogo considera como observados e erige em variáveis de meio ambiente. Consequen-
temente, tampouco a conduta é para o analista uma variável dependente, observável de fora, mas
a expressão das mudanças de sentido da história do sujeito” (Ricoeur [1965] 1977, 297. Grifos
nossos).
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•
de decifrar senão porque entre o sentido manifesto e o sentido oculto estão interpostos meca-
nismos de distorção (Entstellung), esses mesmos mecanismos que Freud dispôs sob o título geral
“trabalho do sonho” em A interpretação dos sonhos?” (Ricoeur [1979] 2010, 74-75).
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25 A lógica bíblica do “é preciso perder para ganhar” comparece aqui: “Depois de Freud, já
não é possível estabelecer a filosofia do sujeito como filosofia da consciência. Reflexão e cons-
ciência já não coincidem; é preciso perder a consciência para encontrar o sujeito” (Ricoeur [1969]
1978, 170).
26 “A crítica que Hegel faz da consciência individual e da sua pretensão de se igualar aos seus
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a filosofia dita um objetivo aos eventos, e, assim, esta busca por causas
finais, sejam elas deduzidas da essência da natureza ou do próprio homem,
perturba e falsifica toda visão livre sobre a ação das próprias forças. A
História Teleológica jamais alcança a verdade viva dos destinos do mundo,
porque, afinal, o indivíduo sempre precisaria alcançar o seu apogeu dentro
do limite da existência transitória, não conseguindo de maneira alguma
incorporar à vida o que seria o seu objetivo final dos acontecimentos, mas
sim em instituições mortas e na busca de conceitos que falam de uma
totalidade ideal. (Humboldt [1821] 2010, 91).
28 Para José Henrique Santos a “contradição dialética” por meio da qual a lógica do sentido
significações que tiram o seu sentido do movimento de totalização que as arrasta e as faz ultra-
passarem para a frente delas” (Ricoeur [1969] 1978, 173).
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É notável que na obra dos anos 2000 Ricoeur assinale uma analogia entre
o trabalho de luto e o trabalho de rememoração: os dois buscam elaborar sentido
para experiências do passado que pareciam resistir a significação; ambos são
custosos, porém libertadores30, pois possuem um caráter curativo, terapêutico.
No caso do trabalho de luto a tarefa consiste em, de algum modo, cortar algumas
conexões com o objeto perdido e redirecionar a energia libidinal para outro
objeto ou experiência. Agora, o passado doloroso e perdido não é mais um
estorvo que não passa. O luto normal, no diagnóstico de Freud, é uma superação
da perda, ou, em vocabulário hegeliano, um trabalho do negativo31. “Após a
consumação do trabalho do luto, o Eu fica novamente livre e desinibido” (Freud
[1915] 2010, 174). O télos do processo de luto é a cicatrização das feridas que
qualquer morte provoca nos sobreviventes.
Em suma, na filosofia de Ricoeur encontramos uma interpretação
hermenêutica da psicanálise de Freud, o que, em linhas gerais, implica partir do
pressuposto da correlação entre existência e linguagem e enfatizar a dimensão
terapêutica do processo de constituição de sentido para a experiência. Trocando
em miúdos, para Ricoeur, a finalidade teleológica do processo analítico é
aumentar a compreensão de quem nós somos, da nossa própria existência, por
meio da elaboração de intepretações mediadas pela linguagem (Mendes 2019).
REFERÊNCIAS
CERTEAU, Michel de. História e psicanálise entre ciência e ficção. Trad. Guilherme João de
Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
DESCOMBES, Vincent. Lo mismo y lo otro. Cuarenta e cinco anos de filosofia francesa
(1933-1978). Segundo Edición. Madri: Ediciones Catedra, 1988.
DOSSE, François. Paul Ricoeur. Les sens d’une vie (1913-2005). Paris: La Découverte,
2008.
DOSSE, François. Paul Ricoeur: um filósofo em seu século. Tradução de Eduardo Lessa
Peixoto de Azevedo. Rio de Janeiro : FGV Editora, 2017.
FRANCO, Sergio de Gouvea. Hermenêutica e psicanálise na obra de Ricoeur. São Paulo :
Edições Loyola, 1995.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Trad. Walderedo Ismael de Oliveira. Edição
comemorativa de 100 anos, contendo em apêndice: Uma premonição onírica
realizada. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916).
Tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
(Obras completas, v. 12).
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método 1: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 11. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2013.
30 “Aquilo que justifica o método é o fato de que o sentido descoberto não só satisfaz a
brasileira” há uma reflexão sobre a possibilidade da escrita da história contribuir para o trabalho
de luto, a partir das ideias de Ricoeur, Freud e Certeau. Cf. (Mendes 2016).
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ARTIGO
DA VERDADE HISTORIAL
MOVIMENTOS DE
CONFLUÊNCIA ENTRE A
TEORIA PSICANALÍTICA
E A CONCEPÇÃO
ARENDTIANA
[FUNCIONAL] DE HISTÓRIA
DIEGO AVELINO DE MORAES CARVALHO
Instituto Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brasil
prof.diemoraes@gmail.com
orcid.org/0000-0003-4583-620X
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ARTICLE
ON HISTORICAL TRUTH
MOVEMENTS OF
CONFLUENCE BETWEEN
OSYCHOANALYTICAL
THEORY AND THE
ARENDTIAN
[FUNCTIONAL]
CONCEPTION OF HISTORY
DIEGO AVELINO DE MORAES CARVALHO
Instituto Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brazil
prof.diemoraes@gmail.com
orcid.org/0000-0003-4583-620X
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que nos permita suportar de forma consciente toda uma carga que os
acontecimentos despejam sobre nós. Compreender o fenômeno histórico é
indagar a realidade e nosso posicionamento frente a ela. Ao historiador
compete gerar, como resultado de sua produção de sentido[s], uma tomada
política de juízo e posicionamento ético frente aos dilemas e paradoxos
inscritos nos acontecimentos humanos.
Por fim, se o que se busca numa análise não é uma reconstrução da
verdade histórica por meio de uma verdade material, mas antes uma verdade
historial por meio de uma evocação do Real, não uma correspondência com a
realidade. O novo arendtiano vem ao encontro dessa concepção, pois se trata de
extrair o evento singular da história da qual não se há registro, simbolização
materializada documentalmente que permita inferir causalidades aparentes
dadas a priori: é um trabalho; uma construção de análise. Em suma, se na análise
parte-se da verdade histórica cifrada pelo significante dos sintomas e atos
falhos para se chegar a uma verdade historial, no exercício histórico parte-se
daquilo que possa ter sido simbolizada ou sustentada imaginariamente [as
fontes, documentos, testemunhos, memória social etc], porém não se detendo
aí: importa - numa instância ou n’outra - se chegar ao furo radical dos arquivos
tomados como ruínas, como rasuras da letra cifrada no impossível da
satisfação ou simplória inscrição.
Jacques Lacan sustentava que a verdade nem sempre poderia ser dita
em sua totalidade posto que “as palavras falham”. No entanto, seria justamente
por meio dessa impossibilidade que a verdade se apegaria ao real. Lacan chama
a atenção que aquilo que Freud tratara anteriormente sobre o nome de verdade
seja o que aqui tomamos como “resto" ou “novo" no processo histórico
(Arendt). Importa sublinhar que o efeito de uma análise - e seu avanço - se dá
quando desperta no analisante uma produção a partir de seus impasses,
“libertando-o” para uma tomada ética e autônoma de sua própria vida. Não
sem antes ele ter que se deparar com as próprias perplexidades de seu percurso
e reconstrução historial singular. O mesmo se daria - numa perspectiva
arendtiana - com o historiador e seu leitor: a produção de um “efeito
catártico”, que o liberte para o juízo e a ação a partir do confrontamento com
aquilo que nem sempre a história oficial ousou desvelar.
Para [in]concluir, a bem da “verdade”, utilizar como recurso teórico o
pensamento de Hannah Arendt e autores basilares da teoria psicanalítica como
Freud e Lacan é operar fora de uma zona de domínio próprio de ambos. Trata-
se de um exercício de aproximação e ilação. Isso posto, pois há severos
problemas de ordem conceitual no que Arendt, por exemplo, entende por
História - seja ela como ciência/escrita do passado/presente, seja como fluxo
do tempo. O mesmo pode se afirmar sobre Freud e Lacan, em especial. Se, por
um lado, o fundador da psicanálise considerou a relação entre história e
psicanálise profícua, Lacan a seu turno raramente evoca essa conexão,
aparecendo na maioria das vezes de forma coadjuvante ao recurso topológico
em seus seminários.
Quando pretendemos apontar uma concepção de história em Arendt
nos colocamos num árduo desafio, especialmente pela autora não ser uma
historiadora a rigor (por formação ou ofício), mas sobretudo porque a própria
categoria da história aparece em Hannah Arendt como um problema de ordem
conceitual e metodológica. O que é central em sua obra, por obviedade
identificada em seus escritos, é certamente os temas da política e da liberdade.
A história é algo que aparecerá de modo passageiro, embora não menos
intenso, especialmente na abordagem clara e direta do segundo capítulo da
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obra Entre o passado e o futuro (2016), intitulado "O conceito antigo e moderno de
história". E, nesse texto, o conceito se mostra difuso, sobretudo, por Arendt
não separar objetivamente o que seja o ofício do historiador, a prática
historiográfica e a própria história tomada como uma continnum temporal.
Diferentemente de Jacques Lacan, Sigmund Freud evoca o campo da
História em diversos momentos de seus textos, com destaque para Totem e
Tabu (1913), no capítulo intitulado “O interesse da psicanálise”. Ali, o psicanalista
austríaco assume a perspectiva da História como um campo que visa dar conta
da compreensão acerca da continuidade da história evolutiva de cada sujeito
em face de sua inserção numa “história maior”: a das civilizações.
Notadamente, a influência que aqui se apresenta é a daquela consagrada por
basilares como Leopold Von Ranke em sua abordagem da história de longa
duração, universal, cuja direção caminha da barbárie à suposta civilização.
Não obstante, sabe-se que Freud não cedeu a um uso positivista do
trato dos documentos históricos - o que na clínica psicanalítica poderia ser
tomada como a história geral do paciente. Ao contrário, Freud subverte
categorias centrais de reflexão no campo da Teoria da História: os próprios
conceitos de tempo e de história. Afinal, como atesta Sylvie Le Poulichet
(1994), há dois tempos que se articulam no campo da análise mediado pela
lógica da transferência. Em outros termos, a análise é aquilo da ordem que
aparta o tempo cronológico, fazendo-se necessário lidar com o tempo que
“passa e não passa”, não reduzindo a questão da temporalidade a uma uma
linearidade em termos lógicos. Segundo Costa (2019, 11), servindo-se do
aporte de Michel de Certeau quando questiona “o que faz Freud da História?”,
indaga:
(…) A princípio, ele revela a partir de uma Aufklärung, ou seja, uma
clarificação ou elucidação, a própria legibilidade do passado. O mais
antigo é mais claro. É o que está implícito no subtítulo de “Totem e tabu:
algumas concordâncias entre a vida dos homens primitivos e dos
neuróticos. Disso se constata outra subversão freudiana: considerar o
passado no presente. Nisso Freud se distancia por completo dos
historiadores, inclinados a organizar o tempo separando passado e
presente, bem como suas categorias de análise: economia, sociedade,
cultura, dentre outros. Seria Freud anacrônico? A experiência clínica
revela ao criador da psicanálise a atemporalidade do inconsciente e o
desejo indestrutível. Assim, é o próprio sujeito quem é anacrônico. (…)
Podemos dizer que o desejo não envelhece ao atar passado, presente e
futuro em uma mesma linha. Assim, ao lidar com o Unbewusste (não
saber) e sua atemporalidade, Freud trabalha com aquilo que é deixado de
lado pela historiografia.
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REFERÊNCIAS
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ARTIGO
METAPSICOLOGIA SOBRE
A FORÇA INCONSCIENTE
DO PASSADO
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ARTICLE
METAPSYCHOLOGY ON
THE UNCONSCIOUS POWER
OF THE PAST
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complexo de escritos técnicos e descritivos que apresentam de maneira objetiva não apenas
análises, mas também as estruturas que fundamentam essas análises que a psicanálise produz
enquanto método e ciência. O sentido geral da palavra diz respeito ao que está além ou antes
da psicanálise como método aplicado de sua psicologia. Meta-psicologia, nesse sentido, não
apenas nomeia um determinado tipo de forma temática dentro da ciência psicanalítica, mas,
sobretudo, reúne os fundamentos gerais das estruturas psíquicas pressupostas pela análise. “Na
medida em que Freud trabalhou com seu neologismo ‘metapsicologia’, que havia usado pela
primeira vez numa carta a Fließ em 13 de fevereiro de 1896 [Freud-Fließ, p.181 (172)], ele
passou a defini-lo de modo cada vez mais estrito, como uma psicologia que analisa as
operações da mente a partir de três perspectivas: a dinâmica, a econômica e a topográfica. A
primeira dessas perspectivas acarreta a sondagem dos fenômenos mentais, até as suas raízes nas
forças inconscientes dominadas por conflitos, originadas principalmente das pulsões, mas não
restritas a elas; a segunda tenta especificar as quantidades e as modificações das energias
mentais; a terceira se encarrega de diferenciar os diversos domínios da mente. Juntas, essas
perspectivas delimitadoras distinguiam claramente a psicanálise das outras psicologias” (Gay
1988, 334).
2 Os trabalhos completos de Freud, Gesammelte Werke (1949) e Studienausgabe (1975), serão
mais detalhada o problema destacado por Freud, em diálogo com Walter Benjamin e Martin
Heidegger.
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[nachträglich] de todo significado dado pela consciência a si mesma. “Não é o vivido em geral
que é reinterpretado a posteriori, mas intencionalmente aquilo que no momento em que foi
vivido não pode ser plenamente significativo” (Féve 2006, 764).
5 As referências aos trabalhos de Benjamin, Gesammelte Schriften (1991), e as suas cartas,
Gesammelte Briefe (2000), serão feitas pelo uso de GS e GB, respectivamente, seguido do número
do tomo e paginação. As traduções das teses “Sobre o conceito de história” são de Jeanne-
Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller (Cf. Löwy 2005), com ligeiras modificações. A respeito
da centralidade do tempo passado na obra de Walter Benjamin, tomo a liberdade de
recomendar meu texto “Sobre o conceito de passado em Walter Benjamin” (2019b).
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6 Em uma lista bibliográfica de leitura Benjamin, além dos textos citados figuram: Der Witz
und seine Beziehung zum Unbewußten; Psychoanalytische Bemerkungen über (einen autobiographisch
beschriebenen Fall von Paranoia) (Fall Schreber) mit Nachtrag (in: »Sammlung kleiner Schriften zur
Neurosenlehre«, 3. Folge, Leipzig, Wien 1913), Zur Einführung des Narzißmus
(wahrscheinlich aus »Sammlung kleiner Schriften zur Neurosenlehre«, 4. Folge, Leipzig, Wien
1918); Über Psychoanalyse. Fünf Vorlesungen geh(alten) vor der Clark-University; todos textos de
Freud (Cf. GS VII.1, 440-441; 443).
7 Vale ressaltar que atualizar, em Benjamin, não significa meramente presentificar ou
encontrar sua forma no tempo presente, mas sim tornar ato um desejo latente ou uma intenção
suspensa.
8 “[D]as percepções que chegam até nós, permanecem em nosso aparato psíquico um
vestígio ou rastros que nós podemos chamar de ‘traços mnêmicos’ (...). A função a que se
refere esse traço mnêmico chamamos de ‘memória’” (SA II, 514).
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as conexões teóricas emergem por meio da pergunta: “em que condições pode
a mémoire involontaire evocar uma memória?” (Raulet 1996, 12). Em pelo menos
duas ocasiões, no ensaio sobre Baudelaire, Benjamin responde a essa questão e
demonstra os elos conceituais que animam o debate organizado nesse artigo,
que desenha a condição das correspondances baudelairianas, particularmente a
estrutura de temporalidade, sempre sob o prisma da não-intencionalidade
(Schlossman 1992).
E ainda:
10 A tradução é retirada do volume III das Obras Escolhidas (Benjamin 2004), com algumas
alterações.
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Desse ponto de vista, continua o Sr. Proust, meu livro será talvez como
um ensaio de uma sequência de ‘Romances do inconsciente’. Não teria
nenhuma vergonha em dizer 'romance bergsoniano', se eu assim
acreditasse, pois em toda época a literatura procurou se ligar - a posteriori,
naturalmente - à filosofia reinante. Mas não será exato, porque minha
obra é dominada pela distinção entre memória voluntária e memória
involuntária, distinção que não somente não se encontra na filosofia do
Sr. Bergson, mas até mesmo a contradiz.
— Como o senhor estabelece essa distinção?
— Para mim, a memória voluntária, que é sobretudo uma memória da
inteligência e dos olhos, não nos apresenta senão a face inverídica do
passado; um odor, um sabor encontrado em circunstâncias totalmente
diferentes, ao despertar em nós, apesar de nós mesmos, o passado,
sentimos o quanto o passado foi diferente daquilo que acreditamos
lembrar e que nossa memória voluntária pinta, como os maus pintores,
com cores sem verdade. Já no primeiro volume, o senhor verá o
personagem que conta, que diz: ‘Eu’ (e que não sou eu), reencontra de
uma vez só os anos, os jardins, os seres esquecidos, no gosto de um gole
de chá onde ele molhou um pedaço de madeleine (...).
Veja o senhor, eu acredito que o artista deveria demandar a matéria
prima da sua obra principalmente das memórias involuntárias. Primeiro,
precisamente porque são involuntárias, formam-se delas mesmas,
atraídas pela afinidade de um minuto idêntico e são por si sós uma marca
de autenticidade. Em seguida, elas nos mostram as coisas em uma
dosagem exata de memória e esquecimento. E, enfim, como elas nos
fizeram provar a mesma sensação em uma circunstância diferente, elas
são liberadas de toda contingência, elas nos dão a essência extratemporal,
aquela que é justamente o conteúdo do bom estilo, a verdade geral e
necessária que a beleza do estilo traduz.
(Proust 1988: 452-453).11
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corporeidade e alma, como bem indica o título da sua obra Leib und Seele, de 1920.
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36> (GS VI, 55), sobre o aparato psíquico freudiano – que a literatura
psicanalítica trata de formalizar em 1915 –, sugerindo possuir certo
conhecimento da metapsicologia.
A ESPONTANEIDADE do Eu é bastante distinta da liberdade do
indivíduo. A questão do livre-arbítrio é sempre erradamente baseada na
espontaneidade, assim é também com a questão sobre a liberdade do ato
de pensamento ou da mera ação corpórea. Tal coisa não existe. O
indivíduo pode ser livre apenas em relação aos atos que foram pensados.
A pergunta sobre a espontaneidade do Eu [ou Ego] pertence a uma
conexão completamente diferente (biológica??). (GS VI, 55).
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Tudo o que foi esquecido, por difusão, tudo o que era consciente e não
mais o é, “vasto fundo submarino onde todas as culturas, todos os estudos,
todas as diligências dos espíritos e das vontades, todas as revoltas sociais, todas
as lutas empreendidas encontram-se reunidas num recipiente informe”, sem
mais os elementos passionais da vida individual, conformam-se como o
inconsciente do esquecimento [inconscient de l'oubli]. Tudo isso reaparece nos sonhos,
nos pensamentos, nas decisões etc. O inconscient de l'oubli reaparece como uma
“febre”, como “pulsão” nas revoluções e guerras, especialmente; como
catalizador dos “ritmos vulcânicos e dos cursos d’água subterrâneos” da
história, e “nada há na superfície do globo que não tenha sido subterrâneo
(água, terra, fogo). Não há nada na inteligência que não tenha sido digerido e
que não tenha circulado nas profundezas”. Ora, o inconsciente do esquecimento é o
passado oprimido da XVII tese sobre o conceito de história (GS I.2, 702-703). A
metapsicologia, transposta dos limites individuais até os limites da história e do
coletivo (Kleiner 1986, 506, 512), mais uma vez aparece de maneira cifrada,
anunciada discretamente por Benjamin. Passado oprimido, passado recalcado;
inconsciente do esquecimento, inconsciente cultural.
