Você está na página 1de 384

REVISTA DE

TEORIA DA HISTÓRIA
Journal of Theory of History
Universidade Federal de Goiás
Faculdade de História

2 2020

HISTÓRIA E
Psicanálise
HISTORY AND
Psychoanalysis

editado por

Ana Lúcia Oliveira Vilela


Fabiana de Souza Fredrigo
Sabrina Costa Braga
revista de teoria da história 2 2020

EXPEDIENTE

| EDITOR-CHEFE
Prof. Dr. Ulisses do Valle | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil

| EDITORES EXECUTIVOS
Prof. Dr. Augusto Bruno de Carvalho Dias Leite | Universidade Federal do Espírito Santo Vitória, Espírito Santo, Brasil
Prof. Dr. Francesco Guerra | Universidade Federal de Goiás | Universitá di Pisa Pisa, Itália
Prof. Dr. Manoel Gustavo de Souza Neto | Universidade Estadual de Goiás Uruaçu, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Marcello Felisberto Morais de Assunção | Universidade de São Paulo São Paulo, São Paulo, Brasil

| CONSELHO EDITORIAL
Prof.ª Dr.ª Beatriz de Moraes Vieira | Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Prof. Dr. Breno Mendes | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Davide Bondì | Alma Mater Studiorum - Università di Bologna Bologna, Itália
Prof.ª Dr.ª Géssica Góes Guimarães Gaio | Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Brasil
Prof. Dr. Julio Bentivoglio | Universidade Federal do Espírito Santo Vitória, Espírito Santo, Brasil
Prof. Dr. Luiz Carlos Bento | Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil
Prof. Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Profª. Drª. Mariana de Moraes Silveira | Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Prof. Dr. Marcelo de Mello Rangel | Universidade Federal do Ouro Preto Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Prof. Dr. Marlon Jeison Salomon | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira | Universidade Federal de Ouro Preto Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Prof. Dr. Nuno Miguel Magarinho Bessa Moreira | Universidade Lusófona do Porto Porto, Portugal
Prof. Dr. Pietro Gori | Universidade Nova de Lisboa Lisboa, Portugal
Prof. Dr. Rafael Saddi | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Tiago Santos Almeida | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Thiago Lenine Tito Tolentino | Universidade Federal de Uberlândia Uberlândia, Minas Gerais, Brasil
Prof. Dr. Thiago Lima Nicodemo | Universidade Estadual de Campinas Campinas, São Paulo, Brasil
Prof.ª Dr.ª Walkiria Oliveira Silva | Universidade de Brasília Brasília, Brasil

| CONSELHO CIENTÍFICO
Prof. Dr. Alfonso Maurizio Iacono | Università degli Studi di Pisa Pisa, Itália
Prof. Dr. Alexandre Escudier | Centre de recherches politiques de Sciences Po (FNSP) Paris, França
Prof. Dr. Anderson Zalewski Vargas | Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
Brasil
Prof. Dr. Arthur Alfaix Assis| Universidade de Brasília Brasília, Brasil
Prof. Dr. Bennett Gilbert | Portland State University Portland, EUA
Prof. Dr. Carlos Alvarez Maia | Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Junior | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Cristiano Arrais Alencar | Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior | Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal, Rio Grande do
Norte, Brasil
Prof. Dr. Estevão Rezende Martins | Universidade de Brasília Brasília, Brasil

1
revista de teoria da história 2 2020

Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi | Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
Brasil
Prof. Dr. Fernando José de Almeida Catroga | Universidade de Coimbra Coimbra, Portugal
Prof.ª Dr.ª Francismary Alves Silva | Universidade Federal do Sul da Bahia Itabuna, Bahia, Brasil
Prof. Dr. Fulvio Tessitore | Università degli Studi di Napoli Federico II Nápoles, Itália
Prof.ª Dr.ª Helena Miranda Mollo | Universidade Federal de Ouro Preto Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Prof.ª Dr.ª Heloisa Meireles Gesteira | Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil
Prof. Dr. Henrique Espada Rodrigues Lima Filho | Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis, Santa
Catarina, Brasil
Prof.ª Dr.ª Joana Duarte Bernardes | Universidade de Coimbra Coimbra, Portugal
Prof. Dr. Luis Reis Torgal | Universidade de Coimbra Coimbra, Portugal
Prof.ª Dr.ª Maria Della Volpe | Università degli Studi di Napoli Federico II Nápoles, Itália
Prof. Dr. Massimo Mastrogregori | Università della Repubblica di San Marino San Marino, Itália
Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé | Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Prof. Ms. Natan Elgabsi | Åbo Akademi University Turku, Finlândia
Prof. Dr. Pedro Spinola Pereira Caldas | Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil
Prof. Dr. Piero Marino | Università degli Studi di Napoli Federico II Nápoles, Itália
Prof. Dr. Roberto Gronda | Università degli Studi di Pisa Pisa, Itália
Prof. Dr. Sérgio da Mata | Universidade Federal de Ouro Preto Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Prof.ª Dr.ª Silvia Caianiello | Istituto per la Storia del Pensiero Filosofico e Scientifico Moderno Nápoles, Itália
Prof. Dr. Valdei Araújo Lopes | Universidade Federal de Ouro Preto Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Prof. Dr. Zoltán Boldizsár Simon | Universität Bielefeld Bielefeld, Alemanha

| SECRETARIA
Elbio Quinta Junior | PPGH Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Krisley Aparecida de Oliveira | PPGH Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Murilo Gonçalves | PPGH Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil
Sabrina Costa Braga | PPGH Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás, Brasil

| REVISORES
Danillo Freire Pacheco
Lucas Francisco
Leonardo Ribeiro
Murilo Gonçalves

| DIAGRAMADOR
Augusto Bruno de Carvalho Dias Leite

| EDITORES DE ARTE E AUDIOVISUAL


Augusto Bruno de Carvalho Dias Leite
Túlio Henrique Queiroz e Silva

2
revista de teoria da história 2 2020

| REALIZAÇÃO
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás

| APOIO
Portal de Periódicos da Universidade Federal de Goiás

| PARCERIAS
Diacronie - Studi di Storia Contemporanea [Bologna]
Laboratório de Teoria da História e História da Historiografia [LETHIS – UFES]
Núcleo de Estudos em Teoria da História [NETH – UEG]
Núcleo Interdisciplinar de Estudos Teóricos [NIET]

| CONTATO
Faculdade de História | Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Federal de Goiás | UFG | Campus II Samambaia | 74690-900
Goiânia [GO] | Brasil
website | https://www.revistas.ufg.br/teoria/index
e-mail | revistateoriadahistoria@gmail.com

| FICHA CATALOGRÁFICA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) | GPT/BC/UFG
Bibliotecário responsável: Enderson Medeiros / CRB1: 2279

R454 Revista Teoria da História | Journal of Theory of History


[recurso eletrônico] / Universidade Federal de Goiás, Faculdade de
História. – Dados eletrônicos. – n.2 (2020). – Goiânia: Universidade, 2020.

Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader.


Modo de acesso: World Wide Web:
<https://www.revistas.ufg.br/teoria/index>
Semestral | ISSN 2175-5892

1. História - Filosofia. 2. Psicanálise e história. 3. História – Estudo e


ensino. I. Universidade Federal de Goiás. Faculdade História.

CDU: 930.1

3
revista de teoria da história 2 2020

INDICE

DOSSIÊ • HISTÓRIA & PSICANÁLISE

APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ | 7 • 10

Só irmãos não basta ser, melhor é sermos amigos


As Relações entre História e Psicanálise
HILÁRIO FRANCO JÚNIOR | 11 • 40

O Inesgotável e Elegante Trabalho da Memória, que Reconstrói, Performa e Elabora


RONALDO MANZI FILHO & MARIA LETÍCIA DE OLIVEIRA REIS | 41 • 65

A Angústia de Adão na América


MARIA BERNARDETE RAMOS FLORES | 66 • 92

Nossos Mortos Têm Voz


Notas Clínicas e Políticas sobre Imagens e Vozes
THALES DE MEDEIROS RIBEIRO & VANESSA DA CUNHA PRADO D’AFONSECA | 93 • 111
Subjetividade, Individuação e Escrita de Si
Aproximações Teóricas entre Michel Foucault e Carl Gustav Jung
PEDRO RAGUSA & ALFREDO DO SANTOS OLIVA | 112 • 126

Psicanálise, Hermenêutica e o Problema do Sentido


Ricœur Leitor de Freud
BRENO MENDES | 127 • 146

Da Verdade Historial
Movimentos de Confluência entre a Teoria Psicanalítica
e a Concepção Arendtiana [Funcional] de História
DIEGO AVELINO DE MORAES CARVALHO | 147 • 166

Metapsicologia sobre a Força Inconsciente do Passado


AUGUSTO B. DE CARVALHO DIAS LEITE | 167 • 184

Michel de Certeau e a Psicanálise


As Estratégias do Tempo e as Fronteiras da História com a Literatura
ROBSON FREITAS DE MIRANDA JUNIOR | 185 • 209

No Rastro Historiográfico da Psicanálise no Brasil


Reencontrando a Escrita da sua Ficção
ALINE LIBRELOTTO RUBIN | 210 • 229

O Excitante Caudilho de Ramos Mejía e o Desvairado Meneur de Nina Rodrigues


Raça e Gênero nas Interpretações Sul-Americanas da Psicologia das Massas
FERNANDO BAGIOTTO BOTTON | 230 • 245

Paranoia e História, Patologia e Verdade


DANILO ÁVILA | 246 • 272

4
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGOS • LIVRES

Objetividade Histórica no Manual de Teoria da História


de Roberto Piragibe da Fonseca (1903-1886)
ITAMAR FREITAS | 273 • 295

Histórias Entrelaçadas e Territórios Sobrepostos


Diálogos entre Edward W. Said e Frantz Fanon
ELISA GOLDMAN | 296 • 321

ENSAIO

Por uma Erótica da História


Ensaio sobre Possibilidades e Limites nos Diálogos entre História e Psicanálise
EVANDRO DOS SANTOS | 322 • 331

TRADUÇÃO

O que é Historiografia?
CARL BECKER | 332 • 340

ENTREVISTA

Psicanálise e Epistemologia Histórica


Entrevista com Marcela Batán
LUIZ SÉRGIO DUARTE & SABRINA COSTA BRAGA | 341 • 348

RESENHAS

A Perspectiva Histórica das Ideologias da Desigualdade


no Recente Livro de Thomas Piketty
FLÁVIO DANTAS MARTINS | 349 • 357

A História [Ocidental] em Tempos de Mudança Inaudita


MARCELO DURÃO RODRIGUES DA CUNHA | 358 • 364

José Carlos Reis entre a Filosofia e a História


RAYLANE MARQUES SOUSA | 365 • 370

Com Thomas Mann entre Passado e História


MARIA DELLA VOLPE | 371 • 373

Con Thomas Mann tra Passato e Storia


MARIA DELLA VOLPE | 374 • 376

Jaspers, Weber e a Política


MARIA DELLA VOLPE | 377 • 379

Jaspers, Weber e la Politica


MARIA DELLA VOLPE | 380 • 382

5
HISTÓRIA E
Psicanálise
HISTORY AND
Psychoanalysis
revista de teoria da história 2 2020

APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ
História e Psicanálise
Ventiladas desde a década de 1960 e consubstanciadas em fins do século
XX, as interrogações sobre a prática historiográfica e sua associação à narrativa
histórica exigiram novo escrutínio do historiador. Tais interrogações visavam ao
aprofundamento, de um lado, e à contraposição, de outro, às teorias
estruturalistas, que, por sua vez, desafiavam as concepções discursivas vigentes.
O abalo provocado às ciências humanas prescreveu ao historiador compreender
de que forma suas práticas e narrativas incorporariam distintas linguagens,
considerando, delas e nelas, o escopo ético e estético. Nesse cenário, emerge a
preocupação, antes latente, com o lócus do processo de subjetivação. Derivou
de tais movimentos uma significativa abertura do campo historiográfico à
relação entre história e psicanálise.
Interessado na relação supracitada, o historiador Dominick LaCapra
(2009) alertara para a associação fundante entre evento-limite e Holocausto, que
determinou a configuração dos Trauma Studies. Com o passar dos anos, houve
um alargamento do conceito de trauma, fazendo com que seu uso se estendesse
a outros acontecimentos, tais como o terrorismo, a escravidão e o colonialismo.
A história do trauma, a pós-memória e o pós-traumático impõem uma nova
abordagem às definições de acontecimento e experiência, impactando, também,
a percepção sobre o tempo e a temporalidade. Assim, parte da literatura histórica
aborda as guerras do século passado como eventos exemplares – essa
caracterização cabe, sobretudo, à Segunda Guerra, cuja memória eiva-se do
mandato “nunca mais”. Nessa perspectiva hegemônica, embora não consensual,
as experiências traumáticas, concebidas como inenarráveis, evidenciariam o
ápice da impotência da linguagem.
Essas perspectivas reportam tanto ao vaticínio de Theodor Adorno
(1988, 26) acerca da impossibilidade da poesia após Auschwitz quanto às
considerações de Walter Benjamin sobre a perda da experiência em um mundo
convulsivo. Antecipando-os no exame da subjetividade moderna, Sigmund
Freud foi referência a ambos. Entretanto, há entre eles uma distinção essencial:
enquanto Freud situa o trauma na origem da aquisição da linguagem e da
subjetivação, Adorno e Benjamin o ancoram no contexto histórico. Essa
distinção explicita uma dissonância entre história e psicanálise, no que se refere
à temporalidade e à subjetivação. Para a psicanálise, o tempo é o do inconsciente,
organizado segundo uma lógica associativa, onde acontecimento, evento e
memória se embaraçam, sem prejuízo ao processo de subjetivação. Para a
história, a causalidade tem um lugar central na estruturação da narrativa e,
mesmo que a temporalidade possa tratar de subverter a periodização, o processo
de subjetivação não se descola do contexto mediado pela cronologia.
Este Dossiê pretendeu abrigar artigos que problematizassem de que
maneira a historiografia se beneficia da abertura à psicanálise, promovendo a
interlocução entre esses campos e tratando-os interdisciplinarmente. Salvo

7
revista de teoria da história 2 2020

engano, este é o primeiro dossiê organizado por uma revista acadêmica da área
de História, cuja proposta é tratar das relações entre história e psicanálise,
particularmente no âmbito teórico. O número de artigos recebidos superou a
média de contribuições semestrais da Revista de Teoria da História e revelou
tanto o interesse inequívoco pelo tema quanto uma, até então, contida disposição
ao diálogo que nós, as organizadoras, entendemos urgente e fértil. Assim, é
possível pressupor que a resposta recebida pela chamada expressa, de forma
geral, o represamento da análise dessas interações na cena de publicações
científicas no Brasil. Não deixa de indicar, mais especificamente, um sintoma
relevante dos tempos em que vivemos: em contextos de crise e mudança, são
alvissareiros novos olhares às experiências humanas, demarcando-as
temporalmente. Se vivemos o inédito, é preciso criar o novíssimo. Isso exige
promover o que os historiadores cultivam em sua prática: a revisita a conceitos
assentes na tradição historiográfica e atentos ao tempo presente. No caso da
relação entre história e psicanálise, a mobilização e a atualização de conceitos se
tornam um trabalho delicado, cuidadoso e audacioso, considerando que o
aparato conceitual com o qual se lida é clínico, mas também político. Esse último
dado não deve causar temor, antes é um alerta que, entre outros, Elisabeth
Roudinesco, historiadora e psicanalista, não cansa de fazer em sua vasta obra,
como se depreende do prefácio ao Dicionário da Psicanálise (1998, IX), redigido
em conjunto com Michel Plon: “[este dicionário] propõe um recenseamento e
uma classificação de todos os elementos do sistema de pensamento da
psicanálise e apresenta a maneira pela qual esta construiu, ao longo do último
século, um saber singular através de uma conceitualidade, uma história, uma
doutrina original (a obra de Freud) permanentemente reinterpretada, uma
genealogia de mestres e discípulos e uma política”. Nesse pequeno trecho, a
autora desvenda o verdadeiro significado do trabalho revisionista: ter clara a
relação temporal entre áreas, conceitos e doutrinas, e ao mesmo tempo não
deixar escapar o conteúdo afetivo e político dos campos de saber.
Incitadas por uma constelação afetiva que serve aos conflitos do homem
contemporâneo, as relações entre história e psicanálise – extensa e intensamente
exploradas por autores como Peter Gay (1989) e Michel de Certeau (2011), para
citarmos apenas dois historiadores – tornam-se, cada vez mais, requisitadas no
campo historiográfico. Entendemos que essa atração, que não é nova, tem razão
de ser porque os temas e objetos de estudo, permeados pela mudança rápida e
pelo avassalamento imposto pela técnica ao tempo expandido da reflexão, têm
de acertar as contas com a insuficiência de ferramentas e categorias tradicionais
de compreensão, no interior do campo. Portanto, a importância da afluência
desses textos, agora em dossiê, encontra-se nas possibilidades de pesquisa que
apresentam, estimulando, esperamos, a imaginação, o desejo e a expertise de
nossos leitores.
O artigo que abre este dossiê, intitulado “Só irmãos não basta ser, melhor
é sermos amigos: as relações entre história e psicanálise”, de autoria de Hilário
Franco Júnior (USP), nos apresenta ao diálogo entre o que o autor denomina
como a mais antiga e a mais nova das ciências do homem. Nele acompanhamos
as formas por meio das quais a colaboração entre os diferentes campos do
conhecimento se realizou, ou busca se realizar. O artigo é uma leitura instigante,
tanto para o leitor que procura se introduzir no tema de nosso dossiê quanto
para aquele que já trabalha com as intersecções entre história e psicanálise.
Ronaldo Manzi Filho (FACMAIS) e Maria Letícia de Oliveira Reis
(USP), em “O inesgotável e elegante trabalho de memória, que reconstrói,
performa e elabora”, trazem ao debate a acepção psicanalítica de memória,

8
revista de teoria da história 2 2020

articulada à filosofia de Benjamin, em sua relação com o esquecimento e a


elaboração. O artigo suscita questões relacionadas às mudanças envolvendo a
escrita autobiográfica. Interroga-se sobre como a “forma diário” adaptada às
redes sociais implica uma distinção em nossa maneira de ser e de lidar com a
história, problematizando, então, o discurso contemporâneo, permeado pela
noção de sinceridade e pela exigência de satisfação imediata.
Maria Bernardete Ramos Flores (UFSC), em “A Angústia de Adão na
América”, conecta Xul Solar e Ismael Nery por meio da novela Adan Buenosayres,
de Leopoldo Marechal. Dessa maneira, percebe uma identidade artística entre os
três artistas de vanguardas latino-americanas e o afeto agônico como parte da
ansiedade cultural que se dá no plano psíquico da civilização ocidental. Nas
palavras da autora: “a tônica do encontro fundou-se na arte marcada pela estética
da angústia, de raiz cristã-adâmica-kierkegaardiana, própria da linguagem dos
poetas e pintores que comunicaram o desassossego no mundo contingente, e
desejaram transcender o tempo e o espaço, à busca do Paraíso perdido ou da
infância da humanidade”.
Em “‘Nossos mortos têm voz’: notas clínicas e políticas sobre imagens
e vozes”, Thales de Medeiros Ribeiro (UNICAMP) e Vanessa da Cunha Prado
D’Afonseca (UNICAMP) elegem dois documentários de Carla Ianni – Mães
(2013) e Apelo (2014) – como lugar privilegiado para articular conceitos
psicanalíticos àqueles forjados no arcabouço da história ou da filosofia.
Pedro Ragusa (UEPG) e Alfredo dos Santos Oliva (UEL), no artigo
intitulado “Subjetividade, Individuação e Escrita de Si: Aproximações teóricas
entre Michel Foucault e Carl Gustav Jung”, relacionam os conceitos escrita de si
e subjetividade autobiografada, associando campos teóricos e autores distintos,
incitando o diálogo entre eles.
Breno Mendes (UFG) contribui para este dossiê com o artigo
“Psicanálise, hermenêutica e o problema do sentido: Ricoeur leitor de Freud”.
O autor se debruça sobre a leitura filosófica da psicanálise desenvolvida por Paul
Ricoeur, especialmente na obra Da interpretação: ensaio sobre Freud (1965). A
reflexão proposta nos conduz a examinar o problema do sentido, tendo em vista
suas implicações para o fenômeno da história.
Diego Avelino de Moraes Carvalho (IFG), em “Da verdade historial:
movimentos de confluência entre a teoria psicanalítica e a concepção arendtiana
[funcional] de história”, objetivou estabelecer o encontro entre psicanálise,
filosofia e história, trazendo discussões sobre a função do historiador e o
estatuto de verdade para a filosofia e a psicanálise, mediante a mobilização de
autores como Hannah Arendt, Sigmund Freud e Jacques Lacan.
Em “Metapsicologia sobre a força inconsciente do passado”, Augusto B.
de Carvalho Dias Leite (UFES) apresenta as interpretações realizadas por
Benjamin da psicanálise freudiana e da literatura de Marcel Proust. Assim, o
autor nos mostra que Benjamin extrai lições metapsicológicas que definem sua
leitura de Proust e da obra de Freud; ao mesmo tempo, defende a hipótese de
que, ao fazê-lo, Benjamin apresenta uma metapsicologia própria.
“Michel de Certeau e a psicanálise: as estratégias do tempo e as fronteiras
da história com a literatura”, de autoria de Robson Freitas de Miranda Junior
(UFMG), é o artigo no qual são analisados textos presentes na coletânea História
e psicanálise: entre ciência e ficção. Mostra como, em suas reflexões sobre a história e
o fazer historiográfico, Certeau encontrou possibilidades de pensar novas
temporalidades e problematizar uma teoria da narratividade, complexificando os
estudos em torno do discurso histórico.

9
revista de teoria da história 2 2020

Aline Librelotto Rubin (USP), no artigo intitulado “No rastro


historiográfico da psicanálise no Brasil: reencontrando a escrita e sua ficção”,
expõe, desde a década de 1920, diferentes tradições e momentos dos estudos
historiográficos da Psicanálise no Brasil, incluindo e situando a virada
epistemológica da década de 1970, e propõe um retorno à “ficção teórica” de
Freud, como definido pelo historiador Michel de Certeau.
Em “O excitante caudilho de Ramos Mejía e o desvairado meneur de Nina
Rodrigues: raça e gênero nas interpretações sul-americanas da psicologia das
massas”, Fernando Bagiotto Botton (UESPI) nos apresenta e discute duas
perspectivas interpretativas da psicologia das massas, elaboradas anteriormente
às leituras freudianas e publicadas pelo argentino José María Ramos Mejía, em
Las massas argentinas (1899), e pelo brasileiro Raimundo Nina Rodrigues, em As
coletividades anormais (1898).
“Paranoia e História, patologia e verdade”, de Danilo Ávila (UNESP), é
o artigo no qual é proposta uma abertura da história à psicanálise por meio do
conceito de paranoia. Tal conceito, que remonta ao caso Schreber –
acompanhado por Freud –, é brevemente trabalhado nas obras de autores como
Theodor Adorno, Max Horkheimer, Gilles Deleuze, Slavoj Žižek e Richard
Hofstadter.
Contamos ainda como o ensaio de Evandro dos Santos (UFRN), “Por
uma erótica da história: ensaio sobre possibilidades e limites nos diálogos entre
história e psicanálise”. Nele, o autor problematiza as condições de interação
entre o saber psicanalítico e a disciplina histórica, desenvolvendo o argumento
de que, ao tornarem mais complexas tais relações, as categorias oriundas das
obras de Freud podem auxiliar na recuperação de aspectos eróticos da
experiência histórica e de suas formas de representação por diferentes sujeitos.
Por último, destacamos “Psicanálise e Epistemologia histórica”,
entrevista realizada em 2018 por Luiz Sérgio Duarte (UFG) e Sabrina Costa
Braga (UFG) com a professora Marcela Batán (UNSL), que toca em temas como
as relações entre psicanálise, epistemologia e as ciências humanas em geral, além
do efeito de normalização atual nas práticas da psicologia e da pedagogia, assim
como a subjetividade em Foucault e o uso da psicanálise por Bachelard.

ANA LUCIA VILELA


FABIANA DE SOUZA FREDRIGO
SABRINA COSTA BRAGA

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Crítica cultural e sociedade. In: ADORNO, Theodor W.


Prismas. São Paulo: Ática, 1998.
CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Trad. Guilherme
João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
LACAPRA, Dominick. Historia y memoria después de Auschwitz. Buenos Aires: Prometeo
Libros, 2009.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998.

10
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

Só irmãos não basta ser,


melhor é sermos amigos
AS RELAÇÕES ENTRE
HISTÓRIA E PSICANÁLISE
HILÁRIO FRANCO JÚNIOR
Universidade de São Paulo
São Paulo | São Paulo | Brasil
hilario.franco-jr@wanadoo.fr
orcid.org/0000-0003-1519-180X

O diálogo que se intensificou nas últimas décadas entre as


ciências do homem pouco envolveu a mais antiga e a mais
nova delas, a História e a Psicanálise. E contudo, apesar de
métodos e metas próprios a cada uma, os pontos comuns
não faltam, como comprovam as pontuais incursões já
feitas nessa área de intersecção. É de se esperar que
abandonados certos preconceitos recíprocos, mas sem
renúncia de suas personalidades, a colaboração entre
historiadores e psicanalistas seja proveitosa para ambos.

História – psicanálise – interdisciplinaridade


proximidades – distanciamentos

O presente texto beneficiou-se da leitura crítica e das sugestões do nosso amigo


Osmar Luvison Pinto, psicanalista, membro associado da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da International Psychoanalitical
Association. A ele nosso vivo agradecimento. As falhas e lacunas subsistentes
são, claro, de inteira responsabilidade do autor.

11
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

Il ne suffit pas d’être frères,


c’est mieux d’être amis
LES RELATIONS ENTRE
HISTOIRE ET
PSYCHANALYSE
HILÁRIO FRANCO JÚNIOR
Universidade de São Paulo
São Paulo | São Paulo | Brésil
hilario.franco-jr@wanadoo.fr
orcid.org/0000-0003-1519-180X

Le dialogue qui s’est intensifié au cours des dernières


décennies entre les sciences de l’homme a peu impliqué la
plus ancienne et la plus jeune, l’Histoire et la Psychanalyse.
Et pourtant, malgré des méthodes et des objectifs
spécifiques à chacune, les points communs ne manquent
pas, comme en témoignent les ponctuelles incursions déjà
réalisées dans ce domaine d’intersection. On peut espérer
que, abandonnés certains préjugés réciproques, mais sans
rénoncer à leur personnalités, la collaboration entre
historiens et psychanalystes sera bénéfique pour les deux.

Histoire – psychanalyse – interdisciplinarité


rapprochements – éloignements

12
revista de teoria da história 2 2020

A colaboração mútua entre campos de conhecimento autônomos


envolve rigores e cuidados voltados à preservação dos fundamentos imanentes
a cada uma das disciplinas. Há fatores epistemológicos, teóricos,
metodológicos e técnicos bastante específicos, condição que poderia servir de
argumento para que os diferentes se mantenham distantes de um contágio
potencialmente nocivo. Tais temores não têm, porém, sido confirmados pela
experiência. Ao contrário, os encontros interdisciplinares reforçam a
observação das singularidades e, nesse sentido, mais autorizam do que limitam,
mais enriquecem do que desfiguram identidades. Diante do propósito de
examinar possíveis áreas de contato entre História e Psicanálise, não é inútil
lembrar que os nomes das duas disciplinas exprimem simultaneamente uma
investigação e seu resultado.
“Psicanálise”, termo criado por Freud em 1896, designa tanto um
procedimento investigativo de processos psíquicos quanto um método de
tratamento de patologias psicológicas, com um alimentando o outro e
reciprocamente, de maneira que não há dubiedade no uso da palavra. Se no
plano pessoal o fundador pensava que “o conhecimento teórico é para cada
um de nós incomparavelmente mais importante que o sucesso terapêutico”
(Freud 1996, 124), se ele destacava o “valor cultural da Psicanálise”, ansiando
“por um espírito lúcido que dela possa extrair as inferências válidas para a
filosofia e a sociologia” (Freud; Jung 1993, 354), se ele ironizava o furor sanandi
de seus colegas, sendo, enfim, “menos um terapeuta que um pesquisador, […]
são sobretudo seus alunos e seus sucessores que propuseram adaptações, até
mesmo métodos aparentados, na esperança de tornar mais eficaz o caráter
‘terapêutico’ da psicanálise” (Mijolla 2002, 1286), no senso comum acabou por
prevalecer a acepção curativa da técnica freudiana.
“História”, de seu lado, é termo ambíguo. Literalmente a palavra
significa “investigação”, mas também assumiu a acepção daquilo que se
conhece graças a ela, isto é, o conjunto de fatos ocorridos no passado. Para
contornar o equívoco pensou-se em distinguir a realidade histórica do
conhecimento dessa realidade – res gestae / historia rerum gestarum. Contudo, visto
que o passado ao qual temos acesso é um constructo, um fragmento resultante
de escolhas e interpretações, tais diferenciações não são estruturais, são meros
artifícios. Em português, trata-se do uso da letra inicial da palavra grafada em
minúscula ou maiúscula1; em alemão, os dois termos (Geschichte/Historie)
possuem as duas acepções criando certa indeterminação; nas demais línguas
ocidentais, uma única palavra (history, histoire, storia, historia, etc.) indica as duas
coisas. Em todos esses idiomas existe o termo “historiografia” para nomear a
escrita da história, mas sua tonalidade técnica não a torna de uso corrente.
Se considerarmos que em cada área há importantes divergências
internas quanto aos paradigmas utilizados na interpretação da realidade,
passada ou atual, coletiva ou individual, psíquica ou factual, não é possível falar
de uma única História e uma única Psicanálise. Cada comunidade científica é
formada por grupos de pensamento bastante diversos, não raro divergentes. O
que ocorre com a pesquisa multidisciplinar é que ela problematiza o senso de
pertencimento a determinada unidade científica, pois o trabalho cooperativo
entre distintas disciplinas impõe a ultrapassagem das suas origens, embora sem

1 Pela atual gramática da língua portuguesa os nomes de disciplinas e ciências são grafados

com minúscula, embora o Dicionário Houaiss aceite História, como conhecimento, grafada com
maiúscula, o que fazemos por necessidade de clareza para diferenciá-la da história como
desenrolar de acontecimentos. Por equivalência, também escrevemos a criação de Freud com
maiúscula.

13
revista de teoria da história 2 2020

negá-las. O ganho em lucidez, profundidade e eficácia na exploração do


mundo dos fatos, ideias e sentimentos leva o pesquisador à busca de parcerias
extrafamiliares.

A PSICANÁLISE ENTRE A HISTÓRIA E A HISTORIOGRAFIA


Falar do encontro entre a antiga História e a recém-nascida Psicanálise
significa, primeiramente, levar em conta o efervescente e controverso
panorama cultural observado nas metrópoles europeias na segunda metade do
século XIX, período que mesclou com intensidade as luzes e sombras da
humanidade: de uma parte, firmava-se o progresso da ciência, da tecnologia,
das artes e do pensamento; de outra, acentuava-se a miséria cosmopolita e os
dramas do submundo. Ao lado das façanhas artísticas e científicas inspiradas na
perfeição apolínea havia a escalada de produções julgadas marginais, que
desnudavam a face repressora da moral moderna e os efeitos colaterais por ela
desencadeados na vida das pessoas e das sociedades.
A invenção da Psicanálise ao propiciar uma via de acesso à
interioridade humana situa-se, como já foi notado (Rouanet 1993, 99), numa
posição estratégica na “revolta teórica e prática contra a Modernidade”. O
racionalismo iluminista que esteve na base da derrocada da sociedade e cultura
elitistas do Ancien Régime, mostrou depois disso seus limites e derivas, abrindo
caminho para o Romantismo que conheceria seu apogeu por volta de 1830.
Tratava-se de reação contra a busca racional de uma suposta verdade universal,
abandonada a favor da tentativa de alcançar o conhecimento por meio dos
sentidos, dos sentimentos, do instinto, da paixão, do sonho, da recordação, da
imaginação.
Essa exaltação romântica abriu caminho à obsessão onírica,
alucinatória, sonambúlica, hipnótica e a outras manifestações do Inconsciente
tão presentes nas artes e literatura do período. Como se sabe, aquele
movimento intelectual e artístico foi anunciado em 1777 com a tragédia de
Friedrich Klinger (1752-1831) intitulada Sturm und Drang, expressão que,
independentemente do entendimento que se lhe atribua (“tempestade e
ímpeto” ou “tormenta e angústia” ou “tumulto e desejo”), ajusta-se com
perfeição às situações que a Psicanálise se proporia a enfrentar. É o que
comprova a definição do Romantismo dada por um dos seus grandes nomes,
Wilhelm Schlegel (1767-1845) – “poesia da ansiedade” (Talmon 1969, 138-
168).
Mais exatamente, poesia da tensão entre os opostos, da qual resultaria
uma nova síntese porque os românticos sabiam não ser possível apagar o
passado. Em certo sentido, a teoria freudiana foi uma síntese desse tipo. Ao
racionalismo cartesiano aplicado e burilado pelos iluministas, Freud
acrescentou a ciência romântica na qual encontrou alguns dos temas que lhe
eram caros, pertencentes a distintos patamares conceituais na teoria e na
prática da Psicanálise: o sonho, a pulsão, o recalque, a autoanálise. Em
filósofos românticos tardios, seus contemporâneos, ele encontrou conceitos
que se revelariam centrais para sua construção teórica – de Gustav Fechner
(1801-1887), citado por ele sete vezes ao longo de sua obra, provém a noção de
tópico e de princípio do prazer/desprazer; de Theodor Lipps (1851-1914),
citado igualmente seis vezes, o de Inconsciente; de Karl Scherner (1825-1889),
citado 22 vezes, a teoria do sonho (Robert 2019, 121, 130 e 137).

14
revista de teoria da história 2 2020

Entende-se, assim, que Freud tenha aludido ao Romantismo como pré-


história da Psicanálise (Freud 1996, 265-268), mas é preciso reconhecer que tal
movimento cultural significou mais do que isso (devido ao peso do material
psicanalítico ali coletado) e menos do que isso (devido à importância que o
Iluminismo manteve na obra freudiana). Logo, a melhor definição da
Psicanálise talvez seja aquela dada em 1929 por Thomas Mann – “Romantismo
tornado ciência natural” (Mann 1929, 29). Em certo sentido, aquilo que
Heinrich Heine (1797-1856), autor citado 61 vezes, afirmou da Revolução
Francesa – é uma “guerra de libertação da humanidade” (Heine 1969, 377) –
Freud pensava da Psicanálise. Sem existir, que saibamos, uma declaração
freudiana sintética a respeito, a ideia encontra-se dispersa pela sua obra: a
experiência analítica libera da repressão, permite a superação dos sintomas,
sejam eles pessoais ou civilizatórios.
As reflexões históricas de Peter Gay revelam-se úteis para pensar esse
tema. Todas as épocas, diz ele, sofrem de ansiedade, mas a burguesia vitoriana
foi mais sensível a ela, considerou-a uma doença moderna e deu-lhe um nome
(cunhado em 1879 pelo psiquiatra americano George Beard), neurastenia. Em
1886, o sexólogo italiano Paolo Mantegazza escreveu um livro intitulado Il
secolo nevrosico, em 1890 o jornalista alemão Carl Falkenhorst definiu-a como “a
enfermidade do século XIX”, em 1897 o sociólogo francês Émile Durkheim
constatou que a neurastenia, “espécie de insanidade elementar […] está se
tornando progressivamente mais geral” (Gay 2001, 152-154). A ansiedade
oitocentista resultou, enfim, da brusca passagem da sociedade tradicional para a
industrial, aquilo que o historiador Peter Laslett chamou de “o mundo que
perdemos” (Laslett, 1965).
Os contemporâneos tinham clara consciência disso. Para Émile Zola
(citado duas vezes por Freud na sua lista de “bons livros”), em carta de 1860,
“nosso século é um século de transição” (Zola 1978, 69), o que alimentava a
ansiedade. Vários psicólogos da época explicavam aquele quadro geral pela
neurastenia, o que a Freud pareceu insuficiente. Como outros, ele reconheceu
os sinais transformadores de seu tempo, mas deu um decisivo passo adiante ao
retirar o véu da encobridora e patogênica sensibilidade burguesa, revelando o
vínculo entre o sintoma psíquico e a repressão sexual praticada, justamente,
pelo moralismo burguês. Ele concordou que a neurastenia é um
empobrecimento da excitação, portanto um problema de ordem sexual,
identificando o problema civilizacional na “neurose de angústia” (Angstneurose)
decorrente do “desvio da excitação sexual somática”, da “ação inadequada”
nesse campo, provocada pelo repressor moralismo vitoriano (Freud 1989, 31-
58).
Ou seja, a Psicanálise foi uma criativa bricolagem do material médico,
psicológico e filosófico então existente, visando responder aos problemas
emocionais da época. Nessa construção original buscou-se o diálogo com as
ciências humanas, menos com a tradicional História do que com as novas
arqueologia, sociologia e antropologia. Sobretudo com esta, por quatro razões.
Primeira, ela pretendia-se uma ciência comparativa e generalizante que seguiria
o modelo das ciências naturais, acreditando poder identificar leis de estrutura e
de evolução, de maneira que sua busca por traços universais do ser humano
parecia a Freud mais adequada à compreensão da psique do que as
especificidades de tempo e espaço estudadas pela História. Segunda, enquanto
a História restringia-se em fins do século XIX e princípios do XX ao uso de
fontes escritas, a antropologia recorria, como a Psicanálise, à observação direta
de seu objeto e ao uso de fontes orais. Terceira, o uso de fontes escritas pela

15
revista de teoria da história 2 2020

História denunciava seu interesse especial pelas manifestações conscientes da


vida social, cujos fundamentos inconscientes eram deixados à antropologia e à
Psicanálise. Quarta, a História trabalhava com diacronias, a antropologia com
sincronias, o que a tornava mais próxima da Psicanálise e sua concepção da
dinâmica do aparelho psíquico.
Todavia, é preciso lembrar, a formação de Freud deu-se toda no século
XIX, que revelou uma especial atração pela História. O romance histórico
tornou-se enorme sucesso de público com os livros de Walter Scott, sobretudo
Ivanhoé (1819), alguns de Victor Hugo, em especial O Corcunda de Notre-Dame
(1831), além de obras de ambientação, inspiração e temática medievais, seja na
literatura com o Fausto (1808 e 1832) de Goethe (criação citada 54 vezes), seja
na música com Tristão e Isolda (1859) e Parsifal (1882), ambas de Wagner (autor
referido seis vezes). Desenvolveram-se então novas escolas historiográficas e
fundaram-se sociedades históricas muito ativas, inclusive aquela que lançou as
Monumenta Germaniae Historica, desde 1873 financiadas pelos governos da
Alemanha e da Áustria.
Nesse enquadramento, Freud não poderia ter ficado isento da
influência histórica e historiográfica. Da primeira, porque sendo
contemporâneo de sangrentas guerras e revoluções, sentiu-se estimulado a
tratar de questões civilizatórias que o levaram a teorizar sobre a natural
inclinação humana tanto para unir e construir quanto para desagregar e
destruir. Da segunda, porque soube se beneficiar do que sua época acumulara
de conhecimento nos estudos históricos. Embora não faça referência a ela,
Freud muito possivelmente conhecia a obra do alemão Oswald Spengler que
teve grande repercussão e vendagem, A Decadência do Ocidente (1918 e 1922).
Em abordagem histórico-filosófica, mas defendendo que toda obra
efetivamente histórica deve exprimir a vida interior, aquele autor revelou a
inquietação geral sobre a qual Freud refletiria, do ponto de vista psicológico,
em O Mal-estar da Civilização (1929). É expressivo que no ano seguinte o
também austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) tenha, no seu diário,
assinalado a existência de traços comuns entre seu pensamento, o de Spengler
e o de Freud (Wittgenstein 2003, 36).
No campo historiográfico, seria justo supor que os herdeiros de
Heródoto, em particular aqueles que se dedicam à chamada História das
mentalidades, tenham absorvido os novos saberes trazidos pela invenção do
método psicanalítico. Afinal, ele partejou uma nova concepção de homem e de
mundo com a descoberta do Inconsciente, a teoria dos sonhos, a interpretação
da sexualidade, os estudos sobre a psicologia das massas e da civilização. Mas é
recomendável prudência: Freud chamou atenção para o perigo de retirar os
“conceitos da esfera em que surgiram e evoluíram” (Freud 2016, 92). Os
caminhos das ciências são com frequência tortuosos e nem sempre seguem as
trajetórias expectáveis. Os fundadores da célebre revista Annales (1929), que
revolucionou a historiografia, valorizaram a cooperação com a psicologia – “a
própria base de todo trabalho válido do historiador” (Febvre 1992, 238) – sem,
contudo, identificarem uma corrente específica e quase nada falando da
Psicanálise, a não ser para lhe dirigir algumas alusões mordazes (Febvre 1976,
42-43).
O grande nome da denominada segunda geração da Escola dos
Annales reconheceu o papel da Psicanálise, apesar de pouco recorrer a ela:

16
revista de teoria da história 2 2020

Uma civilização atinge sua verdade rejeitando na obscuridade de terras


limítrofes e já estrangeiras aquilo que a incomoda. Sua história é a
exaltação ao longo dos séculos de uma personalidade coletiva tomada,
como qualquer personalidade individual, entre um destino consciente e
claro e um destino obscuro e inconsciente, que serve de base e de
motivação essencial à outra, mas sem se fazer sempre conhecer. Vê-se
que os estudos de psicologia retrospectiva foram marcados pelas
descobertas da Psicanálise. (Braudel 1987, 64).

Não é estranho, então, que seus herdeiros dos anos 1970-80, criadores
da História das mentalidades, tenham se mostrado ambíguos em relação à
teoria freudiana. Algo semelhante ocorreu naquela época em outros campos
historiográficos. O inglês Keith Thomas admitiu ter por Freud uma admiração
“muito condicional”, por isso “meu uso consciente da teoria psicanalítica tem
sido mínimo”. Mais do que isso, um biógrafo de Freud e defensor do uso da
Psicanálise no trabalho historiográfico, pensa que se Thomas tivesse recorrido
ao ferramental psicanalítico o ganho teria sido “no máximo marginal e
provavelmente contrabalançado por uma certa perda de elegância e clareza”
(Gay 1989, 187 e 138)2.
Realmente, nem sempre há um claro ganho em historiadores
recorrerem à Psicanálise ou psicanalistas à História. Mas muitas vezes, sim. Um
importante livro sobre a Revolução Francesa ao estudar o medo coletivo a
supostos ataques de grupos desconhecidos defendeu a necessidade de levar
“em conta o fator psicológico” na apreciação do fenômeno, que concluiu ser
infundado pois o temido “bandido aristocrata era um fantasma” (Lefebvre
1979, 41 e 191), contudo em nenhum momento recorreu a instrumentos
psicanalíticos que poderiam ter beneficiado sua demonstração. De igual modo,
não é despropositado imaginar, certas obras-primas historiográficas teriam
ganho em aprofundamento e refinamento se o tivessem feito. Entre elas, A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904-1905) de Max Weber, O Outono
da Idade Média (1919) de Johan Huizinga, Os Reis Taumaturgos (1924) de Marc
Bloch, Os dois corpos do Rei. Um Estudo sobre Teologia Política Medieval (1957) de
Ernst Kantorowicz, O Queijo e os Vermes: o Cotidiano de um Moleiro Perseguido pela
Inquisição (1976) de Carlo Ginzburg, O Nascimento do Purgatório (1981) de Jacques
Le Goff.
No sentido inverso, é razoável pensar que certos trabalhos do fundador
da Psicanálise teriam ganho maior solidez apoiando-se na História. Ele insistiu
que os sofrimentos humanos nas relações com os semelhantes derivam das
imposições sociais, da sublimação dos instintos ditada pela cultura (Freud
2016, 42-43), mas não fez uma demonstração histórica (realizada dez anos
depois, em outra abordagem, por Norbert Elias), a única adequada para sua
argumentação. Evitando ou minimizando enfoques históricos, Freud suscitou
em seus seguidores reticências a respeito. Mas sendo a hesitação freudiana
quanto à História um fato histórico e psicanalítico, ficam autorizadas algumas
especulações. Em plano amplo, ela pode ter sido reflexo das suspeições que o
analista tinha sobre sua época (Freud 2016). Em plano restrito, pode ter
derivado das relações ambíguas que ele mantinha com suas raízes judaicas
(Pfrimmer 1982; Balmary 1986).

2 O livro de Thomas ao qual ele se refere é O Homem e o Mundo Natural. Mudanças de Atitude

em Relação às Plantas e aos Animais [1983]. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Em outro
livro, Gay (2002, 15) define seu próprio trabalho como “história cultural informada pela
Psicanálise”, não deixando em seguida de ressaltar “informada, não subjugada”.

17
revista de teoria da história 2 2020

No plano pessoal, parece expressar o estado de seus vínculos com


Jung. Dois ou três meses após este último ter declarado que “uma
compreensão aprofundada da psique não pode prescindir da História ou de
uma íntima colaboração com ela” (Freud e Jung 1993, 289), Freud
acompanhou-o e traçou um claro paralelo entre a escrita da história e a fixação
de lembranças da infância num adulto. Estas “correspondem efetivamente,
quanto à sua gênese e à sua fiabilidade, à história dos tempos de origem de um
povo, composta tardia e tendenciosamente”, da mesma forma que “com
certeza não se escreve a história motivado pelo desejo de um saber objetivo,
mas porque se quer agir sobre seus contemporâneos” (Freud 2009, 108).
Entretanto, na fase seguinte, de rompimento com o discípulo suíço, Freud
pouco tratou de história num ensaio que se propunha justamente a pensar a
evolução cultural, “as influências a que deve sua origem, como nasceu e o que
determinou seu curso” (Freud 2016, 43). Anos mais tarde, com a amizade
tendo se transformado em rivalidade, Freud na sua autobiografia inverteu os
eventos e acusou Jung de fazer uma análise não histórica para rejeitar o
complexo de Édipo (Freud 1992, 100).

A TENTATIVA DA PSICOHISTÓRIA NORTE-AMERICANA


Seria no Novo Mundo que o encontro entre História e Psicanálise iria
inicialmente prosperar. Buscando harmonizar no que fosse possível os dois
campos de estudo, surgiu a psicohistória, área da pesquisa histórica à qual se
aplica alguma teoria psicológica, não necessariamente a Psicanálise, não
obstante este ser o caso mais frequente. Um dos adeptos da nova disciplina
definiu-a como “fusão da Psicanálise e da História na qual ambas disciplinas
modificam a outra” (Mazlish 1972, 165). Sem aderir à psicohistória, outro autor
considerou-a factível por ser a Psicanálise similar à História (Friedländer 1975,
26). Mas, ele advertiu, isso não ocorre de maneira automática já que há pontos
em que o pensamento de Freud não fornece todo o instrumental necessário,
pedindo então o recurso a outros teóricos, como Erikson ou Jung. De forma
geral, porém, a Psicanálise freudiana continua a ser “o paradigma explicativo
mais completo que se tem do comportamento humano”, o que permite ao
historiador abordar por um ângulo novo questões tradicionais e identificar
novas questões a explorar. A psicohistória, ele concluiu, pode por essa razão
contribuir para a construção de uma história total (Friedländer 2010, 35 e 210).
Sua meta é compreender o comportamento de um grupo, enquanto a
aparentada psicobiografia utiliza os mesmos recursos teóricos voltados para
um indivíduo específico. Uma permite, idealmente, por meio da sociedade
alcançar comportamentos e sentimentos individuais, outra por meio de
personalidades particulares permite entender sua sociedade. Em função de
todo o impacto social, econômico, político e cultural que a Segunda Guerra
provocou, logo depois aquele domínio bidisciplinar se desenvolveria nos
Estados Unidos, onde se tornou cadeira universitária e onde conta com duas
revistas especializadas, uma na qual colaboram sobretudo clínicos (The Journal of
Psychohistory), na outra, historiadores (The Psychohistory Review).
A primeira incursão no novo domínio da psicohistória deveu-se a um
alemão naturalizado norte-americano, alguém que não era nem médico nem
historiador nem psicólogo, Erik Erikson, que havia conhecido a Psicanálise por
intermédio de Anna Freud, de quem foi analisando. Por influência dela,
Erikson tornou-se psicanalista de crianças e a partir dessa experiência
escreveria Childhood and Society (1950), onde formulou o conceito de identidade

18
revista de teoria da história 2 2020

do Eu, construído menos pelo componente libidinal (como reza a ortodoxia


freudiana) do que pela sociedade, ideia que fundava a psicohistória e seria
aprofundada nos seus trabalhos seguintes. O essencial continuaria a ser a tese
anunciada em artigo anterior: é “a necessidade histórica que faz da pessoa o
que ela é” (Erikson 1946, 395).
As hesitações naturais do novo campo do conhecimento despontaram
desde o início, com o historiador William Langer em uma espécie de
proclamação programática instando seus colegas a não negligenciarem as
descobertas freudianas porque seu interesse deve estar “mais nos seres
humanos e suas motivações do que nas forças impessoais”. Para compreender
a Peste Negra do século XIV, ele exemplifica, é preciso levar em conta que
“todos os homens, como indivíduos, carregam consigo o peso de uma
culpabilidade inconsciente e o medo do castigo que, aparentemente, remontam
ao controle e à repressão dos instintos sexuais e agressivos na infância, bem
como à emergência do desejo de morte dirigido contra os pais. Esse
sentimento de pecado, fundamental para toda religião, é naturalmente
reforçado pelo impacto de vastas forças desconhecidas e misteriosas que
ameaçam a existência de cada um de nós” (Langer 1958, 286, 299).
Defendendo a psicohistória da acusação de ser demasiado teórica, de
não valorizar o material propriamente histórico, um arquivista mostrou que,
pelo contrário, ela é mais sensível do que a História tradicional a todo tipo de
testemunhos contemporâneos ao tema que pretende estudar, porque sabe fazer
perguntas novas e específicas, sabe observar indícios na aparência secundários,
sabe extrair dados interessantes desse repertório variado. Com documentação
inusual e fragmentária, o psicohistoriador consegue alcançar recantos antes
pouco conhecidos do passado. Ele recorre às fontes primárias (no jargão da
disciplina) costumeiras de outros historiadores, mas sabe explorá-las melhor.
Todo tipo de documento é útil para o psicohistoriador (Saffady 1974) e, em
outra perspectiva, para o historiador das mentalidades (Le Goff 2011, 740).
A psicohistória resgatou uma questão clássica e durante muito tempo
adormecida, a da verdade. Frente à posição tradicional de que História é
narrativa do que “realmente aconteceu” (Rank 1824, VI), colocou-se a
constatação freudiana de seu relativismo na situação clínica, sem deixar de vê-la
como elemento central da ética psicanalítica. Em vez de buscar uma “verdade
histórica” idealizada, argumenta Spence, é preferível falar de uma “verdade
narrativa”, uma reconstrução subjetiva que leva em conta os ocultamentos
inconscientes do paciente e as contratransferências do analista (Spence 1982,
279-296). É igual a situação do historiador tout couro, que não pode pretender
alcançar a verdade como correspondência exata da realidade passada, pois ele
depende tanto do que a documentação lhe diz a respeito como de seus
próprios preconceitos (pessoais, ideológicos, filosóficos) e julgamentos
(intelectuais, mas também afetivos, empáticos ou antipáticos em relação ao
objeto de estudo). Assim, a psicohistória pretende ser uma barreira filtrante
dessas deformações, consciente, porém, dos limites da tentativa. Daí Gay julgar
que “toda História é em alguma medida psicohistória”, ressalvando que “a
psicohistória não pode ser toda a História” (Gay 1989, 13).
No campo específico da psicobiografia, o primeiro ensaio remonta a
Freud (que exprimiria mais tarde reticências a esse tipo de trabalho) com seu
estudo sobre Leonardo da Vinci. Por aparentemente acolher com mais
facilidade o componente psicanalítico, a abordagem biográfica sempre foi a
mais praticada no campo da psicohistória, sobretudo, por razões documentais,
em relação a líderes políticos da época contemporânea como Robespierre,

19
revista de teoria da história 2 2020

Lincoln, Bismarck, Pétain, Wilson, Hitler ou Stalin. Nesses estudos, porém, a


abundância de fontes históricas provocou não raras hiperinterpretações: o
antissemitismo de Hitler teria sido despertado pela sua forte identificação com
a mãe, que durante o tratamento de um câncer no seio foi por inadvertência
envenenada com iodofórmio pelo médico judeu que cuidava dela (Binion 1976,
14-23).
Um marco na psicobiografia é aquela que Erikson dedicou a Lutero,
cruzando dados do personagem e de sua sociedade com intenção de lançar luz
sobre ambos. As difíceis relações do jovem Lutero com seu pai e sua mãe,
excessivamente severos, acabariam por ser projetadas no papa e na Igreja,
autoridades paterna e materna que ele rejeita. O conservadorismo pessoal e
institucional que não aceita naqueles, Lutero por um mecanismo
compensatório adota em outros assuntos, como na repressão da revolta
camponesa contra a servidão (ironicamente inspirada pela reforma religiosa
luterana) que levou ao massacre de dezenas de milhares de indivíduos. Assim
como o percurso de qualquer pessoa só pode ser entendido pelos seus ciclos
de vida (oito, de acordo com Erikson), o de Lutero foi definido pela saída
prematura do primeiro deles, o da “confiança fundamental”, em razão do
conflito com os pais (Erikson 1958).
Exatos trinta anos antes dessa psicobiografia, Febvre já havia proposto
através da trajetória do reformador religioso alemão abordar “o problema das
relações do indivíduo e da sociedade, da iniciativa pessoal e da necessidade
social, que é, talvez, o problema capital da história” (Febvre 1976, 9). Nesse
aspecto ele acompanhava Toynbee, de linhagem historiográfica bem diferente,
para quem qualquer sociedade é constituída não por pessoas, e sim pelas
relações entre elas (Toynbee 1986, 44). No seu estudo, o historiador francês
centrou-se nos anos de maturidade do personagem, renunciando “ao Lutero
hipotético dos anos de juventude”, talvez por não ter, justamente, recorrido ao
instrumental psicanalítico que seria usado por Erikson, interessado nos anos de
formação do seu biografado. Como quer que seja, o biógrafo de qualquer
personagem, historiador ou psicanalista, não pode deixar de levar em conta
aquilo que um sociólogo chama de “ilusão biográfica” (Bourdieu 1986).
Apesar de seu sucesso acadêmico e popular nos Estados Unidos, a
psychohistory não vingou fora dali e também naquele país não deixou de ter
críticos acerbos. De um lado, ela foi acusada de minimizar o fato de o
psiquismo humano não poder evitar as condicionantes históricas. De outro
lado, o corporativismo dos historiadores rejeitou a priori a nova proposta
alegando que ela busca sua justificativa menos na História do que na
Psicanálise, doutrina reputada muito conjectural, biológica e determinista. Um
desses críticos afirmou que a dependência do psicohistoriador em relação ao
psicanalista exclui “todo compromisso com a História na forma que os
historiadores entenderam até agora”, e porque assim “transcendeu o domínio
da História” o psicohistoriador mesmo que seja brilhante como psicanalista
não pode ser classificado de historiador (Himmelfarb 1975, 73, 76).
Embora Gay avalie que as realizações dessa nova área não são
“completamente desanimadoras”, viu-se obrigado a admitir os inúmeros
“fiascos da psicohistória”. Seus praticantes não escaparam, ele detecta, a certo
reducionismo e a leituras preconceituosas de seu material. Por exemplo, ao
interpretar teorias políticas racionais como simples reflexos de identificações
sexuais ambíguas, ou fazendo de mudanças importantes nas relações familiares
meras manifestações edipianas. Portanto, “o historiador psicanalítico deve estar
preparado para enfrentar quase tanto ceticismo dos seguidores de Freud

20
revista de teoria da história 2 2020

quanto de seus detratores” (Gay 1989, 149-17). Falta aos psicohistoriadores e


aos seus críticos historicizarem a criação freudiana.

REALIDADE FACTUAL E REALIDADE PSÍQUICA


No final do século XIX, distanciando-se da estrita atitude iluminista, a
Psicanálise em seus começos foi se rendendo à realidade do Inconsciente, isto
é, aceitando o papel da fantasia, do sonho e, de modo mais abrangente, do
desejo: acredita-se facilmente naquilo que “vai ao encontro de nossas ilusões
fundadas sobre desejos, sem consideração pela verdade”, (Freud 1986, 233).
Nas palavras de um comentador atual, “a verdade não é uma relação com a
natureza, mas com a história, que inclui o que é e o que não é ainda” (Rouanet
1983, 103). O conceito de realidade factual foi então sendo encampada pelo
que se chamou de realidade psíquica.
Trata-se de dois planos distintos, porém não estanques, visto que há
uma relação de reciprocidade entre a realidade externa ao sujeito e sua
correspondente realidade intrapsíquica, daí na metapsicologia ser impossível
dissociá-las. O grande salto epistemológico da Psicanálise reside justamente
nessa superação do absolutismo realista, materialista e comportamental, para
dar lugar à interpretação de sonhos, fantasias, lapsos, sentidos e sensações
existentes na atividade inconsciente. Contudo o psicanalista, tanto quanto o
historiador, deve atentar para não ser minimamente tomado pelos dados
interpretados. Um filósofo e historiador contemporâneo de Freud explicitou o
cuidado: “o passado frequentemente me faz sonhar, mas sonhos breves e
fugazes, logo repelidos pelas necessidades do meu trabalho, que não é de
poeta” (Croce 1945, 8).
A reorientação do pensamento freudiano no que se refere à percepção
da realidade tem seu primeiro registro em conhecida carta de 1897, enviada ao
grande interlocutor e amigo Wilhelm Fliess (Freud 2009, 190). Ali, Freud
confessava ao médico berlinense a descrença em sua própria teoria sobre a
etiologia das neuroses. O abandono da “teoria da sedução” – baseada na
participação real do pai no assédio sexual dirigido às filhas, futuras histéricas –
marca a migração da visão factual para outro paradigma, o da fantasia
produzida pela criança no mundo até então inexistente da sexualidade infantil.
É clara a virada freudiana no sentido de retirar o excesso de materialidade da
doutrina e de afirmar a preponderância da realidade psíquica na constituição do
sujeito e do sintoma, transcendendo o que no senso comum e na ciência era
chamado de real.
Isso evidentemente remete à questão do tempo, que na Psicanálise é
multidirecional, linear quando ordena cronologicamente os eventos ouvidos;
bidirecional, quando um evento pode modificar o traço psíquico de um evento
anterior, que é assim transformado por uma “causalidade posterior sem
analogia para o historiador, e talvez para qualquer outra disciplina”, diz Roger
Perron (in Mijolla 2002, 744). Geralmente, é verdade, tende-se a ver o
historiador lidando com fatos alinhados numa linha do tempo irreversível, mas
isso decorre de uma definição muito estreita de “fato”. Este não é apenas uma
ação concreta e completa, pode ser um costume, uma crença ou um
sentimento, elementos passíveis de condicionar outras ações, pois fato é “a
espuma da história, bolhas, grandes ou pequenas, que estouram na superfície e
cujos estilhaços provocam ondas que se propagam mais ou menos longe”, diz
Duby (1973, 8).

21
revista de teoria da história 2 2020

A atração exercida pelo romance histórico está exatamente em


contemplar a realidade psíquica de seus personagens sem perder comunhão
com os acontecimentos contados pela História. Mais do que isso, se a
historiografia tem pretensões científicas, se em certa medida é uma ciência, a
história, ela, é um romance. Por essa razão, todo romance tanto quanto story é
history, é um fragmento da grande aventura humana na Terra, seja a narrativa de
horas (como em Ulisses, de James Joyce), dias (Divina Comédia, Dante Alighieri),
anos (Odisseia, Homero), gerações (Os Buddenbrook, Thomas Mann), séculos
(Todos os Homens são Mortais, Simone de Beauvoir). Evidentemente, a dosagem
daqueles elementos varia conforme um conjunto de fatores autorais. O Nome
da Rosa (1980) apresenta uma ambientação que graças à formação de
medievalista e semiólogo de Umberto Eco, é superior à descrição do perfil
psicológico de seus personagens. O Homem Moisés e a Religião Monoteísta (1939), a
última grande obra de Freud, retrata com brilho a psicologia de uma situação e
de um personagem, mas às custas dos eventos históricos, com os quais toma
várias liberdades, justificando o título original, depois abandonado, Moisés, um
Romance Histórico.
Enquanto gênero literário, na segunda metade do século XIX o
romance pendeu para o intimismo, para os silenciosos e silenciados dilemas
interiores, matéria-prima da literatura romântica. Os enredos desses romances
falam dos conflitos pessoais vividos na relação com a sociedade, isto é, coloca
os motivos humanos confrontados com as exigências civilizatórias.
Encontramos uma boa amostra desse conteúdo em dois escritores vienenses,
contemporâneos de Freud, Arthur Schnitzler e Stefan Zweig, cujas obras
colocaram a paixão, o desejo e a fragmentação do sujeito na vitrine cultural da
época. O realce dado ao instinto sexual em sua relação com a cultura faz a
Psicanálise – que “confere à sexualidade uma espiritualidade revolucionária”,
avalia Thomas Mann (1929, 29) – apoiar-se sobre os pilares do amor e da
morte, na subjetividade do indivíduo e da civilização. Junto à noção iluminista
de realidade e de verdade, o Romantismo foi abrindo espaços para o
nascimento desse novo homem em sua condição ambivalente, como ser do
desejo e ser da cultura.
O psicanalista Jacques André afirma que “não há indício de realidade no
Inconsciente, sendo impossível distinguir a realidade histórica da imaginária
[...]. Essa realidade psíquica torna-se o verdadeiro objeto da Psicanálise, é ela
que a transferência atualiza”. E a seguir o autor dá um passo fundamental na
direção do que nos interessa no presente ensaio:
O Inconsciente funciona em relação ao contexto histórico e cultural
como o sonho em relação ao dia anterior a ele, em que busca os
materiais a partir dos quais constrói sua própria realidade, mas esta nunca
reflete a simples imagem do que o mundo propõe. A Psicanálise navega
por entre dois perigos: o primeiro seria elevar o Inconsciente ao nível de
uma transcendência que ignora as variações sociais; o segundo, reduzir a
realidade psíquica ao simples registro do mundo circundante”.
(André 2019, 34).

O antigo comentário de Malinowski revela assim toda sua pertinência –


a pesquisa etnológica confirma as teorias de Freud, mas é preciso tornar
“algumas de suas fórmulas mais flexíveis” (1927, 82). Nunca é demais insistir
que a Psicanálise, como tudo, é produto histórico, não escapa aos
condicionantes de sua época. Inclusive aquilo que lhe parece ser ahistórico
(como o Inconsciente) ou universal (como o complexo de Édipo) não deixa de
ser tributário da história. As descobertas e hipóteses freudianas resultaram,

22
revista de teoria da história 2 2020

nem poderia ser diferente, de vivência e reflexão evidentemente históricas, isto


é, ocorridas em um quadro social, político, cultural e linguístico preciso. Daí se
ter reconhecido que a sexualidade atual não é a mesma da época de Freud, e
que se este tivesse vivido um século mais tarde a sexualidade provavelmente
não teria tido na sua teoria função etiológica (Green 1995).
Das belas páginas de George Steiner (2020, 93-134), podemos extrair
algumas pistas de reflexão sobre a contextualização psicanalítica, ainda que sem
poder aqui desenvolvê-las. Quando ele relembra que cada uma das línguas
existentes é uma janela aberta sobre o ser, sobre a criação, explorando e
transmitindo aspectos particulares e potencialidades inerentes à circunstância
humana, não podemos deixar de perguntar o que poderia ter sido o freudismo
se tivesse sido concebido em inglês, francês, italiano ou qualquer outra língua
ocidental3. De fato, cada língua expressa a realidade de maneira única, e em
situações de tensão, privada ou pública, “é o não-dito que fala mais alto”, entra
em jogo matizes, camuflagens. Nas línguas do eros, “estes atributos e
opacidades são levados ao seu mais alto grau de intensidade combinatória”.
Porque cada língua descreve e evoca o sexo de forma peculiar, Steiner
sugere que o alemão no qual Freud escutava seus pacientes (na fase formadora
da teoria, depois ele psicanalizará mais em inglês que em alemão), refletia e
escrevia, talvez não tenha deixado de influir no papel central que ele atribuiu ao
sexo na vida psicológica. Como na língua alemã com muita frequência o verbo
é colocado no final da frase, isso mantém seu sentido em suspenso até o
desenlace semiótico, sintaxe análoga ao ato sexual e sua conclusão orgástica. As
convenções, as expressões e as simulações do fazer e do falar amor em alemão
diferem, por exemplo, do francês.
Nessa língua, a mais perfeita intimidade física não excluía (no período a
que se referem as confidências de Steiner) o formalismo no trato social. Mas
ela aceita, inclusive nas manifestações líricas, que o amor é função corporal, daí
o vocabulário erótico francês misturar, mais que outros, saúde, alimentação e
sexo. Do ponto de vista filosófico, aquele idioma expressa um valor essencial –
os termos libertin e libertinage proclamam a liberté; “a gramática, o mito e a
iconografia franceses feminizam a liberdade”. Tais reflexões levam a pensar
que caso tivesse sentido, pensado e escrito em francês, Freud provavelmente
teria tido outros ângulos de visão dos problemas que analisou, ou ao menos os
teria formulado de maneira diversa.
Como quer que seja, o complexo de Édipo formulado em 1897 (mas
ainda inominado) ressentia-se de uma base histórica. A ideia foi enunciada em
carta dirigida a Fliess, na qual Freud afirma que teve a libido despertada aos
dois ou dois anos e meio de idade ao ver a mãe nua durante uma viagem. E
alguns dias depois, em outra carta, explica que “encontrei em mim, como em
qualquer outra parte, sentimentos de amor por minha mãe e de ciúme do meu
pai, sentimentos que são, penso, comuns a todas crianças pequenas […]. O
mito grego captou essa compulsão que todos reconhecem porque todos a
sentiram. Cada ouvinte [do mito] foi um dia, em germe, em imaginação, um
Édipo”, e fica aterrorizado diante da possibilidade de transposição do seu

3 Fora dessa civilização, a Psicanálise não encontra igual recepção e espaço de atuação,
trabalha com restrições e dificuldades quando alguma prática já instalada cumpre o papel ao
qual ela se propõe. Na China, por exemplo, era função do taoísmo, dentre várias outras coisas,
redefinir as relações entre mortos e vivos encontrando um lugar para aqueles que por terem
sofrido morte violenta ficavam fora das genealogias e ameaçavam assim seus descendentes.
Não por acaso, a Revolução Cultural comunista rejeitou tanto o taoísmo como a Psicanálise e
seu trabalho com lembranças mal assimiladas, com elementos que não aceitos na consciência
reemergem de forma desorganizadora em algum momento.

23
revista de teoria da história 2 2020

sonho para a realidade, e por isso o recalca (Freud 2009, 194 - 198). A hipótese
foi tratada em outras obras antes de escrever Totem e Tabu precisamente para
identificar a origem desse processo psíquico. A Psicanálise admitia precisar da
História.
Freud acreditava na validade geral da sua descoberta, mas era obrigado
a aceitar sua historicidade. Já na primeira vez em que expôs publicamente a
noção, na sua grande obra inaugural, A Interpretação dos Sonhos, nota que no
texto de Sófocles (420 a.C.) o protagonista concretiza sua paixão incestuosa
enquanto seu correspondente moderno, o Hamlet de Shakespeare (1601-1602),
reprime-a. Diante da constatação, ele afirma que a “mudança de tratamento do
mesmo material revela toda a diferença na vida mental dessas duas épocas da
civilização muito distantes uma da outra” (Freud 1953, 264). Ou seja, se a
presença do fenômeno com vinte séculos de intervalo (e mais três em relação
ao analista) comprova ser um traço da natureza humana, atesta também que
esta não fica imune às transformações temporais, que a intervenção da história
atua inclusive em elementos na aparência imutáveis ou pouco discerníveis.
Como indicam Deleuze e Guattari (1973) discutindo a questão edipiana, essa
historicidade é estrutural e estruturante, dela resulta o fenômeno edipiano
porque o Inconsciente não é algo que simplesmente exista, ele é produzido
política, social, historicamente.
No entanto, o tratamento dado ao tema nesse livro erudito e inteligente
que é Totem e Tabu não satisfaz o historiador por ser excessivamente
especulativo, por ser carente de provas documentais. O filósofo Michel Onfray
avalia que a tese ali defendida,
essa hipotética verdade científica, é antes de mais um problema
existencial subjetivo, pessoal, individual […] transformado […] em
tormento de todos os homens desde o princípio da humanidade até o
fim dos tempos, problema de um só homem, que consegue passar a sua
neurose a toda a humanidade, na louca esperança de que ela lhe pareça,
assim, mais fácil de suportar, mais ligeira, menos penosa.
(Onfray 2012, 150).

E detecta a origem desse “epicentro da Psicanálise” em dados


biográficos do fundador da disciplina: seu pai tinha quase o dobro de idade da
sua mãe; o menino Sigmund assistiu a um episódio de antissemitismo de que
seu pai foi vítima sem reagir, o que pareceu trinta anos depois “nada heróico
por parte de um homem grande e forte”; Sigmund sempre foi o filho predileto
dos oito que teve sua mãe (Onfray 2012, 149-151, grifos do autor). Com efeito,
enquanto redigia aquele livro ele admitiu em privado que ninguém, inclusive
psicanalistas, deixa de ter “sua própria dose de neurose”, e se alguém afirmar
sua normalidade apenas levanta a “suspeita de que lhe falta compreensão da
sua doença” (Freud; Jung 1993, 545-546).
Se não é universal, o Édipo freudiano tampouco é grego. A helenista
belga Marie Delcourt (1944) vê naquele mito motivos monárquicos e sociais a
respeito da vitória de um rei jovem sobre um rei velho. O antropólogo
estadunidense Clyde Kluckhohn (1959) identifica mitos análogos em muitas
sociedades, todos abordando a hostilidade entre pai e filho, mas sem
componente incestuoso. O helenista francês Jean-Pierre Vernant (1972)
sublinha que o incesto é exclusivo da obra de Sófocles, não aparece em
nenhuma outra tragédia grega e o sucesso de que Édipo Rei gozou na
Antiguidade deveu-se ao tema da relação do homem com os deuses e a polis,
não a um pretendido conjunto de afetos reprimidos.

24
revista de teoria da história 2 2020

O psicanalista alemão Erich Fromm (1949) também notou que o


complexo identificado por Freud – desejos incestuosos inconscientes em
relação à mãe e por consequência ódio dirigido ao pai-rival – baseia-se apenas
na peça de Sófocles, onde, ele acrescenta, não há qualquer referência à atração
física de Édipo por Jocasta, com quem se casa apenas obedecendo aos
costumes de Tebas por ter salvo a cidade. Tampouco o texto grego fala de
ciúme de Édipo em relação a Laio, que ele sequer conhecia e que matou no
curso de um banal desentendimento entre viajantes. Para bem compreender o
mito e dele derivar fundadas observações psíquicas, seria preciso levar em
conta igualmente Antígona (440 a.C.) e Édipo em Colono (405 a.C.). Tomada em
conjunto a trilogia, vê-se que seu tema básico não é um amor materno-filial
incestuoso, e sim uma rebelião do filho contra a autoridade do pai no seio da
família patriarcal.
Como notou um helenista, a tragédia grega é “um gênero didático” que
tem por meta realizar a “passagem do homem ao herói”, daí em Antígona,
“rainha das tragédias”, a personagem central, filha de Édipo, encarnar o
primado da ordem espiritual sobre a ordem social, e nessa função opor-se ao
rei, seu tio: “Antígona é liberdade, Creonte é fatalidade”, comenta Bonnard.
Édipo ao cegar-se “alcança na noite uma outra luz”, faz “da sua servidão
instrumento da sua libertação”. Enfim, de Édipo Rei pode-se dizer que
“nenhuma tragédia antiga é menos psicológica que esta, nenhuma é mais
filosófica” (Bonnard 2018, 205-228 e 275-303). Outro estudioso acrescenta
sobre aquele texto que “não cabe atribuir um sentido psicológico àquilo que no
espírito do poeta trágico era unicamente signo de fatalidade” (Miguez 1978,
LXIX). Ora, na leitura freudiana em vez do homem tornar-se herói ocorre o
contrário, a criança pequena, para os pais uma espécie de herói familiar na fase
pré-edipiana, involui para uma condição muito humana, carregada de desejos
insatisfeitos, ciúme, raiva, ansiedade. A grandeza do herói que na desgraça
ganha em sabedoria fica reduzida no pessimismo freudiano a uma
manifestação do destino humano no qual a margem de liberdade é limitada e
condicionada.
Não sendo grego, o que é o Édipo freudiano? Uma resposta plausível
poderia ser vienense da Belle Époque. Vigorosa prova da força da história é que
Freud, grande conhecedor da psique humana, foi tão homem do seu tempo
que tomou por atemporal o que possivelmente — a questão continua a opor
psicanalistas ortodoxos e revisionistas — era histórico. Ele revelou, em si e nos
seus pacientes, fantasmas sexuais característicos da Europa ocidental entre fins
da guerra franco-prussiana e o começo da Grande Guerra, período que assistiu
à vitória econômica, política e social da burguesia e à valorização de sua moral.
Nesse ambiente sociocultural era comum o recalque (Verdrängung), processo
que leva o sujeito a repelir ou manter inconsciente representações associadas a
uma pulsão. A medicina de fins do século XIX expressava e reforçava esse
enquadramento geral. O então celebrado Richard Freiherr von Kraft-Ebbing
(1840—1902) ensinava que a mulher normal tem pequeno desejo sexual e deve
ser submissa, pois “se não fosse esse o caso, o mundo inteiro seria um bordel e
o casamento e a família impensáveis” (1890, 11).
A sensibilidade psicanalítica foi em certa medida responsável pela
tomada de consciência do historiador quanto ao suposto realismo das fontes,
percebendo que se elas divergem é porque foram produzidas por seres
humanos com ansiedades, receios, esperanças, ambições e toda uma gama de
emoções presente em todos os tempos, contudo sentidas e expressadas de
forma particular por cada época e cada indivíduo. Disso não escapa,

25
revista de teoria da história 2 2020

obviamente, o próprio historiador, em cujas obras fala em certa medida de si


mesmo por meio do tema escolhido, da teoria adotada, da documentação
selecionada, da redação praticada. Ou simplesmente fala das naturais
transformações que conhece ao longo do tempo enquanto pessoa. Jules
Michelet (1798—1874) confessou que os quatro anos anteriores ao livro que
então apresentava, em 1869, “fizeram de mim um outro homem” (1893,
XXIV), ocorrência psicológica que, é claro, repercutiu na sua produção
intelectual.
Nem todo historiador, porém, diante da percepção do relativismo de
suas informações e de suas interpretações fica convencido a abandonar a busca
de um suposto absoluto. Ainda em meados do século XX, um deles (Marrou
1978, 28) defendeu que conhecimento histórico é conhecimento verdadeiro,
oposto à “representação falsa ou falsificada, irreal do passado”, aquela da
utopia, do mito, das tradições populares ou das lendas, sem compreender que
se referia a produtos do passado que agiam sobre este enquanto era presente,
sendo, portanto, passíveis de serem estudados como tal. Ilustrando as “lendas
pedagógicas”, ele lembrou de personalidades históricas como Carlos Magno,
ensinadas diferentemente na França e na Alemanha. Ora, isso ocorre
simplesmente porque como toda pessoa, viva ou morta, o imperador carolíngio
é suscetível de ser avaliado de maneiras diversas, consoante as informações que
tenhamos sobre ele, o ambiente a partir do qual o observamos, o ângulo de
análise adotado na apreciação do personagem.
O fenômeno da utopia mencionado por Marrou é eloquente, por se
tratar de carência presente, de desejo coletivo projetado no futuro, mas que
quase sempre resgata, reelaborando-o, uma situação primordial idealizada.
Sendo a utopia transversal aos três modos de tempo, o historiador, por
definição habituado a lidar com o passado, tem dificuldade em estudá-la,
deixando a tarefa ao filósofo, ao politólogo, ao sociólogo. No entanto, é
expectável que o diálogo entre o historiador e o psicanalista possa lançar luz
sobre as utopias, “sonhos diurnos” na definição de Ernst Bloch (2005 vol. I,
14).
De um lado, porque sendo uma manifestação histórica que pretende
ultrapassar a história, é preciso bem conhecer o ambiente em que nasce a
utopia para compreender seu material constitutivo, seu pensamento, sua
eventual passagem à ação. De outro lado, porque o pensamento utópico talvez
seja um caso-limite daquilo que Freud (2013, 86-90) chamou de “onipotência
do pensamento”, cuja raiz está, disse Shakespeare (1978, 49), de quem o
austríaco foi grande leitor, no fato de o desejo ser “pai do pensamento”,
expressão retomada por Bloch (2005 vol. II, 419). Destarte, no plano psíquico
pode-se estender à utopia o comentário freudiano quanto ao projeto coletivo
de refazer o mundo, de “construir outro em seu lugar, no qual os aspectos mais
intoleráveis sejam eliminados e substituídos por outros conformes aos próprios
desejos”, empreendimento que representa “uma delirante modificação da
realidade” que nada alcançará (Freud 2016, 25-26). Utopia é uma estratégia de
busca de felicidade calcada na ilusão.
Uma obra historiográfica não é apenas, conscientemente, a descrição e
interpretação de um momento, personagem ou fenômeno do passado, é, além
disso, inconscientemente, uma manifestação dos sentimentos do historiador
sobre seu próprio tempo. Edward Carr exemplifica esse processo comum,
revelador da humanidade de cada autor, lembrando que a History of Greece
(1846) de George Grote informa o leitor de hoje tanto sobre a democracia
ateniense do século V a.C. quanto sobre o pensamento dos radicais ingleses

26
revista de teoria da história 2 2020

dos anos 1840. A Römische Geschichte (1854—1856) de Theodor Mommsen tem


como objeto manifesto a evolução da república romana, e como objeto oculto
(mas perfeitamente discernível pelo leitor atento) o impacto das revoluções
liberais de 1848. Mas a escrita da história é igualmente, em maior ou menor
medida, manifestação de uma época por intermédio do historiador. O
comentário de Carr é uma obviedade que deve ser reafirmada visto que com
frequência esquecida: “o historiador antes de começar a escrever história, é
produto da história”, seu trabalho reflete a sociedade na qual trabalha (Carr
1978, 35, 37 e 39).
Não cabe mais, portanto, a ideia de História como “relato dos fatos
considerados verdadeiros” (Voltaire 1765, 220). Não é por estar em
documento histórico que uma informação é intrinsecamente autêntica. Ou
melhor, ela pode sê-lo de maneira diversa: uma notícia falsa também transmite
dados de qualidade para o historiador, desde que devidamente contextualizada,
cotejada e analisada. Amostra disso é um episódio de maio de 1247 na cidade
de Parma, tradicional aliada do papa, que estando sitiada pelas tropas imperiais
de Frederico II esperava um exército de apoio. Como este tardava a chegar e o
moral dos defensores caía, o legado pontifício da cidade fez com que durante
uma reunião dos cavaleiros locais entrasse um frade esbaforido, aparentando
ter acabado de chegar de viagem, e entregasse uma carta anunciando a
aproximação dos aguardados reforços. A mensagem era uma falsificação, mas
seu conteúdo logo se espalhou entre os cidadãos (Kantorowicz 1927, 592-593).
Construiu-se assim uma nova verdade, plena de implicações psicológicas e
práticas. Verdade nascida da história e construtora da história.
O rumor (rumor, “ruídos vagos”, “propósitos difundidos”, “opinião
corrente”) é de todas as épocas, e a atual não é exceção como demonstra a
onipresença informática das fake news. O destino de batalhas, complôs,
revoluções, canonizações de santos, eleições de papas, imperadores e políticos
modernos, construção ou destruição de reputações, valorização ou
desvalorização de mercadorias, flutuação na cotação da bolsa de valores, tudo
isso não poucas vezes foi e é definido por boatos. A percepção desse
fenômeno de largo alcance social não é só da História, ela é partilhada com
outras ciências que tem muito a lhe sugerir a respeito, como a antropologia, a
sociologia e a Psicanálise, cada uma lidando com o fenômeno de forma
específica.
No essencial, todo estudioso do homem enquanto ser social “tem de
romper com sua personalidade segregada e autocentrada e penetrar nos
sentimentos, pensamentos e vidas de outras pessoas, [inclusive dos] que
viveram em eras há muito passadas, em partes distantes do habitat da
humanidade”. Esta afirmação de Toynbee (1986, 515) é perfeitamente válida
para o psicanalista, que não separa o ser individual do ser social. “Um dos
traços característicos do historiador”, constata um deles, o francês Anheim
(2018, 214 e 235), de filiação teórica bem distinta da do inglês, é que
“trabalhamos sobre aquilo que nos trabalha”, é que “a prática da História nos
altera, faz de nós alguém diferente”, formulações que caberiam sem ressalva na
boca ou na pena de um psicanalista.
Assim como este, também o historiador possui métodos e
procedimentos que permitem perseguir seus objetivos minimizando os riscos
de contágio do objeto pelo sujeito e do sujeito pelo objeto. A ingenuidade de
Heródoto ou dos cronistas medievais foi cedendo lugar ao espírito crítico dos
iluministas e seus sucessores, até hoje, sem que, entretanto, as distorções
possam ser eliminadas pela simples razão que o material e seu artesão são

27
revista de teoria da história 2 2020

humanos. Sem paradoxo, a humanidade do exegeta que lhe permite aproximar-


se dos antepassados estudados é também o que o afasta deles, o induz a
projetar sobre eles ideias e sentimentos que lhe são estranhos, são de outro
tempo. Marrou (1978, 42-54), entre outros, insiste com razão que o
conhecimento histórico é “uma mistura indissolúvel de objeto (o passado) e de
sujeito (o historiador)”.

MÉTODO E INTERPRETAÇÃO
A História e a Psicanálise, ainda que sob enfoques e ênfases bastante
diferentes, estão ambas envolvidas com a questão da representação. Enquanto
o biólogo examina uma bactéria, o químico uma substância, o astrônomo uma
estrela, o geólogo uma rocha, o geógrafo um rio, o historiador não estuda um
evento e o psicanalista não analisa um afeto, somente suas representações. Para
o historiador, adotando e adaptando reflexões oriundas de outras áreas do
conhecimento, representação é um significante que pode tanto encobrir quanto
desvelar a significação do mundo. Seja representações mentais (como a língua),
seja objetais (emblemas, por exemplo), seja performáticas (teatro é o caso
típico), trata-se sempre de algo no lugar de outro, de presentificar uma
ausência. Daí se dever “incluir no real a representação do real”, (Bourdieu
1996, 108). As descrições da batalha de Bouvines não são o real em primeira
instância (o choque de alguns milhares de homens perto de Lille e Tournai,
entre 12:00 e 17:00 do domingo 27 de julho de 1214), mas uma segunda
instância que agiu sobre a posterior história política francesa (terceira
instância).
Para o psicanalista, é preciso levar em conta que Freud adota a palavra
coloquial alemã para “representação”, Vorstellung, cujo campo semântico é
largo, significando ainda “imaginar ou pensar (conceber uma imagem sensorial
sem a presença concreta do objeto)”, além de “concepção, conceito, noção,
ideia” etc. Ademais, o vocabulário freudiano recorre a Darstellung,
“apresentação”, também “representação” e “caracterização” na linguagem
teatral, donde Darstellbarkeit para designar a atividade psíquica ligada à
representatividade e à figurabilidade, à “capacidade de se exprimir em
imagens”, aos pensamentos dos sonhos e “às possibilidades de um conteúdo
ser representável (ser colocado em linguagem e mostrado)” como se encontra
em Die Traumdarstellung (A Interpretação dos Sonhos) (Hanns 1996, 376-396).
Tanto no uso historiográfico como no psicanalítico, para se
compreender os mecanismos da representação e alcançar os elementos
representados, é preciso lançar mão de um método interpretativo. Que ele seja
qualificado de científico, ou não, é questão polêmica que não cabe aqui
rediscutir visto não ser essencial para os comentários de cunho ensaístico e
restrito apresentados neste texto. De fato, para muitos epistemólogos “ciência”
deve ser denominação reservada a ramos do conhecimento que a partir de
métodos lógicos e sistemáticos alcançam resultados passíveis de comprovação
verificável e repetível. Nenhuma das duas áreas que examinamos se encaixa
nesse perfil. No que diz respeito à Psicanálise, Freud (1994, 13) classificava-a
como uma ciência da natureza (Naturwissenschaft), argumentando que a falta de
precisão, imutabilidade e infalibilidade é de toda ciência nos seus primeiros
tempos. Paul Veyne (1971, 7) foi mais direto e menos pretencioso sobre a sua
área: “a História não é uma ciência e não o será jamais”.

28
revista de teoria da história 2 2020

Para outros pensadores, as noções de objetividade e neutralidade


científica são referências conceituais que só fazem sentido para o século XIX,
tendo sido abandonadas pela epistemologia posterior visto que as ciências não
podem estar descoladas do seu contexto político, social e cultural, que
condiciona a elaboração e a aplicação de seus métodos, logo, de seus
resultados. Quine (1951) pensa que não existem verdades empíricas,
comprováveis pela experiência, tampouco verdades irrefutáveis, pois a lei da
não-contradição cara à lógica clássica é colocada em xeque pela física quântica
ao admitir que uma partícula ao mesmo tempo pode ser e não ser, ao
reconhecer que a mera observação da partícula muda seu estado. O caso
particular da História já foi visto como ciência não “no sentido de epistémê, mas
no de tékhnê, isto é, conhecimento elaborado em função de um método
sistemático e rigoroso”, oposto ao conhecimento vulgar da experiência
cotidiana (Marrou 1978, 29).
Freud reiterou em várias oportunidades o estatuto científico singular da
Psicanálise, mas o comentário de um Prêmio Nobel de literatura em relação à
História poderia se estender ao campo psicanalítico: “não é uma ciência, é uma
arte. Nela só se tem sucesso pela imaginação.” (France 1927, 458) Talvez a
formulação anterior de um historiador seja mais exata: “une œuvre d’art autant que
de science” (Michelet 1840, V). Mas alguns dos contemporâneos desse autor
criticaram seus excessos verbais e advertiram para a necessidade de controlar a
imaginação na escrita da história. Ainda assim, um sucessor de Michelet no
Collège de France, Georges Duby (1980, 50), insiste que a História é antes de
tudo uma arte, “uma arte literária essencialmente”. No século XX outros
historiadores, tão diferentes entre si como Edward Carr (1978, 24), Robin
Collingwood (1972, 365-375), René Rémond (1989, 336) e Jacques Le Goff
(1977, 7), aceitaram a imaginação no seu ofício, desde que usada com
moderação e submetida à erudição.
Assim, o termo “ficção” utilizado por Hayden White (1994, 30) a
propósito do trabalho do historiador – e cabível igualmente ao psicanalista –
não é absurdo, já que pela etimologia fictio, “formação”, “criação”, “suposição”,
“hipótese”, é derivação de fingere, “modelar na argila”, “esculpir”, “fabricar”,
“reproduzir os traços de”, “representar”. Ou seja, antes de prevalecer o sentido
figurado de “fingimento”, “falsidade”, “imaginação” (do que derivou fictum,
“mentira”, ficticius, “inventado”, “fingido”), ficção é simplesmente aquilo que se
organiza, se estrutura, de determinada maneira, seja ele o texto historiográfico,
o diálogo clínico ou um estudo psicanalítico. Freud (1967, 276) pretendeu
transformar a metafísica em metapsicologia, White (1993) foi mais modesto
quanto à História, contudo a diferença é quantitativa, não qualitativa. Ambos
propõem refletir em profundidade sobre suas disciplinas: metapsicologia é a
dimensão teórica da Psicanálise assim como metahistória o é da História. Uma
e outra lançam o olhar por detrás (μετά) das aparências4. Como comentou
Steiner (2020, 48-54), na literatura há uma verdade da ficção e na erudição uma
ficção da verdade.
Um jogo especular comparável ocorre na situação psicanalítica,
tornando necessária a arte da interpretação (Hermann 1991), de forma similar à
atuação do historiador, cujo método consiste “essencialmente na interpretação
das provas” (Collingwood 1972, 22), tarefa que é “o sangue vivo da História”

4 Não seria difícil, mas não cabe aqui, desenvolver os paralelos entre a metapsicologia e sua

descrição das relações internas de um processo psíquico (Freud 1968) e a metahistória com seu
procedimento de atribuição de sentido histórico (Jörn Rüsen, “What is Meta-history?”, 2010,
https://pt.scribd.com/doc/39630477/What-is-the-meta-history).

29
revista de teoria da história 2 2020

(Carr 1978, 27). Se “a História é a resposta às perguntas que lhe queremos


colocar” (Veyne 1971, 44), é possível dizer que a Psicanálise é o conjunto de
perguntas que resistimos em lhe colocar. Com efeito, como a etimologia nos
informa, “perguntar” deriva de percontari, por sua vez vindo de contus (vara), isto
é, perguntar é sondar o fundo do rio com uma vara, ou, metaforicamente, é
sondar a alma daquele a quem se sugere uma pergunta.
Vale para a Psicanálise, em linhas gerais, as reflexões de Collingwood
sobre a História, cuja função é “o auto-conhecimento humano”. Quer dizer,
conhecer a si mesmo significa saber o que se pode fazer. E como
ninguém sabe o que pode fazer antes de tentar, a única indicação para
aquilo que o homem pode fazer é aquilo que já fez. O valor da História
está então em ensinar-nos o que o homem tem feito e, deste modo, o
que o homem é. […] condição sem a qual nenhum outro conhecimento
pode ser justificado criticamente e fundamentado com segurança.
(Collingwood 1972, 22 e 315).

Nesse sentido, talvez a mais eloquente relação da Psicanálise com a História


não esteja em determinado texto freudiano, nem no conjunto deles, e sim na
coleção de antiguidades que povoava seu consultório. Peças egípcias, gregas,
romanas e orientais que o inspiravam, que o lembravam incessantemente das
raízes históricas de todo homem, impensável sem seus elos com o passado.
O método psicanalítico confere patamares distintos à questão da
interpretação, ora tomando-a como instrumento de investigação de sentido,
situando-se então num terreno hermenêutico comparável ao da História, ora
utilizando-a como privilegiado recurso terapêutico. Se a escuta no sentido
literal é o que faz o psicanalista em relação ao paciente, em sentido figurado é o
que deve fazer o historiador com todo o tipo de material associado a seu
objeto de estudo. Assim como aquele não deve ficar restrito ao mal-estar
imediato (familiar, sexual, profissional) do paciente, o segundo não pode se
limitar às camadas superficiais de suas fontes. Ele deve submeter seu vasto
material, pelo menos em certa fase da pesquisa, a associações livres
comparáveis àquelas ocorridas em situação psicanalítica e fundamentais para
sua evolução. Aplica-se a esta uma avaliação relativa ao historiador: “a crítica
do testemunho, que trabalha sobre realidades psíquicas, permanece sempre
uma arte de finesse” (Bloch 1993, 139). Arte que o historiador e o psicanalista
praticam com ferramentas de suas disciplinas, mas também de outras,
conforme as necessidades de cada momento.
Sendo a escuta a via de apreensão dos sentidos que emanam do objeto,
externados no espaço manifesto (o divã analítico ou as fontes primárias do
historiador), Luís Carlos Menezes (2001, 48) afirma que “o ouvido do analista
será sensível ao detalhe, ao fragmento, àquilo que destoa; o analista trabalha
psiquicamente, em sua escuta, com ... restos, e não com o conteúdo
intencionalmente significado pelo paciente”. Notemos que também o
historiador trabalha com restos (os fragmentos do passado que chegaram até
ele) e com indícios (detectados nesses fragmentos), precisando assim estar
atento aos detalhes que podem revelar significados latentes. Por isso não é
aceitável pretender que “nenhum documento pode nos dizer mais do que
aquilo que o autor pensava” (Carr 1978, 18). Várias vezes aquilo que ele diz
sem consciência de fazê-lo é tão ou mais importante do que aquilo que afirma.
O valor de uma informação não depende de sua explicitação e sim de seu
conteúdo, mesmo implícito.

30
revista de teoria da história 2 2020

Marc Bloch comparava o historiador ao “juiz que se esforça em


reconstituir um crime ao qual não assistiu”, daí a necessidade de recorrer a “um
conhecimento por traços”, centrado naquilo que os textos (e as imagens,
devemos acrescentar) “nos deixa perceber, sem ter desejado dizê-lo”, porque
eles são testemunhas que não falam espontaneamente (Bloch 1993, 99, 103,
108 e 109). Mais recentemente, Carlo Ginzburg (1989) chamou atenção para o
“paradigma indiciário” que se afirmou a partir de 1870-1880 (mas de raízes
pré-históricas, segundo ele) nas ciências humanas, inclusive na História, cujo
conhecimento é “indireto, indiciário e conjuntural”, análogo ao conhecimento
médico, constituído a partir dos sintomas.
Também a Psicanálise parte do singular, do particular concreto,
considerado índice do universal, em direção ao todo. Entre 1883 e 1896 (antes,
portanto, da elaboração da teoria psicanalítica), Freud conheceu a obra do
historiador da arte Giovanni Morelli (†1891), médico de formação, que se
propunha atribuir a autoria de um quadro não pelos seus traços mais evidentes,
e sim por pormenores como os formatos de orelhas, dedos e unhas. Logo no
começo de O Moisés de Michelangelo, Freud admite ter encontrado na obra de
Morelli um método estreitamente aparentado ao psicanalítico, pois este
trabalha com detalhes, dados marginais, refugos, elementos comumente pouco
notados, contudo, essenciais para a investigação do analista (Freud 2005, 143).
Isso reafirma a já comentada avaliação que a Psicanálise, como a História, é
arte, aquilo que “torna preciosas coisas sem valor”, em célebre definição
(Shakespeare 1978, 263).
Ainda que em contextos bastante específicos, pode-se dizer que as
interpretações em História e Psicanálise convergem na ressignificação do
passado, social ou individual, sempre a partir da realidade presente. E que a
pesquisa do imaginário numa disciplina e do Inconsciente na outra leve em
conta a imprecisão do discurso recebido, escrito ou oral, decorrente da
subjetividade de quem comunica, bem como da ausência de neutralidade do
receptor da informação cujas percepções estão sujeitas ao filtro de sua própria
subjetividade. A aceitação desses novos paradigmas permite reconhecer as
evidências da vida imaterial, como fazem a Psicanálise e alguns segmentos da
História.
Mas nesse procedimento há inevitáveis projeções do presente do
psicanalista ou do historiador sobre os relatos recebidos, o que, comenta
Oakeshott (2003, 128) sobre esse último, pode às vezes colaborar na tarefa, em
outras se tornar um empecilho. Contra essa possibilidade a História conta com
poucos recursos, enquanto a Psicanálise elaborou certos controles técnicos,
porém de eficácia apenas relativa na medida em que não se pode escapar às
forças inconscientes. O melhor exemplo é uma célebre passagem de Totem e
Tabu sobre a horda primitiva:

Um pai violento e ciumento, que reserva todas as fêmeas para si e


expulsa os filhos quando crescem, eis o que ali se acha. […] Certo dia, os
irmãos expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assim
terminando com a horda primeva. Unidos, ousaram fazer o que não seria
possível individualmente. […] Sem dúvida, o violento pai primevo era o
modelo temido e invejado de cada um dos irmãos. […] No ato de
devorá-lo eles realizavam a identificação com ele, e cada um apropriava-
se de parte de sua força. A refeição totêmica, talvez a primeira festa da
humanidade, seria a repetição e a celebração desse ato memorável e
criminoso, com o qual teve início tantas coisas: as organizações sociais,
as restrições morais, a religião. (Freud 2013, 147-148).

31
revista de teoria da história 2 2020

Ironicamente, é a teoria freudiana que permite perceber que além de


formular uma hipótese sobre os tempos pré-históricos, o trecho acima refere-
se também ao movimento psicanalítico, cujo pai se sentia ameaçado por alguns
filhos ambiciosos. No mês e ano (outubro de 1913) em que se completava a
publicação do texto concretizava-se o rompimento entre Freud e Jung,
herdeiro presumido do movimento. Outros duros afastamentos de
personagens importantes já haviam acontecido (Wilhelm Fliess, Alfred Adler,
Wilhelm Stekel) e voltariam a acontecer (Karl Abraham, Otto Rank, Sandor
Ferenczi), mas era o preço a pagar para manter a ordem na horda primitiva.
Em rigor, pela natureza de suas áreas, nem o historiador nem o
psicanalista tem condições de produzir uma tese (thesis < θέσις, ”ação de
colocar, arranjar”, em sentido figurado “estabelecer um princípio”), devem se
conformar em ficar no nível da hipótese (hypothesis, argumento < ὑπόθεσις,
suposição < ὑπό, sob + θέσις). É claro que as ciências ditas duras ou exatas
antes de poderem formular, ou não, certas conclusões, trabalham com
hipóteses, que constituem, entretanto, apenas um instrumental, uma etapa
intermediária da pesquisa. Nas ciências do homem é diferente. No caso das
duas que aqui interessam, o terreno privilegiado de encontros e desencontros
ilustra bem a necessidade estrutural de hipóteses. Se Freud admite
(desprezando a nova teoria genética da hereditariedade, formulada por Mendel
em 1900) a existência de uma memória transgeracional, um conjunto de traços
mnemônicos arcaicos, é porque precisa construir “uma ponte acima do fosso
que separa a psicologia individual da psicologia de massas”, permitindo-lhe
“tratar os povos como o indivíduo neurótico” (Freud 1986, 196).

O CONHECIMENTO ENTRE RAZÃO E PAIXÃO


Por examinarem o humano, tanto a História quanto a Psicanálise
defrontam-se com um material complexo, de harmonização e compreensão
difíceis. Como na vida psíquica razão e paixão são complementares, uma não
existe sem a outra, elas condicionam o objeto de estudo, e também o
estudioso. Em especial no cenário romântico. Michelet aliou erudição e
imaginação em proporções muito variáveis, com a primeira sendo mais um
estímulo do que um controle sobre a segunda. Não é a razão, mas a paixão (a
pessoal e a pelo mundo contemporâneo), que explica a passagem da sua visão
positiva da Idade Média, formulada em 1833-1844, para a negativa, de 1855-
1861 (Le Goff 1977, 19 - 45). Em Uma Lembrança da Infância de Leonardo da
Vinci, Freud (2009, 99) nota que o personagem devido às circunstâncias de sua
infância convertera a paixão em sede de conhecimento, entregando-se à
investigação científica com persistência sustentada pela força da pulsão, e só ao
atingir o auge de seu trabalho intelectual, ao adquirir o conhecimento desejado,
permitiu que o afeto há muito reprimido viesse à tona e transbordasse
livremente, como se deixa correr a água represada de um rio após ter sido
utilizada.
Não é absurdo especular se o interesse freudiano pelo frágil equilíbrio
entre razão e paixão em Leonardo não refletia igual situação nele próprio,
Freud. É o que permite pensar a predileção que tinha por aquela obra: ainda
nove anos depois de sua publicação, ele revelou a um amigo que ela era “a
única coisa bela” que havia produzido (Freud 1996, 368). Porque um ano após
aquele estudo, ao falar do novo livro então em elaboração, Freud confessou
que “sou inteiramente Totem e Tabu” (Freud; Ferenczi 1992, 317),
possivelmente acolheria como sua a autoavaliação de Michelet em 1869, cinco

32
revista de teoria da história 2 2020

anos antes de morrer – minha vida foi minha obra, “foi meu único evento”. E
concordaria (substituindo na frase a área de atuação) com a ideia de que “a
história faz o historiador, bem mais do que é feita por ele. Meu livro me criou.
Eu é que fui sua obra. […] Levando sempre mais longe minha ardente
perseguição, me perdi de vista, me ausentei de mim. Passei ao lado do mundo e
tomei a História pela vida. E assim ela ficou para trás. Não lamento nada”
(Michelet 1893, IX, X e XLIV).
Michelet e Freud viram-se diante do mesmo problema: o fogo da
paixão aquece mas pode queimar, a luz da razão ilumina mas pode cegar. O
espírito romântico fornecia muitas ilustrações do primeiro risco (ao qual o
historiador sucumbiu várias vezes), o cartesianismo e o iluminismo do segundo
(ao qual o psicanalista nem sempre escapou). Michelet viu-se contestado
devido à interioridade dos fenômenos históricos que estudou (o povo, a
mulher, a feiticeira), Freud devido à interioridade dos fenômenos anímicos que
examinou (pulsões, recalques, Inconsciente). A paixão intelectual alimenta a
razão, mas nem sempre a razão controla as paixões, inclusive as intelectuais.
Enquanto a paixão teme o tempo e a distância, a razão é nutrida por eles. Daí
por que o distanciamento do investigador além de hermenêutico, é também
profilático.
Qualquer espectador muito próximo do — tomando um exemplo
pouco posterior a Michelet e contemporâneo à formação da Psicanálise —
Campo de Trigo com Corvos (1890) não consegue perceber nada além das
pinceladas. Somente recuando alguns passos é possível identificar a paisagem
atormentada de Van Gogh. Todo historiador, por definição, conta com o
recuo temporal que lhe permite um olhar abrangente e a esperança de captar o
sentido do fenômeno estudado. Todo psicanalista, muito mais próximo do
objeto analisado, ganha na recolha dos detalhes, mas precisa de perspectiva
para compreendê-los. Se de um único detalhe ele extrai inferências importantes
para sua tarefa, é para desse ângulo de visão provisório obter novos detalhes e
com eles ampliar, matizar ou até reformular a teoria.
Próximas também são as duas ciências na sua limitação epistemológica,
pois trabalham com condições necessárias, jamais com condições suficientes às
suas interpretações. Se “a essência da realização artística é psicanaliticamente
inacessível” (Freud 1998, 163), isso debilita a possibilidade de alcançar a
pretendida cosmovisão global ou Weltanschauung — construção intelectual
destinada a resolver todos os problemas da existência humana a partir de uma
hipótese edificada sobre a ciência, que comanda o todo — em certa medida
comparável à noção de história total empreendida por Michelet desde 1820 e
da descrição literária total ambicionada por Balzac na década de 1830 com a
Comédie humaine. Também a totalidade histórica fica comprometida pela
inacessibilidade à essência artística, o que gera uma deficiência na compreensão
do material examinado pelo historiador, e por consequência na sua explicação
sobre a sociedade que produziu as obras de arte.
Em História, a noção de causa que havia se firmado com o
cartesianismo e o consequente recuo da ideia de intervenção divina na
evolução das sociedades, teria vida longa desde Montesquieu, que incluiu a
causalidade já no título de suas Considérations sur les causes de la grandeur des
Romains et de leur décadence (1734), até pelo menos 1961, quando um
contemporaneista inglês afirma que “o estudo da história é um estudo de
causas” (Carr 1978, 75). Também Freud (2016, 9) raciocinou em termos de
causalidade: toda “explicação psicanalítica é genética”. A etiologia praticada
pela História e pela Psicanálise é geralmente complexa, mas aceita a

33
revista de teoria da história 2 2020

predominância de um fator do qual derivam os demais, ou pelo menos articula


os demais — “todo argumento histórico gira em torno da questão da
prioridade de causas” (Carr 1978, 78) — caso do econômico na historiografia
marxista e do sexual na interpretação psicanalítica.
Se evidentemente a maioria dos episódios psicológicos não têm
ressonância histórica além do próprio sujeito, alguns condicionam a trajetória
da sociedade e das ciências que explicarão o indivíduo e a coletividade. Uma
circunstância dessas se deu na noite de 10 para 11 de novembro de 1619, com
os três sonhos tidos por René Descartes, que naquela época servia ao exército
de Maurício de Nassau para poder viajar e assim ler diretamente no “livro do
mundo”. Naquela manhã ele despertou convicto de ter tido uma espécie de
epifania científica, de iluminação filosófica, que lhe pareceu solucionar suas
inquietações intelectuais. Dispôs-se então a curar o conhecimento caótico de
seu tempo, cujos saberes não considerava confiáveis por acumularem-se como
cidades que crescem de forma desordenada e aleatória.
O jovem Descartes tirou de seus sonhos um método científico que
deveria dirimir as dúvidas sobre a autenticidade da produção de conhecimento
e a validade de seus resultados. A razão tornar-se-ia juiz e sinônimo de juízo,
inspiração para que, século e meio depois, a Revolução Francesa cultuasse a
“deusa Razão” em plena Notre-Dame de Paris e a seguir em várias outras
igrejas por todo o país. Entretanto, a despeito de o método cartesiano-
iluminista pretender emitir vereditos sobre o falso e o verdadeiro, ele não
deixava de estar impregnado de certo romantismo e mística, como mostrou um
geólogo e paleontólogo alemão (Quiring 1954-1955). O primeiro historiador a
percebê-lo foi o inglês Edward Gibbon (1737-1794), que alertará para o fato de
até “as almas mais isentas de preconceitos não saberem deles se desfazer
completamente”. É preciso, diz ele, identificar, comparar e associar os
acontecimentos, porém o mais difícil é a etapa seguinte do trabalho
historiográfico: compreender o irracional na história (Gibbon 1762, 60-61).
As tentativas nesse sentido demorariam a aparecer, mas no século
passado certas correntes historiográficas superaram os limites tradicionais da
sua área e concederam espaço a temas como fantasmas, loucura, magia,
sexualidade, símbolos, sonhos, superstição. A Psicanálise dos primeiros
tempos, muito tributária da intenção de fazer ciência positiva, subestimou a
presença do irracional na sua investigação, com Freud criticando Jung por
valorizar material mitológico e religioso e refletir sobre fenômenos como
astrologia e magia. Ainda assim, o austríaco teve a inteligência de preferir falar
de uma área cinzenta entre normalidade e patologia psíquicas, mais do que na
existência de fronteira vincada entre elas (Onfray 2012, 604-605). Seguindo
esse modelo, psicanalistas e historiadores deveriam evitar todo entendimento
polarizado, inclusive aquele pelo qual os primeiros se ocupam do indivíduo e
os segundos do coletivo, avaliação simplista visto que nem Heródoto descurou
do indivíduo, nem Freud da cultura.
O pai da História elaborou sua obra fundado em dois métodos básicos,
a constatação pessoal (αὐτοψία, autópsia, “ver com os próprios olhos”) e a
informação recebida de outrem (οὖς, ous, “orelha”, isto é, aquilo que ouviu),
sem atribuir qualquer hierarquia valorativa a essas procedências do seu
material. Seu inquérito (ἱστορία, istoria < *weid-, raiz indo-europeia de “ver”)
resultou em relato (λόγος, logos) composto pela sucessão e encadeamento de
vários relatos particulares (logoi). Cioso de deixar a mitologia à margem, como
homem do seu tempo Heródoto não podia, porém, escapar completamente a
ela, e titulou as nove partes da sua obra com nomes das musas gregas: Livro I –

34
revista de teoria da história 2 2020

Clio (aquela que preside a História); Livro II – Euterpe (música); Livro III –
Tália (comédia); Livro IV – Melpômene (tragédia); Livro V – Terpsícore
(dança); Livro VI – Érato (lírica); Livro VII – Polímnia (retórica); Livro VIII –
Urânia (astronomia); Livro IX – Calíope (épica).
Percebendo que os eventos se desenrolam não apenas no tempo, mas
também no espaço, dedicou a ele muita atenção, o que levou comentadores
modernos a considerá-lo também pai da geografia. Tendo observado que o
mundo é uno, embora habitado por povos de costumes bem diversos,
Heródoto descreve formas educacionais e funerárias, crenças, ritos,
monumentos, imaginários, e pode por isso ser igualmente qualificado de pai da
etnografia. Um dos comportamentos coletivos ao qual dedica grande parte da
narrativa revela-se essencial pelas decorrências práticas e psicológicas — os
gregos são livres, são cidadãos que definem seu destino, em contraste com os
“bárbaros” (todos aqueles que não falam um dialeto grego), súditos de
monarcas despóticos revestidos de caráter sagrado. Da variedade de costumes,
às vezes bastante antagônicos, Heródoto extrai uma conclusão que os futuros
antropólogos, historiadores e psicanalistas confirmariam — a humanidade é
singular, mas os homens são plurais. Assim, por via indireta, o indivíduo com
seus sentimentos e conflitos não deixa de ser contemplado pela metodologia de
Heródoto, mesmo que o núcleo de seu estudo esteja voltado para a dimensão
coletiva.
Freud, por sua vez, desde os primeiros casos clínicos enfatizou os
efeitos recíprocos entre indivíduo e cultura. Sua biografia intelectual comprova,
e nem poderia ser diferente, seu íntimo relacionamento com a história da
época. Além do pano de fundo cultural, eventos históricos muito concretos
encaminharam certas reflexões psicanalíticas fundamentais. Não é casual que
uma inflexão conceitual tenha vindo à luz entre 1920 e 1926 — estimulada, ou
tornada necessária, pela carnificina da Primeira Grande Guerra, pela
desintegração do Império austro-húngaro, pelas convulsões da revolução
bolchevique, pela ascensão do fascismo italiano — com a nova doutrina das
pulsões, agora formulada em termos de pulsão de vida / pulsão de morte, ou
com a nova teoria da angústia. Do entrecruzar das novas circunstâncias
históricas e dos novos conceitos é que surgiriam três dos quatro grandes textos
culturais freudianos (o quarto é Totem e Tabu, de 1913): O Futuro de uma Ilusão
(1927), O Mal-estar na Civilização (1929) e O Homem Moisés e a Religião Monoteísta
(1939).
O olhar freudiano global sobre o humano não está afastado do olhar
micheletiano – “para reencontrar a vida histórica seria preciso segui-la
pacientemente por todos seus caminhos, todas suas formas, todos seus
elementos. Seria preciso também […] restabelecer o funcionamento do
conjunto, a ação recíproca dessas forças diversas num poderoso movimento
que se tornaria a própria vida” (Michelet 1893, III). Independentemente do
valor pessoal desses fundadores, nem Heródoto nem Freud foram, é claro,
produtos ex nihilo, pelo contrário, suas criações respondiam às novas
necessidades culturais de suas épocas. A curiosidade de Heródoto pelo mundo
grego e por povos distantes e estranhos teve como pano de fundo a expansão
territorial, comercial e intelectual do mundo helênico naquela segunda metade
do século V a.C. A curiosidade de Freud era uma das facetas daquela Europa
que, na passagem do século XIX ao XX, questionava antigas convicções,
sacudida por transgressões culturais como as expressadas por Schopenhauer
(†1860), Dostoievski (†1881), Nietzsche (†1900), Mahler (†1911), Strindberg
(†1912), Wedekind (†1918) ou Klimt (†1918).

35
revista de teoria da história 2 2020

Michael Coupe (1983) argumentou com razão que, sendo muito difícil
a um só indivíduo dominar o universo de conhecimentos historiográficos e
psicanalíticos de maneira sólida e equilibrada, o melhor é que a história
psicanalítica – ou psicanálise histórica, ou psicohistória, o rótulo aqui não é
essencial – seja praticada em conjunto por profissionais dos dois campos em
estreita colaboração. À semelhança do que fez Jean Leclercq (1976), historiador
do monasticismo e da religiosidade monástica, ao convidar um psicanalista, um
psicolinguista e alguns psicólogos para se juntarem a ele no estudo dedicado a
São Bernardo.
Porque a epistemologia desnuda os limites das duas disciplinas, que não
podem pretender alcançar a certeza, elas enfatizam a importância da ética,
impõem a integridade intelectual – Heródoto “é um homem honesto, muito
imaginativo também, mas perfeitamente verídico” (Bonnard 2018, 330); Freud
é a prova que basta “que um único homem tenha a coragem da verdade para
aumentar a veracidade em todo o universo” (Zweig 1932, 34). Por caminhos
distintos, buscando metas próximas sem serem exatamente as mesmas,
História e Psicanálise podem dialogar, devem dialogar, fundamentando a ideia
de um cântico chinês do século XII ou XI a.C. que aqui nos serviu de
inspiração: “só irmãos não basta ser, melhor é sermos amigos” (Livro dos
Cantares 1990, 297).

REFERÊNCIAS

ANDRÉ, Jacques. As Desordens da Vida. Porto Alegre: Sulina, 2019.


ANHEIM, Étienne. Le travail de l’histoire. Paris: Éditions de la Sorbonne, 2018.
BALMARY, Marie. Le sacrifice interdit. Freud et la Bible. Paris: Grasset, 1986.
BINION, Rudolph. Hitler among the Germans. Nova York: Elsevier, 1976.
BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Rio de Janeiro: Contraponto / Eduerj, 2005-6,
3 vols.
BLOCH, Marc. Apologie pour l’histoire ou métier de l’historien [1949], ed. Étienne
Bloch. Paris: Armand Colin, 1993.
BONNARD, André. A Civilização Grega. Lisboa: Edições 70, 2018.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas. São Paulo: Edusp, 1996.
BOURDIEU, Pierre. “L’illusion biographique”. Actes de la Recherche en Sciences
Sociales, Paris, n. 62-63, p. 69-72, jun. 1986.
BRAUDEL, Fernand. Grammaire des civilisations [1963]. Paris: Arthaud, 1987.
CARR, Edward H. Que é História? [1961]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
COLLINGWOOD, Robin G. A Ideia de História [1946]. Lisboa: Presença, 1972.
COUPE, Michael. “The Personality of Guibert de Nogent Reconsidered”. Journal of
Medieval History, Amsterdam, v. 9, n. 4, p. 327-328, dez. 1983.
CROCE, Benedetto. Contributo alla critica di me stesso [1915]. Bari: Laterza, 1945.
DELCOURT, Marie. Œdipe ou la légende du Conquérant. Paris / Liège: Droz /
Université de Liège, 1944.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’anti-Œdipe. Paris: Minuit, 1973.

36
revista de teoria da história 2 2020

DUBY, Georges. Le dimanche de Bouvines, 27 juillet 1214. Paris: Gallimard, 1973.


DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Dialogues. Paris: Flammarion, 1980.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizacional. Investigações Sociogenéticas e
Psicogenéticas [1939]. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
ERIKSON, Erik H. “Ego Development and Historical Change. Clinical Notes”.
Psychoanalytic Study of the Child, New Haven, v. 2, n. 1, p. 359-396. 1946.
ERIKSON, Erik H. Young Man Luther. A Study in Psychoanalysis and History. Nova
York: W. W. Norton, 1958.
FEBVRE, Lucien. “Comment reconstituer la vie affective d’autrefois? La sensibilité et
l’histoire” [1941]. In: Combats pour l’Histoire. Paris: Armand Colin, 1992, p. 221-
238.
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero: um Destino [1928]. Lisboa: Bertrand, 1976.
FRANCE, Anatole. Le jardin d’Epicure [1895]. Paris: Calmann-Lévy, 1927 (Œuvres
complètes, 9).
FREUD, Sigmund. “Autoprésentation” [1925]. In: Œuvres complètes (direção), André
Bourguignon, Pierre Cotet e Jean Laplanche (org.). Paris: PUF, 1992, vol. XVII, p.
51-122.
FREUD, Sigmund. “Du bien-fondé à séparer de la neurasthénie un complexe de
symptômes déterminé en tant que ‘névrose d‘angoisse’ ” [1895]. In: Œuvres
complètes. Paris: PUF, 1989, vol. III, p. 29-58.
FREUD, Sigmund. “Court abrégé de psychanalyse” [1924]. In: Œuvres complètes.
Paris: PUF, 1991, vol. XVI, p.331-354.
FREUD, Sigmund. “Un enfant est battu’. Contribution à la connaissance de la genèse
des perversions sexuelles” [1919]. In: Œuvres complètes. Paris: PUF, 1996, vol. XV,
p. 115-146.
FREUD, Sigmund. L’homme Moïse et la religion monothéiste [1939]. Paris: Gallimard,
1986.
FREUD, Sigmund. The Interpretation of Dreams [1900]. In: Standard Edition of the
Complete Works of Sigmund Freud (trad. dir. James Strachey). Londres: The
Hogarth Press / Institute of Psychoanalysis, 1953, vol. IV.
FREUD, Sigmund. O Mal-estar na Civilização [1929]. São Paulo: Penguin /
Companhia das Letras, 2016.
FREUD, Sigmund. Métapsychologie [1915-1917]. Paris: Gallimard, 1968.
FREUD, Sigmund. Le Moïse de Michel-Ange [1914]. In: Œuvres complètes. Paris:
PUF, 2005, vol. XII, p.127-160.
FREUD, Sigmund. La naissance de la psychanalyse: lettres à Wilhelm Fliess, ed. Marie
Bonaparte, Anna Freud e Ernst Kris. Paris: PUF, 2009.
FREUD, Sigmund. “Sur la préhistoire de la technique analytique” [1920]. In: Œuvres
complètes. Paris: PUF, 1996, vol. XV, p.265-268.
FREUD, Sigmund. Psychopathologie de la vie quotidienne [1901]. Paris: Payot, 1967.
FREUD, Sigmund. La question de l’analyse profane. Entretiens avec un homme
impartial [1926]. In: Œuvres complètes. Paris: PUF, 1994, vol. XVIII, p. 1-92.
FREUD, Sigmund. “Réponse à une enquête: de la lecture et des bons livres” [1906]. In:
Œuvres complètes, Paris: PUF, 2007, vol. VIII, p. 33-38.

37
revista de teoria da história 2 2020

FREUD, Sigmund. Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci [1910]. In: Œuvres


complètes, Paris: PUF, 2009, vol. X, p. 79-164.
FREUD, Sigmund; Sandor FERENCZI. Correspondance, ed. dir. André Haynal. Paris:
Calmann-Lévy, 1992, vol. I; 1996, vol. II.
FREUD, Sigmund; JUNG, Carl G. A Correspondência Completa. Rio de Janeiro:
Imago, 1993.
FRIEDLÄNDER, Saul. Histoire et psychanalyse. Essai sur les possibilités et les limites
de la psychohistoire. Paris: Seuil, 1975.
FROMM, Erich. “The Oedipus Complex and the Oedipus Myth”. In: Ruth N.
ANSHEN (ed.), The Family, its Function and Destiny. Nova York: Harper and
Brothers, 1949, p. 334-358.
GAY, Peter. Freud para Historiadores [1985]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
GAY, Peter. O Século de Schnitzler. A Formação da Cultura da Classe Média,1815-
1914 [2001]. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GREEN, André. “Has Sexuality Anything to do with Psychoanalysis?”. International
Journal of Psychoanalysis, Londres, v. 76, p. 871-883. 1995.
GINZBURG, Carlo. “Sinais. Raízes de um Paradigma Indiciário” [1979]. In: Mitos,
Emblemas e Sinais. Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
p. 143-179.
GIBBON, Edward. Essai sur l’étude de la littérature. Londres: T. Becket & P. A. de
Hondt, 1762.
HANNS, Luiz Alberto. Dicionário Comentado do Alemão de Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
HEINE, Heinrich. Reise von München nach Genua [1828-1829]. Munique: Hanser,
1969 (Sämtliche Schriften, II).
HERRMANN, Fabio. Clínica Psicanalítica: a Arte da Interpretação. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
HIMMELFARB, Gertrude. “The New History”. Commentary, Nova York, v. 59, p.
72-78, jan. 1975.
KANTOROWICZ, Ernst H. Kaiser Friedrich der Zweite. Düsseldorf / Munique:
Küpper-Bondi, 1927.
KLUCKHOHN, Clyde. “Recurrent Themes in Myths and Mythmaking”. Daedalus,
Harvard, v. 88, n. 2. p. 273-276, abr. 1959.
KRAFT-EBBING, Richard. Psychophatia sexualis. Mit besonderer Berücksichtigung
der Cöntraren Sexualempfindung. Eine klinische-forensische Studie. Stuttgart:
Ferdinand Enke, 1890.
LANGER, William. “The Next Assignment”. The American Historical Review, Nova
York, v. 63, n. 2, p. 283-304, jan. 1958.
LASLETT, Peter. The World we have Lost. Londres: Methuen, 1965.
LECLERCQ, Jean. Nouveau visage de Bernard de Clairvaux. Approches psycho-
historiques. Paris: Cerf, 1976.
LEFEVRE, Georges. O Grande Medo de 1789 [1932]. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
LE GOFF, Jacques. “Les mentalités. Une histoire ambiguë” [1974]. In: Jacques LE
GOFF e Pierre NORA (dir.). Faire de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011, p. 728-751.
LE GOFF, Jacques. Pour un autre Moyen Age. Paris: Gallimard, 1977.

38
revista de teoria da história 2 2020

Livro dos Cantares. Macau: Instituto Cultural de Macau / Aidan Publicities & Printing,
1990.
MALINOWSKI, Bronislaw. Sex and Repression in Savage Society. Londres: Kegan
Paul, Trench, Trubner & Co, 1927.
MANN, Thomas. “Die Stellung Freuds in der modernen Geistesgeschichte”. Die
psychoanalytische Bewegung, Viena, v. 1, n. 1, p. 3-32, maio-jun. 1929.
MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico [1954]. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978.
MAZLISH, Bruno. In Search of Nixon. A Psychohistorical Inquiry. Nova York: Basic
Books, 1972.
MENEZES, Luís Carlos. Fundamentos de uma Clínica Freudiana. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2001.
MICHELET, Jules. Histoire de France. Paris: Hachette, 1840, vol. 4.
MICHELET, Jules. Histoire de France. Moyen Âge, ed. Gabriel Monod. Paris: Ernest
Flammarion, 1893, vol. I.
MIGUEZ, José Antonio “La tragedia y los tragicos griegos”. In: Teatro griego.
Tragedias completas. Madri: Aguilar, 1978, p. IX-CXIII.
MIJOLLA, Alain de (dir.). Dictionnaire international de la psychanalyse. Concepts,
notions, biographies, œuvres, événements, institutions. Paris: Calmann-Lévy, 2002,
2 vols.
OAKESHOTT, Michael. Sobre a História e outros Ensaios [1983]. Rio de Janeiro:
Topbooks / Liberty Fund, 2003.
ONFRAY, Michel. Anti-Freud. E se lhe dissessem que Freud é uma fraude? Carnaxide:
Objectiva, 2012.
PFRIMMER, Théo. Freud, lecteur de la Bible. Paris: PUF, 1982.
QUINE, Willard. “The Two Dogmas of Empiricism”. The Philosophical Review,
Ithaca (NY), v. 60, p. 20-43. 1951.
QUIRING, Heinrich. “Der Traum von Descartes. Eine Verchlüsselung seiner
Kosmologie, seiner Methodik under der Grundlage seiner Philosophie”. Kant-
Studien. Philosophische Zeitschrift, Berlim, v. 46, n. 1-4, p. 135-156. 1954-1955.
RANKE, Leopold von. Geschichten der romanischen und germanischen Völker von
1494 bis 1514. Leipzig / Berlim: Reimer, 1824.
RÉMOND, René. “Le contemporain du contemporain”. In: Pierre NORA (org.),
Essais d’ego-histoire. Paris: Gallimard, 1989, p. 293-349.
ROBERT, François. Index général des Œuvres complètes de Freud. Paris: PUF, 2019.
ROUANET, Paulo Sérgio. Mal-estar na Modernidade: Ensaios. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
ROUANET, Paulo Sérgio. Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983.
SAFFADY, William. “Manuscripts and Psychohistory”. The American Archivist,
Chicago, v. 37, n. 4, p. 551-564, out. 1974.
SHAKESPEARE, William. Henry IV [1597]. In: The Plays and Sonnets of William
Shakespeare, ed. William G. Clarke e William A. Wright. Chicago / Londres:
Encyclopædia Britannica, 1978 (Great Books of the Western World, 26), p. 434-
502.

39
revista de teoria da história 2 2020

SHAKESPEARE, William. King Lear [1605]. In: The Plays and Sonnets of William
Shakespeare (Great Books of the Western World, 27), p. 244-283.
SPENCE, Donald P. Narrative Truth and Historical Truth: Meaning and Interpretation
in Psychoanalysis. Nova York: W. W. Norton, 1982.
STEINER, Georges. Os Livros que não Escrevi. Lisboa: Gradiva, 2020.
TALMON, Jacob L. Romantismo e Revolta. Europa 1815-1848. Lisboa: Verbo, s/d
[1969].
TOYNBEE, Arnold J. Um Estudo da História [ed. abrev. 1972]. Brasília / São Paulo:
Editora Universidade de Brasília / Martins Fontes, 1986.
VERNANT, Jean-Pierre. “Œdipe sans complexe” [1967]. In: VERNANT e Pierre
VIDAL-NAQUET, Mythe et tragédie en Grèce ancienne. Paris: Maspero, 1972, p.
77-98.
VEYNE, Paul. Comment s’écrit l’histoire. Essai d’épistémologie. Paris: Seuil, 1971
VOLTAIRE. “Histoire”. In: Denis DIDEROT e Jean le Rond D’ALEMBERT (dir.),
Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers.
Nêuchatel: Samuel Faulche, 1765, vol. 8, p. 220-225.
WHITE, Hayden. Metahistory, the Historical Imagination in Nineteenth Century
[1973]. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 8ª ed. 1993.
WHITE, Hayden. “Teoria Literária e Escrita da História”. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 7, n. 3, p. 21-48, jul. 1994.
WITTGENSTEIN, Ludwing. “Movements of Thought: Diaries 1930-1932, 1936-
1937”. In: Ludwig Wittgenstein in Public and Private Occasions, ed. James C.
Klagge e Alfred Nordmann. Lanham: Rowan and Littlefield, 2003, p. 3-255.
ZOLA, Émile. Correspondance, ed. Barend H. Bakker. Montréal / Paris: Presses
Universitaires de Montréal / CNRS, 1978, vol. I.
ZWEIG, Stefan. La guérison par l’esprit. Sigmund Freud [1931]. Paris: Stock, 1932.

SÓ IRMÃOS NÃO BASTA SER, MELHOR É SERMOS AMIGOS.


AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIA E PSICANÁLISE
ARTIGO RECEBIDO EM 25/08/2020 • ACEITO EM 17/11/2020.
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65243
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

40
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

O INESGOTÁVEL E
ELEGANTE TRABALHO
DA MEMÓRIA,
QUE RECONSTRÓI,
PERFORMA E ELABORA

RONALDO MANZI FILHO


FACMAIS
Inhumas | Goiás | Brasil
manzifilho@hotmail.com
orcid.org/0000-0001-7980-3997

MARIA LETÍCIA DE OLIVEIRA REIS


Psicanalista
São Paulo | São Paulo | Brasil
marileoliveira@hotmail.com
orcid.org/0000-0003-3790-7071

O presente texto visa repensar a compreensão da


autobiografia e do diário: memória, reconstrução e memória
performativa versus instantaneidade e tempo congelado.
Articulando a filosofia de Walter Benjamin, no que concerne
à perda de experiência do sujeito moderno e sua
incapacidade de narrar, trazemos ao debate a acepção de
memória em psicanálise e sua relação ao esquecimento e a
elaboração. A forma diário que domina as redes sociais nos
mostra uma mudança significativa de nossa forma de ser (de
nossa forma de lidar com nossa própria história), em que a
“sinceridade”, a exigência do imediato, seja o “mais real”. O
que está em jogo nessa mudança – de uma escrita de si que
era guardada à sete chaves à exposição de si diária nas redes
sociais?

memória – autobiografia – diário


reconstrução – perda da experiência

41
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

THE INEXHAUSTIBLE
AND ELEGANT WORK
OF MEMORY,
WHICH REMAKES,
PERFORMS AND
ELABORATES

RONALDO MANZI FILHO


FACMAIS
Inhumas | Goiás | Brazil
manzifilho@hotmail.com
orcid.org/0000-0001-7980-3997

MARIA LETÍCIA DE OLIVEIRA REIS


Psychoanalyst
São Paulo | São Paulo | Brazil
marileoliveira@hotmail.com
orcid.org/0000-0003-3790-7071

This text aims to rethink the understanding of autobiography


and diary: memory, reconstruction and performative
memory versus instantaneity and frozen time. Articulating
Walter Benjamin’s philosophy, regarding the loss of
experience of the modern subject and his inability to narrate,
we bring to the debate the meaning of memory in
psychoanalysis and its relation to forgetfulness and
elaboration. The diary form that dominates social networks
shows us a significant change in our way of being (in our way
of dealing with our own history), in which “sincerity”, the
requirement of the immediate, is the “most real”. What is at
stake in this change – from writing about yourself that was
kept under lock and key to the daily exposure of the self on
social networks?

memory – autobiography – diary


reconstruction – loss of experience

42
revista de teoria da história 2 2020

O começo do século XX foi marcado por uma reflexão sobre a perda da


experiência como insistiu Walter Benjamin. Por outro lado, as reflexões
psicanalíticas de Sigmund Freud, que são contemporâneas de Benjamin, nos
remetem a repensar o que compreendemos por memória. A questão de como
narramos nossa própria experiência não parece ser a mesma: há uma diferença
significativa entre as autobiografias e os diários que encontramos hoje nas redes
sociais. Esse texto busca discutir essa perda de experiência tal como trabalhada
por Benjamin em Experiência e pobreza (1933):

Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa
geração que entre 1914 e 1918 viveu numa das mais terríveis experiências
da história. Talvez isso não seja tão estranho quanto parece. Na época, já
se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo
de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros
de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não
continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno
não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente
desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a
experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a
experiência moral pelos governantes (Benjamin 1994, 115, grifo nosso).

A noção de experiência que nos interessa diz respeito a uma perda, como
a citação acima demonstra; e essa perda, da qual o sujeito moderno não mais
escapou, concerne a uma transmissão, a um falar de si. O sujeito perde sua
capacidade de narrar. Na citação anterior, não somente importa o que se perde,
mas como se perde: a forma como os combatentes voltavam silenciados
impressionou Benjamin porque se tratava de um momento de guerra, em que
deveriam ter o que dizer; em vez disso, eles se silenciaram. Aqui se abre um
campo discursivo vastíssimo, pois foi exatamente nesse contexto de guerra que
Freud escreveu importantes textos (sem ter conhecimento da obra de Benjamin),
demonstrando, debatendo e enfrentando as dificuldades das perdas do sujeito e de
suas próprias, ao longo da vida.

A METÁFORA DO ARQUEÓLOGO EM PSICANÁLISE


E O TRABALHO DA MEMÓRIA

Benjamin, em um trecho denominado Escavando e recordando que se


encontra em suas Imagens do pensamento, trata de uma forma de correlacionar a
memória, a história e a redenção do passado. Na verdade, Benjamin se inspira
em Sigmund Freud:

A língua tem indicado inequivocamente que a memória não é um


instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde
se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades
estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado
soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve
temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra,
revolvê-lo como se revolve o solo. Pois ‘fatos’ nada são além de camadas
que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa
a escavação. Ou seja, as imagens que, desprendidas de todas as conexões
mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso
entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador. E
certamente é útil avançar em escavações segundo planos. Mas é
igualmente indispensável a enxada cautelosa e tateante na terra escura. E
se ilude, privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe
assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho. Assim, verdadeiras
lembranças devem proceder informativamente muito menos do que

43
revista de teoria da história 2 2020

indicar o lugar exato onde o investigador se apoderou delas. A rigor, épica


e rapsodicamente, uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao mesmo
tempo, fornecer uma imagem daquele que se lembra, assim como um bom
relatório arqueológico deve não apenas, indicar as camadas das quais se
originam seus achados, mas também, antes de tudo, aquelas outras que
foram atravessadas anteriormente (Benjamin 1987, 239-240, grifo nosso).

A metáfora da arqueologia é utilizada bastante por Freud. Ele a escreveu


em vários momentos que uma forma de se imaginar a análise seria como a
descoberta de ruínas. Por exemplo, ao se encontrar uma cidade antiga,
encontramos pequenos vestígios, tais como vasos, cerâmicas, algumas
construções que indicam como essa cidade seria no passado. O trabalho do
arqueólogo seria uma forma de reconstrução desse passado a partir dessas ruínas,
desses traços deixados. Mas, obviamente, por mais que o arqueólogo seja astuto
em reconstruir essa cidade, ele jamais a reconstruiria tal como ela “foi na
realidade”. O trabalho do arqueólogo exige uma reconstrução que jamais poderá
ter qualquer verificação real se essa construção corresponde ou não ao que essa
cidade era.
Na psicanálise, segundo Freud, não seria diferente. O analisando, em sua
fala, traz pequenas ruínas de memórias, alguns traços, que devem ser
reconstruídos para que ele mesmo monte uma nova cidade – uma nova realidade
psíquica, no caso. Na verdade, Freud vê uma vantagem na psicanálise: mesmo
que não tenhamos acesso “à cidade tal como era” (“à memória tal como
aconteceu”), temos a possibilidade de reconstruir uma história com o analisando.
Essas ruínas foram ele mesmo que trouxe e ele mesmo pode criar algo com isso.
Assim, nada que é reconstruído pode ter qualquer verificabilidade. O que se tem é uma
ressignificação do passado a partir de traços. Eis porque Jacques Lacan, na
esteira de Freud, irá afirmar que: “A reconstrução histórica promovida pelo
tratamento não muda a história, mas a posição do sujeito em relação à sua
história.” (Lacan 1953, 21).
O analisando não se lembra senão de traços – aqueles que deixaram
marca. É verdade que nada está completamente destruído no aparelho psíquico;
o que encontramos são traços. E o que a pessoa traz à tona é uma seleção de
traços que ressignifica a sua própria história.
Mas Freud coloca um limite a essa analogia com a arqueologia:

[...] o objeto psíquico é incomparavelmente mais complicado que o


material do arqueólogo e nosso conhecimento não está suficientemente
preparado para o que devemos encontrar, pois a estrutura intima deste
ainda esconde muita coisa misteriosa. E nossa comparação dos dois
trabalhos chega ao fim, pois a principal diferença entre eles consiste em
que, para a arqueologia, a reconstrução é a meta e o fim dos esforços, e,
para a análise, a construção é apenas um trabalho prévio.
(Freud 2018, 331-332).

A análise seria mais complicada porque não tem também nenhuma


sequência lógica – ela caminha tal como vai aparecendo e vai sendo construído
não partes que se integram, mas uma reconstrução permanente a partir de cada
fragmento novo. Ou seja, um novo fragmento muda a estrutura do que se estava
construindo. Uma sessão de análise pode construir uma “cidade”
completamente diferente de outra sessão. Afinal, inaugurar uma nova forma de
relacionar com seu passado é uma função clínica que exige um trabalho (Arbeit).
A função das lembranças, do esquecimento, ou seja, a concepção da memória
no tratamento psicanalítico diz respeito a uma ressignificação possibilitada pelo
trabalho de elaboração (Durcharbeiten).

44
revista de teoria da história 2 2020

O que Freud propõe é que a convicção da verdade da construção tem o


mesmo valor que uma lembrança reconquistada – a construção vale como se fosse
real, isso porque a construção se vale de traços da memória (melhor dizendo,
“grãos de verdade”). É em relação a esses grãos de verdade que Freud tem o
intuito de associar a fantasia com a construção em análise. Essa análise de Freud
da memória inspira também Jacques Lacan a afirmar que:

As ciências e, sobretudo, as ciências em parto como a nossa, tomam


emprestado frequentemente modelos de outras ciências. Vocês não
imaginam, meus pobres amigos, o que devem à geologia. Se não houvesse
geologia, como chegaríamos a pensar que podemos passar, no mesmo
nível, de um leito recente a um leito anterior? Não faria mal, digo de
passagem, que todo analista comprasse um pequeno livro de geologia
(Lacan 1975, 88-89).

Um outro ponto a se notar é como a memória, ao ser reconstruída, pode


nos levar a agir de outra forma. É como se uma memória reconstruída fosse
capaz de nos mudar. Foi isso que foi denominado recentemente memória
performativa:

Memória performativa seria uma memória construída a partir de um


testemunho que tem o poder de mudar a forma de ser de uma pessoa. Ou
seja, mesmo que toda memória seja social, mesmo que seja uma
construção, nem todas as memórias construídas sob o testemunho de
outro tem a mesma potência no sujeito. Certas memórias simplesmente
preenchem lacunas que dão sentido ao que vivenciamos. Ao ressignificar
algo acontecido damos um novo sentido ao que pensamos sobre nós
mesmos, sem que tal memória tenha qualquer relação a um estado de
coisas. Por outro lado, certas memórias, como o sonho do Homem dos
lobos, podem ser ressignificadas num terceiro momento e modificam
nossa forma de ser – nada do que foi antes será o mesmo depois da
ressignificação desse tipo de memória. Ela teria um poder performativo
sobre a forma de ser do sujeito. Uma espécie de insight. Em análise, nem
sempre a construção de uma memória chega a ter tal poder. Mas em alguns
momentos, a simples construção de uma memória poderá modificar o que
somos, tal como na fala performativa: quando se diz ‘eu aceito’ (Manzi
2019, 39-40, grifo nosso).

A memória seria então ligada a uma reconstrução e a um ato


performativo. Poderíamos ainda lembrar de uma passagem curiosa de Maurice
Merleau-Ponty em que ele associa o fenômeno do membro fantasma com a
concepção de Marcel Proust de “busca do tempo perdido”.
Merleau-Ponty associa a questão de uma busca de um tempo perdido
com a quase-presença do passado. O mesmo aconteceria com o fenômeno do
membro fantasma: ele está quase-presente para o sujeito. Como se pudéssemos
descrever um personagem que encontra algum sentido na sua vida presente se
filiando a um tempo perdido:

45
revista de teoria da história 2 2020

O amputado sente sua perna como eu posso sentir vivamente a existência


de um amigo que não está, todavia, sob meus olhos; ele não a perdeu
porque continua a contar com ela, como Proust pode bem constatar a
morte de sua avó sem a perder ainda enquanto a conserva no horizonte
de sua vida. O braço fantasma não é a representação de braço, mas a
presença ambivalente de um braço. A recusa da mutilação no caso do
membro fantasma ou a recusa da deficiência na anosognose não são
decisões deliberadas, não se passam no nível da consciência tética que
toma posição explícita depois de ter considerado diferentes possíveis. A
vontade de ter um corpo são ou a recusa do corpo doente não são
formulados por eles mesmos, a experiência do braço amputado como presença ou
do braço doente como ausente não são da ordem do ‘eu penso que...’ (Merleau-Ponty
1967, 96, grifo nosso).

Ou seja, a forma de pensarmos o presente é ampliada: ela envolve a


quase-presença do passado. Há algo que deve ser destacado: aquele traço que
nos diz Freud. Merleau-Ponty o toma como “algo que devemos contar com”.
Jeanne Marie Gagnebin lê Proust de forma próxima: “busca das analogias e das
semelhanças entre o passado e o presente. Proust não reencontra o passado em
si – que talvez fosse bastante insosso –, mas a presença do passado no presente
e o presente que está lá, prefigurado no passado (...)” (Gagnebin In Benjamin
1994, 15).
Gagnebin nos traz essa reflexão ao pensar em Walter Benjamin. Isso lhe
possibilitava pensar a memória de outro modo, ligada à própria situação do
sujeito. Esta passagem de Ernani Chaves é bem esclarecedora:

[...] a obra proustiana não descreve uma vida tal qual ela foi – [...] – mas a
vida lembrada por aquele que a vivenciou – [...]. Em termos freudianos,
poderíamos dizer que o passado, evocado pelo adulto, se constitui sempre
numa ‘lembrança encobridora’: ‘Nossas lembranças de infância não nos
mostram os primeiros anos de vida como eles foram, mas como se
apresentam, posteriormente, na época de sua evocação’ (Chaves In Safatle;
Manzi 2008, 37-38).

Freud adverte na História de uma neurose infantil (1918) o cuidado quanto à


preocupação do analista quanto à fidedignidade das lembranças. A recordação
na cena da transferência pode expressar o desejo de retirar da lembrança algo
que seja relacionado à fantasia. Parece-nos que a preocupação de Freud quando
se ocupa com o que é visto, ouvido e experimentado no período pré-histórico é
recolher das lembranças a relação do sujeito com o seu desejo. É importante
pensar o porquê de a lembrança resistir à amnésia, assim como a natureza dessa
lembrança e o que ela tem que ver com o aparelho psíquico proposto por Freud.
A lembrança da infância de Goethe que resistiu à amnésia foi discutida
em sua autobiografia: Memórias, poesia e verdade (1811). Goethe, quando
perguntado sobre a lembrança do nascimento de seu irmão, diz se lembrar de
pegar algumas louças e jogá-las para fora da casa. Esse gesto, segundo Freud,
significava uma ação simbólica em atirar para fora o novo bebê de sua mãe. Esse
tipo de lembrança encobridora foi observado em outros pacientes de Freud. A
aparente coincidência da travessura semelhante em crianças que ganharam um
irmãozinho, segundo Freud, demonstra que talvez essa lembrança tenha
resistido à amnésia pelo valor simbólico de jogar para fora algo que não se quer.
Podemos propor que foi um resto psíquico que permaneceu na memória de
Goethe. Freud afirma:

46
revista de teoria da história 2 2020

Por regra geral resulta justamente, que a recordação que o analisando


antecede, a primeira a que ele se refere, aquela com a qual introduz a sua
biografia, demonstra ser a mais importante, a que oculta dentro de si a
chave dos armários secretos de sua vida anímica (Freud 1917, 143).

Voltando à forma de ausência apontada por Merleau-Ponty, apesar de


ser pouco provável que ele conhecesse a obra de Benjamin nessa época, não
deixa de soar uma proximidade clara entre ambos, ao menos nesse ponto. Basta
lembrarmos da passagem que encontramos nas últimas linhas da Fenomenologia da
percepção (1945): “assumindo um presente, eu retomo e transformo meu passado,
eu mudo seu sentido, libero-me dele, desembaraço-me dele” (Merleau-Ponty
1967, 519). Ou ainda, essa passagem de Benjamin: “Sabemos que Proust não
descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada
por quem a viveu” (Benjamin 1994, 37). É isso que nos lembra Paula Sibilia ao
comentar Proust:

Ele faz uma escavação nas camadas geológicas do seu eu passado, para
resgatar todo esse universo íntimo a fim de recriá-lo em seu presente como
uma obra de arte fictícia. Assim, preenchendo com a pluma milhares de
páginas, Proust pintou todas as ruínas e os tesouros de sua Roma particular
[lembrando da metáfora de Freud] (Sibilia 2016, 178).

O que vemos é: não há sentido em buscar uma verificabilidade entre o


que se lembra e o que de fato “poderia ter ocorrido”, mas o que vale para a
pessoa como real em suas reconstruções, ressignificações. O sentido que o
passado tem para nós não é o passado como foi vivido, mas como o tomamos
no presente (Cf. Merleau-Ponty 1967, 84). Lembremos de Freud: “Nossas
lembranças infantis nos mostram nossos primeiros anos não como eles foram,
mas tal como aparecem nos períodos posteriores em que as lembranças foram
despertadas” (Freud 1996, 304).
A história pensada a partir da psicanálise, é vivida enquanto memória
performativa: uma instauração de uma nova realidade a partir de uma
ressignificação do passado. Poder-se-ia, aliás, acompanhar Merleau-Ponty
quando ele nos diz que há uma deformação do passado: “deformo meu passado
evocando o presente, mas dessas deformações, posso ter em conta que elas me
são indicadas pela tensão que subsiste entre o passado abolido que viso e minhas
interpretações arbitrárias” (Merleau-Ponty 1967, 389). Lacan repete isso quase
com as mesmas palavras:

A história não é o passado. A história mostrou que isso não era tão
simples. A história é o passado na medida em que é historicizado no
presente – historicizado no presente porque ele foi vivido no passado. [...]
o fato de que o sujeito revive, se rememora, no sentido intuitivo da palavra,
os eventos formadores de sua existência, não é em si mesmo de tal
importância. O que conta, é que ele o reconstrói. [...] Diria – no fim das
contas, o que se trata, é menos de lembrar que de recriar a história.
(Lacan 1975, 19-20).

47
revista de teoria da história 2 2020

Poderíamos pensar assim: o sujeito sempre será interrogado pelo enigma


da morte; por sua vez, a escrita da experiência também diz respeito a um destino
estético para tais experiências, numa vida que vale a pena ser contada. Por isso,
poderíamos concluir com Christian Dunker:

Daí surge o impulso para o nascimento do gênero biográfico e


autobiográfico. Uma vida que sirva ao mesmo tempo de exemplo e que
inclua em si a própria atividade de narrá-la. Isso é tributário do cultivo,
principalmente entre os estóicos, da escrita de si (Dunker 2011, 221).

Temos, assim, uma incidência importante de mais um dos traços


formadores da noção de experiência: a escrita. A escrita memorialística apresenta-
se sob o signo negativo, ou seja, relacionado a um sofrimento de uma perda ou
uma ausência, como o luto de um objeto perdido ou o inapreensível de um
evento traumático, bem como pelo signo positivo de um acontecimento de
elaboração ou reconstrução.
É pensando nessa concepção de memória, reconstrução, ato
performativo etc., que é intrigante imaginar o que lemos em uma autobiografia.
Pensemos, primeiramente, o que a caracteriza.

A AUTOBIOGRAFIA
Tradicionalmente, o traço central de uma autobiografia é que o autor, o
narrador da história e o personagem são o mesmo. O narrador conta suas
memórias (do autor) tendo a si como personagem. A história é normalmente
contada em primeira pessoa e as histórias narradas seriam “verídicas”. Na
verdade, o que garante a “verdade” da história
é a assinatura do autor. Mas, pensando nessa ideia de reconstrução, seria isso
possível?
Em um livro recente, Sobre o declínio da ‘sinceridade’ – Filosofia e autobiografia
de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin (2006), Carla Milani Damião diz: “Sendo
o ‘eu’ uma criação, o compromisso de sinceridade do escritor com o leitor ou a
transparência dessa relação por meio de uma narrativa que pretende ser
verdadeira pode perder-se, e este é o risco que correria todo autor de memórias”
(Damião 2006, 150). O que aconteceu, afinal, com a sinceridade no discurso
autobiográfico?
É certo que a ideia de autobiografia se modificou profundamente desde
As confissões de Santo Agostinho até a contemporaneidade. O sujeito moderno,
tal como demonstrou Benjamin, tornou-se pobre em experiências comunicáveis.
Uma perda da qual o sujeito jamais escapou, tornou-se privado de sua biografia.
Lacan partilha essa ideia:

Não se trata de saber se falo de mim, de conformidade com aquilo que sou, mas
se, quando falo de mim, sou idêntico àquele de quem falo. E não há aqui
nenhum inconveniente em fazer intervir o termo ‘pensamento’. Pois
Freud designa por esse termo os elementos que estão em jogo no
inconsciente, isto é, nos mecanismos significantes que acabo de
reconhecer nele. Nem por isso deixa de ser verdade que o cogito filosófico
está no cerne dessa miragem que torna o homem moderno tão seguro de ser ele
mesmo em suas incertezas a seu próprio respeito, até através da desconfiança que
há muito aprendeu a praticar quanto às armadilhas do amor-próprio.
(Lacan 1957, 520, grifo nosso).

48
revista de teoria da história 2 2020

Agostinho, por exemplo, escreveu suas confissões tendo como


interlocutor, ninguém menos que Deus. Tudo que diz, se direciona a Deus.
Assim, dificilmente podemos acusar Agostinho de estar criando uma ficção ou
distorcendo a realidade – ao menos intencionalmente. E isso o impediria de estar
fazendo, no fundo, uma reconstrução de suas memórias, tal como propôs
Freud? Aliás, isso nos mostra que há uma diferença quando se escreve uma
autobiografia se pensarmos qual é o seu interlocutor: a sociedade; um amigo; um
padre; um analista etc. Sem contar que a forma de escrita de uma autobiografia
se modificou profundamente desde então. Maria Rita Kehl, por exemplo, nos
diz:

[...] o recurso à rememoração de modos de vida pré-modernos não é


nostálgico, como pensariam alguns de seus críticos. Não se trata de dizer,
melancolicamente, “antes é que era bom”, e sim de fazer lembrar que o
mundo “já foi diferente” – portanto, ainda pode mudar. Daí decorre a
aparente nostalgia sugerida em alguns textos de Walter Benjamin [...] Se
quiserem, podemos discutir ao final, o modo como este autor entende a
modernidade, inspirado na poesia de Baudelaire, como um tempo que é
sempre igual a si mesmo, portanto não apresenta nenhuma perspectiva de
transformação no horizonte. Esta é a melancolia moderna: viver diante de
uma eterna perspectiva de “mais do mesmo” – repetição que não produz
diferença. “Que tudo fique como está, esta é a catástrofe”, escreve ele num dos
ensaios sobre a melancolia em Baudelaire (Kehl 2014, 115, grifo nosso).

