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Sergio Schneider2

Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós-Graduação


Raízes
Vol. 23, Nºs 01 e 02, jan.–dez./2004
em Desenvolvimento Rural/DS/UFRGS.
E-mail: schneide@ufrgs.br. Trabalho recebido em:
25/07/2005
Iván G. Peyré Tartaruga3 Aprovado para publicação em:
Bolsista de Desenvolvimento Tecnológico Industrial do (CNPq). 19/09/2005
E-mail: ivantarta@yahoo.com.br

TERRITÓRIO E ABORDAGEM TERRITORIAL:


DAS REFERÊNCIAS COGNITIVAS AOS APORTES APLICADOS
À ANÁLISE DOS PROCESSOS SOCIAIS RURAIS1
RESUMO

As discussões recentes sobre o desenvolvimento rural têm procurado novos enfoques, especialmente para dar conta das questões re-
lacionadas à sustentabilidade social e ambiental e à participação dos atores. Para incorporar estas novas dimensões, os estudiosos vêm
propondo que o desenvolvimento rural passe a focalizar os territórios e suas dinâmicas. A partir desta preocupação surgem as abor-
dagens territoriais do desenvolvimento rural, cuja preocupação passaria a ser a projeção espacial dos processos sob o ângulo das in-
terações sociais, políticas, econômicas e institucionais. Este texto pretende discutir a incorporação do território ao debate do desen-
volvimento rural e problematizar sua utilização como referência analítica.
Palavras-chaves: território, desenvolvimento rural, dinâmicas espaciais

TERRITORY AND TERRITORIAL APPROACH:


FROM COGNITIVE REFERENCES TO APPROACHES APPLIED
TO THE RURAL SOCIAL PROCESSES ANALYSIS
AB STR ACT

Recent discussions on rural development have searched new approaches, particularly in order to analyze issues related to social and
environmental sustainability as well to actors’ participation. In order to incorporate theses new dimensions, scholars have purposed
that rural development focuses territories and their dynamics. From this point of view have appeared the territorial approaches of the
rural development, whose main preoccupation would become a spatial processes projection, under the angle of social, political, eco-
nomic and institutional interactions. This article intends to discuss the incorporation of the concept of territory into the debate on
rural development, questioning its use as an analytical reference.
Key words: territory, rural development, spatial dynamics

1 Uma versão ampliada deste artigo foi apresentada nas Jornadas de Intercambio y Discusión: el desar-
rollo rural en su perspectiva institucional y territorial. FLACSO – Argentina – Universidad de Buenos
Aires -CONICET, 23 y 24 de Junio de 2005. Agradecemos a Aldomar A. Rückert pelos perspicazes co-
mentários e sugestões ao texto, mas assumimos inteira responsabilidade pela versão final.
2 Este trabalho conta com o apoio do CNPq no financiamento de pesquisas sobre as dinâmicas territo-
riais da agricultura familiar e do desenvolvimento rural no Sul do Brasil.
3 Este trabalho recebeu apoio do CT-Agronegócio, do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar
e Combate à Fome (MESA), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e do CNPq, através do
projeto de pesquisa “Desenvolvimento Territorial Rural e Segurança Alimentar”.

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1. INTRODUÇÃO do território da geografia para a discussão da abordagem
territorial, a qual é essencialmente normativa. Em especi-
Nos anos recentes, o interesse pela dimensão espacial al, enfatiza-se a questão da participação como elemento-
dos fenômenos econômicos e sociais vem se fortalecendo chave para o desenvolvimento territorial, a partir da dis-
nas ciências sociais. Esse interesse percebe-se, sobretudo, cussão da geografia sobre território e territorialidade.
nas tentativas de diversos estudiosos em explicar o desen- Na expectativa de contribuir com este debate sobre o
volvimento (social e econômico) ascendente de algumas significado do território e seu uso, este trabalho possui dois
regiões rurais e o declínio de outras através da compreen- objetivos bem definidos. O primeiro, tentar resgatar a con-
são da sua configuração espacial. De fato, a variável espa- tribuição da geografia e oferecer um quadro do estado da
cial passou a obter grande destaque e ser apontada por arte acerca dos diferentes significados e usos que possui o
alguns estudiosos como de fundamental relevância para se conceito de território nesta disciplina. O segundo objeti-
compreender o dinamismo de determinadas regiões e suas vo consiste em tentar demonstrar que há uma diferença,
relações com o desempenho dos atores e das instituições. que não é apenas de forma, entre o território e o que vem
Esse dinamismo é explicado com base na idéia de que a sendo chamado de enfoque, abordagem ou perspectiva ter-
maior proximidade dos atores que atuam em determina- ritorial.
do espaço geraria ações coletivas e cooperadas (troca de A estrutura do artigo está organizada em várias seções,
experiências, redes de colaboração) que ampliariam a es- sendo que, na inicial se aborda-se o reaparecimento e o
pessura e a densidade das relações sociais e, como conse- desenrolar do debate sobre o conceito de território na dis-
qüência, favoreceriam o surgimento de oportunidades ino- ciplina da Geografia. Na segunda seção, discute-se as
vadoras de desenvolvimento. possibilidades do uso do território como conceito de aná-
Nesse contexto, a abordagem territorial aparece como lise da realidade social. Na terceira seção, propõe-se uma
uma noção que permitiria explicar o papel do contexto definição do conceito do território, à luz dos propósitos
e do espaço social como fator de desenvolvimento. deste texto, que utiliza, de forma conjunta, o conceito ge-
Como se sabe, o enfoque territorial tem ensejado pro- ográfico de lugar. Na quarta, indica-se as principais ra-
postas concretas de intervenção estatal, a exemplo do zões que produziram a emergência da noção de aborda-
programa LEADER na União Européia, do programa gem territorial dos processos de desenvolvimento. Na
de empoderamento comunitário nos Estados Unidos, quinta seção, por sua vez, analisa-se a incorporação do
das mesas de concertação e dos sistemas locais de pro- território na abordagem do desenvolvimento rural, enfa-
dução agrícola no Peru, da produção agroecológica de tizando o seu caráter instrumental, além disso, discutem-
frutas no Chile e, no Brasil, do Programa Nacional de se as possíveis contribuições do conceito geográfico de
Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais território ao debate do desenvolvimento territorial rural,
(PRONAT), do Ministério do Desenvolvimento Agrá- sobretudo, quanto à participação social dos atores nos
rio (MDA). Esses exemplos indicam uma clara preocu- processos de mudança social e o papel da agricultura
pação instrumental e normativa, pois o território (a familiar. E na última seção, apresentam-se algumas in-
unidade de referência deste enfoque) passa a ser enten- dicações metodológicas e práticas elaboradas a partir das
dido como uma unidade de observação, atuação e ges- pesquisas e investigações sobre as dinâmicas territoriais
tão do planejamento estatal. de transformação da agricultura familiar e do desenvol-
Em contrapartida, a geografia, que reivindica um ca- vimento rural no sul do Brasil, e, também, sobre os obs-
ráter analítico e conceitual ao território, também vem dis- táculos para a efetivação de ações no âmbito da perspec-
cutindo intensamente esse novo uso do território. Na pers- tiva territorial.
pectiva disciplinar da geografia, contudo, o território
assume uma conotação menos instrumental e se liga, ine-
quivocamente, à discussão da projeção espacial do poder. 2. O RETORNO DO CONCEITO DE TERRITÓRIO
Percebe-se assim, que a forma como é tratado o território
diferencia-se substancialmente do debate sobre a aborda- O período de surgimento do conceito de território tem
gem territorial do desenvolvimento rural. por base as formulações de Friedrich Ratzel, no contexto
Nesse sentido, este artigo tem o objetivo de estabelecer histórico da unificação alemã em 1871, e concomitante à
as possíveis contribuições do aporte analítico e conceitual institucionalização da geografia como disciplina nas uni-
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versidades européias. O território, para ele, é uma parcela como uma parcela do espaço, caracterizada pela acessibi-
da superfície terrestre apropriada por um grupo humano, lidade ou não, em meio à fluidez moderna. Essa fluidez
coletividade esta que teria uma necessidade imperativa de resulta, sobretudo, dos grandes avanços tecnológicos do
um território com recursos naturais suficientes para sua século XX, aumentando, em alto grau, as possibilidades
população, recursos que seriam utilizados a partir das ca- de circulação não só das pessoas como também dos obje-
pacidades tecnológicas existentes. E, mais importante, o tos (produtos, mercadorias) a todos os lugares do plane-
conceito de território ratzeliano tem por referencial o Es- ta. Uma fluidez que apontaria, segundo o autor, para as
tado. A contraposição a essas idéias vem, sobretudo, dos integrações entre países.
trabalhos do geógrafo francês Paul Vidal de La Blache – Tal contexto fez Gottmann (1973) concluir que a defi-
a escola francesa de geografia conhecida como possibilis- nição e o significado do território devem ser relacionais,
mo – que se efetivaram, no final do século XIX e início isto é, atualmente, mais do que no passado, um aspecto
do século XX, trabalhos que tinham a noção de região imprescindível para a compreensão da realidade, princi-
como contraponto ao de território. palmente internacional, é o das relações entre os países que
Em suma, o conceito de região teve uma primazia fren- podem ser econômicas, culturais e, a de maior destaque
te a outros conceitos espaciais, o que acabou decretando para Gottmann, políticas (geopolíticas). Nesse sentido,
o descrédito do território como conceito explicativo da esse autor sustenta que os territórios proporcionam às res-
realidade4. Esses dois conceitos serão retomados, sobretu- pectivas sociedades a capacidade da complementaridade
do o segundo, a seguir. com os de fora e, até mesmo, com o mundo.
Muito tempo depois da decretação de seu declínio, o Entretanto, esse debate, em termos genéricos, segue na
território volta a ser debatido, na década de 1970, como mesma linha do território preconizada por Ratzel – pre-
conceito explicativo da realidade. Entre alguns autores que valência do território estatal –, e, portanto, essas contribui-
retomam a discussão sobre o conceito de território, come- ções são limitadas como se perceberá com as propostas ao
çamos com o geógrafo norte-americano Jean Gottmann, debate a seguir.
(1973)5 tendo como referência a obra The significance of O primeiro texto a sobrepujar essa limitação ao debate
territory, publicada em 1973. sobre o território e que se tornou referencial, Por uma ge-
Naquele período, Gottmann (op. cit.) centraliza sua ografia do poder, é de autoria do geógrafo francês Claude
abordagem no significado do território para as nações, e Raffestin (1993), publicado em 1980. Raffestin parte de
sustenta que a relação das pessoas com o seu território uma crítica ao que denomina “geografia unidimensional”,
apresenta-se de diversas formas – geográficas, políticas e ou seja, o território que se referencia, exclusivamente, ao
econômicas –, mas, como assevera o autor, suas análises poder estatal. De forma explícita, a análise deste autor vai
estão circunscritas ao contexto ocidental. O território, para de encontro à perspectiva ratzeliana. Segundo Raffestin
os geógrafos, é uma parcela do espaço definida por limi- (op. cit.), uma evidência clara dessa exacerbação do poder
tes (linhas), que possui um sistema de leis e uma unida- estatal, em Ratzel, está na caracterização dos conflitos que
de de governo, a partir do qual as respectivas localização seriam tão-somente aqueles entre Estados – guerra entre
e características internas são descritas e explicadas, e que, Estados –, enquanto, outras formas de conflitos não seri-
portanto, define o parcelamento do mundo (partitioning) am consideradas relevantes.
dentro da história da humanidade. Como alternativa analítica a esse território estatal, Ra-
Em suma, Gottmann (op. cit.) defende que o signifi- ffestin defende a existência de múltiplos poderes que se
cado de território foi sendo modificado com o passar do manifestam nas estratégias regionais e locais. Assim, co-
tempo – da História ocidental desde a Grécia antiga. Sua loca-se em proeminência uma geografia do poder ou dos
obra termina analisando a realidade mundial até a déca- poderes, e uma melhor significação da geografia políti-
da de 1970. Nesse contexto, o território possui significado ca. Daí, decorre uma diferenciação conceitual importan-