O inconsciente do esquecimento, mencionado apenas uma vez em toda obra
das Passagens, certamente não é um dos conceitos cruciais da obra
benjaminiana, mas auxilia na compreensão do fundamento não-intencional que
a consciência histórica possui. A memória involuntária individual, cuja forma
coletiva é a imagem dialética, constitui o fundamento da consciência histórica ou
de se estar em uma história que permite penetrar sua inconsciência, pois “a
imagem dialética é definida como a memória involuntária que redime a
humanidade” (GS I.1, 1233). Nesse sentido, ao constituir a história de maneira
imperceptível, o inconscient de l'oubli apenas é inteligível por meio da memória
involuntária, ou seja, das estruturas não-intencionais metapsicológicas da
(in)consciência.
O inconscient de l'oubli14, destarte, permite o melhor entendimento da
articulação, na maior parte das vezes tácita, que Benjamin realiza entre a ideia
de inconsciente (freudiana, proustiana, surrealista) e os conceitos de memória
involuntária (proustiana), esquecimento, imagem dialética e toda a
metapsicologia em geral para fundamentar teoricamente a “consciência
histórica” que é também inconsciência. A ideia benjaminiana de inconsciente,
seria, portanto, mais abrangente do que a freudiana, ainda que se corresponda
com as suas exigências, tal como seu caráter escondido e necessariamente
passado.
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REFERÊNCIAS
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ARTIGO
MICHEL DE CERTEAU
E A PSICANÁLISE
AS ESTRATÉGIAS DO
TEMPO E AS FRONTEIRAS
DA HISTÓRIA COM A
LITERATURA
ROBSON FREITAS DE MIRANDA JUNIOR
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte | Minas Gerais | Brasil
rfm.juninho@gmail.com
orcid.org/0000-0003-0870-1146
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ARTICLE
MICHEL DE CERTEAU
AND PSYCHOANALYSIS
STRATEGIES OF TIME AND
THE BORDERS BETWEEN
HISTORY AND
LITERATURE
ROBSON FREITAS DE MIRANDA JUNIOR
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte | Minas Gerais | Brazil
rfm.juninho@gmail.com
orcid.org/0000-0003-0870-1146
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1 Essa é uma questão complexa e muito ampla, conforme indica José D’Assunção Barros
em seu artigo “História e saberes psi – considerações interdisciplinares” (Barros 2011) e, portanto,
escapa aos limites de nossa pesquisa. Nesse trabalho temos procurado compreender os
contornos que essa discussão assumiu no trabalho específico de Certeau.
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porque haveria uma correlação profunda entre o desejo que move o sujeito e o
surgimento das instituições sociais. Para Freud
a psicanálise estabelece uma íntima relação entre todas essas realizações
psíquicas dos indivíduos e das comunidades, ao postular a mesma fonte
dinâmica para ambos. [...]. Toda a história da civilização é um relato dos
caminhos que os seres humanos tomaram para “vincular” seus desejos
não satisfeitos, sob as condições cambiantes – e modificadas pelo avanço
técnico – de concessão e frustração deles por parte da realidade.
(Freud 2012, 357).
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•
4 Esses dois termos assumem, em Freud, um sentido peculiar. Laplanche define tópica como
sendo a “teoria ou ponto de vista que supõe uma diferenciação do aparelho psíquico em certo
número de sistemas dotados de características ou funções diferentes e dispostos numa certa
ordem uns em relação aos outros, o que permite considerá-los metaforicamente como lugares
psíquicos de que podemos fornecer uma representação figurada espacialmente” (Laplanche
2001, 505). Podemos falar, portanto, em duas tópicas freudianas, sendo a primeira aquela em
que a distinção principal é feita entre Inconsciente, Pré-consciente e Consciente, e a segunda a
que distingue três instâncias: o isso, o eu e o super-eu (Freud 2010). Laplanche ainda define
dinâmica como a “qualificação de um ponto de vista que considera os fenômenos psíquicos
como resultantes do conflito e da composição de forças que exercem uma certa pressão, sendo
essas forças, em última análise, de origem pulsional” (Laplanche 2001, 119).
5 É fundamental destacarmos aqui que a noção freudiana do “inconsciente” é
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6 A expressão histórica (historisch) possui um sentido peculiar para Freud. Esse termo foi
Contudo, essa atemporalidade estaria relacionada ao fato de que nele as fronteiras entre
passado e presente estão borradas, pois não são facilmente distinguidas (e, talvez, nem
existam). Presente e passado coexistem no inconsciente. Estão imbricados um no outro.
8 Este texto foi publicado pela primeira vez em 1978, em uma obra organizada por alguns
historiadores, dentre eles Jacques Le Goff, cuja proposta era discutir, em um volume coletivo,
as transformações da disciplina histórica. “Psychanalyse et histoire” (LE GOFF 1978, 477-487).
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9 Contudo, um limite dessa “analogia” apresentada aqui por Certeau deve ser ressaltada.
Em primeiro lugar, não está claro a que “narrativa” Certeau se refere, uma vez que mobiliza
esse termo para pensar dois campos de saber distintos. Poderíamos entendê-la como o
exercício operado pelo sujeito no interior da clínica analítica, ou como a “prática de escrita”
empreendida pela disciplina. Em segundo lugar, deve ser questionada a associação imediata
entre a suposta proximidade, caso seja esse o sentido empregado por Certeau, da narrativa no
contexto da prática terapêutica e da narrativa construída pelo historiador. Essa discussão, por
ser ampla e complexa, escapa aos propósitos de nosso trabalho.
10 Um bom exemplo desse tipo de pesquisa e discussão é a obra de Jacques Le Goff,
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O autor conclui, então, que o outro está no lugar habitado pelos vivos e
é por meio dele que as ambivalências do tempo se insinuam nesse lugar,
tornando ele mesmo ambivalente em relação a si. Sendo assim, o discurso da
história tenta apagar todo o rastro do outro, porém conserva – contra a
vontade dos investigadores – os fragmentos que denunciam sua existência em
seu próprio presente.
Certamente, Michel de Certeau não é o único a conceber uma
temporalidade para a história calcada numa dinâmica de imbricações entre o
presente e o passado. As enigmáticas relações entre essas instâncias temporais
tem sido, há muito tempo, objeto de reflexões de filósofos, historiadores e
cientistas sociais. Entre os historiadores, alguns fornecem importantes
contribuições para os contornos que essas discussões assumiram ao longo do
século XX e das últimas décadas12.
Como ressalta François Dosse, por exemplo, os próprios fundadores
dos Annales, Marc Bloch e Lucien Febvre, concebem o discurso historiográfico
como intimamente ligado ao presente. A grande inovação que esses autores
teriam trazido à historiografia seria o estabelecimento de uma nova relação do
historiador com suas fontes, pois “ele já não deve escrever o que estas lhe
ditam, mas, ao contrário, tornar-se um diretor de cena que a recompõe,
constrói e desconstrói ao sabor de suas hipóteses” (Dosse 2001, 273). Essa
relação ativa do historiador com suas fontes teriam induzido a uma nova
relação com o passado, que se torna inseparável do presente.
O historiador José Carlos Reis entende que os fundadores dos Annales
procuraram romper com três perspectivas que concebiam – de formas distintas
– as relações entre passado e presente. Primeiramente, com a perspectiva na
qual o passado tende a se isolar do presente e a se constituir como um objeto
em si. Em seguida, com a concepção na qual o presente tende a absorver em si o
passado13, que passa a fazer parte da contemporaneidade. Por fim, com uma
perspectiva que entende que a sucessão do tempo histórico se torna secundária
em relação a um tempo lógico, marcado pela simultaneidade. O autor destaca
que eles propuseram uma percepção na qual “o passado não se isola do
presente. Ele é abordado a partir do presente, que levanta as questões sobre o
passado que o ajudarão a melhor se conduzir e se compreender. Há, portanto,
uma relação de interrogação recíproca” (Reis 2008, 34)14.
12 Nesse sentido, é essencial destacarmos que, por se tratar de uma discussão ampla que
tem mobilizado uma vasta e inesgotável bibliografia, não podemos abrangê-la em nosso
trabalho, pois além da carência de espaço e tempo, esse empreendimento escaparia aos
propósitos aqui delineados. Podemos destacar, por exemplo, as importantes contribuições do
historiador alemão Reinhart Koselleck para essa discussão, ao propor os conceitos de “espaço
de experiência” e “horizonte de expectativa” para pensar as dinâmicas da temporalidade
(Koselleck 2006). Ou mesmo, as propostas mais recentes de François Hartog que, dialogando
com a obra de Koselleck, propôs a noção de “regimes de historicidade” (Hartog 2013).
Também é interessante a discussão apresentada por José Carlos Reis sobre a ideia de “tempo
psicológico” (Reis 2009). Podemos também fazer referência à obra do filósofo Paul Ricoeur,
especialmente suas discussões sobre a questão do tempo e de suas relações com a narrativa
histórica, que tem tido muito impacto dentre os historiadores nas últimas décadas (Ricoeur
2010).
13 O autor usa essa expressão para designar uma relação de absoluta identidade entre
presente, este não pode absorver o primeiro e torna-lo contemporâneo, pois, “o diálogo só é
possível entre diferentes que se comunicam. E essa é a perspectiva da Nouvelle Histoire: passado
e presente são diferentes, são momentos singulares do tempo histórico” (Reis 2008, 35). Mas é
justamente por serem diferentes que podem informar um ao outro, podendo estabelecer,
assim, uma relação de conhecimento recíproco.
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Para Marc Bloch, por exemplo, a relação entre os tempos possui tanta
força que entre eles os vínculos de inteligibilidade se dão, verdadeiramente, em
um sentido duplo, isto é, “a incompreensão do presente nasce fatalmente da
ignorância do passado” (Bloch 2001, 65). O historiador ainda acrescenta que
“o erudito que não tem o gosto de olhar a seu redor nem os homens, nem as
coisas, nem os acontecimentos, [ele] merecerá talvez, como dizia Pirenne, o
título de um útil antiquário. E agirá sensatamente renunciando ao de
historiador” (Bloch 2001, 66). Por isso, para o autor, seria impróprio entender
a história como uma mera ciência do passado15. Nesse sentido, as palavras de
Fernand Braudel ecoam essa percepção: “a história é fruto de seu tempo”
(Braudel 2011, 17), pois não só nasce em um presente como também mantém
seus “olhos” voltados para ele.
Michel de Certeau também entendia que o discurso historiográfico está
profundamente relacionado a questões que envolvem o próprio historiador16 e
que interrogar esse sujeito do saber é, igualmente, ter de pensar o tempo. Isso
porque esse sujeito se organiza como uma estratificação de tempos
heterogêneos e é estruturado por sua relação com a alteridade. Certeau, talvez,
tenha ido além das perspectivas de Bloch e Braudel acima delineadas uma vez
que, para ele, o tempo representa precisamente a impossibilidade da
“identidade do lugar”, pois “o problema da história inscreve-se no lugar desse
sujeito que é, em si mesmo, dinâmica da diferença, historicidade da não
identidade a si” (Certeau 2012, 67).
Há aqui, portanto, um último aspecto que ainda precisa ser percebido.
O “tumulto” – causado pela inscrição do sujeito do saber no tempo (e do
tempo no sujeito do saber) – na segurança do lugar e dos objetos da
historiografia é agravado por aquilo que Certeau chama de retorno do afeto e
das paixões no discurso. Conforme aponta o historiador, depois de ter sido
central na análise “de uma sociedade até o final do século XVIII (até Spinoza,
Hume, Locke ou Rousseau), a teoria das paixões e interesses foi eliminada,
lentamente, pela economia objetivista que, no século XIX, acabou por
substituí-la por uma interpretação racional das relações de produção” (Certeau
2012, 67). Contudo, e é nesse ponto que a importância de Freud é retomada
pelo historiador, após um século de rejeição, a economia dos afetos teria
retornado sob o modo freudiano do inconsciente: “com ‘Totem e tabu’, ‘Mal-estar
na civilização’, ou ‘Moisés e o monoteísmo’, apresenta-se a análise – necessariamente
das mulheres, dos negros, dos judeus, das minorias culturais etc. (Certeau 2012, 66). Com isso,
o autor não quer dizer que a “objetividade” dessas pesquisas está comprometida, mas apenas
apontar que nelas (e inescapavelmente em qualquer pesquisa historiográfica) o lugar em que se
produz o discurso é claramente evidenciado e, visivelmente, pertinente para a construção da
pesquisa.
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17 Certeau atribui sentidos bem específicos e diversos ao termo “ficção”. Dessa forma,
entendemos ser importante evidenciar que esse conceito possui um longa e complexa história
de significações distintas, diante das quais as percepções de Certeau podem ser situadas. Luiz
Costa Lima destaca, por exemplo, que na antiguidade romana (que se prolonga até o
cristianismo medieval), o termo fictio tinha, na maior parte das vezes, o sentido de ilusão,
falsidade, mentira. Durante o renascimento, a redescoberta dos clássicos (sobretudo,
Aristóteles) teria provocado uma suspensão da suspeita contra as então chamadas “belas-
artes”. Contudo, “sua legitimação através de normas retóricas, assim como o prestígio da
imitativo, falsamente entendida como correspondente à mimesis, impediam que fictio tivesse um
valor distinto” (Lima in Malerba 2016, 76). O autor ainda destaca que é, sobretudo, a partir do
século XVIII que a oposição entre realidade e ficção assume um perfil distinto, que não
favorece a fictio. Isso ocorreria porque sua oposição com a realidade se reforça na medida em
que o termo realidade “está relacionado com certo tipo de comunicação, a comunicação
referencial” (Lima in Malerba 2016, 76). Portanto, desde o início dos tempos modernos, a
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sociais nas décadas finais do século XX impõe a necessidade de recordar que existe uma
diferencia entre história – como análise histórica – e literatura” (Silva 2015). Contudo, é
importante destacar que, para ele, essa distinção seria melhor compreendida se fosse vista
como uma diferença de grau e não de natureza (Silva 2015, 19).
19 Para Certeau, esse tipo de percepção implica uma dupla defasagem que consiste, por um
lado, “em fazer com que o real seja plausível ao demonstrar um erro e, ao mesmo tempo, em
fazer crer no real pela denúncia do falso. Ela pressupõe, portanto, que o não falso deve ser
real” (Certeau 2012, 46). O procedimento é, em tese, simples, pois, ao comprovar os erros, o
discurso leva a considerar como real o que lhes é contrário.
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discurso com quem o produz – seja “com uma instituição profissional e com
uma metodologia científica” (Certeau 2012, 48) –, é possível considerar a
historiografia como uma mistura de ciência e de ficção. E é se inscrevendo
nessa interseção que as contribuições de Freud são, para Certeau, fundamentais
para pensar as relações que a historiografia mantém com a literatura20.
“Quais seriam os impactos da teoria freudiana sobre a configuração
que, nos últimos três séculos, têm orientado as relações entre história e
literatura?”. É com essa pergunta que Certeau inicia seu artigo O “romance
psicanalítico”: história e literatura21, no qual se debruça, a partir de sua leitura de
Freud, sobre essa espinhosa questão. O historiador francês entende que
história e literatura passaram por um processo de divórcio, sobretudo, ao longo
dos séculos XVII a XIX. Nesse período, as ciências ditas objetivas ergueram
uma fronteira entre o objetivo e o imaginário, isto é, entre aquilo que elas
controlavam e o seu “resto” (Certeau 2012, 91). Contudo, para ele, o
freudismo participaria de uma revisão desta ruptura22.
Os debates historiográficos envolvendo essa problemática são amplos,
complexos e já foram apreciados por inúmeros autores, que contribuíram de
forma determinante para os contornos epistemológicos assumidos pela
historiografia nas últimas décadas23. Por se tratar, portanto, de uma questão
que possui proporções tão vastas e cujos desdobramentos para a historiografia
são múltiplos e diversos, procuramos concentrar nossos esforços em situar as
20 Nas últimas décadas, os debates envolvendo esses dois campos foi, decisivamente,
marcado pelas contribuições de Hayden White. Como o próprio autor salienta, a própria
operação empreendida pelo historiador na construção de um texto histórico é, em sua essência,
uma operação literária (ou mesmo fictícia) (White 2014, 115). As contribuições de White desde
“Metahistória”, publicada em 1973, são essenciais para a compreensão desse debate (cf. White
2008). Suas teses já foram amplamente reproduzidas, discutidas e criticadas (ver, por exemplo,
Chartier 2002). Para uma apreciação tanto de algumas das principais teses do autor, bem como
dos desdobramentos dos debates por elas ensejadas ver, por exemplo (Marcelino 2012). É
interessante notar que Certeau, mesmo sendo um contemporâneo de White, não chegou a
travar com ele um diálogo direto, o que é evidenciado por sua ausência nas obras do
historiador francês. Nesse sentido, essa ausência repercute também nos recortes de nosso
próprio trabalho, que por apenas tangenciar aspectos do diálogo da história com a literatura,
não se aprofundou nos diálogos (possíveis) de Certeau com White.
21 Originalmente Le “roman” psychanalytique – Histoire et littérature. Luce Giard, organizadora
da coletânea “História e psicanálise: entre ciência e ficção” (Certeau 2012), serviu-se de uma
das versões francesas – parcialmente inédita – do texto que havia sido apresentado,
inicialmente, em um encontro internacional de psicanalistas, em Paris (1981), conforme indica
em (Giard in Certeau 2012, 39).
22 Conforme indica Certeau, Freud pressupõe que seu método, por uma prática diferente da
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•
24 Por mais que nosso trabalho estabeleça diálogos possíveis com muitas desses debates,
excederia nossas pretensões a reprodução dos argumentos dos autores acima mencionados.
Portanto, nos limitamos a, de alguma forma, concentrar nossas reflexões nas contribuições que
Michel de Certeau oferece a essas discussões, ainda cientes dos prejuízos que o ocultamento de
tão ricas questões traz ao nosso trabalho.
25 Certeau afirma que: “Historiador de ofício, ou membro desta École desde sua fundação,
não me sinto mais ‘apto’ para falar de Freud ou ser considerado como um de seus
representantes. A instituição atribui uma localização, não uma autoridade” (Certeau 2012, 93).
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26 Certeau destaca que “curiosamente, enquanto Freud havia sido alimentado pela
Aufklärung científica do século XIX e se tinha empenhado, com paixão, em fazer reconhecer a
‘seriedade’ do modelo acadêmico vienense, ele dá a impressão deter sido apanhado
desprevenido por sua própria descoberta” (Certeau 2012, 94).
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histórica suscitam importantes discussões historiográficas, que tem testemunhado nas últimas
décadas, conforma indica François Dosse, uma espécie de “retorno do acontecimento” (Dosse
2013).
28 Como é o caso dos documentos do século XVII que o levaram a narrar o caso do pintor
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29 Originalmente publicado sob o título: Rhetoric and aesthetics of history: Leopold von Ranke. In:
History and Theory, vol. 29, n. 2, mai./1990, 190-204. Em nosso trabalho nos valemos da
versão portuguesa desse texto presente na coletânea de artigos organizada pelo historiador
Jurandir Malerba (Malerba 2016).