Nas Confissões de Rousseau, por exemplo, ele iniciava dizendo que é a


sinceridade o que guia toda sua escrita. Ser fiel na escrita ao que ele vivenciou e
que consegue lembrar (contando inclusive o que ele se envergonha de lembrar).
Mas se nos determos às suas ideias, vemos que ele defende que essa sinceridade
se limita a uma lealdade à fala, devido a uma impossibilidade de veracidade que
ele mesmo “confessa” não poder dar. Em outras palavras, assume que sua escrita
é uma ficção e não uma mentira. Memória e imaginação já se filiam, de certa
forma, nas confissões de Rousseau. Uma ideia que tornou forma na psicanálise,
principalmente devido a Jeremy Bentham, o que levou Jacque Lacan a pensar
que a verdade tem estrutura de ficção: “[...] a verdade, na medida em que seu
lugar não poderia ser aquele em que se produz a fala, a verdade por essência [...]
tem a estrutura de ficção” (Lacan 2006, 190).
Podemos dizer que desde 1899 Freud aponta para a memória enquanto
uma construção. Nesse momento, em Lembranças encobridoras, Freud a compara
com uma “obra de ficção”. Ao analisar cenas infantis de um relato clínico, ele
chega a essa conclusão (respondendo a um interlocutor, que hoje sabemos ser
ele mesmo, sobre a possível combinações de fantasias na memória):

49
revista de teoria da história 2 2020

Sim. Você projetou as duas fantasias uma na outra e fez delas uma
lembrança infantil. O elemento das flores alpinas [usada na descrição]
constitui, por assim dizer, um selo indicando a data da fabricação. Posso
garantir-lhe que as pessoas muitas vezes constroem essas coisas
inconscientemente – quase como obras de ficção. [O suposto analisando
diz:] – Mas, se é assim, não houve nenhuma lembrança infantil, apenas uma
fantasia recolocada na infância. No entanto, sinto que a cena é autêntica.
Como se explica isso? [Freud novamente, mas agora como o interlocutor
na posição de analista:] Em geral, não há nenhuma garantia quanto aos
dados produzidos por nossa memória. Mas estou pronto a concordar com
você em que a cena é autêntica. Nesse caso, você a selecionou dentre
inúmeras outras da mesma espécie ou não, porque graças a seu conteúdo
(em si mesmo irrelevante), ela se prestava bem para representar as duas
fantasias, tão importantes para você. Uma recordação como essa, cujo
valor reside no fato de representar na memória impressões e pensamentos
de uma data posterior cujo conteúdo está ligado a ela por elos simbólicos
ou semelhantes, pode perfeitamente ser chamada de ‘lembranças encobridoras’
(Freud 1996, 298).

Eis como Freud associa a memória com uma obra de ficção. Lembrando
que toda ficção tem um “grão de verdade” (assim como em toda fantasia há uma
correlação com algum traço mnêmico). Ou seja, nenhuma lembrança é
completamente sem correlação ao que foi acontecido – há sempre um traço de
verdade. Freud continua sua explicação sobre a fantasia em uma lembrança
encobridora:

Mas suponha agora que isso [que toda fantasia suprimida tende a deslizar
para uma cena infantil] não possa ocorrer, a menos que haja um traço
mnêmico cujo conteúdo ofereça à fantasia um ponto de contato – como
se andasse meio caminho até ela. Uma vez encontrado um ponto de
contato desse tipo [...], o conteúdo remanescente da fantasia é remodelado
com a ajuda de todos os pensamentos intermediários legítimos [...], até que
possa encontrar outros pontos de contato com o conteúdo da cena
infantil. É muito possível que, no decorrer desse processo, a própria cena
infantil também sofra mudanças; considero certo que também é possível
promover falsificações da memória dessa maneira. No seu caso [no caso
descrito com um interlocutor], a cena infantil parece apenas ter tido
algumas de suas linhas gravadas mais profundamente [...]. Mas a matéria-
prima era utilizável. Não fosse por isso, não teria sido possível que essa
lembrança particular, em vez de quaisquer outras, ganhasse acesso à
consciência. Nenhuma cena desse tipo lhe teria ocorrido como uma
lembrança infantil, ou talvez lhe ocorresse alguma outra – pois você sabe
como é fácil para nossa engenhosidade construir pontes de ligação entre
dois pontos quaisquer. [...] Logo, a fantasia não coincide completamente
com a cena infantil. Baseia-se nela apenas em certos pontos, e isso depõe
a favor da autenticidade da lembrança infantil (Freud 1996, 300-301).

Nesse caso, o analisando julga estar sendo sincera sua fala, mesmo que
tudo que diga se valha de deformações. Como disse, o que importa é que, para
ele, vale como se fosse real.
Algo com outro teor, mas não tão distante, encontramos em Charles
Baudelaire, quando afirma que parte de uma sinceridade artística (isto é, sem
pretensão de verificabilidade); ou em André Gide, quando resolve publicar seu
Diário, que parece ter mais em vista a apreciação pública de sua vida. Benjamim
chamava isso de “legalidade de recordação”

50
revista de teoria da história 2 2020

Gide, entretanto, escreve no dia 3 de janeiro de 1892 essa passagem:


“pode-se dizer, portanto, isto, que vislumbro como uma sinceridade vertida (do
artista): ele não deve narrar sua vida tal qual a viveu, mas vive-la tal como vai
narrá-la”. Ou seja, há uma relação intrínseca entre sinceridade, memória e ficção
confessa na concepção de autobiografia na contemporaneidade.
Podemos, aliás, lembrar de várias formas de descrever nossas memórias.
Damião, se baseando na obra de Miraux, faz essa lista:

- O diário: a grande diferença seria a imediacidade do relato, que não lidaria


com a memória, mas com a escrita do dia-a-dia. Não haveria também um
destinatário (exceções devem ser consideradas).
- Recordações (souvenirs): não é um projeto que visa ‘dizer tudo’ (tout dire).
Informa sobre acontecimentos dos quais o autor foi testemunha. Existe
uma certa confiança entre autor e leitor.
- Memórias (próximas do souvenir). O autor tem uma função de
testemunha, ele não é central e funciona como uma espécie de cronista.
- Ensaios e caderno de anotações (essais e carnets): a etimologia da palavra
ensaio é examinar, pesar, provar, conferindo um caráter especulativo ao
relato, no qual a experiência do mundo transformar-se-ia em uma
proposta universal. Exemplo de Essai encontra-se em Montaigne: relato
de experiências, encontros, leituras, fornecendo ao leitor a crítica e a
liberdade de interpretá-las. Baseia-se nos Carnets de Joubert (século XIX)
e de Camus (século XX), como exemplos para a seguinte característica:
relato que se funda em episódios da existência, dos quais se retiram
preceitos, análises gerais, máximas e aforismos (Damião 2006, 31-32).

Além dessas possibilidades, há pelo menos mais duas modalidades que


poderíamos acrescentar a essa lista: as confissões de Agostinho, Rousseau etc.; e
os texto de testemunha propriamente ditos, em que o autor descreve um
acontecimento a partir do que vivenciou, como no caso de Primo Levi e milhares
de outras testemunha dos campos de concentração, por exemplo.
Esse último caso nos parece mais difícil de analisar, porque o problema
aqui é, seguramente, a questão da verdade. O que foi vivenciado, é real; mas a
forma que relatamos o que vivenciamos também o é? Daí porque o gênero mais
difícil de ser contestado, a meu ver, é o do testemunho.
Quando Primo Levi escreve É isso um homem? (1947), passou-se anos até
que acreditassem naquilo que ele testemunhou. Por que? A questão da verdade,
aqui, deve ser repensada através do problema da história. Os próprios carrascos
nazistas sabiam disso:

Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos;
ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o
mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas, discussões,
investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque
destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas
provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão
monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros da
propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em
vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager.
(Wiesenthal In Levi 2004, 9).

51
revista de teoria da história 2 2020

Jeanne Marie Gagnebin analisa esse fato nessas palavras:

Essa ausência radical de sepultura é o avesso concreto de uma outra


ausência, aquela da palavra. Primo Levi insiste, desde as primeiras linhas
de Os afogados e os sobreviventes, sobre a vontade nazista de destruir a
possibilidade mesma de uma história dos campos. Eles deveriam se tornar
duplamente inenarráveis: inenarráveis porque nada que pudesse lembrar
sua existência subsistiria e porque, assim, a credibilidade dos sobreviventes
seria nula. O pesadelo comum que assombra as noites dos prisioneiros no
campo – retornar, enfim, à sua própria casa, sentar-se com os seus,
começar a contar o horror já passado e ainda vivo e notar, então, com
desespero, que os entes queridos se levantam e se se vão porque eles não
querem nem escutar e nem crer nessa narrativa –, esse pesadelo torna-se
cruelmente real logo após a saída dos campos e quanta anos mais tarde.
(Gagnebin 2009, 46).

A própria necessidade de Levi dizer ter de escrever e relatar o que


vivenciou já é uma forma de reconstrução dos terrores que ele vivenciou. Longe
de questionar a veracidade de suas histórias, o que quero dizer é que toda
narração de uma memória se vale de reconstruções. O que ele nos traz já é,
inclusive, uma forma de ele conseguir lidar com essa tragédia que ele nos relata,
pois toda vez que falamos sobre nosso passado, nós o ressignificamos.
Por outro lado, o homem moderno volta para a casa a noitinha extenuado
por uma mixórdia de eventos divertidos ou maçantes, banais ou insólitos,
agradáveis ou atrozes –entretanto, nenhum deles se tornou experiência (cf.
Agamben 2007, 8). Este cenário que Giorgio Agamben nos convida a entrar diz
respeito à relação entre o sofrimento individual e o social. Algo próximo nos diz
Dunker: “A experiência individual no sofrimento singular se expressa em falas
únicas, de preferência em primeira pessoa. Por isso é importante jamais separar
o sofrimento individual dos movimentos sociais que lhe deram origem” (Dunker
2015, 36).
Lembremos, aliás, que no trabalho com as histéricas, Freud havia
reconhecido que o sofrimento delas tinha uma relação com aquilo que estava
posto socialmente. Pensando sobre esse ponto, Vladimir Safatle faz uma
contraposição entre a solidão com o social: ela é uma tentativa de resistir a “ter
que ser um indivíduo” (Safatle apud Dunker 2015, 36). Entretanto, alguns
pensadores destacam como há uma passagem importante entre o que é uma
queixa de isolamento e as práticas de segregativas:

Obviamente há movimentos inibitórios que servem como tentativas de


isolamento, de criação de um espaço de risco zero e protegido, buscando
o velamento das dificuldades na relação do sujeito com os outros. Há
ainda práticas segregativas advindas do Outro [de um “outro” que não é
empírico, mas que supostamente nos pautamos], nas quais a solidão passa
a ser uma condição forçada (Tatit; Rosa 2013, 137, grifo nosso).

Isso nos indica como a condição forçada da solidão mostra como o social
produz uma linguagem própria em relação ao sofrimento. Diante da dificuldade
de nomeação, da impossibilidade de representação do real, os sobreviventes da
guerra voltavam silenciados; a partir disso, uma nova era se iniciou como nos
indica novamente Dunker: “Uma era na qual as articulações entre mal-estar e
sofrimento seriam reordenadas” (Dunker 2015, 25).

52
revista de teoria da história 2 2020

Conhecemos como Primo Levi, depois de sobreviver ao horror da


Segunda Guerra, volta para casa e tem um sonho recorrente: as pessoas
bocejavam à mesa, na hora do jantar e se levantavam e não se interessavam pelo
que ele tinha a dizer. Este fato, no testemunho de Levi, demonstra que mesmo
de volta à casa, o outro estava ausente, porque somente há alguém quando esta
escuta. Podemos lembrar de uma passagem de Freud que nos esclarece o que
está em jogo aqui:

Devo essa explicação sobre a origem do medo infantil a um garoto de três


anos, que escutei falar, certa vez, de dentro de um cômodo escuro: ‘Tia,
fale comigo; tenho medo, porque está muito escuro’. A tia exclamou: ‘De
que adianta? Você não está me vendo’. Ao que o menino respondeu: ‘Não
importa, quando alguém fala, fica claro’. – Ou seja, ele não tinha medo por
causa da escuridão, mas porque sentia a falta de uma pessoa amada, e podia
afirmar que se tranquilizaria tão logo obtivesse uma prova da presença dela
(Freud 2016, 146).

Não há forma mais clara de mostrar que a palavra traz uma outra forma
de presença que não é da ordem da imagem – do imaginário –, mas da ausência.
Afinal, a voz da tia, no escuro, reconhecia o medo da criança. O medo de não
ter o sofrimento reconhecido é tão nefasto quanto à impossibilidade de
nomeação do mal-estar. Para Levi, o lugar onde poderia surgir o conforto, o
apaziguamento da angústia, insistiu em ser, nos seus sonhos, um lugar silencioso
e solitário.
Importante notar que o trabalho como testemunha de Levi não é
vingativo, mas uma narração que ressignifica o que ele vivenciou, diferentemente
das experiências de ressentimento que vemos em muitos relatos autobiográficos.
Lembremos, por exemplo, do livro Ressentimento (2004) de Maria Rita Kehl. Em
um dado momento, ela observa que a incapacidade de esquecimento na filosofia
de Nietzsche é o agravo do ressentido – como se a memória fosse uma doença.
Por isso irá afirmar que mais vale viver em uma ilusão do que buscar uma suposta
verdade que diminua a potência vital. Em sua Segunda consideração intempestiva –
Da utilidade e desvantagem da história para a vida, Nietzsche afirma que o homem
deve aprender a esquecer para poder viver: “[...] dito de maneira mais erudita, a
faculdade de sentir a-historicamente durante a sua duração” (Nietzsche 2003, 9).
Não esquecemos exatamente aquilo que nos tira a potência de viver – o que nos
marca e não cessa de doer. O que Nietzsche propõe é:

[...] que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar
no tempo certo; que se pressinta com um poderoso instinto quando é
necessário sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico. Esta é
justamente a sentença que o leitor está convidado a considerar: o histórico e
o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo
e uma cultura (Nietzsche 2003, 11).

Assim, viver no ressentimento seria viver ruminando silenciosamente


alguma vingança: vingar de um outro que supostamente é a causa de seu
sofrimento; ser incapaz de superar o passado:

o ressentido é um escravo de sua impossibilidade de esquecer. Vive em


função de sua vingança adiada, de modo que em sua vida não é possível
abrir lugar para o novo. Mas como se trata de um vingativo passivo, seu
silêncio acusador e suas queixas contínuas mobilizam, no outro, confusos
sentimentos de culpa (Kehl 2004, 91).

53
revista de teoria da história 2 2020

Muito distante disso estão os escritos de Levi. Ele mesmo afirma que a
sua insistência em dar testemunho de Auschwitz se dá para que esse passado
jamais se repita – algo que também está no horizonte de pensamento de
Benjamin. Como analisa Gagnebin: “[...] ele precisa transmitir o inenarrável,
manter viva a memória dos sem-nomes [...] lutar contra o esquecimento e a
denegação é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se
reproduz constantemente)” (Gagnebin In Benjamin 1987, 47). Como se o
trabalho de Levi fosse de cuidar da memória dos que não podem falar – e essa
história contada pode trazer a potencialidade de transformar nosso presente.
Pensemos um outro exemplo. “Escrevi apenas aquilo de que me
lembrava” é a bela forma que Natalia Ginzburg encontrou para se desculpar das
lacunas em seu livro Léxico familiar. Sua sinceridade transborda a ponto de não
alterar os nomes e os fatos de suas lembranças – um texto baseado no ato de
recordar. Ginzburg, sobrevivente como Primo Levi, narra o mesmo
acontecimento de forma diferente. Nesse romance autobiográfico e em outros
ensaios, ela calcula a forma como contava as histórias, fazendo-as mais curtas, a
fim de ser escutada pelos irmãos mais velhos, impacientes. Assim, escreveu para
entrar nos diálogos, para incluir o outro, num exercício de com memorar. Assim, a
escrita de si, que por vezes pode ser tomada como narcísica ou solitária, ainda
assim, preserva a possibilidade de um interlocutor e um leitor. Mas, onde estaria
o “si mesmo”, afinal? Natalia faz de sua escrita uma experiência de reconstituição
de uma experiência, sem ressentimento ou tristeza, ela procura reconstituir sua
experiência. As casas em ruínas, não são abandonadas ou esquecidas para serem
reencontradas, como Pompéia. Elas adquirem valor justamente por serem ruínas
e pedras; pedras com nomes, preciosas, em uma memória reconstruída pela
linguagem: “Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em
nenhuma coisa que fazemos. E talvez este seja o único bem que nos veio da
guerra. Não mentir e não tolerar que os outros mintam em nós” (Ginzburg 2020,
64). Mas o paradoxo acerca da veracidade da memória não é desconsiderado pela
autora em outro momento: “A memória é lábil, e porque os livros extraídos da
realidade frequentemente não passam de tênues vislumbres e estilhaços de tudo
o que vimos e ouvimos” (Ginzburg 2018, 16).
Isso nos diz que há coisas que devem ser rememoradas, não porque
diminui nossa potência de vida, mas porque o passado ainda traz uma
potencialidade que não foi devidamente desenvolvida. Daí o interesse pela
história marginal como nos diz Gagnebin:

Esse narrador sucateiro [...] não tem por alvo recolher os grandes feitos.
Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo
que não tem significação, algo que parece não nem importância nem
sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer. [...] Ou ainda:
o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou
dominante, justamente não recorda. [...] pois não se trata somente de não
se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade
ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente
(Gagnebin 2009, 54-55).

Freud, em seus primeiros trabalhos, tem uma concepção de cura que nos
interessa aqui. Pensando na histeria, ele pensa que a conversão de um afeto no
corpo pode ser revertida se esse afeto “encontrar” seu conteúdo/sua
representação adequada e for “expresso”. Nesse sentido, podemos entender por
que Freud e Breuer dizem, em seu texto conjunto (Sobre o mecanismo psíquico dos
fenômenos histéricos de 1893), nesse momento, que o histérico sofre sobretudo de
reminiscências (cf. Freud; Breuer 2016, 25). Ora, o sujeito sofre por algo que

54
revista de teoria da história 2 2020

aconteceu; e o afeto vivido, por não ter tido uma cisão com sua representação,
converge ao corpo. É pensando nisso que Osmyr Faria Gabi Jr. escreve: para
Freud, “[...] o principal traço do patológico está na indistinção estabelecida entre
recordação e percepção, ou seja, a doença mental é caracterizada como sendo
basicamente alucinação” (Gabbi Jr. 2003, 53). Gabbi Jr. insiste nessa questão da
reminiscência: “A aproximação feita com a liberação sexual indica que não é
propriamente a vivência dolorosa que seria o protótipo do patológico, mas sua
recordação” (Gabbi Jr. 2003, 59).
Freud retoma essa questão da reminiscência posteriormente, também
pensando na ideia de cura. Ele afirma, por exemplo:

Seria abandonado o esforço vão de convencer o doente de que seu delírio


é louco e contradiz a realidade, e se buscaria encontrar, reconhecendo o
núcleo de verdade, um ponto em comum sobre o qual se desenvolvesse o
trabalho terapêutico. Esse trabalho consistiria em liberar o quê de verdade
histórica [cf. Freud 2018, 179] de suas deformações e seus apoios na
realidade presente e ajustá-lo ao lugar do passado a que pertence (Freud
2018, 342).

Eis como Freud tem agora em mãos “traços” de uma outra concepção
de verdade em vista: uma verdade que aparece em forma de delírio. Daí porque
ele conclui seu raciocínio com essas palavras que nos lembra de suas primeiras
formulações sobre as histerias: “[...] também o delírio deve sua força persuasiva
à parte de verdade histórica que põe no lugar da realidade rejeitada. Dessa
maneira, também ao delírio se aplicaria a frase que um dia usei apenas para a
histeria: que o doente sofre de suas reminiscências” (Freud 2018, 343). Ou seja,
o trabalho da análise seria superar essas reminiscências. Não negando o passado,
mas o ressignificando.
Resumidamente, podemos dizer: o que nós tomamos enquanto
realidade, nossa relação com o mundo, conosco, com os outros e com a nossa
história é uma construção psíquica sem qualquer necessidade de relação com a
realidade que podemos chamar de “material”. Em outras palavras, não há uma
pretensão de verificabilidade quando alguém conta uma história. O que a pessoa nos conta
é uma realidade para ela, mesmo que não tenha nenhuma conexão ao que
supostamente aconteceu. Por exemplo: duas pessoas podem contar sobre um
mesmo acontecimento sem que haja uma conexão lógica entre as histórias
contadas. O que é real para a pessoa é como o que foi vivido é ressignificado ao
contar essa história – vale como se fosse real sua fala. Assim, trata-se de uma verdade
que se ressignifica na própria experiência de vida – a todo momento damos um
novo sentido à nossa história, sem que se trate de um ato de má-fé, mentira ou
fingimento – é, literalmente, o que vale como real para a pessoa.
A importância da veracidade da fala ao narrar uma história é tão
fundamental, que alguns pensadores, como Giorgio Agamben, chegam a pensar
na origem da linguagem a partir da ideia de testemunha/juramento. Ou seja, os
homens, por serem infiéis, não tem credibilidade em sua fala. Para que um relato
seja confiável, é preciso um juramento. E esse juramento só é possível porque é
testemunhado por Deus. Sendo assim, a narração de uma história só pode ser
crível porque Deus testemunha a fala do orador. Dizer uma mentira sob a
testemunha de Deus, seria uma maldição; dizer algo sem que tenha um
juramento, é simplesmente uma blasfêmia. Quer dizer, o que garante a fala é a
testemunha de Deus.

55
revista de teoria da história 2 2020

Sobre a maldição, diz Agamben:

O que a maldição sanciona é o fato de não ocorrer a correspondência entre


as palavras e as coisas que estão em jogo no juramento. Quando se rompe
o nexo que une a linguagem e o mundo, o nome de Deus, que expressa e
garantia essa conexão ‘bem-dizente’, torna-se o nome da ‘mal-dição’, a
saber, de uma palavra que rompe a sua relação verídica com as coisas
(Agamben 2011, 52).

A dificuldade da questão para Agamben é que o juramento torna possível


que vida e linguagem se correspondam. É o nexo entre ações e palavras que nos
tornam humanos. Mas o que acontece quando a humanidade já não dá mais
crédito à fala – já a toma como um perjúrio, por ser incapaz de ser juramentada?

A FORMA DIÁRIO
Quando lemos uma autobiografia, a única credibilidade da fala é a
assinatura do autor. Daí porque Agamben destaca a partir de Prodi, que “[...]
somos hoje as primeiras gerações que vivem a própria vida coletiva sem o
vínculo do juramento [...]” (Agamben 2011, 81). Isso explicaria, em larga medida,
o desinteresse que temos pelas autobiografias e preferimos a forma “diário”, pois
o relato diário de acontecimentos parece mais fidedigno. Na verdade, uma
transformação que acompanha a ascensão da credibilidade na informação (algo
que supostamente tem uma verificabilidade imediata e não é necessária uma
interpretação) e não mais na narrativa (o que exige uma interpretação e, por isso,
pode estar sujeita ao “engano”). Agamben nos diz sobre isso:

Por um lado, o ser vivo agora está, cada vez mais reduzido a uma realidade
puramente biológica e à vida nua, e, por outro, o ser que fala, separado
artificiosamente dele, por uma multiplicidade de dispositivos técnicos-
midiáticos, em que a experiência da palavra cada vez mais vã, pela qual é
impossível responder e na qual algo parecido com uma experiência política
se torna cada vez mais precário (Agamben 2011, 81).

É sobre essa nova forma de ser do homem, que privilegia as informações


que gostaríamos de debater. Como observa Damião, há uma perda de interesse
pela autobiografia:

O diário particular ou íntimo tende a se tornar o gênero favorito do século


XX, o que ocorre por dois motivos: uma vontade de manifestação de
sinceridade e um desprezo pela literatura. [...] A falaciosa afirmação de que
‘os fatos falam por si mesmos’ passa a ser assegurada pelo jornalismo, que
não só rejeita a autobiografia, pela incerteza do relato, como afasta o
romance, por seu arcabouço fantasioso. [...] Há também um gosto pelo
fragmentário, pelo inacabado (Damião 2006, 69).

Podemos pensar essa transformação a partir de um estudo de David


Harvey denominado Condição Pós-Moderna (1989). Harvey busca, nessa obra,
mostrar as transformações que ocorreram na passagem da modernidade ao que
ele nomeia pós-modernidade. Ele destaca as transformações na cultura, na área
político-econômica e na experiência que temos do espaço e do tempo. Interessa-
me essa última transformação nessa reflexão.

56
revista de teoria da história 2 2020

O que Harvey destaca é uma transformação em nossa forma de vivenciar


o espaço e o tempo na contemporaneidade. É como se o tempo e o espaço
tivessem perdido sua “profundidade” e fosse vivida agora somente em sua
imediaticidade. Vivemos em um mundo que exige o presente; que não tolera a
frustração. “Afinal, a modernização envolve a disrupção perpétua dos ritmos
espaciais e temporais, e o modernismo tem como uma de suas missões a
produção de novos sentidos para o espaço e o tempo num mundo de
enfermidade e fragmentação” (Harvey 2001, 199).
O culto da enfermidade e fragmentação, da imediaticidade, constituem
nossa nova forma de ser: no trabalho, no lazer, no desejo, na linguagem etc. É
isso que vemos de forma mais clara se pensarmos em relação à concepção de
informação na contemporaneidade:

A forma de transmissão das informações é também acrônica porque não


indica as causas de um acontecimento, como se algo acontecesse fora de
situação, sem qualquer história, como se um crime fosse cometido, por
exemplo, sem ter causas sociais, políticas, culturais e históricas envolvidas.
Assim, a informação é dada de forma unicamente pontual – sem história,
e, consequentemente, sem consequências, sendo válido somente no
presente. É como se o espetáculo televisivo buscasse apagar a memória e
a capacidade de reflexão futura – a única coisa que interessa é o que é dado
‘no agora’. [...] Resultado: temos uma ilusão de informação! Temos a ilusão
de estarmos muito bem sabidos sobre todas as coisas que estão
acontecendo pelo mundo e isso de forma rápida e fácil – basta que não
percamos os noticiários diários. Tamanha é a ilusão que torna as pessoas
suficientemente capazes de repetir o que acham de todos os
acontecimentos, porque depois de ter visto as imagens e escutado alguém
‘competente’ fazer um comentário sobre o que foi apresentado,
incorporamos a fala da pessoa competente e dizemos agora “em nome”
da verdade. Sendo assim, o critério que temos para saber da veracidade de
um fato é a credibilidade que damos ao noticiário e ao âncora e/ou
comentador do programa, mesmo desconhecendo as causas do porquê do
acontecimento, ou sabendo de forma lacunar sobre o caso, simplesmente
tomamos como crível ‘que deve ser assim’. Temos, portanto, uma ausência
de referência de tempo e espaço, afinal, da história. As notícias são dadas
de forma rápida, mínima e inexata, sem contexto, sem história – só um
fato bruto [...] (Manzi 2019, 78-80, grifo nosso).

Poderíamos, aliás, vislumbrar essa mudança brusca de nossa relação com


o espaço e tempo se tomarmos a tese número 200 de Guy Debord em A sociedade
do espetáculo (1967). Nessa famosa passagem, Debord nos diz sobre um “grande
aparelho técnico de difusão de imagens”; que os homens de sua época não vivem
os acontecimentos. Conclui com essa passagem: “É porque a história ela mesma
assombra a sociedade moderna como um espectro, que encontramos da pseudo-
história construída em todos os níveis da consumação da vida, para preservar o
equilíbrio ameaçado do atual tempo congelado” (Debord 1992, 192). Ou seja,
vivemos em um tempo congelado, em que a única coisa que conta é o presente,
o instantâneo, como se o passado só valesse como “espectro”.
Eis porque a concepção freudiana de reconstrução do passado, de
ressignificação, ou a concepção de memória performativa se perde na
contemporaneidade para uma concepção de tempo congelado; de um passado
místico, porque não nos atinge; de uma sucessão de tempo. A forma mais clara
dessa sucessão de tempo se dá na forma diário que encontramos nas redes
sociais, em que todos os dias as pessoas postam o que fizeram, onde foram etc.
Ou na escrita de diários de celebridades – a forma diário, por ser escrita dia a
dia, parece mais com o “espírito” do imediato: o que pensei e fiz hoje. A vida
como um álbum fotográfico; a sensação que se tem é que o passado não é mais

57
revista de teoria da história 2 2020

válido; lembramos dele com nostalgia: passado como passado e não como algo
que se ressignifica no nosso tempo.
Os álbuns de fotografias nos lembram do que um dia Merleau-Ponty
criticou dos museus. A seu ver, o que uma obra de arte nos traz é um passado
da própria história de arte que é ressignificado em uma nova pintura. Uma
ressignificação, uma vez que se propõe um novo estilo. Assim, os museus seriam,
em certa medida, “corruptores” dessa reativação do sentido pois,

Enquanto que o estilo em cada pintura viveu como a pulsação de seu


coração e lhe tornou justamente capaz de reconhecer todo outro esforço
que o seu, – o Museu converteu essa historicidade secreta, pudica, não
deliberada, involuntária, vivente enfim, em história oficial e pomposa
(Merleau-Ponty 2000, 78).

Como se o passado não mais trouxesse uma potencialidade. Ou, como


diz Paula Sibilia: “[...] o passado ficou incapacitado para conceder inteligibilidade
ao caótico fluir do tempo, e também se tornou incapaz de explicar o presente e
a mítica singularidade do eu” (Sibilia 2016, 164).
Paula Sibilia publica em 2008, O show do Eu – A intimidade como espetáculo.
Esse livro é importante em nosso tema, porque descreve como a forma diário
se modificou. Antes, um diário era guardado a sete chaves (uma intimidade
inviolável); na contemporaneidade, fazemos a exposição de nossa intimidade.
De uma vida privada, passamos a uma vida pública. Ou seja, todos nós podemos
agora expor nossa intimidade; não só isso, expomo-nos e esperamos que as
pessoas “curtam” (uma aprovação social que se baseada em “curtidas”,
compartilhamentos, quantidade de seguidores). Daí porque não é estranha uma
inversão; por exemplo, um político passa a divulgar sua vida pessoal para ser
notado no espaço público: posta a si como um bom pai; bom marido; bom
amigo; como uma pessoa dinâmica; jovem etc. – literalmente se promove pela
sua imagem privada no espaço público. Mesmo que seja incompetente de ocupar
um cargo público, sua imagem vale mais do que sua suposta “competência”
(queremos saber da “vida real” do político – isso parece ser mais importante do
que ele propõe).
O que está por trás disso é uma nova forma de pensar a subjetividade –
não mais aquela subjetividade que se fechava em seu quarto para escrever um
diário ou para ler um romance, mas que investe em si, em sua imagem, e quer
imediatamente um retorno por esse empreendimento de si. Por isso, a melhor
forma de se expor é a imediaticidade de imagens e não uma autobiografia em
que não se tem nem mesmo “confiabilidade”. A imagem, por outro lado, “diz
tudo”; não mente!
Façamos, entretanto, um contraponto. Por um lado, uma escrita de um
diário que nos remete à ideia de experiência; por outro lado, que nos leva a
pensar numa “sinceridade performativa”. O primeiro exemplo é o que
encontramos, por exemplo, na publicação de Quarto de despejo de Carolina Maria
de Jesus. Com uma escrita “que lhe sangra”, tal como a de Ginzburg, Carolina
está às voltas com a falta, não no sentido de uma ausência, mas de uma dor de
existir ou de uma perda sob a forma da fome. O diário de uma favelada (subtítulo
do livro) foi um dos livros a ser apreendidos pelo Dops, no regime militar,
considerado subversivo por sua crítica social. É isso que nos diz Marise Hansen:

58
revista de teoria da história 2 2020

Mas entender a palavra como alimento, no caso de Carolina, leva à reflexão


sobre a premência de escrever, o alcance do papel da literatura, que, afinal,
pode garantir-lhe outra forma de existência e de fala. A palavra, portanto,
não só tem papel paliativo por ser desabafo solitário e alívio para a
angústia, mas guarda a “potência de poder” de vir a público e tornar-se
voz no campo literário, o que pressupõe eternização (uma vez que é
escrita) e instrumento de denúncia (Hansen 2020, 29).

A vida privada na intimidade do barraco na favela, se transforma numa


escrita que busca uma saída: “6 de agosto, fiz café para João e José Carlos que
hoje completa 10 anos. E eu apenas posso lhe dar os parabéns, porque hoje nem
sei se vamos comer” (Jesus 2014, 106).
Por outro lado, podemos destacar como vivemos em um mundo em
rede, em que a visibilidade se tornou o alvo central nas relações interpessoais.
As redes sociais incentivaram essa visibilidade, inclusive pagando aos
consumidores que mais são assistidos, incluindo propagandas nos acessos.
Enfim, criou-se uma nova profissão (celebridade da internet) ao tornar alguns
jovens milionários por exporem sua vida diariamente (“não se lava mais roupa
suja em casa”, diríamos, mas na frente das câmaras, com milhares de
espectadores). Quer dizer, vivemos uma nova forma de vida baseada na mídia e
no mercado – em que naturalizamos essa forma de ser; e somos incentivados a
ser a celebridade do momento:

Gerou-se, assim, um verdadeiro festival de vidas privadas que oferecem


despudoradamente aos olhares do mundo inteiro. As confissões diárias de
você, eu e todos nós estão aí, em palavras e imagens, à disposição de quem
quiser bisbilhotá-las. Para isso, basta apenas um clique do mouse; e, de
fato, tanto você como eu e todos nós costumamos dar esse passo (Sibilia
2016, 52).

Passamos de uma subjetividade “interiorizada” para o que Sibilia


denomina show do eu. Isso modifica bastante a forma de pensarmos o homem;
não mais aquele homem que se fecha no quarto para ler intermináveis páginas
em total concentração, para pessoas que não suportam mais ler, senão através
de imagens – como se a imagem revelasse toda a verdade do eu, num instante
que é apreendido pela câmera. Assim como os pequenos comentários da vida
cotidiana, que não ultrapassam meia dúzia de frases: “A vida real, então, é
convidada a performar e a se realizar em cena: de preferência, na visibilidade das
telas” (Sibilia 2016, 249). Cuidar de si, nesse contexto, é cuidar de sua imagem:
“para se fortalecer [o eu] e para constatar a sua existência, portanto, ele deve
tornar-se visível e compartilhar a sua vida nas vitrines do mundo” (Sibilia 2016,
286). Essa nova realidade parece mais convincente e inclui todos: nós podemos
virar espectadores e celebridades. Assim,

[...] as atividades em grupo são tidas como mais criativas e produtivas do


que o clássico trabalho individual em solitária concentração. E a
capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo é mais estimulada e
premiada que a habilidade de focar a atenção numa tarefa contínua e
persistente. A abrangência inédita desse tipo de mudanças socioculturais
pode levar, inclusive, a questionar se o transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade, conhecida como TDA/H, não seria mais bem
compreendido como um traço característico das novas subjetividades –
perfeitamente compatível com o mundo em que vivemos, e até mesmo
por ele incitado –, em vez de uma estranha epidemia infantil.
(Sibilia 2016, 78).

59
revista de teoria da história 2 2020

Cuidar da imagem de si para os expectadores acompanha perfeitamente


a mudança do privado ao público. Isto é, o que vemos é uma performance de si
no espaço público. Ou, em outros termos, há uma conquista da visibilidade
pública da vida privada, como se fizéssemos da confissão o valor maior de nossa
sociedade – a pretensão de mostrar “tudo”, de forma imediata e sem cortes;
como se vivêssemos em uma casa de vidros e fizéssemos uma autopromoção
constante (uma forma de “tirania da visibilidade”). “O luxo estava nas coisas; de
agora em diante, ele está no indivíduo. [...] ser apenas si mesmo” (Ehrenberg
2010, 37) – diz Alain Ehrenberg.
Isso está diretamente relacionado ao espírito empresarial de nossa época.
Ehrenberg, por exemplo, escreve O culto da performance – Da aventura empreendedora
à depressão nervosa (1995). Ele parte da questão da performance:

[...] a única questão é que hoje o indivíduo comum não deve mais se
acomodar com esses devaneios: exige-se dele que aceda verdadeiramente
à individualidade por meio de uma passagem à ação. A democratização do
aparecer não está mais limitada ao confortável consumo da vida privada:
ela invadiu a vida pública sob o viés de uma performance que impulsionava
cada um a se singularizar, tornando-se si mesmo (Ehrenberg 2010, 11).

Mas esse viés performativo é mais bem visualizado na figura do


empreendedor – esse seria o modelo do herói que assume riscos, que busca
desafios, que busca a vitória a qualquer preço em uma sociedade em que todos
querem ser visualizados – em uma sociedade de concorrência.
É como se tivéssemos perdido qualquer referencial de ideal, sendo nós
mesmos o único ideal – um indivíduo que governa a si mesmo; que tem vontade
de ganhar; de ser herói de si mesmo (é essa a máxima visibilidade); de ser
empresário da própria vida.

Hoje, cada um, independentemente de onde venha, deve realizar a façanha


de tornar-se alguém por meio de sua própria singularização. Essa exigência
implica não em uma identificação com um modelo superior estabelecido
a priori, mas – com o pobre sendo livrado de uma indigência e o capitalista
do capital – em forjar seu próprio modelo: ser bem-sucedido em ser
alguém é empreender tornar-se si mesmo (Ehrenberg 1995, 172).

Poderíamos mesmo afirmar que entramos em um encantamento da vida


cotidiana (a vida real, relatada em diários na rede), pois todos podem fazer de si
um ideal e o modelo possível de autorrealização. Essa aventura estaria ao alcance
de “todos”, pois basta realizar uma espécie de pedagogia de si (ser único/autêntico).
“Dizem-nos”, afirma Ehrenberg, “que tudo é possível em todos os domínios de
atividade, desde que se tenha vontade de ganhar” (Ehrenberg 1995, 48).
E o que isso significa esse valor mais celebrado: ser bem-sucedido?

60
revista de teoria da história 2 2020

O que é ser bem-sucedido? Essa é uma questão que lembra uma outra:
por que o sucesso se refere ao empreendedor? Ser bem-sucedido, hoje, é
poder inventar seu próprio modelo, desenhar sua unicidade, ainda que
idêntica à de todos os outros. Ser bem-sucedido é tornar-se si mesmo
tornando-se alguém. Ser si mesmo, ser alguém: injunções banais e, no
entanto, misteriosas que deveriam situar-se em registros aparentemente
separados, até opostos, da identidade pessoal e da visibilidade social, da
esfera privada e da esfera pública – como se sabe que se é si mesmo?
Diante de quem se reconhece que se é alguém? Essas duas questões
entram hoje numa relação inédita que assimila, numa mesma retórica, a
conquista de sua identidade pessoal à de ascensão pública, a busca de
autenticidade à da visibilidade. Dinâmica dupla de exteriorização do
íntimo – isso seria sua ‘publicização’ – e de incorporação do social – isso
seria sua ‘privatização’ – que forma a trama da ambição contemporânea
(Ehrenberg 2010, 50).

Ser bem-sucedido é criar sua própria história, independentemente de


qual classe social o indivíduo viva. Não há mais mérito em ser “filho de... x ou
y”; é preciso criar sua própria identidade por suas ações: “essa ficção é aquela do
indivíduo puro, que não tem outra referência e outra origem que não si mesmo,
que é apenas o filho de suas próprias obras. É o sonho igualitário de hoje e é o
desejo mesmo de ser sujeito” (Ehrenberg 1995, 72). Não por acaso, o discurso
das pessoas bem-sucedidas é de autenticidade e influência: ser você mesmo;
investir em si; ser sincero (fazer uma performance de si) – é isso o que lhe faz
ser reconhecido. Há, assim, a reivindicação de sinceridade, de ser o mais “real”
possível – algo que está muito próximo da confiabilidade das informações: o que
pode ser verificável. Uma celebridade na internet é, curiosamente, uma espécie
de artista sem obra: não importa exatamente o que você faz, mas o que
supostamente é; é-se famoso por ser sincero e por mostrar sua vida “tal como ela é”
e não por ter feito algo em específico.
A exposição do que supostamente é real é o que convoca a presença de
infinitos programas confessionais, em que se entrevista a celebridade na casa
dela, por exemplo, mostrando seu dia a dia. Ou o sucesso dos reality shows:

As estrelas do show business são os modelos de ação que nos fazem pensar
que podemos todos ser nosso próprio modelo. Essas figuras são únicas, como todo
mundo; somos todos únicos, como cada um dentre todos. Entre estes e
nós, não há nenhuma superioridade, mas uma diferença de visibilidade
(Ehrenberg 1995, 75).

Essa “diferença de visibilidade” é o fundamental: criar uma autoimagem


é uma exigência de escolha de uma individualidade que seja invejável por outros
– um ideal empresarial por excelência, pois na empresa, ser um empreendedor
de suas próprias metas e tarefas, ser parceiro da empresa e não um simples
funcionário que segue ordens, eis o que se torna um indivíduo bem-sucedido.
Não esqueçamos que o mais visível é o nosso corpo. É o que Maria Rita
Kehl já nos alertava em seu texto Com que corpo eu vou?:

Que corpo você está usando ultimamente? Que corpo está representando
você no mercado das trocas imaginárias? Que imagem você tem oferecido
ao olhar alheio para garantir seu lugar no palco das visibilidades em que se
transformou o espaço público no Brasil? Fique atento, pois o corpo que
você usa e ostenta vai dizer quem você é (Kehl In Bucci; Kehl 2004, 174).

61
revista de teoria da história 2 2020

Daí uma crença de nunca envelhecermos – de vivermos em um tempo


congelado, um eterno presente.
Afinal, ser bem-sucedido; ser herói de si mesmo etc., – todos esses ideais
participam de uma concepção de visibilidade que é contemporâneo da perda da
narrativa: é preciso ser bem-sucedido a todo custo; é preciso entrar no que Sibilia
denominou show do eu. Com essa mudança, a forma diário (“o que fiz hoje”) é
a mais bem-sucedida entre nós. Com isso, não mudamos somente da
autobiografia ao diário, mas nossa forma de ver o mundo – do eu que narra a
um eu que descreve; de um eu leitor a um eu receptor de imagens; etc.
Sendo assim, a memória pensada como ressignificação, reconstrução e
memória performativa, dá lugar a um eu que é puro aparecer – a-histórico e
atemporal; uma imagem a ser apreciada momentaneamente. Tal deslocamento
acompanha a concepção de verdade enquanto verificabilidade, tal como se prega
na ideia de informação. A forma diário ganha aqui seus contornos mais claros:
cada dia é cada dia, sem ligação com um passado que possa nos transformar; um
dia não tem relação necessária com outro, pois vivemos em um mundo
fragmentado, instantâneo, em que tudo muda completamente. O que importa é
o aqui e agora que é registrado a todo momento e não trabalhado, narrado,
ressignificado. A metáfora arqueológica de Freud se desfaz para um presente
contínuo: o que tem sentido é somente o que é visualizado no instante e se perde
para outro instante, sem uma relação senão de fragmentos de um tempo
presente. A ideia de uma busca de um tempo perdido se desfaz para “retalhos
de instantes”. O que está por trás disso é uma tese de que o passado perdeu toda
sua potencialidade: é como se toda sua potencialidade já estivesse em ato, presente e, por
isso, olharíamos para o passado como algo simplesmente distante, sem potência.
O diário comprimindo passado e futuro, no “um dia de cada vez” nas
dificuldades do mundo.
O que vemos é uma utopia de se pensar o cérebro como um arquivo de
computador: vários dados que podem ser agrupados ou deletados quando quiser
– como se exigíssemos que o passado não mais interferisse em nossa vida, tal
como a lembrança de um casamento desfeito, de uma passagem da vida que não
gostamos de lembrar. Ou seja, um cérebro em que pudéssemos escolher os
arquivos que nos “interessam”, eliminando tudo o que consideramos
desagradável – mais ou menos como arrancar as páginas de um diário de coisas
que arrependemos de termos escrito.
Quem não se lembra de Joel, personagem do filme Brilho Eterno de uma
Mente sem lembranças (2004) que, apaixonado e abandonado, resolve contratar a
empresa Lacuna para extrair de seu cérebro suas lembranças com a mulher
amada e perdida? A ideia principal aqui é considerar a capacidade de esquecer, a
fim de interromper o sofrimento. Isso nos diz algo fundamental: não é uma
escolha querermos ou não esquecer de algo. Joel precisa se lembrar para
esquecer, e nesse processo de recordação, se arrepende, pedindo para salvar as
lembranças boas dos momentos felizes com Clementine. Assim, temos um
paradoxo: precisamos lembrar para esquecer: encontramos o problema
freudiano original acerca das relações entre o lembrar e o prazer/desprazer.
Entre esquecer o desprazer e lembrar o prazer, como funciona a seletividade da
memória? Essa é a pergunta que levará Freud a formular o recalcamento e a
concepção do trauma. A dinâmica do lembrar, refere-se, portanto, à economia
da lembrança, que ora serve ao desejo de esquecer, como no trabalho de luto,
ora à necessidade de recordar.

62
revista de teoria da história 2 2020

Gostaríamos de concluir lembrando do belo escrito de Benjamin


denominado Comida: omelete de amoras (1930) (cf. Benjamin 1986, 186). Ora, o rei
exige de seu cozinheiro que reproduza exatamente a mesma omelete de amoras
que comeu após uma fuga em uma guerra e que foi feita por uma velha senhora
no momento que o rei e seu pai estavam quase sucumbindo de fome e cansaço.
A memória dessa omelete é “clara” para o rei; é essa realidade que ele exige que
seja reproduzido por seu cozinheiro (ameaçando-o de morte, caso não consiga
fazer tal omelete). Sábio, o cozinheiro está certo de que seria incapaz de
reproduzir a memória do rei, mesmo conhecendo todos os segredos de uma
omelete de amoras (e pede para ser morto imediatamente). Todo o sabor está
em sua memória e nenhuma omelete poderia ser suficientemente “completa”
para ter o sabor do perigo da batalha, a cautela do perseguido, o calor do fogo
etc., – tudo aquilo que é simbolicamente eficaz nessa omelete. O que é real para
o rei, sua construção de uma memória de um sabor, é inacessível para um
cozinheiro reproduzir (e por isso, talvez, o rei perdoa o cozinheiro por não
tentar), senão saboreado por uma narração que provavelmente só nos traz um
rasto do que o rei lhe exigia – a reconstrução de uma cidade antiga, em que
encontramos somente alguns vestígios...

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento (Homo Sacer II,


3). Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Trad. Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana
Hidalgo editora, 2007.
BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Trad.
Celeste H. M. Ribeiro de Sousa (Et al.). São Paulo: Cultrix: Editora da USP, 1986.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo
Rounanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II – Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues
Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004.
DAMIÃO, Carla Milani. Sobre o declínio da “sinceridade” – Filosofia e autobiografia de Jean-
Jacques Rousseau a Walter Benjamin. São Paulo: Loyola, 2006.
DEBORD, Guy. La Société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.
DUNKER, Christian I.L. Estrutura e constituição da clínica psicanalítica. São Paulo:
Annablume, 2011.
DUNKER, Christian I.L. Christian I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo:
Boitempo, 2015.
EHRENBERG, Alain. O culto da performance – Da Aventura empreendedora à depressão
nervosa. Trad. Pedro Bendassolli. Aparecida: Ideias & Letras, 2010.
EHRENBERG, Alain. La fatigue d’être soi – Dépression et société. Paris: Odile Jacob, 1998.

63
revista de teoria da história 2 2020

FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo, Compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939)


– Vol. 19. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2018.
FREUD, Sigmund. Primeiras publicações psicanalíticas (1893-1899) – Vol. III. Trad. sob a
direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Análise fragmentaria de uma
histérica (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905) – Vol. 6. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2016.
FREUD, Sigmund; BREUER, Josef. Estudos sobre a histeria (1893-1895) – Vol. 2. Trad.
Laura Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
GABBI JR., Osmyr Faria. Notas a projeto de uma psicologia – As origens utilitaristas da
psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2009.
GINZBURG, Natalia. Léxico familiar. Trad. Homero Freitas São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.
GINZBURG, Natalia. As pequenas virtudes. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo:
Companhia das Letras, 2020.
HANSEN, Marise. Os laços que unem Clarice e Carolina. In: HANSEN, Marise. Revista
Quatro cinco um (Folha de São Paulo). São Paulo, agosto de 2020.
GOETHE, Johann W. von. Memórias: poesia e verdade. Trad. Leonel Vallandro. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1999.
HARVEY, David. Condição Pós-moderna – Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Trad. Adail Sobral; Maria Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2001.
JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 2014.
KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
KEHL, Maria Rita. Maria Rita. História e Repetição. In: Os paradoxos da repetição.
Organizadora: Dominique Finguermann. São Paulo: Annablume, 2014.
LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In:
Escritos. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: JZE, 1998.
LACAN, Jacques. Le Séminaire I – Les Écrits Techniques de Freud (1953-1954). Paris: Seuil,
1975.
LACAN, Jacques. Le Séminaire XVI – D’un Autre à l’autre (1968-1969). Paris: Seuil, 2006.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Sérgio Henriques. São Paulo: Paz e
Terra, 2004.
MANZI, Ronaldo. Uma leitura sobre ideologia, mídia e educação – O que é real e o que é ficção?
Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
MANZI, Ronaldo. Memória, ato performativo e patologia do social – De permeio com a filosofia, a
psicanálise e a literatura. Curitiba: Kotter, 2019.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1967.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Signes. Paris: Gallimard, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva – Da utilidade e desvantagem da
história para a vida. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2003.

64
revista de teoria da história 2 2020

REIS, Maria L. de O. Infância e memória. Histórias de psicanálise com crianças. Curitiba:


Editora CRV, 2016.
REIS, Maria L. de O. Da experiência de perda à perda de experiência: um estudo sobre a
Erfahrung na teoria psicanalítica, na filosofia e na clínica. 2015. Tese (Doutorado em
Psicologia Clínica) - Instituto de Psicologia, University of São Paulo, São Paulo,
2015. doi:10.11606/T.47.2015.tde-29092015-165550. Acesso em: 16 ago. 2020.
SAFATLE, Vladimir; MANZI, Ronaldo (Orgs.). A filosofia após Freud. São Paulo:
Humanitas, 2008.
SIBILIA, Paula. O show do Eu – A intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,
2016.
TATIT e ROSA. Pra não dizer que Freud e Lacan não falaram de solidão. Revista
Psicologia e Saúde. São Paulo, v. 5, n. 2, p. 136-143, jul./dez. 2013.

Filmografia
ETERNAL Sunshine of The Spotless Mind (2004). Direção: Michael Gondry. Roteiro:
Charlie Kaufman.

O INESGOTÁVEL E ELEGANTE TRABALHO DA MEMÓRIA,


QUE RECONSTRÓI, PERFORMA E ELABORA
ARTIGO RECEBIDO EM 19/08/2020 • ACEITO EM 10/11/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65108
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

65
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

A ANGÚSTIA DE
ADÃO NA AMÉRICA
MARIA BERNARDETE RAMOS FLORES
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis | Santa Catarina | Brasil
mbernaramos@gmail.com
orcid.org/0000-0002-9438-031X

A viagem metafísica de Adán Buenosayres, protagonista da


novela de mesmo nome, escrita pelo poeta argentino
Leopoldo Marechal, provocou o encontro com Xul Solar e
Ismael Nery, o primeiro, argentino e o segundo, brasileiro. A
tônica do encontro fundou-se na arte marcada pela estética
da angústia, de raiz cristã-adâmica-kierkegaardiana, própria
da linguagem dos poetas e pintores que comunicaram o
desassossego no mundo contingente, e desejaram
transcender o tempo e o espaço, à busca do Paraíso perdido
ou da infância da humanidade. A arte metafísica foi a
linguagem estética que ajudou o artista agônico a reconectar-
se com o infinito e a encontrar a essência da humanidade. O
afeto agônico que irrigou a arte de Leopoldo, Xul e Ismael,
alçados aqui a signos da angústia na América, é parte da
ansiedade cultural que se dá no plano psíquico no quadro da
civilização ocidental. Portanto, a arte metafísica de traço
agônico, praticada na América, vem da mesma fonte, a fonte
bíblica, que irrigou a angústia na metrópole, a Europa.

angústia – arte metafísica – Kierkegaard

66
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

THE ANGUISH OF
ADAM IN AMERICA
MARIA BERNARDETE RAMOS FLORES
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis | Santa Catarina | Brazil
mbernaramos@gmail.com
orcid.org/0000-0002-9438-031X

The metaphysical journey of Adán Buenosayres, protagonist


of the novel of the same name, written by the Argentine poet
Leopoldo Marechal, caused the encounter with Xul Solar
and Ismael Nery, the first, Argentine and the second,
Brazilian. The focus of the meeting was based on art marked
by the aesthetics of anguish, of Christian-Adamic-
Kierkegaardian roots, typical of the language of the poets
and painters who communicated restlessness in the
contingent world, and wished to transcend time and space,
in search of the lost Paradise or the childhood of humanity.
Metaphysical art was the aesthetic language that helped the
agonic artist to reconnect with the infinite and to find the
essence of humanity. The agonic affection that irrigated the
art of Leopoldo, Xul and Ismael, raised here to signs of
anguish in America, is part of the cultural anxiety that occurs
on the psychic plane within the framework of Western
civilization. Therefore, the agonistic metaphysical art,
practiced in America, comes from the same source, the
biblical source, which irrigated the anguish in the metropolis,
Europe.

anguish – mataphisical art – Kierkegaard

67
revista de teoria da história 2 2020

Por que a história de Adão e Eva – que ocupa cerca de uma página e meia
das 1078 que compõem uma edição moderna da Bíblia, sobre minha mesa
– se impõe com tanta eficiência e com tanta facilidade? (...) ... esses poucos
versículos num livro antigo têm servido de espelho no qual parecemos
vislumbrar a longa história de nossos medos e desejos.
(Greenblatt 2018, 13).

É profunda a raiz desse desassossego ... não há dúvida de que o ápice do


itinerário do protagonista é o da noite em frente à igreja de San Bernardo,
e a crise de Adán sozinho em sua angústia, sua sede de unidade. (...) ...
Adán toca o fundo da angústia ocidental contemporânea. ... sua horrível
náusea diante do Cristo da Mão Quebrada toca e se reconcilia com a
náusea de Roquentin no jardim botânico e a de Mathieu nos cais do Sena.
(Cortázar 1949, 232)1.

Quando comecei a pesquisa sobre Xul Solar, em 2009, por ocasião de


um estágio pós-doutoral em Buenos Aires, na Universidad de San Martin, as
fontes me diziam que a novela Adan Buenosayres de Leopoldo Marechal,
publicado em 1948, era um “retrato” do artista argentino. Pus-me a ler o grosso
volume de 740 páginas, que encontrei numa loja de livros usados, uma edição
espanhola, em Barcelona, de 1981, e já nas primeira páginas suspeitei que havia
ali fios que me conectavam a Ismael Nery, pintor brasileiro que era tema de
minha pesquisa no Brasil. E, se à princípio não identifiquei exatamente um
“retrato” de Xul Solar, na paródia que Marechal faz do artista na figura do
personagem “o astrólogo Schultze”, percebi que havia alguma identidade
artística entre Ismael, Xul e Leopoldo, três artistas das vanguardas latino-
americanas.
Ismael Nery (1900-1934), produziu poesia, desenho e pintura, além de
um sistema filosófico denominado Essencialismo. Dividido entre erotismo e
sensibilidade extremada, era um homem de peculiar inquietação existencial.
Místico, compartilhou com a mãe, a angústia pelo pecado não praticado ou pela
dor não resolvida. Considerado o “pintor maldito” (Bento 1973, 9) do
modernismo brasileiro, não atendeu ao ideário imagético do Brasil nacionalista.
Na pintura de autorretratos, do casal (em geral, ele e a esposa) e da triangulação
de figuras, de traços andróginos, Ismael procurava a essência humana, a
abstração do tempo e do espaço, os mistérios da relação entre finitude e
infinitude da vida, a unidade sexual perdida com a queda do Paraíso adâmico.
Xul Solar (1887-1963), também foi um artista místico, hoje é
reconhecido como um dos grandes representantes da vanguarda argentina,
embora em vida tenha sido pouco compreendido. “El joven Alejandro Schulz
Solari se habia propuesto inventar un mundo para él y sus hermanos…”
(Gradowczyk 1994, 11). Como pintor, dedicou-se às formas expressivas, em
aquarela ou na têmpera, que comunicassem mensagens espirituais, fazendo o uso
recorrente de símbolos do seu repertório peculiar referentes a um mundo
atemporal, universal e visionário. Além de pintor, foi músico, astrólogo, filólogo
(criou dois idiomas: panlengua – idioma internacional; neocriollo, idioma
latinoamericano baseado em sílabas e termos de raízes do Espanhol e do
Português). Iniciado pelo mago inglês Aleister Crowley, registrou 64 visões
exotéricas. Xul concebeu uma interpretação astrológica universal, por

1 De muy honda raíz es ese desasosiego; más hondo en verdad que el aparato alegórico con que lo manifiesta

Marechal; no hay duda que el ápice del itinerario del protagonista lo de la noche frente a la iglesia de San Bernardo,
y la crisis de Adán solitario en su angustia, su sed unitiva. Es por ahí (no en las vías metódicas, no en la
simbología superficial y gastada) por donde Adán toca el fondo de la angustia occidental contemporánea. Mal que
le pese, su horrible náusea ante el Cristo de la Mano Rota se toca y concilia con la náusea de Roquentin en el
jardín botánico y la de Mathieu en los muelles del Sena (Cortázar 1949, 232).

68
revista de teoria da história 2 2020

intermédio da qual estabelecia correspondências entre o cosmo e o humano,


capaz de reconciliar o infinito e o finito, o universo e a vida humana, enfim, o
macro e o microcosmo. Xul estava sempre em busca da unidade original regida
pela eternidade do mundo espiritual 2.
Leopoldo Marechal (1900-1970) é considerado um dos grandes nomes
das letras argentinas, primeiro como poeta, mas também escreveu novelas e
deixou peças de teatro inéditas. Na juventude, participou da vanguarda argentina,
junto com Xul Solar, em torno da Revista Martin Fierro (1924-1927), de tônica
vitalista e criollista. Depois de 1930, encaminhou-se por uma paulatina conversão
de índole espiritual e religiosa, católica, tornando-se militante e teórico do
peronismo. A novela, que tem por título Adán Buenosayres, trata de uma narrativa
metafórica, na qual o protagonista de nome Adán, antonomásia de Leopoldo
Marechal, “renega”, de forma irônica, seus antigos companheiros da vanguarda
argentina dos anos de 1920: Jorge Luís Borges, Jacobo Fijman, Raul Scalabrini
Ortíz, Norah Lange, Xul Solar.
Adán Buenosayres está dividida em 7 partes. Nas cinco primeiras, o autor
narra as aventuras filosóficas do seu herói Adán Buenosayres, desde o despertar
metafísico naquela “mañana de octubre de 192.”, até a meia noite do dia
seguinte, em frente “a la iglesia de San Bernardo, ante la figura inmóvil del Cristo
de la Mano Rota” (Marechal 1981, 10). A sexta parte da novela é uma espécie de
autobiografia do protagonista da história, narrada na primeira pessoa. O
melancólico Adán Buenosayres reflete sobre o terror do tempo e do espaço,
sobre a origem divina do homem e sua queda, sobre a tensão entre finito e
infinito e a busca da transcendência, permanência e essência das coisas. A
fragilidade do corpo material seria compensada pela crença na existência de uma
alma, essência, permanência e transcendência do espírito.
Na última parte do livro, uma descida ao inferno, à la Oscura Ciudad de
Cacodelphia, é uma paródia de A Divina Comédia de Dante Alighieri e, também, da
Argentina contemporânea. “Marechal realiza (...) una compleja operación por la
cual une su ideario católico con la idea de ‘comunidad organizada’ que acaba de
fundar Juan Domingo Perón…” (Rocco-Cuzzi 2004, 465). A estrutura de seu
inferno dantesco, compõe-se de diferentes círculos e hierarquias verticais. As
figuras que ocupam esse espaço constituem-se de corpos híbridos, gelatinosos,
gigantescos, corpos que flutuam sobre superfícies pútridas, glutões que
vomitam, e toda uma galeria de sujeitos corruptos, aproveitadores, devassos,
irresponsáveis, figuras nas quais se reconhecem, metaforizadas, políticos, poetas
ou intelectuais das décadas de 1920 e 30, na Argentina.
Qual seria o “retrato” de Xul Solar na novela de Leopoldo Marechal, que
eu deveria encontrar na leitura do livro? Em meio a tiradas irônicas, num
“humorismo angélico”, segundo diz Marechal no prólogo do livro, Xul Solar é
caracterizado na figura do astrólogo Schultze, inventor do inferno e guia dos
labirínticos espaços subterrâneos de la ciudad oscura de Cacodelphia e, também,
aquele que conhece e realiza diversas práticas rituais, diante dos olhares
horrorizados de Adán. O astrólogo Schultze é um tipo raro, com seus
conhecimentos sobre estrelas e planetas, dado a invenções, as mais estapafúrdias.
O astrólogo invocara primeiro com o idioma argentino, depois com a etnografia

2 Apresentei os resultados da pesquisa sobre Xul Solar e Ismael Nery em artigos publicados

em diversas revistas, coletâneas e congressos. Ao final de 10 anos de produção, esse material foi
organizado em livro (Flores 2017). Sobre a angústia de Adão na América, tentando estabelecer
vinculações metafísicas entre a arte de Ismael, Xul e Leopoldo Marechal, apresentei suas linhas
iniciais no II Colóquio de História e Arte, em Florianópolis, em 2010. Desde então, o trabalho
permaneceu como uma ideia que agora tive a oportunidade de desenvolver.

69
revista de teoria da história 2 2020

nacional e também com a música. Pleno de ironia, o narrador informa que


Schultze achava medíocre a música feita com sete notas e queria inventar música
com 28 notas; tinha tentado inventar em Roma um piano-saxofón-bateria. E
andava inventando um novo homem, o Neocriollo (Marechal 1981, 135).
Graciela Maturo (1999), especialista na obra de Marechal, considera que
Adán Buenosayres, no gênero da viagem, é mais que uma experiência narrada.
Trata-se de uma reflexão filosófica através da consciência meditativa de Adán,
que usa a voz do próprio autor, em diálogo com as outras personagens, ex-
companheiros da geração martinfierrista, que deambulam num périplo pelas ruas
e arrabaldes de Buenos Aires, no curso de dois dias. Uma viagem, que a crítica
lhe tem atribuído vínculos com o Ulisses de Joyce. Porém, segundo Renata
Rocco-Cuzzi (2004, 462), Leopoldo Marechal contesta essa afiliação: “cierto es
que Joyce, en el Ulisses, toma de Homero la ‘técnica del viaje’, pero no toma
como yo el simbolismo espiritual del viaje’”. Para Marechal, o protagonista do
Ulisses de Joyce padece de dispersão, atomização e pulverização da unidade
humana; está apartado da “realização espiritual” que ele, Marechal reclama para
seu herói. Ao Ulisses de Joyce, Marechal considera que há “falta de qualquer
pretensão metafísica”.
Essa “pretensão metafísica”, que já aparece no Prólogo indispensável do
livro, no qual Marechal apresenta “Adán Buenosayres desde seu despertar
metafísico...”, foi a pedra de toque inicial para minha primeira intuição de que
estava diante de um linguagem estética comum à cosmovisão dos artistas
argentinos - Leopoldo Marechal e Xul Solar – e do artista brasileiro Ismael Nery.
O fio que enlaça o pensamento dos três tem base na estética metafísica, uma
crença de que a existência do indivíduo transcende a realidade contingente, no
tempo e no espaço. Por exemplo, no Autorretrato de IN, de 1927, que Ismael
Nery pintou no ano em que estivera em Paris, vemos ao centro a figura do artista
sentado numa cadeira que divide o quadro em dois espaços, à direita, uma
paisagem parisiense com a Torre Eiffel e, à esquerda, o Pão-de-Açúcar
representa a paisagem carioca. Sobrepostas à Torre Eiffel e ao Pão de Açúcar,
perfis de Ismael refletidos no mesmo nível do seu rosto, no centro do quadro.
Uma concomitância temporal e espacial para expressar sua ideia de tempo e
espaço. Escrito no verso, aparece a seguinte frase: “Um homem que se estudar
em um momento, não se conhecerá... O presente de um homem é o resultado
do seu passado e do de seus antepassados...” (Nery, apud. Fernandez 1984, 150).

Figura 1: Ismael Nery. Autorretrato. 1927. Óleo sobre tela, 129/83 cm


Col. Domingo Globbi, S Fonte: Catálogo, 1984, 172

70
revista de teoria da história 2 2020

Figura 2: Giorgio de Chirico. As Musas Inquietantes. 1916-1918. Óleo sobre tela. 97 x 66 cm


Coleção Particular. Fonte: Disponível em:
https://www.wikiart.org/pt/giorgio-de-chirico/the-disquieting-muses-1918-1
Acesso em: 08 ago. 2020

A arte metafísica, como um movimento de vanguarda, remete-se ao


trabalho desenvolvido, principalmente, entre os anos de 1911 e 1920, por
Giorgio de Chirico e Carlo Carrà, artistas italianos, e refere-se a uma arte
moderna eivada de motivos da antiguidade clássica, criando ambientes
misteriosos por aproximar, em perspectivas impossíveis, objetos que em si
pertencem a tempos e espaços diferentes (Flores 2008).
No caso de Ismael Nery, Xul Solar e Leopoldo Marechal, a conotação
metafísica aparece na linguagem estética que comunica a vontade de transcender
a realidade local, para encontrar mundos arcaicos e míticos. Nesse diapasão, as
soluções plásticas ou literárias primam pela abstração do tempo e do espaço,
pelo desejo de transcender a realidade, pela angústia diante da finitude e pela
tentativa de reconectar-se com o infinito, remetendo a mundos espirituais e a
formas universais. Numa atitude, entre rejeição e aceitação da modernidade,
compartem a visão cósmica de um mundo ideal com valorização de mitos e
linguagens simbólicas. Lembrando aqui Charles Baudelaire e Walter Benjamin, a
modernidade trouxera consigo a implacabilidade do tempo, que traz nos rastros
da cultura a ideia de finitude, de transitório e fugidio, de tal modo que a
identidade do poeta se instala paradoxalmente na instabilidade de um tempo
continuum que avança em flecha, em meio ao efêmero e a banalidade do cotidiano.
Na dialética ou na tensão entre o desconforto ou o sentimento de mal-
estar frente à realidade e o desejo ou a fantasia que impulsiona uma ação ou um
movimento corporal para encontrar a saída da crise existencial, produz-se o
sentimento de angústia. E, no desvão do afeto da angústia, acontece o ato
criativo do artista agônico. Não que seja uma regra, mas o afeto agônico, por si só,
aparece em obras de compositores, poetas e pintores, cujo sofrimento e tristeza
fertilizam a arte, na esperança de encontrar a saída para seu mundo que se tornou
insuportável ou que não apresenta as condições para realização da potencialidade
do ser. Nesse sentido, a angústia pode ser libertadora. Não é outro o sentido do
título Angústia e esperança que Oswaldo Giacoia Júnior (2018) dá para abordar o
pensamento de Soren Kierkegaard.
A angústia, conforme o conceito “inventado” no século XIX por
Kierkegaard e por Sigmund Freud, no século XX, refere-se a um afeto que não
tem um objeto real para seus temores. Trata-se de uma sensação, de uma suspeita
de que algo estranho se avizinha. Kierkegaard (1968) partira, em 1844, ano da

71
revista de teoria da história 2 2020

publicação de O conceito da angústia, do abismo irreconciliável que media o finito


e o infinito, abismo sentido pela existência humana como uma angústia radical,
um desamparo, onde a subjetividade limitada do “homem” se acha suspensa no
nada de sua angústia. A angústia seria, então, um modo de fundir-se em um nada,
mas é ao mesmo tempo a maneira de salvar-se do nada, que ameaça aniquilar o
homem angustiado. Nessa dualidade, está enraizada a consciência do ato criativo
como produto de um estado de crise. Diferente dos sentimentos de revolta,
ressentimento, melancolia, pessimismo, que marcaram o pensamento moderno,
o pathos agônico presente no processo criativo transforma o sentimento de
catástrofe iminente na possibilidade ou na esperança de uma saída, de um
milagre, amparada na crença da dimensão espiritual e imaginária que a obra de
arte pode carrear.
Artistas agônicos
É um Hades fluido, quase vapor, sem céu, sem solo, rufo, cor em olhos
fechado sob o sol, agitado por uma tempestade interior, em vértices e
ondas e fervura. Em seus nódulos e espumas, diferentes multidões de
homens flutuam passivamente e brilham de maneiras diferentes; também
existem seres maiores e solitários na forma de peixes. (...), Mas o chamado
desta Terra de baixo oprime o peito do corpo físico, e eu volto para mim
mesmo, muito afligido por um longo tempo. (Xul Solar, s.d.).3
Acabaram-se os tempos.
Morreram as árvores e os homens,
Destruíram-se as casas,
Submergiram-se as montanhas.
Depois o mar desapareceu.
O mundo transformou-se numa enorme planície
Onde só existe areia e uma tristeza infinita.
Um anjo sobrevoa os destroços da terra,
Olhando a cólera de um Deus ofendido.
(Ismael Nery 1933).
Eles não sabem que, construindo seu poema com imagens que não
guardam nenhuma ilusão entre si, você o faz para vencer o Tempo,
manifestado na triste sucessão de coisas, e para que as coisas vivam um
presente alegre em sua música; eles não sabem que, ao reunir em uma
imagem duas formas muito distantes uma da outra, você o faz para
derrotar o Espaço e a distância, para que o distante se encontre na alegre
unidade do seu poema. (Leopoldo Marechal 1948).4

No Catálogo Xul invita a Klee, Jorge Glusberg sugere que o artista


argentino, “Oitenta anos depois de Kierkegaard”, “inaugura na América a
estética da angústia.” Nas suas pinturas, vemos “uma interpretação astrológica
universal, por intermédio da qual [o artista] estabeleceu uma correspondência
(...) entre o cosmo e o homem, capaz de reconciliar o infinito e o finito”, tal
como o problema levantado por Kiekegaard (Glusberg 1998, 34).

3 Es un Hades fluido, quase vapor, sem céu, sem solo, rufo, cor em olhos cerrados debajo del sol, agitado por
una tempestad interior, en vértices y ondas y hervor. En sus grumos y espumas distintas multitudes de hombres
flotan pasivamente y destellan de distintas maneras, hay también seres solos, más grandes, en forma de peces. (...)
Pero ya la llamada de esta Tierra desde abajo me oprime el pecho del cuerpo físico, y vuelvo a mí, muy afligido
por mucho tiempo. Esse é um trecho de uma das 64 visões que Xul Solar deixou escritas em
neocriolo, o idioma de sua invenção, hoje traduzidas para o espanhol. Ver: (Nelson,” 2005).
4 … ellos no saben que, al edificar tu poema con imágenes que no guardan entre sí ninguna

ilación, lo haces para vencer al Tiempo, manifestado en la triste sucesión de las cosas, y a fin de
que las cosas vivan en tu canto un gozoso presente; ignoran ellos que, al reunir en una imagen
dos formas demasiado lejanas entre sí, lo haces para derrotar al Espacio y la lejanía, de modo tal
que lo distante se reúna en la unidad gozosa de tu poema. (Leopoldo Marechal 2013, 204). A
data de 1948, que consta acima, na epígrafe, refere-se ao ano da publicação de Marechal.

72
revista de teoria da história 2 2020

Antes de partir para a Europa, em 1912, Xul sentia-se isolado e


incompreendido em Buenos Aires, que lhe parecia miserável. Sua angústia
chegava à beira da desesperação. Cintia Cristiá (2007, 13) mostra uma passagem
na qual Xul Solar cita uma frase do poema Les Fleurs do Mal, de Baudelaire,
importante para caracterizar o estado de angústia da etapa inicial do jovem
Alejandro. No poema Noche, Ouctubre, 1910, percebemos que Xul sente-se
“asfixiado em meio à agitação de desejos”; parece-lhe que “névoas inimigas
mortíferas se rivalizam”; seu espírito “agita-se e se revolta pelo espaço”,
procurando ajuda para fugir. “Nesta luta angustiosa me farei veterano; com
minhas mãos, meus olhos e ouvidos ávidos, com meu ardente cérebro
encontrarei o caminho (...) se não há país sem angústia para mim, todo eu, dentro
de meus pensamentos, me farei um mundo!” (Catálogo 1990, 10).

Figura 3: Xul Solar. Ciudad y abismo, 1946, témpera sobre papel, 35 x 50 cm


Fonte: (Gradowczyk 1994, 173)

No contexto da Segunda Guerra, Xul Solar pinta paisagens


estremecedoras. Em palheta monocromática, montes, vales, escadas, labirintos,
passagens estreitas, torres, correias, pontes, muros, ausência de céu e de
horizonte, parecem sugerir o drama da ascensão e da queda do homem, da luta
entre as forças de luz e sombra, entre violência e paz, entre amor e ódio, entre
vida e morte. Pálidas figuras humanas solitárias percorrem ou habitam essas
paisagens. Em Fiordo (1943), em Valle hondo e Bordes de San Montes (1944), as
escadas aparecem em ladeiras de imponentes montanhas, onde uma só figura
humana enfrenta a imensidão. Em Muros e escaleras (1944) e Ciudá y abismos (1946),
a paisagem natural transforma-se em paisagem urbana, sem perder sua
magnitude esotérica e suas conotações simbólicas relativas à ascensão e queda.
Uma sensação de labirinto se observa em Cavernas y troncos (1944). Como nas
demais obras, a presença insólita da vida, onde o homem é apenas uma vivência
minúscula, indecisa, agônica diante das encruzilhadas e buracos obscuros. Entre
a série monocromática, há uma obra de 1946, Cavernas tronki, que o crítico
Svanascini vê nela “premeditada profundidade de um canal subterrâneo
construído com troncos, no qual deambulam cinco personagens aparentemente
desvinculadas, enquanto três pêndulos assinalam um tempo irremediável. (Albós
2004, 239).

73
revista de teoria da história 2 2020

Sobre o artista brasileiro Ismael Nery, seu primeiro biógrafo, Antônio


Bento (1973, 32), também diz que sua arte é vizinha da filosofia de Kierkegaard.
No Poema (1933), Ismael escreve: “A minha angústia aumentará em meus filhos.
- Angústia que herdei de meus pais e de meus avós” 5. A base da sua filosofia
era o que Murilo Mendes denominara Essencialismo, a compreensão da essência
das coisas, mediante a abstração do tempo e do espaço, propondo a felicidade de
uma sabedoria harmônica, feita de equilíbrio entre o espírito e a matéria, entre a
vida interior e a exterior, como via de acesso à transcendência. (Arriguci Jr. 2000,
109).
Ismael Nery tinha obsessão pela pintura de autorretratos, nos quais ele
aparece como uma personagem andrógena, desdobrada em duas ou três faces.
Esse traço de sua pintura não era só a procura por um estilo artístico. Tratava-
se de experimentação plástica à busca da essência da sua humanidade. No poema
EU (1933) ele escreve: “Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
(...) Eu sou a unidade infinita / Eu sou um deus com princípio (...) Eu sou o
sucessor do poeta Jesus Cristo / Encarregado dos sentidos do universo.” E ao
final, o poema vai confrontar as forças que tendem para a anulação do indivíduo.
“Eu sou o profeta anônimo / Eu sou os olhos dos cegos / Eu sou o ouvido dos
surdos / Eu sou a língua dos mudos / Eu sou o profeta desconhecido, cego,
surdo e mudo / Quase como todo mundo.” Segundo a análise de Affonso
Romano de Sant’Anna (2000, 61), “há muitas variações da bipolaridade do EU,
exemplificadas na fatura do sujeito submetido às pressões angustiantes do
pensamento religioso. O UM originário desdobra-se não somente em um
masculino e um feminino. Esse UM se desdobra num Eu satânico e num Eu
divino”.
Para Ismael Nery, o espírito do homem moderno caracterizava-se,
sobretudo, pelo cansaço. O mal consistia em fazer-se uma construção de espírito
dentro da ideia de tempo, que traz no seu bojo a corrupção e a destruição. As
teorias políticas não solucionam o conflito entre espírito e matéria, nem o
restabelecimento do equilíbrio que o homem vem perdendo gradativamente,
desde que foi criado. O erro só poderá ser anulado com uma volta à raiz. “Não
me conformo nem com o espaço nem com o tempo, / Nem com o limite de
coisa alguma.”, disse Ismael no seu poema Confissão (1933).
De Leopoldo Marechal, quando Adán Buenosayres veio a público, Julio
Cortázar (1949) considerou o livro como um dos maiores acontecimentos nas
letras argentinas, um livro que “precipita um aluvião desenfreado de imagens
que escaparam de uma barragem que acabara de se romper”. Para Cortázar,
trata-se de uma novela autobiográfica. Mas a angústia existencial projeta a
angústia da sua geração, enlaçada à visão de suas origens e expectativa de futuro.
“Su angustia, que nace de desajuste, es en suma la que caracteriza – en todos los
planos mentales, morales y del sentimiento – al argentino, y sobre todo al
porteño azotado de vientos inconciliables”.
Em Adán Buenosayres, a palavra angústia aparece 36 vezes. Angústia frente
à tensão entre o tempo móvel das coisas terrenas e a eternidade do Universo;
angústia ao abrir os olhos e deparar-se com coisas que lhe parecem estranhas,
fantasmagóricas; um mundo povoado de imagens que assombram sem cessar o
sono ou a vigília, memórias de tempos imemoriais, restos, ruínas; angústia frente
às imagens da morte e odores de catacumbas que não param de açular seus
pesadelos; angústia frente às imagens de rostos familiares que pairam distantes
no tempo e no espaço. Mas em cada “despertar metafísico”, que se dá pela

5 Todos os poemas de Ismael Nery citados estão publicados no Catálogo (1984, 26-39).

74
revista de teoria da história 2 2020

manhã com o aparecimento do sol, ressurge a consciência restauradora que


engloba a consciência do conflito e da busca de um ser novo que estava morto
e renasceu: vai da queda de Adão ao nascimento do homem novo que encontrou
o destino superior de sua alma. Na metafísica de Marechal, a queda é momento
essencial, inerente à condição humana, para levantar e procurar o destino
superior de sua alma.
Se a insônia de Adá Buenosayres era prolongada pelas “terribles
imágenes de la destrucción” do Apocalipsis, era preciso despertar a inteligência
para recompor a realidade e deixar de entregar-se ao pavor infantil, o medo da
catástrofe. Cada episódio da viagem metafísica serve para Adán refletir sobre “a
terra ferida e cicatrizada tantas vezes!” Mas, se todas as tradições recordam uma
Idade de Ouro, reflete Adán, isso é prova de que ela existira um dia! Mas se
existira, por que não deixou alguma recordação, um monumento, ruínas de
cidades maravilhosas, indícios de uma enorme civilização? Sim. “A Idade de
Ouro existira. Deixou um monumento, não na terra, mas na alma do homem. A
mutilada estátua de uma felicidade que desde sua mutilação, queremos
reconstruir em vão” (Marechal 1981, 150).
No Prólogo indispensável, no qual Marechal apresenta seu personagem,
Adán acorda sentindo um sabor amargo, na língua do corpo e da alma. É um
“despertar metafísico”, declara o novelista. De olhos fechados, vê que o quarto
está vazio, e lá fora não há nada também. Tudo se dissipou, tudo se dissolveu.
“Que horror!” O mar evaporou, os astros se desprenderam. Mas ao abrir os
olhos, viu que as coisas do quanto estavam ali e o mundo voltara à sua existência.
Adán Buenosayres reflete: a rosa não murchara porque seguia vivendo em sua
mente, não era tal qual a rosa que vira, mas como todas as rosas que haviam sido,
eram e podiam vir a ser nesse mundo; a flor reduzida a número abstrato, a rosa
emancipada do outono e da morte; de modo tal que se ele, Adan Buenosayres,
fora eterno, também a flor seria em sua mente, ainda que todas as rosas
exteriores acabassem, morressem e voltassem a florescer. (Marechal 1981, 9).
São muitas as chaves de leitura possíveis desse livro de Marechal, de 740
páginas, feito de ironias, metáforas e simbologias. Trata-se de uma alegoria da
viagem da alma do ser humano, num movimento descendente para um posterior
ascendente, até alcançar o divino, cujo eixo está centrado na cosmovisão do
cristianismo platônico. Pela chave da metafísica, estética que, conforme o
entendimento que estou tentando defender, contém traços para se refletir sobre
o afeto da angústia na criação artística, percebe-se o movimento que vai da
sensação de catástrofe à possibilidade da realização de uma poética e de uma
ética para ressignificar a existência. O espaço narrativo da novela de Leopoldo
Marechal contempla o estado de angústia de seu personagem, sobre a terra
“ferido de morte”, para exercer em diversos episódios o movimento da queda e
da consciência restauradora. O herói de Adán Buenosayres, num deambular
aparentemente sem rumo, reflete sobre o tempo e o espaço, sobre a origem
divina do homem e sua queda, sobre a tensão entre finito e infinito, sobre a
unidade inexorável entre matéria e espírito. A fragilidade do corpo, sua
temporalidade, era compensada pela transcendência, permanência e essência da
alma.

75
revista de teoria da história 2 2020

Certo dia Adán Buenosayres resolveu dialogar consigo mesmo.


- Quem era ele, “essa entidade absurda”, essa “enigmática besta
racional, a difícil combinação entre um corpo mortal e uma alma imortal,
o monstro dual cuja torpeza de gestos faz chorar aos anjos e rir aos
demônios?
- É aquela que está submetida às duas condições limitativas: o
espaço e o tempo, que o condenavam ao erro e à fadiga dos movimentos
locais, ao devir e à morte.
- E o que fez Adán para livrar-se do terror do tempo e do espaço?
-Acreditou que sua alma não estava submetida nem ao tempo e
nem ao espaço.
- Como percebe que a alma tem uma natureza caída?
-Por negação, percebendo os extravios de sua inteligência, o
esquecimento de sua memória e as fraquezas de sua vontade; por
afirmação, observando no exercício de suas potências algumas
iluminações e arranques indefiníveis que considera vestígios de uma
nobreza original perdida.
- Qual a razão daquele cansaço, rebelde a qualquer tratamento,
de seu amigo o filósofo Samuel Tesler?
-Aquele cansaço incurável resulta das numerosas reencarnações
que vem sofrendo desde a divisão do Hermafrodita original (Marechal
1981, 34-43).

A cada instante que se detém paralisado, na viagem, Adán/Marechal


convoca a ideia de novos começos, à procura do que é durável, do que há de
transcendente, do que é eterno, já que tudo o que é aparente desaparece em
pouco tempo. É preciso encontrar a essência da verdade. Citando aqui Hannah
Arendt, a consciência do tempo que transborda na angústia cria “essa picada de
não-tempo aberta pela atividade do pensamento através do espaço-tempo de
homens mortais e na qual o curso do pensamento, da recordação e da
antecipação salva o que quer que toquem da ruína do tempo histórico e
biográfico” (Arendt 1988, 31).
Essa é uma das chaves que abrem nossa compreensão da angústia dos
artistas de concepção metafísica abordados aqui. A descoberta da finitude
convoca a ideia da transcendência; a imagem da suspensão do tempo aponta para
a procura do durável na essência das coisas; o terror do tempo e do espaço
empurra a intuição a revelar a imortalidade da alma; o sentido da separação entre
cosmo e vida humana produz a ânsia pelo realinhamento; a consciência da
finitude do mundo das coisas terrenas desperta o desejo de reconciliação com o
infinito, com o que há por trás das aparências; a ideia da queda do “homem” no
mundo das trevas dá-lhe ânimo para seguir o caminho da ascensão ao mundo
espiritual, das luzes e dos espaços divinos.
O conceito de angústia

O homem, pois, é síntese de alma e corpo, porém ao mesmo tempo, é


uma síntese do temporal e do eterno (Kierkegaard 1968, 90).

Ao contrário do medo ou do pavor, “a angústia é sempre existencial”


segundo Elizabeth Roudinesco (2019, 20). Grandes autores produziram
considerável literatura psicanalítica sobre o tema. Em Freud, encontramos a
noção de angústia da perda e da culpa; em Melanie Klein, sobre a angústia do
despedaçamento; os teóricos da Self Psychology desenvolveram conceitos sobre a
angústia da autodestruição; Lacan, “o mestre da angústia”, que é, por sua vez,
“profundamente angustiado”, fez dessa o princípio fundamental da
subjetividade humana (Roudinesco 2019, 21).

76
revista de teoria da história 2 2020

Mas, a angústia, um dos pathos que marcam a modernidade, é tema


também da filosofia. Rogério Miranda de Almeida (2019) mostra que há
coincidência de intuição entre Freud, psicanalista, e Kierkegaard, filósofo e
teólogo, na formulação do conceito de angústia, ao afirmarem que o objeto da
angústia não é positivado, ou seja, diferente do medo e do susto que se
apresentam diante de um fato concreto, o sujeito que se angustia não conhece o
objeto da sua angústia. Em Kierkegaard, o objeto da angústia é o fato de não
saber contra o que lutar. O “nada” é que dá nascimento à angústia. Em Freud
(2019), o que angustia é a sensação psíquica de inquietante estranheza que coloca
o sujeito num estado de prontidão reativa, como aparece no ensaio Das
Unheimliche: algo deveria ficar oculto, mas vem à consciência; algo familiar é
vivido com estranheza.
O conflito existencial no quadro da cultura ocidental tem raiz na tradição
cristã (Agamben 2007, 28). O que se tinha por acídia, um estado de tristeza
relativa à dignidade espiritual conferida por Deus, segundo Santo Tomás de
Aquino, a ética capitalista tomou por desleixo e preguiça. “Os doutores da
teologia não a concebiam por esse signo, mas sim sob o da angustiada tristeza e
do desespero” (Agamben 2007, 28). A acídia seria uma fuga horrorizada diante
daquilo que não pode ser evitado de modo algum, uma espécie de doença mortal,
cuja imagem transtornada, Kierkegaard consagrou na descrição do “mais temível
dos seus filhos: o desespero que está consciente de ser desespero, consciente,
portanto, de ter um eu no qual há algo de eterno, e agora desesperadamente não
quer ser ele mesmo, ou desesperadamente quer ser ele mesmo” (Agamben 2007,
28).
As exigências da modernidade criaram sujeitos autônomos, capazes de
agir livremente para fazer jus ao uso da razão iluminista e da cidadania liberal.
Porém, na cultura do corpo moderno, o poder de ação, a descoberta da
capacidade de criação e autocriação, a concepção do humano como artifício,
nietzschiano, ou racional, kantiano, se por um lado liberou o sujeito da razão da
autoridade divina ou do poder autocrático, por outro, provocou um estado de
angústia diante das possibilidades, controladas pelas políticas de Estado, ou
escassas diante do potencial humano, ou porque agora requerem escolhas e
atitudes éticas. Sob certa dimensão psicológica, aparece o medo do
desmoronamento das identidades, já que nada é inexoravelmente fixo, tema que
já trabalhei em outra ocasião a partir dos casos Schereber e Otto Weininger
(Flores 2007).
Ou seja, a liberdade humana colocando o ser humano como feitor do
mundo, em substituição ao deus demiurgo, trouxe o poder de lidar com a razão,
mas também a responsabilidade de lidar com sensações, paixões, desejos,
emoções e medos. Jean-Paul Sartre, outro mestre da angústia, segundo
Roudinesco (2019, 21), “sabia que ter medo do que podemos fazer atesta o poder
que a liberdade confere: e é aí que nasce a angústia autêntica.” Sentindo-se
condenado a viver nessa contínua tensão, entre razão e paixão, o ser humano
percebeu no seu íntimo que não podia “estar em paz com a primeira, sem estar
em guerra com a outra, permanentemente dividido, em conflito consigo
mesmo”. Já Blaise Pascal (1973), em Pensamentos, expressara os mais apurados
sentimentos de desespero, angústia, paixão, tragédia, num tono existencial,
perante a precariedade da condição humana, da sua irremediável finitude.
Kierkegaard (1968, 29-41) salientou o aspecto concreto do homem como
sofredor, em contraste com o conceito de homem racional, submetido ao
sistema hegeliano, sistema no qual o indivíduo representa apenas um momento
de uma totalidade sistemática que o ultrapassa e na qual, ao mesmo tempo, ele

77
revista de teoria da história 2 2020

encontra sua realização. Em Kierkegaard há um forte sentimento de


irredutibilidade do indivíduo, de sua especificidade e do caráter insuperável de
sua realidade. Empreendeu, assim, Kierkegaard (1968, 15-19), a inaugural crítica
à concepção racional hegeliana e positivista comtiana da humanidade. Para ele,
o ser humano é dotado de possibilidades abertas em meio à liberdade de escolha,
o que enseja uma dimensão ética do seu existir. A liberdade cria a angústia
porque toca no verdadeiro problema da vida: descobrir quais são os verdadeiros
tons e talentos de uma pessoa. Esse é o drama humano, marcado pela
consciência individual em meio à angústia, exasperação e ansiedade. “A angústia
é determinada pelo espírito sonhador (...) é a realidade da liberdade como puro
possível. (...) por essa razão é que não a achamos no animal, cuja natureza não
tem precisamente, a determinação espiritual” (Kierkegaard 1968, 45).
O filósofo teólogo dinamarquês abre, assim, o caminho para se pensar o
ser humano como centro da reflexão filosófica da existência do dia-a-dia, abre o
caminho para a “famosa análise” que empreende Martin Heidegger da
“banalidade cotidiana e da caída na dimensão anônima e inautêntica do ‘a gente’,
que acabou inspirando a caracterização de nossa existência nas sociedades de
massa” (Agamben 2007, 26). Se para Kierkegaard, foi o pecado de Adão e Eva
que os fez perceberem-se nus, habitantes comuns da terra que dominam e
exploram seus recursos e os outros seres para sobreviver, Heidegger, fez do
dasein (ser-aí), a forma de existência inautêntica, que marca a angústia do ser
humano. O que determina a angústia é simplesmente o fato do homem se
perceber como ser-no-mundo. Trata-se de um sentimento que, para Heidegger,
não tem uma razão específica, simplesmente se manifesta como se o mundo
tivesse perdido o seu sentido (Girola 2000, 8).
Por volta de 1910, a obra de Kierkegaard vai se tornando conhecida na
Alemanha e depois em outras cidades europeias. O tema da angústia começa a
fazer parte do vocabulário moderno, sob a filosofia trágica e irracionalista de
uma angústia de Kierkegaard, do pessimismo de Schopenhauer, do homem do
ressentimento de Nietzsche, da revolta de Rimbaud e de Latréamont, já presente
na obra de Pascal. O tema da angústia pautou a produção de toda uma geração
de poetas malditos, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Verlaine. Em 1891, cinco
anos antes da morte de Rimbaud, o poeta da “impaciência, não apenas literária,
mas existencial”, a revista La Vogue divulga em Paris suas Illuminations. “Nascia a
glória e a fama desse poeta, encarnação da poesia e do próprio pathos do homem
moderno”, e a cristalização da imagem do “poeta maldito” inaugurada por
Baudelaire (Ivo 2004, 35).
Nas artes visuais o tema de angústia também se fazia notar, a exemplo
da obra de Munch, uma pintura que desarmoniza nosso olhar diante da explosão
de cores e de linhas errantes, fugidias, inconstantes, até inalcançáveis. Quando,
em 2009, na minha primeira visita ao Museu Xul Solar, em Buenos Aires, para
dar início à pesquisa, vi pendurada na parede Paisagem Bunti, obra de 1916,
assaltou-me pela primeira vez a sensação de que havia ali ressonâncias do Grito
de Munch, datada de 1883. Uma paisagem ameaçadora, uma ponte a ser
atravessada, uma figura humana solitária. A partir daí, meus olhares se tornaram
atentos aos sinais de angústia nas obras dos dois artistas místicos que faziam
parte de meu projeto de pesquisa, naquele momento – Xul Solar e Ismael Nery.
Dias depois, com a leitura de Adán Buenosayres, de Leopoldo Marechal, percebi
que havia tocado num dos afetos que afligem vários dos artistas, poetas e
escritores daquela quadra de pensamento e arte das primeiras décadas do século
XX.

78
revista de teoria da história 2 2020

Figura 4: Xul Solar. Paisagem Bunti, 1916. Aquarela sobre papel. 15/25 cm
Fonte: (Catálogo 1990, 52). (Derechos reservados Fundación Pan-Klub-Museo Xul Solar)

Figura 5: Edvard Munch. O grito. 1893. 91 x 73,5 cm


Óleo, pastel, cardboard, tempera. Localização: National Gallery, Oslo, Norway.
Fonte: Disponível em: https://www.wikiart.org/pt/edvard-munch/o-grito-1893
Acesso em: 08 ago. 2020

A angústia de Adão.

Pelo pecado de Adão, a pecabilidade penetrou no mundo...


(Kierkegaard 1968, 72).

Por que esses loucos estão gritando? Do que eles têm medo? Você ainda
não entende que este mundo está uma bagunça desde que Adão e Eva
fizeram essa safadeza com Deus no Paraíso? (Marechal 2013, 53).6

A abordagem da angústia de Adán Buenosayres, protagonista da epopeia


de Leopoldo Marechal, no cruzamento entre a novela do poeta e a arte visual de
Xul Solar e de Ismael Nery, alçados a signos da angústia de Adão na América, requer
que retornemos por um momento ao conceito de angústia de Soren Kierkegaard.
Não que os três artistas tenham lido o filósofo teólogo dinamarquês 7. Tudo

6 ¿Por qué gritan estos locos? ¿De qué se asustan? ¿No comprenden todavía que este
mundo es un bochinche desde que Adán y Eva le hicieron a Dios aquella porquería en el
Paraíso?
7 No começo do século XX, as obras de Kierkegaard não eram conhecidas ou ainda eram

bem pouco lidas. Rogério Miranda de Almeida (2019), ao falar da coincidência entre o filósofo
dinamarquês e o pai da psicanálise vienense, na conceituação do afeto da angústia, afirma que
Freud jamais leu Kierkegaard.

79
revista de teoria da história 2 2020

indica que os três artistas não leram Kierkegaard, pelo menos até o momento da
produção das obras aqui discutidas. No entanto, foram incansáveis leitores da
Bíblia, o livro que influenciou profundamente o pensamento ocidental e, é nele,
que o filósofo dinamarquês foi buscar os elementos para formular o conceito de
angústia.
O que é pertinente aqui, nessa sessão do artigo, é considerar a
apropriação que Kierkegaard fez dos dogmas do cristianismo, especialmente do
pecado original, que plasmou o sentimento de culpa e de perda do Paraíso,
fundamento da “ética da existência” cristã. “A Ética pagã desconhecia o pecado,
a cristã acrescenta em seus domínios a realidade do pecado” (Kierkegaard 1968,
28). Para o filósofo teólogo, o problema da hereditariedade do pecado original
está na própria essência da existência humana. Pelo pecado de Adão, um
indivíduo é ele e ao mesmo tempo toda a humanidade. “... a humanidade
participa toda inteira do indivíduo, do mesmo modo que o indivíduo participa
de todo o gênero humano”. Desse modo, qualquer indivíduo é afetado, na sua
essência, pela história de todos.
A perfeição pessoal reside, pois, em participar desinibidamente na
totalidade. A nenhum indivíduo é indiferente a história da humanidade,
assim como a esta, não é indiferente a história de um indivíduo. Adão é o
primeiro homem, e isto significa que ele é simultaneamente ele mesmo e
o gênero humano. (...) Por isso, aquilo que dá a explicação de Adão dá
igualmente a explicação do gênero humano, e reciprocamente
(Kierkegaard 1968, 33).

Como consequência do pecado original (na história do cristianismo, a


atribuição do peso da culpa do pecado oscila, entre Adão e Eva, dependendo da
interpretação teológica), a humanidade herdou a culpa imbricada ao ethos
moralizante que permeia a história sobre a origem do homem escrita pelos
hebreus (Greenblatt 2018). Para Agostinho, segundo Stephen Greenblatt (2018,
103-105), a maneira como nos reproduzimos, pelo intercurso sexual (o grande
problema que Augustinho tentou resolver: como gerar filhos sem as excitações
sexuais), foi corrompida por Adão e Eva. Em decorrência disso, há algo de
essencialmente errado conosco, pois todo nascimento se origina do pecado do
sexo, uma herança inescapável que, embora seja herança, não nos exime da
culpa. “Toda a nossa espécie é aquilo que Agostinho chamava de massa pecati, um
acúmulo de pecados”.
Para (Kierkegaard 1968, 37), Cristo é o único indivíduo que ultrapassa a
individualidade; por essa razão, igualmente, surge não no princípio, porém na
plenitude dos tempos. A imagem do afastamento de Deus, com a queda do
Paraíso, provocara, assim, a forma mais profunda de angústia, no sentido bíblico,
pois remete a uma situação existencial de desamparo total. Este abandono se
manifesta também com o grito paradoxal de Jesus na Cruz: “Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonastes?” (Girola 2000, 13). Trata-se do sofrimento de
um justo, abandonado por Deus à mercê de seus inimigos; trata-se de uma
contradição: Deus clamando pelo abandono de Deus. Esse paradoxo marca a
teologia cristã. Deus, o supremo objeto de desejo, parece ter abandonado sua
criatura, produzindo a dúvida do sentido da própria existência e, com ela se
reinstaurando o sentimento de culpa.

80
revista de teoria da história 2 2020

Na interpretação de Roberto Girola (2000, 9), Kierkegaard considera que


existem três opções de vida: a estética, a ética e a religiosa. Numa terminologia
freudiana, na primeira opção, o homem vive entregue à sua libido; na segunda,
é dominado pelo superego; na terceira prevalece a sublimação da fé. “A
dimensão estética (da libido) é caracterizada por uma vida mergulhada na
plenitude do momento, voltada para capturar o gozo da existência, embalada na
‘valsa do instante’, uma situação ‘na qual não aspira a nada, não deseja nada”.
Este tipo de existência, marcada pela mudança e imediatismo, leva à experiência
do desespero. É preciso fugir do estágio estético da vida, é preciso fugir da prisão
dos desejos. O homem deve aspirar, num “salto”, o estágio ético,8 que o leva a
um estágio de interioridade, constância, fidelidade e compromisso.
Seguindo ainda com o psicanalista Roberto Girola, o conflito que existe
no quadro da cultura ocidental deve muito à leitura da Bíblia, repleta de imagens
portadoras de ansiedade, sentimento de culpa, de desespero e de angústia. Na
própria leitura da Bíblia, diz Girola, é possível identificar uma associação da
palavra angústia com as seguintes situações: perigo externo iminente, perigo de
morte, num sentido próximo ao que Freud concebe como angústia realista. Na
Tradução Ecumênica da Bíblia, uma versão portuguesa que, seguindo o padrão da
versão francesa, se caracteriza por uma tradução mais próxima do original grego
e hebraico, a palavra angústia é usada 56 vezes, no singular, e 16 vezes, no plural.
A palavra ansiedade recorre 2 vezes. Por trás da palavra angústia/ansiedade
encontramos a raiz hebraica çar que significa perigo, risco, aperto, apuro, aflição,
angústia. Às vezes, na Bíblia, o termo angústia é associado à palavra “treva(s)”,
entendida como ausência total de luz, que evoca o caos primitivo, o lugar onde
operam o mal e a morte (Girola 2000, 12).
Como já se mencionou acima, nenhum dos três artistas – Xul, Ismael e
Leopoldo – leu Kierkergaard. Contudo, indiretamente, encontra-se neles a
linguagem e as marcas da cosmovisão do teólogo dinamarquês, absorvidas na
fonte comum, a Bíblia cristã. De Ismael Nery, os companheiros do grupo dos
modernistas do Rio de Janeiro, que frequentavam sua casa, relatam que ele era
leitor assíduo da Bíblia, desde a infância. Seu sistema filosófico, sistematizado
como Essencialismo, prega uma espécie de catolicismo reformado, com base no
cristianismo primitivo, a partir de uma leitura muito particular do Evangelho de
São João, do pensamento de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino,
além da leitura de Nietzsche e dos pré-socráticos. Um cristianismo para ser
vivido no dia-a-dia, concretamente. Antônio Bento (1973, 43) diz que para
Ismael, a Bíblia resumia tudo quanto existia de mais profundo na produção
literária. A leitura do Eclesiastes concorria para acentuar ainda mais o tom
pessimista de suas ideias. A filosofia tomista exercia especial atração sobre seu
espírito, dado a longas e contínuas meditações.
Xul Solar estudou várias religiões, práticas exotéricas, alquímicas,
astrologia, leu a obra teosófica de Helena Blavatsky. O estudo da antroposofia
de Rudolf Steiner deixou marcas em Xul (Albós 2004, 98). Quando voltou da
Europa, em 1924, Xul trouxe para a Argentina 30 livros de autoria de Steiner ou
sobre Steiner. Da antroposofia desse mestre, interessava a Xul, especialmente, a
teoria das cores de Goethe, que interrelaciona a gama cromática com a
simbologia religiosa. Também lhe interessavam as ideias de Steiner sobre
arquitetura como síntese suprema dos conteúdos filosóficos, artísticos e
religiosos (Albós 2004, 100). Em 1923, ano em que assistiu em Stuttgart a várias

8 Kierkegaard não estabelecera qual dessas vidas possíveis seria melhor, mas é evidente – diz
Girola (2000, 12) – que o ele se mostraria inclinado para enaltecer o caminho do religioso, a
sublimação da fé.

81
revista de teoria da história 2 2020

conferências de Rudolf Steiner, Xul pintou aquarela cristológica, Jefe Honra, cujos
olhos cheios de estupor nos impressionam, num rosto de Cristo crivado de
espinhos. A figura de Cristo foi tema reiterado no pensamento de Steiner. O
verdadeiro cristianismo, dizia Steiner, é uma vivência que se expressa através de
uma experiência pessoal. Steiner enfatizava que, com o passar dos tempos, mais
gente poderia viver como Cristo, como ser espiritual, independente de toda
igreja (Albós 2004, 101).

Figura 6: Xul Solar. Jefe Honra, 1923. Aquarela sobre papel. 28 X 26 cm


Fonte: (Gradowczyk 1994, 89)

A novela de Leopoldo Marechal toca no mais profundo âmago da


cosmovisão bíblica. Em uma das passagens de Adán Buenosayres, o protagonista
atribui à leitura da Bíblia seu estado de angústia, suas insônias e seu despertar
cheio de imagens e premonições.
Leía en el Viejo Testamento la paciencia de Dios y la locura de los
hombres: historias de amor y odio, virtudes admirables y vicios tremendos,
alegrías patriarcales y llantos de miseria, terremotos y diluvios, pestes y
masacres desfilaban ante sus ojos… (Marechal 2013, 53).

Graciela Maturo (1999, 218), ao se debruçar sobre as bases intelectuais


da obra literária de Marechal, mostra as diversas fontes do escritor, começando
pelas clássicas – Platão, Homero, entre outras –, e passando pelas modernas, de
filosofia e teologia, de poesia e literatura, adentrando o romantismo, o
simbolismo, os decadentistas, entre outras fontes. Os “textos bíblicos foram
permanentemente relidos”, pelo poeta, diz a autora. Na segunda viagem que fez
à Europa, em 1929, Marechal dedicou-se a estudar as linhas filosóficas de Platão-
Santo Agostinho e de Aristóteles-Santo Tomás de Aquino. E foi quando deu
início ao plano de Adán Buenosayres.
Na exegese que fez dessa obra, Maturo (1999, 252) afirma que o
complexo simbólico central no pensamento do poeta é formado pelas figuras de
Adão, Gênesis, Paraíso, Queda, Inferno, Amanhecer Metafísico ou
Ressurreição. Adão teria sido o primeiro poeta. Eva, transformada em mulher
natural, é a mãe do gênero humano; em mulher sobrenatural, é a celestial Porta
do Céu. O Paraíso é o lugar da aurora, do qual o ser humano foi arrancado,
segundo o Gênesis, pelo pecado e a queda. O Inferno, tal como em Dante, é o
mundo da prova e da passagem, e não o inferno absoluto da privação do Ser. É
o contraponto do Paraíso, mas contém a porta para a saída do mundo decaído.
O desenho do Inferno, em Calcodelphia, é o de uma cova em espiral invertida,
com um caminho labiríntico, difícil e intrincado a ser percorrido, até alcançar no

82
revista de teoria da história 2 2020

ápice do cone a passagem para a nova comunidade que, como já mencionamos,


seria a comunidade organizada pelo governo de Peron.
Em síntese, a aplicação estética dos três artistas discutidos aqui
contempla a valorização da tradição da cultura ocidental, a viagem espiritual na
procura das origens divinas do ser humano, para a criação de um novo-mundo,
um novo-ser, com base na tradição judaico-cristã, platônica-aristotélica, embora
Xul Solar pregasse a verdade de todos os deuses e se dedicasse a perscrutar os
ensinamentos divinos na cabala judaica, nos mitos e em todas as grandes
religiões.
Uma estética decolonial anunciada?
... para Fanon, a colonização das subjetividades produz patologias (...), de
modo que nenhuma revolução poderia acontecer sem a descolonização do
pensamento. (Felinto 2020).

Ao se considerar que os três artistas latino-americanos, aqui abordados,


expressam uma linguagem artística que denota o ethos agônico frente ao presente,
se poderia imaginar que estivéssemos diante de uma estética que primasse pela
superação da modernidade herdada no processo da colonização europeia.
Conforme as reflexões epistemológicas que aparecem no chamado giro
decolonial¸ desenvolvidas pelos teóricos do pensamento decolonial como
radicalização dos argumentos dos Estudos pós-coloniais, a colonização europeia fez
muito mais do que apenas manipular os instrumentos de poder para explorar os
recursos da terra e da mão de obra nativa – a indígena e a africana arrancada da
África e transferida para a América. O grupo Modernidade/Colonialidade,
fundado em 1998 na Universidad Central de Venezuela, com a presença de
Castro-Gómez, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Edgardo
Lander, entre outros, imprimiu o termo colonialidade, como algo que faltava aos
Estudos Pós-Coloniais, para argumentar no sentido de mostrar que a dominação
europeia pelos processos de colonização ancorou-se numa tripla dimensão: a do
poder, do saber e do ser. Pedro Gómez e Walter Mignolo (2012, 8) sugerem que
“a matriz colonial do poder é uma estrutura complexa de níveis entrelaçados”.
Abarca não somente o controle da economia política e da natureza, mas também
das subjetividades e do conhecimento. Para entendermos nossas culturas
colonizadas, há que se considerar as duplas faces do processo:
modernidade/colonialidade. A colonização foi parte intrínseca à modernidade
europeia. O sucesso da colonização dá-se na medida em que os povos
dominados incorporam as subjetividades modernas. A decolonialidade seria,
então, uma ação epistêmica, teórica e política com o objetivo de superar a
colonialidade do moderno.
O importante, aqui, é não perdermos de vista a integralidade do tripé da
colonialidade, e ver que um de seu suporte está centrado no poder de manipular
(fabricar) subjetividades, o que envolve questões de raça, gênero, desigualdade
social, regimes epistêmicos referentes ao domínio das ciências, das instituições,
da circulação e da distribuição dos lugares de saberes e de dizeres. Nesse sentido,
ou seja, no âmbito da subjetividade ou no âmbito da criação do ser colonizado,
as culturas artísticas jogaram importante papel. Como defendem Pedro Gómez
e Walter Mignolo (2012, 9), “Las culturas artísticas (y con ello nos referimos a
todo el complejo que suscita y convoca la creación de una obra) forman parte
de la matriz colonial de poder en los procesos de manejar y manipular
subjetividades.” Portanto, há de afirmar-se, com ênfase, que no quadro das artes
inserem-se importantes espaços de subversão, ou seja, de desobediência
epistêmica na produção de experiências e subjetividades a partir do desejo do

83
revista de teoria da história 2 2020

próprio, do colonizado, e não do outro, do colonizador “El carácter decolonial


[da arte] no es inherente a un objeto, una obra, una práctica, una persona o un
grupo, sino a un modo de ser, sentir, pensar y hacer en una situación
determinada, enfrentando en algunas de sus caras o dimensiones la matriz
colonial del poder”.
A operação estética, que vimos apresentando ao longo desse artigo,
trabalhada por Leopoldo Marechal, Xul Solar e Ismael Nery, contempla o
desconforto espiritual frente à noção de tempo e espaço modernos e à dimensão
materialista, racional e pragmática do capitalismo, ou seja, tudo o que recebemos
no processo modernidade/colonialidade. Contudo, o que eles defendem, não é
o “resgate” das culturas não colonizadas ou pré-coloniais. Se na arte metafísica
que praticaram, referências nacionais ou citações do passado “arcaico” da nação
ou do continente são identificadas nas obras desses três artistas – Xul, Ismael,
Leopoldo -, inclusive ambientadas localmente - o ambiente de Adán Buenosayres
é totalmente portenho; os quadros da fase neocriolla de Xul Solar configuram
signos da cultura asteca pré-colombiana; algumas obras de Ismael Nery
apresentam traços do Rio de Janeiro -, há um alcance maior nessa operação
estética. A citação do “passado” ou a “busca do arcaico” que se incorpora na
arte pictórica de Ismael e Xul e na épica de Leopoldo Marechal extrapola as
raízes locais, nacionais, nos impossibilitando considerá-las insights decoloniais, na
acepção que levantamos acima. A aplicação estética dos três contempla o retorno
à tradição da cultura ocidental, trata-se de uma viagem espiritual à procura das
origens divinas do ser humano.
Se não se pode classificá-los, sem risco de reducionismos, como
representantes da arte metafísica, na linha de Giorgio de Chirico e Carlos Carrá
(o essencialismo de Ismael Nery e o misticismo de Xul Solar não encontram
lugar nas chaves classificatórias dos estilos ou escolas), muitos dos aspectos
abordados para argumentar em favor de uma estética da angústia fazem
ressonância com linguagem metafísica. Sobre Leopoldo Marechal, a
aproximação com a estética metafísica é mais contundente, claramente definida.
Graciela Maturo (1999, 35), no capítulo III do livro Marechal, el caminho de la beleza,
analisa artigos, ensaios e obras do poeta argentino, que “aportan distintos
aspectos de la teoria metafísica marechaliana”.
Maria Elisa Linardi Cezaretti (1994) ao analisar a arte de quatro artistas
– dois brasileiros (Tarsila do Amaral e Ismael Nery) e dois argentinos (Emílio
Petorutti e Xul Solar), concluiu que há uma convergência da angústia do ser
latino-americano com o momento de aspiração à modernidade. Como
representantes da arte metafísica na América, apresentam uma especificidade em
relação à Europa, diz a autora, que se encontra na citação do próprio passado
local ou nativista, com acento na pátria ou nos mitos arcaicos do país. E essas se
misturam aos temas universais recorrentes na arte metafísica europeia.

84
revista de teoria da história 2 2020

O que se pode afirmar, é que a estética da angústia expressa na arte


metafísica, mostrada ao longo desse artigo, visava transcender o peculiar
presente do ser brasileiro ou argentino, ou latino-americano, não para negar a
modernidade ou para “resgatar” memórias e experiências soterradas pela
colonialidade, mas como um movimento mais amplo, concomitante ao que
acontecia na Europa, contra a exclusividade da razão, do materialismo e
positivismo. A arte metafísica era a linguagem estética que ajudava o artista
agônico a cercar-se de Deus e a conectar os fios partidos de uma suposta unidade
perdida no tempo remoto do Paraíso bíblico, da idade de ouro ou da infância da
humanidade, com base no conhecimento místico, ou conhecimento que
ultrapassasse a realidade contingente e ajudasse encontrar a essência do universo
cósmico, eterno e transcendente.
O ato artístico abordado aqui não traz, portanto, a potência de romper
os laços com a matriz colonial. O interesse pelos temas do passado faz parte do
esforço para encontrar a linguagem simbólica do mundo ancestral, internamente,
tal como os europeus fizeram ao dirigir-se para fora da Europa. Há que se
considerar que havia de comum com os europeus o corpus de erudição e a
aprendizagem das linguagens estéticas, num momento especial que fez com que
latino-americanos se igualassem em indagações e propostas de seus
contemporâneos da metrópole. Os jovens latino-americanos, intelectuais,
artistas, poetas, na grande maioria viajaram para a Europa, ou tomavam contato
com o que chegava no país vindo do estrangeiro. Quem não viajou, como foi o
caso de Mário de Andrade, tomava contato com a literatura europeia. Da
Europa, chegavam, geralmente na tradução francesa, mas lia-se também em
inglês, alemão ou italiano, obras de Pascal, Dostoievski, Tolstói, Ibsen,
Schopenhauer, Nietzsche, Rimbaud, Baudelaire, Latréamont, Kafka, Spengler,
Bergson, Freud, Keyserling. De uma forma ou de outra, a intelectualidade letrada
da Argentina e do Brasil, como de resto de toda a América Latina, era formada
naquela quadra de pensamento que problematizou as sensibilidades humanas:
do pessimismo de Schopenhauer, do homem do ressentimento de Nietzsche, da
revolta de Rimbaud e de Latréamont, do medo do declínio do Ocidente de
Spengler, da incerteza do inconsciente de Freud, e do Dasein de Heidegger,
mostrando que o humano é na medida da sua existência cotidiana.
Xul Solar era portador de uma cultura erudita. A mãe italiana, Agustina
Solari, e o pai, alemão, Emílio Schulz, engenheiro, culto, e que trazia na bagagem,
além de livros, “álbuns musicais manuscritos que permite imaginar o tipo de
repertório que lhe interessava” (Cristiá 2007, 25). Com a idade de 24 anos, Xul
foi para a Europa e lá permaneceu por doze anos (1912-1924), passando
temporadas em Londres, Paris, Florença, Milão, Turim e Munique, em meio ao
revival espiritual do programa estético de Kandinsky e Franz Marc, o que lhe
possibilitou contatos com a estética de inspiração teosófica de Mondrian, com o
misticismo religioso e messiânico que atravessa a teoria e a prática pictórica de
Malevich e com as associações entre música e cores de Paul Klee.
Ismael Nery, de descendência portuguesa, holandesa e índia, nasceu em
Belém do Pará, filho de um médico famoso, oficial da Marinha, na patente de
Capitão da Fragata que morreu aos 33 anos de idade, de um ataque cardíaco, a
bordo do navio quando voltava de um Congresso em Copenhague. Com a morte
do pai, Ismael com a idade 9 anos transfere-se com a mãe para Rio de Janeiro,
para juntar-se à família materna que era dona de várias propriedades na cidade
(Cordeiro 2003, 8). No Rio, estudou na Academia de Belas Artes e frequentou
o curso de Arquitetura. Em 1921, Ismael viajou para a Europa, onde permaneceu
por um ano, na França e na Itália. Matriculou-se na Academia Julien, de Paris. E

85
revista de teoria da história 2 2020

vai também ao Oriente Médio visitar as Terras Santas, em companhia da mãe,


que era mística. Em 1927, faz sua segunda viagem à Europa. Conhece André
Breton, o principal teórico do surrealismo e entra em contato com a produção
artística de Chagall e Miró.9
Os avós paternos de Leopoldo Marechal eram franceses que emigraram
para o Uruguai. O avô era natural de Paris e havia lutado na Comuna. Dele,
Marechal herdou o gosto pela leitura e o fervor revolucionário. Os avós
maternos eram espanhóis. O avô dado à poesia. (Maturo 1999, 26). Conta
Graciela Maturo (1999, 25) que na biblioteca de Marechal viu várias edições da
Bíblia, 6 tomos de Platão em francês, 2 tomos de Heródoto, as obras completas
de Homero, Tertuliano, Horácio e Virgílio, Confissões de Santo Agostinho, e
muitos outros clássicos do mundo antigo e dos teólogos e de santos da igreja.
Havia Pascal, Montaigne, Joyce. Livros de filosofia, de ciências e história. Livros
de sabedoria oriental, enciclopédias. “En suma, sin tratarse de un repositorio
numéricamente cuantioso, era la biblioteca siempre consultada de un cristiano
humanista, nutrido en las fuentes clásicas, fiel a sus maestros y abiertos a la
problemática de su tiempo”. Em 1926, Marechal viajou a Madrid e de lá foi a
Paris. Além de encontrar diversos amigos intelectuais e artistas argentinos que lá
se encontravam, esteve com Picasso e Unamuno, assim como com o grupo dos
surrealistas. “Sus amigos plásticos lo ayudaban a descubrir los secretos de la
armonía clásica: releía metódicamente las epopeyas, estudiaba las líneas
filosóficas de Platón-San Agustín y Aristóteles-Santo Tomás de Aquino”
(Maturo 1999, 29).
Portanto, o ideal da linguagem metafísica praticada na América, dentro
do escopo do ethos agônico, era concomitante ao europeu. No entorno da
passagem do século XIX para o XX, a tese da Decadência do Ocidente gerou um
movimento espiritual que pregava uma espécie de “retorno” ao passado da
humanidade, à procura de mitos e culturas “primitivas”, de elos “perdidos” que
religassem o “homem” às suas origens adâmicas, à infância da humanidade
perdida com a queda do Paraíso. As artes de vanguarda (desde Van Gogh e
Gauguin a Derain, Matisse, Picasso, Kandinsky, Franz Marc, Brancusi),
procuravam fora da Europa (na arte do Extremo Oriente, da tribal africana ou
do Egito, nos entalhes neolíticos, nas culturas pré-colombianas, nas religiões
orientais ou no cristianismo da Idade Média, nas culturas transformadas em
folclore), referência para suas experimentações formais artísticas.
Na América do Sul, o movimento apresenta-se com a dupla face do Jano:
uma voltada para “fora”, para a Europa e para o futuro, tanto no que se refere
ao uso das linguagens formais artísticas, quanto à atualização das referências
teóricas; outra, voltada para “dentro”, para o seu próprio passado. Contudo, esse
interesse pelo passado da nação ou do continente significava a procura de
elementos locais para, a partir daí, alçar voos para alcançar o universo, para
contribuir no ideal de um “novo mundo”, um “novo homem”, ideário da
“matriz”, da metrópole, naquele pós-primeira guerra mundial.

9 Embora tivesse origem indígena, Ismael ressaltou suas feições indígenas apenas no
Autorretrato de 1927, mostrado acima. Ele achava que o modernismo brasileiro dedicado a temas
nacionais estava se inclinando para o anedótico e a superficialidade. Os mexicanos talvez
tivessem razão para pintar o índio, dizia, pois que o elemento autóctone via-se entrosado na
sociedade, ao passo que no Brasil, o índio era visto no cinema de Hollywood. Quanto ao negro,
ele achava que somente a sensibilidade negra poderia expressá-lo. A arte brasileira deveria
construir-se no plano universal.

86
revista de teoria da história 2 2020

O nome da novela de Leopoldo Marechal leva o nome do “primeiro


pai”. A presença desse mito e de sua companheira Eva era recorrente na arte de
vanguarda. Marc Chagall, inspiração de Ismael Nery, pintou pelo menos 16 vezes
o casal adâmico. Na arte dos pré-rafaelitas, fonte dos místicos modernistas,
William Blake fez 10 pinturas de Adão e Eva. Gauguin representou o casal
adâmico e mais três Evas, ambientados na Polinésia. Há 5 obras do primeiro
casal realizadas no surrealismo de Salvador Dali. Adão e Eva aparecem
gordinhos e gordinhas na pintura de Botero. Também aparecem dourados no
simbolismo de Gustav Klimt. Graciela Maturo (1999, 120) lembra que o tema
América-Paraíso, gravado no imaginário, é retomado pelos modernistas e
vanguardistas na Argentina. Lugones e Darío trabalharam o tema e Vicente
Huidobro também criou seu Adão.
Ismael Nery tinha obsessão pelo desenho de casais, cujos corpos
misturados entrelaçados davam uma ideia de que os primeiros humanos tinham
sido andróginos, nem homem nem mulher, eram um só ser. A divisão dos sexos
teria sido consequência da queda. No desenho Pecado original, vemos um
movimento em diástole, para fora: os pés e os membros inferiores das três
figuras – a mulher, o homem e a árvore antropomórfica -, ainda se encontram
unidos, porém, em posição de avançar. Eva agarrada às costas de Adão, o quadro
retrata os segundos que antecedem a queda do “homem”, a separação da
natureza, a maldição da divisão dos sexos e a perda do Paraíso.

Figura 8: Ismael Nery, Pecado Original, s/d., crayon e aquarela s/papel, 26,5x17,2 cm
Coleção particular Chaim José Hamer, S Fonte: (Catálogo, 1984, 161)

Na obra de Xul Solar, não encontrei Adão e Eva representados, mas a


serpente aparece em diversas imagens, carreando diversos símbolos,
especialmente nas pinturas que integram o que se conhece como seu ciclo
americano – 1923-1927 –, plenas de referências pré-colombianas. Acreditava,
Xul, que a América, com seus sistemas de mitos e crenças, podia dar “al mundo
convulsionado un gran ejemplo de convivencia, de confraternidad, de mutuo
respecto, sobre todo entre los países de origen latino” (Sheerwood 2005, 76).
Seu desejo criollista era levar “Al mundo cansado, aportar un sentido nuevo, una
vida más múltiple y más alta...” Seu patriotismo era encontrar “el más alto ideal
posible de humanidá – realizarlo y extenderlo al mundo” (Xul Solar 2005, 99).

87
revista de teoria da história 2 2020

À GUISA DE CONCLUSÃO
Na epopeia de Leopoldo Marechal, ambientada na Buenos Ayres dos
anos de 1920, Adán, antonomásia do próprio autor (uma novela autobiográfica),
é o herói, aquele que conduz as outras personagens, todas reconhecidas como
representações dos antigos companheiros do movimento da vanguarda criollista
(congênere do modernismo antropofágico brasileiro, embora com
especificidades próprias), em torno da Revista Proa (1922-1923) e da Martin Fierro
(1924-1927): Jorge Luis Borges, Norah Borges, Jacobo Fijman, Raul Scalabrini
Ortíz, Xul Solar, Oliverio Girondo, Raúl González Tuñon, Macedônio
Fernández, Eduardo González Lanuza. O autor, Leopoldo Marechal, “viveu as
peripécias dessa vanguarda argentina, de tônica vitalista e criollista, mas logo
produziu uma paulatina conversão, de índole espiritual e religiosa, assumindo
um cristianismo militante.” (Maturo 1999, 30).
Renata Rocco-Cuzzi (2004, 462) cita uma das resenhas do livro, que saiu
logo após a publicação em 1948: “Leopoldo Marechal: Adán Buenosayres, un
iracundo (irado) análisis por parte de quien había pertencido a la vanguardia
mantinfierrista”. 10 Rocco-Cuzzi (2004, 464) levanta a seguinte questão: por que
Marechal insiste em definir o livro como epopeia? Por que o caráter épico da
viagem como descobrimento de territórios desconhecidos? “O périplo que faz
a Saavedra [bairro nos arredores de Buenos Aires], pode ler-se – responde a
autora - em duas dimensões: como a destituição do criolismo e a depuração de
seus companheiros da Revista Matin Fierro; e também como reescrita do passado
mítico nacional na chave da paródia.” Por outro lado, as personagens, ironizadas,
aqueles antigos companheiros, agora “sujeitos que desviam o povo de seu
destino: os irresponsáveis políticos, os corruptos, os intelectuais, os que alijam o
bem do caminho verdadeiro, põem em palavras as pretensões do autor de atuar
como o condutor da travessia para a verdade”.
Segundo Rocco-Cuzzi (2004, 462), o próprio Marechal em certa ocasião,
declarou: “Soy retrógrado, pero no un ‘oscurantista’, ya que voy, precisamente,
de la obscuridad a la luz”. O retrógrado para Marechal, vai de uma conotação
negativa para uma qualificação positiva, no sentido de melhoramento, no sentido
de chegar a uma sorte de lugar de excelência, na projeção do futuro que vai “de
la oscuridad a la luz”, ou seja, da confusão à verdade. Definitivamente, diz a
autora, Adán Buenosayres é o eleito para protagonizar a viagem espiritual que
Marechal considera ser seu atributo de herói diante das ações risíveis das outras
personagens.

10 O peronismo de Marechal foi ao ponto de se tornarem inimigos, ele e Borges. Enquanto

Marechal trabalhava para levar Peron ao poder, Jorge Luis Borges, entre muitos artistas e
intelectuais, assinou o manifesto, em 1946, em prol da União Democrática, adversária de Perón.
Embora Xul Solar não tivesse assinado o manifesto de 1946 e nem a lista de 1928, na qual estava
Borges, a favor da reeleição Hipólito Yrigoyen, os dois, Xul e Borges continuaram amigos. Xul
Solar praticamente não se envolveu com a política. (Albós 2004, 244-246).

88
revista de teoria da história 2 2020

Diferente da interpretação de Beatriz Sarlo (2002), que considera que


Marechal, com sua representação, homenageia a Xul Solar na novela Adán
Buenosayres, Renata Rocco-Cuzzi (2004, 464), pelo contrário, afirma que o périplo
a Saavedra, é “una destitución del criollismo y uma depuración de sus
compañeros de la gesta martinfierrista” (2004, 464). O personagem Luis Pereda,
tido como “fortachón y bamboleante como un jabalí ciego”, representa Jorge
Luis Borges, um dos companheiros martinfierristas tratado com “más saña”, na
“voz irónica” do narrador Adán Buenosayres. A Luis Pereda/Borges é atribuída
o papel de teórico do criollismo; e ao astrólogo Schultze/Xul Solar, o inventor
do neo-criollo (Rocco-Cuzzi 2004, 471).
A certa altura da novela, Adán dirige-se a Luis Pereda/Borges e lhe
declara: “Soy um argentino en esperanza”. No momento Adán não podia
solidarizar-se com a realidade do país. Mas tinha esperança de religar os fios dos
valores e da tradição que seus avós tinham cortado ao saírem da Europa e se
instalado na nova pátria. “... a mí me toca reanudar ese hilo y reconstruirme
según los valores de mi raza. En eso ando. Y me parece que cuando todos hagan
lo mismo el país tendrá una forma espiritual” (Marechal 2013, 87). Maturo (1999,
126) considera que Adán Buenosayres é o espaço narrativo do acesso a ipseidade,
que esteticamente caracteriza como presente de um ser novo, que estava morto
e renasceu: Adão, Cristo, o Homem Novo. A posição de Marechal, como a de
Dante, afirmou-se na prioridade da queda. O homem deve perder-se no labirinto
do mundo para encontrar o destino superior de sua alma. Perder-se para
reencontrar-se, palavra do Evangelho (Maturo 1999, 35).
Ninguém aqui escapou ao etnocentrismo cultural. Ou como disse
Borges, “nada pode evitar a influência deste livro [Bíblia] e as consequências que
ele forjou. (Apud. Lopez-Pedraza 1997, 34). Rafael López-Pedraza, psicanalista
junguiano e professor de mitologia na Escola de Letras da Universidade Central
da Venezuela, levanta questão pertinente para irmos encerrando por aqui: a
estética da angústia, abordada ao longo desse artigo, tem raiz na civilização
ocidental e, como tal, é componente intrínseco do processo
modernidade/colonialidade. Dessa feita, não contém gérmens que induzam a
uma prática decolonial.
A ansiedade cultural, que se dá no plano psíquico no quadro da
civilização, segundo Lopez-Pedraza, está fundada no conflito ante à “imposição”
do monoteísmo bíblico sobre a visão politeísta do imaginário religioso pagão.
Quais as implicações que essa imposição tem sobre a cultura ocidental e, em
particular no quadro da colonização? O autor parte do pressuposto de que o
monoteísmo e o politeísmo constituem campos fundamentais da psique
ocidental. Mas, é “preciso que sejamos mais astutos ao reconhecer o que surge
do lado monoteísta da vida – consciência coletiva, crença, fé, e o que surge do
lado mais reprimido, pagão, politeísta: as imagens arquetípicas” (López-Pedraza
1997, 39). E “é preciso considerar - diz o autor - que esse processo cultural
ocidental, não leva em consideração nem histórias e nem geografias próprias”.
Para argumentar, López-Pedraza (1997, 63) usa a própria experiência de
homem caribenho, “produto histórico (...) do que se pode chamar o barroco latino-
americano.” Uma mistura de cristianismo já em sua versão espanhola, que tenta
um certo equilíbrio entre o monoteísmo trinitário e as antigas imagens arraigadas
no Mediterrâneo, e mais um forte componente celta. Esse “sincretismo
religioso”, que produz sua própria ansiedade e seu próprio dinamismo, “tornou-
se ainda mais amplo quando da fusão com as numerosas religiões americanas
autóctones, sem esquecer as religiões que os africanos traziam em suas almas”.
Nesse espaço, o eixo da dinâmica inclina-se para politeísmo, visto como inferior

89
revista de teoria da história 2 2020

na relação com monoteísmo. “...eu sinto medo do monoteísmo e o vejo mais


como um excesso ameaçador do que como algo que incitaria as imagens da alma,
as imagens que nutrem o sentido da vida”. E ademais, López-Pedraza (1997, 64)
acrescenta que no “monoteísmo”, embute-se “o monoteísmo norte-americano
concebido a partir dessa mescla de racismo e religião, os brancos anglo-saxões e
protestantes (WASPS), leitores da Bíblia...”, sem deixar de lembrar que do outro
lado existe “a concepção monoteísta do ex-Estado soviético”.
Se o afeto da angústia é constitutivo da existência humana; se é algo do
qual não se pode fugir correndo; se a angústia é um momento de disposição
especial do nosso ânimo que nos coloca em uma situação de mal-estar que não
pode ser tributado a nada e, por isso, é o caminho que nos coloca face a face
conosco mesmo, diante das nossas próprias condições individuais e singulares
(Giacoia Júnior 2018), o artista portador do pathos agônico, num misto de ação e
fracasso, tenta produzir na arte ou pela arte um resultado que a justifica [a
angústia] e a transcende, uma vez que está enraizada na consciência do ato
criativo como produto de um estado de crise. Essa dualidade que existe entre
desejo de criar e instabilidade emocional, entre aspirações e conquistas, é a
mesma experiência dos jovens poetas iconoclastas: Arthur Rimbaud, Baudelaire,
Lautrèamont, e se remonta ao conceito essencial do Ser, a dicotomia que se
estabelece entre o Bem e o Mal. A angústia não está longe da fantasia, disse
Lacan (2005, 12). Ou, do mesmo autor, a angústia tem uma relação especial com
o desejo do Outro (Lacan 2005, 14).
Para concluir, voltemos à epígrafe que se encontro no topo do artigo,
um excerto da crítica que fez Julio Cortázar, em 1949, a Adán Buenosayres.
Marechal toca, diz Cortázar, na “funda raiz do desassossego”, toca “al fondo de
la angustia occidental contemporânea”. O ápice da viagem do protagonista
aconteceu na noite em frente à Igreja de São Bernardo, diante da imagem do
Cristo de la Mano Rota. O Adán solitário em sua angústia, em sua sede de unidade,
sente a mesma náusea que o melancólico Antoine Roquetin, personagem do
livro de Sartre, A Náusea, de 1938. “Deixei-me cair num banco... Gostaria tanto
de me abandonar, de esquecer de mim (...). Mas não posso, sufoco: a existência
penetra em mim por todos os lados ...” (Sartre 2016, 170).

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad.


Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.
ALBÓS, Álvaro. Xul Solar. Pintor del misterio. Buenos Aires: Sudamericana, 2004.
ALMEIDA, Rogério Miranda de. Kierkegaard, Freud e o Conceito de Angústia. Podcast
de Filosofia, FASBAM, 2019. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=MqqUBjwGyQs Acesso em: 07 jul. 2020.
ARENDT, Hannah. Entre passado e futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São
Paulo: Perspectiva, 1988.
ARRIGUCI JR., Davi. O cacto e as ruínas. A poesia entre outras artes. São Paulo; Ed. 34,
2000.
BENTO, Antônio. Ismael Nery. São Paulo: Gráficos Brunner Ltda., 1973.
CATÁLOGO. Xul Solar. Fundación Pan Klub. Museu Xul Solar. Buenos Aires, 1990.
CATÁLOGO. Ismael Nery – 50 anos depois. Curadoria: Aracy Amaral. São Paulo: Museu
de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. 1984.

90
revista de teoria da história 2 2020

CEZARETTI, Maria Elisa Linardi de Oliveira. Poética Metafísica na Pintura da Modernidade


Latino-Americana. Dissertação de Mestrado. SBD-FFLCH-USP, 1994.
CORDEIRO, André T. Ismael Nery: o olho no telescópio. Belém: Dissertação de Mestrado,
2003.
CORTÁZAR, Julio. Leopoldo Marechal: Adán Buenosayres. Revista Realidad, marzo/abril
de 1949, p. 232-238. Disponível
em: https://www.oocities.org/juliocortazar_arg/marechalcri.htm. Acesso em: 07
ago. 2020.
CRISTIÁ, Cintia. Xul Solar. La música en su vida y obra. Buenos Aires: Gourmet
Musical Ediciones, 2007.
FELINTO, Marilena. Opinião. Folha de São Paulo. 18/07/2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/07/livro-alienacao-e-liberdade-
revela-enigmas-do-frantz-fanon-psiquiatra.shtml Acesso em: 23 jul. 2020.
FERNANDEZ, Senir Lourenço. Ismael Nery: a narrativa do essencial. In: AMARAL,
Aracy (org.) Ismael Nery 50 anos depois. São Paulo: AC-USP, 1984. p. 148-166.
FLORES, Maria B. R. Tecnologia e estética do racismo. Chapecó/SC: Argos, 2007.
FLORES, Maria B. R. Xul Solar e Ismael Nery entre outros místicos modernos. Sobre o revival
espiritual. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2017.
FLORES, Maria B. R. Imagem e memória. As musas inquientantes. In: PATRIOTA,
R., RAMOS, A. F., PESAVENTO, S. J. (Orgs.). Imagens na História - Objetos de
História Cultural. São Paulo: HUCITEC, 2008, p.185-225.
FREUD, Sigmund. O infamiliar (Das Unheimliche). Trad. Ernani Chaves e Pedro H.
Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Podcast. Kierkegaard: angústia e esperança. 10/04/2018.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VjGGl4EREAo Acesso em:
20 jul.2020.
GIROLA, Roberto. Podcast. A angústia (Freud e a Filosofia). Junho de 2000. Disponível
em: https://www.robertogirola.com.br/index.php/item/720-angustia-freud Acesso
em: 06 jul.2020.
GREENBLATT, Stephen. Ascensão e queda de Adão e Eva. Trad. Donaldson M.
Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
GLUSBERG, Jorge. Xul Solar Y la angustia como liberación de lo finito. In:
CATÁLOGO. Xul Solar en el Museo Nacional de Bellas Artes. Buenos Aires: MNBA,
1998.
GLUSBERG, Jorge. El arte paralelo de Paul Klee y Xul Solar. CATÁLOGO. Paul Klee
invita a Xul Solar en el Museo Nacional de Bellas Artes. Buenos Aires: MNBA,
1990, p. 13.
GÓMEZ, Pedro P., MIGNOLO, Walter. Estéticas decoloniais. Bogotá: Libros
Electrónicos, 2012.
GRADOWCZYK, Mario (1994). Alejandro Xul Solar. Buenos Aires: Ed. Alba,
Fundación Bunge y Born.
IVO, Ledo. Prefácio. RIMBAUD, Artur. Uma temporada no Inferno & Iluminações. Trad.
Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2004.
KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo:
Hemus, 1968.
LACAN, Jacques. Angústia. Seminário 10. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar,
2005.
LÓPEZ-PEDRAZA, Rafael. Ansiedade Cultural. Trad. Roberto Cirani. São Paulo:
Paulus, 1997.
MARECHAL, Leopoldo. Adán Buenosayres. Barcelona: EDHASA, 1981.

91
revista de teoria da história 2 2020

MARECHAL, Leopoldo. Adán Buenosayres. La Baldrich - Espacio de Pensamiento


Nacional Disponível em: http://www.labaldrich.com.ar/wp-
content/uploads/2013/03/Ad%C3%A1n-Buenosayres-Leopoldo-Marechal.pdf
Acesso em: 01 jul. 2020.
MATURO, Graciela. Marechal, el caminho de la beleza. Buenos Aires: Biblos, 1999.
MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: EDUSP; Editora Giordano,
1996.
NELSON, Daniel E. Los san signos de Xul Solar: El libro de las mutaciones. In:
CATÁLOGO. Xul Solar: Visiones y revelaciones. Buenos Aires; São Paulo: MALBA;
Pinacoteca, 2005, p. 49-59.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
READ, Herbert. Escultura Moderna. Trad. Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
ROCCO-CUZZI, Renata. Las epopeyas de Leopoldo Marechal. JITRIK, Noé. História
crítica de la literatura argentina. Vol. 9. Buenos Aires: Emecé Editores, 2004.
ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário amoroso da psicanálise. Trad. André Telles. Rio de
Janeiro: Zahar, 2019.
SARLO, Beatriz. El caso Xul Solar. Invención fantástica y nacionalidad cultural. In.
CATÁLOGO. Xul Solar. Madrid, Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía,
2002, p. 45-55.
SANT´ANA, Affonso Romano de. Ismael Nery: a circularidade do um, do dois e do
três. In: CATÁLOGO. Ismael Nery – 100 anos: a poética de um mito. Curadoria: Denise
Mattar. São Paulo: Fundação Armando Álvares Penteado, 2000, p. 59-62.
SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
SHEERWOOD, Gregory. Gente de mi ciudad: Xul Solar, campeón mundial de
panajedrez y el inquieto creador de la 'panlingua'. In: ARTUNDO, Patrícia M.
(Org.). Xul Solar. Buenos Aires: Corregidor, 2005, p. 75-80.
XUL SOLAR, Alejandro: Entrevistas, artículos y textos inéditos, Introducción, investigación,
selección y organización de Patricia M. Artundo, Buenos Aires, Corregidor, 2005.

A ANGÚSTIA DE ADÃO NA AMÉRICA


ARTIGO RECEBIDO EM 01/09/2020 • ACEITO EM 26/11/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65405
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

92
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

Nossos mortos têm voz


NOTAS CLÍNICAS E
POLÍTICAS SOBRE
IMAGENS E VOZES

THALES DE MEDEIROS RIBEIRO


Universidade Estadual de Campinas
Campinas | São Paulo | Brasil
thalesmedeirosribeiro@gmail.com
orcid.org/0000-0002-0005-133X

VANESSA DA CUNHA PRADO D’AFONSECA


Universidade Estadual de Campinas
Campinas | São Paulo | Brasil
vanessadafonseca@hotmail.com
orcid.org/0000-0003-1119-945X

Após o assassinato de mais de 500 civis por esquadrões da


morte da polícia militar em maio de 2006, Débora Maria da
Silva fundou o movimento social Mães de Maio, uma “rede
autônoma de mães, familiares e amigos de vítimas diretas da
violência estatal”. Ao trabalhar em parceria com as Mães de
Maio, Clara Ianni realizou dois documentários. Em Mães
(2013), a cineasta acompanha o encontro dessas mulheres
antes do início de um trabalho clínico conduzido pelo
coletivo Margens Clínicas. Em Apelo (2014), a fundadora do
movimento social recita um manifesto no Cemitério de
Perus, lugar que serviu de vala clandestina durante a ditadura
civil-militar, e ainda é utilizado para o enterro de indigentes.
Em nosso artigo, esses dois documentários serão um espaço
privilegiado para darmos relevo a articulações entre
conceitos psicanalíticos e aqueles que, desde o arcabouço
estético e político forjados no campo da Filosofia e da
História, implicam a Psicanálise, sua disciplina, sua clínica e
sua ética.

Clara Ianni – Mães de Maio – Psicanálise

93
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

Nos morts ont une voix


NOTES CLINIQUES ET
POLITIQUES SUR DES
IMAGES ET DES VOIX

THALES DE MEDEIROS RIBEIRO


Universidade Estadual de Campinas
Campinas | São Paulo | Brésil
thalesmedeirosribeiro@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0005-133X

VANESSA DA CUNHA PRADO D’AFONSECA


Universidade Estadual de Campinas
Campinas | São Paulo | Brésil
vanessadafonseca@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0003-1119-945X

Après le meurtre de plus de 500 civils par les escadrons de la


mort de la police militaire en mai 2006, Débora Maria da
Silva a fondé le mouvement social Maes de Maio, un « réseau
autonome de mères, de familles et d'amis de victimes directes
de la violence d'État ». En partenariat avec le mouvement
social, Clara Ianni a réalisé deux documentaires. Dans Mères
(2013), la cinéaste accompagne la rencontre de ces femmes
avant le début d'un travail clinique mené par le collectif
Marges Clinicats. Dans Appel (2014), la fondatrice du
mouvement social récite un manifeste au cimetière de Peurs,
un lieu qui a servi de fossé clandestin pendant la dictature
civilo-militaire et est toujours utilisé pour l'enterrement de
personnes démunies. Ces deux documentaires seront un
espace privilégié pour mettre en évidence les liens entre les
concepts psychanalytiques et ceux qui, à partir du cadre
esthétique et politique forgé dans le domaine de la
Philosophie et de l'Histoire, impliquent la Psychanalyse, sa
discipline, sa clinique et son éthique.

Clara Ianni – Mães de Maio – Psychanalyse

94
revista de teoria da história 2 2020

“Mas lembre-se: foram nossos filhos que morreram indigentes, sem a proteção das leis e sem a
satisfação do dinheiro. Foram nossos filhos que morreram, não tiveram funeral, não viraram
monumento e nem nome de rua. [...] Como eles ousam negar a sepultura dos nossos? Como
que proíbem enterrar os corpos sem nome que se acumulam por todos os cantos?”
(Apelo 2014)

Fig. 1 – Mães de Maio (Praça da Sé, 2015). Imagem extraída de “[Entrevista Especial]: do luto
à luta: Mães de Maio incansáveis na busca por justiça” e está disponível no endereço eletrônico:
https://observatoriosc.wordpress.com/2015/06/12/entrevista-especial-do-luto-a-luta-maes-
de-maio-incansaveis-na-busca-por-justica/

Após o assassinato de mais de 500 civis por esquadrões da morte da


polícia militar em maio de 2006, três mulheres da Baixada Santista, dentre elas
Débora Maria da Silva, fundaram o movimento social Mães de Maio. No livro
Bala Perdida1, o movimento é definido como
[...] uma rede autônoma de mães, familiares e amigos de vítimas diretas da
violência estatal, formada no estado de São Paulo a partir dos fatídicos
Crimes de Maio de 2006, quando, em apenas uma semana (entre os dias
12 e 20 daquele mês), agentes policiais e grupos paramilitares de
extermínio a eles ligados assassinaram mais de quinhentas pessoas (ou seja,
mais do que o número oficial de mortos e desaparecidos durante os vinte
anos de ditadura no Brasil), numa suposta resposta ao que, na grande
mídia, se chamou à época de “ataques do PCC”. Desde então, superando
o trauma devastador inicial que se abateu sobre nossas famílias (e sempre
ameaça paralisar-nos por completo), passamos a lutar cotidianamente
contra o genocídio da população preta, pobre e periférica em todo o país
(sempre que possível, demonstrando também solidariedade internacional).
Foi a partir da dor e do luto gerados pela perda de filhos, familiares e
amigos que nos encontramos, nos reunimos e passamos a caminhar juntas
– com nosso exército libertador de filhos e filhas – e de forma
independente: do luto à luta. (Dara; Silva 2015, s/p)

1 Bala Perdida é um projeto coletivo de reflexão em torno do quadro da violência policial no

país. Destacamos três textos que tratam especificamente do Movimento Mães de Maio: “Os
mecanismos midiáticos que livram a cara dos crimes das polícias militares no Brasil”, de Laura
Caprioglione; “Duas chacinas em São Paulo – a mesma polícia, o mesmo governo”, de Maria
Rita Kehl; e “Mães e familiares de vítimas do Estado: a luta autônoma de quem sente na pele a
violência policial”, de Débora Maria da Silva e Danilo Dara.

95
revista de teoria da história 2 2020

Ao produzir um encontro dessas mulheres antes do início de um


processo terapêutico conduzido pelo coletivo Margens Clínicas, Clara Ianni2
dirigiu o documentário testemunhal Mães (2013), colocando em cena uma
reflexão sobre o caráter de “‘exceção permanente’ do contexto brasileiro e sobre
as dificuldades em dar forma às experiências que residem às margens das
narrativas hegemônicas” (Ianni 2013, S/P). Segundo a diretora, a técnica
cinematográfica split screen (a divisão da tela em, pelo menos, duas partes)
documenta, por um lado, os testemunhos das perdas vividas pelas mães e, por
outro, “coloca o espectador ‘em meio’ ao processo terapêutico que se dá entre
escuta e fala” (Ianni 2013, s/p).

Fig. 2 – Mães (Ianni 2013)

Em 2014, Clara Ianni dirigiu um segundo vídeo relacionado ao


movimento social, em que a tragédia sofocliana de Antígona ressoa amarrando
acontecimentos históricos heterogêneos3 a uma cena comum de suspensão dos
rituais funerários e de apelo feminino à sepultura. Em Apelo, Débora Maria da
Silva recita um manifesto no Cemitério de Perus, local que foi criado em 1971
com a finalidade de sepultar corpos de indigentes e abrigou, secretamente,
corpos de militantes mortos e ocultados pelas forças de segurança pública
durante a ditadura civil-militar. Em 1993, sobre a vala clandestina de onde foram
exumadas 1.049 ossadas, a prefeita Luiza Erundina e a Comissão de Familiares
de Presos Políticos e Desaparecidos inauguraram o Monumento aos Mortos e
Desaparecidos Políticos. Segundo a diretora, o vídeo é uma “tentativa de criar,
através de uma proposição artística e colaborativa, um espaço para a elaboração
da memória coletiva e para o luto” (Ianni 2014, s/p).

2 A obra de Clara Ianni é reconhecida por estabelecer um elo entre arte, política, sociedade
contemporânea e ideologia (Veras 2016). Os vídeos Mães e Apelo, assim como as descrições dos
projetos citados ao longo deste texto, estão disponíveis em sua página oficial:
http://claraianni.com/
3 Em comentário sobre o processo de filmagem de Apelo, Clara Ianni afirma que o Cemitério

de Perus é um lugar que “condensa historicamente o passado e o presente, que são as


experiências da construção do Estado nacional brasileiro de escravidão, de massacre indígena,
de ditadura militar, um Estado extremamente violento e repressivo” (Clara 2014).