4 Ver essa discussão histórica, do ponto de vista da formação da ciência geográfica, em Moraes (1997).
5 Entre esses outros autores, poderíamos destacar o artigo de S. Lyman e M. Scott, de 1967, portanto,
anterior ao livro de Gottmann, porém, eles se limitam a fazer um balanço sociológico da noção de ter-
ritorialidade que atesta o descaso da sociologia com a dimensão espacial; ou o livro Territorialidade
humana de Torsten Malmberg, escrito em 1976, entretanto, estabelecendo uma relação demasiadamen-
te estreita entre as territorialidades humana e animal (HAESBAERT, 2004b).

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te: enquanto a geografia política assumiria a análise da Uma cela em uma prisão de segurança máxima, exempli-
multiplicidade de poderes e, portanto, dos múltiplos ato- fica Sack, é mais territorial do que uma sala de espera de
res, a geopolítica abordaria o poder de um Estado ou da um dentista.
relação entre dois ou mais Estados, esta sim uma geo- Esse autor afirma ainda que a maioria dos territórios
grafia do Estado. Em relação ao poder, Raffestin, expli- tende a ser fixo no espaço, mas alguns podem mover-se –
citamente calcado no pensamento de Michel Foucault, territórios móveis. Além disso, destaca que uma área pode
coloca que “[o] poder não se adquire; é exercido a par- ser utilizada como um território em um momento ou pe-
tir de inumeráveis pontos;... [as] relações de poder não ríodo qualquer e perder esta qualidade em outro. Em
estão em posição de exterioridade no que diz respeito a outros termos, uma área para ser território necessita de um
outros tipos de relações (econômicas, sociais etc.), mas esforço constante para manter as estratégias para influen-
são imanentes a elas;” e “onde há poder há resistência e ciar e controlar o acesso através de seus limites, e quando
no entanto, ou por isso mesmo, esta jamais está em po- estas cessam o atributo territorial também cessa.
sição de exterioridade em relação ao poder” (RAFFES- Entretanto, as contribuições mais importantes desse
TIN, 1993: 53). autor para o debate sobre o território dizem respeito a dois
Na perspectiva de Raffestin, o território entende-se aspectos. De um lado, a flexibilidade e a abrangência deste
como a manifestação espacial do poder fundamentada em conceito. Através do seu conceito de território, Sack ana-
relações sociais, relações estas determinadas, em diferen- lisa desde uma comunidade indígena norte-americana6 até
tes graus, pela presença de energia – ações e estruturas os territórios no âmbito familiar de um lar comum (por
concretas – e de informação – ações e estruturas simbóli- exemplo, os “territórios” proibidos de uma criança peque-
cas. Essa compreensão permite pensar o processo de ter- na dentro de casa), passando também pelos territórios da
ritorialização-desterritorialização-reterritorialização (T-D- igreja católica. Logo, o conceito presta-se a análises em
R), baseado, sobretudo, no grau de acessibilidade à diferentes escalas e normas de conduta e de convivência
informação; em outras palavras, a informação, ou não, de (cultural, política). De outro, “a territorialidade, como uma
símbolos e/ou de significados podem fazer surgir novos componente do poder, não é somente um meio de cria-
territórios (territorialização), destruí-los (desterritorializa- ção e manutenção da ordem, mas é um instrumento para
ção) ou reconstruí-los (reterritorialização). criar e manter muito do contexto geográfico através do
Outra importante obra no debate sobre o território, qual nós experenciamos o mundo e damos a ele signifi-
Human territoriality do geógrafo norte-americano Sack cado” [trad.] (SACK, 1986: 219).
(1986), examina a territorialidade humana na perspectiva Sucintamente, verificou-se alguns dos autores, e suas
das motivações humanas. Territorialidade como a base do respectivas idéias, responsáveis pelo regresso do conceito
poder. Por isso, o autor parte da crítica a idéia de que a de território para o debate acadêmico: Gottmann (1973)
territorialidade humana é um desdobramento do compor- ressaltando o valor do território para a organização das
tamento animal e, portanto, instintiva e agressiva. Para nações e entre nações; quebrando com a concepção exclu-
Sack, a territorialidade é uma tentativa, ou estratégia, de sivamente, orientada para o território estatal, Raffestin
um indivíduo ou de um grupo para atingir, influenciar ou (1993) mostra a existência de múltiplos poderes, além do
controlar recursos e pessoas através da delimitação e do Estado, que se realizam através de fluxos desiguais de
controle de áreas específicas – os territórios. Em termos energia e de informação nas relações sociais; enquanto
gerais, essa delimitação torna-se território somente quan- Sack (1986) enfatiza o controle do acesso a um certo es-
do seus limites são utilizados para influenciar o compor- paço como definidor do território através das mais dife-
tamento das pessoas através do controle de acesso de seus rentes escalas, desde a pessoal até a mundial.
limites. Dessa forma, os territórios possuiriam diferentes Importante ressaltar que o território estatal, como uti-
níveis de permeabilidade, ou de acessibilidade, às pesso- liza Gottmann e mesmo Ratzel, não perdeu sua centrali-
as, aos objetos ou aos fluxos dos mais diferentes tipos. dade no cenário mundial7, ele é apenas um tipo específi-
6 Nessa comunidade indígena, para pertencer ao grupo o indivíduo deve ser aceito pela comunidade, di-
ferente da cultura ocidental na qual o nascer ou o viver em um território, normalmente, decide o per-
tencimento a uma comunidade.
7 Conforme Rückert, “... o Estado não seria a única unidade de poder, mas uma das unidades, muito
embora a principal” (2004: 7).