30 Por mais que o próprio Rüsen não despreze essas dimensões em sua própria
compreensão do discurso histórico, ele entende que há uma certa dose de “pós-modernismo”
na busca por seu caráter retórico e estético, que depreciaria seu valor científico (Rüsen in
Malerba 2016, 85).
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“O homem Moisés e a religião monoteísta” (Freud 2014), ou para designar outras historiografias,
como, por exemplo, em seu texto sobre Leonardo da Vinci (Freud 1980).
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REFERÊNCIAS
33 Certeau entende que um dos atributos da instituição é “fazer crer”. Para ele, “a vida
social exige a crença, bem diferente, que se articula a partir dos supostos saberes garantidos
pelas instituições; ela baseia-se nessas companhias de seguros que protegem contra a questão
do outro, contra a loucura do ‘nada’. No mínimo, deve-se proceder à distinção entre a
delinquência da ‘não seriedade’ literária e a normatividade baseada em credibilidades
institucionais” (Certeau 2012, 115).
34 Phillipe Carrard faz uma excelente ponderação quando afirma que nem as análises de
Certeau da história como um tipo de narrativa, nem seus esforços em reabilitá-la como uma
forma de se dar sentido das coisas, o levou a unir irrefletidamente a história com a ficção.
Diferentemente de Hayden White (cujo trabalho Certeau curiosamente nunca discutiu),
Certeau não considerou a dependência da história na narrativa como uma razão para
obscurecer as fronteiras entre o discurso factual e o ficcional (Carrard 2001, 469).
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ARTIGO
NO RASTRO
HISTORIOGRÁFICO DA
PSICANÁLISE NO BRASIL
REENCONTRANDO A
ESCRITA DA SUA FICÇÃO
ALINE LIBRELOTTO RUBIN
Universidade de São Paulo
São Paulo | São Paulo | Brasil
linelrubin@gmail.com
orcid.org/0000-0002-6265-3301
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ARTICLE
ON THE TRACK OF
PSYCHOANALYTIC
HISTORIOGRAPHY
IN BRAZIL
RESTORING THE WRITING
OF ITS FICTION
Psychoanalytical historiography
true psychoanalysis – theoretical fiction
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INTRODUÇÃO
Para a Psicanálise, disciplina filha da revolução científica da
modernidade, uma questão central envolveu, desde seus primórdios, a
possibilidade de produzir conhecimento dentro dos moldes científicos sobre
algo que escapa à razão, que é da ordem da experiência. Essa questão acaba por
complicar ainda mais o trabalho de historiadores ou de interessados na história
da Psicanálise. Pois, a fim de apreender as veracidades sobre a história da
Psicanálise, somos convocados a lidar com algumas de suas especificidades:
uma prática na qual a matéria-prima é a formação do inconsciente e um campo
de estudos que, desde seu nascimento, esteve marcado pelos territórios sociais,
políticos e culturais nos quais emergiu, assim como pelas trajetórias pessoais (e
seus entrelaçamentos dentro e fora do setting analítico) dos homens e mulheres
que desenvolveram seus complexos sistemas teóricos.
A prática analítica, segundo Freud (1914), volta-se para o ausente na
história do sujeito, para aquilo que ele deixa de recordar, mas que acaba
retornando como um resto, a sua revelia. Há, na tradição historiográfica da
psicanálise, debates sobre como a comunidade psicanalítica se mostrou e se
mostra suscetível a um processo semelhante ao descrito por sua teoria: resiste,
censura e recalca a sua própria história, produzindo efeitos de retorno e
repetição desse recalcado (Roudinesco 1997; Frosh 2012; Vianna 1994; Rubin
et al 2016; Frosh; Mandelbaum 2019). Esse funcionamento “neurótico” da
Psicanálise e das suas instituições foi abordado pelo movimento historiográfico
ao se debruçar sobre a ausência e o silêncio de alguns trabalhos históricos
anteriores, para deles produzir uma inscrição simbólica possível, de presença e
sentido.
É o que vemos, por exemplo, no trabalho de Chaim Katz (1985). Ao
analisar o periódico oficial da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) entre os
anos de 1939 e 1945, o psicanalista percebeu o silêncio do movimento
psicanalítico ipeísta1 em relação aos desdobramentos da 2ª Guerra Mundial na
comunidade psicanalítica, entre eles a morte de psicanalistas, a onda de
imigração e a política de manutenção da Psicanálise sob o regime nazista na
Alemanha2. Silêncios perpetuados em um pacto transgeracional de filiação e de
fidelidade sobre um não-dito, que teria alcançado a história da Psicanálise no
nosso país3. O episódio mais emblemático desse funcionamento sintomático
ficou conhecido como o caso “Amilcar Lobo”4, que veio à tona ainda na
década de 1970 sob grande resistência, e que continua sendo elaborado e
psicanalítica no decorrer dos anos, não sem resistência. Ver Frosh (2005; 2012) e Goggin e
Goggin (2001).
3 Por exemplo, a quietude em relação ao passado de Adelheid Koch, analista judia que
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O MOMENTO DA LEGITIMIDADE
Estudiosos da área sinalizam a existência de diferentes momentos na
tradição dos estudos historiográficos da Psicanálise no país desde sua
emergência na década de 1920 (Oliveira 2002; Abrão 2007; Mezan 2009;
Facchinetti e Castro 2015). Os primeiros trabalhos históricos teriam sido
escritos pelo psiquiatra Júlio Pires Porto-Carrero7, sendo tão antigos quanto a
própria emergência do saber em terras brasileiras. Com o texto inaugural
Psychanalyse – a sua história e o seu conceito de 1928, Porto-Carrero descreveu
acontecimentos do movimento psicanalítico mais amplo e concluiu “com
algumas referências ao movimento psicanalítico brasileiro” (Oliveira 2002,
145). Um ano depois, o psiquiatra escreveu A contribuição brasileira à psychanalyse,
texto no qual também destacou acontecimentos, além de personagens que
marcaram a introdução das teorias psicanalíticas no Brasil (Abrão 2007).
Abrão (2007, 8) destaca que a abordagem historiográfica do tipo
descritiva se constituiu como a “primeira tentativa de delinear um campo de
investigação sobre a história do movimento psicanalítico”. Dentro dessa
tradição, a História da Psicanálise foi narrada no estilo de uma sucessão de
fatos e eventos, em uma abordagem que enfatizava “a periodização de
acontecimentos, descrição dos eventos e a nomeação de personagens que
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Marcondes10 em São Paulo” (Oliveira 2002, 147). Quase três décadas depois, o
texto da psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP),
Cléo Lichtenstein Luz, evidencia a continuidade de uma abordagem voltada à
hagiografia da história da Psicanálise no Brasil:
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da contracultura e dos protestos de Maio de 1968 foi o livro O combate sexual da juventude (1932)
de Wilheim Reich, discípulo de Freud e expoente da abordagem “libertária” clássica. Nesse
livro, Reich afirma que “o problema central da juventude é o das relações sexuais no momento
da adolescência, e o da posição tomada pela ordem social, o Estado burguês e os seus
representantes em relação à sexualidade” (Reich 1986, 10).
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líderes políticos como Che Guevara, Martin Luther King, Robert Kennedy, a Revolução
Cultural de Mao na China, a Guerra Civil na Argélia e os golpes militares nas Américas Latinas.
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15 Segundo Oliveira (2009), essa ruptura com a história oficial aconteceu com a dissertação
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16 Por exemplo, o livro Não Conte a Ninguém – Contribuição à história das Sociedade Psicanalíticas
do Rio de Janeiro da psicanalista Helena Besserman Vianna (1994) e Crise na psicanálise organizado
por Cerqueira Filho (1982) sobre a crise na psicanálise carioca na década de 1980.
17 De Certeau (1975/2017) coloca a escrita histórica na oscilação entre “contar histórias” e
“fazer história”, sem ser redutível nem a uma nem a outra. Segundo ele “[A escrita histórica]
não se interessa por uma ‘verdade’ escondida que seria necessário encontrar; ela constituiu
símbolo pela própria relação entre um espaço novo recortado no tempo e um modus operandi
que fabrica “cenários” susceptíveis de organizar práticas num discurso hoje inteligível – aquilo
que é propriamente ‘fazer história’” (De Certeau 1975/2017, XIX).
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18 Para ilustrar essa questão, De Certeau comenta a passagem do interesse na história social
para a história econômica durante o entre guerras, o crescimento dos estudos em história
cultural em um momento em que se impõe a importância social econômica e política da
“cultura” (lazeres e mass media), ou ainda, o “atomismo histórico” de Langlois e Seignobos
combinado ao liberalismo da burguesia reinante no final do século XIX.
19 A “ficção científica” se observaria, por exemplo, na ambição de matematizar e
mais robusto sobre a crítica política e ética do que vem a ser o estado atual da ciência em sua
organização disciplinar. Nesse âmbito, aparecem críticas da conveniência entre a ciência e os
processos de individualização da modernidade, ou ainda, “entre a foraclusão do sujeito e seu
retorno sob a forma de racionalidade técnica, segregação e alienação”.
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colocando que ambos não se distinguem por seus “conteúdos, métodos ou moral”, mas sim
por professarem a linguagem de maneira distinta. A ciência tem na linguagem um instrumento,
busca tornar-se transparente, neutra, submetida às operações científicas, e, com isso, perde em
sua autonomia. Na Literatura, a linguagem é “seu próprio mundo”, ela é a sua escrita, toma-se
por objeto e não o seu conteúdo (Barthes 1967, 5). Ao passo que a ciência ensina, enuncia ou
sutura, inscrevendo sentido, a Literatura representaria aquilo mesmo que a ciência (e sua
representação de indivíduo) recusa: “a soberania da linguagem” (Barthes 1967, 11). Para o
autor, o poema é a composição da linguagem oposta ao trabalho da ciência, e tem como objeto
o prazer, e não a verdade.
22 Contudo, existem discussões sobre a proximidade de Freud com a ciência, tornando a
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recalque e a cisão do conteúdo traumático são alguns dos fenômenos e condições do sujeito
que revelariam a impossibilidade de conquistar a promulgada síntese do indivíduo moderno.
Contudo, essa não é uma unanimidade epistemológica dentro das teorias psicanalíticas
desenvolvidas no decorrer do século XX.
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propriedade da linguagem para outro lugar, em que é ela que performa e não o
“eu”.
A sua teoria do Texto, ao propor a ideia de “destruição do Autor”
como um instrumento analítico, apresenta um diálogo particular com a teoria
psicanalítica de orientação lacaniana. Barthes destaca que não é o sujeito do
qual o livro é predicado, deixando de operar no tempo do antes e do depois,
mas sim no tempo da enunciação:
a enunciação em seu todo é um processo vazio que funciona
perfeitamente sem que seja necessário preenchê-lo com a pessoa dos
interlocutores: linguisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que
escreve, assim como “eu” outra coisa não é senão aquele que diz “eu”: a
linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio
fora da enunciação que o define, basta para “sustentar” a linguagem, isto
é, para exauri-la. (Barthes 1968, 60).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme apontamos, ao fechar-se em um modelo discursivo
descritivo e determinativo, com a nomeação de personagens e biografias
santificadas, a historiografia psicanalítica brasileira deixou de acolher os
tumultos e tensões advindos dos antagonismos próprios da realidade social que
atravessavam sua instituição e seus atores. Nesse sentido, pensamos que a
historiografia da Psicanálise pode valer-se da proposta aqui apresentada por
algumas razões. Abrão (2007) apontou para como algumas particularidades da
Psicanálise tornam a sua investigação histórica um “processo diferenciado”
(Abrão 2007, 7). Como, por exemplo, a “indissociabilidade entre criador e
criatura” na Psicanálise, uma vez que a matéria-prima das formulações
analíticas vem da experiência do analista, tanto particulares, como da sua
clínica. Isso faria com que na Psicanálise, mais do que em outras disciplinas, “a
história pessoal de seus criadores torna-se altamente relevante para
compreendermos os desdobramentos das formulações por eles postuladas ao
longo de suas trajetórias” (Abrão 2007, 7). É o que já foi pertinentemente
sugerido por Zaretsky (2006), por exemplo, ao pensar não somente a história
pessoal, mas também os efeitos que a 1ª e 2ª Guerra Mundial tiveram nos
desenvolvimentos da teoria e prática de Freud no século XX.
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REFERÊNCIAS
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Revista Brasileira de Psicanálise
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ROCHA, Gilberto S. Introdução ao nascimento da psicanálise no Brasil. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1989.
ROUDINESCO, Elisabeth. Genealogias. Trad. Nelly Ladvocat Cintra. Rio de Janeiro:
Relume & Dumará, 1995.
ROUDINESCO, Elisabeth. Psychanalyse et histoire: résistance et mélancolie. In:
GAUTHIER, R. M. (org.). Les voies de la psychanalyse. Paris: L’Harmattan, p. 21-34,
1997.
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ARTIGO
O EXCITANTE CAUDILHO
DE RAMOS MEJÍA E O
DESVAIRADO MENEUR DE
NINA RODRIGUES
RAÇA E GÊNERO NAS
INTERPRETAÇÕES
SUL-AMERICANAS DA
PSICOLOGIA DAS MASSAS
FERNANDO BAGIOTTO BOTTON
Universidade Estadual do Piauí
Parnaíba | Piauí | Brasil
fernandobotton@phb.uespi.br
orcid.org/0000-0001-9746-6832
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ARTÍCULO
EL EXCITANTE CAUDILLO
DE RAMOS MEJÍA Y EL
DESENFRENADO MENEUR
DE NINA RODRIGUES
RAZA Y GÉNERO EN LAS
INTERPRETACIONES
SUDAMERICANAS DE LA
PSICOLOGÍA DE LAS MASAS
FERNANDO BAGIOTTO BOTTON
Universidade Estadual do Piauí
Parnaíba | Piauí | Brasil
fernandobotton@phb.uespi.br
orcid.org/0000-0001-9746-6832
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1 O pensamento de Gustave Le Bon foi um dos mais seminais em fins do século XIX e
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2 Carlyle foi um dos mais citados historiadores e historiógrafos do século XIX. Suas
formulações sobre o heroísmo dos grandes homens foram muito bem recepcionadas na
América Latina até a metade do século XX. Para uma discussão sobre a produção
política/científica do culto aos heróis empreendida por Carlyle (El-Jaick Andrade, 2006).
3 Essa interpretação já demonstra uma mescla da psicologia das multidões com conceito de
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Diríase tal vez que doy demasiada influencia al físico y las cosas de pura
impresión sensorial, como elemento de sugestión, pero la verdad es que
en la psicología colectiva ese factor es indubitablemente de
transcendental importancia. [...] todo lo que sea materialización grandiosa
de una idea, un sentimiento o un instinto, es de una viabilidad
sorprendente en la imaginación artera de las muchedumbres
meridionales. (Mejía 1977, 149).
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Seu nome pode ser facilmente referido como um dos mais célebres e
citados intelectuais de sua época, chancelando cientificamente uma grande
quantidade de intervenções públicas em sua época, tal como a chacina na
cidade de Canudos. Seu livro mais afinado com a psicologia das massas, e um
dos mais famosos, intitula-se As Coletividades Anormais (2006)4. Se do lado
argentino Mejía se utilizava dos saberes das massas para tratar de questões
como a dicotomia entre civilização e barbárie e a sedução erótica pelo caudilho,
no Brasil o problema social enfrentado por Rodrigues não destacava tão
marcadamente a insígnia do sexo, se comparado ao excessivo peso que legava à
questão religiosa e, principalmente, racial. Seu pensamento respondia a um
recente, conturbado e mal resolvido contexto de abolição da escravidão,
somado à proclamação de uma república que dava seus primeiros passos na
consolidação de algo que se pudesse chamar de unidade nacional. Dessa forma,
Rodrigues considerava que a formulação de uma psicologia das massas
brasileira deveria passar pelo estudo da religião e da raça5. Segundo Filipe Pinto
Monteiro:
4 O texto ao qual fazemos referência nesse artigo foi originalmente publicado na França em
1898 sob o título Epidémie de folie religieuse au Brésil, apenas um ano antes do livro de Mejía e 13
anos após a primeira edição do livro de Le Bon. Já a coletânea originalmente intitulada As
collectividades anormais foi organizada e publicada em 1939, ocasião em que o texto foi traduzido
com o título de A loucura epidêmica de Canudos.
5 O termo “raça” é aqui empregado enquanto conceituação heurística, citado
reiterativamente por Nina Rodrigues enquanto forma de distinção biológica entre seres
humanos. Trata-se de um conceito muito popular na virada do século XX, sendo bastante
ensejado pela ciência positivista e pela importação de teorizações europeias como as de Francis
Galton, Cesare Lombroso, dentre outros (Talak, 2010). A construção histórica desse conceito
no contexto brasileiro foi extensivamente estudada por Lilia Moritz Schwarcz no livro O
espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930 (1993).
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180). Nessas leituras transversais, o sexo, a idade e a cor eram pareados com o
objetivo de intuir/influenciar no diagnóstico dos excitáveis coreicos6: “Quase
todos esses doentes são mulheres. Nunca observei essa doença em velhos. A
raça de cor é sem dúvida muito mais atacada que a branca” (Rodrigues 2006,
26-27). Seriam esses sintomas de histeria os propulsores da adesão dos
indivíduos num estado de massa. Para comprovar sua tese, Rodrigues emprega
polêmicos exemplos por ele considerados manifestações da loucura coletiva de
sua época, tais como a Revolta de Canudos, referindo-se a Antônio
Conselheiro como o mais paradigmático estereótipo de meneur de massas
vessânicas:
A massa popular dirigida por Antônio Conselheiro era recrutada numa
população de mestiços onde é ainda poderosa a influência dos
ascendentes selvagens ou bárbaros, índios ou negros. [...] nesta
população se observam com muita frequência todas as manifestações
mórbidas do desequilíbrio mental [...] É natural, por conseguinte, que
nossa população rural, composta em grande maioria de raças inferiores
onde são normais esses sentimentos, essas crenças, tenha aderido e se
associado à propaganda político-religiosa do alienado.
(Rodrigues 2006, 85-86).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pela profusão desses saberes-poderes, a influência de Rodrigues e Mejía
passou a ser bastante considerável na formação da intelectualidade médico-
psiquiátrica brasileira e argentina, sendo seus nomes tributados dentre as
diversas gerações de psicólogos sociais. A importância de conhecer suas
contribuições à psicologia das massas latino-americanas é fundamental em
vários sentidos. Em primeiro lugar, podemos compreender a pluralidade e
intertextualidade das leituras e práticas da psicologia social nos diversos rincões
em que foram recebidas, sendo adaptadas aos mais diversos contextos e jogos
de poderes demandados em cada um dos lados da fronteira. Se na Argentina a
antiga separação entre civilização e barbárie seguia como norteadora dos rumos
políticos do país, Mejía fez questão de apropriar a psicologia das massas no
sentido de detratar (e ao mesmo tempo demonstrar uma ambígua atração) pela
selvageria das massas interioranas incivilizadas que pretensamente se deixavam
dominar, tal como fêmeas no cio, pelo braço forte do caudilhesco dominador.
Por outro lado, as demandas das elites brasileiras pela resolução da questão
racial para os recém-libertos escravos e o risco dos levantes antirrepublicanos
do interior do Brasil também foram levadas em consideração por Rodrigues,
que articulou um emaranhado de teorias racialistas, eugênicas, frenológicas,
higienistas, psiquiátricas e psicológicas para construir uma interpretação das
massas brasileiras absolutamente marcada pelas insígnias da raça e da
religiosidade afrodescendentes. Isso demonstra não apenas a pretensão
científica desses intérpretes, mas suas preocupações políticas de dar resposta às
elites de seus países no sentido de resolver o grande risco representado pelos
nascentes levantes de massas, que realmente foram cada vez mais frequentes
nas primeiras décadas do século XX no Brasil e Argentina.