96
revista de teoria da história 2 2020

Fig. 3 – Apelo (Ianni 2014)

Nesse amontoado de acontecimentos e repetições, memórias e


esquecimentos, enterros e exumações, o grito de Antígona ressoa em um “dia
longo que persiste em não acabar” (Apelo 2014). Segundo a argumentação de
Maria Rita Kehl (2009, 28), os efeitos sintomáticos de repetição e violência social
no Brasil são decorrentes de dois longos episódios “que nunca foram reparados
nem elaborados coletivamente: três séculos de barbárie escravagista [...] e duas
décadas de ditadura militar, entre 1964 e 1985”.4 A linguagem, que organiza o
campo coletivo da experiência, opera um recorte sobre o real, deixando sempre
um resto, um fragmento não simbolizado. O trauma advém desse campo não
organizado pelo significante. “Quando uma sociedade não consegue elaborar os
efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a memória do evento traumático,
esse simulacro de recalque coletivo tende a produzir repetições sinistras” (Kehl
2009, 27). De forma semelhante, Edson Teles e Vladimir Safatle afirmam que as
ações criminosas perpetradas recentemente pela polícia, pelo aparato judicial e
por setores do Estado marcam o retorno ou a reminiscência do passado
ditatorial que, sob a forma da violência, permanece “como um fantasma a
assombrar e contaminar o presente”, sobretudo devido à incapacidade do
Estado de reconhecer e julgar os crimes do passado (Teles; Safatle 2010, 10-11).
No artigo “Análise reparável e irreparável: o conceito psicanalítico de
reparação na agenda da transição brasileira”, Rafael Alves Lima se interroga
sobre a relação entre o conceito psicanalítico de reparação e a proposta de
reparação psíquica da Justiça de Transição, levantando a tese de que a história é

4 No artigo “Tortura e sintoma social”, Kehl (2010) afirma que as vítimas dos abusos da
ditadura civil-militar brasileira não se recusaram a “elaborar publicamente o trauma” e lembra
que um ano antes do governo instituir uma política de “reparação” às famílias dos desparecidos
da ditadura, a professora Maria Lígia Quartim de Moraes, viúva de um militante desaparecido,
“organizou naquela universidade um debate sobre a tortura e os assassinatos políticos da
ditadura. Na mesa redonda sobre testemunhos de mulheres torturadas, [...] pude observar que o
ato de tornar públicos o sofrimento e os agravos infligidos ao corpo (privado) de cada uma daquelas mulheres,
poderia pôr fim à impossibilidade de esquecer o trauma. Da mesma forma, os (as) companheiros (as) e
filhos (as) de desaparecidos (as) políticos, na ausência de um corpo diante do qual prestar as
homenagens fúnebres, só puderam enterrar simbolicamente seus mortos ao velar em um espaço
público a memória deles e compartilhar com uma assembleia solidária a indignação pelo ato
bárbaro que causou seu desaparecimento” (Kehl, 2010, 127, grifo nosso).

97
revista de teoria da história 2 2020

“o solo do reconhecimento social da incidência do trauma5, lá onde a reflexão


deve se direcionar à não repetição das graves violações de direitos humanos do
período ditatorial na transição para a democracia” (Lima 2017, 117-118). O autor
levanta uma discussão sobre os modos pelos quais “a dimensão reparatória se
destina à história, na medida em que o reconhecimento social da experiência
traumática se torna possível pela função do testemunho” (Lima 2017, 117-118).
Se, desde Freud, os diferentes programas clínicos da psicanálise e suas
respectivas concepções de transferência foram pautados na compreensão
comum de que o conceito de reparação apontaria para uma dimensão
intersubjetiva, cada programa dará um destino próprio a essa premissa geral.
“Muito rapidamente chega-se à constatação de que, no limite, problematizar o
conceito de reparação em psicanálise implica compreender o que cada autor [ou cada tradição]
chama de objeto” (Lima 2017, 118, grifo do autor).
A partir de sua ontologia negativa, Lacan sublinhou o caráter faltante do
objeto, diferenciando-se da psicanálise da relação objetal, uma vez que qualquer
tentativa de restituição, restauração ou reparação do objeto é considerada
insustentável. Em outras palavras, pautando-se nas dimensões dos registros do
Real, do Simbólico e do Imaginário, Lacan recusa radicalmente qualquer
programa clínico que parta da promessa de completude ou plenitude, “de
unificação de um suposto objeto dilacerado: a falta é condição implacável com
a qual o sujeito terá que lidar pelo resto da vida, não sendo nunca e de nenhum
modo tamponável” (Lima 2017, 124). O objeto a causa do desejo, será o objeto
por excelência. “O objeto à é o resto que escapa a significação fálica; ele cria um
curto-circuito no campo do desejo lá onde ele se apresenta como o objeto
perdido desde sempre” (Lima 2017, 125). A desconfiança de Lacan em relação
às promessas de reparações plenas serve como uma advertência relativa à
dimensão ética. Lima evoca a figura trágica de Antígona para problematizar o
estatuto do testemunho na clínica:
Aqui a leitura lacaniana da tragédia de Antígona, cuja ética se fundamenta
no não ceder do desejo lá onde este exige do sujeito a violação e
transposição dos limites da Lei, parece encontrar a nossa temática da
demanda por reconhecimento dos crimes perpetrados pelo Estado. Não
é raro que os pacientes que procuraram a reparação psíquica se encontrem
em um estado de luto interrompido em seu curso esperado, cuja
incapacidade de enterrar seus mortos esteja chancelada pela ausência
sistemática do reconhecimento por parte do Estado. Ao restituir ao resto
que não se inscreve na simbolização possível o lugar que lhe coube na
devida herança freudiana, o psicanalista francês nos deixa a lição de que o
ato ético é, em última instância, da ordem do irreparável. No entanto,
irreparável não é o mesmo que impossível. Lacan, ele mesmo costumava
dizer as melhores compreensões sobre a dimensão do impossível não se
dão ao tomá-las pela negação que lhe é própria. Logo, compreender o que
é possível respeitando a inexorabilidade do impossível reparar nos leva à
discussão sobre a inscrição do acontecimento na rede de reconhecimento
socialmente partilhada a que podemos chamar História. (Lima 2017, 126)

5 No início de sua obra, Freud apresentou a ideia de uma “‘origem traumática’ para pensar
na causalidade dos sintomas histéricos a partir da vivência do abuso sexual infantil”.
Posteriormente, Freud abandonaria a perspectiva de que tal abuso fosse um acontecimento real
para “aceder a uma teorização sobre a fantasia” (Lima 2017, 119). Vale destacar que o “abuso
sexual infantil” não é a figura exclusiva do trauma. Em seus estudos sobre as neuroses
traumáticas em decorrência da Primeira Guerra Mundial, Freud pôde compreender como o
sonho dos combatentes produzia uma “repetição surpreendentemente incapaz de dar ensejo à
função onírica de elaboração” (Lima 2017, 120).

98
revista de teoria da história 2 2020

Entre a clínica e a história, a função do testemunho seria, no limite, a de


“não admitir ser soterrado. Não há como apagar as manchas da violência, e
penso que a estratégia não poderia ser essa, pois é a psicanálise mesma que ensina
que a catástrofe carrega em si a ameaça de sua repetição” (Lima 2017, 128). Ao
lado dessas reflexões sobre a repetição na história e a elaboração da violência,
deixemos em suspenso a evidência de uma passagem imediata entre a psicanálise
e a história.
Em nosso artigo, tentaremos sair do registro de uma clínica da reparação
psíquica, não porque a critiquemos ou a reprovemos, muito pelo contrário. Mas
para dar relevo, por um lado, a uma dimensão da responsabilidade que não se
esgota no campo discursivo do direito – consequentemente o do
reconhecimento e o da reparação – e, por outro, para acompanhar a notável
dissonância de Apelo com esse outro documentário testemunhal que é o Mães e
com a série de textos que constituem um heterogêneo arquivo sobre os Crimes
de Maio (dentre os quais destacaremos uma petição pública assinada pelo
movimento social em 2012). Marcamos essa dissonância por um deslizamento
do termo testemunho para testamento, movidos apenas pela memória de um
aforismo do poeta René Char citado por Hannah Arendt (2001, 28), uma das
primeiras filósofas a tornar-se testemunha do campo que se abriria com o
julgamento de Eichmann: “nossa herança nos foi deixada sem nenhum
testamento”.

II

Em 1940, meses antes de sua morte, Walter Benjamin (2005, 65)


escreveu: “os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso.
E esse inimigo não tem cessado de vencer”. A história oficial é, segundo o
filósofo, um cortejo em que os vencedores de ontem e de hoje marcham sobre
os corpos dos vencidos. “Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha
junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem]
por cima dos que, hoje, jazem por terra” (Benjamin 2005, 70).
Antes de nós, muitos outros responderam à convocação das imagens de
Benjamin, retirando consequências de suas injunções para a teoria da história ou
para a filosofia política contemporânea6. Desde que observamos tal convocação
a partir da linguística e da psicanálise, é necessário pensarmos a recorrência da
imagem da marcha sobre os corpos dos vencidos nas formas mesmas de seu
aparecimento nos documentos, relatórios e artigos relacionados ao movimento
social. Assim como ocorre na clínica do testemunho, a repetição dessa imagem
é um apelo à elaboração e à reparação histórica desse soterramento.

6 Adorno, por exemplo, no aforismo 98 de Minima Moralia, comenta a posição de Benjamin


frente à escrita da história da seguinte forma: “Quando Benjamin fala de que, até agora, a história
foi escrita do ponto de vista do vencedor e que era preciso escrevê-la sob a perspectiva do
vencido, devia ter acrescentado que o conhecimento tem, sem dúvida, de reproduzir a infeliz
linearidade da sucessão da vitória e derrota e, ao mesmo tempo, virar-se para o que nesta
dinâmica não interveio, ficando – por assim dizer – à beira do caminho os materiais de refugo e
os pontos cegos que se subtraem à dialética” (Adorno 2001, 143).

99
revista de teoria da história 2 2020

Hoje, passados cinco anos e meio desde os terríveis Crimes, milhões de


pessoas ao redor de todo o Mundo já sabem o que realmente aconteceu
naqueles trágicos dias. Entretanto, muitas mais ainda precisam saber,
principalmente aqui no Brasil, onde o massacre aconteceu, e onde a marcha fúnebre
prossegue com o desconhecimento ou a conivência de muitos. (Petição 2012, s/p, grifo
nosso)
Afinal, quem mais está preocupado em recuperar a história, lutar por outras
formas de justiça e, sobretudo, reparação e colocar freios efetivos à marcha fúnebre que
não cessa de empilhar corpos de nosso povo durante essa democracia das chacinas? Nós
nos propomos a isso, gritando, quebrando algemas, queimando emblemas,
saindo às ruas e bolando táticas e estratégias junto aos demais coletivos
autônomos de nosso povo. (Silva; Dara 2015, s/p, grifo nosso)

Se não estamos no campo macro de uma teorização sobre a história ou


sobre a filosofia política, mas apenas suportados pelas materialidades de
documentos produzidos por um movimento social organizado no campo do
testemunho, da reparação e do reconhecimento de direitos no Brasil, a
regularidade do aparecimento da citação de Benjamin nos textos de estofo a esse
campo acaba por nos interrogar.
Torna-se um fato que, no apelo às imagens próprio ao texto
benjaminiano, vem a se associar a algo que lhe é heterogêneo, mas que revela
uma outra regularidade: a imagem da marcha sobre os corpos dos vencidos
pareado à referência política à Antígona contida em Apelo.
Movimento em que uma petição pública escrita no Brasil, datada e
assinada em uma reverência ao dia de Iemanjá (“Santos, 02 de Fevereiro de 2012
– Dia de Iemanjá”), encontra o texto benjaminiano do século passado ao lembrar
que “A luta pelo Desarquivamento e pela Federalização das investigações sobre
os Crimes de Maio de 2006 – este Crime de Lesa-Humanidade – se insere nesta
tradição de resistência de todos os oprimidos que lutaram e lutam pela Memória,
pela Verdade e por Justiça, em relação a todos os massacres históricos”, e que,
finalmente, acaba por se associar, anos depois, com Apelo, à tragédia de
Antígona.
Diante dessas heterogeneidades reunidas em uma imagem lembramo-
nos de Freud. Seu A Interpretação dos Sonhos pode ser compreendido como uma
grande interrogação sobre o trabalho de figurabilidade do sonho. Trabalho em
que um dos motivos é o da formação conceitual de um grupo pela
simultaneidade de heterogeneidades condensadas e deslocadas.
Condensações e deslocamentos, portanto: de Benjamin à petição pública
de 2012; de uma petição pública a um documentário testemunhal (Mães 2013);
de um documentário testemunhal a um documentário testamental com a
referência à Antígona (Apelo 2014).

III

A imagem benjaminiana nos é cara. Imagem? Sim, pois é nessa condição


que participa, em Benjamin, a articulação entre passado e história em
afastamento da noção psicológica e política da consciência. Para Agamben, a
imagem dialética é o “fulcro” da teoria histórica de Benjamin. Por esse fato, a
teoria do filósofo alemão não contempla nem essência nem objetos, mas
imagens que aparecem em um movimento dialético capturado no ato de sua paralisação.
A vida das imagens “não está na simples imobilidade, nem na sucessiva retomada
de movimento, mas em uma pausa carregada de tensão entre elas” (Agamben
2012, 40). Nessa pausa, podemos apreender os fantasmas cristalizados na
memória, pois está “não é, de fato, possível sem uma imagem (phantasma), que é
uma afecção, um páthos da sensação ou do pensamento” (Agamben 2012, 24).

100
revista de teoria da história 2 2020

A imagem, por isso, é entendida por Benjamin como o resultado da


apropriação e da fixação materialista de uma reminiscência que veio à luz ao
sujeito histórico, apenas fugidiamente, e no instante de um perigo. O historiador
não teria por tarefa rememorar os acontecimentos, mas sim subtraí-los às
contingências do tempo em uma metáfora (Gagnebin 1987). “Articular o
passado historicamente não significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi’.
Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de
perigo” (Benjamin 2005, 65). A imagem, portanto, não é um conhecimento
objetivo do passado e não advém como consciência de indivíduo ou de classe,
mas é uma centelha de esperança capaz de dar guarida àqueles mortos sobre os
quais marcha a tradição dos dominantes. É uma imagem de esperança que
desperta.
A qualidade da imagem que desperta, em Freud, muito provavelmente é
uma das bases da consideração benjaminiana sobre a imagem dialética.
Condizente com a marcação agambeniana de seu movimento em Benjamin
como uma pausa que é tensão entre a imobilidade e a sucessão em um contínuo
temporal, ela também é, em Freud, forjada em um jogo temporal não
cronológico entre a sensação e o pensamento. Com efeito, na metapsicologia das
imagens oníricas que encontramos n’A Interpretação dos Sonhos, a condição de
representabilidade (de transformação de catexias visuais em imagens) encontra
sua direção em um movimento ora regressivo da consciência como órgão
sensorial das percepções para nossos processos inconscientes, ora progressivo
quando a atenção da consciência recai sobre as imagens formadas pelo trabalho
do sonho e que, agora, tornaram-se percepção de um novo tipo, pois está o
inconsciente a sobrepujar, no sono, a atenção ao mundo de vigília (Freud 1996,
603). Desafiando, porém, a solução de compromisso entre o sistema
Inconsciente e o sistema Perceptivo – sistema a que se reduziu a consciência em
uma notável queda do lugar soberano que até então ocupava – a imagem que
desperta não consegue manter o sono. Os dois sistemas não se satisfazem
igualmente e a imagem que guardava o sonhador em seu sonho torna-se
perturbadora do sono. A imagem que desperta é imagem geradora de angústia. De Freud
a Benjamin, entre a sensação e o pensamento, uma imagem que desperta.

IV

Um dos fundamentos da linguística moderna, a partir de Ferdinand de


Saussure, é de que língua e discurso em ato são duas realidades absolutamente
diferentes, entre as quais há um hiato. Nada há no interior da própria língua que
permita compreender por meio de quais operações os signos linguísticos entram
em funcionamento no discurso. A passagem da língua ao discurso é um ato
paradoxal que implica, ao mesmo tempo, uma subjetivação e uma dessubjetivação.7
Nesse sentido, um ponto fulcral à teoria do testemunho em Agamben é
de que “o não-homem é aquele que empresta a voz ao homem”, em uma tensão
dialética que atravessa três dimensões da “fenomenologia do testemunho”: uma
(não-)relação entre a) o sobrevivente e o Muselmann; b) a “pseudo-testemunha”
e a “testemunha integral”; c) o homem e o não-homem. O testemunho se
apresenta como um processo que envolve pelo menos dois sujeitos. “O primeiro
é o sobrevivente, que pode falar, mas que não tem nada de interessante a dizer;

7 A partir de Spinoza, Agamben afirma que o “eu é o que se produz como resto no duplo

movimento – ativo ou passivo – da auto-afeição. Por esse motivo, a subjetividade tem,


constitutivamente, a forma de uma subjetivação e de uma dessubjetivação” (Agamben 2008,
116).

101
revista de teoria da história 2 2020

e o segundo é quem ‘viu a Górgona’, quem ‘tocou o fundo’ e tem, por isso,
muito a dizer, mas não pode falar. Qual dos dois [sobrevivente ou Muselmann] dá
testemunho? Quem é o sujeito do testemunho?” (Agamben, 2008, 124).
“Eu também passei pelo mesmo problema dessas mães. Eles tiraram – os policiais
também tiraram a vida do meu filho no dia 6 de dezembro de 2006... 7 de
dezembro de 2006. Também meu filho foi morto da mesma forma”.
“Porque cada dia que a gente liga a televisão ou a gente olha do lado de
fora da janela, a gente está vendo as mesmas coisas que aconteceram com
os filhos da gente e o governo não faz nada. Acha que tá bonito, tá bom pra
eles né? Não é o filho deles, né? [...] Coloca a polícia na rua com o nosso
dinheiro pra matar os filhos da gente”.
“Se olhar a lista de mortos, você não vê filho de prefeito, deputado,
delegado, promotor, juiz, nada. Só vê os filhos da classe baixa. Classe
média, baixa, né? São assalariados, são negros. Porque nossos filhos foram
lixo da sociedade que eles varreram pra debaixo do tapete. É lixo, só isso”.
“Matam... mataram o meu filho, mataram o filho delas”.
“A gente somos impotente porque nós somos mães, nós demos a vida. Tiraram
a vida dos nossos filhos, a gente fica assim [sinal de pulsos atados]. E a gente vai
vendo, vai pulando, vai pulando, vai batendo de porta em porta em porta
e o descaso é total.” (Mães 2013)

A série de formas pronominais grifadas nos enunciados justapostos pelo


documentário Mães permitiria entrever no testemunho um jogo tenso e
contraditório entre o singular de cada perda e aquilo que da perda é
compartilhável entre essas mães, pois o que está em questão com o testemunho
é a dilemática entre singularidade e universalidade. No campo da história, Régine Robin
argumenta que as testemunhas se movem nessa contradição dramática. Para a
autora, os historiadores teriam de lidar, ao mesmo tempo, com um “tipo de
discurso” autobiográfico em “primeira pessoa” (enunciado a partir dos
pronomes pessoais “eu” e “nós”) em que o sujeito é fundamental e com os
acontecimentos que, ao nível do que é dito, já não se referem mais aos sujeitos,
mas remetem “a uma noite de anonimato”: as vítimas da Shoah não eram mais
“eu”, mas eram números, elas já não tinham mais nome ou história, “eram Stücke
– peças, pedaços –, não antes de estarem mortos, mas de se tornarem restos. As
testemunhas passam de uma esfera a outra, do ‘eu’ hoje dividido àquilo que não
tem enunciação, a vozes sem enunciador” (Robin 2016, 250).
“Se a gente pensar bem, como todos os outros aqui, ela [a minha filha] é
só mais uma estatística, mais um número, né?”
“Não fizeram com meu filho, fizeram comigo. Entendeu? Meu filho só foi
uma peça ali, uma pessoa que eles... uma peça, pra eles, uma peça que pegaram
e jogaram, mas não fizeram com ele, fizeram foi comigo”. (Mães 2013)

Da mesma forma, esse anonimato dos mortos é marcado pelo foco nas
estacas numeradas sobre as covas dos indigentes.

102
revista de teoria da história 2 2020

Fig. 4 – Quatro fotogramas de Apelo (Ianni 2014)

No dossiê “A violência como ordem” da Revista Cult, Adriana Vianna


observa que a maternidade se torna um componente central tanto para a
participação do movimento na cena política quanto para “as possibilidades de
solidariedades ativas entre mulheres, coletivos e causas”.
É na linguagem da conexão profunda por elas acionada que talvez
possamos acessar o avesso do “necrogovernar” presente nas ações de
terror estatal. Ao cotidiano do matar e do deixar morrer se opõe a presença
da maternidade [...] como articulação política, estética e afetiva que se
desdobra nas vozes que são simultaneamente delas e de seus mortos.
(Vianna 2018, 39)

Se, no campo político e poético do testemunho, as mães podem


testemunhar algo “sobre” e “pelos” seus mortos, qual é o lugar dado àqueles que
não tiveram voz na história? “Que lugar para os outros, para os mortos? O que
acontece com a história que dá voz aos mortos, quando ela consente em lhes dar
a palavra?” (Robin 2016, 86).

Que voz poderiam ter os mortos?


Se o enunciado “nossos mortos têm voz” for tomado no futuro, então
será ainda necessário lutar pelo reconhecimento de uma voz que poucos
escutam. Como lema de um movimento social, essa dimensão projetiva não
pode ser negada: essa voz a ser reconhecida deverá se tornar palavra, deverá se
tornar direito, deverá formalizar-se em lei ou cumprir-se na justiça que, em lei,
já foi normatizada.
Se o mesmo enunciado, no entanto, for tomado no presente, talvez ela
se suspenda como voz em anterioridade a qualquer articulação. “Nossos mortos
têm voz” significaria então imediatamente isso: “eles já têm voz”.
Diante desse campo polêmico entre imagens e vozes, aproximamo-nos
de Agamben. Por quê? Por que justamente de Agamben, esse autor tão criticado,
por um lado, por proceder a uma descrição da voz no testemunho como mudez
absoluta e, por outro, por uma absolutização da voz? Certamente não são
desconsideráveis as críticas de Didi-Huberman e Robin sobre esses pontos:

103
revista de teoria da história 2 2020

De que maneira procede Agamben, aqui? [...] A maior parte dos


paradigmas, elaborados pelo filósofo, na longa extensão de sua obra,
parece marcado, com efeito, por alguma coisa que, infelizmente, atravessa
de forma latente a extraordinária acuidade do seu olhar: é como um
movimento de pêndulo entre os extremos da destruição e de um tipo de
redenção pela transcendência. Em seu ensaio sobre o “Muselmann” dos
campos de concentração nazistas, por exemplo, Agamben parte do
“intestemunhável” e da “impossibilidade de ver” com o objetivo de
evocar, ao final de seu percurso, uma condição transcendental – sublime
[...] do “testemunho integral” e da “imagem absoluta”. (Didi-Huberman
2014, 78)
Descontextualizando [as] palavras de Levi, Giorgio Agamben propõe uma
teoria da testemunha que, ao menos, faz pouco-caso das testemunhas
reais, sobreviventes, concretas. Ele faz dos chamados “Muselmann” de
Auschwitz, esses seres despedaçados até o último grau da degradação
física e moral, no limite entre a vida e a morte, as vítimas por excelência.
Para Agamben, o “Muselmann” é a verdadeira testemunha, a “testemunha
absoluta”, o ser inacessível, quase invisível e completamente mudo.
(Robin 2016, 244)

Pois bem, se insistimos com Agamben é para propor um comentário


alternativo a esses sobre sua compreensão do testemunho pensado em imagem
e voz8. Aqui, marcamos nossa discordância com a leitura de Didi-Huberman
quando este afirma que “o próprio Agamben articula seu ‘apocalíptico da
experiência’ a uma reflexão sobre a voz”. Por um lado, entendemos que a voz
no filósofo esteja distante daquilo que o crítico lê como a afirmação de uma não-
voz da figura do Muselmann – “mas o moribundo [tal figura, segundo Didi-
Huberman é benjaminiana e é uma figura de autoridade: a autoridade do
moribundo] não está inteiramente no agonizante, no sem-voz, no ‘Muselmann’”
(Didi-Huberman 2014, 139) –, como distante do pêndulo de uma destruição
necessária das possibilidades da voz e do testemunho para a afirmação de uma
transcendente imagem da testemunha integral.
Para nós, compreender a voz no testemunho em Agamben, quer seja
como mudez, quer seja como a absolutização de apenas uma forma (imagem)
do testemunho, significaria a redução de uma teorização que, ao contrário, a
concebe em facetas diversas de atravessamento da imagem. Poderia ser
compreendida como encarnada sob o nome de uma criança que viveu e morreu
em Auschwitz e que, aos três anos, balbuciou no campo um mass-klo (ou mastiklo)
indecifrável: “não basta levar a língua até o próprio não-sentido, até à pura
indecibilidade da letras (m-a-s-s-k-l-o, m-a-t-i-s-k-l-o); importa que o som sem
sentido seja, por sua vez, voz de algo ou alguém que, por razões bem distintas,
não pode testemunhar” (Agamben 2008, 48). E poderia ser considerada como
uma voz percepção-pensamento que emerge no-instante-logo-depois-ou-logo-
antes-da-imagem.

8 Acreditamos, nesse sentido, que a centralidade do testemunho não é conferida nem ao testis

(o Muselmann, a testemunha integral, o inumano: a testemunha ocular “que fitou a Górgona”),


nem ao superstes (o sobrevivente, a “pseudo-testemunha”, o homem, a testemunha auricular), mas
àquilo que as fazem ingressar em uma zona de indistinção na qual é impossível identificar a
“verdadeira testemunha”: “No conceito de resto, a aporia do testemunho coincide com a
messiânica. Assim como o resto de Israel não é todo o povo, nem uma parte dele, mas significa
precisamente a impossibilidade, para o todo e para a parte, de coincidir consigo mesmos e entre
eles; e assim como o tempo messiânico não é nem o tempo histórico, nem a eternidade, mas a
separação que os divide; assim também o resto de Auschwitz – as testemunhas – não são nem
os mortos, nem os sobreviventes, nem os submersos, nem os salvos, mas o que resta entre eles”
(Agamben 2008, 162).

104
revista de teoria da história 2 2020

Acontece como quando caminhamos no bosque e, de repente, inaudita,


surpreende-nos a variedade das vozes animais. [...] Cada animal tem seu
som, que brota imediatamente dele. Enfim, a dupla nota do cuco zomba
de nosso silêncio e revela-nos, insustentável, o nosso ser sem voz, únicos,
no coro infinito das vozes animais. Experimentamos então falar, pensar.
[...] Pensar, na linguagem, nós o podemos apenas porque a linguagem é e
não é a nossa voz. [...] O animal em fuga, cujo rumor parece-nos ouvir
sumindo nas palavras, é – disseram-nos- a nossa voz. [...] Não o encontro,
mas esta fuga de animais invisíveis é o pensamento. Não, não era a nossa
voz. (Agamben 2006, 145-147)

Aqui, a ambiguidade do excerto nos interessa: temos e não temos voz, a


linguagem é e não é a nossa voz. Indecidido que, parece-nos, guarda a
temporalidade necessária para uma não absolutização do ser do homem na
qualificação de sua voz como articulada em diferença com a voz inarticulada do
animal, como presente na crítica agambeniana a Aristóteles. Afinal, se a voz de
Hurbinek, dessa criança morta no campo, é sem sentido, ela não se reduziria a
uma não voz.

VI

Em Mães, uma mulher narra sua ida à delegacia para reaver os pertences
do filho morto:
Quando eu chego na sala do delegado, o delegado olhou para minha cara
[...]: “a senhora sabe quem foi?”. Eu falei, lógico que eu sei: a polícia. Mas
como a polícia? Eu falei, a polícia, doutor, porque o meu filho não tinha
inimigo, quem era inimigo do meu filho era a polícia. E o senhor pode me
dar as coisas que estavam com ele: o rádio, os telefones, os anéis da minha
nora que também está no hospital? Porque fizeram a limpa ali mesmo.
Não senhora, aqui não tem nada. Eu falei: tem sim, doutor, esse relógio
que está no seu pulso é o do meu filho. Ele falou: não senhora. Eu falei:
esse relógio que está no seu pulso é o do meu filho. Aí ele deu a volta lá
dentro da cadeia e trouxe um relógio dentro dum saquinho para me
devolver, já não estava mais com ele. Quando eu falei pra ele assim: eu to
falando que foi a polícia que matou meu filho. “Mas a senhora sabe qual
é a viatura?” [...] Quem tem que me falar quem é a polícia é o senhor. Não
é eu. Eu não tenho mais nada pra falar. Ele olhou pra minha cara assim:
“a senhora pensa bem o que a senhora fala”. Eu falei: não precisa pensar.
(Mães 2013)

As falas que aí dizem tudo estão em contraste com a primeira fala a


aparecer no documentário:
Acabou com a família. Meu marido, eu não consigo ter mais diálogo
nenhum com ele a não ser brigar. Ele abre a boca eu já to gritando. [...] Eu
corri pro médico, psicólogo, psiquiatra, to me chapando de remédio. Ele
não, ele foi pra bebida. Então, quer dizer, viu a família? ficou uma
gracinha. (Mães 2013)

Se há aí impossibilidade de dizer (se faltam materialmente palavras), há


ali uma tal “transparência” do dito que pululam ordenações ao silêncio: “a
senhora pensa bem o que a senhora fala...”.

105
revista de teoria da história 2 2020

O momento parece ser de transformação no documentário, momento


em que os objetos deixam de obliterar a fala (bebida, remédio, substância9) e
passam a evidenciar a convocação que fazem à aparição do sujeito. Se Lacan
estiver correto na correlação que estabelece entre o objeto causa do desejo
(objeto a) e o sujeito do inconsciente10, temos aí um momento de mudança de
estatuto objetal e, então, subjetivo a se apresentar no documentário – de um
objeto que encobre a falta, não deixando espaço para passar a angústia, para um
objeto que, mesmo na suposição de sua posse, deixa um resto por onde pode vir
a se escancarar a divisão subjetiva (o que, nos termos da psicanálise lacaniana,
lê-se como não correspondência entre o eu e sujeito do inconsciente). Um
objeto sem consistência para um sujeito dividido e em que, na ordem da
circulação dos bens onde se pretenderia apreendê-lo (o relógio, afinal, foi
devolvido), pouco pode fazer para o escamoteamento de seu papel como objeto
da angústia.
Paradoxalmente, porque tal afeto sinaliza a falta da falta11, o momento
em que a angústia se torna compartilhável no documentário é esse que não se
encerra em uma impossibilidade de dizer, mas na totalidade de um falar
“transparente” a si mesmo. O movimento linguístico do testemunho, agora, não
é mais o da narrativa de uma experiência de incapacidade de articular grito em
palavra (“Ele abre a boca eu já to gritando”), mas aparecimento de um limite
forçado a uma fala que pretensamente poderia dizer tudo. Momento de
“totalidade” e de “transparência” do testemunho, portanto.
Por isso, talvez não seja à toa que o movimento seguinte seja de
aproximação do buraco, do vazio, da falta. Nesse momento específico do
documentário testemunhal em que se situam as falas transcritas a seguir, a tela
dividida que estrutura todo o documentário é alternado com aparições fugidias
de uma tela completamente negra (indicado como [tela negra] nas transcrições).
Além disso, é notável que nesse momento as vozes das mães se sobreponham
(indicado como [voz over] nas transcrições):

9 Como podemos escutar na seguinte fala: “Coloca a polícia na rua com o nosso dinheiro pra

matar os filhos da gente” e não deixa nenhuma substância pra poder/ uma inteligência como que tu
vais conviver com aquilo dia a dia. E eu desequilibrei, minha mente desequilibrou. Porque meu
filho era o pedestal. Hoje eu não sei como viver. Hoje eu não sei como viver” (Mães 2013).
10 “Esse sujeito, se tomamos a precaução de não o definir senão pelo seu muito pouco ser,

ao menos devemos oferecer-lhe um lugar de inscrição, e esse lugar não poderia ser mais que
aquele que, mais ou menos metaforicamente, será chamado ‘entre dois’ significantes. Esta
identidade na localização sustenta enunciados como: ‘[...] a reciprocidade entre o sujeito e o
objeto é total. Para todo ser falante a causa de seu desejo é estritamente, quanto à estrutura,
equivalente, se posso dizer, ao que chamei sua divisão de sujeito’. (Lacan 1972-73). Essa
equivalência sustentou sempre, em Lacan, a permanência da sua escrita da fantasia ($<> a)” (Le
Gaufey 2011, 186, tradução nossa).
11 “Em Inibição, sintoma e angústia, Freud nos diz, ou parece dizer, que a angústia é a reação-

sinal ante a perda de um objeto. [...]. Ora, que lhes disse eu, da última vez, para colocá-los num
certo caminho que é essencial apreender? Que a angústia não é sinal de uma falta, mas de algo
que devemos entender num nível duplicado, por ser a falta de apoio dado pela falta” (Lacan
2005, 64).

106
revista de teoria da história 2 2020

[Tela negra] [Entrevistador] “Você não sente seu coração?” [Mãe] “Não”.
[Entrevistador] “Mas no sentido?” [Mãe] “Não tenho assim... [Voz over:
Não tem vida mais] perspectiva de vida... nada [Voz over: Nada tem sentido].
Nada tem sentido. [Voz over: Nada tem sentido]”.
“[Voz over: É uma dor imprensada. É uma coisa estranha, assim, que falta teu ar
também, falta o ar]”.
“É uma coisa assim... [Voz over: mas começa pelo útero] que é aquela falta, né?
Eu, por exemplo, na minha família parece que tá faltando alguém. Tem
um buraco. Tem um buraco na minha casa. Um buraco”.
[tela negra] “Eu perdi. Eu não sinto minhas trompas, ovário e útero. Eu
sou uma mulher oca”.
[tela negra]. “Isso me acompanha aonde eu vou. Aonde eu vou, isso tá na
minha cabeça... tá no meu coração. Tá impresso dentro de mim”.
(Mães 2013)

A testemunha que se totalizara desfalece: é do lugar de mortas e não


como porta-vozes dos mortos que aquelas mães falam: nossos [corpos] mortos
têm voz.

VII

Diante dessa construção clínica, é necessário colocar uma questão: na


passagem da clínica à política uma mesma abordagem do inconsciente se
universaliza?
Um elemento presente na forma como são tratados os testemunhos no
documentário Mães indica a não imediaticidade de tal passagem. Ambas dizem
respeito à marcação de uma diferença no campo discursivo quando da entrada e da saída
da cena estritamente testemunhal, algo que responde, a nosso ver, à heterogeneidade
entre esses campos.
Começa o documentário e a tela permanece absolutamente preta até que
tenham sido expostas as seguintes sentenças:
“Este vídeo foi construído a partir de uma negociação. Tanto a gravação
quanto a circulação deste material foram debatidas e acordadas entre os
envolvidos”.
“maio, 2006 – seiscentas pessoas foram mortas em São Paulo, Brasil”.
“2013 – inicia-se um processo terapêutico”. (Mães 2013)

Termina o documentário e a tela se torna novamente negra. Aparece a


seguinte afirmação:
“Após estes encontros iniciais, formou-se um grupo terapêutico, cujas
sessões, a pedido dos psicólogos, não foram filmadas”. (Mães 2013)

Iniciando por aí, o filme torna-se metapolítico? É necessária uma clínica


do testemunho para que as narrativas de perdas se tornem testemunho? Ou seria
o contrário, uma vez que a clínica não foi filmada? A politização do início de um
processo terapêutico e a marcação de um limite a sua publicização faz separar
dois campos que terão de permanecer opacos um ao outro?

107
revista de teoria da história 2 2020

VIII

Fig. 5 – Apelo (IANNI, 2014)

À medida que a nuvem de pó se dissipa, as sentinelas começam a ver uma


jovem mulher andando à volta do corpo. Os seus gritos penetrantes são
os de uma ave que volta ao ninho e descobre que os filhos desapareceram
[...] Trata-se de uma evocação exasperada do desamparo, da solidão. A
profanação de Polinices determina a perda iminente de Antígona.
Também para ela, o “ninho/leito” maternal ficará vazio e destruída a sua
descendência. A linguagem impõe aqui o reconhecimento e as
transposições dos marcadores literais e simbólicos como centrais, como
ainda mais pungentemente evidentes do que tudo o que formula a
psicanálise (embora Sófocles e Freud coincidam, como insistia o próprio
Freud). É inútil sublinharmos a carga patética dos gritos de ave de
Antígona. Mas o relato do guarda aponta para zonas de experiência
exteriores às simplesmente humanas. E é essa a questão. As figuras
antropomórficas com cabeça de pássaro, “as mulheres que são como
pássaros”, do rouxinol à harpia, desempenham uma função inegável no
mito e no ritual dos gregos. Na origem, a própria Esfinge terá
provavelmente sido uma mulher pássaro. O lamento penetrante de
Antígona exprime instintos e valores, mais velhos e menos racionais do
que o homem e o discurso dos homens. Poderá a [polis] edificada como
foi pela delimitação de fronteiras essenciais entre as esferas humana e
animal, fundamentalmente ligada que está ao discurso articulado, conter
dentro de si, conceder um eco adequado, a semelhantes gritos?
(Steiner 2008, 251)

Se o documentário testemunhal pode fraturar “o chão duro da história


estritamente factual, traumatizando-o”, o documentário testamental Apelo
transmite memórias sobrepostas de mais de um lugar, de mais de um sujeito, de
mais de uma vala em que se enterrou ou se negou o enterro a mais de um
vencido. Transmite em tempos de intransmissibilidade de uma tradição ética que
não tinha nem mais como narrar (Benjamin, 1987), nem mais como julgar
(Arendt, 2001) e nem mais como responder às violências do século XX
(Agamben, 2008). Três diagnósticos de ruptura entre o passado e o futuro em
que não falam mais aos vivos os mortos que teceram a tradição ética de
julgamento do passado europeu. A afirmação de Agamben, em O que resta de
Auschwitz, é disso emblemática: “O herói grego despediu-se de nós para sempre,

108
revista de teoria da história 2 2020

não podendo mais, em caso algum, testemunhar por nós; depois de Auschwitz,
não é possível utilizar um paradigma trágico na ética” (Agamben 2008, 104).
Débora Maria da Silva como Antígona em Apelo maneja memórias e
esquecimentos feitos de rupturas. O que constitui essas memórias e
esquecimentos? Algo da espécie de um simulacro de recalque coletivo? De um
retorno do recalcado histórico? Do fantasma de um passado, que não
reconhecido, ainda assombra? Não será possível responder neste artigo, mas a
materialidade desse documentário, parece-nos, coloca em tensão as evidências
entre história e ruptura, entre psicanálise e ruptura, entre psicanálise e história.
Uma Antígona negra que é mãe, que fala em português enquanto sua
fala se escreve em um desdobrar da língua oficial do Brasil em uma língua-
legenda universal, e que adentra o cemitério de mortos onde não estão
enterrados seus filhos de maio para oferecer sepultura aos “nossos mortos” de
todos os tempos. É Antígona que não diz eu.
É Antígona de um tão problemático “eu” como o fora a Antígona antiga.
É Antígona não marcada em uma identidade de destino com a filiação
incestuosa de seu pai, Édipo, e que é então todas as mães, noivas e irmãs. Avesso,
por isso, de Antígona? Não, se a anterioridade de sua gramática, como sublinhou
George Steiner sobre a Antígona de Sófocles for também estranha às categorias
de individualidade:
Quando, nos versos 71 e 72, com sua quebra veemente – “a ele, eu/ O
enterrarei” Antígona emprega [eu], a palavra é uma concessão amarga.
“Eu” é agora um marcador da solidão, dessa ruptura forçada com o
uníssono do parentesco, da coletividade familiar ou clânicos, que tornava
possíveis, que reclamava, a fusão dos sentimentos, das intenções, da ação.
(Steiner 2008, 236)

É Antígona que não declama de forma grandiloquente o sentido de uma


ética guiada por leis divinas ou tradicionais e que apenas se detém obliquamente
ao lado de um muro em que algo político se escreveu, mas que não se lê a não
ser que seja feito recurso ao arquivo e à memória. Uma memória de um tempo
que não é imemorial porque já desde sempre político.

IX

A situação do homem contemporâneo é trágica porque, como o Coro das


tragédias gregas [...], sabemos que o tempo vai apagando pouco a pouco
nossa memória afetiva, vai abrandando nossas dores. Mas, por outro lado,
diante do horror que não pode ser esquecido, queremos ter uma memória
de herói trágico, uma memória de Electra, que não esquece nunca, que
não esquece nada, que conserva sua dor intacta, inconsolável, para sempre.
[...] E não tenho – ao contrário de Hamlet, que tinha o fantasma de seu
pai – não tenho seis milhões de fantasmas que de tempos em tempos me
apareçam espontaneamente e interrompam o fluxo do esquecimento,
dizendo-me: “não se esqueça de nós”. Para essa situação trágica não existe
solução – uma situação trágica é por definição insolúvel [...]. Podemos
reagir como o Coro das tragédias e dizer: “é assim mesmo: o tempo traz
esquecimento. Esqueçamos e continuemos nossas vidas. O que teremos
para o jantar hoje?”. Mas podemos [....] todas as manhãs de nossas vidas
evocar seis milhões de fantasmas – sabendo que no fim do dia os teremos
esquecido e que no dia seguinte teremos de evocá-los de novo... Contra o
tempo que naturalmente abranda a memória, podemos afirmar nossa
memória todos os dias como um ato de vontade obstinado – um ato
trágico. (Oliveira 2008, 234-235)

109
revista de teoria da história 2 2020

Do processo terapêutico em Mães à passagem do testemunho ao


testamento em Apelo, o irreparável? Difícil responder, pois a presença dessa
dissonância tão gritante que é Apelo em relação às outras materialidades
documentais produzidas em torno do movimento Mães de Maio convoca-nos a
tomar o trágico na potência da instauração histórica do que Jean-Pierre Vernant
e Pierre Vidal-Naquet (2005, 216) denominaram, separando filosofia, teatro e
história, de “consciência da ficção”.
Se em seu Mito e Tragédia na Grécia Antiga, os dois helenistas identificam
o efeito trágico como aquele proveniente “da liberdade que lhe assegura a ficção
do mythos”, uma liberdade que “alcança o geral, [enquanto] a história, por seu
objeto, permanece fechada no particular” (Vernant; Vidal-Naquet 2005, 218) –
efeito de uma transformação radical no entendimento antigo do que viria a ser a
verdade –, tal dissonância não tem meios de ser reduzida ao que se conceberia
como reparação na dimensão objetiva do terapêutico ou do jurídico.
O Apelo, por isso, decidimos por deixá-lo assim: dissonante.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Minima Moralia. Lisboa: Edições 70, 2001.


AGAMBEN, Giorgio. A Linguagem e a Morte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
AGAMBEN, Giorgio. As ninfas. São Paulo: Hedra, 2012.
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunho (Homo Sacer
III). São Paulo: Boitempo, 2008. [Col. Estado de sítio].
APELO. Realização: Clara Ianni e Débora Maria da Silva. Produção: Massa real. São Paulo,
2014. Vídeo (13 min). Disponível em: <http://claraianni.com/>. Acesso em 26 jul.
2020.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de
incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
CLARA, Ianni. Fala sobre obra feita no cemitério de Perus. 2014. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=LZdxVVtNQQs >. Acesso em 26 jul. 2020.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2014.
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1987, p. 7-19.
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: A atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo,
2009.
BENJAMIN, Walter. Tortura e sintoma social. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir
(Org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 123-
132.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LE GAUFEY, Guy. El objeto a de Lacan. Colonia San Jerónimo Lídice: Peele Consejo
Editorial, 2011.

110
revista de teoria da história 2 2020

LIMA, Rafael Alves. Análise reparável e irreparável: o conceito psicanalítico de reparação


na agenda da transição brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 37, p. 116-132,
2017.
MÃES. Realização: Clara Ianni. Colaboração: Mães de Maio; Margens Clínicas. Edição:
Clara Ianni; Nina Senra. Mixagem: Caio Gonçalves. Cor: Marcos Yoshi. São Paulo:
2013. Vídeo (23 min). Disponível em: <http://claraianni.com/>. Acesso em 26 jul.
2020.
MÃES DE MAIO (Coord.). Do luto à luta: Mães de Maio. São Paulo: [s.n], 2011.
OLIVEIRA, Flávio Ribeiro de. Electra em Auschwitz: ensaio sobre a memória afetiva
do herói trágico. Letras clássicas, n. 12, p. 223-236, 2008.
PETIÇÃO pública: Novo manifesto pela federalização dos crimes de maio de 2006, e
pelo fim da “resistência seguida de morte”. 2012. Disponível em:
<http://www.peticaopublica.com.br/?pi=maesmaio>. Acesso em 26 jul. 2020.
ROBIN, Régine. A memória saturada. Campinas: Editora da Unicamp, 2016.
SILVA, Débora Maria Da; DARA, Danilo. Mães e familiares de vítimas do Estado: a luta
autônoma de quem sente na pela a violência policial. In: Kuckinski, Bernardo [et al]. Bala
perdida: A violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo:
Boitempo, 2015. [Ebook].
STEINER, George. Antígonas. Lisboa: Relógio d’água, 2008.
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. Apresentação. In: TELES, Edson; SAFATLE,
Vladimir (Org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo,
2010.
VERAS, Luciana. Clara Ianni: arte, política, sociedade e ideologia. 2016. Disponível em:
<https://www.revistacontinente.com.br/edicoes/189/clara-ianni--arte--politica--
sociedade-e-ideologia>. Acesso em 26 jul. 2020.
VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São
Paulo: Perspectiva, 2005.
VIANNA, Adriana. As mães, seus mortos e nossas vidas. Revista Cult, São Paulo, p. 36-
39, 2018. [Dossiê “A violência como ordem”].

NOSSOS MORTOS TÊM VOZ


NOTAS CLÍNICAS E POLÍTICAS SOBRE IMAGENS E VOZES
ARTIGO RECEBIDO EM 31/08/2020 • ACEITO EM 23/11/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.66541
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

111
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

SUBJETIVIDADE,
INDIVIDUAÇÃO
E ESCRITA DE SI
APROXIMAÇÕES TEÓRICAS
ENTRE MICHEL FOUCAULT
E CARL GUSTAV JUNG

PEDRO RAGUSA
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Ponta Grossa | Paraná | Brasil
pedroragusa@yahoo.com.br
orcid.org/0000-0001-7564-0975

ALFREDO DO SANTOS OLIVA


Universidade Estadual de Londrina
Londrina | Paraná | Brasil
alfredooliva@yahoo.com.br
orcid.org/0000-0002-1071-6016

A escrita de si – conceito que oferece significado para um


gênero narrativo em que um narrador em primeira pessoa se
identifica explicitamente como o autor biográfico – se
delineia como um exercício literário típico da modernidade.
Nessa pesquisa a abordagem teórica de Michel Foucault
sobre as práticas de si foi correlacionada ao campo teórico
definido por Carl Gustav Jung sobre sua subjetividade
autobiografada. Para objetivar a subjetividade através da
escrita de si, a problemática dessa pesquisa foi desenvolvida
com o seguinte objetivo: estabelecer a aproximação e o
confronto entre dois campos teóricos que mobilizaram de
maneira específica o tema da subjetividade a partir de um
diálogo entre Michel Foucault e Carl Gustav Jung.

sujeito – subjetividade – escrita de si

112
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

SUBJECTIVITY,
INDIVIDUATION
AND SELF-WRITING
THEORETICAL
APPROACHES BETWEEN
MICHEL FOUCAULT AND
CARL GUSTAV JUNG
PEDRO RAGUSA
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Ponta Grossa | Paraná | Brazil
pedroragusa@yahoo.com.br
orcid.org/0000-0001-7564-0975

ALFREDO DO SANTOS OLIVA


Universidade Estadual de Londrina
Londrina | Paraná | Brazil
alfredooliva@yahoo.com.br
orcid.org/0000-0002-1071-6016

The self-writing – a concept that offers meaning to a


narrative genre in which a first-person narrator explicitly
identifies himself as the biographical author - is outlined as a
literary exercise typical of modernity. In this research, Michel
Foucault's theoretical approach to self-practices was
correlated to the theoretical field defined by Carl Gustav
Jung about his autobiographical subjectivity. In order to
objectify subjectivity through self-writing, the problem of
this research was developed with the following objective: to
establish the approximation and confrontation between two
theoretical fields that specifically mobilized the subjectivity
subject from a dialogue between Michel Foucault and Carl
Gustav Jung.

subject – subjectivity – self-writing

113
revista de teoria da história 2 2020

INTRODUÇÃO
As escritas de si, ou narrativas autobiográficas, constituem uma rica
documentação para pesquisas historiográficas quando a investigação histórica
busca conhecer formas e práticas de subjetividade em um passado individual e
social. Se em um passado recente essas escritas estavam restritas aos estudos
literários, em nossa atualidade a escrita de si vem se constituindo como um
campo de interesse para a pesquisa historiográfica.1 O atual interesse acadêmico
no interior das ciências humanas sobre as escritas de si tem possibilitado aos
estudiosos dessa temática explorar os textos auto narrativos como gênero
literário autônomo e reconhecido no campo literário (Galle 2009, 12-13).
Os campos de estudos acadêmicos como a historiografia
contemporânea, a psicologia, a sociologia e os estudos literários, encontram nas
escritas de si uma importante e necessária documentação para delimitar e
problematizar “objetos” como o sujeito2, assim, por meio da relação tripla entre
autor-vida-obra é possível problematizar como o sujeito desenvolve práticas de
subjetivação3 na composição e modificação histórica de si mesmo ao escrever
sobre si (Castro 2004, 408).
No interior dos escritos de Michel Foucault sobre a ética do cuidado de
si4, a escrita de si aparece como importante tema para a investigação do sujeito
histórico por meio da problematização sobre a produção e a modificação das
formas de subjetividade (Lejeune 2008, 14)5. Carl Gustav Jung não escreveu ou
teorizou sobre a escrita de si, mas abriu um campo teórico sobre a subjetividade
com seus escritos técnicos e também deixou uma importante documentação sob
a forma de autobiografia, além de centenas de cartas que revelam experiências
singulares sobre os processos de subjetividade vividos pelo analista suíço.
Entre as diversas abordagens possíveis para objetivar a subjetividade
através da escrita de si, a problemática dessa pesquisa foi animada pelo seguinte
objetivo: estabelecer a aproximação e o confronto entre dois campos teóricos
que mobilizaram de maneira específica o tema da subjetividade. Desse modo, a
abordagem teórica de Michel Foucault sobre as práticas de si foi correlacionada
ao campo teórico definido por Carl Gustav Jung sobre sua subjetividade

1 Cabe destacar o grupo de pesquisa coordenado por um de nós, Alfredo dos Santos Oliva,
sobre as escritas de si do psiquiatra Carl Gustav Jung, como também sobre o pintor Vincent Van
Gogh.
2 A noção empregada sobre o termo sujeito se refere à conceituação moderna do termo, isto

é, a compreensão do sujeito enquanto ser pensante e autônomo em sua relação com o real a
partir de sua consciência pensante e racional.
3 De acordo com Castro, o termo subjetivação foi introduzido por Michel Foucault na

perspectiva de se realizar uma história da forma-sujeito, isto é, uma história dos modos de
subjetivação que permitem a compreensão das práticas que constituem a vida dos indivíduos.
4 O conjunto de seus escritos nesse período foi constituído pelos cursos no Collège de France

ministrados a partir de 1980, “Subjetividade e verdade” 1980-1981, “Hermenêutica do sujeito”


1981-1982, “O governo de si e dos outros” 1982-1983, “A coragem da verdade” 1983-1984 e
pelo segundo e terceiro volumes da “História da sexualidade”, denominados, respectivamente,
de “O uso dos prazeres” e “O cuidado de si” ambos publicados pela primeira vez em 1984. O
volume 2, “O uso dos Prazeres”, enfocou a cultura grega clássica do século IV a.C., enquanto o
volume 3, “O cuidado de si”, tratou da mesma problemática e das mesmas questões no Império
Romano e nos primeiros séculos da era cristã.
5 Lejeune define a autobiografia como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa

real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história
de sua personalidade”. Segundo o teórico francês, para existir qualquer gênero de literatura
íntima (autobiografia, diário, autorretrato, auto ensaio, memórias) é necessário haver uma relação
de identidade onomástica entre autor (cujo nome está estampado na capa), narrador e a pessoa
de quem se fala.

114
revista de teoria da história 2 2020

autobiografada. Partimos do pressuposto de que para ambos os autores, a escrita


de si integra um campo teórico sobre a subjetividade, seja em nível experimental
e psíquico com o processo de individuação descrito por Jung, ou como fez
Michel Foucault, com uma perspectiva ética sobre os modos históricos de
subjetivação por meio de sua genealogia das práticas de si.

O SUJEITO EM FOUCAULT:
EXPERIÊNCIA, VERDADE E SUBJETIVIDADE

Esta seção tem como objetivo apresentar alguns aspectos da


problematização feita por Michel Foucault sobre os modos de construção
histórica da subjetividade, especificamente nos interessa mostrar como a
produção da subjetividade desenvolvida por meio de práticas de si como a
escrita, foi tematizada no interior de uma analítica sobre o sujeito na antiguidade
helenística (Foucault 2017, 297)6.
Genericamente, os escritos de Foucault podem ser delimitados por eixos
temáticos através de seu interesse pela constituição dos discursos sobre os
saberes que incidem sobre o sujeito (arqueologia), sobre relações de saber-poder-
corpo entre indivíduos e instituições que atravessam e disciplinam o sujeito
(genealogia) e os estudos referentes às práticas de si (ética do cuidado de si). No
caso dos últimos estudos, vemos a forma pela qual o sujeito realiza um trabalho
sobre si mesmo, o que pode muito bem ser designado como uma estética da
existência. Durante a trajetória de seus escritos e de seu pensamento, Michel
Foucault dedicou grande parte de suas pesquisas – sobretudo em fins dos anos
setenta e início dos anos oitenta – a problematizar as maneiras pelas quais os
indivíduos se transformaram em sujeitos, isto é, como foram os processos de
subjetivação histórica que possibilitaram o aparecimento e a modificação da
subjetividade (Foucault 2009, 9).
No interior desse programa de produção literária sobre o sujeito, a escrita
de si aparece como tema de interesse nos escritos do início dos anos 1980
realizados por Foucault (Foucault 2010).7 Em sua fase de pesquisa conhecida
como estudos genealógicos, o filósofo deslocou seu interesse pelo sujeito como
efeito de linguagem em um processo de cooptação exterior pelo discurso, para
desenvolver uma analítica sobre o sujeito a partir de sua dobra profunda, isto é, por
uma perspectiva sobre sua interioridade (Deleuze 2005, 10). Cardoso Júnior,
aponta uma importante questão sobre esse deslocamento: “Estaria Foucault se
desmentindo, ou se retratando ao tematizar o sujeito, o homem, que ele havia
tão veementemente negado?” (Cardoso Junior 2005, 343).
A resposta a essa questão foi dada em uma entrevista concedida a
Dreyfus e Rabinow em 1982. Na ocasião, Michel Foucault definiu o caráter de
sua produção intelectual nos últimos vinte anos. Ao contrário do que pensavam
seus críticos, o filósofo deixou claro que não foi o grande objetivo de suas
pesquisas desenvolver uma teoria sobre o fenômeno do poder, mas sim, “criar
uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres
6 Nas palavras do filósofo francês: “Meu atual trabalho trata, doravante, da questão: como

constituímos diretamente nossa identidade por meio de certas técnicas éticas de si, que se
desenvolveram desde a antiguidade até nossos dias” (Foucault 2017, 297).
7 Precisamente nas aulas de 3 de março de 1982 do curso citado, além do texto de 1983 “A

escrita de si”, presente no volume V dos seus Ditos e escritos. É possível encontrar nos textos do
período arqueológico dos anos sessenta um Foucault interessado nas temáticas do discurso, da
literatura, da linguagem e da autoria. Dessa maneira, o sujeito e as formas de subjetivação
também foram tematizados e problematizados como prática de uma escrita literária de si,
decorrentes de subjetivação no interior da problemática sobre o sujeito.

115
revista de teoria da história 2 2020

humanos tornam-se sujeitos” (Dreyfus; Rabinow 2010, 273). A problematização


sobre o sujeito e a noção de subjetividade histórica correspondem à característica
mais marcante sobre o pensamento e os escritos foucaultianos. De maneira geral,
seu trabalho e as subsequentes fases ou eixos de problematização podem ser
compreendidos na seguinte perspectiva:

O primeiro são os modos de investigação, que tentam atingir o estatuto


da ciência, como, por exemplo, a objetivação do sujeito no discurso da
gramática geral, na filosofia e na linguística. Ou, ainda, a objetivação do
sujeito produtivo, do sujeito que trabalha, na análise das riquezas e na
economia. Ou, um terceiro exemplo, a objetivação do simples fato de estar
vivo na história natural ou na biologia. Na segunda parte do meu trabalho,
estudei a objetivação do sujeito naquilo que chamarei de “práticas
divisoras”. O sujeito é dividido no seu interior em relação e em relação aos
outros. Exemplos: o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os
“bons meninos”. Finalmente, tentei estudar – meu trabalho atual – o
modo pelo qual um ser humano torna-se ele próprio um sujeito. Por
exemplo, escolhi o domínio da sexualidade – como os homens aprendem
a se reconhecer como sujeitos de “sexualidade” (Foucault 2010, 274).

Para delimitar o sujeito em seus escritos genealógicos, Foucault propôs-


se a escrever uma genealogia do poder, isto é, fazer uma análise sobre a
subjetividade a partir da descrição das “práticas pelas quais os indivíduos foram
levados a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar, a se reconhecer e se
confessar como sujeitos de desejo” por meio do dispositivo de sexualidade
(Foucault 2009).
Quando Foucault apresentou entre 1981-1982 o curso A hermenêutica do
Sujeito, cujo conteúdo corresponde às temáticas dos dois volumes finais sobre a
história da sexualidade, percebemos uma mudança em sua trajetória e maneira
de problematizar o sujeito. A temática sobre o sujeito até então, fora
desenvolvida pelas relações discursivas e não-discursivas entre saber-poder,
marca de seu pensamento e de seus escritos até o primeiro volume de história
da sexualidade. Assim, não se tratava mais do apagamento do sujeito e de sua
determinação por estruturas e instituições exteriores, mas, de uma analítica sobre
as práticas de subjetivação, isto é, de si mesmo (Cardoso Junior 2005, 344).
Para o filósofo, o sujeito não é uma substância, mas, um fluxo. Porém,
esse fluxo também não é idêntico a si mesmo, isto é, o sujeito não tem consigo
próprio o mesmo tipo de relação enquanto sujeito político e enquanto sujeito de
uma sexualidade. Em cada relação que estabelece, o sujeito se posicionará de
uma forma diferente assumindo diferentes funções (Foucault 2013). Há, então,
várias formas para a subjetivação conforme as relações que o sujeito estabelece
com os diversos “jogos de verdade” (Foucault 2010). Portanto, o que interessou
a Foucault foi realizar a problematização histórica dos modos de subjetivação
pela forma-sujeito (Castro 2004, 406).
Da analítica foucaultiana sobre o sujeito, ele chega à temática das práticas
de si e tecnologias de si. A analítica das práticas de si na antiguidade correspondeu
ao “demarcador” histórico para desnaturalização da ideia de uma experiência
subjetiva universal e essencialista na condição humana. Dessa maneira, Foucault
pôde mostrar, através de sua perspectiva descontínua sobre a história, que os
nossos modos de subjetivação moderno e contemporâneo em nada se
assemelham ao daquela época. Logo, esse denso objeto de estudo – a
subjetividade – possui uma história não linear a partir das práticas individuais e
sociais, que o filósofo buscou mapear partindo do retorno ao mundo grego,
passando pela era cristã medieval e a análise das práticas confessionais, até chegar

116
revista de teoria da história 2 2020

às transformações que marcaram a configuração do sujeito na modernidade


(Foucault 2017, 261-264).
Ao analisar os modos de subjetivação como processo de experiência e
construção da subjetividade com a prática de exercícios de si sobre si, Michel
Foucault, atribui a um conjunto de práticas vivenciadas na antiguidade greco-
romana compreendidas como formas de cuidar de si mesmo através de uma
“estética da existência”. Experimentar a si mesmo, na realidade, significa
desenvolver modos de viver e produzir a si mesmo com caráter voluntário, e
pelo qual os indivíduos fixam regras de conduta e modificam-se fazendo de sua
vida uma obra portadora de valores estéticos (Foucault 2009, 17-19).

[...] um conjunto de práticas que, certamente, tiveram uma importância


considerável em nossas sociedades: é o que se poderia chamar “artes de
existência”. Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias
através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta,
como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular
e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos
e responda a certos critérios de estilo (Foucault 2009, 15).

Foucault sustentou que na Antiguidade não havia um conhecimento de


si mesmo ancorado numa “hermenêutica de si”, ou seja, na busca por uma
revelação de um “eu” como morada da verdade sobre si (Foucault 2011, 49-59).
A hermenêutica da subjetividade entre os antigos apontou para uma “estética da
existência”, isto é, uma construção de si a partir da relação e dos ensinamentos
entre mestres e discípulos, seria por meio dessa interação que o discurso sobre a
verdade poderia emergir e modificar as práticas de subjetividade. Nesse sentido,
a prática fundamental desenvolvida na antiguidade foi atravessada pela noção de
cuidar de si mesmo como forma de cuidar da alma e da cidade, do outro.
Como veremos, no curso A Hermenêutica do Sujeito, a escrita de si foi uma
dentre diversas práticas de si responsáveis pelos processos de subjetivação na
antiguidade greco-romana e cristã. A escrita de si correspondeu a um exercício
ético-político enquanto experiência para produção da subjetividade, foi
compreendida pelo filósofo como uma importante “prática de liberdade”,
convertida na modernidade em gênero literário, e pelo qual é possível expressar
como se deram as práticas de subjetividade que constituem as experiências do
sujeito-autor (Dreyfus; Rabinow 2010, 316-322).

ESCREVER E NARRAR SOBRE SI MESMO:


A SUBJETIVIDADE NA ESCRITA DE SI

A noção de escrita de si aparece na produção intelectual de Michel


Foucault especificamente em dois textos já citados: A escrita de si e A Hermenêutica
do Sujeito, um texto e um curso em que a amplitude do conceito de escrita de si
pode ser alcançada através de uma problematização sobre a subjetividade.
Ambos foram produzidos na última fase do trabalho do filósofo, dedicada aos
estudos éticos sobre a composição da subjetividade ocidental no período greco-
romano e início da era cristã. A escrita na antiguidade prescreveu os códigos
morais e de conduta para as relações entre os indivíduos e também sobre si
mesmo, determinando e disciplinando o corpo e a mente por meio de técnicas
de si, isto é, pelas práticas de subjetivação orientadas para a interiorização.

117
revista de teoria da história 2 2020

No pequeno texto de 1983, A escrita de si, Foucault mostra como o ato


de escrever sobre si mesmo, seja para si ou para o outro, constituiu um dentre
os muitos exercícios (askesis) e técnicas vivenciadas na antiguidade greco-romana
no processo de cuidar de si mesmo e de fabricar a si mesmo. Ou seja, a escrita
desempenhou entre os antigos uma função ética no movimento de
transformação da subjetividade de um indivíduo em busca da verdade interior,
seja como autoconhecimento ou como forma de conduzir a própria vida numa
perspectiva estética.

Em todo caso, seja qual for o ciclo de exercício em que ela ocorre, a escrita
constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende a toda a
askêsis: ou seja, a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como
verdadeiros em princípios racionais de ação. Como elemento de
treinamento de si, a escrita tem, para utilizar uma expressão que se
encontra em Plutarco, uma função etopoiéitica: ela é a operadora da
transformação da verdade em ethos (Foucault 2004, 144).

Precisar a data exata de origem do gênero literário chamado de escrita de


si é uma tarefa complexa. Assim, Michel Foucault estabeleceu um recorte
histórico para objetivar a escrita de si entre o período do século IV a.C, até os
dois primeiros séculos da era cristã. Nesse período de quase quinhentos anos, o
filósofo localizou o tema da escrita e mostrou através de importantes textos da
antiguidade, como a escrita de si se tornou um exercício para a constituição de
si mesmo no prolongamento da própria subjetividade por meio de um exercício
de meditação (Foucault 2010, 320).
Em A Escrita de si é retomado e aprofundado o conteúdo de pesquisa
apresentado na aula de três de março de 1982, do curso A hermenêutica do sujeito.
(Foucault 2004, 144-158). O filósofo apresenta o trajeto sobre a maneira de falar
de si em textos produzidos em meio a cultura greco-romana e que revelam a
escrita já concebida como uma prática de si, ou, como exercícios do eu.
Contextualizando as anotações monásticas como escritas de si, Foucault
argumenta que esses discursos sobre si, após um longo percurso temporal
possibilitaram a emergência discursiva da noção de indivíduo na modernidade,
caracterizando um modo de ser nos tempos modernos. O exercício de escrita na
antiguidade indica uma "parada" sobre si próprio, mesmo sem estar sempre
acompanhada do processo da reflexão filosófica, mas, a partir do uso da
memória sobre experiências vividas e situações cotidianas. É um olhar sobre si que
já começa a se delinear, não com o objetivo de uma "descrição de si", mas com
o de "...de reunir o já dito, de agrupar o que foi ouvido e lido e tudo isto com o
objetivo que nada mais é do que a constituição de si" (Dreyfus; Rabinow 2010,
272).
No curso ministrado no Collège de France em 1982 intitulado A
Hermenêutica do Sujeito, Michel Foucault quer investigar a relação entre
subjetividade e verdade, precisamente, “em que forma histórica as relações entre
“sujeito” e “verdade”, elementos que geralmente não se enquadram na análise
do historiador se configuram no ocidente”? (Stone 2018, 186). Para levar a cabo
essa problematização, o filósofo descreve a constituição do sujeito na
antiguidade greco-romana como um processo possibilitado por vivências como:
os sonhos, a alimentação, a reflexão, os cuidados com o corpo (sono, exercícios
físicos, comida, bebida, excreção, relações sexuais etc.), a interpretação dos
sonhos, a meditação, e, inclusive, a escrita.

118
revista de teoria da história 2 2020

Assim, esse núcleo de experiências e relações delimita a produção da


subjetividade sobre si mesmo por meio de uma “busca” pela verdade no interior
da relação entre mestre-discípulo, vivenciadas em um campo específico de
experiências e enquadrada no contexto geral dos “cuidados de si mesmo”, isto
é, o epimeleia heautou (Foucault 2004, 144).
Foucault indicou que a escrita deve ser compreendida como um
procedimento também capturado pelas malhas do poder e que, além de inscrever
a linguagem no papel, marca uma forte e profunda subjetividade no interior do
indivíduo que escreve, em sua alma. Dessa maneira, como já discorremos acima,
experiência, subjetividade e verdade estabelecem uma correlação que possibilita
demarcar uma história, ou melhor, uma genealogia sobre a produção da
subjetividade do indivíduo através das práticas que remetem a busca pela
verdade sobre si, o que constitui uma forma de experiência histórica que pôde
ser problematizada enquanto tema nos últimos escritos de Foucault.
Contudo, é importante deixar claro que a prática da escrita de si como
ato de liberdade e de constituição de si não pode ser desligado da prática de
leitura, nem da experiência de mediação da consciência através da incorporação
de textos que serão posteriormente o referente linguístico para uma escrita de si
sobre a própria vida. A leitura recolhe o sentido-significativo do texto, ou seja, a
leitura constitui o corpus pelo qual o processo posterior de escrita será realizado
ao narrar a si mesmo, o filósofo Epiteto advertia: “é preciso escrever (grapheîm) ”
(Foucault 2010, 320).

Ademais, facilmente compreendemos que, sendo a leitura assim concebida


como exercício, experiência, e não havendo leitura senão para meditar, a
leitura seja imediatamente ligada à escrita. Daí um fenômeno de cultura e
de sociedade seguramente importante na época de que lhes falo: o lugar
relevante [aí] assumindo pela escrita, a escrita de certo modo pessoal e
individual (Foucault 2010, 320).

Tanto em A Escrita de Si, como no curso A Hermenêutica do Sujeito,


Foucault descreve os hypomnemata, espécie de cadernos que possuíam textos
escritos na antiguidade que referentes a memórias, conhecimentos acumulados
e experiências vividas. A leitura desses cadernos em muitas ocasiões demarcou
uma prática de meditação auto narrativa, isto é, uma prática de escrita de si
destinada a modificação e ao aperfeiçoamento de si-mesmo por meio do
pensamento reflexivo e voltado para uma relação com nossa interioridade, como
também com relação aos outros (Foucault 2004, 141-158).
De fato, os hypomnemata foram definidos por Foucault como uma técnica,
uma prática, e não necessariamente uma forma de escrita sobre si e ou um gênero
literário como uma autobiografia, pois se trata mais de colocar em circulação
dizeres sábios e ensinamentos morais que podem ser anotados em cadernos e
“publicados” pela cidade para serem conhecidos e memorizados. Assim, mais
do que constituir uma narrativa sobre si, os hypomnemata representaram uma
técnica literária que através de uma genealogia das práticas permitem localizar
um lugar de começo a determinada prática, ou até mesmo uma ruptura
instauradora de uma nova prática de escrita acessível ao discurso. Nesse sentido
é que Foucault delimita os hypomnemata como uma techne, que tornou possível o
indivíduo antigo estar em contato com seus pensamentos e valores morais para
cuidar de si mesmo (Foucault 2010, 322-328).

119
revista de teoria da história 2 2020

INDIVIDUAÇÃO E ESCRITA DE SI:


A SUBJETIVAÇÃO PELO ARQUÉTIPO SI-MESMO

A introdução do conceito de individuação como processo de confronto


com os conteúdos do inconsciente e modificação de si por meio da
transformação da personalidade é exclusivo de Jung. De fato, a individuação
pode ser considerada a chave explicativa de toda sua psicologia (Jung 2016, 212),
a experiência mais intensa de sua vida pessoal e o fundamento teórico de toda
sua obra: “cheguei ao conceito básico de toda a minha psicologia, o “processo
de individuação” (Jung 2016, 184). Embora a individuação tenha sido tematizada
nos escritos técnicos relativos à psicologia analítica, foi em sua autobiografia que
Jung desenvolveu uma importante problematização sobre a subjetividade
humana, pois, no interior desse recorte autobiográfico, encontra-se sua reflexão
e análise da individuação a partir de sua própria vida e escrita, isto é, trata-se de
uma experiência literária sobre a subjetividade que a um só tempo funde práticas
de si e escrita de si.
Neste item será nosso objetivo mostrar como o processo de
individuação localizado na autobiografia de Jung, no capítulo Confronto com o
Inconsciente, serviu de aporte conceitual para a formação de uma importante
família conceitual no campo teórico junguiano.
O fio condutor dessa problematização partiu da seguinte hipótese: a
individuação, além de experiência psíquica, corresponde ao conceito
estabilizador do campo teórico de Jung sobre a subjetividade. O processo de
individuação registrado na autobiografia de Jung possui um alicerce teórico que
foi desenvolvido durante a produção de sua obra e resultou na constituição de
um “dispositivo de subjetividade”.
Expliquemos melhor: a individuação, além de um processo subjetivo e
pessoal, ocupa um lugar como personagem conceitual central nos escritos de
Jung, pois possui uma carga teórica articulada a conceitos como ego, psique,
arquétipo, sonho, inconsciente e si-mesmo. Esses conceitos estabelecem uma
correlação singular ao formarem um quadro explicativo sobre a construção da
subjetividade na perspectiva da psicologia analítica do médico suíço.
Logo de saída, é necessário dizer que, para Jung, o processo de
individuação corresponde a um processo de subjetivação por meio de práticas
de si, sendo a escrita sobre si uma dessas práticas. Assim, a individuação é um
fenômeno psíquico possibilitado por experiências sobre si mobilizadas pelo
desenvolvimento da personalidade através de experiências subjetivas que
possibilitem o conhecimento do arquétipo si-mesmo (self), que para Jung
representa o “núcleo” mais fundamental da psique humana e direcionado no
processo de individuação por meio do encontro entre consciente e inconsciente
(Jung 2016, 272-274; Jung 2016, 212).
Jung relata, tanto em suas memórias como em textos técnicos, como
suas revisões sobre a teoria psicanalítica do inconsciente e da teoria da
sexualidade desenvolvidas por Freud foram o ponto de partida para o caminho
que o conduziu em seu processo de individuação e consequente delimitação da
noção do arquétipo self (si-mesmo) (Jung, 2011, 15-25). Mas, para
compreendermos o alcance e o sentido do conceito de individuação, não basta
somente desatar o trabalho de Jung com relação a Freud, antes, é necessário
situar e compreender a individuação no interior de um campo teórico que lhe
oferta sentido.

120
revista de teoria da história 2 2020

Tanto os escritos científicos originários com a pesquisa psicológica de


Jung, como também suas experiências vividas e relatadas em memórias
autobiográficas, mostram a possibilidade de acesso ao arquétipo si-mesmo como
resultado de experiências subjetivas e interiores no caminho da individuação.
Durante esse processo, práticas de si como a escrita de sonhos e fantasias, prática
artística de pintar mandalas e a busca por uma “interioridade espiritual”, foram
registradas pela escrita de Jung como experiências que forneceram a ele o
material necessário para experimentar e compreender os processos inconscientes
e subjetivos em seu “processo” de individuação. Em O Eu e o Inconsciente, Jung
fala sobre o caminho da individuação, isto é, para além de um conceito sobre a
individuação no interior do campo teórico junguiano, a individuação atua como
prática de si. Nas palavras de Jung:

Individuação significa tornar-se único, na medida em que por


“individualidade” entendermos nossa singularidade mais intima, ultima e
incomparável, significando também que nos tornamos nosso próprio si-
mesmo. Podemos pois, traduzir “individuação” como tornar-se si-mesmo”
(Verselbstung) ou “o realizar-se do si-mesmo” (Selbstverwirklichung).
(Jung 2011, 63).

Por outro lado, estabelecer contato com os conteúdos do inconsciente e


realizar o si-mesmo, não significa adotar um estilo de vida e um conjunto de
práticas cotidianas orientadas por uma modulação de ações que protagonizam
nada mais que mero individualismo, isto é, atribuir ênfase às peculiaridades de
uma vida voltada para si em oposição às obrigações coletivas. O processo de
individuação, mesmo ocorrendo no interior de um indivíduo, “significa
precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do
ser humano” (Jung 2011, 63). A singularidade de um indivíduo não deve ser
compreendida como um processo de estranhamento e diferenciação entre os
membros de uma coletividade, mas, ao contrário disso, trata-se de uma prática
que possibilita o encontro com uma condição universal na experiência humana,
a individuação, portanto:

[...] só pode significar um processo de desenvolvimento psicológico que


faculte a realização das qualidades individuais dadas, em outras palavras é
um processo mediante o qual o homem se torna o ser único que de fato
é. Com isso, não se torna “egoísta”, no sentido usual da palavra, mas
procura realizar a peculiaridade do seu ser e isto, como dissemos, é
totalmente diferente de egoísmo e individualismo.
(Jung 2011, 64)

Em Memórias, Sonhos e Reflexões é possível perceber a dimensão “viva” e


o alcance real do conceito, uma vez que a individuação foi responsável por
ofertar um novo sentido para sua vida e até mesmo determinar o rumo
existencial de sua personalidade. Em suas memórias, Jung deixou claro que sua
posição no campo da psicologia analítica nasceu da avaliação pessoal de seu
próprio processo de descoberta e crescimento. No interior desse campo teórico,
encontra-se uma importante família conceitual com destaque para alguns termos
que foram introduzidos em sua obra influenciados por seu processo de
individuação.
De acordo com Jung, no centro da área consciente da psique humana
existe o ego que, de fato, é basicamente a própria consciência pessoal: “assim,
para que qualquer conteúdo psíquico possa tornar-se consciente terá
necessariamente de relacionar-se com o ego” (Silveira 1971, 70). Como veremos
adiante, os conteúdos e processos psíquicos que não mantêm relação com o ego

121
revista de teoria da história 2 2020

constituem o domínio imenso do inconsciente. Já o termo psique, delimita um


campo de experiência muito mais amplo e obscuro, pois representa tanto a parte
consciente como a inconsciente de nossa mente, “[...] na psique não existem
relíquias mortas. Tudo é vivo [...]” (Jung 2019, 41).
Para ofertar uma compreensão geral da estrutura do inconsciente, Jung
recorreu ao conceito de arquétipo. Os arquétipos são conteúdos sem forma,
representam uma matéria “viva” e estruturante do inconsciente, são conteúdos
de caráter instintivo, sensitivo e simbólico “de certa forma são os fundamentos
da psique ocultos na profundidade, ou usando outra comparação, suas raízes
afundadas não só na terra, em sentido estrito, mas no mundo em geral” (Jung
2019, 41). Os arquétipos “cobrem” a parte ctônica da psique, isto é, aquela parte
ainda ligada a natureza por elos invisíveis e incapazes de serem capturados e
compreendidos pela razão.
Também são responsáveis pela emergência de uma cadeia de instintos
que expressam através de imagens primordiais a “materialidade simbólica” da
natureza. Os conteúdos arquetípicos exercem grande influência sobre o ser
humano, pois trata-se da permanência de uma conexão “secreta” que nos
objetiva junto ao mundo natural (Jung 2019, 40-41).

Os arquétipos são sistemas de prontidão que são ao mesmo tempo


imagens e emoções. São hereditários como a estrutura do cérebro. Na
verdade são o aspecto psíquico do cérebro. Constituem, por um lado, um
preconceito instintivo muito forte, e por outro lado, são os mais eficientes
auxiliares das adaptações instintivas. (Jung 2019, 41).

Ao lermos a autobiografia de Jung com o objetivo de compreender o


campo conceitual sobre a subjetividade por meio da dinâmica psíquica dos
arquétipos, fica notório o papel que os sonhos exerceram em seu processo de
individuação para revelação dos conteúdos do inconsciente. Os sonhos
representam uma fonte inesgotável de matéria prima para o desenvolvimento
pleno de sua personalidade e para produção de seus escritos. Ademais, além dos
sonhos atuarem como “demarcadores” para a produção de conceitos no interior
de suas pesquisas, a relação com a vida onírica foi o próprio “pano de fundo”
ou o elemento inconsciente com a mais profunda influência em momentos
decisivos e marcantes de sua vida e obra: “O sonho representa, pois, uma
situação equivalente à realidade, na qual cria uma espécie de vigília. [...] Como
fontes de tais realidades conhecemos, por um lado, as sensações corpóreas e,
por outro, as figuras arquetípicas” (Jung 2016, 231).
De acordo com a perspectiva de Jung, os sonhos produzem conteúdos
reais em nossa psique, mesmo que através de uma linguagem simbólica e não
racional. As experiências oníricas também atuam como fonte produtora de
sensações que estabelecem correspondência com imagens arquetípicas. O papel
dos sonhos sobre a vida psíquica foi descrito por Jung como parte do processo
de individuação, isto é, os sonhos possuem formas e conteúdos tão íntimos e
subjetivos que, ao refletirem de forma simbólica a vida interior do indivíduo,
possibilitam o acesso a conteúdos inconscientes que revelam a sua própria
dinâmica. Jung descobriu que a análise sequenciada dos sonhos mostra um
“esquema”, eles mostram e “obedecem” a determinadas configurações dos
processos que ocorrem no inconsciente e mobilizam nossa subjetividade.
Assim, o reconhecimento da existência dessas configurações oníricas
sobre os conteúdos do inconsciente também faz parte do processo de
subjetivação/individuação (Jung 2008, 211). A vida onírica cria tendências e
esquemas mentais que aparecem, desvanecem-se e tornam a aparecer. O

122
revista de teoria da história 2 2020

discernimento dos sonhos e fantasias por meio da análise narrativa e discursiva


de produções literárias como contos de fadas, mitos e textos alquímicos,
mostram que as imagens arquetípicas produzidas pelo inconsciente constituem
a fonte material para as mais diversas produções discursivas na experiência
cultural humana. Para Jung, a compreensão desses conteúdos se realiza no
processo de individuação com o contato da consciência com o arquétipo si-
mesmo (Silveira 1970, 102). Logo, o si-mesmo atua como o elemento arquetípico
que expande o inconsciente no limite da consciência e possibilita o processo de
individuação conforme seu material torna-se consciente.
No interior desse complexo campo teórico junguiano sobre o processo
de individuação, o inconsciente foi conceituado genericamente na psicologia
analítica como possuindo duas dimensões. O inconsciente possui uma primeira
e menos densa camada, como uma superfície para os conteúdos conscientes e
pessoais. Essa camada, por sua vez, repousa em uma camada mais densa e
profunda que corresponde ao inconsciente coletivo. Os conteúdos provenientes
dessa camada mais profunda da psique constituem os arquétipos. Os conteúdos
arquetípicos, como dissemos, originários no inconsciente coletivo, possuem
características arcaicas, são imagens que acompanham o ser humano desde os
primórdios de sua existência. Vejamos como Jung definiu o inconsciente
coletivo:

Esta camada mais profunda é o que eu chamei de inconsciente coletivo.


Eu optei pelo termo “coletivo” pelo fato do inconsciente não ser de
natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente á psique pessoal
ele possui conteúdos, e modos de comportamentos, os quais são cum grano
salis os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. (Jung 2014, 12).

Os conteúdos arquetípicos do inconsciente coletivo possuem suas raízes


num passado remoto e anterior à invenção da civilização. Uma das formas de
conteúdo inconsciente e arquetípico pode ser encontrada nas narrativas míticas
e religiosas, as quais correspondem às representações coletivas, termo usado por Lévi-
Bruhl para descrever figuras simbólicas presentes no imaginário de povos
primitivos (Jung 2014, 13-14). No âmago dessa dimensão psíquica chamada de
inconsciente coletivo encontra-se o self, isto é, o arquétipo cujo conteúdo
representa um caminho para plena individuação através da assimilação do eu interior
pelo si-mesmo, e, dessa maneira, ocorre o processo psíquico de subjetivação de si
em uma “alma”, ou uma personalidade global.
Para Jung, o si-mesmo pode ser compreendido como o centro pelo qual
emana uma fonte inesgotável de energia psíquica que acompanha a trajetória da
humanidade, e, por essa razão, o si-mesmo atua como um arquétipo que contém
um conteúdo psíquico comum a todos os indivíduos. Em Aion: estudo sobre o
simbolismo do si-mesmo, podemos encontrar a seguinte definição:

A circunstância de lidar com a psicologia do inconsciente fez-me deparar


com fatos que exigem a elaboração de novos conceitos. Um desses
conceitos é o do si-mesmo (selbest). Refiro-me, com isto, não a uma grandeza
que venha ocupar o lugar daquela até o momento designada pelo termo
eu, mas uma grandeza mais abrangente, que inclua o eu. [...] Esta definição
descreve e estabelece, antes de tudo, os limites do sujeito. (Jung 2018, 13).

Através desse processo de subjetivação, o homem não deve assumir uma


condição subjetiva ainda mais egoísta, mas, ao contrário disso, realizar as
peculiaridades do ser individual tem como meta a cooperação com a dimensão
coletiva da experiência humana. Nesse sentido, a individuação só pode tornar-
se um processo de desenvolvimento psicológico ao potencializar e maximizar as

123
revista de teoria da história 2 2020

qualidades individuais, isto é, a individuação atua como processo de subjetivação


pelo qual “o homem torna-se o ser único que de fato é” (Jung 2011, 64).
A psicologia contemporânea localiza no ego o conceito de si-mesmo. De
maneira diferente, Jung define o si-mesmo como o centro do inconsciente e, ao
mesmo tempo, como a totalidade da personalidade (Vieira 2006, 89-100). De
acordo com Hall, o conceito relativo ao arquétipo self (si-mesmo) pode ser
considerado o menos empírico entre os conceitos estruturais na obra de Jung, pois,
trata-se de um conceito que surge na fronteira daquilo que possa ser clinicamente
demonstrado, contudo o termo torna-se útil e possui precisão para descrever a
partir de um campo conceitual psi, o que seria de outra maneira indescritível.
Para o comentador dos escritos de Jung, “no plano psicológico, o self é
virtualmente indistinguível do que a tradição denominou Deus” (Vieira 2006,
89-100).

CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A INDIVIDUAÇÃO COMO A DOBRA FOUCAULTIANA
Não é possível negar as diferenças entre as formas de problematização
presente nos trabalhos de ambos os autores, mas é aceitável encontrar
ressonâncias e pontos de contato entre campos teóricos tão díspares. O elo entre
Michel Foucault e Jung no interior da temática sobre a subjetividade, apesar de
suas distensões, foi posto pela escrita de si mesmo. Assim, a escrita de si
constituiu o ponto de inflexão para correlação conceitual entre dois campos
teóricos distintos.
Para Foucault, a escrita de si foi um objeto de pesquisa descrito no
interior de sua problematização sobre as técnicas de si e sobre o sujeito na
antiguidade helenística, dessa maneira, a escrita de si enquanto prática de si pode
ser compreendida como a dobra interior do ser, uma forma de relação destinada a
produzir subjetivação e afeto sob si mesmo (Deleuze 2005, 121). A dobra não é
movimento psíquico, isto é, uma projeção mental interior, mas ao contrário
disso, trata-se de uma interiorização mediada pelo lado de fora. Isso significa que
a dobra do ser é o próprio movimento de subjetivar-se pelas práticas vivenciadas
(Deleuze 2005, 105).
A crítica de Foucault sobre a subjetividade é radical. O processo de
subjetivação marca um movimento de repetição do diferente, trata-se de um lado
de dentro mais profundo que todo o mundo interior e mais longínquo que o
mundo exterior, o sujeito é composto por meio de uma abordagem não
essencialista e universal sobre as condições históricas de subjetividade. Para Michel
Foucault o ato de escrita, representa ele mesmo o apagamento do sujeito que
escreve, ele escreve-se para ser outro, para ser diferente daquilo que se foi. A
subjetividade definida pelas práticas de “cuidar de si mesmo”, resultou da
analítica foucaultiana como um conjunto de práticas que revelam a não-
identidade do sujeito, os indivíduos por meio de suas práticas históricas estão
despossuídos de universalidades e essencialidades.
O processo de subjetivação pela individuação realizado por Jung
materializa o movimento de subjetividade cunhado por Foucault como dobra.
Ao lermos sua autobiografia, podemos ter contato com a realização dessa dobra
interior no caminho da personalidade plena, isto é, sua autobiografia representa
uma fonte documental sobre a possibilidade real de subjetivação e modificação
de si mesmo exercida pela prática da escrita de si. A escrita de si foi incorporada
no processo de individuação de Jung e, paralelamente, o médico suíço obteve
consciência por meio de determinadas práticas dos conteúdos inconscientes

124
revista de teoria da história 2 2020

presente em sua psique. Esse contato com o inconsciente possibilita a


compreensão e até mesmo a ressignificação das experiências vividas e, através
desse processo, a modificação de sua identidade.
A compreensão de Jung sobre o processo de individuação possibilitou a
criação de um dispositivo teórico sobre a subjetividade. A subjetividade de si
mesmo, ao ser tematizada pela noção de individuação, além de estabilizar o
campo teórico junguiano, mostrou em sua autobiografia uma perspectiva prática
e experimental desse processo. Não é possível realizar o processo de
individuação sem desenvolver um conjunto de práticas de si que atuam como
“um princípio, um arquétipo de orientação e do sentido (para a vida): nisso reside
sua função salutar” (Jung 2016, 203). Cabe dizer que a meta da subjetivação via
processo de individuação “não é outra, se não a de despojar o si-mesmo dos
invólucros falsos da persona” (Jung 2011, 64), a de “gerar um indivíduo
psicológico, ou seja, uma unidade indivisível, um todo” por meio da radical
transformação de si (Jung 2014, 274).
Michel Foucault e Carl Gustav Jung, mesmo separados pela distância dos
limites e expectativas do campo acadêmico pelo qual discursam, “encontram-se”
com binômio conceitual subjetivação/individuação, ambos autores são
atravessados pelo debate teórico sobre o tema da subjetividade por meio da
escrita de si. Foucault descreveu formas históricas de subjetivação e mapeou os
“dispositivos de subjetividade” que marcam a cultura ocidental por meio de
práticas de si. Já Jung criou um campo teórico no interior da psicologia analítica
através de sua própria experiência no processo de individuação.

REFERÊNCIAS

BARONE, Luciana. Inconsciente, subjetividade e processo de criação. Campinas.


Unicamp-Revista Pitágoras 500. V. 06. 2014.
CARDOSO JÚNIOR, Helio Rebello. Para que serve uma subjetividade? Foucault,
tempo e corpo. Psicologia: Reflexão e Crítica. Curso de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), v. 18, n. 3, p. 344. 2005.
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte. Autêntica. 2014.
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso por seus temas, conceitos e
autores. Belo Horizonte: Autêntica. 2004.
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além
do estruturalismo e a da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
FOUCAULT, Michel. In.: MOTTA, M. B. (Org.). O que é um autor? Estética: Literatura
e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. (Coleção
Ditos e Escritos III).
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In.: MOTTA, M. B. (Org.). Ética, sexualidade, política.
3. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017. (Coleção Ditos e Escritos V).
FOUCAULT, Michel. A tecnologia política dos indivíduos. In. MOTTA, Manoel Barros.
Ética, sexualidade e política. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017. (Coleção
Ditos e escritos V).
FOUCAULT, Michel. Ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: MOTTA,
M. B. (Org.). Ética, sexualidade, política. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2017. (Coleção Ditos e Escritos V).
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-
1982). São Paulo: Martins Fontes, 2010.

125
revista de teoria da história 2 2020

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal,
2009.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal,
2011.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o Poder (1982). In: DREYFUS, Hubert; RABINOW,
Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e a da
hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
GALLE, Helmut; OLMOS, Ana Cecília. Em primeira pessoa: Abordagens de uma teoria
autobiográfica. São Paulo. Ed: Annablume, 2009.
HALL, James A. Jung e a interpretação dos sonhos. São Paulo: Cultrix, 1983.
HALL, S., Calvin; NORDBY, J., Vernon. Introdução à psicologia junguiana. São Paulo.
Cultrix, 1993.
JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2019.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014.
JUNG. Carl Gustav. Aion: Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis-RJ.
Editora: Vozes. 2018.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte.
UFMG, 2008.
SILVEIRA, Nise. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro. Jose Álvaro, 1971.
STONE, Brad Elliot. Subjetividade e Verdade. In: TAYLOR, Dianna (ORG.). Michel
Foucault: Conceitos Essenciais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
VIEIRA. André Guirland. A função da história e da cultura na obra de C. G. Jung. Revista
Aletheia, n. 23, jan./jun. 2006.

SUBJETIVIDADE, INDIVIDUAÇÃO E ESCRITA DE SI


APROXIMAÇÕES TEÓRICAS ENTRE MICHEL FOUCAULT E CARL GUSTAV JUNG
ARTIGO SUBMETIDO EM 06/07/2020 • ACEITO EM 07/12/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.64279
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

126
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

PSICANÁLISE,
HERMENÊUTICA E O
PROBLEMA DO SENTIDO
RICŒUR LEITOR DE
FREUD
BRENO MENDES
Universidade Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brasil
mendes.breno@gmail.com
orcid.org/0000-0001-6408-4117

Neste artigo realizo uma reflexão sobre a leitura filosófica da


psicanálise de Sigmund Freud desenvolvida por Paul
Ricoeur, especialmente no que diz respeito ao problema do
sentido e às suas implicações para o fenômeno da história.
Para tanto, lanço mão da hermenêutica como método e me
concentro na obra Da interpretação: ensaio sobre Freud de 1965,
a fim de compreender as possíveis analogias identificadas
por Ricoeur entre a abordagem psicanalítica e o trabalho
hermenêutico. Além disso, realizo uma contraposição entre
a apropriação ricoeuriana de Freud e a interpretação feita por
Lacan. Por fim, investigo a dialética elaborada por Ricoeur
entre a arqueologia do sujeito de Freud e a teleologia da
consciência de Hegel.

psicanálise – hermenêutica – sentido – Ricoeur – Freud

127
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

PSYCHOANALYSIS,
HERMENEUTICS AND THE
PROBLEM OF SENSE
RICŒUR AS READER OF
FREUD
BRENO MENDES
Universidade Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brazil
mendes.breno@gmail.com
orcid.org/0000-0001-6408-4117

In this article, I reflect on the philosophical reading of


Sigmund Freud’s psychoanalysis developed by Paul Ricoeur,
particularly with regard to the problem of sense and its
implications for the phenomenon of history. To this end, I
employ hermeneutics as a method and focus on the work
Freud and philosophy: an essay on interpretation (1965) in
order to understand the possible analogies identified by
Ricoeur between the psychoanalytic approach and the
hermeneutical work. Furthermore, I interpose Ricoeur’s
appropriation and Lacan’s interpretation of Freud. Finally, I
investigate the Ricoeurian dialectics between the archeology
of subject and the Hegelian teleology of conscience.

psychoanalysis – hermeneutic – sense – Ricoeur – Freud

128
revista de teoria da história 2 2020

“A abordagem da psicanálise e da história esteve presente ao longo de


toda a obra de Ricoeur”. Dificilmente algum intérprete da filosofia ricoeuriana
poderia recusar as palavras ditas por Esteban Lythgoe (2017, 117), ainda mais à
luz da leitura de A memória, a história, o esquecimento na qual o pensador francês
defende que os historiadores atuem na esfera pública como uma espécie de
“terapeutas da cultura” no contexto das disputas de memória. Nessa perspectiva,
a historiografia e a psicanálise teriam um propósito semelhante, a saber,
aumentar a compreensão de quem nós somos, da nossa própria existência, por
meio da elaboração de intepretações mediadas pela linguagem (Mendes 2019).
Entretanto, ao longo deste artigo, procuraremos demonstrar que uma
compreensão mais aprofundada da aproximação entre historiografia e
psicanálise demanda uma leitura cuidadosa da primeira obra em que Ricoeur
sistematizou suas reflexões sobre Freud, qual seja, Da interpretação, publicada
originalmente em 1965. Para tanto, utilizaremos como eixo norteador a categoria
de sentido por entendermos que ela realiza uma dialética entre existência e
linguagem presente tanto na psicanálise como na historiografia compreendidas
a partir de um ponto de vista hermenêutico.
Depois de realizar, em suas próprias palavras, o giro linguístico no
interior da hermenêutica, sobretudo a partir de A simbólica do mal (1960), Ricoeur
se aproximou da psicanálise pela via da linguagem. A obra Da Interpretação: ensaio
sobre Freud, publicada em 1965, tem como proposta principal ser uma leitura
filosófica do fundador da psicanálise. Mas por que se voltar para a psicanálise?
Em sua Autobiografia intelectual (s/d) Ricoeur se faz essa pergunta e responde que
foi conduzido a Freud pela temática da culpabilidade, cerne de seu livro anterior
aparecido em 1960. Nos cinco primeiros anos da década de sessenta o filósofo
consagrou vários cursos na Sorbonne ao pensamento freudiano nos quais
começou a desenvolver sua interpretação em que pretendia ler Freud como se
ele fosse um cânone da história da filosofia. Efetivamente, Da interpretação é
dividido em três livros intitulados, respectivamente, de “Problemática”,
“Analítica” e “Dialética”. A obra reúne três conferências proferidas em Yale no
outono de 1961, acrescidas de oito palestras pronunciadas na Universidade de
Louvain na Bélgica no outono de 1962. Guiados por nosso problema central
procuraremos analisar essa obra orientados pelos seguintes questionamentos:
qual a concepção de sentido Ricoeur atribui a psicanálise? De que modo essa
concepção é importante para o modo como o problema do sentido é
equacionado na filosofia ricoeuriana?
Antes de esmiuçarmos os argumentos centrais deste livro vale a pena
recuperar um pouco do clima intelectual que envolveu a sua publicação em 1965.
Menos de meia-década antes, já havia ocorrido uma desavença entre Ricoeur e
Lévi-Strauss acerca do problema do sentido. Desta feita o embate acontecerá
com Jacques Lacan e seus seguidores. Nas próximas páginas procuraremos
sinalizar as aproximações e as tensões entre as leituras que Ricoeur e Lacan
fazem de Freud, procurando sempre nos deter, principalmente, nas questões que
gravitam em torno do problema central da nossa investigação. No momento
cumpre ressaltar que a primeira aproximação entre os dois pensadores foi
amistosa. Em 1960, após a exposição de sua abordagem filosófica da psicanálise
em um colóquio sobre o inconsciente em Bonneval, Ricoeur foi convidado pelo
próprio Lacan para assistir aos seus prestigiados seminários, aos quais
compareceu durante um ano e meio. Segundo Dosse (2008, 2017), o criador da
Escola Freudiana de Paris estava em busca de um aval filosófico para o seu

129
revista de teoria da história 2 2020

projeto de retorno a Freud1 e depositava expectativas em Ricoeur a esse respeito


(Roudinesco 1988; Dosse 2017)2.
A abertura do livro 1 de O seminário sobre os escritos técnicos de Freud nos
mostra como, em um primeiro momento, Lacan e Ricoeur parecem estar
próximos no que diz respeito a compreensão hermenêutica da psicanálise. Como
veremos melhor adiante, ambos recusam o naturalismo em favor de uma
abordagem que situa a psicanálise no registro do sentido e se preocupa com o
problema da subjetividade:

Com a Interpretação dos Sonhos, efetivamente, algo de uma essência diferente,


de uma densidade psicológica concreta, é reintroduzido, a saber, o sentido
[...]. Quando interpretamos um sonho, sempre estamos em cheio no
sentido. O que está em questão é a subjetividade do sujeito, nos seus desejos,
na sua relação com seu meio, com os outros, com a própria vida.
(Lacan [1953-1954] 1986, 9. Grifos nossos.)

DA INTERPRETAÇÃO :
UMA LEITURA HERMENÊUTICA DE FREUD

Da interpretação: ensaio sobre Freud é um livro que, desde o título, procura


marcar a aproximação entre a psicanálise e a hermenêutica sob a perspectiva
ricoeuriana. Tal movimento explica-se pela centralidade da linguagem, mas
também pelo modo como o hermeneuta francês concebia a psicanálise.
Inspirando-se no ensaio freudiano Psicanálise e teoria da libido (1922-1923), Ricoeur
([1977] 2010) a concebe como uma disciplina formada por uma relação triangular
entre um procedimento de investigação, um método de tratamento e uma teoria.
Em que pese o fundador da psicanálise não ter colocado em xeque o
pertencimento dessa disciplina ao ramo das ciências naturais, não foram poucas
as críticas dirigidas aos seus fundamentos epistemológicos. Talvez um dos
questionamentos mais célebres tenha sido aquele cunhado por Karl Popper
sinalizando que os enunciados psicanalíticos (os sonhos são a realização de um
desejo, por exemplo) não são falseáveis e, por isso, não devem ser situados no
interior da racionalidade científica. Para Ricoeur, enquanto a psicanálise buscar
fundamentação nas ciências naturais permanecerá vulnerável aos ataques
desferidos pelos epistemólogos. Em vez disso, para ele, o “fazer psicanalítico”,
para usarmos sua expressão, deveria assumir um caráter inelutavelmente
hermenêutico.
Em sua leitura hermenêutica do pensamento freudiano, Ricoeur
reencontrou o problema do duplo sentido trazido pelos símbolos. Porém, desta
feita, o paradigma será a interpretação dos sonhos em vez da interpretação dos
mitos e símbolos religiosos sobre o mal. Bem entendido, Ricoeur defende que
Freud propôs uma concepção de sonho bastante ampla de tal modo que ele não
se restringisse às nossas fantasias noturnas, mas fizesse referência a todas as
expressões dissimuladas do desejo humano na linguagem. Este é o núcleo

1 Do ponto de vista institucional, um marco importante nesse projeto foi a criação da Escola

Freudiana de Paris capitaneada pelo próprio Jacques Lacan. Outrora, os seminários tiveram lugar
no Hospital Saint-Anne e na École Normale Supérieure. Para Michel de Certeau, Lacan nunca
se vinculou inteiramente às instituições e instituiu a Escola de Paris em um ato de fala em nome
da solidão: “Fundo – tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicana-
lítica...” (Lacan apud Certeau 2012, 207).
2 “Lacan, encantado de ver Ricoeur fiel às suas sessões, sabendo que ele preparava um livro

sobre Freud, esperava ser recompensado em retorno. Lacan cuidava particularmente bem de seu
distinto convidado, vindo saudá-lo, citando-o várias vezes, repetindo ao auditório o quanto lhe
era devedor” (Dosse 2017, 94).

130
revista de teoria da história 2 2020

daquilo que o filósofo chama de semântica do desejo a qual evidencia a equivocidade


da linguagem: “a linguagem é, antes, e na maioria das vezes distorcida: quer dizer
outra coisa do que aquilo que diz, tem duplo sentido, é equívoca [...] um outro
sentido ao mesmo tempo se revela e se oculta num sentido imediato” (Ricoeur
[1965] 1977, 17-18). A fenomenologia da religião com a qual Ricoeur dialogava
em A simbólica do mal entendia o símbolo como um fenômeno de manifestação
do sentido, ao passo que a psicanálise o concebe como um fenômeno de
dissimulação do desejo, uma expressão na qual, ao mesmo tempo, o sentido é
mostrado e ocultado. Então, se o campo hermenêutico continua circunscrito à
interpretação dos símbolos e do duplo sentido, é a própria definição de símbolo
que recebe um novo aporte, pois na psicanálise não são apenas os signos escritos
que se prestam à interpretação, mas também os relatos dos sonhos, os sintomas,
os mitos, as crenças e as obras de arte.
“A interpretação como exercício da suspeita”. Com essas seis palavras
podemos sintetizar a principal contribuição trazida pela psicanálise ao campo
hermenêutico na visão de Ricoeur. Aliás, para sermos mais precisos, Karl Marx
e Friedrich Nietzsche também são enquadrados pelo filósofo na tradição da
hermenêutica da suspeita que se contrapõe a ideia de interpretação como restauração
do sentido, tal como havia sido proposto pela fenomenologia da religião. Os
pensadores da suspeita concebem a atividade interpretativa como “redução das
ilusões e das mentiras da consciência” (Ricoeur [1965] 1977, 36). A intenção
comum a esses três pensadores germânicos seria a dúvida, o questionamento,
em relação à consciência. Assim, eles retomariam, cada um à sua maneira, o
problema da dúvida cartesiana. Dizendo de forma mais incisiva, eles evidenciam
que as coisas não são tal como aparecem à consciência, o sentido e a consciência
do sentido não coincidem. “A partir deles, a compreensão é uma hermenêutica:
procurar o sentido, daí para frente, já não é soletrar a consciência do sentido,
mas decifrar-lhe as expressões” (Ricoeur [1969] 1978, 148).
Entretanto, Ricoeur esclarece que em sua leitura os três mestres da
suspeita não são mestres do ceticismo. Ou seja, eles não inviabilizam a
constituição de sentido, mas a tornam menos ingênua. Curiosamente, mais ou
menos no mesmo período, meados da década de 19603, Michel Foucault
também irá assinalar que “Marx, Nietzsche e Freud situaram-nos ante uma
possibilidade de interpretação e fundamentaram de novo a possibilidade de uma
hermenêutica” (Foucault 1997, 17). O autor de As palavras e as coisas defende,
ainda, que o trio germânico não deu um sentido novo às coisas, mas modificou
o modo como interpretamos os símbolos4. Isto é, estes pensadores estão inseridos
na epistéme moderna em que a não coincidência entre as palavras e as coisas se
reflete no inacabamento do sentido a ser interpretado pela hermenêutica5.

3 Para sermos mais precisos trata-se de uma intervenção realizada originalmente no Colóquio
de Royaumont entre 4 e 8 de julho de 1964.
4 “A partir de Freud, Marx e Nietzsche, segundo penso, o símbolo vai converter-se em algo

de malévolo; quero dizer que no símbolo há uma certa ambiguidade um pouco turva de ‘má
vontade’ e de ‘malevolência’ [...] O símbolo, ao adquirir essa nova função de encobrimento da
interpretação perdeu a sua simplicidade do significante que todavia possuía na época do Renas-
cimento” (Foucault 1997, 25).
5 “O inacabado da interpretação, o fato de que seja sempre fragmentada, e que queda em

suspenso ao abordar-se a si mesma, encontra-se, creio eu, de maneira bastante análoga em Marx,
Nietzsche e Freud, sob a forma da negação do começo. Negação da ‘Robinsonada’ dizia Marx:
a distinção tão importante para Nietzsche entre o começo e a origem; e o caráter sempre inaca-
bado do desarolho regressivo e analítico de Freud” (Foucault 1997, 20).

131
revista de teoria da história 2 2020

Para além dessa proximidade entre Ricoeur e Foucault no que tange aos
aportes de Marx, Nietzsche e Freud para a hermenêutica parece que a
interpretação foucaultiana segue por uma via mais radical. Numa passagem em
que se fazem sentir ecos do filósofo do martelo lemos que “se a interpretação
não se pode nunca acabar, isto quer simplesmente significar que não há nada a
interpretar. Não há nada absolutamente primário a interpretar, porque no fundo
já tudo é interpretação” (Foucault 1997, 22). Essa passagem deixa claro que os
filósofos franceses estão partindo de pressupostos díspares, pois para Ricoeur
apesar da hermenêutica da suspeita, existe sentido a ser interpretado, ao passo
que para Foucault a interpretação é mais um processo de distorção violenta do
que uma elucidação. Para um, o símbolo é portador do duplo sentido, porque
ao mesmo tempo que revela, oculta. Para o outro, os símbolos são máscaras que
turvam o sentido. Em suma, na filosofia ricoeuriana temos a prevalência das
relações de sentido e na filosofia foucaultiana o domínio das relações de força6.
Mais do que destruir a consciência, na leitura de Ricoeur, os pensadores
da suspeita visavam a sua extensão e o seu aprofundamento. Acreditamos que
essa interpretação se torna ainda mais compreensível à luz do problema do
sentido. Assim, as críticas de Freud, Nietzsche e Marx funcionaram como uma
depuração do sentido livrando-o de suas deformações pela ideologia, pelas
neuroses ou por aquilo que cerceia a vontade de poder. A redução das ilusões e
a escuta dos símbolos fazem parte de um mesmo círculo hermenêutico e tem
em comum o descentramento da origem do sentido para outro lugar que não a
consciência imediata do sujeito7. Em outras palavras, existe uma direção para a
qual as críticas ao sentido imediato apontam, elas têm em vista aumentar nossa
compreensão de nós mesmos, da historicidade da nossa existência e da realidade
por meio dos símbolos. Um exemplo disso podemos encontrar na interpretação
de Freud com filtro hegeliano apresentada em Da interpretação: “o que pretende
Freud é que o analisado, ao fazer seu o sentido que lhe era estranho, amplie seu campo
de consciência, viva melhor e, finalmente, seja um pouco mais livre e, se possível,
um pouco mais feliz” (Ricoeur [1965] 1977, 38-39. Grifo nosso).
Voltemos nossas atenções para a analítica da obra de Freud empreendida
por Ricoeur. No livro publicado em 1965 o filósofo decide se concentrar nos
escritos freudianos e não na experiência analítica ou nas escolas pós-freudianas8.
A questão norteadora proposta pelo filósofo é “o que significa interpretar em
psicanálise?” (Ricoeur [1965] 1977, 61). Ricoeur concebe os escritos freudianos
como um discurso misto em que se entrecruzam as relações de força (energética)
e as relações de sentido (hermenêutica). Nessa lógica, mesmo nos textos mais
cientificistas como o Projeto para uma psicologia científica (1895) haveria espaço para
uma dimensão hermenêutica no que tange à interpretação dos sintomas9. A
clássica analogia do aparelho psíquico como sendo um sistema de neurônios
submetido às leis da mecânica abre, a contrapelo, a porta para a hermenêutica
uma vez que o psiquismo não é concebido um caos sem significado, mas sim

6 Para uma análise sobre a ressonância desses argumentos para a teoria da história, cf. Mendes

2011.
7 “O núcleo do sentido não é a ‘consciência’, mas algo diferente da consciência” (Ricoeur

[1965] 1977, 55).


8 “Este livro não é um livro de psicologia, mas de filosofia. O que me importa é a nova

compreensão do homem introduzida por Freud” (Ricoeur [1965] 1977, 11).


9 “Os fatos em psicanálise não são, de modo algum, fatos de comportamento observáveis.

São “relatórios” (reports). Só conhecemos os sonhos contados ao despertar; os próprios sintomas,


ainda que parcialmente observáveis, somente entram no campo de análise em relação a outros
fatores verbalizados no “relatório”. É essa restrição seletiva que obriga a situar os fatos da psi-
canálise numa esfera de motivação e de significação” (Ricoeur [1977] 2010, 19-20).

132
revista de teoria da história 2 2020

como um sistema que pode ser interpretado e decifrado pelo analista. Por certo,
a abertura para o campo hermenêutico ficará ainda mais evidente no célebre
tratado de 1900, A interpretação dos sonhos.
A articulação entre as relações de força e as relações de sentido no
pensamento freudiano proposta por Ricoeur ganha mais inteligibilidade à luz da
apropriação da psicanálise no hexágono francês. Uma das marcas da recepção
das ideias de Freud entre os filósofos franceses era a aplicação de um filtro que,
por assim dizer, visava separar o joio do trigo10. A parte “aceitável” costumava
ser incorporada ao sistema do filósofo, enquanto a “inaceitável” era criticada
com base nos pressupostos daquele sistema. Dessa maneira, sustenta Renato
Mezan (2002), o “filtro francês” desqualificava o lado “força” em favor do lado
“sentido”. A partir dos anos 1920, a metapsicologia foi taxada como
“mecanicista”, “naturalista” e até mesmo como “positivista”. Em contrapartida,
a prática da interpretação foi incorporada pelas filosofias da consciência e pelas
filosofias da existência.
Retornemos à Interpretação dos sonhos. A tese defendida por Freud na obra
de 1900 parece vir ao encontro da lógica do sentido ricoeuriana. Para o fundador
da psicanálise o sonho é mais do que um mero resíduo da vigília desprovido de
significado. Antes, mesmo quando parecem absurdos e sem-sentido, os sonhos
são fruto de uma operação mental complexa e passível de compreensão11. Na
análise de Ricoeur a hipótese freudiana segundo o qual os sonhos são realização
de desejos recalcados traz em seu bojo a imbricação entre as relações de força
(evidentes no processo de recalcamento) e as relações de sentido (em jogo na
noção de satisfação). Os dois principais procedimentos do trabalho do sonho, a
condensação e o deslocamento, apontariam para uma direção semelhante: o
sentido do sonho acontece no jogo entre o seu sentido manifesto, aparente e o seu
sentido latente, profundo (Freud 2001).
Em linhas gerais, a interpretação ricoeuriana aponta que a psicanálise
nunca analisa apenas forças nuas e cruas, mas forças em busca de um sentido12.
Essa postura instaura aquilo que o filósofo francês chama, em O conflito das
interpretações, de império do sentido:

10 Um bom exemplo desse procedimento pode ser encontrado no neotomista Roland Dal-

biez, a quem Ricoeur considera como seu “primeiro professor de filosofia”. Dalbiez publicou
em 1936 sua volumosa interpretação filosófica sobre “O método psicanalítico e a doutrina de
Freud”. Nesse livro o autor aceita o valor terapêutico método de análise proposto por Freud,
mas recusa a sua doutrina, a sua filosofia que desaguaria em uma espécie de pansexualismo. No
capítulo sobre o inconsciente de O voluntário e o Involuntário (Filosofia da Vontade 1), Ricoeur
dialoga abertamente com os argumentos de Dalbiez. Em sua Autobiografia intelectual, Ricoeur se
recorda com gratidão de seu primeiro mestre: “Penso também que devo a Roland Dalbiez minha
preocupação posterior de integrar a dimensão do inconsciente e, em geral, o ponto de vista
psicanalítico, a uma maneira de pensar fortemente marcada, no entanto, pela tradição da filosofia
reflexiva francesa” (Ricoeur s/d, 15).
11 “[Os sonhos] não destituídos de sentido, não são absurdos; não implicam que uma parcela

de nossa reserva de representações esteja adormecida enquanto outra começa a despertar. Pelo
contrário, são fenômenos psíquicos de inteira validade – realizações de desejos; podem ser inse-
ridos na cadeia dos atos mentais inteligíveis da vigília; são produzidos por uma atividade mental
altamente complexa” (Freud 2001, 136).
12 “Muito grosseiramente, pode-se dizer que o procedimento de ‘investigação’ tende a dar

preferência às relações de significação entre produções psíquicas, ao passo que o método de


tratamento tende a dar preferência às relações de ‘força’ entre sistemas” (Ricoeur [1979] 2010,
29).

133
revista de teoria da história 2 2020

Interpretar é ir de um sentido manifesto para um sentido latente: a


interpretação move-se totalmente nas relações de sentido e só
compreende as relações de força (recalcamento, reaparição do recalcado)
como relação de sentido (censura, disfarce, condensação, deslocamento).
Por consequência ninguém contribuiu mais do que Freud para romper o
encanto do fato e instaurar o império do sentido.
(Ricoeur [1969] 1978, 145).

Outra categoria que traz em si a imbricação entre força e sentido é a de


pulsão (Trieb). Na interpretação ricoeuriana, Freud procura escapar à concepção
puramente fisiológica do termo, pois para ele a pulsão é compreensível por
intermédio de seus efeitos de sentido, ou para ser mais exato, das distorções do
sentido. Dizendo de forma mais clara, a pulsão é interpretada porque é expressa
pela linguagem em seu representante psíquico, ela sinaliza para o desejo, ainda
que esse, enquanto tal, esteja na ordem do indizível. O mecanismo das pulsões
envolve uma linguagem de força articulada a uma linguagem de sentido. A
interpretação analítica procura remeter um sentido aparente a um sentido
escondido de modo que um texto aparentemente sem sentido se traduza em um
texto inteligível. Nesse discurso misto, “as relações de força anunciam-se e
dissimulam-se nas relações de sentido, ao mesmo tempo que as relações de
sentido exprimem e representam as relações de força” (Ricoeur [1969] 1978,
166).
A ênfase na dimensão discursiva da obra de Freud levou Ricoeur a
conceber a psicanálise como um trabalho sobre o sentido. O ponto de partida
da terapia psicanalítica, via de regra, são acontecimentos inquietantes, sem-
sentido, que precisam ser interpretados. Em termos hermenêuticos estamos
próximos da proposição de Schleiermacher segundo a qual a interpretação surge
quando a compreensão imediata falha13. Para sermos mais precisos, sob o viés
hermenêutico, a análise procura interpretar as distorções no âmbito do sentido
de modo a tornar as experiências sem-sentido passíveis de ser encadeada em um
discurso significativo. Tal objetivo aproxima a psicanálise das ciências históricas
e a distância das ciências da natureza. Embora possua uma dimensão técnica, o
trabalho psicanalítico não pode prescindir da esfera hermenêutica, assim
coadunam-se força e sentido:

O analista nunca manuseia diretamente forças, mas sempre indiretamente


no jogo do sentido, do duplo-sentido, do sentido substituído, deslocado,
transposto. Economia do desejo, sim, mas através da semântica do desejo.
Energética sim, mas através de uma hermenêutica.
(Ricoeur [1969] 1978, 185).

A interpretação hermenêutica da psicanálise não passou incólume pelas


polêmicas que marcaram a cena intelectual francesa da década de 1960.
Inicialmente, o livro Da interpretação despertou grande interesse por se tratar de
algo pouco comum à época, uma leitura filosófica sistemática da obra freudiana.
Porém, a orientação hermenêutica e fenomenológica da leitura atraiu toda sorte
de reprovações. Em uma primeira frente estão as denúncias de plágio sobre as
quais não iremos nos delongar. Em A história da psicanálise na França, Elisabeth
Roudinesco relata como Lacan ficou furioso ao saber que a obra não endossava

13 Para Gadamer (2011) e Grondin (1999) uma das maiores contribuições de Schleiermacher

à história da hermenêutica foi a universalização do mal-entendido, a qual abriu as portas para


que a hermenêutica deixasse de ser aplicada, estritamente, às passagens obscuras de um texto: “o
mal-entendido se produz por si mesmo, e a compreensão é algo que temos de querer e procurar
sob todos os aspectos” (Schleiermacher, 2005, 113).

134
revista de teoria da história 2 2020

a sua perspectiva, “esperara ser glorificado e é desconhecido por um filósofo de


renome que frequentou o seu seminário” (Roudinesco 1988, 420). A partir de
então, o fundador da Escola Freudiana de Paris passou a se queixar com os seus
discípulos, afirmando ter sido vítima de um plagiador. Jean-Paul Valabrega – que
em 1966 ainda era adepto da escola lacaniana – deu visibilidade a essa denúncia
em um artigo publicado na revista Critique, sublinhando que Ricoeur não teria
sido honesto para reconhecer a primazia de Lacan na interpretação de Freud por
meio de estudos da linguagem: “Assim procedendo, o Sr. Ricoeur torna suas
muitas ideias que não lhe pertencem originalmente. Faz crer que todas as teses
que extrai de sua leitura são fruto de sua reflexão solitária, o que por certo seria
imenso e admirável, mas não é verdadeiro” (Valabrega apud Roudinesco 1988,
420).
Em uma segunda frente estão as críticas que questionam o enraizamento
hermenêutico da interpretação que Ricoeur faz de Freud. Ainda em 1966, Michel
Tort foi o responsável por abrir fogo contra aquilo que chamou de “a máquina
hermenêutica”. Segundo ele, a ideia de haver uma dialética entre a hermenêutica
do sentido e as relações de força (energética) é uma fantasia teórica, uma
máquina barroca, porque institui uma ruptura imaginária no discurso freudiano.
Assim, não se sustentaria a identificação de dois tipos de discurso mais ou menos
contraditórios, a hermenêutica do sentido e a energética das forças. Já em 1968,
o psicanalista Jean Laplanche foi outro que desferiu sérias objeções à leitura
ricoeuriana de Freud, pois ele não teria levado em conta o próprio método
freudiano.
Em um primeiro momento, Laplanche vem ao encontro de Ricoeur ao
sustentar que “interpretar, para Freud, é ir do texto manifesto ao texto latente”
(Laplanche [1968] 1988, 22). Dizendo de outro modo, para os dois pensadores,
a interpretação psicanalítica supõe que o comportamento do sujeito é
compreendido pelo entendimento de dois discursos, o primeiro se dá na
imediaticidade da consciência e o segundo ocorre na dimensão inconsciente ou
naquilo que Ricoeur chamou de semântica do desejo. O pomo da discórdia entre os
autores diz respeito ao método empregado para acessar os dois níveis
discursivos. Laplanche insiste que antes de ser uma clínica ou uma teoria a
psicanálise é, essencialmente, um procedimento investigativo com uma
metodologia bem definida: o método analítico (Laplanche 1988 e 1996).
No seu ilustre Discurso do método Descartes elencava a análise e a síntese
como componentes de um conhecimento seguro sobre a realidade. O mesmo
não se aplica à psicanálise, segundo Laplanche. O analista deve se contentar em
analisar o paciente sem oferecer qualquer sorte de “psicosíntese”. Portanto, ele
prossegue, interpretar psicanaliticamente é desmantelar, dissociar, desconstruir,
desarticular o discurso manifesto e consciente do analisando. Em suma, nessa
concepção não há espaço para a busca de sentido, para as sínteses
reconstrutivas14, ou mesmo para a teleologia, a psicanálise é uma anti-
hermenêutica:

O ponto a que chega P. Ricoeur com seu próprio método de interpretação


é precisamente o que Freud sempre recusou contra o qual lutou através
do desvio junguiano: a velha hermenêutica de inspiração religiosa, o
‘acolhimento’ do sujeito no seio de uma teleologia.
(Laplanche [1968] 1988, 28).

14 “Certamente, isso não quer dizer que não se produzam sínteses, mas que essa é puramente

espontânea e, sobretudo, individual: como na química os elementos analisados tendem a voltar


a se combinarem. Porém, não existem códigos preestabelecidos para uma retradução” (Laplan-
che 1996, 3).

135
revista de teoria da história 2 2020

O primado do sentido, salvaguarda da leitura hermenêutica da obra de


Freud, nos ajuda a compreender melhor a tensão entre Ricoeur e Lacan15,
sobretudo quando passa a se aproximar do estruturalismo16. A filosofia
fenomenológica procurava descrever o sentido dos fenômenos a partir da
intencionalidade da consciência ao passo que a análise estrutural proposta por
Lévi-Strauss apresenta uma outra concepção de sentido intrinsecamente ligada
ao inconsciente. Grosso modo, da perspectiva estrutural o sentido resulta dos
arranjos e combinações dos elementos dispostos em uma estrutura, à revelia das
intenções do sujeito (Descombes 1988; Dosse 1993). Na perspectiva estrutural
a lógica do sentido concede primazia ao significante em detrimento do
significado, do sentido. Isso significa que na perspectiva lacaniana, ao longo do
processo de análise, muitas vezes, o sujeito não irá compreender mais a si
mesmo, posto que nem sabe do que está falando. Em vez de buscar o significado
ou a semântica do desejo, Lacan prefere sustentar que “a função do desejo é
resíduo último do efeito do significante do sujeito” (Lacan [1964] 1979, 147).
Em síntese, fica a impressão que na sua perspectiva existe uma barra que separa
a linguagem da experiência, o sentido da existência. A interpretação psicanalítica
não reivindica ser uma hermenêutica:

Com efeito, vê-se aí como surgir, sob os voos de quem quer que ache, o
que chamarei a reivindicação hermenêutica, que é justamente a que procura –
procura a significação sempre nova e jamais esgotada, mas ameaçada de
ter suas asinhas cortadas por aquele que acha. Ora, essa hermenêutica, nós
analistas estamos interessados nela porque a via do desenvolvimento da
significação que a hermenêutica se propõe, confunde-se, em muitos
espíritos, com o que a análise chama interpretação. Acontece que, se esta
interpretação não deve de modo algum ser concebida no mesmo sentido
que o da dita hermenêutica, a hermenêutica, ela mesma se aproveita disto
de bom grado. (Lacan [1964] 1979, 15. Grifos no original).

Ricoeur não escutou em silêncio todas essas apreciações desfavoráveis.


Ele fez questão de se defender das suspeitas contra a sua boa-fé, salientando que
antes de frequentar os seminários de Lacan já havia exposto sua interpretação
sobre Freud em cursos ministrados na Sorbonne, sem falar da conferência sobre
o inconsciente pronunciada em 1960 em Bonneval. O filósofo francês, inclusive,
expressa ressentimento com o fundador da Escola de Paris por causa de sua
postura, solicitando a não publicação da palestra de Ricoeur no colóquio de
Bonneval:

15 Para uma abordagem mais detida sobre o contraponto entre Ricoeur e Lacan, cf. Girardi

2017 e Simms 2007. “Em geral, portanto, Ricoeur e Lacan parecem caminhar juntos até a se-
mântica do desejo. Quando a palavra se revela insuficiente no trato com o inconsciente, no
entanto, a trajetória se divide. Perante o limite – a falência do significante –, Lacan atesta a pre-
cedência do real e do desejo, e por isso faz, ainda, psicanálise. Ricoeur, por seu turno, encontra
a exaltação do símbolo e realiza, destarte, uma hermenêutica” (Girardi 2017, 115). Devo à pes-
quisa de Marco Girardi a indicação dos textos de Lacan citados no presente artigo.
16 “Fazem grande causa hoje em dia disso que se chama hermenêutica. A hermenêutica não

objeta somente ao que chamei nossa aventura analítica, ela objeta ao estruturalismo tal como
este se enuncia nos trabalhos de Lévi-Strauss. Ora, o que é a hermenêutica? – se não é ler, na
série de mutações do homem, o progresso dos signos segundo os quais ele constitui sua história,
o progresso de sua história – uma história que se pode também, pelas bordas, prolongar-se por
tempos mais indefinidos. E o sr. Ricoeur tem que remeter à pura contingência aquilo com que
os analistas lidam a cada passo” (Lacan [1964] 1979, 146).

136
revista de teoria da história 2 2020

Depara-se, aliás, aqui com um exemplo incrível de falta de probidade


intelectual da sua parte, pois a discussão que teve lugar após a minha
conferência, e na qual ele participou, foi suprimida do volume a seu
pedido. Os outros textos foram fornecidos pela discussão à qual deram
lugar; o meu não. Esse texto é um texto fulcral porque expõe a minha
interpretação de conjunto da obra de Freud (Ricoeur 1997, 100).

Outro ponto levantado por Ricoeur em sua defesa diz respeito a sua
inclinação para a hermenêutica e para a dimensão simbólica da existência.
Michael Tort, no artigo que já mencionamos, havia sugerido que entre o primeiro
volume da Filosofia da vontade, quando Ricoeur trata do tema do inconsciente pela
primeira e Da interpretação não havia acontecido nada senão o contato do filósofo
com as ideias de Lacan. Quanto a isso Ricoeur argumenta que entre os livros
mencionados o que aconteceu, principalmente, foi o seu interesse pela Simbólica
do mal, o qual trouxe para o primeiro plano das suas preocupações a investigação
sobre a linguagem simbólica e os fenômenos de duplo sentido.
A celeuma em torno de Da interpretação deixou profundas marcas na
trajetória intelectual ricoeuriana. O encontro em Bonneval, no início da década
de 60, que parecia abrir o caminho para a cooperação intelectual a partir do
convite de Lacan para Ricoeur participar dos seminários acabou se
transformando em mais uma das disputas acadêmicas francesas do período.
Depois do clima gerado pelas trocas de acusações17, o filósofo ficou mais de uma
década sem publicar na França seus artigos sobre psicanálise, priorizando
divulgar suas ideias entre o público estadunidense. Esses textos foram reunidos
postumamente no volume Escritos e conferências 1: em torno da psicanálise.

PSICANÁLISE E FENOMENOLOGIA:
O INCONSCIENTE E O PROBLEMA DO SENTIDO

Depois dessas considerações sobre a recepção da obra, voltemos nossa


atenção, outra vez, para a análise da leitura ricoeuriana de Freud. Cabe salientar
que nem só por aproximações é marcada a abordagem que Ricoeur faz de Freud.
A compreensão que cada um deles tem da categoria de símbolo nos revela bem
isso. Na filosofia ricoeuriana, o símbolo é um fenômeno de duplo sentido e
constitui o pivô da hermenêutica, ao menos como ele a concebia nesse contexto
intelectual específico dos anos 1960, “o símbolo é o sentido do sentido” (Ricoeur
[1965] 1977, 89). De maneira distinta, a proposta freudiana de interpretação
analítica dos sonhos se contrapõe às teorias simbólicas do sonho que a
precederam. Uma delas ao tomar o sonho como um símbolo buscava,
simplesmente, substituir o conteúdo onírico por um discurso mais
compreensível e de linguagem mais direta e menos cifrada. O outro concebe o
sonho como uma espécie de “documento secreto” para o qual existe uma chave
fixa de interpretação: assim, cada signo de significação cifrada é traduzido por
outro de significação conhecida (Freud 2001). Ainda hoje é fácil encontrar
dicionários de sonhos que disponibilizam interpretações prêt-à-porter.

17 “Vivi suas sessões como uma obrigação, uma corveia e uma frustração terríveis, que muito
regularmente me impusera a mim próprio, porque tinha sempre a impressão de que ele ia dizer
algo importante que ainda não fora dito, que iria ser dito na próxima vez e assim sucessivamente
(...) Era para mim uma espécie de provação voltar lá a todo o custo com o sentimento de uma
obrigação, mas também de uma incrível decepção. Lembro-me de ter regressado uma tarde e de
ter dito à minha mulher: ‘Venho do seminário, não entendi nada!’ Nesse momento, o telefone
tocou: era Lacan, que me perguntava: ‘Que achou do meu discurso?’ Respondi-lhe: ‘Não com-
preendi nada’. Ele desligou brutalmente”. (Ricoeur 1997, 101).

137
revista de teoria da história 2 2020

Depois de analisar a Interpretação dos sonhos, Ricoeur focaliza aquela que,


talvez, seja a maior colaboração de Freud para o campo hermenêutico, a saber,
a introdução do inconsciente na lógica do sentido18. Esse empreendimento pode
ser situado, sobretudo, nos escritos de metapsicologia. O xis da questão na visão
do filósofo francês é investigar se a metapsicologia freudiana teria equacionado
melhor do que A interpretação dos sonhos a relação entre as relações de força e as
relações de sentido. À primeira vista pode parecer que esse argumento entra em
choque com o pressuposto fenomenológico segundo o qual o sentido é
constituído pela intencionalidade da consciência. Na “anti-fenomenologia”
psicanalítica haveria uma redução eidética (epoché) às avessas19: “o que é
inicialmente melhor conhecido, o consciente, é suspenso e torna-se o menos
conhecido” (Ricoeur [1965] 1977, 106). Na primeira tópica da metapsicologia o
inconsciente não é conhecido senão após a sua tradução para algo consciente.
Em seu clássico ensaio intitulado O inconsciente, o fundador da psicanálise o define
como um estado de latência20, isto é, aquilo que foi recalcado sem ter sido
suprimido ou aniquilado. Aliás, é sintomático para nossos propósitos que uma
das justificativas para uso da categoria inconsciente, ultrapassando o paradigma
da consciência, seja o ganho de sentido e compreensão de si: “Um ganho em sentido
e coerência é motivo plenamente justificado para irmos além da experiência
imediata” (Freud [1915] 2010, 102. Grifo nosso).
A categoria metapsicológica de inconsciente nos alerta para algo
fundamental: o sentido constituído pela consciência é sempre lacunar e
truncado. Por isso, a abordagem dos aspectos não-intencionais colabora para um
ganho no processo de compreensão. Ao fim e ao cabo, a consciência deixou de
ser uma evidência, a origem do sentido, e se tornou um problema. Portanto,
podemos afirmar que, em Da interpretação, Ricoeur empreendeu uma leitura
filosófica da psicanálise freudiana cujo acento recaiu sobre a questão do sentido.
Inclusive, ele salienta que a dimensão hermenêutica é constitutiva da psicanálise
e deve impedir que ela seja assimilada às tentativas mais cientificistas de
reformulação epistemológica da psicologia21 como o behaviorismo: “a psicanálise
tem mais relação com as disciplinas históricas que procuram compreender as
razões das ações humanas do que com a psicologia do comportamento”
(Ricoeur [1965] 1977, 296). Conceitos e noções basilares da ciência psicanalítica
tais como sonhos, sintomas, delírios e ilusões dependem da semântica e da
interpretação de símbolos.
Se o problema do sentido é constitutivo da psicanálise ele também está
no cerne da fenomenologia. Então, teríamos uma ponte para interligar esses dois
estilos de pensamento que parecem, à primeira vista, tão distantes. De maneira
um tanto quanto arrojada, Ricoeur aponta que o conceito filosófico inaugural de
Husserl, a redução eidética, já configura um deslocamento metodológico

18 Tal movimento tem claras implicações antropológicas: “para além da revisão do conceito

de consciência imposta pela ciência do inconsciente [...] o que está em jogo é a possibilidade de
uma antropologia filosófica capaz de assumir a dialética do consciente e do inconsciente” (Ricoeur
[1969] 1978, 101).
19 “Enquanto a epoché husserliana era uma redução à consciência, a epoché freudiana se anuncia

como redução da consciência” (Ricoeur [1965] 1977, 109).


20 A ideia de latência foi muito importante para as reflexões sobre memória e esquecimento

realizadas por Ricoeur em diálogo com Freud que foram publicadas em A memória, a história, o
esquecimento (2000).
21 “O objeto de estudo do analista é o sentido para um sujeito dos mesmos acontecimentos

que o psicólogo considera como observados e erige em variáveis de meio ambiente. Consequen-
temente, tampouco a conduta é para o analista uma variável dependente, observável de fora, mas
a expressão das mudanças de sentido da história do sujeito” (Ricoeur [1965] 1977, 297. Grifos
nossos).

138
revista de teoria da história 2 2020

significativo. O procedimento de colocar entre parênteses as variantes e ir às


coisas elas mesmas implica uma suspensão da consciência imediata, que é
desapossada como “origem e lugar do sentido” (Ricoeur [1965] 1977, 305).
Assim, o filósofo francês coloca a notável ressonância cartesiana sobre a
fenomenologia transcendental em novas bases: se o cogito é o ponto de partida
husserliano ele nunca é plenamente atingido, a fenomenologia é uma contínua e
interminável marcha rumo ao começo.
Outro ponto de contato entre a psicanálise e a fenomenologia, na
interpretação ricoeuriana, repousa na ideia de intencionalidade. Mais uma vez, o
filósofo parece rejeitar o caminho mais curto que seria meramente opor a
intencionalidade ao inconsciente, pois a primeira categoria remeteria ao nosso
gesto de conferir sentido ao mundo e a segunda aos atos não-intencionais. De
maneira distinta, Ricoeur aproxima as duas categorias na medida em que ambas
destacariam que a consciência é “visada do outro”, isto é, ela se conhece
percebendo outras coisas que não ela mesma. A premissa husserliana é que toda
consciência é consciência de alguma coisa, de algo situado para além da própria
consciência. Em outros termos, nem tudo é criado pela reflexão, existe na
própria consciência em ato algo irrefletido. Disto resulta “a impossibilidade da
reflexão total, portanto, a impossibilidade do saber absoluto hegeliano, a finitude
da reflexão” (Ricoeur [1965] 1977, 306).
Uma importante implicação epistemológica desse raciocínio aponta para
o significado da operação de “constituição de sentido” pela consciência. Nesse
particular, é forçoso distinguir a constituição de sentido operada pela consciência
da mera construção de significados, pois ao mesmo tempo que o sentido é
erigido pela consciência ao se dirigir ao mundo, ela também recebe do mundo
da vida elementos previamente significativos. Husserl fala em sínteses passivas para
indicar que a constituição de sentido envolve também uma certa passividade.
Não por acaso é possível lançarmos mão do par atividade-passividade para dar
conta desse processo, pois a consciência tanto constitui sentido para o mundo
como é por ele constituída. A gênese passiva do sentido aponta, segundo Ricoeur,
na direção do inconsciente freudiano. Em termos de teoria do sentido, tanto
Husserl quanto Freud explicitaram que o sentido é muito mais do que uma
construção da consciência realizada no presente. A dimensão passiva ou
inconsciente é caracterizada por uma orientação regressiva que ressaltam as
marcas deixadas pelo passado. “Em resumo, a gênese passiva, o sentido que se
realiza sem mim, é mostrado pela fenomenologia, mas tratado pela psicanálise”
(Ricoeur [1965] 1977, 308).
O pensamento de Husserl e Freud tem em comum o legado deixado por
Franz Brentano. Ambos evidenciam que o sentido não é um dado da realidade
ou, tampouco, um desígnio metafísico. Quanto a isso, Ricoeur reprisa o teólogo
e psicanalista belga Antoine Vergote para sentenciar que a principal descoberta
freudiana é a tese segundo a qual “o psiquismo se define pelo sentido e esse sentido
é dinâmico e histórico” (Vergote apud Ricoeur [1965] 1977, 306. Grifos nossos).
De maneira análoga, acrescentaríamos que essa abertura para a historicidade do
sentido encontra ressonância na fenomenologia genética do último Husserl, em
especial, na ideia de mundo da vida (Lebenswelt) a qual abranda o ímpeto da
consciência ser a origem de todo o sentido.

139
revista de teoria da história 2 2020

O último ponto de convergência entre a psicanálise e a fenomenologia


explorado pelo filósofo francês é o problema da intersubjetividade22 e suas
implicações para a lógica do sentido. Basicamente, e por vias distintas, esses dois
estilos de pensamento sustentam que nossas relações com o mundo tem uma
constituição intersubjetiva. Como já dissemos na primeira parte do nosso texto,
no campo fenomenológico a questão da intersubjetividade se impôs diante da
impossibilidade de aplicar a redução eidética à consciência constitutiva de
outrem. Vale lembrar, ainda, que para Ricoeur, a abertura para a
intersubjetividade na filosofia husserliana foi decisiva para que houvesse um
maior interesse da fenomenologia pela história. Mas, se não é possível apagar a
intersubjetividade na abordagem da consciência, de igual maneira seria vão
buscar um inconsciente que não estivesse implicado em relações intersubjetivas.
Assim, a teoria freudiana apontaria na direção da constituição intersubjetiva do
desejo. Uma vez mais, a intersubjetividade aparece como uma porta para a
história: “O complexo de Édipo significa fundamentalmente que o desejo
humano é uma história, que o desejo se educa na realidade pelo desprazer
específico que lhe inflige um outro desejo que se recusa” (Ricoeur [1965] 1977,
312). Disto concluímos: tanto para Husserl quanto para Freud o sentido
apresenta dimensões intersubjetivas incontornáveis23.
A aproximação entre dois campos do conhecimento não equivale a
assimilação de um no outro com o apagamento das diferenças. Porque às vezes
é preciso dizer o óbvio, Ricoeur diz explicitamente em um dos subtítulos de Da
interpretação: “a psicanálise não é fenomenologia”. Nessa seção o filósofo ressalta
que por mais perto que essas disciplinas estejam a distância entre elas jamais é
nula. Em primeiro lugar, Ricoeur salienta que a fenomenologia é uma filosofia
reflexiva, herdeira do cartesianismo, mas a psicanálise não. O descentramento
da consciência operado pela psicanálise é fruto da técnica analítica e não da
reflexão. Em segundo lugar, o inconsciente para o qual a fenomenologia aponta
é qualitativamente distinto do inconsciente psicanalítico. No processo de análise
fica claro que o inconsciente é difícil de ser acessado, pois os recalcamentos
funcionam como uma barra a separar o inconsciente do pré-consciente.
A distinção entre os campos do conhecimento tem implicações notáveis
para o problema do sentido. A diferença mais significativa diz respeito à distorção
do sentido; a fenomenologia capta a existência de um excesso de sentido, ou seja,
ela percebe que o sentido vivenciado ultrapassa a representação que a
consciência faz dele. Entretanto, ela não se dá conta do jogo de forças envolvido
nesse processo. A psicanálise, por seu turno, está atenta para o conflito de forças
e os mecanismos de resistência em torno da consciência24 (Ricoeur [1965] 1977;

22 Na psicanálise, segundo Ricoeur, a intersubjetividade está correlacionada ao inconsciente

e ao problema do sentido: “O inconsciente é essencialmente elaborado por um outro, como


objeto de uma hermenêutica que a consciência própria não pode fazer sozinha. [...] a etapa do
desapossamento da minha consciência em proveito de uma outra na procura do sentido é fun-
damental para a constituição dessa região psíquica a que chamamos o inconsciente” (Ricoeur [1969]
1978, 107).
23 E também para Hegel, a julgarmos por este comentário ricoeuriano à Lógica e existência

(1952) de Jean Hyppolite: “nenhum sentido é transparente, nossa percepção é irremediavelmente


perspectivista, contestada pelo outro, pelo outro que eu vejo, mas do qual não vejo a visão, do
qual eu sei apenas que vê o que não vejo” (Ricoeur [1955] 1996, 138). Mais adiante exploraremos
a ligação da filosofia hegeliana com a psicanálise.
24 “Por que, efetivamente, o sentido de um sintoma e o sentido de um sonho são tão difíceis

de decifrar senão porque entre o sentido manifesto e o sentido oculto estão interpostos meca-
nismos de distorção (Entstellung), esses mesmos mecanismos que Freud dispôs sob o título geral
“trabalho do sonho” em A interpretação dos sonhos?” (Ricoeur [1979] 2010, 74-75).

140
revista de teoria da história 2 2020

Franco 1995). Husserl compreendeu as relações de sentido e Freud procurou


compreender as relações de força em jogo nas relações de sentido.

A CORRELAÇÃO ENTRE A ARQUEOLOGIA DO SUJEITO


E A TELEOLOGIA DA CONSCIÊNCIA

Até o momento, tônica da leitura ricoeuriana de Freud recaiu em uma


discussão epistemológica da psicanálise na qual acentuamos as implicações para
o problema do sentido. Na parte final de Da interpretação encontramos o nível
mais propriamente reflexivo da análise proposta por Ricoeur. Bem entendido,
na concepção do filósofo francês o fundamento de todo pensamento reflexivo
acerca do que é o homem encontra-se na divisa cartesiana, penso, logo existo.
Ricoeur é bem claro ao demarcar que, para ele, “o lugar filosófico do discurso
analítico é definido pelo conceito de arqueologia do sujeito” (Ricoeur [1965]
1977, 343). O conceito de arqueologia do sujeito não é freudiano e com ele busca-
se mostrar que o processo analítico consiste em uma “revelação do arcaico”,
uma manifestação do anterior que persiste no atual. Um pouco mais adiante
veremos que o projeto ricoeuriano procurou construir uma dialética que
abarcasse a arqueologia do sujeito de Freud e a teleologia da consciência de
Hegel.
A maior lição trazida pelo freudismo à filosofia reflexiva é que o sujeito
nunca é aquilo que ele pensa ser25. Embora tenha se furtado a pensar diretamente
sobre a questão do cogito, Freud elaborou uma crítica sistemática à consciência
imediata que operou um deslocamento no lugar de origem do sentido. Desse
modo a consciência imediata é desalojada em favor de outra instância de sentido,
a saber, a semântica do desejo. Até aqui sem grandes novidades. Porém,
novamente a lógica bíblica do perder para ganhar nos auxilia a compreender melhor
o que está em jogo: “é necessário realmente proceder à perda da consciência e
de sua pretensão a reger o sentido, para salvar a reflexão e sua inexpugnável
segurança. É isto que a passagem pela metapsicologia – na falta de prática
analítica – pode dar ao filósofo” (Ricoeur [1965] 1977, 345). Portanto, na
filosofia ricoeuriana, a crítica de Freud tem como objetivo refinar a consciência
e a lógica do sentido. O questionamento da consciência imediata guardaria,
assim, alguma semelhança com as críticas de Hegel à certeza sensível no primeiro
capítulo da Fenomenologia do Espírito26.
A teleologia da consciência de inspiração hegeliana orienta a
interpretação filosófica que Ricoeur faz do pensamento de Freud. Por isso, ele
defende que o movimento de deslocar o lugar do sentido da consciência para o
inconsciente não pode ser dissociado do processo de retomada do sentido pela
interpretação. O desapossamento do sentido imediatamente consciente é feito
em nome de um outro sentido. A hermenêutica da suspeita está conectada à
hermenêutica da retomada do sentido. Assim, o desvio pela semântica do desejo
contribui para desenvolver a reflexão que o sujeito faz sobre si mesmo, a perda
do sentido imediato e ingênuo é revertida em um ganho de sentido mediado e

25 A lógica bíblica do “é preciso perder para ganhar” comparece aqui: “Depois de Freud, já
não é possível estabelecer a filosofia do sujeito como filosofia da consciência. Reflexão e cons-
ciência já não coincidem; é preciso perder a consciência para encontrar o sujeito” (Ricoeur [1969]
1978, 170).
26 “A crítica que Hegel faz da consciência individual e da sua pretensão de se igualar aos seus

próprios conteúdos é o simétrico exato da crítica freudiana do consciente a partir da experiência


analítica. Por razões inversas e concorrentes, Hegel e Freud dizem a mesma coisa: a consciência
é aquilo que não pode totalizar-se” (Ricoeur [1969] 1978, 103).

141
revista de teoria da história 2 2020

crítico27. Em O conflito das interpretações, encontramos o nexo estabelecido por


Ricoeur entre sua leitura filosófica de Freud e suas reflexões sobre a filosofia da
existência. Outra vez, o problema do sentido aparece como um pivô entre a
existência e a linguagem, corroborando, assim, a nossa hipótese segundo a qual
na filosofia ricoeuriana o problema do sentido é constituído por meio da dialética
entre a dimensão ontológica da existência e a dimensão epistemológica dos
significados elaborados pela linguagem:

Foi em Nabert que encontrei a formulação mais concisa da relação entre


o desejo de ser e os signos em que o desejo se exprime, se projeta e se
explicita. Com Nabert, mantenho firmemente que compreender é
compreender-se, que o universo simbólico é o meio da auto-explicitação,
o que quer dizer, por um lado: já não existe problema de sentido se os
signos não são a via, o meio, o veículo, graças ao que um existente humano
procura situar-se, projetar-se, compreender-se; por outro lado, em sentido
inverso: não há apreensão direta de si por si, percepção interior,
apropriação do meu desejo de existir na via curta da consciência, mas
apenas na via longa da interpretação dos signos.
(Ricoeur [1969] 1978, 168).

A articulação entre a arqueologia e teleologia nos revela que na filosofia


ricoeuriana a reflexão sobre o sentido tem uma direção: o caminho da
compreensão de si por intermédio dos símbolos. Isso significa que não basta a
descoberta da inadequação da consciência e das distorções do sentido, mas faz-
se necessário inseri-las no processo de tomada de consciência e ganho de
sentido. Dizendo de outro modo, Ricoeur não lê Freud sem recorrer a Hegel.
Nessa perspectiva, por um lado, no pensamento freudiano a arqueologia
tematizada do inconsciente inclui a teleologia implícita do tornar-se consciente
e, por outro, no pensamento hegeliano a teleologia explícita do espírito esconde
uma arqueologia implícita da vida e do desejo. A dialética entre a arqueologia e
teleologia é o solo filosófico no qual Ricoeur procura integrar a hermenêutica da
suspeita e a hermenêutica da retomada de sentido.
Um dos elos que permite a conexão entre Hegel e Freud, no
entendimento de Ricoeur, é o descentramento do sentido. Em sua leitura, a
Fenomenologia do espírito, assim como a psicanálise, torna patente que a gênese do
sentido está em outro lugar que não a própria consciência. Portanto, aqui
também a consciência precisa deixar-se descentrar para se compreender. Hegel
sinaliza a existência de uma sucessão de figuras do Espírito as quais caminham,
dialeticamente, para uma síntese progressiva. Se na psicanálise a palavra-chave
era a arqueologia com seu caráter analítico e regressivo, na Fenomenologia do espírito
o termo central será a teleologia com seu caráter sintético e progressivo. Tal
argumento tem uma importante ressonância na lógica do sentido: “a verdade de
um momento reside no momento seguinte, o sentido procede sempre do fim
para o começo” (Ricoeur [1965] 1977, 376). Aqui não há criação de sentido ex
nihilo, mas a fenomenologia procura explicitar o sentido na medida em que ele
se desvela no processo de realização do Espírito, ou seja, o sentido é imanente à
dialética.
O recurso à filosofia hegeliana nos permite um esclarecimento inicial
acerca da noção de teleologia. Uma rápida consulta à procedência etimológica do
termo nos informa que sua origem remonta aos vocábulos gregos télos e logos; o
primeiro remete a ideia de “fim” e de “meta”, o segundo indica a ideia de

27 “O importante é a suspensão desse sentido imediato, ou antes, desse caos de sentido, e o

deslocamento desse sentido aparente e de seu sem-sentido no campo de decifração constituído


pelo próprio trabalho analítico” (RICOEUR [1965] 1977, 352).

142
revista de teoria da história 2 2020

“palavra”, “razão”, “doutrina”. Assim, a teleologia poderia ser concebida como


uma “doutrina do propósito ou da finalidade” (Inwood 1997). Entretanto,
adverte-nos Ricoeur, o pensamento hegeliano efetua uma dissociação entre
teleologia e finalidade, ao menos no sentido de “causa final”. Ou seja, na
Fenomenologia do espírito o movimento de realização da consciência em direção à
consciência de si explicita o desenvolvimento do sentido imanente à dialética 28
no qual cada figura da consciência recebe o seu sentido daquele que vem
posteriormente29.
Não é segredo para ninguém que durante o processo de constituição da
história como disciplina científica a categoria teleologia foi um dos principais
alvos daqueles que criticavam a subordinação da história à filosofia. Para nós não
é coincidência que essas objeções repousem, justamente, na associação entre télos
e causas finais – algo que Ricoeur, amparado em Hegel, insiste em dissociar. Em
sua clássica conferência Sobre a tarefa do historiador (1821), Wilhelm von Humboldt
reprova a abordagem filosófica da história alegando que a teleologia era inimiga
da historicidade da existência humana, como podemos perceber neste trecho
que já foi apontado por alguns como sendo a certidão de nascimento do
historicismo:

a filosofia dita um objetivo aos eventos, e, assim, esta busca por causas
finais, sejam elas deduzidas da essência da natureza ou do próprio homem,
perturba e falsifica toda visão livre sobre a ação das próprias forças. A
História Teleológica jamais alcança a verdade viva dos destinos do mundo,
porque, afinal, o indivíduo sempre precisaria alcançar o seu apogeu dentro
do limite da existência transitória, não conseguindo de maneira alguma
incorporar à vida o que seria o seu objetivo final dos acontecimentos, mas
sim em instituições mortas e na busca de conceitos que falam de uma
totalidade ideal. (Humboldt [1821] 2010, 91).