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co de território8. Ao mesmo tempo, em que os múltiplos zação. A metáfora do retorno está em pensarmos no iní-
territórios de pequena dimensão porém não desprezíveis cio da História (dos territórios), apesar de estes territórios
numericamente, se multiplicam-se e fortalecem-se como não poderem voltar a ser iguais a antes, onde os indivídu-
sustentáculos para a existência social do indivíduo. os estavam mais isolados do resto do mundo e, portanto,
A discussão do conceito de território, no cenário bra- mais autônomos, sobretudo, nos espaços rurais.
sileiro, tem seu retorno marcado pelo trabalho de pes- Portanto, o debate sobre o território no Brasil aponta
quisa da geógrafa Bertha K. Becker, sobretudo, no arti- para o embate entre o lugar – dimensão local – e o global
go O uso político do território: questões a partir de uma – dimensões regional e mundial. E este embate se dá de
visão do terceiro mundo, publicado no ano de 1983. Nes- forma contraditória: ora o território local favorece as pes-
te texto, a autora traz à tona, também, a crítica ao con- soas que vivem nele, seu cotidiano, ora o território se su-
ceito de território com vinculação exclusiva no poder do jeita aos ordenamentos que vêm de fora. É evidente que
Estado-nação, como única realidade representativa dos essas situações não ocorrem de maneira absoluta, ou seja,
aspectos políticos, utilizando-se, explicitamente, da obra cada local não é totalmente autônomo ou, no outro ex-
de Raffestin (1993). Além da constatação da existência tremo, totalmente heterônomo (regulado pelo outro), o
de múltiplos poderes, ela ressalta que, no plano interna- que ocorre são situações híbridas e assimétricas. Essa pers-
cional, as organizações supranacionais, como por exem- pectiva é essencial, na conceituação do território, para a
plo, as empresas multinacionais, vêm confrontando o compreensão da realidade social.
poder do Estado de forma cada vez mais vantajosa para
as primeiras. Portanto, o conceito de Estado e, conse-
qüentemente, de território estatal deve ser alterado para 3. O USO COGNITIVO E CONCEITUAL DO TERRITÓRIO
assimilar, de um lado, os poderes de escalas inferiores ao
estatal, dessa forma presentes dentro do âmbito jurídico Antes de estabelecer uma conceituação que sirva para
e político do Estado, entretanto não-estatais; e, de ou- os propósitos deste texto, deve-se abordar, mesmo de for-
tro, os poderes de escalas superiores (supranacionais). ma rápida, uma consideração geral, a título de informa-
Nesse sentido, Becker declara: “face à multidimensiona- ção, sobre o conceito de território na atualidade. Esta con-
lidade do poder, o espaço reassume sua força e recupe- sideração diz respeito a três concepções de território muito
ra-se a noção de território. Trata-se, pois, agora de uma presentes na Geografia, segundo Sposito (2004): uma na-
geopolítica de relações multidimensionais de poder em tural, outra individual e uma terceira espacial. A primei-
diferentes níveis espaciais” (1983: 7). ra, a concepção naturalista do território (território clássi-
Esses poderes em escalas inferiores (intra-estatais) têm co), muito difundida, tem justificado historicamente, e
colocado, segundo Becker (1983: 9), “a região na escala ainda hoje, as guerras de conquista através de um impe-
local [lugar] [...] como escala espacial ótima tanto para a rativo funcional que se sustenta como natural, mas, em
organização de movimentos reivindicatórios – regionalis- verdade, construído socialmente.
mos – como para a política espacial do Estado” conside- A segunda, a concepção do território do indivíduo põe
rando-se região como base para o poder territorial. em evidência a territorialidade. Algo extremamente abstra-
Além dos pensamentos dessa autora, impõe-se, de for- to, o espaço das relações, dos sentidos, do sentimento de
ma forte e indelével, a consideração da metáfora do “re- pertença e, portanto, da cultura. O território, neste caso,
torno” do território de que fala Santos, em que os territó- assume diferentes significados para uma comunidade is-
rios habitados (por pessoas comuns) confrontam-se com lâmica, para uma tribo indígena, para uma família que vive
duas tendências contemporâneas; de um lado, a tendên- numa grande metrópole ou, ainda, entre as pessoas de
cia de expansão e, conseqüente, imposição para todos os cada grupo social.
cantos do mundo das relações capitalistas de produção – E a terceira e última concepção, segundo Sposito (op.
processo de mundialização –, e, de outro, a tendência de cit.), acaba gerando uma confusão entre os conceitos de
homogeneização dos costumes e usos, sobretudo no que território e de espaço. Neste caso, antes de se definir o
diz respeito ao consumo individual – processo de globali- conceito de território deve-se abordar o de espaço. Assim,

8 Vale enfatizar que “o território estatal-nacional consiste no estágio mais complexo, até então, alcança-
do das relações da sociedade com o espaço” (HEIDRICH, 2004: 42).

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tomando-se um quadro referencial da geografia brasileira dado momento, produzem a estrutura, ou seja, a nature-
(o mais atual), o conceito de espaço, ou espaço geográfi- za histórica do espaço em que as formas e as funções são
co, segundo Santos (1999:51), seria aquele “formado por criadas e justificadas. E, finalmente, o processo é uma
um conjunto indissociável, solidário e também contradi- ação, freqüentemente, contínua que possui um resultado
tório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não con- qualquer (mudança)9.
siderados isoladamente, mas como o quadro único no qual Em relação à relativa falta de operacionalidade do con-
a história se dá” (1999: 51). Quando em que, os objetos ceito de espaço, Suertegaray (2000) sustenta que na Geo-
técnicos (hidrelétricas, fábricas, fazendas modernas, estra- grafia ele é o mais abrangente e, portanto, o mais abstra-
das,...) possuem um papel importante na construção his- to. Segundo essa mesma autora, os geógrafos utilizam
tórica da sociedade, mas também importantes são as ações conceitos mais operacionais, como por exemplo, os de
que podem ser de caráter técnico – interações requeridas paisagem, lugar, região e território. Esses conceitos expres-
pela técnica –, formal – formalismos jurídicos, econômi- sam diferentes perspectivas ou óticas de leitura do espaço
cos e científicos ou simbólicos (formas afetivas, emotivas, geográfico, requerendo também diferentes procedimentos
rituais). Além do mais, conforme Santos (op. cit.), “os metodológicos. Assim, chega-se à definição do conceito de
objetos não têm realidade filosófica, isto é, não nos per- território, possuidor de características específicas importan-
mitem o conhecimento, se os vimos separados dos siste- tes para os propósitos deste texto.Em primeiro lugar, é
mas de ações. Os sistemas de ações também não se dão importante lembrar que o conceito de território está rela-
sem os sistemas de objetos”. cionado diretamente com a idéia de poder desde Ratzel
Em termos de sua abrangência analítica, o conceito de no século XIX, porém, agora, no seu sentido amplo; ou
espaço é amplo e complexo, o que, às vezes, o torna de seja, nas suas diversas origens e manifestações, mas sem-
difícil operacionalização. De qualquer forma, neste traba- pre focando sua projeção no espaço.
lho, a explicitação do conceito de espaço assume duas Ao definir o território pelas relações de poder que se
conotações. Primeiro, o espaço é um conceito essencial e estabelecem sobre o espaço e entre os atores que o ocu-
balizador para qualquer discussão de cunho geográfico pam e utilizam, alguns autores da geografia foram impul-
(espacial), por se tratar de uma das referências fundantes sionados a dialogar com estudiosos de outras disciplinas
da própria geografia como disciplina científica. O segun- que abordam o poder, tais como Foucault e Arendt. Com
do motivo, não tão evidente como o anterior, ressaltado por base nas idéias desses estudiosos, autores como Raffestin
Milton Santos em seus trabalhos, é que o espaço deve ser (1993) sustentam que as relações de poder se originam de
analisado por meio de quatro categorias em conjunto inúmeros pontos e possuem intencionalidades. Através do
(Santos, 1985): a forma, a função, a estrutura e o proces- território está subtendida essa multiplicidade de poderes
so. A forma é o aspecto visível de um objeto ou de um que afetam, de diversos modos e graus, qualquer ação de
conjunto de objetos, neste caso, formando um padrão es- planejamento10.
pacial. Assim, uma cidade, uma área rural e uma casa são O geógrafo Marcelo Lopes de Souza (1995) parece ter
exemplos de formas espaciais. A função é uma tarefa ou elaborado uma definição bastante interessante do concei-
atividade desempenhada por uma forma (objeto). Os as- to de território que é, ao mesmo tempo, restritiva (por sua
pectos sociais e econômicos de uma sociedade, em um ênfase na idéia de poder) e ampla (pela possibilidade de

9 Sobre essas categorias, Corrêa (2003:29) muito apropriadamente define que “processo é uma estrutura
em seu movimento de transformação. Ressalta que, se considerarmos apenas a estrutura e o processo,
estaremos realizando uma análise a-espacial, não-geográfica, incapaz de captar a organização espacial
de uma dada sociedade em um determinado momento, nem a sua dinâmica espacial. Por outro lado,
ao considerarmos apenas a estrutura e a forma, estaremos eliminando as mediações (processo e fun-
ção) entre o que é subjacente (a estrutura) e o exteriorizado (a forma)” (2003, p. 29).
10 Na acepção de Arendt (1985), por exemplo, o poder é inerente a qualquer comunidade política e, para
operar, necessita ser legitimado pelos integrantes desta comunidade. Assim, ocorre com o território, que
também precisa legitimar-se junto aos seus usuários para poder existir. Para Foucault (1995), por outro
lado, a análise da realidade social parece essencial a apreensão das táticas e estratégias de poder. E es-
tas táticas e estratégias resultam do próprio poder (dos dominadores), assim como da resistência con-
trária (dos dominados), o que caracteriza a relação de poder. Para Foucault (1995: 157) o “território é
sem dúvida, uma noção geográfica, mas é, antes de tudo, uma noção jurídico-política: aquilo que é
controlado por um certo tipo de poder” (1995, p. 157).