O elemento metafórico de gênero utilizado nos dois lados da fronteira
também não deve ser visto como mero ornamento argumentativo, pelo
contrário, a dicotomia masculino-feminino é uma base hierárquica fundacional
vista como natural naquelas sociedades. Eis o poder dessa metáfora: ao
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REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP,
2019.
CHAYO, Yazmin; SÁNCHEZ, María Victoria. La feminización de las masas:
construcción de identidades sociales en la Argentina de fines del siglo XIX. In.
Anuario de Investigaciones. vol. XIV, 2007, p. 113-121. Disponível em:
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=369139943042 Acesso 07/06/2019
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ARTIGO
PARANOIA E HISTÓRIA
PATOLOGIA E VERDADE
DANILO ÁVILA
Universidade Estadual Paulista
Franca |São Paulo | Brasil
danilo.avila@gmail.com
orcid.org/0000-0002-3881-6043
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ARTICLE
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INTRODUÇÃO
A teoria da história não pode correr o risco de ver a paranoia apenas
como distúrbio, falsa projeção e perda da realidade, como se a personagem-
objeto de sua narrativa estivesse dando voltas em falso na sua subjetividade,
presa em plots e conspirações, ordenando os acontecimentos a partir do seu
conjunto de expectativas delirantes. O paranoico, como veremos ao longo do
artigo, surpreende pela sua obsessão descritiva, senso de contingência e falta de
segredo. Colado no presente pela iminência de descobrir quem está por trás da
sua desagregação simbólica, a psicose paranoica impele alguns de seus
acometidos à descrição ininterrupta, amparada em metafísica concatenada. A
tentativa de reagrupação simbólica levada a cabo por alguns expedientes do
mecanismo repressivo presente na paranoia, com algumas mediações, pode
interessar ao historiador na medida em que, nos relatos dos acometidos,
transbordam parte da realidade e da verdade.
O trabalho seminal de Freud sobre a referida psicose, Observações
psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia, é o ponto de partida
para qualquer reflexão psicanalítica sobre o caso. Conhecido como “o caso
Schreber”, trata-se de um estudo realizado por Freud sobre um presidente da
corte de apelação da Saxônia (“Presidente Schreber”, como eternizou-se no
jargão psicanalítico), o qual deixa um livro denominado Memória de um doente dos
nervos, único objeto da análise de Freud. Nele, Freud defende que “não se pode
afirmar que o paranoico retirou completamente o seu interesse pelo mundo
externo, mesmo no auge da repressão” (Freud 2010, 103). Inclusive, empurra
para a história o conteúdo de verdade deste delírio: “O futuro decidirá se na
teoria há mais delírio do que penso ou se no delírio há mais verdade do que os
outros acreditam” (Freud 2010, 103).
Entretanto, a história tem muito o que extrair da relação entre a
psicanálise e o texto. Quem nos dá uma dica do caso é o historiador Michel De
Certeau, em História e Psicanálise: entre ciência e ficção, com a pergunta: “será possível
ler o texto como se este estivesse deitado no nosso divã?”. Supõe-se que, feita
essa algaravia, estaríamos eliminando do jogo entre analista e analisado o
potencial de transferência que articula os dois polos e funda a psicanálise.
Segundo Certeau (2016, 215), para o psicanalista “o escrito é o feito e a ficção
da relação”, o que pode ser um sinal para o historiador.
Os seminários lacanianos podem nos ajudar a compreender o texto em
questão, uma vez que funcionam como mediador entre o jargão freudiano e os
psicanalistas que deseja formar (Certeau 2016, 215). Partindo da explicação do
psicanalista francês para o texto seminal de Freud sobre a paranoia, no terceiro
livro dos seminários dedicado às psicoses, Lacan enfatiza que este é o encontro
entre um livro singular e o gênio de Freud. Schreber é o principal caso a ser
analisado pelo professor e seus alunos. Para o psicanalista, Freud procede como
um filólogo a decifrar a linguagem do inconsciente e traduzi-la, como se dissesse
“não leia este livro antes de me ler” (Lacan 1993, 10). Sabemos hoje que o livro
de Schreber apenas sobreviveu ao tempo devido à sua utilidade na literatura
psicanalítica, tornando-se um cânone da disciplina. A narrativa, no entendimento
de Lacan, é construída de modo a colocar um leitor como o psicanalista do
doente-narrador.
Entretanto, é preciso considerar que os estudos da paranoia antecedem
o texto de Freud e sua produção é largamente amparada em estudos de
psicanalistas como Sandor Ferenczi e Karl Abraham, por exemplo, dois dos
psicanalistas do círculo de Freud que se especializaram na constelação de
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de forças, o que está em jogo é a sanidade do indivíduo. Por ser uma psicose
projetiva, a paranoia é fundada em elementos de identificação narcísica.
Distinções que, assim como a teoria da paranoia presente no caso Schreber, são
formais e fundam a disciplina.
No fundo, para retomarmos o caso Schreber (1910), as etapas da repressão
da qual deriva a psicose são dividias em três estágios: a fixação (1), a repressão
propriamente dita (2) e o “retorno do reprimido” (3). O último irrompe a partir
do ponto de fixação e, como efeito, causa uma regressão da libido até esse ponto
(Freud 2010, 90). Para Freud, o fato de a fantasia de um fim do mundo ser
posterior ao delírio de perseguição provoca uma desconstrução dos três estágios
aludidos por ele próprio. O retorno do reprimido aparece antes mesmo da
repressão propriamente dita e este é um caso específico da paranoia.
Antes de nos debruçarmos sobre dois pontos do caso Schreber, seu delírio
de perseguição e prognóstico de fim do mundo, é preciso pautar as relações
intelectuais que definiram a noção. Para Freud, a paranoia sempre foi um caso
extremamente pessoal. O seu biógrafo Peter Gay, baseando-se nas cartas em que
o psicanalista descrevia o surgimento do problema para seu confrade, afirma este
ponto baseado em uma citação do psicanalista Karl Abraham, para o qual, “a
maioria dos escritos de Freud carregam as características de sua trajetória. Estão
imbricados de maneira significativa tornando difícil distinguir” (Gay 1988, 267-
8, tradução nossa)1.
Além de Abraham, o psicanalista húngaro Sandor Ferenczi também
contribuiu largamente para a distinção formal dos conceitos. Vale lembrar que,
optando pelo caminho inverso, este artigo intenciona primeiro reconstruir a
teoria psicanalítica posterior construída neste diálogo para depois aprofundar o
caso Schreber. É bem conhecido o fato de que Freud se interessou pelo caso
Schreber em uma viagem que fez com Ferenczi a Roma (Gay 1988; Calasso
1974). Conta-se, por meio de documentação epistolar, que Ferenczi, na condição
de aluno, teria questionado seu mentor sobre a quantidade de interferência por
via da transferência que poderia haver no caso, questão nunca resolvida para
Freud, o que teria gerado um atrito entre os dois (Gay 1988, 267-272). Nas suas
formulações, o psicanalista húngaro parece tomar as correlações por
causalidades, como quando associa a paranoia à homossexualidade: “O que mais
impressiona na paranoia alcoólica é o surto de homossexualidade” (Ferenczi
1992, 189).
Ferenczi é um dos primeiros a desenvolver distinções entre a paranoia e
a neurose no campo especulativo. Em um estudo de 1909, intitulado Introjeção e
Transferência, Ferenczi (1991a, 47) refletiu sobre as conquistas recentes de Jung e
Abraham, segundo os quais o demente (neurótico) descola seu interesse no
mundo externo e erotiza a si mesmo. Para pensar a psicose, o húngaro recorre à
construção freudiana, a qual atesta que o paranoico gostaria de fazer o mesmo,
mas não consegue, então projeta no mundo externo aquele desejo que se tornou
um fardo para ele. Diante do impasse formal, entre as conquistas psicanalíticas
recentes, afirma que: “a neurose, nesse aspecto, está diametralmente oposta a
paranoia” (Ferenczi 1991a, 47). Além disso, Ferenczi está convicto da hipótese
freudiana sobre a verdade na paranoia, até mais do que o próprio Freud que
tergiversa e escapa da questão, como vimos anteriormente, jogando-a para o
futuro. Da primeira obra até suas últimas contribuições sobre o tema da
1 Como vemos no início do capítulo dedicado à 1910, ano de escritura do caso Schreber, Gay
afirma que: “Most of Freud’s writings bear the traces of his life. They are entangled, in important
but often quite unobstrusive ways, with his private conflicts and his pedagogic strategies.” (Gay
1988, 268).
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objeto, isto é, a realidade está presente. Uma projeção, que ainda mantém
contato com parte do seu objeto, reconstrói parte da realidade.
Nenhuma das duas análises, a de Ferenczi e a de Abraham, se deparam
com a expectativa de fim do mundo como estágio último da doença, assim como
acontece no caso de Schreber. Mas adicionam novas camadas a essa
reconstrução de um mundo subjetivo que se segue à paranoia, seja ela suscetível
a teorias diversas do mundo (Ferenczi) ou parte do objeto de fixação (Abraham).
As duas possibilidades estão presentes no último estágio da psicose, no qual se
imagina um fim dos tempos em que ele, paranoico, é o único sobrevivente.
Reconstruindo algumas partes do caso Schreber será possível chegar à raiz do
que nos interessa nesse problema.
Marilene Carone (1984, 7-20), tradutora da primeira edição brasileira do
diário do célebre doente dos nervos, introduz a sua extensa autobiografia.
Conforme a autora, oriundo de abastada família protestante e largamente
influenciado pela sua linhagem paterna, Schreber cresceu em meios às
orientações de comportamentos e experimentos pedagógicos do pai, que
desenvolvia máquinas para concentração e postura correta, bem como técnicas
de efetividade pedagógica. Construiu-se, assim, um senso moral específico no
futuro jurista. Em 1893, depois de extenso percurso na burocracia jurídica
oficial, assume o cargo de presidente de um tribunal de apelação em Dresden.
Desde a sua nomeação para o alto escalão, os delírios e fantasias que antes
apareciam esparsamente, tiveram uma escalada, especificamente no período de
março a maio de 1894, quadro que levou à sua internação. O livro é publicado
em 1903 e o conteúdo das memórias se estende de 1884 até o ano anterior à
publicação, momento no qual o presidente já está reintegrado à sociedade como
curado.
O delírio de Schreber (1985, p. 45), conforme consta nas Memórias, se dá
entre o sono e a vigília. Um pensamento, reconhecido por ele como externo, o
invade: imagina ter prazer sendo submetido ao sexo anal, como uma mulher se
submetendo ao coito2. A partir dessa confrontação com um desejo que ele não
reconhece, os delírios se avolumam. Afirma que Deus fala com ele, demônios
zombeteiros o circundam, “presencia milagres e ouve música celestial”.
Dirigindo-se ao leitor, Schreber convida-o a acreditar na sua conspiração divina
de um Deus (decaído) que quer submetê-lo contra os homens comuns:
A quem teve o trabalho de ler com alguma atenção [...] ocorrerá talvez
involuntariamente a ideia de que o próprio Deus deve estar ou ter estado
em dificuldade, se a conduta de um único indivíduo pode constituir perigo
para ele e se o próprio Deus, ainda que em instâncias subordinadas, pode
se deixar levar a uma espécie de conspiração contra pessoas no fundo
inocentes [...]. O próprio Deus [...] não era nem é o ser de perfeição
absoluta que a maioria das religiões diz ser. (Schreber 1984, 41).
de manhã (...) tive uma sensação que me perturbou de maneira mais estranha, quando pensei
nela depois, em completo estado de vigília. Era a idéia de que deveria ser realmente bom ser uma
mulher e se submeter ao ato do coito – essa idéia era tão alheia a todo meu modo de sentir que,
permito-me afirmar, em plena consciência eu a teria rejeitado com tal indignação que do fato”
(Schreber 1984, 54).
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nórdico do Ragnarök. Se refere a uma concepção teológica e escatológica que narra uma série
de eventos que conduziriam ao fim do mundo, simbolizado na batalha derradeira entre os deuses
e seus inimigos. O principal responsável pela extração germânica do mito é Richard Wagner. A
última ópera da sua tetralogia, O Anel dos Nibelungos, possui o título da lenda e a retrata à sua
maneira.
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psicanalista estadunidense Eric Santner (1996, 52, 192) aponta, sem desenvolver
extensivamente, como a paranoia de Schreber, principalmente este delírio do fim
dos tempos, tem a ver com a Götterdämmerung não das lendas germânicas, nem
de Goethe, mas a reconstruída por Richard Wagner no seu Anel dos Nibelungos,
uma tetralogia de óperas a serem executadas por uma noite e três dias inteiros.
Olhar para Wagner, ao invés de Goethe, torna possível registrar uma
outra dimensão na paranoia de Schreber: a dimensão utópica. Essa utopia é sempre
de uma pureza assumida como modelo no sentido de refazer as instituições,
enredadas em corrupção endêmica. É justamente esta dimensão que acredito que
pode desvendar o que Certeau (2016, 203) colocou como a “proliferação
discursiva”, a qual interrompe o prognóstico catastrófico do profeta, ou seja, é
justamente a palavra, a descrição, oral ou escrita da trama, que permite a cura. É
justamente neste esforço de dar conta da explicação da catástrofe, colocar a
perseguição em palavra, que o paranoico entrega ao historiador seus melhores
rastros.
Eric Santner (1996, 4-5) descreve a relação de Schreber e Richard
Wagner com colorações biográficas. Na casa de Dresden, construída para morar
com sua mulher, Schreber inscreveu o motivo musical de Siegfried, o grande
herói da trama do Anel, na porta. O motivo, presente em todo momento que se
evoca a ideia do herói, funciona como uma caracterização musical da sua
jornada. Resumindo de maneira bem apressada uma obra que se estende por
mais de quatorze horas, o Anel dos Nibelungos é a história da correlação de duas
grandes forças, dois mundos. O mundo dos deuses nasce de uma corrupção
primordial: Wotan profanou a árvore sagrada, de proveito comum, em benefício
próprio, forjando a lança que garante sua autoridade. Aproveitando-se dessa
corrupção, outros clãs que disputam o poder, entidades mitológicas que vivem
abaixo da terra (os nibelungos) e gigantes se aproveitam dos tratos perniciosos
de Wotan para fazer política com o divino.
Conforme se desenrolam os três primeiros atos, Wotan, espécie de
representação de Deus, torna-se obcecado pela ideia de um anel que pertence
aos nibelungos. Apoiado em conselhos espúrios do principal ladino, usurpa o
anel de Alberich, líder dos subterrâneos que o amaldiçoa: além de poder
inesgotável, a morte dominará quem o possui-lo. Arrependido por conselhos de
ordem superior, Wotan desiste de seu projeto totalitário e entrega o anel, como
pagamento de uma dívida antiga aos gigantes, que o aprisionam em uma
masmorra guardada por um dragão. O enredo narrado diz respeito apenas as
primeiras duas das quatorze horas que completam a duração do ciclo e anunciam
a trama na primeira noite. O resto, outros três dias, três óperas, quatro horas
cada, evoca uma narrativa na qual os acontecimentos se encadeiam para o
nascimento de Siegfried, filho indireto de Wotan, destinado a realizar o seu
projeto de dar fim, “com uma mistura intensa de inveja e ciúme”, a esta guerra
entre os clãs, a este tempo cíclico de mortes intermináveis e ao revezamento de
oligarcas no poder com subscrição dos deuses.
A autoria da citação anterior é de Fredric Jameson (2016, 54). No seu
estudo sobre a alegoria nas recriações do Anel dos Nibelungos montadas pelo
diretor Patrice Chéreau e regidas pelo compositor Pierre Boulez, em 1980. Nesta
montagem, o diretor procurou reproduzir fielmente, um século depois, as
intenções de Wagner, extensamente descritas na partitura pelo compositor. O
crítico cultural estadunidense mostra como Wagner alegoriza, nesta colisão entre
o mundo de Wotan e o mundo de Siegfried, o embate entre duas formas teatrais,
e, portanto, dois modos de produção: “o sistema de gêneros do antigo regime e
o naturalismo do capitalismo industrial” (Jameson 2016, 57).
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4 “Wagner’s own paranoia (and his Anti-semitism) are the expression of the feeling, no only
that the world owes him an income, but that everyone else, and very especially the other com-
posers, all envy him”.
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Existem noventa cidades na Suécia, mas foi justamente a que mais detesto
que os poderes me condenaram a morar. Começo por visitar os médicos.
O primeiro me aplica um rótulo que diz: neurastenia; o segundo, angina
do peito; o terceiro, paranoia, doença mental [...] Entretanto, a fim de me
sustentar, sou obrigado a escrever artigos para um jornal. Mas todas as
vezes em que me instalo para escrever, desencadeia-se o inferno.
(Strindberg 2009, 194).
LIMPANDO A DINAMARCA
ENCONTRARAM O FASCISMO DEBAIXO DO TAPETE
O entrecruzamento entre Hamlet e as teorias da degeneração da cultura
Ocidental, seja como avanço da burguesia ou advento das civilizações, é
indicativo da extensão do problema. O paranoico que vemos em Strindberg,
Siegfried e Schreber está descontente com os resultados técnicos da
modernidade. Este tema na Alemanha, apoiando-se em parte nas conquistas da
teoria psicanalítica freudiana, foi explorado pela Teoria Crítica. Para o Instituto
de Pesquisa Social de Frankfurt, o tema do declínio da cultura era central.
Interessados na gênese da experiência fascista e na ascensão da personalidade
autoritária nas democracias liberais, sua fundação se sustentou, principalmente,
na contribuição dos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer.
No Eclipse da Razão, livro de Horkheimer (2015, 194), aparece uma
definição social e filosófica da paranoia, levando em conta o efeito dela no
pensamento que denominou como “instrumental”. Define-a como “a loucura
que edifica teorias logicamente elaboradas de perseguição”, portanto “não é
apenas uma paródia da razão”, mas parte dela. Para Horkheimer, todo
pensamento que objetiva unicamente o alcance de seus fins, sem mediação, é
paranoico. A definição em questão será basilar para o enquadramento da
paranoia como o lado oculto do esclarecimento, esquema que alcançou o senso-
comum ao aproximar a teoria idealista e o giro paranoico dentro de si. O estudo
de Horkheimer, publicado pela editora de Oxford em 1947, dois anos após a
publicação da Dialética do Esclarecimento, ainda permanecia como obra pouco
divulgada e de pequena circulação, publicada apenas em língua alemã por uma
editora especializada em Nova Iorque.
Como preparações para a Dialética, esse tema do declínio da cultura
também interessou a Adorno no final dos anos 1930, principalmente no seu
excurso sobre o historiador Oswald Spengler. Sem citar uma única vez a palavra
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5 Para enquadrar a definição em um excerto da obra de Spengler, Adorno destaca uma pas-
sagem que, segundo cita, gostaria que se tornasse célebre: “Se sob a influência deste livro os
homens da nova geração passarem a se dedicar à técnica no lugar da lírica, à Marinha no lugar
da pintura, ou ainda à política no lugar da crítica epistemológica, estarão fazendo assim o que eu
desejo, e não é possível desejar nada de melhor para eles” (Spenger apud Adorno, 55).
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6 Para ver mais sobre o método crítico dialético de Adorno moldado neste período, ver a
contribuição de Ricardo Musse. Para o pesquisador, esse método é construído em modelos críticos
e procura definir este método (Musse 2009).
