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Bonsais

Sentada no banco passageiro e com pensamentos interpondo-se em múltiplas camadas, Ana


mantinha seus polegares em frenético movimento enquanto digitava comentários nos grupos e
para contas privadas de seu aplicativo de mensagens. O movimento de seus polegares era quase
incessante, todavia, ocasionalmente paravam – enquanto seus olhos pensativos se erguiam
mirando para frente e para cima na tentativa de buscar na mente a reformulação de um
raciocínio – e logo em seguida voltavam à tela do celular para darem voz ao pensamento através
de entrecortados comentários em sua composição textual.

A mão esquerda de Ana, com sua textura aveludada e tez clara, repentinamente interrompeu o
que fazia no celular e, num suave movimento, dirigiu-se ao painel central do carro. Ana
intencionava ligar o rádio e sintonizar em uma estação local a fim de acompanhar as últimas
notícias. Encontrou uma estação na qual estava em andamento uma entrevista que lhe chamou a
atenção. O convidado do dia para aquela entrevista era um renomado infectologista que já havia
sido entrevistado em emissoras de TV locais, bem como em outras estações de rádio. A
dinâmica da entrevista conferia-lhe a aparência de uma conversa informal, no entanto, o tom era
grave; a tônica da conversa girava em torno das últimas medidas restritivas ao avanço da
pandemia, bem como sobre as lotações dos leitos UTI para COVID-19. A anfitriã – âncora do
noticiário matinal naquela estação de rádio – inquiria seu interlocutor acerca dos
posicionamentos tomados pelo poder público no combate à pandemia, a fim de saber se, de fato,
aquelas medidas seriam garantidoras de higidez para a população ou se não teriam a eficácia
prometida; a bem da verdade era possível perceber o tom provocador da anfitriã em seus
questionamentos, uma vez que seu público era bastante polarizado e afeito a discussões
acaloradas nos perfis daquela estação em plataformas e aplicativos de redes sociais. Nas
respostas do entrevistado, uma voz cansada e tom monótono que tornavam penosa a tarefa de
acompanhar seu raciocínio, enquanto a atenção de quem dirigia o carro era dividida entre os
comentários do infectologista e a via estreita à sua frente – acessória e perpendicular à via
central – apinhada de veículos conduzidos por indivíduos com olhares fitos na pista durante seu
afluxo laboral cotidiano, na azáfama peculiar daquela hora do dia.

Durante o fluxo de carros e motocicletas em ziguezague por entre os estreitos espaços deixados
pelos carros na avenida, o semáforo passou de verde a amarelo e imediatamente interrompeu o
vagaroso movimento dos automóveis ao acender a luz vermelha.

Pedro, ao lado de sua esposa Ana, esforçava-se para entender a dicção esquisita do
infectologista e o discurso proferido em tom cansativo e monótono enquanto repousava suas
mãos sobre o volante; mas a monotonia das respostas e a estranha dicção dificultavam sua
compreensão. Seu cérebro, talvez como mecanismo de defesa para evitar o tédio, arrancou de
seu subconsciente uma música que tinha escutado há algumas semanas e, num reflexo imediato,
começou a cantar – quase num murmúrio – a versão de Wuthering Heights executada pela
banda de heavy metal Angra – belíssima canção magistralmente interpretada por André Matos
com sua agressiva e ao mesmo tempo cristalina voz. Pedro, ao cantarolar a primeira estrofe da
música, girou a cabeça para seu lado esquerdo e observou uma cena pitoresca no canteiro
central: jarrinhos nas mais variadas formas, cheios de terra preta e ostentando adoráveis bonsais.

O verão ainda não havia terminado, mas o inverno prenunciara sua chegada na madrugada
anterior com chuva fina ao longo da noite. E embora já houvesse estiado, aquela agradável
chuva proporcionara um clima ameno pela manhã, de modo que uma brisa mansa soprava as
delicadas folhas dos bonsais.

Por breves segundos Pedro se desconectou daquela sandice angustiante pronunciada através das
ondas sonoras do rádio e, num lampejo de júbilo, voltou-se para Ana e comentou: Acho tão
bonitas essas plantas em miniatura. Que arte incrível são esses bonsais! Tem gente que compra
esses bonsais, mas eles cresem e deixam de ser essas... essas... preciosidades! Isso!
Preciosidades! Acho que isso acontece porque não aplicam a técnica correta. Ainda vou
comprar um bonsaizinho desses pra termos em casa. Alguém já me disse que lá no viveiro de
mudas vizinho ao Ceasa tem um especialista em bonsais que dá um minicurso. Ensina os
cuidados básicos e também as técnicas mais sofisticadas pra dobrar galhos e troncos. A gente
consegue dar a forma que quiser e também mantê-los assim, nesse tamanho.

Enquanto discorria sobre bonsais, o semáforo abriu. Ana, que prestava atenção na conversa de
Pedro, porém sem pronunciar qualquer palavra, tocou em seu braço e disse: amor, o sinal abriu.

Voltando sua atenção para o trânsito, Pedro debreou e engatou a primeira marcha. Seguiu
adiante e logo tomou a via à sua direita – uma das principais avenidas de sua cidade – prestando
atenção no trânsito e observando as altas árvores plantadas no canteiro central.

Os bonsais tinham ficado para trás, mas não a impressão que causaram em Pedro.

Enquanto o noticiário do rádio vaticinava um possível cenário devastador com miríades de


enfermos e centenas de mortos, a vida vibrante em forma de arte milenar saltara aos olhos de
Pedro e impregnara sua alma com esperança, com planos para o futuro e com a dose de alívio
diário para as angústias do mundo.

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