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aceitação de diversas dimensões como a social, política, contigüidade espacial, os mais usuais, enquanto os terri-
cultural e econômica). Para Souza, o território é o espaço tórios descontínuos são os que não possuem uma conti-
determinado e delimitado por e a partir de relações de güidade espacial. Alguns autores denominam estes de rede
poder, que define, assim, um limite (alteridade) e que ou território-rede; em termos gráficos, os territórios con-
opera sobre um substrato referencial. Em suma, o territó- tínuos poderiam ser caracterizados por superfícies e os
rio é definido por relações sociais. O território, portanto, descontínuos por pontos. Nos territórios descontínuos, em
pode estar referenciado a formas jurídico-políticas – exem- verdade, são apresentados espaços em diferentes escalas ou
plo clássico de um Estado-nação –, culturais – de uma níveis de análise. Isto é, um território contínuo é um con-
associação de bairro dentro de uma cidade – e/ou econô- junto de pontos em rede numa escala determinada, no
micas – de uma grande empresa. qual cada ponto representa um território contínuo, com
Existem várias formas de territórios, o que sugere uma forma e estrutura próprias e numa escala de menor dimen-
tipologia dos territórios. Os trabalhos do geógrafo Rogério são. Nesse sentido, pode-se tomar, como exemplo, uma
Haesbaert (1997, 2002 e 2004a) podem ser encarados como grande empresa ou uma cooperativa agrícola que teriam
um esforço de construir uma tipologia dos territórios. Como diversas ramificações (filiais para o caso da empresa e, no
nunca se consegue dar conta de todo o estado da arte sobre outro caso, propriedades rurais da cooperativa) subordi-
um determinado tema, é possível afirmar que a classifica- nadas, em diferentes graus, à sede central12.
ção sugerida por Haesbaert, forma um quadro razoavel- Dessa forma, os territórios-rede (descontínuos), como
mente extenso sobre os territórios. Considerando diversos articulações entre espaços de diferentes escalas, apresen-
autores nacionais e internacionais, Haesbaert (2004a) reú- tam claramente o problema de escala: em que, de um lado,
ne as muitas abordagens conceituais de território em três na escala local (no território), está a informação factual, a
vertentes básicas para perceber o território: a política ou valorização do vivido, a tendência à heterogeneidade, os
jurídico-política, em que o território é considerado como dados individuais ou desagregados, os fenômenos mani-
espaço controlado por um determinado poder, às vezes, re- festos; de outro lado, na escala regional ou global (no ter-
lativo ao poder do Estado (institucional); a cultural ou sim- ritório-rede), está a informação estruturante, a valorização
bólico-cultural, em que o território é visto como um pro- do organizado, a tendência à homogeneização, os dados
duto da apropriação simbólica de uma coletividade; e a agregados, os fenômenos latentes (Castro, 1995).
econômica, na qual o território serve como fonte de recur-
sos (dimensão espacial das relações econômicas).
Outra característica dos territórios está no fato de se- 4. TERRITÓRIO E LUGAR: PARA UMA CONCEITUAÇÃO HÍBRIDA
rem dinâmicos. Enquanto relações sociais projetadas no
espaço, os territórios podem desaparecer mesmo que os A partir das considerações anteriores, decorre a propos-
espaços correspondentes (formas) continuem inalterados11. ta, defendida por Sposito (2004), da tentativa de compre-
Esta situação sugere a existência de territorialidades flexí- ensão do território através de dois caminhos: das redes de
veis, que podem ser territórios cíclicos, que se apresentam informações e da volta ao indivíduo e sua escala cotidia-
periodicamente ou sazonalmente ou podem ser territóri- na. No primeiro caminho, o estabelecimento das redes de
os móveis como os sugeridos por Sack (1986). informações é uma realidade atual ampliada pelo rápido
Além disso, também existem os territórios de baixa de- desenvolvimento das tecnologias, em que as informações
finição, que são espaços caracterizados pela superposição podem percorrer milhares de quilômetros em segundos.
de diferentes territórios em um mesmo espaço, o que pode Essa situação acaba “diminuindo” as distâncias (através do
provocar o surgimento de relações de poder adicionais e, aumento da velocidade), elemento central para a apreen-
até mesmo, novos territórios. são dos territórios pelos indivíduos, e dificultando a ma-
Por fim, os territórios podem ser contínuos ou descon- nutenção das identidades territoriais (nacionais, regionais,
tínuos. Os territórios contínuos são aqueles que possuem de vizinhança,...).
11 A tipologia que segue está baseada, sobretudo, na contribuição de Souza (1995).
12 Convém destacar que o território-rede pode ser interpretado como um conceito híbrido como diriam
Haesbaert (2002, 2004a e 2004b) e Santos (1999), autores que ressaltam a conveniência de que dois ou
mais conceitos espaciais sejam utilizados em conjunto para explicar a realidade, esquivando-se, assim,
da rigidez dos “conceitos puros” e enriquecendo as capacidades analíticas dos mesmos.

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106 Sergio Schneider e Iván G. Peyré Tartaruga
De certo modo, isto poderia estar indicando o fim dos ços apropriados, esclarece uma diferenciação relacionada
territórios ou um grande processo de desterritorialização. aos conceitos de território e lugar. Cabe ressaltar que Le-
Neste sentido, conforme Santos (1999: 262), “hoje, a febvre não utiliza a expressão território, tão-somente es-
mobilidade se tornou praticamente uma regra. “O movi- paço, apesar de estar, nesse momento, fazendo referência
mento se sobrepõe ao repouso. A circulação é mais cria- a relações de poder. De um lado, os territórios apropria-
dora que a produção. Os homens mudam de lugar, como dos seriam aqueles utilizados, ou apropriados, para servir
turistas ou como migrantes, mas também os produtos, as as necessidades e as possibilidades de uma coletividade.
mercadorias, as imagens, as idéias. Tudo voa. Daí, a idéia Assim, os territórios apropriados possibilitariam uma
de desterritorialização. Desterritorialização é, freqüente- “apropriação” simbólica e identitária, além de funcional,
mente, uma outra palavra para significar estranhamento, desses espaços, portanto, uma apropriação que só pode ter
que é, também, desculturização”. Entretanto, o que se início no “lugar” de cada indivíduo. De outro, os territó-
percebe, em vários lugares, é a luta identitária com todo o rios dominados seriam aqueles espaços transformados e,
seu vigor. Nesse contexto, Haesbaert (2004b) aborda no também, dominados, quase sempre fechados.
mito da desterritorialização, pois ao mesmo tempo em que Estes espaços seriam puramente utilitários e funcionais,
ocorrem processos de desterritorialização, ocorreriam, tam- dentro de uma razão instrumental, ou seja, com a finali-
bém, territorializações e reterritorializações. dade de controlar os processos naturais e sociais através
Enfim, passemos para o segundo caminho para o en- das técnicas, submetendo-os ao interesse da produção. A
tendimento do território, o do indivíduo e de seu cotidia- história da acumulação do capital é também, para Lefeb-
no. De maneira um pouco diferente de Sposito (2004), que vre (1991), a história da separação (e contradição) da apro-
coloca a apreensão do indivíduo e do cotidiano no con- priação e da dominação, sobretudo, com o surgimento da
ceito de território, Peyré Tartaruga (2003) sustenta que isto propriedade privada. Convém ressaltar, também, que a
está mais diretamente relacionado ao conceito de lugar. De posse não é uma condição necessária para caracterizar os
nossa parte, Oakes (1997) sintetiza o melhor conceito de territórios dominados, existem formas de coerção econô-
lugar13, qual seja: definido de duas formas, por um lado, mica e política (não-institucionalizadas) que fazem sur-
é o local da atividade – ação – imediata do sujeito, ele- gir espaços dominados dentro de espaços públicos, e que,
mento que mostra a diferença entre lugar e região, pois, muitas vezes, tem forte legitimidade perante a população
na região e muitas vezes no território, o senso de identi- em geral.
dade é uma abstração para os indivíduos – falta para es- Em suma, o território pode assumir as mais diversas es-
tes uma ação imediata sobre o local –; e, por outro, é o calas, formas e manifestações, desde pequenos territórios –
local de identidades significativas. O lugar encerra, dessa um bairro em uma cidade ou uma vila rural – até um terri-
forma, o espaço da vivência e da convivência, e possui tório-rede de uma grande multinacional que possui suas
como ponto de referência o cotidiano – imprescindível ramificações em vários países. Como defende Haesbaert
para a compreensão da sociedade. (2004b:32), o que muitos denominam desterritorialização
Acredita-se que o mais correto seria usar, de forma hí- é, em realidade, uma nova forma de territorialização, a
brida, os conceitos de território e luga; mais precisamen- multiterritorialidade; ou seja, “um processo concomitante
te, o território teria como substrato referencial o lugar. de destruição e construção de territórios mesclando diferen-
Cabe enfatizar que alguns territórios, relações de poder tes modalidades territoriais (como os ‘territórios-zona’14 e
espacializadas, não possuem referência com o lugar, na- os ‘territórios-rede’), em múltiplas escalas e novas formas de
queles espaços, as dimensões econômicas e/ou políticas são articulação territorial”.
preponderantes perante o cotidiano das pessoas (lugares). Portanto, a conceituação, aqui defendida, é aquela em
Nesse contexto, a proposta de Henri Lefebvre (1991), que o território é definido como um espaço determinado
muito bem utilizada por Haesbaert (1997), de duas cate- por relações de poder, definindo, assim, limites ora de fá-
gorias analíticas para explicar o desenvolvimento da soci- cil delimitação (evidentes), ora não explícitos (não mani-
edade capitalista, quais sejam, espaços dominados e espa- festos), e que possui como referencial o lugar; ou seja, o

13 Por razões de espaço, não será possível, no âmbito deste ensaio, fazer uma digressão e um debate sobre
as diferentes concepções de lugar.
14 O “território-zona” é outra forma de nomear território contínuo.