7 Psicologismo se refere as teorias nas quais a dimensão psicológica assume um papel deter-
minante central. Vemos uma situação exemplar na citação: um especialista que pensa dizer algo
sobre a música de Beethoven através de suas patologias psíquicas. É interessante perceber, neste
ponto, que o próprio Adorno teve de se defender contra acusações de “psicologismo” vindas de
Popper. Ou seja, estabelecer uma mediação entre psicanálise e ciência social era uma maneira de
combater o mal psicologismo e os que o acusavam.
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empíricas do projeto. Colocado contra a sua própria obra, talvez esse texto
célebre seja o que interesse menos às intenções da prática historiográfica. Em
outras palavras, opondo a Dialética a seus textos posteriores acerca da psicologia
social, podemos extrair da Minima Moralia (1951) de Adorno, do seu estudo sobre
Wagner e da pesquisa sobre a personalidade autoritária, reflexões sobre como
perceber o momento de verdade da paranoia. Diante desse cenário, é
interessante pensar como um historiador abordou o problema.
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8 Para ver mais sobre o capitalismo de vigilância de Zuboff, revisitar a primeira parte do livro,
nela a pesquisadora desenvolve todos os passos do plano das empresas para converter a ação
humana, principal matéria prima, em rentabilidade no mercado de futuros: “eles usavam decla-
rações para pegarem se perguntarem (...) camuflaram seus propósitos com máquinas ilegíveis se
movendo a uma velocidade extrema, acobertaram-se en práticas corporativas de secreção, espe-
cializaram-se na retórica das ilações e, propositalmente, apropriaram-se indevidamente de sím-
bolos e signos culturais” [they used declarations to take without asking (...) camouflaged their
purpose with illegible machine operation, moved at extreme velocities, sheltered secretive cor-
porate practices, mastered rethorical misdirection, taught helplessness, purposefully misappro-
priated cultural signs and symbols (...) empowerment, participation, voice, individualization, col-
laboration]”. (Zuboff 2013, 384).
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(1) uma tendência para uma ‘visão túnel’ que simplifica o desafio utópico;
(2) uma sensibilidade maior de perceber ‘o novo estado das coisas’ que os
seus contemporâneos; (3) insistência obsessiva e defesa de uma ideia fixa;
(4) uma fé inabalável na inevitabilidade de uma ideia a ser materializada na
realidade; (5) a pulsão para uma total reformação a nível da espécie e de
todo o sistema mundial. (Zuboff 2020, 405)9.
9 “(1) a tendency toward highly focused tunnel vision that simplifies the utopian challenge,
(2) an earlier and more trenchant grasp of a “new state of being” than other contemporaries, (3)
the obsessive pursuit and defense of an indeé fixe, (4) an unshakable belief in the inevitability of
one’s ideas coming to fruition, and (5) the drive for total reformation at the level of the species
and the entire world system”
10 Há uma disputa interpretativa entre a psicanalise freudiana e a esquizoanálise. Enquanto a
primeira dá centralidade ao jogo entre as instâncias do Eu, a última enfatiza a importância das
tecnologias na padronização dos comportamentos.
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ser edipianizado. Afirmam que “o fato de a análise de Schreber não ocorrer in vivo
nada altera o seu valor”, dando legitimidade histórica ao estudo de Freud, mas
garantem que Schreber está sob “o efeito da máquina, não de metáforas”
(Deleuze; Guatarri 2010, 124). Schreber é o corpo sem órgãos por excelência, talvez
o grande exemplo do livro, o qual é subjetivado pela ação da “máquina”.
A despeito de todas as divergências, concordam com a teoria freudiana,
em outra chave, ao dizerem que Schreber se cura por entender e aceitar o seu
devir-mulher. Na sobreposição de papéis, o “devir-burgomestre”, devir-juiz,
“devir-mongol”, o caso de Schreber mostra a massa histórica, geográfica e racial
presente na paranoia – “não há paranoia que não revolva tais massas”, afirmam
o filósofo e o psicanalista (Deleuze; Guatarri 2010, 124); e, portanto, também
concordam com o conteúdo histórico da narrativa paranoica. Esta especulação
se esclarece quando afirmam, como fez Adorno na Minima Moralia, que “o erro
seria concluir disso, por exemplo, que os fascistas são simples paranoicos”. A
tarefa, por outro lado, seria “reconduzir o conteúdo histórico e político do
delírio” (Deleuze; Guatarri 2010, 124), assim como Zuboff empreende ao
investigar a digitalização colonizadora de corações e mentes conduzida pelas
empresas do Vale do Silício. Operar a recondução do conteúdo histórico e
político do delírio é reconstruir suas utopias e teorias. Se Deleuze e Guattari
chegam a esta reflexão sem Freud, Adorno o faz para desenvolvê-lo.
Olhar a paranoia como uma preocupação do presente nos faz próximos
da pergunta que Adorno dirige a Heidegger em uma nota da Dialética Negativa:
como é possível dentro de um “pensamento inteiramente histórico” diferenciar
“entre o acontecimento próprio e aquele que acontece ‘vulgarmente’, como é
possível diferenciar inequivocamente entre o destino escolhido por si mesmo e
a fatalidade não escolhida”? Seja a fatalidade aquela que se “se abate sobre os
homens ou os seduz para uma escolha e decisão momentânea” (Adorno 2009,
116). Sem tentar responder com uma definição, como imagino que nenhum
historiador consiga até hoje, apenas mencionou que a “história vulgar” se vingou
do “desprezo heideggeriano pelo simplesmente presente” ao seduzi-lo a
conduzir a Universidade de Freiburg durante o regime de Hitler (Adorno 2009,
116). Ao reconstruir o problema da paranoia distantes de um “pensamento
inteiramente histórico”, mas também não desatentos ao ofício da história,
podemos pensar como seus frutos podem nos ajudar a definir a relevância de
um acontecimento. Interrogando a fantasia do “capitalismo de vigilância” nos
tornamos capazes de distinguir entre as escolhas que nos são permitidas e as que
não são, passo fundamental para o historiador entender o presente e não se
curvar aos interesses do “acontecimento vulgar”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletir sobre como a paranoia conduz o presente do historiador
também é pensar como esta psicose contém em si mesma um certo presentismo,
ponto da segunda pergunta levantada no tópico anterior. Os elementos
paranoicos aventados pelo artigo podem ser encontrados em diferentes fontes,
ou melhor, pode orientar o próprio recorte das fontes. Dizem as coisas pelo
nome que têm, não tergiversam, avançam na sua descrição sem mediações.
Como figura no Anti-Édipo, os nomes formam zonas de intensidade no corpo
sem órgãos do paranoico (Deleuze; Guatarri 2010, 124-125).
Em um tempo no qual as expectativas estão cada vez mais colonizadas
pelos processos de digitalização, os acontecimentos que se sucederam nos fazem
revisitar as descrições apocalípticas dos paranoides do início do século com
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por essa aceleração ao escolhê-lo. A tônica a ser dada deve residir em não tratar
o estilo paranoico como charlatanismo ou retórica do anátema, o qual a história
se encarregará de escorraçar para a lata do lixo. É tarefa da história que se abre
à psicanálise perceber, dentro de um desenho institucional, quem se situa de fora,
para o qual o poder é sinistro e fonte de delírio; talvez quem melhor descreva o
seu funcionamento não participe do processo decisório e inveje quem decida.
O historiador, assim como a alegoria histórica que Jameson vê na morte
de Siegfried, precisa reativar a cronologia e encontrar a história no delírio. Nosso
ofício também não está imune à paranoia. Ao buscar a paranoia, é preciso se
perguntar, sobretudo, o que não faz daquela fonte um paranoico. Projetar uma
estrutura é ocupar o lugar do paciente, não do analista. A dialética entre patologia
e verdade deve estar sempre em tensão, formulações como a de Žižek não
esgotam o seu conteúdo. Assim também vaticina a cura psicanalítica para a
paranoia receitada por Ferenczi, considerado por Adorno (2015, 100) “o mais
resoluto e livre dos psicanalistas”, no quarto dos seis passos: “A melhor
intepretação de seus sonhos é o paranoico quem a faz. Ele é, em geral, um bom
intérprete de seus sonhos (falta de censura)” (Ferenczi 1992, 192). A
historiografia, assim como receita a cura psicanalítica do húngaro, tem muito a
se beneficiar desta abertura ao inconsciente das interpretações paranoicas. Quem
descreve bem suas ficções, descreve bem a si e a seu tempo. Ferenczi foi
diagnosticado com paranoia entre os anos de 1930 e 1932, anos antes da sua
morte, 1933.
REFERÊNCIAS
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2020.
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Paulo: Editora Ática, 1998.
ADORNO, Theodor. “Was Spengler Right?”. In: Encounter: Men & Ideas, January 1966,
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ADORNO, Theodor. Mínima Moralia. Lisboa: Edições 70, 2017.
ADORNO, Theodor. In Search of Wagner. Trans. Rodney Livingstone. Foreword by
Slavoj Žižek. London: Verso, 2005.
ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro:
Editora Zahar, 1985.
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ABRAHAM, Karl. “On the Significance of Sexual Trauma in Childhood for the
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London: Karnac, 1979.
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DELEUZE, Gilles. GUATARRI, Felix. O Anti-Édipo. São Paulo: Editora 34, 2010.
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NOBRE, Marcos et. al. Os modelos críticos de Max Horkheimer. Novos estudos -
CEBRAP, São Paulo, n. 96, p. 153-163, July 2013.
SAFATLE, Vladimir. O fim da paranoia. Revista Época, Caderno Sociedade, 16 de
setembro de 2019.
SANTNER, Eric. My own private Germany. New Jersey: Princeton U. Press, 1996.
SCHREBER, Daniel. Memória de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
STRINDBERG, August. Inferno. São Paulo: Editora 34, 2009.
ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: the fight for a human future at the
new frontier of power. Nova Iorque: Public Affairs, 2019.
ŽIŽEK, Slavoj. Sex and the Failed Absolute. London: Bloomsbury, 2020.
ŽIŽEK, Slavoj. The Ticklish Subject. 2nd Ed. New York: Verso, 2008.
PARANOIA E HISTÓRIA
PATOLOGIA E VERDADE
ARTIGO RECEBIDO EM 01/09/2020 • ACEITO EM 02/12/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65416
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892
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ARTIGO
OBJETIVIDADE HISTÓRICA
NO MANUAL DE TEORIA
DA HISTÓRIA
DE ROBERTO PIRAGIBE
DA FONSECA (1903-1886)
ITAMAR FREITAS
Universidade Federal de Sergipe
Aracajú | Sergipe | Brasil
itamarfreitasufs@gmail.com
orcid.org/0000-0002-2226-2015
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ARTICLE
HISTORICAL OBJECTIVITY
IN MANUAL OF THEORY
OF THE HISTORY
BY ROBERTO PIRAGIBE DA
FONSECA (1903-1886)
ITAMAR FREITAS
Universidade Federal de Sergipe
Aracajú | Sergipe | Brazil
itamarfreitasufs@gmail.com
orcid.org/0000-0002-2226-2015
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INTRODUÇÃO
De modo instrumental, podemos definir o substantivo “objetividade”
como o caráter de ser ou de existir do objeto e o caráter de ser conhecido do
“objeto”, este entendido como uma ideia ou coisa situada em frente ou na mente
do sujeito conhecedor. René Descartes (1596-1650) e Immanuel Kant (1724-
1804), dois dos filósofos mais citados pelos escritores de manuais de Teoria da
História e de Metodologia da História no período de 1870-1940, concordariam
com essa definição genérica de objeto. Apesar das distâncias entre as abordagens
inatista e crítica que professavam sobre o conhecer, Descartes e Kant referiram-
se aos objetos do conhecimento de maneira espacializada (objetos internos e
externos do conhecedor) e discutiram modalidades de correspondência entre
ideias e coisas.
Com o termo “objetividade”, porém, o exercício contrafactual não se
sustenta. A expressão mais próxima de uma objetividade científica intermediada
pelo Discurso do método (1637) e pelas Meditações (1641) de Descartes – o “poder
de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso” (Descartes
1999a, 35) – seria a formação de ideias claras e distintas (Descartes 1999b, 242)
ou a demolição de toda opinião suscetível à dúvida. Objetividade, então, poderia
ser traduzido por indubitabilidade. Descartes até emprega “realidade objetiva” e
realidade encontrável “objetivamente em suas causas” para comunicar a
supremacia das ideias produzidas pelo entendimento sobre as ideias
provenientes dos sentidos (Descartes 1999b, 275), ou para caracterizar a coisa
ou o conceito “imediatamente representado por meio da concepção”
(Cottingham 1993, 137).
As derivações do termo, porém, estariam bem distantes daquelas
empregadas por Kant, na Crítica da razão pura (1781/1787), onde o objeto era
algo não contido exclusivamente no sujeito, ou seja, situado exteriormente ao
sujeito, embora não puramente empírico. Objeto era “matéria”, “fenômeno” e
“forma”. Esses três conceitos correspondiam aos meios de conhecimento ou às
operações cognitivas e estéticas conjugadas que o filósofo apresentou como
alternativa aos céticos e aos dogmáticos em teoria do conhecimento:
recepção/sensibilidade (da matéria), intuição empírica (do fenômeno) e
pensamento apriorístico (mediante a forma) (Kant 2013, 71). “Validade
objetiva”, expressão mais próxima de uma objetividade científica mediada pelo
método do idealismo transcendental, seria, então, o caráter do conhecimento
cujo “pensamento, mediante as intuições puras de espaço e tempo, é aplicado a
um objeto apresentado fenomenologicamente”. Um saber objetivo (um tipo de
assentimento), por seu turno, é “aquele racionalmente válido para todos os
pensantes – diferentemente da fé, que é validada racionalmente apenas por um
praticante” (Kant 2013, 137, 593).
Essa objetividade, como definida por Kant, foi “criativamente adaptada”
– por erro de interpretação, preocupações disciplinares, filosofias locais ou
interesses individuais – e passou a ser parâmetro de mensuração da cientificidade
entre os físicos, fisiologistas e botânicos na segunda metade do século XIX
(Daston; Galison 2007, 206-208). Foram eles os tradutores do caráter de ser
objetivo como capacidade de apagamento do self de quem se propunha a
conhecer, isto é, como a resultante de uma luta entre a vontade e o Eu não
pensada originalmente por Kant (ocupado, nessa passagem, com epistemologia
e não com psicologia). Correlatamente, essa datação cronológica marcaria o
nascimento do self cientista, como registram Lorraine Daston e Peter Galison
(2007, 205-210).
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que dera aos Anais do I EBIEH (1970) sobre a história das disciplinas teórico-
metodológicas de História no Brasil.
Naquele lampejo de ego (criticando o senador Magalhães), contudo,
Fonseca talvez não explicasse os principais motivos que o levaram a se interessar
em publicar impressos propedêuticos e empenhar-se na disseminação de
critérios de objetividade histórica para os profissionais que faziam uso da escrita
da História. Fonseca trabalhou em três frentes dos domínios teóricos da
formação de professor de História: a abrangente “Propedêutica” (introdução), a
mais restrita e abstrata “Teoria” (Filosofia especulativa) e a “Metodologia”. Com
o “Programa e breviário de propedêutica e de metodologia da história”,
publicado esparsamente na revista católica Verbum (1953/1959), ele se dirigiu
aos alunos do curso de Geografia e História (somente desmembrado em 1955).
Com o Manual de Teoria da História, ele planejava se projetar diante dos
graduandos de “História, Filosofia, Didática e Jornalismo”, que frequentavam as
faculdades de Filosofia. Com ambos, poderia falar à exígua classe média do
Distrito Federal – advogados, artistas, jornalistas e professores do ensino
secundário –, exercitando sua militância em prol do catolicismo sob bases
agostinianas:
Não que o professor responsável [Fonseca], naturalmente católico, -
ortodoxo e militante, – ainda alimente dúvidas a respeito e, portanto, ainda
peça luzes ao livre debate de opiniões. Mas como a filosofia católica da
história, – e, desgraçadamente os mesmos Mandamentos divinos –, segue
sofrendo a impugnação maliciosa e pedante do mundo obstinado em não
crer, torna-se dever inconcusso do magistério confessional submeter a
tese, honesta e documentadamente, já que fundada nos postulados
assentes no De Civitate Dei, ao exame e apreciação dos que, animados de
boa-fé, estudam o problema filosófico da história.
Fá-lo, porém, o professor responsável, é claro, sem temer contraditas, e
sobretudo, sem admitir possíveis e pessoais câmbios de rumo, mas apenas,
- seja tolerado o símile –, como o apologeta que, serena e inabalavelmente
confiante na Verdade a que se arrima, desenvolve ante o ouvinte a
exposição raciocinada dos fundamentos da Fé com o propósito único e
exclusivo de iluminar e converter. (Fonseca 1959, 202-203. Grifos nossos).
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NOTA LIMINAR
ADVERTÊNCIA
TEMAS PREPARATÓRIOS (Introdução Geral)
1. Superlativa importância da Teoria da História
2. Conceito de História e Seus Elementos
3. Evolução do Conceito da História
Primeira parte – METAFÍSICA DA HISTÓRIA (Filosofia Específica)
1. Bibliografia
2. Problema Metafísico da História (Ontologia do Fato Histórico)
3. Principais Sistemas Metafísicos da História
4. Teoria das Causas da História (Etiologia do Fato Histórico)
5. Teoria das Leis Históricas
6. Teoria do Sentido da História (Teleologia do Fato Histórico)
7. Significação Meta-Histórica da História
8. Divisão da História
9. Utilidade do Conhecimento da História
Segunda Parte – LÓGICA DA HISTÓRIA (Metodologia Específica)
INTRODUÇÃO
1. Bibliografia
2. Evolução da Historiografia
3. Doutrina Geral do Método Historiográfico – Exame e Exposição do Fato
Histórico
4. METODOLOGIA DA HISTÓRIA
5. Metodologia da História
6. Doutrina Especial do Método Historiográfico – A. Heurística e Ciências
Auxiliares da História
7. Doutrina Especial do Método Historiográfico – B. Introdução à Paleografia
8. Doutrina Especial do Método Historiográfico – C. Noções de Diplomática
9. Doutrina Especial do Método Historiográfico – D. Operações Analítico-
Sintéticas
10. Metodologia do Estudo Superior da História (Iniciação à Autodidática a
Observar)
11. Metodologia do Ensino Secundário da História (Grandes Princípios)
12. Metodologia do Ensino Superior da História (Responsabilidade da Cátedra
Universitária)
NOTAS FINAIS
Figura 1.
Plano da obra Teoria da História (1966) de Roberto Piragibe da Fonseca
Fonte: FONSECA (1966, 11).
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Figura 2.
Mapa conceitual do Curso de Teoria da História de Roberto Piragibe da Fonseca (1966).
Fonte: Produzido pelo autor, a partir da leitura de Fonseca (1966).
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A disposição adotada por Fonseca difere dos livros que ele próprio
indica em ordem, objeto e densidade da matéria. Dos autores citados no Manual,
parte ocupava postos em universidades e parte era formada por outsiders
destacados nos estudos históricos e filosóficos sobre o cristianismo e o
catolicismo. Herbert Butterfield (1900-1979), por exemplo, inglês, católico e
historiador, que escrevera Cristianismo e História (Christianity and History – 1950),
criticava a formação centrada na metodologia da História e enfatizava a
importância das competências do “poeta, do profeta, do teólogo e do filósofo”.
A combinação “da história com uma religião ou com algo equivalente a uma
religião”, ao contrário da aridez da crítica histórica, ele afirmava, preencheria o
processo histórico com significados (Butterfield 1950, 23-24).