Em contraposição a essa compreensão, salientamos que no


entendimento de Ricoeur é possível haver teleologia sem determinismos ou
estabelecimento de causas finais pelo recurso a uma instância geradora de
sentido supra-histórica.
O trabalho do negativo parece-nos ser uma boa pedra de toque no que
concerne a interface entre Hegel e Freud na lógica do sentido. Em Da interpretação
Ricoeur é um tanto econômico ao comentar esse tema ao qual se aproxima pelo
comentário de Hyppolite sobre a Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de
Hegel “[a inquietude da vida] Ela já traz em si a negatividade que a torna outra e
que obrigando-a a ser outra, obriga-a a ser si” (Ricoeur [1965] 1977, 377). Mas o
que isso significa para o problema do sentido? Em poucas palavras: o sentido
compreende e transforma o não-sentido. O caráter contraditório do sentido em
Freud já fica evidente no seu pressuposto de que não somos quem pensamos
ser. Em Hegel a negatividade se faz presente no processo de desenvolvimento
da consciência no qual ela questiona criticamente suas próprias percepções e

28 Para José Henrique Santos a “contradição dialética” por meio da qual a lógica do sentido

se desenvolve no sistema hegeliano é decisiva para o seu enigmático estilo de pensamento: “A


obscuridade da Fenomenologia do Espírito é proverbial. Deve-se creditá-la, antes de tudo, à maneira
como o sentido (Sinn) se desenvolve. Entre afirmações e negações, os extremos se refletem cada
qual no outro para gerar o conceito; o dinamismo que o faz avançar é a negação determinada de
uma tese parcial, quer dizer, insuficiente para expressar o movimento do todo, e por isso o con-
ceito é sempre uma “unidade negativa”, quer dizer, unidade do idêntico e do diferente” (Santos
2007, 22-23).
29 “Teleologia não é finalidade: as figuras da dialética teleológica não são causas finais, mas

significações que tiram o seu sentido do movimento de totalização que as arrasta e as faz ultra-
passarem para a frente delas” (Ricoeur [1969] 1978, 173).

143
revista de teoria da história 2 2020

representações. Nessa perspectiva, a reflexão sobre o sentido envolve a


capacidade de negação, sendo que a própria negação de sentido pode ser inserida
na dinâmica de desenvolvimento do sentido:

O espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si


mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o
positivo que se afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é
nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a outro assunto. Ao
contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o
negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que
converte o negativo em ser. (Hegel [1807] 2014, 41-42).

Mais do que uma mera complementaridade entre a arqueologia da


psicanálise e a teleologia da Fenomenologia do espírito, Ricoeur procura defender
que, de algum modo, há traços arqueológicos em Hegel e uma inspiração
teleológica em Freud. Para os nossos objetivos o mais relevante é explorar a
teleologia implícita do freudismo, pois ela nos ajuda a compreender melhor a
questão do sentido. O filósofo francês buscou refletir sobre a teleologia implícita
nos conceitos operatórios da psicanálise. Acreditamos que essa chave de leitura
é importante, inclusive, para a interpretação sobre a aproximação entre história
e psicanálise realizada em A memória, a história, o esquecimento em 2000 e que
merece ser objeto de um artigo a parte. Como Ricoeur não concebe a psicanálise
somente como uma teoria ou um procedimento de investigação, mas também
como um método de tratamento, a perspectiva da cura permanece no horizonte
freudiano. Aliás, como nos recorda Esteban Lythgoe (2017), desde a Filosofia da
vontade, a filosofia ricoeuriana assimila a cura psicanalítica ao objetivo de tornar
consciente aquilo que está inconsciente:

O fator decisivo da cura é a reintegração da recordação no campo da


consciência. Aqui está o cerne da psicanálise. Longe de ser uma negação
da consciência a psicanálise é, pelo contrário, um meio de estender ao
campo da consciência uma vontade possível pela dissolução das
contraturas afetivas. A cura por uma vitória da memória sobre o
inconsciente. (Ricoeur 1950, 360-361).

Como dissemos em nossa introdução, a compreensão das reflexões


ricoeurianas sobre a “lógica do sentido” presentes em Da interpretação é
fundamental para um entendimento mais apropriado das aproximações
realizadas entre a historiografia e a psicanálise em suas obras mais maduras. Um
bom exemplo disso é leitura que Ricoeur faz do ensaio freudiano Luto e melancolia,
em A memória, a história, o esquecimento. Conforme analisamos em nosso artigo, a
leitura que Ricoeur faz de Freud é mediada por um filtro hegeliano, isto é, o
“trabalho do negativo” realizado pelo luto está articulado à teleologia. A
melancolia assim como o luto figuram na argumentação de Freud como reações
à perda “seja de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar,
como pátria, liberdade, um ideal etc.” (Freud [1915] 2010, 172). Em vocabulário
hegeliano diríamos que ambos são uma reação a uma negatividade. A diferença
entre as duas posturas que mais nos importa destacar é que o luto pode ser
entendido como uma forma de lidar com a perda que, apesar do sofrimento e
da tristeza, tem como horizonte a abertura de novas possibilidades para a
experiência.

144
revista de teoria da história 2 2020

É notável que na obra dos anos 2000 Ricoeur assinale uma analogia entre
o trabalho de luto e o trabalho de rememoração: os dois buscam elaborar sentido
para experiências do passado que pareciam resistir a significação; ambos são
custosos, porém libertadores30, pois possuem um caráter curativo, terapêutico.
No caso do trabalho de luto a tarefa consiste em, de algum modo, cortar algumas
conexões com o objeto perdido e redirecionar a energia libidinal para outro
objeto ou experiência. Agora, o passado doloroso e perdido não é mais um
estorvo que não passa. O luto normal, no diagnóstico de Freud, é uma superação
da perda, ou, em vocabulário hegeliano, um trabalho do negativo31. “Após a
consumação do trabalho do luto, o Eu fica novamente livre e desinibido” (Freud
[1915] 2010, 174). O télos do processo de luto é a cicatrização das feridas que
qualquer morte provoca nos sobreviventes.
Em suma, na filosofia de Ricoeur encontramos uma interpretação
hermenêutica da psicanálise de Freud, o que, em linhas gerais, implica partir do
pressuposto da correlação entre existência e linguagem e enfatizar a dimensão
terapêutica do processo de constituição de sentido para a experiência. Trocando
em miúdos, para Ricoeur, a finalidade teleológica do processo analítico é
aumentar a compreensão de quem nós somos, da nossa própria existência, por
meio da elaboração de intepretações mediadas pela linguagem (Mendes 2019).

REFERÊNCIAS

CERTEAU, Michel de. História e psicanálise entre ciência e ficção. Trad. Guilherme João de
Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
DESCOMBES, Vincent. Lo mismo y lo otro. Cuarenta e cinco anos de filosofia francesa
(1933-1978). Segundo Edición. Madri: Ediciones Catedra, 1988.
DOSSE, François. Paul Ricoeur. Les sens d’une vie (1913-2005). Paris: La Découverte,
2008.
DOSSE, François. Paul Ricoeur: um filósofo em seu século. Tradução de Eduardo Lessa
Peixoto de Azevedo. Rio de Janeiro : FGV Editora, 2017.
FRANCO, Sergio de Gouvea. Hermenêutica e psicanálise na obra de Ricoeur. São Paulo :
Edições Loyola, 1995.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Trad. Walderedo Ismael de Oliveira. Edição
comemorativa de 100 anos, contendo em apêndice: Uma premonição onírica
realizada. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916).
Tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
(Obras completas, v. 12).
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método 1: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 11. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2013.

30 “Aquilo que justifica o método é o fato de que o sentido descoberto não só satisfaz a

compreensão através de uma inteligibilidade maior do que a desordem da consciência aparente,


mas que ele liberta o sonhador ou o doente, quando este chega a reconhecê-lo, a apropriar-se
dele, numa palavra, quando o portador do sentido se torna conscientemente esse sentido, que até aí
apenas existia fora de si, “no” seu inconsciente, depois “na” consciência do analista” (Ricoeur
[1969] 1978, 149. Grifos no original).
31 No artigo “Memória, testemunho e escrita da história nos arquivos da ditadura militar

brasileira” há uma reflexão sobre a possibilidade da escrita da história contribuir para o trabalho
de luto, a partir das ideias de Ricoeur, Freud e Certeau. Cf. (Mendes 2016).

145
revista de teoria da história 2 2020

GIRARDI, Marco. Narrativa, tempo e limites da linguagem: história e psicanálise. Dissertação


(Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Trad. Benno Dischinger. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 1999.
HEGEL, Georg Wilhelm. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2014.
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed, 1997.
LACAN, Jacques. O seminário: livro 11 os quatro conceitos fundamentais da psicanálise;
texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; [versão brasileira de M. D. Magno]. Rio
de Janeiro: J. Zahar, 1979.
LACAN, Jacques. O Seminário: livro 1 os escritos técnicos de Freud. Texto estabelecido
por Jacques Alain Miller; versão brasileira de Betty Milan. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1986.
LAPLANCHE, Jean. Teoria da sedução generalizada e outros ensaios. Tradução: Doris
Vasconcelos. Porto Alegre, 1988.
LYTHGOE, Esteban. La convergencia de la historia y el psicoanálisis en Paul Ricoeur.
História da historiografia, Ouro Preto, n. 23, p. 114-129, abril 2017.
MENDES, Breno. Memória, testemunho e escrita da história nos arquivos da ditadura
militar brasileira. Literatura e Autoritarismo (UFSM), v. 16, p. 17-34, 2016.
MENDES, Breno. Existência e linguagem: o problema do sentido na filosofia da história de
Paul Ricoeur. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.
MEZAN, Renato. Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
RICOEUR, Paul. Da Metafísica à Moral; seguido de Paul Ricoeur, “Autobiografia intelectual”.
Trad. Sílvia Menezes e António Moreira Teixeira. Lisboa: Instituto Piaget, S/D.
RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté I: le volontaire et le involontaire. Paris: Aubier
1950.
RICOEUR, Paul. Da interpretação: Ensaio sobre Freud. Tradução: Hilton Japiassu. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1977.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Trad. Hilton
Japiassu. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
RICOEUR, Paul. Escritos e conferências 1: em torno da psicanálise. Trad. Edson Bini. São
Paulo: Edições Loyola, 2010.
ROUDINESCO, Elisabeth. História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos.
Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988.
SANTOS, José Henrique. O trabalho do negativo: ensaios sobre a Fenomenologia do
espírito. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
SCHLEIERMACHER, Friederich. Hermenêutica e crítica: com um anexo de textos de
Schleiermacher sobre filosofia da linguagem. Ijuí: Editora Unijuí, 2005.
SIMMS, Karl. Ricoeur and Lacan. London: Continuum International Publishing Group,
2007.

PSICANÁLISE, HERMENÊUTICA E O PROBLEMA DO SENTIDO


RICŒUR LEITOR DE FREUD
ARTIGO RECEBIDO EM 24/08/2020 • ACEITO EM 02/12/2020.
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65234
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

146
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

DA VERDADE HISTORIAL
MOVIMENTOS DE
CONFLUÊNCIA ENTRE A
TEORIA PSICANALÍTICA
E A CONCEPÇÃO
ARENDTIANA
[FUNCIONAL] DE HISTÓRIA
DIEGO AVELINO DE MORAES CARVALHO
Instituto Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brasil
prof.diemoraes@gmail.com
orcid.org/0000-0003-4583-620X

Este trabalho tem como objetivo estabelecer uma


confluência entre a teoria e clínica psicanalítica, a ciência
histórica e a filosofia, notadamente, articulando autores
como Hannah Arendt, Sigmund Freud e Jacques Lacan.
Esse esforço de aproximação pressupõe articular um debate
que incida sobre a função do historiador e o estatuto de
verdade para a filosofia e a psicanálise. Inicialmente,
apresentaremos a leitura arendtiana sobre a tarefa do
storyteller [historiador-narrador] como aquele que extrai a
novidade do acontecimento histórico. Posteriormente, a
proposta é apresentar o debate em torno das noções de
verdade material e histórica para a psicanálise, em especial
para a ética e clínica lacaniana. Ao fim, pretende-se dar
sentido a essa interlocução apontando o quanto certas
categorias se confluem ofertando um interessante exercício
para o ofício do historiador.

filosofia – história – psicanálise – verdade

147
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

ON HISTORICAL TRUTH
MOVEMENTS OF
CONFLUENCE BETWEEN
OSYCHOANALYTICAL
THEORY AND THE
ARENDTIAN
[FUNCTIONAL]
CONCEPTION OF HISTORY
DIEGO AVELINO DE MORAES CARVALHO
Instituto Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brazil
prof.diemoraes@gmail.com
orcid.org/0000-0003-4583-620X

This work aims to establish a confluence between


psychoanalytic theory and clinic, historical science and
philosophy, notably, articulating authors such as Hannah
Arendt, Sigmund Freud and Jacques Lacan. This
approximation effort presupposes articulating a debate that
focuses on the role of the historian and the status of truth
for philosophy and psychoanalysis. Initially, we will present
the Arendtian reading on the task of the storyteller
[historian-narrator] as the one who extracts the novelty
from the historical event. Subsequently, the proposal is to
present the debate around the notions of material and
historical truth for psychoanalysis, especially for Lacanian
ethics and clinic. In the end, we intend to make sense of
this dialogue by pointing out how certain categories come
together offering an interesting exercise for the historian's
profession.

philosophy – history – psychoanalysis – truth

148
revista de teoria da história 2 2020 •

Abdicar do mundo, dos assuntos humanos, é permitir o


apagamento da realidade, a transformacão da realidade em
total ficcão.
Hannah Arendt

Se há uma ética da psicanálise – a questão se coloca –, é na


medida em que, de alguma maneira, por menos que seja, a
análise fornece algo que se coloca como medida de nossa acão
– ou simplesmente pretende isso.
Jacques Lacan

A CONCEPÇÃO ARENDTIANA DE HISTÓRIA [FUNCIONAL]


O desvelamento de novos temas e abordagens no campo da Teoria da
História e da Historiografia no século XX se mostrou profícuo. Ao menos nos
permitiu um tráfego menos trôpego e mais amplo no terreno lapidoso de
determinadas categorias conceituais e metodológicas. O ofício do historiador
passou a se constituir em interface com os novos estudos no campo das
humanidades, grosso modo. Em destaque, o historiador passou a considerar os
elementos discursivos do texto historiográfico, dialogando com áreas como o a
linguística, a literatura, a filosofia e a psicanálise naquilo que ela mesmo,
também, já havia promovido tal entrecruzamento. Entrou em cena a
importância da micro-história e das oralidades fazendo da memória uma
reconstrução e não um estatuto de “validação inquisitorial”. Enfim, se
aproximou mais da atividade clássica do filósofo concebido como aquele que
como “amigo (philos)” confronta o “saber (sophia)” na busca de um
desvelamento da verdade. A dialética, portanto, saiu do dicionário marxista
privilegiado e retomou seu significado helênico mais profundo, cabendo ao
historiador fazer de seu ofício a materialização deste “recobrar-confrontar-
compreender”.
Nesse intercurso, não raro foram as tentativas de aproximação
epistemológica. Com destaque - para efeito deste trabalho - a filosofia e a
teoria e clínica psicanalítica ganharam seus contornos mais originais. No
primeiro caso, não se tratou de meramente operar uma “história da filosofia”
ou o resgate de uma “filosofia da história”, tão somente. Antes, se buscou
apropriar das condições constituintes de cada campo e empreender uma
abordagem multifocal, conquanto rigorosa; estrutural, porém não linear. Em
suma, tratou-se de se assumir que os estudos históricos demandavam uma
certa filosoficidade no sentido de direcionar perguntas sensíveis aos eventos,
fontes, registos e métodos. Da filosofia, em seu grau de epoché, se pôs
continuamente a própria condição da história como discurso-ciência,
repensando continuamente seus próprios estatutos epistemológicos. Em igual
medida, o campo da filosofia passou a operar em suas instâncias reflexivas não
mais divorciando de uma suposta atemporalidade intrínseca dos conceitos.
Recobrar a dimensão histórica de um conceito em crise significou reestabelecer
um duto de compreensão importante acerca de sua ontologia constitutiva. O
anterior divórcio entre história e filosofia se diluiu, dando coro a uma
necessária retomada de confluência: quando um filósofo se põe a pensar um
problema, isso supõe colocar em suspenso um juízo sobre um conceito – o
que equivale a dizer que o que se coloca em questão é o seu próprio
significado. Assim, o que se operou nesta nova “metabolização
epistemológica” foi um trato da semântica dos conceitos históricos - uma vez

149
revista de teoria da história 2 2020

que estes não se tratam de entidades a-históricas, mas sempre “postas no


tempo” - buscando, assim, a constituição linguística de experiências do tempo
na realidade passada. Desse modo, a chamada Ciência Histórica voltou-se para a
problemática da experiência histórica, contemplando suas distintas ontologias sociais
do tempo, ao mesmo tempo que nos possibilitou indicar e informar as tensões
existenciais relativas à própria finitude do homem. Assim posto, voltar-se
compreensivamente para estes “elementos existências”, subjacentes ao
processo histórico, permitiria à história em si – como ciência – chegar a
entender os conflitos políticos e sociais, as nervuras do real expressos, desde a
esfera macro aos eventos cotidianos, que caracterizam diversas temporalidades
Um desses exemplos pôde ser observado na obra da filósofa judia-
alemã Hannah Arendt. Em 1951, escreve o livro As origens do Totalitarismo, sob
o nome original de O Fardo de Nossos Tempos. De todas as contribuições que
Hannah Arendt trouxe para o campo das ciências humanas e sociais,
seguramente é nesta obra que encontramos sua principal reflexão acerca da
função da história/historiador. Segundo a autora, lançar o olhar para o passado
acarreta a necessidade de operarmos o esforço de sua compressão, conquanto
de não legitimação - uma proposta calcada na tradição do historicismo alemão
de Droysen a Weber. Para Arendt (1989, 21), essa atitude não representa uma
ausência de crítica, mas antes o direcionamento de um olhar que não nega o
ultrajante e nem subtrai o inaudito daquilo que tem precedentes. Muito menos
não se trata de reduzir a função da história a explicar fenômenos por meio de
meras “(…) analogias e generalidades tais que se deixa de sentir o impacto da
realidade e o choque da experiência.” O que está em questão para a Arendt é a
necessidade de examinarmos e ao mesmo tempo suportarmos de forma
consciente a carga que os acontecimentos despejam sobre nós, “(...) sem negar
sua existência nem vergar humildemente seu peso, como se tudo o que de fato
aconteceu não pudesse ter acontecido de outra forma.” Em suma,
compreender um fenômeno histórico é, antes de tudo, “(...) encarar a realidade,
espontânea e atentamente, e resistir a ela – qualquer que seja, venha a ser ou
possa ter sido.”
No curso do processo de compreensão do passado, o historiador
(storyteller) deveria ser o agente capaz de gerar em seu expectador/leitor uma
tomada política de juízo e posicionamento, apresentando os dilemas e os
paradoxos inerentes aos acontecimentos e aos choques de interesses humanos.
O historiador deve nos convidar a penetrar nas várias facetas de um
acontecimento, deixando as pessoas livres para adotarem a posição reflexiva e
ativa frente ao processo histórico.
A proposta arendtiana de se recuperar o passado perpassa a noção de
que tal empresa confere sentido ao presente. Quando cruzamos a memória dos
relatos e dos testemunhos das épocas passadas, estamos a tornar esse material
em fonte profícua que nos permite fazer com que um amontoado de narrativas
se transforme em história, obtendo um sentido expresso. Nosso papel, todavia,
é o de justamente estabelecer as conexões necessárias entre os acontecimentos
que precipitam o presente, ofertando sentido às ações humanas. Daí a
importância de recuperarmos os acontecimentos e fatos históricos em suas
singularidades e de acordo com sua importância para o presente, para, em
seguida, elaborarmos os conceitos e os valores políticos que utilizamos no
manejo dos eventos cotidianos.
Essa finalidade com que Arendt almeja encontrar no exercício histórico
só pode ser apreendida se o historiador for capaz de interrogar o
acontecimento passado extraindo a “novidade" do evento. Isto é, aquilo que

150
revista de teoria da história 2 2020

no momento de sua aparição desvela o que estava ensombrecido aos olhares


comuns. Dessa forma, a história deixa de ser uma narrativa sobre a mera
sucessão de eventos para ser pensada como um instrumento que analisa as
quebras do continnum histórico. Importa, portanto, retomar o passado em sua
potência de narrar um conjunto de experiências políticas que destituem a
imagem de um processo temporalmente homogêneo e vazio, apreendendo o
sentido dos acontecimentos. Essa é a única e válida forma, na perspectiva
arendtiana, de se estabelecer as correspondências entre o presente “(…) que
não esquece e nem domestica o passado” e o passado “(…) fragmentado e não
transmitido pela tradição, composto pelas memórias esquecidas”. (Teles 2001,
s/p)
A história, para Arendt, é a empresa que confere sentido ao passado,
compreendendo as ações humanas, sem se ocupar em encontrar causalidades
ou determinismos, projetando sempre o olhar sobre o novo numa tentativa de
compreender os desdobramentos das ações humanas. Inspirada também num
ideal homérico de salvar os feitos da vala do esquecimento obliterado pelo
tempo, é preciso, com o estudo histórico, buscar a gênese dos acontecimentos
decisivos que marcaram épocas, redefiniram conceitos e imprimiram nas
culturas os comportamentos estanques ou a perspectiva de um mundo onde
“tudo se justifica”. Assim, é possível [re]pensar os eventos sob o prisma da
imparcialidade - que não visa, naturalmente, tomar o lado de uma narrativa
pelos oprimidos e nem pelos opressores, nem muito menos uma ingênua
crença na neutralidade científica. Em sua inspiração homérica, importa para a
história salvar os fenômenos do esquecimento e identificar quem foram os
autores/atores/circunstâncias que operaram em pouca continuidade e em
muitas rupturas.
A história - assim como a psicanálise lacaniana tal qual veremos à
frente - possuiria um estatuto ético e político, portanto (e por que não dizer,
performativo). De acordo com Edson Teles (2000, s/p), a história, para
Arendt, “(…) desempenhava o papel de imitadora da ação, realizando a
reconciliação do homem com a realidade por meio das lágrimas da recordação,
fruto da catarse, quando ator, autor e espectador são uma mesma pessoa.” O
desenrolar da história se conflui com a ação, uma vez que os homens, dada a
sua intrínseca liberdade de agirem e iniciarem coisas novas imprimem
múltiplos caminhos para os acontecimentos.
Desta forma, Arendt procurou localizar, em cada fenômeno ou evento
histórico, os contextos e os agentes que operaram na transformação da
realidade, instaurando novidades durante o seu transcurso. Seu foco - como
testemunha sua obra - foi o de mapear as situações em que o “novo” se
manifestava. Essa função de diagnóstico competiria ao historiador que, de sua
parte, procuraria perscrutar os eventos ofertando os vagidos da política, no
instante em que ela se manifestava no curso dos acontecimentos. Ao se voltar
para a compreensão da ação política, Arendt estava certa de que somente o
retorno ao passado poderia garantir a recuperação dos fragmentos políticos,
não numa tentativa de resgatá-los numa forma recente de constituição estatal,
mas antes, de compreender como ocorreram certas rupturas e diluições, assim
como também recuperar certos conceitos que se sintetizam - do ponto de vista
hegeliano - a novas formas de se conceber a política e o espaço público.
Para Arendt (apud Duarte 2001, 270): “(…) a função política do
narrador de histórias (storyteller) (...) é a de provocar uma catarse que libere os
homens para a ação e para o juízo.” Trata-se de um experimento do
pensamento, um exercício da reflexão sobre os eventos que circundam o

151
revista de teoria da história 2 2020

presente. Narrar a história torna-se a única forma de a ação permanecer na


memória dos homens e dos feitos e palavras humanas adquirirem dignidade
por parte do pensamento. O storyteller deve apresentar os dilemas e os
paradoxos inerentes aos acontecimentos e aos choques de interesses humanos,
levando-nos a tomar posição por nossa própria conta, isto é, o narrador deve
nos convidar a penetrar nas várias facetas de um acontecimento, deixando as
pessoas livres para adotarem a posição que lhes apetece. Neste horizonte,
Arendt trafega na esfera do pensamento benjaminiano ao dizer que a tarefa dos
historiadores é, de fato, “pescar pérolas”, uma vez que estes têm a missão de
perscrutar os fenômenos, apanhando os estilhaços do passado, moídos com a
quebra do vínculo da tradição, lançando luzes sobre os eventos do presente.
Em célebre epígrafe de As origens do totalitarismo, Arendt (1989, 13) cita
Karl Jaspers ao dizer “(…) Weder dem Vergangenen anheimfallen noch dem
Zukünftigen. Es kommit darauf an, ganz gegenwärtig zu sein” [importa, contudo, não
almejar os que se foram e virão, importa ser de seu próprio tempo]. Isto é,
atentar-se para aquilo que se apresenta com uma quebra de um passado, sendo
este paradoxalmente sua gênese não linear, sem, em outra medida, lançar o
olhar para um futuro ainda longínquo. Importa compreender, conferir sentido
maior ao presente e à dimensão que este traz: a novidade. Para Hannah Arendt
(2002, 49, grifos da autora):

O novo é o domínio do historiador que, ao contrário do cientista natural


preocupado com os acontecimentos sempre recorrentes, lida com
eventos que sempre ocorrem somente uma vez. O que o evento
iluminador revela é um começo no passado que até então estivera oculto;
aos olhos do historiador, o evento iluminador só pode aparecer como
um final para esse recém-descoberto início. Só quando, na história
futura, um novo evento ocorre, é que esse “final” irá revelar-se como um
início aos olhos dos futuros historiadores. E os olhos do historiador
representam somente o olhar cientificamente treinado da compreensão
humana; só podemos compreender um evento como o final e a culminação
de tudo o que aconteceu antes, como ‘preenchimento dos tempos’;
somente é que cabalmente avançamos com relação ao conjunto
transformado de circunstâncias que o evento criou, isto é, tratamos esse
evento como um começo.

Teria, porém, essa atribuição dada por Arendt ao historiador uma


função semelhante ao que se exige do analista quando se espera deste um
recorte de sentido na historicidade trazida pelo analisante no contexto da
clínica? O que Arendt entende por “novo” enquanto a pérola benjaminiana
que deve ser pescada pelo storyteller tem correspondência com debate lacaniano
sobre os regimes de verdade e a incidência das articulações entre o Simbólico,
Imaginário e o Real? Antes de avançarmos na direção das respostas a essas
questões, façamos um retorno a Freud, localizando em sua obra e percurso um
interessante debate sobre a articulação entre verdade material e histórica -
conceituação importante para buscarmos ao fim o possível entremeio entre a
psicanálise e a história.

152
revista de teoria da história 2 2020

FREUD E A INTERLOCUÇÃO ENTRE HISTÓRIA E PSICANÁLISE


Destarte, é conhecida a relação singular que Sigmund Freud, o
fundador da psicanálise, teve com a história ao longo de sua trajetória
intelectual. Sempre foi notória e sui generis a problematização operada pela
teoria e clínica psicanalítica, sobretudo face a certos antagonismos [dualismos]
clássicos: o social e o individual, o subjetivo e o objetivo, o normal e o
patológico, o real e o ficcional etc. Obras como Totem e Tabu:alguns aspectos
comuns entre a vida mental do homem primitivo e a dos neuróticos (1913) ao lado do
clássico A Interpretação dos Sonhos (1900) figuram como um dos mais
importantes textos considerados por Freud com uma grande contribuição para
o que ele nominava de “psicologia dos povos”. Obras que se seguiram, como
Psicologia das massas e análise do eu (1921), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar
na cultura (1930), entre outras, foram certamente tributárias da forma exemplar
com que Freud ultrapassa dualismos citados e inscreve a condição ficcional do
sujeito na cultura.
Dessas obras em que se evidenciam um testemunho de interlocução,
vale menção especial a Moisés e o monoteísmo (1939). A potência desse texto é
revelada para além do exame proposto por Freud em reavaliar as [hipo]teses
historiográficas fundamentais para a cultura judaica e religião monoteísta a
partir do ferramental psicanalítico, no qual um conjunto de recalcamento,
deformações, repetições e traumas se passaram de forma silenciosa na origem
da religião judaica. É precisamente nessa obra que Freud nos apresentará uma
tripla noção de história: Geschichte - aquilo que remete ao histórico [real e
objetivo]; Historie - a história conjectural, reconstruída a partir da experiência; e,
por fim, Historisch - histórico vivencial, particular de cada indivíduo. Em
sentido moderno, no campo semântico, o termo Geschichte corresponde à
história tanto como uma síntese (ou realidade) do processo de constituição da
experiência humana, quanto a uma forma de sistematização do conhecimento
sobre o passado, isto é, como práxis historiográfica. Em sentido histórico (dos
conceitos), o termo absorve os significados anteriormente postos, se
constituindo como uma “(…) realidade ou síntese do processo de constituição
do mundo humano, quanto a referência à história como forma de
conhecimento do passado dos seres humanos, isto é como historiografia”
(Assis; Matta 2016, 12).
Para Freud, a história está atrelada à noção de temporalidade e
experiência. Dessa forma, tanto passado quanto presente estão articulados por
meio de eventos sucessivos, gerando camadas de significação e ao mesmo
tempo de entrelaçamento. Em outros termos, o acontecer histórico,
propriamente dito (distante e inatingível), é atravessado pela história
conjectural em sua relação condicionada com o acontecimento histórico-
vivencial. É a partir desses dois últimos termos que podemos supor a
constituicão da Geschichte do passado, em sua experiencia – a partir da
composição entre passado – e futuro, condicionada pelo tempo presente
(Ambra; Paulon 2018, 412)
É nessa obra que Freud, também, estabelece a distinção entre “verdade
material” e “verdade histórica”. A primeira, em tese, se debruçaria sobre o que
é manifesto e literal, aos acontecimentos concretos que podem ser pautados
pela análise historiológica das fontes e documentos. Já a segunda está na ordem
daquilo que contém o velado, oculto, dependente de decifração e um apelo de
retorno ao passado. Em termos psicanalíticos, a verdade histórica obedeceria à
lógica do recalque, partindo do atravessamento de lendas, mitos, da fala e da

153
revista de teoria da história 2 2020

língua para a sua constituição. Assim, se a primeira forma de verdade se atrela à


Geschichte, a segunda, por sua natureza, se aproxima da Historie e Historisch,
posto que a verdade histórica não se debruça sobre o que é literal e manifesto,
mas antes é aquilo que contém o que é oculto, velado e prescinde de uma
decifração (Couto; Alberti 2013). (…) Assim, a verdade histórica seria uma
espécie de modificação, de deturpação da verdade material – análoga àquela
entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente (Ambra; Paulon 2018, 412).
Para Freud, no entanto, tais formas não se tratam de regimes
distintamente apartados: seriam intercambiáveis, posto que haveria uma
importância da verdade material para as construções da verdade histórica.
Caberia ao analista - e não sem medida, o historiador em seu ofício - não um
trabalho hermenêutico, interpretativo, mas tal qual um “arqueólogo” operar a
reconstrução do passado “(…) através da complementação e junção dos restos
conservados” (Freud 1937/2017, 368). Mesmo que se considere a importância,
ao fim, da Geschichte, há algo da ordem do “resto”, daquilo que “sobra” da
verdade material ao qual a primeira deve se adequar. O trabalho, portanto,
tanto do analista quanto do historiador converge na mesma direção de
recuperação, na medida que tenta dar conta das “(…) deformações e ligações
[Anlehnungen] com o presente real, reconduzindo aquela parte do passado à qual
pertence” (Freud 1937/2017, 378).
Por essa razão, Freud não restringirá a questão da verdade à verdade
histórica, compreendendo que há sempre um “resto”; a marca de uma perda
inevitável nas tentativas de reconstrução e comunicação de uma dada verdade.
Para Silva Junior (2017), isso remonta a um debate no campo da antropologia
filosófica freudiana. Na medida em que o homem se socializou, ele abriu mão
de sua animalidade trazendo no corpo e na alma o preço dessa ação: a dor e o
sofrimento são as marcas resultantes de sua emancipação da vida animal. Há
um mal estar inevitável pelo qual não há terapêutica alguma eficaz para extirpar
esse dano. A cultura, a seu turno, surge como uma inscrição simbólica da
forma como o homem lida com seu apartamento da natureza, produzindo um
conjunto de signos, significados e significantes para dar conta desse processo
de perda. E é precisamente aqui que a clínica incide como um dispositivo
capaz de amortecer uma ordem de sofrimentos humanos, pela recondução do
plano de produção de verdades. Em outros termos, a forma como os sujeitos
se relacionam com a verdade pode vir a atenuar ou potencializar a cadeia de
sofrimentos provenientes dos impasses entra a natureza e a cultura. Segundo
Silva Junior (2017, s/p):
(…) Freud atribui uma indeclinável eficácia patogênica ao problema da
verdade. Mais especificamente, à relação deficitária dos discursos com a
verdade histórica dos sujeitos e de sua vida pulsional. Assim, concepções
sobre a origem e manutenção das instituições, identidades e tradições
culturais, valores e costumes, enfim tudo aquilo que se define na filosofia
contemporânea sob a ordem dos discursos, podem exercer o papel de
novos fatores que se articulam ao fator etiológico primeiro das
patologias do social, postulado por sua antropologia filosófica,
potencializando-o. Em outras palavras, as grandes narrativas de uma
cultura, seus ideais, suas exigências morais, podem fazer adoecer na
medida em que estabeleçam relações deficitárias dos seus sujeitos com a
verdade de sua história e de seus desejos.

154
revista de teoria da história 2 2020

Um exemplo disso que Freud tematiza pode ser encontrado na seminal


obra Estudos sobre a Histeria (1985/2016) escrita em conjunto com Joseph
Breuer, no qual a questão da “mentira histérica” é posta em evidência teórica: a
saber, um tipo de dispositivo inconsciente que encobre a correspondência
empírica de um acontecimento; uma espécie de “construção defensiva”. Assim,
a verdade que pode ser extraída - sempre “incompleta”, mas não menos
verdadeira - só pode ser reconstruída em seu limite pelo instrumento da fala -
que aqui recebe o dispositivo clínico de fazer emergir/produzir um tipo de
verdade do sujeito. A histeria, como sintoma, diz respeito a um movimento
análogo à passagem do homem à civilização marcado por uma insuficiência da
linguagem em tratar o real do corpo. Essa renúncia pulsional que inscreve
ambas circunstâncias resulta no sofrimento em face da impossibilidade
originária de uma vida destituída de qualquer forma de cerceamento. O
amortecimento desse mal estar, na ordem da clínica, adviria da tentativa de
inscrição por meio da linguagem e da fala na
produção/reconstrução/comunicação - ainda que incompleta e precária - dessa
verdade. E é justamente nesse ponto que a questão sobre a [produção da]
verdade ganha seu contorno mais profícuo com a inserção lacaniana no debate,
sobretudo pela assimilação que esse psicanalista francês fará entre a teoria e
clínica psicanalítica e a linguística (Beer 2020).

A [RE]PRODUÇÃO DA VERDADE EM LACAN


POR MEIO DOS REGISTROS R.S.I

Sendo assim, há um importante salto a se fazer na história do


pensamento psicanalítico, posto que é com Jaques Lacan que conseguiremos
avançar na compreensão dessa possível articulação entre psicanálise e história a
partir de um debate sobre o campo da verdade e seus regimes. De início, é
preciso considerar que o conceito de verdade foi tematizado ao longo do
ensino lacaniano, sem apresentar, contudo, um esforço de sistematização, “(…)
inclusive, modificacões em relacão a suas referencias sem estabelecer um
diálogo direto com elas, de modo que a questão da verdade ganha autonomia
em seu ensino. (Beer 2020, 23). Por essa via, não temos necessariamente uma
“teoria da verdade” nos moldes do que sugere R. Kirkham (1992), mas, antes,
uma formulação foucaultiana que toma os “jogos de verdade” como modos
específicos de se pensar a problemática das questões ligadas às suas produções
em nível estrutural, ou seja, como instância mobilizada dentro de “relações de
poder”, menos preocupadas com condições internas, e mais antenada à forma
como as verdades se produzem numa dada relação.
Tanto em Freud quanto em Lacan, a verdade opera apenas como
centro causal, mas, sobretudo, como operador clínico. Sobretudo para o
psicanalista francês, ela é um processo dialético que emerge da práxis clínica
como expressão de um descompasso entre a realidade e o discurso. A
influência de uma leitura hegeliana mediada por Alexandre Kojève (1902-1968)
é patente. Localizar a verdade na dialética é expor um movimento que inclui o
saber como alvo de negação que se presentifica em dado momento e inaugura
novo desenvolvimento. As formações do inconsciente, tais como os sonhos,
atos-falhos, chistes etc., seriam formas de precipitação de verdades posto que
mobiliza aquilo que anteriormente se inscreve como ausência para além dos
enunciados do saber em Lacan: o corpo, arquivos, tradições, vestígios, etc.
Essa perspectiva dialética é transposta para a especificidade da clínica na

155
revista de teoria da história 2 2020

medida que seu processo de intervenção passa a ser um esforço de um


conjunto de aproximações sucessivas da verdade do desejo (Sales 2003).
A clínica, portanto, teria por resultado, a partir da interpretação em
conjunto e da intervenção do analista, produzir um efeito de inversão,
inauguração de algo novo a partir da negação de uma narrativa já incrustada no
sujeito por uma forma anterior de [tentativa de] produção de saber sobre si. A
verdade, portanto, é aquilo que se desvela como disrupção, nos termos de Alan
Badiou (1994): para o qual, no processo de uma verdade, um evento se dá
enquanto suplência entregue ao acaso, imprevisível e incalculável. A seu turno,
também, essa eclosão opera como desconstrução de um saber antecipadamente
constituído - daí emerge o efeito psicoterapêutico da clínica analítica: ele
[re]devolve o sujeito à sua autêntica verdade - o desejo inconsciente (Wunsch).
E é por essa razão que essa “segunda verdade”, conquanto “mais autêntica” do
que a primeira, é por efeito também transitória, posto que o desejo está em
permanente movimento. Por isso, o efeito clínico será sempre provisório posto
que aquilo que foi desvelado como novidade face ao saber anteriormente
constituído vai, ele mesmo, se tornar algo estabilizado n’outra forma de saber.
A verdade, portanto, se deslocaria em sua negatividade para outro lugar. Sendo
ela, então, um efeito de momentâneo de uma negação, ela também se apresenta
“(…) como a nomeacão de um processo dialético que revelaria a
impossibilidade de coincidencia entre discurso e realidade, ou então entre
objeto e desejo (Beer 2020, 30).
Com o próprio desenvolvimento do pensamento lacaniano,
especialmente em textos como Ciência e Verdade (1966), observa-se a retomada
da dimensão causal da verdade: ela será não somente a matriz para se
pensar/atuar sobre o sofrimento psíquico, mas também como a trama que
entrelaça das demais produções de saber, desvelando uma instância ético-
política. Assumir a centralidade da negatividade nos conduz para a destituição
de qualquer instância fiadora de permanências, especialmente por se
presentificar na convocação de autorresponsabilização do sujeito em face do
conhecimento produzido e nas implicações que o processo de sua assimilação
acarreta para si. O sofrimento psíquico se mostra, portanto, como uma recusa
a isso que é da ordem do inescapável: a compreensão de que a inexistencia de
garantias impera e da convocação que um dado saber mobiliza. “(…) Há, desse
modo, uma implicação na causalidade do sofrimento, a qual indica que a
dimensão ética não subsiste somente do lado daquele que produz saber, mas
do modo como o saber é recebido e utilizado” (Beer 2020, 244). Em outras
palavras, o sofrimento psíquico demandaria um reconhecimento do caráter
incontornável da dimensão conflitiva inerente ao processo de subjetivação.
Uma vez nomeado, parte-se para uma ação acerca disso e para isso: um
movimento que implica uma tomada de decisão sobre esse conhecimento
produzido e suas possíveis consequências. Eis a dimensão propriamente ética.
Considerando ainda aquilo que Alain Badiou (1994) postula: a verdade
está na ordem daquilo que produz um efeito disruptivo instaurando uma nova
forma de reorganização simbólica ao passo que assume o significante da falta
como ponto estruturante. Mas, para isso, é preciso admitir uma necessária
reorganização dos saberes nesse processo de reestruturação simbólica,
compreendendo a também provisoriedade dessa nova organização indicando
que sempre há um “resto”, uma “falta” que torna limitado em alcance qualquer
forma de circunscrever a realidade. Eis a dimensão política geral: se um novo
elemento emerge como resultante e marcador da falta, essa irrupção implica
um campo de disputa em torno desse signo que se apresenta.

156
revista de teoria da história 2 2020

A teoria e clínica psicanalítica sustentaria, então, um duplo


posicionamento [político], a saber: 1) a consideração do caráter contingente do
saber em face dos efeitos ontológicos, éticos e políticos do seu processo de
produção de saber (Hacking 2009); 2) A sustentação do reconhecimento de
alteridade como único horizonte possível no âmago da clínica: uma
presentificação da negatividade, da diferença radical que implica numa sempre
abertura à crítica e se coloca como fundamento e horizonte para
produção/função do conhecimento. Segundo Paulo Beer (2020, 253),
A verdade seria, nesse aspecto, uma noção privilegiada para a inserção
dessas questões em relação à produção de conhecimento. (…) A
positividade do saber deve ser sustentada a partir do reconhecimento e
da explicitação dos acordos e negociações relativos a suas diretrizes
epistemológicas, seus efeitos ontológicos, suas implicações éticas e sua
localização política, tanto enquanto disputa de poder quanto em
consideração à diferença radical que é o fundamento desse próprio
campo de acordos e negociações.

Avançando na teoria lacaniana, é preciso outro aporte teórico no


âmbito desse trabalho: a compreensão conceitual do R.S.I (Real, Simbólico e
Imaginário) - registros por meio dos quais se desenvolve a experiência humana;
módulos fundamentais que Lacan se utilizou para localizar o sujeito num tripla
dimensão - para tratarmos da questão da “verdade histórica” (ou os “regimes
de verdade” sobre/para a história).
O conceito lacaniano de Imaginário não se trata de uma mera faculdade
de representar coisas em pensamento (imaginação), dissociado de sua
correspondência com a realidade imediata e sensível. Também não se trata de
um “museu mental” aos termos do filósofo francês Gilbert Durant (2001), que
o definia como uma instância que aglutina todas imagens passadas e presentes
produzidas por dada sociedade, que por serem atreladas e dependentes do
cotidiano das pessoas, conferiria a elas uma forma de laço social. Ou ainda, da
forma como é apropriada pelos estudos da História Cultural, que o concebe
como um campo de representações no qual um pensamento se manifesta pelas
imagens que vêm à consciência como forma de realidade, isto é, como imagem
visual que ao evocá-la é transformada, reaparecendo mentalmente mesmo que
o referente anterior não esteja mais no campo de visão.
O conceito de Imaginário em Lacan se difere das concepções oriundas
da virada antropológica e linguística dos Annales. Para tais, a ideia de
“inconsciente coletivo” seria postular para se assumir a posição de que o
imaginário significaria um conjunto de imagens registradas no locus psíquico de
uma sociedade ou grupo social: um repositório de imagens de memória e
imaginação que operam em escala representacional. Já em Lacan, até por sua
rejeição, a concepção topológica jungiana de inconsciente - a noção de
imaginário se sintetiza naquilo que o homem tem em comum com o
comportamento animal, isto é “(…) um conjunto de imagens ideais que guiam
tanto o desenvolvimento da personalidade do indivíduo quanto sua relação com
seu meio ambiente próprio". (Safatle 2007, 31, grifo nosso)

157
revista de teoria da história 2 2020

Para Lacan, os processos perceptivos e cognitivos são tributários de um


sistema de interesses que temos em relação ao mundo, sendo portanto não-
neutros (Safatle 2007). Em uma acepção narcísica: o Imaginário toma o mundo
como uma projeção particularista do sujeito. Segundo Jacques Lacan (1982,
198), “(…) sempre em volta da sombra errante do seu próprio eu que se
estruturarão todos os objetos do seu mundo [assim como sua percepção dos
outros indivíduos.”
Dessa forma, o campo do Imaginário passa a se situar conceitualmente
como uma dimensão da linguagem onde se dão os processos de alienação [de
si], de identificação projetada a partir do nosso ego. Uma relação especular,
dual, se aproxima da conceituação de Cornélius Castoríades (1987) para o qual
o imaginário expressa aquilo que mantém unida uma sociedade por meio de
um complexo de normas, valores, linguagem, costumes etc, sendo ela apenas
um sistema de interpretação do mundo, criado por ela mesma. Numa relação
mediada pela instância do Imaginário, tudo o que extrapola a cadeia de sentido
faz com que os indivíduos reajam de forma refugadora uma vez que cinde
nosso modo de ser/ver/reconhecer o mundo.
Em sua dimensão de articulação, o Imaginário se conecta ao Simbólico
dentro de um entrelaçamento borromeano. A seu turno, este é o lugar do
significante. Extraído da antropologia estruturalista, tal termo designa um
sistema de representação baseado na linguagem. Em sua abordagem
estruturalista, Lacan operará um retorno ao inconsciente freudiano elevando-o
a uma condição de algo estruturado como linguagem - uma instância de
mediação comparável à do significante no registro da lingua. A função
simbólica, portanto, seria o próprio “(…) princípio inconsciente único por
meio do qual se organiza a multiplicidade das situações particulares de cada
sujeito (Roudinesco; Plon 2008, 714).
O Simbólico é um conjunto de posições e lugares onde nenhum
elemento possui uma significação e/ou significado a priori. Não sendo uma
posição fixa, se põe no fluxo do verbo. É dizer. É palavra. É intervalo entre
palavras proferidas. Tudo é inferido a partir das relações que aquele dado
elemento (dito) possui com o conjunto/totalidade. “(…) O simbólico é a
insistência da linguagem com sua massa de ambiguidade inarredável, expressa
na enorme polissemia das palavras, que pode atingir seu máximo nas palavras
antitéticas (…)” (Coutinho Jorge 2017, 152).
Quando Lacan [d]enuncia, justamente, o inconsciente estruturado
como uma linguagem, trata-se daquilo que é revelado na experiencia da clínica
por meio das [de]formações do inconsciente na forma de sintomas, sonhos,
atos-falhos, chistes, etc, embora o seu núcleo [o Real] esteja radicalmente
inacessível pelo Simbólico (Coutinho Jorge 2008, 98). Em outras palavras, o
inconsciente corresponde às formas simbólicas. Tais forma[ações] se
apresentam como as relações de parentesco, dos mitos, das trocas econômicas,
do discurso, da sexuação, etc. Em síntese, o Simbólico é a instância de domínio
da organização (estrutural) da vida social. Considerando a subordinação que
faz da sociedade e cultura em face da linguagem, a ordem simbólica opera
como um conjunto de significantes que determina os diversos lugares que cada
sujeito ocupa na vida social.
A seu turno, o conceito de Real em Lacan não se trata da dimensão da
experiência imediata. É, antes, aquilo que se retira da realidade. Em sua
definição por negatividade, encarna tudo aquilo que não pode ser representado
por um significante ou formalizado por uma imagem. Uma vez que ele não
subscreve a ordem de sentido, não podendo ser simbolizado e escapando,

158
revista de teoria da história 2 2020

portanto, de toda possibilidade de representação; o Real se apresenta como o


avesso dos demais registros: o Real é, nos termos lacanianos, aquilo impossível
de ser simbolizado, excedendo os limites da representação psíquica.
Nesse momento se sublinha uma importante instância que marca o
real: sua associação à ideia de trauma. Tomamos aqui a palavra trauma em seu
sentido freudiano: uma fissura que separa no campo da experiência o afeto de
sua representação, levando o indivíduo à perda da própria experiência,
enfatizadas nas dificuldades de [re]lembrar e subjetivar tal. É um trôma [τρῶμᾰ]
- experiência de ferida que causa efração (Laurent 2013). De um choque que
não permite previsão ou antecipação, irrompe-se um dano marcado pelo
horror, o excesso que carrega uma emoção e mutismo posterior no qual
nenhuma palavra escapa, se articulando. Paradigmaticamente, o trauma é - por
sua capacidade de exceder - aquilo que desvela [a perturbação do] o Real. Por
mais que procure se reconstruir a cena por meio do testemunho vivo, algo
resta, escapa, deixando uma marca indelével, mediante a qual se retorna
colocando em jogo a impossibilidade de simbolização. Em termos lacanianos,
o trauma é aquilo que é mercado pelo seu caráter repetitivo e refratário a
qualquer forma de nomeação.
O Simbólico, quando neutraliza o Real, cria a “realidade”- isto é, aquilo
que pode ser nomeado pela linguagem, podendo, portanto, ser pensado e
falado. Quando nos situamos num “tempo anterior” ao registro do
pensamento [isto é, da nossa inscrição na ordem simbólica] temos aí a virtual
espacialidade do Real. Ao ser anterior à palavra, não se prescinde dela para
existir. Numa terminologia heiddegeriana, o real é aquilo da ordem do que ex-
siste. Daí, portanto, sua associação ao trauma - aquilo vivido, mas que não
permite ser simbolizado; uma fissura que caracteriza (…) essa experiência
impossível, que não cessa de se repetir – sem se inscrever perfeitamente –, que
retorna de modo traumático, trágico e falho, representa a figura conceitual da
gênese do mal-estar (Unbehagen)” (Dunker 2015, 33). Esse profundo mal-estar é
marcado pela incidência do Real, como “experiência perdida”, sob o sujeito em
sua constituição (traumática), na medida que é decorrente daquilo que foi
excedido em seu potencial de simbolização e imaginação. Sob os nomes de
angst (angústia) ou sob as formas Unheimlich (“experiências de estranhamento”),
o mal-estar expressa como decorrência fenomênica da dimensão do Real em
sua tripla relação de negatividade [representacional, simbólica e pulsional].
“(…) Real é, no fundo, o nome para uma experiência perdida [o objeto, a
Coisa, “a” relação sexual, a totalização do gozo]” (Dunker 2015, 95) incidida na
constituição [traumática] do sujeito atado à sua incapacidade nomear o que [o]
atravessa.
Dessa forma, compreendendo o Real como um campo de experiências
subjetivas - e não um horizonte de experiências [concretas] acessíveis à
consciência imediata capaz de uma descrição objetiva - não pode ser, ele,
simbolizado “(…) ou colonizadas por imagens fantasmáticas. Isto nos explica
por que o Real é sempre descrito de maneira negativa, como se fosse questão
de mostrar que há coisas que só se oferecem ao sujeito na forma de negações”
(Safatle 2007, 74).
Assim, se há algo que existe - a que nomeamos como “realidade” - ele é
da ordem daquilo que foi capaz de neutralizar o Real. Isto é, a realidade é uma
criação do Simbólico na medida que este é o registro que permite a experiência
de ser articulada pela linguagem, podendo, portanto, ser falado e pensado. Esse
novo arranjo trata de uma construção Nachträglichkeit (Ex post facto), designada
por uma “(…) reinscrição pelo qual os acontecimentos traumáticos adquirem

159
revista de teoria da história 2 2020

significação para o sujeito apenas num a posteriori, isto é, num contexto


histórico e subjetivo posterior, que lhes confere uma nova significação”
(Roudinesco; Plon 1998, 32).
Destarte, articulando agora o debate sobre os regimes de verdade e os
registros lacanianos do R.S.I, sustenta-se que se a verdade histórica é sempre
uma modificação/deturpação da verdade material, logo não haveria em Lacan
uma suposta “relação historial” resultante da intercambiação possível proposta
por Freud entre as dimensões (distinções?) materiais e históricas. Nesse ponto,
as concepções de verdade clássicas (aristotélica, [material] enquanto
correspondência] e modernas (heideggeriana, [histórica] enquanto
desvelamento no sujeito) se apartam em definitivo, posto que qualquer forma
de recuperação de uma verdade material só poderia ser operada a partir do
campo da experiência do sujeito vinculado aos seus traços e marcas singulares
dessa experiência.
Lacan não desconsiderará, portanto, a premissa freudiana de que é
possível um manejo da temporalidade no processo de construção clínica. Isto
é, por meio de manejos de uma temporalidade dos acontecimentos seria
possível reposicionar passado e presente, restituindo suas memórias e somando
a elas o seu “tempo psicanálitico”. No campo da clínica, há um
[re]dimensionamento ético da temporalidade na qual o ponto fulcral é
recortado e localizado em sua temporalidade. Do ponto de vista operacional,
cabe à análise o movimento de construção e interpretação que ofertarão ao
acontecimento o seu real estatuto, sua articulação com a história nos
reportando à posição ocupada por aquele evento em sua articulação com os
demais (Ambra; Paulon 2018).
A suposta inexistência de uma “relação historial” entre os regimes de
verdade é posta, então, não exatamente como uma impossibilidade total de
articulação; antes, como regimes ligados a registros distintos. Isto é, a verdade
material conectada ao Imaginário (à concretude ligada a uma unificação
especular e linear, observável e mensurável) e à verdade histórica conectada ao
Simbólico (que ao não se reduzir a uma unívoca imagem, torna-se efeito do
ocultamento e potencial desvelamento). Não seriam, então, dimensões que se
sobrepõem, mas que dependendo uma da outra operando em seus limites
recíprocos. Segundo Ambra e Paulon (2018, 414),

Retornando às três noções de história que Freud nos apresenta em “O


homem Moisés e a religião monoteísta” (1937/1988), é como se
estivéssemos investigando as relações entre Historie – história conjectural
– e Historisch – história vivencial. A história conjectural, em seu caráter
simbólico, nos remete à estrutura dos mitos, ao modo como,
coletivamente, resgatamos resquícios, traços diferenciais de nossa
cultura, tal como fez Freud ao escrever “O homem Moisés e a religião
monoteísta” (1937/1988). Já Historisch – a história vivencial – abarca o
aspecto imaginário do legado histórico: a forma como essas marcas
diferenciais são experienciadas, o modo como a organizamos e como
nos posicionamos diante desse legado cultural.

Contudo, aqui cabe uma questão: haveria algum tipo de regime de


verdade associado ao Real? Isto é, poderíamos conceber a história enquanto
uma disciplina - tal qual o procedimento analítico - eficiente para a produção
de um tipo de verdade associado àquilo que “não cessa de não se inscrever”?
Há uma aposta nesse sentido, como demonstraremos ao final. Por hora,
importa examinar de que forma Jacques Lacan compreende o próprio sentido
da ciência histórica/ofício do historiador.

160
revista de teoria da história 2 2020

Num importante texto publicado em 1953, intitulado Função e campo da


fala e da linguagem em psicanálise (1988, 289), Lacan trata a história como uma
modalidade - tal qual o exercício psicanalítico - que tem como efeito operar
uma "(…) reprodução subjetiva do passado no presente”, posto que o que
pretende tanto a análise quanto a história é produzir nos sujeitos um
reconhecimento de sua historicidade pelo desvelamento do inconsciente, isto é,
ajudá-los a “(…) perfazer a historicização atual dos fatos que já determinaram
em sua existência um certo número de ‘reviravoltas ’históricas” (Lacan 1988,
263). N’outro importante texto publicado em 1955, intitulado A coisa freudiana
ou o sentido do retorno a Freud em psicanálise (2008), o psicanalista francês equipara
a matemática [lógica] e a linguistica [estruturalista] e a história num mesmo
grau de importância para formação analítica - aquilo que para ele representaria
um “(…) resgate do sentido da experiência freudiana e seu motor.” (Lacan
1995/2008, 436).
Não obstante, embora se perceba essa predileção e perspectiva de
aproximação com a história por parte de seus principais psicanalistas, desde
Lacan não se identifica seu uso expressivo no campo de suas teorizações, tal
qual se evidenciou com a linguística e a matemática, seja como campos de
fundamentação ou exercício epistemológico. Nesse ponto, Freud teria
encerrado os esforços mais significativos de se buscar uma teoria [do/sobre o]
social por meio de seus textos como Totem e Tabu, Psicologia das Massas, Mal
Estar na Civilização e, especialmente, Moisés e o Monoteísmo. Malgrado, bem da
verdade, seus acertos e limites. A hipótese para essa aparente subalternaização
da história pode ser aventada a partir da forma como o estruturalismo francês
ganhava força no debate acadêmico dos anos 1960, no qual os debates e
correntes da chamada Nova História e dos Analles foram postas alheias pelos
representantes da linguística francesa, tal qual Levi-Strauss.
Entretanto, isso não significa que uma certa teorização ou implicação
não possa ser aventada. Inclusive, encontrando eco no próprio Lacan (1975,
21). É celebre a sua sentença que afirma ser a história “(…) um tipo particular
de simbólico que articula o real pelo escrito”. A despeito de todo um debate
que recobre a ciência histórica de seu caráter imaginário, Lacan irá operar um
terceiro debate indagando o sentido das fontes e registros para a historiologia.
De acordo com o psicanalista francês, “(…) As pessoas escrevem sobre aquilo
que já foi escrito. É por isso que os documentos escritos são exigidos. Não se
pode fazer história senão escrevendo de segunda mão sobre isso que já está
escrito em algum lugar” (Lacan 1975, 20). Assim posto, a interpretação
analítica de base lacaniana é aquilo da ordem que advém de um sobrescrito
produzido entre as histórias “(…) que o sujeito conta a si mesmo e as rasuras
sintomáticas que o analista/historiador circula, sublinha, rabisca. Distinta da
concepção freudiana de interpretação enquanto construção, o dispositivo
lacaniano pretende uma “(…) desconstrução dos sentidos evidentes presentes
em uma edição revisada e ampliada das descontinuidades de si” (Ambra;
Paulon 2018, 415).

161
revista de teoria da história 2 2020

À GUISA DE CONFLUÊNCIAS E [IN]CONCLUSÕES


Se aceitamos a premissa lacaniana de que a interpretação analítica é
uma coextensão da história, poderíamos pensar no anverso dessa relação
concebendo o aporte que a psicanálise poderia trazer ao historiador? A aposta
é afirmativa. Para desenvolvermos essa articulação, precisamos fazê-la a partir
de dois eixos: 1) da clínica e seu método, bem como a articulação de/para uma
teoria social; 2) da potência ética e política dos efeitos da
interpretacão/intervenção psicanalítica. E a partir desses prismas, assumir uma
postura do exercício histórico análogo ao desejado por Hannah Arendt.
A premissas são identificáveis. Em primeiro, a psicanálise seria uma
clínica do Real a desvelar a verdade do sujeito. A seu turno, a história é tomada
como um campo em que seu exercício transcende a mera adequação da
verdade histórica à verdade material pelo acesso das fontes, mas antes, como
uma “empresa que confere sentido ao passado” (Arendt) a partir do acesso aos
seus vestígios ou a situações-limites que apontam para um mal-estar de uma
época. O que interessaria tanto a analistas quanto a historiadores - nessa
articulação de campos - são os restos, os vestígios que permitem ser
atravessados pelo olhar crítico e reflexivo de ambos. Em termos arendtianos,
um emergir do novo, da experiência singular. Nos dizeres de Ambra e Paulon
(2018, 415), “(…) as políticas editoriais de exclusão e inclusão, as atas da
infância, as notas de rodapé da vida adulta e, enfim, tudo aquilo que o eu crê
não fazer parte da história oficial” operando, em seus turnos, uma “(…)
possibilidade da múltipla interpretação e da polissemia de sentidos”.
O analista, de um lado, deve ser aquele que exerce a função análoga a
de um historiador “(…) ao dar a ver as fontes primárias não como ruínas, mas
como escritas do impossível da satisfação, como arquivos de ficção”,
permitindo o “(…) surgimento de uma história que – a partir de perplexidade
advinda da política de apagamentos de seus arquivos – não cesse de não se
inscrever. Uma interpretação eficiente seria aquela que no processo de
construção de sentido[s] emergiria um aposta na impossibilidade de se extrair
verdades unívocas. Para Ambra e Paulon (2018, 415)
(…) a posição do analista é análoga à do historiador: por meio da escrita
sobre outros escritos, a interpretação é o que faz furo no sentido ao
expor o caráter completamente contingente do real. Seu critério de
verdade é, assim, aquele de uma perplexidade que se dá pelo caráter de
variação da verdade, condensado por Lacan (2017) no termo varité, uma
verdade variável, o variável da verdade.

A seu turno e em sentindo benjaminiano (1936/1994), o historiador


deve ser aquele se esforça - tal qual o analista - em fazer com que sua narrativa
não caia em explicações que não recobrem a importância impositiva de um
contexto psicológico dado a priori, obliterando a interpretação de um evento.
Ou ainda, na esteira de Hayden White (2007), sustentar um arquivo que os
permita inferir uma gama variada de interpretações capazes de gerar
perplexidade frente ao real, e não necessariamente esclarecê-lo em seus
mínimos detalhes e causalidades.
Retomando Hannah Arendt, percebe-se a correspondência em seu
pensamento. A atitude de “compreensão" evocada por ela frente ao olhar
sobre os eventos não é da ordem que exime crítica ou, em seus termos, “nega
o ultrajante” ou “subtrai o inaudito”. Em Arendt, como sustentado no início
deste trabalho, a função da história/historiador é direcionar as lentes do exame

162
revista de teoria da história 2 2020

que nos permita suportar de forma consciente toda uma carga que os
acontecimentos despejam sobre nós. Compreender o fenômeno histórico é
indagar a realidade e nosso posicionamento frente a ela. Ao historiador
compete gerar, como resultado de sua produção de sentido[s], uma tomada
política de juízo e posicionamento ético frente aos dilemas e paradoxos
inscritos nos acontecimentos humanos.
Por fim, se o que se busca numa análise não é uma reconstrução da
verdade histórica por meio de uma verdade material, mas antes uma verdade
historial por meio de uma evocação do Real, não uma correspondência com a
realidade. O novo arendtiano vem ao encontro dessa concepção, pois se trata de
extrair o evento singular da história da qual não se há registro, simbolização
materializada documentalmente que permita inferir causalidades aparentes
dadas a priori: é um trabalho; uma construção de análise. Em suma, se na análise
parte-se da verdade histórica cifrada pelo significante dos sintomas e atos
falhos para se chegar a uma verdade historial, no exercício histórico parte-se
daquilo que possa ter sido simbolizada ou sustentada imaginariamente [as
fontes, documentos, testemunhos, memória social etc], porém não se detendo
aí: importa - numa instância ou n’outra - se chegar ao furo radical dos arquivos
tomados como ruínas, como rasuras da letra cifrada no impossível da
satisfação ou simplória inscrição.
Jacques Lacan sustentava que a verdade nem sempre poderia ser dita
em sua totalidade posto que “as palavras falham”. No entanto, seria justamente
por meio dessa impossibilidade que a verdade se apegaria ao real. Lacan chama
a atenção que aquilo que Freud tratara anteriormente sobre o nome de verdade
seja o que aqui tomamos como “resto" ou “novo" no processo histórico
(Arendt). Importa sublinhar que o efeito de uma análise - e seu avanço - se dá
quando desperta no analisante uma produção a partir de seus impasses,
“libertando-o” para uma tomada ética e autônoma de sua própria vida. Não
sem antes ele ter que se deparar com as próprias perplexidades de seu percurso
e reconstrução historial singular. O mesmo se daria - numa perspectiva
arendtiana - com o historiador e seu leitor: a produção de um “efeito
catártico”, que o liberte para o juízo e a ação a partir do confrontamento com
aquilo que nem sempre a história oficial ousou desvelar.
Para [in]concluir, a bem da “verdade”, utilizar como recurso teórico o
pensamento de Hannah Arendt e autores basilares da teoria psicanalítica como
Freud e Lacan é operar fora de uma zona de domínio próprio de ambos. Trata-
se de um exercício de aproximação e ilação. Isso posto, pois há severos
problemas de ordem conceitual no que Arendt, por exemplo, entende por
História - seja ela como ciência/escrita do passado/presente, seja como fluxo
do tempo. O mesmo pode se afirmar sobre Freud e Lacan, em especial. Se, por
um lado, o fundador da psicanálise considerou a relação entre história e
psicanálise profícua, Lacan a seu turno raramente evoca essa conexão,
aparecendo na maioria das vezes de forma coadjuvante ao recurso topológico
em seus seminários.
Quando pretendemos apontar uma concepção de história em Arendt
nos colocamos num árduo desafio, especialmente pela autora não ser uma
historiadora a rigor (por formação ou ofício), mas sobretudo porque a própria
categoria da história aparece em Hannah Arendt como um problema de ordem
conceitual e metodológica. O que é central em sua obra, por obviedade
identificada em seus escritos, é certamente os temas da política e da liberdade.
A história é algo que aparecerá de modo passageiro, embora não menos
intenso, especialmente na abordagem clara e direta do segundo capítulo da

163
revista de teoria da história 2 2020

obra Entre o passado e o futuro (2016), intitulado "O conceito antigo e moderno de
história". E, nesse texto, o conceito se mostra difuso, sobretudo, por Arendt
não separar objetivamente o que seja o ofício do historiador, a prática
historiográfica e a própria história tomada como uma continnum temporal.
Diferentemente de Jacques Lacan, Sigmund Freud evoca o campo da
História em diversos momentos de seus textos, com destaque para Totem e
Tabu (1913), no capítulo intitulado “O interesse da psicanálise”. Ali, o psicanalista
austríaco assume a perspectiva da História como um campo que visa dar conta
da compreensão acerca da continuidade da história evolutiva de cada sujeito
em face de sua inserção numa “história maior”: a das civilizações.
Notadamente, a influência que aqui se apresenta é a daquela consagrada por
basilares como Leopold Von Ranke em sua abordagem da história de longa
duração, universal, cuja direção caminha da barbárie à suposta civilização.
Não obstante, sabe-se que Freud não cedeu a um uso positivista do
trato dos documentos históricos - o que na clínica psicanalítica poderia ser
tomada como a história geral do paciente. Ao contrário, Freud subverte
categorias centrais de reflexão no campo da Teoria da História: os próprios
conceitos de tempo e de história. Afinal, como atesta Sylvie Le Poulichet
(1994), há dois tempos que se articulam no campo da análise mediado pela
lógica da transferência. Em outros termos, a análise é aquilo da ordem que
aparta o tempo cronológico, fazendo-se necessário lidar com o tempo que
“passa e não passa”, não reduzindo a questão da temporalidade a uma uma
linearidade em termos lógicos. Segundo Costa (2019, 11), servindo-se do
aporte de Michel de Certeau quando questiona “o que faz Freud da História?”,
indaga:
(…) A princípio, ele revela a partir de uma Aufklärung, ou seja, uma
clarificação ou elucidação, a própria legibilidade do passado. O mais
antigo é mais claro. É o que está implícito no subtítulo de “Totem e tabu:
algumas concordâncias entre a vida dos homens primitivos e dos
neuróticos. Disso se constata outra subversão freudiana: considerar o
passado no presente. Nisso Freud se distancia por completo dos
historiadores, inclinados a organizar o tempo separando passado e
presente, bem como suas categorias de análise: economia, sociedade,
cultura, dentre outros. Seria Freud anacrônico? A experiência clínica
revela ao criador da psicanálise a atemporalidade do inconsciente e o
desejo indestrutível. Assim, é o próprio sujeito quem é anacrônico. (…)
Podemos dizer que o desejo não envelhece ao atar passado, presente e
futuro em uma mesma linha. Assim, ao lidar com o Unbewusste (não
saber) e sua atemporalidade, Freud trabalha com aquilo que é deixado de
lado pela historiografia.

Como depreendido, buscar articulações e confluências entre a ciência


histórica e a teoria e prática psicanalítica, sobretudo, é um desafio que explicita
seus limites. São campos que lidam por perspectivas distintas de se conceber o
sujeito e sua historicidade, o processo de produção da]verdade e suas
contingencialidades. E isso precisa estar marcado para não corrermos o risco
de fundir campos epistêmicos - que possuem suas gêneses e finalidades
distintas - apenas porque seus objetos se atravessam. O intercurso com a
filosofia, propriamente dita, desvelado por autoras como Hannah Arendt
trouxe ainda uma finalidade muito maior do que operar aproximações, mas
antes de cumprir o papel propriamente filosófico de interrogar determinadas
categorias/conceitos, levantando indagações relevantes sobre o papel/função
do historiador. O que em última instância evoca a dimensão ética própria,

164
revista de teoria da história 2 2020

também, de uma [psic]análise: a de oferecer um substrato sobre a verdade do


sujeito que o coloque defrontado com a necessidade de agir sobre um
fato/evento. E nesse sentido e propósito, os ganhos desses tensionamentos
são substanciais, posto que evocam o sujeito a retornar para os assuntos
humanos não permitindo com que a realidade seja apagada ou transformada
em mera e improfícua ficção.

REFERÊNCIAS

AMBRA, ; PAULON, C. O analista é o historiador: verdade, interpretacão e


perplexidade. In: Psicol. USP [online]. 2018, vol.29, n.3, p412-417.
ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Trad.: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
ARENDT, H. A Dignidade da Política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 2002a.
ARENDT, H. O conceito antigo e moderno de história. In: Entre o passado e o futuro.
Tradução Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2016.
ASSIS, A; MATTA, S. O conceito de história e o lugar dos Geschichtlich Grundbegriffe na
história da história dos conceitos (Prefácio). In: KOSELLECK, R [et al.] (1975). O
conceito de história. Trad. René E. Gertz. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
BADIOU, A. (1994). Verdade e sujeito. In: Estudos Avançados, 8(21), 177-184.
Recuperado de http://www.revistas.usbr/eav/article/view/9668
BEER, A questão da verdade na producão de conhecimento sobre sofrimento psíquico: consideracões a
partir de Ian Hacking e Jacques Lacan. Tese de Doutorado (IP-USP). São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2020.
BENJAMIN, W. (1936). O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In
W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política (p 197-221). São Paulo,
SP: Brasiliense, 1994.
BREUER, J.; FREUD, Sigmund (1895). Estudos sobre a histeria. In: Obras completas,
volume 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
CASTORÍADES, C. As encruzilhadas do labirinto: os domínios do homem. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987.
COSTA, R. Freud e a escrita da história clínica: um encontro entre psicanálise e
historiografia. In: Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -8, 11, 2019.
Disponível em: <https://revistalacuna.com/2019/12/07/n-8-11/>.
COUTOR, R.; ALBERTI, S.. Moisés e a verdade: retorno à questão da verdade histórica.
Trivium: Estudos Interdisciplinares, 5(1), 85-102, 2013.
DUARTE, A. O pensamento à sombra de ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2000
DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. 1. ed. -
São Paulo : Boitempo, 2015.
DURANT, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de
Janeiro: Difel, 2001.
FREUD, S. (1913). O interesse da psicanálise. In: Obras completas, vol. 11: “Totem e
tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos”. Trad. C.
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
FREUD, S. (1937). Moisés y la religión monoteísta. In Obras Completas de Sigmund Freud:
Moisés y la religión monoteísta, Esquema del psicoanálisis, y otras obras (Vol. 23, p 7-132).
Buenos Aires: Argentina, 1988.

165
revista de teoria da história 2 2020

HACKING, I. Ontologia histórica. Porto Alegre: Ed. Unisinos, 2009.


JORGE, M.A.C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. 5.ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008.
JORGE, M.A.C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, vol.3: a prática analíltica. 1.ed.
Rio de Janeiro : Zahar, 2017.
KIRKHAM, R. L. Theories of Truth: A Critical Introduction. Cambridge, MA: MIT Press,
1992.
LACAN, J. (1966) A Ciência e a Verdade. In: Escritos. [Trad. Vera Ribeiro] Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998.
LACAN, J. Séminárie II. Paris: Seuil, 1982.
LACAN, J. (1955). A coisa freudiana ou o sentido do retorno à Freud em psicanálise.
In: Escritos (p 402-437). Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2008.
LACAN, J. (1975). Conférences et Entretiens dans des Universités NordAméricaines.
In: Scilicet, (6/7), 32-37.
LE POULICHET, S. (1994) O tempo na psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1996.
LAURENT, É. Trauma Blitz, Moment de concluire. Disponível em: Blog 43e Journée de
ECF (www.journeesecf.fr), 2013.
SALES, Léa S. A filosofia concreta de Alexandre Kojève e a teoria do imaginário de
Jacques Lacan. In: Paidéia, 2003,12(24), 139-148
ROUDINESCO, E; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Tradução Vera Ribeiro, Lucy
Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de
Janeiro: Zahar, 1998.
SILVA JUNIOR, N. Um ponto cego de O Mal-estar na Cultura: a Ciência na era da
Instalação. Estud. av. [online]. 2017, vol.31, n.91 [cited 2020-08-24], p173-192.
Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01
SAFATLE, V.. Lacan. São Paulo: Publifolha, 2007.
TELES, Edson Luis de Almeida. Passado, memória e história: o desejo de atualização das
palavras e feitos humanos. Ano I – n. 03 – Dezembro, 2001.

DA VERDADE HISTORIAL. MOVIMENTOS DE CONFLUÊNCIA ENTRE A TEORIA PSICANALÍTICA


E A CONCEPÇÃO ARENDTIANA [FUNCIONAL] DE HISTÓRIA
ARTIGO SUBMETIDO EM 06/09/2020 • ACEITO EM 23/11/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65504
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

166
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

METAPSICOLOGIA SOBRE
A FORÇA INCONSCIENTE
DO PASSADO

AUGUSTO B. DE CARVALHO DIAS LEITE


Universidade Federal do Espírito Santo
Vitória | Espírito Santo | Brasil
augustobrunoc@yahoo.com.br
orcid.org/0000-0001-6821-9074

Neste artigo, apresento os principais argumentos de Walter


Benjamin acerca da centralidade do tempo passado para a
constituição do fenômeno histórico através do
reconhecimento de sua natureza inconsciente. Para tanto,
evidencio particularmente as interpretações que Benjamin
realiza da obra psicanalítica de Sigmund Freud, bem como
da literatura de Marcel Proust. Defendo que Benjamin,
retirando lições metapsicológicas da obra de Freud, as quais
definem sua leitura filosófica de Proust, apresenta uma
metapsicologia própria, que traduz conceitos da esfera
individual para o âmbito coletivo da experiência. Assim,
reitero a utilidade da tese benjaminiana que afirma a
relevância do caráter inconsciente da consciência histórica
através das ferramentas da metapsicologia.

metapsicologia – passado – inconsciente

Agradeço à Lorena Lopes, pela leitura do manuscrito deste artigo, pelas


sugestões e correções; agradeço ao Walderez Ramalho e ao Breno Mendes,
pelo diálogo ininterrupto; agradeço ao Hugo Merlo e ao professor Julio
Bentivoglio, pelo apoio e recepção de meu trabalho na UFES; agradeço à
CAPES e à FAPES, pelo financiamento desta pesquisa.

167
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

METAPSYCHOLOGY ON
THE UNCONSCIOUS POWER
OF THE PAST

AUGUSTO B. DE CARVALHO DIAS LEITE


Universidade Federal do Espírito Santo
Vitória | Espírito Santo | Brazil
augustobrunoc@yahoo.com.br
orcid.org/0000-0001-6821-9074

In this essay I aim to show Walter Benjamin’s main


arguments about the centrality of the past for the
constitution of the historical phenomenon through the
recognition of its unconscious nature. I particularly
highlight the interpretations that Benjamin makes of
Sigmund Freud’s psychoanalytic work, as well as of Marcel
Proust’s literature. I argue that Benjamin draws
metapsychological lessons from Freud’s oeuvre, which
define his philosophical reading of Proust, and presents his
own metapsychology, translating concepts from the
individual sphere to the collective scope of the experience.
Finally, I demonstrate the usefulness of the Benjaminian
thesis that assert the relevance of the unconscious character
of historical consciousness by means of metapsychology.

metapsychology – past – unconsciousness

168
revista de teoria da história 2 2020

O RECONHECIMENTO DO PASSADO COMO


FORÇA EXISTENCIAL INCONSCIENTE FUNDAMENTAL
O caráter inconsciente do tempo é uma antiga questão teórica do
pensamento histórico moderno. Leopold von Ranke já afirmava que “o
decisivo [para o pensamento histórico] é a origem. O primeiro passo é
trabalhar continuamente em todo processo de desenvolvimento, seja
consciente ou inconsciente” (1867, 345). Contudo, para “a teoria da história,
essas camadas inconscientes da constituição histórica de sentido continuam a
ser um campo ignoto, embora não se duvide do poder dos impulsos
inconscientes do comportamento humano” (Rüsen 2015, 224); afinal, há “uma
influência nada negligenciável de movimentos mentais inconscientes nos
processos da constituição histórica de sentido” (2015, 93). Com efeito, existe
uma demanda por teorizações que expliquem as características não-conscientes
do fenômeno histórico, às quais Walter Benjamin se dedicou de maneira
exaustiva, ressaltando, em suma, o papel essencial do passado na estrutura
histórica de sentidos inconscientes.
Para o esclarecimento do estatuto inconsciente do passado como uma
força existencial fundamental, Walter Benjamin dialoga com a teoria
psicanalítica de Sigmund Freud, com Marcel Proust e, em um menor grau, com
Henri Bergson. Da obra de Freud, Benjamin se interessa pela metapsicologia1,
quer dizer, pelos pressupostos filosóficos gerais da psicanálise. Grosso modo,
segundo a metapsicologia freudiana, as “influências do passado [...] recebidas
dos outros” (GW XVII, 69)2 representam a principal fonte da matéria da
existência; trata-se tanto de fatores hereditários – de um ponto de vista
biológico – quanto de aspectos culturais (GW XIV, 504) – de um ponto de
vista antropológico –, ou melhor, do seu “passado cultural” (GW XVII, 138),
que se pode chamar igualmente de tradição – o que é transmitido.3 De acordo
com a metapsicologia freudiana, portanto, apesar da vida se sujeitar
invariavelmente ao poder do presente, do acidental e atual, à opressão do
sucessivo, não há como negligenciar “as tendências herdadas, o passado
orgânico”, bem como o “passado cultural”; pois a “humanidade não vive
inteiramente no presente. Nas ideologias do Super-Eu vive o passado, a tradição

1 O neologismo freudiano metapsicologia [Metapsychologie] é o nome dado por Freud ao

complexo de escritos técnicos e descritivos que apresentam de maneira objetiva não apenas
análises, mas também as estruturas que fundamentam essas análises que a psicanálise produz
enquanto método e ciência. O sentido geral da palavra diz respeito ao que está além ou antes
da psicanálise como método aplicado de sua psicologia. Meta-psicologia, nesse sentido, não
apenas nomeia um determinado tipo de forma temática dentro da ciência psicanalítica, mas,
sobretudo, reúne os fundamentos gerais das estruturas psíquicas pressupostas pela análise. “Na
medida em que Freud trabalhou com seu neologismo ‘metapsicologia’, que havia usado pela
primeira vez numa carta a Fließ em 13 de fevereiro de 1896 [Freud-Fließ, p.181 (172)], ele
passou a defini-lo de modo cada vez mais estrito, como uma psicologia que analisa as
operações da mente a partir de três perspectivas: a dinâmica, a econômica e a topográfica. A
primeira dessas perspectivas acarreta a sondagem dos fenômenos mentais, até as suas raízes nas
forças inconscientes dominadas por conflitos, originadas principalmente das pulsões, mas não
restritas a elas; a segunda tenta especificar as quantidades e as modificações das energias
mentais; a terceira se encarrega de diferenciar os diversos domínios da mente. Juntas, essas
perspectivas delimitadoras distinguiam claramente a psicanálise das outras psicologias” (Gay
1988, 334).
2 Os trabalhos completos de Freud, Gesammelte Werke (1949) e Studienausgabe (1975), serão

referenciados como GW e SA, respectivamente, seguidos de tomo e paginação.


3 Em “O papel da tradição na construção do mundo histórico” (2019a), explorei de forma

mais detalhada o problema destacado por Freud, em diálogo com Walter Benjamin e Martin
Heidegger.

169
revista de teoria da história 2 2020

da raça e da nação, que dão lugar às influências do presente, muito lentamente”


(GW VX, 73). Não obstante, há uma qualidade particular do passado que
Freud sublinha: sua natureza escondida, esquecida, recalcada, reprimida,
inconsciente; porque o passado somente existe de modo sempre contraditório,
como presença ausente; o que torna o seu reconhecimento uma tarefa errante
peculiar, um desafio para o pensamento. Em seu derradeiro texto, Freud
afirma que todo o psíquico seria em si inconsciente (GW XVII, 147),
composto assim por passados escondidos, esquecidos, mas ainda poderosos o
suficiente para exercer sua força sobre nossa existência, escravizando nossa
existência, nas palavras de Beatriz Sarlo (2007, 12). A característica recalcada,
velada, aliás, seria uma das principais origens da força do passado. Jacques
Lacan reitera os princípios dessa compreensão freudiana sobre o passado e o
inconsciente, que significaria “alguma coisa da ordem do não-realizado” (1973,
31), espécie de experiência acumulada, consumada, mas a espera de significado
retrospectivo – estrutura temporal implicada em toda obra freudiana (Derrida
1967, 71).4
Benjamin, ressaltando a proeminência das conclusões metapsicológicas
de Freud, resume a premissa em questão no texto sobre o conceito de história,
em 1940, ao “reconhecer que a imagem da felicidade [desejos, futuros] que
cultivamos está inteiramente tingida pelo tempo a que, uma vez por todas, nos
remeteu o decurso de nossa existência” (GS I.2, 693).5 Para Benjamin, “com a
representação do passado, que a História toma por sua causa, passa-se o
mesmo” (GS I.2, 693). Entretanto, mais do que o passado que se transmite na
superfície da consciência, há de se fazer justiça aos passados que se escondem
inconscientemente, identificados como o “passado oprimido” (GS I.2, 703)
pela transmissão cultural, que somente se torna acessível por meio do
confronto com a tradição dos vencedores em favor do encontro do tempo
passado perdido e esquecido. Segundo Benjamin, tal reconhecimento objetiva
dar nome aos “sem nome” (GS 1.3, 1241), realizando, assim, uma outra
historiografia que descubra, enfim, a natureza inconsciente da história ao
resgatar do esquecimento os passados recalcados. Nesse sentido, a reflexão de
Benjamin sobre a força inconsciente do passado se apresenta como um dos
primeiros esforços para se compreender de forma adequada em que medida o
material passado recalcado ou inconsciente mantém seu poder sobre a existência
em geral, sobretudo sobre a chamada consciência histórica: a consciência da
“historicidade do ser” própria ao pensamento histórico moderno (Cf. Gadamer
1963).

4 Um tema fundamental da literatura metapsicológica é precisamente a natureza retrospectiva

[nachträglich] de todo significado dado pela consciência a si mesma. “Não é o vivido em geral
que é reinterpretado a posteriori, mas intencionalmente aquilo que no momento em que foi
vivido não pode ser plenamente significativo” (Féve 2006, 764).
5 As referências aos trabalhos de Benjamin, Gesammelte Schriften (1991), e as suas cartas,

Gesammelte Briefe (2000), serão feitas pelo uso de GS e GB, respectivamente, seguido do número
do tomo e paginação. As traduções das teses “Sobre o conceito de história” são de Jeanne-
Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller (Cf. Löwy 2005), com ligeiras modificações. A respeito
da centralidade do tempo passado na obra de Walter Benjamin, tomo a liberdade de
recomendar meu texto “Sobre o conceito de passado em Walter Benjamin” (2019b).

170
revista de teoria da história 2 2020

METAPSICOLOGIA COLETIVA BENJAMINIANA


Existem, por exemplo, indicações de sua leitura de Freud no contexto
dos estudos universitários (em 1918 ele frequentou o seminário de Paul
Häberlein sobre Freud, em Berna), além de referências à ‘doutrina do
inconsciente’ (Lehre von Unbewußten) de Freud em sua discussão sobre o
primário infantil na Frankfurter Zeitung de 13 de dezembro de 1930 sob
o título ‘Chichleuchlauchra’ (GS III, 271), e o ‘estudo de Freud sobre o
narcisismo’ no mesmo jornal, na semana seguinte (GS III, 273). Fora
isso, ele mesmo informa sobre sua leitura do ensaio de Freud sobre
‘Psicanálise e Telepatia’ (1934) em uma carta de 1935 para Gretel
Adorno, bem como fala da ‘Escola Freudiana’ em seu ensaio sobre
Bachofen do mesmo ano (GS II, 3, 935). Também, em 1935, ele escreve
para Adorno dizendo que desejava ‘comprometer-se’ a ler Freud em um
futuro próximo (GS, V, 2, 1121), como se ele não estivesse ‘consciente’
da intensidade de afinidades que há algum tempo ele tinha com a teoria
freudiana. (Weigel 1996, 116-117).6

Toda relação de Walter Benjamin com a obra de Sigmund Freud ou


com a psicanálise se constrói mais indireta do que diretamente. De forma
direta, a psicanálise – como método de análise – aparece em alguns trabalhos
dos anos 1930. De modo indireto, temos a mémoire involontaire proustiana como
um instrumento indispensável para Benjamin pensar a pesquisa e a escrita da
história. Do uso da memória involuntária como agente realizador ou
atualizador7 da existência histórica, pode-se inferir uma estrutura psíquica
propriamente benjaminiana que, a rigor, não se iguala ao aparelho psíquico
freudiano, mas corresponde a ele (através da obra de Proust).
Na estrutura psíquica assumida por Benjamin, a mémoire involontaire
possui o mesmo papel que a memória inconsciente do aparelho psíquico da
metapsicologia freudiana (ou são pelo menos similares) – os traços mnêmicos8 de
Freud praticamente nunca são conscientes (SA II, 516), situam-se no âmbito da
não-intencionalidade do involuntário, tal como em Benjamin. Um exercício
comparativo permitirá extrair tanto de Freud e da tradição psicanalítica quanto
de Benjamin e da sua incursão na obra de Proust considerações que
contribuam para a compreensão dos fenômenos não-conscientes ou não-
intencionais, os quais, como se poderá averiguar, derivam particularmente da
natureza do tempo passado. Martin Klüners, em Geschichtsphilosophie und
Psychoanalyse (2013), ao analisar as relações entre psicanálise e a filosofia da
história de Walter Benjamin, evoca o trabalho pioneiro de Jutta Wiegmann,
Psychoanalytische Geschichtstheorie: eine Studie zur Freud-Rezeption Walter Benjamins
(1989), o qual sublinha a transferência dos insights freudianos da esfera
individual para o âmbito da história coletiva na obra de Benjamin. Wiegmann
propõe que Benjamin realiza com a obra freudiana o que Stéphane Mosès

6 Em uma lista bibliográfica de leitura Benjamin, além dos textos citados figuram: Der Witz
und seine Beziehung zum Unbewußten; Psychoanalytische Bemerkungen über (einen autobiographisch
beschriebenen Fall von Paranoia) (Fall Schreber) mit Nachtrag (in: »Sammlung kleiner Schriften zur
Neurosenlehre«, 3. Folge, Leipzig, Wien 1913), Zur Einführung des Narzißmus
(wahrscheinlich aus »Sammlung kleiner Schriften zur Neurosenlehre«, 4. Folge, Leipzig, Wien
1918); Über Psychoanalyse. Fünf Vorlesungen geh(alten) vor der Clark-University; todos textos de
Freud (Cf. GS VII.1, 440-441; 443).
7 Vale ressaltar que atualizar, em Benjamin, não significa meramente presentificar ou

encontrar sua forma no tempo presente, mas sim tornar ato um desejo latente ou uma intenção
suspensa.
8 “[D]as percepções que chegam até nós, permanecem em nosso aparato psíquico um

vestígio ou rastros que nós podemos chamar de ‘traços mnêmicos’ (...). A função a que se
refere esse traço mnêmico chamamos de ‘memória’” (SA II, 514).

171
revista de teoria da história 2 2020

(2006, 208) afirma ser o procedimento geral de Benjamin, a saber, a articulação


coletiva da individualidade. “De acordo com Jutta Wiegmann, Benjamin traduz
ideias freudianas, sobretudo as teorias sobre o trauma e o recalque, ‘para a
história coletiva’” (Klüners 2013, 124). Ou seja, aquilo que Freud e a literatura
sobre a não-intencionalidade tratam como fato individual, Benjamin
desenvolve em forma de fato coletivo ou próprio à história. Se para Freud e os
estudos sobre a não-intencionalidade, o corpo é o centro gravitacional de toda
articulação teórica sobre a experiência, não haverá diferenciação entre corpo
individual e coletivo em Benjamin; pois “o coletivo é corporal” (GS II.1, 310).
O coletivo (o social, a sociedade, a história) é um corpo, precisamente, porque ele apenas se
materializa ou se objetiva por um meio material específico, um corpo, através da memória
(voluntária e involuntária) e a sua capacidade conjuntiva – algo que a nomenclatura
conceitual benjaminiana traduz de maneira a fundamentar sua arquitetura
teórica onto-epistemológica, pois “[s]e há experiência no sentido estrito do
termo, conteúdos do passado individual e coletivo entram em conjunção na
memória” (GS I.2, 611). Da perspectiva filosófica, trata-se de uma afirmação
fundamentalmente fenomenológica, pois “de acordo com a fenomenologia, o
Eu, o mundo, e os outros, devem estar juntos, eles reciprocamente iluminam
um ao outro, e apenas podem ser entendidos em interconexão” (Zahavi 2009,
185). Com efeito, apesar da divisão entre metapsicologia e psicologia ser
apenas formal, do ponto de vista da psicanálise, Benjamin, então, aborda a
metapsicologia freudiana filosoficamente e de maneira isolada, não interessado
na psicanálise enquanto prática curativa.

METAPSICOLOGIA BENJAMINIANA APLICADA


À CRÍTICA CULTURAL E DA IDEIA DE TEMPO

Freud é citado diretamente por Benjamin em Über einige Motive bei


Baudelaire (GS I.2, 605-653), a segunda versão do trabalho sobre Baudelaire
encomendado pelo Institut für Sozialforschung – quando ele já está exilado em
Nova Iorque. O texto é fruto de um esforço intenso de Benjamin para
elaboração de uma teoria do conhecimento, trabalho epistemológico exposto
em uma troca de cartas com Adorno (Cf. Otte 2007). Esse segundo ensaio
sobre Baudelaire é o texto de Benjamin que melhor analisa, através da estrutura
de interpretação psicanalítica, o século XIX europeu sob a ótica baudelairiana.
A ideia do choque [Chock], os traumas oriundos do choque, a perda de
experiência [Erfahrung] em detrimento da efêmera vivência [Erlebnis] própria à
modernidade capitalista europeia são elementos interpretativos que carregam
significados deduzidos das investigações psicanalíticas. Enfim, trata-se de um
texto diretamente determinado pela psicanálise freudiana. Por outro lado, há
uma série de reflexões teóricas que Benjamin tece por meio da literatura
freudiana, mas que, a rigor, não são interpretações da realidade oriundas do
aparato psicanalítico; ao contrário, são casos em que a metapsicologia freudiana
e seus conceitos são mobilizados por Benjamin como ferramentas para a
posterior interpretação, não como elementos prontos que carregam em si
algum significado pré-articulado. Como se lê em uma nota intempestiva: “a
mémoire involontaire é associada à experiência, não à vivência. (Freud!) A
experiência é fruto do trabalho, a vivência (choque) é fruto da ociosidade” (GS
I.3, 1183).

172
revista de teoria da história 2 2020

Tais investigações teóricas estão registradas na obra das Passagens –


convolutos K e N, especialmente –, em fragmentos variados do espólio – em
grande parte publicado no volume VI dos trabalhos reunidos – e ainda no texto
sobre o conceito de história. Sérgio Paulo Rouanet, em Édipo e o Anjo: itinerários
freudianos em Walter Benjamin (1981), analisa a incursão psicanalítica de Benjamin
e descreve detalhadamente o desenvolvimento da “teoria freudiana sobre a
correlação entre memória e consciência, na perspectiva de uma crítica da
cultura” (Rouanet 1981, 44), em Über einige Motive bei Baudelaire. Benjamin
explora a relação entre memória e consciência para, então, explicar o porquê da
queda da experiência dentro da modernidade. A explicação benjaminiana reside
nos constantes choques aos quais o indivíduo moderno está submetido,
mantendo a sua atenção alerta e a sua memória vazia de conteúdo,
precisamente pelo fato da consciência se comportar como escudo protetor
[Reizschutz] (GS I.2, 613); quer dizer, a consciência agindo através do princípio
de realidade freudiano. Esse esquema se explica segundo o jogo entre princípio
do prazer e princípio de realidade (SA III, 375) tal como apresentado no primeiro
capítulo de Jenseits des Lustprinzips (1920), obra largamente citada por Benjamin
no ensaio em questão. “Essa leitura da teoria freudiana do choque constitui a
chave da crítica cultural de Benjamin” (Rouanet 1981, 45).
Em relação à crítica a ideia de tempo metapsicológica de Benjamin,
apesar do texto Berliner Kindheit um neunzehnhundert e as suas variantes operarem
a partir do esquema freudiano sobre a memória,9 será na última versão do texto
sobre Baudelaire, publicado finalmente na Zeitschrift für Sozialforschung em 1940,
que se desenvolverá a conceitualização específica do passado em conexão com
Freud – além de Bergson e principalmente Proust – de modo explícito. Freud é
então citado à exaustão, juntamente com a obra de Theodor Reik, Der
überraschte Psychologe. Über Erraten und Verstehen unbewußter Vorgänge (1935)
(Schmider; Werner 2011, 574). Os conceitos de Erinnerung [lembrança] e
Gedächtnis [memória] são deliberadamente mobilizados a partir da perspectiva
freudiana, juntamente com a ideia de mémoire involontaire proustiana que, pelo
emprego de Benjamin, compõe a leitura do que é propriamente involuntário ou
não-intencional – objeto singular de Benjamin a partir dos anos 1930 e que,
mais do que fundamentar, também estabelece a estrutura da sua arquitetura da
temporalidade (Cf. Raulet 1996).

Mémoire involontaire e Unbewußte

A memória involuntária de Benjamin obedece à estrutura inconsciente


de metapsicologia de Freud. É preciso delimitar, contudo, a diferença entre a
incursão psicanalítica e as afinidades e diferenças metapsicológicas que a
teorização de Benjamin possui em relação ao pensamento freudiano. Portanto,

9 Sobre esse texto específico, Nadine Werner realiza um estudo histórico-filológico


profundo e traça as afinidades entre Benjamin e Freud em Archäologie des Erinnerns. Sigmund
Freud in Walter Benjamins Berliner Kindheit (Cf. Werner, 2015). “O propósito do livro é claro: trata-
se de “uma pesquisa sistemática das posições teóricas sobre o lembrar em Benjamin que
remetem a Freud” e isso em particular na Infância em Berlim. O leitor não encontrará,
portanto, reflexões de Benjamin a partir da teoria do desejo, do sonho ou mesmo da infância
em Freud, mas uma “comparação” cerrada entre as teorias da memória (“Gedächtnis”) e da
lembrança ou do lembrar (“Erinnerung”) em ambos os autores. Nadine Werner nota que a
pesquisa benjaminiana tratou muito mais dos paralelos entre Proust e Benjamin, no que diz
respeito à memória, e negligenciou aqueles, segundo ela essenciais, entre Freud e Benjamin.
Isso talvez explique uma certa má vontade sua em relação à importância de Proust para a
leitura de Benjamin, em detrimento de Freud” (Gagnebin 2016, 405).

173
revista de teoria da história 2 2020

as conexões teóricas emergem por meio da pergunta: “em que condições pode
a mémoire involontaire evocar uma memória?” (Raulet 1996, 12). Em pelo menos
duas ocasiões, no ensaio sobre Baudelaire, Benjamin responde a essa questão e
demonstra os elos conceituais que animam o debate organizado nesse artigo,
que desenha a condição das correspondances baudelairianas, particularmente a
estrutura de temporalidade, sempre sob o prisma da não-intencionalidade
(Schlossman 1992).

Caso se acredite em Bergson, é rememorando a durée que a alma humana


se libera da obsessão do tempo. Proust compartilha dessa crença e tem
nela os exercícios com os quais buscou durante toda a vida trazer à luz
um passado saturado de todas as reminiscências que o impregnaram
durante a sua permanência no inconsciente. (GS I.2, 637).10

E ainda:

Em busca de uma definição mais concreta do que a que aparece na


mémoire de l'intelligence de Proust, como subproduto da teoria bergsoniana,
é oportuno remontar a Freud. Em 1921 aparece o ensaio Além do
Princípio do Prazer, que estabelece uma correlação entre a memória (no
sentido de mémoire involontaire) e a consciência. Essa correlação é
apresentada como uma hipótese. As reflexões seguintes, que a ela se
referem, não pretendem demonstrá-la. Limitam-se a experimentar a
fecundidade desta hipótese sobre nexos muito remotos em relação
àqueles que Freud tinha presentes no momento de formulá-la.
(GS I.2, 612).

Reitero: em que medida pode-se falar em memória ao se falar em


mémoire involontaire? Para responder a essa interrogação, Benjamin articula
Bergson e Freud em torno de Proust, o seu principal teórico do tempo, pois À
la Recherche du Temps Perdu (1913-1927) é a obra que funda a compreensão da
temporalidade no seu aspecto não-intencional para Benjamin – Zum Bilde
Prousts (1929) demonstra o impacto que a leitura e o estudo da Recherche causa
na conceptualização benjaminiana sobre a memória e o tempo. Em Proust, o
tempo perdido é sempre tempo passado, assim como para Benjamin o tempo
misterioso da experiência esquecida é igualmente o tempo passado, razão
primeira da possibilidade de experimentar o tempo involuntário, não-
intencional, inconsciente. Como se pode ler no primeiro volume da série, Du
Côté de chez Swann (1913): “é um esforço perdido procurar evocá-lo [o passado
inconsciente], todos os esforços de nossa inteligência são inúteis. Ele está
escondido fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na
sensação que nos daria esse objeto material), que nós nem mesmo
suspeitamos” (Proust 1988, 44). Eis o fundamento não-intencional da
temporalidade proustiana, citado, inclusive, no ensaio de Benjamin sobre
Baudelaire (GS I.2, 610): o tempo se esconde, aparece à consciência de forma
velada porque seu fundamento, o passado, configura-se permanentemente de
maneira não-intencional. Proust, em entrevista concedida ao periódico Le
Temps, no ano de publicação do primeiro volume de Recherche, 1913, ao
comentar os princípios filosóficos da sua obra, adiantando-se em relação ao
que Benjamin fará em 1939 – ano de escrita do seu ensaio –, afirma que a sua
obra, por meio do trabalho da não-intencionalidade própria à mémoire
involontaire, deve ser lido como um “romance do inconsciente”.

10 A tradução é retirada do volume III das Obras Escolhidas (Benjamin 2004), com algumas
alterações.

174
revista de teoria da história 2 2020

Desse ponto de vista, continua o Sr. Proust, meu livro será talvez como
um ensaio de uma sequência de ‘Romances do inconsciente’. Não teria
nenhuma vergonha em dizer 'romance bergsoniano', se eu assim
acreditasse, pois em toda época a literatura procurou se ligar - a posteriori,
naturalmente - à filosofia reinante. Mas não será exato, porque minha
obra é dominada pela distinção entre memória voluntária e memória
involuntária, distinção que não somente não se encontra na filosofia do
Sr. Bergson, mas até mesmo a contradiz.
— Como o senhor estabelece essa distinção?
— Para mim, a memória voluntária, que é sobretudo uma memória da
inteligência e dos olhos, não nos apresenta senão a face inverídica do
passado; um odor, um sabor encontrado em circunstâncias totalmente
diferentes, ao despertar em nós, apesar de nós mesmos, o passado,
sentimos o quanto o passado foi diferente daquilo que acreditamos
lembrar e que nossa memória voluntária pinta, como os maus pintores,
com cores sem verdade. Já no primeiro volume, o senhor verá o
personagem que conta, que diz: ‘Eu’ (e que não sou eu), reencontra de
uma vez só os anos, os jardins, os seres esquecidos, no gosto de um gole
de chá onde ele molhou um pedaço de madeleine (...).
Veja o senhor, eu acredito que o artista deveria demandar a matéria
prima da sua obra principalmente das memórias involuntárias. Primeiro,
precisamente porque são involuntárias, formam-se delas mesmas,
atraídas pela afinidade de um minuto idêntico e são por si sós uma marca
de autenticidade. Em seguida, elas nos mostram as coisas em uma
dosagem exata de memória e esquecimento. E, enfim, como elas nos
fizeram provar a mesma sensação em uma circunstância diferente, elas
são liberadas de toda contingência, elas nos dão a essência extratemporal,
aquela que é justamente o conteúdo do bom estilo, a verdade geral e
necessária que a beleza do estilo traduz.
(Proust 1988: 452-453).11

A obra de Proust é um romance sobre o inconsciente; mais afeita a essa


estrutura, aliás, do que ao bergsonismo coevo – que igualmente determinada o
tempo passado como fundamento da experiência do tempo (Cf. Vetö 2005) –,
apesar de certas analogias que ele mesmo e Benjamin sugerem entre a sua obra
e a filosofia de Bergson. “A estrutura das vivências genuínas por Freud e
Proust” (GS VII.2, 743) é o objeto de estudo declarado de Benjamin. Quer
dizer, Freud parece ter mais em comum com Proust do que com Bergson; a
memória involuntária (de Proust) e o inconsciente (de Freud) são relacionados
pelo próprio Proust, algo que Benjamin também enxerga ao mobilizar Proust
junto a Freud, a fim de estruturar a arquitetura não-intencional do tempo.
Proust fala em compreensão aprés coup, retrospectiva, outra nomenclatura
freudiana que parece impregnar a explicação que Proust dá de si mesmo. De
modo direto, todavia, em uma carta a Adorno, de 7 de maio de 1940, Benjamin
afirma: “a experiência infantil do gosto da Madeleine, que Proust um dia
involuntariamente de novo rememorou, foi na verdade inconsciente” (GB VI,
446).
Para Benjamin, a memória involuntária e o inconsciente situam-se no mesmo plano
teórico, quer dizer, um mesmo plano filosófico fenomenológico; quando se fala em
memória involuntária ou inconsciente, refere-se a um mesmo fenômeno que se
origina de determinada experiência temporal encontrada sempre no tempo
passado, a inconsciência. Dito isso, é preciso considerar também que, como já
dito, Bergson – além de Proust e Freud – figura entre os principais mediadores
da perscrutação benjaminiana sobre Baudelaire, conforme o próprio Benjamin
indica em dois resumos (um em alemão e outro em francês) escritos para a
revista do Instituto de Pesquisa Social (Cf. GS I.3, 1186-1188). Bergson funciona
11 Entrevista concedida a Élie-Joseph Bois, do jornal Le temps, no dia 13/11/1913.

175
revista de teoria da história 2 2020

como uma “autoridade de época” que lastreia o uso do Proust como


epistemólogo, através de comparações da Recherche, de Proust, com Matière et
Mémoire (1896), de Bergson. Para Benjamin, “a memória pura – a mémoire pure –
da teoria bergsoniana tornou-se mémoire involuntaire em Proust” (GS I.2, 609),
ou seja, a memória involuntária de Proust, para Benjamin, possui lógica similar
ao conceito de Bergson. Além disso, “ele [Benjamin] entende mémoire involontaire
como a forma particular de memória que evoca não só o que foi
inconscientemente esquecido, mas também as experiências inconscientemente
experienciadas” (Raulet 1996, 12); memória involuntária significa a origem da
experiência em geral, de acordo com Benjamin.
Jeanne-Marie Gagnebin resume bem a questão nos seguintes termos:

Os dois autores [Freud e Proust] dedicam sua atenção justamente a essas


imagens – inconscientes, diz Freud, involuntárias, diz Proust –; uma
atenção paradoxal, certamente, leve e intensa, uma ‘atenção flutuante’.
Eles ouvem os zunidos que perturbam o discurso consciente e bem
ordenado do sujeito, tentando perceber o que esses ruídos parasitários
podem significar. Se a tradição se ocupou sobretudo do processo
consciente da recordação, Freud e Proust empreenderão um
deslocamento do olhar, atentando para as imagens da lembrança que o
sujeito não escolhe e que podem até incomodar ou assustar, mas
também provocar surpresas e reencontros felizes. Esse deslocamento
traduz uma transformação da teoria da memória e, mais profundamente,
uma transformação da própria concepção de sujeito. Esse não é mais
definido antes de tudo por sua atividade consciente, voluntária,
autônoma, mas também por um tipo de faculdade passiva, receptiva, de
acolhimento, que a filosofia reservara antigamente à matéria – e às
mulheres...! Tal receptividade passa então a ser interpretada não em
termos de inércia, mas em termos positivos de disponibilidade atenta.
(2014, 240).

Surrealismo e imagem dialética

Assim como demonstrado até aqui, Benjamin se corresponde com o


trabalho metapsicológico de Freud de maneira significativa. Essa
correspondência estabelece-se, notadamente, pela via indireta de Proust, mas
também pelo contato com os surrealistas, que fundam o seu movimento
estético por meio do reconhecimento da natureza inconsciente da consciência.
Nesse sentido, a obra surrealista expressa o subterrâneo recém-descoberto do
espírito ou da memória, através de procedimentos experimentais – a écriture
automatique de Breton, por exemplo – que animam a não-intencionalidade e a
sua potência reveladora do inconsciente. Não é sem motivos que Breton, em
Manifeste du surréalisme (1924) rende graças a Freud (1985, 20), num elogio
detalhadamente exposto em Der Sürrealismus. Die Letzte Momentaufnahme Der
Europäischen Intelligenz (1929), de Walter Benjamin.
Com efeito, averigua-se que a escrita e o pensamento de Benjamin
estão impregnados pela metapsicologia freudiana de maneira dupla, assim
como ele mesmo diz sobre a teologia, no conhecido fragmento do trabalho das
Passagens (GS V.1, 588 [N7 a,7]), o que Gérard Raulet corrobora no seu estudo
sobre o Historismus em Benjamin. Raulet, assim como Weigel, a partir do
trabalho filológico detalhado de Josef Fürnkäs (1998), demonstra que toda a
estrutura fundada por Benjamin para a sua crítica à ideia de história segue ou
persegue o caminho pavimentado por Freud e os surrealistas. “Em Freud e nos
surrealistas, Benjamin busca uma saída do âmbito do voluntário, o que
produziu a sua crítica da razão histórica e da experiência histórica” (1992, 116).

176
revista de teoria da história 2 2020

Raulet ainda destaca que o involuntário (ou não-intencional) em Benjamin


emerge sempre sob a sombra do aparelho psíquico que a metapsicologia
freudiana estabelece. É possível, portanto, determinando a correspondência
entre aquilo que Benjamin circunscreve ao âmbito do involuntário e aquilo que
Freud circunscreve ao âmbito do inconsciente, enriquecer a compreensão do
que Benjamin propõe para a refundação da ideia de história moderna – crítica
radicalmente enraizada na obra de Proust e determinada pelo conceito de
mémoire involontaire. Assim, pode-se concluir junto a Raulet que

Os conceitos ‘voluntário’ e ‘involuntário’ – ou ‘involuntariamente’ – são


usados por Benjamin no seu duplo sentido, de tal forma que se pode
falar em consciente ou voluntário e inconsciente ou involuntário
(respectivamente, no duplo sentido da palavra).
(1992, 116).

A chamada imagem dialética de Benjamin, coeficiente material da


natureza histórica que resulta do movimento próprio aos variados índices
históricos que cada passado carrega, é resultado involuntário ou inconsciente
do caráter do tempo. “A ‘memória involuntária’ fora compreendida como uma
memória não ‘voluntária’ (no ‘mau’ sentido) e assim entende Benjamin ser ela a
‘imagem dialética’” (Raulet 1992, 116), pois “a imagem dialética é assim
definida como a memória involuntária da humanidade redimida” (GS I.3,
1233) e tal imagem obedece sempre às leis da descontinuidade (GS I.3, 1236)
do tempo; isto é, são imagens ou interpretações sobre a histórica que somente
aparecem em determinada época porque são legíveis em determinada época.
Essa estrutura de atualização do tempo, ou seja, a forma de tornar ato aquilo que
é transitivo, aquilo que é-no-tempo, a imagem dialética de Benjamin, tanto
exprime o movimento próprio ao tempo enquanto fenômeno como expressa a
sua interrupção, duas características originais da temporalidade que o conceito de
passado freudiano anuncia. É próprio ao passado inconsciente freudiano o
movimento e a interrupção; quer dizer, passado para Freud significa a
experiência que ganha sentido apenas quando provocada por algum índice de
sua atualidade retrospectivamente, o que interrompe a inércia inconsciente para
fazer saltar à consciência determinado traço mnêmico – ou vestígio da
memória – que antes adormecia escondido no inconsciente. A imagem dialética
funciona precisamente a partir desse tipo de interrupção do tempo no agora da sua
cognoscibilidade (GS V.1, 577-578 [N 3, 1]), quer dizer, no momento que ganha
sentido.

A simultaneidade do passado e presente no agora de sua


cognoscibilidade, não é criada pela passagem contínua do tempo, mas
pela confrontação saltitante (= dialética) sobre os tempos, que arranca os
eventos do contínuo de alterações.
(Wentzer 1998, 328-329)

Há, portanto, certa correspondência ou intimidade entre as formas


conceituais que Freud e Benjamin, pela via proustiana, empregam para a
compreensão da esfera não-intencional própria à experiência. A interminável
plasticidade do passado, da qual falou Max Scheler (Raulet 1992, 116;
Kittsteiner 1986, 191), encontra-se em Benjamin e se orienta pela não-
intencionalidade, pelo caráter involuntário ou inconsciente que, por sua vez,
orienta-se pelo material esquecido (Proust) ou recalcado (Freud) próprio ao
que é passado.

177
revista de teoria da história 2 2020

METAPSICOLOGIA BENJAMINIANA DO CORPO


A não-intencionalidade (GS I.1, 216) – o aspecto inconsciente ou
involuntário da experiência individual e coletiva – é, em Benjamin,
indissociável daquilo que a literatura benjaminiana não cessa de alocar no
centro da discussão sobre a constituição do conhecimento: o “minúsculo e
frágil corpo humano” (GS II.2, 439). A coletividade é como um grande corpo
constituído de pequenos corpos, pois para Benjamin “o coletivo é corporal”
(GS II.1, 310). “Os traços nos escritos de Benjamin sobre o corpo – aparecem
ambos especificamente como corpóreo (Leib) e sob o termo genérico para o
corpo, ou massa (Körper)” (Weigel 1996, 23). Esse corpo (ou massa corporal)
[Körper] é então compreendido por Benjamin como unidade corpo [Leib] e espírito
[Geist], “eles são idênticos, diferenciando-se apenas pelo ponto de vista, não
enquanto objetos” (GS VI, 79)12. Tal como salientado pela crítica cultural de
Benjamin, o corpo é posto à prova, sempre, pelo contato cotidiano ou
convívio com os objetos e o mundo circundante. Dessa relação, a idealização
(construção de ideias) do mundo empírico e também histórico encontra a sua
forma – o que aparecerá nas perscrutações epistêmicas do prefácio à obra
sobre o drama trágico ou barroco alemão, em 1925, e também no aparato
teórico crítico ao trabalho das Passagens, especialmente nos arquivos K e N. A
ideia do corpo que na sua totalidade agremia a potencialidade criativa é, além
disso, também fundamentada por Proust, pelos surrealistas e por Freud, de
modo metapsicológico; fato que já pode ser notado em 1918, quando
Benjamin elabora uma pequena nota sobre a relação entre a espontaneidade, o
livre arbítrio e o corpo. No pequeno fragmento em questão, embora de forma
bastante rudimentar, Benjamin deixa clara a sua preocupação com aquilo que
foge ao alcance do controle da razão, o teor não-intencional das ações
humanas, que emerge do substrato original constituinte do inconsciente, aquilo
que Freud chamará de instintos ou pulsões [Triebe] (SA III, 82), trazendo a
corporeidade e as suas potencialidades para o centro da discussão. Mesmo
sendo difícil afirmar categoricamente que o vocabulário metapsicológico de
Freud seja evocado por Benjamin neste fragmento, o fato do pronome pessoal
“eu” [ich] ser empregado com a primeira letra maiúscula [Ich] é relevante. Da
forma como se encontra no fragmento, como substantivo, o Eu [Ich], com a
primeira letra maiúscula, pode remeter ao vocabulário técnico metapsicológico
de Freud: o Eu ou o Ego. Esse argumento ganha força quando se lembra que,
no mesmo ano de escrita do fragmento em questão, Benjamin frequentou o
seminário do professor Paul Häberlein, em Bern, sobre a doutrina do
inconsciente [Lehre von Unbewußten] de Freud (Cf. GS VI, 674)13 (Weigel 1996,
116). Em outras palavras, Benjamin comentaria em 1918, no fragmento <f

12 A cisão corpo e alma, tradicional esquema da metafísica e da ontologia, tendo no cogito


cartesiano a sua expressão moderna, será radicalmente colocada em questão por Benjamin,
assim como por outros pensadores da virada do séc. XIX para o XX, como Heidegger em Sein
und Zeit. “Se a história consagrada da filosofia, tomando em particular Koyré, via na
geometrização e matematização da physis – na mecanização da natureza – o advento do
moderno; se a visão hegeliana apontava a grande revolução do séc. XVII na descoberta da
consciência de si reflexiva, Benjamin surpreenderá: “o elemento barroco do racionalismo
cartesiano” é a intransponível cisão corpo e alma, de tal forma que é apenas no instante da
morte que “finalmente o corpo se liberta dessa alma”, estando o orgânico mais próximo ao
inorgânico e ao inumano” (Matos 1993, 21). Tal distinção entre Leib e Körper averigua-se já em
Husserl como distinção fenomenológica (Zahavi 2009, 181).
13 Häberlein teve, naquele período, entre os seus temas centrais as relações entre

corporeidade e alma, como bem indica o título da sua obra Leib und Seele, de 1920.

178
revista de teoria da história 2 2020

36> (GS VI, 55), sobre o aparato psíquico freudiano – que a literatura
psicanalítica trata de formalizar em 1915 –, sugerindo possuir certo
conhecimento da metapsicologia.
A ESPONTANEIDADE do Eu é bastante distinta da liberdade do
indivíduo. A questão do livre-arbítrio é sempre erradamente baseada na
espontaneidade, assim é também com a questão sobre a liberdade do ato
de pensamento ou da mera ação corpórea. Tal coisa não existe. O
indivíduo pode ser livre apenas em relação aos atos que foram pensados.
A pergunta sobre a espontaneidade do Eu [ou Ego] pertence a uma
conexão completamente diferente (biológica??). (GS VI, 55).

A sombra que a metapsicologia freudiana produz sobre o trabalho de


Benjamin, da qual fala o professor Gérard Raulet (1992, 116), verifica-se então
a partir desse pequeno esforço filológico. O Eu e a sua espontaneidade própria
– destacados na sua breve reflexão – são colocados em relação possivelmente
biológico-fisiológica com a liberdade, o que, em Freud, funciona como relação
psíquica que se organiza tanto pela biologia (pulsões) quanto pela psicologia
(desejos), confirmando em parte a suspeita de Benjamin. E é relevante a dúvida
sublinhada por Benjamin ao final, em relação aos problemas próprios à
metapsicologia, que diz respeito não só ao conhecimento flagrante de
Benjamin sobre a literatura freudiana, mas do início da ocupação do
pensamento benjaminiano com o cogito cartesiano, cujos princípios básicos – a
saber, a separação do corpo e da alma ou da razão e do irracional – são
artificiais, tal como o são para Freud.
O corpo e o Eu, mesmo que de maneira pouco detalhada, tornam-se
objeto de Benjamin. Esse fragmento de 1918 reitera a tese de que a
metapsicologia não lhe era estranha. A preocupação de Benjamin com o corpo
e as implicações que a criatividade corporal tem para a constituição do
conhecimento em geral não deixarão de persistir nos seus textos. Em uma
variante da teoria mimética de 1933, Benjamin, em 1936, registra em outro
breve fragmento que o corpo [Körper], como unidade entre corpo e espírito, é de
fato o primeiro material no qual a faculdade mimética ou criativa é posta à
prova (GS VI, 127).
Pois toda reatividade da vida é ligada a uma diferenciação, cujo mais
nobre instrumento é o corpo. Esse seu propósito é compreendido como
essencial. O corpo como um instrumento de diferenciação
[Differenzierungsinstrument], a reação vital (...). (GS VI, 81).

O corpo é, pois, um instrumento de diferenciação, deformação ou refração.


Benjamin segue, nestes termos, os passos do Proust epistemólogo, pois sabe
que “o espírito não é um soberano absoluto (...) ele depende do corpo, dos
sentidos e dos outros” (Gagnebin 2006, 558). Tal como Franz Rosenzweig
anuncia em Der Stern der Erlösung (1921), o intelecto possui uma confiabilidade
[Vertrauenswürdigkeit] (2002, 431) nos sentidos, e seria essa confiabilidade ou
potência para se confiar em si mesmo que faria a não-intencionalidade também
emergir, sendo ela uma das origens do conhecimento e da verdade enquanto
revelação da presença das coisas, pois “a verdade é um construto de ideias sem
intenção” (GS I.1, 216), de acordo com Benjamin. A verdade ou como as
coisas se revelam, como ele próprio afirma categoricamente, “é a morte da
intenção” (GS I.1, 216) – intenção dos sentidos e intenção do corpo; isto é, a
verdade se revela apenas pela via da não-intencionalidade.

179
revista de teoria da história 2 2020

Expressados pelo corpo na sua totalidade, todos os sentidos – a partir


do que Agostinho chamou de “concupiscência dos olhos”, resumo da
capacidade “canibalesca” dos sentidos humanos – têm em comum o objetivo
ou a vontade de extinguir o tempo, aproximando os objetos e as coisas,
destruindo o espaço entre ente e ser, fazendo as coisas retornarem ao interior
que não é interior, mas constitui a espacialidade total que o corpo possui junto
aos objetos, às coisas e ao mundo. A absorção do mundo empírico da qual fala
Benjamin (GS I.1, 2012) objetivaria a destruição da materialidade do mundo a
fim de recriá-lo, transubstanciando o mundo pré-concupiscência em um
mundo pós-concupiscência; transformando o mundo material em um mundo
ideal, através da potencialidade criativa e vital do corpo. Reside, portanto, no
corpo – como instrumento de diferenciação do mundo – a capacidade de transformar
o intemporal em temporal, de temporalizar a temporalidade ou de transformar
o inconsciente em consciência, nas palavras de Freud, o que, em Benjamin,
afirma-se naquilo que ele chamou de imagem dialética: imagens sobre a história
que estariam escondidas, mas à espera de serem reveladas através de sua
atualidade.

METAPSICOLOGIA DA INCONSCIÊNCIA HISTÓRICA


OU SOBRE O INCONSCIENTE DO ESQUECIMENTO

Em um comentário ao artigo “Préface à l'éloge des préjugés


populaires”, do médico Pierre Mabille, amigo de André Breton e membro do
círculo surrealista de Paris, publicado na revista Minotaure, “revue artistique et
littéraire”, Benjamin propõe o confronto entre as duas formas que o
inconsciente possuiria, de acordo com Mabille, quais sejam, inconsciente
“visceral” e inconsciente “do esquecimento”.

Confronto entre o ‘inconsciente visceral’ e o ‘inconsciente do


esquecimento’, sendo o primeiro predominantemente individual, e o
segundo predominantemente coletivo. ‘A outra parte do inconsciente é
feita da massa de coisas aprendidas ao longo dos anos ou ao longo da
vida, que foram conscientes e que por difusão entraram no
esquecimento... Vasto fundo submarino onde todas as culturas, todos os
estudos, todas as diligências dos espíritos e das vontades, todas as
revoltas sociais, todas as lutas empreendidas encontram-se reunidas num
recipiente informe... Os elementos passionais da vida dos indivíduos se
retiram, extinguiram-se. Subsistem apenas os dados provenientes do
mundo exterior, mais ou menos transformados e digeridos. É do mundo
externo que é feito esse inconsciente... Nascido da vida social, esse
humus pertence à sociedade. A espécie e o indivíduo contam pouco, as
únicas referências são as raças e o tempo. Esse enorme trabalho
confeccionado na sombra reaparece nos sonhos, nos pensamentos, nas
decisões; sobretudo durante os períodos importantes e das reviravoltas
sociais, ele é o grande fundo comum, reserva dos povos e dos
indivíduos. A revolução e a guerra, como febre, acionam melhor seu
movimento... Estando ultrapassada a psicologia individual, recorramos a
uma espécie de história natural dos ritmos vulcânicos e dos cursos d’água
subterrâneos. Nada há na superfície do globo que não tenha sido
subterrâneo (água, terra, fogo). Não há nada na inteligência que não
tenha sido digerido e que não tenha circulado nas profundezas.’
(GS V.1, 501 [K 4, 2])

180
revista de teoria da história 2 2020

Tudo o que foi esquecido, por difusão, tudo o que era consciente e não
mais o é, “vasto fundo submarino onde todas as culturas, todos os estudos,
todas as diligências dos espíritos e das vontades, todas as revoltas sociais, todas
as lutas empreendidas encontram-se reunidas num recipiente informe”, sem
mais os elementos passionais da vida individual, conformam-se como o
inconsciente do esquecimento [inconscient de l'oubli]. Tudo isso reaparece nos sonhos,
nos pensamentos, nas decisões etc. O inconscient de l'oubli reaparece como uma
“febre”, como “pulsão” nas revoluções e guerras, especialmente; como
catalizador dos “ritmos vulcânicos e dos cursos d’água subterrâneos” da
história, e “nada há na superfície do globo que não tenha sido subterrâneo
(água, terra, fogo). Não há nada na inteligência que não tenha sido digerido e
que não tenha circulado nas profundezas”. Ora, o inconsciente do esquecimento é o
passado oprimido da XVII tese sobre o conceito de história (GS I.2, 702-703). A
metapsicologia, transposta dos limites individuais até os limites da história e do
coletivo (Kleiner 1986, 506, 512), mais uma vez aparece de maneira cifrada,
anunciada discretamente por Benjamin. Passado oprimido, passado recalcado;
inconsciente do esquecimento, inconsciente cultural.
O inconsciente do esquecimento, mencionado apenas uma vez em toda obra
das Passagens, certamente não é um dos conceitos cruciais da obra
benjaminiana, mas auxilia na compreensão do fundamento não-intencional que
a consciência histórica possui. A memória involuntária individual, cuja forma
coletiva é a imagem dialética, constitui o fundamento da consciência histórica ou
de se estar em uma história que permite penetrar sua inconsciência, pois “a
imagem dialética é definida como a memória involuntária que redime a
humanidade” (GS I.1, 1233). Nesse sentido, ao constituir a história de maneira
imperceptível, o inconscient de l'oubli apenas é inteligível por meio da memória
involuntária, ou seja, das estruturas não-intencionais metapsicológicas da
(in)consciência.
O inconscient de l'oubli14, destarte, permite o melhor entendimento da
articulação, na maior parte das vezes tácita, que Benjamin realiza entre a ideia
de inconsciente (freudiana, proustiana, surrealista) e os conceitos de memória
involuntária (proustiana), esquecimento, imagem dialética e toda a
metapsicologia em geral para fundamentar teoricamente a “consciência
histórica” que é também inconsciência. A ideia benjaminiana de inconsciente,
seria, portanto, mais abrangente do que a freudiana, ainda que se corresponda
com as suas exigências, tal como seu caráter escondido e necessariamente
passado.

14 Prefere-se o conceito de inconsciente de esquecimento ao de inconsciente coletivo [kollektive


Unbewußte] para efeito argumentativo. Benjamin, no fragmento [K 6, 1], cita uma passagem de
Seelenprobleme der Gegenwart (1932), de Carl Gustav Jung, na qual o inconsciente coletivo aparece
como manifestação atemporal da história do mundo, em oposição à nossa imagem consciente
momentânea. Mas nada indica a sua simpatia pelo conceito especificamente junguiano. A
indisposição de Benjamin em relação a Jung torna-se clara, no entanto, não por meio desse
fragmento, mas em uma carta enviada à Fritz Lieb, de 09 de julho de 1937, na qual registra a
sua vontade de demonstrar a “armadura fascista” por trás da psicologia junguiana. “Eu tinha
uma crítica da psicologia junguiana, na qual eu havia prometido mostrar-me a sua armadura
fascista. Isso também foi adiado. Passo a trabalhar agora sobre Baudelaire” (GS V.2, 1162).
Portanto, apesar da ideia de “inconsciente coletivo” carregar de modo genérico algo análogo ao
que Benjamin investiga e propõe, opto por um conceito novo, mobilizado pelo trabalho das
passagens de maneira declaradamente articulada com a sua teoria da história.

181
revista de teoria da história 2 2020

BREVE NOTA CONCLUSIVA SOBRE A


FORÇA INCONSCIENTE DO PASSADO
Reconhecer o papel central do tempo passado para a configuração da
experiência humana não se caracteriza necessariamente como um gesto político
reacionário ou conservador. Ao contrário, do ponto de vista fenomenológico e
sobretudo metafísico, esse reconhecimento da função essencial do fenômeno
passado para a devida constituição das experiências individuais e coletivas
apenas ressalta de modo ontológico que não há existência ex nihilo15 – síntese
do antigo princípio lógico que afirma que nada advém do nada. Isto é, apesar da
história da ideia de tempo organizar três modalidades temporais essenciais – o
passado, o presente e o futuro –, não deve restar dúvidas quanto à
característica especial do modus temporal passado como o tempo elementar e
questão principal para qualquer exame sobre a temporalidade; pois se tempo é
basicamente um dos nomes dados ao fenômeno da transitoriedade dos estados
gerais da realidade, quer dizer, o fenômeno da passagem, pode-se afirmar que há
tempo ou que o tempo passa somente e na medida que há passado.
Não é um acaso que o derradeiro texto de Benjamin se dedique
precisamente à ideia de história e enfatize o tempo passado como fundamento
da existência – particularmente na tese II. No texto “Sobre o conceito de
história”, Benjamin reafirma suas conclusões sobre a metapsicologia da
experiência do tempo, e solicita ao pensamento histórico que se volte para o
passado em busca dos momentos precisos quando a força existencial – ou
messiânica, nas palavras dele – inconsciente do passado reclama sua
atualização, isto é, tornar-se ato ou objeto de compreensão e elaboração. Trata-se
não de momentos especiais, mas da própria atividade corriqueira da
(in)consciência, do pensamento, cujo elemento existencial fundamental é o
tempo passado e suas variadas manifestações veladas – escondidas de si
mesmo –, as quais nem por isso deixam de exercer sua força sobre a realidade;
ao contrário, por se manter esquecida, certa memória renova a cada momento
o seu poder inconsciente sobre nós. Para Benjamin, portanto, mais do que expor e
explicar a força inconsciente do passado, caberia ao historiador desafiar e questionar
os porquês de sua forma, pois somente assim se tornaria realmente possível
compreendê-la de um ponto de vista teórico sobre a história.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter; TIEDEMANN, Rolf; SCHWEPPENHAUSER, Hermann.


Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. (GS)
BENJAMIN, Walter; GÖDDE, Christoph; LONITZ, Henri. Gesammelte Briefe.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000. (GB)
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo.
Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Editora
Brasiliense, 2004.
BERGSON, Henri. Matière et mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Paris: PUF,
1990 [1896].
BRETON, André. Manifestes du Surréalisme. Paris: Folio, 1985.

15Parafraseio aqui as palavras Michel Maffesoli em entrevista ao professor Rodrigo Coppe,


no suplemento Estado da Arte (2020).

182
revista de teoria da história 2 2020

DE CARVALHO, Augusto. O papel da tradição na construção do mundo histórico.


Revista Antíteses, v. 12, p. 487-509, 2019a.
DE CARVALHO, Augusto. Sobre o conceito de passado em Walter Benjamin. In: DE
CARVALHO, Augusto; BENTIVOGLIO, Julio. (Org.). Walter Benjamin: testemunho e
melancolia. Serra: Milfontes, 2019b.
DERRIDA, Jacques. La voix et le phénomène. Introduction au problème du signe dans la
phénoménologie de Husserl. Paris : PUF, 1967.
FÈVE, Annaïk. “L’aprés-coup de la mémoire”. In: Revue Française de Psychanalyse LXX
[3]. Paris : PUF, 2006.
FREUD, Sigmund. Gesammelte Werke. London: Imago, 1941. (GW)
FREUD, Sigmund. Studienausgabe. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1975. (SA)
FÜRNKÄS, Josef. Surrealismus als Erkenntnis: Walter Benjamin – Weimarer Einbahnstraße
und Pariser Passagen. Stuttgart: JB Metzler, 1988.
GADAMER, Hans-Georg. Le problème de la conscience historique. Louvain: Publications
Universitaires de Louvain, 1963.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “Entre sonho e vigília: quem sou eu?”. In: PROUST,
Marcel. No caminho de Swann – Em busca do tempo perdido. São Paulo: Globo, 2006.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São
Paulo: Editora 34, 2014.
GAGNEBIN, Jenne-Marie. RESENHA: Nadine Werner. Archäologie des Erinnerns.
Sigmund Freud in Walter Benjamins ‘Berliner Kindheit’. Revista Limiar 3[6], 2016.
GAY, Peter. Freud. Uma vida para nosso tempo. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
KITTSTEINER, Heinz D. Walter Benjamin’s Historicism. New German Critique 39 [2],
1986.
KLEINER, Barbara. L’éveil comme catégorie centrale de l’experiénce historique dans
le Passagen-Werk de Benjamin. In: WISMANN, Heinz (Dir.). Walter Benjamin et
Paris, Colloque international. Paris: Les Éditions du Cerf, 1986.
KLÜNERS, Martin. Geschichtsphilosophie und Psychoanalyse. Göttingen: V&Runipress,
2013.
LACAN, Jacques. Le Séminaire – livre XI – Les quatre concepts fondamentaux de la
psychanalyse. Paris : Seuil, 1973.
LÖWY, Michael; BRANT, W. N. C. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das
teses 'Sobre o conceito de história'. São Paulo: Boitempo, 2005.
MATOS, Olgaria C. F. O iluminismo visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant. São
Paulo: Brasiliense, 1993.
MAFFESOLI, Michel.; COPPE, Rodrigo. O Estado da Arte. O Estado de São Paulo, 7 de
julho de 2020. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/entrevista-
maffesoli-ea-coppe/
MOSÈS, Stéphane. L’Ange de l’Histoire. Paris: Éditions Gallimard, 2006.
OTTE, Georg. ‘Dizem-me que sou louco’: as epistemologias poéticas de Baudelaire e
Benjamin. Alea [online] 9[2], 2007.
PROUST, Marcel. Du côté de chez Swann. Paris: Éditions Gallimard, 1988.
RANKE, Leopold von. “Historisch-politische Zeitschrift” (band 1). In: Sämmtliche
Werke. Leipzig: Verlag von Duncker & Humblot, 1867.
RAULET, Gérard. Benjamin Historismus-Kritik. In: STEINER, Uwe (Hrg.). Walter
Benjamin (1892-1940) zum 100. Geburtstag. Bern; Berlin; Frankfurt a. M.; New York;
Paris; Wien: Peter Lang, 1992.
RAULET, Gérard. Chockerlebnis, mémoire involontaire und Allegorie. Zu Benjamins
Revision seiner Massenästhetik in ‘Über einige Motive bei Baudelaire’. Zeitschrift für
Kritische Theorie 2, 1996.

183
revista de teoria da história 2 2020

ROSENZWEIG, Franz. Der Stern der Erlösung. Freiburg im Breisgau:


Universitätsbibliothek, 2002.
ROUANET, Sergio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981.
RÜSEN, Jörn. Teoria da História. Uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora
UFPR, 2015.
SARLO, Beatriz. Tempo Passado. Cultura da Memória. Belo Horizonte: Cia das Letras e
Editora UFMG, 2007.
SCHLOSSMAN, Beryl. Benjamin’s Über Einige Motive bei Baudelaire: The Secret
Architecture of Correspondances. MLN (German Issue) 107[3], 1992.
SCHMIDER, Christine; WERNER, Michael. Das Baudelaire-Buch. In: LINDNER,
Burkhardt. Benjamin Handbuch: Leben-Werke-Wirkung. Stuttgart; Weimar: J. B.
Metzler, 2011.
VETÖ, Miklos. Le passé selon Bergson. Archives de Philosophie 68[1], 2005.
WEIGEL, Sigrid. Body-and Image-Space: Re-reading Walter Benjamin. London and New
York: Routledge, 1996.
WENTZER, Thomas. Bewahrung der Geschichte. Die hermeneutische Philosophie Walter
Benjamins. Bodenheim: Philo Verlagsgesellschaft, 1998.
WERNER, Nadine. Archäologie des Erinnerns. Sigmund Freud in Walter Benjamins Berliner
Kindheit. Göttingen: Wallstein, 2015.
WIEGMANN, Jutta. Psychoanalytische Geschichtstheorie : eine Studie zur Freud-Rezeption
Walter Benjamins. Bonn: Bouvier, 1989.
ZAHAVI, Dan. Phenomenology of Consciousness. In: BANKS, William (Ed.).
Encyclopedie of Consciousness. Amsterdam; Boston; Heidelberg; London; New York;
Oxford; Paris; San Diego; San Francisco; Singapore; Sydney; Tokyo: Elsevier;
Academic Press, 2009.

METAPSICOLOGIA SOBRE A FORÇA INCONSCIENTE DO PASSADO


ARTIGO SUBMETIDO EM 31/08/2020 • ACEITO EM 05/12/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65368
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

184
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

MICHEL DE CERTEAU
E A PSICANÁLISE
AS ESTRATÉGIAS DO
TEMPO E AS FRONTEIRAS
DA HISTÓRIA COM A
LITERATURA
ROBSON FREITAS DE MIRANDA JUNIOR
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte | Minas Gerais | Brasil
rfm.juninho@gmail.com
orcid.org/0000-0003-0870-1146

O objetivo desse artigo é analisar alguns dos trabalhos de


Michel de Certeau reunidos na coletânea intitulada
“História e psicanálise: entre ciência e ficção”.
Principalmente os textos: “Psicanálise e história” e “O
‘romance’ psicanalítico: história e literatura”. Pretendemos
evidenciar que, em suas reflexões sobre a história e o fazer
historiográfico, Certeau se valeu intensamente da teoria e
da escrita freudianas, uma vez que, nelas, o historiador
encontrou tanto a possibilidade de pensar novas
temporalidades que caracterizariam o discurso histórico,
quanto uma teoria da narratividade, que seria fundamental
para entender o próprio estatuto da escrita da história.

Certeau – psicanálise – história

185
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

MICHEL DE CERTEAU
AND PSYCHOANALYSIS
STRATEGIES OF TIME AND
THE BORDERS BETWEEN
HISTORY AND
LITERATURE
ROBSON FREITAS DE MIRANDA JUNIOR
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte | Minas Gerais | Brazil
rfm.juninho@gmail.com
orcid.org/0000-0003-0870-1146

The purpose of this article is to analyze some of Michel de


Certeau’s texts gathered in the collection entitled “History
and psychoanalysis: between science and fiction”; specially:
“Psychoanalysis and history” and “The psychoanalytic
‘novel’: history and literature”. We intend to demonstrate
that, in his reflections on history and historiographical
practice, Certeau had an intense use of Freudian theory and
writing, since, in them, the historian found both the
possibility of thinking about new temporalities that would
characterize the historical discourse, as well as a theory of
narrativity, which would be fundamental to understand the
very status of writing of history.

Certeau – Psychoanalysis – history

186
revista de teoria da história 2 2020

Michel de Certeau foi um assíduo leitor de Freud e encontrou no


psicanalista, sobretudo em suas incursões no terreno da história, contribuições
para problematizar seu próprio ofício. Os deslocamentos que Freud teria
realizado no campo da história serviram de base para que Certeau pudesse
questionar o lugar da historiografia, sua institucionalização e seu estatuto como
saber científico. Além disso, a prática de escrita de Freud instigou o intelectual
francês a pensar sobre os procedimentos que caracterizam a escrita do
historiador, as operações e táticas que ele empreende no seu exercício (bem
como as dissimulações, os ocultamentos e seus não-ditos). Por fim, como
procuramos demonstrar, a escrita freudiana serviu de referência para Certeau
questionar a natureza do discurso historiográfico. O romance freudiano
evidenciava a penetração da ficção e da lenda no enunciado científico,
borrando e complexificando suas fronteiras, levando-o a conceber a ideia de
uma “ficção teórica”, da qual ele se valeu para caracterizar a própria retórica.
Freud foi, portanto, uma referência teórica fundamental para Certeau e
as interfaces que o historiador estabeleceu com sua obra possuem
desdobramentos importantes para a teoria da história. Antes de nos
aprofundamos em alguns desses estudos, devemos retomar, ainda que
brevemente, um ponto importante sobre a obra de Freud, a respeito à sua
relação com a história.

FREUD E O SABER HISTÓRICO


Uma questão importante que, implícita ou explicitamente, abordamos
em nosso trabalho está relacionada à busca pela pertinência e implicações da
teoria psicanalítica para a história1. A essa discussão epistemológica ainda está
ligada um outro importante questionamento: por que recorrer à teoria
psicanalítica e o que explicaria a fluidez de muitos de seus conceitos para
campos, aparentemente, distintos do seu? O próprio Michel de Certeau, atento
aos perigos de tal procedimento, levanta uma problematização análoga:
Ao estender pontos de vista teóricos para fora do campo em que eles
haviam sido elaborados e permanecem submetidos a uma verificação,
não será que se passa, de acordo com a observação de Canguilhem
(1977), das ‘teorias’ científicas para as ‘ideologias’ científicas? Esse caso é
frequente. O próprio Freud hesitava, às vezes, em relação ao estatuto de
suas pesquisas sócio-históricas e, no final de sua vida, ele declarava, com
ironia, escrevê-las enquanto fumava cachimbo, à maneira de passatempo
(Certeau 2012, 77).

Mesmo destacando a ironia com que o psicanalista vienense tratava


seus “estudos sócio-históricos”, Certeau nota que esse tipo de
empreendimento exerceu grande influência na trajetória intelectual do autor.
Para ele, Freud, na elaboração desses trabalhos, “traçava, assim, a fratura de
uma ambiguidade sobre seus quadros analíticos” (Certeau 2012, 78) e completa
dizendo que “compete à posteridade, enfrentar o respectivo desafio teórico”
(Certeau 2012, 78). Desafio que, em certo sentido, o próprio historiador se
propõe a enfrentar.

1 Essa é uma questão complexa e muito ampla, conforme indica José D’Assunção Barros

em seu artigo “História e saberes psi – considerações interdisciplinares” (Barros 2011) e, portanto,
escapa aos limites de nossa pesquisa. Nesse trabalho temos procurado compreender os
contornos que essa discussão assumiu no trabalho específico de Certeau.

187
revista de teoria da história 2 2020

Certeau destacou que há, na teoria freudiana, uma espécie de


proclamação de vitória em relação à exposição de outros campos de
conhecimento à reflexão psicanalítica. As invasões da psicanálise sobre outros
saberes são, para Freud, bem sucedidas. O historiador acrescenta que
três domínios (“a mitologia, a história da literatura e a das religiões”)
ocupam nas reuniões da quarta-feira, à noite, na casa de Freud (a partir
de 1902) e, em seguida, da “Sociedade Psicanalítica de Viena” (fundada
em 1908). No início, Rank (secretário do grupo), Adler, Federn, Sachs,
Schilder, Steiner e ainda outros – assim como, mais tarde, Reik, Tausk e
Lou Andreas Salomé – abordavam o incesto, o símbolo, os mitos,
Wagner, Nietzsche, etc. Em breve, essas “aplicações” da psicanálise
fazem objeto de discussões mais amplas ou de correspondências com
Abraham (Berlim), Ferenczi (Budapeste), Groddeck (Baden-Baden),
Jung (Zurique), Jones (Londres), Putnam (Boston), etc. Enquanto
narrativas, essas análises levam o estudo de “caso” para a biografia até o
“retrato psicológico do presidente Wilson, trabalho tardio e bicéfalo de
Freud e W.C. Bullit (Certeau 2012, 79).

Nesse sentido, a criação da Associação Psicanalítica Internacional, em 1910,


também teria contribuído para que as pesquisas cujo objetivo fosse aplicar a
psicanálise à ciência da linguagem e à história se desenvolvessem, se
diferenciassem e se confrontassem cada vez mais (Certeau 2012, 79).
Em um texto publicado em 1913, intitulado O interesse da psicanálise,
Freud abordou, dentre outras coisas, a relação que a teoria psicanalítica
mantinha com outras ciências “não psicológicas”. Ao abordar as implicações
de seus conceitos para o campo da “história da civilização” ele entendia que “a
comparação da infância do indivíduo com a história primitiva dos povos já se
mostrou fecunda em várias direções, embora esse trabalho mal tenha
começado. Nisso, o modo de pensar psicanalítico age como um instrumento de
pesquisa” (Freud 2012, 355, grifos nossos).
Freud parecia estar sugerindo que a psicanálise se converta numa
espécie de instrumental teórico para outros saberes, uma vez que a
transposição de seus pontos de vista, premissas e conhecimentos “capacitou a
psicanálise a lançar luz sobre as origens de nossas grandes instituições culturais
– da religião, da moralidade, do direito, da filosofia” (Freud 2012, 356). Não se
trata de uma redução de todos os acontecimentos da dimensão política,
econômica ou social à análise psicanalítica, pois não era o que o próprio Freud
propunha2. Contudo, nos parece evidente que a noção de instrumentalidade da
psicanálise, proposta por Freud, soa como uma espécie de submissão desses
outros saberes à sua teoria.
Um dos aspectos mais importantes para entender a interdiscursividade
da teoria freudiana talvez seja o papel da noção de desejo3. É o enraizamento
do funcionamento do indivíduo a partir desse conceito que permite o
psicanalista transpor suas categorias para outros campos de saber. Isso ocorre

2 A pertinência de se valer de categorias como “elaboração”, “Complexo de Édipo”, “Eu”,

“Super-eu” e “Isso”, ou de noções como a do “princípio de prazer” para compreender


fenômenos de ordem histórica é de fato questionável, como o próprio Certeau analisa (v.
Certeau 2011, 308). Esse tipo de crítica também está presente em no artigo de Joan Scott
(Scott 2012).
3 Laplanche entende que na concepção dinâmica freudiana, o desejo corresponde a um dos

polos do conflito defensivo, isto é, “o desejo inconsciente tende a realizar-se restabelecendo,


segundo as leis do processo primário, os sinais ligados às primeiras vivências de satisfação. A
psicanálise mostrou, no modelo do sonho, como o desejo se encontra nos sintomas sob a
forma de compromisso” (Laplanche 2001, 113).

188
revista de teoria da história 2 2020

porque haveria uma correlação profunda entre o desejo que move o sujeito e o
surgimento das instituições sociais. Para Freud
a psicanálise estabelece uma íntima relação entre todas essas realizações
psíquicas dos indivíduos e das comunidades, ao postular a mesma fonte
dinâmica para ambos. [...]. Toda a história da civilização é um relato dos
caminhos que os seres humanos tomaram para “vincular” seus desejos
não satisfeitos, sob as condições cambiantes – e modificadas pelo avanço
técnico – de concessão e frustração deles por parte da realidade.
(Freud 2012, 357).

Dessa forma – de acordo com a perspectiva freudiana – a sociedade, ao


estabelecer a primazia do desejo, é dotada de uma dimensão afetiva e passa a
ser diretamente responsável pela produção das neuroses. Como destaca Freud,
a psicanálise evidenciou “amplamente o papel que as condições e exigências
sociais têm na causação das neuroses. As forças que promovem a restrição e
repressão dos instintos por parte do Eu se originam essencialmente da
docilidade ante as exigências da civilização” (Freud 2012, 360).
Não podemos deixar de notar que toda essa abrangência analítica
possibilitada, em teoria, pela psicanálise, se apresenta também como um
aspecto possível de sua fragilidade. Ao se propor estender seus pontos de vista
para outros campos, ela corre o risco de se tornar uma espécie de “ideologia
científica”, como destaca Certeau (Certeau 2012, 77). Contudo, as relações de
Freud com o saber histórico não se limitam a esses aspectos, pois se estendem
também para a própria noção de inconsciente concebida por ele.
No texto de 1913, Freud elaborava uma nova conceitualização de
passado na qual a psicanálise se habilitava a decifrar a gênese de grandes
instituições culturais como a religião, o direito ou a filosofia. Ou seja, a origem
de um passado propriamente histórico, composto pelos mitos e as lendas que
as sociedades constroem. Em 1915, ao escrever O inconsciente (Freud 2010), ele
demonstra que seu interesse pela história também se inscrevia em sua teoria do
inconsciente, em virtude da carga histórica que a remissão ao passado infantil
terá para o sujeito.
O psicanalista Jean Laplanche entende que, se fosse preciso concentrar
numa palavra a descoberta freudiana, ela seria incontestavelmente a palavra
inconsciente (Laplanche 2001, 236). Em O Eu e o id (1923), Freud afirma que a
diferenciação do psíquico em inconsciente e consciente é a premissa básica da
psicanálise “e o que lhe permite compreender e inscrever na ciência os
processos patológicos da vida psíquica, tão frequentes e importantes” (Freud
2011, 15). Dessa forma, ele sustenta que a psicanálise não resume a essência do
psíquico à consciência, mas é obrigada a concebê-la como uma de suas
qualidades.

189
revista de teoria da história 2 2020

O inconsciente freudiano é, em primeiro lugar, uma noção tópica e


dinâmica4 que surgiu da experiência do tratamento – conforme o psicanalista
evidencia no artigo intitulado O inconsciente de 1915 (Freud 2010, p 118-126).
Freud teria mostrado que o psiquismo não é redutível ao consciente (como
indicamos acima) e que determinados conteúdos só se tornariam acessíveis à
consciência depois da superação de algumas resistências5. Freud teria
percebido, portanto, que a vida psíquica era repleta de elementos, mesmo que
inconscientes, dos quais emanariam os sintomas (Freud 2010, 134-5). Sendo
assim, o inconsciente deve ser compreendido como uma instância psíquica, um
sistema que possui conteúdos, mecanismos e uma energia específica.
Outro aspecto importante presente nessas investigações destaca
Laplanche, é o que Freud denomina de “representantes da pulsão” em O
inconsciente. Ele entende que a pulsão – na fronteira do somático e do psíquico –
“está aquém da oposição entre consciente e inconsciente; por um lado, nunca
se pode tornar objeto da consciência e, por outro, só está presente no
inconsciente pelos seus representantes, essencialmente o ‘representante-
representação’” (Laplanche 2001, 236). Esse binômio está relacionado à
representação ou grupo de representações em que a pulsão se fixa no decurso
da história do sujeito e por meio da qual se inscreve em seu psiquismo. Dessa
forma, de acordo com um dos primeiros modelos teóricos freudianos, o
aparelho psíquico é definido como sucessão de inscrições de sinais. As
representações inconscientes são, assim, dispostas em fantasias, histórias
imaginárias em que a pulsão se fixa e que podemos conceber como verdadeiras
encenações do desejo (Laplanche 2001, 236).
Por fim, é importante destacarmos outro elemento essencial para a
compreensão da teoria freudiana do inconsciente, relacionado ao que já foi
apresentado. O psicanalista afirma que todo o conceito de inconsciente foi
adquirido a partir da teoria da repressão. Para ele, portanto, o reprimido é “o
protótipo do inconsciente” (Freud 2011, 17). E, de acordo com Freud, a
psicanálise ensina que a “essência do processo de repressão não consiste em
eliminar, anular a ideia que representa o instinto, mas em impedir que ela se
torne consciente” (Freud 2010, 100). Contudo, por mais que todo o material
reprimido permaneça inconsciente, ele não é tudo o que constitui o
inconsciente. Esta instância tem um âmbito maior: o reprimido é uma parte
(essencial) do inconsciente.