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Território e abordagem territorial: das referências cognitivas aos aportes aplicados à análise dos processos sociais rurais
107
espaço da vivência, da convivência, da co-presença de cada Nesse sentido, é comum que o território perca seu sen-
pessoa. E, considerando ainda, o estabelecimento de rela- tido heurístico e conceitual e passe a ser utilizado como
ções, internas ou externas, aos respectivos espaços com sinônimo de espaço ou região, conforme o caso. Tal como
outros atores sociais, instituições e territórios. Esse conceito destacou Sabourin (2002), o território passa a ser utiliza-
pode ser útil para o estudo de uma ampla gama de situa- do “numa perspectiva de desenvolvimento”; ou seja, como
ções e processos sociais e, sobretudo, para a discussão do uma variável a ser considerada quando se pretende fazer
desenvolvimento rural, sendo necessário, para isso, alguns algum tipo de intervenção sobre o espaço e as populações
ajustes, o que será abordado a seguir nesse texto. que resultem em alterações do quadro existente. Desse
modo, a abordagem territorial do desenvolvimento pres-
supõe a ação sobre o espaço e a mudança das relações
5. DO CONCEITO À ABORDAGEM: DISTINGUINDO TERRITÓRIO sociais nele existentes. Portanto, seus objetivos são, prio-
DA ABORDAGEM TERRITORIAL ritariamente, instrumentais e práticos e, por esta razão, não
se pode reivindicar ou reclamar das perspectivas ou abor-
Até aqui, buscou-se demonstrar uma dimensão relati- dagens territoriais por serem a-teóricas, pois foi, exatamen-
vamente relegada quando se trata da utilização do terri- te, com esta finalidade que foram elaboradas.
tório como um conceito ou uma referência heurística, ou A tentativa de buscar referências espaciais e conferir-
seja, quando se recruta o termo para lhe emprestar e re- lhes poder de explicação causal parece ser uma tendência
querer-lhe uma dimensão analítica e conceitual. Por esta recente (talvez uma moda) que cresce em várias discipli-
razão, defende-se a necessidade de se distinguir o uso e o nas das ciências sociais, notadamente na economia, na
significado do território como um conceito de análise, tal sociologia e na ciência política. No âmbito deste trabalho,
como lhe confere a geografia e outras disciplinas, como a não será possível explorar, com profundidade, os motivos
antropologia ou a biologia, dos sentidos instrumentais e que justificariam esse diálogo das disciplinas em torno do
práticos que lhe são atribuídos pelos enfoques ou aborda- território. Contudo, na seqüência, pretende-se explorar e
gens territoriais. argumentar que há duas razões a serem consideradas para
Da revisão até aqui empreendida, pode-se extrair, como se compreender por que o recurso às abordagens territo-
ensinamento, que o território não se confunde e não se riais tornou-se uma referência recorrente para a interpre-
restringe ao conceito de espaço da mesma forma que não tação de processos e, ao mesmo tempo, uma ferramenta
pode ser usado como mero sinônimo de região ou de lu- para a intervenção.
gar – ou local (Andrade, 1995). A diferença fundamental A primeira razão, que estimula fortemente o interesse
entre o uso e o significado conceitual e instrumental do crescente pelos enfoques e abordagens territoriais, está re-
território é o fato que o sentido analítico requer que se lacionada à profusão da literatura que interpreta o con-
estabeleçam referências teóricas, e mesmo epistemológicas, texto atual das transformações societárias como sendo o
que possam ser submetidas ao crivo da experimentação resultado da crise do fordismo e do processo de reestrutu-
empírica e, depois, reconstruídos de forma abstrata e ana- ração do capitalismo contemporâneo15. Como resposta à
lítica. O uso instrumental e prático não requer estas prer- crise, o processo de reestruturação capitalista teria desen-
rogativas e, por isso, pode-se falar em abordagem, enfo- volvido um regime de acumulação baseado naquilo que
que ou perspectiva territorial quando se pretende referir a Piore & Sabel (1984) chamaram de acumulação flexível,
um modo de tratar fenômenos, processos, situações e con- entendido como um novo modelo de organização dos pro-
textos que ocorrem em um determinado espaço (que pode cessos produtivos baseado na descentralização das plan-
ser demarcado ou delimitado por atributos físicos, natu- tas e na maior flexibilização. Com a publicação desse tra-
rais, políticos ou outros) sobre o qual se produzem e se balho, projetaram-se, ainda mais, os estudos sobre a
transformam. industrialização difusa e os sistemas produtivos locais

15 O fordismo pode ser entendido como um modelo de acumulação e regulação do capitalismo que teria
se estruturado desde a década de 1930 nos Estados Unidos e se internacionalizado após a segunda guerra
mundial, entrando em declínio a partir de meados da década de 1970. Devido à ampla literatura sobre
este tema vou limitar às citações a três obras sobre o tema (AGLIETTA, 1979; LIPIETZ, 1988 e HAR-
VEY, 1996). Uma excelente revisão de como esta discussão sobre os distritos industriais acabou influen-
ciado a emergência da abordagem do desenvolvimento territorial está em Veiga (1999).

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108 Sergio Schneider e Iván G. Peyré Tartaruga
(SPLs), também conhecidos como “distritos industriais no, exógeno, etc.17 Neste sentido, foi Pecqueur (1989;
marshallianos” (mais recentemente também chamados de 1992; 1996) quem indicou claramente que o espaço-ter-
clusters), que vinham sendo desenvolvidos pelos estudio- ritório desempenha o papel de uma variável explicativa
sos italianos da reestruturação industrial (Bagnasco, 1997). no desenvolvimento porque o espaço cessa de ser ape-
Na esteira dos trabalhos dos italianos vieram outros (Cou- nas um suporte aparente e torna-se um elemento de or-
lert & Pecqueur,1994) que, embora não comungando das ganização produtiva que vai influir nas estratégias dos
mesmas referências teóricas, passaram a explorar a dimen- atores individuais e das firmas. Do ponto de vista mate-
são espacial e territorial dos fenômenos da localização do rial e produtivo os territórios, segundo Pecqueur (1989),
desenvolvimento industrial. assumem o caráter de sistemas produtivos locais (poden-
A partir desta literatura, difunde-se, com vigor, a idéia do receber também outras denominações como millieux
de que os processos de desenvolvimento industriais que ou atmosferas) que territorializam o lugar em que trans-
apresentavam os melhores indicadores em face à crise ge- corre uma pluralidade de formas de justificação da ação
ral patrocinada pela reestruturação capitalista, eram aque- humana (reciprocidade, cooperação, concorrência, dispu-
les que estavam assentados em uma dinâmica territorial ta, etc). Neste sentido, os territórios não possuem ape-
muito específica. Esta literatura foi de fundamental impor- nas uma dimensão econômica e material, mas também
tância para que as noções de local, regional e nacional cultural e cognitiva e, neste sentido, são um resultado,
fossem abandonadas e substituídas pela de espaço e terri- pois “constituem-se em espaços particulares que permi-
tório, em geral usadas como sinônimos16. Como o objeti- tem operar uma mediação entre o indivíduo e o exteri-
vo, aqui, não é o de reproduzir este debate em seus me- or” (Pecqueur, 1992: 84).
andros, mas, tão somente, indicar a influência que estes A segunda razão que favoreceu o interesse pela abor-
estudos sobre a reestruturação da economia industrial ti- dagem territorial está relacionada aos aspectos políticos e
veram sobre a difusão da abordagem (enfoque ou perspec- institucionais que derivam, basicamente, da crise do Es-
tiva) territorial do desenvolvimento, podemos nos apoiar tado e da perda crescente de seu poder de regulação. A
no trabalho de Coulert & Pecqueur (1994) para indicar crise do Estado refere-se a sua incapacidade crescente de
como definem o território. regular e interferir na economia privada, especialmente, a
Para esses autores, o território se tornou “uma variável partir da ampliação da capacidade da economia capitalis-
crucial para explicar as dinâmicas econômicas relativas a ta de ajustar, em escala planetária, a interdependência
diferentes espaços. As condições históricas e culturais e as entre as condições de tempo e espaço no processo global
características sócio-econômicas das diversas regiões jogam de produção de mercadorias. As novas tecnologias de base
um papel importante, sua diversidade explica em grande microeletrônica e telemática (telecomunicações e informá-
parte as diferenças de trajetórias de desenvolvimento or- tica) foram de fundamental importância para a consoli-
denadas segundo circunstâncias históricas e geográficas” dação do processo de globalização (também chamada de
(Coulert & Pecqueur, 1994: 470). Neste caso, o espaço não mundialização) que caracteriza a sociedade e a economia
é um simples suporte, mas ele se torna território, o ponto contemporânea.
de reencontro dos atores do desenvolvimento, o lugar onde Incapaz de acompanhar as rápidas mudanças em cur-
se organizam formas de cooperação entre empresas, onde so, o Estado passou a sofrer sucessivas alterações nas suas
se decide a divisão social do trabalho, enfim, “o lugar de funções e incumbências, que lhe haviam sido atribuídas,
reencontro entre as formas de mercado e as formas de regu- com maior intensidade, a partir de meados do século XX.
lação social”. O território torna-se um componente perma- Modificam-se desde as suas estruturas até o caráter de suas
nente do desenvolvimento. ações, deixando de ser o indutor do desenvolvimento eco-
Vale salientar a importância da utilização da noção de nômico e passando a ser o seu regulador, alterando o seu
território ou desenvolvimento territorial, pois o debate, caráter centralizador para uma forma mais suscetível e
em torno dos modelos de desenvolvimento, encontra permeável à participação das diversas instâncias e organi-
outras expressões como desenvolvimento local, endóge- zações da sociedade civil.

16 É claro que, muito disso, deveu-se ao fato de que na Europa a geografia econômica ser uma área com
grande mobilização de estudiosos.
17 Para uma revisão dessa literatura, consultar Reis (1992); Cazella (2002) e Vásquez-Barquero (2002).