Franz Sawicki (1877-1952), doutor em Teologia (Freiburg), autor de
vários títulos sobre cristianismo e catolicismo – entre os quais o Filosofia da
História (Geschichtsphilosophie - 1920), outro indicado por Fonseca, – não
empregava “Teoria da História” para articular Metafísica e Lógica em um único
domínio. Preferiu a expressão “Filosofia da História” que, segundo o próprio
autor, nomeava um campo, à época, sobrepujado em quantidade pelos títulos de
“Lógica da História”, na passagem do século XIX para o XX (Sawicki 1920, 3).
Especialista em teoria do conhecimento, Sawicki não chegou a reservar um terço
do seu manual à parte da Lógica, específica para a pesquisa histórica, no
segmento relativo ao conhecimento histórico.
Fonseca se distancia desses dois trabalhos e autores ao reservar o mesmo
espaço em seu impresso para a Metafísica e para a Lógica e ressignificar, em
parte, esses dois domínios ou disciplinas da Filosofia. Sawicki, como Fonseca,
era um entusiasta da “filosofia cristã da História”, mas a sua teleologia não
pareceria suficiente ao brasileiro que empregou A cidade de Deus (413/426) para
reforçar o valor das teses de Santo Agostinho (354-430) na formulação da
“concepção católica da História” em sua “fase teocrático-dualista inicial”
(Fonseca 1966, 44), como explicitado a seguir, pelas próprias palavras do Bispo
de Hipona.
muitos dos que agora desacreditam o Cristianismo e imputam a Cristo as
desgraças que a cidade teve que suportar [...] [d]everiam antes, se o
avaliassem judiciosamente, atribuir os sofrimentos e durezas que os
inimigos lhes infligiram à divina Providência que costuma, com guerras,
purificar e castigar os costumes corrompidos dos homens. É a divina
Providência que põe à prova a vida justa e louvável dos mortais com tais
aflições, para, uma vez provada, ou a transferir para uma vida melhor ou
a reter nesta Terra para outros fins. (Agostinho 1996, 101-102).
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Observando outra vez a figura 2, contudo, percebemos que essa questão (lógica
em Sawicki) foi deslocada para as subdisciplinas metafísicas: o objeto da ciência
histórica é o fato histórico (ontologia) multicausado (etiologia) e previsível,
embora não obediente a leis ao modo das ciências naturais (teleologia). O caráter
científico da História é, portanto (e primeiramente), um problema de fundo
ontológico (a realidade existe fora do sujeito conhecedor), expresso por negação
à gnosiologia proposta por Kant (que, como afirmou Daston, não estava
interessado na metafísica do seu tempo). A cientificidade é justificada, em
seguida, com o anúncio do aparato metodológico empregado na pesquisa e na
exposição dos fatos.
Nesse segundo nível hierárquico da sua parte Lógica, percebemos uma
inovação. Observem que Fonseca salta imediatamente da Lógica para as
“metodologias”. Na sua Teoria da História, não há “o” método histórico como
determinante das “metodologias”: há métodos históricos destinados a ensinar
no secundário, no superior, a estudar no superior e a pesquisar e escrever
história. Esses métodos definem ao menos três (senão quatro) domínios ou
protocampos de investigação: a “Metodologia do Ensino Superior”, a “Didática
da História” e a “Metodologia da Pesquisa”.
Naquele ano de lançamento (1966), a Metodologia do ensino Superior
de História não era convencionalmente assumida pelos catedráticos como
matéria formativa. A profissionalização (pedagógica) do ensino, não apenas no
Brasil, entre o último terço do século XIX e o primeiro do século XX, em geral,
era fenômeno restrito aos ensinos primário e secundário. Assim, o apelo de
Fonseca, mesmo em termos transnacionais, era (e ainda é, no caso brasileiro)
algo novo: “Cuide-se da formação do professor universitário, para que, a bem
da cultura nacional, o candidato à docência superior não mais se veja compelido
a esperdiçar tempo, tão lamentavelmente, com a própria formação,
autoformação, aliás, sempre e inevitavelmente defeituosa” (Fonseca 1966, 145).
A solução apresentada era a adoção do método de ensino exegético, em termos
teóricos, e a instituição dos pré-seminários e seminários (figura 2), ao modo do
jesuíta Leopold Fonck (1865-1930) que escrevera Trabalhos científicos. Contribuição
para uma metodologia dos estudos acadêmicos (Wissenschaftliches Arbeiten – Beiträg zur
Methodik des akademischen Studiums – 1908).
O segundo protocampo era “Metodologia do Ensino secundário da
História”, já radicada nas faculdades de Filosofia ou Educação e nas escolas
normais brasileiras. A proposta de Fonseca não destoava das iniciativas
designadas como Didática Especial de História e Metodologia do Ensino de
História. A Metodologia era o fórum das discussões sobre a natureza psicológica
do aluno, os valores e os conhecimentos requeridos ao professor e,
consequentemente, o domínio dos conteúdos substantivos e das técnicas de
“transmissão ao adolescente” (FONSECA 1966, 135). Como vemos pelo
temário, Fonseca não explora a parte prática, reservada aos pedagogos. Também
não incorpora a inovação de citados na bibliografia, como o clássico Teaching of
history in elementary and secondary schools (1942), de Henry Johnson (1867-1953), que
já prescrevia a transposição das operações metodológicas de pesquisa para os
alunos do secundário.
O terceiro e o quarto protocampos são o “estudo” e a “pesquisa e
exposição” históricos. O “Estudo” é uma zona cinzenta para nós. Pode
representar uma tradução dos “studies” comuns em manuais estadunidenses e
ingleses, às vezes interpretados como “investigação” histórica ou como práticas
de acompanhamento de cursos em nível superior (práticas de estudo). Quanto à
sua “Metodologia do Estudo superior da História”, ela reúne orientações
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até aqui, tentamos convencê-los de que a Teoria da História de Piragibe
da Fonseca é um compósito de estruturas de manuais e de listas de teses
defendidas por autores, em geral, cristãos, antimaterialistas que circulavam em
instituições educacionais universitárias e não universitárias da Alemanha,
Áustria, Brasil, Dinamarca, Espanha, EUA, França, Hungria e Inglaterra.
Estruturada nas disciplinas-campo da Metafísica e da Lógica, a Teoria da
História de Fonseca é uma espécie de cluster, onde cada unidade possui relativa
independência. Essa estrutura é clara na Lógica, na qual as metodologias de
ensino do superior, ensino do segundo grau e estudo de História no superior
não reproduzem literalmente “o” método da pesquisa e da exposição históricas.
Certamente, os critérios de validação da “verdade” histórica são dados
pelo “método”, ou seja, os critérios de validação estão anunciados nas tarefas de
“constatação dos fatos históricos” via crítica externa
(autenticidade/integridade/autoridade da fonte) e crítica interna (autoridade do
narrador, possibilidade e verossimilitude das fontes). Os critérios de validação
das verdades prescrevem, por exemplo, a ausência de contradição entre ação
humana e necessidade, entre ação humana e lei moral e entre fenômeno natural
e leis física. Ocorre que, na Lógica de Fonseca, tais critérios estão embebidos de
princípios metafísicos. É impossível, por exemplo, aceitar que a felicidade dos
trabalhadores no planeta pode ser instaurada a partir do fim da luta de classes,
quando se sabe que a vida na Terra é intrinsecamente sofrimento decorrente do
pecado. Tal proposição não é válida porque contradita a necessidade
providencial. É impossível negar a travessia dos hebreus pelo leito seco do Mar
Vermelho, quando se sabe que o conhecimento humano sobre as leis físicas é
imperfeito e, ainda, que a Providência pode alterar “a ordem do Cosmos”. Tal
proposição pode ser válida porque conserva coerência acerca do valor relativo
que possuem as leis da natureza. Além da interferência desses princípios
metafísicos, a conclusão pela “objetividade do conhecimento histórico” é
conduzida por diferentes critérios de validação (metafísicos e físicos), geridos
sob diferentes pesos (valor absoluto – é impossível ferir leis metafísicas; valor
relativo – é possível ferir leis morais e físicas) e contrapesos (aceitação do milagre
limitada à validação das suas fontes em termos de crítica externa).
Essa concepção de objetividade do conhecimento histórico tem
implicações para as nossas tentativas de classificação da sua teoria e para a
construção de eventuais histórias da Historiografia ou histórias da Teoria da
História no Brasil. Em primeiro lugar, e retomando o debate exposto na
introdução deste artigo, podemos afirmar que o emprego de uma periodização
para a história da objetividade histórica que prescrevesse a transição de um
tempo de imparcialidade para um tempo de objetividade, como sugere Daston
e Galison, seria contraditado, por exemplo, pela Teoria da História de Fonseca
para quem a parcialidade do historiador e do professor de História do ensino
superior era também constituinte da objetividade do conhecimento histórico,
assemelhando, desse modo, a experiência brasileira à experiência de vários
exemplares da historiográfica alemã do século XIX (Assis, 2015; Freitas, 2019).
Em segundo lugar, e considerando a presença de valores religiosos, pesos
e contrapesos, alguns dos quais determinados por metafísicos, a presença do
“método histórico” (em suas clássicas operações de heurística, análise e síntese)
não seria causa suficiente para tipificar escritos como os de Fonseca (dentro do
IHGB e das Faculdades de Filosofia) como prescritores de objetividade
mecânica ou (o que é mais comum) de certo ideal metodológico positivista,
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•
REFERÊNCIAS
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•
ARTIGO
HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS
E TERRITÓRIOS
SOBREPOSTOS
DIÁLOGOS ENTRE
EDWARD W. SAID E
FRANTZ FANON
ELISA GOLDMAN
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Veiga de Almeida
Rio de Janeiro | Rio de Janeiro | Brasil
goldman@uol.com.br
orcid.org/0000-0002-6489-2883
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ARTICLE
INTERTWINED HISTORIES
AND OVERLAPPING
TERRITORIES
DIALOGUES BETWEEN
EDWARD W. SAID AND
FRANTZ FANON
ELISA GOLDMAN
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Veiga de Almeida
Rio de Janeiro | Rio de Janeiro | Brazil
goldman@uol.com.br
orcid.org/0000-0002-6489-2883
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1 Edward W. Said nasceu em Jerusalém no ano de 1935. No cenário de seu nascimento, sua
família estava vivendo no Cairo, Egito. Said tornou-se estudioso da teoria literária, professor da
Universidade de Columbia e um militante da causa nacional Palestina. Teórico representativo
dos estudos pós-coloniais, escreveu vários livros estabelecendo uma análise dos vínculos
estreitos entre a cultura e o processo imperialista. A obra de Edward W. Said alcançou uma
extensão significativa a partir dos anos 1970 com a publicação do livro Orientalismo, o Oriente
como invenção do Ocidente (1978), consensualmente pensado como marco inicial dos chamados
Estudos Pós-Coloniais. Identificamos que a elaboração desse livro manteve uma estreita
relação com o início da militância de Said no Movimento Nacional Palestino.
2 Frantz Fanon, intelectual de origem antilhana, psiquiatra, nasceu na Martinica em 1925.
Aos 19 anos, deixou a Martinica para servir às forças armadas francesas. Desencantado com o
racismo nas forças armadas e decepcionado com o artificial universalismo francês, voltou para
a Martinica. Em 1947, ingressou na Universidade de Lyon. Nesse contexto, redigiu Pele negra,
máscaras brancas, uma análise sobre as patologias do racismo colonial. Em 1953, adotou a
escolha pela especialidade médica da psiquiatria e, nesse momento, aceitou um emprego na
Argélia, ocupada pela França. Renunciou ao seu posto de médico e integrou a Frente pela
Libertação Nacional. Foi expulso pelas forças francesas da Argélia e partiu para o exílio em
Túnis. Em dezembro de 1960, foi diagnosticado com leucemia e faleceu precocemente em
1961, com 36 anos, nos EUA, para onde foi em busca de tratamento para sua doença.
3 Os Condenados da terra, livro originalmente publicado em francês, postumamente em 1961,
constitui a principal referência a Fanon na obra de Said. O prefácio de Jean-Paul Sartre (1961)
é expressão marcante da luta anticolonial. Sartre se referia à hegemonia da cultura ocidental e
do humanismo desmascarado como processo de dominação colonial da Europa na África e na
Ásia. Sartre fala das consciências infelizes que “se emaranham nas contradições” e reproduzia a
fala de Fanon sobre uma Europa que cavava sua própria ruína. O filósofo francês abordava a
decadência de uma Europa que na metáfora orgânica agonizava no seu humanismo paradoxal.
Fanon denunciava as artimanhas e estratégias coloniais, além de analisar os elementos de
complacência dos agentes coloniais com a elite colonial. A violência colonial é denunciada
como um mecanismo desumanizador. Sartre analisa a violência que emana da resistência como
a possibilidade de recomposição existencial do homem colonizado. Trata-se de um reencontro
com a própria identidade. O reconhecimento do caráter relevante do prefácio aparece na
medida em que o livro não havia sido escrito para os europeus, o que promove a perspectiva
dialética na sua escrita. Trata-se do apelo para que os europeus se descolonizem e que extirpem
os colonos do seu interior. O manifesto sobre o desnudamento do humanismo europeu é o
tema central do autor. Sartre menciona o falso postulado do universalismo que encobriria
práticas reais. A França precisa ser renomeada para o nome de uma neurose, diagnosticada na
contingência história da descolonização.
4 A obra de Fanon é considerada um marco no pensamento pós-colonial. Reconhecemos a
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8 “A intenção ao englobar todos os negros sob o termo “povo negro” é arrebatar toda
possibilidade de expressão individual. O que se intenciona é submetê-los a obrigação de
responder a ideia que se elaborou sobre eles. O que será o povo branco? Não se diz que só
existe uma raça branca? É necessário então que se explique a diferença que existe entre nação,
povo, pátria, comunidade? Quando se diz “povo negro” se supõe sistematicamente que todos
os negros estão de acordo a respeito de certas coisas: que existe entre eles um princípio e
comunhão. A verdade é que não existe nada a priori que permita supor a existência de um povo
negro” (tradução nossa).
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9 “A alienação neste contexto não é com respeito a um núcleo de identidade estável, claro
em sua formulação e definido em termos históricos, que tem sido obturado pelo colonialismo,
como de alguma maneira é o espírito que rodeia os postulados da negritude. Não ao contrário,
a alienação é com respeito a uma potencialidade em jogo nos corpos dos colonizados, é com
respeito às tramas que forçam esses corpos a representar-se de uma só forma e não de outras.
É com respeito à ausência da alternativa, no terreno da cultura, como no da explicação
histórica. Nesse sentido a alienação do colonizado, é menos com respeito ao conhecimento de
um processo global que foi escamoteado pelo poder colonial, do que com respeito à potência
da sua constituição, como sujeito se enfrenta a esse poder onde poderia se constituir outro tipo
de genealogia cultural e política” (tradução nossa).
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para um campo de trabalho forçado na Tunísia. Após a independência do seu país migrou para
a França, adotando a nacionalidade francesa em 1973.
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12 “Até o momento, ao menos, a Martinica não pode ajudar Fanon em nenhuma destas
investidas, seja no esforço negativo ou positivo de se libertar. Como um departamento da
França, a Martinica ainda acredita muito na integração junto à comunidade francesa para se ver
como uma estrangeira. A Martinica nem ao menos ousa imaginar se separar da França. Revolta
e luta armada parecem escandalosamente matricidas, mesmo que a mãe fosse suspeitar de não
ser uma mãe muito boa. Fanon iria lutar sozinho?” (Tradução nossa).
13 O livro Por La revolución africana expande o debate sobre a guerra Franco-Argelina e
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O subalterno ou metonímico não são nem vazios nem cheios, nem parte
nem todo. Seus processos compensatórios e vicários de significação são
uma instigação à tradução social, a produção de algo mais além, que não é
apenas o corte ou lacuna do sujeito, mas também a interseção de lugares
e disciplinas sociais. Este hibridismo inaugura o projeto de pensamento
político defrontando-o continuamente com o estratégico e o
contingente, com o pensamento que contrabalança seu próprio “não
pensamento”. Ele tem de negociar suas metas através de um
reconhecimento de objetos diferenciais e níveis discursivos articulados
não simplesmente como conteúdos, mas em sua interpelação como formas
de sujeições textuais ou narrativas – sejam estas governamentais, judiciais
ou artísticas. (Bhabha 2001, 103).
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•
Ora, no interior das jovens nações, o tirano bloqueia tudo, reduz tudo a
si e aos seus. As nações descolonizadas são como filhos de idosos, que
nascem débeis e doentios, frutos ressecados antes de terem amadurecido.
O projeto nacional do descolonizado parece esgotado antes de ter
verdadeiramente começado. Pois sua nação sofre de uma deficiência
histórica; nasceu tarde demais. As causas disso são múltiplas: o
adormecimento provocado pela colonização, que se prolonga como após
a ingestão de um sonífero, a letargia persistente do povo, a imprecisão da
noção de território nacional, que só recentemente se fixou, a aspiração
sempre tentadora a um mesmo conjunto supranacional.
(Memmi 2007, 78).
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17 Said cita essa parte em que Fanon caracteriza a burguesia nacional argelina com teor de
críticas à sua atuação paritária com a metrópole. Said ressalta a divisão entre a burguesia
nacional argelina e as tendências libertárias da FLN. Após a eclosão da insurreição, as elites
nacionalistas tentam estabelecer paridade com a França. O perfil assimilacionista da
colonização francesa faz com que os partidos nacionais oficiais se vejam forçados a uma
cooptação das autoridades dirigentes.
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•
REFERÊNCIAS
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SPIVAK, Gayatri Chakravorty, Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: EdUFMG, 2010.
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ENSAIO
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ESSAY
FOR AN EROTICS
OF HISTORY
ESSAY ON POSSIBILITIES
AND LIMITS IN THE
DIALOGUES BETWEEN
HISTORY AND
PSYCHOANALYSIS
EVANDRO DOS SANTOS
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Caicó | Rio Grande do Norte | Brazil
evansantos.hist@gmail.com
orcid.org/0000-0003-2844-4810
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CONTRA A INTERPRETAÇÃO?
O nome da filósofa e intelectual estadunidense Susan Sontag, autora de
importantes ensaios publicados ao longo da segunda metade do século XX e
inícios deste século XXI, voltou a ser recorrentemente encontrado em jornais e
revistas, no ano passado, por conta da publicação da biografia Sontag, escrita
por Benjamin Moser, rapidamente vertida para o português (Moser, 2019).
Trata-se de uma obra de fôlego, de quase setecentas páginas (na edição
brasileira) e que tem sido discutida e criticada desde o seu lançamento. No
nono capítulo desse extenso volume, intitulado “O moralista”, o biógrafo
defende a polêmica hipótese de que Freud: The Mind of the Moralist, livro
publicado em 1959 e assinado por Philip Rieff, que havido sido casado com
Sontag, tratar-se-ia de um texto escrito por esta (Moser 2019, 112-122). Moser
ouviu testemunhas e apresenta supostos documentos que indicariam a falsa
autoria. Longe de investir na polêmica proposta nessa passagem da obra,
interessa-me situar a discussão que mobilizou as reflexões apresentadas no
presente artigo. Em Contra a interpretação, ensaio divulgado originalmente em
1964 e depois reeditado na conhecida coletânea homônima de 1966, Sontag
propõe o repensar da crítica de arte para além das bases mais rígidas da
hermenêutica e eleva a obra do médico neurologista alemão Sigmund Freud
(1856-1939) à mesma importância do legado de Karl Marx para, em seguida,
efetuar sua crítica:
As mais celebradas e influentes doutrinas modernas, as de Marx e Freud,
em realidade são elaborados sistemas de hermenêutica, agressivas e
ímpias teorias da interpretação. Todos os fenômenos que podem ser
observados são classificados, segundo as próprias palavras de Freud,
como conteúdo manifesto. Este conteúdo manifesto deve ser investigado e
posto de lado a fim de se descobrir debaixo dele o sentido verdadeiro –
o conteúdo latente. Para Marx, acontecimentos sociais como revoluções e
guerras; para Freud, os fatos da vida de cada indivíduo (como os
sintomas neuróticos e os lapsos de linguagem), bem como textos (um
sonho ou uma obra de arte) – todos são tratados como motivos de
interpretação. Segundo Marx e Freud, estes acontecimentos parecem
inteligíveis. Na realidade, nada significam sem uma interpretação.