4 Esses dois termos assumem, em Freud, um sentido peculiar. Laplanche define tópica como
sendo a “teoria ou ponto de vista que supõe uma diferenciação do aparelho psíquico em certo
número de sistemas dotados de características ou funções diferentes e dispostos numa certa
ordem uns em relação aos outros, o que permite considerá-los metaforicamente como lugares
psíquicos de que podemos fornecer uma representação figurada espacialmente” (Laplanche
2001, 505). Podemos falar, portanto, em duas tópicas freudianas, sendo a primeira aquela em
que a distinção principal é feita entre Inconsciente, Pré-consciente e Consciente, e a segunda a
que distingue três instâncias: o isso, o eu e o super-eu (Freud 2010). Laplanche ainda define
dinâmica como a “qualificação de um ponto de vista que considera os fenômenos psíquicos
como resultantes do conflito e da composição de forças que exercem uma certa pressão, sendo
essas forças, em última análise, de origem pulsional” (Laplanche 2001, 119).
5 É fundamental destacarmos aqui que a noção freudiana do “inconsciente” é

profundamente complexa, repleta de nuances e, de forma alguma, estanque no próprio


pensamento de Freud, que a teria desenvolvido ao longo de sua produção. Para Laplanche, o
inconsciente é instância psíquica descoberta por Freud que designa a existência de um outro
campo que não só o da consciência, na qual ficam depositados conteúdos que, nada mais são
que representantes da pulsão e que por estarem sob ação do recalque, não chegam à
consciência, a não ser via sonho, chiste, ato falho (Laplanche 2001, p 235-238). Para um maior
aprofundamento no estudo desse conceito, cf. (Freud 2010; 2011).

190
revista de teoria da história 2 2020

Nesse ponto Freud se questiona sobre a forma pela qual podemos


acessar os conteúdos do inconsciente. Pergunta fundamental. Segundo ele, o
que conhecemos enquanto consciente é aquilo que experimentou uma
transposição ou tradução para esta instância. Sendo assim, destaca, o trabalho
analítico torna evidente que essa tradução é possível. E acrescenta que “isso
requer que o analisando supere determinadas resistências, as mesmas que
outrora, rejeitando-o do consciente, transformaram um dado material em
reprimido (Freud 2010, 101)”.
E assim chegamos a um importante aspecto das contribuições de
Freud. Ao estabelecer a dimensão histórica6 de um psiquismo onde o presente se
interroga acerca de si mesmo elucidando o sentido do passado, o psicanalista
desbaratava o tempo evolucionista que partia do passado para dar sentido ao
presente7. A noção de inconsciente teria habilitado Freud a pensar sobre as
relações temporais de uma forma dinâmica e complexa. O passado estaria
sempre expresso no presente, fazendo suas aparições através das repetições,
dos atos falhos, dos chistes, etc. O passado seria quase onipresente. Contudo, e
esse é um ponto central, sua presença no presente se daria a despeito dos
esforços do sujeito em controlá-lo. Sua voz é ouvida apesar das estratégias
empreendidas, pelas resistências do sujeito, para silenciá-lo.
E é a partir desse ponto que Michel de Certeau continua seus diálogos
com a teoria psicanalítica.

HISTÓRIA, PSICANÁLISE E AS ESTRATÉGIAS DA TEMPORALIDADE


Em seu texto Psicanálise e história8, Certeau argumenta que a psicanálise
se articularia a partir de um processo que seria o núcleo da descoberta
freudiana: o retorno do recalcado. Este retorno mobiliza um conceito de
tempo e memória em que a consciência atua tanto como máscara ilusória,
quanto como vestígio de acontecimentos que organizam o presente. Se o
passado é recalcado, ele retorna, sub-repticiamente, ao presente do qual havia
sido excluído. Certeau retoma um exemplo mobilizado por Freud para
esclarecer esse “desvio-retorno”, que seria a astúcia da história: “depois de ter
sido assassinado, o pai de Hamlet retorna, mas como fantasma, em outra cena,
e é, então que ele se torna a lei à qual o filho obedece” (Certeau 2012, 71).
Dessa forma, haveria uma inquietante familiaridade desse passado que um
ocupante atual rechaçou (ou acreditou ter rechaçado) para poder apropriar-se
de seu lugar. “O morto assombra o vivo, ele ‘re-morde’ (mordida secreta e
repetida)” (Certeau 2012, 71). A história seria, portanto, canibal e a memória se
tornaria a instância em que se oporiam duas operações distintas.
Primeiramente, o esquecimento, que não seria uma passividade ou uma perda,
mas uma ação contra o passado. Em segundo lugar, o vestígio mnésico, que
representaria o retorno do esquecido, isto é, uma ação do passado forçado ao
disfarce. Nesse sentido, Certeau entende que:

6 A expressão histórica (historisch) possui um sentido peculiar para Freud. Esse termo foi

discutido no tópico 3.4. A ficção da história e a escrita de “Moisés e o monoteísmo”.


7 Seria correto pontuarmos que o inconsciente possui um certo caráter de atemporalidade.

Contudo, essa atemporalidade estaria relacionada ao fato de que nele as fronteiras entre
passado e presente estão borradas, pois não são facilmente distinguidas (e, talvez, nem
existam). Presente e passado coexistem no inconsciente. Estão imbricados um no outro.
8 Este texto foi publicado pela primeira vez em 1978, em uma obra organizada por alguns

historiadores, dentre eles Jacques Le Goff, cuja proposta era discutir, em um volume coletivo,
as transformações da disciplina histórica. “Psychanalyse et histoire” (LE GOFF 1978, 477-487).

191
revista de teoria da história 2 2020

De maneira mais geral, qualquer ordem autônoma constitui-se graças ao


que ela elimina, produzindo um “resto” condenado ao esquecimento; no
entanto, o excluído insinua-se, de novo, neste lugar “limpo” [“propre”],
instala-se aí, suscita a inquietação, torna ilusória a consciência segundo a
qual o presente julga estar em “sua casa”, fixa ai seu esconderijo; e esse
“selvagem’, esse “ob-sceno”, esse “lixo”, essa “resistência” da
“superstição” vai inscrever aí – à revelia do proprietário (o ego) ou contra
ele – a lei do outro. (Certeau 2012, 72).

Contudo, o historiador constata que a historiografia procura se


desenvolver em função de um corte entre o passado e o presente. Isso ocorre
porque ela seria o resultado das relações de saber entre dois lugares
supostamente distintos: o lugar presente (científico, profissional, social) do
“trabalho, o aparato técnico e conceitual da pesquisa e da interpretação, a
operação de descrever e/ou de explicar”; e os lugares (museus, arquivos,
bibliotecas) em que são “guardados, inertes, os materiais que são objetos da
pesquisa e – em um segundo momento, deslocados no tempo – os sistemas ou
acontecimentos do passado, cuja análise é permitida por intermédio desses
materiais” (Certeau 2012, 72). Nesse sentido, haveria uma fronteira separando
a instituição atual – que fabrica as representações – das regiões antigas ou
longínquas, encenadas pelas representações historiográficas.
É importante notarmos que – mesmo que a historiografia procure
postular uma continuidade (genealogia), uma solidariedade (filiação), ou
mesmo uma conivência entre seus operadores e seus objetos – ela postula uma
diferença entre eles, que, segundo Certeau, evidencia sua vontade de
objetividade. A historiografia cria, assim, um espaço organizado por ela que é,
“ao mesmo tempo, dividido e hierarquizado, comportando um ‘próprio’ (o
presente de uma prática) e um ‘outro’ (o passado estudado)” (Certeau 2012,
72). Sendo assim, a fronteira entre esse próprio e seu outro atravessa tanto a
prática que busca a distinção entre o aparato da pesquisa e o material por ela
tratado, quanto à “encenação escriturária” na qual o discurso do saber domina
o passado representado, citado e conhecido.
Certeau constata então que, a princípio, a psicanálise e a historiografia
possuem duas formas distintas de distribuir esse espaço da memória, isto é, elas
pensariam de forma diferente as relações entre o passado e o presente. A
historiografia pensaria essa relação sob os modos de sucessividade (um depois
do outro), correlação (maior ou menor grau de proximidade), efeito (um segue
o outro) e disjunção (um ou outro, mas não os dois ao mesmo tempo). Para o
saber histórico, o passado estaria, portanto, ao lado do presente.
Por sua vez, a psicanálise reconhece o passado dentro do presente, ou
seja, concebe esta relação a partir do “modelo da imbricação (um no lugar do
outro), da repetição (um reproduz o outro sob uma forma diferente), do
equívoco e do quiproquó (o que está no lugar de quê? Há por toda parte jogos
de máscaras, de reviravolta e de ambiguidade)” (Certeau 2012, 73). Na teoria
psicanalítica, a organização do atual traz consigo, mascaradas e camufladas, as
configurações anteriores. Nela o passado retorna ao presente do qual havia
sido excluído, por isso um está no outro.
Conforme Certeau salienta, inicialmente, verifica-se um confronto entre
essas duas formas de perceber e conceber a temporalidade. Por outro lado, ele
destaca que elas se desenvolvem em um terreno em que as questões não
deixam de ser análogas, pois procuram:

192
revista de teoria da história 2 2020

princípios e critérios em nome dos quais seja possível compreender as


diferenças ou garantir continuidades entre a organização do atual e as
antigas configurações; conferir valor explicativo ao passado e/ ou tornar
o presente capaz de explicar o passado; reconduzir as representações de
outrora ou atuais a suas condições de produção; elaborar (de onde? de
que modo?) as maneiras de pensar e, portanto, de superar a violência (os
conflitos e os acasos da história), incluindo a violência que se articula no
próprio pensamento; definir e constituir a narrativa que é, nas duas
disciplinas, a forma privilegiada conferida ao discurso da elucidação.
(Certeau 2012, 73).

Diante destes aspectos, é interessante notarmos a importância atribuída


por Certeau ao privilégio dado, pelas duas doutrinas, à narrativa dentro do
discurso da elucidação. As duas estratégias do tempo que ele havia diferenciado
se encontrariam, portanto, na construção do discurso narrativo9 no qual se
estruturam, se organizam e se esclarecem. São nesse sentido que, para o autor,
os cruzamentos e debates entre as duas estratégias apontariam para as
possibilidades e limites da renovação que o encontro entre história e psicanálise
oferece à historiografia.
François Dosse, em A história à prova do tempo, critica essa distinção
apontada por Certeau. Desde que as discussões sobre a memória ganharam
espaço na historiografia10 seria impróprio sustentar a distinção entre as duas
estratégias de temporalidade, tal como concebida por Certeau. Segundo o
autor,
nesse novo espaço memorativo comum ao psicanalista e ao historiador, a
imbricação entre passado e presente é semelhante e, em vez de opor as
duas abordagens, tece-lhes um horizonte comum, o do vestígio do
passado em sua eficácia e da máscara deste em sua capacidade de velar.
(Dosse 2001, 282).

Haveria para ele uma aproximação entre os dois campos, tanto no


âmbito dos materiais utilizados quanto no dos métodos.
Contudo, entendemos que a distinção proposta por Certeau é
concebida de forma crítica por ele mesmo. Ao apontar para as diferentes
estratégias de temporalidade nas duas disciplinas, o historiador não está
endossando-a de forma acrítica, nem a entendendo como um postulado teórico
insuperável pela reflexão historiográfica. A própria forma como Certeau
concebe as relações entre passado e presente guarda relações com a
temporalidade da psicanálise (fruto, talvez, dos cruzamentos e debates
realizados por ele).
Em História e estrutura,11 Certeau afirma que

9 Contudo, um limite dessa “analogia” apresentada aqui por Certeau deve ser ressaltada.

Em primeiro lugar, não está claro a que “narrativa” Certeau se refere, uma vez que mobiliza
esse termo para pensar dois campos de saber distintos. Poderíamos entendê-la como o
exercício operado pelo sujeito no interior da clínica analítica, ou como a “prática de escrita”
empreendida pela disciplina. Em segundo lugar, deve ser questionada a associação imediata
entre a suposta proximidade, caso seja esse o sentido empregado por Certeau, da narrativa no
contexto da prática terapêutica e da narrativa construída pelo historiador. Essa discussão, por
ser ampla e complexa, escapa aos propósitos de nosso trabalho.
10 Um bom exemplo desse tipo de pesquisa e discussão é a obra de Jacques Le Goff,

História e Memória, de 1977 (Le Goff 2013).


11 Originalmente publicado em 1970, sob o título Histoire et structure.

193
revista de teoria da história 2 2020

na experiência histórica ocorre algo de fascinante e, também, de


inquietador: homens do passado saem de sua noite, sem que seja
verdadeiramente possível designá-los. [...] Esses homens opacos
escondem-se à medida que vou à sua procura; eles desestabilizam a
convicção interna e primeira que criava uma espécie de reflexo imediato,
consistindo em acreditar que o passado é descontinuidade de superfície,
respaldada em uma continuidade de fundo. (Certeau 2012, 166).

Nesse sentido, o historiador “faz história” tanto enquanto produz


textos historiográficos quanto no momento em que tem acesso – por seu
trabalho – à consciência de que algo se passou, atualmente morto, portanto,
inacessível como vivo. Contudo, a operação do historiador parte de um certo
número de peças que “fazem parte de sua atualidade; e seu trabalho constitui
um ‘passado’ na medida em que há passado exatamente no lugar em que se encontra,
sob diversas formas, a resistência do que já não existe” (Certeau 2012, 167,
grifos nossos). O trabalho histórico estaria relacionado, portanto, à tarefa de
“fazer aparecer” (fabricar) a alteridade desse morto que se encontraria no
mundo dos vivos. Dessa forma, a esse exercício corresponderia à atividade de
relativizar o presente em relação a um passado.
Ao perceber as imbricações do passado no presente, Certeau não nega
a diferença constituinte entre eles, pelo contrário, concebe o passado como
alteridade do presente. O passado, de certa forma, é ausência, pois está morto,
mas – à semelhança do pai de Hamlet – volta para assombrar o mundo dos
vivos. Os historiadores que pressupõem que o passado está arrumado em
peças e em ordem nos arquivos têm que lidar com o fato de que, como postula
Freud, os mortos “voltam a falar”. Porém, não mais como entendia Michelet,
pela evocação do “adivinho” que seria o historiador. Como destaca Certeau,
“isso fala”, mas à sua revelia, em seu trabalho e seus silêncios. Tais
vozes, cujo desaparecimento é o postulado de qualquer historiador que
as substitui por sua escrita, re-mordem o espaço do qual estão excluídas
e continuam falando no texto-homenagem que a tradição ergue em seu
lugar. (Certeau 2012, 78).

Essa combinação seria, portanto, o próprio histórico segundo Certeau:


um retorno do passado no discurso do presente. Contudo, ela tumultuaria o
corte que instaurou a historiografia moderna como uma relação entre um
presente e um passado distintos – em que um é sujeito e o outro objeto de um
saber, “um é produtor do discurso e o outro representado” (Certeau 2012, 62).
Para o historiador francês, a epistemologia surgida com o Século das Luzes, que
postula a diferença entre o sujeito do saber e seu objeto, serve de fundamento
para esse tipo de separação entre passado e presente.
Procurando romper com esse tipo de concepção, Certeau entendeu que
Talvez, ao restaurar a ambiguidade que fisga a relação objeto-sujeito ou
passado-presente, a historiografia viesse a retornar à sua antiga função,
tanto filosófica quanto técnica, de dizer o tempo como a própria
ambivalência que afeta o lugar em que ela está; e, portanto, de pensar a
equivocidade do lugar como o trabalho do tempo no próprio interior do
lugar do saber. (Certeau 2012, 65).

194
revista de teoria da história 2 2020

O autor conclui, então, que o outro está no lugar habitado pelos vivos e
é por meio dele que as ambivalências do tempo se insinuam nesse lugar,
tornando ele mesmo ambivalente em relação a si. Sendo assim, o discurso da
história tenta apagar todo o rastro do outro, porém conserva – contra a
vontade dos investigadores – os fragmentos que denunciam sua existência em
seu próprio presente.
Certamente, Michel de Certeau não é o único a conceber uma
temporalidade para a história calcada numa dinâmica de imbricações entre o
presente e o passado. As enigmáticas relações entre essas instâncias temporais
tem sido, há muito tempo, objeto de reflexões de filósofos, historiadores e
cientistas sociais. Entre os historiadores, alguns fornecem importantes
contribuições para os contornos que essas discussões assumiram ao longo do
século XX e das últimas décadas12.
Como ressalta François Dosse, por exemplo, os próprios fundadores
dos Annales, Marc Bloch e Lucien Febvre, concebem o discurso historiográfico
como intimamente ligado ao presente. A grande inovação que esses autores
teriam trazido à historiografia seria o estabelecimento de uma nova relação do
historiador com suas fontes, pois “ele já não deve escrever o que estas lhe
ditam, mas, ao contrário, tornar-se um diretor de cena que a recompõe,
constrói e desconstrói ao sabor de suas hipóteses” (Dosse 2001, 273). Essa
relação ativa do historiador com suas fontes teriam induzido a uma nova
relação com o passado, que se torna inseparável do presente.
O historiador José Carlos Reis entende que os fundadores dos Annales
procuraram romper com três perspectivas que concebiam – de formas distintas
– as relações entre passado e presente. Primeiramente, com a perspectiva na
qual o passado tende a se isolar do presente e a se constituir como um objeto
em si. Em seguida, com a concepção na qual o presente tende a absorver em si o
passado13, que passa a fazer parte da contemporaneidade. Por fim, com uma
perspectiva que entende que a sucessão do tempo histórico se torna secundária
em relação a um tempo lógico, marcado pela simultaneidade. O autor destaca
que eles propuseram uma percepção na qual “o passado não se isola do
presente. Ele é abordado a partir do presente, que levanta as questões sobre o
passado que o ajudarão a melhor se conduzir e se compreender. Há, portanto,
uma relação de interrogação recíproca” (Reis 2008, 34)14.

12 Nesse sentido, é essencial destacarmos que, por se tratar de uma discussão ampla que

tem mobilizado uma vasta e inesgotável bibliografia, não podemos abrangê-la em nosso
trabalho, pois além da carência de espaço e tempo, esse empreendimento escaparia aos
propósitos aqui delineados. Podemos destacar, por exemplo, as importantes contribuições do
historiador alemão Reinhart Koselleck para essa discussão, ao propor os conceitos de “espaço
de experiência” e “horizonte de expectativa” para pensar as dinâmicas da temporalidade
(Koselleck 2006). Ou mesmo, as propostas mais recentes de François Hartog que, dialogando
com a obra de Koselleck, propôs a noção de “regimes de historicidade” (Hartog 2013).
Também é interessante a discussão apresentada por José Carlos Reis sobre a ideia de “tempo
psicológico” (Reis 2009). Podemos também fazer referência à obra do filósofo Paul Ricoeur,
especialmente suas discussões sobre a questão do tempo e de suas relações com a narrativa
histórica, que tem tido muito impacto dentre os historiadores nas últimas décadas (Ricoeur
2010).
13 O autor usa essa expressão para designar uma relação de absoluta identidade entre

presente e passado. Ao absorver o passado o presente se torna seu mesmo.


14 Um ponto importante a ser destacado aqui é que se há um diálogo entre passado e

presente, este não pode absorver o primeiro e torna-lo contemporâneo, pois, “o diálogo só é
possível entre diferentes que se comunicam. E essa é a perspectiva da Nouvelle Histoire: passado
e presente são diferentes, são momentos singulares do tempo histórico” (Reis 2008, 35). Mas é
justamente por serem diferentes que podem informar um ao outro, podendo estabelecer,
assim, uma relação de conhecimento recíproco.

195
revista de teoria da história 2 2020

Para Marc Bloch, por exemplo, a relação entre os tempos possui tanta
força que entre eles os vínculos de inteligibilidade se dão, verdadeiramente, em
um sentido duplo, isto é, “a incompreensão do presente nasce fatalmente da
ignorância do passado” (Bloch 2001, 65). O historiador ainda acrescenta que
“o erudito que não tem o gosto de olhar a seu redor nem os homens, nem as
coisas, nem os acontecimentos, [ele] merecerá talvez, como dizia Pirenne, o
título de um útil antiquário. E agirá sensatamente renunciando ao de
historiador” (Bloch 2001, 66). Por isso, para o autor, seria impróprio entender
a história como uma mera ciência do passado15. Nesse sentido, as palavras de
Fernand Braudel ecoam essa percepção: “a história é fruto de seu tempo”
(Braudel 2011, 17), pois não só nasce em um presente como também mantém
seus “olhos” voltados para ele.
Michel de Certeau também entendia que o discurso historiográfico está
profundamente relacionado a questões que envolvem o próprio historiador16 e
que interrogar esse sujeito do saber é, igualmente, ter de pensar o tempo. Isso
porque esse sujeito se organiza como uma estratificação de tempos
heterogêneos e é estruturado por sua relação com a alteridade. Certeau, talvez,
tenha ido além das perspectivas de Bloch e Braudel acima delineadas uma vez
que, para ele, o tempo representa precisamente a impossibilidade da
“identidade do lugar”, pois “o problema da história inscreve-se no lugar desse
sujeito que é, em si mesmo, dinâmica da diferença, historicidade da não
identidade a si” (Certeau 2012, 67).
Há aqui, portanto, um último aspecto que ainda precisa ser percebido.
O “tumulto” – causado pela inscrição do sujeito do saber no tempo (e do
tempo no sujeito do saber) – na segurança do lugar e dos objetos da
historiografia é agravado por aquilo que Certeau chama de retorno do afeto e
das paixões no discurso. Conforme aponta o historiador, depois de ter sido
central na análise “de uma sociedade até o final do século XVIII (até Spinoza,
Hume, Locke ou Rousseau), a teoria das paixões e interesses foi eliminada,
lentamente, pela economia objetivista que, no século XIX, acabou por
substituí-la por uma interpretação racional das relações de produção” (Certeau
2012, 67). Contudo, e é nesse ponto que a importância de Freud é retomada
pelo historiador, após um século de rejeição, a economia dos afetos teria
retornado sob o modo freudiano do inconsciente: “com ‘Totem e tabu’, ‘Mal-estar
na civilização’, ou ‘Moisés e o monoteísmo’, apresenta-se a análise – necessariamente

15 E também retomando a perspectiva de Bloch, o historiador colombiano Renan Silva traz


uma importante contribuição, pois avança em mostrar que: “quando se tem claro o problema
das formas diversas do vínculo entre passado e presente; quando se entende que o que
chamamos atualidade se forma precisamente no tempo; quando se compreende que os
processos sociais se constituem sobre a base de uma combinação de continuidades e
descontinuidades que asseguram tanto a existência de processos de longa duração como a
emergência de acontecimentos originais que introduzem novidades radicais e inflexões que
modificam a direção de um fenômeno, não há por que pensar que da definição de história
como o estudo do passado (e essa é uma de suas definições possíveis) pode resultar um
afastamento da análise histórica de sua intenção de compreensão da atualidade. E, muito
menos, que possa resultar numa renúncia por parte dos historiadores de enfrentar os grandes
problemas da sociedade, suas urgências maiores, com tudo o que isso significa como demanda de
análise social” (Silva 2015, 47).
16 Para Certeau, isso ficaria mais evidente, em pesquisas envolvendo áreas como: história

das mulheres, dos negros, dos judeus, das minorias culturais etc. (Certeau 2012, 66). Com isso,
o autor não quer dizer que a “objetividade” dessas pesquisas está comprometida, mas apenas
apontar que nelas (e inescapavelmente em qualquer pesquisa historiográfica) o lugar em que se
produz o discurso é claramente evidenciado e, visivelmente, pertinente para a construção da
pesquisa.

196
revista de teoria da história 2 2020

relativa a um recalcado – que articula, de novo, os investimentos do sujeito a


partir de estruturações coletivas” (Certeau 2012, 67).
Dessa forma, Freud teria contribuído para a inauguração de uma
epistemologia distinta da que definia o lugar do saber como um lugar próprio e
que avaliava a autoridade do sujeito do saber pela eliminação de qualquer
questão relativa a si mesmo. Diante disso, tendo explicitado essa eliminação, a
historiografia encontra-se, segundo Certeau, “reenviada à particularidade de um
lugar ordinário, aos afetos recíprocos que estruturam representações e aos
passados que, do interior, determinam o uso das técnicas” (Certeau 2012, 68).
Tendo então abalado as identidades do tempo, do lugar, do sujeito e objeto
(supostas muitas vezes pela historiografia), Freud teria resgatado – ou feito
retornar – a ficção para o espaço do discurso científico, reintroduzindo nele a
economia dos afetos e pulsões, postulando a noção de inconsciente e adotando
uma determinada prática de escrita que não só os incluía como também se
estruturava a partir deles. O psicanalista devolve, portanto, a pertinência às
paixões, à retórica e à literatura; ele devolve-lhes a legitimidade no discurso
científico.
É nesse retorno da ficção que nos concentraremos agora.

HISTÓRIA, PSICANÁLISE E LITERATURA


Certeau entende que, para devolver legitimidade à ficção que assombra
o campo da historiografia, convém – em primeiro lugar – reconhecer no
discurso legitimado como científico o recalcado que assumiu a forma de
literatura. Para o autor,
as astúcias do discurso com o poder, a fim de utilizá-lo sem ficar a seu
serviço, as aparições do objeto como ator fantástico no próprio lugar do
“sujeito do saber”, as repetições e os retornos do tempo supostamente
passado, os disfarces da paixão sob a máscara de uma razão etc., tudo
isso depende da ficção, no sentido “literário” do termo.
(Certeau 2012, 69).

Assim, ele encontra tanto na teoria quanto na prática escriturária de


Freud uma importante expressão desse recalcado (a ficção/literário) que
retorna ao discurso científico.
Porém, antes de explorarmos esse aspecto, devemos esclarecer alguns
dos sentidos que Certeau dá à noção de ficção. Por ser um conceito complexo
e cheio de nuances, o autor procura identificar quatro funcionamentos
possíveis da ficção no discurso do historiador17. Primeiramente, a ficção pode

17 Certeau atribui sentidos bem específicos e diversos ao termo “ficção”. Dessa forma,
entendemos ser importante evidenciar que esse conceito possui um longa e complexa história
de significações distintas, diante das quais as percepções de Certeau podem ser situadas. Luiz
Costa Lima destaca, por exemplo, que na antiguidade romana (que se prolonga até o
cristianismo medieval), o termo fictio tinha, na maior parte das vezes, o sentido de ilusão,
falsidade, mentira. Durante o renascimento, a redescoberta dos clássicos (sobretudo,
Aristóteles) teria provocado uma suspensão da suspeita contra as então chamadas “belas-
artes”. Contudo, “sua legitimação através de normas retóricas, assim como o prestígio da
imitativo, falsamente entendida como correspondente à mimesis, impediam que fictio tivesse um
valor distinto” (Lima in Malerba 2016, 76). O autor ainda destaca que é, sobretudo, a partir do
século XVIII que a oposição entre realidade e ficção assume um perfil distinto, que não
favorece a fictio. Isso ocorreria porque sua oposição com a realidade se reforça na medida em
que o termo realidade “está relacionado com certo tipo de comunicação, a comunicação
referencial” (Lima in Malerba 2016, 76). Portanto, desde o início dos tempos modernos, a

197
revista de teoria da história 2 2020

ser concebida como um termo oposto à própria historiografia18, logo “parte da


historiografia ocidental se bate contra a ficção” (Certeau 2012, 45). Nessa
perspectiva, a historiografia procuraria criar um distanciamento em relação aos
dizeres e crenças comuns e, além disso, situaria nesta diferença sua credencial
de erudição para distingui-la do discurso ordinário. Por meio do aparato crítico
desenvolvido pela disciplina, o historiador retira o erro das fábulas e, ao
diagnosticar o que é falso, ganha terreno em relação a elas. Desta forma,
na linguagem recebida como admissível, ele escava a posição que acaba
atribuindo à sua disciplina, como se - instalado no meio de narratividades
estratificadas e combinadas de uma sociedade (tudo o que ela relata ou
relatou para si mesma) - ele se empenhasse em rechaçar o que é falso e
não tanto a construir o que é verdadeiro; ou como se ele só conseguisse
produzir a verdade pela identificação do erro.
(Certeau 2012, 45-6).

A ficção seria, portanto, aquilo que a historiografia instituiu como


errôneo, obtendo, assim, seu terreno próprio, isto é, na medida em que se
constitui como não ficção.
Em segundo lugar, Certeau entende que esse conceito pode ser
entendido como o oposto da ideia de realidade. Nesse sentido, a historiografia
seria um discurso técnico capaz de determinar os erros da ficção e autorizar-se
a falar em nome do real. Para o autor, ao estabelecer, de acordo com seus
próprios critérios, “o gesto que separa os dois discursos - científico e ficção - a
historiografia adquire seu crédito de uma relação com o real, porque seu
contrário está colocado sob o signo do falso” (Certeau 2012, 46). Sendo assim,
a ficção seria deslocada para o lado do irreal19, uma vez que o discurso
científico, tecnicamente munido com as condições e aparatos para designar o
erro, se colocam no lugar de privilégio para representar o real.
Em seguida, o historiador francês destaca também que a ficção está
presente no discurso da ciência. Para ele,
ao discurso (metafísico e teológico) que decifra a ordem dos seres e as
vontades de seu autor, uma lenta revolução instauradora de modernidade
tomou o lugar das escritas capazes de instaurar coerências a partir das
quais venha a produzir-se uma ordem, um progresso e uma história.
Desligadas de sua função epifânica de representar as coisas, essas
linguagens formais dão lugar, em suas aplicações, a cenários cuja
pertinência se refere não mais ao que eles exprimem, mas ao que, por seu
intermédio, se torna possível.
(Certeau 2012, 46-7).

oposição ficção-realidade supõe o caráter negativo do primeiro termo e a valorização do


segundo, que passa a ser confundido com os próprios procedimentos científicos.
18 O historiador Renan Silva afirma, por exemplo, que “o humor dominante nas ciências

sociais nas décadas finais do século XX impõe a necessidade de recordar que existe uma
diferencia entre história – como análise histórica – e literatura” (Silva 2015). Contudo, é
importante destacar que, para ele, essa distinção seria melhor compreendida se fosse vista
como uma diferença de grau e não de natureza (Silva 2015, 19).
19 Para Certeau, esse tipo de percepção implica uma dupla defasagem que consiste, por um

lado, “em fazer com que o real seja plausível ao demonstrar um erro e, ao mesmo tempo, em
fazer crer no real pela denúncia do falso. Ela pressupõe, portanto, que o não falso deve ser
real” (Certeau 2012, 46). O procedimento é, em tese, simples, pois, ao comprovar os erros, o
discurso leva a considerar como real o que lhes é contrário.

198
revista de teoria da história 2 2020

Eis um novo funcionamento para a ficção. Ela operaria como um


artefato científico e, dessa forma, ela não seria julgada pelo real que lhe faz
falta, mas por aquilo que permite transformar. Como destaca Certeau, nesse
sentido, seria "ficção não o que bate a fotografia do desembarque lunar, mas o
que o prevê e o organiza" (Certeau 2012, 47).
A historiografia se utilizaria de ficções desse tipo quando, no espaço de
um passado, faz funcionar hipóteses e regras científicas presentes, produzindo,
assim, modelos diferentes de sociedade. Entretanto, o historiador alimenta
certa desconfiança em relação a esse tipo de ficção que se tornou científica e
sustenta, por exemplo, que ao se apoiar em “fatos”, podem ser revelados erros.
Certeau acrescenta que essa resistência à ficção
baseia-se na relação que o discurso do historiador, supostamente,
mantém com o real; na ficção, incluindo esta, o historiador combate uma
falta de referencial, uma lesão no discurso “realista”, uma ruptura do
acasalamento, pressuposto por ele, entre as palavras e as coisas.
(Certeau 2012, 47).

Por fim, o historiador francês aponta para mais um sentido que o


termo ficção pode assumir no discurso historiográfico. Ele pode ser acusado
de ser um discurso que carece de “limpeza” [propreté] científica. A ficção
assume esse significado ao lidar com uma estratificação de sentido, isto é,
quando relata uma coisa para exprimir outra. Sendo assim, ela se configura em
uma linguagem da qual se extrai efeitos de sentido que não podem ser
circunscritos ou controlados. Certeau entende que, assim,
diferentemente do que se passa com a linguagem artificial – em princípio
unívoca – ela não tem espaço próprio [propre]. Ela é “metafórica”.
Movimenta-se, imperceptível, no campo do outro. Nessas circunstâncias,
o saber não encontra lugar seguro e seu esforço consiste em analisá-la de
maneira a reduzi-la ou traduzi-la em elementos estáveis e combináveis.
(Certeau 2012, 48).

De acordo com esse ponto de vista, a ficção lesaria uma regra da


cientificidade, pois seria a feiticeira que o saber se empenha em fixar e classificar,
ao exorcizá-la em seus laboratórios. Por esse ângulo, ela não traria o signo do
falso ou do irreal, nem do artefato anteriormente mencionado, mas designaria
uma espécie de deriva semântica, ela “é a sereia da qual o historiador deve
defender-se, a exemplo de Ulisses amarrado no mastro” (Certeau 2012, 48).
Apesar das especificidades de cada um desses sentidos atribuídos a
ficção – seja sob suas modalidades míticas, literárias, científicas ou metafóricas
– Certeau a concebe como um tipo de discurso que dá forma [informe] ao real,
sem qualquer pretensão de representá-lo ou ser credenciado por ele. Sendo
assim, se oporia a uma historiografia que se articula sempre a partir da ambição
de dizer o real e, portanto, “a partir da impossibilidade de assumir plenamente
sua perda. Essa ambição parece a presença e a força de algo de original; ela
vem de longe, à semelhança de uma cena primitiva, cuja permanência opaca
continuasse determinando a disciplina” (Certeau 2012, 48).
Diante desses aspectos, podemos constatar três implicações
importantes da reflexão proposta por Certeau sobre os sentidos possíveis da
noção de ficção. Primeiro, seguindo a lógica do historiador, devemos entender
que o real produzido pela historiografia constitui também o legendário da
instituição dos historiadores. Em segundo lugar, o aparato científico
mobilizado pelo saber historiográfico possui igualmente aspectos de ficção no
trabalho do historiador. E, por fim, quando vislumbramos as ligações do

199
revista de teoria da história 2 2020

discurso com quem o produz – seja “com uma instituição profissional e com
uma metodologia científica” (Certeau 2012, 48) –, é possível considerar a
historiografia como uma mistura de ciência e de ficção. E é se inscrevendo
nessa interseção que as contribuições de Freud são, para Certeau, fundamentais
para pensar as relações que a historiografia mantém com a literatura20.
“Quais seriam os impactos da teoria freudiana sobre a configuração
que, nos últimos três séculos, têm orientado as relações entre história e
literatura?”. É com essa pergunta que Certeau inicia seu artigo O “romance
psicanalítico”: história e literatura21, no qual se debruça, a partir de sua leitura de
Freud, sobre essa espinhosa questão. O historiador francês entende que
história e literatura passaram por um processo de divórcio, sobretudo, ao longo
dos séculos XVII a XIX. Nesse período, as ciências ditas objetivas ergueram
uma fronteira entre o objetivo e o imaginário, isto é, entre aquilo que elas
controlavam e o seu “resto” (Certeau 2012, 91). Contudo, para ele, o
freudismo participaria de uma revisão desta ruptura22.
Os debates historiográficos envolvendo essa problemática são amplos,
complexos e já foram apreciados por inúmeros autores, que contribuíram de
forma determinante para os contornos epistemológicos assumidos pela
historiografia nas últimas décadas23. Por se tratar, portanto, de uma questão
que possui proporções tão vastas e cujos desdobramentos para a historiografia
são múltiplos e diversos, procuramos concentrar nossos esforços em situar as

20 Nas últimas décadas, os debates envolvendo esses dois campos foi, decisivamente,
marcado pelas contribuições de Hayden White. Como o próprio autor salienta, a própria
operação empreendida pelo historiador na construção de um texto histórico é, em sua essência,
uma operação literária (ou mesmo fictícia) (White 2014, 115). As contribuições de White desde
“Metahistória”, publicada em 1973, são essenciais para a compreensão desse debate (cf. White
2008). Suas teses já foram amplamente reproduzidas, discutidas e criticadas (ver, por exemplo,
Chartier 2002). Para uma apreciação tanto de algumas das principais teses do autor, bem como
dos desdobramentos dos debates por elas ensejadas ver, por exemplo (Marcelino 2012). É
interessante notar que Certeau, mesmo sendo um contemporâneo de White, não chegou a
travar com ele um diálogo direto, o que é evidenciado por sua ausência nas obras do
historiador francês. Nesse sentido, essa ausência repercute também nos recortes de nosso
próprio trabalho, que por apenas tangenciar aspectos do diálogo da história com a literatura,
não se aprofundou nos diálogos (possíveis) de Certeau com White.
21 Originalmente Le “roman” psychanalytique – Histoire et littérature. Luce Giard, organizadora

da coletânea “História e psicanálise: entre ciência e ficção” (Certeau 2012), serviu-se de uma
das versões francesas – parcialmente inédita – do texto que havia sido apresentado,
inicialmente, em um encontro internacional de psicanalistas, em Paris (1981), conforme indica
em (Giard in Certeau 2012, 39).
22 Conforme indica Certeau, Freud pressupõe que seu método, por uma prática diferente da

linguagem, é capaz de transformar completamente o campo das ciências humanas. Os ‘ensaios’


freudianos sobre a literatura e a história limitam-se a apresentar um quadro de hipóteses,
conceitos e regras que visam pesquisas a empreender fora do campo em que a psicanálise foi
cientificamente elaborada” (Certeau 2012, 92).
23 Devemos reconhecer que há um imenso debate sobre qual seria propriamente o estatuto

epistemológico do discurso historiográfico. Essas discussões compreendem uma multiplicidade


de aspectos e caminham em direções amplas e diversas. Por um lado, abrangem a questão da
natureza epistemológica da história, isto é, se ela deve ser concebida como um discurso
científico, ou se seria um saber mais próximo da filosofia (cf. Reis 2004) (Rüsen 2010). Há
também as discussões envolvendo as complexas relações com o discurso histórico mantém
com as noções de verdade e com o discurso literário (White 2014; 2008; Dosse 2003; Reis
2006, p 147-174; Ankersmit 2012). Nas últimas décadas, muitas investigações teóricas
passaram a incidir sobre a questão da dimensão “narrativa” do discurso histórico, dando assim,
novos contornos e abrindo novos caminhos para essa disciplina (REIS 2006; 2012; Malerba
2016; Ricoeur 2007; 2010; Chartier 2002; 2010; Dosse 2001; 2003; 2004; 2013; Lima 2006;
Stone in Novais 2013), por exemplo.

200
revista de teoria da história 2 2020

contribuições que Certeau apreende da teoria freudiana que o auxiliam a se


situar e posicionar nessa ampla tradição reflexiva24.
Essa apropriação que o historiador faz de Freud está, de uma maneira,
relacionada a dois pressupostos históricos importantes. Por um lado, Certeau
acreditava que o psicanalista pressupunha seu método como uma prática de
linguagem capaz de transformar o campo das ciências humanas. Apesar de
reconhecer que os ensaios freudianos “sobre a literatura e a história limitam-se
a apresentar um quadro de hipóteses, conceitos e regras que visam pesquisas a
empreender fora do campo em que a psicanálise foi ‘cientificamente’
elaborada” (Certeau 2012, 92). É nesse empreendimento que o historiador
insere suas leituras desse autor.
Por outro lado, é essencial reconhecer que seria ilusório conceber o
freudismo como uma perspectiva teórica hermética e unificada. Uma série de
tradições distintas emergiu desde a concepção dessa teoria. “Da Índia à
Califórnia, da Georgia à Argentina, o freudismo é tão fragmentado, quando o
marxismo” (Certeau 2012, 93). Negar a historicidade da teoria freudiana em
seus desdobramentos em contextos distintos seria incorrer no equívoco de
ideologizar a teoria, ou mesmo fetichizá-la. Dessa forma, por mais que Certeau
circunscreva sua leitura desse autor “nas margens da instituição lacaniana”, ele
reconhece que não há um lugar adequado que possa garantir uma interpretação
correta ou final de Freud. Sua apropriação desse autor é, apenas, mais uma
possível. É uma leitura particular desse autor25. Portanto, essa localização
significa historicidade e é importante reconhecer essa dimensão, pois para
Certeau,
antes de ser um objeto de discurso, a história engloba e situa a análise.
Ela é seu insuperável pressuposto. Qualquer teoria da história está
confinada em um labirinto de conjunturas e de relações que ela não
domina; trata-se de uma “literatura” sob o domínio do assunto abordado
por ela. (Certeau 2012, 93).

É a partir desse prisma que Freud é lido por ele.


Antes de tudo, o historiador francês entende que Freud, através de sua
“prática de linguagem”, abriu um caminho que conduziu seus escritos da
cientificidade ao romance. Depois da publicação de seus Estudos sobre a histeria,
em 1895, o psicanalista teria se surpreendido, de forma bastante irônica, com
fato de suas histórias de pacientes (Krankengeschichten) estarem sendo lidas como
se fossem romances (Novellen) e, em certo sentido, desprovidas do caráter sério
da cientificidade (Wissenschaftlichkeit). Sua maneira de abordar a histeria teria
transformado sua maneira de escrever (cf. Freud 2016), teria operado nele uma
“metamorfose do discurso”, como o próprio Freud salienta:

24 Por mais que nosso trabalho estabeleça diálogos possíveis com muitas desses debates,
excederia nossas pretensões a reprodução dos argumentos dos autores acima mencionados.
Portanto, nos limitamos a, de alguma forma, concentrar nossas reflexões nas contribuições que
Michel de Certeau oferece a essas discussões, ainda cientes dos prejuízos que o ocultamento de
tão ricas questões traz ao nosso trabalho.
25 Certeau afirma que: “Historiador de ofício, ou membro desta École desde sua fundação,

não me sinto mais ‘apto’ para falar de Freud ou ser considerado como um de seus
representantes. A instituição atribui uma localização, não uma autoridade” (Certeau 2012, 93).

201
revista de teoria da história 2 2020

o diagnóstico local e as reações elétricas não têm qualquer valor para o


estudo da histeria, enquanto uma apresentação (Darstellung) aprofundada
dos processos psíquicos, à maneira como ela nos é apresentada pelos
poetas (Dichter), permite-me, pelo uso de algumas raras fórmulas
psicológicas, obter certa compreensão no desenrolar de uma histeria.
(Freud apud Certeau 2012, 94).

Há, portanto, em Freud um deslocamento em direção ao gênero


poético ou romanesco, isto é, “a conversão psicanalítica é uma conversão ao
‘literário’” (Certeau 2012, 94). Conversão que se faz evidente até a última obra
de Freud, O homem Moisés e a religião monoteísta (Freud 2014), a qual o próprio
psicanalista designava como “romance”. Assim sendo, o discurso analítico
muitas vezes assume a forma do que Freud chamava de “ficção teórica”.
De fato, o discurso freudiano promove o retorno da ficção à “seriedade
científica”, não só como seu objeto, mas, sobretudo como sua forma (Orellana
2012, 20)26. Sua escrita teórica assume a maneira do romance. Ao exumar as
relações que assombram o intercâmbio do saber com seu objeto, Freud
“atraiçoa” a norma científica, pois volta a encontrar o gênero literário que é o
discurso teórico dessa relação (Certeau 2012, 95). Sendo assim, de acordo com
uma observação de Jacques Lacan, Freud teria sido um dos únicos autores
contemporâneos capazes de criar mitos (Lacan 1997), que no caso do
psicanalista vienense significaria romances com função teórica. Dessa
percepção, decorrem, segundo Certeau, três aspectos fundamentais que
constituiriam uma teoria da narrativa freudiana.
Primeiramente, Freud acreditava que a definição de romance consistiria
em combinar num mesmo texto os “sintomas da doença”, isto é, “uma
semiologia baseada na identificação de estruturas patológicas” (Certeau 2012,
95) e uma série de acontecimentos relacionais que surpreendem e modificam o
modelo estrutural. Assumir o estilo do romance significaria, para o psicanalista,
abandonar a mera apresentação de casos baseada na formulação de
observações que evidenciariam a existência de quadros coerentes compostos a
partir da apreensão de dados relativos ao modelo sincrônico de uma doença
(cf. Freud 2016). Em Freud, a estrutura patológica torna-se o quadro no qual
são produzidos acontecimentos que ela não integra, evidenciando, assim, o
funcionamento dialogal da própria cura no contexto analítico. O texto que
careceria daquela seriedade científica é o que daria conta de expressar esse
funcionamento.
Em segundo lugar, o próprio Freud está implicado na relação que
estabelece com seu interlocutor. Suas análises de caso trazem consigo as
surpresas que o sofrimento de seus pacientes traça em sua posição (Freud
2016). Nesse sentido, o romance resultaria da alteração que o sofrimento do
outro introduz no modelo que lhe serve de quadro teórico. Para Certeau, “no
texto, tais diferenças marcam, ao mesmo tempo, déficits e acontecimentos da
narração. Esses dois valores – o primeiro, relacionado com o modelo,
enquanto o outro se refere à narrativa – têm, aliás, a mesma significação: o
déficit da teoria define o acontecimento da narração” (Certeau 2012, 96). Dessa
forma, o romance freudiano se constituiria a partir da relação que a teoria
estabelece com a aparição factual de seus limites.

26 Certeau destaca que “curiosamente, enquanto Freud havia sido alimentado pela

Aufklärung científica do século XIX e se tinha empenhado, com paixão, em fazer reconhecer a
‘seriedade’ do modelo acadêmico vienense, ele dá a impressão deter sido apanhado
desprevenido por sua própria descoberta” (Certeau 2012, 94).

202
revista de teoria da história 2 2020

Ainda nessa perspectiva, é interessante notarmos que o sofrimento do


outro, não afeta apenas o saber do analista, mas também ele mesmo. Esse
diálogo faz surgir no próprio analista uma inquietante familiaridade. E a
confissão dessa alteração contribui para definir o romance psicanalítico.
Certeau acrescenta que
ao retirar, assim, o cunho de seriedade ao modelo científico, a narrativa
freudiana grava aí uma historicidade oculta do analista e uma mudança
recíproca dos interlocutores; trata-se de uma escultura de acontecimentos
– até então não conhecidos – no quadro estrutural de um saber.
(Certeau 2012, 96).

Freud confessa sua reação afetiva diante de seus casos, o que


contradiria o discurso científico que postula que o enunciado deve ser
independente do interlocutor. Dessa forma, ele reintroduz a historicidade do
interlocutor que passaria a ser a própria condição da elucidação analítica.
Assim, sua prática de linguagem seria uma prática intersubjetiva. O método de
Freud transforma o discurso da análise em uma ficção, isto é, um discurso em
que fica marcada a particularidade de seu locutor. Uma ficção seria, portanto,
um saber que é atingido por seu outro (o afeto, etc.). Este seria o estatuto
teórico do romance.
Por fim, a forma como Freud concebe sua escrita ensinaria a ler outros
documentos. Isso porque ela evidencia que qualquer narrativa envolve uma
relação entre uma estrutura e acontecimentos, isto é, entre um sistema (seja ele
explícito ou não) e o vestígio de algo diferente nele27. Deste modo, a obra
literária seria irredutível à seriedade de um modelo estrutural imposto por uma
determinada cientificidade. Contudo, também não seria viável pulverizá-la nos
“acontecimentos de leitura (afetos ou reminiscências), multiplicadas
indefinidamente pela fantasia ou pela erudição. Ela irá aparecer de preferência
como o engaste de alterações históricas em um quadro formal” (Certeau 2012,
97). Em Freud, existiria uma continuidade na forma de escutar um paciente,
interpretar um documento (seja literário ou não28) e na maneira como escreve.
Não há um corte essencial entre essas três operações. Nesse sentido, o
romance pode caracterizar tanto as afirmações de um paciente quanto uma
obra literária ou o próprio discurso psicanalítico.
Certeau considera que, mesmo retornando ao gênero do romance, a
escrita e a interpretação freudianas não deixam de ser históricas, no aspecto
que consideram seus materiais como efeitos de sistemas (políticos, sociais,
econômicos, ideológicos, por exemplo), além de terem como objetivo elucidar
operações temporais (causalidade, inversão, cruzamento, etc.) que poderiam ter
dado lugar a esses efeitos. Há em Freud, portanto, uma problemática da
história, evidenciada por um postulado de produção e uma identificação de
seus processos cronológicos. E para lidar com ela, o psicanalista teria
reempregado modelos emprestados de duas regiões da literatura bem definidas
desde Aristóteles: a tragédia e a retórica (Aristóteles 1996). Diante disso, duas
considerações se fazem necessárias.

27 As articulações, relações e tensões entre “estrutura” e “acontecimento” na narrativa

histórica suscitam importantes discussões historiográficas, que tem testemunhado nas últimas
décadas, conforma indica François Dosse, uma espécie de “retorno do acontecimento” (Dosse
2013).
28 Como é o caso dos documentos do século XVII que o levaram a narrar o caso do pintor

Haitzmann (Freud 2011c).

203
revista de teoria da história 2 2020

Primeiro, com relação a presença da tragédia em Freud. Como sistema


de explicação, a análise freudiana adota a estruturação do psiquismo por três
instâncias: o Eu (Ich), o Id (Es) e o Super-eu (Über-Ich) (Freud 2011). Esse
aparelho psíquico, segundo Certeau, retoma um modelo de funcionamento
teatral, “constituindo-se à maneira da tragédia grega e do drama
shakespeariano; ora, sabe-se que tanto a primeira quanto o segundo não
cessaram de fornecer a Freud estruturas de pensamento, categorias de análise e
citações autorizadoras” (Certeau 2012, 98). Na teoria freudiana, portanto, tanto
o aparelho quanto o desenrolar psíquicos são construídos a partir desse
modelo literário do teatro.
Contudo, haveria uma peculiaridade na apropriação que Freud faz
desse modelo, pois ele produz um retorno ao mito a partir do romance. Com
isso, mantem-se naquilo que Certeau chama de “estágio intermediário” – ou
entremeio [entre-deux] – que é a tragédia, que funciona como uma historicização
do mito. Situado, assim, “entre o romance e o mito – pelo fato de que o
primeiro relata um desenrolar, enquanto o segundo mostra estruturas –, o
aparelho psicanalítico oferece, portanto, o modelo da tragédia à interpretação
histórica dos documentos” (Certeau 2012, 98).
A segunda consideração está relacionada à retórica freudiana. A
historicização dos modelos literários, em Freud, se evidenciaria de forma ainda
mais contundente em suas análises práticas, por exemplo, em A interpretação dos
sonhos de 1900 (Freud 1999). Nesses textos, as operações que estruturam as
representações, articulando-a a partir do sistema psíquico, são trazidas da
retórica: metáforas, metonímias, sinédoques, etc. Mais uma vez, o modelo é
extraído da literatura. Para Certeau, esse ato de escrita é importante, pois
Freud retira essas “figuras da retórica” do gueto “literário” no qual
haviam sido confinadas por uma concepção da cientificidade; ele
confere-lhes uma pertinência histórica, ao reconhecer nesse campo um
conjunto de operações produtoras de manifestações relativas ao outro
(desde Édipo, ou a castração, até a transferência). (Certeau 2012, 99).

Nessa perspectiva, esse “renascimento” da retórica em Freud


evidenciaria uma lógica diferente da que prevalecia no discurso “sério” da
cientificidade. Isso porque tais processos retóricos não dependeriam da
racionalidade da Aufklärung que procura privilegiar a “analogia, a coerência, a
identidade, e reprodução; eles correspondem a todas as alterações, inversões,
equívocos ou deformações que utilizam os jogos com o tempo (as ocasiões) e
com o lugar identificatório (as máscaras) na relação de outro com outro”
(Certeau 2012, 99). Dessa forma, o texto literário se torna o campo em que se
exerce uma lógica da alteridade; lógica que havia sido esquecida pelas ciências,
na medida em que procuravam praticar uma lógica dele, uma lógica da
identidade. Esses procedimentos literários, mobilizados por Freud, são o meio
pelo qual ele historiciza a retórica e a reintroduz na fortaleza da ciência. Para
Certeau, portanto, o psicanalista
transforma o texto literário no desdobramento das operações formais
que organizam uma efetividade histórica; ele confere-lhe, ou melhor,
devolve-lhe, o estatuto de ser uma ficção teórica em que é possível
reconhecer e produzir os modelos lógicos indispensáveis a qualquer
"explicação" histórica. (Certeau 2012, 100).

204
revista de teoria da história 2 2020

Entretanto, a forma freudiana de se valer da retórica ou de empreender


o uso desses artifícios literários é questionada (ainda que indiretamente) pelo
historiador Jörn Rüsen. Em seu texto Retórica e estética da história: Leopold Von
Ranke29, o autor ressalta que os historiadores, comumente, não veem a
produção do seu trabalho como literatura, mas como um resultado da
habilidade e do esforço acadêmico e científico. Destaca também que, nas
últimas décadas, surgiram tendências na teoria da história que tem enfatizado o
caráter poético e retórico da historiografia (talvez, seja esse o próprio caso de
Certeau)30.
Uma observação aqui se faz necessária para entendermos em que
medida a perspectiva de Rüsen se diferencia da de Certeau. Para se contrapor a
essas tendências, o historiador se vale da figura de Leopold von Ranke, em cuja
obra encontra-se um modelo de equilíbrio no uso desses elementos da poética.
Isso porque sua obra seria um ótimo exemplo de que a retórica e a estética
podem estar presentes na historiografia, mas mediadas pela racionalidade, “a
qual define o caráter acadêmico ou científico dos estudos históricos” (Rüsen in
Malerba 2016, p 86). É bom que se diga que Rüsen não se propõe apenas a
elogiar o “hegelianismo” de Ranke ou mesmo dar a seu modo historiográfico o
estatuto de modelo para a escrita histórica atual. Sua intenção, ao mobilizar
Ranke e seu uso racional da estética e retórica, é evidenciar que o
reconhecimento “pós-moderno” da retórica na historiografia não deveria levar
os historiadores atuais a retornar à uma retórica pré-moderna, mas
avançar para uma retórica historiográfica que preserve a necessidade de
libertar a razão na historiografia e que reflita essa razão não
simplesmente como uma técnica de pesquisa, mas com uma
aproximação muito mais ampla e profunda dos estudos históricos como
uma questão de estética da historiografia. (Rüsen in Malerba 2016, 103).

Como temos procurado demonstrar, a apropriação que Certeau faz da


obra de Freud o distancia desse tipo de proposta ensejada por Rüsen. De fato,
toda a crítica veiculada pelo historiador francês, por meio da teoria (e escrita)
freudiana, se aplica a esse tipo de historiografia que ainda guarda uma
pretensão de domínio racional sobre seus objetos, sobre o sujeito do saber e
sobre a própria escrita. O que Certeau está procurando demonstrar é que
Freud vem “atrapalhar” todas essas dimensões que o discurso científico “sério”
procurava manter intactas. Nesse sentido, é interessante (e provocador)
perceber que Certeau, sendo historiador, se coloca mais próximo de Freud do
que de Ranke.
Essa perspectiva é corroborada por Andrés Freijomil. Para ele, Certeau
promoveria uma substituição no status que Ranke ocupa como pai da história
moderna, colocando Freud no lugar. Isso porque, aproveitando-se da
elucidação freudiana, situaria a quebra entre o sujeito que conhece e objeto
conhecido em duas frentes: por um lado, dentro da própria subjetividade, em
um “eu historiador” cuja estabilidade já não pode ser sustentada; por outro, no

29 Originalmente publicado sob o título: Rhetoric and aesthetics of history: Leopold von Ranke. In:
History and Theory, vol. 29, n. 2, mai./1990, 190-204. Em nosso trabalho nos valemos da
versão portuguesa desse texto presente na coletânea de artigos organizada pelo historiador
Jurandir Malerba (Malerba 2016).
30 Por mais que o próprio Rüsen não despreze essas dimensões em sua própria

compreensão do discurso histórico, ele entende que há uma certa dose de “pós-modernismo”
na busca por seu caráter retórico e estético, que depreciaria seu valor científico (Rüsen in
Malerba 2016, 85).

205
revista de teoria da história 2 2020

discurso histórico através da impossibilidade que tem de dizer o mesmo que


representa (Freijomil 2010, 84).
De fato, esse desvio que Certeau pratica ao procurar uma filiação em
Freud ecoa em sua principal reflexão sobre a historiografia, A escrita da História.
Como o próprio historiador afirma, seu objetivo nesse empreendimento é
traçar uma “história da escrita como prática histórica”, considerando os
percursos e os “desvios” que assumiu no Ocidente desde o advento da
modernidade no século XVI (Certeau 2011, XII). E, dessa forma, nos chama
atenção o fato de que sua obra conclui com uma análise das escritas freudianas
e os caminhos que elas teriam aberto para a própria escrita historiográfica.
E esse aspecto, segundo Ricoeur, é um dos elementos que mais
distinguiria Certeau de Foucault, por exemplo. Pois o historiador procura
enraizar sua busca em uma antropologia filosófica cuja referência à psicologia é
fundamental e fundadora. E seria utilizada para demostrar que as chamadas
ficções teóricas devem ser entendidas como o cenário caótico de uma
historiografia que, por mais que não expresse abertamente sua origem
psicanalítica, não deixa de ser o signo de uma dívida e uma tarefa freudiana
(Ricoeur 2007, 214)31.
Certamente Freud não foi um historiador “profissional”. Porém, para
Certeau, mesmo não o sendo, ele foi um pioneiro nesse campo; de uma forma
peculiar, ele foi um “praticante” dessa disciplina. Como procuramos
demonstrar até aqui, as “investidas” (ou intervenções) do psicanalista no
terreno da história teriam incidido, sobretudo, em três aspectos: em primeiro
lugar – aproximadamente meio século depois de Michelet ter afirmado que,
por meio do historiador, os mortos “voltam a falar” – Freud acrescenta que
eles falam, mas a despeito e à revelia do historiador, em seu trabalho e em seus
silêncios; em segundo lugar, essas vozes – cujo desaparecimento seria o
postulado de qualquer historiador que se propõe a substituí-las por sua escrita
– remordem esse espaço da qual foram excluídas, sem que estejam sob o
controle efetivo daqueles que as tentam traduzir em texto; e, por fim, na
historiografia, Freud volta a introduzir as lutas míticas. Por meio de uma
cientificidade peculiar, ele enfeitiça o saber, inclusive o dos historiadores que
pressupõem que o passado está organizado em peças e em ordem nos
arquivos.
Um último aspecto que decorre dessas observações ainda precisa ser
destacado. Para Freud, a escrita da história (Geschichtsschreibung)32 é o ponto
nodal das relações entre literatura e história. Para o psicanalista, ela se produz a
partir de acontecimentos dos quais “nada” subsiste e, desse jeito, “toma o
lugar” deles. Portanto, ela é, ao mesmo tempo, excluída daquilo que aborda,
mas também canibal. Ela substitui, isto é, ocupa o lugar da história que lhe faz
falta. Para Certeau, esse é o processo escriturário de Freud (Certeau 2012, 107).
O historiador ainda acrescenta que

31 É importante destacar, também, que Ricoeur entende que Certeau se distancia de


Foucault, na medida em que se vê saindo da “neutralidade absoluta de um discurso sobre o
discurso e começando a articular esse discurso sobre as outras práticas significantes, o que é a
tarefa própria de uma história das representações” (Ricoeur 2007, 214).
32 O psicanalista utiliza esse termo para se referir, por exemplo, à historiografia hebraica em

“O homem Moisés e a religião monoteísta” (Freud 2014), ou para designar outras historiografias,
como, por exemplo, em seu texto sobre Leonardo da Vinci (Freud 1980).

206
revista de teoria da história 2 2020

A escrita adota a dupla característica do tempo: perder o lugar (trata-se


de um exílio) e devorar a vida (trata-se de um canibalismo). Como se
estivesse em questão o avanço (interminável) e a fome (insaciável) de um
corpo da Letra. De qualquer modo, no processo de escrita existe a
dualidade que a faz funcionar: ora como refugo do real, ilusão de saber e
dejeção da ciência; ora como instituição voraz e instituição dominadora.
Essa ambivalência tem a ver com a essência da escrita.
(Certeau 2012, 108).

Assim sendo, Certeau entende que a autoridade que é reivindicada pelo


discurso tende a compensar o real do qual é banido. E é a instituição, mediante
sua própria autoridade, que vai preencher o “nada do saber”, pois ela é a
articulação entre eles; “a máquina institucional efetua e garante a operação,
quase mágica, mediante a qual esse nada é substituído por algo de autoridade”
(Certeau 2012, 108). Ela torna o discurso crível33.
A historiografia procuraria, portanto, fazer com que o discurso seja
dotado de uma referencialidade, levá-lo a funcionar como “expressivo”,
autorizá-lo pelo viés do “real” e, por fim, instituí-lo como suposto saber. Deste
modo, “sua lei é ocultar o nada, preencher os vazios” (Certeau 2012, 111)34.
Contudo, Certeau é crítico das tradições científicas que postulavam uma
autonomia do discurso em relação ao lugar de seu produtor, pois reconhece
que sua posição, seu pertencimento a um lugar, exerce um efeito
epistemológico sobre o texto. Para ele, essa filiação intervém de maneira
decisiva na definição do próprio estatuto do discurso. O historiador vê em
Freud alguém que “lidou bem” com essa instabilidade do discurso, o que foi
evidenciado pela própria ambiguidade dos mitos que o psicanalista criou –
desde Totem e tabu (Freud 2012) a O homem Moisés e a religião monoteísta (Freud
2014) – entre seu caráter de ficção (pois nada nessas criações é
“verdadeiramente histórico”) e a afirmação de que eles dizem respeito à relação
com o real (pois conferem ao movimento histórico sua forma).
Essa ambiguidade é inescapável à própria historiografia.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.


ANKERSMIT, F.R. A escrita da história: a natureza da representação histórica.
Londrina: Eduel, 2012.
BARROS, José D’Assunção. História e saberes psi: considerações interdisciplinares. R.
Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.8, n.2, 252-285, Jul./Dez. 2011
BARROS, José D’Assunção. O tempo dos historiadores. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

33 Certeau entende que um dos atributos da instituição é “fazer crer”. Para ele, “a vida
social exige a crença, bem diferente, que se articula a partir dos supostos saberes garantidos
pelas instituições; ela baseia-se nessas companhias de seguros que protegem contra a questão
do outro, contra a loucura do ‘nada’. No mínimo, deve-se proceder à distinção entre a
delinquência da ‘não seriedade’ literária e a normatividade baseada em credibilidades
institucionais” (Certeau 2012, 115).
34 Phillipe Carrard faz uma excelente ponderação quando afirma que nem as análises de

Certeau da história como um tipo de narrativa, nem seus esforços em reabilitá-la como uma
forma de se dar sentido das coisas, o levou a unir irrefletidamente a história com a ficção.
Diferentemente de Hayden White (cujo trabalho Certeau curiosamente nunca discutiu),
Certeau não considerou a dependência da história na narrativa como uma razão para
obscurecer as fronteiras entre o discurso factual e o ficcional (Carrard 2001, 469).

207
revista de teoria da história 2 2020

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar,


2001.
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2011.
CARRARD, Philippe. History as a Kind of Writing: Michel de Certeau and the Poetics
of Historiography. The South Atlantic quarterly [0038-2876] ano:2001 vol:100
fasc:2 pág: 465 -482.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2011.
CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012.
DOSSE, François. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resgate do
sentido. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
DOSSE, François. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador:
entre a Esfinge e a Fênix. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
FREIJOMIL, Andrés. Clío, entre Freud y Lacan. El gesto psicoanalítico en Michel de
Certeau. Prohistoria vol.14 Rosario jul./dic. 2010.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Edição Comemorativa 100 anos. Rio
de Janeiro: Imago, 1999.
FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria (1893-1895): em coautoria com Josef
Brauer. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. (1910) In:
Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. vol. XI; p 53-
124. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
FREUD, Sigmund. O Eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmund. O homem Moisés e a religião monoteísta: três ensaios. Porto
Alegre, RS: L&PM, 2014.
FREUD, Sigmund. O inconsciente (1915). In: Freud, Sigmund. Introdução ao
narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas
volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à
psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923).
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e
outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
GIARD, Luce. Um caminho não traçado. In: Certeau, Michel de. História e psicanálise:
entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição a semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959 – 60). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
LEGOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.
MALERBA, Jurandir. (org.) História & narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica.
Petrópolis, 2016.
MARCELINO, Douglas A. A narrativa entre a vida e o texto. Topoi, v. 13, n. 25,
jul./dez. 2012, 130-146.

208
revista de teoria da história 2 2020

ORELLANA, Rodrigo Castro. Michel de Certeau: história e ficção.. Princípios: Natal


(RN), v. 19, n. 31 Janeiro/Junho de 2012, 5-27.
REIS, José Carlos. A história entre a Filosofia e a Ciência. Belo Horizonte: Autêntica,
2011.
REIS, José Carlos Reis. História, a ciência dos homens no tempo. Londrina: EDUEL,
2009.
REIS, José Carlos. Nouvelle histoire e o tempo histórico: a contribuição de Febvre,
Bloch e Braudel. São Paulo: Annablumme, 2008.
REIS, José Carlos. Teoria & História: tempo histórico, história do pensamento
histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora
Unicamp, 2007.
RUSEN, Jörn. Reconstrução do passado histórico. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2010.
SCOTT, Joan. The incommensurability of psychoanalysis and history. History and
theory. Ano: 2012 vol:51 fasc:1 pág:63 -83.
WHITE, Hayden. Meta-história. São Paulo: Edusp, 1992.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 1994.

MICHEL DE CERTEAU E A PSICANÁLISE


AS ESTRATÉGIAS DO TEMPO E AS FRONTEIRAS DA HISTÓRIA COM A LITERATURA
ARTIGO SUBMETIDO EM 31/08/2020 • ACEITO EM 02/12/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65390
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

209
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

NO RASTRO
HISTORIOGRÁFICO DA
PSICANÁLISE NO BRASIL
REENCONTRANDO A
ESCRITA DA SUA FICÇÃO
ALINE LIBRELOTTO RUBIN
Universidade de São Paulo
São Paulo | São Paulo | Brasil
linelrubin@gmail.com
orcid.org/0000-0002-6265-3301

O presente artigo propõe, inicialmente, uma articulação


entre as diferentes tradições e momentos dos estudos
historiográficos da Psicanálise no Brasil desde sua
emergência na década de 1920. Buscamos situar
historicamente continuidades e descontinuidades
promulgadas pela virada epistemológica da década de 1970.
Em um segundo momento, com vistas a uma crítica à
abordagem historiográfica que se constituiu dentro do
paradigma da “ficção científica” e da “verdadeira
psicanálise”, o texto traz uma proposta metodológica para a
historiografia psicanalítica que estabeleça um retorno à
“ficção teórica” de Freud, como definido pelo historiador
Michel De Certeau. Para tal proposta, foram convocados
também alguns elementos da teoria do Texto de Barthes,
como o questionamento da noção de autoria. Buscando a
construção de uma historiografia psicanalítica brasileira que
se baseie em preceitos aliados à sua própria teoria,
pontuamos, por fim, o desafio atual de elaboração de uma
escrita histórica que seja reflexiva e também reparadora dos
silêncios, conivências e situações traumáticas que a
Psicanálise encontrou no seu passado.

historiografia psicanalítica – verdadeira psicanálise – ficção teórica

210
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

ON THE TRACK OF
PSYCHOANALYTIC
HISTORIOGRAPHY
IN BRAZIL
RESTORING THE WRITING
OF ITS FICTION

ALINE LIBRELOTTO RUBIN


Universidade de São Paulo
São Paulo | São Paulo | Brazil
linelrubin@gmail.com
orcid.org/0000-0002-6265-3301

This article proposes, initially, an articulation between the


different traditions and moments of the historiographic
studies of Psychoanalysis in Brazil since its emergence in
the 1920s. We have aimed to historically situate continuities
and discontinuities promulgated by the epistemological turn
of the 1970s. In view of a critique of the historiographical
approach that was constituted within the paradigm of
“science fiction” and “true psychoanalysis”, the text brings
a methodological proposal for psychoanalytic
historiography that establishes a return to Freud's
“theoretical fiction”, as defined by historian Michel De
Certeau. For this proposal, some elements of Barthes’
theory of Text were also summoned, such as the
questioning of authorship. Looking for the construction of
a Brazilian psychoanalytic historiography that is based on
concepts allied to its own theory, we point, finally, the
current challenge of elaborating a historical writing that is
reflective but also repairing of the silences, connivances and
traumatic situations that Psychoanalysis has found on its
past.

Psychoanalytical historiography
true psychoanalysis – theoretical fiction

211
revista de teoria da história 2 2020

INTRODUÇÃO
Para a Psicanálise, disciplina filha da revolução científica da
modernidade, uma questão central envolveu, desde seus primórdios, a
possibilidade de produzir conhecimento dentro dos moldes científicos sobre
algo que escapa à razão, que é da ordem da experiência. Essa questão acaba por
complicar ainda mais o trabalho de historiadores ou de interessados na história
da Psicanálise. Pois, a fim de apreender as veracidades sobre a história da
Psicanálise, somos convocados a lidar com algumas de suas especificidades:
uma prática na qual a matéria-prima é a formação do inconsciente e um campo
de estudos que, desde seu nascimento, esteve marcado pelos territórios sociais,
políticos e culturais nos quais emergiu, assim como pelas trajetórias pessoais (e
seus entrelaçamentos dentro e fora do setting analítico) dos homens e mulheres
que desenvolveram seus complexos sistemas teóricos.
A prática analítica, segundo Freud (1914), volta-se para o ausente na
história do sujeito, para aquilo que ele deixa de recordar, mas que acaba
retornando como um resto, a sua revelia. Há, na tradição historiográfica da
psicanálise, debates sobre como a comunidade psicanalítica se mostrou e se
mostra suscetível a um processo semelhante ao descrito por sua teoria: resiste,
censura e recalca a sua própria história, produzindo efeitos de retorno e
repetição desse recalcado (Roudinesco 1997; Frosh 2012; Vianna 1994; Rubin
et al 2016; Frosh; Mandelbaum 2019). Esse funcionamento “neurótico” da
Psicanálise e das suas instituições foi abordado pelo movimento historiográfico
ao se debruçar sobre a ausência e o silêncio de alguns trabalhos históricos
anteriores, para deles produzir uma inscrição simbólica possível, de presença e
sentido.
É o que vemos, por exemplo, no trabalho de Chaim Katz (1985). Ao
analisar o periódico oficial da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) entre os
anos de 1939 e 1945, o psicanalista percebeu o silêncio do movimento
psicanalítico ipeísta1 em relação aos desdobramentos da 2ª Guerra Mundial na
comunidade psicanalítica, entre eles a morte de psicanalistas, a onda de
imigração e a política de manutenção da Psicanálise sob o regime nazista na
Alemanha2. Silêncios perpetuados em um pacto transgeracional de filiação e de
fidelidade sobre um não-dito, que teria alcançado a história da Psicanálise no
nosso país3. O episódio mais emblemático desse funcionamento sintomático
ficou conhecido como o caso “Amilcar Lobo”4, que veio à tona ainda na
década de 1970 sob grande resistência, e que continua sendo elaborado e

1 “Ipeísta” é o termo utilizado para designar as instituições afiliados à Associação Psicanalítica


Internacional (IPA).
2 Na comunidade internacional, esses eventos foram restituídos na historiografia

psicanalítica no decorrer dos anos, não sem resistência. Ver Frosh (2005; 2012) e Goggin e
Goggin (2001).
3 Por exemplo, a quietude em relação ao passado de Adelheid Koch, analista judia que

chega ao Brasil em pleno no governo de Vargas, simpatético ao regime fascista europeu. O


silêncio da história de Théon Spanudis, psicanalista grego que veio ao Brasil também na década
de 50 e que abandonou a psicanálise em função também da resistência em torno da sua
homossexualidade. O silêncio de Werner Kemper, psicanalista alemão imigrado ao Brasil,
sobre seu passado de contribuição com o regime Nazista no Instituto Göring e a sua influência
no retorno de Mark Burke, psicanalista judeu, para Londres.
4 Episódio no qual um candidato a analista da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro

(SPRJ) trabalhava também como médico-tenente do exército durante o período ditatorial,


dando assistência a presos políticos que passavam por torturas. Para detalhes e
desdobramentos desse caso, ver Katz (1985), Vianna (1994), Coimbra (1995), Bulamah,
Kupermann e Moreira (2014) e Rubin et al (2016).

212
revista de teoria da história 2 2020

inscrito na história-memória dessa disciplina no país. Esse acontecimento5,


ocorrido durante o período da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985),
apontou para o entrelaçamento entre a história do Brasil e sua sociedade e a
história da Psicanálise. Costura essa que se deu na esteira de outros
entrelaçamentos prévios, remontando a entrada do saber psicanalítico no Brasil
(Facchinetti 2012).
Segundo o historiador e psicanalista Michel De Certeau (1987/2011),
na medida em que a Psicanálise esquece sua própria historicidade e sua relação
interna com os conflitos de poder, ela se torna um mecanismo de pulsões e um
dogmatismo de discurso6. Por outro lado, o lugar da ausência que se abre com
o esquecimento, ou o resto do retorno do recalcado, emerge como uma
possibilidade para a construção de uma nova escrita histórica (De Certeau
1987/2011). Nesse sentido, para que tenha sido possível um movimento de
restituição de silêncios e rasuras da história da Psicanálise no Brasil, uma outra
história teve que ser contada anteriormente.

O MOMENTO DA LEGITIMIDADE
Estudiosos da área sinalizam a existência de diferentes momentos na
tradição dos estudos historiográficos da Psicanálise no país desde sua
emergência na década de 1920 (Oliveira 2002; Abrão 2007; Mezan 2009;
Facchinetti e Castro 2015). Os primeiros trabalhos históricos teriam sido
escritos pelo psiquiatra Júlio Pires Porto-Carrero7, sendo tão antigos quanto a
própria emergência do saber em terras brasileiras. Com o texto inaugural
Psychanalyse – a sua história e o seu conceito de 1928, Porto-Carrero descreveu
acontecimentos do movimento psicanalítico mais amplo e concluiu “com
algumas referências ao movimento psicanalítico brasileiro” (Oliveira 2002,
145). Um ano depois, o psiquiatra escreveu A contribuição brasileira à psychanalyse,
texto no qual também destacou acontecimentos, além de personagens que
marcaram a introdução das teorias psicanalíticas no Brasil (Abrão 2007).
Abrão (2007, 8) destaca que a abordagem historiográfica do tipo
descritiva se constituiu como a “primeira tentativa de delinear um campo de
investigação sobre a história do movimento psicanalítico”. Dentro dessa
tradição, a História da Psicanálise foi narrada no estilo de uma sucessão de
fatos e eventos, em uma abordagem que enfatizava “a periodização de
acontecimentos, descrição dos eventos e a nomeação de personagens que

5 Para De Certeau (1975/2011, 104), acontecimento não é equivalente ao fato histórico,


sendo aquilo “que recorta, para que haja inteligibilidade; o fato histórico é aquele que preenche
para que haja enunciados de sentido. O primeiro condiciona a organização do discurso; o
segundo fornece os significantes, destinados a formar, de maneira narrativa, uma série de
elementos significativos”.
6 Discurso é um termo polissêmico, do qual diferentes escolas de pensamento e autores se

apropriaram e desenvolveram estratégias próprias de utilização. Por exemplo, para Foucault a


noção de discurso relaciona-se com uma noção de poder ou ética em torno de práticas. Já para
Lacan, o discurso é o que faz “laço social”. Não se reduzindo à soma das suas falas individuais,
o discurso se apresenta como condição de possibilidade para um conjunto de ditos e
enunciados possíveis (Dunker et al 2016, 18). Assim, o discurso cria determinadas relações de
linguagem que, por sua vez, engendram uma dimensão ética e política de “relações que
constituem sujeitos, organizam saberes e formas de poder”. Dentro dessa perspectiva, se a
linguagem for reconhecida na sua dimensão performativa, o discurso poderá ser entendido
como da ordem da ação, o que permite, segundo os autores, “pensar que os discursos criam
corporeidades” (Dunker et al 2016, 130-131).
7 Psiquiatra e importante disseminador das ideias freudianas na introdução do saber

psicanalítico no país, especialmente no campo da educação. Ver Abrão (2011).

213
revista de teoria da história 2 2020

marcaram a evolução do movimento” (Abrão 2007, 8-9). Facchinetti e Castro


comentaram sobre os textos de Porto-Carrero:

(...) a perspectiva adotada por Porto-Carrero mostra os


desenvolvimentos da psicanálise no Brasil sempre conectados aos nomes
preeminentes da psiquiatria ou da intelectualidade daquele período. As
intenções do autor não eram somente apresentar as teorias de Freud
como uma ciência verdadeira (reconhecida pela medicina psiquiátrica
brasileira), mas também mostrar que ele era parte de um grupo de
intelectuais capazes de entender uma teoria “tão complexa e inovadora”.
(Facchinetti e Castro 2015, 20)8.

O leitor pode perceber, desde então, a busca por uma legitimidade da


Psicanálise, ao nomeá-la como uma “ciência verdadeira” e conectá-la a
importantes nomes da intelectualidade e da Psiquiatria da época. Porém, nesse
momento ainda não havia um discurso hegemônico sobre o que consistiria
uma práxis psicanalítica. Se essa tradição objetiva esteve presente desde Porto-
Carrero, foi com a entrada do movimento institucionalista que se iniciou um
período de disputa pela legitimidade do saber psicanalítico e das narrativas
históricas em torno dele.
Dessa forma, a formalização da Psicanálise no Brasil se iniciou com os
esforços em prol da institucionalização do movimento nos moldes da IPA,
quando surgiram também os primeiros trabalhos voltados à construção de uma
história oficial da disciplina no país (Oliveira, 2002). Esse movimento de
institucionalização do movimento psicanalítico ocorreu simultaneamente, e
como parte localizada, do que Mezan (2009) denominou como a “Era das
Escolas” 9 na Psicanálise, indo do início da década de 1940 até meados da
década de 1970 e marcando um período de “coexistência forçada e a
intolerância recíproca das grandes Escolas” (Mezan 2009, 39).
De acordo com Oliveira (2009, 98), os trabalhos da história dita oficial
apresentavam um estilo positivista e “uma visão legalista do movimento
ipeísta”, além de uma narrativa histórica plana, produzida pelos próprios
psicanalistas e “discípulos do movimento”. Eram nomeados personagens
heroicos e seus sacrifícios para que a Psicanálise fosse consolidada no país. O
canal de divulgação desses trabalhos eram, em grande parte, os órgãos oficiais
de divulgação do saber psicanalítico afiliados a IPA no Brasil, como a Revista
Brasileira de Psicanálise. Contudo, apontando para a construção de um campo em
disputa, Facchinetti e Castro (2015) destacam que essa abordagem esteve
presente também fora das instituições oficiais, como mostram os textos de
Porto-Carrero e Gastão Pereira da Silva. Segundo os autores, a narrativa de
ambos também dava destaque aos desenvolvimentos da psicanálise em uma
perspectiva linear e com testemunhos de engrandecimento pessoal na narração
das suas trajetórias pessoais, visão contestada pela primeira geração de
psicanalistas formados nas sociedades ipeístas.
O texto que marcou o início da tradição da história oficial teria sido de
Virgínia Leone Bicudo, pioneira da psicanálise em São Paulo, em 1948, no qual
a psicanalista fez uma “apologia do movimento lançado por Durval

8 Todas as traduções deste trabalho foram realizadas pela autora.


9 Após a 2ª Guerra Mundial, Mezan destaca a ocorrência de transformações na história da
Psicanálise, com a formação de sistemas “baseados em visões específicas tanto do que é a
mente humana quanto de como se deve conduzir uma análise. Assim, se formam as quatro
principais escolas: a kleiniana, a da psicologia do ego, a lacaniana e a das relações de objeto”
(2009, 38).

214
revista de teoria da história 2 2020

Marcondes10 em São Paulo” (Oliveira 2002, 147). Quase três décadas depois, o
texto da psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP),
Cléo Lichtenstein Luz, evidencia a continuidade de uma abordagem voltada à
hagiografia da história da Psicanálise no Brasil:

A Durval Marcondes, bandeirante, desbravador, lutador incansável, e


Adelheid Koch, batalhadora, mestra, mãe, irmã, amiga e companheira
dos primeiros analistas e de muitos de nós – homem e mulher
admiráveis, cuja chama e capacidade de amor e doação não se
extinguiram ou diminuíram com o passar dos anos – as homenagens de
nós, psicanalistas que já encontramos os caminhos abertos, quase sem
pedras, amaciados, aplainados. (Luz 1976, 509).

Abrão (2007, 12) cita também a psicanalista Marialzira Perestrello, do


Rio de Janeiro, como uma referência nos estudos históricos da psicanálise no
Brasil. Apesar de, na década de 1990, ter elaborado trabalhos com “tom menos
descritivo a bem de uma abordagem contextual”, seu livro História da Sociedade
Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (1987) é um exemplo da narrativa
histórica oficial. No livro, Perestrello aborda os estudos dos que vieram antes
(os outros) como ambivalentes e contraditórios e que teriam se utilizado de
forma parcial da Psicanálise. A psicanalista, assim, dividiu a história da
psicanálise em um antes e um depois, quando a “psicanálise veio a ser
totalmente entendida pelo grupo no qual foi membro” (Facchinetti e Castro
2015, 24). Os autores apontam uma afirmação semelhante de Mário Pacheco
de Almeida Prado, da mesma sociedade, de que a história da psicanálise teria
começado efetivamente em 1945 com a formação do grupo ipeísta na cidade.
Nesse sentido, como cunhado por Danilo Perestrello (1976), os “precursores”
ou os “psicanalistas selvagens”, diferentes dos “pioneiros” (a primeira geração
de psicanalistas ipeístas), teriam se utilizado de uma forma errônea da teoria
psicanalítica (Perestrello 1987).
A historiográfica ocidental, segundo De Certeau se fundou como uma
heterologia (discurso sobre o outro, diferente de si), constituindo-se em função
da separação entre o saber que contém o discurso e o objeto que o sustenta e
marcando uma clivagem entre um antes e um depois que definiu por séculos a
escrita da história (1975/2017, XVII). Na luta por se afastar dos mitos, das
lendas e da memória coletiva, a historiografia realizou um corte entre os
discursos ditos da “ficção” e da “história”. O primeiro foi concebido como o
errôneo e o segundo autorizou-se a falar em nome do real. Ou seja, ao falar
daquilo que não é falso ou errôneo, “fazia-se crer na existência do verdadeiro”
(De Certeau 1987/2011, 46). O “falar em nome do real” é um elemento central
trazido por De Certeau nos seus apontamentos sobre a historiografia ocidental,
chamando atenção para o duplo movimento presente nesse tipo de narrativa:
“As representações são autorizadas a falar em nome do real apenas na medida
em que elas fazem esquecer as condições de sua fabricação” (1987/2011, 54).
Nesse sentido, ao esquecer suas condições de fabricação, o discurso
assume uma coloração neutra. A neutralidade no discurso científico, segundo o
autor, evita a designação das escolhas e a indicação dos poderes,

10 Oliveira (2002, 147) destaca a construção biográfica em torno do personagem de Durval


Marcondes no movimento paulista, que “aparece como um herói solitário, um Dom Quixote
que contra ventos e moinhos funda esse saber num universo psiquiátrico hostil e
marginalizado pela intelligentsia médica. No entanto, nossas recentes pesquisas sobre a
implantação da psicanálise em São Paulo nos revelaram um Marcondes bem integrado e
participante ativo no meio médico paulista, em particular na Associação Paulista de Medicina
(APM)”.

215
revista de teoria da história 2 2020

negligenciando “as condições de sua produção nos conflitos socioeconômicos


de uma sociedade” (De Certeau 1975/2017, 17). Porém, a ideologia11 eliminada
pelos métodos e operações de representação do “real” estaria implícita em cada
sistema de interpretação. Segundo o historiador, “toda interpretação histórica
depende de um sistema de referência (...) que infiltrando-se no trabalho de
análise, organizando-o à sua revelia, remete à ‘subjetividade’ do autor” (De
Certeau 1975/2017, 49). Assim, “o que ela [a ideologia] manifesta realmente é
o inconsciente dos historiadores, ou, mais exatamente, do grupo ao qual
pertencem”, podendo, inclusive, informar sobre a situação econômica na qual
se encontra um grupo social da época (De Certeau 1975/2017, 17).
O papel de uma suposta neutralidade analítica esteve presente no
discurso dos psicanalistas durante o período da “Era das Escolas”. E, tendo se
estendido para além do setting analítico, foi um tema já levantado pela
historiografia da área (Oliveira 2017; Rubin et al 2016). Segundo o historiador
Gomes (2018), o esforço para garantir as condições que possibilitaram uma
psicanálise respaldada no saber científico dentro do contexto da ditadura civil-
militar exigiu a construção de um discurso psicanalítico hegemônico e
legitimado pela “verdadeira psicanálise”. Assim, tanto a recomendação de uma
postura de neutralidade analítica a respeito de questões ideológicas e políticas,
como um discurso de que existia uma psicanálise considerada verdadeira,
foram elementos centrais que compuseram um projeto de legitimidade do
saber e da prática psicanalítica daquele período.
O uso de expressões como “psicanálise oficial”, “ortodoxia” e
“heréticos” pode ser remontado a Freud no seu icônico texto Contribuição à
história do movimento psicanalítico. Nele, Freud (1914/2012, 246) faz uma
delimitação sobre o que diria respeito à Psicanálise e “como ela se distingue de
outras maneiras de estudar o inconsciente”, citando os estudos de Jung e Adler
como exemplos de desvios. Assim, a “verdadeira psicanálise”, nesse sentido,
seria representada pelas instituições criadas pelos herdeiros “diretos do Grande
Pai”, que detém os conhecimentos ensinados por ele. Mas que, sobretudo,
garantiria um prestígio e privilégio político e social ao campo (Gomes 2018,
68). Para De Certeau, ao ser criticado por afastar-se da seriedade do campo da
Psiquiatria, atribuidor de autoridade ao saber, Freud acabou por buscar a
compensação na consolidação da instituição psicanalítica. O papel da
instituição, dessa forma, consistiria em fazer com que o discurso fosse dotado
de referencialidade e autorizá-lo pelo viés do real. Seria essa “máquina
institucional” que efetuaria e garantiria a operação em que o nada do discurso
romanesco é substituído por algo de autoridade (De Certeau 1987/2011, 108).

Em vez de renunciar (eis o que seria um “luto” mallarmeano) a uma


posição que dê crédito à aparência da referencialidade, ele desenha essa
posição por saber que, sem ela, seria apenas um romancista. Quando
mais evidente se torna sua descoberta de um discurso e das antigas
lendas, tanto mais premente se torna a instauração, e a restauração de dia
em dia, de uma posição institucional que confira autoridade a esse
discurso diante dos discípulos e da posteridade.
(De Certeau 1987/2011, 113).

11 Para De Certeau, a denegação da particularidade do lugar do qual se fala seria um

princípio do discurso ideológico. Além de excluir a teoria, ela instalaria “o discurso em um


não-lugar, proíbe a história de falar da sociedade e da morte, quer dizer, proíbe-a de ser a
história” (De Certeau 1975/2017, 64).

216
revista de teoria da história 2 2020

Assim, os psicanalistas formados institucionalmente nas primeiras


gerações do movimento psicanalítico brasileiro se viam como os responsáveis
pela disseminação da “verdadeira psicanálise” no país. Em um texto de 1982,
Leão Cabernite12 destacou que a maioria dos pioneiros da Psicanálise na
América Latina fez suas formações com europeus, particularmente com
analistas ingleses e alemães. Isso fez com que as primeiras gerações
concebessem a formação psicanalítica como um sistema que iria proteger e
manter a “Psicanálise pura” (Cabernite 1982, 415). Citando uma entrevista
dada pelo mesmo psicanalista ao Jornal do Brasil em 1986, Coimbra (1995)
destacou os objetivos enquanto presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de
Janeiro (tendo passado por três mandatos durante a década de 1970), que
reafirmavam um projeto de hegemonia e legitimação da disciplina no Brasil:

Assumi a presidência da SPRJ e uma das minhas metas foi defender a


psicanálise de ataques diversos vindos sob as formas mais variadas. Meu
propósito foi o de manter a Psicanálise dentro dos padrões que impeça
sua descaracterização. Isso me tornou extremamente impopular entre
aqueles que queriam ser psicanalistas sem se submeter ao processo de
formação preconizado por Freud e instituído pela IPA.
(Jornal do Brasil 1986 apud Coimbra 1995, 105).

Os “ataques diversos” citados por Cabernite envolviam os ditos usos


parciais da Psicanálise, como destacou Perestrello (1987) ou uma falsa adesão à
Psicanálise, como indicado por Virginia Leone Bicudo. Em 1967, a psicanalista
publica um texto no qual alerta para as novas formas de resistência que a
Psicanálise estaria enfrentando e demarca um tipo correto de adesão à
disciplina. Algum tempo depois, no ano que marcou o fim do período
chamado como “anos de chumbo”, ao falar de um “estado regressivo social
calamitoso”, Mário Pacheco de Almeida Prado cita o efeito de algumas
“deformações das verdadeiras ideias de Freud” (Prado 1974, 149). Essas
deformações baseavam-se no entendimento errôneo de que as crianças não
deveriam ser reprimidas, por exemplo. Supomos que Prado estaria se referindo
a disseminação da teoria reichiana13 que baseava a prática dos chamados
“corporalistas” brasileiros, tão difundida no contexto contracultural a partir do
final da década de 1960. Contudo, isso não é afirmado explicitamente pelo
psicanalista na sua escrita.
Dez anos depois, no último ano do regime militar, também o analista
da SPRJ, Ernesto La Porta (1984), chama atenção para o alcance da teoria
psicanalítica na cultura e cita também a falsa concepção de liberdade provinda
das distorções do pensamento psicanalítico, que estariam afetando o
comportamento dos indivíduos na sociedade. Isso teria ocorrido por meio da
desinformação e da resistência à verdadeira concepção de Psicanálise. Neste
texto, La Porta associa a violência social a um mal-uso da psicanálise: “a
deturpação da Psicanálise por resistência, eis um dos piores problemas que
atacam toda uma classe média despreparada e que colabora, por sua vez, para
instigar as frustrações, e, portanto, a violência” (La Porta 1984, 416).

12 Leão Cabernite, psicanalista carioca e um dos guardiões da “verdadeira psicanálise”,


presidente da SPRJ no início dos anos 70 e analista didata de Amilcar Lobo na mesma década.
13 Uma das principais referências teóricas tomada como inspiração para a revolução sexual

da contracultura e dos protestos de Maio de 1968 foi o livro O combate sexual da juventude (1932)
de Wilheim Reich, discípulo de Freud e expoente da abordagem “libertária” clássica. Nesse
livro, Reich afirma que “o problema central da juventude é o das relações sexuais no momento
da adolescência, e o da posição tomada pela ordem social, o Estado burguês e os seus
representantes em relação à sexualidade” (Reich 1986, 10).

217
revista de teoria da história 2 2020

Os três exemplos citados mostram que a narrativa em torno da


“verdadeira psicanálise” atravessou décadas, buscando a legitimação do saber e
das práticas analíticas de determinados grupos. Contudo, essas narrativas
faziam parte de um campo em disputa, ao lado de críticas e questionamentos
do lugar verdadeiro pretendido por essa vertente. As tensões políticas e
epistemológicas dentro do movimento psicanalítico e nas diferentes
abordagens da história da Psicanálise começaram a se intensificar a partir dos
acontecimentos históricos em curso no final da década de 1960. Esses, que
vinham abrindo fissuras nas certezas políticas e epistemológicas a nível global14,
culminaram no Maio de 1968 e na irradiação dos movimentos contraculturais,
com a contestação das várias formas de autoritarismo e do status quo nas
camadas médias e urbanas da Europa, América e Ásia (Silveira 2010). Dentro
desse contexto, a chamada “Era das Escolas” começou a entrar em declínio e
transformações atingiram o movimento psicanalítico. De acordo com Mezan
(2009):

A partir do maio francês, surge a contestação à autoridade da IPA como


exclusiva detentora da legitimidade psicanalítica, originando a formação
de inúmeras instituições independentes (Em São Paulo, entre outras, o
curso de psicanálise do Sedes); no interior da própria IPA, a contestação
conduz à reforma de estatutos e a grandes mudanças no regime
dependente da autoridade do analista didata. (Mezan 2009, 40).

No Brasil, as diferenças teórico-metodológicas e políticas entre os


psicanalistas dentro e fora das instituições oficiais começaram a formar uma
disputa mais pungente a partir da primeira metade da década de 1970. Lado a
lado, estavam psicanalistas identificados como progressistas e psicanalistas
ortodoxos, pautados pela discussão em torno da “verdadeira psicanálise”.
Ilustrando essa tensão, foi lançada dentro da sociedade paulista a revista IDE
em 1975. Rompendo com um formato científico, além de trazer discussões e
reportagens que dialogavam com elementos do cenário contracultural brasileiro
da década de 1960, a revista trazia também entrevistas com pioneiros do
movimento psicanalítico ipeísta e com diferentes figuras da cultura brasileira.
Assim, a IDE representou a construção de um diálogo entre diferentes
gerações do movimento, buscando historicizar o momento da Psicanálise e
abordar questões sociais e políticas da sua época que atravessavam a vida dos
membros.

Foi uma época de intensa movimentação. Decidimos trazer à tona o


feminismo, em vários artigos sobre a condição da mulher. Era um tema
muito pouco oficial que fomos abordando, tanto que a Rose Azambuja
pôde escrever sobre uma história em quadrinhos em que se conversava
sobre as criadas e as crianças, abordando toda uma dimensão psicológica
e cultural. A ide era nova. Tínhamos o Deodato falando da psicanálise
existente em nosso meio e refletindo sobre a nossa Sociedade, a de um
grupo fazendo ciência; o Chaim falando sobre mitos; eu e o Paulo
Duarte falando sobre os candidatos; o Tenório realizando entrevistas
com Caetano Veloso, enfim, tínhamos uma temática variada. Abrimos
caminhos, eu pens. (Hamer et al 2015, s/p).

14 Para citar alguns: a Primavera de Praga, o fim da Guerra do Vietnã, os assassinatos de

líderes políticos como Che Guevara, Martin Luther King, Robert Kennedy, a Revolução
Cultural de Mao na China, a Guerra Civil na Argélia e os golpes militares nas Américas Latinas.

218
revista de teoria da história 2 2020

Além disso, a IDE se posicionou em oposição à existência de uma


forma correta ou verdadeira de ler textos psicanalíticos, indo na contramão de
psicanalistas como La Porta (1984) e Prado (1974) sobre os desvios
psicanalíticos, característico debate da “Era das Escolas”:

Esta abertura para a interpretação dos livros ou para diferentes leituras


dos livros, só é possível se os mesmos não são controlados pelos que se
colocam como os únicos intérpretes verazes. Imediatamente ocorrem-
nos os perigos a que nós mesmos, psicanalistas, estamos sujeitos. Para
alguns monges desse convento o conhecimento pode ser fonte de uma
vida mais fértil, para outros o conhecimento envenena os espíritos,
desviando-os do “verdadeiro” caminho. (Editorial 1984, 3).

Além dessas mudanças internas ao movimento ipeísta, a influência


desse cenário de interdisciplinaridade e mudanças de paradigmas
epistemológicos atingiu também os estudos historiográficos da Psicanálise no
Brasil a partir da década de 1980, trazendo reformulações no campo. A
historiografia geral foi sacudida por formulações teóricas diversas que miravam
os domínios da história, com Barthes na semiótica, Bourdieu na sociologia,
Derrida na filosofia e Foucault, com a sua investida estruturalista que não
deixou passar nem os historiadores, tampouco os psicanalistas (Silveira 2010,
40).
Assim, segundo Abrão (2007, 6) foi “a partir da década de 1980 que a
historiografia da psicanálise se consolida enquanto campo de conhecimento
autônomo, enquanto área de pesquisa e ensino”. Este movimento aconteceu
em acorde com um cenário mais amplo, como sinalizado por Roudinesco e
Plon (1998) ao narrarem a eclosão de uma escola histórica do freudismo na
França, Alemanha, Estados Unidos e Grã-Betanha na década de 1980. No
Brasil, o crescente interesse pelos estudos historiográficos dessa disciplina
começou a ser visto tanto dentro dos círculos psicanalíticos, como no meio
universitário, abrindo para uma diversidade de discussões metodológicas
(Abrão 2007). Destacando a influência do trabalho de Michel Foucault15 nos
trabalhos historiográficos acadêmicos, Facchinetti e Castro (2015) afirmam
que:

foi um tempo em que uma reorganização das ciências sociais e humanas


estava ocorrendo, buscando uma melhor definição dos seus respectivos
campos e objetivos. No domínio acadêmico, os estudos psicanalíticos
experimentavam um avanço considerável nos anos de 1980 e a
autonomia universitária tornou possível que esses estudos fossem mais
amplamente disseminados. (Facchinetti e Castro 2015, 26).

Segundo esses autores, especialmente nas últimas décadas, a


abordagem historiográfica do tipo acadêmica começou a levar em
consideração particularidades regionais e complexidades locais, mostrando
que políticas específicas e contextos sociais particulares influenciavam a
maneira com que o conhecimento era absorvido (Facchinetti e Castro, 2015).
Dentro dessa nova perspectiva, os pesquisadores redescobriram o discurso
psicanalítico da década de 1920 e investigaram a recepção da Psicanálise em

15 Segundo Oliveira (2009), essa ruptura com a história oficial aconteceu com a dissertação

de mestrado em Filosofia de Gilberto Rocha, pela PUC-RJ, em 1983. Baseado na abordagem


foucaultiana, Rocha questionou a história “enquanto discurso que se caracteriza não
simplesmente pela narração de acontecimentos ou de lembranças concernentes a um episódio
ou a experiência do passado”, propondo-a como método de conhecimento capaz de informar
sobre a emergência do saber psicanalítico no Brasil (Rocha 1989, 6).

219
revista de teoria da história 2 2020

meio a diversos discursos, como o médico, o literário e o educacional


(Facchinetti e Castro, 2015).
A transformação nos modelos da historiografia da Psicanálise no Brasil
veio acompanhada a uma ruptura na filiação institucional ou, mais
particularmente, com um tipo de filiação marcada pela transferência analítica
das sociedades psicanalíticas. Assim, com o deslocamento do lugar profissional
do pesquisador, se deu início um movimento de escrita mais informada sobre
seu lugar de implicação na fabricação do real da história da Psicanálise no
Brasil. Porém, se esse contexto social, político e intelectual possibilitou a
publicação de importantes livros de denúncia de acontecimentos críticos da
vida psicanalítica brasileira16, é importante destacar que a tradição da história
oficial não é uma abordagem que foi ultrapassada por novos modelos e
métodos historiográficos.
Nesse sentido, Oliveira (2005, 45) destacou um novo impulso da
história oficial na década de 1990 com o projeto de recuperação da memória da
SBPSP e publicação do Álbum de família (1994). Frosh e Mandelbaum (2019, 6)
apontam como a história contada no livro não é nem analítica, nem crítica, ao
contrário, é sugestiva e evocativa, e traça a história da SBPSP com fotografias
de personagens de destaque que retrocedem até seus fundadores, alcançando o
próprio Freud, que nunca visitou o Brasil. A pequena parcela textual presente
no livro evita qualquer discussão dos significados e contextos políticos e sociais
das fotos ou da instituição. Segundo os autores, a introdução ainda destaca a
importância do esquecimento e os textos e fotos do livro são “sugestões para
serem tomadas como restos diurnos para que sonhemos nossa psicanálise,
nosso meio, nossa história e, por fim, nossa identidade” (Nosek et al 1994, 12
apud Frosh e Mandelbaum 2019, 7). Nesse sentido, os autores apontam que,
lançado alguns anos após o final do período ditatorial brasileiro, o livro parece
abandonar seu dever histórico em encarar e avaliar sua participação e resposta
em relação às violações do período autoritário. Outro exemplo mais recente de
esforço pela continuidade desse tipo de projeto historiográfico se mostrou com
a republicação, em 2016, sem nenhuma consideração sobre seu método ou seu
lugar nos estudos históricos da Psicanálise no Brasil, do emblemático texto
Notas para a história da psicanálise em São Paulo escrito por Luiz Almeida Prado
Galvão (1967).
Vemos, assim, a coexistência de uma “produção de uma história
pragmática, racionalista e positivista” (Oliveira 2005, 45) e também de
projetos que visam outras formas de “contar” e “fazer” a história do
movimento psicanalítico brasileiro17. De acordo com De Certeau, dentro
dessa segunda linha, a prática historiográfica se volta para as condições de
elaboração desse pensável, sobre os métodos e sobre as condições de
produção de sentido. O corte entre o presente e o passado se mantém para
que seja instaurado o trabalho científico, mas suas fronteiras são revistas. Esse
corte agora se move, se inverte, se desloca, caracterizando a relação própria
do lugar da operação científica. Essas mutações do lugar científico “seguem

16 Por exemplo, o livro Não Conte a Ninguém – Contribuição à história das Sociedade Psicanalíticas

do Rio de Janeiro da psicanalista Helena Besserman Vianna (1994) e Crise na psicanálise organizado
por Cerqueira Filho (1982) sobre a crise na psicanálise carioca na década de 1980.
17 De Certeau (1975/2017) coloca a escrita histórica na oscilação entre “contar histórias” e

“fazer história”, sem ser redutível nem a uma nem a outra. Segundo ele “[A escrita histórica]
não se interessa por uma ‘verdade’ escondida que seria necessário encontrar; ela constituiu
símbolo pela própria relação entre um espaço novo recortado no tempo e um modus operandi
que fabrica “cenários” susceptíveis de organizar práticas num discurso hoje inteligível – aquilo
que é propriamente ‘fazer história’” (De Certeau 1975/2017, XIX).

220
revista de teoria da história 2 2020

os movimentos mais amplos das sociedades, suas revoluções econômicas e


políticas, as relações complexas entre gerações ou entre classes etc”18 (De
Certeau 1975/2017, 28).
Considerando o desenvolvimento pouco linear da disciplina
psicanalítica, Abrão (2007) sublinha que o historiador da Psicanálise deve
voltar-se para “as continuidades e descontinuidades do desenvolvimento
teórico, que são afetadas pelas contingências históricas” (Abrão 2007, 8).
Levando esse aspecto em consideração, com a abertura política da sociedade
brasileira e os reflexos da virada epistemológica da década de 1970, ampliaram-
se as abordagens históricas e seus métodos, incluindo na pauta historiográfica
da Psicanálise brasileira a reconstrução de memórias e fatos, mas,
especialmente, de esquecimentos e rasuras das narrativas históricas prévias.
Nada mais pertinente à historiografia desse campo quando pensamos que,
assim como propõe Roudinesco (1995, 52), “retornar às origens é em si um ato
freudiano”.
Dessa forma, a comunidade psicanalítica pôde começar a se a ver com
o resto, o retorno do recalcado, silenciado pelo discurso científico promulgado
pela história oficial até então. Ao restituir esse passado esquecido, cria-se uma
condição de possibilidade para a sustentação de elementos antagônicos,
contraditórios, sem a necessidade de suturá-los no sentido e na explicação (De
Certeau 1987/2011, 69). Inserido nesse novo paradigma historiográfico,
propomos a importância de recuperar a noção de “ficção teórica” do texto
freudiano, que desloca o caráter de cientificidade da Psicanálise, assim como
outros elementos aliados a teoria psicanalítica, como possibilidade de
construção de um outro fazer historiográfico.

DO REAL À FICÇÃO: UMA PROPOSTA DE


ESCRITURA HISTORIOGRÁFICA DA PSICANÁLISE
Segundo De Certeau, a historiografia que se baseia na “ficção
científica”19 busca costurar as dilacerações dos acontecimentos, tecendo
representações das realidades históricas e camuflando as condições de sua
produção. Nesta visão, “costurar o real”, estabelecendo um sentido voltado à
determinação, é característica do discurso científico20 e da sua ficção própria.
Nessa operação atribuidora de sentido, o outro, representado pelo passado,
pelo louco, pelo selvagem ou por aquilo que marca uma diferença entre sujeito
e objeto, cunha uma nova inteligibilidade e garante “o trabalho interpretativo

18 Para ilustrar essa questão, De Certeau comenta a passagem do interesse na história social

para a história econômica durante o entre guerras, o crescimento dos estudos em história
cultural em um momento em que se impõe a importância social econômica e política da
“cultura” (lazeres e mass media), ou ainda, o “atomismo histórico” de Langlois e Seignobos
combinado ao liberalismo da burguesia reinante no final do século XIX.
19 A “ficção científica” se observaria, por exemplo, na ambição de matematizar e

quantificar a história através de pesquisas estatísticas e do uso da informática como garantias


de objetividade. Segundo De Certeau: “pelo tributo que paga à informática, a historiografia
leva a crer que ela não é ficção, suas tentativas científicas ainda articulam algo que não o é: a
homenagem prestada ao computador consolida a antiga ambição de fazer passar o discurso
histórico por um discurso do real” (De Certeau 1987/2011, 61).
20 Segundo Dunker et al (2016, 45-46), após a década de 1980 se estabeleceu um debate

mais robusto sobre a crítica política e ética do que vem a ser o estado atual da ciência em sua
organização disciplinar. Nesse âmbito, aparecem críticas da conveniência entre a ciência e os
processos de individualização da modernidade, ou ainda, “entre a foraclusão do sujeito e seu
retorno sob a forma de racionalidade técnica, segregação e alienação”.

221
revista de teoria da história 2 2020

de uma ciência (‘humana’)” sempre em atualização (De Certeau 1975/2017,


XVII).
As ciências humanas, segundo Barthes, constituídas tardiamente na
esteira do positivismo burguês, apareceram como os álibis técnicos para que a
sociedade mantivesse “a ficção de uma verdade teológica (...) desvencilhada da
linguagem” (Barthes 1967, 12). Porém, o autor sublinha, essa divisão foi
colocada em questão quando a “exploração do cosmo” correspondeu
“novamente a exploração da linguagem”, movimento conduzido pela
Linguística, pela Psicanálise e pela Literatura (Barthes 1967, 25). Considerando
esse deslocamento do lugar da linguagem, De Certeau afirma que a Psicanálise
marcou uma ruptura na maneira de conceber a narrativa dentro do campo das
ciências humanas do início do século XX. Essa ruptura ocorre quando Freud
realiza um retorno à “economia dos afetos” que, após Espinosa, Locke e
Hume, havia sido esquecida pela cientificidade positivista ou repelida para o
domínio do literário.
Conforme propõe o historiador, o restabelecimento das relações entre
ciência e literatura21 na invenção da psicanálise remonta ainda ao século XIX
quando Freud percebeu que as histórias de suas pacientes se liam “como se
fossem romances (Novellen)” e eram, “por assim dizer, desprovidas do caráter
sério da cientificidade (Wissenschaftlichkeit)” (De Certeau 1987/2011, 94). A
maneira de abordar a histeria por Freud transformou a sua maneira de
escrever, realizando uma conversão literária e introduzindo o gênero poético
no discurso científico. Nesse sentido, mesmo que Freud tenha sido
“alimentado pela Aufklärung científica do século XIX” e se empenhado por
fazer ser reconhecida a seriedade do seu modelo acadêmico vienense, não
deixou de afirmar que “o romancista precedeu sempre o cientista” (Freud
1971, apud De Certeau 1987/2011, 94).
De Certeau também afirma que, ao atraiçoar os padrões da norma
científica da época, o discurso criado pela Psicanálise assumiu a forma do que
se pode chamar, de acordo com uma expressão freudiana, de “ficção teórica”.
Ao fazer “sobressair o caráter fictício de seu objeto ao mostrar as contradições
que o determinam” (De Certeau 1987/2011, 102), Freud rompe com a lógica
da “ficção científica”, mas não completamente com a cientificidade, cunhando
outro tipo de ficção22. De Certeau está apontando para um tipo particular e
inovador de narrativa própria da Psicanálise:

21 Pensando na função do discurso da ciência, Barthes o contrapõe com a Literatura,

colocando que ambos não se distinguem por seus “conteúdos, métodos ou moral”, mas sim
por professarem a linguagem de maneira distinta. A ciência tem na linguagem um instrumento,
busca tornar-se transparente, neutra, submetida às operações científicas, e, com isso, perde em
sua autonomia. Na Literatura, a linguagem é “seu próprio mundo”, ela é a sua escrita, toma-se
por objeto e não o seu conteúdo (Barthes 1967, 5). Ao passo que a ciência ensina, enuncia ou
sutura, inscrevendo sentido, a Literatura representaria aquilo mesmo que a ciência (e sua
representação de indivíduo) recusa: “a soberania da linguagem” (Barthes 1967, 11). Para o
autor, o poema é a composição da linguagem oposta ao trabalho da ciência, e tem como objeto
o prazer, e não a verdade.
22 Contudo, existem discussões sobre a proximidade de Freud com a ciência, tornando a

Psicanálise próxima de uma “nova religião” com garantia de verdade. As transformações


epistemológicas e metodológicas em que a Psicanálise enveredou na sua história marcaram
aproximações e afastamentos com uma perspectiva histórica mais alinhada a um discurso
científico, dentro de suas teorias.

222
revista de teoria da história 2 2020

Enquanto a “cientificidade” constrói para si um lugar próprio ao eliminar


desse próprio tudo o que não lhe é conforme, a análise freudiana
identifica a alteridade que obceca a apropriação e a determina à sua
revelia; ela mostra os jogos contraditórios que se desenrolam no mesmo
lugar, entre o que se manifesta e o que se oculta aí; ela diagnostica o
equívoco e a pluralidade do lugar. Desse ponto de vista, também, ela é
do tipo romanesco. (De Certeau 1987/2011, 101-2).

Mesmo romanesca, ao desdobrar operações formais que organizam


uma “efetividade histórica”, Freud constrói uma “ficção teórica em que é
possível reconhecer e produzir os modelos lógicos indispensáveis a qualquer
‘explicação’ histórica” (De Certeau 1987/2011, 100). Há, nesse sentido, uma
mudança na perspectiva histórica, em que o tempo não é mais quantificado
cronologicamente, pois envolve a temporalidade própria do inconsciente. A
noção de posterioridade, articulação temporal da psicanálise entre passado,
presente e futuro, “subverte o sentido clássico de história como sequência
cronológica de fatos e prevê, em seu lugar, uma história que está sempre sendo
reescrita” (Matheus 2010, 331). Nesse sentido, o psicanalista Matheus (2010,
329-330) afirma que a perspectiva histórica da Psicanálise é aquela que destoa
de uma que “pretende descrever a cronologia dos fatos que determinam de
modo homogêneo e inequívoco a condição dos diferentes sujeitos que
participam do corpo social”.
Além de uma mudança na perspectiva histórica no que se refere a sua
temporalidade, o afastamento da teoria freudiana com o establishment científico,
especialmente das ciências humanas e psiquiátricas, se deu também em função
das noções de realidade psíquica e do inconsciente, que causaram um
descentramento nas categorias modernas de indivíduo, que o concebem através
de um ideário de unidade e maturidade. O sujeito da modernidade científica,
tendo como referência o cogito cartesiano (“penso, logo existo”), foi
problematizado pela Psicanálise pelas suas características de autorreflexividade,
identidade, autodeterminação (Dunker et al 2016, 85). Na visão de Matheus
(2010, 245), essa noção de síntese do indivíduo, com seu ideal de completude e
harmonia, aparece como um construto imaginário, efeito ilusório que a noção
de identidade carregaria23. É justamente esse “construto imaginário” que
Barthes destaca em torno das noções de autoria e de obra. Segundo ele, “o
autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade
na medida em que (...) ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz
mais nobremente, da ‘pessoa humana’” (Barthes 1968, 58).
Seguindo o pensamento de Barthes, ao abordar um texto buscando o
sentido da autoria, a explicação da obra é buscada sempre ao lado de quem a
produziu, como se “através da alegoria mais ou menos transparente da ficção,
fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa” (Barthes 1968, 58).
Nesse sentido, o autor se torna o passado do seu livro, operando ainda no
paradigma da clivagem entre um antes e um depois, um passado e um futuro.
Dar ao texto uma autoria é fechar-lhe em um significado, em uma tradução do
“eu” e do imaginário. Nesse sentido, a quebra com o chamado “império do
autor” iniciada pela poética de Mallarmé, seria o deslocamento da suposição da

23 Dentro do campo psicanalítico, a dimensão do inconsciente, os mecanismos e efeitos do

recalque e a cisão do conteúdo traumático são alguns dos fenômenos e condições do sujeito
que revelariam a impossibilidade de conquistar a promulgada síntese do indivíduo moderno.
Contudo, essa não é uma unanimidade epistemológica dentro das teorias psicanalíticas
desenvolvidas no decorrer do século XX.

223
revista de teoria da história 2 2020

propriedade da linguagem para outro lugar, em que é ela que performa e não o
“eu”.
A sua teoria do Texto, ao propor a ideia de “destruição do Autor”
como um instrumento analítico, apresenta um diálogo particular com a teoria
psicanalítica de orientação lacaniana. Barthes destaca que não é o sujeito do
qual o livro é predicado, deixando de operar no tempo do antes e do depois,
mas sim no tempo da enunciação:
a enunciação em seu todo é um processo vazio que funciona
perfeitamente sem que seja necessário preenchê-lo com a pessoa dos
interlocutores: linguisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que
escreve, assim como “eu” outra coisa não é senão aquele que diz “eu”: a
linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio
fora da enunciação que o define, basta para “sustentar” a linguagem, isto
é, para exauri-la. (Barthes 1968, 60).

Tomando como direção as noções propostas por Barthes de


escritura e da não-busca pela autoria, pensamos que uma escrita histórica da
Psicanálise, movida pelo desejo, mas também pela implicação de seu lugar e
práticas, conforme a “operação historiográfica descrita por De Certeau (1975-
2017), possibilite um retorno à “ficção teórica” de Freud e um distanciamento
da história oficial da “verdadeira psicanálise”. Ao retomar o caráter de “ficção
teórica”, a historiografia da Psicanálise se afastaria do discurso científico que
sutura o real e que se supõe neutra, podendo, assim, enunciar as “causas
capazes de articular um desejo” (De Certeau 1987/2011, 62). Pois, assim
como coloca Barthes, o discurso do desejo é o próprio da escritura, que faz
circular o sentido, evitando a dominação deste no real. Ao aproximarmos o
discurso psicanalítico da concepção de historiografia de De Certeau,
afastando-o do discurso científico no modelo positivista, deixa-se de elaborar
uma historiografia que busca a verdade ou a realidade e passa-se a buscar o
verossímil e o inteligível. Atentando-se “ao discurso e à sua fabricação, se
apreende melhor a natureza das relações que ele mantém com o seu outro, o
real” (De Certeau 1975/2017, 5).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme apontamos, ao fechar-se em um modelo discursivo
descritivo e determinativo, com a nomeação de personagens e biografias
santificadas, a historiografia psicanalítica brasileira deixou de acolher os
tumultos e tensões advindos dos antagonismos próprios da realidade social que
atravessavam sua instituição e seus atores. Nesse sentido, pensamos que a
historiografia da Psicanálise pode valer-se da proposta aqui apresentada por
algumas razões. Abrão (2007) apontou para como algumas particularidades da
Psicanálise tornam a sua investigação histórica um “processo diferenciado”
(Abrão 2007, 7). Como, por exemplo, a “indissociabilidade entre criador e
criatura” na Psicanálise, uma vez que a matéria-prima das formulações
analíticas vem da experiência do analista, tanto particulares, como da sua
clínica. Isso faria com que na Psicanálise, mais do que em outras disciplinas, “a
história pessoal de seus criadores torna-se altamente relevante para
compreendermos os desdobramentos das formulações por eles postuladas ao
longo de suas trajetórias” (Abrão 2007, 7). É o que já foi pertinentemente
sugerido por Zaretsky (2006), por exemplo, ao pensar não somente a história
pessoal, mas também os efeitos que a 1ª e 2ª Guerra Mundial tiveram nos
desenvolvimentos da teoria e prática de Freud no século XX.

224
revista de teoria da história 2 2020

Por outro lado, conforme coloca Abrão, mesmo as obras desprovidas


de um caráter biográfico poderiam resvalar na história pessoal dos grandes
personagens que edificaram a teoria psicanalítica. Um possível efeito desta
tendência é o risco de a abordagem histórica reduzir-se a uma leitura
hagiográfica da Psicanálise ou a uma busca do sentido verdadeiro por trás dos
textos de determinados autores. Nesse sentido, as abordagens que tentam
predicar a obra como um antes da vida do autor, desconsidera que o autor
(tanto do texto, como da escrita histórica) está submetido a ideologias, a
hipótese do inconsciente e aos processos políticos e discursivos da
individualização. Levando em consideração o descentramento do sujeito (e,
portanto, da autoria), vemos atualmente uma vertente que recupera o papel
histórico de personagens até então marginais da história da Psicanálise no
Brasil, sem cair um uma biografia idealizadora. Citamos, como exemplo, o
trabalho de Afonso e Mandelbaum (2017) sobre o “vigoroso psicanalista” Karl
Weissmann.
Além disso, considerando a dimensão do lugar profissional na
operação historiográfica, destacamos também trabalhos que levam em conta a
reflexividade do pesquisador-historiador da Psicanálise. Mandelbaum (2021)
chama atenção para o reconhecimento de aspectos mobilizados da
subjetividade do pesquisador nas determinações do campo da pesquisa, como
traços de histórias pessoais e elementos identificatórios do pesquisador.
Segundo ela, a elucidação desses elementos tornam mais explícitos e
conscientes a escolha dos pressupostos, das conivências e dos silêncios que
negociamos com nosso trabalho.
Não obstante, há um importante movimento preocupado em
recuperar a história da Psicanálise no contexto de repressão da ditadura civil-
militar brasileira (Russo 2012; Rubin et al 2016; Oliveira 2017). Esses estudos
também abordam a reflexão sobre os efeitos do conservadorismo institucional
(Frosh e Mandelbaum, 2017) e da cumplicidade de psicanalistas brasileiros com
o sistema de repressão (Mandelbaum; Rubin; Frosh 2018). Outra contribuição
historiográfica sobre este período destacou a existência de um discurso
psicanalítico normativo que, balizado pelo discurso científico e pelo ideal de
síntese e integração do indivíduo moderno, reduziu as resistências políticas e
culturais da juventude brasileira durante o período ditatorial à dinâmicas
psicologizantes e afastadas de sua realidade social (Rubin 2021, no prelo).
Mandelbaum destaca que pesquisar a Psicanálise brasileira nos anos
da ditadura também pode ser traumático, em função de novas descobertas,
mas, especialmente, pela ausência e dificuldade de acessar os arquivos desse
período (Mandelbaum 2021, no prelo). Se, por um lado, o desafio do discurso
historiográfico da Psicanálise no Brasil tem sido ampliado e facilitado como
parte da recente disposição da sociedade brasileira em explorar os eventos da
ditadura civil-militar, apoiada pelo estabelecimento da Comissão da Verdade
Nacional em 2012. Por outro, esse movimento enfrenta ainda resistências e
ambivalências. Frosh e Mandelbaum contam sobre um episódio recente
ocorrido ao elaborarem um artigo sobre os desafios da História da Psicanálise e
sua posição ética de enfretamento da negação dessa posição em contextos de
autoritarismo:

225
revista de teoria da história 2 2020

Após a avaliação e seu aceite pelo editor comissionado da Revista24


como “artigo muito importante” com um comentário adicional de que
“é indispensável que tenhamos contato com a história e não somente
com boas memórias”, o artigo foi traduzido e pronto para publicação.
Naquele ponto um de nós recebeu uma ligação da editora do jornal que
disse que pensou sobre o artigo durante uma semana e decidiu, sozinha,
que não poderia ser publicado. A decisão não foi por causa de quaisquer
preocupações sobre a qualidade ou precisão – ela não tinha sugestões de
alterações e nenhum argumento contra o conteúdo - mas porque as
sociedades psicanalíticas brasileiras “não estavam prontas” para o que
nós estávamos dizendo. Podemos interpretar isso como uma censura,
mas talvez devêssemos mais generosamente entender como ambivalência
em relação à história local da psicanálise e sua tarefa ética.
(Frosh e Mandelbaum 2019, 8).

Viemos, até aqui, reconhecendo possíveis aproximações da teoria


psicanalítica e da escrita histórica, apoiadas em preceitos propostos por De
Certeau e Barthes. Não obstante, Le Goff (2002, 27) destaca que o historiador
tem um problema que não é somente intelectual e científico, mas também
cívico e moral e deve prestar contas do seu passado. Acreditamos que assim
também deve agir o psicanalista que vê na Psicanálise uma ferramenta de
subversão às persistentes dinâmicas normativas e segregadoras, e que se
responsabiliza pelos usos inversivos que a disciplina enveredou no percurso de
sua história. É por essa via que se poderá preservar, no discurso historiográfico
da Psicanálise, a sua radicalidade epistemológica e metodológica baseada no
descentramento do sujeito e do autor, além de sustentar o desafio de
restituição dos esquecimentos e silenciamentos que marcaram a história da
psicanálise no país, criando possibilidades de inscrição de ausências através da
circulação da palavra.

REFERÊNCIAS

ABRÃO, Jorge Luís Ferreira. As contribuições de Júlio Pires Porto-carrero à difusão da


psicanálise de crianças no Brasil nas décadas de 1920 e 1930. Memorandum, v. 20, pp.
123-134, 2011. Acessado em 20/01/2020,
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02
ABRÃO, Jorge Luís Ferreira. Por um modelo metodológico de historiografia da
psicanálise. Pulsional - Revista de Psicanálise, Ano 20, n.189, p. 5-16, 2007.
BARTHES, Roland. Da ciência à literatura. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua.
São Paulo: Editora WMF, p. 3-12, 1988/2012.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São
Paulo: Editora WMF, p. 57-64, 1988/2012.
BARTHES, Roland. Jovens pesquisadores. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua.
São Paulo: Editora WMF, p. 98-108, 1988/2012.
CABERNITE, Leão. The selection and functions of the training analyst in analytic
training institutes in Latin America. Contemporary Psychoanalysis, pp. 398-417, 1982.
CERQUEIRA FILHO, G. (Org.) Crise na psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
COIMBRA, Cecília. Guardiães da ordem. Uma viagem pelas práticas psi no Brasil do ‘Milagre’.
Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.

24
Revista Brasileira de Psicanálise

226
revista de teoria da história 2 2020 •

DE CERTEAU, Michel. A escrita da História. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 3ª


Ed, 1987/2011.
DE CERTEAU, Michel. História e Psicanálise: Entre ciência e ficção. Tradução: João
Guilherme de Freitas Teixeira. São Paulo: Autêntica, 1975/2017.
DUNKER, Christian; PAULON, Clarice Pimentel; MILAN-RAMOS, José Guillermo.
Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas. Estação das Letras e Cores:
São Paulo, 2ª Ed., 2016.
DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil
entre muros. Boitempo Editorial: São Paulo, 2015.
EDITORIAL. IDE. n. 10, pp. 3-4., 1984.
GALVÃO, Luiz de Almeida Prado. Notas para a História da Psicanálise em São Paulo.
Revista Brasileira de Psicanálise, v.1, n.1, pp. 46-66, 1967.
FACCHINETTI, Cristiana; CASTRO, Rafael Dias.The historiography of
psychoanalysis in Brazil: the case of Rio de Janeiro. Dymamis, v. 35, n.1, pp. 13-34,
2015.
FACCHINETTI, Cristiana; PONTE, Carlos. De barulhos e silêncios: contribuições
para a história da psicanálise no brasil. Psychê (São Paulo. Impresso), Ano VII, n.11, pp.
59-83, 2003.
FACCHINETTI, Cristiana. Psicanálise para brasileiros: história de sua circulação e
apropriação no entre-guerras. Culturas Psi, n. 1, pp. 45-62, 2012.
FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. In: ______. Observações psicanalíticas sobre
um caso de paranoia relatado em uma autobiografia (“o caso Schereber”), artigos sobre técnica e
outros textos (1911-1913). Tradução Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010. p. 193-209, 2014.
FREUD, Sigmund. Contribuição à história do movimento psicanalítico. In: ______.
Obras completas, volume 11: totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e
outros textos (1912-1914). Tradução Paulo César de Souza. Companhia das Letras:
São Paulo, 1914/2012.
FROSH, Stephen. The Re-enactment of Denial. A. Gulerce (ed.) Re(con)figuring
Psychoanalysis: Critical Juxtapositions of the Philosophical, the Sociohistorical and the Political.
London: Palgrave, pp. 60-75, 2012.
FROSH, Stephen. Hate and the Jewish Science: Antisemitism, Nazism, and Psychoanalysis.
London: Palgrave, 2005.
FROSH, Stephen; MANDELBAUM, Belinda. “Like Kings in Their Kingdoms”:
conservatism in brazilian psychoanalysis during the dictatorship. Political Psychology, v.
38, n.4, pp. 591-604, 2017.
FROSH, Stephen e MANDELBAUM, Belinda. Psychosocial histories of
Psychoanalysis. Revista Praxis e Culturas Psi, v. 1., p.1-13, 2019.
GOMES, Roger Marcelo Martins. representações de ciência, profissão e história no
movimento psicanalítico brasileiro (1967 a 1986). Tese de Doutorado – Universidade
Estadual Paulista. (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2018.
GOGGIN, J. E.; GOGGIN, E. B. Death of a ‘Jewish science’: Psychoanalysis in the Third
Reich. Purdue University Press: Indiana, 2001.
HAMER, Chaim José; AZAMBUJA, Deodato Curvo de; FAVILLI, Myrna Pia; LIMA,
Luiz Tenório de Oliveira. Os primeiros anos da ide - lembranças e reflexões. Ide.
vol. 38, n.60, São Paulo jul./dez, s/p, 2015,
KATZ, Chaim. Nazismo e Psicanálise: outras relações. In C. S. Katz (Ed) Psicanálise e
Nazismo. Taurus Ed: Rio de Janeiro, 1985.
MOREIRA, Luiz Eduardo de Vasconcelos; BULAMAH, Lucas Charafeddine;
KUPERMANN, Daniel. Entre barões e porões: Amílcar Lobo e a psicanálise no
Rio de Janeiro durante a ditadura militar. Analytica, São João del-Rei, v. 3, n. 4, pp.
173-200, janeiro/junho, 2014.

227
revista de teoria da história 2 2020

LACAN, Jacques. A verdade e a ciência. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, p. 869-892, 1966.
LA PORTA, Ernesto Meirelles. A Agressividade na sociedade Contemporanea: Um
enfoque psicanalítico. Revista Brasileira de Psicanálise. v. 18, pp. 411-417, 1984.
LE GOFF, Jacques. Prefácio. Bloch (1993[2002]) A apologia da História ou o ofício do
historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
LUZ, Cléo Lichtenstein. A psicanálise em São Paulo – Jubileu de prata, homenagem à
Durval Marcondes e Adelheid Koch. Revista Brasileira de Psicanálise. v. 10, pp. 507-
509, 1976.
MANDELBAUM, Belinda. Wounds of dictatorship in the Brazilian psychoanalysis:
traumatic reviviscences in the research of the history of psychoanalysis.
Mandelbaum, B; Frosh, S.; Lima, R. (2021) Brazilian Psychosocial Histories of
Psychoanalysis. Palgrave Macmillan, London, UK. No prelo.
MANDELBAUM, Belinda; RUBIN, Aline e FROSH, Stephen. ‘He didn’t even know
there was a dictatorship’: The complicity of a psychoanalyst with the Brazilian
military regime. Psychoanalysis and History, 20 (1): 37–57, 2018.
MATHEUS, Tiago Corbisier. Adolescência – História e política do conceito em Psicanálise.
Coleção Clínica Psicanalítica, 2010.
MEZAN, Renato. Sob o “signo dos quatro”: ideias para abordar a história da
psicanálise. Pulsional – Revista de Psicanálise, ano 22, n.1, p. 28-46, 2009.
NOSEK, et al. Álbum de família: imagens, fontes e idéias da Psicanálise em São Paulo. São
Paulo, Brasil: Casa do Psicólogo, 1994.
OLIVEIRA, Carmen Lucia Montechi Valladares de. A historiografia sobre o
movimento psicanalítico no Brasil. Revista Latino Americana de Psicopatologia
Fundamental, 3: 144-153, 2002.
OLIVEIRA, Carmen Lucia Montechi Valladares de. Arquivos da Psicanálise no Brasil.
Pulsional - Revista de Psicanálise. Ano 22, n.1, p. 97-104, 2009.
OLIVEIRA, Carmen Lucia Montechi Valladares de.. História da Psicanálise - São Paulo
(1920-1969). Escuta: SP, 2005
OLIVEIRA, Carmen Lucia Montechi Valladares de. Sob o discurso da “neutralidade”:
as posições dos psicanalistas durante a ditadura militar. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro, v.24, supl., nov., p.79-90, 2017.
PERESTRELLO, M. História da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro: suas
origens e fundação. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
PERESTRELLO, Danilo. Contribuição ao estudo da história da psicanálise no Brasil.
Revista Brasileira de Psicanálise, Vol. 10, p. 293-296, 1976.
PRADO, Mario Pacheco de Almeida. Perfil trágico dos nossos dias. Revista Brasileira de
Psicanálise, V. 8, pp. 147- 156, 1974.
REICH, Wilheim. O combate sexual da Juventude. Edições Epopeia: São Paulo, 1932/1986.
ROCHA, Gilberto S. Introdução ao nascimento da psicanálise no Brasil. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1989.
ROUDINESCO, Elisabeth. Genealogias. Trad. Nelly Ladvocat Cintra. Rio de Janeiro:
Relume & Dumará, 1995.
ROUDINESCO, Elisabeth. Psychanalyse et histoire: résistance et mélancolie. In:
GAUTHIER, R. M. (org.). Les voies de la psychanalyse. Paris: L’Harmattan, p. 21-34,
1997.

228
revista de teoria da história 2 2020

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michael. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1998.
RUBIN, Aline; FROSH, Stephen; MANDELBAUM, Belinda. ‘No memory, no desire’:
Psychoanalysis in Brazil during Repressive Times. Psychoanalysis and History. V. 18, N.
1, pp. 93-118. Jan, 2016.
RUBIN, Aline Librelotto. A psychoanalysis for subversion: psychoanalytic discourse on
the “new youth” in dictatorial Brazil (1964-1985). Mandelbaum, B; Frosh, S.; Lima,
R. (2021) Brazilian Psychosocial Histories of Psychoanalysis. Palgrave Macmillan, London,
UK. No prelo.
RUSSO, Jane. The Social diffusion of Psychoanalysis during the Brazilian Military
Regime: Psychological Awareness in an Age of Political Repression. En Damousi, J.
y Plotkin, M. (Eds.) Psychoanalysis and Politics: Histories of Psychoanalysis under conditions of
restricted political freedom. Oxford, Inglaterra: Oxford University Press, 2012.
AFONSO, Rodrigo e MANDELBAUM, Belinda. A psicanálise e seus pioneiros no
brasil: notas sobre o “vigoroso psicanalista” Karl Weissmann. Analytica, São João
de-Rei. v.6, n. 11, julho/ dezembro, 2017.
SILVEIRA, R. M. G. A 3ª Geração dos Annales: cultura histórica e memória. CURY et
al. (orgs) (2010) Cultura histórica e historiografia: legados e contribuições do século 20. Editora
da UFPB, 2010.
VIANNA, Helena Besserman. Não Conte a Ninguém – Contribuição à história das Sociedade
Psicanalíticas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
ZARETSKY, Eli. Secrets of the Soul. New York: Knopf, 2004.

NO RASTRO HISTORIOGRÁFICO DA PSICANÁLISE NO BRASIL


REENCONTRANDO A ESCRITA DA SUA FICÇÃO
ARTIGO SUBMETIDO EM 25/08/2020 • ACEITO EM 08/12/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65241
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

229
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

O EXCITANTE CAUDILHO
DE RAMOS MEJÍA E O
DESVAIRADO MENEUR DE
NINA RODRIGUES
RAÇA E GÊNERO NAS
INTERPRETAÇÕES
SUL-AMERICANAS DA
PSICOLOGIA DAS MASSAS
FERNANDO BAGIOTTO BOTTON
Universidade Estadual do Piauí
Parnaíba | Piauí | Brasil
fernandobotton@phb.uespi.br
orcid.org/0000-0001-9746-6832

O presente trabalho discute duas perspectivas


interpretativas da psicologia das massas realizadas
anteriormente às leituras freudianas. Para tanto, nos
referimos ao livro Las massas argentinas (publicado em 1899),
formulado pelo psiquiatra e político argentino José María
Ramos Mejía, e aos ensaios presentes em As coletividades
anormais, do alienista e higienista brasileiro Raimundo Nina
Rodrigues (especialmente aqueles publicados em 1898).
Ambos se utilizaram de argumentos baseados em conceitos
e preconceitos metafóricos de gênero e raça para realizar
tais leituras e reinterpretações, constituindo versões
absolutamente heterodoxas da psicologia das massas,
embora bastante adaptadas às demandas sociais e políticas
das elites nacionais de sua época.

massas – líder – psicologia

230
revista de teoria da história 2 2020

ARTÍCULO

EL EXCITANTE CAUDILLO
DE RAMOS MEJÍA Y EL
DESENFRENADO MENEUR
DE NINA RODRIGUES
RAZA Y GÉNERO EN LAS
INTERPRETACIONES
SUDAMERICANAS DE LA
PSICOLOGÍA DE LAS MASAS
FERNANDO BAGIOTTO BOTTON
Universidade Estadual do Piauí
Parnaíba | Piauí | Brasil
fernandobotton@phb.uespi.br
orcid.org/0000-0001-9746-6832

Discutimos dos perspectivas interpretativas de la psicología


de las masas realizadas anteriormente a las lecturas
freudianas, tratamos del libro Las massas argentinas
(publicado en 1899) formulado por el psiquiatra y político
argentino José María Ramos Mejía y los ensayos presentes
en As coletividades anormais del alienista e higienista brasileño
Raimundo Nina Rodrigues (especialmente aquellos
publicados en 1898). Para realizar tales lecturas y
reinterpretaciones los dos se utilizaron de argumentos
basados en conceptos y prejuicios metafóricos de género y
raza, constituyendo versiones absolutamente heterodoxas
de la psicología de las masas, aunque bastante adaptadas a
las demandas sociales y políticas de las elites nacionales de
su época.

masas – líder – psicologia

231
revista de teoria da história 2 2020

Nas ultimas publicações de sua vida, Sigmund Freud se dedicou


imensamente à constituição de um corpo teórico e empírico para a
compreensão da psicologia social. Em textos como Moisés e o Monoteísmo (1987),
Psicologia das massas e análise do eu (2011) e O futuro de uma ilusão (2019), o pai da
psicanálise reformulou e aprofundou princípios que havia levantado desde seu
precoce Totem e Tabu (2013), afirmando então que, por sua perspectiva, não
haveria nenhuma incompatibilidade entre a psicanálise clínica e aquela análise
social, dado que operam por princípios semelhantes (FREUD, 2011). Talvez a
grande base de intersecção desses fundamentos psicanalíticos individuais e
coletivos pode ser encontrada nos comentários que o psicanalista fez a
Gustave Le Bon1 em Psicologia das massas e análise do eu (2011), publicado
originalmente em 1921. Para Freud, o grande nome da psicologia das massas
haveria acertado em sua análise de que a consciência individual se esfuma no
momento em que se formam agrupações multitudinárias, e que um líder seria o
único capaz de controlar sua violência e irracionalidade, porém lhe faltaria a
explicação para o mecanismo desse fenômeno. Segundo Freud, a chave para tal
explicação estaria contida no conceito, já formulado em seus compêndios de
psicanálise clínica, de libido:
farei a tentativa de aplicar, no esclarecimento da psicologia da massa, o
conceito de libido, que nos prestou bons serviços no estudo das
psiconeuroses. “Libido” é uma expressão proveniente da teoria da
afetividade. Assim denominamos a energia, tomada como grandeza
quantitativa — embora atualmente não mensurável —, desses instintos
relacionados com tudo aquilo que pode ser abrangido pela palavra
“amor”. [...] o amor entre os sexos para fins de união sexual. Mas não
separamos disso o que partilha igualmente o nome de amor, de um lado
o amor a si mesmo, do outro o amor aos pais e aos filhos, a amizade e o
amor aos seres humanos em geral, e também a dedicação a objetos
concretos e a ideias abstratas. Nossa justificativa é que a investigação
psicanalítica nos ensinou que todas essas tendências seriam expressão
dos mesmos impulsos instintuais que nas relações entre os sexos
impelem à união sexual, e que em outras circunstâncias são afastados
dessa meta sexual ou impedidos de alcançá-la, mas sempre conservam
bastante da sua natureza original. (Freud 2011, 43).

1 O pensamento de Gustave Le Bon foi um dos mais seminais em fins do século XIX e

início do XX em contextos mundiais. Sua interpretação de que as individualidades perdiam sua


racionalidade e heterogeneidade quando se agrupavam em coletividades foi o principal mote de
teorias sobe a liderança e a chefia, que passaram a compreender a necessidade do líder como
indispensável ao domínio das massas para evitar suas erupções volitivas, levantes e revoluções
absolutamente execráveis às elites e poderes políticos da época (Cohen 2013). Segundo
Moscovici (2013), as ideias contidas em A psicologia das massas (2005) de Le Bom, publicado
originalmente em 1985, teve impacto considerável em praticamente todo o século XX.
Moscovici observou que o livro era objeto de cabeceira de Benito Mussolini e uma cópia dele
foi presenteada a Adolf Hitler em um de seus encontros (2013), e que ambos se apropriaram
até mesmo dos elementos de gênero lançados pela tese original, tal como expresso pelo fascista
italiano: “A la multitud le gustan los hombres fuertes. La multitud es como mujer” e também
pelo nazista alemão: “El pueblo tiene, en su gran mayoría, unas características disposiciones
hasta tal punto femeninas que sus opiniones y sus actos son conducidos mucho más por la
impresión que reciben sus sentidos que por la reflexión pura” (2013, 143).

232
revista de teoria da história 2 2020

Dessa constatação, fica evidente o movimento do psicanalista em


estabelecer uma conexão direta entre esse vínculo libidinal individual e aquele
travado entre o líder e as massas:
experimentaremos a hipótese de que as relações de amor (ou, expresso
de modo mais neutro, os laços de sentimento) constituem também a
essência da alma coletiva. [...] evidentemente a massa se mantém unida
graças a algum poder. Mas a que poder deveríamos atribuir este feito
senão a Eros, que mantém unido tudo o que há no mundo?
(Freud 2011, 45).

Dessa forma, Freud alinha a imagem paterna dos líderes condutores de


massas a Cristo para a Igreja Católica e ao general para o exército – duas
instituições que ele denomina “massas artificiais”. Tais laços libidinais –
simultaneamente passionais, afetivos e eróticos – seriam fundadores de uma
relação de introjeção desse objeto de desejo (líder/pai) para o próprio ideal do
Eu – fundamento de estruturas psíquicas como o Supereu, responsável por
controlar as paixões e os impulsos violentos em nome da vida social. Esse líder
introjetado evocaria a imagem do pai primevo, despertando inconscientemente
a sede de submissão ou ânsia de autoridade, embora ressaltemos que o
conceito de autoridade para Freud possui uma conotação muito mais afetiva
do que autoritária. Seguindo seu argumento, Freud explica que a formulação da
homogeneidade de massas se estabelece justamente pela identificação gerada
entre os múltiplos indivíduos que introjetam para si esse objeto de desejo em
comum. Dessa forma, define o conceito de massa: “é uma quantidade de
indivíduos que puseram um único objeto no lugar de seu ideal do Eu e, em
consequência, identificaram-se uns com os outros em seu Eu” (Freud 2011,
76). Essa interpretação freudiana marcou grande parte das compreensões
posteriores acerca da psicologia das massas, do fascismo e dos movimentos
coletivos influenciando grandes filósofos e cientistas sociais tais como Theodor
Adorno com seus Estudos sobre a personalidade autoritária (2019).
Por mais que tais leituras freudianas se constituíram como uma das
formas mais hegemônicas de interpretação dos fenômenos de massa no
interior das ciências sociais de meados do século XX, tal interpretação tratava-
se apenas de uma das possibilidades explicativas para a psicologia das massas
disponíveis na época. De certa maneira, tratava-se de uma interpretação
bastante tardia, já que se passava quase 50 anos entre as primeiras publicações
de Le Bon e os últimos escritos de Freud. Nesse breve estudo, pretendemos
demonstrar que outras leituras, mais selvagens, dessa teoria foram realizadas
antes de Freud e, por mais que não fossem aprofundadas e nem recebessem o
esmero polimento teórico psicanalítico, anteciparam muitos desses postulados,
demonstrando certa ousadia e liberdade de adaptar tais interpretações às
realidades nacionais e sociopolíticas latino-americanas, mais precisamente,
brasileiras e argentinas. Referimo-nos especificamente às teses dos médicos e
psiquiatras José Maria Ramo Mejía (argentino) e Raimundo Nina Rodrigues
(brasileiro). Compreender essas interpretações pré-psicanalíticas da psicologia
das massas é bastante esclarecedor na constituição desse campo de leituras em
terras latino-americanas, pois elas também foram empregadas pragmaticamente
no manejo das multidões e na compreensão de diferentes agrupamentos sociais
naqueles países. É importante ressaltarmos que, quando as teorias sociais de
Freud foram traduzidas às línguas latinas e circulantes em solo sul-americano,
as interpretações de Mejía e Rodrigues já eram circulantes, incrustadas em
operacionalidades de poderes públicos de tal forma que até mesmo as

233
revista de teoria da história 2 2020

primeiras interpretações de Freud não abriam mão do cabedal de conceitos e


preconceitos gerados pelas interpretações pretéritas aqui elencadas. É
justamente nessa bricolagem de saberes que podemos compreender o impacto
intelectual, teórico, mas também político da psicologia das massas no Cone Sul
latino-americano.
A recepção/reformulação de uma psicologia centrada na personalidade
do líder enquanto forma de condução das massas foi bastante rápida no
contexto sul-americano. Tanto na Argentina quanto no Brasil, diversos
intelectuais propuseram o emprego dos saberes-poderes psi (psicologia,
psiquiatria, psicanálise etc) como forma de intervir pragmaticamente na
experiência social e política de seus países. Num contexto em que poucos
bacharéis eram os responsáveis pelos mais diversos projetos de nação
(Sevecenko 2006), o ideário da liderança das massas foi recebido, apropriado e
reinterpretado, predominantemente pelo discurso médico, configurando um
saber abrangente e eclético que transpassava toda a compreensão do homem,
da esfera individual à coletiva, constituindo conceitos e preconceitos políticos
que impactaram sobremaneira a experiência histórica daqueles países.
Segundo Ana María Talak (2010), a recepção intelectual da psicologia
sul-americana no início do século XX, especialmente na Argentina, deve ser
compreendida como um processo fragmentado, polifônico, que apresentava
múltiplos projetos políticos e compartilhava das mais diversas e ecléticas
referências, impossíveis de serem abarcadas pelo macroconceito “positivismo”.
Entre as sortidas recepções/reinterpretações, Talak mapeou a influência dos
principais autores lidos:
En Francia, fueron significativos en la conformación de una tradición
psicopatológica y evolucionista en el abordaje de la psicología, los
aportes de Hippolyte Adolphe Taine en el estudio de la mente en
relación con su base biológica (De l´intelligence , 1870) y en la
caracterización psicológica de las masas (Les origines de la France
contemporaine, 5 volúmenes publicados entre 1875-1893), de Jean
Martin Charcot en la concepción fisiológica y en la clínica de las
enfermedades nerviosas (Leçons sur les maladies du système nerveux
faites à la Salpêtrière, 3 volúmenes publicados entre 1885 y 1887) y de
Théodule-Armand Ribot en la concepción de la psicología como rama de
la biología y no de la filosofía, sobre la herencia psicológica (L´hérédité
psychologique, 1873), y sus trabajos sobre la atención (1889), los
sentimientos (1896), la imaginación creadora (1900), y sobre las
enfermedades de la memoria (1881), de la voluntad (1883) y de la
personalidad (1885), […]. En Italia, fueron importantes en este proceso,
por un lado, los primeros trabajos de Giuseppe Sergi sobre la psicología
fisiológica (Principi di psicologia, 1874), la teoría fisiológica de la
percepción (Teoria fisiologica della percezione, 1881), las emociones
(Dolore e piacere. Storia naturale dei sentimenti, 1894), y por el otro, la
teoría de Cesare Lombroso sobre el delincuente atávico (L´uomo
delinquente , 1876), y los desarrollos que continuaron Enrico Ferri en
criminología, Enrico Morselli tanto en la clínica psiquiátrica como en la
lectura de algunos problemas como el suicidio, la prostitución y el
magnetismo animal, y Scipio Sighele sobre la muchedumbre delincuente
(La folla delinquente , 1891). En Inglaterra, los aportes más relevantes
provenían del empirismo y el asociacionismo (John Stuart Mill,
Alexander Bain) y el evolucionismo propuesto por Herbert Spencer
(Principles of Psychology, 1855). Luego Francis Galton aportaría el uso
de cuestionarios y las estadísticas para medir diferencias individuales,
iniciando la psicología diferencial (Hereditary Genius 1969) y la
eugenesia. (Talak 2010, 9-10).

234
revista de teoria da história 2 2020

Desse heterogêneo leque de referenciais, pode-se destacar certos


objetivos comuns, especialmente com relação à tarefa de articular os planos da
individualidade e da coletividade de forma a compreender a psique ou
personalidade humana por meio do par corpo (concepção fisiológica, fisiologia
da percepção, psicologia biológica, psicologia fisiológica) e mente (sentimentos,
vontades, emoções, percepção). A partir desse diagnóstico, propunha-se traçar
um diagnóstico social para atuar sobre as diversas enfermidades coletivas:
criminologia, prostituição, degeneração, delinquências e revoluções. Desses
saberes-poderes se fundamentaram os esforços higienistas, eugenistas,
sanitaristas e alienistas com o intuito de constituir técnicas e práticas científicas
que respondessem aos anseios daquelas elites locais inspiradas pelos modelos
europeus de sociedade que se sustentam na capacidade científica de estabelecer
processos de progresso e civilização social.
Nesse ambiente de profusão e apropriação dos ideais políticos,
bastaram menos de cinco anos após a publicação original da Psicologia das
Massas em 1985 de Le Bom (2005) para surgirem fartas referências dessa teoria
em diversos tratados lançados por intelectuais latino-americanos, tais como o
higienista e alienista brasileiro Raimundo Nina Rodrigues e o sanitarista,
higienista e psiquiatra portenho José María Ramos Mejía, de modo que ambos
podem ser considerados introdutores e intérpretes das teorias que trataram das
relações psicopolíticas entre o líder e as massas no contexto sul-americano.
Nesse sentido, é importante desmitificarmos a ideia de que o ideário
psicossociológico das multidões foi uma mera imitação mal interpretada dos
ideários europeus; antes disso, seus leitores estavam bastante cientes dos
objetivos políticos locais e possuíam um verdadeiro projeto de intervenção nos
problemas nacionais a partir da utilização e adaptação de tais saberes. Tanto
Rodrigues quanto Mejía estavam conscientes das preocupações mais pujantes
das elites locais, destacando o perigo da contaminação das revoluções e
convulsões trabalhistas europeias em solo latino-americano. Com isso,
formularam pragmáticas teorias de intervenção/atuação políticas em suas
sociedades baseadas na nascente ciência social-psicológica.

