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Conta de maluco – Confusão de medidas derruba sonda espacial e

mostra como é urgente esquecer pés e polegadas

A escola ensina que para qualquer operação que envolva padrões diferentes de pesos e medidas é
necessário fazer a conversão para um único sistema de unidade. Sem isso, é confusão na certa. Na semana
passada, a agência espacial americana, a Nasa, admitiu que um erro primário como esse pode ter sido a
causa do desvio, e depois da perda, da sonda Mars Climate Orbiter, que custou 125 milhões de dólares. A
nave foi enviada ao espaço para estudar o clima de Marte e espatifou-se ao entrar desastradamente na
atmosfera marciana. Para o constrangimento dos cientistas americanos, a única explicação é a sonda ter
recebido informações conflitantes dos controladores de voo. Ou seja, ao se aproximar do planeta
vermelho, foi abastecida de dados em metro e em quilograma, do Sistema Métrico Decimal, e também em
pé e em libra, unidades do Sistema Imperial Britânico. A comissão de cientistas que investiga o caso
acredita que os programas de computador da Nasa não foram capazes de detectar as diferenças entre
valores expressos em dois sistemas.
O melhor time de navegadores espaciais do mundo acabou com uma nave caríssima por causa da
teimosia dos Estados Unidos e de outros países de origem anglo-saxã em manter esse sistema de medidas
criado há oito séculos e que já deveria ter virado peça de museu. “Somente o sistema métrico deveria ser
usado”, diz Lorelle Young, a presidente da Associação Métrica dos Estados Unidos. “Ele é a língua de toda
ciência sofisticada.” De fato, é inconcebível para uma cabeça adaptada ao sistema decimal a quantidade de
cálculos necessária para trabalhar com medidas como polegadas, jardas e pés. A dificuldade de associação
rápida é assombrosa. Um pé se divide em 12 polegadas. A jarda tem 3 pés e uma milha equivale a 1 760
jardas. Para responder quantas polegadas existem em uma milha sem fritar os neurônios, só apelando de
imediato para uma calculadora. São 63 360 polegadas. E em três quartos de milha? É melhor esquecer. Pelo
sistema métrico, para se chegar a quantos centímetros existem em um quilômetro, é só pensar nas 100
subdivisões do metro e acrescentar mais os três zeros do milhar. O resultado: 100 000 centímetros em cada
quilômetro. Em três quartos de quilômetro? Na ponta da língua: 75 000 centímetros.
Para abastecer o carro, o inglês e o americano pedem o combustível em galão e não em litro,
bebem cerveja em pint e não em mililitro. Medem o peso em libra ou onça. Para a temperatura adotam um
estranhíssimo sistema com ebulição a 212 graus batizado como Fahrenheit e completamente diverso dos
graus Celsius que o resto do mundo usa. Quando se leva em conta a origem dos sistemas então, parece
piada. Houve um tempo em que a jarda era a distância que ia do nariz à extremidade do braço esticado do
rei no poder, senhor de todos os padrões. O pé era exatamente do tamanho do pé real e a polegada ia pelo
mesmo caminho, vinculada ao dedo do soberano. Hoje não é assim, óbvio. A polegada não é o dedão da
rainha Elizabeth II, mas sim 2,5 centímetros. Para se chegar à jarda também não é preciso medir o braço
real: fechou-se a questão em 91,4 centímetros. E o pé, então, é uma lancha de 30,4 centímetros, que
claramente não corresponde às dimensões do de sua majestade.
Os padrões do chamado Sistema Imperial Britânico foram adaptados ao sistema métrico para poder
funcionar como medidas modernas. “Mesmo com os ingleses mantendo os conceitos antropomórficos, o
metro e as demais unidades do sistema decimal acabaram vencendo a batalha”, afirma Giorgio Moscati,
professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo e membro do Comitê Internacional dos Pesos
e Medidas. E por quê? Porque o metro já nasceu com conceituação científica e filosófica e não apenas
prática. Ele surgiu como uma unidade de medida física imutável, no caso, a décima milionésima parte da
distância entre o Polo Norte e o Equador, medida pelo meridiano que passa por Paris. Foi um produto do
iluminismo francês, para acabar com as medidas arbitrárias da Antiguidade e da Idade Média ainda em
vigor no século XVIII. E até se sofisticou. Hoje ele é calculado com base no espaço percorrido pela luz no
vácuo em determinado período de tempo, o que permite uma calibragem de instrumentos com precisão
indiscutível.
O problema é que, por motivos culturais, diversos países, entre eles a maior potência do planeta,
relutam em abrir mão de suas medidas arcaicas. O que foi disputa entre as pretensões imperiais da França
e da Inglaterra nos últimos dois séculos virou um problemão científico para o futuro, como prova a
bobagem cometida pelos cientistas da Nasa na semana retrasada. “Não dá para trocar as medidas de uma
hora para outra”, explica o professor Moscati. “Assim como a jarda é incompreensível para nós, o metro
não passa de uma abstração para a maioria dos americanos e ingleses”, diz ele. O resultado é um conflito
de comunicação entre metade do planeta que pensa de um jeito e o outro lado que pensa de outro,
insustentável numa sociedade globalizada. Para resolver pendengas como essa, na próxima segunda-feira a
Conferência Geral dos Pesos e Medidas se reúne mais uma vez em Paris, na França. Os especialistas
discutirão exatamente quais são as maneiras de acelerar o processo de unificação que adotará
definitivamente o sistema internacional de unidades, SI, que regulamenta o metro, o quilograma, o litro e
os graus Celsius como padrão. “A unificação no padrão métrico decimal é inevitável”, afirma Moscati, que
participará da reunião. Os Estados Unidos aderiram ao sistema internacional em 1959. Há quatro anos, por
força da União Europeia, a Inglaterra resolveu dar adeus definitivo à velharia baseada em pés, polegares e
narizes reais. Em ambos os países, o sistema métrico convive com o imperial, mas a maioria da população
só faz contas no estilo antigo. Por isso as trapalhadas como a ocorrida na Nasa. A confusão está longe de
acabar.
GUSMÃO, Marcos. Conta de maluco – Confusão de medidas derruba sonda espacial e mostra como é urgente esquecer pés e
polegadas. Revista Veja, São Paulo: Abril, n. 1618, p. 118-119, 6 out. 1999.

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