Compreender é interpretar. E interpretar é reafirmar o fenômeno, de
fato, descobrir um equivalente adequado.
(Sontag 1987, 15, itálicos no original).
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1 Neste sentido, cabe mencionar que, em certa medida, Sontag propõe uma resposta à
indagação levantada pela filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) no que tange às
explicações para a ascensão da história e concomitante declínio do pensamento político, nas
décadas finais do século XVIII (Arendt 2003, 110-121).
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erótico, reage com a mesma potência do superego descrito por Freud, ou seja,
atua como instância que se opõe ao eu e dele não espera nada imprevisível,
criativo ou transgressor (Freud 1971).
Hayden White não deixou de notar que as bases da crítica de Nietzsche
à imaginação histórica já apareciam em O Nascimento da Tragédia, de 1872
(White 2001, 44). A dimensão ética da tragédia havia sido usurpada pela
perspectiva dramática (ressentida), particular à modernidade, na qual não mais
era possível vislumbrar a vida como uma obra aberta, o que nos faz humanos
(Deleuze 2013, 126-130). White também percebeu que a crença dos
historiadores na ideia de que o início do século XIX demarca o auge de sua
disciplina não estaria fundamentada na capacidade desta em oferecer
perspectivas novas de ver o mundo, mas na função de mediador que o
historiador assumiu as artes, as ciências e a filosofia (White 2001, 54).3 Qual era
a proposição lançada, na década de 1960?
E segue-se que o fardo do historiador em nossa época é restabelecer a
dignidade dos estudos históricos numa base que os coloque em
harmonia com os objetivos e propósitos da comunidade intelectual
como um todo, ou seja, transforme os estudos históricos de modo a
permitir que o historiador participe positivamente da tarefa de libertar o
presente do fardo da história. (White 2001, 53, itálicos no original).
século XIX, teria atuado como agente articulador entre as ciências e as artes, remeto às
reflexões de Valdei Lopes de Araujo, dedicadas a pensar o direito à história e às possibilidades
de se pensar o historiador como um curador de histórias (Araujo 2017, 191-216).
4 Agradeço à Marina Corrêa da Silva de Araujo pela remissão inspiradora à clássica obra de
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•
Freud escreveu textos que podem ser tomados como históricos. Sem
dúvida, alguns de seus últimos escritos oferecem esclarecimentos que, sem
resolver a questão do estatuto epistemológico misto da psicanálise (o que não
percebo como um problema), esclarecem o que ele apresenta como uma
dimensão erótica que se manifesta historicamente. Em cada contexto histórico
o sofrimento manifesta-se de formas diversas. A angústia dos corpos possui
uma dimensão histórica. A luta entre Eros e o instinto de morte, retomada
diversas vezes nas reflexões de Freud, manifesta-se no sujeito e na cultura,
simultaneamente. Uma história sem corpos assemelha-se muito à metafísica,
pois parte do pressuposto que a alteridade dos corpos pode ser ignorada
perante a unidade do histórico. Freud reconhecia o potencial da história para
revelar até mesmo as estruturas mais elementares do esquema psicanalítico.
Em seu conhecido título O mal-estar na civilização, cuja primeira edição data de
1930, diz:
Pode-se afirmar que também a comunidade desenvolve um superego sob
cuja influência se produz a evolução cultural. Constituiria tarefa
tentadora para todo aquele que tenha um conhecimento das civilizações
humanas acompanhar pormenorizadamente essa analogia.
(Freud 1997, 106).
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REFERÊNCIAS
ARAUJO, Valdei Lopes de. O direito à história: o(a) historiador(a) como curador(a) de
uma experiência histórica socialmente distribuída. In: GUIMARÃES, Géssica;
BRUNO, Leonardo; PEREZ, Rodrigo (orgs.). Conversas sobre o Brasil: ensaios de
crítica histórica. Rio de Janeiro: Autografia, 2017, 191-2016.
BIRMAN, Joel. Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2011.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013.
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: curso no
Collège de France (1983-1984). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I, II e III. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1985-1988.
FREUD, Sigmund. Esquema del psicoanalisis. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1971.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997.
GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
MOSER, Benjamin. Sontag. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
330
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•
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre história. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo:
Loyola, 2005.
QUEM TEM MEDO DE VIRGÍNIA WOOLF?: Mike Nichols. Produção de Ernest
Lehman e Edward Albee. Estados Unidos: Warner Bros., 1966, 1 DVD.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2007.
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa:
Edições 70, 2011.
SONTAG, Susan. A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
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•
TRADUÇÃO
FABIO IACHTECHEN
Instituto Federal do Paraná
Paranaguá | Paraná | Brasil
fabio.luciano@gmail.com
orcid.org/0000-0002-5170-4679
APRESENTAÇÃO DO TRADUTOR
“O que é historiografia?” é uma resenha escrita em 1938
pelo historiador estadunidense Carl Lotus Becker sobre
o livro A history of historical writing, publicado no mesmo
ano por Harry Elmer Barnes, então professor do Smith
College e pesquisador ligado à New School of Social Research
da Universidade de Columbia. O texto foi publicado
originalmente no boletim da American Historical
Association e reproduzido posteriormente em Detachment
and writing of history, obra de 1958 organizada por Phil L.
Snyder que reuniu seus textos e ensaios sobre teoria e
escrita da história.
Carl Becker se formou na Universidade de Wisconsin
em 1896, e teve como seu mentor intelectual Frederick
Jackson Turner e a chamada frontier thesis, elaborada a
partir do artigo de 1893, The significance of the frontier in
American history. O argumento central de Turner
explicava a constituição da democracia estadunidense
pela expansão Oeste das fronteiras durante o século
XIX, desvinculando das antigas tradições europeias a
essência da formação nacional. Em 1898 Becker se
tornou associate fellow na Universidade de Columbia,
onde frequentou os seminários de James Harvey
Robinson e Charles Beard e passou a desenvolver seu
interesse pela história intelectual europeia, tema que o
acompanhou pelo resto da vida e lhe oportunizou
participar dos debates do movimento conhecido como
“progressive era”, cuja expressão historiográfica mais
importante está na “new history” nos Estados Unidos
das décadas de 1910 e 1920.
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O QUE É HISTORIOGRAFIA?
[ 1938 ]
Quarenta anos atrás eu estava fascinado pelo estudo da história, pela
mecânica da pesquisa, por aquele tipo de pesquisa na qual os eventos (existem
outros tipos) tem sido definidos como “pequenos pedaços pinçados de grandes
livros que ninguém nunca leu, e colocados juntos em um livro que ninguém
nunca vai ler”. Mais tarde me tornei menos interessado pelo estudo da história
do que pela história propriamente dita, quer dizer, pelos sugestivos significados
que poderiam ser atribuídos a certos períodos ou grandes eventos, como “o
espírito de Roma é um ácido, que aplicado ao sentimento de nacionalidade, o
dissolve” ou ainda, “a Renascença é uma dupla descoberta, do homem e do
mundo”. Agora que estou mais velho o aspecto mais intrigante da história não
é, enfim, nem o estudo da história ou a história em si, nos sentidos expostos
acima, mas antes a história do conhecimento histórico. O nome dado a este
aspecto da história é o pouco atraente, como disse o Sr. Barnes, historiografia.1
O que é historiografia precisamente? Deveria ser, como tem sido até
recentemente, algo mais do que a enumeração de trabalhos históricos desde os
gregos, com alguma indicação sobre os propósitos e pontos de vista dos autores,
as fontes utilizadas e a precisão e legibilidade dos trabalhos em si. O objeto
principal destas iniciativas historiográficas é a avaliação, a partir de padrões
modernos, do valor destes trabalhos históricos para nós. Neste nível, a
historiografia nos oferece um manual com informações sobre histórias e
historiadores, nos provendo, por assim dizer, com um claro balanço das
“contribuições” de cada historiador para a soma total do conhecimento histórico
verificado e disponível. Tais manuais tem um alto valor prático. Aos candidatos
ao doutoramento eles são de fato indispensáveis, já que os provém, ainda que
indiretamente, de informação atualizada. Neles se aprende quais foram os
defeitos e limitações de seus predecessores, mesmo os mais ilustres, sem o
problema de terem que ler diretamente seus trabalhos, como, por exemplo, que
Macauley, embora um brilhante escritor, foi cegado pelo preconceito Whig, ou
que a estima de Tácito por Tibério foi suplantada por pesquisas posteriores, ou
que o relato incisivo de Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso sofre com a
falta de familiaridade do autor com a doutrina da interpretação econômica da
história. Conhecer as limitações de nossos predecessores mais famosos nos dá
confiança no valor de nossas próprias pesquisas: podemos não ser brilhantes,
mas podemos ser sólidos. Temos a grande vantagem de viver em tempos mais
esclarecidos: nossas monografias podem jamais ser classificadas como Declínio e
queda do Império Romano enquanto clássicos da literatura, mas serão baseadas em
fontes de informação não disponíveis a Gibbon e tornadas impecáveis por um
método científico ainda desconhecido em sua época.
A history of historical writing do Sr. Harry Elmer Barnes está além disso, de
ser um catálogo comentado de trabalhos históricos. No entanto, em certo
sentido é isso também, um pouco demais até, talvez mais do que o seu propósito
exigia ou o que ele pretendia. Há partes do livro que me deixaram com uma
invejosa admiração pela erudição do autor, sua simples familiaridade com o
conteúdo de inúmeros livros dos quais eu nunca tinha ouvido falar. Minha
primeira impressão de fato, ao terminar o livro, foi que poderia encontrar em
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uma coleção de mitos, ou se contentaria em dizer a Tito Lívio que ele é um bom
contador de histórias, mas um péssimo historiador. Não se preocupando
principalmente com o que os romanos realmente sabiam sobre o passado, mas
com o que eles tinham em mente quando pensavam sobre este passado, ele
aproveitaria o fato de Tito Lívio ter escrito sua história e o fato de que os mitos
relacionados foram correntes e amplamente aceitos como verdade. Ele
perceberia que, embora um mito possa não ser verdade, que ele existe enquanto
verdade, e que as pessoas acreditam nisso como verdade, o que pode ser da mais
alta importância. Em suma, os "fatos" que interessariam ao historiógrafo, o “que
realmente aconteceu” que ele procuraria e consideraria relevante para seu
propósito, seriam não a verdade, mas a existência e a pressão das ideias sobre o
passado que no qual homens se relacionavam e agiam. Seu objetivo seria
reconstruir, e através do insight imaginativo e do entendimento estético reviver
esse conjunto de eventos que ocorrem em lugares e tempos distantes, nos quais,
em períodos sucessivos, os homens foram capazes de formar uma imagem de
quando se contemplavam e de suas atividades em relação ao mundo em que
viveram. Se os eventos que compõem este conjunto são verdadeiros ou falsos,
considerando objetivamente, isso não deveria lhe interessar.
Tomada nesse sentido, a historiografia deve, sem dúvida, começar com
“tempos pré-históricos” - um termo absurdo, como diz o Sr. Barnes, se
quisermos considerar a história externamente, como o registro do que os
homens fizeram, pois implica que o período mais longo da história humana
ocorreu antes que houvesse história propriamente. Mas não é tão absurdo, afinal,
se pensarmos na história a partir de dentro, como um domínio da mente, como
a apreensão do desenvolvimento do passado e de lugares distantes, uma vez que
os homens mais antigos poderiam ter pouca história nesse sentido. No entanto,
mesmo os homens mais antigos (os Cro-Magnons, por exemplo) devem ter sido
capazes de formar alguma imagem, embora limitada em design e menos nítida do
que o que ocorreu e estava ocorrendo no mundo. O que era essa imagem só
podemos adivinhar, embora algumas suposições engenhosas e até esclarecedoras
pudessem, sem dúvida, surgir pelos antropólogos. De qualquer forma, o
historiador poderia começar com as mais antigas histórias épicas, a Criação
Épica da Babilônia, a Ilíada de Homero e outras coisas do gênero. Para os
primeiros gregos, a Ilíada, como alguém já disse (talvez Matthew Arnold?), era
história, fábula e escritura, tudo em um texto só. É claro que esses termos
diferenciadores são enganosos, pois podemos ter quase certeza de que os
primeiros gregos não faziam essas distinções. A fábula contada, o cerco de Tróia,
as ações de homens e deuses, era tudo real, história simplesmente, o registro do
que realmente aconteceu. E assim para todas as pessoas cuja civilização se
desenvolveu diretamente a partir de condições primitivas.
Até que os registros escritos passassem a ser usados, os homens não
puderam se tornar efetivamente conscientes do fato de que o evento registrado
difere do evento lembrado. Só então eles poderiam distinguir adequadamente
entre fábula e história, entre o relato de eventos inventivamente imaginados e o
relato de eventos que realmente aconteceram; só então as histórias poderiam ser
pensadas como um “ramo da literatura”. Mas a diferenciação entre história e
literatura não torna os deuses indispensáveis. Inescrutáveis em seus propósitos,
implacáveis em seus julgamentos, governantes de homens e coisas, os deuses
ainda são necessários; para a literatura, porque estão tão intimamente envolvidos
nos assuntos atuais dos homens; para a história, porque a criação do mundo deve
ser considerada, e os homens, mesmo os heróis antigos e reis divinos, são
incapazes de realizar uma tarefa tão grande. Portanto, a história permanece longa
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•
CARL BECKER
O QUE É HISTORIOGRAFIA?
TEXTO SUBMETIDO EM 28/09/2020 • ACEITO EM 15/11/2020
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892
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ENTREVISTA
PSICANÁLISE E
EPISTEMOLOGIA
HISTÓRICA
ENTREVISTA COM
MARCELA BATÁN
LUIZ SÉRGIO DUARTE
Universidade Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brasil
sergio.duarte.ufg@gmail.com
orcid.org/0000-0003-1541-3206
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Marcela Batán
Claro! Isso tem a ver com o que foi a invenção de uma comunidade, de
um pequeno grupo na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade
Nacional de San Luis, que é um encontro entre pessoas que têm se dedicado à
filosofia, outros que vieram da psicanálise – quer dizer, de outra formação e de
outra práxis –, e também gente que se dedica à educação. Três exercícios
diferentes, três formações, três práticas diferentes. Contudo, nos reunia a
inquietude epistemológica para analisar, refletir, criticar nossas próprias práticas,
sobretudo, estando a cargo da formação de futuros psicólogos, psicanalistas,
educadores da educação comum e da educação especial. Em um primeiro
momento, então, tive que definir como nos encontrávamos nessa encruzilhada
de certos saberes, mas também de diferentes práticas. E nessa encruzilhada,
tentamos posicionar, examinar, indagar e esclarecer alguns temas. Primeiro foi a
interpretação, passamos seis anos nesse diálogo. Depois, hoje, os eixos
normalização, classificação e subjetividade são mobilizados de diferentes
maneiras nas práticas das ciências humanas e da psicanálise. Para eles, um estilo
de fazer epistemologia, a epistemologia histórica, que nos permite fazer esse
trabalho por várias razões. Primeiro, porque uma epistemologia é inseparável de
uma história da constituição das ciências humanas, uma epistemologia
inseparável da história da constituição desse campo em particular que se chama
psicanálise, e também é uma epistemologia inseparável da atualidade dessas
disciplinas e dessas práticas, quer dizer, uma epistemologia sempre
comprometida com a indagação da história da atualidade das ciências humanas
e da psicanálise. Isso nos pareceu importante. E, nessa encruzilhada,
conversávamos. Podemos distinguir dois movimentos: um que vai da
epistemologia à psicanálise e às ciências humanas. Então é a pergunta, digamos,
filosófico-histórica por psicanálise e ciências humanas. Mas, também nos
deixamos instruir, nos deixamos interpelar, nos deixamos ensinar, e a questão
foi da psicanálise à filosofia e ao resto das ciências humanas, sobretudo a
educação. O que da experiência da psicanálise, da experiência inaugural de Freud,
o que do que significa a experiência analítica pode nos ensinar a filosofia? Nesse
sentido, é a partir do analista que conseguimos trabalhar algumas questões, não
é? O que se verifica na experiência analítica, essa não convergência entre a
verdade e o saber. O que se verifica nela acerca do mal-estar da sexualidade
humana? O que se verifica nela, de qualquer forma, é a primeira pergunta a que
chega sempre alguém a uma análise: o que está acontecendo comigo? Uma
pergunta que é uma demanda de saber a outras questões, a pergunta: com o que
me satisfaço? A pergunta por diversão... Então, também são essas questões
verificadas na experiência analítica que nos teriam que ensinar a filosofia. Essas
questões, me parece, nos trazem os colegas psicanalistas a partir do que se
apresenta a eles hoje, na clínica, e as que nos trazem os colegas da educação
especial, que se apresentam como um desafio para a educação. Essas questões
nos faziam pensar e nos perguntávamos: que ferramentas da epistemologia
histórica, autores como Canguilhem, Foucault, Ian Hacking ou como Lorraine
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•
Daston nos podem servir para este diálogo? Isso foi um pouco, nesses anos, o
encontro: a condição dos problemas, eleger as leituras que íamos fazendo, as
análises que fizemos, mas, a partir do que nos trazia as práticas dos colegas, o
que passava, poderíamos dizer, e o que passa com a subjetividade do sofrimento
de nossa época e nosso San Luis, onde há fenômenos que crescem, diagnósticos
que se multiplicam exponencialmente, por exemplo crianças e adolescentes com
problemas de atenção, hiperatividade e outras maneiras diferentes de categorizar
esse transtorno. Hoje, um grupo de colegas estuda como estão crescendo os
diagnósticos em torno da dislexia e das dificuldades que se apresentam na leitura,
que se apresentam precisamente no âmbito educativo. O que a epistemologia
histórica de inspiração francesa, por um lado com Canguilhem e Foucault e
também com Hacking que é, como diria Braunstein, um foucaultiano criativo,
que inova – sobretudo em um projeto que se chama “Making Up People” –, nos
serviu para pensar esse fenômeno? Nesse curso de tempo fomos criando uma
comunidade, um estilo de abordar perguntas e respostas, um estilo de indagar e
responder, unir-se e ir incessantemente entre o ambiente universitário e os
arredores, quer dizer, os colegas que trabalham no consultório, na escola pública,
nos âmbitos de saúde mental e algumas horas na universidade trabalhando
comigo no projeto e na epistemologia das ciências sociais. Então, ali, aconteceu
uma interação muito interessante.