RAMOS MEJÍA E AS MULTITUDES ARGENTINAS


José María Ramos Mejía foi um nome muito popular em sua época,
não apenas como médico psiquiatra, mas também como sanitarista e deputado.
Para conhecer um pouco de sua preponderância intelectual e política na
argentina, vale a pena tomarmos alguns apontamentos biográficos encontrados
em publicação anônima comemorativa da Universidad Pedagogica Argentina
(2011). Em 1873, Mejía funda e dirige o Círculo Médico Argentino e inicia a
publicação dos Anales, revista científica de grande prestígio. Cinco anos depois
publicou o primeiro tomo de Las neurosis de los hombres célebres en la historia
argentina, escrito que até hoje é conhecido como uma obra fundante da
psiquiatria argentina. Nela Mejía faz um apanhado dos principais avanços para
a época acerca da fisiologia e patologia nervosa e também pensa a neurose na
história argentina a partir da análise do caso do caudilho Juan Manuel de Rosas.
Pelo aplauso de grandes liberais, Mejía ingressou na elite intelectual da época.
Em 1880, foi nomeado inspetor dos hospitales de sangre. Começa seu trabalho
como médico no Hospital San Roque, no qual foi designado perito de tribunais
em foro nacional. Também foi nomeado médico e conselheiro técnico do
presidente da Comisión Municipal. Dessa parceria, foi fundada a Asistencia Pública
da qual assumiu como diretor geral em 1882, e nessa posição de poder passou

235
revista de teoria da história 2 2020

a exercer muitas atividades: criação do Hospital para Crónicos, do laboratório


bacteriológico da Escuela Municipal de Enfermería, etc. Nessa ocasião, a Facultad de
Medicina de Buenos Aires lhe ofereceu a cátedra de higiene em que cria o ramo
de Enfermidades Nervosas. De 1888 até 1898, assumiu o cargo de deputado
nacional e, no governo do presidente Luis Sáenz Peña, ocupou a presidência
do Departamento Nacional de Higiene. Também exerceu diversos cargos públicos:
foi Diretor do Instituto Frenopático, acessor do Ministerio de Relaciones Exteriores
para o estudo da Convenção Sanitária Internacional no Rio de Janeiro, também
foi nomeado presidente do Consejo Nacional de Educación. Dessas breves notas
biográficas, podemos compreender a posição social de enunciador que Mejía
ocupava naquele contexto, bem como o patamar de poder que seus enunciados
científicos obtinham no interior daquela sociedade.
Compreendendo a preeminência teórica, intelectual e política de Mejía,
podemos aventar os intuitos de sua teorização, especialmente na sua mais
famosa obra Las Multitudes Argentinas (1977), publicado pela primeira vez em
1899. Reinterpretando a impactante influência das ideias de Gustave Le Bon
(2005), Mejía buscava realizar um levantamento histórico de biologia social
compreendendo a formação e evolução das multidões argentinas. Desde os
pressupostos, sua tese é heterodoxa aos princípios do mestre Le Bon, uma vez
que o francês afirmava o fenômeno das multidões como um acontecimento
recente, iniciado com os grandes levantes revolucionários europeus. Já para
Mejía, as multidões seriam algo próximo a um motor da história, segundo ele,
mais fundamental que a teoria dos grandes homens de Thomas Carlyle2, já que
a ação da multidão havia sido soberana e onipotente em toda história
argentina. Contudo, Mejía não se esquiva do protagonismo dos líderes e suas
qualidades de personalidade que lhes destinaram ao mando:
Los hombres que proceden de ella [la multitud] son en toda su
psicología, su expresión genuina, una proyección individual de su alma y
de su genio […] Los dominadores de la multitud, los que, surgidos o no
de ella, han tenido calidades de cierto orden que les ha permitido
dominarlas, dirigirlas u, a veces, transformarlas. (Mejía 1977, 16)

Nessa composição, o líder não é aquele que simplesmente é tomado


como objeto de desejo e influencia a ação das multidões, mas, antes disso, é
sua expressão genuína, projeção da alma das massas. Em busca desse vínculo
líder-massas, Mejía lança mão da parafernália teórica leboniana quando
especifica o conjunto de homens que compunham a alma colectiva3. Tal como o
psicólogo francês, Mejía concordava que a importância da sugestão não deveria
ser descartada na condução das massas, já que influenciaria o homem em
coletividade, carente de inteligência e razão, aproximando-se da animalidade.
Tal interpretação é levada ao paroxismo quando se refere às populações latino-
americanas:

2 Carlyle foi um dos mais citados historiadores e historiógrafos do século XIX. Suas
formulações sobre o heroísmo dos grandes homens foram muito bem recepcionadas na
América Latina até a metade do século XX. Para uma discussão sobre a produção
política/científica do culto aos heróis empreendida por Carlyle (El-Jaick Andrade, 2006).
3 Essa interpretação já demonstra uma mescla da psicologia das multidões com conceito de

alma, muito caro ao pensamento científico – com tinturas de positivismo, catolicismo e


historicismo alemão – circulante no final do século XIX e início do XX na América Latina.

236
revista de teoria da história 2 2020

Si el hombre moderno de las sociedades europeas, que aislado es culto y


moderado, se muestra tan bárbaro cuando constituye la muchedumbre,
ya os imagináis como serían las multitudes americanas formadas por ese
elemento más instintivo y violento, más sujeto a los entusiasmos y a los
heroísmos de los seres primitivos. (Mejía, 1977, 17).

Se para Le Bom ou Freud a massa poderia ser composta por qualquer


tipo de indivíduo, para o psiquiatra argentino haveria um tipo específico de
população mais propenso a entrar em estágio de ebulição: “Yo tengo mi teoría
sobre las multitudes. Me parece que se necesitan especiales aptitudes morales e
intelectuales, una peculiar estructura para alienarse en sus filas. Defiero en esto
de Le Bon.” (Mejía 1977, 19). Segundo ele, em primeiro lugar constituem os
principais núcleos da multidão “los sensitivos, los neuróticos, los individuos cuyos
nervios solo necesitan que la sensación les roce apenas la superficie para vibrar
en un prolongado gemido de dolor o en la vigorosa impulsividad, que es la
característica de todas las multitudes” (Mejía 1977, 18). Percebamos que o
autor traça tipologias psicológicas para definir os (in)aptos a pertencerem a um
estado de massa psicológica compostas pelas populações incultas, incivilizadas,
animalizadas:
El verdadero hombre de la multitud ha sido entre nosotros el individuo
humilde, de conciencia equivoca, e inteligencia vaga y poco aguda, de
sistema nerviosos relativamente rudimentario e ineducado, que percibe
por el sentimiento, que piensa con el corazón u a veces con el vientre; en
suma, el hombre cuya mentalidad superior evoluciona lentamente,
quedando su vida cerebral reducida a facultades sensitivas.
(Mejía 1977, 20).

Sublinhamos as características de humildade e sentimentalismo que


definirão a metáfora, reiterativamente empregada por Mejía no decorrer de
toda sua obra, da multidão como mulher:
Por eso éstas [las multitudes] son impresionables y veleidosas como las
mujeres apasionadas, puro inconsciente. Fogosas, pero llenas de luz,
fugaces, amantes ante todo de la sensación violenta, del color vivo, de la
música ruidosa, del hombre bello y de las grandes estatuarias. Porque la
multitud es sensual, arrebatada y llena de lujuria para el placer de los
sentidos. (Mejía 1977, 19)

A interpretação de gênero nos tratados de Mejía não é mero


preciosismo interpretativo, mas parte integrante de uma
interpretação/proposição científica e política. Compreendemos aqui o conceito
de gênero como elemento teórico e pragmático, já que, além de ser uma
categoria útil para análise histórica (Scott 1995), também é uma forma de
compreender as relações sociais por meio das estruturas de poder que
objetivavam criar hierarquizações e subordinações. Em outros termos, é uma
forma privilegiada de fundamentar as relações de poder, já que:

237
revista de teoria da história 2 2020

a diferença sexual é a forma principal de significar a diferenciação


[social]. O gênero é, portanto, um meio de decodificar o sentido e de
compreender as relações complexas entre diversas formas de interação
humana. Quando os(as) historiadores(as) procuram encontrar as
maneiras como o conceito de gênero legitima e constrói as relações
sociais, eles/elas começam a compreender a natureza recíproca do
gênero e da sociedade e das formas particulares, situadas em contextos
específicos, como a política constrói o gênero e o gênero constrói a
política. [...] O gênero foi utilizado literalmente ou analogicamente pela
teoria política, para justificar ou criticar o reinado de monarcas ou para
expressar relações entre governantes e governados. (Scott 1995, 89).

De acordo com Yazmin Chayo e María Victoria Sánchez (2007, 116), as


analogias de gênero “parecieran tener una función teórica constitutiva” de
forma que “Ramos Mejía hace equivaler la esencia del funcionamiento de las
multitudes com la condición feminina [...] Las multitudes son como las
mujeres: irracionales, impulsivas e histéricas” (2006, 120). Valendo-se da
simétrica oposição dessa metáfora, Mejía se aprofunda no estudo da
personalidade de Juan Manuel de Rosas, por ele considerado o mais
paradigmático e completo caudilho dominador de massas, já que apenas ele
possuía simultaneamente as civilizadas virtudes urbanas e os bárbaros hábitos
rurais, numa mescla que moldaria os traços de sua personalidade evidenciada
pela viril corporeidade masculina:
Sus calidades físicas fueron para ellas la encarnación material de la fuerza
y del poder como lo entienden las muchedumbres. Los hombres altos y
esbeltos como Rosas, producen en la imaginación popular una idea más
completa de la magnitud de su grandeza […] nada daba una idea más
genuina de la vertical, que tiene algo de duro y enérgico, que aquel
cuerpo soberbio de don Juan Manuel. […] Cara ligeramente tostada […]
ojos claros, bellísimos de mirada penetrante e inquisidora […] dejando el
mayor tiempo posible su cabeza, de buena configuración romana,
descubierta, como para dar lugar a que la muchedumbre y las mujeres le
tributen toda la admiración que él creía merecer, porque era vano y muy
pagado de sus exterioridades de macho. (Mejía 1977, 147-148).

Tais qualidades físicas de varão são, para Mejía, os fundamentos da


legitimação de sua capacidade de seduzir e sugestionar massas femininas,
definindo assim a própria autoridade do caudilho.
Originado na dicotomia entre civilização e barbárie estabelecida por
Domingo Faustino Sarmiento (2010), o conceito de caudilho escolhido por
Mejía não poderia ser mais preciso para abarcar seus intuitos políticos, uma vez
que o termo pressupõe as características selvagens dos antigos senhores de
terra que governavam despoticamente as províncias interioranas da Argentina
oitocentista. Ao empregar a metáfora do líder político como caudilho, Mejía
denota seus ideais de violência e selvageria masculina em diametral oposição à
pretensa docilidade feminina das massas, a serem dominadas e subjugadas por
tal líder que se impunha intelectualmente e fisicamente. Tal argumento
fisiológico é tantas vezes reiterado que, em algumas passagens, Mejía sente a
necessidade de justificar-se:

Diríase tal vez que doy demasiada influencia al físico y las cosas de pura
impresión sensorial, como elemento de sugestión, pero la verdad es que
en la psicología colectiva ese factor es indubitablemente de
transcendental importancia. [...] todo lo que sea materialización grandiosa
de una idea, un sentimiento o un instinto, es de una viabilidad
sorprendente en la imaginación artera de las muchedumbres
meridionales. (Mejía 1977, 149).

238
revista de teoria da história 2 2020

Sublinhe-se que esse trecho antecede em 22 anos o tratado de


psicologia das massas de Freud (2011), que acreditava no ineditismo de sua tese
de que as pulsões configuravam o vínculo entre líder e massas. Por meio dos
atributos ou características viris, Mejía valeu-se dos (pre) conceitos de gênero
de seu contexto para demonstrar os requintes dessa relação brutal, sádica e
apaixonada travada entre o líder macho dominador e as passivas massas
femininas:
Voluptuosos transportes de orgia precedieron a semejantes nupcias, que
en la sangre de un sadismo feroz parecía mezclarse a la alegre zarabanda
macabra de una borrachera de sátiros encelados por el olor de la hembra
inabordable. Aquella prostituta había encontrado por fin el bello
souteneur, que iba a robarle el fruto de su trabajo, sangrar sus carnes entre
las protestas de extraño amor y las exigencias de sus adhesiones
incondicionales. Durante veinticinco años va a entregarle toda la savia de
su vida, entre los gritos y las risotadas de los anfitriones de la tiranía, que
también buscaban los sonrisos de la víctima caprichosa […] reclamando
el derecho y el placer de dejarse azotar el rostro por la mano pesada de
su dueño implacable […] le gustaba el dolor traído por aquél dorso viril.
(Mejía 1977, 149).

Nesse misto de repulsa e excitação, Mejía se vale da metáfora da carne


como articuladora dessa passional relação entre caudilho e massas, já que por
meio do corpo ereto de varão se traduziria a exata ideia de encarnação, em que
o caudilho encarnaria os ideais da massa, e a massa encarnaria a alma e o
próprio corpo do caudilho. Pela voluptuosa passionalidade irracional das
massas femininas, apenas a encarnação dos valores e ideais viris manifestos
num homem específico poderia apagar o fogo destrutivo e anárquico que
carregam em seus seios. O sangue é outro elemento simbólico fundamental
nessa metáfora, afinal, as massas virulentas e sanguinárias de que fala a Psicologia
das Multidões apenas seriam dominadas enquanto estariam em estado de
dionisíaca passividade ao macho forte que rouba seu fruto e sangra suas carnes,
num prazer sádico de sentir-se machucada e dolorida pelo dorso viril de seu
dominador. Por meio de uma leitura simultaneamente civilizatória e selvagem,
profundamente marcada pela insígnia do gênero, Mejía lançou uma tradição
interpretativa sobre a liderança na Argentina que percebia a proeminência dos
traços de personalidade dos másculos dominadores de multidões,
influenciando diversos intérpretes políticos no decorrer do século XX, dentre
os quais podemos citar aquele simultaneamente tomado como general e Cristo
na história argentina, Juan Domingo Perón, tributário das simbologias de
Rosas como caudilho dominador e eternizado como o paradigma máximo de
liderança e condução política naquele país.

239
revista de teoria da história 2 2020

NINA RODRIGUES E O MENEUR DAS MASSAS DESAJUSTADAS


No mesmo viés de realizar uma apropriação nacional da Psicologia das
Multidões, podemos elencar o pensamento psicopolítico de Raimundo Nina
Rodrigues que, segundo as informações biográficas colhidas por Sergio
Figueiredo Ferretti,

Estudou Medicina na Bahia e no Rio. Formou-se em 1888, aos 26 anos.


Desde 1887 começou a publicar artigos, tendo deixado cerca de 60
trabalhos, redigidos durante 19 anos. Alguns foram reunidos em livros
que publicou em vida sobre Raças Humanas, Religião Afro-brasileira,
Contribuições ao Código Civil, Medicina Legal e Ensino de Medicina.
Após sua morte foram publicados alguns livros reunindo artigos seus.
Publicou muitos trabalhos em revistas especializadas de Medicina e
outros assuntos, nos Estados da Bahia, no Rio de Janeiro e em São
Paulo. Escreveu artigos e livros em francês e italiano e muitos de seus
trabalhos tinham edições em mais de um país, a exemplo da Itália, da
Bélgica, da França e da Argentina. Travou polêmica com vários
pesquisadores ilustres da época e manteve correspondência com
especialistas em vários países. Foi professor da Faculdade de Medicina da
Bahia. (Ferretti 1999, 20).

Seu nome pode ser facilmente referido como um dos mais célebres e
citados intelectuais de sua época, chancelando cientificamente uma grande
quantidade de intervenções públicas em sua época, tal como a chacina na
cidade de Canudos. Seu livro mais afinado com a psicologia das massas, e um
dos mais famosos, intitula-se As Coletividades Anormais (2006)4. Se do lado
argentino Mejía se utilizava dos saberes das massas para tratar de questões
como a dicotomia entre civilização e barbárie e a sedução erótica pelo caudilho,
no Brasil o problema social enfrentado por Rodrigues não destacava tão
marcadamente a insígnia do sexo, se comparado ao excessivo peso que legava à
questão religiosa e, principalmente, racial. Seu pensamento respondia a um
recente, conturbado e mal resolvido contexto de abolição da escravidão,
somado à proclamação de uma república que dava seus primeiros passos na
consolidação de algo que se pudesse chamar de unidade nacional. Dessa forma,
Rodrigues considerava que a formulação de uma psicologia das massas
brasileira deveria passar pelo estudo da religião e da raça5. Segundo Filipe Pinto
Monteiro:

4 O texto ao qual fazemos referência nesse artigo foi originalmente publicado na França em
1898 sob o título Epidémie de folie religieuse au Brésil, apenas um ano antes do livro de Mejía e 13
anos após a primeira edição do livro de Le Bon. Já a coletânea originalmente intitulada As
collectividades anormais foi organizada e publicada em 1939, ocasião em que o texto foi traduzido
com o título de A loucura epidêmica de Canudos.
5 O termo “raça” é aqui empregado enquanto conceituação heurística, citado

reiterativamente por Nina Rodrigues enquanto forma de distinção biológica entre seres
humanos. Trata-se de um conceito muito popular na virada do século XX, sendo bastante
ensejado pela ciência positivista e pela importação de teorizações europeias como as de Francis
Galton, Cesare Lombroso, dentre outros (Talak, 2010). A construção histórica desse conceito
no contexto brasileiro foi extensivamente estudada por Lilia Moritz Schwarcz no livro O
espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930 (1993).

240
revista de teoria da história 2 2020

Notamos que Nina não considerava incoerente um discurso que


incorporasse o racialismo, por um lado, e as propostas sócio-
psicológicas, por outro. Seus trabalhos sobre as multidões no Brasil
tornaram-se um reflexo desse modo de pensar e demonstram a
habilidade de Nina ao interpretar casos nativos a partir de referências
teóricas estrangeiras. [...] Seus textos revelam a posição privilegiada e não
menos problemática de um pesquisador que vivia em um país mestiço,
“desordenado” e como esse lócus de atuação era, contraditoriamente,
sua principal vantagem, seu foco de atuação e reflexão. Os problemas
que faziam do Brasil um lugar condenado ao atraso, também faziam dele
um laboratório que permitia a Nina conversar de igual para igual com o
centro de produção intelectual de sua época, a Europa.
(Monteiro 2015, 79).

É nesse sentido de produzir uma psicologia das massas brasileira para


exportação que, ao tratar das coletividades anormais, Rodrigues pôs toda
ênfase na questão da loucura das multidões por meio de um constructo teórico
baseado nos preceitos do racialismo, positivismo e alienismo, que temperavam
sua prática sociopolítica de psiquiatra, sanitarista e eugenista. Com tais
ferramentas, Rodrigues então demonstra conhecimento e aceitação de alguns
princípios da psicologia das massas:
Sem dúvida o contágio mental por sugestão coletiva é o fator principal
da constituição do estado de multidão e implica, como é obvio, não
somente a preparação prévia pelas causas que podemos com Gustavo Le
Bon, chamar distantes, mas ainda a excitação passional do momento por
uma causa ocasional que pode ser qualquer uma das causas próximas
deste autor. O meneur não é mais, em suma, do que uma poderosa causa
próxima, quer seja o catequizante, o verdadeiro chefe, o diretor ostensivo
da multidão, quer seja o diretor inconsciente representado pelos mais
exaltados e consequentemente pelos mais sensíveis às sugestões
ambientes anônimas. (Rodrigues 2006, 64).

Nessa definição, vemos uma leitura bastante próxima aos pressupostos


lebonianos em que Rodrigues lança sua leitura sobre o que compreende
enquanto um líder de massas. O emprego do conceito meneur é bastante alusivo
à recepção do autor às teorias psicológicas e hipnóticas europeias como as de
Théodule Ribot, Scipio Scighele e do próprio Gustave Le Bon, que
compreendiam as relações de mando-obediência a partir de uma influência
estabelecida pelas mentes superioras (meneurs) que seriam capazes de manipular
hipnoticamente os impulsos das mentes inferiores das massas (menés). Por tal
conceituação, Rodrigues constrói o cerne de sua interpretação tupiniquim da
psicologia das massas, que seria marcada por fatores raciais e religiosos e
tornaria os indivíduos predispostos à loucura coletiva:
Outra causa que deve ter influído poderosamente, na Bahia, sobre o
desenvolvimento da epidemia [de loucura coletiva], foi a predominância
numérica da raça negra e de seus mestiços em nossa população.
Demonstrei em outros trabalhos que as danças e sobretudo as danças
sagradas a que se entregam tão apaixonadamente os negros, constituem
em poderoso agente provocador da histeria. (Rodrigues 2006, 64).

Junto do elemento racial/racista, o elemento sexual também foi


aludido, sublinhando a predisposição feminina às doenças psíquicas, em
especial a histeria, que tornariam as mulheres mais propensas a compor um
agrupamento insano: “Nas mulheres, muito comumente se associavam outras
manifestações da diátese histérica [...] Não raro via-se, e ainda hoje, aparecer a
abasia, subitamente, ao terminar um ataque de histeria maior” (Rodrigues 2006,

241
revista de teoria da história 2 2020

180). Nessas leituras transversais, o sexo, a idade e a cor eram pareados com o
objetivo de intuir/influenciar no diagnóstico dos excitáveis coreicos6: “Quase
todos esses doentes são mulheres. Nunca observei essa doença em velhos. A
raça de cor é sem dúvida muito mais atacada que a branca” (Rodrigues 2006,
26-27). Seriam esses sintomas de histeria os propulsores da adesão dos
indivíduos num estado de massa. Para comprovar sua tese, Rodrigues emprega
polêmicos exemplos por ele considerados manifestações da loucura coletiva de
sua época, tais como a Revolta de Canudos, referindo-se a Antônio
Conselheiro como o mais paradigmático estereótipo de meneur de massas
vessânicas:
A massa popular dirigida por Antônio Conselheiro era recrutada numa
população de mestiços onde é ainda poderosa a influência dos
ascendentes selvagens ou bárbaros, índios ou negros. [...] nesta
população se observam com muita frequência todas as manifestações
mórbidas do desequilíbrio mental [...] É natural, por conseguinte, que
nossa população rural, composta em grande maioria de raças inferiores
onde são normais esses sentimentos, essas crenças, tenha aderido e se
associado à propaganda político-religiosa do alienado.
(Rodrigues 2006, 85-86).

Para diagnosticar as convulsões dessa multidão mestiça e rural,


Rodrigues afirma a necessidade de abordar, antes de qualquer coisa, a
psicologia do meneur, pois haveria de ser ele o homem que contagia sua loucura
aos demais predispostos. Nesse sentido, o psiquiatra propõe uma análise
completa da personalidade de Antônio Conselheiro com fins de esmiuçar,
classificar, qualificar e definir todos os âmbitos possíveis da personalidade de
seu paciente. Após a metódica exumação frenológica7, biográfica, eugênica e
psicológica, Rodrigues sentencia que
Antônio Conselheiro era realmente muito suspeito de ser degenerado, na
sua qualidade de mestiço [...] No que concerne aos antecedentes
hereditários, sabe-se que descendia de uma família cearense valente e
belicosa, que durante muito tempo se empenhara numa dessas lutas de
extermínio, muito frequentes na história dos nossos sertões, entre
famílias poderosas e rivais. No decorrer dessas lutas, deram seus
ascendentes provas de uma grande bravura, e muitas vezes de requintada
crueldade [...] É destas qualidades hereditárias que provêm, sem dúvida,
as tendências, o temperamento belicoso que a loucura pôs em relevo em
Antônio Conselheiro. (2006, p. 90).

Ao sabor de Cesare Lombroso, Francis Galton e toda a psicologia


criminal/eugênica, Rodrigues realiza um verdadeiro inquérito físico,
hereditário, racial e psicológico do meneur para justificar seu poder de sedução,
hipnotismo e condução das massas vessânicas. Nessa descrição, sublinham-se as
qualidades de valentia, belicosidade, bravura e crueldade para caracterizar seus
antecedentes; ou seja, para o alienista, são os traços presentes na personalidade
de Conselheiro, aliados à sua raça e hereditariedade, que lhe permitiram liderar
a multidão passional, irracional e racialmente inferior até os últimos extremos
da insanidade coletiva, dado que se identificavam com sua loucura:

6 Distúrbios psíquicos de movimentos involuntários.


7 A frenologia era uma ciência muito considerada na época, e pressupunha que as medidas
cranianas e suas simetrias seriam definidoras das doenças psíquicas de seus indivíduos. O
próprio Nina Rodrigues recebeu a cabeça decapitada de Antônio Conselheiro para exumá-la e
realizar suas métricas frenológicas, buscando intuir sobre suas prováveis loucuras.

242
revista de teoria da história 2 2020

O que o chefe comunicar à multidão, será a mesma emoção, a mesma


paixão que o dominavam, e esta transmissão, como o demonstrou
brilhantemente Sighele, opera-se no seio da multidão pelo gesto, pela
palavra, pela atitude do audacioso meneur; esses gestos, essas atitudes são
inconscientemente imitadas pelos menés, despertando em sua alma
sentimentos correspondentes. (2006, p. 96).

Rodrigues descreve um vínculo multitudinário comandado pelas


paixões, emoções e sentimentos que partem da audácia do meneur
sugestionando as massas por meio da palavra e da atitude, que seriam
inconscientemente imitadas e reproduzidas.
Desta forma, Rodrigues lança uma interpretação sui generis da Psicologia
das Massas, tornando-a uma disciplina bastante eclética, já que uniria
positivismo, higienismo, eugenia, psicologia social, psiquiatria, medicina social,
psicologia forense, racialismo e alienismo no intuito de tratar dos problemas
nacionais mais latentes que preocupavam as elites conservadoras e rurais, tais
como os diversos levantes populares republicanos a exemplo de Canudos, a
Revolta da Armada, a Revolução Federalista, a Revolta da Chibata, a Guerra do
Contestado, dentre outras que ameaçavam reproduzir no Brasil os
acontecimentos revolucionários à la française, tidos como indesejáveis e
doentios tanto pela psicologia das massas de Le Bon quanto pela de Rodrigues.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pela profusão desses saberes-poderes, a influência de Rodrigues e Mejía
passou a ser bastante considerável na formação da intelectualidade médico-
psiquiátrica brasileira e argentina, sendo seus nomes tributados dentre as
diversas gerações de psicólogos sociais. A importância de conhecer suas
contribuições à psicologia das massas latino-americanas é fundamental em
vários sentidos. Em primeiro lugar, podemos compreender a pluralidade e
intertextualidade das leituras e práticas da psicologia social nos diversos rincões
em que foram recebidas, sendo adaptadas aos mais diversos contextos e jogos
de poderes demandados em cada um dos lados da fronteira. Se na Argentina a
antiga separação entre civilização e barbárie seguia como norteadora dos rumos
políticos do país, Mejía fez questão de apropriar a psicologia das massas no
sentido de detratar (e ao mesmo tempo demonstrar uma ambígua atração) pela
selvageria das massas interioranas incivilizadas que pretensamente se deixavam
dominar, tal como fêmeas no cio, pelo braço forte do caudilhesco dominador.
Por outro lado, as demandas das elites brasileiras pela resolução da questão
racial para os recém-libertos escravos e o risco dos levantes antirrepublicanos
do interior do Brasil também foram levadas em consideração por Rodrigues,
que articulou um emaranhado de teorias racialistas, eugênicas, frenológicas,
higienistas, psiquiátricas e psicológicas para construir uma interpretação das
massas brasileiras absolutamente marcada pelas insígnias da raça e da
religiosidade afrodescendentes. Isso demonstra não apenas a pretensão
científica desses intérpretes, mas suas preocupações políticas de dar resposta às
elites de seus países no sentido de resolver o grande risco representado pelos
nascentes levantes de massas, que realmente foram cada vez mais frequentes
nas primeiras décadas do século XX no Brasil e Argentina.
O elemento metafórico de gênero utilizado nos dois lados da fronteira
também não deve ser visto como mero ornamento argumentativo, pelo
contrário, a dicotomia masculino-feminino é uma base hierárquica fundacional
vista como natural naquelas sociedades. Eis o poder dessa metáfora: ao

243
revista de teoria da história 2 2020

comparar-se a massa às feminilidades, se define estrategicamente seu caráter


passivo, irracional, influenciável e domável. O mesmo se pode dizer acerca da
raça, uma vez que se cria na natural degenerescência das “raças negras” no seio
das sociedades, geradas por teorias e empreendimentos públicos de
branqueamento social. Atestar a articulação das massas com a negritude
significava, para aquele contexto, define os levantes populares como
automaticamente localizáveis no campo da aberração, da doença e da
insanidade. Por meio desse cruzamento transversal entre racismo e misoginia,
se pode defender pautas políticas absolutamente conservadoras e reacionárias,
com o selo político da cientificidade de uma nascente psicologia social a
impactar nos rumos mundiais da política.
De outra forma, analisar comparativamente os legados de Mejía e
Rodrigues também nos permite compreender que essa epistemologia política
da psicologia social foi abrangida e apropriada de maneira global na virada do
século XIX para o XX. Dessa maneira, podemos aventar o quanto Brasil e
Argentina estavam sintonizados a essas teorias desde o início de sua circulação,
o que certamente influenciou em contextos posteriores em que foram aplicadas
empiricamente. Não podemos pensar em simplificações causa-consequência
nessa situação, mas é válido ressaltar que grande parte dos regimes políticos
que vingaram com maior vigor na primeira metade do século XX conheciam
os argumentos da psicologia das massas e, na medida do possível, tentavam
aplicar os princípios de condução de multidões por meio de líderes. Esse pode
ser um dos muitos fatores que colaborou para que regimes como o de Getúlio
Vargas no Brasil e Juan Domingo Perón na Argentina tenham sido tão bem-
sucedidos em seu intuito de arregimentar as massas trabalhadoras no entorno
de pautas políticas comuns. A partir das primeiras décadas do século XX, os
intelectuais brasileiros e argentinos pensavam e atuavam na política como
Oliveira Vianna, Gustavo Capanema, Ramón Carrillo e o próprio Perón se
referiam aos principais psicólogos sociais como Le Bon, Scipio Sighele, Gabriel
Tarde e, posteriormente, Sigmund Freud em suas análises – sem nunca deixar
de reverenciar a tradição local de interpretação de psicologia das massas. Resta
perguntar, como abertura para pesquisas futuras, se o próprio conceito
póstumo de populismo não teria respondido a certas demandas teóricas e
políticas lançadas pelas distintas interpretações da psicologia das massas.
Por fim, podemos também concluir que a interpretação da psicologia
das massas freudiana, mesmo que tenha se consolidado como a mais rebuscada
e popular dentre a intelectualidade acadêmica, não foi completamente
hegemônica e tampouco foi pioneira; antes disso, era uma dentre muitas
interpretações que circulavam como verdadeiros espelhos de príncipe a ensinar
os governos e as populações acerca do perigo constante e da necessidade de
controlar as negras e femininas massas sul-americanas.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP,
2019.
CHAYO, Yazmin; SÁNCHEZ, María Victoria. La feminización de las masas:
construcción de identidades sociales en la Argentina de fines del siglo XIX. In.
Anuario de Investigaciones. vol. XIV, 2007, p. 113-121. Disponível em:
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=369139943042 Acesso 07/06/2019

244
revista de teoria da história 2 2020

COHEN, Yves. Le siècle des chefs. Une histoire transnationale du commandement et de


l'autorité (1890-1940), Paris, Éditions Amsterdam, 2013
EL-JAICK ANDRADE, Débora. Escrita da História e Política no século XIX: Thomas
Carlyle e o Culto aos Heróis. In: História e Perspectivas, Uberlândia: 2006. p. 211-246.
FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Nina Rodrigues e as religiões afro-brasileiras. In.
Cadernos de Pesquisa. São Luís, v. 10, n. 1, 1999, p. 19-28 Disponível em
http://www.pppg.ufma.br/cadernosdepesquisa/uploads/files/Artigo%202(12).pdf
Acesso 07/06/2019
FREUD, Sigmond. Obras Completas Volume 15 - Psicologia das massas e análise do Eu e outros
textos (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmond O futuro de uma ilusão. Porto Alegre: L&PM, 2019.
FREUD, Sigmond Moisés e o monoteísmo. In: S. Freud, Edição standard brasileira das
obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987
FREUD, Sigmond Totem e Tabu. In: Obras Completas Volume 11. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
LE BON, Gustave. Psicología de las Masas. Madrid: Morata, 2005.
MEJÍA, José María Ramos. Las multitudes argentinas. Buenos Aires: Editorial de Belgrano,
1977.
MONTEIRO, Filipe Pinto. Nina Rodrigues e a loucura das multidões In. Revista
Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, 2015. p. 65-82. Disponível
em: https://www.sbhc.org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=2168 Acesso
07/06/2019
MOSCOVICI, Serge. La era de las Multitudes: Um Tratado Histórico de las Masas.
Méxcio: FCE, 2013.
RODRIGUES, Elisa. Raça e Controle Social no Pensamento de Nina Rodrigues. In:
Revista Múltiplas Leituras, v.2, n.2, 2009. p. 81-107.
RODRIGUES, Nina. As coletividades Anormais. Brasília: Edições do Senado Federal,
2006
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: Uma categoria útil para análise histórica. In: Educação
& Realidade. Porto Alegre: UFRGS, vol. 20, N. 2, 1995, p. 71-99.
SEVECENKO, Nicolau (Org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, Vol. 3, 2006.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial
no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das. Letras, 1993
TALAK, Ana María. Psicología, Sociedad y Nación. Proyectos y usos de la primera
psicología en la Argentina. In: Nación Psi: Psicología, cultura y sociedad. Disponível em:
http://www.ascofapsi.org.co/documentos/2010/Psic_soc_nacion.pdf Acesso:
12/12/2015.
UNIVERSIDAD PEDAGOGICA ARGENTINA. Educadores Argentinos: Ramos Mejía.
Disponível em: http://escritoriodocentes.educ.ar/datos/recursos/articulos-
educadores/educadores-ramos_mejia.pdf Acesso: 07/01/2016.

O EXCITANTE CAUDILHO DE RAMOS MEJÍA E O DESVAIRADO MENEUR DE NINA RODRIGUES


RAÇA E GÊNERO NAS INTERPRETAÇÕES SUL-AMERICANAS DA PSICOLOGIA DAS MASSAS
ARTIGO SUBMETIDO EM 07/06/2020 • ACEITO EM 13/10/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.63803
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

245
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

PARANOIA E HISTÓRIA
PATOLOGIA E VERDADE
DANILO ÁVILA
Universidade Estadual Paulista
Franca |São Paulo | Brasil
danilo.avila@gmail.com
orcid.org/0000-0002-3881-6043

Este estudo objetiva propor uma abertura da psicanálise à


história por meio da noção de paranoia. Uma categoria
tradicional da clínica, sua construção remonta ao círculo
freudiano e o célebre caso do presidente Schreber para se
espraiar nos séculos XX-XXI, nas obras de Theodor
Adorno, Max Horkheimer, Gilles Deleuze e Slavoj Žižek.
Percorrendo os usos do conceito para estes filósofos,
psicanalistas e sociólogos, podemos retrabalhar o acúmulo
de conhecimentos gerados para a historiografia. Richard
Hofstadter, cunhador do estilo paranoico, durante os anos
1960, começou este trabalho do lado da História e trouxe
ganhos políticos. Cabe a este artigo, desenvolvê-lo, não para
projetá-lo – expediente que se aproxima da paranoia – em
outras formações históricas, mas para repensar outros
modelos críticos para a historiografia na tensão entre
patologia e verdade, antinomia da noção de paranoia.

paranoia – história – verdade – patologia – Schreber

Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento


do Ensino Superior (CAPES)

246
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

PARANOIA AND HISTORY


PATHOLOGY AND TRUTH
DANILO ÁVILA
Universidade Estadual Paulista
Franca |São Paulo | Brazil
danilo.avila@gmail.com
orcid.org/0000-0002-3881-6043

This study aims to propose an opening of history towards


psychoanalysis, specifically through the notion of paranoia.
This traditional concept is in construction since the Freudian
circle, with the famous case of President Schreber. In the
twentieth century, the discussion appears in the works of
Theodor Adorno, Max Horkheimer, Gilles Deleuze until the
millennial Slavoj Žižek. By reconstructing this concept for
these philosophers, psychoanalysts and sociologists, we can
rework the accumulation generated its uses in
historiography. Richard Hofstadter, who had coined the
term paranoid style, started this trend on the side of history
and brought political gains. It is up to this article do develop
it, but not as a projection – notion very close to paranoia –
to interpret other historical or social formations. But to
rethink other critical models for historiography in the
tension between pathology and truth, the very antinomy of
paranoia.

Paranoia – history – truth – pathology – Schreber

247
revista de teoria da história 2 2020

INTRODUÇÃO
A teoria da história não pode correr o risco de ver a paranoia apenas
como distúrbio, falsa projeção e perda da realidade, como se a personagem-
objeto de sua narrativa estivesse dando voltas em falso na sua subjetividade,
presa em plots e conspirações, ordenando os acontecimentos a partir do seu
conjunto de expectativas delirantes. O paranoico, como veremos ao longo do
artigo, surpreende pela sua obsessão descritiva, senso de contingência e falta de
segredo. Colado no presente pela iminência de descobrir quem está por trás da
sua desagregação simbólica, a psicose paranoica impele alguns de seus
acometidos à descrição ininterrupta, amparada em metafísica concatenada. A
tentativa de reagrupação simbólica levada a cabo por alguns expedientes do
mecanismo repressivo presente na paranoia, com algumas mediações, pode
interessar ao historiador na medida em que, nos relatos dos acometidos,
transbordam parte da realidade e da verdade.
O trabalho seminal de Freud sobre a referida psicose, Observações
psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia, é o ponto de partida
para qualquer reflexão psicanalítica sobre o caso. Conhecido como “o caso
Schreber”, trata-se de um estudo realizado por Freud sobre um presidente da
corte de apelação da Saxônia (“Presidente Schreber”, como eternizou-se no
jargão psicanalítico), o qual deixa um livro denominado Memória de um doente dos
nervos, único objeto da análise de Freud. Nele, Freud defende que “não se pode
afirmar que o paranoico retirou completamente o seu interesse pelo mundo
externo, mesmo no auge da repressão” (Freud 2010, 103). Inclusive, empurra
para a história o conteúdo de verdade deste delírio: “O futuro decidirá se na
teoria há mais delírio do que penso ou se no delírio há mais verdade do que os
outros acreditam” (Freud 2010, 103).
Entretanto, a história tem muito o que extrair da relação entre a
psicanálise e o texto. Quem nos dá uma dica do caso é o historiador Michel De
Certeau, em História e Psicanálise: entre ciência e ficção, com a pergunta: “será possível
ler o texto como se este estivesse deitado no nosso divã?”. Supõe-se que, feita
essa algaravia, estaríamos eliminando do jogo entre analista e analisado o
potencial de transferência que articula os dois polos e funda a psicanálise.
Segundo Certeau (2016, 215), para o psicanalista “o escrito é o feito e a ficção
da relação”, o que pode ser um sinal para o historiador.
Os seminários lacanianos podem nos ajudar a compreender o texto em
questão, uma vez que funcionam como mediador entre o jargão freudiano e os
psicanalistas que deseja formar (Certeau 2016, 215). Partindo da explicação do
psicanalista francês para o texto seminal de Freud sobre a paranoia, no terceiro
livro dos seminários dedicado às psicoses, Lacan enfatiza que este é o encontro
entre um livro singular e o gênio de Freud. Schreber é o principal caso a ser
analisado pelo professor e seus alunos. Para o psicanalista, Freud procede como
um filólogo a decifrar a linguagem do inconsciente e traduzi-la, como se dissesse
“não leia este livro antes de me ler” (Lacan 1993, 10). Sabemos hoje que o livro
de Schreber apenas sobreviveu ao tempo devido à sua utilidade na literatura
psicanalítica, tornando-se um cânone da disciplina. A narrativa, no entendimento
de Lacan, é construída de modo a colocar um leitor como o psicanalista do
doente-narrador.
Entretanto, é preciso considerar que os estudos da paranoia antecedem
o texto de Freud e sua produção é largamente amparada em estudos de
psicanalistas como Sandor Ferenczi e Karl Abraham, por exemplo, dois dos
psicanalistas do círculo de Freud que se especializaram na constelação de

248
revista de teoria da história 2 2020

conceitos que ronda a especificidade da psicose paranoica. Tratando a paranoia


como um conceito psicanalítico, a ideia desta primeira seção é reconstruir a
formação do conceito na escola vienense dos anos 1910-1920, principalmente
através da repercussão do caso Schreber.
Deste ponto, prosseguiremos para perceber como esse conceito invade
um âmbito da análise social no pós-guerra, partindo das noções de paranoia
presente na Dialética do Esclarecimento (1945) dos filósofos Theodor Adorno e Max
Horkheimer até a Personalidade Autoritária (1950), desenvolvida pelo primeiro
com um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia. Pairam, entre os
dois textos, outros estudos de caso, como os de Oswald Spengler (1941/1961)
e Richard Wagner (1952), que ajudam a explicá-los. Há uma teoria da paranoia
específica nos estudos que dialoga com as conclusões Freud sobre a psicose,
apenas tangencialmente. Adorno e Horkheimer formam uma percepção própria
do conceito, fundada nos impasses deixados pela cultura nazifascista e o seu
legado nos EUA.
Formada a constelação de conceitos de Freud a Adorno, torna-se
imprescindível perceber como os diferentes usos da noção podem ser
aproveitados pela História. Sabemos que a noção psicanalítica de paranoia serviu
a historiadores para compreenderem as mais diversas formações históricas, o
exemplo que melhor se interliga ao recorte proposto (entre o círculo freudiano
e a teoria crítica) são os escritos de Richard Hofstadter. A formação de seu
principal conceito é amparada diretamente nos estudos de Adorno na Califórnia.
A noção de estilo paranoico de Hofstadter se espraiou pela historiografia e, hoje,
estende o seu alcance interpretativo até os pais fundadores da democracia
estadunidense.
Não é intenção do artigo projetar o estilo aludido em outra formação
histórica, nacional ou internacional, mas refletir sobre a sua aplicação. Seguindo
um percurso oposto ao de Hofstadter, aproveitamos as reflexões de Jacques
Lacan e Slavoj Žižek para pensar uma outra maneira de a história intervir no
problema da paranoia no mundo digital, um elemento presente no dia-a-dia do
historiador. Lacan e Žižek acreditam que tirando a fantasia que estrutura a
paranoia, resiste-se a ela e estabelece-se um horizonte de cura psicanalítica.
Estendendo a especulação para a história, não seria papel do historiador
descrever essa fantasia de fundo paranoico? Na tentativa de responder à
pergunta, através da leitura de um estudo empírico, rastreia-se a fantasia que
estrutura a paranoia digital a partir do estudo de Shoshana Zuboff (2019) sobre
a ascensão da chamada Big Tech, a fim de oferecer um modelo exemplar baseado
em extenso estudo empírico.
Com a abertura da História à Psicanálise, algumas hipóteses se desenham
de saída. Os usos da noção de paranoia na história da filosofia, da psicanálise e
da sociologia, oferecem a possibilidade, a partir da recapitulação do conceito
nestas três áreas, da construção de uma mediação que pode servir ao presente
do historiador, permitindo-lhe discernir a formação dos acontecimentos que
atravessam sua escrita. Resistindo às normas de um pensamento puramente
histórico e integrando-se à psicanálise, podemos orientar uma crítica que permita
estabelecer a distinção entre o acontecimento que escolhemos e o que não
escolhemos. Ademais, podemos interrogar nossa fonte sobre as escolhas que lhe
são permitidas e as que não são. Tornar o inconsciente, o delírio paranoico, parte
da narrativa histórica é ativar a cronologia histórica no interior de seu mundo
determinado. Para fazê-lo, cabe ao historiador, a posteriori, descrever a fantasia
que estrutura a paranoia que ele reconhece como patológica – assim como
procede a literatura psicanalítica de Freud a Lacan – sem renunciar perante o seu

249
revista de teoria da história 2 2020

conteúdo de verdade. Alerta de que o charlatão de hoje pode ser o informante


do primeiro escalão amanhã. A presente pesquisa, portanto, se coloca ao lado
dos que acreditam que há mais verdade na paranoia do que o discurso
historiográfico está acostumado a aceitar.

A PARANOIA NO CÍRCULO FREUDIANO:


PATOLOGIA E VERDADE
A paranoia é fruto da modernidade, sua filologia remonta ao fim do
século XVIII e a sua transformação em teoria psicanalítica data do fim do XIX,
início do XX. A historicidade do conceito em questão depende da investigação
de escritos preliminares feitos por psicanalistas do círculo de Freud, os quais
buscam a definição formal do conceito, isolando a paranoia do que a circunda
(no próprio caso Schreber, em alguns momentos, a paranoia invade o terreno da
paraphrenia) no campo das neuroses e psicoses, arrolando outros casos que
conversam com o de Freud. Assim, podemos determinar quais os principais usos
da noção para os que são considerados os “fundadores da disciplina”.
Como nos lembra Jacques Lacan (1993, 42), no texto de Freud sobre
Schreber, neurose e psicose estão interligadas em uma construção na qual torna-
se difícil diferenciá-las. Isso, pois, no texto de Freud, a paranoia é uma reação de
defesa à melancolia que pertence ao campo das neuroses. As formalizações da
psicose paranoica são posteriores à análise do caso do presidente. Nos interessa,
portanto, partir delas, definidas por volta da década de 1920, para voltar ao caso
de Schreber (1910), extraindo da extensa narrativa e dos procedimentos da teoria
freudiana que dali emergem o que interessa ao historiador como problema.
A primeira distinção aparece no texto Neurose e psicose (1924). Nele,
Freud reconhece que ambas, neurose e psicose, são patologias do Eu na relação
com as outras instâncias. Entretanto, uma diferença fundamental se levanta: a
psicose é uma relação de conflito entre o Eu e o mundo, não entre o eu e o Id
(Freud 2011, 160-161). A paranoia, também citada neste texto, pertence ao
campo das psicoses e assim será consagrada na literatura psicanalítica. Ela
advém, portanto, de uma frustração externa, a qual causa perda de parte do
mundo externo como resultado de uma desagregação interna (melancolia, por
exemplo).
Diante desse quadro da noção de psicose, uma pergunta de ordem
prática se impõe: como o Eu consegue sair do conflito sem adoecer? Uma das
tantas maneiras, para não mencionar a expectativa de cura, se dá no momento
em que a paranoia colide com as forças da desagregação causada pela frustração
externa. Trocando em jargão freudiano, “o Eu, a serviço do Id, retira-se de uma
parte da realidade” (Freud 2011, 161). Sendo assim, o segundo estágio da psicose
seria recriar uma realidade, uma expressão da rebeldia do Id em relação ao
mundo externo. A paranoia, inserida neste estágio, é definida como uma psicose
de defesa, entendida por Freud como uma reconstrução, isto é, o sujeito
tentando agir pela sua própria sobrevivência psíquica. Em termos rasteiros, para
Freud, a paranoia não é loucura propriamente, mas um louco tentando se curar.
Essa desagregação externa também tem um elevado grau de projeção – sinônimo
de transferência, antinomia de introjeção – conceito basilar para se entender a
paranoia.
Em resumo, realmente há uma distorção e recriação da realidade na
paranoia para Freud, como um segundo estágio da patologia, mas ela
compreende o mundo e é justamente ele a sua principal fonte de preocupação.
Experiência na qual perda e substituição se rivalizam como em uma correlação

250
revista de teoria da história 2 2020

de forças, o que está em jogo é a sanidade do indivíduo. Por ser uma psicose
projetiva, a paranoia é fundada em elementos de identificação narcísica.
Distinções que, assim como a teoria da paranoia presente no caso Schreber, são
formais e fundam a disciplina.
No fundo, para retomarmos o caso Schreber (1910), as etapas da repressão
da qual deriva a psicose são dividias em três estágios: a fixação (1), a repressão
propriamente dita (2) e o “retorno do reprimido” (3). O último irrompe a partir
do ponto de fixação e, como efeito, causa uma regressão da libido até esse ponto
(Freud 2010, 90). Para Freud, o fato de a fantasia de um fim do mundo ser
posterior ao delírio de perseguição provoca uma desconstrução dos três estágios
aludidos por ele próprio. O retorno do reprimido aparece antes mesmo da
repressão propriamente dita e este é um caso específico da paranoia.
Antes de nos debruçarmos sobre dois pontos do caso Schreber, seu delírio
de perseguição e prognóstico de fim do mundo, é preciso pautar as relações
intelectuais que definiram a noção. Para Freud, a paranoia sempre foi um caso
extremamente pessoal. O seu biógrafo Peter Gay, baseando-se nas cartas em que
o psicanalista descrevia o surgimento do problema para seu confrade, afirma este
ponto baseado em uma citação do psicanalista Karl Abraham, para o qual, “a
maioria dos escritos de Freud carregam as características de sua trajetória. Estão
imbricados de maneira significativa tornando difícil distinguir” (Gay 1988, 267-
8, tradução nossa)1.
Além de Abraham, o psicanalista húngaro Sandor Ferenczi também
contribuiu largamente para a distinção formal dos conceitos. Vale lembrar que,
optando pelo caminho inverso, este artigo intenciona primeiro reconstruir a
teoria psicanalítica posterior construída neste diálogo para depois aprofundar o
caso Schreber. É bem conhecido o fato de que Freud se interessou pelo caso
Schreber em uma viagem que fez com Ferenczi a Roma (Gay 1988; Calasso
1974). Conta-se, por meio de documentação epistolar, que Ferenczi, na condição
de aluno, teria questionado seu mentor sobre a quantidade de interferência por
via da transferência que poderia haver no caso, questão nunca resolvida para
Freud, o que teria gerado um atrito entre os dois (Gay 1988, 267-272). Nas suas
formulações, o psicanalista húngaro parece tomar as correlações por
causalidades, como quando associa a paranoia à homossexualidade: “O que mais
impressiona na paranoia alcoólica é o surto de homossexualidade” (Ferenczi
1992, 189).
Ferenczi é um dos primeiros a desenvolver distinções entre a paranoia e
a neurose no campo especulativo. Em um estudo de 1909, intitulado Introjeção e
Transferência, Ferenczi (1991a, 47) refletiu sobre as conquistas recentes de Jung e
Abraham, segundo os quais o demente (neurótico) descola seu interesse no
mundo externo e erotiza a si mesmo. Para pensar a psicose, o húngaro recorre à
construção freudiana, a qual atesta que o paranoico gostaria de fazer o mesmo,
mas não consegue, então projeta no mundo externo aquele desejo que se tornou
um fardo para ele. Diante do impasse formal, entre as conquistas psicanalíticas
recentes, afirma que: “a neurose, nesse aspecto, está diametralmente oposta a
paranoia” (Ferenczi 1991a, 47). Além disso, Ferenczi está convicto da hipótese
freudiana sobre a verdade na paranoia, até mais do que o próprio Freud que
tergiversa e escapa da questão, como vimos anteriormente, jogando-a para o
futuro. Da primeira obra até suas últimas contribuições sobre o tema da

1 Como vemos no início do capítulo dedicado à 1910, ano de escritura do caso Schreber, Gay

afirma que: “Most of Freud’s writings bear the traces of his life. They are entangled, in important
but often quite unobstrusive ways, with his private conflicts and his pedagogic strategies.” (Gay
1988, 268).

251
revista de teoria da história 2 2020

paranoia, Ferenczi (1926, 32) se mostrou convencido do argumento, segundo o


qual “o paranoico está imbuído da dádiva, muito sagaz, da observação às
manifestações externas do inconsciente de seus pares” e de que este relato
contém um “grão de verdade”.
Em um estudo intermediário entre os anos de 1909 e 1926, Ferenczi
relata alguns casos de paranoia que abordou na prática clínica. O artigo,
publicado em 1914 como Algumas observações clínicas sobre a paranoia e a parafrenia,
possui um caso que surpreende pela proximidade com Schreber. Trata-se de
“B”, um funcionário que, “como se estivesse em um confessionário” (Ferenczi
2002b, 286), relata ao analista uma perseguição que ocorreu no trabalho sem
apresentar provas plausíveis que comprovem a sua acusação. Ferenczi (2002b,
287-290), inclusive, acusa a motivação da denúncia como injustificada.
Contradizendo a percepção do seu psicanalista, B começou a dar mostras de
insatisfação com seus pares e instaurou uma guerra burocrática, denunciando
improcedências, faltas, onerações indevidas, deslocamento de funções e
ineficácia. Sua audácia e arrogância eram tamanhas que qualquer departamento
se orgulhava de dar um fim nele. Começou a ser excluído, com justificativa, de
todas as repartições de que participava. No auge do delírio psicótico, chegou a
partir para a agressão física com um superior. Paralelo a esse tour de force
burocrático, sua carreira de escritor declinava e começou a alardear que as
editoras locais haviam se tornado verdadeiras “máfias”, desperdiçando os jovens
talentos. Conforme assinala o analista, o caso de B demonstra um sistema
construído “laboriosamente”, bem-sucedido em projetar todas as suas
incompatibilidades éticas na realidade de seu escritório.
Para se ter noção de como a ideia de transferência era experimentada
pelos psicanalistas sem garantias, o caso de B é exemplar, pois, enquadrado
inicialmente por Ferenczi (2002b, 291) como um inteligente jovem com
premiações poéticas, o psicanalista acompanhou seu caso por quatorze anos. A
certa altura, ainda sem o diagnóstico de paranoia, B tem contato com o artigo
psicanalítico de Ferenczi sobre as correlações entre a homossexualidade e a
paranoia. Ao terminar de ler do artigo, o paciente confessa ao psicanalista ter se
convencido do argumento e levanta dúvidas sobre seu gênero. Conforme as
dúvidas vão sendo respondidas negativamente pelo analista, aumentam as
certezas do paciente, um movimento de afirmação que independe das negativas.
Enfim, o caso de B não oferece nenhuma expectativa de fim do mundo,
apesar de pautar-se inteiramente em uma purificação ético-institucional feita pela
vontade de um homem perseguido não se sabe bem o porquê. Todavia, alerta
para um problema que passa inadvertido por Freud, o paranoico não é apenas
aquele que reconstrói seu próprio sistema, mas pode estar à deriva de uma série
de teorias, religiões e tecnologias. Para Ferenczi (1991b, 294), essa formação de
sistemas explica o comportamento de uma “multidão de psicopáticos”, os quais
“embarcam no trem de novas descobertas da física e da filosofia, seus sistemas,
descobertas e teorias”.
O psicanalista Karl Abraham, em colaboração direta com Freud e
Ferenczi, também contribuiu para a distinção entre a neurose e a psicose. Sua
elaboração consistiu em opor o trauma e a paranoia, percebendo que a
restituição pós trauma pode vir de um mecanismo específico de projeção
(paranoia) ou de introjeção (melancolia) (Abraham 1927, 443). Ao desenvolver
um argumento sobre a libido paranoica, partindo do seu caráter exclusivamente
projetivo, adiciona uma outra camada ao argumento de Freud, segundo o qual,
a libido regressaria ao estágio inicial, perdendo todos os seus objetos, tendo que
reconstruí-los. Para Abraham (1927, 489), o paranoico incorpora parte do seu

252
revista de teoria da história 2 2020

objeto, isto é, a realidade está presente. Uma projeção, que ainda mantém
contato com parte do seu objeto, reconstrói parte da realidade.
Nenhuma das duas análises, a de Ferenczi e a de Abraham, se deparam
com a expectativa de fim do mundo como estágio último da doença, assim como
acontece no caso de Schreber. Mas adicionam novas camadas a essa
reconstrução de um mundo subjetivo que se segue à paranoia, seja ela suscetível
a teorias diversas do mundo (Ferenczi) ou parte do objeto de fixação (Abraham).
As duas possibilidades estão presentes no último estágio da psicose, no qual se
imagina um fim dos tempos em que ele, paranoico, é o único sobrevivente.
Reconstruindo algumas partes do caso Schreber será possível chegar à raiz do
que nos interessa nesse problema.
Marilene Carone (1984, 7-20), tradutora da primeira edição brasileira do
diário do célebre doente dos nervos, introduz a sua extensa autobiografia.
Conforme a autora, oriundo de abastada família protestante e largamente
influenciado pela sua linhagem paterna, Schreber cresceu em meios às
orientações de comportamentos e experimentos pedagógicos do pai, que
desenvolvia máquinas para concentração e postura correta, bem como técnicas
de efetividade pedagógica. Construiu-se, assim, um senso moral específico no
futuro jurista. Em 1893, depois de extenso percurso na burocracia jurídica
oficial, assume o cargo de presidente de um tribunal de apelação em Dresden.
Desde a sua nomeação para o alto escalão, os delírios e fantasias que antes
apareciam esparsamente, tiveram uma escalada, especificamente no período de
março a maio de 1894, quadro que levou à sua internação. O livro é publicado
em 1903 e o conteúdo das memórias se estende de 1884 até o ano anterior à
publicação, momento no qual o presidente já está reintegrado à sociedade como
curado.
O delírio de Schreber (1985, p. 45), conforme consta nas Memórias, se dá
entre o sono e a vigília. Um pensamento, reconhecido por ele como externo, o
invade: imagina ter prazer sendo submetido ao sexo anal, como uma mulher se
submetendo ao coito2. A partir dessa confrontação com um desejo que ele não
reconhece, os delírios se avolumam. Afirma que Deus fala com ele, demônios
zombeteiros o circundam, “presencia milagres e ouve música celestial”.
Dirigindo-se ao leitor, Schreber convida-o a acreditar na sua conspiração divina
de um Deus (decaído) que quer submetê-lo contra os homens comuns:

A quem teve o trabalho de ler com alguma atenção [...] ocorrerá talvez
involuntariamente a ideia de que o próprio Deus deve estar ou ter estado
em dificuldade, se a conduta de um único indivíduo pode constituir perigo
para ele e se o próprio Deus, ainda que em instâncias subordinadas, pode
se deixar levar a uma espécie de conspiração contra pessoas no fundo
inocentes [...]. O próprio Deus [...] não era nem é o ser de perfeição
absoluta que a maioria das religiões diz ser. (Schreber 1984, 41).

Seus delírios continuam reconstruindo um mundo no qual está sozinho


e quem tem a visão onisciente o está perseguindo. Para ele, há uma força de
atração, segundo a qual os nervos e os raios divinos convergem e se atraem, e
justamente ela seria a grande provocadora de uma crise no reino de Deus,
“perigos cuja imagem já está na base da lenda germânica do crepúsculo dos
2 Neste ponto, é importante recorrer à descrição deixada pelo próprio Schreber: “Uma vez,

de manhã (...) tive uma sensação que me perturbou de maneira mais estranha, quando pensei
nela depois, em completo estado de vigília. Era a idéia de que deveria ser realmente bom ser uma
mulher e se submeter ao ato do coito – essa idéia era tão alheia a todo meu modo de sentir que,
permito-me afirmar, em plena consciência eu a teria rejeitado com tal indignação que do fato”
(Schreber 1984, 54).

253
revista de teoria da história 2 2020

deuses [Götterdämmerung]”3 (Schreber 1984, 41). Mesmo em meio a todos estes


delírios, a audácia de seu escritor é tal que, para ele, este escrito figuraria entre
“as obras mais interessantes que já foram escritas desde que o mundo existe”
(Schreber 1984, 67).
Como mostra a citação, o doente dos nervos desafia e interage sempre
com o leitor, convidando-o a concordar ou não com a sua versão, aderir ou não
à sua teoria. Gostaria, sobretudo, que o leitor considerasse, por um lado, seu
“inquebrantável amor à verdade, e por outro, um dom de observação fora do
comum” (Schreber 1984, 167). Ou seja, apesar de apresentar as fantasias mais
delirantes, protagonista da Götterdämmerung rediviva, o faz com sobriedade,
descrição, acuidade e apreço pelos acontecimentos ordenados em cronologia
minuciosa. Schreber descrevia a si mesmo tendo doença dos nervos, o que para
ele era diferente de doente mental, portanto, podia perfeitamente cuidar de seus
interesses e desfrutar do direito público, não havendo qualquer necessidade de
confiná-lo naquele sanatório contra a sua vontade (Schreber 1984, 162).
É justamente nesse delírio com o fim do mundo que Freud reconheceu
o estágio mais avançado da paranoia. “No auge da doença formou-se em
Schreber [...] a convicção de que haveria uma grande catástrofe, um fim de
mundo”, interpreta Freud (2010, 91). Neste momento da sua teoria, o
psicanalista vienense se apoia no estudo de seu colega Abraham, citado
anteriormente, para dizer: “o fim do mundo é a projeção dessa catástrofe
interior; seu mundo subjetivo acabou, depois que retirou dele seu amor” (Freud
2010, 91). O amor de Schreber era exatamente pelo Dr. Flechsig, seu psiquiatra.
Para Freud, esse é o objeto retido da realidade na paranoia. Feita a catástrofe,
percebemos que o real sentido da paranoia é reconstrutivo, ela deseja começar
do grau zero para inaugurar no inconsciente a ideia de um acontecimento
ruptural, quebrando a percepção cíclica do tempo enredada na trama divina
construída no delírio psicótico. “O que consideramos produtos da doença, a formação
delirante, é na verdade tentativa de cura, reconstrução”, afirma Freud (2010, 92-93, grifo
do autor), desenhando a principal conclusão do estudo. A cura de Schreber se
dá, principalmente, pela aceitação da sua condição de mulher subjugada, mas
ainda assim destinada a recriar o mundo pós-catástrofe.
Entremeado à essa reflexão sobre a reconstrução, Freud cita duas
estrofes do Fausto de Goethe, como se as metáforas ali contidas resumissem a
ideia de “fim de mundo” de Schreber. “Ai! / Com punho poderoso / Destruíste
/ O mundo belo; / Ele cai, desmorona / Um semideus o destroçou [...] Mais
poderoso / Dos filhos da Terra. / Mais esplêndido / Constrói-o de novo / Em
teu seio reconstrói-o” (apud Freud 2010, 94). Schreber acreditava ter parte no
divino como filho de Deus, percebendo constantemente um halo de luz em sua
cabeça, “semelhante à auréola de Jesus Cristo” (Schreber 1984, 26). O imaginário
protestante se funde às lendas germânicas antigas, revividas com frequência na
obra Goethe.
A narrativa de Schreber é megalômana na sua extensão e completaria as
observações de uma dezena de textos. Este artigo apenas estabelece um recorte
entre três das principais características: seu delírio de perseguição, a sua
expectativa de fim dos tempos e, por fim, o mundo que recria para se curar. O

3 O crepúsculo dos deuses (Götterdämerrung) aludido é uma adaptação germanista do mito

nórdico do Ragnarök. Se refere a uma concepção teológica e escatológica que narra uma série
de eventos que conduziriam ao fim do mundo, simbolizado na batalha derradeira entre os deuses
e seus inimigos. O principal responsável pela extração germânica do mito é Richard Wagner. A
última ópera da sua tetralogia, O Anel dos Nibelungos, possui o título da lenda e a retrata à sua
maneira.

254
revista de teoria da história 2 2020

psicanalista estadunidense Eric Santner (1996, 52, 192) aponta, sem desenvolver
extensivamente, como a paranoia de Schreber, principalmente este delírio do fim
dos tempos, tem a ver com a Götterdämmerung não das lendas germânicas, nem
de Goethe, mas a reconstruída por Richard Wagner no seu Anel dos Nibelungos,
uma tetralogia de óperas a serem executadas por uma noite e três dias inteiros.
Olhar para Wagner, ao invés de Goethe, torna possível registrar uma
outra dimensão na paranoia de Schreber: a dimensão utópica. Essa utopia é sempre
de uma pureza assumida como modelo no sentido de refazer as instituições,
enredadas em corrupção endêmica. É justamente esta dimensão que acredito que
pode desvendar o que Certeau (2016, 203) colocou como a “proliferação
discursiva”, a qual interrompe o prognóstico catastrófico do profeta, ou seja, é
justamente a palavra, a descrição, oral ou escrita da trama, que permite a cura. É
justamente neste esforço de dar conta da explicação da catástrofe, colocar a
perseguição em palavra, que o paranoico entrega ao historiador seus melhores
rastros.
Eric Santner (1996, 4-5) descreve a relação de Schreber e Richard
Wagner com colorações biográficas. Na casa de Dresden, construída para morar
com sua mulher, Schreber inscreveu o motivo musical de Siegfried, o grande
herói da trama do Anel, na porta. O motivo, presente em todo momento que se
evoca a ideia do herói, funciona como uma caracterização musical da sua
jornada. Resumindo de maneira bem apressada uma obra que se estende por
mais de quatorze horas, o Anel dos Nibelungos é a história da correlação de duas
grandes forças, dois mundos. O mundo dos deuses nasce de uma corrupção
primordial: Wotan profanou a árvore sagrada, de proveito comum, em benefício
próprio, forjando a lança que garante sua autoridade. Aproveitando-se dessa
corrupção, outros clãs que disputam o poder, entidades mitológicas que vivem
abaixo da terra (os nibelungos) e gigantes se aproveitam dos tratos perniciosos
de Wotan para fazer política com o divino.
Conforme se desenrolam os três primeiros atos, Wotan, espécie de
representação de Deus, torna-se obcecado pela ideia de um anel que pertence
aos nibelungos. Apoiado em conselhos espúrios do principal ladino, usurpa o
anel de Alberich, líder dos subterrâneos que o amaldiçoa: além de poder
inesgotável, a morte dominará quem o possui-lo. Arrependido por conselhos de
ordem superior, Wotan desiste de seu projeto totalitário e entrega o anel, como
pagamento de uma dívida antiga aos gigantes, que o aprisionam em uma
masmorra guardada por um dragão. O enredo narrado diz respeito apenas as
primeiras duas das quatorze horas que completam a duração do ciclo e anunciam
a trama na primeira noite. O resto, outros três dias, três óperas, quatro horas
cada, evoca uma narrativa na qual os acontecimentos se encadeiam para o
nascimento de Siegfried, filho indireto de Wotan, destinado a realizar o seu
projeto de dar fim, “com uma mistura intensa de inveja e ciúme”, a esta guerra
entre os clãs, a este tempo cíclico de mortes intermináveis e ao revezamento de
oligarcas no poder com subscrição dos deuses.
A autoria da citação anterior é de Fredric Jameson (2016, 54). No seu
estudo sobre a alegoria nas recriações do Anel dos Nibelungos montadas pelo
diretor Patrice Chéreau e regidas pelo compositor Pierre Boulez, em 1980. Nesta
montagem, o diretor procurou reproduzir fielmente, um século depois, as
intenções de Wagner, extensamente descritas na partitura pelo compositor. O
crítico cultural estadunidense mostra como Wagner alegoriza, nesta colisão entre
o mundo de Wotan e o mundo de Siegfried, o embate entre duas formas teatrais,
e, portanto, dois modos de produção: “o sistema de gêneros do antigo regime e
o naturalismo do capitalismo industrial” (Jameson 2016, 57).

255
revista de teoria da história 2 2020

Siegfried, segundo o entendimento de Jameson, pertenceria a uma


espécie de ser humano eleito em meio à nova ordem social construída por
dinastias e alianças (nibelungos, gigantes) coordenadas por uma dimensão divina
institucionalizada e corrompida. Além disso, acompanhando Jameson,
percebemos como Siegfried, não muito distante de um comportamento
paranoico, está impelido a realizar um projeto de criar seres humanos livres
designado por outrem, sobre o qual se sabe muito pouco, mas para o qual, desde
nascença, está preparado, pois foi treinado para “não conhecer o medo”.
Inclusive, a única condição para executá-lo é que ele desconheça e que Wotan
não o alerte. Consumado seu destino, o herói no leito de morte “passa de uma
temporalidade de puro presente para aquela da cronologia” (Jameson 2016, 58).
Poderíamos traçar assim, seguindo a pista de Jameson (2016, 58), um
paralelo no qual tanto o caso de Schreber quanto na narrativa de Siegfried, a
saída do puro presente se deu com um acontecimento, um evento, que introduz
novamente a cronologia. Não à toa, Eric Santner (1996, 37) enfatiza que o
sistema de Schreber rapidamente “assume proporções wagnerianas”. A
concepção de um crepúsculo dos deuses é o horizonte reconstrutivo e utópico
de Schreber cujo wagnerismo cumpre a função de uma teoria filosófica e
científica, conforme Ferenczi assinalou como um ponto de vulnerabilidade do
paranoico.
Para demonstrá-lo, Santner cerca um ponto nevrálgico desta afinidade
eletiva entre os universos de Schreber e Wagner: a sua acusação de que haveria
um espalhamento geral de raios que iriam deixar diversas pessoas doentes dos
nervos e isto seria uma consequência do excesso de civilização. Esta teoria,
largamente amparada no universo wagneriano, espelha a reação à modernidade
caricata das teorias do declínio cultural da burguesia que pululavam naquele fim
de século. Esta reação à civilização parece ser o elemento utópico e mobilizador,
o qual engendra teorias e seduz massas (Santner 1996, 52). O próprio Wagner
não está a salvo. Pautando-se nos conceitos de ciúme e inveja presentes na
tetralogia, Jameson acusa uma paranoia, advinda da sua experiência antissemita
e empregada aqui em sentido vago, no compositor alemão. Aproximando, ainda
no século XIX, paranoia e antissemitismo: “A própria paranoia de Wagner (e o
seu antissemitismo) é a expressão de um sentimento: não apenas o mundo lhe
deve uma honraria, como todos, especialmente os compositores, o invejam”4
(Jameson 2016, 54).
August Strindberg, em 1896, romanceou uma personagem-narrador com
colorações biográficas em Inferno, apenas dois anos após o ano em que foram
publicadas as memórias de Schreber, isto é, momento em que o discurso sobre
a paranoia já tomava o espaço público e as clínicas psiquiátricas. Na narrativa,
um cientista naturalista entra em contato com teorias obscurantistas derivadas
do teólogo sueco Emanuel Swedenborg e entrega-se a devaneios alquímicos
como a possibilidade de sintetizar a fórmula do ouro. Consumido pelas ideias,
começa a desenvolver a paranoia. A certa altura, já nos estertores do romance,
narra a sua condição quando da sua mudança para Suécia, na cidade de Linz:

4 “Wagner’s own paranoia (and his Anti-semitism) are the expression of the feeling, no only

that the world owes him an income, but that everyone else, and very especially the other com-
posers, all envy him”.

256
revista de teoria da história 2 2020

Existem noventa cidades na Suécia, mas foi justamente a que mais detesto
que os poderes me condenaram a morar. Começo por visitar os médicos.
O primeiro me aplica um rótulo que diz: neurastenia; o segundo, angina
do peito; o terceiro, paranoia, doença mental [...] Entretanto, a fim de me
sustentar, sou obrigado a escrever artigos para um jornal. Mas todas as
vezes em que me instalo para escrever, desencadeia-se o inferno.
(Strindberg 2009, 194).

Como se fosse o mote do livro, o desencadeamento do inferno, a partir


do comportamento do alquímico paranoico, é uma figura de como ele escreve
de modo a fugir de um inimigo, de um esquema que o persegue. Enquanto
escreve, o paranoico está sendo observado. Escreve como quem foge e deixa
registro para posteridade. As teorias de Swedenborg ecoam o mesmo ódio ao
homem comum e a vida das trocas econômicas usuais. Na narrativa, Deus é um
sádico narcisista e Lúcifer, o anjo destronado. A personagem-narrador de
Strindberg também não se distancia das expectativas de Siegfried e de Schreber;
antes, participam de um mesmo sentimento hamletiano, ecoado na narrativa do
caso mais celebre de paranoia:

Tenho absoluta certeza de que minhas representações anteriores não eram


meras ‘ideias delirantes’ e ‘ilusões de sentido’, pois ainda hoje recebo,
todos os dias e horas, impressões que deixam totalmente claro, para falar
como Hamlet, há algo de podre no reino da Dinamarca, isto é, na relação entre
Deus e a humanidade (Schreber 1984, 140).

LIMPANDO A DINAMARCA
ENCONTRARAM O FASCISMO DEBAIXO DO TAPETE
O entrecruzamento entre Hamlet e as teorias da degeneração da cultura
Ocidental, seja como avanço da burguesia ou advento das civilizações, é
indicativo da extensão do problema. O paranoico que vemos em Strindberg,
Siegfried e Schreber está descontente com os resultados técnicos da
modernidade. Este tema na Alemanha, apoiando-se em parte nas conquistas da
teoria psicanalítica freudiana, foi explorado pela Teoria Crítica. Para o Instituto
de Pesquisa Social de Frankfurt, o tema do declínio da cultura era central.
Interessados na gênese da experiência fascista e na ascensão da personalidade
autoritária nas democracias liberais, sua fundação se sustentou, principalmente,
na contribuição dos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer.
No Eclipse da Razão, livro de Horkheimer (2015, 194), aparece uma
definição social e filosófica da paranoia, levando em conta o efeito dela no
pensamento que denominou como “instrumental”. Define-a como “a loucura
que edifica teorias logicamente elaboradas de perseguição”, portanto “não é
apenas uma paródia da razão”, mas parte dela. Para Horkheimer, todo
pensamento que objetiva unicamente o alcance de seus fins, sem mediação, é
paranoico. A definição em questão será basilar para o enquadramento da
paranoia como o lado oculto do esclarecimento, esquema que alcançou o senso-
comum ao aproximar a teoria idealista e o giro paranoico dentro de si. O estudo
de Horkheimer, publicado pela editora de Oxford em 1947, dois anos após a
publicação da Dialética do Esclarecimento, ainda permanecia como obra pouco
divulgada e de pequena circulação, publicada apenas em língua alemã por uma
editora especializada em Nova Iorque.
Como preparações para a Dialética, esse tema do declínio da cultura
também interessou a Adorno no final dos anos 1930, principalmente no seu
excurso sobre o historiador Oswald Spengler. Sem citar uma única vez a palavra

257
revista de teoria da história 2 2020

paranoia, o filósofo alemão nos apresenta o quadro de um historiador excluído,


tomado como charlatão, o qual apresenta as mesmas características da tríade
Schreber-Siegfried-Strindberg. Spengler após o declínio, texto de Adorno, foi escrito
a partir de uma conferência ditada, em 1938, e publicado em inglês, em 1941.
No fim da década, relembra como o historiador foi tratado como um anátema
pelos mesmos pares que o ascenderam ao primeiro lançamento de O declínio do
Ocidente. A tese de tradição germânica do “declínio” havia se tornado obsoleta
para a maior parte dos pares acadêmicos. Considerado “pessimista e
reacionário”, Spengler caiu em um ostracismo que ofuscou grande parte de sua
obra. O esforço inicial de Adorno é recuperar a teoria legada pelo historiador,
segundo a qual “os acontecimentos se desenvolvem entre os oligarcas e seus
mercenários, não da dinâmica da sociedade” (Adorno 1998, 30).
Neste caso, nos interessa apenas a parte do argumento que define o
declínio. Concordando com Spengler, Adorno mostra na obra do historiador um
prognóstico, segundo o qual, os partidos se tornariam séquitos, deixando
brechas para o aparecimento de ditaduras. Em sentido maquiavélico, trata-se da
regeneração de instituições supostamente corrompidas, que demandam um
braço forte. Adorno mostra como há um movimento dialético entre Maquiavel
e Spengler: se Maquiavel vê que é preciso de ditaduras para que uma democracia
se vitalize; Spengler, de outro lado, vê que os princípios democráticos se
convertem em seus opostos pelos desígnios dos partidos. Um tempo cíclico,
conforme argumenta o filósofo (Adorno 1998, 52). Como exemplo, Spengler
cita que mesmo uma das constituições mais progressistas como a da Alemanha
de 1919, já engendra, no seu interior, as possibilidades de dar poder ilimitado a
um indivíduo – Hitler, no caso.
Segundo Adorno, Spengler, apesar de conseguir um diagnóstico de
realidade pujante, vê apenas os fatos sem mediação, com objetivos claros, como
a definição do pensamento paranoico de Horkheimer. Uma espécie de fé nos
acontecimentos, com vistas a um prognóstico manipulativo do seu
desenvolvimento aliada a uma concepção de história como o retorno do sempre
igual que a dissolve. Profeta do existente, Spengler povoa sua narrativa com
termos como Cosmos, Sangue, Destino, Espírito, em busca de algum sentido
terreno para abstrações totalizantes. O próprio fato se torna uma metafísica. A
decadência de Spengler, portanto, reside em uma ambiguidade do
esclarecimento. Ao aprender a ler, o homem torna-se suscetível à dominação da
imprensa e da propaganda. As categorias, forjadas segundo interesse, possuem
objetivos específicos. Segundo Adorno, reside por detrás desta tese a
imutabilidade da natureza humana, pois visa a manipulação dos sujeitos; e,
ressalta, sempre que menciona destino, na verdade Spengler quer dizer a
dominação de uma classe sobre a outra. Em resumo, para Spengler, o espírito
morreu, o pensamento está atrelado ao econômico, a história é apenas uma
sucessão de oligarcas; declinam a democracia, a cultura, o Ocidente. No entanto,
ao contrapor a sua tese com os acontecimentos do nazifascismo, Adorno
percebe uma atualidade, um conteúdo de verdade nas teses do renegado
historiador, assim como uma falsidade constitutiva: “A proclamação
spengleriana do declínio da cultura esconde o desejo do autor” (Adorno 1998,
55)5.

5 Para enquadrar a definição em um excerto da obra de Spengler, Adorno destaca uma pas-

sagem que, segundo cita, gostaria que se tornasse célebre: “Se sob a influência deste livro os
homens da nova geração passarem a se dedicar à técnica no lugar da lírica, à Marinha no lugar
da pintura, ou ainda à política no lugar da crítica epistemológica, estarão fazendo assim o que eu
desejo, e não é possível desejar nada de melhor para eles” (Spenger apud Adorno, 55).

258
revista de teoria da história 2 2020

A atualidade era tal que, em um texto de 1961, 20 anos depois, Adorno


revisita a obra do historiador para perguntar: Spengler estava certo? [Spengler was
right?, título original]. Sem afirmar nem negar, para Adorno, os acontecimentos
acompanharam o historiador, mas a percepção de uma “natureza” da sociedade
que a conduziria inexoravelmente à catástrofe, pela formação inata de sua
personalidade, o confirma como um patrono da escuridão que ele previu tão
entusiasticamente (Adorno 1961, 25). Nesta seção, lembra uma passagem em
que, em 1934, quando no partido nacional-socialista, Spengler deu um conselho,
algo paranoico, para Hitler: “cuidado com seus Pretorianos”. Especialista no que
chamou de “cesarismo”, Spengler, um filisteu para seus pares, é ouvido pelo líder
do nazismo que troca toda a sua tropa em junho do mesmo ano (Adorno 1961,
25-28).
É na chave entre paranoia e fascismo que a definição aparece pela
primeira vez no Elementos do antissemitismo, último excurso da Dialética do
Esclarecimento. A correlação aparece no item final e se encontra definida de saída,
como se buscasse uma conclusão: “O antissemitismo baseia-se numa falsa
projeção” (Adorno; Horkheimer 1985, 154). Trata-se, portanto, do “reverso da
mimese genuína”, ou seja, o exterior é tomado como o modelo segundo o qual
o interior se adequa. “No fascismo, esse comportamento é adotado pela
política”, continuam Adorno e Horkheimer (1984, 154-5), enfatizando um
ponto no qual a patologia pode ser indicativa da realidade, isto é, “o sistema
alucinatório torna-se a norma racional no mundo”.
Vale relembrar que, neste caso da paranoia, Adorno e Horkheimer não
extraem a noção da teoria freudiana, mas desenvolvem uma própria, calcada na
definição, anteriormente citada, de Horkheimer no Eclipse da Razão. Segundo a
dupla de pesquisadores, “o paranoico só percebe o mundo exterior da maneira
como ele corresponde a seus fins cegos”, ou seja, uma certa “frieza dos meios
de autoconservação” (Adorno; Horkheimer 1985, 154). O texto, a partir deste
argumento, desenvolve a concepção de que, em um estágio pré-civilizacional, a
paranoia garantia a existência do mais forte, do que se antecipasse primeiro.
Conforme avançam a civilização e a modernidade, os impulsos são
progressivamente reprimidos e retornam como patologias projetivas: “O
distúrbio está na incapacidade de o sujeito discernir no material projetado entre
o que provém dele e o que lhe é alheio” (Adorno; Horkheimer 1985, 154). O
texto menciona a teoria psicanalítica apenas lateralmente, explicando alguns
consensos dos quais deriva a projeção, no jargão psicanalítico, a correlação com
a homossexualidade e o medo da castração que obriga a antecipar a obediência
ao pai. “Sob a pressão do superego, o ego projeta no mundo exterior [...] os
impulsos agressivos Id”, colocando este último, por fim, sob ameaça. Assim
como na definição de Jameson sobre o comportamento de Wagner, “ele ataca o
outro como um ciumento ou um perseguidor” (Adorno; Horkheimer 1985, 156).
A paranoia para os frankfurtianos também está relacionada a um
fenômeno cultural, a aparição do estereótipo sociológico do indivíduo
“semicultivado”. Na formulação mais breve, “a paranoia é o sintoma do
indivíduo semicultivado”, para o qual “todas as palavras convertem-se num
sistema alucinatório” (Adorno; Horkheimer 1985, 161). Como consequência da
falsa projeção, o indivíduo não logra uma educação integral, estabelecendo uma
relação demasiado arbitrária com o mundo externo. Neste constructo, a paranoia
aparece como falsa projeção, resultando em indivíduos de pensamento
hipostasiado, incapazes de “transgredir um complexo de interesses
determinados por seu destino psicológico”, pelo qual está disposto a assumir
expedientes agressivos de autoconservação (Adorno; Horkheimer 1985, 161).

259
revista de teoria da história 2 2020

A partir desta definição, encontramos, diferente do texto sobre Spengler,


por exemplo, o momento delirante e de discernimento comprometido,
“rigorosamente louco”, da paranoia. A própria definição de semicultura recai em
lugares parecidos aos quais Adorno visita ao definir a prática historiográfica de
Spengler: “recorre estereotipadamente à fórmula que lhe convém melhor em
cada caso, ora para justificar a desgraça acontecida, ora para profetizar sobre a
catástrofe disfarçada, às vezes, de regeneração” (Adorno; Horkheimer 1985,
161). Entretanto, neste ponto, perde de vista o momento de verdade do
fascismo, fundamental para entendê-lo e criticá-lo, para enfatizar o seu caráter
de falsa projeção.
Poderíamos contrapor este texto sobre o antissemitismo à afirmação de
Adorno (2017, 34) no Minima Moralia (1951), em que, ao discutir as relações entre
conhecimento e poder estabelece que há uma relação de servilismo, mas também
de verdade entre ambas. Antes de qualquer definição, o filósofo apresenta, como
um diálogo do qual participa, o caso do médico expatriado que diz a ele: “Para
mim, Adolf Hitler é um caso patológico”. Ao que responde que o resultado
clínico provavelmente dará razão à assertiva do amigo, no entanto, há uma
absoluta desproporção entre o diagnóstico e a desgraça objetiva que se sucedeu,
ou seja, taxá-lo de paranoico (opinião que infla o médico), mostra apenas o
ridículo do analista, carimbando a vaidade e a pobreza do pensamento em suas
palavras. Neste aforisma, Adorno enfatiza o momento de verdade da paranoia.
Nesta batalha entre a alucinação e a verdade na paranoia, encontramos,
nas formulações de Adorno sobre a sociologia e a psicanálise, um momento no
qual se estabelece um diálogo direto com a teoria freudiana das psicoses de
defesa, ausente na construção aludida anteriormente. O filósofo abordou a
questão em outro texto, acerca das relações entre a psicanálise e sociologia, Sobre
a relação entre sociologia e psicologia. Em um texto de teoria, fundador do encontro
entre as disciplinas, a discussão sobre as psicoses defensivas não é feita com
Freud, mas com a sua filha, Anna Freud.
Adorno começa no método crítico aplicado dos anos 1950 em diante6:
reconhece os principais ganhos do autor para reprovar seu momento de
falsidade ao final. Há, portanto, um ponto de verdade e um ponto de inverdade
em Anna Freud. Seu momento de verdade está em subsumir os dois últimos
pontos das psicoses, o do recalque e o de sublimação, no conceito de defesa,
concebendo a paranoia como patológica. No entanto, essa síntese tem um preço,
pois tudo que era “realização cultural” em Freud, isto é, “realização psíquica não
imediatamente útil às satisfações pulsionais”, passa a ser visto como projeção
patológica (Adorno 2015, 115). A teoria rigorosa com o objeto esmorece frente
à diversidade não organizada da observação empírica.
Entretanto, é justamente dessa ênfase no patológico que surge uma
teoria “pouco rigorosa”, a do “psicologismo”7. Adorno (2015, 115-6), para
contrapô-la, mostra como é possível aproximar o estudo da sociologia e da
psicologia, sem recair em psicologismo. Curiosamente, o exemplo dado, vêm da

6 Para ver mais sobre o método crítico dialético de Adorno moldado neste período, ver a

contribuição de Ricardo Musse. Para o pesquisador, esse método é construído em modelos críticos
e procura definir este método (Musse 2009).
7 Psicologismo se refere as teorias nas quais a dimensão psicológica assume um papel deter-

minante central. Vemos uma situação exemplar na citação: um especialista que pensa dizer algo
sobre a música de Beethoven através de suas patologias psíquicas. É interessante perceber, neste
ponto, que o próprio Adorno teve de se defender contra acusações de “psicologismo” vindas de
Popper. Ou seja, estabelecer uma mediação entre psicanálise e ciência social era uma maneira de
combater o mal psicologismo e os que o acusavam.

260
revista de teoria da história 2 2020

musicologia, em especial da figura de Beethoven. A carga de ironia é recurso da


crítica:

Assim, a teoria psicanalítica atual pensa esgotar a música, com base em


observações clínicas, através da tese da defesa perante a paranoia, e se
fosse consequente o bastante deveria desprezar toda a música. Não está
longe daquelas psicobiografias que pensam poder dizer algo essencial sobre Beethoven,
ao se referirem aos traços paranoicos do indivíduo privado, e então se questionam,
surpresos, como tal ser humano pôde escrever uma música cuja fama se lhes impõe um
conteúdo de verdade que seu sistema os impede de assimilar. Tais relações da teoria
da defesa com o nivelamento da psicanálise a um princípio da realidade
interpretado de forma conformista não faltam totalmente até no texto de
Anna Freud. (Adorno 2015, 116, grifo nosso).

Ao tratar fenômenos diversos como artimanhas patológicas de defesa,


Anna Freud inverte a paranoia para o analista. Adorno afirma que a psicanalista
não foi capaz de perceber o momento de verdade do seu objeto justamente por
tratá-lo como patológico, um perigo sobre o qual já havia advertido o seu amigo
médico sobre o diagnóstico de Hitler. Se seguirmos a pista do argumento, ao
subsumir tais fenômenos, a psicanalista se engajou na taxação e perdeu a
capacidade de criticar a sua formação, ou, para parodiar a ironia de Adorno,
deixou de ouvir a música.
Por último, a noção de paranoia paira na Personalidade Autoritária (1950),
livro produzido por Adorno em associação com um centro de pesquisas da
Universidade da Califórnia para o qual o filósofo contribuiu com a análise
qualitativa de milhares de pesquisas individuais que mediam o nível de
autoritarismo, segundo indicadores específicos. Ao refletir sobre a franja mais
radical dos Estados Unidos – em sua maioria, grupos de classe-média branca do
sul do país, ressentidos com o legado do New Deal e da Segunda Guerra – forjou
a noção de pseudoconservador (Adorno 2019, 379-399). Em uma definição que
alcança operacionalidade, a personalidade a qual se refere o termo cunhado “em
nome da preservação dos valores e instituições tradicionais americanos e da
defesa deles contra perigos mais ou menos fictícios, consciente ou
inconscientemente, visa a sua abolição” (Adorno 2019, 381). Na condição de
semiculturado, não consegue se integrar no pensamento conservador e opera em
uma condição de ódio ao intelectualismo, sendo este um aspecto bastante caro
ao espectro político em questão. Entregue a devaneios de regeneração, a
intensidade da paranoia depende de quão fictícios são os perigos aventados na
defesa das instituições.
Senão pelo fato de ocupar uma correlação na escala de indicadores de
alto nível de personalidade autoritária, a noção de pseudoconservadorismo nada
tem a ver com a paranoia. Aproximar as duas esferas, por outro lado, pode nos
mostrar como a noção está próxima da nossa tríade referencial Siegfried-
Schreber-Strindberg. Seguindo o raciocínio, por correlação, poderíamos afirmar
que Spengler também participa dessa junção, mas este seria um estudo à parte.
Na Dialética, o progresso e a formação do que o filósofo denominou como
“indústria cultural” cumprem um papel fundamental na formação do paranoico.
O semiculturado seria o principal resultado cultural da sua penetração para os
filósofos (Adorno 1985, 163). O compositor Richard Wagner, por exemplo,
ilustra uma espécie de acumulação primitiva da personalidade autoritária e da
indústria cultural, segundo entende Adorno. Foi justamente o ódio ao
esclarecimento presente na obra do alemão que formatou a indústria cultural e
o antissemitismo, tornando-se a sua regra (Adorno 2005, 1-18; 33-51; 74-86).
Trata-se disso a Dialética e os estudos de caso mencionados são continuações

261
revista de teoria da história 2 2020

empíricas do projeto. Colocado contra a sua própria obra, talvez esse texto
célebre seja o que interesse menos às intenções da prática historiográfica. Em
outras palavras, opondo a Dialética a seus textos posteriores acerca da psicologia
social, podemos extrair da Minima Moralia (1951) de Adorno, do seu estudo sobre
Wagner e da pesquisa sobre a personalidade autoritária, reflexões sobre como
perceber o momento de verdade da paranoia. Diante desse cenário, é
interessante pensar como um historiador abordou o problema.

A PARANOIA INVADE O OFÍCIO DO HISTORIADOR


Como vemos no livro de Adorno (2019), a personalidade autoritária da
década de 1950 se debate com um perigo comunista fictício advindo do legado
“esquerdista” do New Deal. A ideia de pseudoconservador qualifica esse
problema: como os supostos patriotas, os quais querem salvar a nação de um
mais ou menos fictício comunismo, o fazem quebrando todas as boas práticas
institucionais e a divisão democrática de poderes. O historiador Richard
Hofstadter se apropriará da noção de Adorno para traçar os elementos que
definem a experiência histórica do Macarthismo no seu primeiro texto sobre a
experiência, The Pseudo-Conservative Revolt, de 1954. Relacionando o tipo
pseudoconservador e a paranoia, como espécie de desenvolvimento empírico do
estudo anterior, Hofstadter forja o conceito de estilo paranoico. Esse
desenvolvimento é definido no ensaio canônico, intitulado The Paranoid Style in
American Politics (1964) e, apesar da proximidade com a psicologia social,
chegando, inclusive, a travar parcerias com Peter Gay, biógrafo de Freud, os
estudos de Freud sobre paranoia não participam desta formulação.
Podemos resumir o estilo paranoico na história, retirada do ensaio sobre
o grupo de arizonenses que se revoltaram contra o senador Thomas E. Dodd,
eleito pelo estado de Connecticut. Após a morte do presidente John Kennedy,
novembro de 1963, o senador propôs uma mudança legislativa que taxava o
acesso às armas e revertia os lucros a ações em prol do desarmamento. O
senador foi imediatamente rechaçado pelo grupo vindo do Arizona; de pick-up,
eles cruzaram todo o país até Washington para reclamar seus direitos, pois,
segundo o líder, o ato do senador visaria facilitar a penetração comunista. Uma
vez desarmados, argumentavam os sulistas, o inimigo teria ainda mais facilidade
em se infiltrar no solo nacional (Hofstadter 1964, 5). O estilo paranoico se
configura quando um líder parlamentar assume o discurso dos arizonenses.
Hofstadter (1964, 6-10) faz uma regressão histórica que remonta à fundação dos
Estados Unidos para desenvolver seu argumento. Tornou-se corriqueiro definir
este tipo de comportamento como paranoid politics, política paranoica, e estendê-
lo a diversas formações sociais semelhantes na história.
No estilo paranoico, a iniciativa privada tem sempre mais efetividade e
justiça, burocracia é sinônimo de degeneração. Hofstadter, procurando as raízes
do estilo paranoico desde a fundação da democracia americana, detecta uma
constante: este estilo aparece em momentos de polarização, no qual uma parcela
representativa da população fica longe do poder por muito tempo por interesses
que são inegociáveis (Hofstadter 1964, 29-31). Distantes do processo decisório,
população e políticos alinhados veem o poder instituído como algo sinistro,
onipotente e malicioso. Não raro, recaem em um complexo de “usurpação” e
propõem a retomada do que é supostamente seu por natureza. Vale ressaltar, o
estilo paranoico, tal como construído por Hofstadter, não é exclusividade de um
país, de um posicionamento político, de um período histórico determinado
(Hofstadter 1964, 32).

262
revista de teoria da história 2 2020

Segundo Hofstadter, se pensássemos em uma interpretação paranoica da


história, ela seria excessivamente personalista: eventos decisivos não são
tomados como partes de uma sucessão de variáveis da História, mas como as
consequências da vontade de um líder. Não está distante do que se vê em
Spengler ou na interpretação extraída por Jameson do Anel dos Nibelungos, uma
sucessão de homens fortes governando segundo seu arbítrio. O próprio
Horkheimer, no seu livro pré-Teoria Crítica intitulado Crepúsculo [Dämmerüng],
não está distante desta interpretação ao pensar na história como uma sucessão
de extorsionários (Horkheimer 1934, 358). Apenas traduziu a linguagem de clãs
e oligarcas para uma chave mafiosa. Contudo, conforme nos mostra Marcos
Nobre, foi justamente nesse livro de uma afirmação da “individualidade
concreta”, frente ao capitalismo monopolista, de formulação histórica tão
determinista, que surgiu a ideia de uma pesquisa empírica em que se associassem
teoria psicanalítica e teoria contemporânea da sociedade (Nobre et. al. 2013, 153-
163). Essa individualidade é denominada concreta exatamente para se diferenciar
de uma individualidade abstrata ou, se seguirmos o entendimento de
Horkheimer, paranoica.
O conceito de Hofstadter tem ganhos evidentes para a história política,
definindo um modo de prática parlamentar que resiste ao tempo nas
democracias liberais mais populosas, inclinando-a a comportamentos iliberais.
Não requer muito esforço encontrar a nossa própria “política paranoica” nos
governos de inclinação tecnocrática ou autoritária. Ler Hofstadter, de modo a
resumir a paranoia a um conjunto de quebras de regras e maneiras de poluir um
espaço público com teorias e bravatas, implica um vício no qual o historiador,
para ver a singularidade, não deveria incorrer. Projetar o conceito para outras
construções é hipostasiar o pensamento, isto é, ao torná-lo operacional para o
enquadramento empírico, pode-se recair em um lugar parelho ao de Anna Freud,
quando subsumiu a complexidade do objeto a alguns tópicos dentro de uma
forma conceitual útil. Há ganhos políticos imediatos, mas cai por terra a
mediação.
Todavia, para além da projeção de um constructo, a tarefa aqui não é
reconstruir uma experiência histórica segundo as catalogações dada pelo
ensaísta, por Adorno ou Freud. Outro ponto importante no argumento de
Adorno (2015, 120) acerca da relação entre psicologia e sociologia é sobre como,
por mais que delimitemos um estudo interdisciplinar, as duas disciplinas devem
ser tratadas em conflito. A tradução desta tensão na paranoia é a dialética entre
patologia e verdade. A história, portanto, no entendimento do argumento deste
artigo, deve resistir a tais categorizações.
Em seu livro mais recente, no qual define a espécie de seu materialismo,
o filósofo esloveno Slavoj Žižek (2020, 168) comenta como a paranoia passou a
estruturar a realidade. Trabalhando com um jargão lacaniano, comenta que “na
paranoia, o Grande Outro cai dentro da realidade e se torna um agente que
persegue o sujeito”, ou seja, o seu próprio frame simbólico, o qual determina o
campo do (não-/inter-)dito, se realiza como perseguição objetiva. Isto
mencionando em termos formais, pois se pensarmos na realidade
contemporânea “a ironia é que, na digitalização global, a paranoia não é apenas
uma ilusão subjetiva que estrutura a realidade – nós somos “realmente”
controlados por um maquinário que existe de fato” (Žižek 2020, 169). Neste
contexto, para Žižek, é plenamente possível que um líder clinicamente paranoico
tome conta de todo este aparato. Contudo, seguindo nesta pista, não poderíamos
afirmar que a paranoia que estrutura a realidade não é patológica. Ela ainda é
patológica, mas curiosamente sumiu do Manual Diagnóstico e Estatístico de

263
revista de teoria da história 2 2020

Transtornos Mentais (DSM). “Desde 2013, não há paranoicos no mundo”,


afirmou o filósofo Vladimir Safatle (2019 s.p.), em artigo para um periódico de
grande circulação no qual reflete sobre um suposto “fim da paranoia”.
Melhor explicando, o fato de ela ser excluída dos manuais de diagnóstico
psiquiátrico, não é um indicativo de que a doença não é mais encontrada, mas
de que ela já penetrou o laço social, naturalizou-se. Isto é, apesar de mais
presente do que nunca, a paranoia deixou de ser uma patologia, sob a ótica da
clínica psiquiátrica. Isso representa, para o filósofo, uma perda do momento de
verdade de como compreendemos a patologia como normalidade. Em outras
palavras, o “salto tecnológico irresistível” terminou por anular a compreensão
histórica do problema e a sua distinção na teoria psicanalítica.
No entanto, nos interessa ver qual é a paranoia que enreda as nossas
práticas historiográficas hoje e quais são os mecanismos que atravessam nossas
escolhas, uma vez que ela é estrutura da realidade (Žižek), principalmente na sua
relação com o progresso da tecnologia. As duas perguntas que dão a tônica do
desenvolvimento final do texto foram construídas em torno da chamada do
presente dossiê, História e Psicanálise, e tangenciam a proposta principal de refletir
sobre como a historiografia poderia se beneficiar ao se abrir à psicanálise
proposta pelas pesquisadoras Ana Lúcia Vilela, Fabiana Fredrigo e Sabrina
Braga:

1) O presente do historiador. A paranoia, depois de mais de um


século de sua descoberta clínica, se enraizou na tecnologia. Com a
progressiva digitalização dos arquivos e dos processos de informação,
bem como todo o sistema de produção textual e de pesquisa se
virtualizou, somos impactados por esse fundo paranoico. Como a
historiografia pode encontrar caminhos para ler esta construção, se
aproveitando dos usos da noção de paranoia na psicanálise aventados até
aqui?
2) O presentismo de suas fontes. Os estudos sobre a paranoia
chegam a conclusões acerca da natureza do tempo narrativo do
paranoico. Estão carregadas de um presentismo. Como os usos da
paranoia podem ser aproveitados pela historiografia para narrar o
inconsciente do delírio paranoico? Como a abertura ao entendimento
das psicoses pode auxiliar na escolha das fontes?

Podemos continuar o fio deixado pelo argumento de Žižek acerca da


relação entre paranoia e digitalização para retomá-lo, inicialmente, na chave da
primeira pergunta. Como o tema está no “calor da hora” e poucas são as
afirmações do filósofo esloveno que não vão para além da teoria. Uma
especulação que diz mais sobre o materialismo dialético de Žižek, sua
compreensão da relação entre tecnologia e sociedade, do que propriamente
sobre a natureza da denominada Big Tech. O que não é pouco, pois, há na sua
teoria uma compreensão bastante modelar, segundo a qual, a digitalização dos
processos da vida não estaria a serviço do descentramento do sujeito, mas
aboliriam a possibilidade de qualquer descentramento, ao objetivar o simbólico.
É o oposto de dizer que há um inconsciente da máquina em ação, desagregando
o sujeito (como o fazem Deleuze e Guattari no Anti-Édipo), pois, se refere
justamente a uma persistência do sujeito ao estressar que, independente dos
mecanismos que o governam, ninguém pode retirar a experiência da
subjetividade, de sentir o que está sentindo (Žižek 2020, 169).

264
revista de teoria da história 2 2020

Arrolados os pressupostos, Žižek (2020, 170) argumenta que, na clínica


lacaniana, para se dar fim a uma psicose dessa natureza, é preciso retirar a fantasia
que a estruturou. Em associação livre, poderíamos especular que, se a tarefa do
psicanalista seria arrancar essa fantasia que estrutura a realidade, não seria a tarefa
do historiador identificá-la a posteriori? Segundo Žižek, para a psicanálise
proceder com a retirada dessa fantasia estrutural, é preciso entender a distinção
entre separação e alienação. Isto é, em uma aplicação exemplar, poderíamos dizer
que o paranoico é patológico, está de fato dissociado, mas não alienado. Ou seja,
conserva a dimensão patológica do problema, permitindo criticá-la, ao mesmo
tempo em que não desconsidera o seu conteúdo de verdade.
Especulações nos servem como hipóteses teóricas, um horizonte, o qual
nos salva de ver o problema da digitalização na sociedade em uma perspectiva
acachapante e totalitária ou livre e democrática. Trata-se, na perspectiva do
historiador, de perceber a fantasia que estrutura a própria ideia de um mundo
digital, do qual o mesmo participa diretamente, uma vez que todos os seus textos
são completamente atravessados por preocupações, escolhas, do mundo digital.
Contudo, para não recairmos em mais especulações, girando em falso, é possível
reconstruir o mito fundante dessa digitalização.
Uma das pesquisas mais detalhadas até o momento sobre o papel da
digitalização nos modos de produção é o estudo da pesquisadora Shoshana
Zuboff (2019), socióloga da Universidade de Harvard. Estudando a ascensão da
tecnologia de dados, principalmente através da ascensão da Google, e o seu
impacto no mundo da vida, do trabalho e do lazer desde os anos 2000, a
pesquisadora aposta que este movimento em direção à digitalização é sinal de
uma mudança estrutural no modo de produção. Para explicar a distinção que
funda este modo, Zuboff revisita os clássicos que definiram a sociologia do
capitalismo – Marx, Durkheim, Weber et al. – e a tradição de pensamento liberal
estadunidense, tensionando as formulações clássicas com o que se depara na
afirmação dos principais agentes e instituições do mercado de tecnologia (CEOs
de grandes multinacionais, geralmente). Em um trabalho de sociologia histórica,
reconstrói a história de algumas empresas do Vale do Silício e confronta suas
promessas iniciais de esclarecimento e igualdade de informação, muito presentes
na virada para o século XXI, com o cenário monopolizado que vemos hoje.
Pesquisa que resultou no conceito que chamou de capitalismo de vigilância.
A tese fundante do trabalho de Zuboff, primeira parte do livro, recai
sobre o fato de que a natureza e o comportamento humano são a principal
matéria a alimentar este modo de produção. Isto é, a pesquisadora mostra como
o Google conseguiu tornar rentável a ação de seus usuários em um mercado de
futuros, principalmente por meio venda de provisões baseadas em um cálculo
algorítmico que, até os anos de 2001-2006, não era rentável (Zuboff 2019, 194).
Foi necessário o sequestro da nossa privacidade, legitimado pelo país
reconhecido como arauto das liberdades individuais8, assinala a pesquisadora.

8 Para ver mais sobre o capitalismo de vigilância de Zuboff, revisitar a primeira parte do livro,

nela a pesquisadora desenvolve todos os passos do plano das empresas para converter a ação
humana, principal matéria prima, em rentabilidade no mercado de futuros: “eles usavam decla-
rações para pegarem se perguntarem (...) camuflaram seus propósitos com máquinas ilegíveis se
movendo a uma velocidade extrema, acobertaram-se en práticas corporativas de secreção, espe-
cializaram-se na retórica das ilações e, propositalmente, apropriaram-se indevidamente de sím-
bolos e signos culturais” [they used declarations to take without asking (...) camouflaged their
purpose with illegible machine operation, moved at extreme velocities, sheltered secretive cor-
porate practices, mastered rethorical misdirection, taught helplessness, purposefully misappro-
priated cultural signs and symbols (...) empowerment, participation, voice, individualization, col-
laboration]”. (Zuboff 2013, 384).

265
revista de teoria da história 2 2020

A primeira das oito definições entregues no livro define capitalismo de


vigilância como “uma nova ordem econômica que reclamou a experiência humana
como matéria-prima para práticas comerciais ocultas de extração, predição e
venda” (Zuboff 2019, 1). Ao longo das mais de 600 páginas, Zuboff narra
diversos acontecimentos em que ações parlamentares ou jurídicas de diferentes
países tentaram intervir no avanço do processo e falharam. A conversão
dependeu de uma série de extorsões, praticadas sistematicamente e com
objetivos claros. (Zuboff 2019, 233).
Evidenciada a arquitetura montada pelo Google através de práticas
institucionais agressivas e pouco transparentes, a pesquisadora começou a
perceber como cada tecnologia nova da empresa repercutiu na sociedade. A
discussão do espaço público a atravessa totalmente, isto é, segundo Zuboff, o
mundo hiper conectado não dá tempo para a discussão racional, o consenso, a
elevação moral, horizonte próximo à utopia de um mundo comunicativo do
filósofo Jürgen Habermas. Contudo, a multinacional avança na política e partilha
com o paranoico o ódio à burocracia e processos decisórios democráticos. "O
pensamento computacional substitui a vida política comunitária por uma base
de governança”, reflete a socióloga ao perceber a ascensão de funcionários do
Google trabalhando nas administrações de George W. Bush e Barack Obama.
Tornou-se clichê o intercâmbio de funcionários que iam da Google para a Casa
Branca, em uma espécie de fenômeno da “porta giratória” (Zuboff 2019, 385).
Conhecido o argumento do estudo, cabe ao presente artigo, seguindo a
especulação que inicia a seção, interrogar qual é a fantasia que estrutura essa
digitalização. E nisso, Zuboff nos auxilia, pois, o estudo é histórico não apenas
no rigor com a empiria, mas por trabalhar a reconstrução histórica do problema.
Discutir o fenômeno digital não é debater os últimos 30 ou 40 anos, mas
remonta, para a pesquisadora, a ideais da técnica do século XIX e à colonização
do século XVI. Eric Schmidt, empresário ativo desde os anos 1980, CEO e
executivo do Google, entre 2001 e 2016, ano em que ingressou como chefe do
conselho de inovação do Departamento de Defesa dos EUA, empreende uma
aventura no mundo digital que é equiparável a de Colombo no Novo Mundo. O
argumento da pesquisadora convence ao nos depararmos com a dimensão
sociológica de experimentos como o Google Street, que mapeou todo o globo,
inaugurando uma espécie de fim do desconhecido do ponto de vista
cartográfico.
Não precisaremos regressar tanto, mas uma figura é central para
desvendar a fantasia, isto é, o conteúdo utópico e o fundo paranoico presente
na ideologia da digitalização propostas pelo que se entende hoje por Big Tech.
Zuboff mostrará ao longo da segunda parte como os executivos eram
especialistas no que ela denominou como uma “utopística aplicada”. A utopia
que lhes servia como referência foi criada, e este ponto é fundamental para o
argumento formulado por um psicólogo que praticava experimentos sociais.
Burrhus Frederic Skinner, um dos fundadores do chamado behaviorismo, autor
do livro intitulado Walden Two (1948). Muito menos divulgada do que o seu
contemporâneo George Orwell, 1984 (1948), trata-se de uma distopia manifesto
dessa “utopística aplicada” a qual a socióloga se refere (Zuboff 2019, 431-444).
Enquanto o departamento de ciências sociais e psicologia da Califórnia
pesquisava a personalidade autoritária crescente nas democracias ocidentais, os
de Harvard desenvolviam uma concepção de sociedade governada por uma elite
de técnicos. Os estudos de Skinner em Harvard começaram oito anos após os
estudos de Adorno. Walden Two é a concepção de sociedade do psicólogo
americano, dez anos antes de seu ingresso na universidade, uma utopia de certeza

266
revista de teoria da história 2 2020

programada, um jogo probabilístico com o comportamento humano que


objetiva um sucesso integral. A utopia skinneriana objetiva construir uma nova
sociedade baseada em experts que poderiam formar um repertório de bons
hábitos e regras que valeriam para todos. A personagem principal chega a
mencionar que não gosta do “despotismo” da democracia e de que este plano
deveria ser executado por um grupo não-competitivo de planejadores da
sociedade para gerir seus riscos e ordená-la (apud Zuboff 2019, 438).
Três CEOs, advindos das principais empresas de tecnologia hoje,
dividem a mesma ideia de Skinner em alguns elementos. Satya Nadella (Microsoft),
Mark Zuckerberg (Facebook) e Larry Page (Google) concordam com os cinco
pontos que definem, para a socióloga, a utopia de Walden Two e a aplicam:

(1) uma tendência para uma ‘visão túnel’ que simplifica o desafio utópico;
(2) uma sensibilidade maior de perceber ‘o novo estado das coisas’ que os
seus contemporâneos; (3) insistência obsessiva e defesa de uma ideia fixa;
(4) uma fé inabalável na inevitabilidade de uma ideia a ser materializada na
realidade; (5) a pulsão para uma total reformação a nível da espécie e de
todo o sistema mundial. (Zuboff 2020, 405)9.

Zuboff, no campo da sociologia, constantemente tangencia a história. A


proximidade dos cinco elementos aventados com os casos de paranoia
aventados é uma correlação importante a se levar em consideração no
argumento proposto. Nem panóptico, nem terra de liberdade. Extraindo esse
elemento utópico da Big Tech, o historiador pode criticar a formação desse modo
de produção e compreender o seu momento de verdade. A paranoia acontece,
neste caso, quando a análise fria da sociedade se torna seu desejo obsessivo, o
que guarda relação com Spengler.
O estudo conclui que não há como esperar o "bem maior" enquanto o
capitalismo de vigilância estiver sob controle dos meios de transformação
comportamental – o novo meio de produção – e as receitas que ele gera. Zuboff
nos leva, por meios empíricos, a concordar com Žižek: o que há é a abolição da
possibilidade de descentramento no mundo digital colonizado. O poder
preditivo contido nessa utopia de Skinner evoca o conceito de “olho de deus”
(God’s View), essencial para se entender a ideia de uma sociedade instrumental
(instrumentarian Society), ou seja, esse grupo de engenheiros da sociedade teria uma
visão planificada e poderia operar a partir dela. Não é sem razão que os CEOs
se identificam. Sem nunca ter feito a correlação aventada por Zuboff, Žižek tem
razão quando afirma que a Big Tech materializou os raios divinos do Deus de
Schreber, os quais controlam a mente humana (Žižek 2008, 36).
“O presidente Schreber tem os raios do céu no cu”, assim começa o Anti-
Édipo do filósofo Gilles Deleuze e do psicanalista Félix Guattari. Uma das teorias
desenhadas no livro representa uma disputa em curso na psicanálise para
determinar, interpretativamente, qual é o problema primordial de Schreber, se a
figura do pai ou a máquina que ele inventou para adestrar a sua postura10
(Deleuze; Guatarri 2010, 419). A dupla reprova Freud por ter causado a pior
moléstia a Schreber, pois depois de passar por tudo que passou, ainda teve que

9 “(1) a tendency toward highly focused tunnel vision that simplifies the utopian challenge,
(2) an earlier and more trenchant grasp of a “new state of being” than other contemporaries, (3)
the obsessive pursuit and defense of an indeé fixe, (4) an unshakable belief in the inevitability of
one’s ideas coming to fruition, and (5) the drive for total reformation at the level of the species
and the entire world system”
10 Há uma disputa interpretativa entre a psicanalise freudiana e a esquizoanálise. Enquanto a

primeira dá centralidade ao jogo entre as instâncias do Eu, a última enfatiza a importância das
tecnologias na padronização dos comportamentos.

267
revista de teoria da história 2 2020

ser edipianizado. Afirmam que “o fato de a análise de Schreber não ocorrer in vivo
nada altera o seu valor”, dando legitimidade histórica ao estudo de Freud, mas
garantem que Schreber está sob “o efeito da máquina, não de metáforas”
(Deleuze; Guatarri 2010, 124). Schreber é o corpo sem órgãos por excelência, talvez
o grande exemplo do livro, o qual é subjetivado pela ação da “máquina”.
A despeito de todas as divergências, concordam com a teoria freudiana,
em outra chave, ao dizerem que Schreber se cura por entender e aceitar o seu
devir-mulher. Na sobreposição de papéis, o “devir-burgomestre”, devir-juiz,
“devir-mongol”, o caso de Schreber mostra a massa histórica, geográfica e racial
presente na paranoia – “não há paranoia que não revolva tais massas”, afirmam
o filósofo e o psicanalista (Deleuze; Guatarri 2010, 124); e, portanto, também
concordam com o conteúdo histórico da narrativa paranoica. Esta especulação
se esclarece quando afirmam, como fez Adorno na Minima Moralia, que “o erro
seria concluir disso, por exemplo, que os fascistas são simples paranoicos”. A
tarefa, por outro lado, seria “reconduzir o conteúdo histórico e político do
delírio” (Deleuze; Guatarri 2010, 124), assim como Zuboff empreende ao
investigar a digitalização colonizadora de corações e mentes conduzida pelas
empresas do Vale do Silício. Operar a recondução do conteúdo histórico e
político do delírio é reconstruir suas utopias e teorias. Se Deleuze e Guattari
chegam a esta reflexão sem Freud, Adorno o faz para desenvolvê-lo.
Olhar a paranoia como uma preocupação do presente nos faz próximos
da pergunta que Adorno dirige a Heidegger em uma nota da Dialética Negativa:
como é possível dentro de um “pensamento inteiramente histórico” diferenciar
“entre o acontecimento próprio e aquele que acontece ‘vulgarmente’, como é
possível diferenciar inequivocamente entre o destino escolhido por si mesmo e
a fatalidade não escolhida”? Seja a fatalidade aquela que se “se abate sobre os
homens ou os seduz para uma escolha e decisão momentânea” (Adorno 2009,
116). Sem tentar responder com uma definição, como imagino que nenhum
historiador consiga até hoje, apenas mencionou que a “história vulgar” se vingou
do “desprezo heideggeriano pelo simplesmente presente” ao seduzi-lo a
conduzir a Universidade de Freiburg durante o regime de Hitler (Adorno 2009,
116). Ao reconstruir o problema da paranoia distantes de um “pensamento
inteiramente histórico”, mas também não desatentos ao ofício da história,
podemos pensar como seus frutos podem nos ajudar a definir a relevância de
um acontecimento. Interrogando a fantasia do “capitalismo de vigilância” nos
tornamos capazes de distinguir entre as escolhas que nos são permitidas e as que
não são, passo fundamental para o historiador entender o presente e não se
curvar aos interesses do “acontecimento vulgar”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletir sobre como a paranoia conduz o presente do historiador
também é pensar como esta psicose contém em si mesma um certo presentismo,
ponto da segunda pergunta levantada no tópico anterior. Os elementos
paranoicos aventados pelo artigo podem ser encontrados em diferentes fontes,
ou melhor, pode orientar o próprio recorte das fontes. Dizem as coisas pelo
nome que têm, não tergiversam, avançam na sua descrição sem mediações.
Como figura no Anti-Édipo, os nomes formam zonas de intensidade no corpo
sem órgãos do paranoico (Deleuze; Guatarri 2010, 124-125).
Em um tempo no qual as expectativas estão cada vez mais colonizadas
pelos processos de digitalização, os acontecimentos que se sucederam nos fazem
revisitar as descrições apocalípticas dos paranoides do início do século com

268
revista de teoria da história 2 2020

grande interesse pela sua descrição. Como mostram Deleuze e Guattari, o


paranoico dirige-se ao Molar, à macroteoria, mas sua busca é pelo molecular,
pelos rastros que a fundamentam. Ou seja, através do “investimento paranoico”,
organiza-se em escala microscópica o fenômeno da referida massa histórica
(Deleuze; Guatarri 2010, 370-371). Estão dispostos a aceitar a realidade ocultada
por determinado grupo, observam seus pares e inimigos como quem vê de fora.
Assim como a conclui a leitura do estudo de caso de Zuboff, não é preciso
diagnosticar a paranoia, mas identificar o conteúdo projetivo, utópico, do
pensamento em questão, para perceber os seus contornos.
A presente pesquisa constrói um caminho que corre paralelamente ao do
historiador François Hartog (2015, 146-149) pelo século XX, quando este
diagnostica o presentismo na crescente mobilidade da sociedade, mas de uma
perspectiva aberta à psicanálise. O autor de Regimes de Historicidade retorna ao
futurismo para marcar que o presentismo não é um fenômeno da última terça
parte do século passado. “Se a crítica ao progresso não implica uma promoção
automática do presente, ela instila a dúvida sobre o caráter inevitavelmente
positivo da caminhada para o futuro”, conclui Hartog (2015, 148), ao relacionar
o conceito que cunhou com a ideia de progresso. Até os anos 1950, esta tese
vale; poderíamos, inclusive, colocar Skinner e Spengler na primeira, enquanto
Adorno e Horkheimer figuram na segunda. Segundo a tese, a partir da década
de 1960, o futuro se esvai (“no future!”) e se dá, segundo o historiador, uma crise
do tempo. Temos um tempo que está sujeito às “autoestradas da informação” e
é preciso refletir sobre ele. O próprio exemplo do executivo sobrecarregado
revela um “déficit crônico de tempo” (Hartog, 2015, 149).
Reinhart Koselleck, principal referência para o conceito desenvolvido
pelo historiador francês, observou um achatamento das expectativas conforme
se avolumam as expectativas de fim dos tempos. Para exemplificar, exibe a
formulação do romântico germanista Jean Paul segundo a qual o homem
efêmero, em tempo de aceleração, quer viver plenamente “pela metade do salário
de uma metade de século” (apud Koselleck 2014, 15). Nas revoluções industriais,
o movimento se intensifica e “a máxima da aceleração começa a se tornar a
máxima da experiência” (Koselleck 2014, 148). Progresso e apocalipse aparecem
como correlatos na construção do historiador alemão e operam irmanados para
um abreviamento do tempo. Uma ressalva, a aceleração ou retardamento do
tempo se encontra fora do tempo para Koselleck. Fora do tempo, mas também
fora da História?
Quanto dura um minuto no relógio do paranoico? Pode a História
acelerar conforme o funcionamento do inconsciente? Paulo Arantes (2015, 70-
75), trabalhando com os conceitos de espaço de experiência e horizontes de
expectativa de Koselleck, cravará um conceito de novo tempo do mundo, um tempo
de emergência, que não está distante dessa temporalidade paranoica enraizada,
resultado de precarização e colonialismo. Não está distante de Hartog e está
próximo da matéria nacional, periferia do capitalismo. As avaliações de risco e
os cálculos do mercado de futuros atuais, muito bem descrito no trabalho de
Zuboff, para Arantes, conduzem a uma “espiral paranoica” (Arantes 2015, 74).
É este o tempo que indicam os marcadores do relógio do paranoico. A escrita
na qual se pode identificar elementos desta psicose está correndo contra o
tempo, um tempo de emergência no qual descrever é sobreviver, deixar a sua
versão muito particular da história e das sensações, justificar sua teoria. Na
escrita, a paranoia se deságua e as conspirações alçam a perenidade.
O tempo do historiador, hoje, também se atomiza. Esta é uma discussão
sobre a escolha de um objeto, mas também sobre como estamos determinados

269
revista de teoria da história 2 2020

por essa aceleração ao escolhê-lo. A tônica a ser dada deve residir em não tratar
o estilo paranoico como charlatanismo ou retórica do anátema, o qual a história
se encarregará de escorraçar para a lata do lixo. É tarefa da história que se abre
à psicanálise perceber, dentro de um desenho institucional, quem se situa de fora,
para o qual o poder é sinistro e fonte de delírio; talvez quem melhor descreva o
seu funcionamento não participe do processo decisório e inveje quem decida.
O historiador, assim como a alegoria histórica que Jameson vê na morte
de Siegfried, precisa reativar a cronologia e encontrar a história no delírio. Nosso
ofício também não está imune à paranoia. Ao buscar a paranoia, é preciso se
perguntar, sobretudo, o que não faz daquela fonte um paranoico. Projetar uma
estrutura é ocupar o lugar do paciente, não do analista. A dialética entre patologia
e verdade deve estar sempre em tensão, formulações como a de Žižek não
esgotam o seu conteúdo. Assim também vaticina a cura psicanalítica para a
paranoia receitada por Ferenczi, considerado por Adorno (2015, 100) “o mais
resoluto e livre dos psicanalistas”, no quarto dos seis passos: “A melhor
intepretação de seus sonhos é o paranoico quem a faz. Ele é, em geral, um bom
intérprete de seus sonhos (falta de censura)” (Ferenczi 1992, 192). A
historiografia, assim como receita a cura psicanalítica do húngaro, tem muito a
se beneficiar desta abertura ao inconsciente das interpretações paranoicas. Quem
descreve bem suas ficções, descreve bem a si e a seu tempo. Ferenczi foi
diagnosticado com paranoia entre os anos de 1930 e 1932, anos antes da sua
morte, 1933.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP,
2020.
ADORNO, Theodor. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora UNESP,
2015.
ADORNO, Theodor. “Spengler após o declínio”. In: ADORNO, Theodor. Prismas. São
Paulo: Editora Ática, 1998.
ADORNO, Theodor. “Was Spengler Right?”. In: Encounter: Men & Ideas, January 1966,
pp. 25-28.
ADORNO, Theodor. Mínima Moralia. Lisboa: Edições 70, 2017.
ADORNO, Theodor. In Search of Wagner. Trans. Rodney Livingstone. Foreword by
Slavoj Žižek. London: Verso, 2005.
ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro:
Editora Zahar, 1985.
ADORNO, Theodor. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
ABRAHAM, Karl. “On the Significance of Sexual Trauma in Childhood for the
Symptomatology of Dementia Praecox”. In: Clinical papers and essays on psychoanalysis.
London: Karnac, 1979.
ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo:
Boitempo, 2014.
CALASSO, Roberto. “Introduzione”. In: SCHREBER, Daniel. Memorie di um malato di
nervi. Ed. Roberto Calasso. Milan: Adelphi, 2007.
CARONE. Marilene. “Introdução”. In: SCHREBER, Daniel. Memória de um doente dos
nervos. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
DELEUZE, Gilles. GUATARRI, Felix. O Anti-Édipo. São Paulo: Editora 34, 2010.

270
revista de teoria da história 2 2020

DELEUZE, Gilles. “The psycho-sexual differences between hysteria and dementia


praecox”. In: Selected papers of Karl Abraham. London: Hogarth Press, 1927.
FERENCZI, Sándor. “Transferência e introjeção”. In: Obras completas: psicanálise I. São
Paulo: Martins Fontes, 1991a.
FERENCZI, Sándor. “Um caso de paranoia deflagrada por uma excitação da zona anal”.
In: Obras completas: psicanálise I. São Paulo: Martins Fontes, 1991b.
FERENCZI, Sándor. “On the part played by homosexuality in the pathogenesis of
paranoia”. In: First contributions to psychoanalysis. London: Karnac, 2002a.
FERENCZI, Sándor. “Some clinical observations on paranoia and paraphrenia”. In: First
contributions to psychoanalysis. London: Karnac, 2002b.
FERENCZI, Sándor. “Paranoia”. In: Obras completas: psicanálise IV. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
FERENCZI, Sándor. “Stage fright and narcissistic self-observation”. In: Further
contributions to the theory and technique of psycho-analysis. London: Karnac, 2002.
FREUD, Sigmund. “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia
paranoides) relatado em autobiografia (‘o caso Schreber’)”. In: Obras completas, volume
10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. “Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria
psicanalítica”. In: Obras completas, volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na
homossexualidade”. In: Obras completas, volume 15. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: Obras completas, volume 11. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Obras completas, volume 18. São Paulo:
Companhia das Letras. 2012.
FREUD, Sigmund. [1924a]/2011. “Neurose e psicose”. In: Obras completas, volume 16. São
Paulo: Companhia das Letras.
GAY, Peter. Freud: a life of our time. London: W.W Norton Company, 1988.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo
Horizonte: Ed. Autêntica, 2015.
HOFSTADTER, Richard. The Paranoid Style in American Politics and Other Essays.
Cambridge: Harvard University Press, 1964.
HOFSTADTER, Richard. The Pseudo-Conservative Revolt. American Scholar, 2007
Winter issue, December/2006. Disponível em: https://theamericanscholar.org/the-
pseudo-conservative-revolt/#.X00tbnlKhhE. Acesso em: 06 jun. 2020.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Editora UNESP, 2015.
HORKHEIMER, Max. "Dämmerung. Notizen in Deutschland". In: Gesammelte
Schriften. Band 2: Schriften 1922-1932, op. cit., pp. 312-417.
JAMESON, Fredric. The Ancients and the Postmoderns: on the historicity of forms. London:
Verso, 2007.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2014.
LACAN, Jacques. Seminar: Book III, The Psychoses 1955-1956. Ed. Jacques-Alain Miller.
London: W.W. Norton Company, 1993.
MUSSE, Ricardo. Theodor Adorno: filosofia de conteúdos e modelos críticos.
Trans/Form/Ação, no. 2, vol. 32. Marilia, 2009. pp. 135-145.

271
revista de teoria da história 2 2020

NOBRE, Marcos et. al. Os modelos críticos de Max Horkheimer. Novos estudos -
CEBRAP, São Paulo, n. 96, p. 153-163, July 2013.
SAFATLE, Vladimir. O fim da paranoia. Revista Época, Caderno Sociedade, 16 de
setembro de 2019.
SANTNER, Eric. My own private Germany. New Jersey: Princeton U. Press, 1996.
SCHREBER, Daniel. Memória de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
STRINDBERG, August. Inferno. São Paulo: Editora 34, 2009.
ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: the fight for a human future at the
new frontier of power. Nova Iorque: Public Affairs, 2019.
ŽIŽEK, Slavoj. Sex and the Failed Absolute. London: Bloomsbury, 2020.
ŽIŽEK, Slavoj. The Ticklish Subject. 2nd Ed. New York: Verso, 2008.

PARANOIA E HISTÓRIA
PATOLOGIA E VERDADE
ARTIGO RECEBIDO EM 01/09/2020 • ACEITO EM 02/12/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65416
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

272
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

OBJETIVIDADE HISTÓRICA
NO MANUAL DE TEORIA
DA HISTÓRIA
DE ROBERTO PIRAGIBE
DA FONSECA (1903-1886)
ITAMAR FREITAS
Universidade Federal de Sergipe
Aracajú | Sergipe | Brasil
itamarfreitasufs@gmail.com
orcid.org/0000-0002-2226-2015

Neste artigo, tratamos das ideias de “Teoria da História” e


de “objetividade”, veiculadas no impresso propedêutico
Manual de Teoria da História, produzido no ambiente da
Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, por Roberto Piragibe da Fonseca, entre
1943 e 1967. O professor de Propedêutica entendia Teoria
da História como um construto de Metafísica e Lógica. Com
o Manual, Fonseca queria legitimar a cientificidade do
discurso do historiador e do professor de História e
instrumentalizá-los para combater o materialismo e o
ateísmo no Brasil, tanto nas universidades como nas escolas
do ensino secundário. O resultado dessa composição em
termos de objetividade do conhecimento histórico foi a ideia
de que a cientificidade do trabalho do historiador e do
professor de História do curso superior seria garantida por
meio de uma série de critérios de validação normativa e
operacional que consideravam o respeito às leis metafísicas,
morais e físicas, empregadas sob diferentes pesos no
trabalho de constatação, interpretação e exposição dos fatos.

objetividade – metodologia da história


ensino de história – manual de teoria da história

273
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

HISTORICAL OBJECTIVITY
IN MANUAL OF THEORY
OF THE HISTORY
BY ROBERTO PIRAGIBE DA
FONSECA (1903-1886)
ITAMAR FREITAS
Universidade Federal de Sergipe
Aracajú | Sergipe | Brazil
itamarfreitasufs@gmail.com
orcid.org/0000-0002-2226-2015

In this paper we deal with “Theory of History” and


“objectivity” ideas, transmitted in the propaedeutic written
entitled Manual of Theory of the History and produced in College
of Philosophy of Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro ambience by Boberto Piragibe da Fonseca, between
1943 and 1967. The professor of Propaedeutics class
understood “Theory of History” as a construct of
Metaphysic and Logic. With the Manual, Fonseca intended
to legitimize the scientificity of discourse of historian and of
history professor and make them a tool to intervene in order
to combat the materialism and atheism in Brazil, in
universities as well in high schools. The result this
composition in term of historical knowledge objectivity was
the idea that the works scientificity of historians and History
professor in higher education would be ensured through a
series of criteria of normative and operational validation.
Such criteria took into account the respect to metaphysical,
moral and physical laws, used according different weights in
work validation, interpretation and exposition of facts.

objectivity – history methodology


history teaching – theory of history manual

274
revista de teoria da história 2 2020

INTRODUÇÃO
De modo instrumental, podemos definir o substantivo “objetividade”
como o caráter de ser ou de existir do objeto e o caráter de ser conhecido do
“objeto”, este entendido como uma ideia ou coisa situada em frente ou na mente
do sujeito conhecedor. René Descartes (1596-1650) e Immanuel Kant (1724-
1804), dois dos filósofos mais citados pelos escritores de manuais de Teoria da
História e de Metodologia da História no período de 1870-1940, concordariam
com essa definição genérica de objeto. Apesar das distâncias entre as abordagens
inatista e crítica que professavam sobre o conhecer, Descartes e Kant referiram-
se aos objetos do conhecimento de maneira espacializada (objetos internos e
externos do conhecedor) e discutiram modalidades de correspondência entre
ideias e coisas.
Com o termo “objetividade”, porém, o exercício contrafactual não se
sustenta. A expressão mais próxima de uma objetividade científica intermediada
pelo Discurso do método (1637) e pelas Meditações (1641) de Descartes – o “poder
de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso” (Descartes
1999a, 35) – seria a formação de ideias claras e distintas (Descartes 1999b, 242)
ou a demolição de toda opinião suscetível à dúvida. Objetividade, então, poderia
ser traduzido por indubitabilidade. Descartes até emprega “realidade objetiva” e
realidade encontrável “objetivamente em suas causas” para comunicar a
supremacia das ideias produzidas pelo entendimento sobre as ideias
provenientes dos sentidos (Descartes 1999b, 275), ou para caracterizar a coisa
ou o conceito “imediatamente representado por meio da concepção”
(Cottingham 1993, 137).
As derivações do termo, porém, estariam bem distantes daquelas
empregadas por Kant, na Crítica da razão pura (1781/1787), onde o objeto era
algo não contido exclusivamente no sujeito, ou seja, situado exteriormente ao
sujeito, embora não puramente empírico. Objeto era “matéria”, “fenômeno” e
“forma”. Esses três conceitos correspondiam aos meios de conhecimento ou às
operações cognitivas e estéticas conjugadas que o filósofo apresentou como
alternativa aos céticos e aos dogmáticos em teoria do conhecimento:
recepção/sensibilidade (da matéria), intuição empírica (do fenômeno) e
pensamento apriorístico (mediante a forma) (Kant 2013, 71). “Validade
objetiva”, expressão mais próxima de uma objetividade científica mediada pelo
método do idealismo transcendental, seria, então, o caráter do conhecimento
cujo “pensamento, mediante as intuições puras de espaço e tempo, é aplicado a
um objeto apresentado fenomenologicamente”. Um saber objetivo (um tipo de
assentimento), por seu turno, é “aquele racionalmente válido para todos os
pensantes – diferentemente da fé, que é validada racionalmente apenas por um
praticante” (Kant 2013, 137, 593).
Essa objetividade, como definida por Kant, foi “criativamente adaptada”
– por erro de interpretação, preocupações disciplinares, filosofias locais ou
interesses individuais – e passou a ser parâmetro de mensuração da cientificidade
entre os físicos, fisiologistas e botânicos na segunda metade do século XIX
(Daston; Galison 2007, 206-208). Foram eles os tradutores do caráter de ser
objetivo como capacidade de apagamento do self de quem se propunha a
conhecer, isto é, como a resultante de uma luta entre a vontade e o Eu não
pensada originalmente por Kant (ocupado, nessa passagem, com epistemologia
e não com psicologia). Correlatamente, essa datação cronológica marcaria o
nascimento do self cientista, como registram Lorraine Daston e Peter Galison
(2007, 205-210).

275
revista de teoria da história 2 2020

Antes de os trabalhos de Daston e Galison virem a público, essa


compreensão mecânica de objetividade (embora de modo não hegemônico) já
habitava a mente de muitos leitores da historiografia e de parte dos historiadores
que escreviam manuais propedêuticos de História da Historiografia,
Metodologia e Teoria da História. Somada à crítica sobre a impossibilidade de
conhecer “a coisa em si”, que gerou uma rotação na díade objetivo/subjetivo,
desde o assentimento geral ou particular da proposição, até a disposição interna
ou externa ao sujeito, foi (e ainda é) comum qualificar, dividir e reduzir os
historiadores e os seus trabalhos em objetivos e subjetivos, sob díades
simplificadoras, a exemplo de: imparciais e engajados, positivistas e críticos,
documentados e panfletários e, correlatamente, profissionais e amadores.
Na crítica a esse senso comum, Artur Assis não apenas combate a tese
de que o “outro” da objetividade do historiador seria a sua subjetividade (o outro
é a mentira), como também critica a adoção direta das classes de objetividade
formuladas por Daston e Galison (verdade-natureza, objetividade mecânica e
julgamento treinado). Apesar de originais na historicização do ethos cientista,
esses tipos não serviriam como designadores de períodos e modelos para a
história da identidade profissional do historiador porque a segunda metade do
século XIX está repleta de casos de compatibilização de princípios e práticas de
subjetividade (a visão perspectivada – nacionalista, localista, religiosa, partidária
etc.) com a adoção de princípios e práticas de objetividade (crítica de fontes
empregadas para controlar possíveis vícios da testemunha e do historiador)
(Assis 2016, 19). Em outros termos, a objetividade perseguida por historiadores
não significaria, necessariamente, o esforço e a prática da extinção da
subjetividade, uma vez que essa subjetividade era necessária e, paradoxalmente,
um meio garantidor de objetividade.
A posição de Assis (2016) reforça, indiretamente, as assertivas de Allan
Megill que situa os debates sobre objetividade histórica em Johann Gustav
Droysen (1808-1884) como marco da emergência de teorias e metodologias da
história referentes ao período entre 1870 e 1940, na Europa e na América,
fundamentadas em questões morais e questões epistêmicas (Megill 2013, 12-13).
Megill refere-se, entre casos destacados, ao trabalho do estadunidense Charles
Beard (1874-1948), que concebia a objetividade como fim mediado por
instrumentos de “crítica, autenticação e verificação” (para minimizar as
insuficiências do material), escolhas do historiador assumidamente interessadas,
em termos sociais, políticos, econômicos, étnicos e de gênero, e informação ao
leitor sobre as limitações do trabalho do historiador (para justificar a
interferência dos valores) (Beard 2013, 340, 350-353). Tratava-se, portanto, da
mesma argumentação usada por Ernst Bernheim (1850-1942) para descrever o
seu ideal de objetividade histórica, décadas antes da publicação do discurso de
Beard (Bernheim 1903, 716-717).
Ao exemplo de Beard podemos acrescentar a passagem de Robin George
Collingwood (1899-1943) que definia a objetividade como a capacidade de o
historiador pensar por si mesmo o pensamento do autor-objeto de estudo. Para
o professor inglês, a objetividade dependeria da autonomia do historiador ao
fazer boas perguntas, selecionar os depoimentos que lhe servissem, apresentar
as respostas que ele sentisse ser as mais corretas e no tempo que achasse
conveniente (para justificar a interferência dos valores e dos princípios
epistêmicos), mantendo, contudo, as atividades de crítica e de interpretação de
fontes (para minimizar as insuficiências do material) (Collingwood 2004a, 335-
350).

276
revista de teoria da história 2 2020

Mas nem só de práticas inglesas, estadunidenses e alemãs pode ser


constituída a história da historiografia daquele período recortado por Megill,
onde são fabricadas as primeiras obras de teoria da história (no sentido indicado
pelo próprio Megill). Historiadores brasileiros também produziram discursos
normativos a respeito dos quais não é tão fácil reduzir a discussão sobre as
relações universalismo-particularismo ou psiquê-episteme à tipificação do texto
ou do autor como pertencentes à “escola metódica” (supostamente mais
objetivista), ao “marxismo” (supostamente mais subjetivista), associado às
práticas de institutos históricos (ditas mais imparciais) ou próximas ao ethos
universitário (visto como afeito à pluralidade de perspectivas), enfim, trabalhos
que escapam à tipificação unívoca de filiados à filosofia especulativa ou ao
método crítico, seu suposto contrário.
No período de 1880-1930, mais de 60 escritores refletiram sobre teoria
da história, produzindo aproximadamente duas centenas de citações veiculadas
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sintetizáveis em duas frases
que prescreviam e externalizavam princípios de objetividade, justificando
socialmente a existência de um intelectual nomeado de “historiador”: “Deixe o
passado falar por si mesmo” e “Fale sobre o passado, empregando o método
histórico” (Freitas 2015). Um desses autores, Francisco José de Oliveira Viana
(1883-1951), ganhou monografia indiciariamente designada como O charme da
ciência e a sedução da objetividade (Bresciani 2005), dado o seu esforço por
transformar a prática de construção de sínteses sobre história nacional com o
emprego do método “naturalista”, “não apriorístico”, “objetivo” e realista
(Bresciani 2005, 174-176).
Esses discursos do IHGB eram, contudo, pronunciados entre pares
acadêmicos. Seus autores não possuíam pupilos, discípulos ou alunos no interior
de um curso de Licenciatura em História, simplesmente porque tais cursos
somente seriam criados em meados da década de 1930. É exatamente com esse
outro tipo de discurso, mais recente e, paradoxalmente, mais raro, que nos
ocupamos neste artigo. Aqui tratamos dos significados de Teoria da História e
de objetividade histórica em uma brochura propedêutica efetivamente destinada
aos alunos da disciplina “Introdução à História” (1943-1959), na Faculdade de
Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e transformadas
por seu autor, Roberto Piragibe da Fonseca, no Manual de Teoria da História, em
1960.
Tomando o impresso como centro (e exemplo), dissertamos sobre um
particular momento da experiência nacional recente, onde Teoria da História,
Metodologia da História, História da Historiografia e Introdução à História
ainda não compunham os cursos superiores na condição de cadeiras. Aqui,
questionamos, sobretudo: o que pode informar o Manual da Teoria da História –
Metafísica e Lógica da História sobre esse período marcado por uma iniciativa de
profissionalização via institucionalização dos saberes teóricos da História em
cursos de licenciatura em História no Brasil? Quais questões existenciais
motivaram Piragibe da Fonseca a intitular o seu manual como Teoria da História
e a atravessar o seu texto com a categoria da objetividade? Qual tipologia do
nosso tempo explicaria melhor o sentido de objetividade partilhado/cunhado
pelo professor carioca?
Nas próximas seções, tentamos responder a essas questões, examinando
brevemente aquilo que os propedeutas da História pensavam ser a Teoria da
História ensinável em um curso de Introdução à História entre as décadas de 40
e 50 do século passado. Em seguida, descrevemos e comentamos a ideia de
Teoria da História disseminada pelo Manual e alguns de seus respectivos aportes

277
revista de teoria da história 2 2020

de legitimação. Na terceira parte e nas conclusões, por fim, dissertamos sobre as


relações que Piragibe da Fonseca estabeleceu entre Metafísica e Lógica para
fundamentar as suas ideias de objetividade histórica.

ROBERTO PIRAGIBE DA FONSECA


E AS FINALIDADES DA PROPEDÊUTICA HISTÓRICA

Roberto Piragibe da Fonseca é um ilustre desconhecido nos trabalhos


produzidos nas últimas duas décadas sobre História da Historiografia brasileira.
No campo do Direito, ao contrário, a literatura acadêmica explora as relações da
família de Fonseca com Rui Barbosa, a avaliação dos seus livros de Direito e dos
comentários sobre obras memorialistas que apresentou ou produziu. Por esses
trabalhos, sabemos que a sua formação escolar (1923-1929) foi distribuída entre
Maceió, Rio de Janeiro (Colégio Santo Inácio) e Rio Grande do Sul. Graduado
em Direito pela Universidade do Rio de Janeiro, por lá se radicou como
professor de Direito Internacional Público (1930). Além de atuar como titular
em Direito na Faculdade de Ciências Econômicas (Barreto 1986; Codato;
Guadalini Júnior 2003, 160), foi livre-docente da Faculdade Nacional de Direito
da Universidade do Brasil e assumiu, na década de 1960, a chefia do curso de
Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO).
Nosso autor era, talvez, um daqueles “virgens” polígrafos docentes de
História, em termos de produção nas suas respectivas áreas de atuação – História
Moderna, História Contemporânea, História da Civilização – denunciados por
José Honório Rodrigues, nos anos 1970 (Rodrigues 1970, 37-38). Mas não
podemos dizer algo semelhante quando os assuntos são o Direito e a Teoria da
História, conhecimentos sobre os quais produziu livros de introdução: Breviário
de Introdução à Ciência do Direito Positivo (1955) e Teoria da História – Metafísica e
Lógica da História (1966).
Fonseca foi professor de Propedêutica da História na PUC-RJ, em 1943,
sob a arguta interferência do Padre Jesuíta Leonel Edgard da Silveira Franca
(1893-1948), uma aproximação ocorrida, provavelmente, ainda no Colégio Santo
Inácio, onde Franca tornou-se professor e, depois, vice-reitor. O próprio
Fonseca ressalta que Franca, quando Reitor das Faculdades Católicas do Rio de
Janeiro, abriu uma “Seção de Geografia e História na Faculdade de Filosofia”,
naquele mesmo ano de 1943. Desde então e, publicamente, a partir de 1955,
nosso autor se regozija do pioneirismo católico na instituição do curso de
“Propedêutica e metodologia da História”, quando, institucionalmente, a
primeira iniciativa do tipo, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), somente aconteceria na metade dos anos 1950, com as aulas do
holandês José Van Den Besselaar (1906-2001) (Camargo Júnior 2016, 73). Na
década anterior, portanto, Fonseca já cumpria a sua hora semanal de
“propedêutica da História” e o mesmo tempo para “metodologia da História”,
destinadas aos alunos de Geografia e História, respectivamente, do segundo e
terceiro anos (Fonseca 1953, 119-120). As preleções daquele curso
extracurricular de 1943 foram publicadas na revista Verbum, em 1953 e, em 1956,
surgiam como conteúdo da cadeira obrigatória para o curso de formação de
professores, legitimada nacionalmente com a autonomização das graduações de
História e Geografia (Fonseca 1967, 11).
Nessa disputa sobre a originalidade dos currículos de História e da ação
pioneira de determinados professores, ele omite, contudo, a nomeação da
cadeira de “Introdução Metodológica à História”, instituída na Faculdade
Nacional de Filosofia (FNFI) da Universidade do Brasil (1955), que manteve a

278
revista de teoria da história 2 2020

orientação da missão francesa no sentido de criar um curso de “Pesquisas


históricas e bibliografia” em 1935 (Ferreira 2013, 50-51). Também não cita a
criação da disciplina “Introdução aos Estudos Históricos” no primeiro semestre
de 1956 na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) (Roiz
2006, 90). Em 1959, quando sua Propedêutica é transformada em Teoria da História,
ele também omite o impresso do mesmo gênero produzido por Francisco Isoldi
(1879-1960) na Faculdade de Letras e Filosofia de São Paulo (1932) e o manual
de José Honório Rodrigues, produzido a partir de cursos promovidos pelo
Instituto Rio Branco (1946), embora o cite como referência sobre Metodologia
da História.
Essa última omissão é mais significativa. Com o “esquecimento”, muito
provavelmente Fonseca demonstrava alguma espécie de “mágoa” em relação a
Rodrigues. O conterrâneo – que fizera curso de Metodologia da História na
Universidade de Columbia (1943-1944) (Rodrigues 1969, 13) e se tornaria o mais
produtivo especialista em História da Historiografia Brasileira até os anos 80 –,
sugerira ao controverso Juraci Magalhães (1905-2001), ex-Tenente, senador pela
Bahia e líder nacional da União Democrática Nacional (UDN) (Fundação
Getúlio Vargas 2001), que apresentasse um projeto instituindo a “Metodologia
da História” como “cadeira” obrigatória para os cursos de Geografia, História e
Filosofia e facultativa para os cursos de Ciências Sociais e Pedagogia (Folha da
Manhã 1955; Rodrigues 1970, 232).
O projeto de Lei do Senado n. 22, de 1955, provavelmente escrito pelo
próprio Rodrigues, radicalizava a estruturação do currículo de Geografia-
História, que possuía, em geral, desde 1939, cinco cadeiras focadas em conteúdo
substantivo: História Antiga e Média, História Moderna, História
Contemporânea, História do Brasil e História da América (Nascimento 2013,
276). A proposição era justificada pela experiência “universalmente aceita e
louvada” e exemplificada com as práticas francesas, alemãs e estadunidenses,
tanto para a melhoria do ensino superior como para a melhoria do ensino de
História na escola secundária brasileira (Brasil 1955).
No mesmo ano, o projeto foi considerado inconstitucional porque
“criava empregos em serviços existentes”, uma competência reservada ao
Presidente da República (Campos 1959, 1871). O senador Basílio Celestino
tentou salvar a iniciativa, emendando o Projeto no sentido de que o Presidente
enviasse mensagem ao Congresso Nacional, visando a criação da referida
cadeira. Em abril de 1963, quando foi posto novamente em discussão, Magalhães
não era mais senador e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional já
estava aprovada. Foi o bastante para que o senador Walfredo Gurgel, então
relator, rejeitasse aquele projeto de Lei, deixando a cargo dos “Conselhos
universitários” a responsabilidade de criá-la, no rol das “disciplinas
complementares ou optativas” (Celestino 1959, 2108; Gurgel 1963, 567-568;
Oliveira 2019, 95-96).
A sorte da cadeira, jogada entre o Executivo, o Legislativo e, novamente
o Executivo (mediante ação dos agora autônomos professores universitários),
pode, entretanto, esconder outro conflito: a própria noção de “teoria”. Sabemos
das preferências de Rodrigues pela “Metodologia” (Oliveira 2019, 89-100) e das
suas reservas com relação à “Teoria da História” (Saad 2016), apesar de ele
próprio ter designado um dos seus livros com essa expressão. Sabemos também
da preferência de Fonseca pelas expressões “Propedêutica” da História e “Teoria
da História” como matérias que justificariam a racionalidade da Ciência Histórica
nos cursos de formação de professores. Curiosamente, é com as expressões
“Propedêutica” e “Teoria da História” (com iniciais em maiúsculas) que o

279
revista de teoria da história 2 2020

senador Gurgel vai construir o seu relatório, negando o pleito de Magalhães.


Para Gurgel, “quando estudada em nível superior”, a Teoria da História
forneceria “o complexo de princípios gerais ou prolegômenos da história que
proporcionam [...] um entendimento integral da marcha da humanidade no
tempo e no espaço, com a responsabilidade de conceituar a história e de
determinar o caráter científico, o sentido e a utilidade da história” (Gurgel 1963,
568). Em outros termos, a “teoria” do senador Magalhães e do professor
Rodrigues era Filosofia Crítica (ou Epistemologia ou Metodologia) e a teoria do
senador Gurgel e do professor Fonseca era filosofia especulativa da História (ou
Metafísica da História).
Para Fonseca, a parte mais dolorosa do discurso de Gurgel era a
afirmação de que “nada” existia “no país”, naquele 1955:
É claro que tal não significa descaridoso olvido votado a quem trabalha na
sombra, sem intuitos de prejudicar quem quer que seja e sem propósitos
de colher gloríolas pessoais. Trata-se, tão só, de carência de informação,
mas de carência dificilmente explicável, pois não sabemos como pode ser
ignorada de especialistas a atividade correlata de alguém [o próprio
Fonseca] que milita à luz de publicidade inevitável, se bem que discreta, e
em centro universitário dos mais categorizados e austeros, do Brasil e do
Continente [a Faculdade de Filosofia da PUC-RJ]. Com efeito, ao invés do
que supõe o erudito relator do projeto legal em apreço, algo existe no país,
e se faz muito, com referência à ‘criação’ agora planejada, e mesmo
bastante mais do que se almeja ‘criar’ através dêsse ato legislativo.
(Fonseca 1959, 268-269).