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Território e abordagem territorial: das referências cognitivas aos aportes aplicados à análise dos processos sociais rurais
109
Nesse cenário, ganham destaque iniciativas como a lização do território, quer seja através da abordagem das
descentralização e a valorização da participação e do pro- transformações produtivas que partem das mudanças na
tagonismo dos atores da sociedade civil, especialmente economia industrial para mostrar que estes processos pos-
ONGs e os beneficiários diretos das políticas. Redefine-se suem uma territorialidade, ou através do enfoque político
o papel das instituições e cresce a importância das esferas e institucional que busca mostrar que o território torna-
infranacionais do poder público, notadamente, as prefei- se a nova unidade de mediação entre o espaço e os atores
turas. Assim, emerge a necessidade de novas unidades de locais e as demais esferas regionais e nacionais. Tanto num
referência que tornem a ação estatal exeqüível e permeá- caso como noutro, o território deixa de ter um sentido
vel à participação. Este será o terreno fértil para a evoca- heurístico e conceitual, conforme apontado anteriormen-
ção da noção de território e/ou enfoque territorial como a te, e assume a condição de uma abordagem ou de um
nova unidade de referência que funcionará como instân- enfoque.
cia de mediação capaz de contemplar as relações entre os
atores locais e as demais esferas e escalas, como a regio-
nal e nacional, além da global. 6. COMO PENSAR O DESENVOLVIMENTO RURAL A PARTIR
Uma análise mais detalhada mostra que o enfoque DA ABORDAGEM TERRITORIAL?
territorial é permeável às noções de governança (intera-
ção e regulação entre atores, instituições e Estado) e de Tal como indicado anteriormente, a afirmação e a le-
concertação social ou coordenação de interesses de ato- gitimação da noção de abordagem territorial estão for-
res que transcorrem em um espaço determinado que é o temente ligadas às perspectivas interpretativas que se
território. Tanto a governança como a participação pas- ocupam com o tema do desenvolvimento quer seja pela
sam a ser entendidas como de fundamental importância ótica de sua projeção espacial ou pelo papel dos ato-
para determinar o novo papel das organizações e insti- res, das instituições, das formas de organização coleti-
tuições locais. Não deixa de ser sintomático, por exem- va e, até mesmo, da cultura. E quando se trata do tema
plo, o grande interesse dos estudiosos e, sobretudo, dos do desenvolvimento há um duplo desafio a ser enfren-
policy makers com a instrumentalização da participação tado: por um lado, está a difícil tarefa de lhe emprestar
dos atores sociais nas ações e intervenções do Estado, que uma definição e, por outro, de que modo aplicar este
parece ter se transformado em uma nova panacéia para entendimento.
explicar a mudança social a partir do papel das formas Neste trabalho, não será possível retomar esta discus-
de governança. Por sua vez, a noção de concertação so- são em profundidade, o que remetemos para um outro
cial ou coordenação de interesses passou a ser pensada a artigo (Schneider, 2004), em que se refletiu sobre algu-
partir da idéia de capital social. Na acepção utilizada por mas das definições sobre desenvolvimento rural que apa-
Robert Putnam(1996: 177), o capital social seria um con- receram na literatura nacional e internacional recente-
junto de dispositivos que “dizem respeito a característi- mente. Naquele trabalho, o desenvolvimento rural foi
cas da organização social, como confiança, normas e sis- definido como um processo resultante de ações articula-
temas que contribuam para aumentar a eficiência da das que visam induzir mudanças socioeconômicas e
sociedade, facilitando as ações coordenadas”. Estes dis- ambientais no âmbito do espaço rural para melhorar a
positivos possuem uma forte ancoragem às comunidades renda, a qualidade de vida e o bem-estar das populações
cívicas, cujos valores culturais, normas e tradições têm rurais. Dadas as especificidades e particularidades do
um recorte territorial. espaço rural, determinadas pelos condicionantes sociais,
Assim, o território passa a ser visto e compreendido econômicos, edafo-climáticos e tecnológicos, o desenvol-
como a nova unidade de referência e mediação das ações vimento rural refere-se a um processo evolutivo, intera-
do Estado e o enfoque no desenvolvimento territorial tor- tivo e hierárquico, quanto aos seus resultados, manifes-
na-se, portanto, um modo de ação que valoriza os atribu- tando-se nos termos dessa complexidade e diversidade no
tos político e culturais das comunidades e dos atores soci- plano territorial.
ais ali existentes. Governança local e participação social Mas a discussão sobre o desenvolvimento rural se rela-
tornam-se, neste sentido, atributos do desenvolvimento ciona também ao debate mais geral sobre os processos de
territorial. mudança social, que deveriam favorecer a melhoria da
Desse modo, assiste-se a uma verdadeira instrumenta- qualidade de vida, a ampliação da justiça social, das liber-
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dades individuais e da emancipação política18. Trata-se, na tização teórica do conceito de território é deliberada por-
verdade, de um processo de geração da autonomia e da que os autores não se propõem esta tarefa. Seja como for,
construção de um projeto coletivo que, como lembra Cas- contudo, isto não invalida a observação.
toriadis (1982), é a única forma possível para a efetivação Na tentativa de responder a indagação que orienta esta
da emancipação19. Neste sentido, todo processo de desen- seção, sobre as condições e possibilidades de pensar o de-
volvimento tem, inexoravelmente, um sentido societário. senvolvimento rural numa perspectiva territorial, a seguir,
No que se refere à discussão do desenvolvimento rural argumenta-se que é possível recorrer ao território como
a partir de um enfoque territorial, a proposta apresentada conceito e, ao mesmo tempo, reter algumas das sugestões
por Schejtman & Berdegué (2004) parece satisfatória e que advém da abordagem territorial. Trata-se de uma ten-
coerente. De fato, o que eles denominam de desenvolvi- tativa de promover um diálogo entre a acepção heurística
mento territorial rural é, efetivamente, uma perspectiva que e cognitiva que vem da geografia e a noção instrumental
visa orientar ações e sugerir formas de se estudar e anali- das abordagens territoriais que permita elaborar um refe-
sar a atuação dos atores, das políticas públicas e das insti- rencial de alcance médio (seguindo a sugestão de Robert
tuições a partir de uma referência territorial. A abordagem Merton) adequado aos estudos sobre desenvolvimento
territorial, proposta por Schejtman & Berdegué, orienta- rural. Não se trata nem de ficar no agnóstico e abstrato
se pelo objetivo claro de redução da pobreza nas áreas campo da teoria nem tampouco permanecer na planície
rurais mediante estímulo a processos de transformação empírica e meramente descritiva, pois o tema do desen-
produtiva e institucional. A transformação produtiva ob- volvimento rural requer, por si só, um intercambiamento
jetiva articular, de forma competitiva e sustentável, a eco- inteligente entre estas duas dimensões.
nomia do território aos mercados dinâmicos, enquanto a Essa preocupação em integrar a abordagem territorial
institucional sugere a interação dos atores locais entre si e aos estudos analíticos do desenvolvimento rural deriva, de
com agentes externos, tendo como premissa a participa- um lado, do reconhecimento de que a geografia, antropo-
ção da população no processo e nos benefícios. logia e outras disciplinas que atribuem ao território um
Não obstante, quando se examina o que os autores ci- sentido cognitivo têm razão ao criticar o seu uso excessi-
tados anteriormente entendem por território, percebe-se vamente normativo e aplicado, como se fosse possível ser
que sua definição está mais próxima do conceito de espa- transformado e isolado como uma variável a mais, do
ço do que o de território, tal como a Geografia os utiliza. mesmo modo que ocorre em algumas perspectivas. Por
Há, inclusive, passagens em que o território aparece, de outro lado, é preciso reconhecer que os reclamos dessas
fato, como sinônimo da abordagem regional, desaparecen- disciplinas, em relação ao uso do território não devem ser
do, por completo a consideração das relações de poder. percebidos como restrição à sua aplicação por outras áre-
Nos termos em que está formulada, a proposta de Sche- as do conhecimento, especialmente aquele informado por
jtman & Berdegué (op. cit.) pode ser entendida como uma preocupações mais práticas e aplicadas. Assim, é perfeita-
resposta criativa à indagação ao modo de se pensar o de- mente compreensível e lícito que o conceito de território
senvolvimento rural a partir de uma perspectiva territori- tenha sido apropriado por diversas abordagens e perspec-
al aplicada e instrumental. Contudo, se o objetivo for bus- tivas, tais como já referidas.
car referências heurísticas e teóricas para discutir como o Na tentativa, então, de promover este diálogo e esta
conceito de território pode ser apreendido e incorporado interface entre o nível cognitivo e as perspectivas aplica-
a uma abordagem analítica do desenvolvimento rural, a das do território para pensar e analisar os processos de
proposta dos autores chilenos é insuficiente. Na realida- mudança social que ocorrem nos espaços rurais (o que
de, conforme já enfatizado, a ausência de uma problema- configura o entendimento aqui esposado sobre o desen-

18 Ainda que preliminar e sujeita a reconsiderações, essa visão geral do desenvolvimento rural vai ao
encontro da perspectiva de Martins(2002: 10), quando afirma que “é difícil reconhecer que haja de-
senvolvimento quando seus benefícios se acumulam longe da massa da população. Como é difícil
reconhecer a legitimidade de um modelo de desenvolvimento que exclui legiões de seres humanos
das oportunidades de participação não só nos frutos da riqueza, mas até mesmo na produção da
riqueza”.
19 A autonomia individual, ou a total independência de um indivíduo perante os outros e seu entorno, é
uma condição impossível, pois se caracteriza por uma condição não histórica (de negação do processo
histórico das relações sociais) (Castoriadis, 1982).