RTH
Marcela Batán
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•
método. Não é necessário nenhum trabalho ético sobre si para revelar a verdade,
só falta o método. Mas a verdade descoberta não salva, não ilumina, não brinda
nenhuma modificação, não retorna à subjetividade. Então, nos perguntamos,
fazendo essa genealogia, essa história da pragmática de si, de nossa cultura: o que
sucede a partir de Kant? Kant retoma a pergunta “o que é a ilustração?”, retoma
a atitude ou o ethos filosófico da pergunta “quem sou eu nesse momento da
história?”, que é uma pergunta crítica à história da racionalidade, uma pergunta
em relação à nossa atitude. E aí, inventando um pouco, nos perguntamos se a
experiência inaugural da psicanálise vem a ser uma prática de si diferente que
retoma a questão do sujeito e da verdade. Pensamos entender que a experiência
inaugural da psicanálise não constitui uma hermenêutica de si. E quer dizer que
aí, talvez, nos distanciamos de Foucault. E, claro, Foucault indagou a questão da
psicanálise de várias maneiras em momentos diferentes. Na História da Loucura e
em As palavras e as coisas há um lugar especial para Freud e a psicanálise. No
entanto, parece-me que em textos posteriores, Foucault entende a prática da
psicanálise como uma prática no interior do processo geral de normalização,
como uma prática medicalizadora e relacionada com a confissão cristã, com essa
obrigação de dizer tudo o que tem que dizer frente a um outro. Já não é direito
de consciência, isso é psicanálise. No entanto, parece-nos também que a leitura
que faz de Lacan e a referência de Lacan em A hermenêutica do sujeito, que diz que
Lacan volta a colocar o tema do sujeito e da verdade... Essa leitura nos habilita
pensar que haveria, talvez, um lugar diferenciado para situar a psicanálise.
Certamente a psicanálise aparece no regime da ciência moderna. A psicanálise
aparece já operada no momento de [...], digamos, a filosofia deixou de ser uma
prática de espiritualidade e passou a ser um saber de conhecimento, ocupando
um lugar na emergência da ciência moderna. Estamos em outro regime de
verdade. Mas talvez a psicanálise aí seja uma prática que, de alguma maneira, se
vincule com outra prática de si, esta não medicalizadora, não normalizadora e
não confessional. Isso daria uma outra possibilidade de pensar o dizer por meio
de Canguilhem, Foucault, Hacking, mas talvez outra prática possível do analista
na contemporaneidade. Estou sendo muito sintética. E talvez recorrendo a
leituras, a debates que foram passionais, acalorados, em cada um de seus pontos
de vista, mas aprendemos tudo no processo. Creio que fizemos uma escola de
depor a exclusividade do saber e de pontos de vista, de abrirmos a escutar o
outro, de depor os orgulhos intelectuais que não tenham sentido, narcisismo –
talvez recordando o que já disse a expressão bachelardiana “uma psicanálise do
conhecimento objetivo” – temos promovido uns aos outros. O reconhecimento
de uma falta intelectual, da incompletude, da falta. Tudo isso cria uma forma de
trabalhar.
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RTH
Mas você também encontrou uma relação com a psicanálise com Bachelard?
Marcela Batán
Claro. Em Bachelard o que tenho tentado ver é quais são os usos que ele
faz da psicanálise como filósofo da imaginação e como filósofo da racionalidade
científica, às vezes não apenas de Freud, mas também de Jung e uma imensa
biblioteca de psiquiatras, psicólogos de sua época. Parece-me que ele se
pergunta, além do sujeito do conhecimento, as condições que possibilitam ou
impedem a construção do objeto do conhecimento. Nesse sentido, sua noção
de obstáculo epistemológico, quer dizer, a noção de que no ato mesmo de
conhecer, se apresentam entorpecimentos, cegueiras, confusões, torpezas, às
vezes pontos de inércia e de regressão. O que chamamos de obstáculo
epistemológico de diversas índoles, ou seja, dar uma entidade na epistemologia
a isso que vem do obstáculo e do horror que opera e opera paradoxalmente.
Impede, mas possibilita, porque se não fosse isso, não haveria algo contra o qual
ir, algo a ser rompido para depois reconstruir, porque sempre, como Bachelard
dizia, se conhece contra um conhecimento anterior, destruindo o conhecimento
mal feito e que a dinâmica mesma do conhecimento exige o obstáculo
epistemológico como condição necessária. Portanto, fazer o exercício que ele
propõe, como deixarmos a psicanálise e o conhecimento objetivo, a vigilância
epistemológica, [inaudível] a noção freudiana de Supereu... São exercícios no
momento mesmo que está se constituindo o sujeito do conhecimento, revisando
os métodos, revisando a história da própria disciplina, nesse momento mesmo
do sujeito. Já junto a outros, mais tarde, de maneira autocrítica e já em solidão,
há de se levar adiante certos exercícios para que a tarefa epistemológica seja
possível. E tratei de localizar em Bachelard um uso polêmico. Primeiro, parece
que Bachelard polemiza com algumas noções de Freud para situar de maneira
diferenciada sua própria maneira de entender, por exemplo, repressão,
sublimação, inconsciente, para pôr uma questão epistemológica ou para propor
algo da ordem de seus textos de filosofia da imaginação. Ele se vale de um
conceito para criticá-lo e propor um próprio: isso é o que chamamos de uso
polêmico. Então, distinguiria também um uso terapêutico, quer dizer,
inspirando-se em certas terapias que propõe Freud, mas também outros
analistas. Ele propõe terapias, ou seja, distintos trabalhos que o sujeito pode fazer
sobre si mesmo, tanto em filosofia da imaginação, para trabalhar suas imagens e
criar; quanto em epistemologia, para fazer um trabalho sobre os próprios
obstáculos nessa marcha até o conhecimento objetivo, até a ruptura e a
construção de um novo objeto. Então, as já mencionadas “psicanálise do
conhecimento objetivo” e “vigilância epistemológica”, mas também outras
terapias análogas, digamos, a topoanálise, a poético-análise, são todas propostas
bachelardianas que trabalham sobre si à semelhança de certas psicanálises, que
podem promover ao sujeito a criatividade, a arte como essência, a abertura de
outras imagens e a possibilidade de outros novos objetos do conhecimento, a
passagem do conhecimento comum ao conhecimento objetivo.
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RTH
Marcela Batán
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o autismo como classificação interativa; aos colegas de San Luís que estão
estudando os diagnósticos de dislexia e como estão crescendo
exponencialmente. Mas como você bem disse, são todas classificações que
surgiram no âmbito da normalização – e muitas vezes da normalização em
instituições pedagógicas. É ali que se visualiza a criança que apresenta diferenças
na maneira que lê, que escreve, que presta atenção etc. Há uma medicalização,
medicamentalização e patologização das infâncias e da adolescência que está
preocupando muito os analistas e educadores (da educação comum e especial)
que não querem aderir à normalização, à medicalização, à patologização e à
medicamentalização, e sim tratar a questão de outra forma. Eles me ensinam
muito.
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RESENHA
A PERSPECTIVA HISTÓRICA
DAS IDEOLOGIAS DA
DESIGUALDADE NO
RECENTE LIVRO DE
THOMAS PIKETTY
FLÁVIO DANTAS MARTINS
Universidade Federal do Oeste da Bahia
Barreiras | Bahia | Brasil
flaviusdantas@gmail.com
orcid.org/0000-0001-5275-5761
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desigual da história, dizendo que algo parecido com isso foi o Sul escravocrata
dos Estados Unidos – o Brasil é apresentado como um país cujas eleições são
divididas com clivagens de classe, raça e região. Embora um pouco
decepcionante ou sem grandes novidades, para alguns leitores, o interessante na
contribuição para o debate brasileiro de Piketty é que ele serve de ressalva para
comparações realizadas com países ocidentais, tão comuns por aqui, quando
equiparam realidades do Brasil com Estados Unidos, Hungria, Polônia. A
ressalva está em que aqui a questão de classe é mais estruturante que nesses
países, nos quais o problema do nativismo/internacionalismo está na ordem do
dia. Outra questão importante seria a inexistência, entre nós, de uma esquerda
brâmane, o que não é tão certo quanto à existência de uma direita de mercado.
O livro levanta o caso da Índia, que apareceu no radar da comparação dos
analistas graças à recente viagem do presidente Bolsonaro ao país de Modi.
Nesse sentido, a contribuição de Piketty é de elementos originais para a análise
da realidade ocidental – para Piketty ocidente é Europa Ocidental e Estados
Unidos – sendo possível acrescentar elementos para a análise comparativa de
fenômenos políticos.
Não tivesse os méritos da densa discussão, das propostas, do
embasamento empírico e da inovação conceitual no campo da análise política, o
livro já seria importante pela transformação de aspectos importantes de uma
crítica anticolonial se não em consenso, mas em senso comum. Nesse sentido, o
livro é um testemunho do aprendizado do europeu em se atentar para
especificidades fora de suas fronteiras e dos riscos da generalização. As
desigualdades são produtos de complexos processos históricos e agentes
econômicos, construídas ideologica e politicamente. Elas são particularmente
graves em países onde houve escravidão e colonialismo, condições estruturantes
da desigualdade contemporânea no mundo. Ao mesmo tempo, o livro é modesto
no alcance crítico na análise da persistência dessa herança colonial e do trabalho
escravizado e forçado nesses países. O que não é uma desvantagem, já que indica
prudência e evita generalizações, especialmente de caráter eurocêntrico.
Capital et idéologie é parte de um projeto ambicioso, produto de um
embasamento empírico quantitativo farto e com uma construção retórica
bastante bem desenvolvida, fundamentada historicamente e de grande alcance
teórico. O pesado aparato científico não impede o livro de ser profundamente
engajado na proposição de um socialismo participativo que crie instituições
transnacionais, sem repetir a estatização da propriedade privada dos regimes
soviéticos, local onde a propriedade estatal era sacralizada, tendo como modelo
o Estado de bem estar social de alguns países ocidentais no período 1960-1990.
Sem novidades conceituais do ponto de vista da discussão do conceito de
ideologia, é uma boa síntese do ponto de vista de uma história das ideias de
justificação da desigualdade em sua abordagem de sociedades estamentais na
Europa ocidental, de sociedades escravistas e coloniais na América e da realidade
indiana, incorporando na consciência de esquerda européia ocidental elementos
do pensamento crítico anticolonial das periferias capitalistas. Em termos de
novidades conceituais, o livro contribui na categorização do cenário político
contemporâneo de Estados Unidos e Europa Ocidental ao propor uma divisão
quadripartite do campo do poder, dividido em internacionalistas-igualitaristas,
internacionalistas-desigualitaristas, nacionalistas-igualitaristas e nacionalistas-
desigualitaristas. Outras inovações conceituais são os conceitos de social-
nativismo e de ideologia neoproprietarista, que se sustenta na ideia de
meritocracia, este último abrangendo tanto a direita do mercado quanto à
esquerda brâmane.
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entre estados, guerras civis, estados falidos e máquinas de guerras em locais com
matérias-primas de alto valor e importância geopolítica. É sobre esses limites de
um modelo social-democrata na forma de uma proposta de socialismo
participativo que a discussão, feita do lado de cá, mais nos interessa.
REFERÊNCIAS
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução Monica Baumgarten de Bolle. Rio
de Janeiro: Intríseca, 2014.
MBEMBE, Achille. Politiques de l’inimitié. Paris: La Découverte, 2016.
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RESENHA
A HISTÓRIA [OCIDENTAL]
EM TEMPOS DE
MUDANÇA INAUDITA
MARCELO DURÃO RODRIGUES DA CUNHA
Instituto Federal do Espírito Santo
Vitória | Espírito Santo | Brasil
marceloduraocunha@gmail.com
orcid.org/0000-0001-6585-6836
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1 Um marco nesse debate foi a divisão estabelecida em por Arthur Danto entre as
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mais um sintoma (um “contrapeso”, nas palavras do autor) do que uma forma
adequada de entendimento da mudança inaudita. Pois na medida em que os
seus teóricos visaram classificar a historiografia no interior de uma ampla
ordem de discursos modernos (como a tese de White sobre “o texto histórico
como artefato literário”), o narrativismo deixou de considerar as
especificidades daquilo que há de propriamente histórico na escrita sobre o
passado (Simon 2019, 19). Simon sustenta que é justamente essa falta de
apreço pelas características sui generis da historiografia o que torna o
narrativismo inadequado à compreensão da sensibilidade histórica do inaudito.
Nesse sentido, o autor acredita ser necessário buscar uma posição teórica para
além do narrativismo, a fim de melhor refletir sobre a forma desconexa de
relacionar passado, presente e futuro própria dos tempos de mudança inaudita.
Admitindo a complexidade de tal empreitada, o autor dedica nada
menos que seis capítulos à formulação das bases de uma teoria da história apta
a apreender os contornos dessa nova forma de sensibilidade histórica. Se os
três primeiros capítulos conceituam a história entendida como o curso das
coisas, os três capítulos da segunda parte complementam a hipótese inicial com
uma teoria para a história entendida como escrita histórica. O livro se encerra,
finalmente, com uma reflexão sobre as possibilidades políticas associadas a esse
novo tipo de teoria da história. Na realidade, Simon não esconde em nenhum
momento esse desejo de oferecer certo sentido de emancipação política em sua
teorização, de modo que o primeiro capítulo é uma tentativa de restabelecer a
ideia de movimento histórico a partir do que ele denomina como uma
“filosofia da história quase substantiva”. Entendendo o passado como uma
questão de conhecimento e o futuro como uma questão de existência (de
modo que o movimento histórico não estaria mais associado à “história em si”,
mas à transformação perpétua de questões existenciais em questões de
conhecimento), essa filosofia da história quase substantiva postularia a
mudança no curso das ações humanas sem invocar as ideias de direção,
teleologia e sentido geral, caras ao moderno conceito singular coletivo de
história (Simon 2019, 53). Desse modo, o conceito de história seria doravante
não mais entendido como a mudança nos assuntos humanos vinculados ao
desenvolvimento de um único sujeito ao longo de um continuum temporal,
mas como um “singular disruptivo”: como um espaço de conhecimento
dissociativo e como um horizonte existencial dispostos contra uma prévia
disruptura do tempo (Simon 2019, 57). Restabelecida a possibilidade de se
teorizar sobre a mudança, no segundo capítulo Simon se preocupa em
compreender o tipo de relação com o passado engendrada a partir desse
conceito disruptivo de história. Aqui o argumento central é o de que mesmo
quando o passado é concebido em termos de dissociações de identidade,
estudá-lo é inevitável e tem um papel constitutivo em dar sentido a nós
mesmos e ao mundo. Dessa forma, estudar um passado disruptivo seria a
melhor ferramenta para indicar negativamente quem e o que não somos mais.
Nessas condições, a escrita histórica funcionaria como uma provedora de
conhecimento essencialmente contestado do passado, alternando entre o que o
autor denomina como o passado apofático (uma construção de identidades
estabelecida através da negação) e o passado-presente (o passado que emergiria
como “presença”, de forma abrupta e não linear no tempo presente). Quanto
ao papel do futuro em uma filosofia quase substantiva da história, Simon
defende no terceiro capítulo que contrariamente à sensibilidade moderna de
uma história processual e orientada à utopia, os eventos do pós-guerra levaram
ao surgimento da expectativa do evento distópico, singular, radicalmente
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essas perguntas que temos de voltar o foco de nossa lente, especialmente para
aquelas que carregam o germe da resposta de Reis para o problema da
identidade/alteridade hoje.
Outra questão que ocupa o pensamento de José Carlos Reis é a do
conflito entre memória e história da historiografia brasileira. O Capítulo sexto,
intitulado “Qual foi a contribuição do historiador mineiro Francisco Iglésias
(1923-1999) à historiografia brasileira?”, é uma resenha, ao mesmo tempo crítica
e elogiosa, do livro A universidade, a história e o historiador: o itinerário intelectual de
Francisco Iglésias (Alameda, 2018), de Alessandra Santos. Nesse breve capítulo-
resenha, Reis reconhece a pertinência da pesquisa de Santos e abertamente
duvida de sua crítica à memória canônica e às contribuições de Francisco Iglésias
à historiografia mineira e brasileira. Já o Capítulo sétimo, intitulado “A
civilização brasileira está destinada ao fracasso?”, é um prefácio, em alguma
medida elogioso, do livro Pensamento social brasileiro: de Euclides da Cunha a Oswald
de Andrade (Alameda, 2018), de Ricardo de Souza. Nesse brevíssimo capítulo-
prefácio, Reis sublinha a relevância e a felicidade do projeto de releitura dos
clássicos do pensamento histórico-social brasileiro de Souza e endossa a sua
visão pessimista acerca da história e da cultura brasileira. A nosso ver, a
pretensão de Reis com esses dois capítulos menores é uma só: nos convidar a
fazer uma análise muito séria da produção intelectual de historiadoras e
historiadores brasileiros.
Também um tema em que José Carlos Reis concentra energias é o da
História do Direito. No Capítulo oitavo, intitulado “História do Direito: Por
quê? Como? Para quê?”, Reis tenta aproximar as ciências da História e do
Direito, além de definir as tarefas de cada uma. De acordo com Reis, se
comparada à ciência do Direito, a ciência da História tem um componente a
mais: a preocupação com a temporalidade sob a forma de perguntas formuladas
ao presente pelo historiador. Na visão analítica de Reis, a História do Direito só
pode ser feita com auxílio da ciência da História porque, recorrendo aos métodos
históricos, “o advogado com pretensões intelectuais” (161) consegue “oferecer
a inteligibilidade das formas, discursos e instituições jurídicas no presente” (160).
Sem esse auxílio, sem as ferramentas da história, sem a distância temporal do
passado, sem o olhar voltado ao presente, o Direito “é enigmático, opaco,
incapaz de se pensar e procurar as melhores soluções para os problemas
jurídicos” (161). Assim, para Reis, a tarefa dos pesquisadores da história do
Direito deve ser a de qualquer historiador: formular questões ao Direito, com o
dever ético de servir ao presente.
Mais um tema fundamental no livro de José Carlos Reis é o que diz
respeito à historiografia das ciências. No Capítulo nono, intitulado “A
‘historiografia das ciências’ é ‘historiografia’: por que é preciso explicar essa
tautologia?”, Reis fala à vontade e em tom provocativo discute com os
historiadores das ciências que não consideram a historiografia das ciências
historiografia stricto sensu. Neste último Capítulo, Reis refuta a ideia arrogante dos
profissionais das ciências de que “o campo da historiografia das ciências é
autônomo, independente, e não precisa dialogar com a história da historiografia”
(167). De acordo com Reis, se a historiografia das ciências não pertence ao
campo da história da historiografia, se ela é algo completamente diferente da
historiografia propriamente dita, se ela constitui um campo específico do saber
científico, então ela não tem o direito de usar o nome “historiografia”. Ela teria
de se designar de outra forma (167). Para Reis, ao utilizar a etiqueta
“historiografia”, a historiografia das ciências revela a sua essência histórica.
Sendo assim, a historiografia das ciências compartilha dos mesmos objetos,
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JASPERS, WEBER
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JASPERS, WEBER
E A POLÍTICA
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REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892
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Pertanto per chi, come Jaspers nel ’17, identifica la sfera del politico con
quella dell’economico (29) e non pensa la possibilità di un uomo che abbia,
weberianamente, un’autentica vocazione per la politica (55) che gli consente di
conciliare la pluralità dei valori con la mutevolezza del reale (33), non resta,
rileva Massimilla, che la disperazione.
Dunque, scandagliando, con ritmo incalzante, l’“articolata tipologia” dei
modi in cui le visioni del mondo degli uomini non politicamente attivi
interagiscono con la politica, lo storico della filosofia napoletano, tenendo
sempre da conto sullo sfondo la Grande Guerra, può concludere, da ultimo, che
“ogni relazione profonda e proficua tra visione del mondo e politica resta per
Jaspers, a differenza che per Weber, necessariamente votata al sacco” (62-63).
Ed è così perché, al cospetto d’un mondo ormai “disincantato” (62), per l’uno a
dispetto dell’altro, politica e valori si cercano senza mai potersi trovare.
JASPERS, WEBER
E LA POLITICA
SUBMETIDO EM 28/09/2020 • ACEITO EM 10/11/2020
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892
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REVISTA DE
TEORIA DA HISTÓRIA
Journal of Theory of History
Universidade Federal de Goiás
Faculdade de História
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HISTÓRIA E
Psicanálise
HISTORY AND
Psychoanalysis
editado por