Fonseca até poderia considerar a PUC-RJ “a pioneira incontestável, no


Brasil, do ensino da Teoria da História” (Fonseca 1967, 11-12), mas a “cadeira”
institucionalizada pelo Estado foi mesmo a de “metodologia”, prescrita pelo
senador. Fora, finalmente, integrada ao “currículo mínimo do curso de História”,
sob a via apontada por Gurgel, ou seja, mediante parecer do Conselho Federal
de Educação (CFE) naquele ano de 1963. Quanto à “teoria”, permaneceria na
condição de conteúdo substantivo da “Introdução aos estudos históricos” até
1970 (Esponsel 1970, 220; Lacombe, 1972, 193; Rodrigues 1970, 232, 234). Nos
congressos da Sociedade Brasileira de Pesquisa Científica (SBPC), há indício
dessa trajetória vitoriosa. Foram as “Questões de Metodologia da História” (e
não de teoria), por sua vez, que inauguraram a criação da seção “Ciências
Humanas (Linguística e História) em 1973. (Folha de São Paulo, 10 jul. 1973; 23
abr. 1974).
O pioneirismo reclamado por Fonseca com relação ao curso (que
introduz as disciplinas “Teoria” e “Introdução”) foi reconhecido no II Encontro
Brasileiro sobre Introdução ao Estudo da História (1970), ocorrido na
Universidade de Juiz de Fora. Fonseca ganhou, enfim, a homenagem dos seus
pares. Mas, a iniciativa tratar-se-ia, talvez, de uma corrigenda, já que o nome de
Piragibe sequer constava nos Anais daquele primeiro Encontro (I EBIEH, Nova
Friburgo-RJ, 7-3/07/1968), onde brilhara José Honório Rodrigues.
A ação de Rodrigues, injustiçado entre os professores universitários do
Rio de Janeiro e também de São Paulo (Rodrigues 1969, 438) – por não ver a
metodologia, a teoria e a historiografia introduzidas como “cadeiras” nos cursos
de História desde 1946 (que lhe possibilitaria, inclusive, o acesso a um emprego
universitário) –, de certa forma, nos estimula a entender a ironia de Fonseca ao
comentar o texto de Juracy Magalhães: Rodrigues, reconhecido produtor de
propedêuticas historiográficas com cores brasileiras, não citou Fonseca na
terceira edição da sua Teoria da História do Brasil (1969) e, ainda, nas contribuições

280
revista de teoria da história 2 2020

que dera aos Anais do I EBIEH (1970) sobre a história das disciplinas teórico-
metodológicas de História no Brasil.
Naquele lampejo de ego (criticando o senador Magalhães), contudo,
Fonseca talvez não explicasse os principais motivos que o levaram a se interessar
em publicar impressos propedêuticos e empenhar-se na disseminação de
critérios de objetividade histórica para os profissionais que faziam uso da escrita
da História. Fonseca trabalhou em três frentes dos domínios teóricos da
formação de professor de História: a abrangente “Propedêutica” (introdução), a
mais restrita e abstrata “Teoria” (Filosofia especulativa) e a “Metodologia”. Com
o “Programa e breviário de propedêutica e de metodologia da história”,
publicado esparsamente na revista católica Verbum (1953/1959), ele se dirigiu
aos alunos do curso de Geografia e História (somente desmembrado em 1955).
Com o Manual de Teoria da História, ele planejava se projetar diante dos
graduandos de “História, Filosofia, Didática e Jornalismo”, que frequentavam as
faculdades de Filosofia. Com ambos, poderia falar à exígua classe média do
Distrito Federal – advogados, artistas, jornalistas e professores do ensino
secundário –, exercitando sua militância em prol do catolicismo sob bases
agostinianas:
Não que o professor responsável [Fonseca], naturalmente católico, -
ortodoxo e militante, – ainda alimente dúvidas a respeito e, portanto, ainda
peça luzes ao livre debate de opiniões. Mas como a filosofia católica da
história, – e, desgraçadamente os mesmos Mandamentos divinos –, segue
sofrendo a impugnação maliciosa e pedante do mundo obstinado em não
crer, torna-se dever inconcusso do magistério confessional submeter a
tese, honesta e documentadamente, já que fundada nos postulados
assentes no De Civitate Dei, ao exame e apreciação dos que, animados de
boa-fé, estudam o problema filosófico da história.
Fá-lo, porém, o professor responsável, é claro, sem temer contraditas, e
sobretudo, sem admitir possíveis e pessoais câmbios de rumo, mas apenas,
- seja tolerado o símile –, como o apologeta que, serena e inabalavelmente
confiante na Verdade a que se arrima, desenvolve ante o ouvinte a
exposição raciocinada dos fundamentos da Fé com o propósito único e
exclusivo de iluminar e converter. (Fonseca 1959, 202-203. Grifos nossos).

Como vemos, a propedêutica histórica era instrumento de combate à


descrença e mecanismo de conversão. Na atividade didática, contudo, Fonseca
anunciava o aprendizado de princípios e práticas da ciência Histórica como uma
defesa da História-ciência frente aos que a consideravam atividade produtora de
“conhecimentos ornamentais” e aos que a entendiam, radicalmente, como
“mestra da vida”, “narrativa sem pé nem cabeça” ou “supina inutilidade”
(Fonseca 1967, 17-19). Quais seriam, então, os atributos a conservar entre os
professores, alunos e historiadores que defenderiam a História-ciência de
impropérios desse tipo? Quais argumentos uma anunciada teoria da História de
concepção católica emprestaria ao discurso sobre objetividade histórica
empregado por Fonseca? Para o fornecimento dessas respostas, acompanhemos
uma descrição contextualizada do seu manual, com foco nas matérias
estruturantes da sua Teoria.

281
revista de teoria da história 2 2020

A TEORIA DA HISTÓRIA COMO COMPOSIÇÃO


DE LÓGICA E METAFÍSICA

O Manual de Piragibe da Fonseca seguiu a arquitetura da informação dos


impressos propedêuticos que circulavam entre meados do século XIX e o
primeiro quarto do século XX, principalmente, na Europa e na América. Os
modos de organizar os dados (sumários por capítulo, bibliografia comentada por
seções, listas e esquemas sinópticos e indicações de traduções no vernáculo)
eram semelhantes aos empregados pelos renomados manuais de E. Bernheim,
W. Bauer, C.-V. Langlois, C. Seignobos e F. M. Fling.

NOTA LIMINAR
ADVERTÊNCIA
TEMAS PREPARATÓRIOS (Introdução Geral)
1. Superlativa importância da Teoria da História
2. Conceito de História e Seus Elementos
3. Evolução do Conceito da História
Primeira parte – METAFÍSICA DA HISTÓRIA (Filosofia Específica)
1. Bibliografia
2. Problema Metafísico da História (Ontologia do Fato Histórico)
3. Principais Sistemas Metafísicos da História
4. Teoria das Causas da História (Etiologia do Fato Histórico)
5. Teoria das Leis Históricas
6. Teoria do Sentido da História (Teleologia do Fato Histórico)
7. Significação Meta-Histórica da História
8. Divisão da História
9. Utilidade do Conhecimento da História
Segunda Parte – LÓGICA DA HISTÓRIA (Metodologia Específica)
INTRODUÇÃO
1. Bibliografia
2. Evolução da Historiografia
3. Doutrina Geral do Método Historiográfico – Exame e Exposição do Fato
Histórico
4. METODOLOGIA DA HISTÓRIA
5. Metodologia da História
6. Doutrina Especial do Método Historiográfico – A. Heurística e Ciências
Auxiliares da História
7. Doutrina Especial do Método Historiográfico – B. Introdução à Paleografia
8. Doutrina Especial do Método Historiográfico – C. Noções de Diplomática
9. Doutrina Especial do Método Historiográfico – D. Operações Analítico-
Sintéticas
10. Metodologia do Estudo Superior da História (Iniciação à Autodidática a
Observar)
11. Metodologia do Ensino Secundário da História (Grandes Princípios)
12. Metodologia do Ensino Superior da História (Responsabilidade da Cátedra
Universitária)
NOTAS FINAIS

Figura 1.
Plano da obra Teoria da História (1966) de Roberto Piragibe da Fonseca
Fonte: FONSECA (1966, 11).

No que diz respeito à matéria, como apresentada pela figura 1, a Teoria


de Fonseca privilegiou dois objetos-disciplina: “Metafísica da História” e
“Lógica da História”. Assemelhava-se ao impresso de Introdução aos estudos
históricos (1954/1958), de José Van den Besselaar (1906-2001) e apresentava
orientação diversa à Iniciação aos Estudos Históricos (1961), de Jean Glénisson
(1921-2010).

282
revista de teoria da história 2 2020

Besselaar e Glénisson foram professores de cursos propedêuticos da


Universidade de São Paulo (USP) entre 1957 e 1959 (Gary 2006; Roiz 2007, 92-
93). Besselaar, especialista em estudos clássicos e doutor em Filologia Clássica
pela Universidade holandesa de Nimega (Freire 1978, 335), por um lado,
compreendia um curso de Introdução à História como ferramenta para a
iniciação dos alunos “nos métodos, nos instrumentos e nos pressupostos
filosóficos da disciplina tão complexa, que é a História”. Mas, estabelecia uma
progressão. No primeiro ano, o aluno estudava as categorias básicas (História,
Período etc.), algumas questões metafísicas (certeza, processo) e, principalmente,
as operações da “investigação histórica” e da “síntese histórica”. Para os alunos
do segundo e do terceiro ano, Besselaar prescrevia o estudo da história da
historiografia (da Grécia Clássica à Ásia no século XIX) e as principais
tendências em termos de Filosofia Especulativa da História (Besselaar
1954/1958).
Glénisson, por outro lado, arquivista-paleógrafo formado na École
Nationale des Chartes (1946), lamentava que “alguns dentre eles – e os mais
brilhantes [alunos se admirassem], por vezes, de não lhes ser ministrado um
curso de filosofia da história: uma filosofia da história tomada no sentido
hegeliano de especulação sobre o porvir da humanidade vista no seu conjunto”.
Preferia as orientações de Marc Bloch (1866-1944): formar para o exercício do
“ofício do historiador”, o que significava estruturar um curso sobre o exame da
historicidade da disciplina, relativa ao tempo do “triunfo do método crítico”
(1850-1900), e sobre o “método” e as “técnicas” que poderiam converter o
“amador de história” em “historiador consciente” (Glénisson 1991, 6).
Na contramão desse espírito antifilosófico – mais propriamente
atribuível a Langlois e Seignobos que a Marc Bloch, como interessadamente
reivindicou Glénisson –, Fonseca abre o seu livro (que espelha as suas aulas)
com preleções-capítulos de Metafísica, seguidas por preleções-capítulo de
Lógica. Na primeira parte (Metafísica), ocupa-se da natureza, origem e finalidade
da História. Na segunda (Lógica), fornece os “métodos que permitem obter a
verdade histórica”, ensinar História em nível médio, estudar e ensinar a História
em nível superior (Fonseca 1967, 20, 23). Sua Teoria da História, como vemos,
trata da existência da coisa e da possibilidade de conhecimento da coisa em
campos separados. Essa opção por ontologia e epistemologia vai determinar a
noção de objetividade do conhecimento histórico difundida entre os alunos.
De onde retira tal disposição de matéria, em geral, Fonseca não informa.
O texto didático, entrecortado por esquemas, listas e narrativas sumárias foi para
ele, provavelmente, um obstáculo à referenciação, questão a questão e tese a tese,
aqui descrita na figura 2. Mas o cruzamento das suas proposições com as
sentenças apresentadas em alguns dos livros indicados para a leitura (aqui
examinados de modo não exegético) nos possibilitam conhecer algumas ideias
recuperadas de tempos longínquos, ideias apropriadas do seu tempo e o
resultado compósito da sua noção de “teoria da História”.

283
revista de teoria da história 2 2020

Figura 2.
Mapa conceitual do Curso de Teoria da História de Roberto Piragibe da Fonseca (1966).
Fonte: Produzido pelo autor, a partir da leitura de Fonseca (1966).

As escolhas pela Metafísica e pela Lógica são indicadores da sua


militância em favor da História-ciência e da Ciência a serviço do catolicismo.
Manuais correntes, dominantemente, punham ênfase em questões de método de
pesquisa e escrita da história ou em questões sobre a natureza e a direção do
processo histórico. Comparado aos manuais publicados na França (e citados por
Fonseca), por exemplo, o Manual da Teoria da História assemelhava-se ao
impresso “filosófico-crítico” de H.-I. Marrou (1904-1977) – De la connaissance
historique (1954) – e se distanciava, em parte, do “metodológico” Introduction à
l’histoire (1941), de Louis Halphen (1880-1950). Na França e em outros países
europeus e americanos, manuais de método (com alguma discussão sobre
metafísica) eram majoritários. Nos cursos de formação de bacharéis em Teologia
e em Filosofia, manuais de Filosofia Especulativa da História (com alguma
discussão sobre metodologia da História) ganhavam proeminência. No curso
preparado para os alunos da PUC/RJ, Fonseca tomou a decisão de conjugar
metafísica e lógica e de situar, curricularmente, a lógica em momento posterior
à metafísica.
Embora grande parte de suas referências bibliográficas fizesse coro
contra o materialismo (de Comte, Spencer, Marx e Engels) e denunciasse os
resultados do esgotamento das filosofias racionalistas da História (a Grande
Guerra, a Revolução Russa, o Comunismo, Hitler e o uso efetivo da bomba
atômica), significar Teoria da História como conjunção de Metafísica e Lógica
não era uma decisão pacífica.

284
revista de teoria da história 2 2020

A disposição adotada por Fonseca difere dos livros que ele próprio
indica em ordem, objeto e densidade da matéria. Dos autores citados no Manual,
parte ocupava postos em universidades e parte era formada por outsiders
destacados nos estudos históricos e filosóficos sobre o cristianismo e o
catolicismo. Herbert Butterfield (1900-1979), por exemplo, inglês, católico e
historiador, que escrevera Cristianismo e História (Christianity and History – 1950),
criticava a formação centrada na metodologia da História e enfatizava a
importância das competências do “poeta, do profeta, do teólogo e do filósofo”.
A combinação “da história com uma religião ou com algo equivalente a uma
religião”, ao contrário da aridez da crítica histórica, ele afirmava, preencheria o
processo histórico com significados (Butterfield 1950, 23-24).
Franz Sawicki (1877-1952), doutor em Teologia (Freiburg), autor de
vários títulos sobre cristianismo e catolicismo – entre os quais o Filosofia da
História (Geschichtsphilosophie - 1920), outro indicado por Fonseca, – não
empregava “Teoria da História” para articular Metafísica e Lógica em um único
domínio. Preferiu a expressão “Filosofia da História” que, segundo o próprio
autor, nomeava um campo, à época, sobrepujado em quantidade pelos títulos de
“Lógica da História”, na passagem do século XIX para o XX (Sawicki 1920, 3).
Especialista em teoria do conhecimento, Sawicki não chegou a reservar um terço
do seu manual à parte da Lógica, específica para a pesquisa histórica, no
segmento relativo ao conhecimento histórico.
Fonseca se distancia desses dois trabalhos e autores ao reservar o mesmo
espaço em seu impresso para a Metafísica e para a Lógica e ressignificar, em
parte, esses dois domínios ou disciplinas da Filosofia. Sawicki, como Fonseca,
era um entusiasta da “filosofia cristã da História”, mas a sua teleologia não
pareceria suficiente ao brasileiro que empregou A cidade de Deus (413/426) para
reforçar o valor das teses de Santo Agostinho (354-430) na formulação da
“concepção católica da História” em sua “fase teocrático-dualista inicial”
(Fonseca 1966, 44), como explicitado a seguir, pelas próprias palavras do Bispo
de Hipona.
muitos dos que agora desacreditam o Cristianismo e imputam a Cristo as
desgraças que a cidade teve que suportar [...] [d]everiam antes, se o
avaliassem judiciosamente, atribuir os sofrimentos e durezas que os
inimigos lhes infligiram à divina Providência que costuma, com guerras,
purificar e castigar os costumes corrompidos dos homens. É a divina
Providência que põe à prova a vida justa e louvável dos mortais com tais
aflições, para, uma vez provada, ou a transferir para uma vida melhor ou
a reter nesta Terra para outros fins. (Agostinho 1996, 101-102).

Butterfield, conhecedor das virtudes e, principalmente, das limitações


dos rudimentos da erudição histórica, teria sido bastante contrariado com a
atitude de Fonseca em adotar doutrinariamente as regras (de Lógica da História)
de heurística, crítica e interpretação disseminadas por antimetafísicos, como
Langlois e Seignobos, mas não apenas. Fonseca sugere a leitura de propedeutas
antimetafísicos que pensaram a formação de professores a partir da ênfase no
aprendizado de regras de crítica e interpretação, como as produzidas por Marc
Bloch (1886-1944), da heurística, crítica de fontes e inferência a partir das fontes
criticadas, produzidas por Kristian Erslev (1852-1930), além das orientações
para o ensino secundário, contidas na didática geral de Alfredo Sánchez (1866-
1848) e na metodologia do ensino de história de Jonathas Serrano (1885-1944).

285
revista de teoria da história 2 2020

Quando descemos ao segundo nível de distribuição de matéria – a


Metafísica como Ontologia, Etiologia e Teleologia e a Lógica como metodologia
da pesquisa, do ensino e do estudo (figura 2) –, percebemos, de modo mais claro
que as apropriações das teses dos indicados para a leitura vão dando a ver um
novo produto chamado “Teoria da História” (se não à brasileira, ao menos
puquiana e carioca).
Na descrição da Teleologia, Fonseca se identifica com o Ensaio de uma
filosofia do destino humano (Essai d’une philosophie de la destinée humaine – 1921/23) de
Nicolas Berdiaeff. Mas, pode ter pensado que o russo – crítico da Filosofia de
Marx, dos positivistas e dos evolucionistas e empenhado na construção de uma
“filosofia religiosa da história” – se equivocava ao empregar “objeto” em sentido
escolástico ou, quem sabe, por desconsiderar a possibilidade de um
conhecimento objetivo dos fatos históricos (coisas existentes e exteriores ao
sujeito – objetivos sob o ponto de vista ontológico e epistemológico). Berdiaeff
afirmou que o “objeto” do “conhecimento histórico não [era] o empírico, mas a
existência além túmulo” (Berdiaeff 1923, 10-11).
Para Fonseca, o objeto do conhecimento histórico eram as “ações
racionais do homem, por ele praticadas como ser social, isto é, ocorridas no
tempo e no espaço”. Foi essa posição, inclusive debitária do distante Agostinho
(livre-arbítrio) e do próximo Bernheim (ser social), que forneceu o núcleo duro
da sua definição de História: “é a ciência que investiga, conhece e expõe as ações
racionais do homem, por ele praticadas como ser social, isto é, ocorridas
necessariamente no tempo e no espaço, interconexas, vinculadas cada uma de
per si à motivação respectiva, e voltadas todas à causa da Civilização” (Fonseca
1966, 27).
Na descrição dessa Ontologia, ocorreu o contrário. Quando se servia da
tese da historicidade do fato histórico (Fonseca 1966, 41, 49), anunciada pelo
jesuíta e professor de Filosofia em Walkemburg, August Brunner (1894-1985),
em Questões básicas de Filosofia (Die Grundragen der Phisolophie: ein systematischer Aufbau
– 1933), Fonseca deve ter reprovado Brunner (especialista em teoria do
conhecimento) por não avançar além da ideia de que as ações dos indivíduos
resultavam em escolhas com base em experiência pretérita, que desencadeavam
novas escolhas, ou seja, que eram mutáveis (Brunner 1963, 171-172, 179-180).
Em sua Teoria da História, Fonseca explicou a historicidade do fato a partir da
Teleologia pensada por Santo Agostinho: as coisas mudam (o caráter do fato é
a sua inerente historicidade) por causa do “drama da imperfeição humana”
(Fonseca 1966, 49).
Para a etiologia e a ontologia do “fato histórico”, as posições de Sawicki
foram também desenvolvidas e exemplificadas com asserções sobre a valência
providência e do livre-arbítrio, como também sobre o poder modificador do
meio físico-cultural. Nesse sentido, a tipologia das causas – 1. “primária” (Deus),
2. “eficiente” (Homem) e 3. “modificadoras” (meio físico e psiquê) – formuladas
por Fonseca, resultou da crítica à “prolixa” classificação do produtor de manuais
de metodologia histórica (e também ideólogo cristão) Zacarías García Villada
(1879-1936) (Fonseca 1966, 50).
Esses foram alguns dos diálogos entretidos para a construção da sua
Metafísica. Da parte Lógica, percebemos uma ausência significativa: a discussão
sobre a natureza do conhecimento histórico e o seu lugar no concerto das
ciências. Em brevíssimo período, ele classifica a História como ciência do tipo
nomotético, sob os argumentos de Gabriel Monod (1844-1912). Na maioria dos
manuais propedêuticos dominantemente marcados pela metodologia (ou pela
Lógica de Fonseca), essa classificação ocupa largo espaço na mancha.

286
revista de teoria da história 2 2020

Observando outra vez a figura 2, contudo, percebemos que essa questão (lógica
em Sawicki) foi deslocada para as subdisciplinas metafísicas: o objeto da ciência
histórica é o fato histórico (ontologia) multicausado (etiologia) e previsível,
embora não obediente a leis ao modo das ciências naturais (teleologia). O caráter
científico da História é, portanto (e primeiramente), um problema de fundo
ontológico (a realidade existe fora do sujeito conhecedor), expresso por negação
à gnosiologia proposta por Kant (que, como afirmou Daston, não estava
interessado na metafísica do seu tempo). A cientificidade é justificada, em
seguida, com o anúncio do aparato metodológico empregado na pesquisa e na
exposição dos fatos.
Nesse segundo nível hierárquico da sua parte Lógica, percebemos uma
inovação. Observem que Fonseca salta imediatamente da Lógica para as
“metodologias”. Na sua Teoria da História, não há “o” método histórico como
determinante das “metodologias”: há métodos históricos destinados a ensinar
no secundário, no superior, a estudar no superior e a pesquisar e escrever
história. Esses métodos definem ao menos três (senão quatro) domínios ou
protocampos de investigação: a “Metodologia do Ensino Superior”, a “Didática
da História” e a “Metodologia da Pesquisa”.
Naquele ano de lançamento (1966), a Metodologia do ensino Superior
de História não era convencionalmente assumida pelos catedráticos como
matéria formativa. A profissionalização (pedagógica) do ensino, não apenas no
Brasil, entre o último terço do século XIX e o primeiro do século XX, em geral,
era fenômeno restrito aos ensinos primário e secundário. Assim, o apelo de
Fonseca, mesmo em termos transnacionais, era (e ainda é, no caso brasileiro)
algo novo: “Cuide-se da formação do professor universitário, para que, a bem
da cultura nacional, o candidato à docência superior não mais se veja compelido
a esperdiçar tempo, tão lamentavelmente, com a própria formação,
autoformação, aliás, sempre e inevitavelmente defeituosa” (Fonseca 1966, 145).
A solução apresentada era a adoção do método de ensino exegético, em termos
teóricos, e a instituição dos pré-seminários e seminários (figura 2), ao modo do
jesuíta Leopold Fonck (1865-1930) que escrevera Trabalhos científicos. Contribuição
para uma metodologia dos estudos acadêmicos (Wissenschaftliches Arbeiten – Beiträg zur
Methodik des akademischen Studiums – 1908).
O segundo protocampo era “Metodologia do Ensino secundário da
História”, já radicada nas faculdades de Filosofia ou Educação e nas escolas
normais brasileiras. A proposta de Fonseca não destoava das iniciativas
designadas como Didática Especial de História e Metodologia do Ensino de
História. A Metodologia era o fórum das discussões sobre a natureza psicológica
do aluno, os valores e os conhecimentos requeridos ao professor e,
consequentemente, o domínio dos conteúdos substantivos e das técnicas de
“transmissão ao adolescente” (FONSECA 1966, 135). Como vemos pelo
temário, Fonseca não explora a parte prática, reservada aos pedagogos. Também
não incorpora a inovação de citados na bibliografia, como o clássico Teaching of
history in elementary and secondary schools (1942), de Henry Johnson (1867-1953), que
já prescrevia a transposição das operações metodológicas de pesquisa para os
alunos do secundário.
O terceiro e o quarto protocampos são o “estudo” e a “pesquisa e
exposição” históricos. O “Estudo” é uma zona cinzenta para nós. Pode
representar uma tradução dos “studies” comuns em manuais estadunidenses e
ingleses, às vezes interpretados como “investigação” histórica ou como práticas
de acompanhamento de cursos em nível superior (práticas de estudo). Quanto à
sua “Metodologia do Estudo superior da História”, ela reúne orientações

287
revista de teoria da história 2 2020

destinadas ao trabalho “autodidático” para quem quer, por exemplo, escrever


uma tese de pós-graduação. Suas prescrições dispõem, basicamente, sobre as
regras e recursos para localizar e selecionar fontes e bibliografia e regras para
criticar, interpretar e confrontar “leituras” (Fonseca 1966, 133). Essas
orientações pressupõem o conhecimento da “Doutrina Especial do Método
Historiográfico” ou, simplesmente, “historiografia”. Ela dá conta da
classificação e crítica das fontes (heurística), da “autenticidade/genuinidade”,
“veracidade/clareza” (análise) e da “hermenêutica, construção, generalização e
exposição das fontes” (síntese) (Fonseca 1966, 123, 126).

OBJETIVIDADE NA CIÊNCIA DA HISTÓRIA


A “objetividade” ou o caráter “objetivo” do “conhecimento histórico”
na Teoria da História de Fonseca é um problema de Lógica. Mas, vimos que sua
Lógica histórica não se resume à prescrição do método triádico da pesquisa
histórica. Ela engloba questões de Teoria geral do conhecimento e de métodos
para o ensino e o estudo da História. Assim, de início, concordemos que não há
apenas uma diretriz para a garantia de um conhecimento objetivo do passado
que poria a História no mesmo patamar controlado das Ciências Naturais.
Podemos afirmar que ele prescreve níveis de objetividade sob o ponto de vista
das metodologias e uma hierarquia entre os critérios de validação, no interior de
algumas tarefas relativas a essas mesmas metodologias.
Na exposição da metodologia do ensino secundário, ser objetivo
significa escrever (um livro didático) com “imparcialidade e ânimo conciliador”,
isto é, manter-se a “meio-termo” entre o protagonismo dos heróis de Thomas
Carlyle (1795-1881) e o protagonismo das classes sociais de Hippolyte Adolphe
Taine (1828-1893). Isso porque a função do professor, nesse nível de ensino, é
expor e explicar os fatos (Fonseca 1966, 139-140), mas nunca os interpretar.
Fonseca concebe o aluno do ensino secundário como um receptor de
conhecimento histórico – que se deixa “modelar docilmente pelo mais
experiente” – e o professor, consequentemente, como um transmissor da
pesquisa produzida nas cátedras universitárias – que “manipula jovens entre
onze e dezoito anos” (Fonseca 1966, 21).
Na metodologia do ensino superior, onde a função docente é deslocada
para a interpretação (“exegese” ou “hermenêutica”), a “objetividade da
exposição” pode ser garantida, inicialmente, com a “apreciação do respectivo
clima intelectual e espiritual” do período histórico estudado, elementos que
determinam os fatos de “ordem política, econômica e social” (Fonseca 1966,
149. Grifos do autor). Em outras palavras, a “possibilidade” e a
“verossimilitude” dos fatos da política são mensuráveis a partir do
reconhecimento dos ideais superiores e dominantes em cada tempo.
Esse critério parece condenar o ensino de História Contemporânea, já
que o espírito do tempo não se mostraria claramente ao historiador que nele
estivesse imerso. Era uma preocupação partilhada pelos colegas professores que
lhe questionam sobre a viabilidade do ensino de História dos “tempos mais
recentes”, ou seja, dos acontecimentos de até 50 anos anteriores ao momento da
preleção. Fonseca, porém, não vê problemas nesse sentido. Responde que a
objetividade da preleção desses tempos quase coetâneos à vida do professor
depende de uma habilidade “pessoal e técnica”: o “discernimento”. Esse atributo
racional/moral está expresso no “método de transmissão” que prescreve a
sobriedade das falas e das fontes, como também o respeito ao contraditório:

288
revista de teoria da história 2 2020

a) observação fria dos eventos: o professor neófito, principalmente, deve


expô-los com objetividade máxima, quase com secura, evitada quanto
possível a adjetivação, assim como também, quanto possível, dispensado
o comentário pessoal;
b) uso de documentação sóbria em apreciações e de procedência
rigorosamente insuspeita, máxime quando se tratar de assunto capaz de
gravemente suscitar e ferir melindres;
c) neste caso, - providência complementar –, recorrer sistematicamente a
opiniões concorrentes (Fonseca 1966, 161).

No que diz respeito ao método de “exame e exposição do fato histórico”,


a “conclusão pela objetividade do conhecimento histórico” é mediada pelo
adequado cumprimento das três principais tarefas do “método histórico”:
constatação dos fatos, explicação dos fatos e julgamento dos fatos históricos.
Na “constatação” e na explicação dos “fatos históricos” (primeira e
segunda operações), as conhecidas e circulantes tarefas de crítica externa e crítica
interna são abonadas por Fonseca. Ele incorpora a ideia de que as fontes
passíveis de uso pelo historiador devem ser testadas e certificadas no que diz
respeito ao pleno conhecimento dos seus autores e da sua procedência e ao grau
de conservação da sua integridade original. Até aqui, Fonseca segue princípios
dominantes. Na crítica interna, contudo, julgadora da “possibilidade e
verossimilitude das fontes”, Fonseca põe a sua marca (ou a marca dos teóricos
católicos): a objetividade do conhecimento histórico está condicionada à
preservação de uma hierarquia de valores relativos a verdades reveladas e
verdades demonstradas. Daí considerar impossível e inverossímil um fato que

[...] encerra contradição interna. V.g., é metafisicamente impossível que o


ato sabidamente originário de necessidade inelutável, seja ato proveniente
de livre autodecisão. Tem valor absoluto a impossibilidade metafísica.
[...] contradiz hábitos arraigados de natureza moral. V. g., é moralmente
impossível que um pai odeie o próprio filho. Tem valor relativo à
impossibilidade moral.
[...] contradiz as leis da natureza. Tem valor mais relativo, ainda, dado ser
temerário falar inconsideradamente de impossibilidade física, primeiro,
porque o homem só muito imperfeitamente conhece as forças da natureza
e, segundo, porque – realidade apodítica –, o governo da Providência
divina pode intervir diretamente na ordem do Cosmos, derrogando,
momentânea e excepcionalmente, as leis físicas, mediante o milagre
(Fonseca 1966, 95-96. Grifos do autor).

Na terceira operação do método da pesquisa e da exposição, a de


julgamento, o apreço ao trabalho objetivo também deve ser observado pelo
professor: “assinalar com objetividade ascensões e decadências, progressos e
regressos e sempre que presidido o juízo por norma que corresponda ao ideal
de civilização da maioria” (Fonseca 1966, 97). Trata-se, como veremos a seguir,
de critério defendido nos manuais de Bernheim e de Wilhelm Bauer (1877-1953),
de onde é provável que Fonseca o tenha extraído (Bernheim 1903, 716-717;
Bauer 1921, 87). Podemos afirmar que esse axioma corresponde à parte mais
conhecida dos argumentos que combatem o ceticismo acerca do conhecimento
histórico e a defesa da História como ciência (e não literatura de ficção). A defesa
da possibilidade de um conhecimento objetivo mediante investigação histórica
descende, efetivamente, do reconhecimento das limitações do historiador e das
suas ferramentas de trabalho, como também de argumentos lógicos produzidos
contra o Kant da Crítica da razão pura (a impossibilidade de conhecimento da
coisa em si). Vejamos, primeiro, essa questão afeita à Teoria geral do
conhecimento.

289
revista de teoria da história 2 2020

O argumento de que é possível conhecer objetivamente o que está fora


do sujeito conhecedor possui extenso histórico de defesas, desde a Filosofia do
inconsciente (Philosophie des Unbewussten - 1869), de Eduard von Hartmann (1842-
1906) até a Carta Encíclica Pascendi Dominici Gregis - 1907), de Pio X (1835-1914).
Já afirmamos que Fonseca nem sempre revela a proveniência dos seus
empréstimos, mas não é difícil perceber que ele retira o seu argumento do livro
de Sawicki que, contrariando Kant, afirma existir um mundo interior e subjetivo
(das ideias e imagens) e um mundo exterior e objetivo (das coisas sensíveis). Se
“os fatos históricos pertencem ao mundo sensorial (se são materiais) e
desaparecem com ele”, é possível não apenas um conhecimento mediado por
ação interior (como afirmava Kant), mas também uma objetividade exterior.
Sawicki reconhece que tal objetividade não significa “réplica exata” do exterior,
posto que os representadores da realidade deixam vazar as suas subjetividades.
Mas o extremo contrário também não ocorreria, porque nenhum historiador
produziria um mundo particular de signos sem correr risco de tornar-se
incompreensível aos pares (Sawicki 1920, 283).
O segundo argumento, relativo à limitação do historiador e das suas
fontes, Fonseca retira (também provavelmente) do livro de Sawicki que, por sua
vez, o extrai do manual de Bernheim. Fonseca também cita Bernheim, mas
modifica parte do seu argumento sobre as possibilidades de o historiador
produzir um conhecimento objetivo sobre o passado. Bernheim reconhece que
o trabalho do historiador depende da disponibilidade de fontes, da natureza, da
completude e veracidade dos testemunhos. Para garantir a satisfação mínima
dessas exigências, Bernheim apresenta as regras de heurística, crítica e
interpretação (também adotadas por Fonseca). Mas não vê saída indiscutível no
que se refere à intromissão dos valores do historiador no trabalho de
interpretação das fontes, de conexão dos fatos e produção do relato. Assim,
propõe uma hierarquização. O historiador que balizasse o seu trabalho metódico
pelos mais altos valores estaria menos propenso a corromper a representação do
acontecido.
Implicitamente, Fonseca concorda com essas proposições, mas não
opera com o mesmo fundamento dos universais antropológicos de Bernheim.
Para o brasileiro, há unidade humana, origem, motor e sentido, mas esses
elementos são melhor descritos por Santo Agostinho e não por Rudolf Hermann
Lotze (1817-1881), o filósofo empregada por Bernheim. Assim, o segundo
modo de tornar o conhecimento histórico objetivo, segundo Fonseca, seria
adotar a escala de valores cristãos e católicos para o julgamento dos fatos.
Assim, a objetividade histórica promovida pelo historiador, como
afirmamos, estaria na terceira operação do método de investigação, ou seja, no
ato de julgar os fatos, substituindo “o quanto possível, o ideal cultural próprio
[o ideal grupal/individual do historiador] pelo ideal cultural esposado pelo
consenso geral” (Fonseca 1966, 97). Em outros termos, a objetividade, nesse
nível de aplicação, dependeria de o historiador reconhecer que o “consenso
geral” era fornecido pela metafísica cristã e católica. Entre os valores que
balizariam tais julgamentos estariam, provavelmente, o “idealismo” e o
“altruísmo” (antíteses do materialismo e do egoísmo), segundo Fonseca, os
“móveis das ações humanas” (Fonseca 1966, 53).

290
revista de teoria da história 2 2020

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até aqui, tentamos convencê-los de que a Teoria da História de Piragibe
da Fonseca é um compósito de estruturas de manuais e de listas de teses
defendidas por autores, em geral, cristãos, antimaterialistas que circulavam em
instituições educacionais universitárias e não universitárias da Alemanha,
Áustria, Brasil, Dinamarca, Espanha, EUA, França, Hungria e Inglaterra.
Estruturada nas disciplinas-campo da Metafísica e da Lógica, a Teoria da
História de Fonseca é uma espécie de cluster, onde cada unidade possui relativa
independência. Essa estrutura é clara na Lógica, na qual as metodologias de
ensino do superior, ensino do segundo grau e estudo de História no superior
não reproduzem literalmente “o” método da pesquisa e da exposição históricas.
Certamente, os critérios de validação da “verdade” histórica são dados
pelo “método”, ou seja, os critérios de validação estão anunciados nas tarefas de
“constatação dos fatos históricos” via crítica externa
(autenticidade/integridade/autoridade da fonte) e crítica interna (autoridade do
narrador, possibilidade e verossimilitude das fontes). Os critérios de validação
das verdades prescrevem, por exemplo, a ausência de contradição entre ação
humana e necessidade, entre ação humana e lei moral e entre fenômeno natural
e leis física. Ocorre que, na Lógica de Fonseca, tais critérios estão embebidos de
princípios metafísicos. É impossível, por exemplo, aceitar que a felicidade dos
trabalhadores no planeta pode ser instaurada a partir do fim da luta de classes,
quando se sabe que a vida na Terra é intrinsecamente sofrimento decorrente do
pecado. Tal proposição não é válida porque contradita a necessidade
providencial. É impossível negar a travessia dos hebreus pelo leito seco do Mar
Vermelho, quando se sabe que o conhecimento humano sobre as leis físicas é
imperfeito e, ainda, que a Providência pode alterar “a ordem do Cosmos”. Tal
proposição pode ser válida porque conserva coerência acerca do valor relativo
que possuem as leis da natureza. Além da interferência desses princípios
metafísicos, a conclusão pela “objetividade do conhecimento histórico” é
conduzida por diferentes critérios de validação (metafísicos e físicos), geridos
sob diferentes pesos (valor absoluto – é impossível ferir leis metafísicas; valor
relativo – é possível ferir leis morais e físicas) e contrapesos (aceitação do milagre
limitada à validação das suas fontes em termos de crítica externa).
Essa concepção de objetividade do conhecimento histórico tem
implicações para as nossas tentativas de classificação da sua teoria e para a
construção de eventuais histórias da Historiografia ou histórias da Teoria da
História no Brasil. Em primeiro lugar, e retomando o debate exposto na
introdução deste artigo, podemos afirmar que o emprego de uma periodização
para a história da objetividade histórica que prescrevesse a transição de um
tempo de imparcialidade para um tempo de objetividade, como sugere Daston
e Galison, seria contraditado, por exemplo, pela Teoria da História de Fonseca
para quem a parcialidade do historiador e do professor de História do ensino
superior era também constituinte da objetividade do conhecimento histórico,
assemelhando, desse modo, a experiência brasileira à experiência de vários
exemplares da historiográfica alemã do século XIX (Assis, 2015; Freitas, 2019).
Em segundo lugar, e considerando a presença de valores religiosos, pesos
e contrapesos, alguns dos quais determinados por metafísicos, a presença do
“método histórico” (em suas clássicas operações de heurística, análise e síntese)
não seria causa suficiente para tipificar escritos como os de Fonseca (dentro do
IHGB e das Faculdades de Filosofia) como prescritores de objetividade
mecânica ou (o que é mais comum) de certo ideal metodológico positivista,

291
revista de teoria da história 2 2020

difundido, por exemplo, por A. Comte, H. Buckle, E. Durkheim e F. Simiand.


Em outros termos, a existência de um método científico não garantiria por si só
o caráter científico da História.
Por fim, e em contrapartida ao anunciado acima, não podemos afirmar
que Teorias da História, como as de Fonseca, estariam justificando a
cientificidade da História somente a partir de domínios da Filosofia, ou seja, que
o domínio da Teoria da História se reduziria ao domínio da Metafísica ou da
Lógica. Evidentemente, a Teoria de Fonseca não se configura um exemplar de
“Epistemologia Histórica” ou de “Historiografia epistemológica”, no sentido
indicado por Tiago Almeida (2018, 25-26). Fonseca não reserva a maior parte de
seu livro para a historicização de princípios e práticas interna corporis. Entretanto,
não podemos negar o esforço do professor carioca em reunir um conjunto de
teses e de práticas de assentimento geral entre pares cristãos e não cristãos, no
sentido de defender determinada autonomia para a legitimar (socialmente) aquilo
que produzem com o nome de História científica.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Tiago Santos. Introdução – Combates pela história das ciências. In:
Canguilhem e a gênese do possível: estudo sobre a historicização das ciências. São
Paulo: LiberArs, 2018. 18-32.
ASSIS, Arthur Alfaix. Objectivity and the first law of History writing. Journal of the
Philosophy of History. Leiden, 1-23, 2016. Disponível em:
https://www.academia.edu/31173845/Objectivity_and_the_First_Law_of_History
_Writing_2019. Capturado em: 12 mai. 2018.
BARRETO, Dalmo. Roberto Piragibe da Fonseca. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de janeiro, v.147, n.352, 951-954, jul./set. 1986.
BAUER, Wilhelm. Einfürung in das Studium der Geschichte. Tübingen: J.C.B Mohr,
1921.
BEARD, Charles Austin. Aquele sonho nobre [1935]. In: MALERBA, Jurandir (org.).
Lições de História: da História científica à crítica da razão metódica no limiar do
século XX. Porto Alegre: EDIPUCRS/FGV, 2013. 338-353.
BERNHEIM, Ernst. Lehrbuch der Historischen Methode und der
Geschichtsphilosophie. Leipzig: Duncker & Humblot, 1903.
BESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade:
Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil. São Paulo: Unesp, 2005.
BESSELAAR, Jean Van Den. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: [USP],
1954/1958.
BESSELAAR, José van Den. Introdução aos estudos históricos. 3ed. São Paulo:
Editora Pedagógica Universitária, 1973.

292
revista de teoria da história 2 2020

CAMARGO JÚNIOR, M. C. V. Questões sobre a profissionalização da História: a


disciplina Introdução aos Estudos Históricos no I Simpósio de Professores de
História do Ensino Superior (1961). Fato & Versões, [sdt], v.8, 70-89, 2016.
CAMPOS, Milton. Parecer n.443, de 1959. Diário do Congresso Nacional. Brasília,
1871, 06 ago. 1959. Disponível em:
https://legis.senado.leg.br/diarios/BuscaDiario?tipDiario=1&datDiario=26/08/19
59&paginaDireta=1871&indSuplemento=Nao&codSuplemento=&desVolumeSupl
emento=&desTomoSuplemento= Capturado em: 05, fev. 2010.
CELESTINO, Basílio. Requerimento n.324, de 1959. Diário do Congresso Nacional.
Brasília, 2108,01 set. 1959. Disponível em:
https://legis.senado.leg.br/diarios/BuscaDiario?tipDiario=1&datDiario=19/09/19
59&paginaDireta=2108&indSuplemento=Nao&codSuplemento=&desVolumeSupl
emento=&desTomoSuplemento=> Capturado em: 05, fev. 2010.
CODATO, Adriano Nervo; GUADALINI JÚNIOR, Walter. Os autores e suas ideias:
um estudo sobre a elite intelectual e o discurso político do Estado Novo. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n.32, 154-164, 2003.
COLLINGOOD, Robin George. Ideia de la historia (Edición revisada que incluye lass
conferencias de 1926-1928). México: Fondo de Cultura Económica, 2004.
COTTINGHAM, John. A Descartes Dictionary. Oxford: Blackwell, 1993.
DASTON, Lorraine; GALISON, Peter. Objectivity. New York: Zone Books, 2007.
DESCARTES, René. Discurso do Método (1637). São Paulo: Nova Cultural, 1993a.
DESCARTES, René. Meditações (1641). São Paulo: Nova Cultural, 1993b.
ESPONSEL, José Pedro Pinto. 1º Encontro Brasileiro sobre Introdução ao Estudo da
História – Anais. Niterói: Universidade Federal Fluminense; Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, 1970.
FERREIRA, Marieta de Moraes. A história da história no Rio de Janeiro: da UDF à
UFRJ. In: A história como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Rio de
Janeiro: FAPERJ; FGV, 2013. 17-82.
FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A história no Brasil (1980-1989): elementos para uma
avaliação historiográfica. Ouro Preto: UFOP, 1992.
Folha da Manhã. Cadeira de Metodologia da História nas faculdades de Filosofia e
Letras. São Paulo, 6 ago. 1955.
FOLHA DE SÃO PAULO. Questões de metodologia da história / A história e a
reforma geral do ensino. São Paulo, 23 abr 1974. Educação, 17.
FOLHA DE SÃO PAULO. Questões de metodologia da história na SBPC. São Paulo,
10 jul. 1973, Educação, 11.
FONCK, Leopold S. J. Wissenschaftliches Arbeiten - Beiträge zur Methodik das
akademischen Studiums. Insbruck: Felizian Rauch, 1908.
FONSECA, Roberto Piragibe da. Metodologia da História – elaboração / ensino /
estudo. Verbvm – Universidade Católica. Rio de Janeiro, t.15, 534-570, 1958.
FONSECA, Roberto Piragibe da. Programa e breviário de Propedêutica e de
Metodologia da História. Verbvm – Universidade Católica. Rio de Janeiro, t.[11],
186-336, 1953.
FONSECA, Roberto Piragibe. Breviário de introdução a ciência do Direito: teoria geral
do direito positivo. Rio de Janeiro: Olímpica, 1955.

293
revista de teoria da história 2 2020

FREIRE, José Geraldes. Resenha de. JOSÉ VAN DEN BESSELAAR, António Vieira,
História do Futuro (livro Anteprimeiro). Edição crítica, prefaciada e comentada.
Vol.I, Bibliografia, introdução e texto, p282; Vol. II, Comentário, p263,
Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung, Münster Westfalen, 1976. Humanitas,
Coimbra. v.29-30, 335-339, 1978. Disponível em <https://digitalis-
dsuc.pt/bitstream/10316.2/29343/2/Humanitas29-30_artigo54.pdf> Capturado
em 5 mar. 2020.
FREITAS, Itamar. Discursos sobre o método em manuais de História (1870-1930).
Porto Alegre, 2019. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação
em História; Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
FREITAS, Itamar. Indícios de objetividade na Revista do IHGB: traços diacríticos da
persona do historiador no Brasil (1880-1930). Fala. US São Paulo, 6 nov. 2015.
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Juraci Montenegro Magalhães nasceu em
Fortaleza (1905-2001). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. Disponível em: <
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/juraci_magalhaes
> Capturado em: 04 fev. 2020.
GARI, Paul. Jean Glénisson. 2002/2006. Pollagoras - Site consacré aux ouvrages sur la
Saintonge. Disponível em
<http://pollagoras.free.fr/auteurs/glenisson_jean/glenisson.htm> Capturado em
07 fev. 2020.
GLÉNISSON, Jean; CAMPOS, Pedro Moacyr; COSTA, Emília Viotti da. Iniciação aos
estudos históricos. São Paulo: Difusão Europeia, 1961.
GURGEL, Walfredo. Parecer n.127, de 1963. Diário do Congresso Nacional. Brasília,
24 abr. 567-568, 1963.
HALPHEN, Louis. Introduction à l’histoire. Paris: Presses Universitaires de France,
1946. 53-57.
HARTMANN, Edouard. L’inconscient dans l’Histoire. In: Philosophie de l’inconscient.
Paris: Germer Baillière, 1877. 410-439.
MARROU, Henri-Irénée. De la connaissance Historique. Paris: Seuil, 1954.
MEGILL, Allan. Teoria da História (1870-1940): objetividade e antinomias da história
em um tempo de crise existencial. In: MALERBA, Jurandir (org.). Lições de
História: da história científica à crítica da razão metódica no limiar do século XX.
Porto Alegre; EDIPUCRS; Rio de Janeiro: FGV, 2013. 11-37.
NASCIMENTO, Thiago Rodrigues. A formação do professor de História no Brasil
percurso histórico e periodização Revista História Hoje. São Paulo, v. 2, n. 4, 265-
304, 2013.
OLIVEIRA, Krisley Aparecida de. José Honório Rodrigues e a Historiografia brasileira:
em defesa de uma concepção de História. Goiânia, 2019. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal de
Goiás.
PIO X. Carta Encíclica Pascendi Dominici Gregis do Sumo Pontífice Pio X aos
patriarcas, primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários em paz e comunhão
com a Sé Apostólica sobre as doutrinas modernistas. 1907. Disponível em:
<http://www.montfort.org.br/bra/documentos/enciclicas/pascendi/> Capturado
em: 23 jan. 2018.
REICHARDT, Herbert. Roberto Piragibe da Fonseca, Manual de Teoria da História –
Rio de Janeiro, 1970, Editora Fundo de Cultura. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.301, 264-265, out./dez 1973.

294
revista de teoria da história 2 2020

RODRIGUES, José Honório. Método, teoria, historiografia e pesquisa, disciplinas


universitárias. In: Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 3ed. São
Paulo: Companhia Editora nacional, 1969. 431-456.
ROIZ, Diogo da Silva. A institucionalização do ensino universitário de Geografia e
História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo
entre 1934 e 1956. Agora, Santa Cruz do Sul, v.13, n.1, 65-104. Disponível em:
<https://online.unisc.br/seer/index.php/agora/article/view/111/70> Capturado
em: 06 fev. 2017.
SAAD, Cesar Leonardo Van Kan. Um teorista nos trópicos a escrita de Teoria da
História do Brasil de José Honório Rodrigues (1939-1948). Porto Alegre, 2016.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. 2ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1996. v.1.

OBJETIVIDADE HISTÓRICA NO MANUAL DE TEORIA DA HISTÓRIA


DE ROBERTO PIRAGIBE DA FONSECA (1903-1886)
ARTIGO RECEBIDO EM 21/06/2020 • ACEITO EM 20/11/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.63979
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

295
revista de teoria da história 2 2020

ARTIGO

HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS
E TERRITÓRIOS
SOBREPOSTOS
DIÁLOGOS ENTRE
EDWARD W. SAID E
FRANTZ FANON
ELISA GOLDMAN
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Veiga de Almeida
Rio de Janeiro | Rio de Janeiro | Brasil
goldman@uol.com.br
orcid.org/0000-0002-6489-2883

Este artigo tem como objetivo analisar as aproximações


teóricas entre os autores Edward W. Said e Frantz Fanon
no que tange ao convívio entre um lugar de fala pós-
colonial revestido de questionamentos acerca dos
binarismos identitários e a busca por um ethos nacional no
contexto da luta anticolonial. Identificamos como marcos
de aproximação na démarche teórica de Said e Fanon
reflexões acerca do problema da historicidade nas narrativas
nacionais, o problema epistemológico da representação do
colonizado entrelaçado com o colonizador, o que pode se
desdobrar na desestabilização ontológica da alteridade.

pós-colonialismo – Edward W. Said – Frantz Fanon

296
revista de teoria da história 2 2020

ARTICLE

INTERTWINED HISTORIES
AND OVERLAPPING
TERRITORIES
DIALOGUES BETWEEN
EDWARD W. SAID AND
FRANTZ FANON
ELISA GOLDMAN
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Veiga de Almeida
Rio de Janeiro | Rio de Janeiro | Brazil
goldman@uol.com.br
orcid.org/0000-0002-6489-2883

This article aims to analyze the theoretical approaches


between Edward W. Said and Frantz Fanon regarding the
coexistence of a place of post-colonial speech covered with
questions about identity binarism with the search for a
national ethos in the context of the struggle anticolonial.
We identified as approximation landmarks in the theoretical
démarche of Said and Fanon reflections about the problem
of historicity in national narratives, the epistemological
problem of the representation of the colonized intertwined
with the colonizer, which can unfold in the ontological
destabilization of otherness.

post colonialism – Edward W. Said – Frantz Fanon

297
revista de teoria da história 2 2020

O presente artigo tem por finalidade articular possíveis aproximações


teóricas entre dois autores centrais para o chamado “pensamento pós-
colonial”: Edward W. Said1 e Frantz Fanon2. Embora por trajetos e respectivos
contextos distintos, os dois autores se aproximam no que tange ao debate
sobre o nacionalismo, a identidade nacional e a problemática da historicidade
no campo teórico do problema da representação.
Ao considerar o imperialismo como um processo, Edward W. Said
adota o método do contraponto para realizar uma leitura oscilante entre o
registro da história metropolitana e o de supostas histórias entrelaçadas, lidas
como as narrativas coloniais. Nessa trajetória explicativa, o autor palestino
incide na rejeição da doutrina nacionalista enquanto mecanismo de resistência
permanente, contexto que se desdobra no característico processo de
descolonização, entendido como armadilha de reflexo da postura do
colonizado colada ao posicionamento do colonizador.
Reconhecemos em Said e na recusa ao nacionalismo defensivo um
tributo à obra de Frantz Fanon, especialmente ao livro Os condenados da Terra3.
Para Fanon4, apropriado por Said, a consciência nacionalista pode induzir à
rigidez estática e essencialista das identidades. Ao longo do processo

1 Edward W. Said nasceu em Jerusalém no ano de 1935. No cenário de seu nascimento, sua
família estava vivendo no Cairo, Egito. Said tornou-se estudioso da teoria literária, professor da
Universidade de Columbia e um militante da causa nacional Palestina. Teórico representativo
dos estudos pós-coloniais, escreveu vários livros estabelecendo uma análise dos vínculos
estreitos entre a cultura e o processo imperialista. A obra de Edward W. Said alcançou uma
extensão significativa a partir dos anos 1970 com a publicação do livro Orientalismo, o Oriente
como invenção do Ocidente (1978), consensualmente pensado como marco inicial dos chamados
Estudos Pós-Coloniais. Identificamos que a elaboração desse livro manteve uma estreita
relação com o início da militância de Said no Movimento Nacional Palestino.
2 Frantz Fanon, intelectual de origem antilhana, psiquiatra, nasceu na Martinica em 1925.

Aos 19 anos, deixou a Martinica para servir às forças armadas francesas. Desencantado com o
racismo nas forças armadas e decepcionado com o artificial universalismo francês, voltou para
a Martinica. Em 1947, ingressou na Universidade de Lyon. Nesse contexto, redigiu Pele negra,
máscaras brancas, uma análise sobre as patologias do racismo colonial. Em 1953, adotou a
escolha pela especialidade médica da psiquiatria e, nesse momento, aceitou um emprego na
Argélia, ocupada pela França. Renunciou ao seu posto de médico e integrou a Frente pela
Libertação Nacional. Foi expulso pelas forças francesas da Argélia e partiu para o exílio em
Túnis. Em dezembro de 1960, foi diagnosticado com leucemia e faleceu precocemente em
1961, com 36 anos, nos EUA, para onde foi em busca de tratamento para sua doença.
3 Os Condenados da terra, livro originalmente publicado em francês, postumamente em 1961,

constitui a principal referência a Fanon na obra de Said. O prefácio de Jean-Paul Sartre (1961)
é expressão marcante da luta anticolonial. Sartre se referia à hegemonia da cultura ocidental e
do humanismo desmascarado como processo de dominação colonial da Europa na África e na
Ásia. Sartre fala das consciências infelizes que “se emaranham nas contradições” e reproduzia a
fala de Fanon sobre uma Europa que cavava sua própria ruína. O filósofo francês abordava a
decadência de uma Europa que na metáfora orgânica agonizava no seu humanismo paradoxal.
Fanon denunciava as artimanhas e estratégias coloniais, além de analisar os elementos de
complacência dos agentes coloniais com a elite colonial. A violência colonial é denunciada
como um mecanismo desumanizador. Sartre analisa a violência que emana da resistência como
a possibilidade de recomposição existencial do homem colonizado. Trata-se de um reencontro
com a própria identidade. O reconhecimento do caráter relevante do prefácio aparece na
medida em que o livro não havia sido escrito para os europeus, o que promove a perspectiva
dialética na sua escrita. Trata-se do apelo para que os europeus se descolonizem e que extirpem
os colonos do seu interior. O manifesto sobre o desnudamento do humanismo europeu é o
tema central do autor. Sartre menciona o falso postulado do universalismo que encobriria
práticas reais. A França precisa ser renomeada para o nome de uma neurose, diagnosticada na
contingência história da descolonização.
4 A obra de Fanon é considerada um marco no pensamento pós-colonial. Reconhecemos a

importância da revisão em torno de uma suposta modernidade universal, marco eurocêntrico.


Fanon mostra em contraponto a lógica pós-colonial, uma visão crítica da ideia de expropriação.

298
revista de teoria da história 2 2020

descolonizador, não há qualquer garantia de que os militantes nacionalistas não


reproduzirão os antigos arranjos coloniais. A sua crítica ao separatismo e à falsa
autonomia obtida por uma política primordialmente essencialista de
consolidação da identidade se deu de forma prolongada.
Fanon alerta para a problemática do nativismo e da xenofobia no
processo de descolonização. O “tempo da libertação” é reconhecido como um
processo de iminência da ambivalência identitária, de uma indecisão de papéis
representacionais. A indissociação entre o colonizado e colonizador faz da luta
da antiga colônia uma luta dela consigo mesma, quase endógena.
A descolonização é vista como a reivindicação inicial do colonizado.
Este é um processo histórico e se dá por meio do encontro de duas forças
antagônicas que extraem sua originalidade da substantivação que segrega e
subsidia a situação colonial. O colono elabora o colonizado e ao mesmo tempo
“tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial” (Fanon 1979, 26).
A inteligibilidade desse processo ocorre por meio da historicidade que
promove a identidade daquele que se liberta por meio da descolonização. Esta
exige um reexame da situação colonial.
O autor martinicano elabora uma analogia das situações sociais e
políticas do colonizador e do colonizado e de suas respectivas cidades. A
cidade do colono é uma cidade sólida, iluminada, asfaltada, saciada, indolente.
Já a cidade do colonizado, a cidade negra, indígena, ou a Medina, é um lugar
acocorado, ajoelhado, uma cidade acuada.
Para o autor martinicano, o olhar do colonizado sobre o lugar do
colono simboliza uma mirada de inveja, de luxúria e de posse. O colonizado
deseja ocupar o lugar do colono. O advento racial inerente às relações sociais
na colônia define um problema chave para entender a dominação colonial. A
desumanização dos colonizados define não só um tipo de alienação, como
também uma forma de vínculo social diferente. O maniqueísmo dessa
sociedade desumaniza o colonizado.
A violência5, palavra-chave para Fanon, é um mecanismo de diluição de
fronteiras, ou seja, a afirmação de uma singularidade absoluta do colonizado
que não se manifesta por um meio racional. O papel da violência como
resistência representa a síntese da superação da reificação, do homem branco
como sujeito e do homem negro como objeto. A leitura do teórico Lukács
orienta o sentido da reificação e o processo de superação por meio da
reconciliação entre sujeito e objeto, ou mesmo do reencontro com a própria
identidade consolidado no confronto colonial. A superação da fragmentação se
dá por meio de um ato da vontade.
A analogia da alteridade e da similitude com o objeto imperial na
dialética hegeliana marxista se desdobra na afirmação fenomenológica do eu e
do outro associada à ambivalência psicanalítica do inconsciente. A luta contra a
opressão colonial não apenas muda a direção da história, como também
contesta sua concepção historicista de tempo linear e progressivo.

5 O primeiro capítulo do livro Os condenados da terra, intitulado “Da violência”, foi


originalmente publicado na revista Tempos modernos, editada e dirigida por Jean-Paul Sartre.

299
revista de teoria da história 2 2020

Então o colonizado descobre que sua vida, sua respiração, as pulsações


de seu coração são as mesmas do colono. Descobre que uma pele de
colono não vale mais do que uma pele de indígena. Essa descoberta
introduz um abalo essencial no mundo. Dela decorre toda na ova e
revolucionária segurança do colonizado. Se, com efeito, minha vida tem
o mesmo peso que a do colono, seu olhar não me fulmina, não me
imobiliza mais, sua voz já não me petrifica. Não me perturbo mais em
sua presença. Na verdade, eu ao contrário. Não somente sua presença
deixa de me intimidar como também já estou pronto para lhe preparar
tais emboscadas que dentro de pouco tempo não lhe restará outra saída
senão a fuga. (Fanon 1979, 34).

O colonizado, na etapa processual de organização da sociedade pós-


colonial, incorpora a cultura do opressor e encarna o pensamento da burguesia
colonial. O nativismo, portanto, representa um tipo de ameaça à unidade
nacional. Fanon fala em descolonizar as imaginações do colonizado no
processo dialético da relação entre cultura e nação.
Na dinâmica histórica de elaboração de uma identidade forjada na
contraposição processual do encontro com o outro, o processo de alienação é
instituído. A alienação individual e a política estão relacionadas e são produtos
de determinadas condições sociais e políticas que devem ser transformadas.
Para Said, leitor de Fanon, a representação se torna significativa não
apenas como um dilema teórico, mas como escolha política. O debate sobre o
nacionalismo e a questão da resistência colonial suscita uma reflexão sobre o
problema da identidade.
Os movimentos de autonomia produziram Estados independentes no
mundo pós-colonial, constituindo políticas nacionalistas de identidade que se
revelaram insuficientes. O nacionalismo seria um estímulo necessário para os
movimentos de libertação, apontando futuramente para uma consciência mais
avançada.
No fundo, o que Fanon oferece de mais convincente é uma crítica do
separatismo e da falsa autonomia obtida por uma pura política de
identidade que durou tempo demais e foi utilizada em situações em que
se tornou simplesmente inadequada. O que invariavelmente acontece no
nível do conhecimento é que tornam signos e símbolos de liberdade e
status pela realidade: você quer ser designado e considerado pelo simples
fato de ser designado e considerado. Isso significa que ser apenas um
árabe, negro ou indonésio independente pós-colonial não é um
programa, nem um processo, nem uma visão. Não passa de um ponto
inicial conveniente a partir do qual começa o trabalho verdadeiro e duro.
(Said 2003, 182).

O nacionalismo é uma etapa a ser garantida, mas constitui-se ponto de


partida e não fase conclusiva. Para quem tem a identidade negada e adiada, é
necessário assumir um lugar que se fixa e se move entre algumas identidades.
Said enquadra o nacionalismo como uma filosofia de identidade, transformada
em uma paixão coletivamente organizada.
O problema central em Fanon se relaciona com a ideia de
temporalidade e com as distintas subalternidades representadas pelo outro.
Para Said, o pertencimento a vários mundos, ser um árabe palestino e ao
mesmo tempo um norte-americano, portar uma dupla perspectiva, oferece um
privilégio intelectual e epistemológico.
Podemos reconhecer a suspensão das essencialidades ou fronteiras
estáveis em termos de identidade através da exaltação permanente do
enredamento da experiência com a história. O reencontro com a identidade
deve dar lugar ao processo de uma integração entre os povos e culturas que

300
revista de teoria da história 2 2020

foram colocados à margem. O esvaziamento do eurocentrismo como


perspectiva predominante no mundo intelectual do Ocidente não pode ser
substituído por outro tipo de chauvinismo. A historicidade é redentora para o
risco iminente da construção das identidades estáveis e essencializantes.
A ênfase na descontinuidade do devir histórico demonstra um esforço
antiessencialista característico do discurso pós-colonial. O pós-colonial é visto
aqui como uma perspectiva simultaneamente epistêmica e cronológica que visa
a uma superação de paradigmas e retrata uma etapa conclusiva, ou um “ir
além”, no que se refere a determinados movimentos intelectuais.
Para Said, o problema da essencialização é visto como um progressivo
abandono da história. Há um imperativo em transcender as formulações
direcionadas às questões racial ou nacional. Segundo o autor, todas as culturas
e sociedades constroem a identidade segundo uma dialética na relação entre o
“eu” e o “outro”.
Para Fanon, é imperativo consolidar uma consciência social simultânea
à liberação colonial. A consciência social é tão importante que, sem ela, a
descolonização se converte meramente em uma substituição de uma forma de
dominação por outra. Said e Fanon constroem um apelo ao devir histórico
que, no âmbito da sua diacronia, pode responder, ainda que de forma
contingencial, à problemática da representação.
A inserção das diferentes identidades no interior do processo histórico
atenua a estabilidade ontológica da alteridade. Tanto Said como Fanon
desenvolvem uma objeção aos binarismos identitários, mas ao mesmo tempo
enfrentam o problema da identidade, afirmando que a sua consolidação se dá
no encontro com o “outro”.
Para além da questão nacional, identificamos afinidades entre os dois
autores no que tange ao chamado colonialismo epistemológico. A colonização
aparece com toda força no cerne da linguagem, nos métodos intelectuais e na
identidade cultural. Fanon fala da importância da linguagem no primeiro
capítulo do livro Pele negra, máscaras brancas. O primeiro capítulo, denominado
“O negro e a linguagem”, define que a linguagem forma um mecanismo de
compreensão da dimensão para o outro do homem de cor.
Fanon procura ilustrar com a história do antilhano que serve de
intérprete, ou mesmo o martinicano que mora na França e volta “consagrado”
a Martinica, porque passa a falar fluentemente a língua francesa. Tomar uma
posição diante da linguagem significa resistir à dominação colonial. Esta ocorre
de maneira eficaz quando da assimilação do francês ou qualquer outra língua
de dominação colonial. Todo idioma é um modo de pensar. Quando o
colonizado adota uma linguagem diferente daquela falada na coletividade de
sua origem, isso representa uma clivagem, um deslocamento.
Como se vê, não erramos ao pensar que um estudo da linguagem dos
antilhanos poderia nos revelar alguns traços do seu mundo. Dissemos no
início, há uma relação de sustentação entre a língua e a coletividade.
Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura. O antilhano que
quer ser branco o será tanto mais na medida em que tiver assumido o
instrumento cultural que é a linguagem. (Fanon 2008, 49-50).

301
revista de teoria da história 2 2020

Fanon6 produziu uma crítica radical da colonização através de um olhar


minucioso sobre as estratégias da violência, subordinação e desumanização
produzidas no âmbito das relações coloniais. O autor trabalha a universalidade
da exploração colonial. Fanon recupera Aimé Césaire para falar da
responsabilidade europeia perante o racismo colonial. É o racista que faz o
inferiorizado, é o antissemita que produz o judeu estereotipado, tal como diria
Sartre por meio de Fanon.
À primeira vista, pode parecer surpreendente que a atitude do
antissemita se assemelhe à do negrófobo. Foi meu professor de filosofia,
de origem antilhana, quem um dia me chamou atenção: “quando você
ouvir falar mal dos judeus, preste bem atenção, estão falando de você”.
E eu pensei que ele tinha universalmente razão, querendo com isso dizer
que eu era responsável de corpo e alma, pela sorte reservada a meu
irmão. Depois compreendi que ele quis simplesmente dizer: um
antissemita é seguramente um negrófobo. (Fanon 2008, 112).

A ontologia de Fanon fala de uma “imanência negra”, o que parece


formar um paradoxo com o seu humanismo universal. A dialética que
comporta um ponto de apoio para a liberdade do outro o expulsa dele mesmo.
O negro não é uma potencialidade parcial de alguém. A consciência negra não
pode ser tratada como a lacuna ou uma parte inconclusa. Fanon usa o
afirmativo manifesto do verbo ser, a consciência negra é, ela é aderente a si própria
(Fanon 2008, 112).
Reconhecemos o problema da mediação que se coloca e se relaciona
com a questão da representação. Eu restituo ao outro a sua realidade humana,
diferente da realidade natural. O reconhecimento deve ser recíproco. Para
obter a certeza de si, é preciso o conceito de reconhecimento mútuo.
Na conclusão do livro Pele negra, Máscaras brancas, Fanon afirma a
distinção entre os dois tipos de alienação: o primeiro de natureza intelectual,
que concebe a cultura europeia como um meio de se desligar de sua raça; e o
segundo tipo baseado na exploração de uma raça pela outra, no desprezo de
uma parte da humanidade por uma cultura que se entende como superior. A
forma como se cria a alienação intelectual é produto clássico da sociedade
burguesa.
Percebemos a influência do autor martinicano na crítica das retóricas
multiculturais e antirracistas justamente por elas permanecerem enredadas em
um contínuo discurso de essencialização da diferença. A luta contra o racismo
não é a luta contra o outro, o que pode ser definido por uma inserção dialética
na relação entre as distintas alteridades. A identidade nunca é um fenômeno
concluído, ela é sempre um processo que problematiza a totalidade de um ser.
O processo colonizador ocorre no intervalo contingencial entre a
recusa da dominação e a designação. Esse pressuposto aproxima Fanon do
pensamento pós-colonial e dos esforços de superação dos binarismos
essencialistas.

6 A missão colonial da França na Argélia produziu uma incompatibilidade entre a atuação


profissional de Fanon no hospital de Blida-Joinville na Argélia colonial e sua consciência da
necessidade de resistência à dominação colonial. Fanon renuncia a sua prática psiquiátrica
nesse hospital e pronuncia que a missão colonial deveria ser incompatível com a prática ética
psiquiátrica. Se a psiquiatria é a técnica médica que objetiva habilitar o homem a não ser mais
um estranho ao seu meio e se o argelino permanece um alienado/estrangeiro em seu próprio
país, o que provoca um absoluto estado de despersonalização, existe algo de errado com a
prática profissional do psiquiatra no contexto colonial.

302
revista de teoria da história 2 2020

O lugar do outro não deve ser representado, como às vezes sugere


Fanon, como um ponto fenomenológico fixo oposto ao eu, que
representa uma consciência culturalmente estrangeira. O outro deve ser
visto como negação necessária de uma identidade primordial – cultural
ou psíquica – que introduz o sistema de diferenciação que permite ao
cultural ser significado como realidade linguística, simbólica e histórica.
(Bhabha 2001, 86).

No livro Pele negra, máscaras brancas7, há um desenvolvimento da


polarização entre as raças a partir do enfoque psicanalítico. A implosão de um
sujeito negro libertado do olhar e da fala do outro, o enredamento do negro
escravizado por sua inferioridade e o branco aprisionado no pressuposto de
superioridade, todos esses elementos promovem uma projeção pensada no
interior de uma relação colonial qualificada como neurótica. A negritude se
ergue como uma imitação mimética, mais do que uma fonte original ou matriz.
Na introdução pós-colonial do Pele negra, máscaras brancas, Fanon coloca
que a sua consciência não é dotada de “fulgurâncias essenciais” e que
precisamos caminhar em direção a um novo humanismo.
O branco está fechado na sua brancura. O negro na sua negritude.
Tentaremos determinar as tendências desse duplo narcisismo e as
motivações que ele implica. No início das nossas reflexões, pareceu-nos
inoportuno explicitar as conclusões que serão apresentadas em seguida.
Nossos esforços foram guiados apenas pela preocupação de pôr fim a
um círculo vicioso. Mas também é um fato: alguns negros querem, custe
o que custar, demonstrar aos brancos a riqueza de seu pensamento, a
potência respeitável do seu espírito. Como sair do impasse? Há pouco
utilizamos o termo narcisismo. Na verdade, pensamos que só uma
interpretação psicanalítica do problema negro pode revelar as anomalias
afetivas responsáveis pela estrutura dos complexos. Trabalhamos para a
dissolução total desse universo mórbido. (Fanon 2008, 27).

Fanon fala de uma sociogenia, diferente de uma filogenia e de uma


ontogenia. Quando cita Freud e a possibilidade de um diagnóstico por meio da
análise do fator individual, Fanon o contrapõe à possibilidade de elaborar um
diagnóstico social onde o fator da subjetividade não seja levado em conta
exclusivamente.
Para Bhabha, a demanda de Fanon por uma explicação psicanalítica se
origina das reflexões perversas da cidadania nos atos alienantes do governo
colonial francês. A psicanálise é utilizada nesse contexto para operacionalizar a
transferência numa relação marcada pela neurose e repleta de incertezas.
O artifício da identidade diz respeito a uma divisão que se corporifica
no negro e no branco. A existência fala de uma relação necessária com a
alteridade. A base da identificação tem relação com o lugar do objeto. O
próprio lugar do outro, no desejo colonial, é articulado pelo desejo da inversão
de papéis, o lugar do outro invejado. Para Fanon, inspirado em Lacan. a
repetição do eu se localiza no desejo do olhar e nos limites da linguagem.

7 Esse livro é considerado uma espécie de obra precursora do pós-estruturalismo, porque


valoriza os insights das formações psíquicas do racismo, representativo da primeira fase de
produção do autor. Aos 25 anos, Fanon escreveu essa obra que se destinava a ser sua tese de
doutorado em psiquiatria. Ela foi recusada pela comissão julgadora, uma vez que na época o
paradigma predominante nos estudos da psiquiatria era de inclinação positivista-cientificista, o
que exigia a realização de pesquisas físicas para uma reflexão sobre os fenômenos psicológicos.
A recepção não foi acolhedora.

303
revista de teoria da história 2 2020

Said afirma, no livro Cultura e Imperialismo, que Fanon relê a dialética


hegeliana projetando-a na conjuntura colonial. Na dialética hegeliana do
escravo e do senhor, uma reciprocidade é pressuposta. No contexto colonial
percebe-se a relação dialética entre o senhor e a consciência do escravo. Obter
o reconhecimento é reorganizar o lugar das formas culturais imperiais. A visão
dialética subsidia o que Said chama de “sobreposição de territórios”, uma vez
que esta resgata traços ou formas já estabelecidas pelo Antigo Império.
A emergência do sujeito humano como social e psiquicamente
legitimado depende da negação de uma narrativa originária de realização
ou de uma coincidência imaginária entre interesse ou instinto individual e
a vontade geral. Essas identidades binárias, bipartidas, funcionam em
uma espécie de reflexo narcísico do Um no outro, confrontados na
linguagem do desejo pelo processo psicanalítico de identificação. Para a
identificação, a identidade nunca é um a priori, nem um produto
acabado; ela é apenas e sempre o processo problemático de acesso a uma
imagem da totalidade. (Fanon 2008, 85).

A pele negra atua como um mecanismo da experiência histórica e social


que se desprende necessariamente da sua presença. A alienação, problema
chave nesse contexto, diz respeito à perda dos sujeitos com os vínculos de
sobrevivência e a respectiva superação dessa etapa está no encaminhamento da
emancipação. O seu reconhecimento só se dá mediante o reflexo invertido do
outro. A crítica de Fanon à negritude se desdobra no refletir sobre o risco da
experiência essencialista e a ameaça de ativar uma identidade imutável. O
problema da negritude tem relação com o pressuposto de que a recuperação do
negro essencial inverte o maniqueísmo estruturante que concede ao racismo a
sua lógica básica.
Lo que se intenta, al englobar todos los negros bajo el término “pueblo
negro” es arrebatarles toda posibilidad de expresión individual. Lo que se
intenta así es someterlos a la obligación de responder a la idea que se ha
elaborado acerca de ellos, ¿que será el “pueblo blanco”? ¿No se dice que
sólo existe una raza blanca? ¿Es necesario pues que explique la diferencia
que existe entre nación, pueblo, patria, comunidad? Cuando se dice
“pueblo negro” se supone sistemáticamente que todos los negros están
de acuerdo respecto de ciertas cosas: que existe entre ellos un principio
de comunión. La verdad es que no hay nada a priori que permita suponer
la existencia de un pueblo negro.8 (Fanon 1975, 26).

Compartilhamos a visão de alguns comentadores que estabelecem o


privilégio de uma ambivalência inerente à sua obra. Alejandro de Oto chama
atenção para a chave hegeliana da sua escrita de ascensão a uma consciência
ampliada das relações sociais no colonialismo. O colonizado atravessa as
seguintes etapas: a desumanização que esvazia a sua identidade, passando pelo
reconhecimento da sociedade colonial até o sujeito emancipado que se esforça
por consolidar as liberdades adquiridas.

8 “A intenção ao englobar todos os negros sob o termo “povo negro” é arrebatar toda
possibilidade de expressão individual. O que se intenciona é submetê-los a obrigação de
responder a ideia que se elaborou sobre eles. O que será o povo branco? Não se diz que só
existe uma raça branca? É necessário então que se explique a diferença que existe entre nação,
povo, pátria, comunidade? Quando se diz “povo negro” se supõe sistematicamente que todos
os negros estão de acordo a respeito de certas coisas: que existe entre eles um princípio e
comunhão. A verdade é que não existe nada a priori que permita supor a existência de um povo
negro” (tradução nossa).

304
revista de teoria da história 2 2020

O autor revela o grau de incerteza e tensão em torno do relato da


liberação. Sua concepção de alienação, processo chave para a definição do
confronto colonial, pode ser redefinida.
La alienación en este contexto no es con respecto a un núcleo de
identidad estable, claro en su formulación y definido en términos
históricos que ha sido obturado por el colonialismo, como de alguna
manera es el espíritu que rodea a los postulados de la negritud. No, por
el contrario, la alienación es con respecto a una potencialidad en juego en
los cuerpos de los colonizados, es con respecto a las tramas que fuerzan
a esos cuerpos a representarse de un solo modo y no de otros. Es con
respecto a la ausencia de la alternativa, ya sea en el terreno de la cultura
como en el de la explicación histórica. En ese sentido la alienación del
colonizado es menos con respecto al conocimiento de un proceso global
que le es escamoteado por el poder colonial que con respecto a la
potencia de su constitución como sujeto si se enfrenta a ese poder desde
donde podría constituir otro tipo de genealogías culturales e políticas.9
(Fanon 1975, 27).

Oto enfatiza as incertezas em torno do destino do colonizado após a


libertação, o que acaba por produzir um campo aberto de perspectivas. A
história não tem um sentido predeterminado revolucionário. O sujeito colonial
vive um conjunto de tensões que se conformaram na trama do
reconhecimento mútuo do colonizador e do colonizado, no processo histórico
do encontro.
A alienação e o desejo político são inseridos em um processo de
conflito, que é o que importa em última instância. O desejo de ser outro, de
estar em outro lugar, configura um cenário de onde se pode visualizar as
motivações da resistência e o colonialismo como sistema. O desejo começa a
se manifestar na sociedade colonial e culmina com os processos de resistência à
dominação. O desejo aparece como lacuna, como ausência, e por isso está
imbricado historicamente com a alienação.
Para o negro “não há nada além do destino de desejar ser branco”.
Essa frase denota o sarcasmo do desejo conflituoso. Essa expressão denuncia
ironicamente a busca artificial de um passado por meio da rearticulação do
desejo colonial, o que conforma uma chave de entendimento do projeto
político fanoniano.
O desejo pelo outro é fundador da subjetividade hierarquizada, ainda
que formatada pelo espelho reflexivo do outro. O “ser outro” não requer a
volta ao passado ou a autenticação histórica típica de um movimento nativista.
A “ilegitimidade” do colonizado conforma o seu futuro histórico, político e
social.
Percebemos que a historicidade tem relação com a alienação e a
constituição de uma subjetividade resistente no âmbito do processo colonial.
Em Fanon, o primado do desejo subjetivo é muitas vezes criticado como uma
concessão teórica ao existencialismo sartriano e o suposto atenuante a uma

9 “A alienação neste contexto não é com respeito a um núcleo de identidade estável, claro

em sua formulação e definido em termos históricos, que tem sido obturado pelo colonialismo,
como de alguma maneira é o espírito que rodeia os postulados da negritude. Não ao contrário,
a alienação é com respeito a uma potencialidade em jogo nos corpos dos colonizados, é com
respeito às tramas que forçam esses corpos a representar-se de uma só forma e não de outras.
É com respeito à ausência da alternativa, no terreno da cultura, como no da explicação
histórica. Nesse sentido a alienação do colonizado, é menos com respeito ao conhecimento de
um processo global que foi escamoteado pelo poder colonial, do que com respeito à potência
da sua constituição, como sujeito se enfrenta a esse poder onde poderia se constituir outro tipo
de genealogia cultural e política” (tradução nossa).

305
revista de teoria da história 2 2020

identidade mais coletiva inserida na experiência histórica de um grupo. O


tempo fanoniano é o tempo do agora, do presente, sem projeções para o
futuro ou resgates míticos e primordiais do passado.
A historicidade se constrói no relato e não nas marcas factuais do
processo histórico tal como captado pela historiografia. A historicidade é
adquirida por meio da experiência do sujeito que habita o espaço colonial. O
esvaziamento da alienação denota a única possibilidade de sobrevivência do
subalterno e o prognóstico desse processo não garante que este possa
acontecer na íntegra. O risco da mimesis reflexiva na etapa da libertação é uma
possibilidade com que se deve contar. Talvez por isso a questão do reencontro
com o nacional como primeira etapa não seja uma garantia de consolidação da
libertação colonial.
Libertar, no sentido dado por Fanon, é muito mais do que se
emancipar do domínio colonial e desenvolver uma nação. É preciso ampliar o
horizonte de expectativas para a criação de novos signos políticos, novas
experiências históricas processadas na dialética da libertação.
La dimensión fanoniana de la nación ofrece un inesperado campo de
reflexión. Para Fanon la cultura nacional era el lugar de la afirmación
identitária de un sujeto en expansión. Esse sujeto, por lógica de su propia
producción histórica es una impugnación tanto del colonizador como del
colonizado.10 (Fanon 1975, 41).

A desorganização da episteme colonial pensada originalmente no


dualismo rígido e opositor deve ser transposta e, paralelamente, deve se levar
em conta a desestabilização do universo colonial por meio da violência. O
primeiro capítulo do livro Condenados da terra denuncia a necessidade de
dissolução de um corpo que não é reconhecido, está dissimulado tal como em
Pele negra e máscaras brancas.
Para Fanon, ser colonizado é compartilhar uma linguagem exógena, e
isso tem intensas implicações para a consciência. Quando o argelino fala
francês, significa que a coação se dirige à aceitação da consciência coletiva
francesa. A categoria racial ou étnica conforma a sua existência a partir da sua
negação.
A questão central que se coloca é: de que forma o oprimido, o
colonizado, pode romper com o círculo de opressão e substancializar o
humanismo universal? A afirmação do humanismo universal e a relativização
de uma essencialidade aparecem com energia tanto em Pele negra, máscara branca
como em Os Condenados da terra. Albert Memmi11, Thomas Cassirer e Michael
Twomey (1973) desenvolvem essa perspectiva no artigo The impossible life of
Frantz Fanon.
Memmi se refere a uma “ilusão branca” em relação ao conflito de
identidade na infância e juventude de Fanon. A sua identificação enviesada
com a Martinica e o seu posterior alinhamento com o movimento de
independência da Argélia são pensados a partir dessa trajetória descontínua de
militância. Memmi (1973) se pergunta: por que a Argélia? Quando Fanon

10 “A dimensão fanoniana da nacão oferece um inesperado campo de reflexão. Para Fanon


a cultura nacional era o lugar da afirmacão identitária de um sujeito em expansão. Esse sujeito,
por lógica da sua própria producão histórica, é uma impugnação, tanto do colonizador como
do colonizado” (Tradução nossa).
11 Albert Memmi nasceu na Tunísia em 1921. Durante a segunda guerra foi preso e levado

para um campo de trabalho forçado na Tunísia. Após a independência do seu país migrou para
a França, adotando a nacionalidade francesa em 1973.

306
revista de teoria da história 2 2020

descobre a fraude da Martinica e uma suposta equivalência com a cidadania


francesa, no interior do seu lugar de origem, ele rompe com a França e com o
“falso humanismo europeu”.
A hipótese de Memmi é a de que a identificação com a Argélia
substituiu a identidade martinicana, supostamente inacessível, porque eivada de
um conflito ambivalente do “se sentir inclusivamente Francês”. Nesse
contexto, destacamos a breve influência de Aimé Césaire, como já assinalado
aqui. A defesa da negritude foi recusada por Fanon que não via nessa afirmação
uma solução para o problema do racismo. Resistir ao contraponto branco não
significava fortalecer uma visão “essencialmente negra”.
Memmi formula sua própria hipótese em torno da preferência de
Fanon pela Argélia, em detrimento da Martinica, como mecanismo
fortalecedor de uma identidade colonizada que rejeita “a mãe terra” a partir do
amadurecimento de uma consciência reconstituída. Quando o colonizado
finalmente redescobre a sua identidade, ele precisa encontrar fontes
psicológicas e materiais para levar adiante a luta contra o opressor. A Martinica
não poderia ser a fonte subsidiária desse movimento na concepção fanoniana.
For the time being, at least, Martinique could help Fanon in neither of
these endeavors, neither in the negative nor positive effort to free
himself. As a department of France, Martinique still believed too much
in its integration into the French community to view it as an outsider.
Martinique did not even dare imagine separation from France. Revolt
and armed struggle seemed scandalously matricidal, even though the
mother was suspected of not being a very good mother. Was Fanon then
going to fight alone?12 (Memmi 1973, 21).

A identificação com a Argélia é entendida como uma experiência que o


permite descobrir a África, que oferecia um patrimônio cultural e condições
para a luta pela libertação. A Argélia13 seria uma forte substituta para a
Martinica.
Fanon falava em unidade africana ou afro-asiática sem passar pela fase
chauvinista, nacional ou burguesa das lutas pela liberdade colonial. A sua
resistência aos nacionalismos aparecia energicamente após a etapa argelina. Ele
gradualmente se identificou com o destino da Argélia, depois com o terceiro
mundo e, por fim, com toda a humanidade.
Em Memmi, o abandono da negritude em nome do universal aparece
como uma concepção errônea. O autor fala em falso universalismo ou
humanismo abstrato, baseado na negligência de toda e qualquer identidade
específica. A cultura universal é feita por elementos particulares.
Reconhecemos um paradoxo no engajamento de Fanon na luta pela libertação
argelina que certamente possuía um caráter de movimento nacional.

12 “Até o momento, ao menos, a Martinica não pode ajudar Fanon em nenhuma destas
investidas, seja no esforço negativo ou positivo de se libertar. Como um departamento da
França, a Martinica ainda acredita muito na integração junto à comunidade francesa para se ver
como uma estrangeira. A Martinica nem ao menos ousa imaginar se separar da França. Revolta
e luta armada parecem escandalosamente matricidas, mesmo que a mãe fosse suspeitar de não
ser uma mãe muito boa. Fanon iria lutar sozinho?” (Tradução nossa).
13 O livro Por La revolución africana expande o debate sobre a guerra Franco-Argelina e

mostra o grau de expansão das questões argelinas em relação à descolonização do universo


mais amplamente africano, além de ilustrar os dilemas inerentes à militância de Fanon na FLN.
O tom de manifesto do livro não diminui a análise lúcida do caráter exploratório da
colonização francesa na Argélia, além de vincular o movimento de libertação argelina à
amplitude do movimento de descolonização na África.

307
revista de teoria da história 2 2020

O papel desempenhado pelos intelectuais franceses na revolução


argelina aparece nitidamente nos artigos reunidos no livro em questão. Para
Fanon, é um imperativo que os intelectuais se posicionem a favor dos
colonizados. Há um contexto de um personagem que resiste globalmente ao
colonialismo francês, não por simplismo ou discriminação, e sim porque todo
francês mantém com o argelino relações baseadas na força.
As críticas à esquerda e aos democratas franceses se direcionavam mais
à ausência e à superficialidade das suas posições mais altruístas do que
propriamente à dominação colonial. Fanon define assim a esquerda francesa:
“La guerra da Argelia tiende a convertirse en Francia, en el seno de la
izquierda, en una enfermedad del sistema francés tal como la inestabilidad
ministerial: las guerras coloniales son un tic de Francia, una parte del panorama
nacional, un detalle costumbrista”14 (Fanon 1975, 86).
O democrata francês tem um compromisso com a negação da
colonização francesa na Argélia no que tange à forte opressão militar e policial.
Fanon contesta a incorporação da Argélia vista como prolongamento da
França. Em tom de manifesto, afirma que depois da França ter domesticado
durante mais de um século o povo argelino, ela se encontrava prisioneira da
sua própria conquista e incapaz de desfazer essas relações ou as novas
orientações.
Es necesario que los demócratas franceses vayan más allá de las
contradicciones que esterilizan sus posiciones si quieren efectuar una
auténtica democratización con los colonialistas. Á medida que la opinión
democrática francesa tenga menos reticencias su acción podrá ser eficaz
y decisiva. Debido a que la izquierda obedece inconscientemente el mito
de una Argelia Francesa, su acción se contenta con aspirar a una Argelia
donde reinará más la justicia y la libertad o, a lo máximo, una Argelia
gobernada menos directamente por Francia. El chovinismo pasional de
la opinión francesa respecto de la cuestión argelina hace presión sobre
esta izquierda, le inspira una prudencia excesiva, sacude sus principios y
la coloca en una situación paradójica y rápidamente estéril.15
(Memmi 1976, 96).

Fanon reivindica que a esquerda francesa se manifeste objetivamente


contra o colonialismo na Argélia e que mantenha um posicionamento favorável
ao seu movimento de libertação. A FLN pede às forças democráticas que se
despojem dos seus ideais difusamente humanistas e encarnem o rigor
doutrinário de um anticolonialismo.
A luta da Argélia marca um encontro com a totalidade, o que influi
decisivamente nas lutas anticoloniais. A vontade de libertação do povo argelino
impossibilita a ficção da Argélia Francesa e ao mesmo tempo funciona como

14 “A guerra da Argélia tende a se converter na França, no seio da esquerda, numa doença


do sistema francês tal como a instabilidade ministerial: as guerras coloniais são um tique da
França, uma parte do panorama nacional, um detalhe costumeiro” (Tradução nossa).
15 “É necessário que os democratas franceses possam ir além das contradições que

esterilizam suas posições, se querem efetuar uma autêntica democratização com os


colonialistas. À medida que a opinião democrática francesa tenha menos reticências, sua ação
poderá ser eficaz e decisiva. Como a esquerda obedece ao mito de uma Argélia Francesa, sua
ação se contenta com aspirar a uma Argélia, onde reinará mais a justiça e a liberdade, ou no
máximo uma Argélia governada menos diretamente pela França. O chauvinismo passional da
opinião francesa relacionada à questão faz pressão sobre esta esquerda, lhe inspira prudência
excessiva, sacode seus princípios e a coloca em uma situação paradoxal e rapidamente estéril”
(Tradução nossa).

308
revista de teoria da história 2 2020

uma intimidação ao povo francês, para que se despoje da mentalidade


colonialista.
O próprio lugar de identificação retido na tensão da demanda e do
desejo é um espaço de cisão. A fantasia do nativo é precisamente ocupar o
lugar do senhor enquanto mantém seu lugar no rancor vingativo do escravo. A
pele negra e a máscara branca não formam uma divisão dual ou uma imagem
duplicadora, dissimuladora do ser a partir de dois lugares simultâneos. Aqui
reconhecemos o problema central da identidade colonial e suas vicissitudes.
O homem negro deseja o confronto de objetificação com o outro. Este
é visto como a negação de uma identidade primordial. Se o sujeito desejado
nunca é o eu essencial, o outro projetado também não é ou outro verdadeiro,
embora o outro projetado se sujeite a uma medida de objetividade. Essa
projeção sempre sugere uma falta ou uma desmedida. A “estratégia de
duplicidade”16 é elaborada como um indício da falta dentro da qual a relação do
sujeito com outro se conforma.
Não é o eu colonialista, nem o outro colonizado, mas a perturbadora
distância entre os dois que constitui a alteridade colonial, o artifício do homem
branco no corpo do homem negro. É somente pela compreensão da
ambivalência do desejo do outro que podemos evitar a adoção cada vez mais
tentadora da noção da alteridade homogeneizante.
Vimos que o colonizado sonha sempre em se instalar no lugar do
colono. Não em se tornar um colono, mas em substituir o colono. Esse
mundo hostil, pesado, agressivo, pois que rechaça com todas as suas
asperezas a massa colonizada, representa não o inferno do qual todos
desejariam afastar-se o mais depressa possível, mas um paraíso ao
alcance da mão, protegido por terríveis molossos. (Fanon 1979, 39).

Fanon propõe que no sistema poder-saber que sustenta o colonialismo,


é o homem branco que reclama a categoria do outro, ou seja, há um
monopólio do homem branco pelo outro para assegurar uma ilusão do acesso
à subjetividade. O interesse pela psicanálise, especialmente pelo pensamento de
Lacan no problema da identificação e na diagnose do caráter neurótico da
relação colonial, culmina com a investigação da dinâmica da alteridade
psicológica. Reconhecemos os limites da nossa análise ao não enveredar por
um rastreamento das aproximações do pensamento de Fanon e da teoria
psicanalítica. O que nos interessa precisamente no escopo desta reflexão é a
possível aproximação entre a obra de Fanon e Said, no que tange ao problema
da representação e o campo da historicidade.
Investigar o problema da oposição entre a estabilidade das identidades
do colonizado e do colonizador na sincronia e a instabilidade movida pela
diacronia do processo histórico nos ajuda a compreender alguns dilemas dos
autores estudados e da sua respectiva inserção no campo da produção pós-
colonial.

16 As referências à psicanálise na produção fanoniana, especialmente o pensamento


lacaniano, são muito presentes. Por uma questão de limites e objetivos do nosso artigo não
pretendemos desenvolver e rastrear a genealogia dessa apropriação.

309
revista de teoria da história 2 2020

A descolonização, sabemos, é um processo histórico, isto é, não pode ser


compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna
transparente para si mesma senão na exata medida em que se faz
discernível o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A
descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas
que extraem sua originalidade precisamente dessa espécie de
substantificação que segrega e alimenta a situação colonial.
(Fanon 1979, 26).

A particularidade da obra de Fanon vai muito além de uma reação


defensiva do colonizado, cujo problema consiste em aceitar implicitamente e
deixar de superar as oposições binárias entre o europeu e o não-europeu.
Condicionado por uma dominação sem remorsos, sua oposição dialética
emerge como se o nativo se mostrasse cansado da lógica que o reduz, da
geografia que o segrega, da ontologia que o esvazia de humanidade e da
epistemologia que o limita a uma essência. A força do colonialismo é
sustentada pela antinomia da resistência.
Fanon resgata a teoria de Lukács e a transfere para a ambiência do
espaço colonial, onde territórios, culturas, saberes e mesmo ontologias são
reificadas. Para Fanon, o movimento totalizante é a violência insurrecional. A
violência reúne mundos separados, atribuídos ao colonizado e ao colonizador.
Para Fanon, a consciência nacionalista pode levar com facilidade à
rigidez estática, que visa substituir as autoridades e os burocratas brancos por
equivalentes colonizados. Não há nenhuma garantia de que os funcionários
nacionalistas não repetirão os velhos arranjos coloniais. Fanon alerta para os
riscos do nativismo e da xenofobia no processo de descolonização. O tempo
da libertação é reconhecido como um processo de ambivalência e de indecisão
de papéis representacionais.
No livro Os condenados da terra, Fanon traça uma demografia da cidade
colonial que reflete sua visão da estrutura psíquica da relação entre colonizador
e colonizado. O autor alerta para a ameaça dos perigos da fixidez e do
fetichismo das identidades no interior da consolidação das culturas coloniais. A
demografia da cidade colonial reflete a sua visão da dualidade psíquica da
relação colonial. A estratégia da subversão possui um duplo registro, a saber, o
psíquico e o político.
Nesse mesmo livro, o imperialismo é lido como um encontro coletivo
que revigora e redireciona o perfil identitário dos nativos em direção a uma
nova concepção de história. Said reconhece em Fanon um leitor de Lukács e
afirma que a fragmentação e a reificação, como efeitos perversos do
capitalismo, estariam presentes na visão sobre o colonialismo no livro Os
Condenados da terra.
Reconhecemos a importância da análise sobre a separação entre a
consciência subjetiva e o mundo dos objetos, elementos apropriados por
Fanon que aparecem com intensidade na sua obra póstuma supracitada. Said
refaz o percurso epistemológico da busca das explicações lukacsianas que
subsidiam a visão sobre o colonialismo de Fanon.
Percebemos a centralidade do processo de reificação. Esse é
originalmente um mecanismo de funcionamento do fetichismo, da mercadoria
que sintetiza, em termos práticos e teóricos, o obstáculo a ser ultrapassado. A
questão da reificação se origina nos escritos de Marx e possui uma
contrapartida decisiva na teoria de Weber e seus respectivos processos de
racionalização. O próprio Lukács avalia sua obra de juventude como a
consolidação de um mecanismo contraditório que se desenvolve em paradoxo
com o marxismo posterior. A sua análise da reificação encaminha o argumento

310
revista de teoria da história 2 2020

de que esta pode ser superada pela teoria da totalidade na consciência


proletária.
Seguimos os rastros de um Lukács que pensa a História por meio da
alteração das formas estruturais através do qual se dá o confronto do homem
com o seu meio conformador da objetividade do processo de vida. Lukács, em
geral, é associado ao historicismo alemão, quase como um tributário, devedor
de uma percepção que problematiza a relação sujeito–objeto e que faz do
observador o próprio objeto.
Para Said, a tarefa da crítica é precisamente reler o texto em termos
totalizantes, como se a separação entre texto e mundo fosse lida como a
consolidação da reificação. Portanto a reificação é um suporte possível para a
teoria literária de Said.
Se nos orientamos pela análise da obra de Lukács realizada por István
Mészáros (2013), a fragilidade da totalidade e sua distância em relação ao
suporte histórico é patente. A categoria de mediação deveria ser plenamente
saturada de concretização. Essa fragilidade dificulta a superação do dualismo
entre sujeito e objeto.
A adesão ao marxismo é vista nesse contexto como processual e tem
relação direta com a centralidade da dialética na obra Lukács. Para Mészáros, o
livro História e consciência de classe define a questão da totalidade num alto nível
de abstração e generalização. A totalidade nesse contexto significa a realidade
concreta ilustrada por meio do processo histórico social.
O primeiro Lukács foi incapaz de formular o conceito de “totalidade
concreta” porque não estava em posição para conceber essas mediações
que poderiam transcender os “detalhes, fragmentos, coisas isoladas do
“imediatamente dado” na unidade última de uma totalidade dialética em
mutação dinâmica. A descrição de um conglomerado não mediado,
segmentado, não interconectado e congelado de coisas discretas só
poderia gerar um conceito igualmente estático de totalidade; um
nostálgico “postulado de valor” da unidade. Na época em que Lukács
escreveu História e Consciência de classe, sua visão mudou qualitativamente.
(Mészáros 2013, 58-59).

Mediante o conceito de totalidade, Lukács enfrenta o problema da


mediação e sua concretude, que é dinamicamente atravessada pela realidade
histórica. O encontro com o marxismo estabelece respostas para esse dilema
através das atividades práticas críticas. Mészáros sintetiza a importância da obra
em questão, afirmando que ela levanta elementos acerca da compreensão da
relação dialética entre “sujeito e objeto”, “alienação e objetificação”, “realidade
e reflexão”.
O próprio Lukács considera História e Consciência de Classe um livro
repleto de perspectivas idealistas, um esforço para ir além de Hegel por
intermédio de Marx. Para Mészáros, a crise com o livro analisado produz um
retorno ao realismo ingênuo após 1923. Lukács assume no prefácio ao livro
que o recurso à dialética hegeliana significava um duro golpe à tradição
revisionista. Afirma-se que o problema do parentesco entre o materialismo
histórico e a filosofia hegeliana aparece com toda a força na temática da
realidade.
No livro citado acima Lukács estabelece a centralidade do proletariado
como o grupo que corporifica e materializa a abstração da condição de toda a
humanidade. Nas condições de vida desse grupo social, a sociedade vive um
paradoxo em sua plenitude, porque nele o homem se perdeu dele mesmo e, ao
mesmo tempo, viveu a culminância da consciência dessa perda.

311
revista de teoria da história 2 2020

O paradoxo aparece na medida em que a libertação ocorre na supressão


das condições de vida humanas que resumem sua situação. A evolução da
sociedade caminha em duas rotas paralelas, a perspectiva de classe e o
conhecimento da realidade produzido pelo materialismo dialético. A luta
oscilante se reflete numa luta ideológica pela consciência, pelo desvelamento
ou dissimulação do caráter de classe da sociedade.
Como o proletariado é impulsionado pela história, a agudização da
consciência de classe surge na contradição dialética entre o interesse imediato e
o fim último, entre o fator individual e a totalidade.
O “reino da liberdade”, o fim da “pré-história da humanidade” significa
precisamente que as relações objetificadas entre os homens, que as
reificações começam a restituir seu poder ao homem. Quanto mais esse
processo se aproxima do seu fim, tanto maior é a importância da
consciência do proletariado sobre sua missão histórica, isto é, da sua
consciência de classe tem de determinar cada uma dessas ações. Pois o
poder cego das forças motrizes só conduz “automaticamente” ao seu
fim, em direção ao auto aniquilamento, enquanto esse ponto estiver ao
seu alcance. Quando o instante da passagem ao “reino da liberdade” é
dado de modo objetivo, isso se manifesta com mais precisão no fato de
as forças cegas impelirem para o abismo de uma forma realmente cega,
com uma violência cada vez maior e aparentemente irresistível, e apenas
a vontade consciente do proletariado pode proteger a humanidade de
uma catástrofe. Em outros termos, desde que a crise econômica final do
capitalismo entrou em cena, o destino da revolução (e com o ela o da
humanidade) depende da maturidade ideológica do proletariado, da sua consciência de
classe. (Lukács 2012, 173-174).

Lukács chama atenção para o caráter mercantil e desumano da


apropriação da força de trabalho como mercadoria pelo trabalhador. A auto-
objetivação, o tornar-se mercadoria, revela a força do caráter desumanizado da
relação mercantil. A reificação penetra na consciência dos homens no
desenvolvimento capitalista de maneira cada vez mais profunda. Com a
especialização do trabalho, perdeu-se toda imagem da totalidade.
Reconhecemos alguns vínculos entre Lukács e Simmel no que tange
aos dilemas em torno da separação sujeito-objeto. O que nos interessa na
conexão em questão pode ser identificado pela analogia do fetichismo da
mercadoria em Marx e o destino dos nossos conteúdos culturais.
Recorremos à análise de Marcos Nobre (2001) para levantar questões
estruturais em Lukács. A vinculação estreita Simmel-Lukács aparece na
analogia das duas formas de objetificação. Nobre levanta os problemas
referentes ao desvinculamento do conteúdo econômico do fenômeno da
reificação. A associação entre o fetichismo da mercadoria como forma de
objetividade e o comportamento do sujeito definem a dimensão do projeto de
Lukács.
Interessa-nos recorrer à demarcação do advento da filosofia da história
na obra História e consciência de classe. Se o historicismo se mostra incapaz de
explicar o acontecimento histórico, transformando a realidade em coisa em si,
Nobre mostra que somente com a conceitualização do fenômeno da reificação,
por meio da categoria de totalidade, e da estrutura da forma mercadoria que a
história se converte em ciência histórica. O autor levanta a hipótese sobre a
crise posterior vivida por Lukács em torno dos escritos de História e consciência
de classe em função do caráter historicista e weberiano do livro no contexto de
adesão sólida aos princípios da relação entre economia e dialética no ideário
marxiano.

312
revista de teoria da história 2 2020

O problema da identidade especulativa da consciência da classe


operária e da teoria da sociedade nos interessa e aproxima a teoria lukacsiana
da obra de Frantz Fanon, o que constitui nosso foco de interesse.
A passagem de uma constatação em torno da existência da reificação e
da superação desse fenômeno é nomeada como contratendência da reificação.
O esvaziamento do maniqueísmo aparece através de um repertório do
contingente, e a perspectiva que aponta para o futuro demonstra que, no
contexto global neocolonialista, as fronteiras do colonizado e do colonizador
seriam progressivamente diluídas e a prática da violência não será mais efetiva.
A questão da violência aparece de forma ambivalente no livro Condenados da
terra, o que suscitou inúmeras leituras equivocadas desse componente da obra
de Fanon.
Devemos lembrar o contexto de produção do livro: a sua escrita foi
contemporânea aos últimos meses de vida do autor, consumido por um desejo
e comprometimento de deixar um legado que deveria apontar as
complexidades da luta anticolonial e estabelecer orientações para a
reorganização da ex-colônia. Além da tipologia das doenças psicopatológicas
que envolveram os protagonistas da disputa colonial, havia uma convocação
para a ampliação dos horizontes da luta anticolonial.
Na obra citada, Fanon disserta sobre as desventuras da ideologia
nacional, argumentando que o futuro não traria a libertação e sim uma
extensão do imperialismo, a menos que a consciência nacional, no momento
de sua vitória, se transformasse de alguma maneira em uma consciência social.
Percebemos uma desconfiança do nacionalismo anticolonial, uma vez que ele é
representado como uma derivação política da experiência ocidental.
A questão nacional tal como concebida no livro Os condenados da terra
nos remete ao debate teórico sobre a questão das ontologias identitárias. Para
alguns comentadores da obra de Fanon, tal como Anthony Alessandrini (2009),
essa preocupação se insere na segunda etapa da sua obra.
O Fanon do livro Pele negra e máscaras brancas seria uma espécie de
precursor do pós-estruturalismo quando valoriza a genealogia das formações
psíquicas do racismo, enquanto o segundo Fanon, identificado pelas reflexões
inerentes ao livro Os condenados da terra, aparece como um teórico do
humanismo pós-colonial.
Acompanhando a divisão da obra de Fanon realizada por Alessandrini,
devemos estabelecer um recorte que privilegie o segundo Fanon para uma
aproximação com algumas reflexões características da obra de Edward W. Said.
Alessandrini chama atenção para uma inspiração hegeliana na
concepção de história presente na parte intitulada Da violência, onde emerge
uma visão da história na qual o colonizado, por meio da violência crescente, vai
inevitavelmente superar o colonialismo e substituir os colonizadores.
No resto do livro, há uma progressiva reconsideração dessa
possibilidade, em que o contexto de substituição dos colonizadores por uma
elite de colonos deve ser visto com um grau de ceticismo. A continuidade
dessa reflexão inibe uma visão maniqueísta do processo colonial. Por outro
lado, depreender essa ambivalência da obra de Fanon significa um risco parcial,
porque o autor produz uma leitura crítica do racismo e do colonialismo, o que,
por vezes, recorre à reafirmação de uma forma de identidade mais autêntica
que pode emergir da etapa pós-colonial. O autor aponta a inexistência de uma
narrativa da culminância de um momento histórico finalista e conclusivo,
encarnada na práxis pós-colonial.

313
revista de teoria da história 2 2020

A oscilação entre uma ontologia crítica e a possibilidade da agência


humana em torno da resistência parece ser um dilema constante em Fanon.
Nesse contexto lembramos da aproximação teórica de Fanon e Said no que
tange aos dilemas entre um ethos nacional e o cosmopolitismo pós-colonial
avesso às essencialidades binárias. O dilema entre o maniqueísmo e o
humanismo mais universal permeia a obra de Fanon e parece visível na
produção crítica da sua obra, especialmente na leitura produzida por Homi
Bhabha. Para este autor, a negação do outro sempre extrapola as bordas da
identificação e revela um lugar perigoso onde se fundem agressividade e
identidade.
Entretanto, o sonho hegeliano de Fanon de uma realidade humana em-
si-e-por-si é ironizado, até satirizado, por sua visão da estrutura
maniqueísta da consciência colonial e sua divisão não-dialética. O que ele
diz em [Os condenados da terra] a respeito da demografia da cidade colonial
reflete sua visão da estrutura psíquica da relação colonial. As áreas dos
nativos e colonos, como a justaposição de corpos negros e brancos, são
opostas, mas não a serviço de uma unidade superior. Nenhuma
conciliação é possível, conclui ele, pois, dos dois termos, um é supérfluo.
(Bhabha 2001, 99-100).

Para Bhabha, a ambivalência do pós-colonial em Fanon permite uma


adequação que pensa a diferença cultural como categoria enunciativa,
contraposta a noções relativistas de diversidade cultural ou ao exotismo da
diversidade de culturas. Bhabha percebe no interior de uma visão hegeliana
uma história esperançosa, a restauração de um eu existencialista que corporifica
o subalterno e a demarcação psicanalítica que visualiza traços neuróticos do
racismo.
A história da alienação da natureza humana representada na condição
colonial, mais do que a artificialidade da opressão de um grupo sobre o outro, é
o esvaziamento da condição humana. A indagação do próprio self é atravessada
pela projeção do outro, que desvia a sua presença corporal mediante a
representação externa.
O sujeito colonial é sempre “determinado externamente” por meio da
fantasia e da imagem, portanto, ilustrado nas margens da história. Fanon parte
das ambivalências da identificação para as identidades antagônicas da alienação
política e da discriminação cultural. Bhabha considera que Fanon se precipita
ao nomear o Outro e personalizar sua presença na linguagem do racismo
colonial. É do conjunto de tensões psíquicas e políticas que pode emergir uma
estratégia de subversão.
A condição de subalterno, daquele que tem que viver sob um signo
necessário de identidade, real ou imaginário, promove uma interrogação que
pode desviar para o campo da ambivalência a autoridade da fala. A leitura de
Bhabha enaltece o potencial de ambivalência que a instância subalterna
“duplamente inscrita” possui, ao dimensionar a presença e a ausência do
sujeito.

314
revista de teoria da história 2 2020

O subalterno ou metonímico não são nem vazios nem cheios, nem parte
nem todo. Seus processos compensatórios e vicários de significação são
uma instigação à tradução social, a produção de algo mais além, que não é
apenas o corte ou lacuna do sujeito, mas também a interseção de lugares
e disciplinas sociais. Este hibridismo inaugura o projeto de pensamento
político defrontando-o continuamente com o estratégico e o
contingente, com o pensamento que contrabalança seu próprio “não
pensamento”. Ele tem de negociar suas metas através de um
reconhecimento de objetos diferenciais e níveis discursivos articulados
não simplesmente como conteúdos, mas em sua interpelação como formas
de sujeições textuais ou narrativas – sejam estas governamentais, judiciais
ou artísticas. (Bhabha 2001, 103).

Para Bhabha (2001), a relação entre poder e saber coloca os sujeitos em


uma relação de reconhecimento que não se insere em uma simetria. A crítica
do autor indiano indica o sentido de uma relativa simplificação histórica e
teórica em que o discurso e o poder colonial são de propriedade exclusiva do
colonizador, sendo que a plenitude do estereótipo está sempre ameaçada pela
falta.
Para Said, o problema da essencialização é visto como um progressivo
abandono da história. Há um imperativo em transcender as formulações
direcionadas às questões racial ou nacional. Para Said, todas as culturas e todas
as sociedades constroem a identidade segundo uma relação dialética entre o eu
e o outro.
Se venho citando Fanon com tanta frequência, é porque, a meu ver, é ele
quem expressa da forma mais intensa e decisiva a imensa guinada
cultural do terreno da independência nacionalista para o domínio teórico
da libertação. Essa guinada ocorre, sobretudo, nos países onde o
imperialismo subsiste, depois que a maioria dos outros estados coloniais
já conquistou a independência: por exemplo, Argélia e Guiné-Bissau. Em
todo caso, só é possível entender Fanon se compreendermos que sua
obra é uma resposta a elaborações teóricas produzidas pela cultura do
capitalismo ocidental tardio, recebida pelo intelectual nativo do terceiro
mundo como uma cultura de opressão e escravização colonial. Toda a
oeuvre de Fanon consiste na tentativa de vencer a rigidez dessas mesmas
elocubrações teóricas como um ato de vontade política, de voltá-las
contra seus próprios autores de modo a conseguirem, nos termos que ele
toma de empréstimo a Césaire, inventar novas almas. (Said 1993, 332).

Para Fanon, é imperativo criar uma consciência social simultânea à


liberação colonial. A consciência social é tão importante que, sem ela, a
descolonização se converte meramente em uma substituição de uma forma de
dominação por outra. A transição de uma consciência para outra produz o
reencontro com o verdadeiro humanismo.
As imagens utilizadas por Fanon são orgânicas. O antagonismo cultural
e político do imperialismo é biológico. Nas metáforas biologizantes, o
colonialismo é um corpo putrefato, e para o colonizado a vida surge do
cadáver em decomposição do colono. O nascimento é associado ao
surgimento de uma nova nação e a morte atribuída ao estado colonial.
As divisões entre colonizador e colonizado são exploradas tal como na
obra de Albert Memmi. A tese de Memmi objetiva um debate em torno da
definição da identidade do colonizado em relação ao colonizador. A
representação do colonizador tem relação com a sistemática das justificativas
ideológicas do colonialismo. A ideologia que fundamenta a dominação colonial
deve partir da centralidade da superioridade do colonizador.

315
revista de teoria da história 2 2020

Nada pode escapar à engrenagem que articula e configura a vida


econômica, política e cultural da colônia. Tudo se estrutura e se define em
função da empresa colonizadora. A situação colonial é uma totalidade
constituída por interesses antagônicos e contraditórios. Na primeira etapa da
colonização essa contradição permanece latente, mascarada pela aparente e
provisória acomodação do colonizado.
A representação do colonizado tem estreita vinculação com a
elaboração de um ideário racista que naturaliza um elemento cultural,
transforma o fato social em essência atemporal. O racismo resume e simboliza
a relação que une colonizador e colonizado. Dada a essência diferenciadora do
racismo, o colonialismo ganha uma essência metafísica que o situa além do
tempo, fora da história, em caráter permanente e imutável.
Para Memmi, o colonialismo engendra um paradoxo na sua existência
uma vez que fabrica simultaneamente o colonizador e o colonizado e traz no
seu interior elementos que precipitariam o esgotamento desse sistema. Nesse
contexto, a mais grave carência do colonizado é ser excluído do processo
histórico. A condição de colonizado é contingencial e ocorre em função do
processo colonizatório. Memmi não acredita na assimilação; embora com
aspectos universalistas, ela se torna impossível por definição.
A assimilação e a colonização, vistas em sua antinomia, tendem a
confundir colonizadores e colonizados e a suprimir a relação colonial. A
colonização é um processo falseador das relações humanas que destrói as
instituições e corrompe os homens. Percebemos nesse contexto de
representação sobre a colonização afinidades com o pensamento de Fanon no
diagnóstico sobre as identidades dissociadas no processo de dominação
colonial. A supressão da colonização é vista como condição para “a
reconquista de si” (Memmi 2007, 126).
Para que o colonizador seja inteiramente senhor, não basta que o seja
objetivamente, é preciso ainda que acredite na sua legitimidade; e, para
que essa legitimidade seja completa, não basta que o colonizado seja
objetivamente escravo, é necessário que se aceite como tal. Em suma o
colonizador deve ser reconhecido pelo colonizado. O laço entre o
colonizador e o colonizado é assim, destruidor e criador. Destrói e recria
os dois parceiros da colonização em colonizador e colonizado: um é
desfigurado em opressor, em ser parcial, mau cidadão, trapaceiro,
preocupado unicamente com seus privilégios, com sua defesa a todo
preço; o outro em oprimido, partido no seu desenvolvimento,
conformando–se com o próprio esmagamento. Assim como o
colonizador é tentado a aceitar-se como colonizador, o colonizado é
obrigado, para viver, a aceitar-se como colonizado. (Said 1993, 84).

No contexto de análise da questão árabe, Memmi analisa desde o


Nasserismo até o projeto político de Saddam Hussein. O esfacelamento dos
mitos que permeiam o mundo árabe contemporâneo abrange a visão idealizada
do incômodo que o estado de Israel representa no Oriente Médio. Associado a
esse mito equivocado, unem-se os dois ideais, o da unidade árabe e o da
extinção do estado de Israel como pré-condição para a existência do pan-
arabismo.
No âmbito da reflexão crítica sobre um ideal de sionismo concretizado
no estado de Israel, Memmi introduz sua reflexão sobre as nações erigidas no
processo de descolonização. Nesse sentido, o teor crítico dirigido às novas
nações e seus desvios encontram-se de forma convergente com o pensamento
de Fanon e Said. Memmi fala de um projeto que já nasceu caduco e que se
esgotou antes de ter começado.

316
revista de teoria da história 2 2020

Ora, no interior das jovens nações, o tirano bloqueia tudo, reduz tudo a
si e aos seus. As nações descolonizadas são como filhos de idosos, que
nascem débeis e doentios, frutos ressecados antes de terem amadurecido.
O projeto nacional do descolonizado parece esgotado antes de ter
verdadeiramente começado. Pois sua nação sofre de uma deficiência
histórica; nasceu tarde demais. As causas disso são múltiplas: o
adormecimento provocado pela colonização, que se prolonga como após
a ingestão de um sonífero, a letargia persistente do povo, a imprecisão da
noção de território nacional, que só recentemente se fixou, a aspiração
sempre tentadora a um mesmo conjunto supranacional.
(Memmi 2007, 78).

Para Memmi, o projeto nacional do descolonizado representa um


paradoxo. Este teria adquirido intensidade quando o nacionalismo europeu se
enfraquecia no mundo ocidental. O projeto nacional pós-colonial aparece
como frágil e isolado, o que no caso árabe promove uma propensão ao retorno
do ideário da “nação árabe”, uma unidade mal nomeada e artificialmente
engendrada. As críticas ao nacionalismo imaturo dos países descolonizados
podem ser atreladas ao pensamento fanoniano.
Para Fanon, o colonialismo é a organização de um mundo maniqueísta,
de um mundo compartimentado. O papel da violência como mecanismo
libertador é a grande mediação de libertação e reencontro com o seu próprio
ethos. A violência e a contraviolência do colonizado equilibram-se e
correspondem-se numa totalidade. O maniqueísmo do colono produz o
maniqueísmo do colonizado. A violência representa o encontro com a
regeneração da identidade por meio da resistência. Essa etapa representa a
superação da reificação como já foi dito em termos lukacsianos.
Se o aparecimento do colono significou “sincreticamente a morte da
sociedade autóctone, letargia cultural e petrificação dos indivíduos”, a vida do
colonizado só poderia ressurgir por meio da decomposição do cadáver do
colono. A violência se reveste de caracteres positivos e “formadores”. Citando
Fanon, no livro Os condenados da terra, “a práxis violenta é totalizante”, visto que
cada um se transforma em um elo violento da grande cadeia. Os grupos se
reconhecem entre si na relação e a nação já está indivisa.
Ao nível dos indivíduos, a violência desintoxica. Desembaraça o colono
de seu complexo de inferioridade, de suas atitudes contemplativas ou
desesperadas. Torna-o intrépido, reabilita-o a seus próprios olhos.
Mesmo que a luta armada seja simbólica, e mesmo que seja
desmobilizado por uma descolonização rápida, o povo tem tempo de se
convencer de que a libertação foi o assunto de todos e de cada um, o
líder não tem mérito especial. A violência ergue o povo à altura do líder.
Daí essa espécie de reticência agressiva com relação à máquina
protocolar que os jovens governantes se apressam a montar. Quando
participaram na violência, da libertação nacional, as massas não
permitem que ninguém se apresente como “libertador”.
(Fanon 1979, 74).

A perspectiva nacionalista em Fanon é particular e constitui um grande


guia de orientação para a obra de Said no que tange à reflexão crítica sobre a
etapa nacionalista na luta pela libertação colonial. Algumas das reivindicações
concretas, como a supressão de desvios humanos, trabalho forçado, limitação
de direitos políticos, desigualdade salarial e sanções corporais vão se fundir e
culminar com uma luta abrangente e menos definidora que se limita à
reivindicação nacional.

317
revista de teoria da história 2 2020

A consciência nacional é vista nesse contexto como uma mobilização


parcial, limitadora e frágil. A explicação para os desvios tem relação com o
perfil das lideranças e as dificuldades para superar a distância da burguesia
nacional em relação à práxis popular.
A formação profundamente cosmopolita da burguesia nacional
colonizada é vista como uma limitação de perspectiva que compromete o
caráter libertador dos movimentos nacionais. Para Fanon, a burguesia nacional
comporta um perfil mesquinho17, uma imprecisão doutrinária que não
representa a totalidade do povo, incapaz de dilatar sua visão de mundo, o que
gera a propensão para o fenômeno do chauvinismo. A apologia a uma unidade
africana imprecisa e abstrata retarda o processo de libertação. A unidade pode
se fragmentar em regionalismos que, se sustentados pela burguesia nacional, se
revelam incapazes de erigir uma solidez alternativa ao colonialismo.
Fanon descreve um movimento de diluição do ímpeto revolucionário
das massas em função do movimento oscilante entre a unidade africana e o
retorno de um chauvinismo indesejável. O ideário da unidade africana caminha
na contramão dos regionalismos nacionalistas dirigidos por uma burguesia
distanciada das massas populares.
Para o autor “tudo repousa na educação das massas”, na elevação e
amadurecimento do seu pensamento, ou seja, um processo denominado
politização. Politizar as massas não é falar por elas, citando Césaire, significa
“inventar almas”. O demiurgo não pode ser representado por um intelectual
com a missão de dirigir as massas em nome delas.
Existe uma direção revolucionária etapista que Fanon admite que os
povos africanos muitas vezes tratam de suspender. No capítulo Desventuras da
consciência nacional, Fanon desenvolve a ideia de que os povos Africanos muitas
vezes chegam à consciência social sem passar pela etapa da consciência
nacional. Por isso se observa que nos países subdesenvolvidos a exigência
violenta de uma justiça social desemboca paradoxalmente no tribalismo,
sempre primitivo. O nacionalismo deve se transformar na consciência social e
no humanismo inevitável.
A expressão viva da nação é a consciência em movimento da totalidade
do povo. É a práxis coerente e esclarecida dos homens e mulheres. A
construção coletiva de um destino é a aceitação de uma responsabilidade
na dimensão da história. O contrário é a anarquia, a repressão, o
aparecimento de partidos tribalizados, do federalismo etc. O governo
nacional, se quer ser nacional, deve governar pelo povo e para o povo,
para os deserdados e pelos deserdados. Nenhum líder, por maior que
seja o seu valor, pode substituir-se à vontade popular, e o governo
nacional deve, antes de se preocupar com prestígio internacional, restituir
a dignidade a cada cidadão, enriquecer os cérebros, encher os olhos de
coisas humanas e desenvolver um panorama humano porque habitado
por homens conscientes e soberanos. (Fanon 1979, 167).

O colonialismo como estrutura perversa aniquila o passado do povo


dominado. A tarefa da desvalorização da história do período anterior à
colonização se conforma numa realização dialética. Fanon defende que a
cultura é algo contrário à tradição, que precisa ser ressignificada diante da

17 Said cita essa parte em que Fanon caracteriza a burguesia nacional argelina com teor de

críticas à sua atuação paritária com a metrópole. Said ressalta a divisão entre a burguesia
nacional argelina e as tendências libertárias da FLN. Após a eclosão da insurreição, as elites
nacionalistas tentam estabelecer paridade com a França. O perfil assimilacionista da
colonização francesa faz com que os partidos nacionais oficiais se vejam forçados a uma
cooptação das autoridades dirigentes.

318
revista de teoria da história 2 2020

conjuntura histórica. Apegar-se à tradição é contrariar a história. Fanon apela


para o universalismo, tal como em Pele negra e Máscaras brancas, quando elabora
uma apologia à “nação global”.
Trânsfuga ou substancialista, o colonizado é ineficaz precisamente
porque a análise da situação colonial não é levada a cabo com rigor. Á
situação colonial determina em sua quase totalidade a cultura nacional.
Não há, não poderia haver, cultura nacional, vida cultural nacional,
invenções culturais ou transformações culturais nacionais no quadro de
um domínio colonial. Aqui e ali surgem às vezes tentativas ousadas de
reativar o dinamismo cultural de reorientar os temas, as formas, as
tonalidades. O interesse imediato, palpável, evidente de tais sobressaltos
é nulo. Mas, esquadrinhando as consequências até seu limite máximo,
percebemos que se prepara uma desopacização da consciência nacional,
um reexame da opressão, uma abertura para a luta da libertação.
(Fanon 1979, 198).

Said e Fanon vivenciam a problemática pós-colonial em busca da


superação dos essencialismos binários, construindo um apelo ao devir histórico
que, no âmbito da historicidade, pode responder, ainda que de forma
contingencial, à problemática da representação. A inserção das diferentes
identidades no interior do processo histórico atenua a estabilidade ontológica
da alteridade. Fanon fala do homem novo para uma iminente totalidade que
necessita de uma condição inaugural para se contrapor à Europa e ao modelo
que a dominação colonial impôs. Reconhecemos que o dilema inerente à
démarche explicativa de Said e Fanon não se limita ao escopo das suas obras.
Ela se amplia como um grande problema epistemológico no campo das
ciências humanas.

REFERÊNCIAS

ALESSANDRINI, Anthony. “The Humanism effect: Fanon, Foucault, and ethics


without subjects”, Foucault Studies, No.7, New York: City University of New York,
Setembro: 2009.
BHABHA, Homi K., “Introduction: narrating the nation” In: Nation and Narration,
New York: Routledge, 2001.
BHABHA, Homi K. A questão do “outro”: diferença, discriminação e o discurso do
Colonialismo, In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.), Pós-Modernismo e Política,
Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura, 2a edição. Belo Horizonte: EdUFMG, 2001.
BHABHA, Homi K. Adagio, Critical Inquiry, Vol.31, No. 2, Chicago: University of
Chicago Press, Winter, 2005.
BHABHA, Homi K; MITCHELL, W. J. T. (comps.) Edward Said, Continuando la
Conversación, 2a edição. Buenos Aires: Paidós, 2006.
BHABHA, Homi K. O Bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses, textos seletos, Rio de
Janeiro: Rocco, 2011.
COSTA, Sérgio, Desprovincializando a Sociologia: a contribuição pós-colonial, Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v.21, número 60, São Paulo: Fevereiro de 2006.
FABIAN, Johannes. O tempo e o outro, como a antropologia estabelece seu objeto, Petrópolis:
Vozes, 2013.
FABIAN, Johannes. Antropology with an attitude, Critical Essays, Stanford: Stanford
University Press, 2001.

319
revista de teoria da história 2 2020

FANON, Frantz. Por la revolución Africana, Escritos Políticos. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1975.
FANON, Frantz. A Dying Colonialism, 2a edition. New York: Grove Press, 1965.
FANON, Frantz. Os condenados da terra, 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1979.
FANON, Frantz Pele Negra, Máscaras Brancas, Salvador: EDUFBA, 2008.
GOLDMAN, Elisa, O Jogo de espelho das colonizações, Nacionalismo e Pós-Colonialismo na obra
de Edward W. Said, 2014. Tese de Doutorado, (Doutorado em História) -PPGH –
UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), RJ.
HALL, Stuart. “Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite”, In: SOVIK, Liv,
(org.), Da Diáspora, Identidades, e mediações Culturais, SOVIK, Liv. Belo Horizonte:
editora da UFMG, 2006.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, 10a edição. Rio de Janeiro:
DP&A Editora, 2005.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande
épica. São Paulo: Editora 34; 2012.
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de classe, estudos sobre a dialética marxista, São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2012.
LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
LUKÁCS, Georg. Realismo crítico hoje, Brasília: Editora de Brasília, 1969.
LUKÁCS, Georg. Marxismo e teoria da literatura, São Paulo: Editora Expressão Popular,
2010.
MEMMI, Albert; CASSIRER, Thomas; TWOMEY, G. Michael, The impossible life of
Frantz Fanon, The Massachussetts review, v. 14, No.1, winter 1973.
MEMMI, Albert, Retrato do Colonizado precedido pelo retrato do colonizador, Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra, 1977.
MEMMI, Albert. Retrato do descolonizado árabe-muçulmano e de alguns outros, Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 2007.
MEMMI, Albert. O homem dominado, Lisboa: Editora Seara Nova, 1975.
MEMMI, Albert. La liberación del judio, Buenos Aires: Ediciones Osa-Diálogo, 1976.
MÉSZAROS, István, O Conceito de Dialética em Lukács, São Paulo: Boitempo editorial,
2013.
MIGNOLO, Walter D., Histórias Locais/ Projetos Globais, Colonialidade, Saberes Subalternos
e Pensamento liminar, Belo Horizonte: EDUFMG , 2003.
MIGNOLO, Walter D. (org.) Capitalismo y geopolítica del conocimento, El eurocentrismo y La
filosofia de La liberación en el debate intelectual contemporâneo, Buenos Aires: Ediciones del
Signo, 2001.
NOBRE, Marcos. Lukács e os limites da reificação: um estudo sobre História e consciência de
classe. São Paulo: Editora 34; 2001.
PRAKASH, Gyan. Orientalism Now, History and Theory, vol. 34, No. 3, Wesleyan
University Press, October, 1995.
PRAKASH, Gyan. After Colonialism, Imperial Histories and PostColonial Displacements,
Princeton: Princeton University Press, 1995.
SAID, Edward W., Joseph Conrad and the Fiction of Autobiography, 6a edicão. N. York:
Columbia University Press, 2008.
SAID, Edward W. Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, 4ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
SAID, Edward W. A Questão da Palestina, 2ª. Edição. São Paulo: editora UNESP, 2012.
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

320
revista de teoria da história 2 2020

SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, São Paulo: Companhia das
Letras, 2003. (1ª. Edição - 2001).
SAID, Edward W. Power, Politics, and Culture: interviews with Edward W. Said , Nova York:
Vintage Books, 2002.
SAID, Edward W. Representações do intelectual, As conferências Reith de 1993, São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. (1ª. Edição - 1994).
SHOHAT, Ella. Antinomies of exile: Said at the frontier of National narrations In:
Edward Said, a critical Reader, SPRINKER, Michael (ed.), Massachusetts: BlackWell
Publishers, 1992.
SHOHAT, Ella. The “PostColonial” in Translation: Reading Edward Said between
english and hebrew, In: Taboo Memories, Diasporic Voices, Durham: Duke University
Press, 2006.
SHOHAT, Ella. Notes on “Post-Colonial”, Social Text, No.31/32, Third World and
Post-Colonial Issues, Duke University Press, 1992.
SILVA, Arlenice Almeida da, Georg Lukács: autonomia e heteronomia da arte, In:
ALMEIDA, Jorge de, BADER, Wolfgang, O Pensamento Alemão no século XX , V. 2,
São Paulo: Editora Cosac Naify, 2013.
SIMMEL, Georg, O conflito da cultura moderna e outros escritos, São Paulo: Editora Senac,
2013.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty, Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: EdUFMG, 2010.

HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS E TERRITÓRIOS SOBREPOSTOS


DIÁLOGOS ENTRE EDWARD W. SAID E FRANTZ FANON
ARTIGO SUBMETIDO EM 26/08/2020 • ACEITO EM 08/12/2020
DOI | https://doi.org/10.5216/rth.vi2.65274
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

321
revista de teoria da história 2 2020

ENSAIO

POR UMA ERÓTICA


DA HISTÓRIA
ENSAIO SOBRE
POSSIBILIDADES E LIMITES
NOS DIÁLOGOS ENTRE
HISTÓRIA E PSICANÁLISE
EVANDRO DOS SANTOS
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Caicó | Rio Grande do Norte | Brasil
evansantos.hist@gmail.com
orcid.org/0000-0003-2844-4810

O artigo, escrito em formato ensaístico, problematiza as


condições de interação entre o saber psicanalítico e a
disciplina histórica. Embora compartilhem de marcos de
historicidade semelhantes, raramente esse diálogo ocorreu
de maneira evidente. As formulações de Sigmund Freud
(1856-1939), ora entendidas como uma ética, por força de
disputas que conformaram o discurso universitário, ao
longo do século XX, foram gradativamente afastadas das
discussões históricas e historiográficas. Ainda que uma das
aporias fundamentais da história como disciplina científica
seja a compreensão mais precisa das relações entre as
dimensões individuais e sociais, são raras as reflexões que
consideram as possíveis contribuições da psicanálise neste
sentido. O argumento, a seguir brevemente desenvolvido,
defende que, ao tornarem mais complexas tais relações, as
categorias oriundas das obras de Freud podem auxiliar na
recuperação de aspectos eróticos da experiência histórica e
de suas formas de representação por diferentes sujeitos.

história e psicanálise – história da historiografia – erótica da história

O autor agradece à Pró-Reitoria de Pesquisa da


Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PROPESQ-UFRN)
pelo financiamento da pesquisa

322
revista de teoria da história 2 2020

ESSAY

FOR AN EROTICS
OF HISTORY
ESSAY ON POSSIBILITIES
AND LIMITS IN THE
DIALOGUES BETWEEN
HISTORY AND
PSYCHOANALYSIS
EVANDRO DOS SANTOS
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Caicó | Rio Grande do Norte | Brazil
evansantos.hist@gmail.com
orcid.org/0000-0003-2844-4810

The article, written in in the format of an essay,


problematizes the conditions of interaction between
psychoanalytic knowledge and historical discipline.
Although they share similar historical milestones, this
dialogue has rarely been evident. The formulations by
Sigmund Freud (1856-139), now understood as an ethics,
due to disputes that carved the university discourse,
throughout the 20th century, were gradually removed from
historical and historiographical discussions. Although one
of the fundamental aporias of history as a scientific
discipline is the more precise understanding of the
relationships between the individual and social dimensions,
reflections that consider the possible contributions of
psychoanalysis in this sense are rare. The argument, briefly
developed here, states that, by making such relationships
more complex, the categories derived from works of Freud
may assist in the recovery of erotic aspects of historical
experience and their forms of representation by different
subjects.

history and psychoanalysis – history of historiography


erotics of history

323
revista de teoria da história 2 2020

Portanto, a interpretação não é (como


supõem muitos) um valor absoluto, um ato
do espírito situado em algum reino
intemporal das capacidades. A
interpretação também precisa ser avaliada
no âmbito de uma visão histórica da
consciência humana.
Susan Sontag, Contra a interpretação,
1964.

CONTRA A INTERPRETAÇÃO?
O nome da filósofa e intelectual estadunidense Susan Sontag, autora de
importantes ensaios publicados ao longo da segunda metade do século XX e
inícios deste século XXI, voltou a ser recorrentemente encontrado em jornais e
revistas, no ano passado, por conta da publicação da biografia Sontag, escrita
por Benjamin Moser, rapidamente vertida para o português (Moser, 2019).
Trata-se de uma obra de fôlego, de quase setecentas páginas (na edição
brasileira) e que tem sido discutida e criticada desde o seu lançamento. No
nono capítulo desse extenso volume, intitulado “O moralista”, o biógrafo
defende a polêmica hipótese de que Freud: The Mind of the Moralist, livro
publicado em 1959 e assinado por Philip Rieff, que havido sido casado com
Sontag, tratar-se-ia de um texto escrito por esta (Moser 2019, 112-122). Moser
ouviu testemunhas e apresenta supostos documentos que indicariam a falsa
autoria. Longe de investir na polêmica proposta nessa passagem da obra,
interessa-me situar a discussão que mobilizou as reflexões apresentadas no
presente artigo. Em Contra a interpretação, ensaio divulgado originalmente em
1964 e depois reeditado na conhecida coletânea homônima de 1966, Sontag
propõe o repensar da crítica de arte para além das bases mais rígidas da
hermenêutica e eleva a obra do médico neurologista alemão Sigmund Freud
(1856-1939) à mesma importância do legado de Karl Marx para, em seguida,
efetuar sua crítica:
As mais celebradas e influentes doutrinas modernas, as de Marx e Freud,
em realidade são elaborados sistemas de hermenêutica, agressivas e
ímpias teorias da interpretação. Todos os fenômenos que podem ser
observados são classificados, segundo as próprias palavras de Freud,
como conteúdo manifesto. Este conteúdo manifesto deve ser investigado e
posto de lado a fim de se descobrir debaixo dele o sentido verdadeiro –
o conteúdo latente. Para Marx, acontecimentos sociais como revoluções e
guerras; para Freud, os fatos da vida de cada indivíduo (como os
sintomas neuróticos e os lapsos de linguagem), bem como textos (um
sonho ou uma obra de arte) – todos são tratados como motivos de
interpretação. Segundo Marx e Freud, estes acontecimentos parecem
inteligíveis. Na realidade, nada significam sem uma interpretação.
Compreender é interpretar. E interpretar é reafirmar o fenômeno, de
fato, descobrir um equivalente adequado.
(Sontag 1987, 15, itálicos no original).

Como se pode depreender tanto da citação acima como da epígrafe que


abre este artigo, Sontag propunha outra concepção para a interpretação,
submetendo-a a avaliação histórica. A interpretação de fenômenos sociais e
individuais não deveria sobrepor-se a estes nem tampouco ser entendida como
a eles equivalente. Na reflexão desenvolvida ao longo do ensaio, a intelectual
acaba por constatar que as formas sensoriais de aquisição de experiência
também têm uma história e, assim, demarcava sua proposta para a época na

324
revista de teoria da história 2 2020

qual escrevia. “O que importa agora é recuperarmos nossos sentidos. Devemos


aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais” (Sontag 1987, 23, grifos da autora).
No entanto, ao mesmo tempo em que se valia do argumento (via método
histórico) para apresentar sua sugestão de uma erótica da arte, que deveria
ocupar o lugar da hermenêutica na produção da crítica desse campo da criação
humana, o que se tornava evidente na análise de Sontag era sua associação ao
pensamento do filósofo Friedrich Nietzsche. Sua defesa de uma erótica da arte,
que desafiava o valor da interpretação como recurso intelectual privilegiado de
acesso aos objetos da cultura, carregava, em certa medida, a crítica ao
historicismo, tal qual pensada pelo filósofo alemão em questão, que igualmente
elegeu a arte como o elemento central do humano.
As trocas e interações relacionadas às experiências haviam perdido seu
caráter humano, natural. A história teria tomado o lugar dos sentidos,
tornando-se proprietária das interpretações de todos os fenômenos que se
manifestam no mundo. Tudo aquilo que por ventura se apresentasse ao mundo
estaria carregado de elementos apriorísticos que, de certo modo, não apenas o
explicam e roubam sua novidade como reduzem o mundo a algo previsível e
ordenado. Em 1967, Sontag publicou outro ensaio no qual se dedicava a
pensar a obra do filósofo romeno Emil Cioran. Sem perder a oportunidade de
provocar novamente a crítica ao predomínio de determinada consciência
histórica demarcada na modernidade, ela abre da seguinte forma sua reflexão:
O nosso é um tempo em que todo conhecimento intelectual, ou artístico,
ou moral, é absorvido por um abraço predatório da consciência: a
historicização. Todo ato ou afirmação pode ser considerado como um
“desenvolvimento” necessariamente transitório ou, num nível menor,
pode ser menosprezado como mero “modismo”. A mente humana
possui agora, quase como uma segunda natureza, uma perspectiva de
suas próprias realizações que fatalmente mina seu valor e sua
reivindicação à verdade. Por mais de um século, essa perspectiva
historicizante tem estado no centro de nossa capacidade para entender.
Talvez o que no início fosse um tique de consciência é agora um gesto
gigantesco e incontrolável, o gesto por meio do qual o homem
infatigavelmente patrocina a si próprio.
(Sontag 2015, 84, aspas e itálico no original).

Sontag não tinha dúvidas de que a perspectiva historicista que emergiu


no início do século XIX construiu um contexto no qual as experiências se
acumulavam tornando precária e obsoleta a existência humana, uma vez que
tudo poderia ser igualmente documentado, organizado. O império da
perspectiva historicista, resultante, para Sontag, do colapso da construção de
sistemas filosóficos (que teria em Hegel sua derradeira tentativa), manifestou-se
no empreendimento do que chama de ideologias, que passariam a atender pelo
nome de ciências do homem, e que teriam nas obras de nomes como Comte,
Marx e Freud, por exemplo, suas primeiras formulações.1 Em contrapartida, tal
colapso teria motivado, também, novas formas de filosofar, mais
assistemáticas, que teriam em Kierkegaard, Nietzsche e Wittgenstein alguns de
seus exemplares (Sontag 2015, 88).

1 Neste sentido, cabe mencionar que, em certa medida, Sontag propõe uma resposta à
indagação levantada pela filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) no que tange às
explicações para a ascensão da história e concomitante declínio do pensamento político, nas
décadas finais do século XVIII (Arendt 2003, 110-121).

325
revista de teoria da história 2 2020

Entretanto, para o campo do conhecimento histórico, a aproximação


percebida por Sontag não é evidente. Quando a história consolidou suas
práticas sob a égide do modelo disciplinar, pouco espaço foi reservado ao
legado freudiano, ao contrário de Marx, cuja obra, antes e depois da análise de
Sontag, foi intensamente revisitada. Mesmo os conceitos e problemáticas mais
gerais que poderiam incentivar o diálogo entre as práticas histórica e
psicanalítica, tais quais as concepções de memória, de método, a ideia de mal-
estar e as mobilizações modernas da tradição judaico-cristã, ou as relações
entre biografia e história, não foram capazes de fomentar interações mais
significativas. Se Nietzsche era o nome mais forte a dar sustentação ao
pensamento de Susan Sontag, no que diz respeito ao projeto de uma erótica da
arte (que pode ser expandido e entendido como seu próprio projeto intelectual,
em sentido mais geral), a incontornável crítica daquele filósofo à cultura
histórica de sua época, mesmo conhecida e muito discutida, não mobilizou,
mais claramente, um debate sobre o conceito de vida na disciplina histórica ou
para além desta. A remissão direta aqui é ao texto II Consideração Intempestiva
sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida, publicado originalmente
em fevereiro de 1874 (Nietzsche 2005, 67-178). Teriam os profissionais de
história atuais potencial para operarem nas fronteiras de uma teoria da
interpretação? Considerando o estado hodierno das dimensões teóricas,
didático-pedagógicas e políticas do saber ao qual se dedicam, estariam eles em
condições de virem a ser o que Nietzsche, Freud – e a própria Susan Sontag –
foram em suas épocas: sujeitos responsáveis pela crítica da cultura?

DO FARDO DA HISTÓRIA À INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER


Pode-se dizer que Freud moveu-se entre as dinâmicas dos corpos e a
hermenêutica, ou, para utilizar a fórmula de Paul Ricoeur, filósofo francês
interessado no diálogo com a história e com a psicanálise, nas fronteiras entre
o impulso e o discurso, entre o desejo e a cultura. Por conta dessa posição,
Ricoeur afirmou que o pensar psicanalítico exigiu, da parte de Freud, o
desenvolvimento de uma linguagem mista, que acabou por obrigar a prática
psicanalítica a assumir um estatuto epistemológico igualmente misto (Ricoeur
2011, 84-85). Tal estatuto fez com que o discurso psicanalítico acabasse por
transitar entre diferentes disciplinas universitárias sem submeter-se por
completo a nenhuma delas (nem mesmo à psicologia). O interesse de Ricoeur
pela obra de Freud fomentou parte importante das reflexões por ele
sistematizadas em A memória, a história, o esquecimento, obra de 2000 (Ricoeur
2007). É verdade, contudo, que seus estudos sobre história e sobre psicanálise
foram desenvolvidos em paralelo, encontrando-se, mais nitidamente, apenas
no livro acima citado, no qual revisa e amplia a tese apresentada nos três
volumes de Tempo e narrativa, editados entre 1983 e 1985. Diante dos problemas
da memória, Ricoeur percebe a necessidade de aproximar algumas das
formulações advindas do pensamento freudiano aos desafios da memória para
a historiografia (Ricoeur 2007, 404-421). Nesse sentido, para Esteban Lythgoe,
esse encontro só se tornou possível graças à modificação impetrada por
Ricoeur em suas concepções de história e de psicanálise (Lythgoe 2017). De
todo modo, é interessante observar que, se Sontag denunciava certo excesso
interpretativo na crítica de arte dos anos 1960, mais ou menos no mesmo
contexto, Ricoeur refletia acerca do excesso de significação em seu projeto
hermenêutico. De certa maneira, esse projeto buscará, sobretudo, mais os
limites da hermenêutica que suas possibilidades (Ricoeur 2011).

326
revista de teoria da história 2 2020

Além disso, por analogia, também semelhante à Sontag (embora em


contextos históricos e intelectuais diferentes), Ricoeur recuperou a crítica de
Nietzsche ao historicismo para abrir sua reflexão voltada ao exame da
condição histórica, no terço final de A memória, a história, o esquecimento. Fica
claro que, para o filósofo francês, em Nietzsche, o problema da história não
era epistemológico: “(...) o alvo de Nietzsche não é o método histórico-crítico,
a historiografia propriamente dita, mas a cultura histórica” (Ricoeur 2007, 304).
O que estava em questão era a conhecida metáfora do “fardo da história”.
Determinada forma de se relacionar com o passado que tudo explica tudo
classifica, enfim, uma forma desumanizada de história, pois nega o desejo e
não aceita a falta, esta um fator determinante capaz de mobilizar sujeitos
desejantes. Apresenta-se, assim, um dos impasses centrais entre a filosofia
nietzschiana e as formas do ensino e da difusão do conhecimento histórico. A
dimensão técnica da disciplina histórica não necessariamente deveria
comprometer seu potencial erótico, isto é, sua conexão com a vida e com as
experiências subjetivas particulares que se processam via laço social. No
entanto, gostaria de deixar essa discussão para o momento seguinte deste
ensaio.2
Gostaria de investir um pouco mais no exame de como leitores da
década de 1960 dialogaram com as denúncias antimodernas advindas de
Nietzsche. Em ensaio datado de 1966, cujo título é justamente “o fardo da
história”, o historiador estadunidense Hayden White mobilizou de modo
perspicaz as figurações do historiador presentes em obras de ficção do século
XX. Segundo White, o desconforto provocado pela consciência histórica
moderna em parte dos escritores de ficção da época poderia ser constatado na
forma como historiadores eram representados em romances e em peças de
teatro de nomes relevantes das artes, como Ibsen, Aldous Huxley, Thomas
Mann, Jean-Paul Sartre, Pirandello e Edward Albee. O historiador, convertido
em personagem de ficção, aparece nas obras desses escritores como “o
exemplo extremo da sensibilidade reprimida” (White 2001, 43). Como não se
lembrar de George, interpretado por Richard Burton, no filme Quem tem medo
de Virgínia Woolf?, Dirigido por Mike Nichols e lançado nos cinemas em 1966?
Adaptação da peça homônima, de autoria de Albee, no filme vemos a
personagem de Burton, um professor universitário de história de meia idade,
apresentado como alguém emocionalmente frágil e intelectualmente inseguro,
que resiste a avançar na carreira e experimenta, junto de sua esposa Martha
(também uma acadêmica), uma relação pautada por diálogos repletos de
perversidade e pelo inegável ressentimento. Para White, o artista denuncia no
historiador “uma falta de sensibilidade ou de vontade”. Em resumo, Nietzsche
não parecia estar sozinho quando acusava a história de sabotar a vida, nos
moldes como esse saber circulava na cultura do norte global produzida no
século XIX e ainda em movimento em meados do século XX. A arte, tal qual a
vida, nunca estariam à vontade com uma história apreendida como ciência,
tendo esta um caráter obsessivo e castrador que, ao menor sinal de devir

2 O debate sobre as relações entre as concepções de ciência e de vida ultrapassa os diálogos


livremente estabelecidos neste artigo e, pode-se pensar, aproxima, de forma relativamente
sistemática, os três grandes críticos da modernidade – Marx, Nietzsche e Freud. Assim, seria
importante reconstituir, por exemplo, a discussão estabelecida por Louis Althusser (nas
décadas de 1960 e 1970), no âmbito do materialismo dialético, no que diz respeito à obra de
Freud e de Jacques Lacan e às problemáticas do conflito e da irracionalidade (dito de outra
forma, a discussão sobre as disputas da razão em Marx e o impasse do inconsciente em Freud).
Agradeço a Temístocles Cezar por sua generosidade em apontar para esse importante âmbito
de análise.

327
revista de teoria da história 2 2020

erótico, reage com a mesma potência do superego descrito por Freud, ou seja,
atua como instância que se opõe ao eu e dele não espera nada imprevisível,
criativo ou transgressor (Freud 1971).
Hayden White não deixou de notar que as bases da crítica de Nietzsche
à imaginação histórica já apareciam em O Nascimento da Tragédia, de 1872
(White 2001, 44). A dimensão ética da tragédia havia sido usurpada pela
perspectiva dramática (ressentida), particular à modernidade, na qual não mais
era possível vislumbrar a vida como uma obra aberta, o que nos faz humanos
(Deleuze 2013, 126-130). White também percebeu que a crença dos
historiadores na ideia de que o início do século XIX demarca o auge de sua
disciplina não estaria fundamentada na capacidade desta em oferecer
perspectivas novas de ver o mundo, mas na função de mediador que o
historiador assumiu as artes, as ciências e a filosofia (White 2001, 54).3 Qual era
a proposição lançada, na década de 1960?
E segue-se que o fardo do historiador em nossa época é restabelecer a
dignidade dos estudos históricos numa base que os coloque em
harmonia com os objetivos e propósitos da comunidade intelectual
como um todo, ou seja, transforme os estudos históricos de modo a
permitir que o historiador participe positivamente da tarefa de libertar o
presente do fardo da história. (White 2001, 53, itálicos no original).