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Território e abordagem territorial: das referências cognitivas aos aportes aplicados à análise dos processos sociais rurais
111
volvimento rural) sugere-se focalizar duas dimensões, a po, uma projeção material mas é, sobretudo, uma cons-
saber: a dinâmica das formas sociais de trabalho e produ- trução social do espaço que ocorre de forma coletiva e
ção e os processos de organização social e participação comungada pelos indivíduos e instituições que demar-
política. Ou seja, nas pesquisas e investigações conduzi- cam sua presença no território e estabelecem códigos de
das sobre o desenvolvimento rural no Sul do Brasil bus- pertencimento a este.
cou-se integrar a dimensão cognitiva do território a partir No que se refere à dimensão dos processos de organi-
da análise das formas de geração, apropriação e regulação zação social e participação política, parece importante re-
das relações de poder, tentando-se identificar como em um tomar a idéia da construção social e da emancipação. Com
determinado espaço social, a ação política dos atores im- efeito, a participação social, em diversos graus e modos,
plica na construção de mecanismos de mediação que po- está fortemente vinculada à possibilidade do surgimento
dem ser denotados tanto pela participação como pelos de processos de (re)territorialização. Assim, os territórios
conflitos. Da dimensão aplicada e instrumental das abor- apropriados ou dominados podem ser reconhecidos e com-
dagens territoriais, incorporou-se a sugestão de analisar as preendidos a partir da participação dos indivíduos na efeti-
dinâmicas de reprodução da agricultura familiar por in- vação, por exemplo, de políticas públicas ou de projetos
termédio de atividades agrícolas e não-agrícolas, do auto- sociais realizados pelas comunidades correspondentes.
provisionamento doméstico ou da inserção mercantil, en- Desse modo, os atores e sujeitos de um território são con-
tre outras. vocados auxiliar a construir os projetos e as iniciativas e a
No que se refere à dinâmica das formas sociais de tra- tornar-se co-responsáveis por seu desígnio. Objetivamen-
balho e produção, focaliza-se, em especial, duas dimen- te, isto pode ser operacionalizado através dos processos
sões que são os mecanismos sócio-econômicos de repro- decisórios participativos nas políticas públicas, que propor-
dução da agricultura familiar e o lugar geográfico onde cionam aos gestores dessas políticas e aos próprios parti-
transcorrem os processos de mudança social rural. A di- cipantes, o conhecimento, ainda que superficial, da reali-
mensão sócio-econômica toma como referência à unida- dade através da troca de informações entre os sujeitos. O
de de produção familiar e contempla as estratégias produ- que vem minimizar o problema da insuficiência de infor-
tivas dos agricultores familiares e suas vinculações com os mações nos processos de tomada de decisões.
outros atores do território e mesmo externos a este. Aqui, Nesta perspectiva, a participação social pode trazer à
podem ser consideradas múltiplas estratégias que vão des- tona a consciência social dos indivíduos. Segundo Martins
de as agrícolas (agregação de valor, beneficiamento e pro- (2002), a análise da consciência social mostra a interpre-
cessamento da produção própria) até as não-agrícolas tação que a vítima, tomando como pré-condição uma si-
(como a inserção em mercados de trabalho fora da pro- tuação de adversidade, tem da sua realidade e a possibili-
priedade, que estimulam o aparecimento da pluriativida- dade de propor soluções. Apesar dos desencontros entre
de). A dimensão do lugar refere-se ao espaço em que trans- consciência e situação sociais, isto é, leituras equivocadas
corre a vida cotidiana dos agricultores e de suas famílias da realidade social, estes indicam problemas a serem re-
que começa pelo espaço da moradia e do estabelecimento solvidos e explicitados, quando evidentes à luz, por exem-
e estende-se à comunidade local, aos vizinhos, e chega ao plo, do aporte técnico-científico. De outra parte, os encon-
pequeno povoado ou município. Este território tem, como tros entre elas podem tornar-se interessantes tentativas de
características importantes, a coincidência espacial entre a mudança social. Seja como for, por meio da consciência
unidade produtiva e a unidade doméstica (Chayanov, social, é que aparecem as autodesignações, que são defi-
1974) e, ao mesmo tempo, a articulação com o que Mar- nidoras, consciente e inconscientemente, de ações e de
cel Jollivet (2001) chama “coletividade local”, onde se de- propósitos e, portanto, importantes para qualquer experi-
senrola o seu modo de vida (“rural livelihood”, segundo ência de modificação de determinada situação.
Frank Ellis (1998 e 2000). Cabe ressaltar que, em uma experiência concreta de
Nesse território, cada família estabelece mecanismos indução de ações que visam o desenvolvimento, os agen-
e meios de se reproduzir, por vezes, formando microter- tes e gestores não teriam, como objetivos programáticos,
ritorialidades em que, no limite, cada unidade familiar a apreensão e a compreensão da consciência social das
pode ser considerada independente. Conforme já salien- populações alvo. A consciência social viria como um acó-
tado, aqui, o território é percebido a partir do conceito lito da participação social. Em outras palavras, no proces-
geográfico de lugar que, como tal, tem, ao mesmo tem- so mesmo de participação autêntica estão relações sociais
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mediatizadas pelas autodesignações de cada pessoa, que Através de técnicas de coleta de dados qualitativos,
são confrontadas pelas diferenças deliberativas (hierarquias como entrevistas ou observações participantes, pode-se
objetivas e simbólicas, conhecimentos tradicionais ou do conseguir dos agricultores familiares, as indicações inici-
senso comum, e técnicos) e, portanto, a participação está ais para a construção de um conjunto de informações in-
circunscrita a consciência social. terpretativas acerca de seu modo de vida e sua reprodu-
Em termos espaciais, é, nesses momentos de participa- ção social: Onde vende a produção? Onde compra os
ção, que os territórios podem ser criados, fortalecidos, re- insumos necessários para a produção? Como são os mer-
construídos ou, até mesmo, destruídos com base na cons- cados com que se relaciona? São questões de ordem pro-
ciência social do conjunto de atores envolvidos. É nesses dutiva e econômica? Quais são as relações de reciproci-
momentos que os lugares, e a partir deles, podem adqui- dade que estabelecem? Quais as instituições (cooperativas,
rir um caráter territorial, de apropriação do espaço. Nesse associações de produtores, sindicatos) com quem se rela-
sentido, o território pode tornar-se uma mediação entre o cionam? Existem processos de participação social (políti-
lugar e o mundo exterior (regional, nacional e mundial), cas públicas estatais e/ou ações não-estatais)? São ques-
na tentativa de reprodução social e econômica dos indiví- tões de natureza social e política.
duos. A partir destas indagações, pode-se avançar para com-
preensão da identidade, verificando se há um sentimento
de pertencimento local e comunitário, que não se refere
7. À GUISA FINAL: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS VANTAGENS apenas ao lugar, mas ao contexto geral de forma mais
E OS LIMITES DO USO DO TERRITÓRIO ampla. Através desse entendimento, pode-se chegar à cons-
ciência social desses atores, procurar entender qual a con-
Sem a pretensão de propor um desfecho à reflexão so- cepção que os indivíduos têm da realidade em que vivem.
bre as relações entre território e desenvolvimento territo- A partir desses elementos (as relações produtivas e so-
rial, nesta seção final, pretende-se apresentar algumas in- ciais), busca-se compreender as dinâmicas da agricultura
dicações de como a perspectiva de trabalho, exposta familiar a partir da convergência dos elementos analíticos
anteriormente, tem orientado os estudos e pesquisas que do conceito de território e dos elementos que advém das
conduzimos sobre as transformações da agricultura fami- perspectivas de desenvolvimento. Para melhor compreen-
liar em um contexto de mudanças sociais. Não se trata de der como se realiza esta operação, recorre-se a três níveis
fazer referências a dados empíricos, ou mesmo, a conclu- diferenciados. O primeiro é o nível que compreende a for-
sões de pesquisa alcançadas mediante trabalho de inter- ma e a função, nos termos de Milton Santos, representa-
pretação analítica, mas de indicar o caminho que vem sen- dos pelas unidades de produção familiares (estabelecimen-
do trilhado. to, unidade de residência, etc) e pelos diferentes tipos de
Conforme salientado, o território é entendido a partir atividades (agrícolas e não-agrícolas) que são aí realiza-
do reconhecimento das relações de poder projetadas no das. Aqui, torna-se central estudar e compreender as es-
espaço entre os diversos atores. O espaço que nos interes- tratégias de reprodução que são empregadas, tais como a
sa conhecer nesta perspectiva, é sempre o espaço demar- produção voltada para o autoconsumo, o incremento da
cado e transformado pela presença histórica e formativa pluriatividade, o recurso às migrações, as relações com as
da agricultura familiar, que é a forma social hegemônica, políticas de sustentação de Estado e a assistência social
embora possa haver outras. O ponto de partida, portanto, pública.
é o agricultor, sua família, sua propriedade, sua atividade O segundo nível, por sua vez, é o do ambiente social e
produtiva e as redes sociais e institucionais em que estiver econômico local em que transcorrem as relações de pro-
inserido, que podem ser materiais ou intangíveis, ligadas ximidade, intercâmbio e reciprocidade e do qual emergem
à memória e às representações. O objetivo, contudo, é ten- atores privados (empresas) e coletivos (associações, coo-
tar entender e explicar as dinâmicas territoriais que mar- perativas), e instituições (sindicatos, organizações, Igreja)
cam a presença e a transformação da agricultura familiar que criam, legitimam e vivem informados por normas tá-