Michel Foucault forneceu recursos teóricos pertinentes quando o


escopo reside em pensar a ação do sujeito na e a partir da perspectiva histórica.
O acento do filósofo na via da sexualidade não é senão outra entrada para que
ele pudesse continuar a pensar as relações entre o saber e o poder. Os
desdobramentos do pensar de Foucault, que se apresentam em História da
Sexualidade 1 (1976) e seguem até A coragem da verdade (2009), continuaram a
tematizar o problema da ética em seu sentido criativo (estético) e transgressor
(político). Uma proposta interessante a ser formulada talvez consista em tomar
os historiadores e seus personagens e examiná-los, uma vez mais, não apenas
como sujeitos e objetos de conhecimento, mas como índices de determinados
processos de subjetivação, para falar em termos propriamente foucaultianos.
Seria esta uma forma possível de libertar o presente do fardo da história?
Foucault, leitor de Nietzsche: atravessarmos o percurso que vai da “hipótese
repressiva” ao “escândalo da verdade” e, no caminho, com sorte,
identificarmos as diferentes formas de implicação de sujeitos com o que dizem
e com o que é dito sobre eles. Que processos de subjetivação provocados pela
crise contemporânea seriam capazes de instar historiadores e historiadoras a
prestarem atenção na importância do outro que os interpela, alteridade essa
que pode ser entendida como a vida que acontece em razão e a despeito da
disciplina histórica, dentro e para além da cultura? A indagação ética continua e
encontra uma metáfora inspiradora em A insustentável leveza do ser, de Milan
Kundera, obra de 1984. “O que escolher, então? O peso ou a leveza?”
(Kundera 1999, 11).4

3 Ao considerar essa visão sobre o historiador, entendido como um mediador que, no

século XIX, teria atuado como agente articulador entre as ciências e as artes, remeto às
reflexões de Valdei Lopes de Araujo, dedicadas a pensar o direito à história e às possibilidades
de se pensar o historiador como um curador de histórias (Araujo 2017, 191-216).
4 Agradeço à Marina Corrêa da Silva de Araujo pela remissão inspiradora à clássica obra de

Milan Kundera enquanto discutíamos as relações entre a filosofia de Nietzsche e possíveis


aproximações com a psicanálise e a história.

328
revista de teoria da história 2 2020

ERÓTICA DA HISTÓRIA E POLITIZAÇÃO DO TEMPO


Quando indaguei acima, primeiramente, sobre as possibilidades de se
pensar o historiador como um crítico da cultura e, em seguida, quando sugeri o
exame de processos de subjetivação que, em tempos de crise, estaria
acelerando algumas alterações nas práticas desse profissional, evidentemente,
estava pensando a partir de analogias com categorias oriundas do discurso
freudiano. Assim como Foucault não concebeu a categoria sujeito como
sinônimo de indivíduo ou de pessoa, para que uma crítica da cultura possa ser
estabelecida e processos de subjetivação possam ser analisados, a primeira
condição a ser reconhecida tange à posição do historiador em relação à
experiência do tempo que ele próprio vivencia. Estando ele mergulhado em
determinada cultura, como reconhece, negocia e transgride os códigos dessa
mesma cultura? Até que ponto esse sujeito em específico está disposto a
ampliar as fronteiras do território no qual se dá o laço social e ao qual está
implicado? Em outras palavras, essas perguntas dizem respeito aos
incontornáveis impasses colocados pela cultura a todo e qualquer sujeito, o
que, de imediato, questiona qualquer tentativa de interpretação totalizante no
âmbito da disciplina histórica e, ao mesmo tempo, recupera a dimensão erótica
desse conhecimento. O psicanalista brasileiro Joel Birman explica:
Assim, não existe no discurso freudiano qualquer possibilidade de se
pensar na exterioridade das categorias do sujeito e cultura, pois a
constituição do sujeito implica o Outro representado pela cultura, sendo
o sujeito definido radicalmente pela alteridade no campo social. O
discurso freudiano, porém, indica ao mesmo tempo a existência de algo
no registro do corpo que não se inscreve como sujeito, pois não se
absorve no Outro e impõe uma insistente diferença no campo do social.
Existe, portanto, uma desarmonia que é constitutiva da relação entre
sujeitos na cultura, onde o corpo pulsional marca permanentemente sua
diferença face aos outros corpos no espaço social. (Birman 1994, 127).

Freud escreveu textos que podem ser tomados como históricos. Sem
dúvida, alguns de seus últimos escritos oferecem esclarecimentos que, sem
resolver a questão do estatuto epistemológico misto da psicanálise (o que não
percebo como um problema), esclarecem o que ele apresenta como uma
dimensão erótica que se manifesta historicamente. Em cada contexto histórico
o sofrimento manifesta-se de formas diversas. A angústia dos corpos possui
uma dimensão histórica. A luta entre Eros e o instinto de morte, retomada
diversas vezes nas reflexões de Freud, manifesta-se no sujeito e na cultura,
simultaneamente. Uma história sem corpos assemelha-se muito à metafísica,
pois parte do pressuposto que a alteridade dos corpos pode ser ignorada
perante a unidade do histórico. Freud reconhecia o potencial da história para
revelar até mesmo as estruturas mais elementares do esquema psicanalítico.
Em seu conhecido título O mal-estar na civilização, cuja primeira edição data de
1930, diz:
Pode-se afirmar que também a comunidade desenvolve um superego sob
cuja influência se produz a evolução cultural. Constituiria tarefa
tentadora para todo aquele que tenha um conhecimento das civilizações
humanas acompanhar pormenorizadamente essa analogia.
(Freud 1997, 106).

329
revista de teoria da história 2 2020

As interações entre sujeitos e destes em culturas determinadas se


processam no tempo e há diferentes meios de se observar. Nem todos esses
meios foram disciplinados. Michel de Certeau foi, com certeza, um dos mais
sérios interlocutores da psicanálise, no campo dos historiadores. Seu esforço
em propor um diálogo que preservasse as fronteiras sem, contudo, impedir o
avanço na análise, é realmente admirável. Conforme o historiador francês,
psicanálise e história articulam duas estratégias de tempo distintas. Enquanto a
psicanálise não reconhece um corte absoluto entre passado e presente, a
historiografia só se torna praticável após essa separação. O tempo da
psicanálise, por assim dizer, não se submete à cronologia. São duas formas de
se relacionar, portanto, com as experiências da memória e também com suas
formas narrativas: “a psicanálise e a historiografia têm, portanto, duas maneiras
diferentes de distribuir o espaço da memória; elas pensam de modo diferente, a
relação do passado com o presente. A primeira reconhece um no outro;
enquanto a segunda coloca um ao lado do outro” (Certeau 2011, 73).
Ainda, ao considerar as relações entre psicanálise e história, na década
de 1980, Certeau apontava para alguns aspectos mais gerais que sintetizam os
desafios esboçados neste ensaio, quais sejam: o pertinente repensar da
dimensão política das ciências; a importância de se examinar as experiências do
tempo; a necessária problematização o sujeito do saber, ultrapassando a
ilusória neutralidade dos discursos científicos; e, por fim, a preponderante
tarefa de repensar as relações entre os âmbitos da história e da ficção (Certeau
2011, 62-70). É seguro afirmar que avanços significativos foram efetivados no
que se refere às entradas sugeridas por Certeau, proposições que seguramente
encontravam em suas interações com a prática psicanalítica a base privilegiada
que lhe garantia um ponto de vista que reconhecia a pertinência de se valorizar
a dimensão erótica de sua disciplina, sem temer comprometer sua técnica, uma
vez que a diferença não o assombrava (Gay 1989).

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Valdei Lopes de. O direito à história: o(a) historiador(a) como curador(a) de
uma experiência histórica socialmente distribuída. In: GUIMARÃES, Géssica;
BRUNO, Leonardo; PEREZ, Rodrigo (orgs.). Conversas sobre o Brasil: ensaios de
crítica histórica. Rio de Janeiro: Autografia, 2017, 191-2016.
BIRMAN, Joel. Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2011.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013.
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: curso no
Collège de France (1983-1984). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I, II e III. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1985-1988.
FREUD, Sigmund. Esquema del psicoanalisis. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1971.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997.
GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
MOSER, Benjamin. Sontag. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

330
revista de teoria da história 2 2020

NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre história. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo:
Loyola, 2005.
QUEM TEM MEDO DE VIRGÍNIA WOOLF?: Mike Nichols. Produção de Ernest
Lehman e Edward Albee. Estados Unidos: Warner Bros., 1966, 1 DVD.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2007.
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa:
Edições 70, 2011.
SONTAG, Susan. A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

POR UMA ERÓTICA DA HISTÓRIA


ENSAIO SOBRE POSSIBILIDADES E LIMITES NOS DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA E PSICANÁLISE
ARTIGO RECEBIDO EM 31/08/2020 • ACEITO EM 02/12/2020.
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

331
revista de teoria da história 2 2020

TRADUÇÃO

BECKER, Carl L. What is Historiography? The American


Historical Review, Vol. 44, n. 1, Oct. 1938, 20-28.

FABIO IACHTECHEN
Instituto Federal do Paraná
Paranaguá | Paraná | Brasil
fabio.luciano@gmail.com
orcid.org/0000-0002-5170-4679

APRESENTAÇÃO DO TRADUTOR
“O que é historiografia?” é uma resenha escrita em 1938
pelo historiador estadunidense Carl Lotus Becker sobre
o livro A history of historical writing, publicado no mesmo
ano por Harry Elmer Barnes, então professor do Smith
College e pesquisador ligado à New School of Social Research
da Universidade de Columbia. O texto foi publicado
originalmente no boletim da American Historical
Association e reproduzido posteriormente em Detachment
and writing of history, obra de 1958 organizada por Phil L.
Snyder que reuniu seus textos e ensaios sobre teoria e
escrita da história.
Carl Becker se formou na Universidade de Wisconsin
em 1896, e teve como seu mentor intelectual Frederick
Jackson Turner e a chamada frontier thesis, elaborada a
partir do artigo de 1893, The significance of the frontier in
American history. O argumento central de Turner
explicava a constituição da democracia estadunidense
pela expansão Oeste das fronteiras durante o século
XIX, desvinculando das antigas tradições europeias a
essência da formação nacional. Em 1898 Becker se
tornou associate fellow na Universidade de Columbia,
onde frequentou os seminários de James Harvey
Robinson e Charles Beard e passou a desenvolver seu
interesse pela história intelectual europeia, tema que o
acompanhou pelo resto da vida e lhe oportunizou
participar dos debates do movimento conhecido como
“progressive era”, cuja expressão historiográfica mais
importante está na “new history” nos Estados Unidos
das décadas de 1910 e 1920.

332
revista de teoria da história 2 2020

Becker é considerado um dos historiadores mais


filosóficos e literários do século XX, tanto pelo estilo
elegante e preciso de escrita, quanto pelos temas
relacionados à história intelectual, especialmente no
século XVIII. A despeito de seus primeiros livros sobre
a formação do Estados Unidos terem sido bem
recebidos pelo grupo progressista, como The begginings of
American people (1915), The eve of revolution (1918) e The
United States: as experimente in democracy (1920), Becker se
tornou nacionalmente conhecido ao promover um
importante debate a partir de Everyman his own historian,
seu discurso de posse como presidente da American
Historical Association em 1931. Neste ensaio, sugeriu que
a história deveria necessariamente voltar-se ao homem
comum (Mr. Everyman), tornando-se inteligível o
suficiente para ser um elemento de compreensão dos
problemas do presente. Em 1932 publicou The heavenly
cities of the Eighteenth century philosophers, uma análise
bastante original do Iluminismo e considerada sua obra
mais importante.
Desta forma, a resenha sobre o livro de Harry E. Barnes
é a percepção de um historiador já maduro e
reconhecido, tanto sobre a importância da história da
escrita e produção do conhecimento histórico, um
campo ainda incipiente e que contava majoritariamente
com manuais de função essencialmente compilatória,
bem como a defesa do que acreditava ser a função da
historiografia enquanto disciplina, uma espécie de fase
da história intelectual na qual se busca compreender os
usos e sentidos do passado identificados em diferentes
épocas.

333
revista de teoria da história 2 2020

O QUE É HISTORIOGRAFIA?
[ 1938 ]
Quarenta anos atrás eu estava fascinado pelo estudo da história, pela
mecânica da pesquisa, por aquele tipo de pesquisa na qual os eventos (existem
outros tipos) tem sido definidos como “pequenos pedaços pinçados de grandes
livros que ninguém nunca leu, e colocados juntos em um livro que ninguém
nunca vai ler”. Mais tarde me tornei menos interessado pelo estudo da história
do que pela história propriamente dita, quer dizer, pelos sugestivos significados
que poderiam ser atribuídos a certos períodos ou grandes eventos, como “o
espírito de Roma é um ácido, que aplicado ao sentimento de nacionalidade, o
dissolve” ou ainda, “a Renascença é uma dupla descoberta, do homem e do
mundo”. Agora que estou mais velho o aspecto mais intrigante da história não
é, enfim, nem o estudo da história ou a história em si, nos sentidos expostos
acima, mas antes a história do conhecimento histórico. O nome dado a este
aspecto da história é o pouco atraente, como disse o Sr. Barnes, historiografia.1
O que é historiografia precisamente? Deveria ser, como tem sido até
recentemente, algo mais do que a enumeração de trabalhos históricos desde os
gregos, com alguma indicação sobre os propósitos e pontos de vista dos autores,
as fontes utilizadas e a precisão e legibilidade dos trabalhos em si. O objeto
principal destas iniciativas historiográficas é a avaliação, a partir de padrões
modernos, do valor destes trabalhos históricos para nós. Neste nível, a
historiografia nos oferece um manual com informações sobre histórias e
historiadores, nos provendo, por assim dizer, com um claro balanço das
“contribuições” de cada historiador para a soma total do conhecimento histórico
verificado e disponível. Tais manuais tem um alto valor prático. Aos candidatos
ao doutoramento eles são de fato indispensáveis, já que os provém, ainda que
indiretamente, de informação atualizada. Neles se aprende quais foram os
defeitos e limitações de seus predecessores, mesmo os mais ilustres, sem o
problema de terem que ler diretamente seus trabalhos, como, por exemplo, que
Macauley, embora um brilhante escritor, foi cegado pelo preconceito Whig, ou
que a estima de Tácito por Tibério foi suplantada por pesquisas posteriores, ou
que o relato incisivo de Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso sofre com a
falta de familiaridade do autor com a doutrina da interpretação econômica da
história. Conhecer as limitações de nossos predecessores mais famosos nos dá
confiança no valor de nossas próprias pesquisas: podemos não ser brilhantes,
mas podemos ser sólidos. Temos a grande vantagem de viver em tempos mais
esclarecidos: nossas monografias podem jamais ser classificadas como Declínio e
queda do Império Romano enquanto clássicos da literatura, mas serão baseadas em
fontes de informação não disponíveis a Gibbon e tornadas impecáveis por um
método científico ainda desconhecido em sua época.
A history of historical writing do Sr. Harry Elmer Barnes está além disso, de
ser um catálogo comentado de trabalhos históricos. No entanto, em certo
sentido é isso também, um pouco demais até, talvez mais do que o seu propósito
exigia ou o que ele pretendia. Há partes do livro que me deixaram com uma
invejosa admiração pela erudição do autor, sua simples familiaridade com o
conteúdo de inúmeros livros dos quais eu nunca tinha ouvido falar. Minha
primeira impressão de fato, ao terminar o livro, foi que poderia encontrar em

1 BARNES, Harry Elmer. A history of historical writing. Norman: University of Oklahoma


Press. 1937. 434 p.

334
revista de teoria da história 2 2020

seu conteúdo o nome de todo historiador desde o tempo de Maneto. É claro


que nenhum estudioso de verdade teria essa impressão. Não sendo uma pessoa
instruída, sou facilmente surpreendido por quem conhece os títulos de mil e um
livros. Ainda assim consultei as bibliografias, por exemplo, a Bibliographie de
l'histoire de Paris pendant 1a Révolution, de Tourneux, em cinco grandes volumes; e
relembrando esse trabalho impressionante, percebo que nem mesmo os títulos
de todos os livros da Revolução Francesa poderiam estar contidos no pequeno
volume do Sr. Barnes. Que tipo de lista de todos os escritos históricos desde
Maneto seria produzida eu não sei, nem desejo saber – este é um pensamento
terrível! Então, para não caluniar o Sr. Barnes, apresso-me a dizer que deve haver
inúmeros escritores que ele não menciona, e até, gosto de pensar, muitos dos
quais ele nunca ouviu falar. Afinal, ele selecionou apenas alguns relativamente
falando; e ele os selecionou, se às vezes com restrição insuficiente, para um
propósito definido.
O Sr. Barnes declara seu objetivo da seguinte maneira: - “caracterizar o
principal contexto intelectual de cada período do avanço humano na civilização
ocidental, mostrar como a literatura histórica de cada período tem sido
relacionada à sua cultura-mãe, apontar os traços dominantes dos escritos
históricos em cada época, indicar o avanço, se houver, na ciência histórica e, em
seguida, esclarecer as contribuições individuais dos principais escritores
históricos da época”. Neste nível, a historiografia deve ser algo mais que uma
estimativa das contribuições dos historiadores para o conhecimento presente.
Deveria ser, de certo modo, uma fase da história intelectual, aquela que registra
o que os homens, em diferentes épocas, conheceram e acreditaram sobre o
passado, o uso que fizeram - a serviço de seus interesses e aspirações - de seus
conhecimentos e crenças, e os pressupostos subjacentes que fizeram seu
conhecimento parecer relevante e suas crenças parecerem verdadeiras. O
historiógrafo que deseja ter sucesso nesse nível deve adquirir muito
conhecimento preciso mas, acima de tudo, deve cultivar a capacidade de
compreensão imaginativa. Se ele deseja fracassar, deve cultivar a capacidade de
se irritar com a ignorância e tolice de seus predecessores.
Quão bem o Sr. Barnes conseguiu cumprir seu propósito? No geral, bem
o suficiente. O Sr. Barnes tem, com certeza, uma certa capacidade de ser irritado.
É um defeito dentre suas qualidades. Ele é um fenômeno raro, um cruzado
instruído. Ele está apaixonadamente interessado pela aplicação do conhecimento
científico na tarefa de criar uma boa sociedade. Ele está profundamente
convencido de que a história, corretamente entendida, lança muita e necessária
luz sobre as causas da situação em que nos encontramos no momento presente;
convencido, portanto, de que os historiadores, se ao menos se libertassem do
antiquarismo e levassem seu conhecimento aos problemas sociais atuais,
poderiam contribuir mais do que fazem para a solução desses problemas.
Suspeito que, afinal, o que realmente irrita o Sr. Barnes não sejam os
historiadores, mas antes o fato de poucas pessoas fazerem algum esforço para
apropriar-se do conhecimento disponível; muitos preferem o Saturday Evening
Post às mais atualizadas obras populares das ciências sociais; e essa irritação é,
em parte, convenientemente aliviada de vez em quando por comentários
depreciativos e injuriosos sobre o "historiador ortodoxo", uma espécie que
supostamente teria florescido desembaraçada antes da época de James Harvey
Robinson e ainda não totalmente extinta.

335
revista de teoria da história 2 2020

Como o historiador ortodoxo desempenha um papel menor no presente


livro, uma palavra precisa ser dita sobre ele. Não tenho certeza de que já conheci
o sujeito em carne e osso. Por definição, ele parece ser um professor tímido e
refinado, um pouco apreensivo em manter seu emprego, interessado em eventos
políticos, militares e diplomáticos, inconsciente da importância das influências
econômicas, sociais e culturais, e que exagera muito no papel dos indivíduos
como fatores causais no processo histórico. O que me intriga um pouco é que
nessa apresentação o próprio Sr. Barnes, embora raramente seja tímido e, nunca
se soube, restringido pelo medo de perder o emprego, pode ser ortodoxo
quando a ocasião pede. Em seu livro The genesis of the World War, lembro-me, ele
lidou exclusivamente com eventos políticos e diplomáticos e terminou
nomeando quatro indivíduos cujas atividades nefastas foram amplamente
responsáveis por provocar a guerra. O que me intriga ainda mais é o fato de que,
apesar da discussão geral do Sr. Barnes sobre a “nova história” sugerir que
praticamente todos os historiadores anteriores ao século XX sejam ortodoxos,
encontro em suas páginas poucos historiadores que singularmente aderem
estritamente à linha ortodoxa. Pelo contrário, nos capítulos Social and Cultural
History e Kulturgeschichte encontro evidências que me levam a supor que a nova
história seja pelo menos tão antiga quanto Voltaire, e que a maioria dos
historiadores mais ilustres dos últimos dois séculos não limitaram seus interesses
à história política ou exageraram notavelmente no papel dos indivíduos como
fatores causais.
Foi Freeman quem disse que “a história é política passada” e, na época,
o interesse pela história política e constitucional foi, é verdade, muito forte. Mas
o Sr. Barnes pode ter encontrado uma explicação bastante satisfatória para os
novos historiadores sobre este fato, algo que eu deveria ter pensado. Era uma
época em que os principais problemas da sociedade eram políticos e
constitucionais, uma época em que as revoluções se preocupavam
principalmente com a forma de governo e a construção do tipo certo de
constituição para garantir os privilégios políticos e os direitos naturais
imprescritíveis dos indivíduos; e o que então estavam fazendo esses historiadores
políticos senão trazendo a história “para o presente”, senão “explorando o
passado no interesse do avanço” que, segundo James Harvey Robinson, é o que
faz o novo historiador e o que todos os historiadores deveriam fazer? Será que
até Freeman era, em sua época, um novo historiador? Mas Freeman ainda estava
vivo quando a interpretação econômica começou a avançar, e hoje eu acharia
difícil nomear um historiador competente que, de acordo com a definição do Sr.
Barnes, pudesse ser corretamente classificado como estritamente ortodoxo. Sou
grato ao Sr. Barnes por não me inserir junto aos ortodoxos, em parte porque em
princípio não gosto do termo, seja o que for que isso signifique, mas
principalmente porque não gosto de ser escandalosamente conspícuo. Mas,
ainda assim, não me importo em ser um pouco excêntrico e arriscarei a seguinte
observação: quando a devoção de meus colegas à história social se tornar tal que
uma História da Vida Americana possa ser escrita com apenas a menção
superficial da política, será bom lembrar que afinal a política teve algo a ver, tanto
quanto afinal o esporte, em tornar a vida americana o que ela é.
Mas estou exagerando nas irritações e dissabores do Sr. Barnes. Elas estão
inseridas apenas no final do livro e são, no máximo, apenas um defeito menor.
Tomando o livro como um todo, Barnes fez bem o que se propôs a fazer. Ele
“caracterizou o contexto intelectual principal de cada período”, se não com uma
percepção ou frescor especial, mas pelo menos o suficiente para permitir ao
leitor entender "os traços dominantes da escrita histórica" em cada período para

336
revista de teoria da história 2 2020

compreender, por exemplo, por que os escritos históricos na Idade Média


necessariamente diferiam dos escritos históricos nos tempos clássicos, por que
os humanistas construíram suas histórias nos moldes romanos, por que as
disputas religiosas da Reforma levaram os teólogos ao estudo da história da
Igreja, e assim por diante. Particularmente boa nesse sentido é sua observação
da relação entre a descoberta de novos países, o crescente interesse pela história
das instituições sociais e sua indicação sobre as condições do início do século
XIX que estimularam o interesse pela filosofia da história.
No entanto, a caracterização do “contexto intelectual” e a explicação dos
“traços dominantes da escrita histórica” nos termos desse contexto, embora na
maior parte adequados ao objetivo do autor, são breves e devem ser
considerados de certa forma superficiais; não perfazem a substância do livro. A
maior parte do livro é dedicada ao que interessa muito a Barnes, isto é, às
“contribuições dos principais escritores históricos” e ao “avanço, se houver, da
ciência histórica”. Estimar o valor de histórias e historiadores do ponto de vista
dos padrões e técnicas modernas é, afinal, o principal objetivo do livro, e é o que
o Sr. Barnes faz de melhor. Talvez muitos historiadores sejam mencionados, de
modo que, às vezes, o livro se degenera em um catálogo de nomes. “W.R.
Shepherd, H. E. Bolton, W. S. Robertson, J. F. Rippy, Bernard Moses, C. W.
Hackett, H. I. Priestley, E. C. Barker e outros”: existe, particularmente nos
últimos capítulos, muito desse tipo de coisa. O Sr. Barnes sabe muito e, quando
os nomes começam a inundar a memória, ele permite que seu julgamento se
disperse nessa nuvem. Ele é melhor naqueles tempos antigos, mais felizes,
quando os historiadores, por não serem tão numerosos, não são aglomerados.
Ele então encontra espaço para nos dizer quem eles eram e o que escreveram,
com detalhes suficientes para tornar seus escritos inteligíveis para nós.
Pesquisadores instruídos, não sendo tão facilmente reprimidos pela erudição do
Sr. Barnes com fui, encontrarão erros aqui e ali e alguns julgamentos
equivocados ou questionáveis. Mas, tanto quanto sei, o conhecimento do Sr.
Barnes é adequado, e suas estimativas, se na maior parte convencionais (e talvez
por esse motivo) são no geral essencialmente sólidas. Sem dúvida, é irrelevante
lamentar o fato de que “Tucídides negligenciou a magnífica oportunidade de
retratar as glórias da civilização ateniense”. Sem dúvida, não há justiça a Matias
Flácio Ilírico e seus colaboradores, enfatizando sua “credulidade” e não
ressaltando suficientemente o fato de que, ao substituir a tradição pela lógica
formal como um teste da doutrina e prática religiosa, eles estavam dando um
imenso impulso ao desenvolvimento dos estudos históricos. Mas estes são
pequenos pontos. No geral, o Sr. Barnes realizou uma importante adição à
literatura historiográfica. Ele escreveu não um livro que marcará uma época, não
um livro profundamente original (poucos livros podem ser descritos desta
forma), mas um livro sólido e útil para aqueles que não conhecem muito bem a
história da escrita histórica, o livro mais informativo e estimulante, eu acredito,
disponível no momento em língua inglesa.
Um autor deve ser reconhecido pelas suas intenções e julgado pelo
sucesso que obtém ao realizá-las. Por esse motivo não digo sobre o Sr. Barnes o
que ele diz sobre Tucídides, que ele perdeu uma oportunidade magnífica. No
entanto, a oportunidade, magnífica ou não, existe para aqueles que desejam
abraçá-la. Penso que valeria a pena considerar a historiografia de maneira mais
simples e resoluta como uma fase da história intelectual; esquecer totalmente as
contribuições dos historiadores para o conhecimento presente e concentrar-se
integralmente em seu papel no padrão cultural de seu próprio tempo. Desse
ponto de vista, o historiador se preocuparia principalmente com o que o

337
revista de teoria da história 2 2020

professor Shotwell chama com felicidade de gradual “descoberta do tempo” pela


humanidade ou, de maneira mais ampla, expansão progressiva do quadro de
referência no tempo e espaço que, de alguma forma, condiciona o alcance e a
qualidade do pensamento humano.
Quando pensamos em algo, pensamos nele em relação a outras coisas
localizadas no espaço e ocorrendo no tempo, ou seja, em um mundo do tempo
e do espaço, um quadro de referência no tempo-espaço. O desenvolvimento da
inteligência, no indivíduo e na humanidade é, em certo sentido, uma questão de
empurrar para trás os limites do mundo do tempo e do espaço e preenchê-lo
com coisas que realmente existem e eventos que realmente aconteceram. O
mundo do tempo-espaço da criança recém-nascida, por exemplo, é confinado à
sala em que ela se encontra e ao seu momento presente: tudo o que ela observa
é visto como um close-up, sem relação com qualquer outra coisa. Os primeiros
homens eram como crianças recém-nascidas, sem conhecer nada de nenhum
lugar além da região em que viviam, nada ou muito pouco, e este pouco com
muitos equívocos sobre eventos passados dos quais não haviam participado.
Eles também viam as coisas como close-ups, em uma perspectiva curta, sem
relação com objetos verificáveis em lugares distantes ou tempos passados. Os
antigos Sumérios eram, sob muitos aspectos, um povo altamente civilizado, mas
seu pensamento social era dificultado pelo fato de viverem em um mundo cujo
tempo-espaço era muito estreito: em seu mundo espacial, a raça humana poderia
ser destruída por uma inundação que varria o vale dos dois rios; no seu tempo,
o evento marcante foi o Grande Dilúvio, antes do qual se estendeu um período
desconhecido, sem conteúdo, exceto pelos oito reis que se acredita terem
reinado durante 241.000 anos. Desde a época dos Sumérios até os nossos dias,
a raça humana estendeu lenta e dolorosamente o universo do tempo e espaço
em que poderia viver, o quadro de referência do tempo e espaço no qual poderia
pensar. A amplitude e o conteúdo do quadro de referência no tempo-espaço,
muito mais que simples poder mental, acabaram por determinar o alcance e a
direção da inteligência, além dos pressupostos subjacentes que moldam
amplamente as ideias dos homens sobre suas relações com o universo e entre si.
Considerada estritamente como uma fase da história intelectual e não
como um balanço do conhecimento histórico verificável, a historiografia teria
como tema principal a expansão gradual desse universo do tempo e espaço
(particularmente do tempo talvez, embora os dois estejam inseparavelmente
conectados), suas informações, sejam elas verdadeiras ou falsas, as quais
constituem conhecimento adquirido e crenças aceitas que permitiram aos
homens (e não apenas historiadores) se encontrarem nelas, e a influência desse
padrão de eventos verdadeiros ou imaginários sobre o desenvolvimento do
pensamento e conduta humanos. Assim, a historiografia se tornaria uma história
da história antes de ser uma história dos historiadores, uma história da história
compreendida subjetivamente (a "fábula acordada", o "pacote de truques
pregados aos mortos") e não uma história do surgimento gradual da verdade
histórica considerada objetivamente. É claro que o historiador estaria
interessado em “histórias”, pois elas seriam a principal fonte de informação; mas
ele não confinaria suas pesquisas a elas, não estaria interessado nas histórias
como tais, mas apenas como uma das formas literárias nas quais as ideias atuais
sobre o passado encontram expressão. Tampouco estaria mais interessado em
ideias verdadeiras do que falsas sobre o passado: seu objetivo seria saber quais
ideias, verdadeiras ou falsas, eram aceitas em cada momento e que pressão
exerciam sobre aqueles que as recebiam. Ele não descartaria a Epopeia de
Gilgamesh ou a Ilíada de Homero como irrelevantes para a história porque são

338
revista de teoria da história 2 2020

uma coleção de mitos, ou se contentaria em dizer a Tito Lívio que ele é um bom
contador de histórias, mas um péssimo historiador. Não se preocupando
principalmente com o que os romanos realmente sabiam sobre o passado, mas
com o que eles tinham em mente quando pensavam sobre este passado, ele
aproveitaria o fato de Tito Lívio ter escrito sua história e o fato de que os mitos
relacionados foram correntes e amplamente aceitos como verdade. Ele
perceberia que, embora um mito possa não ser verdade, que ele existe enquanto
verdade, e que as pessoas acreditam nisso como verdade, o que pode ser da mais
alta importância. Em suma, os "fatos" que interessariam ao historiógrafo, o “que
realmente aconteceu” que ele procuraria e consideraria relevante para seu
propósito, seriam não a verdade, mas a existência e a pressão das ideias sobre o
passado que no qual homens se relacionavam e agiam. Seu objetivo seria
reconstruir, e através do insight imaginativo e do entendimento estético reviver
esse conjunto de eventos que ocorrem em lugares e tempos distantes, nos quais,
em períodos sucessivos, os homens foram capazes de formar uma imagem de
quando se contemplavam e de suas atividades em relação ao mundo em que
viveram. Se os eventos que compõem este conjunto são verdadeiros ou falsos,
considerando objetivamente, isso não deveria lhe interessar.
Tomada nesse sentido, a historiografia deve, sem dúvida, começar com
“tempos pré-históricos” - um termo absurdo, como diz o Sr. Barnes, se
quisermos considerar a história externamente, como o registro do que os
homens fizeram, pois implica que o período mais longo da história humana
ocorreu antes que houvesse história propriamente. Mas não é tão absurdo, afinal,
se pensarmos na história a partir de dentro, como um domínio da mente, como
a apreensão do desenvolvimento do passado e de lugares distantes, uma vez que
os homens mais antigos poderiam ter pouca história nesse sentido. No entanto,
mesmo os homens mais antigos (os Cro-Magnons, por exemplo) devem ter sido
capazes de formar alguma imagem, embora limitada em design e menos nítida do
que o que ocorreu e estava ocorrendo no mundo. O que era essa imagem só
podemos adivinhar, embora algumas suposições engenhosas e até esclarecedoras
pudessem, sem dúvida, surgir pelos antropólogos. De qualquer forma, o
historiador poderia começar com as mais antigas histórias épicas, a Criação
Épica da Babilônia, a Ilíada de Homero e outras coisas do gênero. Para os
primeiros gregos, a Ilíada, como alguém já disse (talvez Matthew Arnold?), era
história, fábula e escritura, tudo em um texto só. É claro que esses termos
diferenciadores são enganosos, pois podemos ter quase certeza de que os
primeiros gregos não faziam essas distinções. A fábula contada, o cerco de Tróia,
as ações de homens e deuses, era tudo real, história simplesmente, o registro do
que realmente aconteceu. E assim para todas as pessoas cuja civilização se
desenvolveu diretamente a partir de condições primitivas.
Até que os registros escritos passassem a ser usados, os homens não
puderam se tornar efetivamente conscientes do fato de que o evento registrado
difere do evento lembrado. Só então eles poderiam distinguir adequadamente
entre fábula e história, entre o relato de eventos inventivamente imaginados e o
relato de eventos que realmente aconteceram; só então as histórias poderiam ser
pensadas como um “ramo da literatura”. Mas a diferenciação entre história e
literatura não torna os deuses indispensáveis. Inescrutáveis em seus propósitos,
implacáveis em seus julgamentos, governantes de homens e coisas, os deuses
ainda são necessários; para a literatura, porque estão tão intimamente envolvidos
nos assuntos atuais dos homens; para a história, porque a criação do mundo deve
ser considerada, e os homens, mesmo os heróis antigos e reis divinos, são
incapazes de realizar uma tarefa tão grande. Portanto, a história permanece longa

339
revista de teoria da história 2 2020

e emaranhada com a religião, e os deuses servindo como agências causais que


operam atrás de homens e eventos. Mas, à medida que o mundo do tempo e do
espaço é expandido, fornecendo uma variedade cada vez maior de novos itens
para comparação e avaliação, a filosofia se intromete nestas abstrações; e os
deuses, retirando-se dos assuntos imediatos dos homens para o lugar onde o ser
absoluto habita, desaparecem em réplicas pálidas de seus antigos eus: na Lei da
Natureza, na Ideia Transcendente, no princípio dinâmico da Dialética, ou seja lá
o que for. A filosofia, por sua vez, torna-se Filosofia Natural, depois Ciência
Natural, depois Ciência: e a ciência, dispensando totalmente a assistência dos
deuses e sua numerosa descendência filosófica, apresenta para a contemplação
o registro simples de como o mundo exterior se comporta, o que de fato ocorreu
em tempos passados, deixando o homem sozinho em um universo indiferente,
sem tentar justificar os caminhos para seus atos e aspirações.
Esse tema, ou algo parecido, foi reproduzido, com apropriadas variações,
mais de uma vez pelos gregos, pelos romanos e pelos europeus nos tempos
modernos. Qual é a relação entre o desenvolvimento de uma sociedade
industrial-comercial, o declínio das convicções religiosas e políticas tradicionais
e o crescimento do ceticismo e do conhecimento científico? Como esses
fenômenos interligados podem ser correlacionados com o mundo do tempo e
do espaço em que os homens vivem, com o quadro de referência de tempo e
espaço em que pensam? Que lugar tem a história, considerada como o sentido
do passado, como a apreensão de eventos, verdadeiros ou falsos, que se pensa
terem ocorrido ou estão ocorrendo em lugares distantes e tempos passados,
nessa correlação de causa e efeito? Dentro do leque dessas perguntas, acho que
existem muitos campos frutíferos para o historiador cultivar.

CARL BECKER

O QUE É HISTORIOGRAFIA?
TEXTO SUBMETIDO EM 28/09/2020 • ACEITO EM 15/11/2020
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

340
revista de teoria da história 2 2020

ENTREVISTA

PSICANÁLISE E
EPISTEMOLOGIA
HISTÓRICA
ENTREVISTA COM
MARCELA BATÁN
LUIZ SÉRGIO DUARTE
Universidade Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brasil
sergio.duarte.ufg@gmail.com
orcid.org/0000-0003-1541-3206

SABRINA COSTA BRAGA


Universidade Federal de Goiás
Goiânia | Goiás | Brasil
sabrinacostabraga94@gmail.com
orcid.org/0000-0001-9164-7560

Esta entrevista foi concedida em 30 de novembro de 2018


durante o VI Colóquio de História e Filosofia da Ciência: as
Ciências Humanas, realizado na Faculdade de História da
Universidade Federal de Goiás. Marcela Renée Becerra
Batán é doutora em Filosofia (UNC), Professora Titular de
Epistemologia das Ciências Sociais na Faculdade de Ciências
Humanas (FCH) da Universidad Nacional de San Luis
(UNSL), e coordenadora do projeto de investigação
“Epistemología, Psicoanálisis y Ciencias Humanas.
Normalización, Clasificación y Subjetividad”. Na presente
entrevista, Marcela Batán nos fala um pouco sobre sua
trajetória de pesquisa e o percurso que ela e colegas filósofos,
psicanalistas e educadores seguiram em suas reflexões e
trocas sobre as relações entre psicanálise, epistemologia e as
ciências humanas em geral, além do efeito de normalização
atual nas práticas da psicologia e da pedagogia. A professora
também trata brevemente de temas como a subjetividade em
Michel Foucault e o uso da psicanálise por Gaston
Bachelard.

Transcrição e tradução de Taynna Marino


Universidade Adam Mickiewicz | Poznań, Polônia

341
revista de teoria da história 2 2020

Revista de Teoria da História

Estamos aqui com a professora Marcela Batán, da Universidade


Nacional de San Luis, na Argentina. Ela está participando do Colóquio de
História e Filosofia da Ciência. Então, professora, eu, hoje, ouvi você falando de
psicanálise e epistemologia. Poderia falar um pouco mais sobre isso para nós?

Marcela Batán

Claro! Isso tem a ver com o que foi a invenção de uma comunidade, de
um pequeno grupo na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade
Nacional de San Luis, que é um encontro entre pessoas que têm se dedicado à
filosofia, outros que vieram da psicanálise – quer dizer, de outra formação e de
outra práxis –, e também gente que se dedica à educação. Três exercícios
diferentes, três formações, três práticas diferentes. Contudo, nos reunia a
inquietude epistemológica para analisar, refletir, criticar nossas próprias práticas,
sobretudo, estando a cargo da formação de futuros psicólogos, psicanalistas,
educadores da educação comum e da educação especial. Em um primeiro
momento, então, tive que definir como nos encontrávamos nessa encruzilhada
de certos saberes, mas também de diferentes práticas. E nessa encruzilhada,
tentamos posicionar, examinar, indagar e esclarecer alguns temas. Primeiro foi a
interpretação, passamos seis anos nesse diálogo. Depois, hoje, os eixos
normalização, classificação e subjetividade são mobilizados de diferentes
maneiras nas práticas das ciências humanas e da psicanálise. Para eles, um estilo
de fazer epistemologia, a epistemologia histórica, que nos permite fazer esse
trabalho por várias razões. Primeiro, porque uma epistemologia é inseparável de
uma história da constituição das ciências humanas, uma epistemologia
inseparável da história da constituição desse campo em particular que se chama
psicanálise, e também é uma epistemologia inseparável da atualidade dessas
disciplinas e dessas práticas, quer dizer, uma epistemologia sempre
comprometida com a indagação da história da atualidade das ciências humanas
e da psicanálise. Isso nos pareceu importante. E, nessa encruzilhada,
conversávamos. Podemos distinguir dois movimentos: um que vai da
epistemologia à psicanálise e às ciências humanas. Então é a pergunta, digamos,
filosófico-histórica por psicanálise e ciências humanas. Mas, também nos
deixamos instruir, nos deixamos interpelar, nos deixamos ensinar, e a questão
foi da psicanálise à filosofia e ao resto das ciências humanas, sobretudo a
educação. O que da experiência da psicanálise, da experiência inaugural de Freud,
o que do que significa a experiência analítica pode nos ensinar a filosofia? Nesse
sentido, é a partir do analista que conseguimos trabalhar algumas questões, não
é? O que se verifica na experiência analítica, essa não convergência entre a
verdade e o saber. O que se verifica nela acerca do mal-estar da sexualidade
humana? O que se verifica nela, de qualquer forma, é a primeira pergunta a que
chega sempre alguém a uma análise: o que está acontecendo comigo? Uma
pergunta que é uma demanda de saber a outras questões, a pergunta: com o que
me satisfaço? A pergunta por diversão... Então, também são essas questões
verificadas na experiência analítica que nos teriam que ensinar a filosofia. Essas
questões, me parece, nos trazem os colegas psicanalistas a partir do que se
apresenta a eles hoje, na clínica, e as que nos trazem os colegas da educação
especial, que se apresentam como um desafio para a educação. Essas questões
nos faziam pensar e nos perguntávamos: que ferramentas da epistemologia
histórica, autores como Canguilhem, Foucault, Ian Hacking ou como Lorraine

342
revista de teoria da história 2 2020

Daston nos podem servir para este diálogo? Isso foi um pouco, nesses anos, o
encontro: a condição dos problemas, eleger as leituras que íamos fazendo, as
análises que fizemos, mas, a partir do que nos trazia as práticas dos colegas, o
que passava, poderíamos dizer, e o que passa com a subjetividade do sofrimento
de nossa época e nosso San Luis, onde há fenômenos que crescem, diagnósticos
que se multiplicam exponencialmente, por exemplo crianças e adolescentes com
problemas de atenção, hiperatividade e outras maneiras diferentes de categorizar
esse transtorno. Hoje, um grupo de colegas estuda como estão crescendo os
diagnósticos em torno da dislexia e das dificuldades que se apresentam na leitura,
que se apresentam precisamente no âmbito educativo. O que a epistemologia
histórica de inspiração francesa, por um lado com Canguilhem e Foucault e
também com Hacking que é, como diria Braunstein, um foucaultiano criativo,
que inova – sobretudo em um projeto que se chama “Making Up People” –, nos
serviu para pensar esse fenômeno? Nesse curso de tempo fomos criando uma
comunidade, um estilo de abordar perguntas e respostas, um estilo de indagar e
responder, unir-se e ir incessantemente entre o ambiente universitário e os
arredores, quer dizer, os colegas que trabalham no consultório, na escola pública,
nos âmbitos de saúde mental e algumas horas na universidade trabalhando
comigo no projeto e na epistemologia das ciências sociais. Então, ali, aconteceu
uma interação muito interessante.

RTH

Então, seria bom que você falasse um pouco de como entende a


proposta de Foucault do “cuidado de si”. Um modelo de subjetivação, não é?

Marcela Batán

Exatamente. Essa noção de cuidado de si ocupa um lugar importante no


filosofar de Foucault, não só nos últimos tempos. Se alguém, inclusive, levar em
consideração as Leçons sur la volonté de savoir já se vê que, desde cedo, foi um tema
de inquietude de Foucault. O que se vê de Foucault nesse momento de nossa
cultura, vê a noção e a prática do cuidado de si, a epiméleia heautoû. Entendê-la,
parece-me, é uma atitude geral em relação aos outros, o mundo e si mesmo,
como uma maneira de atenção que se volta do exterior para si mesmo e como
uma série de práticas e exercícios e de ações que se cruzam sobre si para
transformar-se, para que se alcance um estado de sabedoria ou purificação etc.
Agora, bem, como essa prática do cuidado de si pode exercer-se no momento
socrático-platônico, mais tarde no momento da antiguidade helenística e depois
na antiguidade greco-romana tardia? O que acontece com essa prática de si a
partir do cristianismo e a partir, sobretudo, do século IV, da emergência da
prática da confissão? Com isso, em meio à nossa cultura há outra coisa, que é a
hermenêutica de si. Ou seja, essa exigência de uma indagação contínua de si
mesmo e uma verbalização exaustiva de todos os pensamentos, representações,
ações e omissões em relação ao outro que o absolve. Então, a prática da
confissão modifica essa cultura de si. Há esse momento de nossa cultura e há
outro momento que, creio, também Foucault leva em consideração, que é o que
ele chama de “momento cartesiano”. Antecipado em parte por Aristóteles e pelo
trabalho teológico de São Tomás que poderia dizer que é uma mudança na
relação do sujeito com a verdade. Já não se necessita uma prática de si para
revelar a verdade. E a verdade, uma vez descoberta, não retorna aos sujeitos e
os transforma, os ilumina... Não. A partir do momento cartesiano, só basta o

343
revista de teoria da história 2 2020

método. Não é necessário nenhum trabalho ético sobre si para revelar a verdade,
só falta o método. Mas a verdade descoberta não salva, não ilumina, não brinda
nenhuma modificação, não retorna à subjetividade. Então, nos perguntamos,
fazendo essa genealogia, essa história da pragmática de si, de nossa cultura: o que
sucede a partir de Kant? Kant retoma a pergunta “o que é a ilustração?”, retoma
a atitude ou o ethos filosófico da pergunta “quem sou eu nesse momento da
história?”, que é uma pergunta crítica à história da racionalidade, uma pergunta
em relação à nossa atitude. E aí, inventando um pouco, nos perguntamos se a
experiência inaugural da psicanálise vem a ser uma prática de si diferente que
retoma a questão do sujeito e da verdade. Pensamos entender que a experiência
inaugural da psicanálise não constitui uma hermenêutica de si. E quer dizer que
aí, talvez, nos distanciamos de Foucault. E, claro, Foucault indagou a questão da
psicanálise de várias maneiras em momentos diferentes. Na História da Loucura e
em As palavras e as coisas há um lugar especial para Freud e a psicanálise. No
entanto, parece-me que em textos posteriores, Foucault entende a prática da
psicanálise como uma prática no interior do processo geral de normalização,
como uma prática medicalizadora e relacionada com a confissão cristã, com essa
obrigação de dizer tudo o que tem que dizer frente a um outro. Já não é direito
de consciência, isso é psicanálise. No entanto, parece-nos também que a leitura
que faz de Lacan e a referência de Lacan em A hermenêutica do sujeito, que diz que
Lacan volta a colocar o tema do sujeito e da verdade... Essa leitura nos habilita
pensar que haveria, talvez, um lugar diferenciado para situar a psicanálise.
Certamente a psicanálise aparece no regime da ciência moderna. A psicanálise
aparece já operada no momento de [...], digamos, a filosofia deixou de ser uma
prática de espiritualidade e passou a ser um saber de conhecimento, ocupando
um lugar na emergência da ciência moderna. Estamos em outro regime de
verdade. Mas talvez a psicanálise aí seja uma prática que, de alguma maneira, se
vincule com outra prática de si, esta não medicalizadora, não normalizadora e
não confessional. Isso daria uma outra possibilidade de pensar o dizer por meio
de Canguilhem, Foucault, Hacking, mas talvez outra prática possível do analista
na contemporaneidade. Estou sendo muito sintética. E talvez recorrendo a
leituras, a debates que foram passionais, acalorados, em cada um de seus pontos
de vista, mas aprendemos tudo no processo. Creio que fizemos uma escola de
depor a exclusividade do saber e de pontos de vista, de abrirmos a escutar o
outro, de depor os orgulhos intelectuais que não tenham sentido, narcisismo –
talvez recordando o que já disse a expressão bachelardiana “uma psicanálise do
conhecimento objetivo” – temos promovido uns aos outros. O reconhecimento
de uma falta intelectual, da incompletude, da falta. Tudo isso cria uma forma de
trabalhar.

344
revista de teoria da história 2 2020

RTH

Mas você também encontrou uma relação com a psicanálise com Bachelard?

Marcela Batán

Claro. Em Bachelard o que tenho tentado ver é quais são os usos que ele
faz da psicanálise como filósofo da imaginação e como filósofo da racionalidade
científica, às vezes não apenas de Freud, mas também de Jung e uma imensa
biblioteca de psiquiatras, psicólogos de sua época. Parece-me que ele se
pergunta, além do sujeito do conhecimento, as condições que possibilitam ou
impedem a construção do objeto do conhecimento. Nesse sentido, sua noção
de obstáculo epistemológico, quer dizer, a noção de que no ato mesmo de
conhecer, se apresentam entorpecimentos, cegueiras, confusões, torpezas, às
vezes pontos de inércia e de regressão. O que chamamos de obstáculo
epistemológico de diversas índoles, ou seja, dar uma entidade na epistemologia
a isso que vem do obstáculo e do horror que opera e opera paradoxalmente.
Impede, mas possibilita, porque se não fosse isso, não haveria algo contra o qual
ir, algo a ser rompido para depois reconstruir, porque sempre, como Bachelard
dizia, se conhece contra um conhecimento anterior, destruindo o conhecimento
mal feito e que a dinâmica mesma do conhecimento exige o obstáculo
epistemológico como condição necessária. Portanto, fazer o exercício que ele
propõe, como deixarmos a psicanálise e o conhecimento objetivo, a vigilância
epistemológica, [inaudível] a noção freudiana de Supereu... São exercícios no
momento mesmo que está se constituindo o sujeito do conhecimento, revisando
os métodos, revisando a história da própria disciplina, nesse momento mesmo
do sujeito. Já junto a outros, mais tarde, de maneira autocrítica e já em solidão,
há de se levar adiante certos exercícios para que a tarefa epistemológica seja
possível. E tratei de localizar em Bachelard um uso polêmico. Primeiro, parece
que Bachelard polemiza com algumas noções de Freud para situar de maneira
diferenciada sua própria maneira de entender, por exemplo, repressão,
sublimação, inconsciente, para pôr uma questão epistemológica ou para propor
algo da ordem de seus textos de filosofia da imaginação. Ele se vale de um
conceito para criticá-lo e propor um próprio: isso é o que chamamos de uso
polêmico. Então, distinguiria também um uso terapêutico, quer dizer,
inspirando-se em certas terapias que propõe Freud, mas também outros
analistas. Ele propõe terapias, ou seja, distintos trabalhos que o sujeito pode fazer
sobre si mesmo, tanto em filosofia da imaginação, para trabalhar suas imagens e
criar; quanto em epistemologia, para fazer um trabalho sobre os próprios
obstáculos nessa marcha até o conhecimento objetivo, até a ruptura e a
construção de um novo objeto. Então, as já mencionadas “psicanálise do
conhecimento objetivo” e “vigilância epistemológica”, mas também outras
terapias análogas, digamos, a topoanálise, a poético-análise, são todas propostas
bachelardianas que trabalham sobre si à semelhança de certas psicanálises, que
podem promover ao sujeito a criatividade, a arte como essência, a abertura de
outras imagens e a possibilidade de outros novos objetos do conhecimento, a
passagem do conhecimento comum ao conhecimento objetivo.

345
revista de teoria da história 2 2020

O uso hermenêutico, finalmente, quer dizer, o uso interpretativo, assim


eu o chamaria. Às vezes Bachelard se vale de certas chaves que levam a Freud,
ou certas chaves que remetem a Jung, sobretudo, para ler textos do passado, por
exemplo, textos científicos do passado ou textos do presente, textos de poetas,
ou também para analisar o que acontece na cena educativa. Então, os princípios
de Jung, muito mais que os de Freud, especialmente as noções de complexo e
arquétipo, lhe servem como chave interpretativa para ler textos científicos do
passado. Aqui havia um obstáculo epistemológico, havia uma imagem que tem
a ver com um complexo, com um arquétipo, que estava impedindo a
conceitualização disso, ou imagens em torno dos elementos primordiais, o fogo,
a água, o ar e a terra, são algo assim como o elemento primeiro e a gramática
fundamental desse poeta, de onde surgem todas as outras imagens. E também
se vale dessa chave, parece-me, para ver a cena educativa, na sala de aula, quando
novamente ressurgem obstáculos epistemológicos que podem ser superados
pela história da ciência. No jovem e na criança que estuda física, que estuda
química, que se aproxima das primeiras noções de ciência, é possível ver
aparecerem, diz ele, imagens primitivas em torno dos fenômenos que se estão
estudando em física ou química. Então, como ele trabalha com certas chaves de
Freud e Jung para encontrar isso, há uma presença paradoxal, limita e possibilita
esses obstáculos epistemológicos, ou a presença de imagens que estão presentes
em poetas e em crianças e adolescentes aprendendo ciências. Por que o desafio
educativo seria duplo, o desafio educativo seria, para Bachelard, não? A ser
entendido. Como educar pela razão científica sem matar as potências criativas
da razão e da imaginação? Como educar, levar a criança do conhecimento
comum ao conhecimento científico e, nesse caminho, não sacrificar, não dar
outro destino a todo esse capital poético, toda essa riqueza poética que está nas
imagens familiares, no conhecimento comum, na linguagem comum? Há um
capital poético que inclusive remonta às experiências primeiras que tivemos na
infância com a água, o ar, a terra e o fogo, dos lugares que crescemos. Os rios
de minha San Luis, da minha Córdova, em que nasci, as experiências com os
quatro elementos, que são experiências situadas em uma história, uma cultura,
mas são experiências que também vão muito mais longe, tem a ver apenas com
complexos, mas também remontam a arquétipos que já são algo assim como
esquemas a priori da imaginação humana, que trazem a história pessoal e a
biografia individual. Não sei se... mas são os usos que faz a psicanálise, usos que
eu chamei de usos polêmicos, usos terapêuticos e usos interpretativos. Ele se
serve de Freud, mas muito mais frequentemente de Jung, para fazer algo com
eles. Não sei se estou sendo clara. E de alguma maneira, nós também podemos
dizer que trabalhando com colegas analistas e colegas educadores, nos servimos
da filosofia para conversar com colegas e encontrar maneiras de pensar e fazer
diferente, e eles, por sua vez, se servem da filosofia para pensar e fazer diferente
em seus respectivos espaços. Uns e outros nos reabilitamos em usos, em usos
enriquecedores, múltiplos, complexos dos quais saímos com algumas riquezas,
algumas fecundidades, para ser, fazer e pensar de outro modo e onde nos toque,
na pesquisa, na educação, muitas vezes no âmbito da clínica, em instituições
públicas ou espaços privados. Como ser e fazer de outro modo o exercício
epistemológico? Como ser, pensar e fazer de outro modo na práxis analítica?
Eles já vêm formados com toda uma literatura psicanalítica, já vêm formados
também nos três pilares de ensino de sua formação, a própria análise, a
supervisão, a formação psicanalítica propriamente dita. Da mesma maneira, na
educação, meus colegas também vêm com uma formação já adquirida, os
pedagogos, os educadores da educação especial. E os filósofos também vêm com

346
revista de teoria da história 2 2020

uma formação, um ofício, uma maneira de levantar e resolver problemas, mas


sinto a exigência de me ocupar, como diria Canguilhem, de matérias estrangeiras;
uma filosofia aberta às práticas sociais da época. Nos tem interessado, sobretudo,
as práticas que fazem a subjetividade que sofrem hoje.

RTH

Gostaria, somente, que você retornasse em um ponto que para nós é


especialmente importante, que é o de como uma abordagem como essa que você
faz se distingue de um modelo normatizador do exercício atual da psicologia e
da pedagogia.

Marcela Batán

Parece-me que, a partir de Canguilhem e Foucault, entendemos a


emergência das ciências humanas no interior de um processo geral de
normalização de âmbito maior: educação, saúde, segurança, produção... Mas,
evidentemente, não havia emergência das ciências humanas – não me parece que
essa é a lição de O Nascimento da Clínica – sem levar em conta a matriz do que é
a bipolaridade médica normal/patológica. Essa marca está na própria origem, na
própria emergência histórica das ciências humanas, em sua certidão de
nascimento: processo geral de normalização; bipolaridade médica
normal/patológica; entender como as ciências humanas tiveram a ver com as
técnicas anátomo-políticas e biopolíticas de vigilância dos corpos; vigilâncias
hierárquicas e sanções normalizadoras, sobretudo o exame como técnica; e, em
seguida, o controle social das populações que fazem emergir o homem como a
figura da população. Parece-me que, se admitimos que não é simples, mas que
revisar a história da própria da constituição das ciências humanas no interior
desses elementos, que nos dão Canguilhem e Foucault, nos faz compreender
esse caráter normalizador das ciências humanas, porque aí a norma e o normal
estão na interseção entre anátomo e biopolítico, a questão da norma e do normal.
Uma epistemologia histórica das nossas próprias disciplinas que pode ser
uma história crítica. E essa história crítica nos permite criar e fazer de outro
modo nossas práticas hoje. E aí também nos acompanha Ian Hacking, com sua
proposta do projeto “Making up people”, suas reflexões sobre o efeito de arco,
ou looping effect, das aulas nas ciências humanas, como foi se complexificando seu
modelo, que se situa entre um realismo dinâmico e um nominalismo dialético,
uma ontologia histórica de Foucault. Claro que se trata de uma generalização do
que Foucault propôs, isso me parece interessante, porque nos permite propor
com colegas como emergiram recentemente uma série de categorias, por
exemplo, nos manuais estatísticos com os quais lidam os psiquiatras - o famoso
de DSM, a última edição DSM-5 - como surgem novas classificações de
transtornos mentais, como essas classificações geram critérios, como isso
interage com pessoas classificadas e os comportamentos delas são julgados de
certa maneira. Com isso também vão sendo geradas emergências de instituições
em distintos âmbitos acadêmicos e não acadêmicos nos quais proliferam essas
classificações, como vão gerando conhecimentos especializados e não
especializados, e como tudo isso vai sendo assumido por profissionais que
trabalham em instituições que certificam esse conhecimento, que diagnosticam
a partir dele… Isso tem efeito sobre subjetividades, vão se refinando as
categorias e assim é o efeito, o looping effect. Bem, é isso que tem nos interessado
e há alguns casos concretos. Destaco [inaudível] e seu grupo, que está estudando

347
revista de teoria da história 2 2020

o autismo como classificação interativa; aos colegas de San Luís que estão
estudando os diagnósticos de dislexia e como estão crescendo
exponencialmente. Mas como você bem disse, são todas classificações que
surgiram no âmbito da normalização – e muitas vezes da normalização em
instituições pedagógicas. É ali que se visualiza a criança que apresenta diferenças
na maneira que lê, que escreve, que presta atenção etc. Há uma medicalização,
medicamentalização e patologização das infâncias e da adolescência que está
preocupando muito os analistas e educadores (da educação comum e especial)
que não querem aderir à normalização, à medicalização, à patologização e à
medicamentalização, e sim tratar a questão de outra forma. Eles me ensinam
muito.

PSICANÁLISE E EPISTEMOLOGIA HISTÓRICA


ENTREVISTA COM MARCELA BATÁN
TEXTO SUBMETIDO EM 13/07/2020 • ACEITO EM 18/11/2020.
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

348
revista de teoria da história 2 2020

RESENHA

PIKETTY, Thomas. Capital et idéologie. Paris: Seuil, 2019

A PERSPECTIVA HISTÓRICA
DAS IDEOLOGIAS DA
DESIGUALDADE NO
RECENTE LIVRO DE
THOMAS PIKETTY
FLÁVIO DANTAS MARTINS
Universidade Federal do Oeste da Bahia
Barreiras | Bahia | Brasil
flaviusdantas@gmail.com
orcid.org/0000-0001-5275-5761

349
revista de teoria da história 2 2020

Lançado em setembro de 2019, Capital et idéologie, o mais novo livro do


economista francês Thomas Piketty, catapultado a intelectual cosmopolita pelo
sucesso de sua publicação anterior, O Capital no século XXI, um inusitado bestseller,
ao mesmo tempo continua e inova o trabalho anterior. Combina tanto um
economista rigoroso com baterias de quadros, gráficos e referências, com um
inovador anexo técnico online no sítio eletrônico do autor, quando um cidadão
engajado na construção de um socialismo igualitário e democrático
transnacional-europeu. O livro também propõe inovações políticas e
intensificação da integração institucional para a União Européia inspiradas nas
federações estadunidense e indiana. Mas sobretudo, é um livro de história das
ideologias de justificação da desigualdade que se inicia no medievo euro-
ocidental, faz algumas saídas para América e Ásia pensando colonialismo e
escravismo e propõe novas taxonomias políticas para o cenário político-eleitoral
de Europa Ocidental e Estados Unidos. O objetivo deste texto é apresentar essa
obra, discutir sua tese fundamental e alguns conceitos interessantes debatidos
por Piketty, bem como tecer algumas considerações pontuais.
Formado pela Escola Normal Superior, onde estudou matemática e
economia, Piketty trata desde sua tese de doutorado, em 1992, dos temas de
desigualdade social e distribuição. Entre 1993 e 1995, foi professor assistente no
Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Ao retornar à França, trabalhou no
Centro Nacional de Pesquisa Científica e se tornou o primeiro diretor da Escola
de Economia de Paris em 2006. Atuou como assessor econômico do Partido
Socialista na campanha presidencial em 2007. Em 2013, publicou O Capital no
século XXI que vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares. Desde então, defende
como solução para desigualdades a taxação de altas rendas, grandes fortunas e
heranças. Desde então, se transformou num dos principais intelectuais
cosmopolitas da atualidade. Não é o intelectual europeu-ocidental de esquerda
mais influente de nosso tempo, mas é possivelmente um dos economistas mais
importantes e certamente um dos mais jovens.
O livro Capital et idéologie tem 1200 páginas, divididos em uma introdução,
uma conclusão e quatro partes com 17 capítulos. A primeira parte trata dos
regimes desiguais (régimes inégalitaires) na história europeia; a segunda estuda as
sociedades escravistas e coloniais durante a modernidade; a terceira aborda as
grandes transformações no século XX, especialmente as sociedades de
proprietários, as social-democratas, os comunistas e pós-comunistas e o que
Piketty chama de hipercapitalismo; a quarta parte trata da formação de uma nova
sociedade estamental (société trifonctionnelle) onde uma elite de mercado de direita
e uma elite intelectual – no sentido de possuidores de mais diplomas, ou seja,
alto grau de escolaridade –, a esquerda brâmane (gauche brahmane), bem como da
alternativa que já se constituiu, um movimento social-nativista, e da proposta do
próprio autor de um socialismo participativo que construa instituições
transnacionais fiscais e de bem-estar social.

350
revista de teoria da história 2 2020

Continuação de O Capital no século XXI, Capital et idéológie pretende ser uma


história das ideologias de legitimação da desigualdade numa perspectiva de longa
duração, já que trata desde a idade média europeia, passando pela idade moderna
de Europa, Américas e algumas regiões asiáticas, até o período contemporâneo.
A segunda palavra do título é frustrante para quem esperava uma crítica
hermenêutica ou uma história das ideias econômicas, ao estilo de Teorias do mais-
valor, o famoso livro IV de O Capital de Marx ou coisa parecida com uma história
das ideias economicas, pelo menos as dos economistas. Embora trate com certo
detalhe das justificativas da desigualdade no medievo europeu ocidental, na Índia
colonial britânica, nas Antilhas Francesas do período do Iluminismo ou mesmo
da defesa do que ele chama de proprietarismo autoritário de Friedrich Hayek –
no Brasil mais conhecido por neoliberalismo, palavra pouco frequente no léxico
do francês – o forte das páginas do livro é a análise das desigualdades à partir de
dados estatísticos, mais ou menos precários, concentrado especialmente em
França, Estados Unidos e Reino Unido, mas com análise de dados na Rússia,
Índia, Brasil, entre outros países. O conceito de ideologia de Piketty é
relativamente simples: ela é um conjunto de ideias, símbolos, discursos e
representações que legitima uma determinada organização social. Entram como
exemplares dessas ideologias da desigualdade desde monges cristãos do medievo
até economistas liberais e esquerdistas da elite intelectual do status quo do século
XXI.
Nesse sentido, o livro além de ampliar a análise de dados em relação a O
Capital no século XXI, centrado basicamente em França, Estados Unidos e Reino
Unido, com análises de Brasil, China, África do Sul e Índia, ele complementa sua
análise das ideias que justificaram esses sistemas de desigualdades, inclusive o
atualmente existente, aquilo que ele chama de hiperacapitalismo. Continua sendo
análise do capital. Em certo sentido, o livro também completa o livro anterior já
que, embora além de economista, possa parecer economicista – na medida em
que Piketty entende que as ideologias surgem à partir da realidade desigual e para
justificá-la, mimeticamente – o autor defende uma filosofia da história
antieconomicista. Para ele, a locomotiva da história é o embates de ideias.
Pegando emprestado a metáfora ferroviária de Karl Marx e Engels, mas
substituindo a luta de classes pela luta de ideias e ideologias. Não deixa de ser
um paradoxo, ou talvez uma contradição mesmo. Se sua tese é que as ideologias
de justificação das desigualdades aparecem em sociedades desiguais para
legitimá-las, não seria o autor um materialista? Talvez aí tenhamos um caso em
que se fala de uma filosofia da história idealista e pratica uma outra operação
historiográfica materialista. Explica-se: quando afirma que a história se move
pela luta de ideias ele dá um sentido geral, transhistórico, à história, nesse sentido
haveria uma filosofia da história. Mas na medida em que Piketty compreende
que as ideologias provém de contextos sociais determinados por hierarquias e
relações de desigualdades de bens, renda, capital e conhecimento socialmente
valorizado, na prática, sua metodologia é materialista. Por outro lado, podemos
ler sem problemas da seguinte forma: Piketty é um economista que faz análise
material econômica das ideias, mas como cidadão, é um idealista que acredita na
comunicação democrática e no debate das ideias.

351
revista de teoria da história 2 2020

A discussão de Piketty sobre o mundo pós-comunista é bastante


interessante. Ele se concentra em Rússia, China e Polônia, embora generalize
esta para o leste europeu e não trata nem do sudeste asiático não-chinês, nem
dos socialismos africanos ou latino-americanos – com excessão de uma breve
menção à Venezuela, que à rigor, só pode ser considerado socialismo em uma
abertura muito grande do conceito. Para ele, enquanto a Rússia saiu de um
comunismo extremamente igualitário em termos de renda para uma cleptocracia
ou plutocracia de oligarquias entre as mais desiguais do mundo, a Polônia e
demais países do leste conseguiram conter a concentração de renda e patrimônio
nos processos de privatização. Ao contrário, a China, manteve-se no campo
comunista, conservando 30% de propriedade estatal e flexibilizando o acesso à
propriedade privada, mas ainda sem conseguir uma progressão fiscal ou mesmo
uma democracia. Piketty considera com vagar os argumentos chineses contra as
instituições democráticas ocidentais, que seriam vulgares, hipócritas, ao
disfarçarem sob a igualdade política jurídica uma extrema desigualdade de poder,
ao tempo em que as eleições reforçariam o identitarismo e consequentemente a
xenofobia, o nacionalismo chauvinista, o separatismo e a instabilidade. Ao final,
considera que no leste europeu a ideologia dominante, graças à desilusão pós-
comunista e à inexistência de polarizações entre conservadores e social-
democratas típicas da Europa ocidental e dos EUA, é um social-nativismo,
característico dos democratas estadunidenses do século XIX. Ele se
caracterizaria por um questionamento às desigualdades e aos ricos ao mesmo
tempo em que se baseia em uma identidade excludente, por vezes racista, e
conservadora, por vezes religiosa – seu exemplo é a defesa do PiS de uma
Polônia tradicional, católica e conservadora frente aos valores liberais da Europa
ocidental.
Merece uma atenção mais cuidada a inovação conceitual trazida na obra
no tocante à análise dos processos políticos-eleitorais de países como França,
Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, e para contraste, Índia e Brasil.
Resumidamente Piketty propõe a ideia de que os partidos socialista, social-
democrata, trabalhista e democrata (França, Alemanha, Reino Unido e Estados
Unidos respectivamente) tinha bases eleitorais, desde pelo menos os anos 1950,
entre os grupos menos escolarizados e, por dedução, os setores operários e
populares de suas respectivas sociedades. Uma tendência acentuada após os anos
1990 indica que estes partidos se deslocaram cada vez mais para os grupos mais
escolarizados de suas respectivas sociedades. Desligando-se de sua base popular,
esses partidos se transformaram em elites letradas, ou para usar um vocabulário
baseado no sistema de castas hindu, uma esquerda brâmane (gauche bramane). Seus
opositores tradicionais, a direita clássica, que tinha sua base nos setores mais
escolarizados e de maior renda, perderam espaço entre os primeiros para a nova
esquerda brâmane, mas conservaram sua base de apoio nos setores de mais alta
renda e que concentram o patrimônio do país. Temos, então, em pleno
hipercapitalismo – o capitalismo após a queda dos regimes comunistas de
inspiração soviética e de reformas nos comunismos asiáticos – uma nova forma
de sociedade estamental (société trifonctionnelle) na qual há uma elite intelectual, a
esquerda brâmane que ocupa o lugar de um clero secular, uma elite econômica,
a direita do mercado que concentra renda e patrimônio como a nobreza, e um
gelatinoso terceiro estado. A polarização política, conclui Piketty, deixou de se
basear em aspectos classistas, como nos anos 1950, e ganhou acentuados
aspectos de desigualdade social e educacional. Esse afastamento tanto da direita
de mercado e especialmente da esquerda brâmane de suas bases se deve, analisa
o economista, por conta da adesão dos dois grupos à ideologia neoproprietarista

352
revista de teoria da história 2 2020

(néopropriétarisme), de Regan-Tatcher, especialmente nos aspectos da fábula – para


lembrar Milton Santos e sua análise da globalização – da meritocracia. Essa
esquerda brâmane teria sérias limitações de lidar com o problema da
desigualdade social porque ela própria tem posições de status que se beneficiam
de uma outra desigualdade, a de diplomas e educação. Embora o diagnóstico do
deslocamento da esquerda eleitoral de suas bases classistas para grupos cada vez
mais escolarizados seja acertada, ao caracterizar apenas a esquerda brâmane
como uma elite intelectual, Piketty tira o destaque que Think-thanks e intelectuais
ligados à direita de mercado possuem e exercem, ao lado da esquerda, e com
maior alcance que ela, como elite intelectual.
Com a economia mundial fazendo água e as desigualdades crescendo
assustadoramente, o terceiro estado que não se beneficiou nem com renda, nem
com diplomas, nem com patrimônio no auge da ideologia neoproprietarista, que
vai dos governos Reagan-Tatcher-Pinochet até a crise de 2008, tem sido
seduzido cada vez mais por discursos populistas de esquerda e de direita. Mas
Piketty não usa o conceito de populismo. Ele o rejeita por ser demasiado
ideológico. Populista é aquilo não se encaixa nem nos termos da direita de
mercado, nem da esquerda brâmane. Para dar conta dos movimentos políticos
que surgiram em resposta à essa nova sociedade estamental, Piketty propõe uma
divisão quadripartite das forças políticas ideológicas : 1) Internacionalista -
igualitário; 2) Internacionalista - desigualitário; 3) Nativista - igualitário; 4)
Nativista - desigualitário. Essa divisão é importante porque o problema da
imigração – e do racismo – divide o eleitorado em proporções semelhantes.
Internacionalistas podem ser defensores de políticas distributivas, como
Mélechon ou defensores da desigualdade, como Macron. Os nativistas podem
ser defensores das desigualdade, como Fillon, ou de medidas distributivas, como
Le Pen. Um conceito que se desdobra dessa divisão é o de social-nativismo –
uma versão atenuada, aliás, de nacional-socialismo. De acordo com ele, tal
movimento tem seu arquétipo no partido democrata dos EUA durante o século
XIX. Defendendo políticas distributivas e solidárias para com imigrantes pobres
brancos, irlandeses e italianos, os democratas eram antiabolicionistas, antes da
guerra civil, e segregacionistas depois dela. Apenas com a virada do partido em
meados do século XX em prol do movimento pelos direitos civis nos Estados
do Sul é que o eleitorado segregacionista do partido democrata passou à órbita
do partido republicano. O social-nativismo contemporâneo, embora seja em
alguns casos um oportunismo eleitoral para Piketty, se caracteriza, na Europa e
nos EUA, por partidos xenófobos, anti-imigrantes, ao mesmo tempo em que
defendem medidas distributivas para os nacionais. Duas considerações podem
ser feitas sobre essa inovação conceitual de Piketty. A primeira delas é procurar
um termo que atenue as implicações de utilizar o sinônimo nacional-socialismo.
Não havia no movimento nazista um programa inicial de extermínio. O
genocídio como solução final só foi posto em prática após anos debatendo e
praticando a cassação de cidadania, a deportação em massa e a escravização em
campos. Embora o extermínio por fuzilamento massivo de judeus e poloneses
já ocorresse nas terras da Ucrânia e da Polônia ocupadas após a invasão da URSS,
não havia, de antemão, um plano de assassinato em escala para os judeus da
Europa Ocidental. Isso não significa que o genocídio não estava no horizonte
ideológico do nacional-socialismo alemão. Implica, na verdade, que também está
presente nas ideologias social-nativistas de hoje, que defendem prioritariamente
fechamento de fronteiras, políticas anti-imigratórias e deportação. Outra
consideração sobre esse conceito é que ele é extraordinariamente análogo ao
conceito desenvolvido pelo cientista político e filósofo camaronês Achille

353
revista de teoria da história 2 2020

Mbeme em seu livro Politiques de l’inimitié. Para ele, a erosão da democracia se dá


pela ascensão de ideologias que reconfiguram o racismo na forma de defesa de
sociedades formadas exclusivamente por semelhantes. Essas ideologias
defendem a impossibilidade de coabitação entre diferentes. A similaridade dos
dois conceitos é bastante interessante e a possível complementaridade poderia
ser brilhantemente explorada, já que o social-nativismo se baseia na análise de
um economista sobre dados estatísticos eleitorais combinados com outros sobre
desigualdade de renda e patrimônio, enquanto a noção de comunidade dos
semelhantes se baseia numa análise política da contemporaneidade à luz de
mudanças estruturais do mundo pós-colonialismo que reconfigura o racismo, o
equilíbrio demográfico global e a divisão internacional do trabalho.
Outro aspecto importante do livro de Piketty é sua discussão do conceito
de neoproprietarismo. Na primeira vez que o termo aparece, a tentação de
pensá-lo como neoliberalismo é automática, mas à medida em que ele é
desenvolvido por Piketty o leitor percebe que está lidando com outra coisa. O
proprietarismo seria uma ideologia justificadora da desigualdade social com base
na ideia de censitarismo, característica do século XIX. O neoproprietarismo,
embora tributário do pensamento de Friedrich Hayek, seria uma ideologia de
justificativa da propriedade baseada na ideia de meritocracia. O conceito tem a
vantagem de ampliar, para além do liberalismo clássico e do neoliberalismo
contemporâneo, a amplitude da ideologia de legitimação da desigualdade. Para
além da direita de mercado, liberal, seriam neoproprietaristas também a esquerda
brâmane, incapaz de romper com a narrativa de história mundial do reaganismo
e reprodutora da fábula da meritocracia. Ao mesmo tempo em que o
neoproprietarismo é mais amplo que o liberalismo, é possível mesmo questionar
se não se trata de um conceito que salva a ideologia política liberal, já que
poderíamos considerar a existência de liberalismos não proprietarista?
Especificamente sobre o Brasil, Piketty analisa as eleições de 2018 nas
quais ele destaca que é possível notar com clareza a sobreposição de elementos
classistas, raciais e regionais na escolha dos candidatos favoritos, o presidente
eleito Bolsonaro e seu oponente derrotado, Haddad. O eleitorado se dividiu nas
tendências em que negros – Piketty não fala em negros e mestiços, quando no
Brasil a categoria negro engloba os mestiços não brancos e os pretos – e pobres
do Nordeste que votaram no PT, e brancos, classe média do sul votam no que
Piketty considera um nacionalismo-conservador de Bolsonaro. O economista
francês também destacou o caso semelhante da Índia, no qual o aspecto religioso
é distinto do caso brasileiro – o nacionalismo hindu de Narendra Modi é anti-
islã e persegue mesmo minorias cristãs, enquanto no Brasil o conservadorismo
nacionalista cristão não raro convive com perseguições a terreiros de religiões
afro-brasileiras e desrespeito com religiosidades indígenas através do incentivo à
atividades missionárias. Mas de resto, tanto Índia, quanto Brasil, na visão de
Piketty, apresentam estruturas eleitorais classistas típicas dos países ocidentais
dos anos 1950 e 1960 – onde não faltavam clivagens com elementos raciais,
como a transição do eleitorado negro para o partido democrata estadunidense
nos anos 1960. Servindo de contraexemplo, Piketty não considera que nem
Bolsonaro, nem Modi são social-nativistas, o que para o caso brasileiro faz
bastante sentido já que o governo atual combina o discursos nacionalista
conservador com o neoliberalismo em agenda econômica. Em termos de dados
para o caso brasileiro, Piketty não apresenta grandes novidades para quem
acompanha o debate nacional. Apresentado como um dos países mais desiguais
do mundo, o que em parte se deve ao passado escravista – Piketty destaca que
São Domingos na véspera da revolução foi, provavelmente, a sociedade mais

354
revista de teoria da história 2 2020

desigual da história, dizendo que algo parecido com isso foi o Sul escravocrata
dos Estados Unidos – o Brasil é apresentado como um país cujas eleições são
divididas com clivagens de classe, raça e região. Embora um pouco
decepcionante ou sem grandes novidades, para alguns leitores, o interessante na
contribuição para o debate brasileiro de Piketty é que ele serve de ressalva para
comparações realizadas com países ocidentais, tão comuns por aqui, quando
equiparam realidades do Brasil com Estados Unidos, Hungria, Polônia. A
ressalva está em que aqui a questão de classe é mais estruturante que nesses
países, nos quais o problema do nativismo/internacionalismo está na ordem do
dia. Outra questão importante seria a inexistência, entre nós, de uma esquerda
brâmane, o que não é tão certo quanto à existência de uma direita de mercado.
O livro levanta o caso da Índia, que apareceu no radar da comparação dos
analistas graças à recente viagem do presidente Bolsonaro ao país de Modi.
Nesse sentido, a contribuição de Piketty é de elementos originais para a análise
da realidade ocidental – para Piketty ocidente é Europa Ocidental e Estados
Unidos – sendo possível acrescentar elementos para a análise comparativa de
fenômenos políticos.
Não tivesse os méritos da densa discussão, das propostas, do
embasamento empírico e da inovação conceitual no campo da análise política, o
livro já seria importante pela transformação de aspectos importantes de uma
crítica anticolonial se não em consenso, mas em senso comum. Nesse sentido, o
livro é um testemunho do aprendizado do europeu em se atentar para
especificidades fora de suas fronteiras e dos riscos da generalização. As
desigualdades são produtos de complexos processos históricos e agentes
econômicos, construídas ideologica e politicamente. Elas são particularmente
graves em países onde houve escravidão e colonialismo, condições estruturantes
da desigualdade contemporânea no mundo. Ao mesmo tempo, o livro é modesto
no alcance crítico na análise da persistência dessa herança colonial e do trabalho
escravizado e forçado nesses países. O que não é uma desvantagem, já que indica
prudência e evita generalizações, especialmente de caráter eurocêntrico.
Capital et idéologie é parte de um projeto ambicioso, produto de um
embasamento empírico quantitativo farto e com uma construção retórica
bastante bem desenvolvida, fundamentada historicamente e de grande alcance
teórico. O pesado aparato científico não impede o livro de ser profundamente
engajado na proposição de um socialismo participativo que crie instituições
transnacionais, sem repetir a estatização da propriedade privada dos regimes
soviéticos, local onde a propriedade estatal era sacralizada, tendo como modelo
o Estado de bem estar social de alguns países ocidentais no período 1960-1990.
Sem novidades conceituais do ponto de vista da discussão do conceito de
ideologia, é uma boa síntese do ponto de vista de uma história das ideias de
justificação da desigualdade em sua abordagem de sociedades estamentais na
Europa ocidental, de sociedades escravistas e coloniais na América e da realidade
indiana, incorporando na consciência de esquerda européia ocidental elementos
do pensamento crítico anticolonial das periferias capitalistas. Em termos de
novidades conceituais, o livro contribui na categorização do cenário político
contemporâneo de Estados Unidos e Europa Ocidental ao propor uma divisão
quadripartite do campo do poder, dividido em internacionalistas-igualitaristas,
internacionalistas-desigualitaristas, nacionalistas-igualitaristas e nacionalistas-
desigualitaristas. Outras inovações conceituais são os conceitos de social-
nativismo e de ideologia neoproprietarista, que se sustenta na ideia de
meritocracia, este último abrangendo tanto a direita do mercado quanto à
esquerda brâmane.

355
revista de teoria da história 2 2020

A principal crítica ao livro poderia ser formulada da seguinte forma: ele


começa grande e ambicioso, sem medo de polêmicas, ao analisar as sociedades
estamentais do período medieval europeu, cresce na análise da modernidade ao
tratar de realidades escravistas na América, abrange áreas da Ásia e do leste
europeu na discussão sobre desigualdade, mas se circunscreve absurdamente em
suas proposições. Ao final do livro, sua proposta de instituições políticas
transnacionais que financiaram o bem estar do socialismo participativo através
da progressividade fiscal limita-se aos países mais populosos da União Européia.
Essa restrição das propostas e falta de universalidade, como já notado acima, é
antes um acerto que um problema do texto. Mas em que medida essa igualdade
continental não implicaria em desigualdade global? O próprio Piketty, ao tratar
da dívida imposta ao Haiti independente pela França destaca a importância do
pagamento dessa dívida para financiamento das grandes fortunas no século XIX.
As relações entre tráfico escravo e mercado financeiro altamente concentrador
de renda também são evidenciadas na abordagem histórica. Mas no tocante ao
problema levantado pela teoria da dependência sobre desigualdades de trocas na
economia mundial não aparece como um problema a ser enfrentado pelo
socialismo participativo europeu. A crítica poderia se resumir grosseiramente e
se desenvolver à partir de uma pergunta: se a taxação dos mais ricos financiará
o bem estar europeu do socialismo participativo, onde se formam as grandes
fortunas taxadas? Podemos até considerar que os dados produzidos e
apresentados no livro pouco oferecem sobre isso, mas se o próprio autor destaca
a ingerência neocolonial de países ocidentais sobre suas ex-colônias em África,
em que medida o não questionamento dessa desigualdade regional pode persistir
mesmo em um socialismo participativo implantado transnacionalmente… em
algumas nações numa península? Na medida em que as grandes fortunas do
ocidente se baseiam em um mercado mundial capitalista, seria possível produzir
igualdade na Europa sem reproduzir desigualdade nas periferias desse mercado?
Nesse sentido, se Piketty é claramente um igualitarista, quais os limites
internacionalistas do seu modelo? Em que medida um estado periférico que
obtém parte significativa de suas rendas à partir da exportação de bens primários
pode financiar, por si só, um socialismo participativo, economicamente, ainda
que as condições políticas lhe fossem propícias? Sabe-se, e quem não souber
pode aprender lendo os livros do economista francês, que a economia só se
desliga da política no campo da imaginação e, com ressalvas, no campo da teoria,
além, é óbvio do campo da ideologia. Se é possível imaginar que países com
pequena população e com produtos primários altamente valorizados – por
enquanto –, como Kwait, Qatar ou mesmo Arábia Saudita poderiam, se
taxassem as grandes fortunas, financiar um estado de bem estar social para seus
habitantes, podemos mesmo aceitar mais facilmente a hipótese de que países de
dimensões continentais como Índia, China ou Brasil o fizessem, em que medida
existirão condições econômicas e políticas para um socialismo participativo
financiado pela taxação progressiva de grandes fortunas em Uganda, Bolívia ou
Bangladesh? Esses países precisariam se unir em federações, mas isso seria
possível sem confrontamento com estados e corporações ocidentais? Na medida
em que países que são dependentes de capitais estrangeiros e que estes
organizam poderosos lobbys com constantes ameaças de fugas de capitais
quando se desenha qualquer política de progressividade fiscal para financiar bem
estar social, o socialismo participativo europeu se transforma em uma proposta
com limites. Os mesmos limites do período social-democrata, dos anos 1950-
1980, em que estes desfrutavam de serviços públicos universalizantes fora das
fronteiras de alguns países a guerra fria se transformava em conflitos abertos

356
revista de teoria da história 2 2020

entre estados, guerras civis, estados falidos e máquinas de guerras em locais com
matérias-primas de alto valor e importância geopolítica. É sobre esses limites de
um modelo social-democrata na forma de uma proposta de socialismo
participativo que a discussão, feita do lado de cá, mais nos interessa.

REFERÊNCIAS

PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução Monica Baumgarten de Bolle. Rio
de Janeiro: Intríseca, 2014.
MBEMBE, Achille. Politiques de l’inimitié. Paris: La Découverte, 2016.

A PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS IDEOLOGIAS DA DESIGUALDADE


NO RECENTE LIVRO DE THOMAS PIKETTY
TEXTO RECEBIDO EM 18/03/2020 • ACEITO EM 01/08/2020
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

357
revista de teoria da história 2 2020

RESENHA

SIMON, Zoltán Boldizsár. History in Times of Unprecedented


Change: A Theory for the 21st Century. Bloomsbury Publishing,
2019.

A HISTÓRIA [OCIDENTAL]
EM TEMPOS DE
MUDANÇA INAUDITA
MARCELO DURÃO RODRIGUES DA CUNHA
Instituto Federal do Espírito Santo
Vitória | Espírito Santo | Brasil
marceloduraocunha@gmail.com
orcid.org/0000-0001-6585-6836

358
revista de teoria da história 2 2020

Não são poucos os intérpretes que tendem a enxergar a assim chamada


filosofia da história a partir de uma divisão entre aqueles que seriam, por um
lado, os interesses dedutivo-especulativos desse campo e por outro, as suas
preocupações analíticas. Se a primeira dessas linhas de interesse se debruça
sobre os sentidos e propostas da história vista como um processo, a segunda
trata dos fundamentos da história entendida enquanto um saber (Tucker 2009,
3-4; Doran 2013, 6-7; Paul 2015, 3-5). É mais ou menos consensual, de igual
modo, que essa divisão entre especulação e análise acentuou-se a partir da
segunda metade do século XX, com o esgotamento dos grandes modelos
filosóficos que visavam dotar de sentido o processo histórico, analisando-o sob
a otimista ótica moderna do decurso do tempo. Incapaz de especular sobre “a
história em si” (fragmentada pelos traumas da primeira metade do século
passado), a filosofia da história passou a se preocupar cada vez mais com os
contornos do próprio conhecimento histórico1. Nas últimas cinco décadas,
essa divisão não apenas se intensificou como a filosofia da história viu o seu
escopo ser reduzido drasticamente em duas linhas gerais de interesse: a análise
das experiências temporais e o estudo das narrativas. Se no primeiro caso
predominaram teses sobre as limitações das formas modernas de trato com o
tempo (como a famosa discussão a respeito do “presentismo”), no segundo,
prevaleceram estudos preocupados em desnudar o caráter incontornável da
linguagem na produção de conhecimento e nas formas de relação com o
passado. Por maiores que sejam os esforços em apartar essas duas tendências,
elas apontam para uma característica comum tanto à experiência quanto ao
conhecimento histórico nesse início de século XXI: para o imobilismo
engendrado pelas consequências presentistas e narrativistas derivadas da
filosofia da história contemporânea.
Foi em parte a tentativa de escapar dessa “jaula de aço” da filosofia da
história o que motivou Zoltán Boldizsár Simon à escrita de History in Times of
Unprecedented Change (2019), um ambicioso trabalho teórico, cujos objetivos se
relacionam diretamente com o esforço de superação do engessamento
presentista e narrativista atualmente associados à reflexão e à própria
experiência histórica do mundo ocidental. Mesmo que dotada de tal ousadia, a
hipótese sustentada por Simon nessa direção é relativamente simples: ele
afirma que a sensibilidade histórica moderna—aquela que dá sentido ao mundo
e aos seres humanos em termos de um processo de desenvolvimento “singular
coletivo” (Koselleck 2006) — foi radicalmente desafiada por outra que vem
ganhando destaque desde os primeiros anos do pós-Segunda Guerra, qual seja,
a sensibilidade da mudança inaudita. Essa sensibilidade histórica surgida no
pós-guerra, entretanto, não foi explicitamente abordada, explicada ou
conceituada seja pelos teóricos do presentismo ou pelos adeptos do
narrativismo. É nesse sentido que, a partir de uma abordagem alternativa,
Simon busca obter uma compreensão dessa nova condição histórica das
sociedades ocidentais, articulando-a e conceituando-a na forma de uma
perspectiva teórica mais complexa e melhor adequada a esse tipo de desafio.
Mas o que exatamente seria essa nova sensibilidade histórica e por que essas
teorias “tradicionais” da temporalidade e da linguagem passariam ao largo de
sua compreensão?

1 Um marco nesse debate foi a divisão estabelecida em por Arthur Danto entre as

abordagens “substantivas” e “analíticas” da filosofia da história, estando a primeira associada à


especulação sobre o decurso e os sentidos últimos da história e a última aos problemas
conceituais que surgem da prática da reflexão histórica (Danto, 1965).

359
revista de teoria da história 2 2020

A resposta de Simon a esses questionamentos se dá a partir de uma


elementar reordenação do próprio sentido ontológico da história. Ao contrário
da premissa tradicional segundo a qual a história se dedicaria ao passado, a
história existiria essencialmente a partir da preocupação humana com as
possibilidades do futuro. É aí que reside a função do sentido moderno da
história, tanto enquanto sensibilidade, quanto enquanto disciplina, isto é: tornar
familiar a estranheza inerente ao futuro, associando a novidade ao estágio mais
recente de um longo (porém conhecido) processo de desenvolvimento. Mas se
muitos foram os autores que trataram das peculiaridades da história moderna,
apontando para as vantagens e desvantagens dessa sua forma de ordenar a
novidade, Simon acredita que tais esforços não foram suficientes para
compreender a maneira como o Ocidente tem lidado com a mudança histórica
ao menos desde a segunda metade do século XX. À luz do risco da extinção
nuclear, das mudanças climáticas antropogênicas, da tecnologia associada à
inteligência artificial, da bioengenharia e do transumanismo, o mundo ocidental
do pós-guerra deixou de vincular o futuro a mudanças oriundas de um
desenvolvimento prévio, para relacioná-lo cada vez mais a essa assim chamada
sensibilidade histórica do inaudito. Esta seria marcada por três características
principais: 1-pela perda do conceito de história como o desenvolvimento de
um único sujeito (“a liberdade”, “a razão” ou “a humanidade”), 2-pela erosão
da noção de mudança associada a estágios de desenvolvimento e 3-pela perda
das visões de futuro que confirmariam a realização potencial desse
desenvolvimento (Simon 2019, 5). A antiga relação associativa com o passado
deu lugar a uma forma dissociativa de trato com acontecimentos pretéritos,
uma vez que as mudanças passaram a não mais derivar do estágio precedente
das coisas, mas do inaudito, da mudança sem precedentes. Esse quadro
também contribuiu para alterar as possibilidades inerentes à própria condição
humana já que a sensibilidade histórica do inaudito trouxe consigo a
perspectiva de alteração radical, ou mesmo de extinção, do ser humano e
daquele antigo desejo moderno de antecipação do futuro.
Essa nova sensibilidade histórica representou, portanto, uma óbvia
ruptura em relação à maneira moderna de entendimento da história, de modo
que muitos teóricos buscaram classificá-la através de um repertório conceitual
associado à ideia de descontinuidade ou mesmo de suspensão do tempo
histórico e das formas modernas de representação do passado, como é o caso
das já mencionadas hipóteses do presentismo (de autores como François
Hartog, Aleida Assmann e Hans-Ulrich Gumbrecht) e do narrativismo (que
teve, no caso da história, Hayden White como expoente principal). Simon
aponta três razões pelas quais a primeira dessas hipóteses se mostra insuficiente
no entendimento da sensibilidade histórica do inaudito: 1-por seu fatalismo
imobilista que, aos moldes da tese de Francis Fukuyama sobre o “fim da
história”, privaria a história da ideia de mudança; 2-por sua restrição ao âmbito
sócio-político, ignorando as expectativas futuras inerentes aos domínios
tecnológico e ecológico; e 3- pela contradição do seu entendimento da ideia de
historicidade (sempre ontologicamente orientada ao futuro), de modo que se o
presentismo fosse real ele deveria apontar contraditoriamente para a existência
de um “regime de a-historicidade” (Simon 2019, 4-5). Já o narrativismo
cumpriu uma importante função ao apontar para o papel da linguagem na
domesticação da mudança (já que as narrativas históricas contribuíram para
enclausurar a novidade em herméticos discursos sobre trajetórias de
desenvolvimento) e no empoderamento de movimentos identitários surgidos
na segunda metade do século passado. Esses elementos tornam o narrativismo

360
revista de teoria da história 2 2020

mais um sintoma (um “contrapeso”, nas palavras do autor) do que uma forma
adequada de entendimento da mudança inaudita. Pois na medida em que os
seus teóricos visaram classificar a historiografia no interior de uma ampla
ordem de discursos modernos (como a tese de White sobre “o texto histórico
como artefato literário”), o narrativismo deixou de considerar as
especificidades daquilo que há de propriamente histórico na escrita sobre o
passado (Simon 2019, 19). Simon sustenta que é justamente essa falta de
apreço pelas características sui generis da historiografia o que torna o
narrativismo inadequado à compreensão da sensibilidade histórica do inaudito.
Nesse sentido, o autor acredita ser necessário buscar uma posição teórica para
além do narrativismo, a fim de melhor refletir sobre a forma desconexa de
relacionar passado, presente e futuro própria dos tempos de mudança inaudita.
Admitindo a complexidade de tal empreitada, o autor dedica nada
menos que seis capítulos à formulação das bases de uma teoria da história apta
a apreender os contornos dessa nova forma de sensibilidade histórica. Se os
três primeiros capítulos conceituam a história entendida como o curso das
coisas, os três capítulos da segunda parte complementam a hipótese inicial com
uma teoria para a história entendida como escrita histórica. O livro se encerra,
finalmente, com uma reflexão sobre as possibilidades políticas associadas a esse
novo tipo de teoria da história. Na realidade, Simon não esconde em nenhum
momento esse desejo de oferecer certo sentido de emancipação política em sua
teorização, de modo que o primeiro capítulo é uma tentativa de restabelecer a
ideia de movimento histórico a partir do que ele denomina como uma
“filosofia da história quase substantiva”. Entendendo o passado como uma
questão de conhecimento e o futuro como uma questão de existência (de
modo que o movimento histórico não estaria mais associado à “história em si”,
mas à transformação perpétua de questões existenciais em questões de
conhecimento), essa filosofia da história quase substantiva postularia a
mudança no curso das ações humanas sem invocar as ideias de direção,
teleologia e sentido geral, caras ao moderno conceito singular coletivo de
história (Simon 2019, 53). Desse modo, o conceito de história seria doravante
não mais entendido como a mudança nos assuntos humanos vinculados ao
desenvolvimento de um único sujeito ao longo de um continuum temporal,
mas como um “singular disruptivo”: como um espaço de conhecimento
dissociativo e como um horizonte existencial dispostos contra uma prévia
disruptura do tempo (Simon 2019, 57). Restabelecida a possibilidade de se
teorizar sobre a mudança, no segundo capítulo Simon se preocupa em
compreender o tipo de relação com o passado engendrada a partir desse
conceito disruptivo de história. Aqui o argumento central é o de que mesmo
quando o passado é concebido em termos de dissociações de identidade,
estudá-lo é inevitável e tem um papel constitutivo em dar sentido a nós
mesmos e ao mundo. Dessa forma, estudar um passado disruptivo seria a
melhor ferramenta para indicar negativamente quem e o que não somos mais.
Nessas condições, a escrita histórica funcionaria como uma provedora de
conhecimento essencialmente contestado do passado, alternando entre o que o
autor denomina como o passado apofático (uma construção de identidades
estabelecida através da negação) e o passado-presente (o passado que emergiria
como “presença”, de forma abrupta e não linear no tempo presente). Quanto
ao papel do futuro em uma filosofia quase substantiva da história, Simon
defende no terceiro capítulo que contrariamente à sensibilidade moderna de
uma história processual e orientada à utopia, os eventos do pós-guerra levaram
ao surgimento da expectativa do evento distópico, singular, radicalmente

361
revista de teoria da história 2 2020

transformador e inaudito. Logo, a ideia de futuro em uma filosofia da história


quase substantiva estaria associada não mais à temporalidade processual do
período moderno, mas àquilo que o autor denomina como “a temporalidade
do evento” ou uma “temporalidade evental”, isto é, uma forma de se entender
a emergência do futuro como algo sem precedente, disruptivo e dissociado da
antiga lógica desenvolvimentista de conceber a temporalidade na era moderna
(Simon 2019, 101).
Já o capítulo quatro inicia o esboço de uma teoria da história no
sentido da escrita histórica. Neste ponto o objetivo é a superação da tradicional
distância entre a experiência e a linguagem estabelecida pela filosofia da história
do pós-guerra. Classificando essa distância como dogmática, Simon oferece
uma teoria da expressão como forma de situar a linguagem e a experiência
histórica em uma interação produtiva. Assim, a mudança inaudita ocorreria na
historiografia através daquilo que o autor denomina como o processo de
expressão da experiência histórica. Este seria constituído por uma sucessão de
experiências estéticas e éticas associadas ao cotidiano e que culminariam não
mais na mútua exclusão, mas numa relação dinâmica entre o âmbito linguístico
e o não linguístico (Simon 2019, 123-124). Essa é uma hipótese aprofundada
no quinto capítulo, quando o autor trata mais detidamente do que ele entende
como esse momento inicial da experiência com o mundo. Na medida em que o
inaudito representaria o encontro repentino com algo não linguístico, sem
sentido, que resistiria a conceitualização e que seria capaz de romper com
esquemas conceituais pré-existentes, Simon acredita que esse é o momento que
torna possível um processo de enfrentamento dos limites da linguagem e de
busca de formas de expressão. Esse momento atestaria a existência de uma
realidade externa sem, contudo, reivindicar um acesso epistemológico a essa
realidade, de modo que esse “encontro-evental” deveria ser entendido a partir
do que ele denomina como a categoria estética do proto-sublime (Simon 2019,
146). De todo modo, esse encontro com o mundo não necessariamente levaria
à expressão. Incapaz de gerar sentido, ele sequer suscitaria a sua conversão em
linguagem, uma vez que lhe faltaria o impulso necessário para a expressão. É
daí que surge uma demanda ética pela conversão da ausência de sentido em
sentido, sendo este o tema abordado no capítulo seis. Aqui Simon mobiliza
aquela orientação existencial à futuridade presente em sua teoria da história
como curso dos eventos a fim de vincular a expressão na escrita histórica e a
mudança historiográfica à sua concepção de mudança histórica. Dessa forma,
mudança histórica e mudança historiográfica estariam imbricadas por um
impulso ético de busca por sentido contingente às visões humanas (ou pós-
humanas) de futuro e da história entendida como o curso das coisas. É nesse
ponto que Simon acredita ter encontrado a convergência entre essa teoria da
historiografia como expressão da experiência histórica e a filosofia da história
quase substantiva apresentada na primeira parte de seu livro (Simon 2019, 168-
169).
Restabelecida a possibilidade de se teorizar a mudança e a escrita
histórica em tempos inauditos, restaria ainda pensar as eventuais aplicações
dessa teoria na vida prática. Conforme mencionado, Simon dedica o epílogo de
sua obra a uma reflexão sobre as implicações político-emancipatórias de sua
hipótese. E na medida em que a lógica da emancipação política está
intimamente associada à dinâmica moderna de entendimento das possibilidades
de futuro, uma reflexão sobre a política em tempos inauditos desemboca
necessariamente naquilo que o autor denomina de temporalidade evental. Esta
(diferente da temporalidade moderna da emancipação) não diz respeito à

362
revista de teoria da história 2 2020

promessa de agir em favor da realização de um futuro irrealizável, exigindo,


pelo contrário, a ação a fim de evitar um futuro muito provável e ameaçador.
Nesse sentido, pensar a emancipação contemporaneamente implica em uma
necessária reflexão sobre os dois âmbitos elementares abarcados pela hipótese
do inaudito: os âmbitos da natureza e da tecnologia. Estaria a dimensão política
da vida contemporânea fadada ao desaparecimento diante dos avanços da
tecnologia e dos prospectos de colapso ambiental? Ou seria ainda possível
pensar em alguma espécie de controle político das ameaças tecnológicas e
ambientais? Simon não hesita em afirmar que apenas uma resposta positiva a
esta última pergunta permitiria algum tipo de retomada das possibilidades
pragmáticas da emancipação política, mesmo admitindo que estas seriam
definitivamente irreconciliáveis com a dinâmica da temporalidade evental. Não
obstante essas ressalvas e a sua relutância em apresentar quaisquer
prognósticos de longo prazo, o livro se encerra reiterando aquele que o autor
julga ser o maior êxito de sua empreitada teórica: o de ter avançado para além
das teses sobre o “fim da história” em sua teorização a respeito da mudança
histórica no contexto pós-moderno. E mesmo que isso signifique que não
estejamos mais falando de uma história propriamente dita (já que o inaudito
rompe com praticamente todas as premissas “processuais” do conceito
moderno de história), Simon acredita ao menos ter apresentado as ferramentas
para um trato mais complexo e menos fatalista com o que ele acredita ser essa
nova sensibilidade histórica surgida na contemporaneidade (Simon 2019, 189-
190).
Tocando de forma ousada em temas ainda pouco explorados pela
historiografia, History in Times of Unprecedented Change apresenta um tom
propositivo que certamente o transformará em referência incontornável para
os debates futuros da teoria/filosofia da história internacional. No que pesem
as muitas qualidades do trabalho, entretanto, a obra apresenta alguns pontos
cegos que talvez sejam melhor percebidos por uma leitura um pouco menos
eurocentrada e mais cética em relação a algumas de suas premissas. Como, por
exemplo, quando Simon afirma que a moderna sensibilidade histórica seria
uma criação (quase autônoma e auto referenciada) do ocidente iluminista
(Simon 2019, IX). Tomando o conceito de ocidente como algo dado, o autor
não só ignora o caráter global e não exclusivamente ocidental de construção da
modernidade, como deixa de considerar as óbvias contribuições não ocidentais
para o advento da sensibilidade histórica inaudita tão cara à sua teorização.
Afinal, como falar da emergência de mudanças inauditas capitaneadas pelo
avanço tecnológico sem tratar do caso asiático? Ou como falar das expectativas
engendradas por uma hecatombe climática sem mencionar, por exemplo, a
perspectiva das populações indígenas? Essas são lacunas difíceis de serem
compreendidas se considerarmos, sobretudo, o caráter cada vez mais global e
transnacional assumido pela historiografia das últimas décadas.

363
revista de teoria da história 2 2020

Feitas essas ressalvas, o livro de Simon não deixa de trazer valiosas


contribuições para a historiografia, com provocações que certamente serão de
grande utilidade para outros debates contemporâneos da teoria da história.
“Singular disruptivo”, “temporalidade evental” ou a própria ideia de “mudança
inaudita” são insights que podem ser de grande valia, por exemplo, para as
discussões a respeito da história indisciplinada (Turin; Avila; Nicolazzi 2019),
do atualismo (Araujo; Pereira 2018) ou da distopia (Bentivoglio 2019) feitas
nos últimos anos pela historiografia brasileira. Uma vez testadas essas hipóteses
no contexto de nossa historiografia, poderá se provar afinal que, a despeito
dela não ser uma de suas preocupações manifestas, as reflexões de History in
Times of Unprecedented Change podem também se aplicar às periferias do dito
“mundo ocidental” de que trata o autor.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, V. L.; PEREIRA, Mateus Henrique de F. . Atualismo 1.0 - Como a ideia de


atualização mudou o séculoXXI. 1. ed. Ouro Preto: SBTHH, 2018.
BENTIVOGLIO, Julio. História & distopia: a imaginação histórica no alvorecer do século 21. 2.
ed. Vitória: Milfontes, 2019.
DANTO, Arthur C. Analytical Philosophy of History. New York: Cambridge University
Press, American Branch, 1965.
DORAN, Robert (Ed.). Philosophy of History After Hayden White. Bloomsbury Publishing
Plc, 2013.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
PAUL, Herman. Key Issues in Historical Theory. Routledge, 2015.
SIMON, Zoltán Boldizsár. History in Times of Unprecedented Change: A Theory for the 21st
Century. Bloomsbury Publishing, 2019.
TURIN, R.; AVILA, A.; NICOLAZZI, F. F. (Orgs.). A História (in)Disciplinada Teoria,
ensino e difusão de conhecimento histórico. 1. ed. Vitória: Milfontes, 2019.

A HISTÓRIA [OCIDENTAL] EM TEMPOS DE MUDANÇA INAUDITA


TEXTO RECEBIDO EM 02/09/2020 • ACEITO EM 15/11/2020.
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

364
revista de teoria da história 2 2020

RESENHA

REIS, José Carlos. O lugar central da teoria-metodologia na


cultura histórica. 1 ed. Belo Horizonte MG: Editora
Autêntica, 2019.

JOSÉ CARLOS REIS ENTRE


A FILOSOFIA E A HISTÓRIA

RAYLANE MARQUES SOUSA


Universidade de Brasília
Brasília | Distrito Federal | Brasil
marques.raylane@gmail.com
orcid.org/0000-0002-5861-369X

365
revista de teoria da história 2 2020

O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica, de José Carlos Reis, é


uma reunião de artigos, resenhas, prefácios, aulas, conferências e entrevistas
publicados por Reis em coletâneas e periódicos brasileiros ao longo de seu
compromisso como professor e pesquisador no Departamento de História da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Lançada pela Editora
Autêntica, na seção História & Historiografia, em maio de 2019, justamente por
ocasião de sua aposentadoria, a última obra de Reis pode ser definida como uma
obra-memória de sua notável atuação acadêmica.
O sentido da obra-memória de Reis está na passagem entre dois modos
de praticar história: partindo de um dado reflexivo e existencial, chega a fazer
com que entendamos a história como conhecimento e necessidade quase vital.
Um modo de pensar e de viver, podemos dizer assim. Como modo de pensar,
isso significa que a história é teoria, é trabalho com os conceitos, é escolha de
métodos e emprego de linguagens, para conseguir elaborar, mediante o exame
das fontes, imagens que sejam representações do passado, representações do
passado em vários níveis. Como modo de viver, isso implica buscar entre essas
imagens da história, de representações do passado, de formas como esses
passados se apresentam para nós, algo que nos ensine a viver. Em síntese: uma
experiência. Experiência não diz respeito só a uma história prática, mas também
teórica, como uma forma anterior de escolha das coordenadas fundamentais
para nos ajudar na relação com o mundo. Mesclar esses dois modos de praticar
história foi a tarefa a que José Carlos Reis se propôs em toda a sua vida
profissional, como vemos nessa e em outras de suas obras, como História &
Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade, verdade (FGV, 2003), História: a ciência
dos homens no tempo (EDUEL, 2009), A história entre a filosofia e a ciência (Ática,
2006), História da consciência histórica ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur
(Autêntica, 2011), pois comum a todas elas é a reflexão, o pensamento, enfim, o
aprofundamento de questões sobre o passado.
José Carlos Reis não é filósofo por formação, mas, como ele mesmo
gosta de declarar, possui “uma vocação filosófica” (175). A imagem sua que seus
livros nos revelam, ou que nos convence do seu chamado para a filosofia ou
teoria, é mesmo a de um “filósofo que tem como tema a história” (176). Essa
imagem que ele próprio escolheu para si é a que nos permite reconhecer seu
estilo, pensamento e obra: um estilo individual e com expressão de sínteses, um
pensamento abstrato e de cunho existencial, e uma obra que conversa
substancialmente com filósofos e teóricos da história. Ao lado desses aspectos,
há também outro em Reis, o anseio de historiador: o historiador prático, que
“vai ao arquivo com suas questões e as desenvolve apoiando-se nas fontes” (14),
que tem “uma atitude crítica mais lúcida para com as fontes” (14), que “formula
enunciados, problemas, hipóteses e busca e encontra as provas” (15). O que José
Carlos Reis propõe representar de fato é a relação tensa e fecunda ao mesmo
tempo entre a filosofia e a história, e é na aplicação prática que ele vai demonstrá-
la, e não apenas no modo de pensar sobre a história.
Já todo o programa da obra em tela e da atuação acadêmica de José
Carlos Reis é decidido no Capítulo primeiro, intitulado “O lugar central da
teoria-metodologia na cultura histórica”. “Este é o problema que vamos abordar
nessa comunicação: qual seria o valor e o alcance científico do debate
epistemológico-metodológico para a cultura histórica?” (11). Aqui está o tema
da presente obra de Reis, assim como de toda a sua pesquisa teórica; aqui está
também o tema da sua própria atuação acadêmica: a complexa relação entre a
filosofia e a história, ou seja, a reflexão teórico-metodológica. O que é essa
reflexão teórico-metodológica? José Carlos Reis mesmo define:

366
revista de teoria da história 2 2020

a discussão teórico-metodológica se dirige ao sujeito da pesquisa histórica,


ao historiador, ao construtor que formula os problemas, seleciona as
fontes, as elabora e obtém os resultados, com o objetivo de ‘cultivar a sua
subjetividade’, tornando-os mais hábeis, mais eficientes, menos ingênuos,
mais argutos, mais criativos, em sua sofisticada atividade (Reis 2019, 16).

A definição de Reis parece dizer respeito apenas à prática do historiador


profissional, que analisa e interpreta fontes com vistas a produção de um
conhecimento histórico mais aprofundado, mas é claro que ele amplia a
definição mais adiante: a reflexão teórico-metodológica significa uma “atitude
crítica exigida ao historiador e que tem dois momentos inseparáveis, mas
distinguíveis: 1) a história é teoria; 2) a história é rigorosa, criteriosa, crítica
documental” (19). Para Reis, no primeiro momento, a história é teoria, é
“epistemologia, metodologia, gnosiologia, ontologia, ética, política, estética,
linguística” (30), e só no segundo momento, é crítica das fontes, e isso “a partir
de escolhas, decisões, definições, seleções, reflexões e construções teóricas” (30).
A hipótese fundamental do capítulo e da obra “total” de Reis é que a reflexão
teórico-metodológica habita um lugar especial na cultura histórica, porque, ele
explica:
o nome ‘historiador’ requer um adjetivo, dizer eu sou historiador não é
suficiente para definir sua identidade. O interlocutor perguntará:
historiador de que tipo?, de qual tendência, em que perspectiva? O
historiador terá de se redefinir: sou historiador marxista-leninista ou
marxista thompsoniano, sou micro-historiador ginzburguiano ou
reveliano, sou historiador estrutural braudeliano ou da 3ª geração, sou
historiador positivista rankeano, sou historiador cultural empirista. Aliás,
‘empirismo’ é uma teoria da história, é um conceito que define uma
prática, é uma escolha de uma atitude adotada pelo sujeito diante das
fontes. Toda obra histórica é uma ‘teoria’ em movimento, implícita e
realizada, mesmo não explicitada (Reis 2019, 30-31).

Se seguirmos o itinerário da obra, chegaremos a outros dois importantes


temas de pesquisa para José Carlos Reis, o da historicidade e da temporalidade,
e veremos que a operação teórica do autor se move no mesmo sentido de
Reinhart Koselleck e François Hartog. No capítulo segundo, intitulado
“Regimes de Historicidade e Historiografias”, Reis examina Futuro Passado
(Contraponto, 2006) e Regimes de Historicidade (Autêntica, 2013), procurando
compreender o pensamento dos autores acerca do problema do tempo histórico.
Reis parte, de um lado, da metodologia da “história dos conceitos” e,
especialmente, dos conceitos de “espaço de experiência” e “horizonte de
expectativas” construídos por Koselleck, e, de outro, do conceito de “regimes
de historicidade” ou “ordens do tempo” criado por Hartog, para refletir sobre a
tensão entre “tempo histórico real-representado e historiografia” (39), para
captar a estreita relação entre “a representação/realidade do tempo histórico de
uma época e o conhecimento histórico que produz” (39), para mostrar enfim
que “os fundamentos epistemológicos, axiológicos, políticos, estéticos, da
historiografia se enraízam em uma ‘cultura’ cujo centro é uma determinada
representação hegemônica da temporalidade” (39-40).
O objeto e o método da história são mais dois assuntos privilegiados por
José Carlos Reis durante a sua atuação acadêmica. O primeiro, trata-se da nova
concepção do objeto da história, da nova ideia de temporalidade histórica e da
interdisciplinaridade da Escola dos Annales; o segundo, trata-se do método
regressivo/retrospectivo de Marc Bloch. Assim, no Capítulo terceiro, intitulado
“Marc Bloch, o paradigma da história estrutural dos Annales”, Reis discute as
experiências do tempo e os métodos da história, a partir da obra mais conhecida

367
revista de teoria da história 2 2020

de Marc Bloch, Apologia da História ou Ofício de Historiador (Zahar, 2001). A


proposta de Reis é assinalar as contribuições do método
regressivo/retrospectivo de Bloch para a nova concepção de história da Escola
dos Annales. Segundo Reis, a historiografia dos Annales foi decisivamente
influenciada pelo método de Bloch: novos campos, objetos, temáticas e
problemas foram descobertos e incorporados às pesquisas dos historiadores
(80), o passado passou a ser examinado como “um momento original,
considerando suas origens passadas, as tendências futuras e ação atual” (83), a
história passou a ser compreendida como “a ciência dos homens no tempo”
(84). Nesse sentido, para Reis, a história-problema dos Annales é totalmente
devedora do método regressivo/retrospectivo de Marc Bloch.
Outro tema de destaque nas pesquisas de José Carlos Reis é o da
constituição do conhecimento histórico. No Capítulo quarto, intitulado
“Wilhelm Dilthey (1833-1911)”, amparando-se em obras como A construção do
mundo histórico nas ciências humanas (Unesp, 2010), Reis discute que ao
conhecimento histórico pertence um tipo de método especial, chamado
“compreensão empática” (Verstehen), que tende a integrar a experiência humana
à operação cognitiva. Segundo Reis, o histori(ci)sta alemão Wilhelm Dilthey
destaca-se, no século XX, em suas elucubrações sobre as ciências histórico-
sociais, justamente por defender que o método mais adequado para conhecer o
conteúdo da história é da “compreensão empática” (106). Reis esclarece, porém,
que “Dilthey não ‘inventou’ esse método ou operação cognitiva” (106). A
própria constituição do conhecimento histórico parece pender totalmente para
ele. De acordo com Reis, para Dilthey, “a história tem como objeto a
‘experiência vivida’, tanto a do outro, o tu-ele-vós-eles, como a do próprio
historiador e do seu presente, o eu-nós” (106). Isso significa, na concepção de
Reis, que a ciência histórica é uma composição das relações entre os homens do
passado e o historiador em seu presente, e que compreender essas relações
separando-as da contemporaneidade basta para conhecer o conteúdo da história,
que já aconteceu, que já não é o nosso.
A atenção de José Carlos Reis, no Capítulo quinto, intitulado “Identidade
e Complexidade: Ricoeur, Foucault, Bauman”, centra-se na reconstrução do
tema da “identidade” nas obras O si-mesmo como outro (Papirus, 1991), de Paul
Ricoeur, no capítulo Nietzsche, a genealogia e a história, constante em A
Microfísica do Poder (Paz & Terra, 2015), de Michel Foucault, e Identidade (Zahar,
2005), de Zygmunt Bauman. Segundo Reis, nas três obras analisadas podem se
perceber os ecos de posições conflitantes, divergentes e fecundas sobre a questão
“quem sou eu?”. Ricoeur considera que é possível conhecer a si mesmo, pela
observação, pelo pensamento e, sobretudo, pela interpretação e narrativa de si,
que nos dariam consciência mesmo da presença (125). Foucault prossegue em
direção oposta à hermenêutica do soi, de Ricoeur. Para Foucault, não é possível
conhecer a si mesmo, nem pela consciência nem pelo sujeito, porque não há
nem um e nem outro. Não existe uma identidade estável, coerente e serena, o
que existe é um “eu” descentrado, múltiplo e em disputa, que se manifesta em
uma sucessão de máscaras (133). Já Bauman ultrapassa a genealogia de Foucault
adaptada de Nietzsche e defende que a identidade pessoal é definida na e pela
história, o sujeito não tem autonomia para determinar quem ele mesmo é,
porque a resposta possível é condicionada pelo regime de historicidade da época
em que ele vive (138). Reis insiste nessa linha de pensamento seguida por
Bauman. Todas as perguntas colocadas por Reis na conclusão do capítulo
gravitam em torno da posição de Bauman acerca da identidade pessoal, em torno
daquilo que, para Reis, pode levar à mudança do mundo globalizado, e é para

368
revista de teoria da história 2 2020

essas perguntas que temos de voltar o foco de nossa lente, especialmente para
aquelas que carregam o germe da resposta de Reis para o problema da
identidade/alteridade hoje.
Outra questão que ocupa o pensamento de José Carlos Reis é a do
conflito entre memória e história da historiografia brasileira. O Capítulo sexto,
intitulado “Qual foi a contribuição do historiador mineiro Francisco Iglésias
(1923-1999) à historiografia brasileira?”, é uma resenha, ao mesmo tempo crítica
e elogiosa, do livro A universidade, a história e o historiador: o itinerário intelectual de
Francisco Iglésias (Alameda, 2018), de Alessandra Santos. Nesse breve capítulo-
resenha, Reis reconhece a pertinência da pesquisa de Santos e abertamente
duvida de sua crítica à memória canônica e às contribuições de Francisco Iglésias
à historiografia mineira e brasileira. Já o Capítulo sétimo, intitulado “A
civilização brasileira está destinada ao fracasso?”, é um prefácio, em alguma
medida elogioso, do livro Pensamento social brasileiro: de Euclides da Cunha a Oswald
de Andrade (Alameda, 2018), de Ricardo de Souza. Nesse brevíssimo capítulo-
prefácio, Reis sublinha a relevância e a felicidade do projeto de releitura dos
clássicos do pensamento histórico-social brasileiro de Souza e endossa a sua
visão pessimista acerca da história e da cultura brasileira. A nosso ver, a
pretensão de Reis com esses dois capítulos menores é uma só: nos convidar a
fazer uma análise muito séria da produção intelectual de historiadoras e
historiadores brasileiros.
Também um tema em que José Carlos Reis concentra energias é o da
História do Direito. No Capítulo oitavo, intitulado “História do Direito: Por
quê? Como? Para quê?”, Reis tenta aproximar as ciências da História e do
Direito, além de definir as tarefas de cada uma. De acordo com Reis, se
comparada à ciência do Direito, a ciência da História tem um componente a
mais: a preocupação com a temporalidade sob a forma de perguntas formuladas
ao presente pelo historiador. Na visão analítica de Reis, a História do Direito só
pode ser feita com auxílio da ciência da História porque, recorrendo aos métodos
históricos, “o advogado com pretensões intelectuais” (161) consegue “oferecer
a inteligibilidade das formas, discursos e instituições jurídicas no presente” (160).
Sem esse auxílio, sem as ferramentas da história, sem a distância temporal do
passado, sem o olhar voltado ao presente, o Direito “é enigmático, opaco,
incapaz de se pensar e procurar as melhores soluções para os problemas
jurídicos” (161). Assim, para Reis, a tarefa dos pesquisadores da história do
Direito deve ser a de qualquer historiador: formular questões ao Direito, com o
dever ético de servir ao presente.
Mais um tema fundamental no livro de José Carlos Reis é o que diz
respeito à historiografia das ciências. No Capítulo nono, intitulado “A
‘historiografia das ciências’ é ‘historiografia’: por que é preciso explicar essa
tautologia?”, Reis fala à vontade e em tom provocativo discute com os
historiadores das ciências que não consideram a historiografia das ciências
historiografia stricto sensu. Neste último Capítulo, Reis refuta a ideia arrogante dos
profissionais das ciências de que “o campo da historiografia das ciências é
autônomo, independente, e não precisa dialogar com a história da historiografia”
(167). De acordo com Reis, se a historiografia das ciências não pertence ao
campo da história da historiografia, se ela é algo completamente diferente da
historiografia propriamente dita, se ela constitui um campo específico do saber
científico, então ela não tem o direito de usar o nome “historiografia”. Ela teria
de se designar de outra forma (167). Para Reis, ao utilizar a etiqueta
“historiografia”, a historiografia das ciências revela a sua essência histórica.
Sendo assim, a historiografia das ciências compartilha dos mesmos objetos,

369
revista de teoria da história 2 2020

métodos, problemas e abordagens da ciência da história. Se os objetos, os


métodos, os problemas e abordagens são os mesmos, por que não podemos
dizer que historiografia das ciências é historiografia stricto sensu? Reis encerra
depois o raciocínio com a opinião peremptória de que o campo da historiografia
das ciências é um domínio da ciência da história.
Falemos sobre a outra metade da obra. José Carlos Reis não pôs as
entrevistas em segundo plano no seu livro. Para Reis, ao contrário, as conversas
com jovens historiadores têm a mesma importância dos capítulos. As cinco
breves entrevistas são quase autobiográficas e constituem uma coleção de ideias
densas, sinceras e heterogêneas de Reis sobre Teoria da História e Historiografia.
Mas elas são sobretudo textos de uma espessura considerável, em que podemos
sempre encontrar novos sentidos, novos significados. Acreditamos que duas
delas devem ser colocadas em posição de destaque, “Há uma crise de
‘paradigmas’ na historiografia?” e “A teoria da história deve dialogar com a
filosofia? Ou não?”, que correspondem às principais ideias desenvolvidas por
Reis em suas pesquisas. “Há uma crise de ‘paradigmas’ na historiografia?” é uma
conversa sobre historiografia dos Annales, crise dos paradigmas na disciplina
histórica, hermenêutica histórica, narrativa histórica, tempo histórico; e “A teoria
da história deve dialogar com a filosofia? Ou não?” apresenta todo o
emaranhado do problema da relação entre a filosofia e a história e como esse
problema se transformou em atuação acadêmica. São dois exemplos de
entrevistas com conteúdo, de entrevistas que expressam obstinadas posições
teóricas, metodológicas, epistemológicas, até políticas, em que predomina o
esforço de Reis de compreender seu próprio trabalho, de explicar a sua vida
profissional. Deixaremos de lado as outras três entrevistas de Reis, “O impacto
da teoria de Lévi-Strauss além das fronteiras da antropologia e a superação do
estruturalismo”, “A historiografia e o ‘mercado cultural’ da sociedade pós-1989”,
“Os limites da historiografia para ‘representar’ os movimentos sociais atuais”,
mesmo com todo o valor de seus conteúdos, porque entendemos que o nosso
tema-condutor “José Carlos Reis entre a filosofia e a história” não se operou
nelas plenamente.
Em O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica, José Carlos Reis
convida-nos a um modo de fazer teoria da história e historiografia diferente do
que é feito da atualidade. Isso significa que ele quer ser lido como um filósofo-
historiador ou historiador-filósofo à moda antiga, que cada artigo, resenha,
prefácio, aula, conferência, entrevista, cada movimento de suas ideias sintetiza
pensamento e prática, reflexão e ação, sem cessar. É uma maneira de nos
apresentar a realidade, de vivê-la, de apreendê-la, de estudá-la, de entendê-la, de
compartilhá-la; e no fato de tê-la alcançado com grandes êxitos – por meio de
sua atuação acadêmica – reside o valor dessa e de outras obras de Reis hoje no
Brasil.

JOSÉ CARLOS REIS ENTRE A FILOSOFIA E A HISTÓRIA


TEXTO RECEBIDO EM 16/09/2020 • ACEITO EM 05/11/2020
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

370
revista de teoria da história 2 2020

RESENHA

CONTE, Domenico. Viandante nel Novecento. Thomas Mann e


la storia. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2019.

COM THOMAS MANN


ENTRE PASSADO E
HISTÓRIA
MARIA DELLA VOLPE
Università degli Studi di Napoli Federico II
Nápoles | Itália
dellavolpem@libero.it
orcid.org/0000-0002-2816-220X

371
revista de teoria da história 2 2020

Já definido como “monumental”, “rico”, “policromático” e “diverso”, o


recente e imponente livro de Domenico Conte, intitulado Viandante nel Novecento.
Thomas Mann e la storia, reúne, dividido em quatro partes (“História e mito”,
“Política e primitivismo”, “Natureza e espírito”, “Benedetto Croce e Thomas
Mann”), vinte e dois ensaios publicados pelo autor no período entre 2009 e 2018.
E precisamente o tempo, protagonista destas páginas juntamente com
Mann, faz com que o tom do historiador da cultura napolitano em direção ao
escritor de Lübeck, seja, sim, cheio de admiração, mas nunca subserviente ou
temeroso, tornando-se cada vez mais familiar, tanto que se dirige a ele não
apenas com o nome de batismo, Thomas, mas com o diminutivo Tommy. O
que, como é evidente, representa uma marca de proximidade, uma intimidade
cujas raízes devem ser procuradas no passado ou, aqui talvez seja mais adequado
dizer: mais para lá, mais abaixo. De fato, o vínculo que une Conte a Mann é,
como ele próprio confessa, “uma espécie de fidelidade”.
Uma “paixão juvenil” (IX) que com o tempo torna-se tal que faz do
escritor alemão um “viático” para “penetrar no duro século XX, na sua história
espiritual e nela o papel da Alemanha, país que viveu todos os sonhos e pesadelos
da modernidade” (X). Para tanto, Conte explora, minuciosamente, os romances
(“marcos na geografia mental do século XX”); a produção ensaística (na qual
“os grandes temas que se entrelaçam na produção literária encontram-se como
destilados”); os milhares de cartas (“arquipélago explorado no qual se delineia
também o mapa da densa rede de relações de Mann”); e os dez volumes dos
Diários (“o ‘quarto de Barba-Azul’”) que, num diálogo ininterrupto com a
“transbordante” literatura secundária (XI), devolvem ao leitor, por último, a
imagem proteiforme, e de forma alguma olímpica, de “um grande investigador
daquilo que é humano” (340).
Pois através de uma prosa pontual, pois exegética, e em mais de um lugar
apaixonada e apaixonante, Conte interpreta Mann não como um monólito
solitário e isolado, mas como um objeto ativo que, em uma comparação
ininterrupta com os protagonistas do seu tempo (por exemplo, Jünger, Kerényi,
Spengler, Troeltsch e Croce, ao qual, não por acaso, é inteiramente dedicada a
última parte do volume), permite-lhe iluminar o presente – o problema da
imigração (64); a possível ameaça de destruição da Europa por vias externas e
internas (340); o perigo inerente aos processos de corporeidade da vida ocidental
(414-415).
O que foi dito até agora seria suficiente para explicar o título, sugestivo
e evocativo, dessa coleção. No entanto, não se pode deixar de sublinhar que ele
se refere a outras dimensões, em alguns aspectos, ainda mais profundas do que
aquelas mencionadas até agora. A esse respeito, portanto, é bom lembrar as
palavras de Adorno que explicitamente marcam o caminho da análise
thomasmanniana de Conte: “Quem hoje quiser assumir a responsabilidade de
escrever sobre o Sr. [Mann], não deveria limitar-se a extrair da Sua obra o que o
Sr., com profunda delicadeza, escondeu nela, mas deveria, ao contrário, extrair
dela o que a própria obra esconde” (IX).
Entretanto, seguindo, como faz o autor do Viandante, o conselho do
informer, “que usava óculos de aro de tartaruga sobre o nariz curvo”, aonde se
chega? Ou melhor: o que se encontra?
Em primeiro lugar, quase tocando-o, “o ‘dorminhoco’ que dorme o sono
dos ‘sete adormecidos’” (369), Hans Castorp, e junto com ele o “humanista
iluminista” (365) Settembrini, que “sopra ‘a corneta da razão’” (368) e o seu
adversário o jesuíta “cínico e desumano” (366) “à caça das almas jovens” (484),
Naphta. E ainda: o brilhante compositor alemão com traços “de bruxaria” (27);

372
revista de teoria da história 2 2020

a família hanseática de comerciantes de grãos, na qual “natureza e história estão


indissoluvelmente interligadas” (40); o “belo” e “casto” Joseph com seu Mut-em-
enet; e o “demonismo misterioso” dos “filhos da natureza” (376), Goethe e
Tolstói, aos quais os “filhos do espírito”, Schiller e Dostoiévski, contrabalançam.
E depois Freud, Nietzsche, Schopenhauer que, junto com os já mencionados e
com a maior parte dos quais, por mais de uma razão, não se poderia dizer aqui,
formam uma tapeçaria extraordinária cujos nós são firmemente atados com
esmerada habilidade.
No entanto, seria errado pensar que a reconstrução de Conte seja
simplesmente uma reconstrução erudita, elegante e aguda. E é assim porque,
página após página, somos acompanhados por ele nas profundezas da obra de
Mann, até atingirmos, finalmente, as profundezas do seu humanismo noturno, onde
os personagens, privados das vestimentas narrativas, são “representantes e
emissários das tendências espirituais da época” (8).
Aqui, atraídos pelo som da “sílaba fatal ur” (13), assustados pelo “balido
primordial” de Jacob (66), inclinando- nos sobre a bacia batismal de Hans Lorenz
Castorp e folheando o livro de família dos Buddenbrook, chegamos portanto nos
recessos mais recônditos do humano e nos abismos da história: lá onde o espírito
e a natureza ainda estão unidos e a história não é ainda propriamente História.
É aqui que reside o elemento distintivo do livro de Conte, que então
investiga, incessantemente, as inúmeras correntes em que se desenrola o
conceito não “convencional” de história do escritor de Lübeck (11). Para ele, de
fato, essa não é apenas biografia ou história nacional, nem macro-história e
história universal, mas sim memória e – como pode ser lido nas páginas
complexas e estratificadas do longo ensaio (verdadeiro livro dentro do livro) No
poço do passado – também, talvez acima de tudo, psicologia (16).
Assim, comprimida entre o tempo e o passado, a história aqui, longe de
ser desenvolvimento, evolução ou progresso é, ao contrário, um “andar nas
pegadas” (54). E quem quer mergulhar nela faz – como escreve Conte nas curtas
mas densas páginas em que conversa com Fulvio Tessitore (153-156) – uma
viagem que equivale a uma queda. A uma derrocada, tal como aquela para o inferno
(154).
Ainda haveria muito a ser dito sobre o Viandante. Contudo, aqui basta
acrescentar que se trata, em última análise, de uma viagem extraordinária no
tempo, no passado e no inconsciente da humanidade em que, através de Mann,
Conte narra uma história que é “história do profundo”. Porque encontra no
mito o seu fundo.

COM THOMAS MANN ENTRE PASSADO E HISTÓRIA


SUBMETIDO EM 28/09/2020 • ACEITO EM 10/11/2020
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

373
revista de teoria da história 2 2020

RECENSIONE

CONTE, Domenico. Viandante nel Novecento. Thomas Mann e


la storia. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2019.

CON THOMAS MANN TRA


PASSATO E STORIA
MARIA DELLA VOLPE
Università degli Studi di Napoli Federico II
Napoli | Italia
dellavolpem@libero.it
orcid.org/0000-0002-2816-220X

374
revista de teoria da história 2 2020

Definito già “monumentale”, “ricco”, “screziato” e “vario”, il recente e


imponente libro di Domenico Conte dal titolo Viandante nel Novecento. Thomas
Mann e la storia (Edizioni di Storia e Letteratura, Roma 2019, p 508) riunisce,
articolati in quattro parti (“Storia e mito”, “Politica e primitivismo”, “Natura e
spirito”, “Benedetto Croce e Thomas Mann”), ventidue saggi pubblicati
dall’Autore lungo un arco di tempo che va dal 2009 al 2018.
E proprio il tempo, protagonista insieme con Mann di queste pagine, fa
sì che il tono dello storico della cultura napoletano, ammirato sì ma mai
ossequioso né timoroso, diventi, nei confronti dello scrittore lubecchese, sempre
più familiare, tanto da arrivare a rivolgersi a lui non solo col confidenziale nome
di battesimo, Thomas, ma col diminutivo Tommy. Che è, come è evidente,
indicatore di una prossimità, un’intimità le cui radici vanno cercate indietro o, qui
forse sarebbe più consono dire: più in là, più giù. Il legame, infatti, che lega stretto
Conte a Mann è, come egli stesso confessa, “una sorta di fedeltà”.
Una “passione giovanile” (IX) che col tempo diventa tale da fare dello
scrittore tedesco un “viatico” per “penetrare il duro Novecento, la sua storia
spirituale e dentro di ciò, il ruolo della Germania, il paese che ha vissuto tutti i
sogni e gli incubi della modernità” (X). A tal fine Conte scandaglia, minutamente,
i romanzi (“pietre miliari nella geografia mentale del Novecento”); la produzione
saggistica (in cui “si trovano come distillati i grandi temi che si intrecciano nella
produzione letteraria”); le migliaia di lettere (“arcipelago esplorando il quale si
delinea anche la mappa della fitta rete di rapporti di Mann”); e i dieci volumi dei
Diari (“la ‘stanza di Barbablù’”) che, in un dialogo mai intermesso con la
“strabocchevole” letteratura secondaria (XI), restituiscono al lettore, da ultimo,
l’immagine proteiforme, e per niente olimpica, di “un grande indagatore
dell’umano” (340).
Sicché attraverso una prosa puntuale, perché esegetica, e in più di un
luogo appassionata ed appassionante, Conte fa di Mann non un monolite
solitario e isolato ma oggetto attivo che, in un ininterrotto confronto coi
protagonisti del suo tempo (ad es. Jünger, Kerényi, Spengler, Troeltsch e Croce,
cui non a caso è dedicata interamente l’ultima parte volume), gli consente di
aprire profondi squarci sul presente (il problema dell’immigrazione, 64; la
possibile minaccia di distruzione, per vie interne ed esterne, dell’Europa, 340; il
pericolo insito nei processi di corporeizzazione della vita occidentale, 414-415).
Basterebbe quanto fin qui detto per rendere ragione del titolo, suggestivo
ed evocativo, di questa silloge. Tuttavia, non si può non sottolineare che esso
rimanda a dimensioni altre e, per certi versi, ancor più profonde, di quelle fin qui
richiamate. Sotto questo riguardo, dunque, è bene ricordare le parole di Adorno
che esplicitamente segnano il passo dell’analisi thomasmanniana di Conte: “Chi
oggi voglia assumersi la responsabilità di scrivere su di Lei [Mann] non dovrebbe
limitarsi ad estrarre dalla Sua opera ciò che Lei con profonda delicatezza vi ha
nascosto, ma dovrebbe viceversa estrarvi ciò che l’opera stessa nasconde” (IX).
Ma allora, seguendo, come fa l’Autore del Viandante, il consiglio
dell’informer, “che portava sul naso curvo gli occhiali cerchiati di corno”, dove si
giunge? O meglio: cosa si trova?
Innanzitutto, fin quasi a sfiorarlo, “il “dormiglione” che dorme il sonno
dei “sette dormienti” (369), Hans Castorp, e insieme con lui l’“umanista
illuministico” (365) Settembrini, che “soffia ‘nella cornetta della ragione’” (368) e
il suo avversario il “cinico e inumano” gesuita (366 ) “a caccia di anime giovani”
(484), Naphta. E ancora: il geniale compositore tedesco con tratti “stregoneschi”
(27); la famiglia anseatica di commercianti di granaglie in cui “natura e storia si
intrecciano indissolubilmente” (40); il “bello” e “casto” Giuseppe con la sua

375
revista de teoria da história 2 2020

Mut-em-enet; e il “misterioso demonismo” dei “figli della natura” (376), Goethe


e Tolstoj cui fanno da controcanto i “figli dello spirito”, Schiller e Dostoevskij.
E poi Freud, Nietzsche, Schopenhauer che, insieme con quanti sopra richiamati
e con i più di cui qui, per più di un motivo, non si è potuto dire, formano uno
straordinario arazzo i cui nodi sono saldamente annodati con perizia certosina.
Tuttavia sarebbe erroneo pensare che quella di Conte sia semplicemente
una dotta, elegante e acuta ricostruzione. Ed è così perché, pagina dopo pagina,
siamo da lui accompagnati nelle profondità dell’opera di Mann, fino a
raggiungere, da ultimo, i fondali del suo umanesimo notturno, dove i personaggi,
privati degli indumenti narrativi, sono “rappresentanti ed emissari delle tendenze
spirituali dell’epoca” (8).
Qui, attratti dal suono della “sillaba fatale ur” (13), atterriti dal “belìo
primordiale” di Giacobbe (66), sporgendoci sulla bacinella battesimale di Hans
Lorenz Castorp e sfogliando il libro di famiglia dei Buddenbrook, arriviamo
dunque, negli antri più recessi dell’umano e negli abissi della storia: lì dove spirito
e natura sono ancora congiunti e la storia non è ancora propriamente Storia.
È qui che risiede la cifra caratterizzante del libro di Conte che allora
indaga, senza posa, gli innumerevoli rivoli in cui si dipana il non “convenzionale”
concetto di storia dello scrittore lubecchese (11). Per lui, infatti, essa non è solo
biografia o storia nazionale, né macrostoria e storia universale. Ma memoria e –
come si legge nelle pagine complesse e stratificate del lungo saggio (vero libro
nel libro) Nel pozzo del passato – anche, e forse soprattutto, psicologia (16).
Sicché, stretta tra tempo e passato, la storia qui lungi dall’essere sviluppo,
evoluzione o progresso è invece un “camminare sulle orme” (54). E chi in essa
vuole calarsi compie – come Conte scrive nelle brevi ma dense pagine in cui
dialoga con Fulvio Tessitore (153-156) – un viaggio che è pari a una caduta. A
una discesa, come quella agli inferi. (154).
Molto ci sarebbe ancora da dire sul Viandante. Ma qui ci basti aggiungere
che esso è, da ultimo, uno straordinario viaggio nel tempo, nel passato e
nell’inconscio dell’umanità in cui, tramite Mann, Conte narra di una storia che è
“storia del profondo”. Perché trova nel mito il suo fondo.

CON THOMAS MANN TRA PASSATO E STORIA


SUBMETIDO EM 28/09/2020 • ACEITO EM 10/11/2020
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

376
revista de teoria da história 2 2020

RESENHA

MASSIMILLA, Edoardo. Sulla vocazione per la politica. Max


Weber e le “Politische Stimmungen” di Karl Jaspers.
Napoli: Giannini, 2019.

JASPERS, WEBER
E A POLÍTICA

MARIA DELLA VOLPE


Università degli Studi di Napoli Federico II
Nápoles | Itália
dellavolpem@libero.it
orcid.org/0000-0002-2816-220X

377
revista de teoria da história 2 2020

Publicado em 2019, o ensaio de Edoardo Massimilla, Sulla vocazione per la


politica. Max Weber e le “Politische Stimmungen” di Karl Jaspers, inaugura, retomando
uma ideia originária de Pietro Piovani, a nova série dos “Quaderni di storia della
cultura” da antiga e prestigiosa “Accademia di Scienze morali e politiche” de
Nápoles.
Nele, partindo da “ampla” introdução à “excelente” antologia dedicada
a Weber como pensador político de Francesco Tuccari, Massimilla propõe uma
comparação crítica, articulada e minuciosa, entre as reflexões de Max Weber
sobre a ação política e as de Karl Jaspers, que nunca deixou de observar as
reflexões de Weber. E, para tanto, depois de ter percorrido facilmente os “três
níveis de articulação da reflexão política weberiana” apontados por Tuccari – o
relativo à sociologia do poder; o outro dedicado à política alemã da época, e o
terceiro, relativo à elaboração de uma teoria geral da política moderna” (5-6) – o
autor identifica no último destes aquele em que, mais do que nos outros, são
presentes elementos que permitem uma comparação fecunda, na esfera política,
entre os dois pensadores (16).
A esse respeito, então, o historiador da filosofia napolitano considera
particularmente útil a análise de um dos primeiros escritos de Jaspers que
permaneceu virtualmente desconhecido até quando, em 1999, foi publicado
como apêndice num volume coletivo sobre Karl Jaspers. Philosophie und Politik.
Traduzido para o italiano por Elena Alessiato em 2005, o texto jaspersiano de
1917, Politische Stimmungen, alcança o fim que se propõe, explica Massimilla, por
pelo menos quatro ordens de razões.
Na verdade, esclarece o historiador da filosofia, é “o único dos escritos
de Jaspers anteriores à virada ligada ao advento do nazismo e à Segunda Guerra
Mundial” – exceto aquele dedicado ao filósofo de Erfurt –, “em que o problema
da política figura de forma destacada”; ademais “é um escrito que remonta aos
anos em que Weber estava vivo e particularmente ativo e, portanto, compartilha
com as obras deste último o mesmo horizonte histórico de referência (o da
Alemanha e da Europa durante a Grande Guerra)”.
Além disso, ao contrário do que acontece em Die geistige Situation der Zeit,
nas páginas de 1917 “o olhar do ‘analista teórico’ prevalece sobre aquele, ainda
presente, do Kulturkritiker”. Por fim, sublinha Massimilla, aqui “o jovem Jaspers
olha com toda a evidência para Weber como o seu próprio ponto de referência
sobre o assunto tratado, o que permite, em última análise, enxergar de forma
mais viva e precisa as diferenças relevantes existentes entre os dois modos mediante
os quais ambos os autores enfrentam a questão da ação política e da sua
autonomia específica” (18-19).
A partir daqui, por meio de uma prosa pontual e uma argumentação
rigorosa, Massimilla analisa, portanto, a conferência de Jaspers em Heidelberg.
E o faz destacando, antes de tudo, como – embora o filósofo de Oldenburg,
desde o início, se refira metodologicamente aos tipos ideais weberianos, mas já
nas premissas de seu raciocínio, que se enraíza, radicaliza, na autonomia do
político a partir de visões de mundo – há, no entanto, elementos que não podem
ser conciliados com a reflexão do autor de Politk als Beruf que, ao contrário, cria
vínculos estreitos entre a ética e à política.

378
revista de teoria da história 2 2020

Portanto, para quem, como Jaspers em 1917, identifica a esfera do


político com aquela do econômico (29) e não pensa na possibilidade de um
homem que tenha, weberianamente, uma autêntica vocação para a política (55)
que lhe permite conciliar a pluralidade de valores com a mutabilidade da
realidade (33), só resta, nota Massimilla, o desespero.
Assim, ao sondar, com ritmo acelerado, a “tipologia articulada” das
maneiras como as visões de mundo dos homens não politicamente ativos
interagem com a política, o historiador da filosofia napolitano, sempre levando
em consideração a Grande Guerra como pano de fundo, pode concluir, por
último, que “toda relação profunda e proveitosa entre visão de mundo e política
permanece para Jaspers, ao contrário de Weber, destinada necessariamente a
naufragar” (62-63). E isso porque, diante de um mundo agora “desencantado”
(62), para o primeiro, à diferença do outro, política e valores procuram-se sem
jamais poderem se encontrar.

JASPERS, WEBER
E A POLÍTICA
SUBMETIDO EM 28/09/2020 • ACEITO EM 10/11/2020
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

379
revista de teoria da história 2 2020

RECENSIONE

MASSIMILLA, Edoardo. Sulla vocazione per la politica. Max


Weber e le “Politische Stimmungen” di Karl Jaspers.
Napoli: Giannini, 2019.

JASPERS, WEBER
E LA POLITICA

MARIA DELLA VOLPE


Università degli Studi di Napoli Federico II
Napoli | Italia
dellavolpem@libero.it
orcid.org/0000-0002-2816-220X

380
revista de teoria da história 2 2020

Pubblicato nel 2019, il saggio di Edoardo Massimilla Sulla vocazione per la


politica. Max Weber e le “Politische Stimmungen” di Karl Jaspers, inaugura, riprendendo
un’idea originariamente di Pietro Piovani, la nuova serie dei “Quaderni di storia
della cultura” dell’antica e prestigiosa “Accademia di Scienze morali e politiche”
di Napoli.
In esso, muovendo dall’“ampia” introduzione all’“ottima” antologia
dedicata a Weber pensatore politico di Francesco Tuccari, Massimilla propone
un articolato e minuto confronto critico tra le riflessioni di Max Weber sull’agire
politico e quelle di Karl Jaspers che, al primo, non mancò mai di guardare. E, a
tal fine, dopo aver percorso, agilmente, i “tre livelli di articolazione della
riflessione politica weberiana” indicati da Tuccari – quello relativo alla sociologia
del potere; l’altro alla politica tedesca dell’epoca; il terzo inerente l’elaborazione
di una teoria generale della politica moderna” (5-6) – l’Autore individua
nell’ultimo di questi quello in cui sono presenti, più che negli altri, elementi tali
da rendere possibile una feconda comparazione, in ambito politico, tra i due
pensatori (16).
Sotto questo riguardo allora, lo storico della filosofia napoletano ritiene
particolarmente utile l’analisi di uno scritto giovanile di Jaspers rimasto
pressoché sconosciuto fino a quando nel 1999 non venne pubblicato in
appendice ad un volume collettaneo su Karl Jaspers. Philosophie und Politik.
Tradotto in italiano da Elena Alessiato nel 2005 lo scritto jaspersiano del 1917
Politische Stimmungen si presta al suo fine, spiega Massimilla, per almeno quattro
ordini di motivi.
Esso, infatti, chiarisce lo storico della filosofia, è “l’unico degli scritti di
Jaspers precedenti alla svolta connessa all’avvento del nazismo e alla seconda
guerra mondiale” – fatto salvo quello dedicato al filosofo di Erfurt –, “in cui il
problema della politica balza in primo piano»; inoltre «è uno scritto che risale ad
anni in cui Weber era vivo e particolarmente attivo e dunque condivide con gli
scritti di quest’ultimo il medesimo orizzonte storico di riferimento (quello della
Germania e dell’Europa nel corso della Grande Guerra)”.
E ancora. A dispetto di quanto non accada in Die geistige Situation der Zeit,
nelle pagine del’17 “lo sguardo dell’‘analista teorico’ prevale su quello, pur
tutt’altro che assente, del Kulturkritiker”; e, da ultimo, sottolinea Massimilla, qui
“il giovane Jaspers guarda con ogni evidenza a Weber come al proprio punto di
riferimento sul tema trattato, il che consente, a ben vedere, di cogliere in maniera
più vivida e precisa le differenze rilevanti che intercorrono tra le due modalità in cui
i due autori affrontano la questione dell’agire politico e della sua specifica
autonomia” (18-19).
Muovendo da qui, attraverso una prosa puntuale e un’argomentazione
rigorosa, Massimilla analizza allora, la conferenza heidelberghese di Jaspers. E lo
fa sottolineando, innanzitutto, come, per quanto il filosofo di Oldenburg, sin da
subito, faccia riferimento, metodologicamente, ai tipi ideali weberiani, tuttavia
già nelle premesse del suo ragionamento, che si radica, radicalizzandosi,
sull’autonomia del politico dalle visioni del mondo, vi siano, però, elementi mal
conciliabili con la riflessione dell’autore di Politk als Beruf che lega, invece, con
stretti lacci l’etica alla politica.

381
revista de teoria da história 2 2020

Pertanto per chi, come Jaspers nel ’17, identifica la sfera del politico con
quella dell’economico (29) e non pensa la possibilità di un uomo che abbia,
weberianamente, un’autentica vocazione per la politica (55) che gli consente di
conciliare la pluralità dei valori con la mutevolezza del reale (33), non resta,
rileva Massimilla, che la disperazione.
Dunque, scandagliando, con ritmo incalzante, l’“articolata tipologia” dei
modi in cui le visioni del mondo degli uomini non politicamente attivi
interagiscono con la politica, lo storico della filosofia napoletano, tenendo
sempre da conto sullo sfondo la Grande Guerra, può concludere, da ultimo, che
“ogni relazione profonda e proficua tra visione del mondo e politica resta per
Jaspers, a differenza che per Weber, necessariamente votata al sacco” (62-63).
Ed è così perché, al cospetto d’un mondo ormai “disincantato” (62), per l’uno a
dispetto dell’altro, politica e valori si cercano senza mai potersi trovare.

JASPERS, WEBER
E LA POLITICA
SUBMETIDO EM 28/09/2020 • ACEITO EM 10/11/2020
REVISTA DE TEORIA DA HISTÓRIA | ISSN 2175-5892

ESTE E UM ARTIGO DE ACESSO LIVRE DISTRIBUIDO NOS TERMOS DA LICENÇA CREATIVE


COMMONS ATTRIBUTION, QUE PERMITE USO IRRESTRITO, DISTRIBUIÇÃO E REPRODUÇÃO EM
QUALQUER MEIO, DESDE QUE O TRABALHO ORIGINAL SEJA CITADO DE MODO APROPRIADO

382
REVISTA DE
TEORIA DA HISTÓRIA
Journal of Theory of History
Universidade Federal de Goiás
Faculdade de História

2 2020

HISTÓRIA E
Psicanálise
HISTORY AND
Psychoanalysis

editado por

Ana Lúcia Oliveira Vilela


Fabiana de Souza Fredrigo
Sabrina Costa Braga

Você também pode gostar