em espaços tão diversos e heterogêneos como os que se citas e formais que compõem os mecanismos de regula-
presenciam no meio rural. Trata-se, no limite, de compre- ção que orientam e garantem a sua convivência. Trata-se
ender como se dá o processo de mudança social que afeta da estrutura social e econômica que rege a vida do grupo
estes agricultores e suas famílias. em questão. Parte-se para uma análise mais apurada so-
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Território e abordagem territorial: das referências cognitivas aos aportes aplicados à análise dos processos sociais rurais
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bre o grau de autonomia que os agricultores familiares tico, econômico e social. Atualmente, essas imposições se
possuem em relação a sua condição econômica, social e fazem presentes em diferentes escalas, do local ao global.
política. Como exemplo, pode-se citar o caso das assimetrias que
O terceiro e o último nível é o dos processos sociais que derivam das imposições dos governos federal e estadual
transcorrem em um determinado território. Aqui, é neces- sobre as municipalidades, que são a unidade local mais
sário acionar a percepção cognitiva e analítica, pois se trata próxima dos agricultores familiares.
de perceber e analisar os conflitos e divergências entre os Obviamente, o principal problema, neste caso, é de es-
atores e os agentes que compõem a estrutura, porque exis- cala e da falta de mediação entre estas. Aqui, os territóri-
tem disputas pela dominação e apropriação dos recursos os aparecem como soluções para gerar e mediar as ações
disponíveis e/ou dos resultados produzidos. Enfim, ana- de desenvolvimento rural, estabelecendo elos entre o glo-
lisar os processos sociais significa explicar como se dá bal, o regional e o local. Nessa contexto, os territórios sur-
mudança social ou, dito de outro modo, elucidar porque gem como mecanismos de apropriação e compreensão da
existem dinâmicas territoriais distintas e heterogêneas de realidade objetiva através da ação dos diversos atores so-
reprodução da agricultura familiar. ciais. Surge aí, efetivamente, um espaço de intermediação
Neste caso, caberia verificar, com maior refinamento, cuja característica fundamental é o relacionamento do ter-
o caráter das relações buscando analisar, por exemplo, as ritório com seu ambiente externo.
assimetrias com os agentes exteriores do território e os Em outro trabalho Schneider (2004), buscou demons-
conflitos internos. Assim, poder-se-ia perceber se os terri- trar a importância e a necessidade das distintas formas de
tórios são apropriados ou dominados, segundo a diferen- articulação e mediação dialética dos territórios com o
ciação sugerida por Lefebvre. Isto permitiria visualizar a ambiente externo. Em tal trabalho, foram destacados cin-
presença e o papel das elites no processo de apropriação e co principais modos de articulação externas, a saber:
dominação do espaço, descortinando-se aspectos políticos a) Através da produção agrícola e do fornecimento de ma-
e institucionais que comandam a dinâmica da vida local. térias-prima, de importância ainda fundamental para
Em seu conjunto, estas considerações acerca do modo o consumo dentro dos próprios territórios e fora deles
como se pode incorporar a dimensão territorial nas pes- (“exportação”);
quisas sobre agricultura familiar e o desenvolvimento ru- b) Mediante as relações entre o campo e a cidade (rural-
ral estão muito próximas dos eixos de investigação suge- urbanas), valorizando o rural como uma opção possí-
ridos por Sabourin (2002: 31), que havia enfatizado e vel de vida não só para os que já vivem no campo, como
sugerido três temas como objeto de pesquisa, a saber: pri- também para parte das populações citadinas, sobretu-
meiro, investigar as ações e formas de coordenação que do, em função das amenidades ambientais para o la-
permitiriam uma representação mais democrática e diver- zer e o turismo;
sificada da sociedade civil para que possa ter acesso à in- c) Através da descentralização das atividades industriais,
formação e às tomadas de decisão; segundo, desenvolver que acaba direcionando contingentes populacionais
a capacidade de análise e de representação dos territórios, para o campo e, conseqüentemente, ampliando as de-
dos atores e das instituições, para que possam adquirir mandas por serviços e/ou fazendo surgir novas;
uma visão territorial do desenvolvimento; e terceiro, recon- d) Pela via da valorização das atividades não-agrícolas
siderar as lógicas do desenvolvimento e questionar os pro- que ocorrem nos espaços rurais (pluriatividade), pro-
cessos de produção e mobilização dos recursos e atores . porcionando novas alternativas de geração de renda
Para além das vantagens consideradas acima, que de- através do comércio no interior e para o exterior dos
rivam da utilização do território e da abordagem territori- territórios;
al como ferramenta de estudo para se compreender a di- e) Por meio de novas relações entre produtores e consu-
nâmica da agricultura familiar e do desenvolvimento rural midores, freqüentemente incipientes, dando ênfase à
em um determinado espaço, cabe lembrar que também qualidade dos alimentos e às formas ambiental, econô-
existem restrições e limites que essas perspectivas ainda mica e socialmente sustentáveis.
precisam superar. O segundo obstáculo para o desenvolvimento territori-
Uma primeira restrição, que precisa ser adequadamente al rural retoma a questão da participação. Nesse caso, é
compreendida refere-se à questão das imposições externas válido citar os argumentos de Navarro (2001), que indi-
aos territórios, que podem assumir caráter jurídico, polí- ca, como “calcanhar-de-aquiles”, a debilidade política das
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organizações representativas dos atores do meio rural, so- cia se faz contornando e superando conflitos.
bre os quais reside um papel importante no processo de Neste sentido, parece valer a sugestão de Boaventura
desenvolvimento e mudança social. Também Martins de Sousa Santos que acredita que “mais do que uma teo-
(2000) havia salientado a fragilidade e a tendência à ano- ria comum [para a transformação social], do que necessi-
mia nos movimentos sociais. Além disso, conforme ressal- tamos é de uma teoria da tradução que torne as diferen-
tou Abramovay (2003), ações de organizações sociais ou tes lutas mutuamente inteligíveis e permita aos actores
políticas públicas podem ter sua eficiência e direção com- colectivos ‘conversarem’ sobre as opressões a que resistem
prometidas em razão de configurações de poder já exis- e as aspirações que os animam” (2000, p. 27).
tentes no local.
Parte não desprezível dos estudos e da literatura dis-
ponível sobre a participação dos atores em processos de
desenvolvimento revelam desconfiança, dúvidas e hesita- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ções quanto ao interesse, e mesmo, capacidade das orga-
nizações da sociedade civil de responder às expectativas de ABRAMOVAY, R. O futuro das regiões rurais. Porto Ale-
que são depositárias. Talvez o caso do Orçamento Parti- gre: UFRGS, 2003.
cipativo (OP), patrocinado pelo Partido dos Trabalhado-
res no Brasil, seja um bom exemplo. Seja como for, o que ANDRADE, M. C. A questão do Território no Brasil. São
pode ser ressaltado é o fato de que a própria concepção Paulo: Hucitec, 1995.
de desenvolvimento deveria incorporar, como uma de suas
prerrogativas, a idéia de que não bastam melhorias pro- ARENDT, H. Da violência. Brasília: UnB, 1985.
dutivas, econômicas e sociais se estas não forem acompa-
nhadas de uma aprendizagem que permita que as pesso- BAGNASCO, A. La función de las ciudades en el de-
as sejam capacitadas para, ao final, ser incumbidas de sarrollo rural: la experiencia italiana. In: Políticas Agrí-
assumir a responsabilidade pela sua continuidade. Isto sig- colas, Nº Especial, Memoria del Seminario Interrelaci-
nificaria romper com a “domesticação” e a dominação e ón Rural-Urabna y Desarrollo Descentralizado, Taxco,
promover a participação para a emancipação, o que só é México, 1997.
possível à medida que o próprio processo de desenvolvi-
mento gere e progrida com base em formas de participa- BECKER, B. K. O uso político do território: questões a
ção política substantivas. partir de uma visão do terceiro mundo. In: BECKER, B.
O último obstáculo, em relação à abordagem territo- K; COSTA, R; SILVEIRA, C. (org.). Abordagens políti-
rial do desenvolvimento, diz respeito ao conflito, consi- cas da espacialidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 1983.
derado como um resultado do modo de interação entre
indivíduos, grupos ou coletividades que pressupõe diver- CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da socieda-
gências em relação ao acesso a recursos e embates nos de. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
processos decisórios. Aqui, é possível coincidir com a po-
sição de Cazella (2005) que, inspirando-se em Olivier de CASTRO, I. E. de. O problema de escala. In: CASTRO, I.
Sardan (1995) e Hirschman (1996), destaca que a ques- E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (org.) Geografia:
tão dos conflitos geralmente é mal compreendida. Para conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
Cazella (op. cit.), é preciso rediscutir o papel dos medi-
adores que, não raro, possuem uma percepção deturpa- CAZELLA, A. A. Vantagens diferenciadoras e mediações
da da realidade que acaba asseverando as desigualdades de conflitos: desafios das políticas de desenvolvimento ter-
entre os atores presentes no território ao não serem ca- ritorial. Seminário Nacional de Desenvolvimento Rural
pazes de reconhecer e identificar posições sociais e for- Sustentável, CONDRAF (Conselho Nacional de Desen-
mas de dominação, em grande parte por não estarem volvimento Rural Sustentável), Brasília/DF, 23 a 25 de
habilitados a fazer tal diagnóstico. Segundo, porque os agosto de 2005.
conflitos e disputas, como previra Hirschman, podem ter
um caráter pedagógico e servir como fator de socializa- CHAYANOV, A. V. La Organización de la Unidad Eco-
ção e coesão social, além de revelar que uma democra- nomica Campesina. Buenos Aires: Nueva Vision, 1974.
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